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OS JARDINS DA PSICOLOGIA

COMUNITÁRIA

Escritos sobre a trajetória de um


modelo teórico-vivencial

Israel Rocha Brandão


Zulmira Áurea Cruz Bomfim
Organizadores

AMAZON BOOKS

2015
2ª Edição
CAPS: RECONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES
FRAGMENTADAS NA LOUCURA

Maria Aparecida Alves Sobreira Carvalho

A palavra norma, que origina normal, significa esquadro -


uma regra, aquilo que serve para retificar. Normatizar então, é
impor ordem a uma realidade de caráter diversificado e irregular.
O valor do normal nasce da necessidade de regulação e
normatização, antecipando assim, a restrição a qualquer
fenômeno que seja contrário à norma estabelecida. O anormal, o
louco, é inseparável do normal, existindo em relação
complementar.
A loucura se manifesta através de sintomas que não são
compartilhados pelos outros. A loucura questiona os alicerces da
realidade normal: estrutura de tempo, espaço, vínculos, etc. Por
isso causa tanto medo aos normais, a ponto de não ser possível a
sua convivência em liberdade. Foram necessários os
confinamentos, asilos, e celas para encarcerar o pensamento da
nossa própria sanidade. Devereux, citado por João Frayze Pereira
(1993) coloca a esquizofrenia como uma doença quase incurável,
não porque seja devido a fatores orgânicos, mas porque seus
principais sintomas são sistematicamente encorajados pelos
valores mais característicos e importantes de nossa civilização.
Por exemplo: a impessoalidade nas relações humanas, a
indiferença afetiva, a repressão dos sentimentos e desejos, a
sexualidade reduzida a genitalidade e destituída de afetividade, a
fragmentação da coerência das ações devido a imposição dos
papéis contraditórios, a mecanização do trabalho, a perda do
sentimento de pertencer a humanidade e portanto o não
engajamento nas lutas sociais, o nascimento e a morte sem
rituais, etc. O homem moderno assimila modelos esquizóides,
em que vai perdendo a sua própria humanidade.

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A construção da identidade se inicia antes da criança
nascer, quando a família lhe atribui diversos papéis que se
estruturam através do nome escolhido, da expectativa da família
e do ambiente que a cerca. O que é posto passa a identificá-la.
Nesse processo de interação, representação e identificação, dá-se
a construção de si mesmo, com seus aspectos invariantes como
traços da personalidade, atitudes e determinadas formas de
compreensão, bem como os aspectos mutáveis advindos da
relação do indivíduo com o mundo. Identidade é a expressão
histórico, social e singular da individualidade, revelada
permanentemente em movimento, segundo Góis (1993). A
identidade é um processo constante de descobrimento de si
mesmo e de reconhecimento de suas partes. Na loucura há uma
fragmentação da identidade ocorrendo uma experiência de
paralisação do tempo, onde o presente é vazio e o futuro
desesperador. As alucinações e os delírios não são
compartilhados pelos outros havendo então uma sensação de
profunda solidão. A articulação do presente –passado - futuro é
desfeita, perdendo-se a noção de historicidade do eu. O "si
mesmo" confunde-se com vozes invasoras, sentimentos estranhos
e assustadores e sensação de progressiva perda do eu. Neste
processo de perda da identidade, de perda do sentido da vida, é
necessário, segundo Moffat (1982), que o indivíduo monte uma
história com o que lhe aconteceu, percebendo-se como uma soma
do que construiu em sua vida, procurando um sentido para ela.
Para isto, deve-se conhecer e aceitar “todos os eus que se foi”
partindo do “eu que eu sou agora” e escolher um “eu que quero
ser”, para que o presente seja permeado por uma história de
sentido. Restituir o núcleo saudável significa facilitar o processo
de resgate desse fechamento e reintegração da pessoa à cultura
compartilhada, aos vínculos e estruturas perdidas. É atravessar a
fragmentação, permitindo ao paciente conhecer suas partes
negadas para que este consiga estruturar novamente seu projeto
de vida e aceitar a si mesmo.

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O hospital psiquiátrico cerceia o poder de ir e vir, confina
o paciente na instituição e afasta-o dos laços familiares e sociais.
Fundamenta-se no saber médico e no controle medicamentoso. A
doença mental é a sua grande fonte lucrativa, onde muitas vezes,
o tempo de internação é determinado pelo lucro advindo da
permanência do paciente. Desta maneira, o processo de
integração e desenvolvimento da identidade é dificultado neste
ambiente repressivo, promovendo a obstrução das
potencialidades, desorganização e dissociação do indivíduo.
A segregação dos "loucos" se deu com o início da
industrialização e o declínio dos ofícios artesanais em que a
loucura se torna um problema social, assim como os mendigos,
vagabundos e os que não se adequassem a função de mão de
obra. Este modelo foi evoluindo até a criação dos hospícios como
lugar de tratamento. Começou a ser questionado a partir de 1890
com a criação do Serviço Nacional de Doentes Mentais, o
surgimento das Comunidades Terapêuticas, a Antipsiquiatria, o
Movimento da Psiquiatria Comunitária nos EUA e a Psiquiatria
Democrática através de Franco Baságlia. Da discussão da
experiência italiana, surge o movimento de reforma psiquiátrica
no Brasil, que centra-se na busca urgente de humanização dos
serviços hospitalares, na luta por melhores condições de trabalho
e novas alternativas de assistência à saúde mental.
Esta luta se propõe não somente à destruição dos
hospitais psiquiátricos, mas a superação de todo um aparato
manicomial que se configura numa estrutura que separa os
indivíduos, segrega-os da organização familiar e comunitária e
absolutiza o saber médico na detenção da "cura" do sofrimento
psíquico. A história do manicômio é a história do sequestro de
cidadanias, de fazer loucos no contexto social. No artigo 5º de
nosso código civil preceitua-se serem absolutamente incapazes
de exercer pessoalmente os atos da vida civil, entre outros os
loucos de todo o gênero. Seriam incapazes então de querer,
entender e praticar os contratos sociais. E é o manicômio que

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intitula os seus clientes como loucos e detém um saber que
exclui, tutela e violenta indivíduos. A luta pela
desinstitucionalização converte-se numa consciente necessidade
de desmantelamento de toda a trama de saberes e práticas que se
ergueram em torno da doença mental. Para esta efetivação
mostra-se clara a necessidade de implantação de novas
modalidades de assistência em saúde mental como: criação do
Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), internação de
pacientes psiquiátricos em hospitais gerais, pensões protegidas,
oficinas de trabalhos, etc. Modelos que estimulem a produção de
vida e o resgate da cidadania.
No Ceará, a reforma psiquiátrica teve como marco
decisório desse processo, a implantação do primeiro Centro de
Atenção Psicossocial (CAPS) de Iguatu em 1991, e a partir daí
foram surgindo em outros municípios, como: Canindé, Quixadá,
Icó, Cascavel, Juazeiro e Aracati.
A Lei Federal do Deputado Paulo Delgado (1991) prevê a
extinção progressiva dos hospitais psiquiátricos, estabelecendo
que as secretarias estaduais e municipais de saúde devem
implantar serviços não-manicomiais como unidades psiquiátricas
em hospitais gerais, hospital-dia, hospital-noite, centros de
atenção psicossocial, centros de convivência, etc. Fica proibida a
internação psiquiátrica compulsória, isto é, aquela realizada sem
o expresso desejo do paciente, exceto com um parecer do
defensor público ou autoridade judiciária dando legalidade à
internação. A justificativa do projeto coloca que a maioria
absoluta das mais de 600.000 internações psiquiátricas anuais são
anônimas, silenciosas e noturnas, demonstrando assim, a
inexistência dos limites legais para o poder de sequestro da
cidadania de muitos pacientes. Este projeto, apesar de ainda não
ter sido regulamentado, estimulou estados como Rio Grade do
Sul, Distrito Federal e Ceará a formularem e aprovarem suas leis.
No Ceará, a lei foi de autoria do Deputado Estadual Mário
Mamede sob o número 12.151/93. Em Iguatu o vereador Weimar

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Gomes foi o autor da resolução de lei nº 013 de 09/11/93, que
dispõe sobre a proibição de construções ou hospitais
psiquiátricos, que sejam públicos ou privados no município.
O Estado do Ceará, segundo dados do relatório da visita
de supervisão à Coordenação de Saúde Mental da SESA \ CE
(1992) apresenta o hospital psiquiátrico como recurso
assistencial hegemônico. São 10 hospitais psiquiátricos na rede
do Sistema Único de Saúde, sendo que 8 estão localizados na
capital, um na cidade do Crato e outro em Sobral. A atenção
extra-hospitalar caracteriza-se pelo atendimento ambulatorial
convencional (medicamentoso, centrado no profissional médico,
com precária diversificação de técnicas e recursos terapêuticos).
No interior, as ações são desenvolvidas por médicos generalistas
treinados, que prestam assistência em centros ou postos de saúde.
Foi inaugurada em Iguatu a primeira unidade alternativa à
internação (CAPS) do estado. Outra característica levantada pelo
relatório refere-se à concentração de profissionais na capital,
sendo que 95% dos 150 psiquiatras do estado estão em Fortaleza.
A concentração de recursos na capital tem ocasionado a chamada
“ambulancioterapia”, afastando os pacientes de seu local de
origem e aumentando as possibilidades de internações
desnecessárias, abandono e cronificação.
Iguatu é uma cidade da região Centro Sul do estado do
Ceará com uma população de 82.365 habitantes (censo de 1991),
distando 385 Km de Fortaleza. Diante desta população e de
acordo com os estudos de prevalência em doença mental
preconizada pelo ministério da saúde, é previsível existir 10.700
pacientes necessitado de atenção à saúde mental. Antes da
criação do CAPS as ações realizadas nesta área se reduziam ás
consultas de um psiquiatra clínico e internações em hospitais
psiquiátricos, principalmente na cidade do Crato, que dista 140
Km de Iguatu. Neste contexto, o modelo médico e asilar era
predominante, onde o acompanhamento do paciente acontecia
principalmente na emergência da crise psiquiátrica, em que a

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família passava meses “trocando” as receitas velhas nos postos
de saúde, até que o paciente apresentasse sintomas mais agudos.
A interação do paciente com a família e comunidade era
diminuída, com um índice crescente de isolamento,
desembocando, muitas vezes, na construção de cárceres
domésticos- quartos construídos nos quintais para conter os
“doentes”. A cidade reivindicava a construção de um hospital
psiquiátrico devido a um número crescente de encaminhamentos
e, consequentemente, o alto custo financeiro com os
deslocamentos constantes.
Neste quadro, o psiquiatra referido acima, ao participar do
I Encontro da Luta Antimanicomial, teve conhecimento da
experiência italiana e da luta pela substituição do modelo
hospitalocêntrico. A partir destas informações, da disposição
política do então secretário de saúde e da estruturação da equipe
interdisciplinar, inaugurou-se aos 23 de novembro de 1991 o
CAPS de Iguatu.
Participei da estruturação do serviço como psicóloga da
equipe e estou hoje como coordenadora. Este artigo procura
desvendar a trajetória da implantação e desenvolvimento de
algumas ações que iniciam o processo de criação de alternativas
assistenciais em saúde mental no estado do Ceará, sofrendo as
alegrias e dificuldades do bandeirantismo, segundo Pitta (1996).
O CAPS de Iguatu adota como objetivo a criação de um
modelo de atenção à saúde mental alternativo ao hospital
psiquiátrico, priorizando os transtornos denominados
clinicamente como doença mental, oferecendo contenção nas
crises e acompanhamento no processo de reabilitação. É uma
unidade de saúde mental especializada de referência para o
município e regiões circunvizinhas. Funciona 10 horas diárias,
durante os 5 dias úteis. Sua equipe é composta atualmente por:
01 psiquiatra, 01 assistente social, 02 psicólogos, 01 terapeuta
ocupacional, 02 monitores de grupo, 01 auxiliar de Enfermagem
e 02 auxiliares de serviços gerais. São atendidos mensalmente

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cerca de 297 pacientes, sendo prioridade para o serviço as
pessoas com transtornos psicóticos, depressões graves e crianças
com distúrbios de comportamento. O CAPS faz parte de uma
rede hierarquizada de serviços que recebe encaminhamento dos
profissionais de outros serviços: Programa de Saúde da Família
(PSF), Agentes de Saúde, Unidades da Rede Básica, etc. Este
paciente ao chegar ao CAPS passa por uma triagem em que é
feita uma anamnese do processo de saúde/doença, sendo
posteriormente encaminhado para o projeto terapêutico seja em
farmacologia, psicoterapia individual, psicoterapia de grupo,
socioterapia, oficinas de cuidados pessoais, auto-expressão, visita
domiciliar, etc. De acordo com o projeto terapêutico, o paciente
permanece até dois turnos no CAPS, quando necessita de
acompanhamento intensivo. Este projeto faz parte do processo de
reabilitação psicossocial onde se busca prevenir o estigma,
rotulação e cronificação de pessoas com transtornos mentais. São
promovidas atividades e eventos que redimensionam o papel do
doente mental na família, no trabalho e na vizinhança, como
oficinas, cursos, visitas domiciliares, etc.
O CAPS busca no desenvolvimento de suas atividades e
processos, o estabelecimento de um vínculo terapêutico contínuo,
pautado numa ligação suportiva, baseado na confiança e na
sinceridade, sendo o contato uma oportunidade do paciente
vivenciar e progredir numa relação humana que deve ser
consciente mas não rígida, íntima mas não invasiva, suportiva
mas não em oposição ao movimento do paciente em busca de
autonomia. Os funcionários do serviço são terapeutas em que
cada um participa de sua própria cura e a do outro, numa relação
afetiva. Na crise psicótica nota-se a veracidade da palavra, que se
traduz através do delírio, uma linguagem não compartilhada
pelas demais pessoas. Não existem mecanismos neuróticos que a
tornem palavra vazia ou simulada, mas através da sua
desordenação ou desconexão, abordam intensa vivência de perda,
medo e vazio. Aponta Alfredo Moffat (1986) que este delírio
defende o paciente do caos perceptivo e o isola das pessoas. Há

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uma paralisação do presente e um futuro vazio, uma
impossibilidade de autoperceber-se como aquele que era. Um
estranho a si mesmo. Após a crise nota-se no paciente uma
sensação profunda de menosvalia e de incapacidade. A rotina de
muitos é descrita sumariamente: comer, dormir e assistir
televisão. Através de alguns relatos podemos perceber a dor:
“esta doença de nervo é a pior que existe, parece que a gente
nunca fica bom”; “Parece que a gente vai se perdendo... “; “as
pessoas entram no meu pensamento e não posso ficar sozinho, é
uma multidão dentro de mim. Aí me isolo para eles não me
dominarem”; “esta doença fez com que eu não cuidasse do meu
filho porque vivia me internando“ ; “minha família não entende
o que eu falo por isso tenho crises de raiva“. É necessário diante
dessas descrições, a compreensão existencial dos sintomas
superando a análise estática do diagnóstico clínico isolado.
Os grupos terapêuticos funcionam como lugar de
encontro onde são reforçados os aspectos saudáveis de cada
indivíduo através da palavra, movimento, música e construção de
objetos. Cada um fala de suas “visões”, alucinações, de como é
tratado na família, do medo de retornar ao hospital psiquiátrico,
da vontade de trabalhar, de rever os filhos que moram em São
Paulo, do pé de azeitona que dá sombra em sua casa e onde ele
passa horas deitado. Procura-se desenvolver uma atitude de
escuta, dando credibilidade à sua fala, sem procurar enquadrá-lo
pelos sintomas, tentando compreender o significado da sua
expressão e ajudando-o a falar de si. Em um momento do grupo,
após o início do diálogo, Antônio (nome fictício) perguntou
pelos faltosos, citando cada nome. Alguns tinham enviado
justificativas mas de José, ninguém sabia informar. Antônio
afirmou “ele deve estar doente porque nunca falta”. O
coordenador do grupo então, sugeriu uma visita à casa de José.
Todos aceitaram prontamente. Ao transcorrer as ruas, em grupo,
Socorro sugeriu que as visitas à casa de cada um fosse constante
e não só nas situações de doença. Foi firmado então o trato de
serem iniciadas as visitas na semana seguinte. Assim cada um na

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caminhada foi comentando sobre o seu local de morada, da
relação com os filhos e vizinhança. Chegamos à casa de José. Ele
estava por trás de um portão, conversando sozinho, muito suado,
com aspecto de cansado, os olhos pareciam procurar avidamente
algo, os pés se preparando para correr, mas não havia espaço. Ao
nos ver ele se pôs a chamar a mãe para abrir o portão. Ao entrar
dissemos o objetivo da visita: ver como ele estava. Em sua
extrema inquietude que se expressava nos gestos apressados, na
sua ansiedade em não parar de falar, mostrou surpresa e alegria
ao nos ver. Convido-nos a conhecer a casa: o seu quarto com o
colchão queimado pelo irmão, os retratos da família, o artesanato
em gesso confeccionado pela mãe e o pé de azeitona onde se
deitava a tarde. A mãe relatou que há uma semana que ele estava
insone, andando em demasia e sem parar de falar. Então, os
demais membros do grupo colocaram a importância da volta de
José ao grupo, e da necessidade de uma consulta psiquiátrica
para o controle dos sintomas. Conseguimos então convencê-lo a
seguir conosco para o CAPS. Na semana seguinte ele estava de
volta ao grupo. Em outro momento, Fátima chegou com olhos
fundos, andar pesado, com expressão nítida de um surto
depressivo. Relatou que o filho fôra assaltado em São Paulo e
após o incidente não se comunicara, mesmo após ela ter escrito
duas cartas. Tinha medo de que ele tivesse morrido. Há três
noites não conseguia dormir, com impressão recorrente de ver
pessoas dentro de casa, gestos repetidos de levar a mão ao
telefone e uma vontade imensa de sair correndo sem destino. A
sua vitalidade encontrava-se totalmente reprimida,
transformando-se em auto-destrutividade através da anorexia,
hipoatividade e impulsos suicidas. A capacidade de encontrar
saídas estava bloqueada. Foi sugerido, então, a dramatização do
incidente, como forma de catalisar as emoções contidas. Aceita a
sugestão, a cena foi repetida três vezes, onde a paciente assumia
o papel de diretor, filho e assaltante. A dramatização ajudou
Fátima a expressar a sua dor e receber o suporte do grupo para
sustentar a espera da notícia. Na semana seguinte, Fátima entrou

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sorridente e disse: “eu estou muito bem, meu filho deu notícias”.
O diálogo no grupo e a dramatização da cena, facilitaram a
reorganização do paciente até a chegada da notícia, que ocorreu
três dias após a sessão. O espaço de explicações compartilhadas,
transmitidas pela linguagem verbal e gestual, transformam o tido
como louco (sem dormir, sem comer, levando compulsivamente
a mão ao ouvido como se estivesse usando um telefone) em não-
louco, compartilhando experiências comuns. Assim pôde-se
desenvolver nas relações grupais, um sentimento de pertinência,
de valorização e não estigmatização do problema psiquiátrico. As
palavras, o movimento e os gestos não dissociadas do cotidiano
são produtores de profundos encontros.
Desde a criação do CAPS houve a redução em cerca de
80% das internações psiquiátricas na Casa de Saúde Santa
Tereza, segundo dados do relatório do coordenador de saúde
mental do estado (Aquino, 1997), principal destino dos pacientes
psiquiátricos de Iguatu. O impacto da criação de um serviço
especializado é progressivo, tendo como consequência, segundo
Sampaio & Barroso(1995) ganhos financeiros diretos com a
produtividade da equipe que é remunerada pelo Sistema Único
de Saúde (SUS); ganhos indiretos com as despesas evitadas com
ambulância, diária de motorista, manutenção carro, grande
dispensação de medicação e cronificação de pacientes; ganhos
sociais diretos com os problemas evitados com o sistema
produtivo, com a prevenção de dias perdidos no trabalho,
aposentadorias precoces, etc.; e ganhos sociais indiretos com a
promoção de saúde, estímulo à participação social,
desenvolvendo o poder pessoal e o exercício da cidadania.
A mudança de paradigma, dentro desta nova conceituação
de assistência à saúde Mental, é um desafio permanente. O
CAPS não pode se transformar em um fim em si mesmo, como
se fosse a única saída para a substituição do modelo
hospitalocêntrico. Ele faz parte de uma rede de serviços no
município, desde a orientação e encaminhamento do paciente

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pela agente de saúde, do atendimento de emergência nos
hospitais locais, até a consulta especializada no CAPS.
O CAPS é um articulador de parcerias na construção de
um modelo mais humano de saúde mental. À medida que se
torna fechado, reproduz o cárcere do hospital. A democratização
do modelo que não reproduza a exclusão teve expressão em
Iguatu através da criação em fevereiro de 1997 da Associação de
Usuários, Familiares e Amigos do CAPS, onde a comunidade sai
da condição de espectador do movimento da reforma psiquiátrica
para construtor do processo.
O CAPS propicia a reconstrução de identidades
fragmentadas quando devolve a fala ao paciente, dá suporte à
família angustiada, estimula a participação social, supera o
modelo médico através do trabalho em equipe e realiza parcerias
com os diversos programas e serviços.
Buscamos o resgate da cidadania também na expressão da
loucura.

Referências:

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Mental do Estado do Ceará, Fortaleza, mimeo., 1997
DELGADO, Paulo. Projeto de Lei n. 3.657, de 1989, Brasília,
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GÓIS, César Wagner de L. Noções de Psicologia Comunitária,
Ceará, Edições UFC, 1993.

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de1993.
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Cezar Wagner de L. Góis, 2* Edição, Fortaleza, Editora ALAB,
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TORO, Rolando. Projeto Minotauro: Abordagem terapêutica
do sistema Biodança Petrópolis, Vozes, 1988.

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