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Psicanálise e saúde coletiva

Apesar de terem sido produzidos em diferentes momentos e com objetivos diversos, é possível
identificar nos vários textos algumas premissas básicas, que se complementam: a relevância da
clínica, tantas vezes relegada a um segundo plano na Saúde Coletiva; a dificuldade ou até a
impossibilidade de levar em conta a dimensão subjetiva do usuário e do profissional de saúde
sem recorrer a alguns conceitos da Psicanálise; a urgência de introduzir esses conceitos,
visando a complementar a formação dos profissionais de saúde; a relevância de introduzir, de
forma sistemática, a supervisão clínico-institucional nas equipes de saúde, dadas as
dificuldades enfrentadas no cotidiano da atenção ao cuidado, não apenas prestado ao portador
de transtorno mental, mas também àquele que busca outras formas de atendimento; a
necessidade de articular a Psicanálise com a análise da ideologia, para evitar cair num
subjetivismo individualista e limitante; e a contextualização de tais aportes no âmbito da
política de saúde brasileira, que instituiu o Sistema Único de Saúde, o SUS, cuja implementação
e cujo aperfeiçoamento têm sido umas das principais “bandeiras” da Saúde Coletiva,
sobretudo mediante a atuação da Associação Brasileira de Saúde Coletiva/ABRASCO, criada no
final da década de 1970.

Rosana Onocko Campos realiza essa tarefa tendo como ponto de partida a constatação de que
– embora, em anos recentes, autores do campo da Saúde Coletiva reconheçam a relevância de
se considerar o sujeito e não apenas as estruturas sociais – ainda há poucas referências à
constituição subjetiva do sujeito.

O caminho escolhido para apresentar e discutir o conceito de ideologia é, basicamente, o de


rejeitar a teoria da ideologia como reflexo, atribuída a uma certa leitura do marxismo. Para
tanto, inicia sua reflexão com Freud, a partir de obras como O Mal-estar da civilização e Mais
além do princípio do prazer. Na primeira, o criador da psicanálise afirma que a civilização é
fonte de sofrimento para os homens, embora seja impossível a humanidade voltar ao tempo
das cavernas; na segunda, constata a enorme contradição do ser humano, durante toda a sua
vida, na luta entre dois instintos/pulsões básicos: o do prazer e o da morte.

Se a ideologia interroga o sujeito, como pensar o SUS como política pública universal se muitos
dos valores que informam e conformam a sociedade brasileira são valores individualistas e com
base na meritocracia, como na sociedade norteamericana, questiona a autora? É Zizek que,
segundo a autora, encaminha a resposta a essa questão, com sua análise da ideologia em-si,
quando, sob a forma de doutrina, a ideologia procura nos convencer “de sua veracidade, mas
sempre servindo a algum interesse de poder”, e para-si, quando a ideologia, mediante os AIEs,
analisados por Althusser, ganha materialidade “nas práticas, rituais e instituições”. E em-si-e-
para-si, quando, ao se externalizar, “a ideologia reflete sobre si mesma, produzindo a
desintegração, a autolimitação e autodispersão da noção de ideologia”

Afirma, ainda, que “tomamos a supervisão clínico-institucional como um dispositivo de


formação e intervenção” (p. 164), e assinala suas principais estratégias, que são: a análise
permanente da organização do processo de trabalho e do cotidiano e a discussão e construção
coletiva dos casos, pois, em última análise, é a discussão do caso que deve orientar a
organização da prática da instituição, e tal operação só se pode dar em equipe.

Finalizando, a autora recorre às noções de suporte (holding) e manejo (handing), ambas de


Winnicott, que devem ser exercidas pelo supervisor clínico-institucional: suporte no sentido de
“suportar os outros no seu processo de constituição como grupo subjetivo, sabendo o que está
em jogo: identificação, narcisismo, angústia de dissolução, pacto denegatório etc. e manejo de
se saber o que fazer, ter alguma coisa para ofertar, caminhos para mostrar. Alguns conceitos
com relação à clínica das psicoses, às formas de operar o Coletivo, certa forma de organizar a
participação no serviço etc.”

Privação e delinquência

tendência antissocial (Winnicott, 1956, pp. 499-511) é fruto da falta de apego, de desvios nos
investimentos afetivos, carências que castigam a alma precocemente. Crianças, adolescentes e
a população em geral necessitam de pais morais que ofereçam acolhimento e direcionamentos
que criem vínculos afetivos e espaços mentais criativos. Processos complexos que contribuem
para o desenvolvimento das potencialidades criativas, que resultam em múltiplas linguagens
inconscientes como formas de expressão das representações simbólicas e funcionais do
psiquismo em busca de realizações e prazeres pessoais e coletivos. A tendência antissocial é
um grito de socorro, mas, também, de esperança diante de um histórico de falência familiar e
da sociedade, ao ferir o processo de estruturação da personalidade quando deixa de oferecer
condições de dignidade a partir de valores culturais. Percepção que se estende ao nível da
identidade nacional em seus diferentes níveis de subjetivação cujo saldo será uma geração
desorientada e vazia

Privação e delinquência – caminhos e descaminhos da esperança – têm suas origens


precocemente no processo de desenvolvimento da criança. A segunda oportunidade de
reorganização do aparelho psíquico ocorre na adolescência ao nível do narcisismo, ideal do
ego, superego, ego e seus mecanismos de defesa. Para tanto, é necessário oferecer à criança
um ambiente continente para que viva afetos contraditórios, experimente e encontre relações
com modelos provedores de conteúdos estruturantes, diálogos, vivências criativas
estimulantes de seus recursos intelectuais, afetivos e da autoestima. Situações que ajudem a
perceber os limites pessoais e sociais e formas de expressão do mundo das pulsões
transformado em linguagem artística, esportes. Nessas condições, a maioria descobre em si e
no outro a solidariedade, a cooperação, e se sente reconhecido e gratificado. A experiência
realizada por meio do projeto “Abrace seu bairro”, de atenuação da violência entre
adolescentes no meio escolar, comprovou esses fatos

Falhas na vida relacional primitiva comprometem a criação dos espaços transicionais e


potenciais individuais, espaço da criatividade, da continência, da transformação da
agressividade e do amor, da noção do público e do privado, e afetam a construção da
identidade individual. Quando se torna crônico e atinge a massa populacional, afeta a
identidade nacional. As falhas primitivas comprometem a capacidade de “busca de objeto” de
prazer e de realização, fenômeno que pode se expressar no ato de roubar. São pessoas que não
desenvolvem a capacidade de “experimentar pesar e desesperança”, fenômenos que
estimulam a busca do novo, do caminho criativo

Visto dessa forma, Winnicott introduz uma visão ético-política às questões do sofrimento
humano. Quando falha a mente democrática e madura, os atos de delinquência emergem,
inicialmente na forma de protesto, mas, se nada é feito, eles se cristalizam como elementos
defensivos ou estruturais do ser. No âmbito individual tornam-se traços de caráter; no âmbito
coletivo transformam-se em elementos da cultura. A perplexidade crônica ou nos revolta ou
nos torna passivos, anestesiados e indiferentes. Diante do silêncio e do comodismo somos
todos corresponsáveis.
O indivíduo maduro tem dúvidas, diferentemente daqueles que propagam a certeza com fins
eleitoreiros. Ela é fruto de uma conquista. Para conquistá-la é preciso de um bom lar nacional,
que ofereça funções maternas (continência) e funções paternas (ordem e direcionamento),
espaços criativos e diálogos estruturantes. Família e nação se equiparam nesse sentido, com a
diferença de que pais não escolhemos, enquanto nossos dirigentes podemos e devemos
escolher. Reitero, a delinquência ao nível da família e da nação é fruto de uma democracia
interna frágil e ineficiente que afeta o potencial criativo, empobrece o sujeito e nossa cultura.
Desse caos pode surgir a esperança. A rebelião, como sinalizadora das necessidades urgentes
de mudanças.

PORTARIA Nº 3.088, DE 23 DE DEZEMBRO DE 2011

Art. 1º Fica instituída a Rede de Atenção Psicossocial, cuja finalidade é a criação, ampliação e
articulação de pontos de atenção à saúde para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e
com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema
Único de Saúde (SUS).

III - combate a estigmas e preconceitos; IV - garantia do acesso e da qualidade dos serviços,


ofertando cuidado integral e assistência multiprofissional, sob a lógica interdisciplinar; V -
atenção humanizada e centrada nas necessidades das pessoas; VI - diversificação das
estratégias de cuidado; VII - desenvolvimento de atividades no território, que favoreça a
inclusão social com vistas à promoção de autonomia e ao exercício da cidadania; VIII -
desenvolvimento de estratégias de Redução de Danos; IX - ênfase em serviços de base
territorial e comunitária, com participação e controle social dos usuários e de seus familiares; X
- organização dos serviços em rede de atenção à saúde regionalizada, com estabelecimento de
ações intersetoriais para garantir a integralidade do cuidado; XI - promoção de estratégias de
educação permanente; e XII - desenvolvimento da lógica do cuidado para pessoas com
transtornos mentais e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas,
tendo como eixo central a construção do projeto terapêutico singular

Art. 4º São objetivos específicos da Rede de Atenção Psicossocial: I - promover cuidados em


saúde especialmente para grupos mais vulneráveis (criança, adolescente, jovens, pessoas em
situação de rua e populações indígenas); II - prevenir o consumo e a dependência de crack,
álcool e outras drogas; III - reduzir danos provocados pelo consumo de crack, álcool e outras
drogas; IV - promover a reabilitação e a reinserção das pessoas com transtorno mental e com
necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas na sociedade, por meio do
acesso ao trabalho, renda e moradia solidária; V - promover mecanismos de formação
permanente aos profissionais de saúde; VI - desenvolver ações intersetoriais de prevenção e
redução de danos em parceria com organizações governamentais e da sociedade civil; VII -
produzir e ofertar informações sobre direitos das pessoas, medidas de prevenção e cuidado e
os serviços disponíveis na rede; VIII - regular e organizar as demandas e os fluxos assistenciais
da Rede de Atenção Psicossocial; e IX - monitorar e avaliar a qualidade dos serviços por meio
de indicadores de efetividade e resolutividade da atenção.

§ 4º Os Centros de Atenção Psicossocial estão organizados nas seguintes modalidades:

I - CAPS I: atende pessoas com transtornos mentais graves e persistentes e também com
necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas de todas as faixas etárias;
indicado para Municípios com população acima de vinte mil habitantes;
II - CAPS II: atende pessoas com transtornos mentais graves e persistentes, podendo também
atender pessoas com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas,
conforme a organização da rede de saúde local, indicado para Municípios com população
acima de setenta mil habitantes;

III - CAPS III: atende pessoas com transtornos mentais graves e persistentes. Proporciona
serviços de atenção contínua, com funcionamento vinte e quatro horas, incluindo feriados e
finais de semana, ofertando retaguarda clínica e acolhimento noturno a outros serviços de
saúde mental, inclusive CAPS Ad, indicado para Municípios ou regiões com população acima de
duzentos mil habitantes;

IV - CAPS AD: atende adultos ou crianças e adolescentes, considerando as normativas do


Estatuto da Criança e do Adolescente, com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e
outras drogas. Serviço de saúde mental aberto e de caráter comunitário, indicado para
Municípios ou regiões com população acima de setenta mil habitantes

V - CAPS AD III: atende adultos ou crianças e adolescentes, considerando as normativas do


Estatuto da Criança e do Adolescente, com necessidades de cuidados clínicos contínuos.
Serviço com no máximo doze leitos leitos para observação e monitoramento, de
funcionamento 24 horas, incluindo feriados e finais de semana; indicado para Municípios ou
regiões com população acima de duzentos mil habitantes; e

VI - CAPS I: atende crianças e adolescentes com transtornos mentais graves e persistentes e os


que fazem uso de crack, álcool e outras drogas. Serviço aberto e de caráter comunitário
indicado para municípios ou regiões com população acima de cento e cinquenta mil habitantes

Art. 9º São pontos de atenção na Rede de Atenção Psicossocial na atenção residencial de


caráter transitório os seguintes serviços:

I - Unidade de Acolhimento: oferece cuidados contínuos de saúde, com funcionamento de


vinte e quatro horas, em ambiente residencial, para pessoas com necessidade decorrentes do
uso de crack, álcool e outras drogas, de ambos os sexos, que apresentem acentuada
vulnerabilidade social e/ou familiar e demandem acompanhamento terapêutico e protetivo de
caráter transitório cujo tempo de permanência é de até seis meses; e

II - Serviços de Atenção em Regime Residencial, entre os quais Comunidades Terapêuticas:


serviço de saúde destinado a oferecer cuidados contínuos de saúde, de caráter residencial
transitório por até nove meses para adultos com necessidades clínicas estáveis decorrentes do
uso de crack, álcool e outras drogas.

§ 1º O componente Estratégias de Desinstitucionalização é constituído por iniciativas que


visam a garantir às pessoas com transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de
crack, álcool e outras drogas, em situação de internação de longa permanência, o cuidado
integral por meio de estratégias substitutivas, na perspectiva da garantia de direitos com a
promoção de autonomia e o exercício de cidadania, buscando sua progressiva inclusão social.

§ 2º O hospital psiquiátrico pode ser acionado para o cuidado das pessoas com transtorno
mental nas regiões de saúde enquanto o processo de implantação e expansão da Rede de
Atenção Psicossocial ainda não se apresenta suficiente, devendo estas regiões de saúde
priorizar a expansão e qualificação dos pontos de atenção da Rede de Atenção Psicossocial
para dar continuidade ao processo de substituição dos leitos em hospitais psiquiátricos.
§ 3º O Programa de Volta para Casa, enquanto estratégia de desinstitucionalização, é uma
política pública de inclusão social que visa contribuir e fortalecer o processo de
desinstitucionalização, instituída pela Lei nº 10.708, de 31 de julho de 2003, que provê auxílio
reabilitação para pessoas com transtorno mental egressas de internação de longa
permanência.

Art. 12. O componente Reabilitação Psicossocial da Rede de Atenção Psicossocial é composto


por iniciativas de geração de trabalho e renda/empreendimentos solidários/cooperativas
sociais.

§ 1º As ações de caráter intersetorial destinadas à reabilitação psicossocial, por meio da


inclusão produtiva, formação e qualificação para o trabalho de pessoas com transtorno mental
ou com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas em iniciativas de
geração de trabalho e renda/empreendimentos solidários/ cooperativas sociais.

§ 2º As iniciativas de geração de trabalho e renda/empreendimentos solidários/cooperativas


sociais de que trata o § 1º deste artigo devem articular sistematicamente as redes de saúde e
de economia solidária com os recursos disponíveis no território para garantir a melhoria das
condições concretas de vida, ampliação da autonomia, contratualidade e inclusão social de
usuários da rede e seus familiares.

A regionalização da saúde mental e os novos desafios da Reforma Psiquiátrica brasileira

A RAPS fundamenta-se nos princípios da autonomia, respeito aos direitos humanos e o


exercício da cidadania; busca promover a equidade e reconhecer os determinantes sociais dos
processos saúde-doença-sofrimento-cuidado; desfazer estigmas e preconceitos; garantir o
acesso aos cuidados integrais com qualidade; desenvolver ações com ênfase em serviços de
base territorial e comunitária; organizar os serviços em rede com o estabelecimento de ações
intersetoriais, com continuidade do cuidado; desenvolver ações de educação permanente;
ancorar-se no paradigma do cuidado e da atenção psicossocial; além de monitorar e avaliar a
efetividade dos serviços (Brasil, 2011c). Em termos organizativos, o ordenamento da Atenção
Psicossocial em cada Região de Saúde deve estruturar-se em diferentes pontos da rede SUS: (1)
atenção primária; (2) atenção psicossocial especializada; (3) atenção à urgência e emergência;
(4) atenção residencial de caráter transitório; (5) atenção hospitalar; (6) estratégia de
desinstitucionalização; (7) reabilitação psicossocial.

A regionalização da política de saúde no Brasil é uma estratégia para garantir a organização e


oferta dos serviços, acesso, eficiência, redução de custos, aumentar satisfação do usuário,
diminuir desigualdades, produzir impactos positivos nas condições sanitárias e na vida das
populações. Objetiva superar a fragmentação da oferta de serviços de saúde por meio da ação
cooperativa entre municípios (Santos; Campos, 2015). Esse debate remonta a criação do SUS,
com a Lei nº 8.080/1990, quando a regionalização foi adotada como diretriz para orga-nização
do sistema de saúde, juntamente com a ideia da descentralização (Pereira et al., 2015).

As Redes de Atenção são arranjos organizativos de ações e serviços de saúde de diferentes


densidades tecnológicas e níveis de complexidade do sistema SUS que, integradas por meio de
sistemas de apoio técnico, logístico e de gestão, buscam garantir a integralidade do cuidado. O
propósito das RAS é superar a fragmentação histórica da atenção e da gestão do SUS,
aperfeiçoando o seu funcionamento político-institucional, de modo a respeitar a diversidade
dos contextos regionais, suas diferenças socioeconômicas e necessidades de saúde da
população (Brasil, 2010a). Nesse sentido, foram estabelecidas as seguintes redes temáticas de
atenção, por serem pontos prioritários das RAS em todo o país: Rede Cegonha, que tem um
recorte de atenção à gestante e à criança de até 24 meses; Rede de Atenção às Doenças e
Condições Crônicas: iniciando-se pelo câncer (a partir da intensificação da prevenção e
controle do câncer de mama e colo do útero); Rede de Cuidado à Pessoa com Deficiência; a
Rede de Atenção às Urgências e Emergências; e a Rede de Atenção Psicossocial (com
prioridade para o Enfrentamento do Álcool, Crack, e outras Drogas).

Cada CIR tem a finalidade de integrar a organização, o planejamento e a execução de ações e


serviços de saúde (atenção primária; urgência e emergência; atenção psicossocial; atenção
ambulatorial especializada e hospitalar e vigilância em saúde), articulando-os pelas Redes de
Atenção anteriormente referidas (Brasil, 2011b)

O debate sobre a descentralização e regionalização na saúde mental, acompanhando o debate


nacional na saúde pública, ganhou força nos últimos anos com o propósito de fortalecer a
participação dos municípios na construção de uma rede integral de serviços, priorizando ações
territoriais e de base comunitária. Houve muitos avanços na perspectiva de instituir uma rede
“integrada” de serviços sob o prisma da regionalização da RAPS em cada território de saúde.
Há um maior número e diversidade de serviços implantados nas regiões do país, tendência à
interiorização da assistência em saúde mental para municípios de médio e pequeno portes,
forte participação na APS no cuidado continuado, descentralização dos leitos de atenção
psicossocial e SRT das grandes cidades, dentre outros. Contudo, detectou-se a existência de
vazios assistenciais em saúde mental em certas regiões do país que, com exceção de alguns
dispositivos da atenção primária, não contam com nenhum outro ponto da RAPS ou possuem
estrutura condizente com o padrão mínimo esperado em termos de cobertura nos territórios
de saúde. Esse é um aspecto preocupante do processo de expansão, regionalização e
interiorização da RAPS, considerando as paradas e os obstáculos para seguir rumo à
perspectiva de universalizar a cobertura em saúde mental no país. Esse recente processo de
regionalização da saúde no país enfrenta inúmeros obstáculos devido à enorme desigualdade
das condições socioeconômicas e à diversidade territorial nas diferentes regiões. Há
particularidades em relação aos arranjos populacionais, bem como em termos do perfil de
morbimortalidade que não podem ser desconsiderados quando se planeja a cobertura em
saúde de forma regionalizada e equitativa. A desigualdade de condições das regiões não está
descolada também das desigualdades observadas quanto à oferta de serviços, de
infraestrutura física e de recursos humanos qualificados nas mesmas. Esses aspectos
impactam, consequentemente, na quantidade e qualidade do acesso e utilização dos recursos
de saúde, na capacidade resolutiva das equipes, no cuidado continuado e na atuação no
território

Formação em Psicologia: Requisitos para Atuação na Atenção Primária e Psicossocial

1) o psicólogo deve ser capaz de observar o contexto e de conhecer o território da área


de abrangência da unidade de saúde considerando: a) a história do lugar, b) os
aspectos geofísicos, situando os fatores ambientais de risco ou vulnerabilidade, c) os
aspectos estruturais em termos da rede de esgoto, energia, água e esgoto, coleta de
lixo, tipo de moradia, transporte, população, escolas, creches, demais equipamentos
de saúde e de assistência social, equipamentos de lazer e igrejas; 2) o psicólogo deve
conhecer os aspectos sociopolíticos em termos de grupos organizados, de lideranças
(reconhecidas pela comunidade), de principal fonte de renda das famílias, de eventos
significativos para a comunidade, e deve participar de ações de identificação e de
enfrentamento dos problemas sociais de maior expressão local, com ênfase no
desenvolvimento comunitário e na atuação intersetorial; 3) o psicólogo deve conhecer
os principais problemas e necessidades de saúde da comunidade que vive na área de
abrangência com base no seu perfil epidemiológico bem como se dá o acesso aos
serviços e programas de saúde e/ou benefícios sociais, aos medicamentos, às práticas
de cuidado desenvolvidas pelos profissionais de saúde (ESF) e às práticas integrativas
(uso de fitoterápicos, rezadeiras, prática de atividades físicas); o profissional deve
realizar atendimentos programáticos ou de livre demanda, dentro e fora do espaço
físico da Unidade Básica de Saúde e nas visitas domiciliares, bem como outras
estratégias de cuidado baseado na compreensão aprofundada dos fenômenos
psicológicos e psicossociais que envolvem processos de saúde e de produção da vida
em contextos comunitários; 4) esse diagnóstico local e situacional deve ser realizado
com um processo de discussão e de negociação com os profissionais do serviço de
saúde e com a comunidade, no sentido de estabelecer um consenso sobre os
problemas prioritários para, em seguida, proceder à escolha das estratégias de
intervenção participativas; para tanto, reúnese com a comunidade para desenvolver
ações. conjuntas e debater os problemas locais de saúde, o planejamento da
assistência prestada e os resultados alcançados, disponibilizando informações sobre o
funcionamento da unidade de saúde de maneira clara e acessível aos usuários; 5) a
principal estratégia de cuidado é o estabelecimento de confiança e vínculo com as
famílias e comunidades, por isso, conhecer de perto os problemas, as dificuldades, as
histórias e projetos de vida, as necessidades sociais e de saúde, bem como as
potencialidades das famílias, é imprescindível para o planejamento das ações e de um
plano de cuidados continuados; 6) é necessário utilizar diversas ferramentas para o
desenvolvimento do trabalho, dentre as quais se destacam a entrevista diagnóstica, de
modo a subsidiar os estudos de casos e a elaboração de projeto terapêutico singular
com base nas necessidades sociais e em saúde, as ações de acolhimento individual e
coletivo, o acompanhamento de casos na perspectiva da gestão do cuidado, a
orientação psicossocial, o acompanhamento terapêutico e a busca ativa em saúde
mental, a visita domiciliar e o uso de ferramentas como o genograma4 e o ecomapa5 ;
7) é prioritário o desenvolvimento de atividades de apoio matricial e de articulação
com a rede, fortalecendo ações de saúde mental na atenção primária. Além das
tecnologias relacionais de vínculo e escuta, o uso do método da roda nas práticas
grupais como intensificador de espaços coletivos para a produção de sujeitos
corresponsáveis no processo saúde-doença, a identificação de temas e prioridades
para o desenvolvimento de ações para a melhoria das condições de vida e sanitária do
território, bem como demais estratégias de intervenção individual e coletiva são as
principais ferramentas utilizadas na gestão da clínica pelo apoio matricial; Por outro
lado, para uma atenção nos casos de saúde mental, o psicólogo deve investir em ações
de cuidado e reabilitação psicossocial, assumir a coordenação do cuidado e
desenvolver ações que incluam acolhimento, tratamento e acompanhamento,
prevenção primária ao uso prejudicial do álcool e outras drogas, diagnóstico precoce,
redução de danos, reinserção social e referenciamento para a rede de atenção
psicossocial, quando necessário. As ações nos dispositivos de saúde mental se
concentram no desenvolvimento de atividades de acolhimento/triagem, no estudo de
caso em equipe para a elaboração do projeto terapêutico singular, na realização de
visita domiciliar, na construção de ações de retaguarda com atividades de interconsulta
para os casos de internação, bem como de suporte à família, na realização de trabalho
com grupos e participação das oficinas terapêuticas, com foco na autonomia e no
desenvolvimento de ações de suporte e ajuda mútua, na participação nas ações de
matriciamento na atenção básica e também na realização de grupos de promoção de
saúde mental na atenção primária à saúde e pactuação da continuidade do cuidado no
território de forma corresponsabilizada.

Direitos na loucura: o que dizem usuários e gestores dos Centros de Atenção Psicossocial
(CAPS)

Os CAPS têm se consolidado como referência ao tratamento em saúde mental2 ,


responsabilizando-se por promover assistência ampliada aos casos de usuários em intenso
sofrimento psíquico, a partir de ofertas de cuidado clínico singularizado aos usuários, por meio
de diferentes ações. Diferentemente de instituições totais(d)3 que operam na lógica da
segregação produzindo, no caso das instituições em saúde mental, a perda da identidade e
redução dos sujeitos à doença mental – entendida como desvio social ou moral –, os CAPS
propõem cuidados a partir da clínica ampliada4 . A ampliação da prática de cuidado pressupõe
a valorização da subjetividade, singular e complexa, e a possibilidade de trocas cotidianas nos
planos micro e macropolítico, considerando as dimensões sociocultural e jurídico-política da
Reforma Psiquiátrica Brasileira5 . “Entre” sujeitos e instituições, “entre” clínica e política devem
ser problematizados os direitos dos usuários em intenso sofrimento psíquico. Onocko Campos
e Campos6 indicam que o processo de construção de autonomia dá-se no movimento de
coconstrução de sujeitos e coletivos. Desse modo, podemos pensar que a autonomia pode ser
atingida em maiores ou menores graus durante momentos da vida. Ao aumentar o poder de
agir sobre si e sobre o contexto onde vive, é possível aumentar a rede de dependência
(pessoas, lugares, instituições), desenvolvendo redes de apoio nas quais se tornam possíveis
maiores graus de autonomia. A construção de autonomia não se reduz à explicitação de
diferenças e construção de consensos. Implica negociação de saberes e valorização da visão e
experiência dos usuários e de sua rede de apoio. Tais negociações são, intermitentemente,
atravessadas por relações de poder.

Consideramos que cuidar do sujeito em seu território, com direito à circulação por diferentes
espaços (físicos e simbólicos), qualifica o tratamento. O hospital psiquiátrico tira o que nos
torna humanos: a singularidade e a liberdade. A mudança na lógica de cuidados traz consigo
novos riscos e aprisionamentos a serem continuamente analisados. Em formas de tratamentos
“não manicomiais”, a prática do controle pode se mascarar: a medicação pode tornar-se um
meio de vigilância e tamponamento de sintomas, sendo pouco discutida e negociada com o
usuário; as visitas domiciliares podem tornar-se monitoramento. Ou seja, práticas e encontros
que teriam potência para fortalecer a autonomia dos usuários podem ser tentáculos que
promovem sua captura. O circuito, denunciado por Goffman3 , deixa de circunscrever-se a
instituições totais, passando a operar no que chamamos de Práticas Totais, conforme veremos
mais adiante

Rupturas e Encontros
Costa-Rosa (2000) nomeia o conjunto das práticas promovidas pela Reforma Psiquiátrica como
“modo psicossocial”, em um movimento dialético de contradição ao modelo psiquiátrico
tradicional, o qual chama de “modo asilar” predominante. Para o autor, a fim de caracterizar a
mudança de paradigma de atenção capaz de superar o modelo asilar, é imprescindível que a
prática preencha algumas condições relativas a transformações radicais em quatro âmbitos:

1) Concepção do objeto e dos meios de trabalho: contrapondo-se à ênfase nas determinações


orgânicas e sua decorrente prática e ao meio de trabalho que reproduz modelo da divisão de
trabalho correspondente à ‘linha de montagem’, o modo psicossocial caracteriza-se pela
transformação nas concepções do objeto e na participação e implicação do sujeito no
tratamento, tendo como meio de trabalho a equipe interprofissional, que, pelo intercâmbio
entre seus saberes e práticas, supera radicalmente o modelo da linha de montagem.

2) Concepções das formas da organização institucional: opondo-se à organização verticalizada


e a um fluxo de poder em sentido único do modo asilar, o modo psicossocial se caracteriza por
uma organização institucional dos dispositivos de trabalho horizontal, no qual a participação,
autogestão e Inter profissionalidade são as metas radicais.

3) Formas do relacionamento com a clientela: enquanto o modo asilar se caracteriza pela


separação entre doentes e sãos, com a instituição cumprindo uma função de depositária que
interdita o diálogo, no modo psicossocial propõe-se que a instituição, por meio de seus
agentes, adquira o caráter de espaço de interlocução, agenciadora de subjetividades. E, tendo
106 em vista a dimensão de suas ações no âmbito da saúde coletiva, a instituição deve
funcionar como ponto de fala e escuta da população.

4) Concepção dos efeitos típicos em termos terapêuticos e éticos: enquanto no modo asilar se
observa uma hipertrofia nos ‘defeitos de tratamento’, como a cronificação asilar, decorrente de
um entendimento do tratamento centrado na supressão ou no tamponamento dos sintomas, o
modo psicossocial objetivo o reposicionamento subjetivo, levando-se em conta a dimensão
coletiva e sociocultural. Deverá ser pensado na perspectiva de uma ética que se abra para a
‘singularização’. Assim, implicação subjetiva e sociocultural, além da singularização, são as
metas radicais quanto à ética das práticas no modo psicossocial.

Tenho como eixo central deste trabalho as quatro dimensões fundamentais do processo da
Reforma Psiquiátrica apresentadas por Amarante (2003). Descreverei a seguir as características
de cada uma delas, acrescentando minhas contribuições pessoais.

A DIMENSÃO EPISTEMOLÓGICA: é a que estou a tratar neste capítulo, e se refere ao campo da


produção de saberes e à desconstrução dos fundamentos, das noções e dos conceitos
fundantes da psiquiatria, como, por exemplo, a noção de doença mental. Não se trata apenas
de negar, romper, mas também de produzir novas noções e conceitos, tecendo linhas que
dialogam e articulam diferentes disciplinas, num esforço de construir um novo paradigma no
campo da saúde mental.

A DIMENSÃO TÉCNICO-ASSISTENCIAL: em um constante movimento entre a prática e a teoria,


ou seja, no movimento de uma práxis, propõe-se a construção de uma nova organização de
serviços, articulando uma rede de espaços de sociabilidade, de produção de subjetividades, de
geração de renda, de apoio social, de moradia, enfim, de produção de vida.

A DIMENSÃO JURÍDICO-POLÍTICA: no primeiro capítulo, sugeri uma pequena alteração,


renomeando-a como dimensão política. O termo jurídico colocado à frente, embora não seja
essa a ideia fundamental, remete a uma ênfase nas mudanças das leis. O sentido da alteração é
salientar o processo de ação de protagonistas em diferentes segmentos sociais (movimento
social, reforma do Estado, universidades etc.). São ações que objetivam construir uma nova
pactuação de poder, lutando para dar voz a quem não tem direito, a quem não é cidadão.
Trata-se, enfim, de uma luta política para uma transformação social.

A DIMENSÃO SOCIOCULTURAL: há um imaginário social, construído historicamente, para a


loucura, para a diferença. Um imaginário que desqualifica (“Isso é coisa de louco!”), que exclui
(“Lugar de louco é no hospício!”), que teme (“Louco é perigoso e agressivo!”), que infantiliza
(“Que bonitinho! Nem parece feito por louco!”). Provocar a sociedade a refletir sobre sua
relação com a loucura, com objetos e ações culturais. Transformar, como diz Santos, o
conhecimento e as práticas em um senso comum emancipatório. Enfim, produzir uma
transformação desse imaginário é o grande desafio desta dimensão.

a doença entre parênteses é, ao mesmo tempo, a denúncia e a ruptura que permite a


observação do duplo da doença mental, isto é, do que não é próprio da condição de estar
doente, mas de estar institucionalizado (e não apenas internado), que reabre a possibilidade
de um outro conhecimento sobre esta mesma condição.

PTS

O Projeto Terapêutico Singular (PTS) pode ser realizado conforme os passos a seguir(1,2):

1 – Diagnóstico: delineamento da situação problema, identificando os aspectos sociais,


psicológicos e orgânicos que influenciam no caso. É importante, nessa etapa, identificar os
sujeitos envolvidos, as vulnerabilidades e a rede de apoio existente, e não apenas os aspectos
clínicos do caso. A elaboração de um genograma e ecomapa mostra-se como uma boa
ferramenta para registro gráfico da situação problema quando esta se tratar de um caso
individual e não comunitário.

2 – Definição de metas: após a descrição do caso e levantamento dos pontos a serem


trabalhados, é importante que a equipe trabalhe com metas a serem alcançadas a curto, médio
e longo prazo. Essas metas devem ser negociadas com o sujeito do PTS e demais pessoas
envolvidas.

3 – Divisão de responsabilidades: as tarefas de cada um devem ser claras, incluindo do sujeito


do PTS. Definir também um profissional que será responsável pelo maior contato entre o caso
e a equipe de saúde é uma estratégia que pode facilitar a continuidade da assistência, além da
reavaliação e reformulação de ações do PTS.
4 – Reavaliação: momento onde a equipe fará a discussão do caso, verificando o que teve êxito
e o que precisa ser reformulado para ter melhor resposta. A periodicidade da reavaliação deve
ser definida pela equipe interdisciplinar no planejamento das ações.

Para o sucesso do PTS é importante que a equipe interdisciplinar construa um vínculo com o
sujeito do projeto, além de envolvê-la nas decisões sobre as ações a serem realizadas (princípio
da clínica ampliada).

O Projeto Terapêutico Singular é um trabalho realizado pela equipe interdisciplinar de saúde


com vistas ao acompanhamento de um caso específico que envolve um sujeito ou uma
comunidade. O caso trabalhado em um PTS deve ser eleito pela equipe considerando a
necessidade de atenção ampliada à situação. Geralmente, são situações onde já foram
tentadas ações pontuais e não se atingiu o resultado esperado devido a certa dificuldade em
sua condução. Também são trabalhadas as vulnerabilidades do indivíduo ou comunidade.

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