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ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA: ALGUMAS POSSIBILIDADES DE COMPREENSÃO

DO HUMANO

Prof. Angelo J. Salvador1

Resumo

O presente artigo analisa o ser humano enquanto ser de possibilidades. Ele é um ser no
mundo, lançado e a priori marcado por aquilo que a natureza o condiciona a ser: um animal
marcado por limites biológicos; todavia, ele transcende essa condição modificando a si
próprio e o mundo por meio do trabalho. Por fim, a cultura é o ponto final da análise desse
artigo ao destacar a dimensão humana e sua necessidade de conferir sentido ao mundo. Tal
temática apresenta sua relevância principalmente em tempos da perda de confiança no
humano enquanto ser capaz de transcendência. A análise está circunscrita nos limites da
antropologia filosófica e o objetivo principal é demonstrar como o homem é um ser de
ruptura capaz de criar e recriar a realidade. A metodologia se baseia na exegese de textos de
pensadores que problematizam o homem enquanto ser no mundo chamado a oferecer a si
mesmo um sentido à realidade. Pretende-se, por este artigo, apresentar uma compreensão do
ser humano que vai além do entendimento de grande parte do pensamento moderno que
estabelece o homem apenas em sua condição racional. Se espera por meio desse estudo
ampliar o horizonte a respeito da compreensão da singularidade do humano em sua
capacidade de se fazer com os outros.

Palavras-chave: natureza, liberdade, trabalho, cultura, humano

This article analyzes the human being as a being of possibilities. He is a being in the world,
released and a priori striking by what nature conditions him to be: an animal marked by
biological limits. However, he overcomes this condition by modifying himself and the world
through work. Ultimately, human dimension and its need to give meaning to the world are
highlighted taking culture as the endpoint of this article. This topic is especially relevant
during periods when confidence in the human capacity to transcend is lost. The analysis is
based on philosophical anthropology, and its main objective is to demonstrate how man is a
being of rupture capable of creating and recreating reality. Its methodology relies upon the
exegesis of texts whose authors problematize the human being as a being inhabiting a world
where he is called to offer himself a sense of reality. It intends to present an understanding of
the human being that goes beyond the understanding of much of the modern thought that
establishes man only in his rational condition. It is expected here to broaden the horizon
regarding the comprehension of human uniqueness based on the ability to do oneself from the
other.

Keywords: nature, freedom, work, culture, human

1
Professor do departamento de filosofia da PUC Minas e coordenador de Pastoral na Unidade PUC
Minas Praça da Liberdade.

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1. Natureza, liberdade, mundanidade, trabalho e cultura: o fazer-se humano

A famosa escultura de Bobbie Carlyle possibilita pensar o homem em sua dimensão


filosófico-antropológica. Ele é semelhante a uma rocha a ser lapidada: não há uma única
maneira de se fazer a não ser aquela desejada por ele. Se há uma natureza humana é
justamente aquela em que reflete o ser humano no horizonte de uma natureza aberta a
inúmeras possibilidades. Ao analisar a presença do ser humano no mundo é evidente sua
capacidade de modificar a realidade. A escultura está aberta a inúmeras interpretações e uma
delas que é o homem é um ser que está contínua transformação. Todavia, o humano não se
faz sozinho ele está inserido no mundo com outros humanos que ao compartilharem o mundo
por meio das mais variadas formas de compreendê-lo conferem novos significados. O Eu e o
Nós estabelece o ponto de partida para a reflexão antropológica sobre a dimensão humana.

1.1 Natureza e liberdade

A antropologia filosófica busca compreender o fenômeno humano:o que explica a


singularidade do homem diante dos outros seres vivos? O que o diferencia? É somente sua
capacidade intelectiva? Nesse aspectopara Rousseau é evidente que os animais possuem um
aparato que se aproxima do ser humano: “Todo animal tem ideias, visto que tem sentidos;
chega mesmo a combinar ideias até certo ponto e o homem, a esse respeito, só se diferencia
da besta pela intensidade” (ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a Origem e os
Fundamentos da Desigualdade entre os homens. São Paulo: Nova Cultural, 1999, p. 64). Por
isso, Rousseau não considera a inteligência ou a capacidade de sentir prazer ou dor o
principal diferencial entre homens e animais. Para ele a diferença fundamental reside em
outro aspecto, a liberdade. Rousseau argumenta:

Não é, pois, tanto o entendimento quanto a qualidade de agente livre possuída pelo
homem que constitui, entre os animais, a distinção específica daquele. A natureza
manda em todos os animais, a besta obedece. O homem sofre a mesma influência,
mas considera-se livre para concordar ou resistir, e é sobretudo na consciência dessa
liberdade que se mostra a espiritualidade de sua alma, pois a física de certo modo
explica o mecanismo dos sentidos e a formação das ideias, mas no poder de querer,
ou antes, de escolher e no sentimento desse poder só se encontram atos puramente
espirituais que de modo algum serão explicados pelas leis da mecânica
(ROUSSEAU, 1999, p. 64).

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Rousseau argumenta que o animal segue um instinto já dado, uma espécie de
programa comum à sua espécie. O animal não tem liberdade para se furtar desse código
prévio, vivendo de forma perfeita, de acordo com sua natureza. Talvez um pássaro, num
momento de extrema fome, possa até tentar se alimentar de algo que não faz parte de sua
dieta, mas seu código natural não lhe deixará passar além disso e ele fatalmente morrerá (cf.
ROUSSEAU, 1999, p. 64).
No ser humano o que ocorre é bem diferente. Apesar de ser formado por um corpo
que dotado de uma estrutura biológica dada a priori, o homem consegue – por ser livre –
opor-se ao seu “destino”. Por exemplo, os biólogos já apontaram que, pelo formato dos
dentes, o ser humano não deveria se alimentar de outra coisa a não ser vegetais. Todavia, ele
supera sua natureza e submete seu “instinto”. Contudo, tal superação nem sempre é positiva:
como ressalta Rousseau, “os homens dissolutos se entregam a excessos que lhes causam febre
e morte, porque o espírito deprava os sentidos e a vontade ainda fala quando a natureza se
cala” (Ibidem., p. 64).
Esse “rebelar-se” contra a natureza, esse excesso, enfim, a constante possibilidade de
transgressão, reflete o quão singular é o ser humano. Dele é possível esperar o pior e o
melhor, o mal absoluto e a generosidade mais surpreendente. É esse transbordamento humano
que se eleva acima da natureza que Rousseau e Kant chamam de liberdade. Portanto, o que
torna o homem humano é justamente essa possibilidade de escolha que o distingue do animal.
Na trilha dessa concepção rousseauniana, Sartre não poupou esforços ao argumentar
que o ser humano está condenado à liberdade:“O homem é tão somente, não apenas como ele
se concebe, mas também como ele se quer, como ele se concebe após a existência, como ele
se quer após esse impulso para a existência. O homem nada mais é do que aquilo que ele faz
de si mesmo”(SARTRE, Jean P. O Existencialismo é um Humanismo. Petrópolis: Editora
Vozes, 2012. p.10).
Ainda no desenvolvimento dessa argumentação, para o filósofo Lima Vaz o processo
fundamental que possibilita a suprassunção do animal ao ser humano, que o permite sair dos
limites impostos pela natureza e começar a explorar o mundo é um momento paradigmático
que marca a historicidade humana. Esse momento fundamental é a saída do eidos para o
tético. O eidético é o que nos é dado, o corpo, a nacionalidade, a cidade natal, a língua entre
outras coisas mais. O tético, por outro lado, é o que podemos nos tornar, a quebra de
paradigma, o dever-ser, enfim é o sujeito que se põe a si mesmo no horizonte de
transcendência (Cf. LIMA VAZ, C.H. Escritos de Filosofia IV: Introdução à Ética Filosófica
I. São Paulo: Loyola, 1999).
3
Essa dimensão transcendental humana de fazer-se, possibilita pensar em uma natureza
humana aberta a ser o que ainda não é. Inclusive é possível negar a possibilidade de ser e se
fechar a à transcendência. Nesse aspecto, o pensar antropológico estabelece duas formas de
entender o ser humano: natureza e cultura. O ser enquanto natureza é constituído de sua
realidade física, material dominado pelos sentidos. Somos “corpo”, ou seja, seres finitos
dotados de uma biologia preestabelecida.
Não obstante sua constituição material, o homem transcende sua condição
biológica suprassumindo-a. Suprassumir é a capacidade de elevar e ao mesmo tempo
conservar. É válido ressaltar que não há aqui uma negação da dimensão corpórea em
detrimento do espiritual. Ambas as realidades, natureza e cultura, coexistem no mesmo ser.
Falaremos um pouco mais dessa dimensão corpórea a seguir.

1.2Um ser no mundo

O ser humano está no mundo enquanto temporalidade e espacialidade, ou seja, nós


nos estabelecemos nas categorias de tempo e espaço; o homem possui essa capacidade por
ser dotado de um corpo – soma. O espaço é uma intuição e está presente no sujeito a priori,
ou seja, anterior a qualquer percepção de um objeto, pois é uma intuição pura. O sujeito é
predisposto a ser afetado pelos objetos externos. Nestes termos, o espaço é a priori na
medida em que reside no sujeito e não em outro lugar. (cf. KANT, Immanuel. Crítica da
Pura. Petrópolis, RJ: Vozes, 2015, p. 78 - KrVB 45).
Por meio do corpo me estabeleço espacialmente e ao mesmo tempo experiencio
internamente os fenômenos externos a mim. Não apenas sinto as experiências externas, mas
também as próprias: a sensação de que o tempo está passando rápido demais, como por
exemplo, se ao lado de uma pessoa pela qual se demonstra grande afeição ou quando o tempo
passa devagar em uma fila longa ou na vivência de uma dor muito intensa. Tudo isso é
possível por sermos constituído de um Eu-corpo:

Uma das principais funções da somaticidade é a de “mundanizar” o homem, isto é,


de o fazer um ser-no-mundo. É por obra do corpo que o homem faz parte do
mundo; ele se reconhece constituído dos mesmos elementos do mundo, sujeito às
mesmas sortes e às mesmas leis, por causa do seu corpo (MONDIN, Battista. O
homem, quem é ele. São Paulo: Paulus, 2008, p. 33).

Husserl, Heidegger, Merleau-Ponty apresentam a somaticidade enquanto situação no


mundo e ao mesmo tempo que nos impõe restrições. Nesse sentido afirma Merleau-Ponty:
“[...] meu corpo é também aquilo que me abre ao mundo e nele me põe em situação”.

4
(MERLEAU-PONTY, Maurice.fenomenologia da percepção. 2ª ed. São Paulo: Martins
Fontes, 1999, p. 228). O meu corpo é a ponto basilar onde as coisas do mundo são
referenciadas.
O corpo também pode ser compreendido enquanto função epistemológica. “O meu
corpo é o lugar privilegiado no qual o mundo se divide, recebe múltiplos significados e torna-
se o universo humano” (MONDIN, 2008, p. 35). Nesse sentido o meu corpo é o “centro do
universo”; ele é a pedra fundamental o ponto indivisível no qual se opera a análise e a síntese
de tudo. Enquanto soma corpórea, o universo é, de certa forma, referenciado à minha
presença física. O universo, o diverso de mim, não apenas é transformado pela minha
perspectiva enquanto ser corporal, mas o universo também me transforma na medida em que
me relaciono com ele.
Eu atraio o mundo a mim e o delimito para que, num primeiro momento, se enquadre
dentro de meu horizonte. O corpo, nesse sentido, espelha o mundo a sua volta. Por exemplo,
os povos da floresta se pintam e utilizam elementos que lembram os animais, plantas e outros
elementos do seu ambiente circundante. Assim como, um pesquisador no Polo Norte traz
marcas típicas daquele mundo. Enfim, o corpo confere, dessa maneira, uma função
interpretativa do mundo por meio da experiência.
Por meio do meu corpo, indo mais além, não apenas interpreto o mundo, também o
possuo. “O corpo é antes de tudo indispensável para possuir existência. Eu existo possuindo
um corpo; quando o perco, morro, ou seja, paro de existir” (MONDIN, 2008, p. 36). O
homem, ao se instalar corporalmente em um lugar, ele estabelece ali um tipo de domínio. A
presença é fundamental para um estabelecimento efetivo. Em termos de “presença” virtual,
apesar das conquistas, nunca somos plenos senão nos fizermos presentes em nosso corpo
vivo. Nesse aspecto afirma Mondin: “a posse é uma dilatação do próprio corpo, da nossa
dimensão somática” (2008, p. 36). O carro que o condutor dirige não é apenas uma peça
desconexa de mim, mas a extensão do corpo.
Para Husserl, ainda na discussão sobre a compreensão do homem enquanto
corporeidade, dada a insuficiência para o acesso ao outro apenas por meio de um ego
pensante Husserl elabora outro caminho: o corpo vivente – em alemão Leib. A seguinte
passagem elucida esse conceito:
Entre os corpos desta natureza que são captados na minha propriedade, encontro, então,
com uma proeminência única, o meu soma, a saber, como o único que não é um simples
corpo, mas precisamente um soma, o único objeto no interior do meu estrato abstrativo de
mundo a que atribuo, em conformidade com a experiência, campos sensoriais, se bem que
em diferentes modos de pertença – campo de sensações táteis, do frio e do quente etc. –, o
único em que imediatamente ponho e disponho, e em que particularmente governo em cada

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um dos seus órgãos (HUSSERL, Edmund. Meditações cartesianas e conferências de
Paris. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013, p. 135).

Quando me apreendo enquanto um corpo vivente percebo o outro em seu corpo vivo;
ele é acessado também por ser um outro em sua corporeidade:

Admitamos que um outro homem entra no nosso campo perceptivo


primordialmente reduzido, isto significa: no campo perceptivo da minha natureza
primordial, surge um corpo que, enquanto primordial, é naturalmente apenas um
elemento determinativo de mim próprio – transcendência imanente. Que, nesta
natureza e neste mundo, o meu soma seja o único corpo que está e que pode estar
originariamente constituído como um soma – como um órgão funcionante –
implica, então, que o corpo ali, que é também apreendido como um soma, retire este
sentido de uma transferência aperceptivaa partir do meu soma e, portanto, o faça de
um modo que exclui uma comprovação efetivamente direta e, por conseguinte,
primordial dos predicados da somaticidade específica, uma comprovação através de
uma percepção em sentido próprio. E desde agora claro que só uma semelhança, no
interior da minha esfera primordial, ligando aquele corpo ali com o meu próprio
corpo, pode fornecer o fundamento motivacional para a apreensão analogizante do
primeiro como um outro soma (HUSSERL, 2013, p. 149).

Enquanto em Kant a compreensão de experiência permite conhecer os objetos


enquanto dados no tempo e no espaço e pensados pela dedução transcendental, em Husserl o
conhecimento de mim leva ao conhecimento não apenas das coisas, mas de um outro análogo
a mim. Nesse sentido, Husserl amplia as possibilidades epistemológicas do sujeito em relação
às coisas para uma relação ao outro que se constitui, também, como eu enquanto
corporeidade.
Pelo corpo me faço presente no mundo e os alter-ego em sua corporeidade não apenas
conhecem o mundo por meio de um ego pensante, mas enquanto corpo vivo que experiencia
o mundo e o partilha por meio das subjetividades que agora não são mais mônadas, mas
participantes de um mundo partilhado.
Diante do exposto algumas consequências podem ser elencadas: 1 – a somaticidade é
um componente essencial do ser do homem. Sem ela o ser humano não é mais humano,
porque é incapaz de realizar muitas atividades que são tipicamente suas, como sentir, cantar,
trabalhar, escrever entre outras coisas mais2. 2 –Não obstante a importância da condição
somática supero os limites do meu corpo. O homem, ao transcender sua somaticidade, revela
sua vocação à universalidade: “o corpo é perfeitamente o superado. O corpo é aquilo além do
qual eu estou, quando estou imediatamente presente no corpo ou à mesa ou à arvore
longínqua que vejo” (SARTRE, Jean Paul. Létre et lanéant. Gallimard, Paris, 1943, p. 390). 3
– O corpo não é o homem, mas epifania intransponível desse mistério. 4 – O corpo revela a
2
Cf. AQUINO, Tomás. Suma Teológica I. Questão 75, a. 4.

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finitude humana; não obstante a capacidade de transcendência, é complexo manter o corpo
em condições ideais: alimentá-lo, exercitá-lo, senti-lo, enfim, tudo revela o quão difícil é sua
finitude: as mãos revelam visivelmente os limites daquilo que podemos alcançar.
Em suma, A referência primeira e primordial sou eu mesmo constituído enquanto
corporeidade. Mas essa autorreferência não significa subjetivismo, mas o reconhecimento de
que sou soma e que parto dessa realidade para pensar e agir no mundo. As relações que
estabeleço no mundo estão constantemente me transformando ao passo que transformo o
mundo por meio de uma ação enquanto corporeidade; o trabalho é um exemplo
paradigmático dessa capacidade humana, não apenas modifico o mundo por meio do meu
corpo, mas o significo por meio do meu espírito. O trabalho é uma forma de espiritualizar o
mundo ao qual pertenço, pois não sou apenas corpo, mas um ser com capacidade de produzir
um mundo novo por meio de novas ideias e relações.

1.3O trabalho

De modo geral trabalho significa a atividade através da qual o homem


conscientemente modifica o mundo e a natureza com o intuito de prover suas necessidades
básicas. É por meio do trabalho que o homem “põe em movimento as forças de que seu corpo
é dotado a fim de assimilar a matéria, dando-lhe uma forma útil à vida” (MARX. O capital, v
I, parte III, cap. 7).
Um dos elementos que diferenciam o homem de seu ser natural é o trabalho e é na
modernidade que ele recebe maior significação. O conceito de trabalho foi depreciado em
todo o mundo antigo e a aristocracia é um exemplo que fundamenta esse conceito. Segundo
essa classe social, cada pessoa deve encontrar seu lugar na organização da cidade de acordo
com sua natureza pré-estabelecida. O trabalho, nesse contexto, é reservado aos escravos, ou
como em Platão3, à classe inferior.
A aristocracia é aquela que não trabalha, ou seja, é aquela com condições de almejar
os melhores cargos, comanda com autoridade e é amante do saber; se envolve nas batalhas,
pratica esportes e se exercita nas artes. A aristocracia tem a capacidade de contemplar o todo,

3
Para Platão o trabalho é tão desprezível que degenera o ser humano como um todo e é impossível que pessoas
provenientes de uma classe inferior almejem filosofar: “Também em relação às outras artes, a filosofia, mesmo
no estado em que se encontra, conserva uma eminente dignidade que a leva a ser procurada por uma multidão de
pessoas de natureza inferior a quem o trabalho servildeformou o corpo, ao mesmo tempo que lhes consumiu e
degradou a alma” (PLATÃO. A República. São Paulo: Nova Cultural, 1997, p. 205, grifo meu).

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ou seja, é hábil o bastante para apreender a ordem do cosmos e, por ter essa visão
privilegiada – uma theoria do todo - sua posição social é a melhor possível (cf. FERRY,
2012, p. 77).
A noção de economia política clássica, que estava fundamentada na concepção de que
a riqueza de uma nação consiste na quantidade de ouro acumulado, cede lugar, na
modernidade, ao conceito de trabalho. Desse modo a teoria política passa a refletir sobre o
fenômeno do trabalho e sua importância na geração de riqueza. Nesse aspecto Adam Smith
(1723-1790) promove uma nova compreensão a respeito desse tema no século XVIII. Ele é
autor de duas teses inovadoras em sua época. A primeira a de que o trabalho está na base da
produção da riqueza. Num período histórico marcado pelas teorias do mercantilismo e da
fisiocracia, a afirmação reformulou o pensamento econômico-político, em especial da teoria
do valor que passou a ser adotada por autores como Ricardo e Marx. Nesse aspecto, de
acordo com Marx, para entender a profundidade do conceito de trabalho é preciso relacioná-
lo com a condição humana.
Um dos problemas identificados na era moderna foi o fenômeno da expropriação da
força de trabalho. A força de trabalho é a mercadoria que o trabalhador vende ao capitalista
para receber seu salário. A questão fundamental é que o operário constrói produtos que
superam o valor que lhe é pago pela produção de bens. Esse processo é chamado de mais-
valia. As condições extremas das jornadas de trabalho aliado ao baixo salário levaram a
greves e conflitos que abalaram o capitalismo nascente.
Nessa configuração de mundo o trabalho nunca é compreendido como lugar de
realização das potencialidades pessoais. Entretanto, quando a virtude passa a ser não mais
uma atualização de natureza já dada, o trabalho torna-se algo até desconhecido. Não obstante
a profunda análise de Marx sobre o trabalho, para o homem moderno, quem não trabalha
corre o risco de estar fadado a uma vida miserável. A theoria não é mais a medida para uma
compreensão da realidade, mas a práxis.
A realidade e o próprio sujeito são modificados por meio de sua própria ação e é isso
que constitui o homem virtuoso. Se o mundo antigo preestabelecia o que a pessoa deveria ser,
o horizonte existencial dos modernos não é oferecido por algo transcendente, viver é uma
construção laboriosa. É necessário criar a própria transcendência, na verdade ela deve ser
inventada. O humanismo desponta então como a destruição de qualquer enquadramento
prévio e põe o homem no centro para que este viva seu ideal como devir. O horizonte de um a
priori bom e harmonioso que é dado de bom grado às pessoas já não existe.

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Outro conceito importante que surge nesse contexto é o de igualdade. O mundo antigo
é caracterizado pela hierarquia, um mundo aristocrático e holístico, pois nele o todo é mais
importante do que as partes. Em contrapartida, “o universo dos modernos será – ao menos em
princípio, para não dizer de fato - um mundo da igualdade, da democracia e do
individualismo” (FERRY, 2012, p. 79). Com a fragmentação do cosmos antigo o conceito
aristocrático de natureza cede espaço para o de igualdade porque a ordem e a hierarquia
deixaram de existir. Uma nova concepção antropológica produz novos conhecimentos, dentre
eles o estudo do próprio homem: a cultura enquanto ciência.

1.4A cultura

A palavra cultura vem do verbo latino colere, que tem o sentido de “cultivar”, “criar”,
“tomar conta” e “cuidar”. Para os antigos romanos, cultura significa o cuidado do homem
com a natureza – donde agricultura. De um modo bem genérico, muitos entendem cultura
como sinônimo de erudição. A pessoa culta – dotado de cultura – demonstraria um
refinamento social (cf. GOMES, Mércio Pereira. Antropologia: ciência do homem, filosofia
da cultura. São Paulo: Contexto, 2017, p. 33).
Essa concepção de cultura foi muito utilizada na sociedade brasileira por meio da
classe média e alta como sinônimo de status social. Todavia, na antropologia, não é esse o
tratamento dado ao termo cultura. Para os filósofos alemães do séc. XVIII, cultura significa
formação – em alemão é bildung. O ser humano, tanto no particular quanto no coletivo, se
desenvolve à medida que é submetido a processos de formação contínua. Nesse sentido, o
indivíduo é investido de cultura por meio da formação intelectual, independentemente de sua
origem social.
Outro modo de entender a cultura diz respeito à arte. O teatro, uma orquestra, a
exposição de arte contemporânea seriam manifestações sublimes da cultura. Também a
produção de canções papulares, folia de reis, danças folclóricas também fazem parte da
cultura. Portanto, cultura seria a produção artística de um povo.
Uma terceira categoria de cultura estudará os hábitos e costumes que identificam
determinado povo. Nesse sentido, os mineiros gostam de pão de queijo, ao passo que os
capixabas são ótimos no preparo da moqueca. O sul toma chimarrão e o sudeste café. O
nortista come rapadura com farinha e o nortista “o molho-de-tucupi”. Essa forma de
compreender a cultura se concentra na análise dos comportamentos de um povo. Também
essa forma de entender o fenômeno humano interessa à concepção de cultura na
Antropologia.
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Outra concepção de cultura diz respeito ao mundo simbólico de um povo, algo que
ultrapassa as classes sociais, a Religião ou a região. Por exemplo, essa acepção de cultura é
usada para afirmar que existe uma essência no modo brasileiro de ser. O “jeitinho” brasileiro
é uma forma de manifestação dessa compreensão. Também se pode dizer que os alemães são
extremamente organizados ou que os norte-americanos vivem em função do lucro
desenfreado. Nessa concepção cultural, uma única explicação cultural tenta abarcar o todo.
Ainda outra concepção de cultura, vai afirmar que a cultura é aquilo que está por trás
das atitudes e costumes de um povo. Esse é um conceito abstrato de cultura. Essa estrutura
incognoscível, ou seja, ela é um sistema inconsciente que determina o modo como as pessoas
se comportam, pensam e se posicionam no mundo.
O pensador inglês Edward Tylor, é considerado o primeiro pesquisador a promover a
cultura como ciência. Para ela a cultura é o todo complexo que inclui conhecimentos, artes,
moral, leis, crenças, costumes e quaisquer outras capacidades e hábitos adquiridos pelo
homem como membro de uma sociedade. Para uma compreensão filosófica de cultura
apresentamos duas formas básicas de compreensão de seu significado. A primeira possui um
carácter subjetivo. Mais ligado ao platonismo que entende cultura como algo a ser cultivado
enquanto processo educativo: “é o exercício das faculdades espirituais, mediante o qual elas
são postas em condições de dar os frutos mais abundantes e melhores que sua constituição
natural permita”. Do ponto de vista objetivo, a cultura é uma produção adquirida pelo homem
mediante o exercício das suas faculdades, espirituais ou orgânicas. Nessa segunda
compreensão a cultura não é vista apenas como processo de educação subjetiva, mas se revela
na interação do homem com seu meio (cf. V. Matheu, in MONDIN, battista, 2008, p. 177).
Nessa perspectiva filosófica o filósofo brasileiro Lima Vaz define Cultura da seguinte forma:

A paisagem humana é necessariamente construída pelas obras culturais, pois só elas


atestam ao homem a essência e o sentido de sua presença no mundo: a presença de
um sujeito que compreende, transforma e significa. Elas são a objetivação da
essência do homem como consciência-de-si. Portanto, o homem se realiza como
homem e emerge para o espaço humano da consciência de si mesmo no exercício do
ato de criação cultural ou de compreensão da obra de cultura: tal a dimensão de sua
presença no mundo. Assim, os condicionamentos exteriores de natureza variada que
modelam a obra cultural – e que a Antropologia Cultural longamente descreve –
fornecem a matéria à qual só o ato de compreensão, o ato humano por excelência,
confere um sentido. É este sentido que exprime a face subjetiva da cultura. Ele
define o plano de realização do homem como sujeito do processo cultural. Se o
mundo da cultura é o mundo no qual o homem se reconhece, só a compreensão do
seu sentido permite ao homem realizar-se como homem. O indivíduo regride a
estados e comportamentos que podem ser chamados de infra-humanos, quando
permanece estranho às significações do mundo cultural que o envolve. (Vaz, H. C.
de Lima. Cultura e universidade. Petrópolis: Vozes, 1966. p.5 - 6).

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Em suma, dado que o ser humano não é um ser acabado ele, em sua categoria de
transcendência, se faz e para isso se vale da cultura para significar e ressignificar seu mundo.
Quanto mais se compreende as estruturas culturais pelas quais o ser humano é formado,
mais condições ele tem de se modificar e se autorrealizar. Portanto, cultura, não diz respeito
apenas a conhecer determinados teóricos, livros ou certos hábitos, pois, para além disso,
cultura é o modo próprio como o homem rompe as condições impostas pela natureza e
produz seu próprio habitat. Pelo trabalho o homem modifica a matéria e põe em movimento
as forças produtivas para transformar materialmente o mundo. Na medida em que o homem
constrói seu próprio mundo se presentificando em sua corporeidade, por meio do trabalho,
ele produz cultura e é produzido por ela. Nesse sentido a cultura deve ser problematizada,
pois é carregada de contradições. Portanto, a crítica cultural não apenas relata o modo como
o homem produz o mundo, mas também como o homem explora o próprio homem e as
consequências éticas ao passo que coexiste com os outros.

CONCLUSÃO

Diante da breve análise realizada sobre possibilidades de compreensão de alguns


aspectos antropológicos, podemos dizer que o ser humano é um ser lançado no mundo
enquanto natureza, mas, ao contrário dos outros seres, se posiciona moldando a própria
existência. Ele se descobre enquanto liberdade, ou seja, não está pronto mostrando-se
enquanto um ser em construção. Essa construção não se dá fora do mundo, pois a
corporeidade se apresenta como elemento fundamental de compreensão do humano
enquanto situado no mundo. Essa presença mundana permite ao homem modificar o próprio
mundo por meio de sua força de trabalho; a capacidade humana de se posicionar frente à
natureza não é apenas um aspecto intelectual e sim uma capacidade de moldar a matéria para
benefício do próprio desenvolvimento do humano. Por último, em uma compreensão mais
geral do pensamos a cultura como o lugar próprio em que o ser humano constrói uma
segunda natureza. A cultura é o lar do homem, é seu habitat “natural” podendo modificá-lo
na medida de suas necessidades. Tudo isso revela que o ser humano é um ser em constante
transformação. Ele não está acabado e nenhum esquema, código ou mesmo filosofia, poderá
compreendê-lo em sua totalidade; caso assim aconteça é o fim do humano, pois poderemos
ser escravizados. Nesse sentido, o mundo contemporâneo lança alguns desafios: na era dos
algoritmos e do avanço da biotecnologia seremos decodificados e estará esgotada toda a

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complexidade humana? Se assim for, somos os últimos humanos que ainda necessitam de
filosofia? Nesse aspecto é preciso pensar a técnica e as novas tecnologias no horizonte do
humano para que não corramos o risco de nos tornarmos irrelevantes em um futuro próximo.
Como seres que estão se fazendo, refletir nossas ações e os problemas de nosso tempo nos
torna conscientes de nosso lugar no mundo e nos capacita pensar e agir com maior lucidez.
Enfim, como nada ainda está definido, diante da proposta do humano proposta nesse artigo,
somos chamados a pensar a própria existência a fim de que nenhum sistema econômico,
político, religioso, científico entre outros, pretenda se apropriar da instigante tarefa do
humano de se moldar. Nesse sentido, uma reflexão ética é fundamental, mas essa é uma
discussão para outro um momento.

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REFERÊNCIAS:

MONDIN, Battista. O homem, que ele é. 13ª ed. São Paulo: Paulus, 2008.

FERRY, Luc. Immanuel Kant: uma leitura das três críticas. São Paulo: Difel, 2012.

LIMA VAZ, C.H. Escritos de Filosofia IV: Introdução à Ética Filosófica I. São Paulo:
Loyola, 1999.

_____. Cultura e universidade. Petrópolis: Vozes, 1966.

GOMES, Mércio Pereira. Antropologia: ciência do homem, filosofia da cultura. São Paulo:
Contexto, 2017.

HUSSERL, Edmund. Meditações cartesianas e conferências de Paris. Rio de Janeiro:

Forense Universitária, 2013.

KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Petrópolis, RJ: Vozes, 2015.

MARX, Karl. O capital. São Paulo: Nova Cultura, 2005 (Coleção os pensadores).

MERLEAU-PONTY, Maurice. fenomenologia da percepção. 2ª ed. São Paulo: Martins


Fontes, 1999.

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