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Antropologia filosófica: a constituição básica do ser

humano
O que é o ser humano?

A antropologia como campo de inquirição humanista e ciência social compartilha


com a filosofia e com o pensamento religioso a mesma questão central: o que é o
ser humano?

A antropologia filosófica lida com questões existenciais e metafísicas acerca da


natureza humana. Subdivide essa questão fundamental em vários temas, como
identidade, pessoalidade, livre-arbítrio e determinismo, constituição humana,
natureza humana, psique, mente, dentre outros tópicos.

Há de se falar também de uma filosofia antropológica. Não se trata da intersecção


da antropologia “científica” com a antropologia filosófica, mas um campo
especializado da própria filosofia. Iniciado por filósofos alemães na esteira do neo-
Kantianismo, fenomenologia, existencialismo e hermenêutica de Dilthey, o
projecto filosófico de Max Scheler (1874-1961), Helmuth Plessner (1892– 1985) e
Arnold Gehlen (1904-1976) procurou compreender o papel do homem no mundo.
Para eles, a ênfase está na singularidade do homem.

Como dito, a antropologia filosófica resulta das questões fundamentais de Kant,


nas quais preste atenção no eu:

O que eu posso conhecer?

O que eu devo fazer?

O que eu posso esperar?

O que é ser humano?

A provocação de Kant de o que significa ser humano levou o pensador de


Könisberg a rejeitar a concepção do homem como um objecto. O ser humano é
um sujeito e deveria ser compreendido subjectivamente.

Com esse desafio metodológico e sendo essa questão um universal cultural, é um


interesse compartilhado com outras disciplinas que sistematizam o pensamento
religioso. São os casos da teologia cristã ou a doutrina budista, por essa razão é
válido termos como antropologia cristã, antropologia bíblica, antropologia
religiosa, antropologia teológica, antropologia dinâmica, dentre outros. Em suma,
essa abordagem lida com tópicos como:

Imortalidade e atitude diante do mundo vindouro;

A inerente bondade, maldade ou um misto dos dois;

O pecado original, o hybris, a expiação e redenção;

Livre-arbítrio e determinismo;

A origem do sofrimento e o propósito do mal;

O significado da vida ou o propósito da existência.

A relação corpo e espírito: questão fundamental para a antropologia


filosófica

Para ilustrar um objecto de inquirição da antropologia filosófica, veremos uma das


questões centrais dessa disciplina: como é constituído o ser humano? Seríamos
somente um amontoado de átomos com um arranjo raro em forma de vida? Onde
reside a consciência humana?

Por vezes essa inquirição recebe em filosofia o termo psicologia, mas seu objecto
é propriamente antropológico. As posturas de antropologia filosófica mais
sistematizadas no mundo ocidental quanto à constituição básica do ser humano
são as seguintes:

- Monismo imaterial ou idealismo: há somente uma realidade espiritual e o ser


humano integra ela. Proposta por George Berkeley.

- Monismo material ou fisicalismo: o ser humano é mais um animal, ainda que


culturalmente complexo, com a emergência da consciência como variável de
processos biológicos sem haver uma alma ou espírito imaterial. Proposta por Uriel
Acosta, Marx, Nietzsche, Darwin, Spenser, Freud, L. Baker e Kevin Corcoran.

- Monismo e teísmo naturalista: pressupõe a existência integrada do ser humano,


com um componente (alma ou espírito) emergente da composição biológica. O
divino age na história e na natureza de modo imanente, portanto, sem
necessidades sobrenaturais de constituir a existência. A novidade dessa
abordagem é a combinação de exegese bíblica com informações da antropologia
e da neurociência. Seus expoentes são Henry Wheeler Robinson, Aubrey
Johnson, N.T. Wright, Nancey Murphy (fisicalismo não reducível) e Joel Green,
ambos ligados ao Seminário Fuller.

- Emergentismo: sustenta que as almas são pessoais e individuais com


propriedades ontologicamente distintas e irredutíveis e capacidades geradas por
processos físicos e biológicos de seus corpos. Defendida por A. Peacocke, P.
Clayton e T. O’Connor.

- Monismo psicofísico: almas e corpos (pessoalidade e organismo) são aspectos


correlativos de seres humanos. Os seres humanos são eventos primordiais que
não são nem puramente materiais nem imateriais, mas geram ambos. Postura de
John Polkinghorne, Wolfhart Pannenberg e David Griffin.

- Dualismo corpo-mente: o ser humano possui um corpo material e uma alma


racional radicalmente separadas. A humanidade, em sua essência, reside na
alma (a substância pensante), enquanto o corpo é sua substância extensa e
substituível por recomposição (vide o Navio de Teseu). Proposta por Platão,
Agostinho de Hipona, Descartes e Nicolas Malebranche.

- Realismo hilomorfista: há somente uma substância inseparável para o ser o


humano vivente, porém sob dois princípios intrínsecos: a matéria primária é
potencial mas assume forma substancial actual. Para a tradição aristotélico-
tomística, no geral, esses são os significados para os termos corpo e alma. O
aspecto imaterial do ser humano depende do material para adquirir o
conhecimento e viver nesse mundo. Proposta por Aristóteles, Duns Scotus,
Avicebron e Tomás de Aquino.

- Trialismo ou tricotomia: distinção entre três fundamentos do ser humano: corpo,


alma e espírito. Enquanto o ser humano compartilha a matéria e a vida com os
animais, a consciência seria um terceiro elemento único. Por vezes, o termo alma
refere-se à vida e espírito à consciência, mas há pensadores que usam esses
termos de modo invertido. É uma concepção eminentemente cristã, derivada de
uma leitura literal de Paulo que disse: “E o mesmo Deus de paz vos santifique em
tudo; e todo o vosso espírito, e alma, e corpo, sejam plenamente conservados
irrepreensíveis para a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo“. 1 Tessalonicenses
5:23. Proposta por autores iniciais da patrística como Irineu, Melito de Sardes,
Justino Mártir, Orígenes bem como por pensadores germânicos como Lutero,
Kierkegaard, teólogos reformados e luteranos do século XIX.

- Transcendentalismo ou fenomenologia: postula um espírito universal


compartilhado por cada ser humano em particular. O aspecto subjectivo do ser
humano o separa radicalmente dos objectos. Proposta por Immanuel Kant, Ralph
Waldo Emerson e Edmund Husserl.

- Existencialismo: a existência precede a essência. O ser humano existe no


mundo e com suas escolhas se define como ser ou essência. Proposta por
Heidegger, Sartre e Gabriel Marcel.

- Estruturalismo e antropologia simbólica: a realidade humana reside em plano


simbólico, boa parte inconsciente. O sentido do ser humano é relacional,
principalmente moldado mediante as estruturas sociais, relações de poder e teias
de símbolos. Proposta por Cassirer, Jung, Lévi-Strauss, Geertz e Michel Foucault.

Essas teorias informam decisões políticas e éticas, por exemplo, para decidir
cessar a manutenção de um paciente em coma.

A posição do ser humano diante de outras criaturas

Outra questão fundamental da antropologia filosófica discute o papel (e


responsabilidade) do ser humano em relação a outros seres vivos. As acepções
religiosas e filosóficas acerca do ser humano tende a valorizá-lo sobre todos os
outros seres. É assim no Salmo 8:

Ó Senhor, Senhor nosso, quão admirável é o teu nome em toda a terra, pois
puseste a tua glória sobre os céus!

Que é o homem mortal para que te lembres dele? o filho do homem, para que o
visites?

Pois pouco menor o fizeste do que os anjos, e de glória e de honra o coroaste.

Fazes com que ele tenha domínio sobre as obras das tuas mãos; tudo puseste
debaixo de seus pés:

Todas as ovelhas e bois, assim como os animais do campo, as aves dos céus,
e os peixes do mar, e tudo o que passa pelas veredas dos mares ( Sl 8:1,3-7).
A tradição hebraica não está sozinha nesse antropocentrismo. O mestre da
tragédia grega, Sófocles, coloca na boca do coro de Antígona esse cântico:

Há muitas maravilhas, mas nenhuma é tão maravilhosa quanto o homem.

Ele atravessa, ousado, o mar grisalho e exaure a terra eterna, infatigável,


deusa suprema, abrindo-a com o arado em sua ida e volta, ano após ano,
auxiliado pela espécie equina.

Ele captura a grei das aves lépidas e as gerações dos animais selvagens: e
prende a fauna dos profundos mares nas redes envolvente que produz, homem
de engenho e arte inesgotáveis.

Soube aprender sozinho a usar a fala e o pensamento mais veloz que o vento
e as leis que disciplinam as cidades, e na argúcia, que o desvia às vezes para
a maldade, às vezes para o bem, se é reverente às leis de sua terra e segue
sempre os rumos da justiça jurada pelos deuses ele eleva à máxima grandeza
sua pátria (Antígona, vv. 385-387; 391-399; 405-407; 418-423).

Há obviamente concepções indígenas de humanidade, os questionamentos com


base no perspectivismo ou virada ontológica, as questões éticas e ecológicas do
papel do ser humano na natureza, o avanço nas pesquisas da consciência
animal, o desenvolvimento da Inteligência Artificial, além das especulações sobre
vida inteligente extraplanetária. Todos esses questionamentos tem o potencial de
transformar radicalmente as visões ocidentais do ser humano, por vezes tomadas
como universais.

Como em fenómenos universais, a questão da humidade parece tão óbvia que


raramente é ela própria questionada. Heidegger criticou a questão, demonstrando
que nosso entendimento sobre o que nos faz humano influencia na própria
existência humana. Ademais, a própria questão é metafísica. Como tudo que
Heidegger pensava, até quando tem razão, seu argumento é circular. Porém, é
importante ter em mente suas observações contra o questionamento kantiano
especialmente o carácter da finitude da humanidade. Assim, não haveria
necessidade de buscar suporte empírico para provar a humanidade.

Distinções disciplinares

A distinção fundamental entre a antropologia “científica” e os parónimos religioso


e filosófico é de método: enquanto a primeira busca fundamentar seu
conhecimento em evidências colectadas empiricamente, as segundas partem da
introspecção, da tradição, da experiência vivida e da revelação.
A discussão desse tema quebra o marasmo de termos irreflectidos, como por
exemplo o adjectivo humano em “direitos humanos“. Somente é possível proteger
ou reclamar a efectividade dos direitos humanos se o ser humano é definido como
tal. Adicionalmente, o que se espera em humanidade como bem jurídico a ser
tutelado demanda esse exercício de antropologia filosófica. O quão humano será
o tratamento do sujeito, cujos direitos humanos fundamentais estejam em perigo,
resulta de um filtro jurídico desta questão universal.

A visão de mundo e, consequentemente, de humanidade, é um tema central da


antropologia. Afinal, tanto como ramo filosófico quanto ramo das ciências e da
humanidade, uma das fontes é exactamente a questão de Kant: o que nos faz
humanos? A problematização dessa pergunta é um acto crítico gerador de teorias
que acarretam em implicações legais, morais e éticas. E sua implicação maior: ela
nos faz humanos.

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