Você está na página 1de 11

HUMANISMO E QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS

Prof. Angelo José Salvador

Apresento nesse artigo questões contemporâneas sobre o humanismo e


algumas possibilidades para se pensar os excessos do antropocentrismo.
Nesse sentido a análise retomará o projeto moderno e ao mesmo tempo os
reflexos contemporâneos dessas ideias e outras questões mais urgentes que
desafiam o “antigo modelo” de humanismo herdado da modernidade.

Somos herdeiros de um paradigma tecnocrático moderno que, sem demonizar


a técnica, acaba por inflacionar superestimar suas conquistas. Além disso outro
problema, a massificação, desafia a todos nós no processo de humanização :

Parece que enquanto o conhecimento técnico expande o horizonte da


atividade e do pensamento humanos, a autonomia do homem
enquanto indivíduo, a sua capacidade de opor resistência ao
crescente mecanismo de manipulação de massas, o seu poder de
imaginação e o seu juízo independente sofreram aparentemente uma
redução. O avanço dos recursos técnicos de informação se
acompanha de um processo de desumanização. Assim, o progresso
ameaça anular o que se supõe ser o seu próprio objetivo: a ideia de
homem1.

A modernidade, nesse sentido, se apresenta em sua dupla face; por um lado


pensa a autonomia do sujeito e seu posicionamento central no universo. Por
outro, supervaloriza a técnica ao confiar em uma racionalidade que prescinde
da ética. Kant propõe que a razão não é apenas científica – o que posso saber
– mas também razão prática – o que devo fazer. O filósofo, ao tratar do
problema moderno, não pensa a ciência enquanto detentora absoluta do
problema humano. Além disso é preciso refletir nossa condição sociável e por
isso éticos. Necessitamos pensar nossas ações tendo em vista a humanidade
como fim último2.

Humanismos contemporâneos

1
HORKHEIMER, Max. Eclipse da Razão. 7 ed. São Paulo: Centauro, 2002, p. 7.
2
KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. 2 ed. São Paulo: Abril
Cultural, 1984, p. 141 (Coleção Os Pensadores).
Desafios: novas formas de escravidão, massificação, destruição da natureza
entre outros. Nesse aspecto, todo esse processo tem implicitamente em sua
base uma concepção de universo e de ser humano.
Materialismo: normalmente e apresentada como visão científica do mundo e do
universo. Todavia, em última instância trata-se de uma cosmovisão porque está
alicerçada numa metafísica do mundo e do universo enquanto identificação
com a matéria3. O ser em seu todo é explicado é inteligível enquanto matéria,
ele é matéria. Nesse sentido Alvin Plantinga reflete: “para essa posição, as
respostas são cristalinas: somos também seres fisicamente estruturados,
animais com um modo peculiar de vida, não há Deus, não faz o menor sentido
esperar uma vida após a morte4”.

Franz von Kutschera (1998, p. 223-225) – fisicalismo = a cosmovisão doutrinal


oficial em nossos dias, para a qual, consequentemente, a física é a “ciência
fundamental” do real, consequentemente, a física é a “ciência fundamental” do
real, e, em princípio, a ciência abrangente que nos fornece uma explicação
unitária de todos os fenômenos.

Darwin – explicação causal da vida; a biologia assume o materialismo;


Hoje, isso atinge também o psíquico-espiritual e nesse horizonte se procura
responder à questão central: que é o ser humano 5? Outra questão que surge é
o transumanismo6 - o homem incrementado7. Essa é a nova grande meta da
vida humana, revelação de suas aspirações mais profundas, uma vez que
possibilita um enorme alargamento das possibilidades da vida humana no
mundo8.

3
Cf. OLIVEIRA, M. Araújo. O novo humanismo segundo o Papa Francisco. In: GUIMARÃES,
Dom Joaquim Giovani Mol [et al.]. O novo humanismo: Paradigmas civilizatórios para o século
XXI a partir do Papa Francisco. São Paulo: Paulus, 2022, p. 336)
4
PLANTINGA, Alvin. Where the conflict Really Lies: Science, Religion and Naturalism. Oxford:
Oxford Unviersity Press, 2011, p. 336.
5
OLIVEIRA, 2022, p. 337
6
Cf. BOSTROM, Nick. A History of Transhumanist Trought. Jornal of Evolution and Technology,
Hartford, v. 14, n. 1, p. 1-25, April 2005 e também; VILAÇA, Murilo Mariano; DIAS, Maria Clara
Marques. Transumanismo e o futuro (pós) humano. Physis, Rio de Janeiro, v. 24, n. 2, 2014, p.
341-362).
7
LACROIX, Xavier. O corpo reencontrado. Perspectiva teológica, Belo Horizonte, v. 46, n. 129,
2014, p. 247-226.
8
OLIVEIRA, 2022, p. 338.
Busca-se diferenciar o transumanismo do humanismo por ele implicar
modificações radicais na base natural humana: trata-se, de fato, do ideal de um
enorme aprimoramento da vida humana para eliminar todo tipo de sofrimento
pela libertação de nossas cadeias biológicas9.

Em virtude disso, distingue-se hoje entre “intervenção terapêutica” – cura – e


“intervenção melhorativa” – aperfeiçoamento 10; tudo isso é apresentado como o
fruto mais sofisticado da revolução biotecnológica: o ser humano deixa, por sua
intervenção tecnológica, de ser propriamente humano.

Visão reducionista do ser humano

Kant – filosofia transcendental – reviravolta na arte de pensar (B XVI, XVII);


No pensamento clássico, o s.h. compreende a si mesmo como o lugar em que
todo e qualquer sentido se manifesta. Na modernidade, ao contrário, o sujeito é
a esfera em que se constitui sentido.

A questão fundamental é que a razão aqui é radicalmente diferente


do “logos” dos gregos, uma vez que é uma razão reduzida ao campo
da subjetividade teórica e prática e deixa de ser a estrutura
constitutiva, como em Platão e Aristóteles, da natureza e da vida
humana individual e coletiva11

Mas o problema fundamental é outro e ainda mais profundo: o modo como


realmente a humanidade assumiu a tecnologia e o seu desenvolvimento,
juntamente com um paradigma homogêneo e unidimensional. Neste
paradigma, sobressai uma concepção do sujeito que progressivamente, no
processo lógico-racional, compreende e assim se apropria do objeto fora dele
(LS 106);

A filosofia de Descartes, tendo seu início na I. Média tardia, poder ser


considerada o ponto de chega da “reviravolta subjetivamente”. Temos a

9
Cf. YOUNG, Simon. Designer Evolution: A transhumnist Manifesto. Nova York: Prometheus
Books, 2006, p. 32.
10
Cf. HABERMAS, Jürgen. O futuro da natureza humana. São Paulo: Martins fontes, 2004, p.
27.
11
Cf. OLIVEIRA, 2022, p. 339.
absolutização da subjetividade 12. Disso temos a subordinação da natureza ao
Eu; é a dominação do sujeito ao não humano;

Nesse horizonte, a natureza nada mais é do que um mundo artificial,


uma vez que sua configuração é resultado da atividade técnica do ser
humano. Isso levou ao ideal de sua sistemática exploração em virtude
da facilitação da vida humana porque esse processo economizou
muito empenho e muita atividade. Dessa forma, a natureza é
degradada a simples meio de satisfação das carências humanas 13

De modo algum se nega as conquistas da humanidade; coisas maravilhosas


foram realizadas, desde a medicina à capacidade de interação instantânea com
qualquer pessoa por meio da internet. Costuma-se dizer que hoje o cidadão
comum vive melhor que um rei da Idade Média ou do início do renascimento.
Todavia, a questão que se coloca é que a humanidade se vê superada pelas
coisas que ela mesma produz; a técnica suplanta a ética e a produção de bens
destrói ou modifica radicalmente ecossistemas matando desde plantas até os
próprios homens.

A morte de Dom Phillips e Bruno são reflexo do problema pela qual estamos
atravessando14. Nesse aspecto as relações humanas baseadas na confiança
são suplantadas por uma concepção pragmática imediatista 15. Nesse contexto,
a falta de novas narrativas 16 e o medo do futuro, crise ambiental e desconfiança
nas relações são a marca dessa sociedade.

Ainda na questão da crise ambiental um dos problemas que podem ser


elencados é de que a natureza carece de uma estrutura constituinte a priori.
Por ser diversa do próprio ser humano fica à mercê de uma inteligência que a
explora sem remorso. Além disso carece de uma teleologia que poderia lhe
12
MAÇANEIRO, Marcial. A ecologia como parâmetro para a ética, a política e a economia: um
novo capítulo do Ensino Social da Igreja. In: Murad, Afonso; TAVARES, Sinivaldo Silva (org).
Cuidar da casa comum: chaves de leitura teológicas e pastorais da Laudato si. São Paulo:
Paulinas, 2016, p. 76 ss.
13
OLIVEIRA, 2022, p. 343.
14
cf.https://g1.globo.com/profissao-reporter/noticia/2022/06/22/assassinato-de-bruno-pereira-e-
dom-phillips-profissao-reporter-acompanhou-buscas-no-vale-do-javari.ghtml. acessado em
18/07/2022, 16:15.
15
cf. SANDEL, Michel. justiça: o que é fazer a coisa certa. Tradução de Heloisa e Maria Alice
Máximo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015, p. 41 (livro eletrônico)
16
Cf. RICOUER, Paul. Tempo e narrativa. São Paulo: Papirus, 1994. Esta obra pensa a
narrativa enquanto necessidade humana básica para pensar o modo humano de interpretar a
temporalidade.
conferir valor. Se Kant afirma, no auge da modernidade, que o ser humano é
fim e nunca meio da ação17, o mesmo não pode ser dito a respeito da natureza.

Nesse aspecto afirma OLIVEIRA:

O resultado de todo esse processo é a crise que vivemos hoje, uma


crise que se compõe de várias crises específicas conectadas entre si,
mas que é, em última análise, uma crise de nossa civilização. Trata-
se de uma crise ético-cultural que toca a essência do significado
humano do mundo construído na modernidade, uma crise da
civilização técnico-industrial, produtivista e consumista, das bases da
economia que temos e do nosso estilo de vida, ou seja, do processo
civilizacional em curso, em que a ameaça de extermínio da vida é
constante18

Importante salientar que a produção mundial de bens nunca foi tão expressiva
como nos últimos dois séculos. O número de bilionários cresceu
exponencialmente na pandemia19 ao passo que a pobreza e a fome se
agravaram entre os mais vulneráveis 20. A priori, podemos argumentar que o
mercado por si mesmo não pode dar conta das questões complexas que
envolvem o pleno desenvolvimento humano. Nesse contexto, a ideia
meritocrática é perigosa e incapacita os desfavorecidos de questionarem a
própria miséria da qual são vítimas21.

Sem demonizar o dinheiro, mas compreendê-lo apenas como produto humano,


é preciso questionar seus abusos. Nesses termos, pensar o conceito de bem
comum22 é uma maneira importante de combater os excessos da própria
atividade humana. O individualismo atrelado ao enfraquecimento do Estado em
sua tarefa de garantir a equidade e minimizar a pobreza são fatores que
destroem a dignidade humana.

Nesse aspecto pensar a crise pela qual a humanidade atravessa é possível


inferir que a real crise é a do próprio humano. Ao elencar o acúmulo de bens

17
KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. 2 ed. São Paulo: Abril
Cultural, 1984, p. 139 (Coleção Os Pensadores).
18
OLIVEIRA, 2022, p. 346.
19
Na pandemia, mundo ganhou um novo bilionário a cada 26 horas, diz Oxfam | Exame
20
Relatório da ONU: ano pandêmico marcado por aumento da fome no mundo (unicef.org)
21
SANDEL, Michael. A tirania do mérito: o que aconteceu com o bem comum. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2020, p. 120 (recurso digital).
22
SANDEL, 2020, p. 377-387.
como fim último da vida se instaura uma reviravolta dos valores onde aqueles
que possuem mais são os vitoriosos, dignos por merecimento da melhor vida
enquanto os outros, abandonados à própria sorte se desesperam, pois nada
podem esperar23. Nesse cenário é importante salientar que não há uma crise
humanitária e ambiental separadamente, mas uma única crise socioambiental.

Hoje, gesta-se uma tomada de consciência de que uma das questões


centrais de nossa civilização é que as relações entre ser humano e
natureza e dos seres humanos entre si não só se problematizaram,
mas possuem a possibilidade de conduzir a humanidade a um
colapso ecológico-social, enquanto resultado previsível do processo
de tecnificação da vida humana, que caracterizou o grande ideal da
civilização moderna24.

Questionando o antropocentrismo

A modernidade ressaltou a razão humana como ápice do desenvolvimento


humano. Essa narrativa moderna evidencia a sobreposição da natureza em
detrimento da capacidade humana de intervir conscientemente na realidade 25;
a técnica suplantou o valor intrínseco do ser humano e da própria natureza.
Nesse aspecto, a modernidade, apesar de ainda apresentar elementos
totalizantes para compreender a realidade (Descartes, Leibniz, Spinoza, Kant,
Hegel) fragmenta a realidade ao pôr o homem no centro.

É necessário então pensar uma alternativa ao antropocentrismo que dê conta


do esfacelamento dos valores intrínsecos aos seres e ao próprio ser humano.
Pensar uma teoria que compreenda a realidade em sua totalidade onde cada
ser tem sua grande importância para o bem de todos. Não apenas o ser
humano é importante, pois faz parte, assim como os outros seres, de um todo
maior. Evidentemente nele habita uma responsabilidade maior por concentrar
em si mesmo uma dupla “natureza”: a finitude e sua dimensão de abertura ao
infinito. Não atoa Kant apontou essa peculiaridade do humano em sua crítica
da razão pura ao abordar a questão dos impulsos sensíveis e da liberdade no
homem26.
23
ARRUDA, Marcos. desenvolvimento integral: sentido profundo da economia e da vida. In:
LESBAUPIN, Ivo (coord.). Por um outro desenvolvimento. São Paulo: Abong, 2012.
24
OLIVEIRA, 2022, p. 352.
25
(cf. CHAUÍ, Marilena. Cultura e cidadania. Crítica y Emancipación, CyE, Madri (1):53-76,
junio 2008, p. 56).
26
KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2018, B
830.
Condições para pensar uma antropologia alternativa

O problema cartesiano que transforma a realidade naquilo que é possível de


ser conhecido pela matemática fragmenta qualquer possibilidade de
compreensão da natureza enquanto dotada de valor intrínseco. O saber
moderno põe o problema do conhecimento no centro de suas preocupações e
o ser humano se torna o único doador de sentido da realidade 27. Posto isso, a
natureza é mero depósito de suas ambições, vítima do antropocentrismo.
Nesse aspecto Manfredo elucida essa situação argumentando:

Isso faz com que a quantificação seja uma das características


fundamentais do novo saber: o conhecimento se restringe ao que é
quantitativamente captável e qualquer referência a fins naturais não
passa de antropomorfismo insustentável, uma vez que a finalidade
pressupõe seres dotados de razão e vontade. Essa postura fornece o
fundamento ontológico para a intervenção do ser humano na
natureza, uma característica básica do processo civilizatório da
modernidade: destituída de fins intrínsecos a si mesma, a natureza se
torna o receptáculo dos fins que o ser humano, enquanto seu sujeito,
engendra e exterioriza através de uma ação que imprime seus fins na
natureza agora reduzida a simples objeto, de tal modo que a
contraposição sujeito vs. objeto, desconhecida dos gregos, torna-se a
categoria fundante do novo saber28.

Tal postura considera a natureza apenas como volume, extensão e figura sem
ontologia ou teleologia. Mesmo assim, caso se pretenda pensar em termos
teleológicos, se restringe apenas ao que é “útil” para o ser humano; a natureza
passa a ser compreendida enquanto mero recurso ao mundo produzido pelos
humanos. Tudo o que se toca transforma-se em produto para o consumo
semelhante ao mito do Rei Midas.
No intuito de repensar essa postura é fundamental refletir sobre a importância
de abertura a alteridade, deixar que o outro – aqui não apenas o outro humano
e sim todas as formas orgânicas e inorgânicas – se manifeste e se
comunique29.

27
É verdade que em Kant há uma reserva fenomênica quanto a essa questão. A coisa em si
não pode ser conhecida, mas apenas como se revela para nós. A realidade se doa a nós, mas
ainda fica algo que ultrapassa nossa compreensão. A finitude é a marca do ser humano e tal
postura pode abrir espaço para pensar o homem enquanto ser que conhece parcialmente a
realidade; ele não pode e nem é capaz de conhecer tudo. Essa questão será trabalhada na
terceira crítica por meio do juízo reflexionante.
28
OLIVEIRA, 2022, p. 359.
29
Husserl pensa essa questão em sua fenomenologia ao abordar o outro enquanto alter-ego.
(cf. HUSSERL, Edmund. Meditações cartesianas e conferências de Paris. Rio de Janeiro:
Abrir-se ao outro numa postura de diálogo pressupõe renunciar a certezas ou
pré-compreensões acabadas sobre as diversas compreensões de mundo. Não
que a pré-compreensão seja um problema, mas ao partir dela, permitir que o
conhecimento fecundo do outro e de mim mesmo se manifeste. “Quem busca
compreender está exposto a erros de opiniões prévias que não se confirmam
nas próprias coisas”30. Aqui se apresenta uma possibilidade ímpar para o
problema abordado no texto. Os gregos, não obstante as limitações inerentes à
sua visão de mundo, já apresentam o diálogo como elemento fundamental para
o estabelecimento da democracia.

Não obstante a importância do diálogo, ele por si só não é suficiente para


repensar o problema antropocêntrico. É fundamental pensar uma ética que
considere o outro em seu valor intrínseco. Indo além de Kant, mas imbuído de
sua intuição, que propõe o homem como fim em si mesmo, é fundamental
pensar os “outros” como dotados de um valor inexpugnável: plantas, rios,
montanhas, a biodiversidade em geral possuem um modo próprio de coexistir e
são imprescindíveis para a manutenção da vida no planeta.

O futuro da humanidade é o primeiro dever do comportamento


coletivo humano na idade da civilização técnica, que se tornou “todo-
poderosa” no que tange ao seu potencial de destruição. Esse futuro
da humanidade inclui, obviamente, o futuro da natureza como sua
condição sine quan non. Mas, mesmo independentemente desse fato,
este último constitui uma responsabilidade metafísica, na medida em
que o homem se tornou perigoso não só para si, mas para toda a
biosfera. Mesmo que fosse possível separar as duas coisas – ou seja,
mesmo que em um meio ambiente degradado – e em grande parte
substituído por artefatos – fosse possível aos nossos descendentes
uma vida digna de ser chamada humana, mesmo assim a plenitude
da vida produzida durante o longo trabalho criativo da natureza e
agora entregue em nossas mãos teria direito de reclamar nossa
proteção31.

Do mesmo modo que o ser humano é fim em si mesmo – eis aqui uma
conquista teórica importante da modernidade – também esse princípio deve ser
alargado para toda natureza. Pensar em termos de uma ética da

Forense Universitária, 2013).


30
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I: traços fundamentais de uma hermenêutica
filosófica. 7ed. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2005,
p. 356.
31
JONAS, Hans. Princípio responsabilidade. Rio de Janeiro: Contraponto, p. 229.
responsabilidade implica em relações profundas onde o outro não é mero
objeto, mas um ser digno de respeito. Além disso, quando me responsabilizo
pelo outro, em uma relação de alteridade, possibilito o estabelecimento de
relações que vão além de conhecer o que se deve fazer, mas também porque
o outro passa a fazer parte da minha existência em um nível seminal capaz de
gerar vínculos duradouros. Nesse aspecto, já que a humanidade é digna
também esse princípio pode e deve ser alargado para a natureza, pois também
ela, por meio de laboriosa transformação, necessita de cuidados o que evoca
responsabilidade de nossa parte. Não seria exagero, para reforçar essa tese,
evocar aqui a ética do cuidado de Heidegger. Esse seria um humanismo sadio
que supera a doença do antropocentrismo.

Conclusões

Compreender que compartilhamos a realidade com outros seres implica uma


cultura da responsabilidade, do cuidado do não descarte. Fundamental para
levar tudo isso a termo é imprescindível pensar em termos de uma ética do
bem comum. Isso impõe uma superação da ideologia tecnocrática sobre a
política e a economia, o que, em última instância, significa pôr todo o
desenvolvimento tecnológico a serviço do lucro sem levar em consideração as
consequências negativas para o ser humano, para o planeta e, acima de tudo,
para os pobres.

É um risco esperar que a tecnologia ou o mercado resolverão todos os


problemas por si mesmos. É uma esperança falaciosa na medida em que,
tecnologia e economia são produzidas pelo homem e por isso limitadas. Uma
visão crítica e que ponha como horizonte o bem comum é uma forma de
repensar os sistemas. É fundamental abandonar a ideia mágica de que o
mercado a tecnologia ou qualquer outro sistema promoverão por si mesmos
um mundo mais humano em harmonia com a natureza. Não é preciso elaborar
uma grande teoria para observar na prática a ocorrência de um fenômeno
contrário: o aumento exponencial de super ricos em detrimento do aumento da
pobreza, crise ecológica, aumento de doenças e outros problemas que nos
afligem.
Sem uma crítica acurada aos sistemas supracitados a ideia de um novo
humanismo que caminha para o bem comum em conciliação com a natureza
pode cair em mera falácia ou utopia impraticável. Nesse sentido, Oliveira
sintetiza de forma magistral essa problemática:

A ética explícita ou implícita nessas considerações decorre da


“metafísica da interconectividade universal” e, consequentemente, da
nova concepção da constituição ontológica do ser humano e de seu
lugar no universo, como ser portador de inteligência, vontade e
liberdade; portanto, não um ser simplesmente físico e, enquanto tal,
como ser fundamentalmente ético, responsável pela criação. Isso
conduz, em primeiro lugar, a uma crítica radical ao antropocentrismo
que levou à dominação dos seres humanos e dos seres infra-
humanos, isto é, à exploração social e à exploração ambiental, o que
constitui uma negação radical dos direitos humanos e dos direitos dos
outros seres32

Para alicerçar o bem comum é importante pensar a política enquanto


garantidora dos direitos fundamentais: o respeito à diversidade, a equidade e o
cuidados com a natureza e aos mais pobres. Sem cair em demagogia ou
idealismos impraticáveis, essa transformação passa pela mudança de atitude
que culmina no envolvimento radical com o outro. Quem pensa apenas em
lucro dificilmente criticará suas ações nocivas ou se importará com as
consequências ao meio ambiente. Sem uma verdadeira revolução cultural que
vá à raiz do problema é quase impossível pensar um mundo diferente do atual.

Tendo consciência de que a história pode ser construída e reconstruída o


destino não está dado, pois cabe a cada um de nós na consciência de que
fazemos parte de um todo maior, um mundo diferente. Não é olhando apenas
para as telas de nossos smartfones, postando ações exemplares ou crianças
doentes que a realidade vai mudar. Obviamente as redes sociais são
importantes e não deixa de ser um ambiente importante, mas o mundo da vida,
lá onde somos chamados a uma atitude nova é o lugar por excelência das
mudanças. A pandemia nos ensinou o quão importante é o contato com o outro
e que o mundo virtual, não obstante sua importância, não supera a concretude
da existência.

32
OLIVEIRA, 2022, p. 368
Por fim, sem coragem e convicção pessoais fortes não é possível transformar
nada, a começar por nós mesmos. Acreditar e se empenhar por meio de
atitudes que repensem o antropocentrismo contemporâneo é o caminho
principal. Em suma, essa chamada final é um alerta à repensar nossas atitudes
mais básicas, pois pensar na mudança do outro é mais fácil do que na minha.
Mas é preciso cuidado, pois se pode cair em uma nova forma de
individualismo, onde basta que no meu particular eu faça a diferença e tudo se
resolverá. Não é bem esse o caminho. Sem o horizonte do bem comum, ou
seja, a comunidade humanidade em conjunto com a natureza, as ações
particulares podem cair no esquecimento ou perder sua capacidade de adesão.

Enfim, sem diálogo, o que supõe o compartilhamento de sabedorias e o


respeito em um ambiente político do bem comum, torna-se impraticável uma
reviravolta das bases valorativas do antropocentrismo. Sem um forte
engajamento pessoal e comunitário a mudança se torna impossível. Em suma,
sem esperança em uma nova sociedade que supere o antropocentrismo e dê
lugar à comunhão respeitosa entre homem e natureza não se pode avançar
sem cansar e desistir logo nos primeiros passos.

Você também pode gostar