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Manuel Sérgio
RESUMO
Se a ciência da motricidade humana procura estudar as condutas motores (ou ações) em que o ser humano persegue a
transcendência (ou a superação), ela refere-se inevitavelmente à vasta problemática da saúde. E quais os aspectos que ela
salienta? A transdisciplinaridade, a solidariedade entre os vários tipos de conhecimento (sem esquecer o poético), a
complexidade (onde o físico está integral mas superado) e a certeza de que ter saúde é ter em nós, viva e atuante, a
capacidade de superação.
Palavras-chave: motricidade, motricidade humana, saúde, condutas motoras.
1
Artigo publicado na Revista portuguesa de Medicina Desportiva, v. 19, p. 5-18, jan./fev./marc. 2001.
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Professor catedrático reformado da Escola de Motricidade Humana, Lisboa, Portugal.
327). A ecologia encontra-se também associada compreender o ser humano quer dizer captar as
à saúde. Somos seres de uma infinita, digamos suas incontáveis possibilidades.
assim, complexidade, dado que, conforme A fenomenologia da percepção, o objeto de
Michel Serres o sublinha, ocupamos todas as estudo da obra mais conseguida de Maurice
escalas dos seres: espirituais, vivos e inertes; Merleau-Ponty procura provar que a própria
pensamos como pessoas, vivemos como animais reflexão tem uma raiz corpórea e, por isso,
coletivos e os nossos conjuntos alcançam a nunca se absolutiza, nunca transforma a
dimensão dos mares (SERRES, 1991, p.57). realidade "numa totalidade acabada,
Mas esta complexidade decorre e desenvolve-se configurada, perfeitamente determinada, a partir
num determinado meio. Só que, ao invocar-se o de uma subjetividade autônoma" (CANTISTA,
meio, logo o referimos a nós mesmos, ou seja, a 1985, p. 385). O racionalismo na sua dupla
idéia que circula acerca do meio é uma ideia vertente (a intelectualista e a empirista) "deixa
centrada no homem - antropocêntrica - que, no esquecimento a realidade originária, ignora a
mesmo quando se recobre de um discurso estrutura perceptiva e, com ela, o vínculo que
protecionista do (meio ecologismo ou ecologia une o sujeito e o objeto, o espírito e a matéria,
radical, que defende a necessidade de proteger o numa palavra, a existência" (CANTISTA, 1985,
cosmos, enquanto tal, das ameaças do homem) p.386). Tanto no intelectualismo, como no
pressupõe a nossa instalação no centro de um empirismo, o reducionismo é nítido: naquele,
sistema, como se fôssemos senhores e donos da sublinha-se um interior sem exterior; neste, um
natureza (MARQUES-TEIXEIRA, 1995). exterior sem interior. E, porque cartesianos-
Ora, a vontade de domínio do Homem sobre newtonianos, tentando uma explicação acabada
a Natureza resultou numa catástrofe de toda a realidade, liberta de qualquer incerteza
generalizada que, segundo alguns, poderá até e desordem. Segundo Merleau-Ponty, a
erradicar o ser humano da face da Terra. percepção evoca uma constituição pré-teorética,
Percebe-se por que Adorno escreveu no Minima onde a conexão entre a essência e a existência
Moralia: O Todo é o não-verdadeiro. É evidente emerge da experiência. Eu sou o meu corpo
que este autor não se referia só ao ecosistema, próprio, aberto ao mundo por uma
inquinado pelo sistema capitalista, mas tinha intencionalidade operante, por um saber que me
presente que não se pode intervir na Natureza, vem do ente que vou sendo corporalmente, e não
desrespeitando as suas leis fundamentais. A de uma razão que é espiritualmente. Só que o
saúde não se confunde com a ausência de corpo não é físico, é a significação primordial
doença, mas com uma perfeita harmonia entre onde se produz o imbrincamento entre o pré-
todos os processos vitais ambientais e humanos. reflexivo e o reflexivo. Saber-se corpo é ver-se
A pessoa humana (cabe aqui uma pitada de no, em, pelo e desde o ser. E assim se casam
epistemologia) tem uma natureza Apolo e Dionísio, compreensão e explicação, a
multidimensional como, no fim de contas, os razão técnico- científica e a razão poética. A.J.
fenômenos sociais. Mas, como o assinala Edgar Greimas, no seu conhecido livro, Semiótica e
Morin, no seu princípio ecológico da ação, a Ciências Sociais, afirma que "o espaço não tem
ação escapa à vontade da pessoa, porque emerge necessidade de ser falado para significar".
frequentemente da imprevisibilidade das Podemos dizer o mesmo do corpo: em si mesmo,
relações que constituem a totalidade social. é o discurso de um sistema de inter-relações, que
Multidimensionalidade, contradição, processos se revela em função da complexidade humana.
permanentes de ordem e desordem, construção e E, se o Habermas não erra e a estrutura
desconstrução, probabilidade, configuração comunicativa do mundo-da-vida se orienta para
sistêmica, o próprio caos (o fenômeno criador a ação, eu direi, neste caso, que se orienta para a
donde nasce a ordem nova) e a incerteza são ação que visa a transcendência ou a superação.
atributos do pensamento complexo e refletem Antônio Teixeira Fernandes, analisando a
um real, ele também complexo. Daí, que o antropologia subjacente à obra de Vergílio
equilíbrio seja necessariamente instável, porque Ferreira, escreve: "Pela corporalidade, o homem
tudo é processo, tudo o tempo transforma, nada adquire a sua subjetividade e a sua consciência.
pode fruir-se definitivamente. Para mim, Aquela não se reveste de um mero caráter
esqueça que O.M.S. define a saúde como "um simultaneamente subjetivas e objetivas -não há,
estado de completo bem-estar físico, mental e no conhecimento científico, fundamentos
social e não consiste apenas na ausência de lógicos absolutos. Nada nos é dado, tudo é
doença ou de enfermidade". E, por isso, a construido. E assim não é de surpreender que a
atividade fisica é saudável tão só quando se física e a química e a biologia tenham evoluído
integra num processo harmônico onde a pessoa "‘de ciências da natureza’ para ‘ciências de
humana se sabe e sente na via da sua realização artefato’, verdadeiras engenharias, capazes de
integral. Que o mesmo é dizer: capaz de superar, manipularem e reconstruírem átomos, moléculas
com alegria, as suas atuais limitações, a todos os e genes" (JORGE, 1996, p.207).
níveis. Uma defesa intransigente da vida; o Na área das ciências do Homem, também a
respeito inalienável pela pessoa humana; uma criatividade é o caminho certo da sobrevivência.
atitude permanente de solidariedade - parecem Até aos finais do século XIX, o destino das
ser as idéias básicas onde radica uma política da ciências do Homem vinculara-se ao destino da
saúde; uma pastoral da saúde; qualquer filosofia. Hoje, constata-se, no interior destas
dimensão inovadora, tanto individual como ciências, uma pluralidade de discursos, sinal
social, no campo da saúde. Uma atividade fisica, seguro da existência de várias problemáticas ou
portanto, não deve circunscrever-se a níveis paradigmas. Só que, de todas as ciências do
mecânicos das condutas motoras porque, se se Homem, emerge o “vivido”, o inobjetivo, o
pretende dar mais vida aos anos, dar mais anos à subjetivo e o “homem em geral” etiquetado,
vida e dar mais saúde à vida, é preciso reafirmar estereotipado, matematizado não o encontramos
a prioridade da complexidade bio-sócio- nunca. Por isso, o indócil Jacques Lacan, nos
antropológica sobre a simplicidade de um físico Écrits, asseverava, como se sabe, que a
que se resume ao determinismo da máquina e à psicanálise demonstrara já a impossibilidade da
ordem que excomunga a desordem e o ato existência das ciências do Homem (ou ciências
criativo. humanas). O que existe, de fato, é o “sujeito”,
“Os desafios da complexidade encontrá-los- aquele que fala, o lugar de toda a enunciação.
emos em todo o lado. Se pretendemos um Na medicina, já vai sendo rotina afirmar-se que
pensamento segmentado, refechado sobre um "não há doenças, há doentes". Há dimensões
objeto, para o manipular, podemos eliminar toda recônditas, no humano, onde a qualidade
a preocupação de religar; contextualizar, predomina, que o pensamento iluminista não
globalizar mas se queremos um conhecimento teve (não tem) em conta. Também na chamada
atualizado e pertinente, há necessidade “atividade física”, se os aspectos quantitativos,
imperiosa de religar; de contextualizar, de tais como o “volume” e a “intensidade”, são os
globalizar as nossas informações e os nossos mais publicitados, não fica mal um cauteloso
saberes, de procurar enfim um conhecimento ceticismo diante dos que apregoam uma relação
complexo. O pensamento clássico, inevitável entre atividade física e uma
compartimento tornava impossível a esplêndida saúde, atendendo aos aspectos
contextualização dos conhecimentos, qualitativos inerentes à motricidade humana. Por
transformava os especialistas em idiotas outro lado, nem sempre o rendimento respeita as
culturais, ignaros, no atinente aos problemas possibilidades de adaptação fisiológica e
globais e gerais, de resto o mais concreto” resistência psíquica dos praticantes, dado o
(MORIN, 1999). Vivemos tempos em que a stress resultante de um treino excessivo e
incerteza incarnou na ação, no conhecimento, na disperso e de uma competição desmesurada. O
própria vida. Com Descartes e Newton, o desporto profissional, por exemplo, rodeado,
Homem proclamou-se a si mesmo, com alguma quase sempre, de multidões ululantes supõe um
expressão épica, dono e senhor da Natureza. duplo risco: o do rendimento insuficiente que
Bem perto de nós, Stephen Hawking sustenta leva ao sentimento de fracasso e à frustração e o
que a ciência está prestes a conhecer os "planos do super-treino onde o atleta é espoliado do que
de Deus". Se o real é complexo; se nada pode resta de si próprio e contempla, por vezes, em
reduzir-se a um programa curto de computador; desespero, as ruínas da sua personalidade
se as teorias não são tão só objetivas, mas violada. A propósito, seria de levantar a questão
seguinte: qual o preço que lhes cobramos (aos violência individual e coletiva não cessa de
atletas de altos rendimentos) pela nossa expandir-se” (BARTOLI, 1999).De um século
veneração? A prisão perpétua de terem de assim, cheio de indecifradas armadilhas e de
alcançar, não o que somos, mas o que feridas e ossadas de um sem número de guerras
desejaríamos ser. A nossa idolatria aos astros (embora os oásis de comunicabilidade
dos estádios exige deles que façam, prazenteira) nem sempre a saúde é possível. Por
escrupulosamente, aquilo que lhes impusemos: seu turno, o paternalismo médico, impondo aos
que sublimem o nosso quotidiano rotineiro, a doentes determinadas opções, como o
nossa descolorida vulgaridade. internamente compulsivo, por exemplo; os
Com o desenvolvimento científico hodierno, regimes ditatoriais e as suas estruturas
passaram a utilizar-se, no desporto, na dança, na ancilosadas, que rangem sob os imperativos
ergonomia e na reabilitação, produtos de alta inflexíveis de um ditador: também, aqui e além,
tecnologia, incluindo os fármacos de efeitos há um imenso cardápio de patologias
biológicos mais que suspeitos. Habermas refere provenientes das causas mais diversas.
que “o positivismo assinala o fim da teoria do Mas que traz de excitante e novo à saúde a
conhecimento. Em seu lugar, instala-se uma Ciência da Motricidade Humana (CMH)?
teoria das ciências [...]. Conhecimento define-se, Quero citar, como nota prévia, uma afirmação de
implicitamente, pelas realizações da ciência [...]. Paul Ricoeur: "Quando trabalhamos, fazêmo-lo
À medida que o positivismo dogmatiza a fé das dentro de um sistema de convenções. Não
ciências nelas mesmas, ele assume a função podemos definir a práxis apenas em termos de
proibitiva de blindar a pesquisa contra uma técnicas do trabalho que aplicamos. A nossa
autoreflexão, em termos de teoria do práxis, propriamente dita, incorpora um certo
conhecimento.O único traço filosófico do quadro institucional" (RICOEUR, 1991, p. 381).
positivismo é a necessidade de imunizar as Isto, para dizer que a CMH precisa de condições
ciências contra a filosofia” (HABERMAS, favoráveis, ideológicas e políticas, para
1968). Ora, atendendo a que o positivismo ainda concretizar-se. A subjetividade, por si só, não
é dominante no mundo do desporto, não resolve os problemas do conhecimento, como o
surpreende a forma acrítica como os praticantes pretende Michel Henry: "o conceito de ser é a
se entregam nas mãos de técnicos que, conforme subjetividade. A subjetividade é o que permite
o mesmo Habermas (1968) o denuncia, reduzem ao ente ser" (HENRY, 1976, p. 325). Eu quero
a práxis a técnica, alardeando a mais refinada acrescentar tão só que a saúde individual está
neutralidade valorativa social e política. Peço em dialética relação com a saúde social e
desculpa de acrescentar, aqui, a expressão de política. A CMH, porém, sem pôr de lado as
Valery, que me ocorre agora: "Tantôt je pense et transformações fisiológicas e de âmbito afetivo,
tantôt je suis". E, porque nos ocupamos (com associadas ao treino fisico; sem ladear os efeitos
demorado deleite?) do tema motricidade humana fisiológicos negativos da ausência de
e saúde, não podemos esquecer que o direito movimento; sabendo que o desporto, sem
para todos a um nível de vida aceitável desencantos, violências e hostilidades
pressupõe também a existência de condições provocadoras, pode ser uma prática salutar
ambientais e de vida, que sejam a base de uma (BAFIUELOS, 1996), recusa, na análise do ser
sociedade saudável. Foram carrancudos, humano, unicamente a via quantitativa, o
agressivos e deploráveis os tempos em que o determinismo, o mecanicismo, a ordem, a
século XX se desentranhou. Henri Bartoli, em certeza inamovível e defende também a
estilo vivo, assim nos retrata o século em existência da complexidade, da via qualitativa,
questão: “século de brutalidade e desumanidade, do carater organicista, do indeterminismo, da
o século que finda inclino-me a crer ter sido um imprevisibilidade (onde o mistério se inclui), da
século de guerra, segundo a fórmula de G. incerteza, já que os métodos analíticos e
Kolko [...], desde os 8,5 milhões de mortos da sintéticos são complementares e não
primeira guerra mundial até aos 50 ou 60 antagônicos. Em Fevereiro do ano em curso, os
milhões da segunda grande guerra, ao mesmo fundistas portugueses, que participaram nos
tempo que se banalizam os massacres e que a Jogos Olímpicos de Sidney, foram submetidos a
uma bateria de testes, entre os quais o saúde. O objeto da medicina é [...] cada vez mais
sofisticado K4, controlado pela metodóloga do o corpo de uma doença a identificar e, depois, a
treino da seleção francesa de atletismo, erradicar, o corpo cuja mecânica deve ser
Véronique Billat. Se é verdade que a reparada. É a doença que constitui objeto de
generosidade não tem preço e é bom fruí-la em investigação, de reparação ou de erradicação, o
doses avantajadas, não me parece que, sujeito que vive a doença torna-se um
cientificamente, o Antônio Pinto e a Femanda epifenômeno (COLLIERE, 1999). Por sua vez,
Ribeiro se aprestem para ser campeões as tarefas de enfermagem repartem-se por dois
olímpicos só porque os testes da senhora tipos de prescrições médicas: as ligadas aos
Véronique Billat assim o indicam. A ênfase exames de investigação e a vigilância dos
excessiva na fisiologia conduz ao reducionismo, tratamentos (COLLIERE, 1999). Só que, tanto o
à alienação. Karl Jaspers (l883-1869), médico ato médico, como as tarefas do enfermeiro,
ilustre e filósofo de um aguerrido representam (tantíssimas vezes) um dramático
inconformismo, escreveu que a prática científica bloqueio à solidariedade. O doente é uma
exige do estudioso ou do investigador o pessoa-objeto. Nos hospitais, o doente sente-se
seguinte: um estranho, entre o labirinto vocabular e
– apreender serenamente os fatos particulares, esquivo dos médicos e enfermeiros e o grupo
através da análise, da explicação, da descrição denso, lamentoso, egocêntrico dos outros
fenomenológica; doentes. Em A Ideologia Alemã, Marx e Engels
asseguram que a natureza humana é o conjunto
– relacionar a explicação e a compreensão;
das relações sociais. Quase dou razão a estes
percepcionar os fenômenos sem a
autores, nos corredores escassos e promíscuos
esquizofrenia atabalhoada dos que não têm
de muitos hospitais.
uma perspectiva de totalidade, na qual e pela
A existência de metaprincípios pressupõe a
qual as partes componentes subsistem
existência de metapatologias. Sem me referir à
(JASPERS, 1979).
hermenêutica filosófica de Gadamer, nem à
A íntima relação da análise e da síntese teoria da ação comunicativa de Jürgen Habermas
deriva do fato da sua mútua pertença a uma (que não toca, ao de leve que seja, na
totalidade mais ampla que, no fundo, é a inteligência artificial, nem na ciência cognitiva,
condição de possibilidade da sua relação o que é de lastimar) mas vincando, com
dialética. A independência absoluta da análise Humberto Maturana, o meu direito ao erro e o
ou da síntese só subsiste em perspectivas meu direito a mudar de opinião (MATURANA,
abstratas, incapazes de compreenderem o lugar 1997), aqui deixo os metaprincípios que a CMH
da totalidade como fundamental e constitutivo defende, na promoção da cultura da vida e de
horizonte de referência, na investigação uma civilização fraterna:
científica. Com isto, no caso vertente, a – Todo o conhecimento é transdisciplinar, isto
dimensão anátomo-fisiológica e laboratorial não é, entre duas coisas ou pessoas há sempre
perdem significado, ou existência. Ao invés, hipóteses de estabelecer relações. A
ganham a possibilidade de ver definidos, transdisciplinaridade é o acesso a uma
adequada e corretamente, o seu estatuto e história holística.
dimensões. O termo religião provém do verbo – E assim existe um parentesco profundo entre
latino religare, religação da parte ao todo e, daí, a arte, por um lado, e a filosofia e a ciência,
os seus metaprincípios. De igual modo, a CMH, por outro. Não só vemos num e noutro caso a
ao apelar para uma perspectiva de totalidade (e imaginação criadora em ação, como vemos
complexidade) apresenta os seus metaprincípios também que tanto a arte como a filosofia e a
autônomos, não só porque a CMH resulta de ciência tentam dar uma forma ao caos que
uma revolução científica (a passagem do físico à subjaz ao cosmos, ao mundo, ao caos que está
motricidade humana), mas também porque esta por trás dos estratos sucessivos das aparências
ciência visa estudar e libertar o ser humano no (CASTORIADIS, 1999) – A ciência tem a sua
movimento da superação, tanto no lazer ou na retórica muito própria (LOCKE, 1997), tendo
escola, como na educação, no trabalho e na até em conta as inúmeras especializações. Da
Sabe-se que a aceitação de uma ciência é um pensamento sobre as Atividades Físicas aplica-
fato socialmente determinado, decorrente da se ao universo pensado das ciências, mormente
colméia humana a que se chama comunidade as biomédicas, não ao mundo percepcionado dos
científica e é bem verdade que a inércia do fenômenos. A CMH, ao invés, não faz do corpo
tradicional e do corporativo (e a ideologia do um mero objeto epistêmico, dado o seu peso
corporativismo assemelha-se a uma religião) são ontológico. De fato, o corpo é, pela motricidade,
obstáculos epistemológicos a superar. Paul o lugar do sentido, o lugar também do possível.
Feyerabend, no Against Method, cita o caso A CMH transmite à educação para a saúde, pelo
Galileu e adianta que, na defesa que Galileu faz desporto (sem esquecer o jogo desportivo), pela
da teoria de Copérnico, se encontra muita dança (incluo, aqui, a dançoterapia), pela
retórica típica da mera propaganda. Galileu não ergonomia, pela reabilitação, etc., a recusa à
desconhecia que são muitos os fatores não- ação que se poluiu pelos exageros do universo
epistêmicos a quem os defensores de todos os tecnológico e pelas taras da sociedade neo-
paradigmas prestam um tributo sem regateio e liberal, que é a nossa. Por esta razão muito
dificultam, por isso, a implantação de novas e simples: a CMH teoriza e pratica o movimento
bem fundamentadas teorias. Na esteira de Bas da transcendência, o movimento do mais-ser,
van Fraassen, no seu conhecido livro The afinal o movimento especificamente humano.
Scientific Image, editado pela Clarendon Press Devem ser multiprofissionais as equipes
(Oxford), em 1980, inclino-me a crer que uma promotoras da saúde, pois que nenhuma
teoria nova há de apresentar qualidades disciplina ou área de intervenção pode reclamar
epistêmicas e qualidades pragmáticas: aquelas para si o monopólio da explicação e da
que respeitam à relação entre a teoria e o mundo, resolução dos problemas da saúde". Só que, em
relação de caráter marcadamente empírico; estas todas estas equipes, há de ser presente a
concernem ao contexto de aplicação, dado que dignidade da pessoa humana, anterior à
uma teoria não se implanta, independentemente medicina, ao direito, etc.; há de ser presente a
de contextos políticos, sociais, institucionais, complexidade humana e o apelo do juízo moral
corporativos. De todos estes emerge, quase que dela decorre.
sempre, a convicção de que o progresso nas Recordo uma bela e terrível frase de
ciências é cumulativo. Carnap, na obra The Montherlant: “os velhos morrem, por já não
Logical Structure the World (CARNAP, 1969) serem amados”. E não será o amor o primeiro
continua a tradição cumulativista que o fator de saúde? Um outro ponto ainda a
falibilismo de Popper foi o primeiro a contrariar, salientar: a CMH denuncia, na medicina e na
de forma decidida e radical. E mesmo que Boyd, educação fisica, o uso e o abuso da investigação
refeito do aturdimento da mensagem de Kuhn quantitativa e o demasiado desconhecimento da
que acentua serem as revoluções científicas investigação qualitativa. E isto porque a
fenômenos de descontinuidade e ruptura, retome epistemologia de uma ciência do homem há de
a idéia de progresso cumulativo, nas ciências - assumir, até às últimas conseqüências, o caráter
julgo dever referir que uma teoria não pode histórico-cultural do seu objeto (neste caso, a
viver tão somente, com lucidez desencantada da motricidade humana) e do próprio conhecimento
tradição, porque ela só parece plausível se como criação humana. A epistemologia
decorre da episteme liberta e desalienadora do positivista sempre foi hostil à introdução, nas
seu tempo. E, se não me engano, é o que ciências, da subjetividade, da emoção, do
distingue a CMH, que passa da simplicidade do desejo, etc. Se todo o real é complexo, o
fisico à complexidade da motricidade humana. quantitativo e o qualitativo devem integrar
A CMH pode exigir a interdisciplinaridade, qualquer investigação científica. Com isto, não
porque soube construir o seu próprio paradigma, se entra numa fase ocamente retórica, nem se
a sua própria disciplinaridade. dispensam os métodos laboratoriais ou
As Atividades Físicas, porque produto da experimentais. Mas acentua-se que o
modernidade, instituíram o corpo como uma conhecimento é uma produção interpretativa e
totalidade sem interior ou então com um falso criadora, para além dos resultados empíricos. O
interior apenas empírico. Por seu turno, o conhecimento de um paciente ou de um atleta
ABSTRACT
If human motricity science intends to study motor conduct (or actions) in which the human being pursues transcendence (or
surmounting), it inevitably relates to the large realm of health. What are the aspects it evinces? Transdisciplinarity, solidarity
among the various knowledge types (including poetical), complexity, (where the physical is integrated but surmounted) and
the firm belief that to be healthy is to have in ourselves, alive and working, the capacity for surmounting anything.
Key words: motricity, human motricity, health, motor behavior.
PINTO, Padre Vítor Feytor. Saúde para todos - desafios SILVA, Pedro Ribeiro da. Do ensino à prática
para uma acção pastoral. Portugal: Paulus, Apelação, profissional, in trajectos e projectos. Viana do Castelo:
1999. p. 57. Escola Superior de Enfermagem de Viana do Castelo,
RENAUD, Maria Isabel Carnlelo Rosa. A Pessoa Humana 1999. p. 22. n. 1.
e o Direito à Saúde. Brotéria, Lisboa, p. 327, out. 1994.
RICOEUR, Paul. Ideologia e utopia. Lisboa: Edições 70,
1991. p. 381. Recebido em 17/07/01
RICOEUR, Paul. Philosophie de Ia volunté. T. l Le Revisado em 8/08/01
voluntaire et l'involuntaire. Paris: Aubier, 1950. p. l95. Aceito em 22/08/01
SERRES, M. O contrato natural. Lisboa: Nova Fronteira,
1991. p. 57.
Endereço para correspondência: Departamento de Educação Física, Universidade Estadual de Maringá, Av. Colombo,
5790, Cep. 87020-900, Maringá, Paraná, Brasil.