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A Dimensão Transcendental do Homem

Sabemos muita coisa sobre o ser humano. Mas, analisando seu


comportamento histórico e auscultando seus anseios, é fácil constatar que o
ser humano quer sempre mais; tem sempre as mais altas aspirações.
Tentaremos, em breves linhas, analisar um dos mais profundos e essenciais
impulsos do ser humano: a Autotranscendência.
Estudaremos este tema à luz da Filosofia e da Antropologia. Este estudo
faz parte da Metafísica antropológica. O termos transcendência vem da raiz
grega: scando = subir, escalar... O latim assimilou o grego e tem o verbo
scando, scandere = subir, escalar, superar. Autotranscendência (auto + trans
+ scando) = ir além e acima de si próprio.

1. O que sabemos
Conhecemos o Homem como matéria e como ser vital. Sua inteligência 3
compreende muita coisa e pesquisa tudo. Sua vontade e seus desejos o
impulsionam para diversos objetivos. Sabe como se comunicar e aprende a
viver socialmente (Dimensão Social). Adquire conhecimentos, sabe produzir e
criar (Dimensão Intelectual). Tem senso de humor e se diverte: sente, ama, se
apaixona (Dimensão Emocional). Conhecemos alguma coisa do seu mundo
psíquico e de sua dimensão religiosa. Isto é tudo? Não!

2. Ele quer mais


Analisando a história da humanidade e observando o comportamento
humano, tanto pessoal como social, notamos que ele quer progredir, não só
materialmente, mas também em outros campos. Conforme A. Manenti (1990),
“entre as necessidades fundamentais do homem, a mais importante é a da
realização: um contínuo impulso a aproveitar os próprios talentos para metas
que tenham significado”.
“Superou-se a si mesmo”, é a expressão muito usada. Esta superação
parece não ter limites. Um pensador francês disse: “O Homem é peregrino do
absoluto” (Lèon Bloy, 1968). Aspiramos, mas nem sempre conseguimos; por
isso podemos afirmar: o Homem tem coração de água e asas de pardal.
A autotranscendência foi estudada por filósofos, teólogos e psicólogos
modernos. Destacamos: Battista Mondin, Roger Garaudy, Friedrich W.
Nietzche, Jean-Paul Sartre, Karl Popper, Maurice Blondel, Martin Heidegger,
Karl Rahner, Karl Jasper, Ernest Bloch, Gabriel Marcel, entre outros.

3. Definição
“O Homem é o que É; MAIS o que não é, mas para o qual aspira”.
O Homem não é somente o que é; é também tudo o que não é, tudo o que lhe
falta, tudo o que aspira. Homem e animais são constituídos por uma dimensão
biológica, uma dimensão psicológica e uma dimensão social, contudo, o
homem se difere deles porque faz parte de seu ser a dimensão noética. Em
nenhum momento o homem deixa as demais dimensões, mas a essência de
sua existência está na dimensão espiritual.
Assim, a existência propriamente humana é existência espiritual. Neste
sentido, a dimensão noética é considerada superior às demais, sendo também
mais compreensiva porque inclui as dimensões inferiores, sem negá-las - o que 4

garante a totalidade do homem (Frankl, 1989a).

4. Autotranscendência
Segundo Battista Mondin (1990), “a autotranscendência é o impulso
para o Salto, para além dos confins do espaço, do tempo, da matéria, da
natureza e da história. É um Salto na direção do horizonte eterno, do infinito, do
imaterial e do espírito”.
A autotranscendência é a essência da existência. É o movimento com
que o ser humano ultrapassa, sistematicamente, a si mesmo, em tudo o que
quer, pensa e realiza. O Homem é um ser essencialmente aberto, que não se
fecha nunca sobre si mesmo (F. Teixeira, 1995). Para Garaudy (1981), a
transcendência revela a consciência da não realização do homem, a dimensão
do infinito.

5. Espécies
Fazemos esta separação para melhor compreensão: a)
Transcendência horizontal-histórica-temporal; b) Transcendência vertical-
metafísica-sobrenatural.
sobrenatural. Elas não são antitéticas, opostas ou separadas,
porque a transcendência horizontal adquire sentido e realidade, apenas
mediante a transcendência vertical. Mas,
Mas, aqui há diversidade de opiniões.
A primeira foi defendida por M. Heidegger, R. Garaudy, Herbert
Marcuse,, E. Bloch. O Homem, realmente, é transcendente em relação a todos
os seres deste mundo.
Ela se realiza na história do homem com as obras que ele produz.
prod
Tudo é confinado no homem e no tempo, aqui, nesta existência. Não te caráter
metafísico ou sobrenatural. Aqui temos o progresso, o bem-estar,
bem o
consumismo, a “felicidade” que se constrói a partir do homem para o homem. É
puramente antropocêntrica. Na verdade,
v trata-se
se de um transcender sem
transcendência. A horizontalidade é o terreno das suas possibilidades e suas
realizações.

Gráfico 1: A existência animal, instintiva.


Transcendência horizontal-histórica-temporal
horizontal

Na sua dialética, Heidegger pensa que tudo vai para o nada porque a
morte é a última possibilidade do homem. Para Marcuse, Bloch, Heidegger, a
transcendência é uma abertura para o vazio; uma utopia porque nunca será
realidade.

A segunda foi defendida por outros pensadores, como: L. Boros, J.B.


Metz, K. Rahner, B. Mondin. Ela se realiza a partir do homem fazendo sua
história, mas aponta para o alto, para os valores cada vez mais estáveis,
perenes, divinos. Ela é teocêntrica. Somente dando à autotranscendência
autotranscendên um
sentido teocêntrico, se chega a uma explicação satisfatória deste traço capital
do fenômeno humano.
Gráfico 2: A existência humana, transcendental
Transcendência vertical-metafísica-sobrenatural.
vertical

Para K. Rahner, a autotranscendência tem cunho eminentemente


teológico; ela aponta para o transcendental absoluto, onde encontra sua plena
realização.

6. Soluções para o sentido da autotranscendência


a) Egocêntrica: aqui é procurado o bem estar para si mesmo e não o bem
em si mesmo. O objetivo primário é o aperfeiçoamento do sujeito. O 6
homem cresce, realiza suas potencialidades visando o bem estar, uma
gratificação mais ou menos egoísta, narcisista. Ao observar a sociedade,
soc
vemos que esta solução não é resposta à condição humana. Nunca vi um
egoísta feliz. Ninguém admira as atitudes do egoísta. Aqui é normal
encontrarmos o vazio, a inveja, o ciúme, as intrigas, o orgulho, as guerras...
A sociedade de consumo é mais ou menos isso.

b) Filatrópico-social: ela tem algo de positivo e bom porque possui a


dimensão social. Visa uma nova sociedade pacífica, solidária, satisfeita.
Porém, sabemos que o homem e a história caminham; quando
chegaremos lá? No ano 2500? E o homem atual? A verdadeira
transcendência não fica resolvida para aqui e agora. Esta solução não
oferece nenhuma resposta ao problema pessoal de cada um; são
desatendidas e iludidas as esperanças reais do homem de hoje. O Certo é
que o homem não consegue dar respostas satisfatórias ao próprio homem.
Isto porque toda pessoa é incompleta e não pode dar (completar) aos
outros aquilo que não tem.
c) Teocêntrica: “Na medida em que nós prestamos atenção no nosso
próprio perguntar e nos pomos a interrogá-lo, nasce a indagação sobre
Deus. Temos no Coração uma orientação inata para o divino”. (B.
Lonergan, 1971). Para K. Rahner, a autotranscendência é uma abertura
que desemboca no absoluto. É um movimento que exige um sentido, um
objetivo, uma meta. Esta meta só pode ser o divino, o SER Absoluto,
Eterno, Pessoal. A solução do problema antropológico só se encontra no
Transcendente.

7. A natureza humana – espiritual


Comparando o Homem com toda a natureza, notamos que ele tem um
componente essencial totalmente diferente. “A autotranscendência é expressão
clara e inconfundível de espiritualidade e de imaterialidade; é também sinal
mais certo e evidente da espiritualidade da alma” (B. Mondin, idem). A natureza
espiritual do Homem é evidenciada pela transcendência.
Para os pensadores cristãos, a autotranscendência é, por assim dizer,
o último fundamento de sua espiritualidade e sobrevivência depois da morte.
Isto posto, a vida tem sentido quando existe uma meta, um ideal, um objetivo 7

transcendente pelo qual vale a pena lutar, viver e morrer. O sentido da vida não
pode ser inventado; antes, tem que ser descoberto (V. Frankl, 1986).
Outra reflexão importante, diz respeito aos valores. Vivemos em função
daquilo que nos parece ter valor. Os valores instrumentais (chamados: meios)
devem ser vividos em função dos mais altos. Os valores fundamentais, sólidos
e estáveis são os ideais objetivos, altruístas, perenes, revelados, teocêntricos.
“Os verdadeiros valores são como a nuvem que guiava o povo hebreu na
travessia do deserto. Eles não permitem o desvio de rota” (V. Frankl, idem). A
escala de valores é construída a partir do Definitivo e não do passageiro.
Aqui cabem algumas perguntas:

Aqui cabe algumas perguntas:


O que valoriza a sociedade atual? Quais os “deuses” do homem
moderno? O que significa o Ter, o Poder, o Prazer e o Parecer?
8. A existência de Deus
A estas alturas é preciso refletirmos sobre a existência de Deus. “Nós
somos a desproporção entre o Ideal e o Real, mas tendemos para a identidade;
tal identidade é o próprio Deus”. (B. Mondin, ibidem).
Os cristãos, judeus e muçulmanos acreditam na existência (revelação)
de um Deus pessoal, bom, perfeito, criador do universo. Na sua
transcendentalidade, o homem é chamado no fim de tudo, a servir e amar a
Deus neste mundo e a gozá-lo, eternamente, no outro.
Há os que não aceitam Deus; são os ateus. Para eles, a vida
desemboca na morte. Alguns defendem a ideia de que a existência de Deus é
uma fabricação psíquica, como necessidade psicológica, de segurança; uma
projeção divinizada das características e potencialidade humanas, como
suporte necessário para viver (cf. FEUERBACH, Ludwig. A essência do
Cristianismo. Petrópolis: Vozes, 2007).
Existem os que tem uma imagem mais ou menos deturpada de Deus,
devido a falhas na sua formação. “Não é difícil fazer de Deus uma múmia:
basta reservar-lhe um lugar secundário e um papel passivo em nossa vida”. (B.
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Lonergan, idem).
Existe no cérebro humano (no hipotálamo) uma região que se relaciona
com o transcendente. Quando ativada (no estado de oração e meditação) a
pessoa manifesta sentimentos religiosos.

9. O Homem no seu vir-a-ser


Em nossa caminhada é possível perceber que nosso coração tem
grandes aspirações, mas a nossa inteligência não capta totalmente este
estado, nem lhe dá resposta adequada. Então, é normal vivermos numa
relativa, mas constante tensão, insatisfação.
Podemos tomar consciência da autotranscendência, sobretudo nos
estados e situações-limite: o sofrimento, a luta, a angústia, o fracasso...
Seria bom um estudo sobre o prazer. Quanto mais o homem corre
atrás do prazer, mais este se esquiva e mais a pessoa se sente frustrada. “Se o
prazer fosse o sentido da vida, a vida não teria propriamente sentido algum”.
(V. Frankl, ibidem).
O hedonismo simplesmente nos anestesia, fazendo pensar que nisso
está nossa plena realização, nossa única felicidade. Temos muito trabalho, as
tarefas nos absorvem. O mundo, com suas frivolidades, nos envolve; muitas
“abobrinhas” nos absorvem. Não temos tempo, não conseguimos levantar a
cabeça e procurar nosso horizonte aberto, amplo, infinito. Estas “abobrinhas”
de cada dia, adicionadas aos pequenos e fúteis prazeres de cada momento,
nos impedem de ver, sentir nosso dinamismo transcendental. Seguidamente
absolutizamos cada momento, cada coisa, cada emoção. Assim, nossa vida se
impregna de vazio, angústia, tristeza, depressão, enjôo, perda de sentido da
vida, baixo-astral, etc. não raro as coisas materiais criam uma cortina que nos
impedem ver o além.

10. Para não concluir


A temática de transcendência, ou da autotranscendência, é
fundamental para compreendermos a nós mesmos. Não podemos falar de
religião, religiosidade, espiritualidade, crença, sem antes, nos conhecermos.
Está no coração do ser humano a busca constante, seja por um sentido para
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viver, ou pelo qual lutar. Porém, o transcendente sempre fez parte desse
processo, dessa busca.
Conforme visto, alguns autores defendem a ideia da busca espiritual,
seja ela numa religião institucionalizada, numa corrente espiritual, ou até
mesmo numa forma de crença mais "laissez faire”, com o intuito de humanizar
as relações, de voltar o olhar para aquilo que faz da vida humana, humana.
Algumas pistas auxiliam as pessoas a pôr em prática sua humanidade
e a encontrar sentido na vida: amar, prestar serviço, doar-se, ser gratuito, ser
generoso,...
“Senhor, nos fizestes para Vós, e o nosso coração está inquieto
enquanto não descansar em Vós”.
Santo Agostinho, Confissões I,1

11. Referências bibliográficas


MONDIN, Battista, Quem é Deus? Elementos de teologia filosófica, 1990. Trad.: José Maria de
Almeida. S. Paulo: Paulus, 1997: pp. 128-178.
FARIA, Octavio de. Leon Bloy. Rio de Janeiro: Record, 1968.
FRANKL, Viktor. La presencia ignorada de Dios (Tít. orig.: Der unbewusste Gott). 6ª ed.,
Barcelona: Herder, 1986.
GARAUDY, Roger. Ainda é tempo de viver. São Paulo: Nova Fronteira, 1981.
LONERGAN, B. In: HENRIQUES, Mendo Castro. Bernard Lonergan - uma filosofia para o
século XXI. São Paulo: É Realizações: 2010.
MANENTI, A., Vocação, Psicologia e Graça. São Paulo: Loyola, 1990.
TEIXEIRA, Faustino. Karl Rahner e as Religiões - Teologia das religiões. São Paulo: Paulinas,
1995.

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