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TEXTO INTRODUTÓRIO AO EMBATE DA ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA

USTM 2020

A busca incansável da humanidade pelo conhecimento é algo inegável. Ela buscou entender o
cosmos e seu arché com auxílio da mitologia, religião, filosofia… Ora citando esse arché como
sendo o fogo, ora a água, ora o ar, etc. Adquiriu conhecimentos matemáticos, físicos, químicos,
entre outros. Mas o próprio ser humano, enquanto ente, não ficou imune de especulações.
Heráclito chegou a afirmar que só é possível penetrar nos segredos da natureza se conhecer os
segredos do ser humano. Mas em dado momento foi com a filosofia de Sócrates e com o
movimento sofista (muitas vezes considerado o primeiro movimento humanista da história) que a
própria humanidade se tornou de fato alvo dos questionamentos, passou a ter um caráter de
autorreferência. Com Sócrates todos os problemas foram vistos sob uma nova perspectiva e o
centro intelectual foi dirigido para o ser humano e a pergunta que resta é: “o que é o ser
humano?”. Na filosofia de Sócrates encontramos o caráter de uma antropologia filosófica, que é,
no entanto, um conceito relativamente recente. Difundiu-se principalmente a partir dos trabalhos
de Scheler. Mas o que seria a antropologia filosófica?

A antropologia filosófica é antropologia onde se investiga a estrutura essencial do ser humano. É


o ser humano que ocupa o lugar mais preponderante na especulação filosófica, pois é a partir dele
que tudo é deduzido. Essa forma de antropologia não se preocupa com as características humanas,
mas sim com a essência do humano, fornecendo uma interpretação ontológica dele, se
diferenciando, portanto, de outras formas de antropologia, como a mítica, teológica, poética,
científico natural, etc. Bernard Groethuysen a define como a reflexão sobre nós próprios, reflexão
sempre renovada que o humano faz para chegar a compreender-se. Já Landsberg define como
uma explicação conceitual da ideia de humano a partir da concepção que esse tem de si mesmo
em determinada fase de sua existência.
Para Cassirer, uma das características da antropologia filosófica é que ela não é como os demais
ramos da filosofia, um lento e contínuo desenvolvimento de ideias gerais, onde uma tese é
seguida por uma antítese em um processo dialético, mas que, apesar disso, há uma coerência
interna, uma ordem lógica que liga os estágios desse processo. A antropologia filosófica
demonstra outro caráter. Se quisermos entender seu verdadeiro sentido e importância devemos
escolher o modo de descrição chamado por Cassirer de dramático, no qual, segundo esse modo,
não há um desenvolvimento pacífico de conceitos ou teorias, mas sim um choque entre poderes
espirituais conflitantes.

A pergunta chave da antropologia filosófica é: o que é o ser humano? Ou quem é o humano? As


biociências, com pesquisas empíricas, ainda não garantem (e não há garantias de que isso vá
acontecer) um conceito da essência do humano. Elas podem fornecer um relato histórico da
evolução e constituição material da espécie humana. No entanto, segundo Landsberg, a
antropologia faz uso de dados proporcionados pelas outras formas de antropologia, por exemplo,
os fornecidos pela “antropologia das características humanas”, ou seja, dados proporcionados pela
biologia, pela sociologia, psicologia, etnografia, arqueologia, história, mas interpreta esses dados
à sua maneira, e procura unificá-los numa teoria abrangente.

A pergunta pelo ser humano, pela sua essência e tentativa de unificar os dados da sua natureza em
uma teoria abrangente caracteriza uma autorreferência, uma transcendência, um lançar-se para
fora de si mesmo. Para Gerhard Arlt, o ser humano que pergunta por si, e nisso busca uma
orientação, não é dado como invariável, como fato inamovível. Ele é, antes, uma autorrelação que
se documentou diversamente através dos tempos e das épocas. O ser humano modifica-se por
meio da autointerpretação. Nesse sentido, se faz importante para uma concreta configuração da
vida se o ser humano se crê dependente de forças naturais, míticas ou algum deus, ou se ele
concebe o mundo sem nenhum deus, desmistificado e dependendo apenas de suas ações. Essa
autorrelação pode ser desmistificadora ou ocultadora.

Scheler, à procura do conceito de ser humano, observa uma peculiar ambiguidade: o conceito de
humano indica, por um lado, as características morfológicas enquanto, o humano é um
subconjunto dos mamíferos vertebrados, assemelhando-se aos demais animais da natureza que
possuem necessidades naturais, corpos orgânicos, etc. Essa primeira concepção
naturalista/científica do conceito foi cunhada principalmente na contemporaneidade, com
destaque para Charles Darwin em sua obra “A Origem das Espécies”. Por outro lado, esse mesmo
conceito remete àquilo que mais se distancia da natureza, como aquele ser que está na natureza
não como mais uma parte integrante, mas sim como aquele para qual a natureza foi feita. Essa
segunda concepção aponta um antropocentrismo característico da tradição judaico-cristã,
embasada na história bíblica do livro de Gênese.

Para Heidegger, o humano não é uma coisa, uma substância, objeto, ser humano possui uma
essência diferente das coisas da natureza, assim se distanciando da concepção naturalista.
Pertence à essência do ser humano apenas existir no exercício dos atos intencionais e, sendo
assim, o humano em sua essência não é um objeto. Ou seja, o ser humano só é na medida em que
executa atos intencionais ligados pela unidade de um sentido.

Já Fogel, explicitando a dicotomia entre animal irracional e animal racional, é um crítico da ideia
de Husserl na qual aponta a necessidade do estudo do processo de evolução do ser humano,
evolução do animal para o humano, do irracional para o racional e sobre isso fica clara a posição
naturalista sobreposta com a ideia antropocêntrica. Ao mesmo tempo que admite um “pré-
homem” marcado pela irracionalidade, admite-se uma evolução até um estado de racionalidade,
um estado de humano, que ao mesmo tempo não é mais considerado animal, é algo que se
sobrepôs à natureza, um ser que se tornou estranho à sua própria origem. Mas esse animal, que em
um passado mais ou menos desconhecido era marcado pela irracionalidade, jamais foi puro
animal, absolutamente irracional, de alguma forma sempre foi humano e só por isso é possível o
ser humano, nele já havia a possibilidade para a possibilidade de evolução. O humano carrega em
si a necessidade de transposição a partir dele mesmo para o vir a ser. Tal é o humano
caracterizado como “hommo faber”, o tipo ou o único ente autofabricador de seu ser, no trabalho,
na sua existência enquanto existência histórica.

Um dos personagens da “Antígona”, de Sófocles, diz que muitas são as coisas prodigiosas sobre a
Terra, mas nenhuma mais prodigiosa do que o próprio humano. Esse caráter extraordinário do
humano é expresso em atos que nenhum outro animal é capaz de conseguir realizar. Prossegue o
personagem:

“Muitas são as coisas prodigiosas sobre a terra, mas nenhuma mais prodigiosa do que o próprio
homem. Quando as tempestades do sul varrem o oceano, ele abre um caminho audacioso no
meio das ondas gigantescas que em vão procuram amedrontá-lo: à mais velha das deusas, à
Terra eterna e infatigável, ano após ano, ele rasga o ventre com a charrua, obrigando-a a maior
fertilidade. A raça volátil dos pássaros captura, muita vez, em pleno voo. Caça as bestas
selvagens e atrai para suas redes habilmente tecidas e astuciosamente estendidas a fauna
múltipla do mar, tudo isso ele faz, o homem, esse supremo engenho. Doma a fera agressiva
acostumada à luta, coloca a sela no cavalo bravo, e mete a canga no pescoço do furioso touro da
montanha. A palavra, o jogo fugaz do pensamento, as leis que regem o Estado, tudo ele
aprendeu, a si próprio ensinou. Como aprendeu também a se defender do inverno insuportável e
das chuvas malsãs. Vive o presente, recorda o passado, antevê o futuro. Tudo lhe é possível. Na
criação que o cerca só dois mistérios terríveis, dois limites. Um, a morte, da qual em vão tenta
escapar. Outro, seu próprio irmão e semelhante, o qual não vê e não entende. Se não resiste a
ele, é esmagado. Se o vence, o orgulho o cega e vira um monstro que os deuses desamparam. Só
o governante que respeita as leis de sua gente e a divina justiça dos costumes mantém sua força
porque mantém sua medida humana. Em mim só manda um rei: o que constrói as pontes e
destrói muralhas. ” (Antígona, Sófocles)

O caráter de distanciamento do ser humano da animalidade se colocando acima das outras


criações da natureza é promovido pela necessidade de sobrevivência. O “pré-homem”, animal
natural aparentemente desprovido de meios de sobrevivência usou a sua condição de possibilidade
de elevação, a sua maior arma natural, a racionalidade, para dominar a natureza e os demais seres
que nela sobrevivem. E um dos produtos dessa racionalidade é a técnica, indispensável para a
sobrevivência, mas que sendo usada exageradamente pode causar o efeito inverso, a destruição,
como já pontuado por Heidegger. “ (…) Vive o presente, recorda o passado e antevê o futuro
(…).” O homem é um ser histórico que não apenas está no mundo, mas que recorda para entender,
e analisar o seu presente para poder antevê o seu futuro, um ser que se preocupa com sua
autopreservação embora muitas vezes pareça o contrário.
Para Sócrates, a natureza do ser humano não poderia ser descoberta como é descoberta a natureza
das coisas, pois ele só poderia ser definido nos termos de sua consciência. O ser humano é o ser
que quando lhe fazem uma pergunta racional, pode dar uma resposta racional. Tanto para Sócrates
quanto para Marco Aurélio, para encontrar a verdadeira natureza ou essência do humano,
devemos primeiro remover dele todos os traços externos ou incidentais. Diferentemente, para
Platão, discípulo de Sócrates, o ser humano deve ser interpretado não em sua vida individual, mas
em sua vida política e social. A filosofia não pode nos dar uma teoria satisfatória do ser humano
sem antes desenvolver uma teoria do Estado.

A transformação do pensamento sobre o humano historicamente acontece de diferentes formas. A


Antiguidade centrava-se em torno do cosmos e encarava o ser humano em conexão com ela. Na
Idade Média era membro de uma ordem emanada de Deus. Na Idade Moderna o humano firma-se
sobre si mesmo, mas predominantemente como “sujeito” ou razão, sujeito transcendental ou razão
panteisticamente absoluta. E no pensamento contemporâneo o humano tomou consciência da
inanidade de tais construções e verificou haver perdido tudo, incluindo a própria personalidade e
que, principalmente, depois de haver sacrificado a vida do conceito abstrato ilusório, se
encontrava agora perante o nada.

O ser humano é a criatura que está em constante busca de si mesmo, um ser que em todos os
momentos da sua existência deve examinar e escrutinar as condições de sua existência, isso é seu
dever fundamental. Essa estranha mistura de ser e não-ser, o humano, a mais prodigiosa criatura
da natureza, necessita encontrar o sentido da sua existência, sua essência. Usando um conceito de
Heidegger, deve encontrar sua autenticidade, caso contrário viverá como um barco à vela que
segue para onde os ventos o levam, que nem sempre é a direção mais segura. Tal é a necessidade
humana de identidade frente aos perigos e desafios da existência.

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