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COLEÇÃO INSURGÊNCIAS DECOLONIAIS,

PSICOLOGIA E OS POVOS TRADICIONAIS


José Maria Nogueira Neto (Org.)

Gênero, mulheres, raça e classe afroindígena-


latino-americanos

Sobral, CE
2021
Copyright © 2021 by Faculdade Luciano Feijão
Todos os direitos reservados

COLEÇÃO
Insurgências Decoloniais, Psicologia e os Povos Tradicionais

VOLUMES
Volume 1: Perspectivas educacionais e saberes de(s)coloniais
Volume 2: Outras perspectivas educacionais e saberes de(s)coloniais
Volume 3: Ancestralidade, religiosidade e as cosmopolíticas dos povos latinos
Volume 4: Movimentos sociais, grupos, insurgências e resistência na América Latina
Volume 5: Gênero, mulheres, raça e classe afroindígena-latino-americanos
Volume 6: Saúde, sabedoria popular e os múltiplos contextos em tempos de crises
Volume 7: Outros pensamentos e possibilidades para o pensamento de(s)colonial
Volume 8: O pensamento de(s)colonial e outras epistemologias

ORGANIZADOR
José Maria Nogueira Neto DIAGRAMAÇÃO
Lucas Yuri da Silva Rodrigues
CAPISTA
Victoria Mendes EDITORAÇÃO
Leo Mackellene Gonçalves de Castro
ILUSTRAÇÃO DA CAPA Setor de Publicações
Rafael Frota Oliveira Faculdade Luciano Feijão
CONSELHO EDITORIAL
Adriana Campani - Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA)
Aline Pinto Medeiros Medeiros - Universidad San Lorenzo – PY
Alvinan Magno Lopes Catão - Universidade de Brasília (UNB)
Amom Rodrigues de Morais - Universidade Federal de Goiás (UFG)
Ana Helena Araújo Bomfim Queiroz - Faculdade Luciano Feijão (FLF)
Ana Paula Lima Moura - Universidade Estadual do Ceará (UECE)
Anne Joyce Lima Dantas - Universidade Federal do Ceará (UFC)
Ariane Lima De Brito - Universidade Católica Dom Bosco (UCDB)
Bruno Simões Gonçalves - Universidade de São Paulo (USP)
Fernanda Rodrigues Machado Farias - Rede EcoCeará
Francisca Denise Silva Vasconcelos - Universidade Federal do Ceará (UFC)
Francisco Gilmário Rebouças Júnior - Hospital Israelita Albert Einstein
George Bezerra Pinheiro – Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará
(IFCE- Crateús)
Geórgia Bezerra Gomes - Faculdade Luciano Feijão (FLF)
Ícaro Cardoso Maia - Universidade Federal do Vale do São Francisco (UNIVASF)
Jaqueline Gomes de Negreiros - Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA)
Jean Costa Santana - Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Jessica Silva Rodrigues - Universidade Federal do Ceará (UFC)
José Henrique Alexandre de Azevedo - Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP) e Universidade Estadual do Ceará (UECE)
José Maria Nogueira Neto - Faculdade Luciano Feijão (FLF) e Universidade Estadual
Vale do Acaraú (UVA)
Juliane Andrade Feitosa - Faculdade de Quixeramobim (UNIQ)
Julio Cesar Ischiara - Faculdade Católica Rainha do Sertão (UNICATÓLICA)
Kevin Samuel Alves Batista - Faculdade Princesa do Oeste (FPO)
Larisse De Sousa Silva (Faculdade Princesa do Oeste – FPO)
Marcossuel Gomes Acioles - Centro Universitário INTA (UNINTA) e Faculdade Educar
da Ibiapaba (FAEDI)
Maria Da Conceição Gomes Da Silva - Universidade Federal do Ceará (UFC)
Mateus Vinícius Barros Uchôa - Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
Péricles De Souza Macedo - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC)
Rafaelly Rocha Lima Barbosa - Universidade Federal do Ceará (UFC)
Raksandra Mendes Dos Santos - Universidade Federal do Piauí (UFPI)
Regis Leitão Sydrião - Universidade de São Paulo (USP)
Samara Vasconcelos Alves - Faculdade Luciano Feijão (FLF)
Saulo Luders Fernandes - Universidade Federal de Alagoas (UFAL)
Stephanie Caroline Ferreira de Lima - Universidade Federal do Ceará (UFC)
Thiago Sousa Felix - Faculdade de Quixeramobim (UNIQ)
Yuri Miguel Macedo - Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) e Universidade do
Estado da Bahia (UNEB)

COLABORADORES (Coleção)
Ana Luiza de Fátima Albuquerque Ribeiro - Faculdade Luciano Feijão (FLF)
Diego Mendonça Viana - Faculdade Princesa do Oeste (FPO)
Francisca Denise Silva Vasconcelos - Universidade Federal do Ceará (UFC)
Gabriel Victor Vasconcelos Frota de Almeida - Universidade Federal do Ceará (UFC)
Iris dos Santos Timbó - Faculdade Luciano Feijão (FLF)
Jean Costa Santana - Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
João Cariello de Moraes - Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Kevin Samuel Alves Batista - Faculdade Princesa do Oeste (FPO)
Leo Mackellene Gonçalves de Castro - Faculdade Luciano Feijão (FLF)
Mateus Vinícius Barros Uchôa - Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
Roberta de Fátima Rocha Sousa - Faculdade Luciano Feijão (FLF)
Vitória Rocha Ramos - Faculdade Luciano Feijão (FLF)

COORDENAÇÃO
I Colóquio Latino-Americano sobre Insurgências Decoloniais, Psicologia e os Povos
Tradicionais

DATA DO EVENTO
24/06/2020 – 26/06/2020

REALIZAÇÃO
Disciplina Tópicos Especiais em Psicologia I – Relações étnico-raciais, cultura afro-
brasileira e indígena (Prof. José Maria Nogueira Neto) - Faculdade Luciano Feijão (FLF)
Centro Acadêmico Silvia Lane - Faculdade Luciano Feijão (FLF)
Coordenação do Curso de Psicologia - Faculdade Luciano Feijão (FLF)
Coordenadoria de Pesquisa e Extensão - Faculdade Luciano Feijão (FLF)
Faculdade Luciano Feijão (FLF)

COMISSÃO ORGANIZADORA DO EVENTO


Ana Luiza de Fátima Albuquerque Ribeiro - Faculdade Luciano Feijão (FLF)
Francisco Darlan Carneiro Sales - Faculdade Luciano Feijão (FLF)
Gabriel Victor Vasconcelos Frota de Almeida - Universidade Federal do Ceará (UFC)
Geórgia Maria Melo Feijão - Faculdade Luciano Feijão (FLF)
Iris dos Santos Timbó - Faculdade Luciano Feijão (FLF)
Kevin Samuel Alves Batista - Faculdade Princesa do Oeste (FPO)
Roberta de Fátima Rocha Sousa - Faculdade Luciano Feijão (FLF)
Saulo Luders Fernandes - Universidade Federal de Alagoas (UFAL)
Teresa Lenice Nogueira da Gama Mota - Faculdade Luciano Feijão (FLF)
Vanessa Valeska Xavier do Nascimento - Faculdade Luciano Feijão (FLF)
Vitória Rocha Ramos - Faculdade Luciano Feijão (FLF)
Andro Limonta Blanco (Cuba)
Rodrigo Gustavo Utrilla-López (México)

APOIADORES
OIIIIPe – Observatório Internacional de Inclusão, Interculturalidade e Inovação
Pedagógica
GEPPU- Grupo de Estudos e Pesquisa em Pedagogia Universitária
UNIdiversidade - Universidade Estadual Vale do Acaraú
PET -NESAL: Programa de Educação Tutorial Núcleo de Estudos do Semiárido
Alagoano (UFAL)
Universidade Federal de Alagoas (UFAL)
Grupo de Estudos e Extensão em Psicologias Sociais (FPO)
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - MST de Alagoas
Povos indígenas Xucuru-Kariri - Palmeira dos Índios (AL)
Centro de Umbanda Macaia do Caboclo Pena Verde
Centro de Umbanda Pai Tobias
Centro de Umbanda Rei Urubatan da Guia
Ilê Asè Iyá omim Ogum Idá
Afoxé Yiamin Ogúnté
Rede Eco Ceará de Agroecologia
Instituto Ciganos do Brasil
Coletivo Retirantes
@pretitudes
@midiaindiaoficial
@aliveeterna
APRESENTAÇÃO

O termo "colóquio" pode ser utilizado para representar


uma conversa íntima entre duas ou mais pessoas. Assim,
nenhum outro termo, que porventura escolhêssemos, abraçaria
de forma tão completa o evento que aqui apresentamos o 1°
Colóquio Latino-americano de Insurgências Decoloniais,
Psicologia e Povos Tradicionais.
Estruturado dentro de uma disciplina de graduação em um
curso de psicologia no meio do sertão cearense, o evento, ou
melhor, o movimento (foi nisso que a coisa toda se
transformou) ganhou corpo, circulação e demarcou um espaço
de resistência. Da sala de aula para o auditório com 150 lugares,
do auditório para o Brasil. Sonhamos mais alto, e por que não
para a América Latina? Com um pouco mais, alcançamos para
além do esperado, atravessamos fronteiras, chegando a outros
continentes. De forma inovadora e potente, possibilitou a
aproximação de temáticas marcadas por uma força e coragem
que tanto está presente na discursividade de(s)colonial,
ofertando um lugar de fala e escuta, insurgindo uma identidade
que vem se construindo entre as veias abertas da América
Latina e construindo caminho artesanais.
Fazer um evento internacional com convidados de
diversos lugares, publicações em anais e capítulos de livro não
foi uma tarefa fácil. Tudo começou na Faculdade Luciano
Feijão, na cidade de Sobral no Ceará, com a disciplina de
Tópicos Especiais em Psicologia I, ministrada pelo professor
José Maria Nogueira Neto. Esta disciplina tem a sensibilidade
de abordar temas do contexto social, político e comunitário da
América Latina, ressaltando os povos e comunidades
tradicionais, as discussões sobre raça/classe/gênero, sem
esquecer seu compromisso ético e com base no pensamento
de(s)colonial.
Com as discussões promovidas em sala de aula, surgiu o
desejo de realizar um evento que congregasse a temática
discutida para além dos espaços da academia. Nasceu assim o
Colóquio “Ruralidades, Juventudes e Etnias”, realizado na sede
da Faculdade Luciano Feijão em duas edições (2018 e 2019),
encabeçado pelo professor da disciplina e por aluna(o)s nela
matriculada(o)s. Para o atípico ano de 2020, tempos de crises
políticas e sanitárias, atravessados por uma pandemia e com o
advento das novas modalidades de encontros mediados por
tecnologias, nasceu a motivação para algo maior e diferente.
Algo que chegasse e trouxesse experiências do bem viver. Algo
que pudesse ser escrivivido nas ondas afetivo-virtuais e que
demarcasse um suspiro em meio ao sufocamento produzido
pelo isolamento social. Estávamos em casa, isolados, sem
abraços, sem afagos. No auge de uma pandemia, em meio a
reuniões e encontros virtuais, esboçamos e lançamos ao mundo,
em abril, o 1° Colóquio Latino-americano de Insurgências
Decoloniais, Psicologia e Povos Tradicionais que aconteceria de
24 a 26 de junho de 2020.
Para a realização do evento, decidimos dividi-lo em
grupos temáticos, onde a homenagem a alguns nomes seria
imprescindível. Criamos Grupos de Trabalho (GT) baseados em
linhas de vivências, estudos e pesquisas que aglutinaram a
mesma base teórico-vivencial, sendo estas: GT 1 Paulo Freire –
Perspectivas educacionais e saberes de(s)coloniais, GT 2 Mãe
Menininha do Gantois - Ancestralidade, religiosidade e as
cosmopolíticas dos povos latinos, GT 3 Lélia Gonzalez e Julieta
Paredes – Gênero, mulheres, raça e classe afroindígena-latino-
americanos GT 4 Carolina Maria de Jesus – Movimentos sociais,
grupos, insurgências e resistência na América Latina, GT5
Damião Ximenes – Saúde, sabedoria popular e os múltiplos
contextos em tempos de crises, GT 6 Quijano, Fannon e
Dandara dos Palmares – O pensamento descolonial e outras
epistemologias e GT 7 Mocororó - Outros pensamentos e
possibilidades.
Algo que a posteriori foi seguido para as submissões
dos escritos, tendo o cuidado com a representatividade e
diferentes temáticas do campo do pensamento decolonial. Estes
grupos temáticos serviram de base tanto para a elaboração das
nossas “Rodas de Prosa” quanto para a divisão para as
submissões, houve a preocupação quanto a representatividade
nas atividades promovidas e quanto ao lugar de fala sobre o
tema discutido, trazendo conversadora(e)s de diferentes regiões
do país e fora dele para dialogar sobre as temáticas propostas.
O Colóquio tentou romper com toda ou qualquer lógica
de evento acadêmico desde sua concepção, metodologia e sua
programação. Não foi uma tarefa fácil, afinal estávamos
sediados em uma Instituição de Ensino Superior que precisa
sustentar alguns de seus lugares e corresponder às exigências e
pontuações de uma vida mediada por índices, notas e lattes.
Espaço de resistência se constrói na resistência.
- Ao fronte!
Não montamos painéis científicos ou apresentação de
pesquisas. Não foram apresentadas mesas redondas,
conferências ou palestras. Por consequência disso, não
tínhamos palestrantes ou conferencistas. Nossa(o)s
convidada(o)s eram conversadora(e)s e estavam ali para uma
prosa livre, sem amarras acadêmicas, para uma conversa boa.
Poderiam até trazer suas experiências mediadas por meio da
ciência acadêmica, mas não era necessário. Queríamos escutar
sobre “como se vive” ou “como se faz para viver” a partir de
outros caminhos. A proposta indicou a criação de espaços de
diálogos horizontais, tentando levar para as pessoas que
assistiam momentos de trocas, de atravessamentos, afetações,
mobilizações e de resistências.
Em plena pandemia, procuramos fazer com que as
pessoas se juntassem virtualmente para “Conversas de
Alpendre”, “Rodas de Prosa”, “Conversatórios”, “Aldeia
Multiétnica” e, sem poder ficar de fora, com um “Ritual de
Celebração”, pois desde cedo aprendemos com os povos
originários que os nossos feitos e conquistas precisam ser
celebrados. A ideia era reunir pessoas em volta de suas telas
para participarem de um momento de partilha de saberes,
escutar histórias, conhecer outros mundos.
Foram dias de muita euforia, discussões, mobilizações,
inquietações, respiros e cansaço. Desde seu início, construído
de forma coletiva, com contribuições diversas, falas potentes e
escutas atentas. As afetuosas rodas de prosa cumpriram a tarefa
de envolver cada participante tanto quanto um abraço. Em
nossas conversas de alpendre, sentamos para tomar um café e
papear sobre temáticas nas quais são necessárias para uma
psicologia de(s)colonial. Com muita coragem, tivemos em
nossa Aldeia multiétnica debates sobre os efeitos marcados pela
colonização. Nos conversatórios, os diálogos calorosos
puderam fazer sentido, permitindo reinventarmos espaços que
superem a racionalidade colonial nas produções de saber.
Constituído por histórias, memórias, arte, cultura, política,
vivências e saberes, foi possível em nossos encontros sentir o
calor do afago como se estivéssemos próximos, apesar de
espalhados por diversos rincões do mundo. As nossas
transmissões chegaram às salas de estar de pessoas isoladas,
sozinhas ou com suas famílias, às comunidades tradicionais,
aos coletivos organizados e movimentos articuladores de ideias
e ações. E, ao final, para o encerramento promovemos um ritual
de celebração intitulado "Batuques, maracas, cantos e ginga:
mundanismos musicais" com a apresentação de um afoxé,
seguida de um bate papo com a(o)s componentes do grupo e
uma discotecagem que foi até o amanhecer do dia. Ao todo
foram 10 atividades, 49 convidados, mais de 9.000 inscritos de
13 países e mais de 50 horas de transmissão.
Dando lugar às inquietações que foram despertadas e
aos poucos se revelando em nosso Colóquio, como também
acreditando no potencial da escrita como ferramenta para a
produção de um saber decolonial e contra-hegemônico,
propusemos esta coleção de livros, que foi um convite para que
a(o)s participantes com desejo de transbordar por meio da
escrita, pudessem se aproximar das temáticas abordadas e
construirmos uma produção coletiva que passeasse por todas
as formas possíveis de subjetivação. Um registro que deixará
demarcado esse momento de circularidade e que apresenta ao
mundo uma pausa na sua história.
Por fim, visibilizamos todo esse movimento com a
publicação dos artigos submetidos aprovados em uma coleção
intitulada “Insurgências Decoloniais, Psicologia e os Povos
Tradicionais” com 08 volumes, a saber: Volume 1 - Perspectivas
educacionais e saberes de(s)coloniais; Volume 2 - Outras
perspectivas educacionais e saberes de(s)coloniais; Volume 3 -
Ancestralidade, religiosidade e as cosmopolíticas dos povos
latinos; Volume 4 - Movimentos sociais, grupos, insurgências e
resistência na América Latina; Volume 5 - Gênero, mulheres,
raça e classe afroindígena-latino-americanos; Volume 6 - Saúde,
sabedoria popular e os múltiplos contextos em tempos de
crises; Volume 7 - Outros pensamentos e possibilidades para o
pensamento de(s)colonial; e Volume 8 - O pensamento
de(s)colonial e outras epistemologias.
O movimento criado por este colóquio não se encerra
por aqui e propõe que outras e novas discussões sejam abertas e
ganhem espaços de diálogo e produção de saberes. Que venha
o II Colóquio!

Desejamos a você uma boa leitura e que logo possamos


nos encontrar.

Gabriel Victor Vasconcelos Frota de Almeida


Roberta de Fátima Rocha Sousa
Íris dos Santos Timbó
Vitória Rocha Ramos
José Maria Nogueira Neto
PREFÁCIO

O livro que a/o leitora/or está prestes a ler não conta um


conto de fadas. Se você pretende encontrar histórias de
mulheres que reafirmem seu lugar de maternidade, de
guerreira por que dá conta do trabalho fora e dentro de casa e
ainda se mantem jovem e bela, se pretende encontrar aqui uma
reafirmação do olhar colonizado de que a mulher sábia edifica
sua casa, saiba que aqui encontrará narrativas de mulheres que
edificam a sobrevivência independente de terem casa ou não.
Embora fosse o projeto do modelo patriarcal, fazer-nos fadinhas
capazes de magicamente dar conta de todas as demandas
masculinas, do mundo do trabalho, do papel social de mãe, de
cuidados com a estética corporal, não envelhecer, não viver,
mas sobreviver nesse cenário arbitrário colonizado e
estruturado sobre a tríade cristã, branca e masculina, o que os
leitores terão pela frente são análises e relatos de um mundo
real sem romance. Se é do seu interesse, cara/o leitora/o
testemunhar como a diversidade feminina é rica e bela ainda
que floresça meio à dor, à negação de direitos, ao estupro, ao
não reconhecimento, prepare-se para perceber que sabemos
bem a “a dor e a delícia de sermos quem somos”. Pretas,
indígenas ou brancas, estamos na luta. Essas denominações,
contudo não são apenas denominações. São rótulos que nos
definem e nos marcam como ferro quente. Não somos iguais
por que não somos vistas de modo igual. Nossas histórias são
marcadas por racismos cotidianos, por extermínio de nossa
gente, por assassinato de nossa prole preta ou indígena. Esse
contexto, todavia não nos desencoraja, ele é aqui denunciado.
Aqui encontramos uma análise desse objeto de estudo, o
colonialismo, esse mesmo que nos transformou e ainda tenta
transformar em corpos abjetos. Aqui nesse livro temos uma
resposta para o modelo patriarcal colonial: “você é o objeto de
estudo da vez”. Quem se apegar a essas páginas que seguem
terá o prazer de ver o girassol fazendo sua volta linda rumo à
luz. Pessoas estudando o contexto em que se ergue a resistência
feminina é um giro decolonial.
Os estudiosos que seguem logo à frente apontarão os
modos de ser mulher numa sociedade que objetifica nossos
corpos como se fôssemos bonecas artificiais prontas para
sermos costuradas, amarradas, plastificadas, embalsamadas.
Sim, muitas de nós caem nessa falácia, mas importa apontar
como se constrói essa ideologia de corpos perfeitos. É o que
veremos no primeiro capítulo.
Logo após veremos a força da mulher indígena
organizando a comunidade sem destruir a flora. A
compreensão de que a natureza também somos nós, atravessa
os povos originários e as mulheres à frente do ecofeminismo
tem colaborado para salvar a mãe terra das mãos desse sistema
opressor que reproduz destruição com o nome de evolução,
reproduz desigualdades com o nome de meritocracia.
E por falar em merecimento ou nesta falácia hoje
amplamente fortalecida pelos discursos midiáticos, políticos e
educacionais temos no terceiro capítulo uma bela análise
teórica sobre o corpo da mulher preta. Trabalho necessário que
aponta uma verdade que se gostaria de desinventar. A carne da
mulher preta historicamente vem sendo usada para satisfazer
desejos do “sinhozinho”, da “sinhazinha”, do mercado de
escravos, depois do mercado de trabalho na indústria e dos
homens que com muita frequência no Brasil entendem que é
um corpo que lhe servirá como depósito de seu desejo infame.
Pretos, empobrecidos e injustamente tratados, mal pagos, os
corpos das mulheres não brancas precisam ter a visibilidade
que merecem. Teremos essa leitura também quando será
tratado o tema da Carne mais barata do mercado. Quase bichos,
nossas/as ancestrais foram vendidas/os e muitas vezes valiam
menos que o cavalo de seu dono. São corpos que não tem
direito a sentir a dor do parto. A violência obstétrica é
apresentada também nas próximas páginas. Esse é um trabalho
de denúncia. Não se cale após lê-lo. O trabalho que segue pode
fazer parte desse arsenal que se forma nos tempos atuais de
leituras decoloniais. Sigamos e leiamos sobre a realidade das
mais diferentes mulheres. Já pensou como seria ter um corpo,
cuja cor atraísse insetos gigantes que poderiam inclusive lhes
tirar a vida? Esse trabalho pode lhe dar um ensaio sobre como é
ter um corpo preto.
Ao que parece o colonialismo vem dando as cartas, mas
será? Entender suas artimanhas, sua estrutura ideológica é
necessário, mas ainda que estando no poder, precisamos
considerar os diferentes modos de resistência e isso será
apontado com relação às mulheres do sertão. Esse lugar que
fora desprivilegiado no próprio instante em que se deu a
industrialização e percebeu-se que o lugar de colher o vil metal
seria a cidade. O sertão não virou mar. Continuou sendo o que
ele é. Árido, empoeirado, com cheiro de mato queimado no
verão e de terra molhada quando o universo o abençoa com as
chuvas. Apesar de suas agruras é um lugar onde vive gente
valente que o defende e o faz vivo, ainda que os projetos
partidários não o privilegiem. O sertão e a mulher se uniram
nesse livro para mostrar que apesar do colonizador, o amanhã
sempre chega e é na luta do cotidiano que as agricultoras
mostram isso. Também nos será ricamente apresentada no
capítulo quatorze a força do feminismo decolonial fazendo a
leitura da resistência de mulheres no chão de Crateús. A
mulher vista como o outro, como nos diz Simone de Beauvoir, e
sendo indígena ela é o outro do outro, pois não sendo branca
ela desce na escalada dos valores coloniais, tem sido a marca da
resistência desse outro sertão. Não bastasse ser mulher
indígena ela também vem para subverter a ordem fazendo
justiça à fala de Conceição Evaristo: “combinaram de nos
matar, combinamos de não morrer”. Viva as mulheres pretas e
indígenas nesse sertão a fora!
Até aqui falamos de compreender o contexto opressor
do colonialismo como objeto, fazendo um giro decolonial. E
isso é possível de ser percebido na ciência psicológica? No
capítulo seguinte temos uma boa análise teórica de como o
feminismo pode colaborar para a Psicologia a partir de sua
leitura decolonizadora. A psicologia como toda a ciência
humana precisa se revisitar, não em detrimento de autores com
quem já vem trabalhando historicamente. Esse saber europeu
que formou as ciências humanas não precisa ser retirado do
processo, mas pode ser questionado, pode ser complementado
pela fala feminista, é o que mostra o capítulo 5. Seguindo a
mesma linha de pensamento vem o próximo capítulo no qual
as/os autoras/es destacam a autora Lelia Gonzalez apontando
sua colaboração no entendimento da formação da
Amefricanidade a partir da leitura decolonial.
Que corpo merece viver? A depender de quem responda
a essa pergunta teremos uma pequena e seleta parte da
população que se enquadra nos padrões cis, hetero, binário.
Assim sendo, necessário se faz que ouçamos, leiamos as vozes
das mulheres trasgênero que vivem num país em que mais se
mata mulheres trans. O decolonialismo nos instiga a
compreender que a escolha de quem vive e quem morre tem a
ver com quem está no poder. No capítulo oito teremos um belo
trabalho que nos faz ouvir as vozes destas que querem viver e
vivem à revelia da norma heteronormativa.
E no capítulo nove voltaremos à leitura de povos
originários. Ser indígena numa terra que extermina índios já é
resistência, ser mulher indígena feminista é resistência tripla.
Aqui a/o leitora/or será convidado a entrar na aldeia e poderá
se apropriar de uma leitura que lhe apresentará as opressões
que atravessam a vida da mulher Tekoa Pyau. É cara/o
leitora/o, não é um romance, mas a mata floresce em torno
daquele que se arrisca a entrar nesse mundo construído na e
pela resistência.
Enlouquecer para sobreviver parece bem razoável para
as mulheres negras da Amazônia Nortista. O texto apontará
uma pesquisa bibliográfica riquíssima que nos apresenta como
está a saúde mental das mulheres negras desse lugar.
Enlouquecer pode ser um caminho que alivia a dor. Esquecidas,
não vistas em sua singularidade, sofrendo psiquicamente os
efeitos do racismo, sendo mulheres com todos os papéis sociais
que lhes são designados, volto a pontuar que enlouquecer
deveria ser uma escolha. Infelizmente não é e essas mulheres
adoecidas e invisibilizadas serão aqui o centro das atenções.
Leiamos e continuemos, pois conhecer e nada fazer é o mesmo
que nada saber.
E no capítulo dez encontraremos uma escrita que nos
alerta sobre os territórios da exclusão ao mostrar como as
cidades são construídas sobre a égide do colonialismo. O texto
aponta também como as mulheres não tem espaço, sua voz não
é ouvida, sua vez é tomada. As cidades de pedras carregam o
peso do patriarcado. E por falar em espaço, não somos só
oprimidas. Também gritamos e muitas vezes em forma de
canção. O capítulo que segue mostra a música como uma
alternativa para vozes negras serem ouvidas. A cidade pode ser
de pedra, mas as notas musicais atravessam paredes. Mulheres
negras serão ouvidas ainda que chorem as estruturas
patriarcais é o que veremos no capítulo onze.
Confirmando o olhar de que o patriarcado é uma
construção na sequencia teremos uma leitura que nos
presenteia com uma narrativa incrível que mostra a existência
de um matriarcado. Sim, houve um tempo em que os homens
não nos calavam a voz e o silêncio era nossa opção. A análise da
cultura Muchica e a musealização podem nos mostrar fatos
históricos convenientemente apagados, não contados nos livros
didáticos de história.
A finalização desse livro se dará com uma leitura rica
sobre a decolonialidade e sua contribuição para o repensar as
epistemologias e feminismo branco. Não é uma afronta que
num país construído com os calos das mãos negras, com a
derrubada da mata virgem mãe dos povos originários que o
saber valorizado seja aquele que tem causado destruição e
morte? Vale muito à pena compreender como a decolonialidade
nos abre os olhos e nos aponta o novo caminhar que se
desenha. Não é uma guerra com armas de fogo que
defendemos. Falamos de diálogos. Não se trata de excluir o
saber branco da academia, falamos de trocas. O saber negro,
indígena, periférico tem muito a contribuir, começando por
falar por si. Não precisamos que nos traduza. Sabemos falar,
mesmo através das mordaças que nos foram colocadas. Temos
vozes e conhecimento. Os povos africanos tiveram de aprender
a se “embranquecer” para arrumar um emprego, para não ser
morto pela polícia, saberá o branco se enegrecer e dançar o
samba do morro? E trabalhar até sua mão sangrar e ainda assim
no domingo jogar um futebol pra ser gente por alguns
minutos? Os povos originários sabem muito bem passar-se por
um branco, depois de tantos estupros, suas peles vermelhas
quase rosearam. Um índio pode aprender a ser branco sem
deixar de ser índio. Pode o branco ser índio?
Troquemos saberes, e não sobrepusemos, pois a
diversidade nos faz maiores e mais fortes. O poder colonial
branco é muito, mas não pode voar. Diga ao povo que avance.

Janeiro de 2021

Denise Silva
Filha do povo Tapeba
Dra. Sociologia
SUMÁRIO

BONECA BARBIE E BARBIES HUMANAS: COLONIALIDADE E


HETERONORMATIVIDADE NOS BRINQUEDOS INFANTIS E
SUAS IMPLICAÇÕES NA EXPRESSÃO DAS MULHERES
ADULTAS, UMA ANÁLISE FEMINISTA ..............................................25
Lara Carvalho Cipriano e Rosana Carvalho Oliveira

CORPO DA MULHER PRETA: REVISÃO BIBLIOGRÁFICA SOBRE


RACISMO E FEMINISMO NEGRO .........................................................67
Vanessa Ramos de Holanda e Camila Alves Soares

PARA NÃO DEIXAR A TINTA COAGULAR NA CANETA:


FEMINISMOS DECOLONIAIS E PSICOLOGIA .................................101
Lina Ferrari de Carvalho e Lanna Carolyna Vieira da Costa

“QUAL É A COR DA DOR?”: UM ESTUDO SOBRE A VIOLÊNCIA


OBSTÉTRICA ENTRE MULHERES NEGRAS .....................................139
Luana Marisa Soeiro Carvalho, Marcossuel Gomes Acioles, Francisco
Natanael Lopes Ribeiro e José Maria Nogueira Neto

MULHERES TRANSGÊNERAS E TRAVESTIS DA AMÉRICA


LATINA: HISTÓRICO DE LUTA E RESISTÊNCIA SOB A LUZ DA
DECOLONIALIDADE .............................................................................157
Flávia Alves da Silva e Arthur Luiz de Oliveira dos Santos

AS MULHERES TEKOÁ PYAU E O FEMINISMO INDÍGENA ........175


Letícia Hessel Machado e Cris Fernández Andrada
VOZES AMAZÔNIDAS: A SAÚDE MENTAL DA MULHER NEGRA
NA AMAZÔNIA NORTISTA .................................................................223
Carla Carolina Santos da Fonseca e Isabela Ramos da Silva

DIREITO A CIDADE, MULHERES E A PERSPECTIVA


DECOLONIAL ..........................................................................................263
Eliza Dala Costa e Raíssa Silveira de Melo

VOZES NEGRAS: A MÚSICA COMO ESPAÇO DE EXPRESSÃO DE


MULHERES NEGRAS .............................................................................287
Priscila Santos Muniz Dias

“A CARNE MAIS BARATA DO MERCADO É A CARNE NEGRA”


OBJETIVAÇÃO E SEXUALIZAÇÃO DO CORPO DA MULHER
NEGRA.......................................................................................................319
Vanessa Valeska Xavier do Nascimento, Emanuela Silva Neves, Marcossuel
Gomes Acioles, José Maria Nogueira Neto

A DAMA DE CAO COMO AGENTE DO DECOLONIALISMO E DO


FEMINISMO: UM ENSAIO SOCIAL E MUSEOLÓGICO A PARTIR
DA CULTURA MOCHICA E A SUA MUSEALIZAÇÃO ..................347
Renata Croner Giquel da Silva e Diogo Jorge de Melo

MULHERES INDÍGENAS NA VIDA E NA HISTÓRIA: OLHARES


DA PSICOLOGIA SOCIAL SOBRE A RESISTÊNCIA NO CHÃO DE
CRATEÚS-CE ............................................................................................373
Larissa Maria Matos Oliveira e Kevin Samuel Alves Batista
POR UM FEMINISMO DECOLONIAL: RESISTÊNCIA AO
PATRIARCADO, RACISMO E COLONIALIDADE PARA ALÉM DO
FUNDAMENTO BRANCO .....................................................................395
Aline de Campos Guedes
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

BONECA BARBIE E BARBIES HUMANAS:


COLONIALIDADE E HETERONORMATIVIDADE
NOS BRINQUEDOS INFANTIS E SUAS
IMPLICAÇÕES NA EXPRESSÃO DAS MULHERES
ADULTAS, UMA ANÁLISE FEMINISTA

Lara Carvalho Cipriano


Rosana Carvalho Oliveira

INTRODUÇÃO

Ao analisar as primeiras imagens da mulher brasileira


nativa que foram divulgadas na Europa, Yobenj Bayona
observou que existe uma similaridade entre a retratação das
indígenas e a retratação das bruxas e de Eva. Para ele, assim
como Eva, a mulher indígena era sempre retratada ‘’como uma
mulher nua, voluptuosa, jovem, de cabelos longos, num jardim
com árvore, plantas e animais’’(BAYONA, 2017, p. 138). Ainda
na perspectiva do autor, essa associação tem uma conotação
negativa, visto que Eva representa, na mitologia judaico-cristã,
a razão pela qual o homem perdeu o paraíso. Está associada à
tentação, à luxúria e ao pecado. Quanto às bruxas, o autor
clarifica:

As bruxas ganham conotações negativas por serem seguidoras


do demônio, entregues à luxúria e à gula, porque em seus
rituais devoraram crianças. Não tão distantes estavam as
nativas canibais, que aos olhos europeus também cediam aos
vícios, eram luxuriosas e consumiam carne humana''
(BAYONA, 2017, P. 141).

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Se Eva e as Bruxas são representações indesejadas do


feminino, Bayona indica que em contraposição a essas, a
imagem exemplar do feminino nesse quadro paradigmático é
representada pelas deusas greco-romanas. Essas são brancas e
loiras, representam a civilização europeia; ao passo que a
retratação das indígenas, na medida em que se aproxima da
Eva e das Bruxas e se afasta das deusas greco-romanas, tem a
função de mostrar ao ocidente a barbárie e a inferioridade da
mulher latino-americana.
Nesse contexto, cabe comentar a iniciativa do artista
Marc Quinn. Ao visitar o Museu Britânico de Londres, Quinn
observou que todos pareciam fascinados ao ver esculturas
clássicas dos deuses gregos, que em função do tempo,
perderam braços, pernas ou mesmo a cabeça (MARC, 2019). No
entanto, as pessoas ficam incomodadas ao ver uma pessoa com
deficiência. Isso remete a frase de Paul Preciado (apud
SELIGMANN-SILVA, 2020): ''Esculturas públicas não
representam as pessoas, elas as constroem: elas designam um
corpo nacional e puro e determinam um ideal de cidadania
colonial e sexual''.
Como crítica ao modo com que as deusas greco-romanas
são significadas, Quinn esculpiu a imagem da Alison Lapper.
Ela porta focomelia 1 e estava grávida quando inspirou a
escultura. Assim, a partir do questionamento em relação às
representações idealizadas da feminilidade, Quinn investiga
quem ''vale a pena'' ser um objeto de arte. Ele propõe que a

1A focomelia é uma anomalia congênita. Nesta patologia, não há formação normal de


braços e pernas. Ela é caracterizada pela aproximação ou encurtamento dos membros
do feto, tornando-os semelhante aos de uma foca (GODOY, 2012, p. 6)

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escultura de Alison Lapper é uma versão contemporânea da


Vênus de Milo, a deusa da beleza. A foto dessa escultura está
no anexo A.
No que tange ao tema principal desta pesquisa, na
contemporaneidade, nota-se um agravante para essa
problemática: a adição de referências para a identidade
feminina que não são mitológicas e sim pós-humanas, como a
boneca estadunidense Barbie. Sendo assim, o que se pretende
investigar é a relação entre as representações de gênero e a
expressão das mulheres brasileiras que se autodenominam
barbies, tendo em vista entender como as características
historicamente atribuídas às mulheres ocidentais influenciam
na expressão da identidade da mulher brasileira.
As barbies humanas são mulheres que modificam o
próprio corpo, em maior — intervenções cirúrgicas, por
exemplo — ou menor — uso de maquiagem especializada, por
exemplo — escala com o fim de adquirir uma aparência
parecida com a boneca. Apesar de ser impossível a completa
realização de tal feito. Se uma mulher tivesse as mesmas
proporções da Barbie, suas medidas seriam: 1,75m e 49 kg
(OLIVEIRA, 2014, não paginado.). O Anexo B ilustra o corpo
da boneca Barbie em comparação ao corpo de uma boneca com
as medidas proporcionais ao de uma jovem estadunidense
comum.
O fenômeno ''barbies humanas'' teve início na Ucrânia,
mas também se manifesta no Brasil. É interessante observar que
a boneca Barbie, que nesse contexto é a representante da
imagem da mulher ideal, não dista, em sua versão clássica, da
descrição das deusas greco-romanas. Ambas têm pele branca,
cabelos loiros e longos, olhos claros e um corpo escultural para

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os padrões vigentes. Em suma, ambas as figuras representam


exclusivamente a estética branca.
Essas transformistas fazem declarações polêmicas,
como a barbie humana estadunidense Blondie Bennett. Ela
buscou ajuda de um tipo de hipnose para se sentir ''mais
confusa e atrapalhada''. De acordo com suas palavras: ‘’Eu
quero que as pessoas me vejam como uma boneca sexual de
plástico e ser burra faz parte disso’’ (BHAZ, 2014).
Nesse contexto de intervenções estéticas no corpo,
chama a atenção o dado da Sociedade Brasileira de Cirurgia
Plástica (SBCP, 2009) que indica que 88% das pessoas que
buscam intervenções estéticas são do sexo feminino. Esse
número manifesta sexismo e nos permite supor que as
mulheres são mais incentivadas a fazer modificações corporais
do que os homens.
A partir dessa problemática, levanta-se a seguinte
questão: como a desigualdade de gênero manifesta-se na e
expressão da identidade das mulheres brasileiras, com ênfase
nas barbies humanas? Sendo assim, a presente pesquisa tem
como objetivo explorar de que forma a afirmação da identidade
das barbies humanas manifesta os paradigmas de gênero e
como objetivo específico, estudar como as características
historicamente atribuídas às mulheres ocidentais influenciam
na expressão da identidade da mulher brasileira, tomando
como referência os estudos decoloniais e feministas, em especial
o pensamento de Judith Butler.
A reflexão acerca do quadro paradigmático a partir do
qual as mulheres criam identificações é de suma importância
para a psicologia na medida em que a desigualdade de gênero e
o machismo, que são problemas estruturais, comprometem a

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subjetividade, os processos de identificação e diferenciação, a


construção da auto-imagem e a relação do sujeito com o seu
próprio corpo. Relação essa que está sendo atravessada pelas
múltiplas inovações tecnológicas que permitem diferentes tipos
de intervenções.
As ''barbies humanas'' são pouco estudadas. Assim
sendo, um estudo nesse viés pretende trazer contribuições à
psicologia. Com o fim de atrair atenção para o tema, o presente
trabalho explora a forma como os paradigmas de gênero são
manifestos pelas barbies humanas.

REFERENCIAL TEÓRICO

Para melhor compreensão do tema, essa pesquisa utiliza


como referência os escritos de Stuart Hall sobre identidade.
Além disso, para compreender a noção de corpo, os estudos
feministas e psicanalíticos, com ênfase nas contribuições de
Násio, foram fontes importantes. Com relação ao conceito de
gênero, a principal referência é a Judith Butler. Cabe salientar
que há uma querela entre o pensamento de Butler e o conceito
de identidade. Butler tem em vista superar esse conceito.
Apesar disso, o seu pensamento vai de encontro ao de Hall, na
medida em que ambos compreendem que a identidade não se
limita à estereótipos socialmente entendidos como coerentes.
Sobretudo, o conceito de identidade é fundamental para
compreender as discussões sobre gênero. Por fim,
consideramos necessário incluir uma apresentação da boneca
Barbie no referencial teórico.

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IDENTIDADE

A identidade é relacional (WOODWARD, 2011, p. 8),


visto que sua existência pressupõe algo que lhe é externo. A
identidade é marcada por símbolos relativos a outras
identidades e, ao mesmo tempo, caracterizada por elementos
que contribuem para explicar como ela é formada e mantida. A
marcação simbólica na afirmação de identidades nacionais, por
exemplo, pode ser encontrada em representações como em um
uniforme ou uma bandeira nacional. Tais sistemas simbólicos
têm o papel de tornar possível a expressão da subjetividade de
cada um. Nesse processo formativo, é preciso levar em
consideração as diferenciações e identificações que fazem com
que alguns significados sejam preferidos relativamente a
outros. Isso está vinculado a uma série de elementos e
condições sociais, materiais, históricas, teóricas e psíquicas, que
operam como sistemas classificatórios necessários para a
construção e manutenção das identidades.
As representações, por sua vez, são uma forma de
atribuição de sentido (XAVIER FILHA, 2011, p. 597). As pessoas
são espectadoras das representações pelas quais a mídia produz
determinados tipos de identidades — por exemplo, por meio da
narrativa das telenovelas, dos anúncios e das técnicas de venda
(WOODWARD, 2011, p. 30). Por meio das representações, as
construções identitárias adquirem sentido. E “quem tem o
poder de representar tem o poder de definir e determinar a
identidade” (SILVA, 2011, 91).
Porém, no interior de formação das representações
existem contradições, as quais precisam ser negociadas entre o
nível individual e o coletivo de uma sociedade, fato que torna a

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identidade não unificada ou totalizada. Nesse sentido, é uma


fantasia, para Hall, considerar a identidade plenamente
unificada, completa, segura e coerente (HALL, 2003, p. 13).
Diante disso, Hall é crítico das concepções que postulam a
identidade como integral e unificada. A identidade ou a
identificação, como prefere Hall, é um processo de articulação,
uma suturação, uma sobredeterminação, e não uma subsunção
(HALL, 2011, p. 106).
Ao preferir utilizar o termo identificação em vez de
identidade, Stuart Hall esclarece que o faz com o intuito de
enfatizar o processo contínuo de subjetivação. Dessa maneira,
os estudos de Hall lhe permitem caracterizar a identidade como
o ponto de encontro entre, de um lado, os discursos e as
práticas que incentivam os sujeitos a assumirem determinadas
posições sociais e, por outro lado, os processos que são
introspectivos. Por isso, o autor define as identidades como
pontos de apego temporário às posições-de-sujeito que as
práticas discursivas constroem para nós. Nas palavras dele: ''a
identidade, então, costura (...) o sujeito à estrutura" (HALL,
2003, p. 12).
Diante da emergência de novos movimentos sociais, a
identidade é uma questão central porque, para o militante a
identidade é tudo (SONTAG, 2003, não paginado). Nesse
sentido, a diferença também é um importante elemento dos
sistemas classificatórios por meio dos quais os significados
identitários são produzidos. A diferença é entendida como
processo cultural e de distribuição de poder — mobilizando as
divisões de raça, classe, cor da pele, geração, gênero,
sexualidade, pertencimento religioso, entre outras (SEFFNER,
2013, p. 150). As estruturas que organizam a vida social se

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compõe sob a forma de posições binárias. Assim, a cada vez


que o sujeito afirma-se de um modo, nega-se em relação ao seu
inverso.
No entanto, a rigidez dos tradicionais paradigmas
binários está se flexibilizando, no que se refere às identidades.
Hall explica isso ao falar sobre a descentralização da
identidade, característica da pós-modernidade. O
descentramento deve ser entendido como uma crise. No
chamado mundo pós-moderno, não há mais um ponto
referencial em torno do qual o sujeito gravita e se constitui
firme, mas vários pontos referenciais que não trazem segurança
(PEREIRA, 2004, p. 100). Hall aponta cinco grandes causas para
esse descentramento, dentre as quais está o movimento
feminista. O feminismo abriu para o espaço da contestação
política aqueles elementos que eram considerados particulares
da vida privada, como a dominação dos sexos, o trabalho
doméstico, o cuidado com as crianças, dentre outros (PEREIRA,
2004, p. 93).
Além disso, a partir das fontes decoloniais, sabe-se que
uma consequência dos processos de colonização e
ocidentalização, que se deu a partir da modernidade, foi
estabelecer uma hierarquia entre as identidades. Em outras
palavras: ''uma das realizações da razão imperial foi a de
afirmar-se como uma identidade superior ao construir
construtos inferiores (raciais, nacionais, religiosos, sexuais, de
gênero) e de expeli-los para fora da esfera normativa do ''real''
(MIGNOLO, 2008 p. 291).
Sendo assim, ser branco, heterossexual e do sexo
masculino são as principais características de uma política de
identidade que denota identidades tanto similares quanto

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opostas como essencialistas e fundamentalistas (MIGNOLO,


2008 p. 289). Nesse sentido, quanto mais distante o sujeito está
dessas características, mais à margem ele está e mais encontrará
dificuldades para acessar seus direitos. Isso ajuda a
compreender o porquê sujeitos que se encontram à margem
agem em conformidade com o pensamento ideológico do
centro: possivelmente é uma tentativa de aproximar-se da
posição para quem são concedido direitos.

CORPO

No que tange a essa pesquisa, dois pontos relativos ao


corpo se destacam: a busca pelo corpo dito ideal e o corpo
enquanto artifício de luta feminista. O primeiro ponto é
intensificado pelos avanços tecnológicos que implicam no
aumento de recursos para intervenções corporais. Essas
intervenções são procuradas mesmo que estatisticamente o
resultado tenha alta probabilidade de trazer prejuízos à saúde.
Para entender isso melhor é preciso falar sobre a percepção da
imagem corporal.
Primeiramente, para a psicanálise, o sujeito percebe o
seu corpo por meio de duas imagens corporais complementares
e interativas: a do corpo visto e a do corpo sentido (NÁSIO,
2009, p. 11). Dessa forma, é possível inferir que a imagem
corporal é a forma como o indivíduo se vê e se sente em relação
ao seu próprio corpo (TAVARES, 2003 apud RUSSO, 2005, p.
83). Para Násio (2009, p. 55) as imagens mentais que forjamos
de nosso corpo, substrato de nossa identidade, são imagens
subjetivas e deformadas que falseiam a autopercepção. Nesse
sentido, o sujeito nunca percebe o próprio corpo tal como ele é.

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Isso é, a imagem do corpo é a substância deformante do Eu


(NÁSIO, 2009, p. 56).
Além disso, Násio propõe que a imagem silhueta
humana sempre provoca afeto, ela nunca é indiferente (NÁSIO,
2009. p. 82). Isso está relacionado ao fato de que não há como
recorrer a um corpo que já não tenha sido sempre interpretado
por meio de significados culturais (BUTLER, 2010, p. 27). Ou
seja, não existe corpo humano sem significado.
Os sujeitos aprendem a avaliar seus corpos por meio da
interação com o ambiente, assim sua auto-imagem é
desenvolvida e reavaliada continuamente durante a vida inteira
(BECKER, 1999, apud RUSSO 2005 p. 81). Desse modo, assim
como a identidade, a auto-imagem também é relacional e é
profundamente marcada por uma ideia paradigmática de
beleza.
Essa ideia é muito explorada pela mídia, visto que
muitas indústrias lucram a partir disso: indústria farmacêutica
e alimentícia(com destaque para as que produzem fitfood),
clínicas estéticas e de cirurgia plástica são alguns exemplos. Por
isso, é possível associar a ideia de corpo à ideia de consumo
(RUSSO, 2005, p. 81). Esse ponto merece a atenção dos
profissionais da saúde mental, já á que a fantasia de tornar o
corpo um objeto moldável, capaz de satisfazer as expectativas
do sujeito, pode tornar-se uma ameaça ao equilíbrio das
funções fisiológicas mantenedoras da vida (CAMPOS, 2005, p.
1).
Em segundo plano, cabe falar sobre o corpo enquanto
artifício de luta. Para tanto, é preciso expor o que é o
movimento feminista. Segundo Marie Shear, (1986, apud
SOLNIT, 2014, não paginado) o feminismo é a noção radical de

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que as mulheres são pessoas. O feminismo é, pois, tudo isto: a


rejeição dos aspectos negativos do passado, a adoção de novos
princípios e conceitos, a criação de novas imagens para mulher,
a conquista de igualdade de direitos e oportunidades, a
participação em novos moldes na vida, família e sociedade
(SILVA, 1983, p. 889).
Assim sendo, a crítica feminista deve compreender
como a categoria das ''mulheres'', o sujeito do feminismo, é
produzida e reprimida pelas mesmas estruturas de poder por
intermédio das quais busca-se emancipação (BUTLER, 2010, p.
19). Por isso para Butler (2010, p. 22), a identidade não deve ser
fundamento da teoria feminista. Assim, o feminismo tem em
vista ressignificar o lugar da mulher, considerando que esse
lugar é estabelecido por estruturas de opressão. Ou seja,
identificar-se como feminista significa se desidentificar com
antigas definições do feminino (HOLLANDA, 2018 p. 59).
Para falar sobre o papel do corpo no feminismo,
segundo Beauvoir o corpo feminino é marcado no interior do
discurso masculinista (BUTLER, 2010, p. 32). Em resposta a
isso, a autora propõe que o corpo deve ser situação e
instrumento de liberdade. Na década de 1960, essa concepção
se faz bem visível. Nesse contexto, surgiu a bandeira ''o pessoal
é político'' e as feministas reivindicavam o direito ao corpo, ao
aborto e à liberdade sexual (HOLLANDA, 2018 p. 13). A
Marcha das Vadias2 é um [outro] exemplo-chave da experiência
do protesto [feminista], que comporta suas próprias formas de
expressão e tem no corpo um elemento central (HOLLANDA,

2A Marcha das Vadias é um protesto feminista que ocorre em várias cidades do mundo
(GOMES, 2014, p. 437) É uma expressão contemporânea do feminismo, o que revela
uma disputa entre as jovens e as lideranças mais velhas.

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2018, p. 25). Nesse caso, o corpo é objeto de reivindicação


(autonomia das mulheres sobre seus corpos) e é também o
principal instrumento de protesto, suporte de comunicação. É
um corpo-bandeira (SORJ, 2014, apud HOLLANDA, 2018 p.
25). Há também outras bandeiras feministas que enfatizam o
corpo como um ponto central, como ''meu corpo minhas
regras''.

GÊNERO

Um conceito comumente atribuído ao gênero pelas


pensadoras feministas, dentre as quais Simone de Beauvoir, é
''interpretação cultural do sexo''.. No entanto, para Judith Butler
(2010, p. 24), uma melhor definição de gênero seria:
''significados culturais assumidos pelo corpo sexuado'', já que
na definição anterior os corpos seriam interpretados como um
depósito de significados culturais, um mero instrumento refém
de um determinismo social.
Para a autora, a questão de gênero não se reduz à
rigidez binária como determina a convenção tradicional. Isso
acontece porque o sujeito tem, em certa medida, autonomia
para ultrapassá-la, já que ele não é totalmente condicionado
pelo meio. Butler ressalta essa autonomia ao destacar que o
gênero é assumido pelo sujeito. Nesse sentido o sujeito não é
simplesmente refém de atribuições, ele é um agente. Ela
ressalta: ''Ao reproduzirmos a norma podemos encontrar e
formar modos de gênero que quebram com padrões mecânicos
de repetição (SEMINÁRIO QUEER, 2015).'' Assim, para Butler,
gênero não é um atributo social ou cultural, como vinha sendo
pensado até então, mas uma categoria construída por meio de

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performances normativas inscritas e reforçadas pela cultura


heterocapitalista (HOLLANDA, 2018, p. 62).
Além disso, para Butler, a identidade de gênero pode
ser compreendida como uma relação entre sexo, gênero, prática
sexual e desejo (BUTLER, 2010, p. 39). De acordo com ela, essa
categoria é efeito de uma prática discursiva reguladora e
normativa. Em suas palavras: ''não há identidade de gênero por
trás das expressões de gênero; essa identidade é
performativamente construída (BUTLER, 2010. p. 48, grifo da
autora)''. Essa performatividade é produzida e imposta pelas
práticas reguladoras da coerência do gênero (BUTLER, 2010 p.
48) e essas práticas estão associadas aos estereótipos sociais
limitantes relacionados à expressão da feminilidade e
masculinidade. Ela diz:

''Por que alguém deveria ser discriminado por andar de um


certo modo - ''meninos não andam daquele jeito'' ou ''meninas
não andam daquele jeito'' - ou por aparecer com roupas que não
estão em conformidade com o gênero que lhe é atribuído? Por
que isso deveria ser um problema? Por que esse não pode ser
um pequeno e bonito espaço de liberdade? (BUTLER, 2019,
tradução nossa)''

Nesse sentido, como destaca Tomaz Tadeu da Silva


(2011, p. 92), Butler, ao optar pelo conceito de
performatividade ''desloca a ênfase na identidade como
descrição (...) para uma concepção da identidade como
movimento e transformação''.
Além disso,

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''identidade e diferença guardam conexão com o regime de


heteronormatividade, entendida como norma que articula as
noções de gênero e sexualidade, estabelecendo como natural
certa coerência entre sexo (nasceu macho, nasceu fêmea),
gênero (tornou-se homem, tornou-se mulher) e orientação
sexual (se é um homem, irá manifestar interesse afetivo e sexual
por mulheres, e vice-versa) (SEFFNER, 2013, p.150, grifo nosso)''

Assim, a heteronormatividade pode ser entendida como


uma estrutura responsável por criminalizar, patologizar e/ou
discriminar comportamentos que não se enquadram em uma
certa identidade de gênero considerada coerente. Quanto mais
o sujeito afasta-se dos padrões heteronormativos, mais
aproxima-se de uma posição de vulnerabilidade social. Essa
posição de vulnerabilidade implica que determinados grupos e
indivíduos se tornam mais suscetíveis a determinados
problemas que outros (MEYER, 2007, p. 232). A partir desses
termos, é possível pensar na desigualdade de gênero, que está
associada a inúmeras formas de violência, como por exemplo:
assédio sexual, lgbtqfobia, feminicídio, violência doméstica e
sexual, apagamento da ancestralidade, male gaze3, mansplaining4
desigualdade salarial, divisão sexual do trabalho, intimidação,

3 Em uma tradução literal, ''olhar masculino''. Conceito cunhado pela Laura Mulvey
(1975) refere-se à perspectiva masculinista, heterossexual e objetificante a partir da qual
as mulheres são retratadas no cinema e em outras mídias. Essa retratação implica na
escolha de um determinado enquadramento, foco e iluminação e tem em vista
apresentar a mulher como um objeto de prazer para o espectador masculino. O male
gaze está muito presente no cinema hollywoodiano e mainstreaming
4 Termo oriundo do inglês, cunhado pelo ensaio ''Os homens explicam tudo para mim''

de autoria da Rebecca Solnit. Mansplaining é uma junção de man (homem) e explaining


(explicar). Consiste em uma fala didática direcionada à mulher, como se ela não fosse
capaz de compreender ou executar determinada tarefa, justamente por ser mulher
(STOCKER, 2016, P. 684).

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misoginia, objetificação do corpo da mulher, só para citar


algumas.
Em face a isso, Butler propõe a teoria da
performatividade de gênero, que tem como ponto central
relaxar o controle coativo das normas na vida de gênero
(SEMINÁRIO QUEER, 2015). A autora diz ainda que a partir
da posição de vulnerabilidade surgem os movimentos de
resistência e a capacidade à resposta. Nesse sentido, não é
interessante que os grupos subalternizados neguem a sua
posição de vulnerabilidade, mas sim que a utilizem como
artifício de luta.

BARBIE

Barbie é uma boneca, que é um brinquedo infantil,


criada em 1959 pela empresa estadunidense Mattel. A sua
apresentação original pode ser descrita da seguinte forma: seu
cabelo é loiro liso e longo, seus olhos claros, sua pele é branca,
está sempre maquiada, ''anda'' na ponta dos pés e apesar de ser
uma boneca adulta, não tem pelos no corpo. Sua criadora é a
empresária Ruth Handler. Para criar a Barbie ela inspirou-se no
desing na boneca alemã Bild Lilli, que era uma personagem de
quadrinhos pornográficos vendidos para o público adulto. O
que levanta a questão: será que a Barbie é uma boneca ou um
fetiche? Posteriormente, a Mattel comprou os direitos da Bild
Lilli. A boneca Barbie foi a primeira boneca adulta fabricada
nos Estados Unidos para uso das crianças.
O seu nome ''Barbie'' foi escolhido por ser o apelido da
filha da criadora, Barbara Millicent Roberts. O ''Ken'', boneco da
Mattel, também surgiu em homenagem ao irmão da Barbara.

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Apesar do Ken fazer par romântico com a boneca Barbie, o que


é claro nas aparições cinematográficas dos bonecos, o
verdadeiro Ken é homossexual. Esse par reforça a
heteronormatividade, apesar disso ser inverossímil. Além disso,
a Mattel produz acessórios para os bonecos. O primeiro carro
da Barbie foi lançado em 1962, mesmo ano de lançamento da
primeira ''casa dos sonhos'' da Barbie.
A boneca foi alvo de críticas pelo movimento feminista
por representar a feminilidade de modo limitante. Houve uma
polêmica em 1992 porque a Mattel colocou no mercado uma
boneca que ''dizia'': "Aula de matemática é dureza!" ("Math
class is tough"). As feministas manifestaram-se alegando que
essa boneca reforçava o ofensivo e inadequado estereótipo da
''loira burra''. Sobre isso, o então presidente da Mattel se
pronunciou publicamente desculpando-se. Nos dias de hoje, a
Mattel demonstra mais preocupação com a representatividade:
em 1968, a Mattel lançou a Christie, primeira boneca afro-
americana; em 1990 a Kira, uma boneca asiática; em 1997 criou
a Formismonica, boneca cadeirante e em 2019 lançou a primeira
bonecx sem gênero. Além disso, a empresa lançou em 2018 uma
barbie engenheira robótica, de forma coerente ao velho lema da
Barbie '''você pode ser tudo o que quiser''. A Mattel também
representou grandes figuras feministas como a Frida Kahlo e a
Rosie the Riveter.
Apesar disso, essas últimas não têm a mesma
popularidade que a versão clássica da boneca da Mattel. É
inegável que a Barbie e todas as características sociais que ela
representa tiveram grande impacto sobre a cultura. É a boneca
mais vendida do mundo e sua imagem e mensagem estética
teve longo alcance. A Barbie já teve uma exposição no Louvre

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dedicada a ela em 2016, já foi pintada por Andy Warhol e mais


de 70 estilistas já criaram roupas para a Barbie, incluindo Gucci,
Versace e Armani. Além disso, a boneca protagoniza várias
animações e video-games.

METODOLOGIA

O tipo de pesquisa que foi adotado teve caráter


exploratório, que segundo Gil (2002) tem o objetivo de permitir
maior familiaridade com o problema levantado.

As pesquisas exploratórias têm como principal finalidade


desenvolver, esclarecer e modificar conceitos e ideais, tendo em
vista a formulação de problemas mais precisos ou hipóteses
pesquisáveis para estudos posteriores. (...) Habitualmente
envolvem levantamento bibliográfico e documental, entrevistas
não padronizadas e estudo de caso. Procedimentos de
amostragem e técnicas quantitativas de coletas de dados não
são costumeiramente aplicados nestas pesquisas. (GIL, 2008, p.
27)

Além do levantamento bibliográfico, tendo em vista o


objetivo de analisar as implicações da desigualdade de gênero
na expressão das barbies humanas brasileiras, a iconografia
mostra-se relevante. A iconografia consiste em um método
qualitativo de interpretação e análise de conteúdo visual,
influenciado pela arte e método de interpretação por Aby M.
Wargurb, mas difundido por Panofsky (1983) (UCHOA, 2016,
não paginado).
Trabalhar com documentos visuais é muito profícuo,
pois, ao estudar uma imagem compreende-se, a sua inserção

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classe afroindígena-latino-americanos

em um o tempo histórico-cultural. Já que um documento visual


não existe no vácuo (UCHOA, 2016, não paginado), isso é, uma
imagem não existe sem um contexto. Além disso, a escolha da
metodologia tem em vista trazer à tona a noção de que imagens
são ideias (GELL, 2018, não paginado).
Com base na iconologia criada por Aby Warburg, será
realizado um estudo das fotografias publicadas nas redes
sociais pelas mulheres brasileiras que se autoafirmam barbies
humanas. Esse estudo apresenta três etapas. A primeira
consistirá em descrever a fotografia analisada. Essa descrição
conterá: quem ou o que aparece na imagem, que lugar aparece
na imagem, quando a foto foi publicada, como são ou estão os
principais elementos da imagem, o que indica essa imagem
(MANINI, 2011, p. 4). A segunda etapa consistirá em apresentar
um contexto para a fotografia a partir do diálogo com textos,
conceitos, documentos elucidativos e o referencial teórico. A
terceira é a análise propriamente dita, na qual se faz uma
interpretação.
Cabe ressaltar que após a realização da análise o objeto
já não é mais o mesmo, não será percebido da mesma maneira
como antes; porque ao analisar uma imagem, atribui-se novos
valores e signos a ela (VICENTE, 2000, p. 149). Dubois j·
afirmou (1986, 1999 apud MANINI, 2011, p. 4) que a fotografia é
uma prova de existência, mas não é uma prova de sentido.
Contudo, uma imagem não contextualizada (por meio da
palavra...) de nada ou pouco vale dentro de um acervo, pois é
preciso conhecer sua origem e histórico e é fundamental
relacioná-la com outros documentos (MANINI, 2011, p. 2).

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RESULTADOS E DISCUSSÕES

Figura 1: Barbies humanas e a divisão sexual do trabalho.


Disponível em: https://www.instagram.com/p/B1gs3J9hycr/
acesso em: 27 set. 2019.

1. Descrição: A Figura 1 enquadra, em primeiro


plano, as pernas de uma mulher do joelho para baixo. As
pernas estão expostas e a mulher usa um salto alto estilo scarpin
de cor rosa, de modo que seja possível identificar uma
tatuagem em seu pé esquerdo. Ao lado de seus pés, encontram-
se materiais de limpeza: um rodo cor de rosa e amarelo para
limpar o chão, que aparenta nunca ter sido usado, pois não há
sinal de desgaste. Logo atrás encontra-se um balde de cor rosa.
Ao fundo, gavetas e armários em tons de rosa. As maçanetas
são pequenas, retangulares e prateadas. A cor predominante é

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rosa. Não é possível identificar em qual cômodo da casa essa


captura foi feita. A fotografia foi publicada no dia 23 de agosto
de 2019 no perfil da '' @brunabarbieoficial'' e a legenda
atribuída é: ''Sexta-feira é o dia mundial da FAXINA''.
2. Diálogo com o referencial teórico: Ao falar sobre
divisão sexual do trabalho, Silvia Federici (2017, p. 182)
esclarece que as proletárias, desde o século XVII, encontram
dificuldade para ocupar vagas em empregos cobiçados e
prestigiados. Dessa forma, desempenhavam funções em áreas
cujo status era mais baixo, como: empregadas domésticas,
trabalhadoras rurais, fiandeiras, tecelãs, bordadeiras,
vendedoras ambulantes e outros. Sendo assim, com a transição
para o capitalismo, o trabalho atribuído às mulheres é
sistematicamente desvalorizado.
A cozinha ilustra a profissionalização do ambiente
doméstico: muito embora o serviço da casa frequentemente não
seja reconhecido enquanto um trabalho formal, o desing das
cozinhas é comparável ao de uma fábrica. Isso porque a cozinha
dispõe de aparelhos e utensílios que visam otimizar o trabalho,
economizando tempo e fadiga. A disposição dos armários
também indica uma organização sequencial do serviço, que é
própria do ambiente fabril (COLEMAN, 1996). Apesar de mais
de 40% da população economicamente ativa, no Brasil, hoje, ser
constituída por mulheres isso não significou uma divisão mais
equitativa das tarefas domésticas (MEYER, 2007, p. 225). Assim,
a família e a casa é a fábrica das mulheres (FEDERICI, 2020).
Então, o trabalho doméstico que se tornou invisível, não sendo
considerado um trabalho, é, na verdade, a base, a fundação e o
apoio de todas as outras atividades de trabalho (FEDERICI,
2020).

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Também chama a atenção o fato de que a foto retrata


uma mulher faxinando a casa e ao mesmo tempo usando salto
alto. Sapatos de salto, tipicamente relacionados ao estereótipo
de gênero feminino, são desconfortáveis e inadequados para o
desempenho das tarefas da casa. A história mostra que o traje
feminino não foi pensado para o trabalho (CIANTEC, 2010, não
paginado). Essa é uma forma de condicionar os espaços e
posições que são socialmente permitidos a uma mulher ocupar.
Outro ponto que se destaca nessa imagem é a cor
predominante dos instrumentos de limpeza, que é rosa. A
partir de 1920, com a inovação das roupas tingidas no mundo
da moda, rosa tornou-se uma cor relacionada ao feminino
(HELLER, 2013, p. 216.). Na opinião de Eva Heller, quando o
rosa se tornou feminino, se tornou uma cor da discriminação
(HELLER, 2013, p. 216). Isso se deve ao fato das cores rosa e
azul terem se tornado marcas identitárias que definem um ideal
de masculinidade e feminilidade (XAVIER FILHA, 2011, p.
595). Por isso, essa é uma questão social, que extrapola o gosto
individual. Assim sendo, o uso do rosa e do azul passa a impor
um limite. Dessa forma, a imagem reforça o estereótipo do
gênero feminino a partir desses aspectos principais: a divisão
sexual do trabalho, o calçado utilizado pela mulher retratada e
a cor predominante na fotografia.
Além disso, chama a atenção que a foto não exponha
uma visão completa do corpo do sujeito retratado. Isso remete a
obliteração do corpo feminino. A partir disso, é possível pensar
que, assim como ofícios domésticos são invisibilizados e
frequentemente não reconhecidos enquanto trabalho, o próprio
corpo feminino, bem como os seus feitos, é invisibilizado.

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3. Síntese: A imagem em questão, portanto, reforça


a associação entre as mulheres e o trabalho da casa. Com
relação à divisão sexual do trabalho, cabe rememorar a citação
de Silvia Federici (2020): ''a cada vez que entrar na cozinha
lembre-se: isso que chamam de amor é trabalho não pago''. As
mulheres desde a infância são ensinadas a serem cuidadoras,
elas são instruídas a aderir ao papel de cuidadora do lar. Elas
aprendem que cuidar é uma forma de manifestar amor.
Virginia Woolf refere-se a esse estigma relacionado à mulher
como ''Anjo do lar''. Ela explica:

Ela era extremamente simpática. Imensamente encantadora.


Excelente nas difíceis artes de convívio familiar. Sacrificava-se
todos os dias. Se o almoço era frango, ela ficava com o pé. (...)
em suma seu feitio era nunca ter opinião ou vontade própria. E
acima de tudo (...) ela era pura. (...) Toda casa tinha o seu anjo.
(WOOLF, 1942, p. 12).

Woolf está referindo-se àquela mulher que cuida e


atende aos desejos de todos no interior do lar, esquecendo-se de
dar atenção aos seus próprios desejos. Os brinquedos que são
dados às meninas revelam e reforçam esse estigma: fogões,
tábuas de passar de brinquedo, bonecas de brinquedo, dentre
elas a própria boneca Barbie, que inclui uma versão ''Barbie
faxineira''5.
Nesse sentido, propomos uma comparação entre a
Figura 1 e a tela da artista Ana Teresa Fernández (ver anexo B).
Em ambas as imagens há uma mulher de salto desempenhando
uma tarefa doméstica (no caso da Figura 1, faxinar a casa. No

5 Ver: https://bityli.com/HsDod Disponível em: https://bit.ly/3eGfDqS Acesso: 20 nov


2019.

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caso da tela de Fernández, pendurar as roupas no varal). Em


ambas, a mulher usa scarpin, o que parece inusitado para o
desempenho de um ofício doméstico, e em ambas, o corpo da
mulher não aparece. O seu corpo é obliterado, invisível na
imagem, é anônimo. Isso nos permite pensar que a mulher está
tão envolvida nas suas tarefas enquanto ''anjo do lar'' que não
se faz notar, não se manifesta. No entanto, a foto da barbie
parece reforçar um estereótipo de gênero que é limitante, ao
passo que a pintura é uma crítica a esse limite.

Figura 2: Barbies humanas e a questão da objetificação.


Disponível em: https://www.instagram.com/p/B0oOnFzB0Wq/ acesso em: 27
set. 2019

1. Descrição: A Figura 2 apresenta uma mulher de


pele branca dentro de uma caixa de cor rosa que mimetiza a

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embalagem em que a boneca Barbie se encontra nos mercados.


Ademais, a caixa na qual a mulher se encontra parece fazer
parte de um evento: no fundo é possível ver uma aglomeração
de pessoas. A caixa está sob uma tenda e há uma placa com os
escritos: Barbie, espaço do brincar. Para falar sobre a moça
dentro da caixa, ela tem cabelos loiros e compridos, usa óculos
escuros em cima da cabeça, usa regata prateada com o slogan da
Barbie escrito em rosa e saia cor de rosa com botões
distribuídos verticalmente. A foto foi publicada no dia primeiro
de agosto de 2019 pela usuária ''@brunabarbieoficial''. De
acordo com a legenda e as informações concedidas por ela, a
fotografia foi tirada no Parque Villa Lobos, em São Paulo, em
uma festa de comemoração dos sessenta anos da boneca Barbie.
Bruna Barbie informa que a Mattel a convidou para participar
do evento.
2. Diálogo com o referencial teórico: Em conformidade
com o pensamento de Irigaray, as mulheres jamais poderão ser
compreendidas segundo o modelo de ''sujeito'' nos sistemas
representacionais convencionais da cultura ocidental (BUTLER,
2010, p. 40). A partir desses sistemas representacionais
convencionais, a mulher é, portanto, posta na posição de objeto.
Consideramos que nesses sistemas estão inseridas as figuras
das deusas greco-romanas, do ''anjo da casa'' e da boneca
Barbie, já que essas fazem parte de uma ideia paradigmática de
identidade feminina.
A Figura 2 ilustra de que modo essa identificação com a
Barbie está associada à objetificação: um evento promovido
pela Mattel disponibiliza uma embalagem gigante da Barbie
para que mulheres e meninas entrem dentro: como se, assim
como um brinquedo ou como um produto em uma vitrine, a

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mulher dentro da caixa fosse um objeto disponível para o uso


alheio. Nesse caso, a empresa está valendo-se da identificação
entre as meninas e mulheres com as Barbies para promover-se.
A partir do pensamento de Beauvoir é possível entender
melhor a objetificação do corpo das mulheres. Segundo ela, as
mulheres são identificadas com sexo, já que há uma fusão da
categoria mulheres e as características ostensivamente
sexualizadas de seus corpos (BUTLER, 2010, p. 41). Em face a
isso, a autora propõe que essa atribuição é um gesto misógino
que implica em uma recusa a conceder liberdade e autonomia
às mulheres bem como a desfrutada pelos homens. Ao pensar
na história da boneca Barbie, é possível perceber que essa
representa a hipersexualização do corpo feminino, tendo em
vista que seu design foi pensado a partir da Bild Lilli,
personagem de uma história em quadrinhos eróticos destinada
ao público masculino.
As barbies humanas também parecem representar essa
hipersexualização e objetificação do corpo feminino. Mas, é
preciso ter em mente que, em alguma medida, elas reivindicam
esse lugar para si, por exemplo no ato de colocar-se dentro
dessa embalagem gigante. Nesse caso, como a Bruna Barbie
informou que foi convidada pela Mattel a participar desse
evento, não é possível ter certeza que ela se colocou na caixa
por ter sido contratada para desempenhar esse papel. De todo
modo, é preciso lembrar o que ensina Butler: os sujeitos têm
autonomia para aproximar-se ou afastar-se dos estereótipos de
gênero. São agentes, não são entes passivos determinados
socialmente.
Além disso, nessa fotografia a articulação entre corpo e
consumo é perceptível, visto que embalagens são feitas para

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comportar mercadorias e na Figura 2 a embalagem comporta


um corpo humano. Então, a possibilidade de colocar-se dentro
de uma embalagem insinua essa comparação.
3. Síntese: No ato de reivindicar a posição de
objetificação e hipersexualização para si, é possível identificar
nas barbies humanas um elemento subversivo. Isso é manifesto
na frase de Blondie Bennett, já mencionada aqui: ‘’Eu quero que
as pessoas me vejam como uma boneca sexual de plástico e ser
burra faz parte disso’’ (BHAZ, 2014). De todo modo, essa sua
colocação é extremamente problemática. No entanto, Blondie
mostra-se um sujeito desejante. Ainda que esteja manifestando
o desejo de aproximar-se de um objeto, o que é um paradoxo
porque objetos não desejam. Diferentemente da discussão
acerca da Figura 1, em que a mulher tem seu corpo obliterado e
aproxima-se do estigma do ''anjo do lar'', a partir dessa frase de
Bennett é possível pensar que ela quer que o seu corpo seja
visto. Além disso, ela está afastando-se do ideal do anjo da casa,
já que ela não se propõe a ser uma mulher imaculada e
cuidadora, que abdica dos seus desejos por uma certa
concepção de família. Assim, ela transgride um paradigma da
identidade feminina tradicional. Ela se coloca, reivindica a sua
vontade, ainda que essa seja polêmica. No caso da imagem em
questão, ainda que a mulher retratada possivelmente tenha sido
contratada para colocar-se nessa posição, ela certamente não foi
obrigada a fazer isso. Assim sendo, ainda que as mulheres
façam parte de um grupo vulnerável e que isso esteja
relacionado, dentre outros fatores, à objetificação dos seus
corpos, o que, em certa medida, foge a sua autonomia, é um
equívoco pensar que as mulheres são simplesmente vítimas
disso. Isso acontece porque, em primeiro plano, estar em uma

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posição de vulnerabilidade não é o mesmo que ser vítima. E em


segundo plano, as mulheres brasileiras têm adquirido mais
autonomia com os avanços dos movimentos feministas para
reivindicar qual lugar elas gostariam de ocupar.

Figura 3 - Barbies humanas e heteronormatividade. Disponível


em:https://www.instagram.com/p/CBWRehRnaBq/ acesso em: 9 jul. 2020

1. Descrição: A Figura 3 apresenta um casal hetero


em uma loja de brinquedos. Ambos têm pele branca e estão
fantasiados: ele de príncipe e ela de fada. Ele usa um traje
branco e ombreiras com detalhes amarelos. Ela usa um vestido
rosa brilhante com detalhes brancos, um adereço nos cabelos
loiros, lisos e longos, um colar extravagante e ''asas'' nas costas.
Eles estão bem próximos. Ela sorri e acena. No fundo há
prateleiras com várias bonecas Barbies, todas elas na
embalagem. Todas essas são como a versão clássica da Barbie:

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loira, magra, olhos azuis e cabelos longos e loiros. Na legenda, a


''@yakarapiotto'' publica um texto romântico. A foto foi
publicada no dia doze de junho de 2020 e é uma homenagem ao
namorado pelo dia dos namorados.
2. Diálogo com o referencial teórico: O casal retratado
performa um casal dos contos de fadas, sendo que a mulher se
afirma como barbie humana. Nesse sentido, as Barbies, as
princesas, assim como as deusas greco-romanas, parecem ser
representações desejáveis da feminilidade, visto que são fontes
de inspiração.
Para compreender isso, é preciso dar atenção ao modo
com que as as princesas são caracterizadas no imaginário
infantil: são asseadas, doces, delicadas, inteligentes, fofas,
meigas, amáveis e ''tem algumas competências como: gostar de
cozinhar, ser prendada, ser divertida, gostar da cor de rosa, não
ser gulosa e ficar à espera do príncipe encantado'' (XAVIER
FILHA, 2011 p. 594). Os príncipes, por sua vez, são
identificados como: corajosos, elegantes e românticos (XAVIER
FILHA, 2011, p. 598).
A partir dessa descrição, é possível pensar que a Barbie
e as princesas são personagens do mundo infantil que
representam os paradigmas normativos da identidade
feminina. A figura da Barbie é muito comparável a das
princesas, sendo que a Barbie interpreta uma princesa em
vários de seus filmes e edições. As características físicas e
comportamentais desejáveis da subjetividade das princesas são
condizentes com o que se espera das condutas femininas
ensinadas social e culturalmente (XAVIER FILHA, 2011, p. 594).
Assim, os próprios contos de fadas são instrumentos de
artefatos culturais que visam educar para a

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heteronormatividade (XAVIER FILHA, 2011, p. 600). Eles


ressaltam, por exemplo, a matriz heterossexual com o reforço
da relação amorosa e do enlace final, com o casamento, e da
demarcação do destino imutável do ''e foram felizes para o
resto de suas vidas'' (XAVIER FILHA, 2011, p. 600).
Além disso, o fato de que o local escolhido para a
captura é uma loja põe em questão à noção de consumo. A
prateleira, por sua vez, expõe várias Barbies iguais, o que evoca
à ideia de consumo em massa. A Barbie é, sobretudo, um objeto
de consumo. Nesse ponto, cabe ressaltar que a boneca foi criada
nos Estados Unidos, que, segundo o Banco Mundial (2016) é o
país mais consumista do mundo.
3. Síntese: A Barbie, as deusas greco-romanas, as
princesas e o ''anjo do lar'' mostram-se, então, representações
idealizadas do feminino, oriundas do discurso uma sociedade
masculinista. A partir disso, é possível compreender o porquê
Butler considera problemático que o movimento feminista se
sustente na identidade feminina: essa é atravessada por
representações paradigmáticas e limitantes.
Além dessa, há inúmeras outras imagens veiculadas à
mídia que tratam a heterossexualidade como a única
possibilidade de orientação sexual, incluindo imagens
direcionadas ao público infantil. Essas imagens exercem poder
no imaginário social e a partir delas a heteronormatividade (ou
seja, a suposta conformidade entre gênero, sexo, orientação
sexual) é considerada natural. Então, presença dessas figuras no
contexto infantil indica que já há uma educação de gênero em
curso que implicitamente difunde e representa os valores
heteronormativos, que são excludentes.

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Nesse sentido, é importante que as crianças estudem


sobre gênero nas escolas, de forma explícita em que caiba o
diálogo. Já que, se a heteronormatividade é considerada
natural, ela torna-se também indiscutível. A partir de uma
educação sobre esse assunto, aquelas crianças que não estão em
conformidade com o seu gênero podem se sentir representadas
e as demais, compreendendo o tema, aprenderão a não
discriminá-la. Butler explica que ninguém é ensinado a ser
homo ou heterossexual, que isso não é passível de ser ensinado.
No entanto, é possível ensinar o respeito às diferenças. Nas
palavras da Butler:

Quando ensinamos gênero nas escolas, o que estamos tentando


fazer para as pessoas jovens é mostrar que há diferentes opções
para imaginar, experimentar e pensar a vida. Não há um rótulo,
as pessoas podem escolher afirmar a tradicional masculinidade
ou tradicional feminilidade. Mas há outras possibilidades e
outros caminhos para pensar' (BUTLER, 2019, tradução nossa).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir da história de criação da boneca da Mattel e da


análise do que a sua imagem representa, conclui-se que a
versão clássica da boneca Barbie, assim como a maneira com
que as barbies humanas se expressam, relaciona-se à
desigualdade de gênero na medida em que é representante dos
ideais heteronormativos. A boneca também representa os
padrões de beleza brancos e o american way of life: tem carro,
companheiro e a ''casa dos sonhos''. Por conseguinte, o sexismo
manifesta-se nos brinquedos infantis. Esses brinquedos,
portanto, transportam ideias. Desse modo, o que parece ser

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uma brincadeira inocente têm efeito sobre o imaginário social,


já que, como discutido aqui, a Barbie e as barbies humanas
estão associadas aos estigmas machistas e limitantes, por vezes
violentos.
Além disso, o fato de que a Barbie é uma boneca adulta
dada às crianças tem efeitos sobre a maneira com que elas criam
as suas identificações e projetam o próprio corpo futuro. Nesse
contexto, cabe ressaltar a importância da representatividade: as
crianças irão identificar-se com o que as cerca. Sendo assim, é
interessante presenteá-las com brinquedos que as inspiram
dentro do campo do possível, do humano.
A Mattel, em resposta a essa problemática, lançou
bonecas tendo em vista ampliar a representatividade: se antes
só havia bonecas loiras, do cabelo liso e longo e olhos azuis,
hoje há barbies negras, transgênero e orientais. A partir dessas
novas representações, os consumidores dessa marca têm mais
referências e o corpo feminino não precisa sofrer para se
adaptar a um único modelo. Como pontua a ativista Larissa
Luz, em sua canção ''Bonecas Pretas'': ''referências acessíveis é
poder para imaginar (...), troco estética opressora por
identificação transformadora. Procuram-se bonecas pretas,
procura-se representação (LUZ, 2016)''.
Ademais, a Mattel também lançou uma linha que se
intitula ''mulheres inspiradoras''6 com o objetivo de
homenagear mulheres do movimento feminista. Nesse sentido,
se antes as mulheres tinham como exemplo a boneca para
pensar seu próprio corpo, a partir dessa linha as próprias

6Ver: https://super.abril.com.br/mundo-estranho/barbie-lanca-linha-de-bonecas-sobre-
mulheres-inspiradoras/ Acesso em: 20 nov 2019

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mulheres tornam-se exemplo para fabricação das bonecas. É


interessante que a partir da escolha do nome dessa linha, a
Mattel indica quais das suas bonecas deverão ser de fato fontes
de inspiração. Por mais que haja interesses comerciais ao
cooptar os movimentos sociais dessa maneira, essa iniciativa é
muito importante, tendo em vista que, até então o sujeito
feminino era representado de forma objetificante pela empresa
e isso, como já dito, exerce influência no imaginário social e na
maneira com que as mulheres criam identificações. Nesse caso,
a ampliação da representatividade é um claro avanço dos
movimentos sociais. Desconsiderando a questão da
representatividade inclusiva, é como se a Mattel pretendesse
representar o sujeito universal por meio da Barbie, que é uma
boneca estadunidense, branca, magra, heterossexual e de classe
socioeconômica privilegiada.
Além de reconhecer a importância da
representatividade, é preciso perceber de forma crítica a ideia
de identidade, como aponta Butler e Hall. A identidade não é
engessada e coerente, tal como propõe determinadas imagens
relacionadas ao feminino, como (além da própria Barbie) o
''anjo da casa'', as deusas greco-romanas e as princesas. É a
partir dessa visão crítica que o ensino de gênero nas escolas
mostra-se relevante, o que demanda outros estudos nesse
sentido.

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

ANEXOS

Anexo A: Alisson Lapper, Marc Quinn

Disponível em: http://marcquinn.com/ Acesso em: 15 jul 2019

Anexo B: Pintura sem título

Óleo sobre a tela, Ana Teresa Fernadez. Disponível em:


https://anateresafernandez.com/telarana/tel05/
Acesso: 25 nov 2019

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

Anexo C: ''Normal Barbie'', Nickolay Lamm

Disponível em: https://nickolaylamm.com/ Acesso: 15 jul 2019.

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

CORPO DA MULHER PRETA: REVISÃO


BIBLIOGRÁFICA SOBRE RACISMO E FEMINISMO
NEGRO

Vanessa Ramos de Holanda


Camila Alves Soares

INTRODUÇÃO

É possível observar o quanto o corpo da mulher preta


vem sendo desrespeitado e violado de diversas formas ao longo
da história. Seu corpo tem sido comercializado pela mídia como
objeto, seja pela representação social que as olham como
“passistas de escola de samba” ou pelo seu oposto não
glamourizado, a imagem da empregada doméstica. Nessa
linha, seus traços não representam o padrão de beleza
socialmente aceito, fazendo com que essa mulher tente se
moldar e se aproximar de um processo de embranquecimento
para se sentir aceita. Tal fenômeno gera muitas vezes angústia e
baixa autoestima (TEIXEIRA; QUEIROZ, 2017).
Esse corpo vem carregado de aspectos físicos,
psicológicos e sociais. As marcas vieram e continuam se
perpetuando ao longo dos anos, deixando cicatrizes
irreparáveis. É um corpo que é diminuído e que
constantemente está à mercê da dominação e visto de forma
negativa, porém vem lutando todos os dias para ter voz,
respeito e direitos e deveres iguais.
Em nossa escrita, a palavra “negra(o)” ao longo é
substituída por “” devido ao fato de que em diversas situações

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

a primeira é associada a algo negativo, ruim. Vemos como as


pessoas se referem à palavra preta (o) que, em suas variadas
formas, remete a aspectos considerados positivos.
Em termos históricos, iniciando-se pelo período
escravocrata, a mulher preta era vista como objeto, nessa
condição além de ser açoitada e mutilada, também era
estuprada, enquanto a mulher branca, senhora da casa grande,
era vista como casta. Além de sofrer abuso sexual e maus-
tratos, era frequente a venda de seus filhos e filhas de pele
escura, já que crianças escravas e animais eram colocados no
mesmo patamar pelos brancos. Existiam também as escravas
consideradas reprodutoras, ou amas de leite, que davam à luz
quantas vezes o corpo permitisse (DAVIS, 2016).
No Brasil, antes da Abolição, o Estado começou a tomar
iniciativas legislativas que acabaram propiciando a
marginalidade de homens e mulheres pretos(as). Em 1824, foi
criada uma lei proibindo os pretos de estudarem. Em 1850, as
pessoas são proibidas de comprarem terras, principalmente os
pretos e os indígenas (SANTOS, 2014).
Após Abolição da escravidão, mulheres e homens
pretos(as) ficaram sem educação, sem trabalho e sem terras.
Depois desse período, o homem preto passou a ser visto como
preguiçoso e vadio e a mulher preta como prostituta,
empregada, macumbeira, além de ser hiperssexualizada,
configurando-se, assim, em um racismo estrutural.
De acordo com o Censo Demográfico do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2010, havia
3,67% de mulheres de cor preta, totalizando 6.991.350. A
população brasileira possui uma variedade de etnias, na qual
podemos encontrar índios, pretos, brancos e pardos. Segundo o

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

IBGE, entre 2012 e 2016, houve um crescente de 3,4% da


população, resultando em 205,5 milhões de pessoas. Através
dessa pesquisa, foi possível demonstrar que as pessoas que se
declararam brancas tiveram uma queda de 46,6% para 44,2%, já
as que se declaram pardas cresceu de 45,3% para 46,7, e os
pretos de 7,4% para 8,2% (IBGE, 2019).
Percebe-se com esses dados o aumento de pessoas
declaradas pardas e pretas, fruto talvez de uma maior discussão
e esclarecimento sobre o que é racismo. Antes, pessoas não-
brancas, mas de tonalidades “mais claras”, se declaravam
brancas por uma não aceitação e para se afastar de qualquer
ligação à pessoa preta.
O mito da democracia racial conhecido pelos brasileiros,
é aquele onde se coloca que não existe distinção ou privilégio
pela a raça, que somos uma nação mestiça. Com isso vemos que
a existência do racismo é negada constantemente (FERREIRA,
2019).
Sobre essa questão, uma pesquisa realizada pela
Universidade de São Paulo (USP) aponta que 97% dos
brasileiros afirmam não serem racistas, porém admitem
conhecer pessoas que são (RUFFATO, 2014). Nota-se que a
discriminação sempre vem do Outro, dificilmente encontramos
uma pessoa se assumindo racista.
Por diversos motivos, o racismo no Brasil foi e continua
sendo velado. Quando o discurso se dirige a alguém com uma
tonalidade preta “mais clara”, conhecido como moreno, pardo
ou mulato, isso chega de forma sutil. No entanto, quando se
tem a tonalidade “mais escura”, o preconceito vem de forma
mais incisiva e agressiva.

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

Em diversas situações do cotidiano percebemos que as


mulheres pretas têm sido discriminadas por seus traços físicos.
É comum vermos o corpo da mulher preta sendo usado para
fantasias de carnaval, conhecido como blackface, cuja proposta é
a de reforçar um estereótipo racista, pois busca representar de
forma negativa as pessoas pretas, gerando, assim, uma forma
de exclusão (RIBEIRO, 2018).
Para discutirmos sobre a mulher é importante também
refletirmos acerca do feminismo e suas nuances. O feminismo é
um movimento político e social que visa a igualdade de direitos
entre homens e mulheres, além de lutar contra a discriminação
e a opressão que as mulheres sofrem historicamente. No Brasil,
existem várias ramificações desse movimento, como a luta
contra a violência, a orientação sexual e entre outros (PINTO,
2010). Contudo, o que está sendo abordado neste artigo é tanto
o feminismo hegemônico, conhecido como branco, quanto o
feminismo negro.
Nos Estados Unidos, enquanto mulheres brancas
lutavam pelo direito ao voto e ao trabalho, as mulheres pretas
lutavam para serem reconhecidas como pessoas (RIBEIRO,
2018). O feminismo negro passa a ganhar voz a partir da
segunda onda do feminismo, no período de 1960 e 1980, nos
Estados Unidos, no qual se passou a criar uma literatura
especializada sobre o assunto.
No Brasil, a primeira vertente do feminismo
hegemônico se dá no século XIX, aproximadamente nos anos
1930, na qual a luta estava direcionada para o direito ao voto e à
vida pública. O feminismo negro começa a ser discutido e a
ganhar força no final da década de 1970. Ao invés de
reconhecer seus privilégios, as feministas brancas ainda

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

encaram o movimento preto como “birra e disputa”,


provocando, dessa maneira, opressão (RIBEIRO, 2018).
As mulheres pretas sempre trabalharam e exerceram o
papel que a sociedade destinou aos homens, como, por
exemplo, sair de casa para trazer sustento para a família,
enquanto muitas mulheres brancas encontravam-se no lar
fazendo serviços domésticos e cuidando dos filhos (DAVIS,
2016).
Nesse contexto, indaga-se: Qual é o olhar da sociedade
sobre esse corpo preto? Essas indagações, somadas ao interesse
pessoal pelo assunto, nos motivou a desenvolver esta pesquisa
cujo objetivo é o de conhecer as marcas socialmente e
psicologicamente criadas durante a história dessas mulheres.
Uma das autoras desse trabalho, enquanto mulher preta
ressalta a escassez dessa temática na academia e uma falta de
representatividade nesse espaço no qual se discute os mais
variados assuntos.
A finalidade deste trabalho é trazer esse tema para o
meio acadêmico, prioritariamente para a psicologia , a fim de
compreender os contornos dados no modo de tratamento desse
corpo, as formas de carregá-lo e desenvolvê-lo. Saber como o
corpo da mulher preta está inserido e em quais aspectos ele
vem sendo reconhecido na sociedade atual.
Diante do exposto, o objetivo geral deste artigo é o de
compreender, nas publicações científicas, a percepção do corpo
preto feminino na sociedade brasileira atual. Já os objetivos
específicos são os seguintes: identificar as formas estruturais de
racismo no Brasil; diferenciar os aspectos do feminismo
hegemônico e do feminismo negro brasileiro; descrever o olhar
sobre o corpo preto feminino.

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Gênero, mulheres, raça e
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METODOLOGIA

Foi realizado um estudo bibliográfico de análise


qualitativa e natureza exploratória. Caracteriza-se como uma
pesquisa bibliográfica na medida em que se baseia em estudos e
materiais já publicados sobre a temática em questão, tanto
obras de leitura corrente, como romance, poesia, literatura entre
outros, quanto a leitura de obras de divulgação acadêmica cuja
proposta é abordar tal temática de forma científica e técnica.
Esse tipo de pesquisa será empregado pela facilidade de
obtenção das informações em diversas tipologias de
documentos já publicados (GIL, 2010).
A natureza exploratória da pesquisa se justifica na
investigação não-sistemática, a qual possibilita uma maior
liberdade na construção do trabalho e da familiaridade com o
tema em estudo (COZBY, 2003).
A pesquisa foi realizada no período de fevereiro a
novembro de 2019. Foram tomados como critérios de inclusão:
publicações de artigos científicos, teses, dissertações,
monografias e livros publicados no período de 1988 a outubro
de 2019, no idioma português. O parâmetro adotado para a
coleta desse material é a relação que ele mantém com a temática
da escravidão, do racismo e do feminismo negro.
Não foram considerados trabalhos e publicações escritas
em idioma estrangeiro, pagos, incompletos, repetidos e aqueles
que abordavam o tema do machismo e do racismo masculino.
Para a busca e a identificação do material de análise foram
utilizadas a biblioteca virtual Google Acadêmico e as bases de
dados Scielo e Pepsic, uma vez que ambas são amplas e

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

gratuitas. Nas duas últimas fontes de pesquisa foram utilizados


os seguintes descritores: escravidão; feminismo; negro; mulher;
racismo.
O método de análise utilizado foi o da abordagem
qualitativa, tendo como aprofundamento a compreensão sobre
conhecimentos e na exposição de seus diversos significados,
gerando uma pesquisa com características singulares, na qual
foram construídas as categorias temáticas após uma leitura
crítica-reflexiva. Dessa forma, a análise irá depender do modo
como a extensão do material encontrado foi sendo estruturado,
categorizado, interpretado e redigido (GIL, 2010).
A seguir, encontram-se os resultados a partir dos
descritores encontrados nas bases de dados, apresentando os
resultados dos materiais disponíveis, a filtragem a partir das
leituras e o resultado final dos materiais utilizados no artigo.
Figura 1 - Fluxograma.

Bases de
Dados
PePSIC
Scielo
55 artigos
103 artigos

Após a leitura dos resumos dos materiais:


2 artigos
Após a leitura na íntegra:
14 artigos

5 artigos

Fonte: Elaboração própria.

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

Tabela 1 - Material selecionado para análise (artigos).


Autores Ano Titulo Base
CARDOSO, Cláudia 2014 Amefricanizando o feminismo: o Scielo
Pons. pensamento de Lélia Gonzalez
DAMASCO, 2012 Feminismo negro: raça, identidade Scielo
Mariana Santos; e saúde reprodutiva no Brasil (1975-
MAIO, Marcos 1993)
Chor; MONTEIRO,
Simone.
MASIERO, André 2005* A Psicologia racial no Brasil (1918- PePSIC
Luís. 1929)
NUNES, Sylvia da 2006* Racismo no Brasil: tentativas de PePSIC
Silveira. disfarce de uma violência explícita
WESCHENFELDER, 2019 Tornar-se mulher negra: escrita de Scielo
Viviane Inês; si em um espaço interseccional
FABRIS, Elí
Terezinha Henn.
Fonte: Elaboração própria

Os livros utilizados para a construção deste artigo


foram: “Mulheres, raça e classe” (2016), de Angela Davis; O que
é racismo estrutural? (2018), de Silvio Almeida; “Para uma
história do negro no Brasil” (1988), da Biblioteca Nacional;
“Quem tem medo do feminismo negro?” (2018), de Djamila
Ribeiro.
De posse do material selecionado, a partir dos critérios
acima citados, passamos à leitura na íntegra e os achados da
busca serão estruturados no tópico a seguir.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Para uma melhor compreensão dos objetivos, percorreu-


se um caminho histórico e cronológico para que se possa
entender de que forma se deu o processo da construção do

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

olhar sobre corpo da mulher preta. É interessante pontuar


desde o período escravocrata aos dias atuais para que se possa
enxergar como veio ocorrendo suas conquistas, lutas e
violências, sendo elas físicas, psicológicas e sociais.

PERÍODO ESCRAVOCRATA

Durante um extenso período da nossa História, a


escravidão se fez presente na vida dos pretos. Não existindo
registros exatos para a chegada dos primeiros escravos
africanos no Brasil, é difícil afirmar com precisão como se deu o
seu início, o seu processo e o seu fim.
Diante da dificuldade de encontrar materiais atuais
sobre o período escravocrata no Brasil, foram utilizados sites e
documentos antigos para melhor contextualização e
compreensão de informações sobre essa época na qual os pretos
viveram e que, muitas vezes, é empurrada para a “vala do
esquecimento”.
A data de 1538 torna-se a mais aceitável para marcar o
início da escravidão no Brasil, já que foi nesse ano que Jorge
Lopes Bixorda, locatário de pau-brasil, teria traficado os
primeiros escravos para a Bahia. Retirados de seu continente à
força e trazidos para a América, muitos deles morriam durante
a viagem por conta das doenças, da fome e dos maus tratos e
das condições desumanas vividas nos grandes navios
(GELEDÉS, 2012).
Tendo seus corpos objetificados, tais indivíduos
passaram a ter proprietários e, consequentemente, a serem
alugados, emprestados, vendidos como um produto. Seu peso
foi equiparado a de uma mercadoria qualquer, exercendo as

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

funções de ferramentas e de animais de criação, como se fossem


gado (NUNES, 2006).
Despreocupado com a reprodução biológica dos
escravos pretos, o Brasil tornou-se na época o maior importador
de escravos das Américas. Teria chegado em terras brasileiras
cerca de 3.650.000 escravos, sendo as principais áreas
fornecedoras de escravos Guiné e Sudão, ao norte da linha do
Equador, o Congo e Angola, no centro e sudoeste da África, e a
região de Moçambique, na costa oriental (BIBLIOTECA
NACIONAL, 1988).
Os que sobreviviam à viagem eram separados de seus
grupos de origem e misturados com outras tribos, o intuito
disso era o de dificultar ou mesmo encerrar a comunicação
entre eles. Sem direito nenhum, os escravos passaram a servir
de mão-de-obra em plantações de algodão, de cana-de-açúcar e
de tabaco, nos engenhos e, mais adiante, nas vilas e cidades, nas
minas e nas fazendas de criações de gado. Tudo realizado
conforme aquilo que lhe fosse determinado sob ameaças,
humilhações e castigos violentos (GELEDÉS, 2012).
Os senhores de engenho e responsáveis pela produção
do trabalho escravo demonstravam atos de crueldade chegando
mesmo a praticar atos de tortura por meio de cortes, nomeados
de “anavalhamento”. Após os ferimentos, jogava-se salmoura
nos locais atingidos. Também aconteciam mutilações e
marcações a ferro em brasa, castrações, marteladas, e no caso
das pretas, estuprados. Costumeiramente, na região sul do
Brasil, os pretos eram atados a travas horizontais de cabeça
para baixo, completamente pelados, ao final desse ato violento
eram embebidos com salmoura ou mel para que os insetos
viessem a picar-lhes o corpo (GELEDÉS, 2012).

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

No que diz respeito aos escravos pretos domésticos,


esses eram escolhidos por serem de modo geral mais sociáveis.
Eles atendiam praticamente a todo o serviço das casas grandes
e residências urbanas: carregavam água, retiravam o lixo,
transportavam fardos e os seus proprietários em redes, cadeiras
e palanques (BIBLIOTECA NACIONAL, 1988).
As mulheres tinham seus corpos explorados em
trabalhos cansativos que não eram de sua propriedade. Além
das humilhações, eram vítimas de abusos sexuais, violências
físicas e emocionais. A miscigenação dos povos nasce daí, desse
estupro. As escravas de pele clara eram mais comuns sofrer
esse tipo de violência, com traços de branquitude e que
trabalhassem na casa grande (RIBEIRO, 2018).
Como se pode notar, ainda existe uma escassez de
material sobre o modo como viviam especificamente as
mulheres pretas no período escravocrata no Brasil. Em sua
maioria, esse assunto era abordado a partir da “união” de dois
indivíduos (homem e mulher). Foi possível estudar como se
deu a vivência desse corpo de forma mais nítida no período
escravocrata dos Estados Unidos da América (EUA), com a
escritora Angela Davis, que aborda o cotidiano dessas mulheres
nessa época.
Com o crescimento do tráfico negreiro, nos anos de
1700, os escravos já eram a maior parte da mão-de-obra do
EUA, diminuindo, dessa forma, os trabalhadores contratados.
O período escravocrata nos EUA teve início no século XVII,
apresentando uma alta demanda no Estado da Virginia
(MORGAN, 2000).
Ao serem tirados de sua terra natal, eles/elas passam a
ser traficados(as) e vendidos(as), pois o sistema os marcava

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77
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

como propriedades de seus senhores. Para os donos de


escravos, as mulheres eram vistas como unidades de trabalho
lucrativas, podendo ser desprovidas de gênero.
Com o crescimento da ideologia da feminilidade
durante o século XIX, a qual realçava a função das mulheres
como mães cuidadoras, companheiras e donas de casa para
seus maridos, as mulheres pretas não se encontravam inseridas
nesse contexto, uma vez que eram vistas como anormais
(DAVIS, 2016).
Existia naquele período uma diferença nos EUA entre os
Estados localizados na fronteira entre o Norte e o Sul do país
com o extremo Sul. Uma grande parcela das escravas realizava
serviços domésticos, enquanto no extremo Sul, onde se
localizava o verdadeiro núcleo do escravismo, predominavam
as escravas agrícolas. A maioria das escravas trabalhava em
lavouras. Ao atingir certa idade, as meninas passavam a serem
chamadas para trabalhar na terra, coletar, cortar e colher
(DAVIS, 2016).
Trabalhando sob ameaças e agressões, a opressão vivida
pelas mulheres era semelhante àquela sofrida pelos homens
negros escravizados quando se tratava de força, produtividade
e trabalho. Agindo por conveniência, quando as mulheres eram
fonte de lucros como os homens, os senhores as viam como
desprovidas de gênero.
No entanto, quando era possível explorá-las, puni-las e
reprimi-las, essas mulheres eram vítimas de maus-tratos
desumanos, abusadas sexualmente e reduzidas à condição de
fêmeas (DAVIS, 2016).
Diante da abolição do tráfico internacional de mão de
obra escrava, a indústria do algodão sentiu-se ameaçada e os

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

donos de escravos contavam com a reprodução natural para


repor e aumentar o número de escravos(as). Com isso, as
escravas passaram a ser valorizadas pela sua eficiência
reprodutiva. O objetivo era a ampliação da força de trabalho
escravo. Assim, aquela que tivesse capacidade para ter acima
de dez filhos era bastante valiosa.
O valor das escravas dependia da sua capacidade de
procriar. Os donos procuravam se assegurar que elas dessem à
luz quantas vezes biologicamente fosse possível, sendo
classificadas como reprodutoras ou amas de leite e não como
mães. Seus filhos eram ser vendidos e separados, pois elas não
tinham nenhum direito legal sobre as crianças. Ao nascer, eram
valorizados como “bezerros recém-nascidos” (DAVIS, 2016).
Seria muito reducionista deduzir que os estupros
praticados durante o período escravocrata pelos homens
brancos contra as mulheres negras escravizadas eram apenas
uma manifestação de seus desejos sexuais reprimidos pela
feminilidade casta das mulheres brancas. Pelo contrário,
“o estupro era uma arma de dominação, uma arma de
repressão, cujo objetivo oculto era aniquilar o desejo das
escravas de resistir e, nesse processo, desmoralizar seus
companheiros” (DAVIS, 2016, p. 36).
Há muitos relatos de escravos dos EUA no século XIX
que narram a violência sexual pela qual as mulheres sofriam de
seus proprietários e isso não é um fato isolado. Escritores
tentam amenizar ou romantizar os fatos, a ponto de afirmarem
que havia consentimento das escravas, logo, era a miscigenação
das raças (DAVIS, 2016).
Em 1863, por conta de conflitos entre o Norte e o Sul do
país, ocorreu a abolição dos escravos nos EUA a partir da

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

Proclamação de Emancipação de Abraham Lincoln, momento


no qual o país estava passando por uma Guerra Civil
(CHECCO, 2010).
Enquanto nos EUA os escravos estavam sendo
abolidos, no Brasil ainda estávamos vivendo o período
escravocrata. Antes de abolir a escravidão, o governo
paulatinamente retirou os direitos dados aos cidadãos dos
escravos, deixando-os sem recurso algum para se manterem e
poder ressignificarem suas vidas após a libertação.
Em 1838, o governo de Sergipe proibiu que portadores
de doenças contagiosas e africanos, escravos ou não,
frequentassem as escolas públicas. Em 4 de setembro de 1850, a
Lei Euzébio de Queiroz é editada, pondo fim ao tráfico de
escravos intercontinental. No mesmo ano, é editada a Lei da
Terra, que proibia a ocupação de terras no Brasil. Para possuir
terra era necessário comprá-la do governo. Em 1854, é lançado
o decreto que proibia o preto de aprender a ler e escrever.
Somente em 13 de maio de 1888 é decretada a Lei Áurea, a qual
abolia a escravidão no Brasil (GELEDÉS, 2012).
Por mais que tenha ocorrido a libertação dos escravos, a
população preta ficou marcada de diversas formas por todas as
atrocidades vividas durante décadas de escravidão. É possível
enxergarmos como o racismo vai se estruturando e se
apresentando depois do período escravocrata.

RACISMO ESTRUTURAL

Para compreendermos o racismo estrutural é necessário


observar e comentar o modo como ele se deu e suas formas de
atuação no presente, pois esse movimento perpassa aspectos

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

históricos, econômicos, educacionais, políticos e sociais de um


país.
De acordo com Nunes (2006, p. 89) “a ambigüidade
presente no pós-abolição – ao negro não é negado o direito de
ser livre, mas lhe são negadas condições dignas de vida”. Tendo
seus direitos arrancados antes mesmo da Lei Áurea, o sujeito
negro fica sem nenhuma assistência.
Então, o Estado passa a criar um sistema estruturado de
leis no qual são excluídos quaisquer direitos para os escravos.
Mulheres e homens negros(as) ficam sem nenhum tipo de
educação, terras e trabalho, sendo substituídos pela mão de
obra europeia, formada em sua maioria por alemães e italianos.
“Mesmo após a abolição do sistema escravocrata em 1888, o
racismo foi conservado nas práticas sociais e nos discursos, mas
sem ser reconhecido pelo sistema jurídico” (FERREIRA, 2018, p.
194).
Com isso, os negros passam a ser perseguidos de
diversas maneiras, uma dessas perseguições é a interdição da
capoeira. Em 11 de outubro de 1890, é decretada a Lei n. 487,
lavrada por Sampaio Ferraz. De acordo com o decreto, no livro
III, capítulo XIII, tratava-se “Dos vadios capoeira”. Disserta-se
no Art. 402:

Fazer nas ruas e praças públicas exercícios de agilidade e


destreza corporal conhecidos pela denominação capoeiragem;
andar em correrias, com armas ou instrumentos capazes de
produzir uma lesão corporal, provocando tumultos ou
desordens, ameaçando pessoa certa ou incerta, ou incutindo
temor de algum mal (BRASIL, 1890, p. 2664).

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

A sua pena era efetuada por meio de prisão celular,


variando de dois até seis meses.
Após 131 anos de abolição ainda podemos ver as marcas
que a escravidão dos pretos deixou neste país. Todo esse
percurso vivido fez com que o racismo fosse se estruturando
em nossa sociedade. “O racismo é uma decorrência da própria
estrutura social, ou seja, do modo “normal” com que se
constituem as relações políticas, econômicas e jurídicas e até
familiares, não sendo uma patologia social, nem um desarranjo
institucional” (ALMEIDA, 2018, p. 38).
Há quem achasse e tentasse provar à base de pesquisas
que a população branca era a “raça superior” em relação às
demais, tanto no aspecto intelectual quanto nas capacidades
físicas. Por conta da miscigenação, acreditava-se que ocorria
uma “degeneração da raça”. Os sujeitos que se encontravam na
“raça inferior” eram vistos como alcoólatras, criminosos e
doentes mentais (MASIERO, 2005).
Segundo uma pesquisa da Agência de Notícias do IBGE,
em 2016, a taxa de analfabetismo de pretos e pardos chegava a
9,9%, enquanto a dos brancos eram de 4,0%. No rendimento
médio de todos os trabalhos em 2017, os negros recebiam em
média R$ 1,570 e os brancos R$ 2,814. Sendo possível perceber
nitidamente a desigualdade social entre as raças. Ainda há
quem diga que não vivemos em um país racista (IBGE, 2018).
Com o intuito de reparar os danos causados à população
preta ao longo da história, começa-se pensar a em formas de
inclusão desses indivíduos na sociedade. Segundo Heringer e
Ferreira (2011, p. 5) “as políticas de inclusão visam promover
pessoas que pertençam a grupos reconhecidamente em situação
histórica de desvantagem”. As cotas raciais surgem nesse

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Gênero, mulheres, raça e
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contexto como uma das medidas de inserção desses jovens nas


universidades para que possam ter acesso ao ensino superior,
tendo como especificações a raça, a escolaridade (escola
pública) e a renda, fazendo com que a juventude preta possa
chegar aos espaços de educação como a Universidade.
Sendo a maioria da população brasileira preta ou parda,
ainda é possível notar a grande desigualdade na ocupação dos
diversos espaços onde essa população está ou não inserida. As
pessoas pretas têm muitas dificuldades de ocupar posições de
privilégio (CALEIRO, 2018).
Mesmo diante desses aspectos, há setores da sociedade
que consideram o sistema de cotas um retrocesso, pautando-se
no discurso de que essa ação de inclusão intensifica o racismo
contra os(as) negro(as). Pessoas que estão de acordo com essa
ideia acreditam que somos todos iguais e que para o sujeito
negro conseguir ocupar determinados espaços basta ele se
esforçar. Tal fenômeno é conhecido como meritocracia.
Acreditar que o ingresso desse sujeito na universidade
pelas cotas é uma forma injusta de inserção, é esquecer que
temos uma educação estruturalmente nada igualitária. Além
disso, um cotista só concorre com outro cotista. Isso acontece no
senso comum, na academia, em que o discurso é orientado pela
tese de que irá diminuir o nível dos cursos de graduação, no
poder judiciário e no legislativo (HERINGER; FERREIRA,
2011).
Para que haja a permanência desses jovens no espaço
acadêmico, é desenvolvido programas como o de auxílio
moradia, ajudas de custo e bolsas. Sendo em baixa escala, não
atende a todos os jovens que entram na universidade. Quando
esses auxílios não se fazem presente, dificultam a frequência

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assídua desse sujeito nas aulas, impedem a tiragem de cópia de


materiais de estudo e até a alimentação, fazendo com que não
haja uma continuidade no curso por conta das despesas (Idem,
2011).
Pelo o que já foi mencionado até aqui, percebe-se que a
população preta acaba precisando se esforçar mais para ter
visibilidade e chegar aos espaços de privilégios. Esse
movimento acaba gerando uma romantização do sofrimento.
Ao chegarem a esse lugar, ainda enfrentam o questionamento
do merecimento e a desconfiança de como conseguiram ocupar
aquele determinado espaço.
Segundo Almeida (2018, p. 40), “pensar o racismo como
parte da estrutura não retira a responsabilidade individual
sobre a prática de condutas racistas e não é um álibi para
racista”. Mesmo que indivíduos com atos racistas respondam
por seus atos violentos, isso não faz com que a sociedade pare
de reproduzir a desigualdade racial, porque ainda existe de
forma muito presente um olhar estrutural sobre as relações
raciais. Assim, com toda a pressão de uma estrutura racista, é
mais comum que o preto e a preta cresçam internalizando a
ideia de superioridade branca e de inferioridade dos pretos.
Apesar de podermos encontrar uma pequena parcela da
população preta se encontra inserida em grandes cargos, como
liderança, em universidades, como professores, por exemplo,
no entanto, o que acontece na maior parte dos casos é o extremo
contrário: a população preta ainda ocupando cargos
considerados mais baixos, com uma má remuneração, baixa
escolaridade, residindo em periferias e sendo a maior parte das
pessoas encarceradas. As mulheres pretas acabam indo para o
serviço doméstico. Enquanto isso, presenciamos uma

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Gênero, mulheres, raça e
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supremacia branca ocupando os espaços de poder e de


influência social (ALMEIDA, 2018).
Por não tomarem o devido cuidado, as instituições de
uma sociedade na qual o racismo já se faça presente
historicamente, com os seus problemas de desigualdades
raciais, serão aquelas que irão reproduzir costumes racistas, os
quais passam a ser considerados “normais”. Dessa forma,
“Entender que o racismo é estrutural, e não um ato isolado de
um indivíduo, nos torna ainda mais responsáveis pelo combate
ao racismo e aos racistas” (Idem, 2018, p. 40).
As instituições que realmente se preocupam com o
problema histórico e cultural da desigualdade racial devem
investir nas políticas internas de forma a promover a igualdade,
a diversidade, o acolhimento, buscando, assim, remover os
obstáculos para que o sujeito preto possa chegar a cargos de
direção (Ibdem, 2018).
As marcas do racismo estrutural são deixadas nos mais
diversos âmbitos da nossa sociedade. Isso reflete também nos
movimentos sociais, como é o caso do feminismo. Observamos
uma grande massa branca lutar por direitos, mas não
discutindo sobre questões raciais e saber em quais espaços esse
corpo político preto está atuando. Por falta de amparo do
feminismo hegemônico, surge o feminismo negro, no qual as
mulheres pretas passam a reivindicar seus direitos.

FEMINISMO NEGRO

Sendo um movimento social, o feminismo negro é


protagonizado por mulheres pretas com o propósito de trazer e
promover visibilidade às suas questões e requerer os seus

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direitos. Sendo assim, esse movimento passa a ganhar voz


a partir da segunda onda do feminismo, no período de 1960 e
1980, nos Estados Unidos, onde se iniciou a criação de uma
literatura especializada sobre o assunto e a denunciar a
invisibilidade das mulheres negras como sujeitos do feminismo.
Enquanto as mulheres brancas lutavam pelo direito ao voto e
ao trabalho, as mulheres pretas lutavam para serem
reconhecidas como pessoas (RIBEIRO, 2018).
Alguns anos anteriores ao marco do feminismo negro, já
existia uma abolicionista afro-americana e ativista dos direitos
da mulher que havia sido escrava e se tornou oradora, Isabella
Baumfree, mais conhecida, a partir de 1843, por Sojourner
Truth, que realizou um discurso na Convenção dos Direitos das
Mulheres, em Ohio, intitulado “Não sou eu uma mulher?”
Em um dos trechos do discurso, Truth (1851 Apud
RIBEIRO, 2018, p. 51-52) afirma que:

Aquele homem ali diz que é preciso ajudar as mulheres a subir


em uma carruagem, é preciso carregá-las quando atravessam
um lamaçal e elas devem ocupar sempre os melhores lugares.
Nunca ninguém me ajuda a subir em carruagem, a passar por
cima da lama ou me cede o melhor lugar! E não sou uma
mulher? Olhem para mim! […] Pari cinco filhos e a maioria
deles foi vendida como escravos. Quando manifestei minha dor
de mãe, ninguém, a não ser Jesus, me ouviu! E não sou uma
mulher?

Existia uma diferença entre a mulher branca e a mulher


preta no sentindo dessa segunda ser invisibilizada, tendo
diferentes desigualdades de gênero social. Partindo da
constatação que o movimento feminista era composto por
mulheres brancas, Truth então indaga as demandas desse

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Gênero, mulheres, raça e
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movimento, gerando uma nova visão sobre aquele sujeito


político (WESCHENFELDER; FABRIS, 2019).
As mulheres pretas escravizadas eram vistas como seres
não humanos. Humanos e civilizados eram os seres ocidentais.
O detentor do saber e do poder era o homem branco cristão,
europeu e heterossexual. As escravas eram vistas como animais
e logo julgadas como promiscuas, fontes de pecados e
altamente sexuais, enquanto as mulheres brancas eram notadas
por sua pureza, sexualmente falando (LUGONES, 2014).
O feminismo hegemônico começou a ganhar espaço no
Brasil no início do século XIX, chamado de primeira onda. O
foco das exigências dessa onda estava no direito ao voto e à
vida pública. Com o surgimento da Fundação Brasileira pelo
Progresso Feminino, em 1922, um dos propósitos centrais era
exigir que as mulheres pudessem trabalhar sem a autorização
do companheiro (RIBEIRO, 2018).
A segunda onda do feminismo surge no período da
ditadura, no início da década de 1970, em que as mulheres se
engajaram na luta contra o regime militar. Lutavam pelo o
reconhecimento do trabalho, pelo direito do prazer e combate à
violência sexual. Na terceira onda, no começo dos anos de 1990,
passam a ter como pauta a micropolítica.
No Brasil, o movimento se dá a partir do final da década
de 1970 e início dos anos de 1980, quando uma forte demanda
de mulheres pretas lutava para que fossem sujeitos políticos. De
acordo com Ribeiro (2018, p. 45), “desde a década de 1970,
militantes negras estadunidense como Beverly Fisher
denunciavam a invisibilidade das mulheres negras dentro da
pauta de reivindicações do movimento”.

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Gênero, mulheres, raça e
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A falta de representatividade em movimentos sociais


hegemônicos se tornava um problema. Os movimentos
feministas hegemônicos “esqueciam” as questões raciais,
deixando que o próprio movimento tivesse muitas contradições
e ambivalências, impossibilitando possíveis acordos
(CARDOSO, 2014).
Tendo as diferenças de classes, raças e etnias, a
interseccionalidade se faz presente. Com o intuito de produzir
aberturas em discursos que só focalizavam apenas um lado da
diferença social, notamos a utilização de jogos de poder, formas
de dominação e opressão (SILVEIRA; NARDI, 2014).
Lélia Gonzalez é uma das pioneiras sobre a discussão da
intersecção e da descolonização do feminismo. Segundo
Cardoso (2014, p. 974):

Lélia Gonzalez antecipa o debate atual sobre a universalidade


da categoria mulher e as relações de gênero decorrentes desta
concepção, ao defender a existência de uma dimensão de
discriminação, de violência e de exclusão, invisível às
abordagens de gênero desvinculadas de raça/etnia.

É realizado, em 1985, o III Encontro Feminista Latino-


Americano, no qual se fizeram presentes 850 mulheres, das
quais 116 se declararam negras e mestiças. Havia mulheres
pretas de vários países discutindo sobre a relação entre
feminismo e racismo (RIBEIRO, 1995). O intuito era de
conseguir visibilidade política no campo feminista.
No mesmo período, cresceu por todo o país encontros e
seminários organizados por mulheres negras cujo intuito era o
de consolidar e aprofundar o olhar típico de subordinação e

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Gênero, mulheres, raça e
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discriminação marcado pelo preconceito racial (MELO;


SCHUMAHER, 2017).
Em 1988, ocorreu o I Encontro Nacional de Mulheres
Negras, um ano após o 8º Encontro Nacional Feminista, em
Garanhuns (PE). Estavam presentes nesse evento cerca de 400
mulheres pretas de diversos Estados. O encontro se passou em
Valença, no Rio de Janeiro (RIBEIRO, 1995).
É de grande importância abordar como se deu o
nascimento do feminismo negro e a constante luta que ele vem
travando na busca por direitos que pertencem às mulheres
pretas e o reconhecimento desse corpo que, sim, é político.
Refletir acerca do feminismo negro é pensar o peso que esse
corpo traz, das marcas que ele carrega e das violências que lhe
são acometidas.

O CORPO DA MULHER PRETA

Com o passar das décadas, o corpo da mulher preta


ainda carrega o peso e as marcas feitas brutalmente no período
escravocrata. Na maioria das vezes, a mulher negra escravizada
é encontrada em situações de inferioridade, subserviência e
vista como exótica. É possível encontrarmos várias vertentes
quando se fala desse corpo.
É um corpo que passa por grandes violências durante
sua historicidade. Em termo de Brasil, na década 1980,
mulheres pretas tinham seus corpos violentados pela medicina,
com o apoio de governantes. O intuito era o de controlar a
natalidade da população preta, sendo essas mulheres vítimas
de esterilização. O discurso que fundamentava essa prática
criminosa era o de defesa e controle da população, pois temiam

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Gênero, mulheres, raça e
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o aumento da miséria no país (DAMASCO; MAIO;


MONTEIRO, 2012).
A mídia vende um padrão de beleza, no qual a mulher é
branca, de cabelos lisos e loiros, traços afilados e de olhos
claros. Esse é o padrão de beleza ideal. Com isso, torna-se mais
difícil ver mulheres pretas exercendo papéis de protagonismo,
por exemplo. Para se sentirem pertencentes, muitas mulheres
pretas alisam os seus cabelos e se permitem passar por outros
procedimentos estéticos, para ter o sentimento de visibilidade e
feminilidade vigente na sociedade.
Os traços considerados mais largos, o cabelo crespo,
passam a ser criticados no nosso cotidiano. Entretanto, no
carnaval, todos esses aspectos da negritude se tornam fantasias.
Nessa época, é comum de se ver pessoas pintando seus rostos
de preto, usando batom vermelho de forma extravagante para
aumentar os lábios, fazendo referência as bocas carnudas do
povo preto e usando perucas afro (RIBEIRO, 2018).
Por outro lado, esse mesmo corpo se torna máquina de
lucro quando está inserido no samba por ter seus contornos
mais robustos. Na década de 1990, surgiu a mulata
“Globeleza”, apresentada de forma nua, com o corpo coberto de
purpurina. Em decorrência disso, a mulher preta também passa
a ser estereotipada como passista de escola de samba.
Segundo Cardoso (2014, p. 976), “a mulata acolhe dois
significados, o tradicional, resultante da mestiçagem; e outro,
atualizado pela exploração econômica, no qual representa
“mercadoria, produto de exportação”. A mulher preta tem seu
corpo equiparado a um objeto de prazer, sendo
hiperssexualidada e cujos corpos são os mais violados e

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Gênero, mulheres, raça e
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violentados, tanto no ambiente doméstico quanto na violência


sexual.
Na literatura brasileira, a mulher preta aparece por
diversas vezes como alguém sensual, como um ser “fácil”,
sempre disponível. Em “Gabriela, cravo e canela”, obra de
Jorge Amado (1959), o narrador conta que

Seu Nacib era para casar com moça distinta, toda nos
“brinques”, calçando sapato, meia de seda, usando perfume.
Moça donzela, sem vício de homem. Gabriela servia para
cozinhar, a casa arrumar, a roupa lavar, com homem deitar.
Não velho e feio, não por dinheiro, por gostar de deitar
(AMADO, 1959, p. 181-182).

Ou seja, a mulher preta ainda não é vista como alguém


para se casar, constituir família, mas apenas para a força de
trabalho e para finalidades sexuais. Quando existe a união
entre um casal composto por uma mulher preta e um homem
branco, por exemplo, é frequente a não aceitação da família
dele, por causa de todos os estigmas que acompanham esse
corpo (TEIXEIRA; QUEIROZ, 2017).
É um processo doloroso aceitar a pessoa que você é, os
seus traços, cabelo e diversidades, principalmente em uma
sociedade em que o belo é o oposto de você. Desse modo, a
mulher preta fica sempre em segundo plano, desassistida.
Podemos perceber a forma que seu corpo é transformado em
um mero objeto, usado até se esgotar, vítima de violações de
todas as formas possíveis, e tornado fonte de lucro quando se é
conveniente para uma sociedade extremamente racista.
Simone de Beauvoir, em sua frase mais célebre, afirma
que “Não se nasce Mulher, torna-se Mulher”. Quando

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transpomos essa reflexão para a realidade, notamos que não


isso não engloba todas as mulheres. Lélia (1988, p. 2 Apud
CARDOSO, 2014, p. 973) assevera que

[...] quando esta [Simone de Beauvoir] afirma que a gente não


nasce mulher, mas que a gente se torna (costumo retomar essa
linha de pensamento no sentido da questão racial: a gente nasce
preta, mulata, parda, marrom, roxinha, etc., mas tornar-se
negra é uma conquista). Se a gente não nasce mulher, é porque
a gente nasce fêmea, de acordo com a tradição ideológica
supracitada: afinal, essa tradição tem muito a ver com os
valores ocidentais.

Vir a se tornar mulher preta é reconhecer seu corpo e a


história que sua cor carrega, é aceitar suas diferenças e enxergar
suas singularidades. É enfrentar cotidianamente um sistema
racista e sexista que constantemente oprime esses corpos.
Tornar-se mulher preta é resistência política, rompendo a
branquitude que nos é imposta durante várias gerações.
As práticas de racismo causam sérios danos psicológicos
pela a relação de poder que elas forçosamente estabelecem: o
colonizador e o colonizado. Para lidar com esse corpo, com essa
mulher preta que tem uma vivência atravessada por uma
sociedade racista, é importante que a (o) psicóloga (o) tenha um
olhar aprofundado sobre as questões raciais, sociais e uma
escuta aguçada e apurada.
Geralmente, percebemos que as graduações de
psicologia não dão os subsídios necessário para que os
profissionais saibam lidar com as violações feitas ao corpo da
mulher preta. As violências são diferentes quando se trata de
raça. Sendo um curso historicamente elitista e branco, a questão

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Gênero, mulheres, raça e
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racial ainda não é uma prioridade. Predominantemente os


materiais do curso são de teóricos europeus ou americanos, na
sua grande maioria homens, fazendo com que outros saberes
sejam esquecidos ou até mesmo excluídos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente artigo teve como objetivo geral compreender


a percepção do corpo preto feminino na sociedade brasileira
atual. Os objetivos específicos foram: apresentar o período
escravocrata no Brasil e nos Estados Unidos; identificar as
formas estruturais de racismo no Brasil; diferenciar os aspectos
do feminismo hegemônico e do feminismo negro brasileiro;
descrever o olhar sobre o corpo preto feminino.
Ao sentirmos dificuldades de encontrar artigos que
focalizassem a vivência das mulheres pretas no período
escravocrata no Brasil, recorremos a uma escritora estrangeira
que nos apresentou de forma mais nítida como se deu a
escravidão nos EUA. Acreditamos que alcançamos os objetivos
propostos, mesmo com lacunas em relação ao contexto
brasileiro. Notamos que esse corpo preto é marcado pelo tempo
e pela crueldade dos seus colonizadores, sem ter sequer seus
direitos resguardados. Por muito tempo a mulher preta é vista
como uma máquina reprodutora de outros corpos pretos, não
tendo o direito de criar seus filhos, pois eram vendidos como
animais.
Mesmo tendo suas cartas de alforria formal, a população
preta não ficou livre do racismo que veio se estruturando ao
longo da história. A comunidade preta tem ainda hoje a maior
taxa de analfabetismo, desemprego, falta de moradia e maiores

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ocupações em penitenciárias. O Brasil precisa repensar e pôr em


prática políticas de inclusão para que essa população alcance
espaços de privilégio.
Há uma limitação de materiais com fundamentação
acadêmica que aprofundem sobre o que é o feminismo negro e
quais as pautas que ele vem lutando. É mais comum que essas
informações cheguem ao público por via de redes sociais, sites,
vídeos (canais do Youtube ou em programas de TV) que
abordem sobre as diversidades.
O olhar que se tem para o corpo da mulher preta é de
passividade, hiperssexualização e de objetificação. É preciso
que desmitifiquem o olhar sobre esse corpo, já que ele sofre
diversas violências, como: doméstica, estética, médica, sexual e
verbal. Em sua grande maioria, a mulher preta se molda a um
padrão de beleza para se sentir aceita e evitar viver a solidão
por causa da sua cor.
A graduação de Psicologia, de uma forma geral, não
prepara os futuros profissionais para atender pessoas vítimas
de racismo e de trabalhar de forma crítico-reflexiva o olhar
preconceituoso da sociedade. Por ser um curso
predominantemente elitizado e composto por brancos, as
questões raciais não chegam a ser prioridades. Quem cuida da
saúde mental da população preta? E como se dão essas práticas
de cuidado? Para uma melhor formação, seria interessante mais
grupos de estudos, disciplinas no currículo do curso de
psicologia que abordassem as temáticas do racismo, para com
isso tentar entender de que forma ele ocorre, como reconhecer
situações de discriminação e de como cuidar desse sujeito.
Discutir sobre o feminismo negro na universidade, nos
grandes centros urbanos e nas periferias seria um grande passo.

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Ha uma necessidade de se estudar essa temática para que


possam ser respondidas as perguntas que o feminismo
hegemônico não contempla. Assuntos tão importantes
deveriam e devem chegar em todos os espaços, principalmente
para aquela mulher que se encontra desassistida na periferia
sofrendo diariamente violações e não sabe o que fazer e a quem
pedir auxílio por falta de informação.

REFERÊNCIAS
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(MG): Letramento, 2018.

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Lélia Gonzalez. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v.
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Gênero, mulheres, raça e
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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

PARA NÃO DEIXAR A TINTA COAGULAR NA


CANETA7: FEMINISMOS DECOLONIAIS E
PSICOLOGIA

Lina Ferrari de Carvalho


Lanna Carolyna Vieira da Costa

ENTRANDO NA RODA DE COCO

Gostaríamos de pedir licença a quem veio antes de nós,


às nossas ancestrais, aos corpos – principalmente de mulheres -
que muito se dedicaram, ou mesmo não tiveram escolhas, além
de tecer (re)existências e saberes como forma de respiro. Como
também, para não deixar que o sangue coagulasse na caneta, ou
na mão do opressor, como nos diz Gorjon (2019), em referência
à poesia de Glória Anzaldúa (2000) e que dá nome ao nosso
trabalho. É sobre essas mulheres e saberes que nos desafiamos a
escrever aqui. Partindo dos nossos lugares narrativos, dizemos
sobre quem, por detrás das telas, vos escreve.
Duas mulheres de corpos e trajetórias atravessadas por
recortes distintos – uma branca e uma no caminho de volta à
sua ancestralidade indígena -, que se encontraram na Parahyba,
ao som de tambores e vibrações antimanicomiais, sob efeito de
afetos esperançosos, mas também carregadas de insatisfações
compartilhadas. Diante disso, esse trabalho é também sobre
ausências e sobre colocarmos em xeque nossas posições de
privilégios. Por isso também nos propomos a não compactuar

7 Referência ao ensaio “Falando em Línguas” da feminista chicana Glória Anzaldúa


(2000)

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

com ensinamentos formais rígidos que nos são repassados e


tendem a querer que nos enquadremos em linguagens fixas,
impessoais e “neutras”, principalmente se tratando da
Psicologia, âmbito de onde estamos partindo.
Aqui, é importante situarmos uma Psicologia
hegemônica alicerçada no racionalismo moderno, na produção
de conhecimentos universalistas e na manutenção de
parâmetros dicotômicos hierárquicos do que seria
normal/patológico, alma/corpo, humano/natureza, povo
superior/povo inferior (CFP, 2019). Nesse sentido, a Psicologia
vem corroborando historicamente com projetos civilizatórios,
onde as mulheres, principalmente as terceiro-mundistas,
negras, indígenas, deficientes, LBTs e todas aquelas que não
estão de acordo com as normas de “civilidade branca”, jovem,
cisheterossexual, cristã e do norte global, têm seus corpos e
saberes deslegitimados e violentados. A centralização do saber
em Europa gera o que Vandana Shiva (2002) chama de
monocultura da mente, ou seja, a globalização de apenas uma
matriz de saberes, a do colonizador. O desaparecimento das
epistemologias locais acontece em muitos planos, geralmente
em intersecção com a existência do capitalismo, racismo e do
cisheteropatriarcado. Portanto, esses recortes não podem ser
dissociados na hora de compreender a realidade dos povos
subalternos (AKOTIRENE, 2019).
Em contrapartida a esses processos de dominação, os
feminismos decoloniais tentam promover a multiplicidade de
vozes necessárias para romper com os discursos supostamente
“universais” (RIBEIRO, 2017), além de complexificar e
visibilizar as estruturas de opressão, até mesmo dentro da
própria luta feminista hegemônica (LUGONES, 2014). Como

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

eco, os feminismos decoloniais fazem ressoar os enunciados de


resistência de mulheres que foram historicamente
subalternizadas, em suas múltiplas interseccionalidades, seja
através do gênero, raça, etnia, sexualidade, classe e
territorialidades (CASTRO, 2020).
Nesse contexto, considerando o histórico exposto da
Psicologia, e a relevância dos Feminismos Decoloniais na
produção de práticas e saberes emancipatórios, temos como
objetivo geral identificar e analisar as produções que têm sido
realizadas na Psicologia se utilizando dos Feminismos
Decoloniais. Busca-se evidenciar possibilidades conectivas entre
essas duas áreas, partindo do seguinte questionamento: O que
pode os feminismos decoloniais na Psicologia? Para isso,
entendendo a importância de se de(s)colonizar a escrita e
agregá-la ao solo em que estamos pisando e a cultura que
vivenciamos, escrevemos como quem dança pela primeira vez
em uma roda de coco, dança e ritmo típicos do Nordeste. Como
uma baiana e uma carioca de origens paraibanas, que
encontram na cultura popular os ecos sonoros e corporais de
resistência frente aos mais variados silenciamentos.
Assim vamos nos adentrando nessa roda, como quem se
lança inicialmente em uma temática, abertas às possibilidades,
com afeto e possíveis “errâncias” nas pisadas. De acordo com
esses meandros, dividimos nosso trabalho da seguinte forma:
“Psicologia e Feminismos Decoloniais: Ritmos iniciais”:
fundamentos teóricos do histórico da Psicologia e principais
concepções acerca dos Feminismos Decoloniais; “Compassos
Metodológicos”: caminhos metodológicos traçados de uma
pesquisa qualitativa, documental realizada a partir de uma
revisão sistemática; “Colhendo pisadas”: principais resultados

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

encontrados e discussões, onde coletamos 10 trabalhos (6


artigos, 2 dissertações e 2 teses) e para analisá-los dividimos
em duas categorias: Categoria 1: “Para reconciliar o ‘outro’
dentro de nós” e Categoria 2: Construindo novas pontes:
respiros epistemológicos, metodológicos e práticos na(s)
Psicologia(s); e a derradeira: “Enlarguecendo a roda: Semeando
danças e ritmos futuros”: apresentamos as considerações finais,
explicitando que apesar da quantidade de trabalhos
encontrados ainda ser reduzida, recente e pouco explorada, são
produções de grande relevância científica e social, revelando
que os Feminismos Decoloniais podem trazer contribuições
significativas para os mais diversos âmbitos da Psicologia.

PSICOLOGIA E FEMINISMOS DECOLONIAIS: RITMOS


INICIAIS

Para nos adentrarmos em um tema tão pouco esmiuçado


no campo da Psicologia, é preciso citar algumas raízes teóricas
sobre as quais nos apoiamos neste trabalho, acentuando a
compreensão da problemática com a qual nos deparamos, e
possíveis respiros que encontramos diante dela. Fruto da
modernidade, a Psicologia teve seu nascimento em um contexto
histórico alicerçado pelos processos de colonização dos chamados
povos do sul, construindo paradigmas teóricos e metodológicos a
partir de modelos de humanidade pretensiosamente universal,
que até hoje é imposto forçadamente como padrão para outros
povos, territórios e modos de viver (CFP, 2019). Nesse
direcionamento, a Psicologia hegemônica, alicerçada no
racionalismo moderno e em pressupostos dualistas, tendem a
individualização de sofrimentos e ajustamentos sociais à serviço

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

de projetos civilizatórios, onde os sujeitos psicológicos devem


convergir com a razão eurocêntrica.
Logo, trata-se da manutenção de ideias universais que
trazem parâmetros binários do que seria normal/patológico,
alma/corpo, humano/natureza, povo superior/povo inferior (CFP,
2019). Para os Guarani e Kaiowá, do Mato Grosso do Sul, teko
significa modo de ser, conduta (BENITES, 2014). Esse seria, então,
o teko do homem branco europeizado: tornar seus pressupostos
epistemológicos e ontológicos como universais, ideais e
verdadeiros, e os demais como Outros, distintos, logo, inferiores
(FANON, 2018). E quem seriam esses Outros inferiores? Todos
aqueles que não estejam de acordo com as normas de civilização
regida pelo homem branco, jovem, cisheterossexual, cristão e do
norte global, ou seja, pessoas negras, indígenas, deficientes,
mulheres, LGBTs+, etc.
Assim, é impossível escrever sobre essas narrativas
históricas que nos é contada atualmente sem associá-la à
colonialidade que a estrutura. A lógica do projeto hegemônico
moderno é o que Quijano (2014) denominou de colonialidade do
poder, ou o enraizamento do projeto branco ocidental e seus
mecanismos de poder, que atualizam racionalidades coloniais no
contemporâneo. (CFP, 2019). Tal pensador peruano elaborou essa
teoria evidenciando que a colonialidade é uma face da mesma
moeda em que foi constituída a modernidade e estende seu projeto
de sociedade a partir de aspectos políticos, epistemológicos,
estéticos e ontológicos. Assim, a colonialidade do poder precisa se
embasar em categorias muito bem delimitadas (pelos países do
norte global), como as de gênero, domínio da natureza, controle do
trabalho, hegemonia epistêmica e “caixinhas” étnico-raciais (CFP,
2019). Franz Fanon (1968) mostra que é partir dessas categorias que

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

os países do Norte global conseguem diferenciar a “metrópole de


beleza, integridade e inteligência”, da “colônia”, marcada por
violência, morte e exploração, onde se encontra um outro tipo de
ser humano que pode ser usurpado para garantir a riqueza da
suposta humanidade ocidental.
Localizada na mesma matriz genética, está a colonialidade
do saber, que nos revela que os povos do sul global carregam, além
de tudo, um legado que nos impede de compreender o mundo a
partir de lentes e de epistemes que nos são próprias (PORTO-
GONÇALVES, 2005). Assim, é notório que a Psicologia presente
nos currículos nacionais e nas produções científicas está
nitidamente imbricada com amarras da colonialidade do poder e
saber. Mostra-se como sendo urgente o desmonte desse modelo de
fazer psicológico, se quisermos que a Psicologia aja de acordo com
as circunstâncias concretas da população a que visa atender
(MARTIN-BARÓ, 1996). Afinal, como nos indica Audre Lorde
(2019, p.152): “as ferramentas do senhor nunca derrubarão a casa
grande”.
Nesse contexto, os feminismos decoloniais emergem como
fundamentais no processo de rompimento com perspectivas
universalistas e na luta por construções de saberes e práticas em
prol de transformações sociais emancipatórias. Transformações
essas a partir do combate a estruturas racistas, cisheterossexistas,
capacitistas, classistas e colonialistas que tendem a objetificar e
violentar corpos que não estão dentro da normativa eurocêntrica,
como é o caso das mulheres terceiro-mundistas, negras, indígenas,
LBTs e deficientes. Tais dualismos se tornam ferramenta normativa
para produção do Outro como inferior e de condenação desses
Outros/as colonizados/as (LUGONES, 2014). Isso leva à
legitimação da exploração e extermínio dos povos considerados

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

“não humanos”, expostos à barbárie do europeu cristão que


entendia genocídio e destruição como mecanismos civilizados de
dominação do mundo não europeu (SANTOS, 2018; GONZAGA,
2019). A centralização do saber em Europa gera também o que
Vandana Shiva (2002) chama de monocultura da mente, ou seja, a
globalização de apenas uma matriz de saberes, a do colonizador,
assim o desaparecimento das epistemologias locais acontece em
muitos planos, geralmente em intersecção com a existência do
capitalismo, racismo e do cisheteropatriarcado.
Logo, não é possível falar de categorias homogêneas e
colonialistas, como de “mulher” universal, que veio sendo
proposto historicamente pelo feminismo tradicional, o qual deriva
das fontes do Iluminismo e das concepções do Norte global
(CASTRO, 2020), e que se concentram na opressão de gênero,
ignorando diferenças de raça, orientação sexual, classe e território
(LORDE, 2019; LUGONES, 2014). Castro (2020) diz que a proposta
do feminismo decolonial é romper com qualquer noção de ponto
de partida comum para o feminismo, isso porque não é possível
falar da mulher de forma abstrata e também porque ao lado do
machismo há outra opressão que lhe serve de base, o racismo
colonial. Guedes (2017) traz a fala de Mariceia Guedes Pataxó, ao
dizer que mulheres indígenas além de sofrerem o estigma étnico e
racial, são perpassadas pelas desigualdades de gênero, e portanto,
sofrem por diferentes recortes, seja por serem mulheres, ou por
serem indígenas. Assim, o feminismo decolonial reivindica o
protagonismo às experiências das mulheres que até os dias atuais
resistem à violência racista e colonialista (CASTRO, 2020),
aproximando-se do feminismo negro e das mulheres de cor
(YUDERKYS, 2016 apud CASTRO, 2020).

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

Nesse sentido, Lugones (2014) nos alerta que separar


categorias como gênero, raça e sexualidade seria um estímulo aos
binarismos impostos pelo Ocidente, a partir de conhecimentos
fragmentados e homogêneos, assim como seria uma tentativa de
apagamento das violências que estão interseccionadas nas
vivências de mulheres de cor. Segundo Carla Akotirene (2019), a
interseccionalidade visa dar instrumentos teórico-metodológicos à
inseparabilidade das estruturas racistas, capitalistas e
cisheteropatriarcais. É um conceito que carrega sensibilidade
analítica pensada por feministas negras as quais tinham suas
experiências e reivindicações invisibilizadas tanto pelo feminismo
branco quanto pelo movimento antirracista (AKOTIRENE, 2019).
Assim, a interseccionalidade abrange raça, classe e gênero como
categorias de análise fundamentais na compreensão das bases
estruturais de dominação e subordinação, de forma conjunta e não
de modo aditivo (COLLINS, 2015).
Ademais, de acordo com Curiel (2014) é necessário criar e
fazer ecoar diferentes feminismos que atendam pautas distintas da
hegemônica, mas que dialoguem entre si. Por isso, para a autora,
não basta que as mulheres sejam solidárias entre si, porque isso
não altera o status quo, é preciso que pensemos as relações de
poder por detrás da solidariedade feminina, e assim, produzir
teorias locais a respeito de cada grupo de mulheres. Portanto, os
feminismos de(s)coloniais não se propõem a descartar os
feminismos do Norte global, mas afirmar que existe uma
pluralidade de outros feminismos e pontuar as consequências em
se propor uma ideia de mulher universal. Como nos alerta hooks
(2020), uma revolução feminista precisa combater não só o
sexismo, mas também o racismo, o elitismo e o imperialismo.
Nesse sentido, Ochy Curiel (2014) nos ensina que é preciso fazer

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

alianças entre os movimentos sem precisar reuni-los de forma


homogênea. É só a partir do reconhecimento não hierarquizado
das diferenças que poderemos lidar de forma efetiva e
enriquecedora com ideais e lutas comuns (LORDE, 2019).
Nesse direcionamento, a autora Maria Lugones (2014),
filósofa feminista argentina, teceu a ideia de feminismo decolonial
em relação com as teorias de colonialidade do poder, na premissa
de que existe uma colonialidade de gênero que paira sobre países
que sofrem da ferida colonial. Também para esta autora, a noção
de gênero que carregamos hoje precisa ser pensada de forma
atravessada com classe e raça, isso porque foram estruturas que
chegaram de forma entrelaçada com a imposição brutal das
metrópoles. De acordo com Gonzaga (2019), a adoção do sistema
de gênero moderno é conceito basilar para conceber como a tríade
racismo-sexismo-heteronorma produz naturalizações que
estruturam modos de subjetivação na América Latina.
Aqui é importante citar que a questão do gênero e do
patriarcado são questões que ainda geram muitas discussões e
concepções distintas entre as pensadoras feministas de/pós
coloniais. Para evidenciar essas questões, Wassmandorf (2016) em
seu artigo, intitulado: “Feminismos De/Pós coloniais sob rasura: as
perspectivas de gênero e patriarcado de María Lugones, Rita
Segato e Julieta Paredes” faz um debate crítico entre trabalhos
específicos de cada uma dessas três autoras, a partir das
semelhanças e distinções encontradas acerca do gênero e
patriarcado. De acordo com Wassmandorf (2016), para Lugones, o
gênero, assim como a raça, é uma construção imposta pelo sistema
moderno colonial, não existia nas sociedades pré-contato e deve ser
analisado na dimensão interseccional. Já de acordo com a feminista
de(s)colonial boliviana Julieta Paredes, indígena aimará, haveria

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

sim um patriarcado ancestral pré-colombiano, que foi na verdade,


intensificado com o patriarcado colonial, formando então, o que ela
chamou de “entronque patriarcal”, o gênero então serve como
denúncia para descolonização (WASSMANSDORF, 2017). Para
Rita Segato, a existência de relatos etnográficos pré-coloniais
trazem a nomenclatura “gênero”, assim, a autora confirma a
existência de um patriarcado de baixa intensidade nessas
sociedades, entretanto, com a colonização o gênero passou de
hierárquico para super-hieráquico, e as figuras ancestrais
masculinas passaram a ser supervalorizadas, enquanto o papel das
mulheres foi esvaziado aos serviços estritamente domésticos,
assim, propõe que o gênero deve ser pensado nas diferenças e
pautado nas concepções cosmo-ontológicas de cada povo
(WASSMANSDORF, 2017).
Ademais, podemos notar que os feminismos decoloniais
são diversos e não homogêneos. Nessa direção, existem diversas
autoras que vêm tecendo suas próprias narrativas consonantes
com suas respectivas realidades nas lutas feministas, algumas
centradas em África, em contextos de diáspora, em contextos
indígenas comunitários, contextos de fronteiras, com base no
mulherismo, dentre outros. Gorjon (2018) nos fala como nessa
perspectiva de autonomia epistêmica podemos nos deparar com
exemplos como Lélia Gonzalez, Sueli Carneiro e Jurema Werneck,
aqui no Brasil, com as chicanas Cherríe Moraga e Gloria Anzaldúa,
além de Angela Davis, Audre Lorde, Patricia Hill Collins, bell
hooks, nos Estados Unidos, dentre tantas outras que muitas vezes
são invisibilizadas. Logo, um exemplo desse processo de
invisibilização é a escassez de traduções de muitas obras dessas
autoras para a língua portuguesa.

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

Deste modo, a aproximação entre a psicologia e os


feminismos não se mostra muito explícita e nem legitimada
institucionalmente (SALDANHA; NARDI, 2016), isso decorre
muitas vezes de conservadorismos acadêmicos, que escanteiam os
estudos de gênero e feminismo para as áreas de pós-graduação, o
que intensifica a presença tímida desses estudos nos currículos
acadêmicos, em diversas áreas de saber. Tal problemática
evidencia ainda uma forte resistência ao feminismo no mundo
acadêmico, revelando uma extensão da resistência geral ao
feminismo na sociedade na qual a Psicologia é parte constitutiva
(SALDANHA; NARDI, 2016). Com base nesse diálogo ainda
escasso e permeado por enfretamentos, temos como objetivo neste
trabalho identificar e analisar as produções que tem sido realizadas
na Psicologia se utilizando dos Feminismos Decoloniais, bem
como, evidenciar as possibilidades de conexão entre esses dois
âmbitos. Afinal, o que podem os Feminismos Decoloniais na(s)
Psicologia?

COMPASSOS METODOLÓGICOS

O processo de construção da pesquisa realizada foi


perpassado por exercícios de reflexões, inquietações e afetações,
assim como, posicionado politicamente na tentativa de romper
com tradições positivistas que tem por base a neutralidade e
distanciamento dos saberes produzidos. Nesse sentido, a
pesquisa em questão é do tipo qualitativa, considerando tal
abordagem como mais adequada por propiciar a produção de
conhecimentos e análises de forma complexa e contextualizada,
distanciando-se de concepções humanas universalistas e

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

realidades fixas. Logo, pode contribuir na superação de


modelos que hierarquizam a produção de conhecimento.
A partir da abordagem qualitativa o conhecimento é
enfatizado pelo caráter de construção e produção humana e não
como algo referente à apreensão de cenários estáticos,
superando determinados modelos que consideram a validade e
legitimidade dos conhecimentos por sua correspondência fixa
com o real (GONZALÉZ REY, 2005; FLICK,2009). Sendo
possível contribuir para a produção de “zonas de sentido”,
como nos aponta Gonzaléz Rey (2005), isto é, para abertura de
novas formas de significar conhecimentos, sempre passíveis de
questionamentos e renovações, não fossilizado, nem reduzindo
as possíveis vias de análise.
Assim, além de qualitativa é uma pesquisa documental
sistematizada por meio de revisão sistemática, pois entendemos
que esta possibilita não só analisar documentos específicos, no
nosso caso produções científicas, como também realidades que
são traçadas nesses escritos e suas finalidades (FLICK, 2009). Já
a revisão sistemática, sendo um tipo de pesquisa documental,
direciona a investigação por meio da delimitação de uma
questão específica, com objetivo de identificar, selecionar,
avaliar e sintetizar as evidências relevantes disponíveis
(GALVÃO; PEREIRA, 2014).
Portanto, escolhemos tal método por nos proporcionar o
acesso teórico mais aprofundado sobre os conhecimentos que
vêm sendo produzidos e publicados acerca das temáticas em
foco, além de considerarmos a escassez de trabalhos
acadêmicos que articulem os Feminismos Decoloniais com a
Psicologia, área em que atualmente estamos inseridas.

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

Na seleção dos trabalhos acadêmicos (artigos, teses e


dissertações), enveredamos pelo seguinte caminho: inicialmente
estabelecemos critérios de inclusão e exclusão aos quais foram:
trabalhos nacionais, em língua portuguesa, que abordassem a
temática do feminismo de(s)colonial no âmbito da Psicologia,
sem definição de intervalo de tempo das publicações e que não
se repetissem. As plataformas utilizadas foram Periódico da
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
(CAPES), Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações
(BDTD), Literatura Latino-Americana e do Cariba em Ciências
da Saúde (LILACS), Scientific Electronic Library Online (SCIELO),
Periódicos eletrônicos em Psicologia (PEPSIC) e INDEXPSI.
Após o estabelecimento dos critérios de
inclusão/exclusão, definimos os seguintes descritores para
realização do levantamento dos trabalhos: “psicologia”,
“estudos descoloniais”, “estudos decoloniais”, “colonialidade”,
“colonialismo”,“descolonialidade”, “decolonialidade”,
“psicologia decolonial”, “psicologia descolonial”, “feminismo
decolonial”, “feminismo descolonial”, “feminismo”.
Posteriormente realizamos buscas em cada uma das
plataformas virtuais acima citadas, por meio de 18 combinações
diferentes dos descritores, são elas: “psicologia” e “estudos
descoloniais”; “psicologia” e “estudos decoloniais”; “psicologia
e “colonialidade”; “psicologia e colonialismo”; “psicologia e
descolonialidade”; “psicologia” e “decolonialidade”;
“psicologia decolonial”; “psicologia descolonial”; “feminismo
decolonial”; “feminismo descolonial”; “feminismo” e
“psicologia” e “estudos descoloniais”; “feminismo” e
“psicologia” e “estudos decoloniais”; “feminismo” e
“psicologia” e “colonialidade”; “feminismo” e “psicologia” e

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

“colonialismo”; “feminismo” e “psicologia” e


“descolonialidade”; “feminismo” e “psicologia” e
decolonialidade”; “feminismo” e “psicologia decolonial”;
“feminismo” e “psicologia descolonial”.
O levantamento dos trabalhos foi realizado entre os
meses de maio e junho de 2020. Inicialmente lemos os títulos
dos trabalhos, em seguida o resumo, para posteriormente,
considerando os critérios de inclusão/exclusão, realizarmos a
leitura completa, caracterização e análise das produções
selecionados.

COLHENDO PISADAS

Como resultados, foram selecionados 10 trabalhos,


sendo 6 artigos, 2 dissertações e 2 teses. Dos 160 trabalhos
encontros na BDTD, foram selecionados 4, no periódico CAPES
dos 60 encontrados, 3 foram selecionados, na SCIELO dos 41
resultantes, 3 entraram na seleção, na LILACS dos 12 obtidos
nenhum foi selecionado. As demais plataformas (INDEXPSI e
PEPSIC) não encontramos nenhum trabalho.

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

Tabela 1 – Levantamento de trabalhos por plataformas virtuais

Total de Total de
Plataformas de
trabalhos trabalhos
busca virtuais
encontrados selecionados

BDTD 160 4
CAPES 60 3
SCIELO 41 3
LILACS 12 0
INDEXPSI 0 0
PEPSIC 0 0
TOTAL 273 10
Elaboração própria (2020).

Dos 10 trabalhos selecionados houve predomínio das


publicações entre os anos de 2018 e 2019, sendo 5 publicados no
ano de 2018 e os outros 5 no ano de 2019, evidenciando que o
debate acerca do feminismo decolonial no campo da Psicologia
nos mostra como sendo não só algo recente, como também uma
resistência da Psicologia em produzir conhecimentos contra-
hegemônicos, tendo em vista seu histórico e alicerces em
elementos eurocêntricos e androcêntricos (GONZAGA, 2019;
ALVES; DELMONDEZ, 2015). Os 10 trabalhos tiveram
mulheres como autoras, dessas a maioria são advindas de
universidades localizadas no sudeste e sul do país, sendo que
das 2 teses e 2 dissertações, apenas 1 foi produzida no nordeste,
2 no sudeste e 1 no sul, evidenciando a escassez de produções
sobre a temática em regiões como o norte e centro-oeste. De
acordo com Sidone, Haddad e Mena-Chalco (2016) em pesquisa
realizada acerca da geografia da produção e colaboração
cientifica no Brasil, há uma concentração sistêmica da produção
na região sul e sudeste. Isso nos diz muito sobre a geopolítica

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

do país, onde autoras como Vivian Santos (2018), ao localizar


sua produção no contexto de semiárido nordestino atribui a
denominação “periferia científica global e nacional”,
demonstrando a desigualdade, dentre muitas questões, ao
incentivo à produção cientifica.
Quanto aos tipos de trabalho, dos 5 artigos, 3 foram
produções teóricas, (1 pesquisa bibliográfica e 2 ensaios), 1
pesquisa qualitativa participante e 1 pesquisa colaborativa. Das
2 dissertações e 2 teses, todas foram pesquisas do tipo
qualitativas. Quanto ao referencial teórico utilizado, houve
diversidade nos trabalhos, apesar de autoras do feminismo
decolonial terem sido predominantes, cada trabalho articulou
referências de acordo com a temática trabalhada. Para
exemplificar, houve associação em conjunto com os feminismos
negros interseccionais (GONZAGA, 2019), a filosofia da
diferença (GORJON; GALINDO; MILIOLI, 2018), a
psicossociologia (CARVALHO; COSTA; FERREIRA, 2019), bem
como saberes múltiplos de matriz africana (CARVALHO;
COSTA; FERREIRA, 2019; GONZAGA, 2019), Slow Science
(GORJON, 2018) e estudos de feministas lésbicas e teorias queer
(LONGHINI, 2018; MEZZARI, 2019). Tais evidências podem
demonstrar a tentativa de desconstrução do padrão normativo
de fazer ciência, assim como de não ser conivente com
especialismos, típicos da ciência colonialista (GORJON;
GALINDO; MILIOLI, 2018).
Sobre os métodos e instrumentos metodológicos
utilizados nos trabalhos, também nos deparamos com
tentativas de rompimento com aqueles que coadunam com
epistemologias coloniais. Houve a utilização do método de
cartografia, pesquisa participante, revisão de literatura,

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

metodologia do encontro e efeito abebénico, narrativas auto


biográficas, diário de campo, diário íntimo e análise de
imagens. Diante disso, compartilhamos do mesmo interesse de
Mezzari (2019), em que uma metodologia possa nos permitir
experimentar e correr riscos, além de assumir nossas
próprias contradições nos (des)caminhos que vamos nos
deparando, sem que isso seja entendido como erro, mas sim
como parte do processo de pesquisa.
Logo, após evidenciarmos esse breve panorama dos
trabalhos encontrados, iremos nos aprofundar em 2 categorias
de análise acerca das contribuições dos feminismos decoloniais
para a Psicologia que encontramos nos trabalhos selecionados,
são elas: Categoria 1: Para reconciliar o ‘Outro’ dentro de nós e
Categoria 2: Construindo novas pontes: respiros
epistemológicos, metodológicos e práticos na(s) Psicologia(s).

PARA RECONCILIAR O ‘OUTRO’ DENTRO DE NÓS8

Nos trabalhos analisados podemos notar a necessidade


de desmonte da ciência alicerçada historicamente em
dicotomias hierárquicas como: natureza-cultura, homem-
mulher, branco-preto, centro-periferia, eu-outro, razão-emoção
e humano-não humano (GONZAGA, 2019; LONGHINI, 2018;
MEZZARI, 2019; GORJON;GALINDO;MILIOLI, 2018;
CARVALHO; COSTA;FERREIRA, 2019). De acordo com Santos
(2018) a colonialidade do saber baseia-se na noção de
binarismos como Sujeito x Objeto, que estabelecem como
Sujeitos, dotados de conhecimentos, aqueles advindos da

8 Referência retirada do ensaio “Falando em Línguas” de Glória Anzaldúa (2000).

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Gênero, mulheres, raça e
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Europa e, como Objeto, “não humanos”, os povos colonizados


que tem suas manifestações de existência capturadas a partir de
rótulos como “exóticos” e bestiais.
Assim, a dicotomia hierárquica veio a ser uma
ferramenta normativa para produção do Outro como inferior e
de dominação desses Outros/as colonizados/as (LUGONES,
2014), o que autoriza e legitima a exploração, escravização e o
extermínio dos povos considerados não humanos, expostos a
barbárie dos europeus cristões que entendiam genocídio,
estupro, escravização, destruição e tortura como mecanismos
civilizados de dominação do mundo não europeu (SANTOS,
2018; GONZAGA, 2019). Segundo Fanon (2018), a objetificação
dos/as colonizados/as é um processo que tende ao
aprisionamento das culturas em um estatuto colonial, onde
tudo aquilo que desvia dessa lógica é estrangulado pela carga
da opressão. Portanto, o oprimido sofre a destruição do que é
mais profundo de seu ser, atrelado ao processo de
desumanização própria da dominação. Em Grada Kilomba
(2019), a concepção de “Outro” revela a retirada de nossas
subjetividades e redução de existências a partir do olhar
daqueles que dominam, ou seja, ocorre um processo de
aniquilação da condição de humano. Essa objetificação nos
condena a representar nossas realidades internas a partir do
crivo do dominador.
Nesse contexto, alguns trabalhos trazem a Psicologia
como ciência advinda desse processo histórico colonialista, que
persiste até a atualidade, de produção de conhecimento e
prática baseados em dicotomias hierárquicas. Esses dualismos
tendem a fragmentar e objetificar para estudar em partes e
definir a priori qual disciplina deve ocupar-se de qual aspecto

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

(GONZAGA, 2018), além de conservar a divisão entre normal e


anormal, o que como consequência, pauta a concepção de
corpos considerados anormais. Grada Kilomba (2019) destaca
que o lugar do “diferente” só existe a partir da definição de
quem pode se auto definir como normal, pois a classificação de
normal/anormal está associada ao enunciador que tem o poder
de produzir essas categorias, induzindo imposições
psicossociais aos sujeitos.
Assim, alguns trabalhos trouxeram que a psicologia
ainda, como ciência e profissão, tem exercido papéis
fundamentais no estabelecimento da norma heterossexual e
cisgênera e na consequente patologização de corpos LGBT+
(LONGHINI, 2018). Além disso, também tem individualizado
sofrimentos decorrentes de questões estruturais como o
racismo, sexismo e lgbtfobia, em específico no caso das
mulheres negras, indígenas, deficientes e LBTs (LONGHINI,
2018; GONZAGA, 2019), as quais tendem a sofrimentos
psíquicos que estão, em muito, associados às dimensões ético-
políticas (SAWAIA, 2014). Embora, como nos alerta Longhini
(2018), cada vez mais tenham aumentado as tensões provocadas
por psicologias implicadas na disputa por fazeres mais
eticamente posicionados.
Sobre os sofrimentos psíquicos ocasionados por
estruturas de opressão, Jeane Tavares (2018), em entrevista para
a revista Mensa Brasil, afirma que o racismo gera altos níveis de
estresse e vulnerabilidade social, isso porque a população não-
branca aprende desde criança a considerar beleza, sucesso,
bondade, inteligência, ética e moralidade como atributos
inerentes à branquitude. Como estratégia de defesa, a pessoa
negra pode negar sua identidade racial e buscar formas

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

irracionais de se adaptar aos padrões desejados, porém, a


medida que não conseguem se adequar, adentram em um
processo não validado socialmente de sofrimento psíquico
intenso marcado por crenças persistentes de inadequação,
desvalor, desamor e impotência (TAVARES, 2018). No que diz
respeito a população indígena, Dutra e Mayorga (2019) citam a
fala de Liderjane Kaxixó, liderança indígena, que afirma que
mulheres indígenas vêm sofrendo muito abuso relativo à
expulsão de seus territórios e estupros de parentes e
antepassados. A liderança diz que veio surgindo medo, fobia,
depressão e ansiedade dentro das comunidades, seja por conta
de fazendeiros, do genocídio ou pela catequização das igrejas.
Outro aspecto importante evidenciado nas produções
foi a importância da interseccionalidade como fundamental na
compreensão crítica sobre identidades subalternas, que por sua
vez estão submetidas a múltiplas opressões estruturantes como
classe, raça, gênero, sexualidade, dentre outros (LONGHINI,
2018; SANTOS, 2018; GONZAGA, 2019). Esses atravessamentos
são derivados da matriz colonial moderna e implica, por
exemplo, que raça traga subsídios de classe e gênero, o que
coloca esses eixos em patamar de igualdade analítica.
(AKOTIRENE, 2019).
Foi notório também a relevância da
transdisciplinaridade no fazer científico e prático da Psicologia
em configurar novas noções de sujeito-objeto. Segundo Barros e
Passos (2000) a transdisciplinaridade ajuda a produzir a
reconfiguração de relações teórico-práticas dentro do
conhecimento psicológico, em que a contaminação pelas artes,
saberes tradicionais, oralidades, circularidades e saberes
ancestrais podem sanar e reabrir feridas coloniais. A criação

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

afetada por esses saberes poderia oferecer um modo de re-


existir à modernidade, pois para Madina Tlostanova (2011), só
com a razão não é possível decolonizar nem a epistemologia
nem a nossa existência, porque o sentir tem papel fundamental
nisso. Portanto, quando se fala de flertar com outros saberes,
não falamos apenas de outras especialidades, como a Geografia,
Medicina ou Sociologia, mas também nos colocarmos
disponíveis aos saberes tradicionais dos povos indígenas, dos
quilombolas, da população ribeirinha, imigrantes, caiçaras,
catadores de mangaba, pantaneiros, ciganos e as mais diversas
populações.
Assim, pensar no que pode os feminismos decoloniais
para a psicologia, é termos em mente o processo histórico de
epistemicídios, que embasam as produções de conhecimento
acadêmico omitindo clivagens racistas, sexistas e
cisheteronormativas, estruturadas pelo Ocidente Cristão
(AKOTIRENE, 2019). É necessário, portanto, que a Psicologia se
revise, tendo em vista que pode se dedicar a investir na
composição de vozes que por muito tempo foram silenciadas
pela ciência dominante, pois é dessa forma que ela pode
revitalizar esse espaço para que se torne mais plural e
interespistêmico (COSTA, 2018 apud CARVALHO; COSTA;
FERREIRA, 2019).
Logo, como aponta Santos (2018), inspirada em Grada
Kilomba, a “desobediência epistêmica” é necessária, “aprender
a desaprender”, não se tratava mais de buscar apenas
compreender o trabalho científico em perspectiva de gênero,
mas de construir críticas mais profundas à ciência,
questionando a noção de "autoridade científica" em seus
alicerces sexistas e classistas. Isso significa convocar-nos a

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

pensar no quanto as epistemologias hegemônicas são


produtoras de epistemicídios. Nesse contexto, é fundamental o
cuidado para não nos utilizar das “armas do senhor” como
ferramentas de de(s)colonização, quando estas são em si, meios
de colonizar e segregar (GONZAGA, 2018; LORDE, 2019).

Descolonizar para las feministas latinoamericanas y caribeñas


supondrá superar el binarismo entre teoría y práctica pues le
potenciaría para poder generar teorizaciones distintas,
particulares, significativas que se han hecho en la región, que
mucho puede aportar a realmente descentrar el sujeto
euronorcéntrico y la subalternidad que el mismo feminismo
latinoamericano reproduce en su interior, sino seguiremos
analizando nuestras experiencias con los ojos imperiales, con la
conciencia planetaria de Europea y Norteamericana que
definen al resto del mundo como lo OTRO incivilizado y
natural, irracional y no verdadeiro (Ochy Curiel, 2009, P.7-8).

CONSTRUINDO NOVAS PONTES: RESPIROS


EPISTEMOLÓGICOS, METODOLÓGICOS E PRÁTICOS
NA(S) PSICOLOGIA(S)

Quando abrimos os ouvidos, podemos ouvir gritos.


Trabalhos como o de Carvalho, Costa e Ferreira (2019);
Gonzaga (2019); Longhini (2018); Mezzari (2019); Gorjon (2018);
Gorjon; Galindo; Milioli (2018) e Santos (2018) lutam por uma
ciência emancipatória. Clama-se por outras formas de produção
científica, o que se propõe, a partir das leituras dos trabalhos
selecionados, é a ocupação dos saberes férteis, o cultivo de
novas sementes, em detrimento de latifúndios estéreis, para que
então, possamos partilhar uma terra diversificada (GORJON,
2019). Enfim, construir uma ciência agroecológica. Isso perpassa

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

por uma diversidade de modificações trazidas de forma


proponente pelas autoras dos trabalhos que encontramos, como
a necessidade de transformações nas epistemologias, nos
percursos metodológicos, linguagens e formas de escrita
utilizadas, bem como, no campo das práticas psicológicas.
Nesse direcionamento, fruto da necessidade de
expressar trocas com os múltiplos saberes e modos de escrita,
autoras como Mezzari (2019) se perguntam: Que tipo de escrita
é possível fruir de nossos dedos, de nossos corpos? O que a
nossa escrita diz desses corpos? Que tipo de escrita desejamos
inventar? Que “eu” é esse que inventamos na escrita?
Questionamentos relevantes que nos revelam, a partir do
feminismo decolonial trazido por todas as autoras nos trabalhos
encontrados, provocações acerca das reinvenções de escrita ou
como Mezzari (2019) nos propõe: uma escrita de
“encantamento”, que possa romper as pretensões do saber. Em
consonância, Anzaldúa (1987) declara a necessidade de escrever
para não deixar a tinta coagular na caneta, escrever para manter
vivo o espírito de revolta e reescrever as histórias mal escritas
sobre as mulheres de cor, misturando produção científica, com
poesia, prosa e suor. O ato de escrever é criar alquimia, mas
também buscar um ‘eu’, pois as mulheres de cor foram
historicamente levadas a pensar como ‘outro’, é urgente que
nossa escrita atue para reconciliar o ‘outro’ dentro de nós
(ANZALDÚA, 1987). Essa produção mestiça, que se apercebe
das fronteiras que ocupa, também pode gerar novas
metodologias e fazeres psicológicos mais cuidadosos, afetivos e
localizados.
As produções nos indagam e fazem refletir: diante de
uma Psicologia construída com bases coloniais, como construir

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

saberes múltiplos a partir da decolonialidade? Grosfoguel


(2016) nos dá pistas, utilizando o conceito de “extrativismo
epistêmico” da indígena canadense Lianne Simpson, a
alternativa ao extrativismo que vivenciamos nas ciências, em
especifico na Psicologia, seria a reciprocidade profunda. Tal
extrativismo é baseado na noção colonial de apropriação
predatória do pensamento e das práticas de um povo, com isso,
cosmologias e visões de mundo do Sul global são assimiladas e
vendidas para o Norte global como mercadoria
(GROSFOGUEL, 2016). Assim, a reciprocidade profunda nos
diz que a Psicologia deve caminhar na perspectiva do
intercâmbio ético, que promova trocas metodológicas justas.
Nesse direcionamento, Carvalho, Costa e Cunha (2019)
relatam, em pesquisa realizada com um grupo de sacerdotisas
que cultuam a deusa africana Iyana Osoronga, que ao tentarem
colocar em prática a metodologia de pesquisa participante,
precisaram constantemente se colocar disponíveis a repensar
formas e palavras para dar contorno ao projeto. No
investimento da produção científica cuidadosa, as autoras
precisaram abraçar as manifestações de dúvidas, equívocos e
lacunas, próprias do processo de se implicar com o
desconhecido. Logo, aprendizados tecidos ao lado de saberes
extra-muros reverberam ativamente nos modos de fazer
pesquisa e no próprio reconhecimento das limitações da ciência
como um todo (CARVALHO; COSTA; CUNHA, 2019).
Assim, reinventar-se metodologicamente no fazer psi, é
uma necessidade frisada por todas as autoras das produções
encontradas. Dutra e Mayorga (2019) perceberam que a
articulação entre certas categorias sociais não ocorre de forma
harmônica, sendo necessário disponibilidade para fazer

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Gênero, mulheres, raça e
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intercâmbios com diferentes demandas locais que possam


surgir, de modo a se colocar em relação. Ademais, reconhecendo
as próprias limitações, o pesquisador pode então promover
alianças capazes de inventar fazeres que são produzidos a
partir das experiências com a natureza que se apresenta a ele
(CFP, 2019).
Tendo em vista esse cenário, a práxis da Psicologia que
se afeta pelo feminismo decolonial é carregada de perguntas, e
para Linda Nochlin (2016), os questionamentos da ciência não
devem ser somente sobre como respondemos perguntas, mas
também problematizar as próprias perguntas. A autora se
indaga sobre quem faz as perguntas, com quais objetivos e
quais os verdadeiros fins. Nesse sentido, a maioria dos
trabalhos trouxeram a relevância do lugar de fala, e em
específico no campo da psicologia (GORJON, 2018,
GONZAGA, 2019, LONGHINI, 2018): “Como o lugar da
experiência pode ou não legitimar uma fala? Como o nosso
lugar de escuta pode contribuir para a noção de lugar de fala?”
(BASOLI; GORJON; MEZZARI, 2019, p. 2). A reivindicação
pelo lugar de fala, por parte das maiorias oprimidas, é um
exercício de militância que pressupõe movimentos ativos no
mundo (BASOLI; GORJON; MEZZARI, 2019). Diante disso,
Djamila Ribeiro (2017) nos evidencia o que significa esse
conceito, dizendo que todo mundo tem lugar de fala, já que esse
termo difere de representatividade. Diferentes grupos,
posicionados em lugares sociais diferentes dentro da hierarquia
social, podem e devem falar sobre questões de opressão, porém
falarão de locais distintos (RIBEIRO, 2017).
Diante desse cenário, somos convocados a falar do nosso
local social, mas também a imergir no “lugar de escuta”, que

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Gênero, mulheres, raça e
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por consequência, acolha esse “lugar de fala”. É uma postura


desafiadora a de permitir que nossas subjetividades enquanto
pesquisadores sejam transformadas no processo de se abrir
para as relações. Alteridade, para Basoli, Gorjon e Mezzari
(2019) é admitir que não podemos existir sem o ‘outro’. As
autoras acreditam que a postura de disponibilidade em escutar
com alteridade não diz respeito apenas a ouvir falas, mas a
empreender leituras de teorias e produções feitas pelas
populações oprimidas. Por outro lado, essa atitude não deve
ocorrer de maneira pretensiosa, querendo dar “voz” ou
“espaço” para essas pessoas, mas sim fomentar a dimensão de
escuta que sujeitos privilegiados precisam aprender a ocupar
(BASOLI; GORJON; MEZZARI, 2019).
Desse modo, os trabalhos evidenciaram a necessidade
de que a Psicologia produza conhecimento situado, da forma
como nos explica Donna Haraway (1996), um saber localizável,
e, portanto, responsável. Estamos falando sobre uma produção
capaz de ser chamada para prestar contas e se responsabilizar
por aquilo que enxerga:

Saberes localizados requerem que o objeto do conhecimento


seja visto como um ator e agente, não como uma tela, ou um
terreno, ou um recurso, e, finalmente, nunca como um escravo
do senhor que encerra a dialética apenas na sua agência e em
sua autoridade de conhecimento "objetivo" (HARAWAY, 1996,
p. 36).

Diante disso, quando a Psicologia se propõe a beber da


fonte dos feminismos decoloniais, aprendemos com as autoras,
dentre tantas questões, que é uma forma de engajar-se ética e
politicamente. De acordo com o Conselho Federal de Psicologia

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Gênero, mulheres, raça e
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(2019), o código de ética da profissão prevê “promoção da


saúde e da qualidade de vida das pessoas e das coletividades e
contribuição para a eliminação de quaisquer formas de
negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e
opressão” (CFP, 2005), além de “responsabilidade social,
análise crítica e histórica da realidade política, econômica, social
e cultural.” (CFP, 2005). Em 2002, o CFP também publicou uma
norma que estabelece a atuação para os(as) psicólogos(as) em
relação a preconceito e discriminação racial. Portanto, tem-se na
categoria o compromisso de formação de psicólogos que sejam
sensíveis às questões dos grupos sociais não-brancos, embora
não se veja ainda uma real apropriação e sensibilidade no que
se refere a esses assuntos. Em prova disso, há a quantidade
escassa de debates raciais nos componentes curriculares da
profissão, seja na graduação ou na pós-graduação (CFP, 2019).

As possibilidades de atuação das(os) psicólogas(os) podem se


dar por diversos campos: na saúde, na assistência social, no
campo do trabalho com o fortalecimento de práticas e saberes
ecologicamente sustentáveis como a agroecologia, no âmbito da
educação e das políticas ambientais, no campo da elaboração e
gestão de políticas públicas, de gestão territorial e ambiental, na
esfera dos direitos humanos e dispositivo de proteção contra a
violência e o racismo de Estado, intolerância religiosa e étnica,
com a negligência de direitos e a invisibilização de seus modos
de vida. (CFP, 2019, p. 100).

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ENLARGUECENDO A RODA: SEMEANDO DANÇAS E


RITMOS FUTUROS

A partir do presente artigo conseguimos identificar e


analisar as produções acadêmicas na Psicologia que se
utilizaram dos Feminismos Decoloniais, bem como, evidenciar
as conexões existentes entre esses dois âmbitos, cumprido com
os objetivos propostos inicialmente. Pudemos observar que
apesar da quantidade de trabalhos que abarquem essa
articulação ainda ser reduzida, recente e pouco explorada, são
produções de grande relevância científica e social, revelando
que os Feminismos Decoloniais podem trazer contribuições
significativas para os mais diversos âmbitos da Psicologia.
Assim, os trabalhos evidenciam questionamentos necessários
acerca das construções epistêmico-metodológicas, das
linguagens e escritas utilizadas, das políticas de localização dos
saberes e práticas. Além de trazerem a interseccionalidade
imbricada em múltiplas formas de vivenciar as opressões, pelos
corpos que não estão de acordo com a normativa eurocêntrica,
como é o caso de mulheres localizadas no eixo Sul Global,
negras, indígenas, LBTs e deficientes.
Assim, todas as autoras dos trabalhos encontrados nos
ofereceram novas formas de produções de saberes que barram
os universalismos dicotômicos, porém não de forma pronta,
como novas fórmulas a serem incorporadas. Afinal, como as
mesmas relatam, não há receitas prontas, e o desafio de
produções contextualizadas e politicamente implicadas é
justamente se lançar para a reinvenção cotidiana do fazer psi, a
partir da disponibilidade em colocar-se ao lado da população a
quem se visa atender, de modo a priorizar construções

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

conjuntas (GORJON, 2018). Portanto, evoca-se a necessidade da


valorização de conhecimentos historicamente silenciados como
forma de criar espaços para novas narrativas insurgentes frente
aos epistemicídios e outras formas de violência que as
populações não-brancas e não-europeias vêm sofrendo.
Além disso, aprende-se com as feministas decoloniais
sobre a importância de enxergar as opressões que atingem
mulheres do Sul global de modo interseccional, ou seja,
atravessado por questões de gênero, classe, raça, orientação
sexual, idade e território. Esse processo de compreensão
interseccional possibilita a complexificação das demandas que a
Psicologia está a serviço, e que só poderá construir intervenções
práticas adequadas caso esteja ciente das facetas de dominação
próprias dos povos subjetivados pela ferida colonial.
Foram também postas em evidências lacunas referentes
a localização das produções, haja vista que em sua grande
maioria, foram oriundas do sul e sudeste do Brasil, o que
afunila o olhar de origem das teorias aqui postas. Isso não
significa dizer que não há produção nas outras regiões, mas sim
que elas não estão chegando até nós sob forma de publicação
científica, ou seja, há contradições coloniais dentro do próprio
tema da descolonização. Esse cenário evoca a necessidade de
maior inserção dos Feminismos Decoloniais, em sua
diversidade, nos componentes curriculares das universidades
brasileiras, de modo a incentivar produções com base em
diferentes vivências, regiões e atravessamentos.
Nesse sentido, percebemos muitas lacunas também no
que se refere à produção científica sobre a articulação entre
esses dois campos. Isto posto, não visamos (e nem poderíamos)
esgotar esse tema, considerando as limitações já explicitadas,

Coleção Insurgências Decoloniais, Psicologia e os Povos Tradicionais


129
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

como também os empecilhos atrelados a tempo e espaço que


ocorreram frente a complexidade do tema proposto.
Logo, não iremos encerrar a roda de coco que iniciamos
nesse emaranhado de contribuições e lacunas. Ao contrário,
queremos enlarguecer essa roda. Convidamos a todas que estão
nos lendo a adentrar conosco nessa dança, construir ritmos
próprios, contribuir com a luta diária nas pisadas de resistência,
nas escritas e pesquisas insurgentes que possam dizer, de fato,
sobre nós, sobre as localidades que nossos corpos transitam e
habitam. Ainda há muito a ser (des)construído, (re)inventado,
há muito coco pra dançar e cantar. Há muito sangue para se
impedir que coagule nos porões históricos, acadêmicos e da
vida cotidiana.

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138
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

“QUAL É A COR DA DOR?”: UM ESTUDO SOBRE A


VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA ENTRE MULHERES
NEGRAS

Luana Marisa Soeiro Carvalho


Marcossuel Gomes Acioles
Francisco Natanael Lopes Ribeiro
José Maria Nogueira Neto

INTRODUÇÃO

A violência obstétrica é, cada vez mais, um assunto


comentado e estudado no meio acadêmico, além de
reconhecido entre o senso comum e tema de muitas discussões
na atualidade. Foi através dos movimentos sociais que o termo
começou a ser discutido, para que o parto humanizado fosse
uma realidade no sistema de saúde no Brasil. Esse tipo de
violência é caracterizado por atos físicos, psicológico, moral e
patrimonial que ocorrem durante os atendimentos de gestantes,
trabalho de parto e puerpério. (MARQUES, 2020)
Corroborando com de Brito, Oliveira e de Albuquerque
Costa (2020), a violência obstétrica é mais um ato contra
mulher, que historicamente é um indivíduo omisso com a
cultura de dominação e inferiorização das mulheres e reforça a
ideia que esses atos violentos são naturais e acabam passando
para as mulheres das próximas gerações. Os atos violentos que
não são sofridos fisicamente podem ser constatados nos atos
simbólicos, levando nesse caso, a perda do direito de
autonomia em um processo natural, como o parto por exemplo.

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139
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

De acordo com Oliveira e Kubiak (2020), mulheres


negras são as que mais sofrem com a violência obstétrica, sendo
a maioria das mulheres que relatam esses atos, o que nos
mostra uma realidade importante sobre a saúde da mulher
negra, que sofre não só com o sexismo como também o racismo
nas instituições. O racismo institucional interfere diretamente
na relação que os profissionais de saúde tem com essas
pacientes, pois trazem para a prestação de serviço ideologias
como “mulheres negras são mais resistentes a dor”, o que
justifica, por exemplo, um índice menor de expectativa de vida
e um índice maior de mortalidade materna entre mulheres
negras em relação a mulheres brancas.
Assis (2018), traz a importância da interseccionalidade,
por exemplo, considerando as necessidades de cada grupo
social para que assim se faça valer a justiça social. O fato de
mulheres negras serem as mais violentadas, traz a tona a
necessidade de uma atenção especial para a saúde das mulheres
negras.
No Brasil, as políticas de saúde pública ainda não
acolhem a saúde da população negra, em especial da mulher
negra, de forma a quebrar as barreiras do racismo e facililitar o
acesso dessa população a um serviço de saúde que preze pelos
princípios defendidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS),
sistema esse que foi conquistado por uma boa parte dos
movimentos negros, que cresceram e começaram também a ter
papel fundamental nos movimentos populares de saúde. Outro
dado importante que reforça a violência obstétrica em mulheres
negras, é que não há muitos estudos sobre a saúde da mulher
negra nas Ciências da Saúde, o que faz nos questionar o motivo
desse cohecimento não ser recohecido, mesmo que os dados

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140
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

mostrem índices altos de mulheres negras vítimas de violência


obstétrica. (WERNECK, 2016)
Vargas e Batista (2016), falam sobre as mulheres negras
que vivem no campo e nas comunidades quilombolas,
segmentos que são os mais pobres da população brasileira e
estão em situação de vulnerabilidade social. São mulheres que
vivem em condições insalubres de sobrevivência e trabalho, que
sofrem com o risco de posse dos seus territórios e que em sua
maioria, não tem grau de escolaridade. Esse é um dos reflexos
das mulheres vítimas da violência obstétrica no Brasil. Por isso
a importância de se reivindicar políticas e serviços de saúde
específicas para as mulheres negras que atedam às suas
necessidades.
Palma e Donelli (2017), trazem um estudo sobre os
sentimentos que as mulheres vítimas da violência obstétrica
vivenciam e como afeta a saúde mental da mulher, e até mesmo
o bebê, pois há prejuízos na relação mãe e filho. As mulheres
relatam medo, insegurança e desconforto, pois, a maiorias das
vezes sentem que sua privacidade foi violada. Relatam também
que não se sentem à vontade para fazer perguntas durante os
procedimentos que passam na gravidez, parto e puerpério.

METODOLOGIA

O estudo se deu através de uma revisão integrativa de


literatura, com o objetivo de identificar trabalhos que
abordassem a violência obstétrica entre mulheres negras e a
importância do estudo para as políticas e prestações de serviço
de saúde a essas mulheres.

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141
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

Durante a pesquisa, realizada entre os meses de junho e


julho de 2020, foi usada a base de dados do Portal Regional da
Biblioteca Virtual em Saúde-BVS. Foram usados os seguintes
descritores: “Violência obstétrica” AND “Psicologia” AND
“Mulher” AND “Racismo institucional”.
No total, foram encontrados 248 trabalhos na busca livre
de filtros através da combinação dos descritores: (1) “Violência
obstétrica” AND “Psicologia” (f=89); (2) “Mulher” AND
“Racismo institucional” (f=158); (3) “Violência obstétrica” AND
“Racismo institucional” (f=01).
Foram usados os seguintes critérios de inclusão para
que tivesse resultados mais exatos: estudos publicados nos
últimos 5 anos, ou seja, de 2015 a 2020; em formato de artigo;
língua portuguesa. Após o critério de inclusão, o número de
artigos passou para 17, de acordo com a combinação dos
descritores a seguir: (1) “Violência obstétrica” AND
“Psicologia” (f=09); (2) “Mulher” AND “Racismo institucional”
(f=07); (3) “Violência obstétrica” AND “Racismo institucional”
(f=01). Para os critérios de exclusão, foram considerados textos
repetidos e que não estavam relacionados a temática do
trabalho, sobrando apenas 07 artigos, como mostra a Tabela 1.

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142
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

Tabela 1: Artigos selecionados para análise


PORTAL REGIONAL BVS
C1 C2 C3
Busca livre 89 158 01
Com critérios de 09 07 01
inclusão
Com critérios de 07 04 01
exclusão
Total 04 02 01
Nota: C1 - “Violência obstétrica” AND “Psicologia”; C2 - “Mulher” AND
“Racismo institucional”; C3 - “Violência obstétrica” AND “Racismo
institucional”.

As análises dos resultados da pesquisa são apresentadas


em forma de quadro (Tabela 2), no qual contém informações
como: Título do artigo, revista, autor(es), ano da publicação,
objetivo e principais resultados. Nas colunas destinadas ao
objetivo e os principais resultados, o texto foi copiado da
íntegra dos artigos que foram utilizados para a pesquisa. Os
resultados e discussões foram divididos em duas categorias: os
principais fatores que reforçam a violência obstétrica e a
necessidade de uma atenção especializada na saúde da mulher
negra.

RESULTADOS E DISCUSSÕES

A partir da leitura dos artigos, foi feita uma reflexão


acerca da maior incidência de violência obstétrica entre as
mulheres negras em relação a mulheres brancas, considerando
que essas mulheres estão mais suscetíveis a vulnerabilidade
social e consequentemente sofrem mais com a violência em suas
várias formas. Outro ponto a ser considerado é a saúde da

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143
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

mulher negra, que não é estudada e desconsiderada nas


Ciências da Saúde, mesmo que essas mulheres são as que mais
sofram com a violência obstétrica decorrente do sexismo e do
racismo.
Tabela 2: Artigos analisados na revisão integrativa sobre violência obstétrica
entre mulheres negras
AAr Principais
t. Título Revista Autor(es) Objetivos Resultados Aan
o
11 Saúde da Saúde e VARGA, Objetiva Conforme 2016
população Socieda István van discutir dados de 2012,
negra e da de Deursen; sobre o Maranhão
mulher BATISTA, Saúde da tem população
como Luís população estimada de
políticas Eduardo negra e da 6.714.314
públicas e mulher habitantes,
campos como dos quais
intelectuais: políticas 25,19% estão
subsídios públicas e em extrema
para um campos pobreza. É
estudo de intelectuai uma das
caso sobre o s maiores
racismo concentrações
institucional de população
sistêmico negra (cerca
de 74% da
população) e a
maior
concentração
de população
rural (61,90%
dos
domicílios), e
tem o maior
número de
comunidades
quilombolas
da federação –

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144
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

abrangem-se
atualmente
467
comunidades
certificadas
pela Fundação
Palmares
22 Racismo Saúde e WERNEC Apresenta Trata-se de 2016
institucional Socieda K, Jurema r algumas assunto vago
e saúde da de informaçõ que, na maior
população es acerca parte dos
negra dos casos, é
processos ignorado pela
de maioria de
formulaçã pesquisadoras
o desse e
campo pesquisadores,
conceitual estudantes e
a partir profissionais
das de saúde no
demandas Brasil
dos
moviment
os sociais
organizad
os e das
formulaçõ
es de
especia-
listas.
33 Violência Psico PALMA, Esta Os resultados 2017
obstétrica Carolina pesquisa apontam que
em Coelho; objetivou durante o
mulheres DONELLI, verificar a parto 52,3%
brasileiras Tagma ocorrência das gestantes
Marina de sentiu-
Schneider violência se inferior,
obstétrica vulnerável e
em insegura;
mulheres 49,8% sentiu-
brasileiras se exposta e

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

sem
privacidade. A
vivência de
violência no
parto
apresentou
correlação sig
nificativa com
idade,
escolaridade e
renda familiar.
Através da
análise de
regressão
múltipla,
verificou-se 12
práticas
de atendiment
o ao parto que
mostraram-se
preditores
significativos
de violência
no parto,
explicando
34,9% da
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trica. Percebe-
se que
intervenções
desnecessárias
são realizadas
em nome de
uma falsa
impressão de
que, quanto
mais
se intervém,
mais se cuida.
44 Interseccion Serviço ASSIS, Objetiva Entende-se 2018

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146
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

alidade, Social & Jussara trazer os que


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pesquisad a manutenção
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147
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

institucional.
66 Violência CADER DE O A violência 2020
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acesso à
informação,
entre outros
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ocasionando
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postura,
constatada
pelo
crescimento
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judiciais.
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obstétrica no NOS S, Silvia aproximar identificadas
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148
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

mulheres direitos abordados o


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o conceito
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obstétrica
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tramitam
no
Congresso
Nacional
brasileiro
sobre o
tema.

A partir dos estudos feitos, foram consideradas duas


categorias para se discutir os resultados obtidos na pesquisa:

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149
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

OS PRINCIPAIS FATORES QUE REFORÇAM A


VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA

Nesta primeira categoria foram apresentados três (f=03)


trabalhos sobre os pincipais fatores que reforçam a violência
obstétrica.
De acordo com de Brito, Oliveira e de Albuquerque
(2020), a violência obstétrica é legitimada através da violência
de gênero e acaba sendo desconsiderada por ter sido
naturalizada. Por mais que atualmente a temática esteja sendo
mais discutida e os casos de violência obstétrica estejam sendo
tratados judicialmente, ainda há, por parte dos agentes da
justiça, um desconhecimento sobre o tema, o que acaba
refletindo nos processos judiciais, onde esse crime é amenizado
e consequentemente reforçando a ideia das práticas
consideradas violência obstétrica, serem naturalizadas.
O machismo reforça os atos violentos através da
dominação masculina, que interfere no corpo da mulher, na sua
posição social e consequentemente sua dignidade. Os processos
vinvenciados pelas mulheres, como a parturição, passam a ser
desligitimizados como processos que causam dor e sofrimento
às mulheres, onde o corpo feminino passa a servir somente para
exploração. Sobre o corpo da mulher há o domínio do Estado e
do patriarcado, garantindo o silencio e obediência das vítimas.
(MARQUES, 2020)
Palma e Donelli (2017) trazem alguns outros aspectos
que justificam a naturalização e a falta de percepção da
violência sofrida por essas mulheres. Alguns dos fatores estão
relacionados com o nível de escolaridade, nível socioeconômico
e que tem uma menor renda, isso porque essas mulheres estão

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150
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

em uma situação de vulnerabilidade, além de sofrer com uma


estrutura de subordinação.
Portanto, a violência obstétrica é o reflexo de uma
sociedade patriarcal, que reforça os atos violentos sofridos pelas
mulheres. Os direitos reprodutivos e sexuais das mulheres
ficam nas mãos de um sistema de justiça onde em sua maioria
são homens que seguem as ideologias de uma sociedade
patriarcal, e as mulheres ficam sem representatividade, na
maioria dos casos que vão para julgamento. Há também a se
considerar as questões socioeconômicas e o nível de
escolaridade, que reforçam a situação de vulnerabilidade social,
mais um fator que fortalece a estrutura de subordinação.

A NECESSIDADE DE UMA ATENÇÃO ESPECIALIZADA


NA SAÚDE DA MULHER NEGRA

Nesta segunda categoria foram apresentados quatro


(f=04) trabalhos sobre a necessidade de uma atenção
especializada na saúde da mulher negra.
Assis (2018) traz que a violência obstétrica entre
mulheres negras é mais comum, comparado a mulheres
brancas, do que imaginamos e ocorre desde o primeiro contato
com a instituição que as mulheres buscam, ainda na recepção,
através de expressões verbalizadas. Há a necessidade de se
discutir alguns termos, como interseccionalidade e racismo
institucional dentro dessas instituições de saúde, visto que as
mulheres sofrem além do sexismo, o racismo que acaba
legitimando a violência obstétrica em sua maioria, em mulheres
negras. A maioria dessas mulheres se encontra em

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151
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

vulnerabilidade social, o que também reforça os altos índices de


mulheres negras vítimas dessa violência.
Corroborando com Oliveira e Kubiak (2019), a violência
obstétrica sofrida pelas mulheres negras é legitimada pelas
ideologias racistas que existem desde o Brasil colônia, que são
presente inclusive dentro dos espaços públicos e privados de
saúde. Reflete o quanto os profissionais de saúde ainda são
regidos por essas ideologias e que as Ciências da Saúde ainda
não reconhece o racismo um problema de saúde pública. Não
há estudos teóricos suficientes que possa ajudar na prática e
cuidados das mulheres negras.
De acordo com Vargas e Batista (2016), é urgente a
necessidade de uma política de saúde e de educação voltada
para as mulheres negras que atendam às suas necessidades.
Essas mulheres se encontram no campo, nas comunidades
quilombolas, trabalham em serviços braçais, uma grande parte
vive em situação de pobreza extrema e vivem sob constante
ameaça de terem suas terras retiradas de sua posse, perfil que
mais sofre com a violência e que necessitam de políticas de
saúde que estejam preparadas para receber as suas demandas
específicas e acolham seu sofrimento.
Werneck (2016) reforça a necessidade de estudos
voltados para a saúde da mulher negra, considerando que essas
mulheres são as que mais sofrem com violência obstétrica.
Apesar dos números significativamente altos, não há uma
literatura especializada para essa demanda no Brasil e muito
menos há espaço nas grades dos cursos de graduação e pós-
graduação que tratem sobre o assunto. O fato de não ter
materiais teóricos ao dispor dos profissionais de saúde reflete

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152
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

em uma prática que não atende às necessidades das mulheres


negras e acaba colocando a vida dessas mulheres em risco.
Desta maneira, faz necessário o investimento em
estudos, desde a graduação, e capacitação de profissionais da
saúde para atender a população negra como forma de melhor
atender as demandas, buscando uma saúde de qualidade e que
chegue a todos de forma justa, como é proposto pelo Sistema
Único de Saúde (SUS).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo feito através deste trabalho mostra que a


violência obstétrica ainda é uma pauta recente entre a
comunidade acadêmica, tanto quanto o racismo institucional
dentro das clínicas e hospitais, que reforçam o alto índice de
mulheres negras vítimas de violência obstétrica. Nos estudos
feitos durante a produção do trabalho, foram considerados os
aspectos sociais, onde a maioria das mulheres se encontrava em
vulnerabilidade social, ou seja, são mulheres que vivem em
lugares pouco acessíveis, que tem renda baixa e com pouco
nível de escolaridade.
Poucos estudos foram encontrados sobre o assunto,
entre esses, não havia a violência obstétrica somente em
traumas físicos, como também verbais e psicológicos. No caso
das práticas psicológicas, a violência é mais difícil de ser
reconhecida, pois apesar das mulheres se sentirem
desconfortáveis, os atos são classificados como brincadeiras e
piadas e são praticados por pessoas que as mulheres confiam.
Portanto, constatou-se a importância de uma política de
saúde voltada para os cuidados das mulheres negras,

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153
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

reconhecendo que essas mulheres sofrem mais com a violência


obstétrica e consequentemente fazem parte de uma estatística
negativa, onde as vidas dessas mulheres são perdidas.
A psicologia se faz presente nas práticas hospitalares e
apesar da sua atuação ainda ser recente nas maternidades, já é
reconhecido a importância do profissional na área. Ainda não
há muitos estudos sobre a Psicologia Obstétrica no Brasil, e
consequentemente as práticas dos profissionais nas
maternidades é pouco reconhecida entre os outros profissionais
na área. A psicologia tem um papel fundamental para a
garantia da integridade das mulheres, tanto nas práticas de
prevenção, como de cuidados das vítimas de violência
obstétrica e por isso se faz necessário mais estudos da
psicologia para aperfeiçoar as práticas do psicólogo (a) nessas
áreas.

REFERÊNCIAS
ASSIS, Jussara Francisca de. Interseccionalidade, racismo
institucional e direitos humanos: compreensões à violência
obstétrica. Serviço Social & Sociedade, n. 133, p. 547-565, 2018.

DE BRITO, Cecília Maria Costa; OLIVEIRA, Ana Carolina


Gondim de A.; DE ALBUQUERQUE COSTA, Ana Paula
Correia. Violência obstétrica e os direitos da parturiente: o
olhar do Poder Judiciário brasileiro. CADERNOS IBERO-
AMERICANOS DE DIREITO SANITÁRIO, v. 9, n. 1, p. 120-140,
2020.

MARQUES, Silvia Badim. Violência obstétrica no Brasil: um


conceito em construção para a garantia do direito integral à

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154
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

saúde das mulheres. CADERNOS IBERO-AMERICANOS DE


DIREITO SANITÁRIO, v. 9, n. 1, p. 97-119, 2020.

OLIVEIRA, Beatriz Muccini Costa; KUBIAK, Fabiana. Racismo


institucional e a saúde da mulher negra: uma análise da
produção científica brasileira. Saúde em Debate, v. 43, p. 939-
948, 2019.

PALMA, Carolina Coelho; DONELLI, Tagma Marina


Schneider. Violência obstétrica em mulheres brasileiras. Psico,
v. 48, n. 3, p. 216-230, 2017.

VARGA, István van Deursen; BATISTA, Luís Eduardo. Saúde


da população negra e da mulher como políticas públicas e
campos intelectuais: subsídios para um estudo de caso sobre o
racismo institucional sistêmico. Saúde Sociedade, 25 (3) Jul –
Set, 2016.

WERNECK, Jurema. Racismo institucional e saúde da


população negra. Saúde e Sociedade, v. 25, p. 535-549, 2016.

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155
Gênero, mulheres, raça e
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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

MULHERES TRANSGÊNERAS E TRAVESTIS DA


AMÉRICA LATINA: HISTÓRICO DE LUTA E
RESISTÊNCIA SOB A LUZ DA DECOLONIALIDADE

Flávia Alves da Silva


Arthur Luiz de Oliveira dos Santos

INTRODUÇÃO

Em 28 de junho de 1969, o evento atualmente conhecido


como “A Revolta de Stonewall” foi o pontapé inicial para a luta
dos direitos LGBTQ+ nos Estados Unidos, motivado
principalmente para ir contra a violência policial que era
vivenciada na época contra a comunidade. Podemos dizer que
graças aos ativistas que estiveram presentes no evento, mais
especificamente à Marsha P. Johnson uma travesti negra,
soropositiva, prostituta e que liderou essa reviravolta contra a
opressão LGBTQ+fóbica, hoje em dia podemos compreender
melhor as questões relacionadas a gêneros e sexualidades
(LELIS, 2019, p. 2).
E por que seria tão importante citar a Revolta de
Stonewall e também o nome de Marsha P. Johnson ao falar
sobre o movimento das travestis e das transsexuais da América
Latina e consequentemente, do Brasil? Marsha, como citado
anteriormente, foi uma travesti que lutou por anos pelos
direitos dessa comunidade. Ela e demais representantes dos
EUA inspiraram o movimento LGBTQIA+ brasileiro a partir de
suas mobilizações em busca de direitos civis (MENEGHINI,
2017, p. 11).

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157
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

No Brasil, também tivemos um episódio marcante para


a contribuição dos direitos dessas pessoas no país. Por volta de
1983, uma revolta bem semelhante ao que aconteceu nos EUA,
foi um grande marco para a população LGBTQ+ brasileira. Na
cidade de São Paulo, o evento conhecido com o Levante ao
Ferro’s Bar, protagonizado por lésbicas e apoiado por grupos
feministas, proporcionou uma maior implementação a luta de
lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais para
conquistar cada vez mais espaço na sociedade e ter a
possibilidade de circular por espaços públicos no dia a dia
(MENEGHINI, 2017, p. 21).
A revolta se deu depois que os donos do bar proibiram a
circulação do jornal Chana com Chana, que tinha como público
alvo lésbicas e mulheres bissexuais. Apesar de se tratar de uma
ação LGBTQ+fóbica, ainda sim, era notável que existiam
questões ligadas diretamente ao gênero. Homens gays, por
exemplo, tinham maior espaço e mais visibilidade do que
mulheres do movimento. E quando se tratava então de
mulheres transexuais e travestis, a marginalização destas era
ainda maior (SEMINÁRIO NACIONAL DE MÍDIA E
CULTURA, 2019, p. 232).
Souza e Silva (2017, p. 107) falam sobre alguns
estereótipos relacionados as mulheres trans e travestis, tais
como: barulhentas, falam muito alto, são espalhafatosas, muito
grandonas, não é delicada o suficiente para ser mulher,
barraqueira, escandalosa, etc. Tais adjetivos são formas de
discriminação dessas sujeitas e as tiram cada vez mais liberdade
de viverem suas vidas.
Desde muito antes, mulheres TT’s sempre foram
submetidas ao preconceito e estigmatização por não serem

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158
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

vistas como dignas de respeito e empatia diante da sociedade.


Seu reconhecimento ao gênero feminino era negado, o acesso à
saúde e educação também eram comprometidos.
Consequentemente, a única solução que se tornava viável para
essas pessoas era recorrer à prostituição como meio de sustento
financeiro e assim, eram expostas a situações que colocavam
suas vidas em risco sendo por acabarem contraindo alguma IST
(infeção sexualmente transmissível) ou sendo vítimas de
agressões, ou até a mesmo sendo mortas (OLIVEIRA, 2018, p.
169).
Já em relação ao tráfico e mortes de travestis e
transexuais, Ferreira (2018, p. 529, tradução nossa) ainda traz
que, se há uma grande marginalização e criminalização das
pessoas trans no Brasil devido a fatores sexuais, raciais, de
classe social e a não aceitação de seus corpos, essas duas
condições chamam a atenção ao se considerar a vulnerabilidade
do meio LGBTQ++ para a exploração sexual, tendo uma
imagem comum e fixa de instabilidade e rejeição no ambiente
doméstico e mercado de trabalho.
A partir desta informação, pode se dizer que com
relação à violência contra a população negra, relatada nos
dados do feminicídio e do transfeminicídio, dos povos
indígenas, entre outras, o Estado aparece como um agente
fundamental na distribuição diferencial de reconhecimento de
humanidade, tirando direitos fundamentais das minorias
sociais e as deixando em condições desumanas. Em países
colonizados como o Brasil, essa marginalização e a estrutura
opressora é ainda mais forte para as pessoas trans, pois, como
disse Paulo Freire, em “Pedagogia do Oprimido” (2005, p. 54), o
fatalismo dos oprimidos se origina de uma situação histórica e

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159
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

sociológica, não sendo um traço da forma de existência desse


povo.
Dessa forma, como podemos abordar as
transidentidades a partir de uma perspectiva decolonial? Ou
seja, como abordar as transidentidades sem uma visão
eurocentrada ou tendo como ponto de partida os países do
norte, como os Estados Unidos? E mais, fugindo da perspectiva
cisgênero? Quais são as batalhas das mulheres trans e travestis
da América Latina e por que estas são reduzidas a demandas
dos países tidos como desenvolvidos? Este trabalho se orienta a
partir de tais questionamentos.
A partir disto, este trabalho tem como objetivo principal,
elencar estudos de mulheres transgêneras e de travestis
brasileiras e principalmente negras, sobre seu histórico de luta e
resistência e, como objetivos específicos, discutir as identidades
de gênero trans a partir de inflexões decoloniais e,
contextualizar esses conceitos em território brasileiro, a partir
de uma revisão de literatura.
A justificativa para a escolha desta temática se deu a
partir da necessidade de pensar a decolonialidade a partir dos
estudos de gênero, voltados principalmente para as identidades
transgênero. Necessidade esta que foi percebida a partir da
escassez de estudos decoloniais voltados para esse público.
Também foi pensada na importância de estudar as
transidentidades a partir de estudos de mulheres trans e
travestis, principalmente as da América Latina e as negras, a
fim de dar visibilidade aos seus estudos e respeitar seu local de
fala, fugindo de estudos eurocentristas e de pesquisadores
exclusivamente cisgêneros.

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160
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

REFERENCIAL TEÓRICO

Para a fundamentação desta pesquisa, foram


consultados autoras e autores de referência e demais
pesquisadores nos estudos de decolonialidade, gênero,
transexualidade e travestilidade. Na construção dos resultados
e discussões, essas temáticas foram dividas nos subtópicos
“Transexuais e travestis brasileiras” e “Colonialidade e
decolonialidade das transidentidades”.
Sobre as autoras consultadas acerca das identidades
trans, demos preferência a buscar materiais de mulheres
transgêneras, negras e brasileiras, a citar: Megg Oliveira, que é
doutora em educação e professora universitária, Yordana Rêgo,
historiadora e antropóloga, Jaqueline Gomes de Jesus,
psicóloga, doutora e professora universitária, Bruna Benevides,
que é Secretária de Articulação Política da ANTRA e primeira
mulher trans da marinha brasileira, e Leilane Assunção, que foi
a primeira professora universitária trans do Brasil, também
historiadora e doutora em ciências sociais.
Dentre as mulheres trans não-brancas ainda temos
Sayonara Nogueira, vice-presidenta do Instituto Brasileiro
Trans de Educação e professora de geografia e Emilly Mel
Fernandes de Souza, psicóloga e mestra em psicologia.
Um conceito chave para a compreensão deste estudo é o
conceito de travesti. A palavra travesti foi criada a partir da
palavra transvestir; que significa transformar, alterar o estilo,
natureza ou essência de algo ou alguém. Ser uma travesti não é
simplesmente praticar o crossdressing ou performar-se como
uma drag, vai além (FERREIRA, 2018, p. 526, tradução nossa).
A autora parte da ideia de que para a existência da

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161
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

travestilidade, pode-se adotar uma postura, nome e pronomes


femininos, se sentir e se vestir com roupas ditas femininas,
fazer terapias hormonais ou não. E mesmo com tais padrões
citados, ainda sim, ser uma travesti é algo subjetivo e singular,
onde cada vivência se torna única.
A noção de colonialidade surgiu com o sociólogo Aníbal
Quijano, que a conceituava como um padrão de poder
estruturante do mundo moderno, onde as subjetividades, os
conhecimentos e os seres humanos são hierarquizados, e sua
operação acaba por dominar a distribuição de riquezas
(QUIJANO, 2001 apud RESTREPO e ROJAS, 2010, p. 16,
tradução nossa). O autor é referência na temática por ser um
dos precursores e por abordar o tema em diversas obras onde,
no trecho citado, fica evidente que esta estrutura de poder não
está presente apenas de forma observável, mas também de
forma inconsciente e “automática”.
Sendo assim, o colonialismo é diferente de
colonialidade, mas a colonialidade é encontrada no
colonialismo, pois o colonialismo é uma forma de dominação
político administrativa e a colonialidade é um padrão de poder
global (RESTREPO e ROJAS, 2010, p. 16, tradução nossa).
Partindo desta ideia, a colonialidade vai além da experiência do
colonialismo, sendo representada em situações atuais e
legitimando as diferenças sociais.
É importante abordar também, para o entendimento da
discussão, a distinção entre descolonização e decolonialidade.
A descolonização, como o nome sugere, se trata do processo de
superação do colonialismo, envolvendo a independência
política de colônias, como no caso do Brasil. Já a
decolonialidade é o processo em que se transcende

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162
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

historicamente a colonialidade (RESTREPO e ROJAS, 2010, p.


16-18, tradução nossa). De acordo com o autor, esse processo
envolve, inclusive, a problematização do eurocentrismo,
defendendo a descentralização do conhecimento e formas de
poder provenientes do continente europeu.

METODOLOGIA

Este estudo é fruto de uma pesquisa qualitativa, por ter


como objetivo descrever e compreender fenômenos sociais,
neste caso a resistência das mulheres transgênero e travestis,
além de, para isso, investigar documentos e textos voltados
para a perspectiva dessa população em específico (FLICK, 2009,
p.16).
Trata-se, assim, de uma pesquisa exploratória, a fim de
promover mais informações sobre a temática investigada,
muito presente em pesquisas bibliográficas. Por sua vez, essa é
uma pesquisa bibliográfica, pois foi elaborada a partir de
materiais já publicados, como artigos científicos, jornais, teses,
entre outros, colocando os autores em contato direto com
material já escrito sobre o assunto do estudo (PRODANOV e
FREITAS, 2013, p. 51-54).
As referências utilizadas neste trabalho foram coletadas
nas bases Google Acadêmico e SCIELO, datadas entre os anos
de 2009 a 2020, com exceção do clássico Pedagogia do
Oprimido, de Paulo Freire, onde sua primeira publicação
ocorreu em 1970. Foram encontrados e utilizados materiais
brasileiros, ou internacionais, principalmente oriundos da
América Latina, porém já traduzidos do inglês para o

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163
Gênero, mulheres, raça e
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português ou consultados em espanhol pelos autores e


traduzidos para o português.

RESULTADOS E DISCUSSÕES

TRANSEXUAIS E TRAVESTIS BRASILEIRAS

De acordo com o Dossiê realizado pela ANTRA


(Associação Nacional de Travestis e Transexuais do Brasil) em
2019, o Brasil é o país que mais mata travestis e transexuais no
mundo. Os crimes contra essas pessoas crescem a cada ano e a
forma como acontecem sempre deixam claros a demonstração
de ódio por tais indivíduos. O preconceito evidenciado no país
muitas vezes se baseia em discursos religiosos, principalmente
de origem Cristã, reforçando e conservadorismo, fanatismo
religioso e até mesmo discursos políticos conservadores sobre a
“família tradicional” e os “cidadãos de bem”.
Tais discursos políticos e religiosos acabam
influenciando para a propagação de cada vez mais ódio contra
pessoas LGBTQ+. Porém, diferente do restante das outras letras
da sigla, pessoas trans e principalmente mulheres trans e
travestis sentem ainda mais dificuldades em viver suas vidas e
conviver perante nossa sociedade. Essa determinada população
sempre está em conflitos relacionados a sua existência, ainda
mais se tratando de TT’s negras (REGO, 2019, p. 173).

Por que o Movimento Social de Negras e Negros não me


abraça? Por que não me ouve mesmo quando eu grito? Por que
o Movimento Social de Negras e Negros continua ignorando de
forma sistemática a situação de exclusão e violência que incide
sobre as existências de travestis e mulheres transexuais negras?

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164
Gênero, mulheres, raça e
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A resposta se anuncia, mas não pode ser tomada como algo


preciso (OLIVEIRA, 2018, p. 167).

Temos presente uma negritude brasileira que se


constitui a partir da cis heterossexualidade e ignora outras
possibilidades de expressões. As sexualidades que podem ser
consideradas desviantes, tais como a homossexualidade, a
travestilidade e a transexualidade, seriam uma forma de traição
da raça para alguns movimentos raciais e religiosos. Seguindo
então esse raciocínio, o Movimento Social de Negras e Negros
estaria a serviço dessa tal normatização e normalização da cis
heterossexualidade (OLIVEIRA, 2018, p. 168).
Esse posicionamento, justificaria a invisibilização de
travestis e mulheres transexuais no seu interior. É importante
procurar reposicionar o papel central de travestis e mulheres
transexuais na luta antirracista no Brasil e com propostas
práticas para o Movimento Social de Negras e Negros
(OLIVEIRA, 2018, p. 168). Esse posicionamento ainda evidencia
também a separação ainda existente entre os conceitos de
gênero, classe e raça, onde as mulheres trans são perpassadas
por esses três eixos pois, em sua maioria são negras e com
poucos recursos para sua sobrevivência, em detrimento da
exclusão por sua transidentidade.
Tanto o racismo quanto o sexismo são considerados
categorias plurais. Sendo assim, eles devem ser tratados, o que
faz da interseccionalidade uma ferramenta fundamental nesse
processo. Muitas vezes um estudo pode apresentar falhas
quando desconsidera os múltiplos fatores que envolvem o
objeto investigado, em especial nos estudos de gênero e
relações raciais (OLIVEIRA, 2017, p. 35). Neste sentido, a

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165
Gênero, mulheres, raça e
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pluralidade de atravessamentos que as mulheres trans e


travestis sofrem deve ser sempre levado em consideração ao
analisar suas resistências, que não são poucas no contexto
latinoamericano e principalmente no contexto brasileiro,
reforçador de estereótipos e discursos invalidantes.

COLONIALIDADE E DECOLONIALIDADE DAS


TRANSIDENTIDADES

Ao se tratar das identidades de gênero trans, se faz


necessário abordar o conceito de colonialismo e colonialidade,
onde este primeiro, resumidamente, se trata de um processo
onde um grupo dominante (colonizador) explora as riquezas e
a mão de obra do grupo colonizado (as colônias). A
colonialidade não se esgota no colonialismo, pois este padrão
de poder se estende até os dias atuais, envolvendo hierarquias
das mais diversas, como as territoriais, culturais e raciais. A
partir disto, formas de vida e de conhecimentos são
subalternizadas, dominadas e exploradas até a modernidade,
no que é conhecido por “sistema mundializado de poder”
(RESTREPO e ROJAS, 2010, p. 15-21).
Percebemos que as hierarquias não são só territoriais,
culturais e raciais, como mencionado anteriormente pelos
autores, há também a hierarquia de gênero patriarcal, onde
onde o poder do homem cisgênero se sobrepõe ao da mulher
cisgênera, e o de ambos se sobrepõem aos das identidades
transgêneras, principalmente o das mulheres trans, base da
pirâmide social. Tal hierarquia foi retratada por Chaves (2014,
p.1) como manifestante das assimetrias entre o que é masculino
e o que é feminino, onde o que se apresenta como feminino

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166
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

possui uma posição de subalternidade a partit de suas formas


de ser e de expressar, que são ditadas pelas chamadas matrizes
dominantes de gênero.
Prova de que ainda existe um legado colonial de poder
se dá pelo fato que trabalhos e pesquisas voltadas para as
transidentidades supõem um “pesquisador universal” que
apresenta essa população sob sua ótica sem compromisso com
suas lutas e demandas. É negado a essas identidades o local de
fala e de produção de conhecimento, seus saberes são
subalternizados e não chegam até a academia, conforme
abordou, Marin (2019, p. 4-5).
Marin (2019, p.8) trouxe também outro ponto
importante com relação às representações das identidades trans
que, quando são acolhidas pelo discurso cisgênero, só são
levadas em consideração enquanto corpos de sofrimento, dor e
morte. A experiência trans, principalmente a das mulheres, é
reduzida ao transfeminicídio e miséria, com sua resistência
deixada de lado em detrimento a um cenário de desamparo e
crimes de ódio.
Podemos dizer que o processo de
humanização/desumanização tem uma ligação direta ao
contexto escolar e educacional. A educação pode ser usada
como uma ferramenta central para o processo de cidadania dos
sujeitos. Tendo em vista que, grande parte da população trans e
travestis acaba não tendo acesso a maiores níveis de educação,
essa ação pode ser uma forma positiva para quebrar estigmas
preconceituosos enraizados na nossa sociedade (OLIVEIRA,
2017, p. 85).
Com relação ao lugar de fala, Paulo Freire acrescenta
que este não deve ser o lugar de alguns apenas. Traz também

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167
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

que as classes oprimidas devem se libertar a fim de conquistar a


capacidade de fazer uso da palavra a partir de seu local de fala.
Justifica este pensamento ao dizer que se a palavra é capaz de
transformar o mundo, dizê-la não deveria ser um privilégio
restrito a alguns, mas sim direito de todos, todos (FREIRE, 2005,
p. 91). Assim, cabe a luta para a permanência de corpos trans
nas escolas e nas universidades, a fim de reivindicar seu direito
à educação e à formação acadêmica, essenciais para a garantia
de uma representatividade trans nos espaços tidos como
exclusividade cisgênera. A educação precisa ser uma
alternativa para essa população, que se encontra, na maioria
das vezes sem escolha, restando apenas o caminho da
marginalização e da prostituição, sem direito ao uso de sua voz.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Através de estudos, pesquisas e vivências, nota-se a


relevância ao abordar questões relacionadas às diversidades
raciais, de gêneros e de sexualidades. Uma das motivações para
o desenvolvimento desse artigo se deu a partir da necessidade
de mostrar os enfrentamentos e a situação de vulnerabilidade
que a população transgênero e travesti vêm passando como
minoria social com relação à violência e invisibilidade em geral,
em contexto brasileiro.
Neste levantamento, pudemos perceber a importância
das transidentidades terem seu espaço de fala, pois só assim
serão compreendidas e representadas. Não se pode deixar que
apenas a cisgeneridade aborde suas vivências a partir de uma
visão de observador dominante e eurocentrista, exotificando
essas identidades e as cristalizando em espaços subalternos.

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168
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

Apesar das dificuldades, há grandes nomes de mulheres


transgênero e travestis que fogem às estatísticas e aos
estereótipos e, em meio às dificuldades, conseguem fazer com
que suas vozes sejam ouvidas, contando sua história e
produzindo teorias por conta própria, mesmo com julgamentos
e com tantos direitos negados.
Ademais, e faz relevante abordar as diversidades de
gênero a partir de uma perspectiva decolonial, que abra espaço
para uma diversidade cultural e geográfica, sem que haja uma
hierarquia de conhecimentos, pessoas, costumes e neste caso
também, de lutas. Há muito o que aprender com a história das
mulheres trans e travestis do Brasil, e essa história precisa ser
escrita e contada por elas. Mas, para isso, a hierarquia de
gênero patriarcal precisa ser superada, mesmo que esta ainda
seja uma ideia utópica.
A luta diária dessas pessoas para fazer com que suas
vivências sejam reconhecidas é de suma importância para o
desenvolvimento de novas políticas públicas e renovação das já
existentes. É cada vez mais necessário o debate através de
estudos que visem dar voz a essa comunidade fragilizada e
marginalizada historicamente a partir das estruturas de poder
da sociedade e com diversos atravessamentos dentro dos eixos
de gênero, classe e raça.
Também pode-se pontuar que dentre os estudos de
decolonialidade, há materiais sobre raça e classe, mas muito
pouco sobre gênero, e menos ainda sobre as identidades de
gênero trans. A constatação que chegamos é a de que apenas
essa minoria se interessa em debater suas pautas de forma
política, a cisgeneridade está mais interessada em estudar sua
morte e sofrimento, pouco acrescentando ao movimento. Para

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169
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

que a decolonialidade evolua dentro do debate trans, é


necessário que esta população tenha acesso a espaços de debate.
Buscar compreender e abrir espaços para construções
positivas das pautas de gêneros, de raças e sexualidades, é um
papel da coletividade. O apoio que pode ser fornecido de
pessoas que estão em seus lugares de privilégios, acaba sendo
uma ponte de acesso para que mais pessoas TT’s possam
ocupar outros lugares diante da sociedade. Assim como já
existem políticas públicas que fornecem apoio a estas pessoas,
se faz necessário também que se disponha a desenvolver
projetos que viabilizem uma compreensão maior destes de caos.
O acesso a saúde, educação, moradia, empregos formais, entre
outros espaços, precisam ser concretizados não apenas em
papéis, mas sim colocados em práticas no dia a dia.
Por fim, este estudo espera ser uma contribuição para
que cada vez mais pesquisadores trabalhem a relevância de
identidades trans e travestis nas discussões de gênero a partir
de uma inflexão decolonial, fugindo do ponto de observador
universal, respeitando as diversidades e abrindo espaço para
que a travesti consiga chegar aonde deseja, seja na academia, na
saúde ou em qualquer outro lugar que ela desejar.

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

AS MULHERES TEKOÁ PYAU E O FEMINISMO


INDÍGENA

Letícia Hessel Machado


Cris Fernández Andrada

INTRODUÇÃO

Para iniciarmos a imersão no campo das aldeias urbanas


paulistanas e o Feminismo Indígena de maneira crítica e
comprometida com a realidade brasileira, propomos o destaque
para determinados assuntos, dentre eles: Povos Indígenas,
Mulheres, Mulheres Indígenas, Feminismo Indígena e Aldeias
Urbanas, especificamente a Tekoá Pyau, localizada na zona
noroeste da cidade de São Paulo.

POVOS INDÍGENAS

No documento “Povos Indígenas e Psicologia: a procura


do bem viver”, produzido pelo Conselho Regional de
Psicologia de São Paulo no XIV Plenário (2013-2016), há a
defesa de uma Psicologia crítica e comprometida com a justiça
social. De acordo com Elisa Zaneratto, então conselheira e
presidente e quem escreveu a apresentação do documento, é
preciso lançar luz sobre a condição das populações indígenas
no Brasil.
Zaneratto (2016) retoma a história do país dividindo-a
em três momentos em que houve assassinatos em massa de
certos grupos ou etnias. O primeiro momento corresponde ao

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175
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

da colonização, marcado pelo extermínio dos povos originários


e exploração do território. O segundo momento é caracterizado
pela escravização dos povos originários negros de países
africanos. E o terceiro momento tem como contexto o
desenvolvimento industrial, e é marcado pela exploração da
mão de obra de imigrantes de países europeus em crise.
Logo, a miscigenação brasileira tem como história a
violência, a exploração, o extermínio. Segundo Zaneratto (2016),
o etnocídio destruiu traços culturais através da valorização das
culturas dos países dominantes, consequentemente
estabelecendo padrões de moralidade. Esse processo social,
cultural e histórico constitui a subjetividade das brasileiras e
brasileiros e está presente nas relações cotidianas, isto é, nos
afetos, sofrimentos, medos, utopias e desejos.
Para Elisa Rosa (2016), a Psicologia deve se atentar a tais
processos e necessita discutir a questão dos povos indígenas,
para que possa contribuir nas suas lutas pela dignidade e bem
viver. Além disso, defende a reinvenção das teorias, das
perspectivas de análise da dimensão subjetiva e das referências
de atuação.
O documento em questão se propõe a reconhecer o
protagonismo dos povos indígenas permitindo que os mesmos
participem da produção, para que assim a Psicologia possa
pensar sobre os processos constitutivos de subjetividades
atravessadas pelo extermínio, luta e resistência.
Segundo o site oficial da Fundação Nacional do Índio
(FUNAI)9, o órgão indigenista oficial do Estado brasileiro foi
criado através da Lei nº 5.371, de 5 de dezembro de 1967, e seus

9Fundação Nacional do Índio. FUNAI. Disponível em: <http://www.funai.gov.br/>.


Acesso em: 8 abr. 2019.

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176
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

princípios abrangem o reconhecimento da organização social,


costumes, línguas, crenças e tradições dos povos indígenas,
visando assim um Estado pluriétnico e democrático. A FUNAI
tem como objetivo promover estudos de identificação e
delimitação, demarcação, regularização fundiária, monitorar e
fiscalizar terras indígenas, e fazer registros de terras
tradicionalmente ocupadas por povos indígenas. Além disso, é
responsável também pela implementação e coordenação de
políticas de proteção aos povos isolados e recentemente
contatados.
Segundo o Censo Demográfico do IBGE realizado em
2010, há 305 diferentes etnias com o registro de 274 línguas
indígenas. A população indígena corresponde a 817.963
pessoas, sendo 502.783 (61%) moradoras da zona rural e 315.180
(39%) residentes em áreas urbanas. Este Censo indicou que há
populações indígenas em todos os estados brasileiros, incluindo
o Distrito Federal. As regiões Sudeste e Sul apresentam o menor
número de indígenas, sendo São Paulo, no Sudeste, e Rio
Grande do Sul, no Sul, os estados com maior número de
indígenas em suas regiões.
Dentre as informações presentes no site oficial da
FUNAI, está a de que as comunidades indígenas têm
enfrentado diversos problemas, como invasões e degradações
territoriais e ambientais, exploração sexual, uso de drogas,
exploração de trabalho e êxodo desordenado.
Segundo a Comissão Pró-Índio de São Paulo (CPI-SP)10,
em 2000 a população indígena na América Latina era de 30

10Fundada em 1978 por antropólogos, advogados, médicos, jornalistas e estudantes


atua junto às populações indígenas e quilombolas (desde 1989) para garantia de seus
direitos territoriais, culturais e políticos através de capacitações, produção de material

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177
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

milhões de pessoas, sendo 12 milhões moradoras de áreas


urbanas. As razões principais para que os índios vivam nas
cidades são: movimento de migração das terras de origem para
as cidades e crescimento das cidades que acabam alcançando as
terras indígenas, que passam a integrar a área urbana. Estas
situações são encontradas na cidade de São Paulo nas terras
indígenas Guarani nas zonas sul e oeste, isto é, Terras Indígenas
Jaraguá e Tenondé Porã.
Ainda de acordo com a CPI-SP11, somado aos problemas
que as pessoas que residem nas periferias enfrentam, como
desemprego, condições precárias de moradia, violência, falta de
assistência à saúde, os indígenas moradores das cidades
também enfrentam problemas específicos, como invisibilidade,
desconsideração do poder público, questionamento de suas
identidades étnicas e escassez de espaço coletivo para
manifestações culturais.
A dissertação de mestrado “Tekoá Pyau: território de
luta e resistência Guarani no Jaraguá (SP)”, produzida por
Nathália Lucas Tavares de Souza em 2010, analisa as aldeias
indígenas Guarani Tekoá Ytu e Tekoá Pyau, localizadas na zona
noroeste da cidade de São Paulo, próximas ao Parque Estadual
do Jaraguá. Nesta região houve a construção do Rodoanel
Mário Covas, que potencializou a pressão sobre as aldeias e
reduziu as condições necessárias para a sobrevivência destes
povos, porém, a resistência étnico-cultural manteve-se intacta.

didático, divulgação de informações sobre tais populações, projetos de inclusão


econômica e monitoramento do Poder Público.
11 Comissão Pró-Índio de São Paulo. CPI-SP. Disponível em: <http://cpisp.org.br/>.

Acesso em: 8 abr. 2019.

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178
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

As aldeias vivem conflitos derivados do frequente assédio pelos


loteamentos clandestinos, requerimento ilegal de terras
agrícolas do lugar somada à proibição de sua permanência nas
áreas do Parque Estadual, bem como, de uso e exploração.
Porém, a população indígena que ali vive procura manter os
costumes Guarani, passando as crianças sua forma de viver e
sua luta. (SOUZA, 2010, p. 15).

Diante de tantas dificuldades encontradas pelas aldeias


do Jaraguá, Souza (2010) alega que este contexto configura um
embate entre os direitos e sobrevivência indígenas contra a
expansão da cidade e especulação imobiliária. As aldeias Tekoá
Ytu e Tekoá Pyau são submetidas à miséria e ao cotidiano
marcado por preconceitos, rejeição e abandono, embora tenham
conseguido manter a língua, os costumes e a tradicional
educação Guarani.
Além do recorte racial/étnico, que se mostra atrelado ao
recorte de classe, o presente estudo também se propõe a
delimitar o gênero.

MULHERES

No documento de “Referência para a atuação de


psicólogas(os) em Serviços de Atenção à Mulher em situação de
Violência”, produzido em 2013 pelo Conselho Federal de
Psicologia (CFP) na gestão entre os anos de 2011 e 2013, há a
discussão acerca da transformação da concepção de gênero no
decorrer da história.
Este documento afirma que a visão antes dualista, em
que havia oposição entre o que é ser mulher e o que é ser
homem, deu espaço para uma visão que considera a relação

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179
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

entre homens e mulheres como produto de processos sócio-


históricos, simbólicos, construídos e que podem ser
transformados. Tal concepção mais atual apresenta uma
percepção mais integral dos seres humanos e da sexualidade.
No entanto, também é necessário considerar que as
divisões de gênero são resultado das relações de poder e
participam da manutenção e exploração do modo de produção
capitalista. Segundo o documento elaborado pelo CFP em 2013:

[...] o gênero precisa ser analisado como uma categoria


atravessada por outros marcadores identitários que produzem
explorações como orientação sexual, raça/etnia, geração,
relações urbano rurais, poder aquisitivo, capital cultural,
escolaridade, dentre outros. [...] Essas relações de desigualdade
produzem violência contra as mulheres sejam elas mais ou
menos vulneráveis. (p. 58).

Ainda de acordo com o documento do Conselho Federal


de Psicologia, a chamada tripla discriminação (de gênero, de
raça e de classe) continua presente nos grupos, configurando
maior vulnerabilidade de determinados grupos, como mulheres
negras e de classe baixa.
A denominada tripla discriminação pela produção do
CFP, é também chamada de consubstancialidade, um conceito
proposto por Danièle Kergoat (2010) que defende que as
opressões não correspondem a influências, mas a
atravessamentos, pois constituem os sujeitos. Nos casos em que
há mais de uma forma de opressão, não falamos em soma das
mesmas, mas em uma formação de outra condição de existência
marcada e construída pelo sexismo, racismo e classismo, em
que uma forma de opressão não se mostra hierarquicamente

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

superiorxaxoutra. Desta forma, devemos considerar as


peculiaridades das condições de existência e sobrevivência das
mulheres indígenas, cujas experiências provavelmente são
marcadas pelo sexismo, racismo e classismo.

“NÃO SOMOS FILHAS DA EUROPA” (JULIETA PAREDES)12

Em “Mulheres indígenas: diálogo sobre a vida na


cidade”, artigo elaborado a partir da dissertação de Mestrado
com o mesmo título de Claudina Azevedo Maximiano,
publicado em 2013, há análise dos discursos de duas mulheres
indígenas que vivem na cidade de Manaus, capital do estado do
Amazonas, e trabalham como empregadas domésticas.
Ainda nesta obra, a autora cita Stuart Hall13 ao discorrer
sobre o novo espaço social que provoca a reconstrução das
identidades, no caso, das mulheres indígenas que se mudaram
para um espaço urbano. Além disso, há a identificação com
elementos da sociedade não indígena, potencializando a ideia
de Hall de que a identidade é dinâmica e o sujeito passa por
processo de autoidentificação e/ou construção da própria
identidade.
Segundo Maximiano (2013), a inserção no novo espaço
social acarreta confrontos frente à não aceitação da identidade

12 Julieta Paredes é uma estudiosa e ativista boliviana do Feminismo Comunitário,


corrente do Feminismo Latino-
Americano,Xsobretudoxdexpovosxoriginários.XDisponívelxem:
<https://www.diarioliberdade.org/entrevistas/mulher-e-lgbt/18926-em-la-paz-com-
julieta-militante-feminista-boliviana-nos-nao-somos-filhas-da-europa>. Acesso em: 15
mai. 2019.
13 Stuart Hall era um teórico cultural e sociólogo jamaicano autor da obra “Identidade

cultural na pós-modernidade”, cuja 1ª edição foi lançada em 1992.

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181
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

étnica dos agentes sociais por parte dos “não índios”,


ilustrando tal fato com o preconceito sofrido pelos indígenas
que residem em Manaus. O cotidiano retrata a complexidade
da questão étnica na cidade, no convívio com o diferente, na
relação com outros sujeitos resultando em situações que geram
conflitos. Assim, o “caráter identitário emerge como um veículo
de defesa de demarcação de fronteiras no apelo ao respeito à
diferença” (Maximiano, 2013), por exemplo, buscando os
direitos junto à Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e outras
organizações indígenas na cidade.
Percebe-se então peculiaridades quanto às possíveis
demandas das mulheres indígenas. Segundo Hernandez (2008),
há uma preocupação quanto à construção de um feminismo
que leve em conta a diversidade de contextos em que as
mulheres estão inseridas, o que implica em diferentes formas
de vivências das desigualdades de gênero e formas de
enfrentamento para a transformação.

“O QUE SIGNIFICA SEU ‘NÓS’, MULHER BRANCA?”


(MARÍA LUGONES)14

A partir da leitura da tese de doutorado de Silveira, de


2018, chamada “Mapulu, a mulher pajé - A experiência
Kamaiurá e os rumos do feminismo indígena no Brasil” cujo
objetivo é a investigação do fenômeno de “mulheres indígenas
ocupando o espaço do mundo sagrado, dominando práticas de
cura e pajelança, tendo acesso ao restrito universo de forças e

14 María Lugones é uma filósofa feminista argentina e estudiosa do Feminismo


Descolonial. Esta frase está presente em sua obra “Rumo a um feminismo descolonial”
(2010) que utilizaremos neste estudo.

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182
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

poderes invisíveis, tradicional domínio masculino” (Silveira,


2018), percebemos que para começar a falar do Feminismo
Indígena é preciso voltar na história da invasão portuguesa nas
terras hoje chamadas de Brasil, ver como as mulheres chamadas
de indígenas (sendo que tal nomenclatura colonizadora
também deve ser revista) eram vistas.
Para Silveira (2018), havia dualidade da mulher
indígena, que era vista como promíscua ao mesmo tempo em
que era considerada ameaçadora, além de sofrer diversas
tentativas de “domesticação” através do catolicismo. No
entanto, toda a história foi contada por homens brancos. Por
isso há quem defenda que a história do Brasil deva ser contada
de uma maneira feminista, afinal, as mulheres indígenas eram
consideradas figuras secundárias em seu próprio contexto.
Após recontar a história brasileira é preciso revisitar as
condições das mulheres latino-americanas e considerar as
particularidades sócio-históricas marcadas pelo patriarcalismo,
colonialismo e imperialismo. Surge assim o Feminismo
Descolonial que se debruça na luta contra as opressões sofridas
pelas mulheres latino-americanas. E dentro da Teoria do
Feminismo Descolonial há o aparecimento do Feminismo
Comunitário, que busca a defesa/conquista dos direitos
coletivos, da comunidade.
A autora afirma a importância de se fazer recortes de
contexto, pois como afirma Julieta Paredes: “Não somos filhas da
Europa”. Nossas condições, enquanto mulheres latino-
americanas, são peculiares, logo temos diferentes demandas
que foram construídas como respostas nas fissuras do modelo
da exploração, da colonização e do patriarcado.
Ainda segundo Silveira (2018), as mulheres indígenas

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183
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

não se veem contempladas pelo Movimento Feminista


convencional, tampouco pelo Movimento Indígena, uma vez
que a condição de mulher indígena é peculiar frente à condição
de mulheres e de homens indígenas. Atualmente podemos
encontrar mulheres indígenas liderando movimentos na luta
por seus direitos, na discussão sobre demarcação de terras,
sobre a condição da mulher indígena muitas vezes vítima de
violências.
Para aprofundarmos a compreensão acerca do assunto
proposto neste tópico, é necessário discorrer brevemente sobre
“Colonialidade e Gênero” (2008) de María Lugones15, um texto
estratégico para discutir sobre Feminismo Descolonial, uma vez
que reúne as principais investigações sobre o tema. Para tanto,
todos os argumentos que aparecerão neste tópico estão
presentes na obra de Lugones. Faremos desta forma para evitar
um excesso de referências a um mesmo texto. A autora cita
Quijano, Allen e Oyewùmi para sustentar a investigação, e tais
autoras também serão citadas aqui.
De maneira geral, o artigo de autoria de María Lugones
investiga a interseccionalidade entre raça, classe, gênero e
sexualidade a partir do denominado Sistema Moderno/Colonial
de Gênero. Ressalta que as mulheres não brancas - termo
utilizado no texto - são aquelas vítimas da colonialidade do
poder e da colonialidade de gênero, conceitos que serão
trabalhados mais adiante.
Lugones sustenta a existência do Feminismo Descolonial
através de análises críticas do Feminismo Hegemônico
(feminismo das mulheres burguesas brancas), que não abarca as

15 LUGONES, Maria. Colonialidad y género. Tabula Rasa, n. 09, p. 73-101, 2008.

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184
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

mulheres não brancas, como as indígenas, mestiças, negras,


mexicanas e porto riquenhas. Além disso, busca compreender a
indiferença - de homens que são vítimas da dominação racial,
da colonialidade do poder e inferiorizados pelo capital global -
diante da violência contra a mulher não branca.
A autora afirma que falar de feministas não brancas
significa considerar as mulheres vítimas de dominação e
exploração violentas. A perspectiva epistemológica se
diferencia do Feminismo Hegemônico por focar na intersecção
das categorias raça, gênero, classe e sexualidade. Portanto, a
base do Feminismo Descolonial consiste na resposta às
situações históricas de coerção em todas as dimensões da
organização social, a partir da investigação histórica da
alteração das relações comunais e a subordinação da mulher
colonizada em relação ao homem colonizado.
Lugones parte de conceitos trabalhados por Quijano,
sobretudo a Colonialidade do Poder, que corresponde ao
entrelaçamento de processos da produção de raça e gênero
diante do poder global capitalista. No entanto, Lugones faz
acréscimos ao que Quijano chama de poder capitalista
eurocentrado e global, cuja organização se dá em dois eixos:
colonialidade do poder e modernidade. A principal crítica de
Lugones acerca da produção de Quijano refere-se à aceitação do
significado hegemônico de gênero, um significado que é
biologizante e imposto colonialmente. Assim, com o auxílio de
Allen e Oyewùmi16, fala em Sistema Moderno-Colonial de Gênero,
que considera a dissolução forçada e crucial de vínculos de

16Allen e Oyewùmi são estudiosas da concepção de Gênero enquanto uma imposição


colonial. Allen refere-se à Americanas/os Nativas/os, enquanto Oyewùmi investiga
as/os Yoruba do continente africano.

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185
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

solidariedade entre as vítimas da dominação e exploração,


sendo que dominação e exploração são centrais na
colonialidade.
Lugones compactua com a ideia presente na obra de
Quijano, que afirma que no capitalismo há a necessidade de
naturalização das identidades e das relações de colonialidade,
tais fenômenos são guiados pela produção de determinadas
formas de conhecimento. Em seguida, discorre sobre outro
fenômeno, relacionado diretamente com a colonialidade, que
podemos conhecer como Mito Fundador.

De modo mitológico, se entendeu que a Europa, como centro


capitalista mundial que colonizou o resto do mundo, pré-existia
ao padrão capitalista mundial de poder e, como tal, constituía o
momento mais avançado e em curso contínuo, unidirecional e
linear das espécies.17 (LUGONES, 2008, p.81).

Assim, a partir desta mitologia houve a divisão


dicotômica da população mundial, europeus enquanto
superiores, racionais, civilizados e modernos. Já as outras
pessoas pertencentes ao grupo daqueles que são inferiores,
irracionais, tradicionais e primitivos. Esta concepção sustenta a
ideia de que a dominação e exploração dos europeus em outros
territórios na verdade correspondeu a um caminho
unidirecional das espécies, isto é, um processo inevitável.
Diante das considerações históricas que devem ser feitas
para desnaturalizar fenômenos que são tidos como dados, não
como construídos social e historicamente, Lugones propõe a
necessidade de se abordar a interseccionalidade de raça e

17 A tradução deste trecho foi feita pela pesquisadora.

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186
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

gênero no esquema proposto por Quijano. Este processo de


historicização também é utilizado pela Psicologia Sócio-
Histórica - cujos aspectos centrais são utilizados para a
discussão deste estudo - para a compreensão dos fenômenos a
partir do entendimento da construção multideterminada,
levando em conta aspectos históricos, sociais, políticos e
culturais, para então ser possível pensar em transformações da
realidade.
Outro ponto que evidencia a importância da
historicidade, e da utilização da Sócio-Histórica para
discutirmos o tema, também está presente na obra de Lugones.
A autora refere-se à Allen, outra estudiosa que afirma a
existência de muitas comunidades tribais matriarcais de
Nativas/os Americanas/os, inclusive reconheciam
positivamente a homossexualidade e entendiam os gêneros em
termos de igualdade.
Para tanto, segundo Lugones (2008), gênero
corresponde a uma ferramenta de dominação introduzida de
forma binária e hierárquica. Logo, a inferiorização das mulheres
indígenas está vinculada à dominação e transformação da vida
tribal.
Oyewúmi, estudiosa da colonialidade de gênero no
continente africano, também é citada por Lugones, sobretudo
quando se refere à colonização como um processo dual de
inferiorização racial e subordinação de gênero.

[...] os feminismos do século XX, não se fizeram explícitas as


conexões entre gênero, classe e a heterossexualidade como
racializadas. Esse feminismo focou sua luta, e suas formas de
conhecer e teorizar, contra uma forma de caracterização das
mulheres como frágeis, débeis tanto corporal como

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187
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

mentalmente, restritas ao espaço privado e sexualmente


passivas. Mas não explicitou a relação entre estas características
e a raça, e somente constroem a mulher branca e burguesa.
(LUGONES, 2008, p. 94)18

Para tanto, é necessário construir um feminismo que


considere as opressões de raça/etnia e classe, para além da
opressão relacionada ao gênero. Ao considerar estas
intersecções, a colonialidade é fundamental para a discussão e
consequentemente para o entendimento da luta, tendo como
horizonte a transformação social. Estes argumentos aparecem
em outra obra de Lugones, chamada “Rumo a um feminismo
descolonial”.19

Descolonializar o gênero é necessariamente uma práxis. É


decretar uma crítica da opressão de gênero racializada, colonial
e capitalista heterossexualidade visando uma transformação
vivida do social. [...] o feminismo não fornece apenas uma
narrativa da opressão de mulheres. Vai além da opressão ao
fornecer materiais que permitem às mulheres compreender sua
situação sem sucumbir a ela. Começo aqui a fornecer uma
forma de compreender a opressão de mulheres subalternas
através de processos combinados de racialização, colonização,
exploração capitalista, e heterossexualismo. (LUGONES, 2010,
p. 940 - 941).

As informações e estudos referenciados, evidenciam a


necessidade da Psicologia em lançar luz sobre a subjetividade

18Tradução feita pela pesquisadora.


19LUGONES, María. Rumo a um feminismo descolonial. Revista Estudos Feministas,
Florianópolis, v. 22, n. 3, p. 935-952, set. 2014. ISSN 1806-9584. Disponível em:
<https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/36755>. Acesso em: 20 abr. 2020.
doi:https://doi.org/10.1590/%x.

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188
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

das populações indígenas, assim como se fazer presente e


contribuir nas lutas por visibilidade e pela garantia de direitos
dos indígenas e das mulheres. Desta forma, o presente trabalho
mostra-se relevante por apontar para um compromisso ético-
político da Psicologia enquanto ciência e profissão, em
consonância com as demandas deste campo e contexto
.
“AGORA MEU POVO SE ENCONTRA UM POUCO MELHOR
NA ALDEIA ALDEIA PYAU PICO DO JARAGUÁ, PODE PÁ,
QUE LÁ É NOSSA QUEBRADA, DE LÁ NINGUÉM VAI NOS
TIRAR”20

Considerando a necessidade de se fazer um apanhado


histórico para demonstrar uma das contradições do modelo
capitalista: que não protege as populações originárias, ao
mesmo tempo que permite construções que poluem, desmatam
e exterminam a biodiversidade local; além dos entraves
colocados pela legislação ambiental (necessária, porém precisa
ser revista para saber para quem vale); e o direito pela
demarcação de terras, nos debruçaremos sobre o território
indígena Tekoá Pyau.
Na dissertação de mestrado “Tekoá Pyau: território de
luta e resistência Guarani no Jaraguá (SP)” de 2015, a autora
Nathalia Souza trabalha as questões delicadas e complexas que
perpassam o território da aldeia indígena urbana Tekoá Pyau,
também conhecida como "aldeia de cima", enquanto a Tekoá
Ytu é chamada de "aldeia debaixo". A aldeia Tekoá Pyau, de

20 Música e letra disponíveis no YouTube através do link:


<https://www.youtube.com/watch?v=lczH-Uykz94> cujo nome do vídeo é “MC WERA
- Retomada de Terra”.

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

aproximadamente 2 hectares, é composta por 78 famílias e por


volta de 600 Guaranis, além de ser a menor área indígena do
Brasil (Souza, 2015).
As aldeias estão próximas ao Parque Estadual do
Jaraguá21, área de Mata Atlântica localizada na zona noroeste
da cidade de São Paulo, configura uma Área de Preservação
Permanente (APP) desde 1961. Logo, não são permitidos
nenhum tipo de utilização dos recursos do ambiente, mesmo
que seja por povos tradicionais, embora a mesma lei deva
garantir a satisfação das necessidades materiais, sociais e
culturais destas populações (Souza, 2015).
Em 1994, o Parque Estadual do Jaraguá foi tombado,
pela UNESCO, como patrimônio histórico da humanidade.
Aqui se instala então uma contradição entre o que é permitido
pela lei e o que os povos tradicionais necessitam para
sobreviver e manter o grupo. O que torna a situação ainda mais
questionável é o fato de que o Rodoanel Mário Covas, que de
certa forma delimita as terras Tekoá, foi construído em 2002 e
que, segundo Souza (2015), poluiu mananciais. Além disso, a
Rodovia dos Bandeirantes, construída em 1978 e que também
delimita o território Tekoá, tomou parte das terras dos povos
indígenas que ali vivem.

21 “O Parque Estadual do Jaraguá abriga um dos últimos remanescentes de Mata


Atlântica da região metropolitana de São Paulo. É representado pelo icônico morro do
Jaraguá, onde está localizado o Pico do Jaraguá, que representa o ponto mais alto da
cidade de São Paulo, com 1.135 metros de altitude e proporcionando ao visitante um
vislumbre inusitado e belo da maior cidade da América Latina. São 492 hectares de
áreas de conservação localizadas na região noroeste da cidade de São Paulo, no bairro
do Jaraguá.” Trecho retirado do site do Governo do Estado de São Paulo.
Disponível em: <http://www.saopaulo.sp.gov.br/conhecasp/parques-e-reservas-
naturais/parque-estadual-do-jaragua/>. Acesso em: 20 nov. 2019.

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

A maior fonte de renda da comunidade Tekoá Pyau é


oriunda do CECI (Centro de Educação e Cultura Indígena),
uma escola indígena bilíngue, construída na gestão da Marta
Suplicy (PT) - com início das obras em 2000 - em que muitos
trabalham como professoras/es, nas equipes da cozinha, faxina,
etc. Os Tekoá Pyau também vendem artesanatos na aldeia,
entretanto, ainda dependem de doações (Souza, 2015).
De acordo com relatos transcritos na dissertação de
mestrado de Souza (2015), a comunidade local descarta lixo nas
terras Tekoá Pyau, além de terem ocorrido diversos episódios
em que pessoas apareceram e alegaram serem donas daquelas
terras, obrigando os membros da aldeia a resistirem a todo
momento e lutar pelos seus direitos. Este fato se deve, segundo
os Guaranis, ao pensamento de que é preciso somente da área
das casas, não considerando que se trata de uma população
indígena que faz uso dos recursos naturais, inclusive
necessitam da terra para plantar.
O cenário das moradoras e moradores da Tekoá Pyau é
o seguinte: a terra não é demarcada, essa luta atravessa anos e
configura um processo excessivamente demorado; por estar
próximo ao Parque Estadual do Jaraguá e não haver
reformulações na legislação desta área de preservação, não
podem utilizar os recursos naturais, e o pequeno território que
ocupam é pedregoso, o que dificulta ainda mais o plantio; sem
contar a ausência de saneamento básico e energia elétrica; lutas
diárias em defesa de seus direitos; e sobrevivência conturbada
em meio à comunidade.
Segundo Souza (2015), a Tekoá Pyau apresenta uma
peculiaridade que desperta curiosidade por ainda estar viva,
isto é, embora enfrente constantemente “ações de reintegração

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

de posse, proibição de uso da área do Parque Estadual do


Jaraguá, reserva florestal de Mata Atlântica, mas que ainda
assim, se firmam no espaço geográfico atribuindo-
lhextodaxefetividadexculturalxexétnica”x(resumo).
Tendo em vista todas as considerações feitas até o
momento, propusemos a pesquisa com o intuito de lançar luz
sobre a experiência das mulheres da aldeia urbana Tekoá Pyau.

ESCOLHAS DE MÉTODO

Considerando que deve haver cuidado para não


colonizar os saberes e as experiências, a etnografia se faz
potente por permitir que a partir do convívio, da construção de
uma relação de confiança para então decidirmos, juntas, a partir
da observação etnográfica, os instrumentos de apoio. A escolha
do método etnográfico se deu para garantir a primazia do
campo, a imersão em outra forma de ver o mundo, de vivenciar
mesmo não deixando de ser quem sou, mas respeitando e
legitimando quem elas são. Muitos estudos se utilizam dessa
perspectiva teórico-metodológica na Psicologia Social,
especialmente quando se trata de povos tradicionais (Sato e
Souza, 2001; Andrada, 2018).
Foi necessária uma preparação acadêmica e pessoal para
poder estar por inteiro de maneira que a não encaixá-las em
teorias, saberes eurocêntricos e colonizadores, saber que somos
diferentes, e por isso permitir que vivamos de formas distintas
e tenhamos relação, criação de vínculo, estabelecimento de
relação de confiança. Então, identificamos e conversamos com
as mulheres que estavam dispostas a falar sobre suas vidas,
suas histórias, para com o intuito de compreendermos os

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

aspectos da dimensão subjetiva da experiência de mulheres


indígenas da aldeia urbana Tekoá Pyau, marcada pelas
opressões quanto à raça/etnia, gênero e classe. Especificamente
nos debruçamos sobre o entendimento dos processos
psicossociais no que tange à identidade e à relação delas com o
chamado Feminismo Indígena.
A presente pesquisa configurou-se como um estudo de
Psicologia Social, nível graduação, de cunho qualitativo,
fundamentada na proposta metodológica da etnografia,
desenvolvida no campo das populações indígenas paulistanas.
O objetivo principal da pesquisa é compreender aspectos da
dimensão subjetiva da experiência de mulheres indígenas da
aldeia urbana Tekoá Pyau - localizada na zona noroeste da
cidade de São Paulo - marcada pelas opressões quanto à
raça/etnia, gênero e classe.
As escolhas de método fundamentaram-se
primordialmente em observações etnográficas, e fizeram uso de
entrevistas e fotografias como instrumentos de apoio. Vale
ressaltar que houve um uso mais ampliado da fotografia como
linguagem, pensamento, engajamento e instrumento
importante na pesquisa em Psicologia Social (Sato, 2009)22.
Devido ao fato de que a fotografia ganhou maiores proporções

22Existem muitos trabalhos que usam a fotografia como linguagem importante. Para
saber mais sobre o assunto, sugerimos a leitura de “Olhar, ser olhado e olhar-se: notas
sobre o uso da fotografia na pesquisa em psicologia social do trabalho” (2009) de Leny
Sato.
Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-
37172009000200007>. Acesso em: 15 mai. 2020. E “Sobre Susan Sontag: a fotografia como
pensamento engajado” (2017) Disponível em:
<http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/discursosfotograficos/article/download/2636
7/pdf>. Acesso em: 15 mai. 2020.

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193
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

durante o trabalho de campo, podemos afirmar que se trata de


uma fotoetnografia.
Como material produzimos o diário de campo, como
fonte empírica, ou seja, materialização da experiência
etnográfica. O diário foi analisado por meio dos aportes
teóricos da Psicologia Sócio-Histórica em diálogo com o método
etnográfico.
Como direções procedimentais da pesquisa, seguimos
as seguintes etapas:
1. Revisão Bibliográfica, de início e de modo transversal,
sobre o campo social e conceitual da pesquisa, recorrendo
especificamente a leituras e investigações históricas,
sociológicas e psicossociais sobre populações indígenas e o
chamado Feminismo Indígena;
2. Submissão do Projeto para avaliação do Comitê de
Ética em Pesquisa da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo no dia 14 de outubro de 2019, e aprovação do Projeto no
dia 31 de dezembro de 2019;
3. Prospecção do Campo, com três etapas nitidamente
marcadas: a) promoção e atualização de contatos com pessoas
ligadas à aldeia Tekoá Pyau; b) visitas iniciais e entrega da carta
de apresentação da pesquisadora; c) apresentação e acordos
sobre os termos da pesquisa com as participantes,
especialmente quanto aos cuidados éticos que foram tomados
em todo o desenvolvimento do estudo, em consonância com a
legislação vigente (Res. N. 466 de 12/12/2012 –
MS/CNS/CONEP);
4. Realização da observação etnográfica, com utilização
de instrumentos de apoio: fotografias e entrevistas. Estes
instrumentos foram acordados com as três participantes que

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194
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

protagonizaram o diário de campo23, com base nos objetivos da


pesquisa e em consonância com a revisão bibliográfica. Os
materiais empíricos deveriam ter sido revistos e editados, com a
anuência das participantes, que também receberiam cópias do
material para revisão, como foi acordado. No entanto, devido
ao contexto de crise sanitária - assunto que retomaremos mais
adiante - e medidas de proteção à saúde, as idas ao campo
foram interrompidas, porém serão retomadas assim que as
condições forem seguras para ambas as partes. Estes materiais
continuam armazenados sob sigilo, em computador de uso
pessoal da pesquisadora, ao qual apenas ela tem acesso;
5. Análise Qualitativa, a partir da sistematização dos
materiais, apoiada na revisão bibliográfica, e confecção dos
textos finais.
Como um resultado direto da pesquisa, esperou-se
reunir, em publicação de amplo acesso e circulação, materiais
de mulheres Tekoá Pyau sobre processos psicossociais no que
tange à identidade e à relação delas com o chamado Feminismo
Indígena. Assim, de modo geral, esperou-se contribuir para a
compreensão de aspectos da dimensão subjetiva da experiência
cotidiana de mulheres indígenas de aldeias urbanas, marcada
pelas opressões quanto à raça/etnia, gênero e classe.
A observação etnográfica na perspectiva de uma
“prática etnográfica” - como pressupõe Magnani (2009) -
embora não seja de longa duração, pretende-se fazer uma
permanência sistemática em campo, assim, pode apresentar
possíveis desconfortos e riscos afetivos decorrentes da
participação na pesquisa, no entanto, asseguramos que

23 As mulheres que protagonizaram o diário de campo foram: Kátia, Laura e Patrícia.

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195
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

tomamos todos os cuidados possíveis para evitar, minimizar ou


mesmo reparar estes desconfortos, antes, durante e após a
realização do processo.
Em termos procedimentais, realizamos oito visitas de
campo no período de 4 de janeiro de 2020 a 15 de fevereiro de
2020. Além de experiências preliminares de campo, cujos
relatos se referem a um evento aberto ao público realizado no
Sesc 24 de maio nos dias 7 e 8 de setembro de 2019.
As experiências anteriores ao campo, e as visitas
propriamente ditas, foram relatadas e descritas em diário de
campo em 46 páginas, que se encontram disponíveis no
capítulo de resultados.
O processo de escrita e o trabalho de campo foram
afetados pela pandemia da COVID-19, em que, dentre as
medidas de enfrentamento ao coronavírus, estava/está o
isolamento social na cidade de São Paulo desde março de
2020.24 Embora a maior parte do trabalho em campo já tivesse
sido feito, ainda será necessário retornar para uma reunião
devolutiva com as mulheres sobre o processo da pesquisa. Será
feito tão logo possível. Inclusive a página no Instagram chamada
Luta Guarani25, administrada por uma das lideranças jovens da
Tekoá Pyau, solicitou em março de 2020 que, por maior que seja
a necessidade de doações de alimentos, produtos de higiene e
roupas neste momento de crise, para que as pessoas evitassem
visitá-los, uma vez que podem atuar enquanto vetores do vírus.

24 Para maiores informações sobre o isolamento social na cidade de São Paulo, acesse o
link: <https://www.saopaulo.sp.gov.br/coronavirus/isolamento/>. Acesso em: 20 jun.
2020.
25Para acompanhar o cotidiano e as lutas das aldeias do Jaraguá, acesse o link:

<https://www.instagram.com/lutaparquejaragua/>. Acesso em: 20 jun. 2020.

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

Diante deste contexto complexo e que exige delicadeza,


o retorno será feito somente quando não houver mais
possibilidade de risco a nenhuma das envolvidas no estudo, ou
seja, somente com o fim da crise sanitária.

EXPERIÊNCIA ETNOGRÁFICA

A seguir apresentaremos trechos das experiências


preliminares ao campo e do Diário de Campo, com o intuito de
compreender aspectos da dimensão subjetiva da experiência de
mulheres indígenas da aldeia urbana Tekoá Pyau, marcada
pelas opressões quanto à raça/etnia, gênero e classe.
Especificamente buscaremos entender processos psicossociais
no que tange à identidade e à relação delas com o chamado
Feminismo Indígena.

EXPERIÊNCIAS PRELIMINARES AO CAMPO:


ENCONTROS COM GUARANIS E HUNI KUIN26

Na roda de conversa com os Huni Kuin, população


indígena da floresta Amazônica Acreana, mais especificamente
das terras do rio Jordão próximas à fronteira com o Peru, no dia
7 de setembro de 2019, realizada na biblioteca do Sesc 24 de
Maio, Renato Maná, Zenira Nixiani e José Mateus Itsairu,
professora/es Huni Kuin mostraram as cartilhas desenvolvidas
pelo seu povo em contrapartida as cartilhas entregues pelo
governo, afinal, além de estarem escritas na segunda língua (o

26Evento aberto ao público realizado no Sesc 24 de Maio - nos dias 7 e 8 de setembro de


2019 - com lideranças dos povos Huni Kuin e Guarani M’bya.

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

português) eram descoladas da realidade das crianças e jovens


Huni Kuin.
No dia seguinte, 8 de setembro de 2019, na praça de
convivência do Sesc 24 de Maio, houve outra roda de conversa
com os Huni Kuin (Renato Maná, José Mateus Itsairu e Zenira
Nixiani) e com outros três indígenas Guaranis que vivem no
Jaraguá-SP, David Popyguá, Carlos Papá Mirim e a filósofa
Cristine Takuá. Este encontro, dentro da jornada Shubu Hiwea
(Escola Viva), proporcionou o intercâmbio de saberes entre os
povos da Floresta Amazônica e Mata Atlântica acerca dos
desafios e possibilidades da Educação.
Cristine Takuá trouxe a seguinte questão sobre a
diferença de conceituação do que é feito pelos indígenas em
relação ao que é feito pelos não indígenas: “Não é arte, é
artesanato. Não é religião ou filosofia, é mito. Tudo é menos”27.
Em seguida disse que a tentativa de evangelização - como se
não existisse espiritualidade na cultura indígena - configura um
etnocídio, pois corresponde ao assassinato das almas dos
povos. Ainda segundo Takuá, esta cultura da razão, que prega
a ordem e o progresso, está esvaziando as memórias ancestrais,
estas guardadas na alma com as/os mais velhas/os. Critica o
desmatamento, a poluição das águas chamando tais atrocidades
de “estupro da terra” que é defendido em nome da ordem e do
progresso.
Após estes encontros - fundamentais como forma de
preparação para o trabalho de campo - e o processo de
submissão/aprovação do estudo pelo Comitê de Ética e

27Neste Capítulo de Resultados, as palavras e frases entre aspas dizem respeito às falas
das pessoas envolvidas no estudo.

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

Pesquisa, iniciamos as visitas no Jaraguá, como mostra a tabela


a seguir.

Tabela 1: quadro produzido pela pesquisadora para organização das idas a


campo (aldeia urbana Tekoá Pyau).

AS MULHERES TEKOÁ PYAU E O FEMINISMO INDÍGENA

MÊS /
DIA O QUE FIZEMOS
ANO

Povos unidos jamais serão vencidos!


04 - sábado
Chegada ao campo, primeiros contatos e
impressões
13 - segunda-
El colonizador eres tu!
feira
Conversa com as lideranças femininas

“Bandeirante é o melhor amigo do indígena, né?”


18 - sábado (Ari)
Janeiro de
Conversa com Ari, ex-cacique, e primeiro
2020
contato com Kátia
23 - quinta- “Acho que é só isso a minha história” (Kátia)
feira Encontro com Kátia, Guarani Nhandeva
moradora de uma aldeia Guarani M’bya
25 e 26 - Batismo das águas sagradas
sábado e Ritual Guarani atravessado pelas lutas dos
domingo povos originários
12 - quarta-
Jaraguá é Guarani!
feira
Primeiro contato com a Ocupação

Não mate a floresta! Índio não tem medo do


13 - quinta-
Fevereiro Estado!
feira
de 2020 Conversas com as lideranças sobre a criação
do Parque Ecológico
“Eles disseram para não nos assustarmos com o
barulho da motosserra” (Richard)
15 - sábado
Conversas com as lideranças sobre a
Ocupação e o abaixo-assinado

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199
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

O diário de campo encontra-se no Trabalho de


Conclusão de Curso completo e entregue para avaliação em
junho de 2020. Logo menos será disponibilizado na biblioteca
da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP),
campus Monte Alegre. No entanto, consideramos válido
compartilhar algumas fotografias produzidas durante o
trabalho de campo. Vale ressaltar que todas fotografias são de
Arquivo pessoal.

Foto 1: Entrada da aldeia Tekoá Pyau. No muro: “Aguyjevete - a nossa luta”


e “Povos unidos jamais serão vencidos”.

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Gênero, mulheres, raça e
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Foto 2: Batismo das águas sagradas.

Foto3: Estrutura de galhos, velas e penas. Batismo das águas sagradas.

Foto 4: Ocupação Guarani. Nas faixas: “SP Terra Indígena” e “Mãe Terra chora
– tombaram 4 mil árvores”

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Gênero, mulheres, raça e
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Foto 5: árvores de demarcação (com tarjetas) cortadas pela construtora na


Ocupação Guarani.

UMA ATUALIZAÇÃO NECESSÁRIA

O processo de ida a campo e de escrita do diário de


campo foram marcados pela crise sanitária da COVID-1928.
Neste cenário, as aldeias do Jaraguá pediam doações de
alimentos e produtos de higiene, e também que juruás
evitassem visitar a aldeia para não agirem como possíveis
vetores dos vírus. Outro fator preocupante, e que acompanhei
nas redes sociais, foi que, de acordo com os Guaranis, a polícia
aproveitou o período de isolamento social para realizar a
reintegração de posse29, embora a ocupação estivesse existindo

28 A temática da crise sanitária será abordada com maior profundidade no capítulo de


Discussão e Considerações Finais. Sugerimos a leitura de matérias sobre a pandemia,
como “Coronavírus: Brasil é um dos países mais afetados entre 75 países onde a
epidemia cresce”, de 15 de junho de 2020. Disponível em:
<https://www.bbc.com/portuguese/brasil-53047836>. Acesso em: 20 jun. 2020.
29 Para mais informações sobre ações policiais e da construtora na ocupação Guarani

durante o período de isolamento social, sugerimos a leitura do texto disponível em:


<https://ponte.org/indigenas-guarani-isolam-aldeias-e-denunciam-acoes-de-
construtora-durante-pandemia/>. Acesso em: 20 jun. 2020.

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em outro formato devido a um acordo com as autoridades, não


mais dentro do terreno, mas na calçada. Este acordo previa que
nada deveria ser feito no prazo de alguns meses, porém foi
quebrado em um momento de fragilidade mundial, durante a
pandemia do coronavírus, que dificulta qualquer tipo de
mobilização do movimento indígena.

DISCUSSÃO E CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este capítulo não se propõe a ser um capítulo de análise.


Vale destacar que grande parte da discussão foi feita no próprio
material, pois a análise do diário de campo, do ponto de vista
do método etnográfico, com interface da Psicologia Social, não
se separa o resultado. Dentre as premissas da etnografia está a
não cisão entre resultados e análise, ou seja, não se separa o
vivido do pensado a respeito (Sato e Souza, 2001; Andrada,
2018).
A partir da minha experiência em campo pude viver e
significar quem são essas mulheres indígenas, conhecer suas
lutas e saberes na relação tensa estabelecida entre a aldeia
urbana e a cidade a sua volta. Para tanto, com o intuito de
darmos continuidade às reflexões, organizar e sintetizar os
principais achados, teceremos alguns comentários gerais -
aspectos primordiais que tornaram-se centros nucleares da
nossa atenção na leitura e escrita - que apresentam relação
direta com o objetivo do presente estudo, no sentido de síntese
entre teoria e diário de campo articulados.
Tais comentários estão distribuídos em quatro eixos
temáticos: “Minha experiência em campo: para além da
monografia”, “Mulheres indígenas: identidade e vivências”,

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

“Lutas, Saberes e Feminismo Indígena” e “Contexto da relação


com a cidade”.

MINHA EXPERIÊNCIA EM CAMPO: PARA ALÉM DA


MONOGRAFIA

Minha experiência em campo foi marcada por cuidado,


por parte de todas/os que me receberam na aldeia, tanto as
lideranças, quanto Viviane, que faz parte de uma ONG.
Acolhimento que ao mesmo tempo convoca para um
comprometimento, que ultrapassa o “visitar”, e compreende o
campo da luta que pode ser comum, da luta que pode ser
construída coletivamente, e que lá - na aldeia - assume um
papel visceral.
Embora elas estejam envolvidas, cotidianamente, em
movimentos pela defesa de seus direitos, encontrei uma
disponibilidade sem igual, mesmo diante de um certo receio
com os juruás, receio este que entendemos facilmente, e que me
colocou no meu lugar, o lugar de uma mulher branca, mas que
pode somar, pode construir coletivamente.
O convite para o batismo, ensinamentos para falar
algumas palavras em Guarani, histórias, saberes, episódios
revoltantes de opressão, absolutamente tudo compartilhado
com carinho, força, potência, e sobretudo, atenção, isto é,
mulheres extremamente sensíveis a todo momento para
identificar qualquer necessidade de ação, já que se trata de uma
questão de sobrevivência.
O Guarani falado em cada canto da aldeia, cantado no
ritual com múltiplas vozes que preenchiam o espaço, configura
uma importante forma de resistência e preservação da cultura e

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Gênero, mulheres, raça e
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saberes, embora saibamos que nada é estático, que tudo está em


constante processo de transformação.
Ainda é possível sentir o cheiro da terra úmida, dos
cachimbos, do chimarrão, ouvir as canções e sentir a pulsação
dos passos firmes sobre o chão. Ainda é possível lembrar das
brincadeiras com as sobrancelhas que provocavam risos entre
as Guaranis da Tekoá Pyau, e o carinho das mães em seus
filhos, que acolhidos entre as pernas das mães, recebiam uma
massagem sobre suas cabeças com as pontas dos dedos firmes,
que pareciam fazer desenhos entre os fios de cabelos.
Para além de toda experiência, o que ficou foi o
ensinamento de que o cuidado com a comunidade e o espaço
em que vivemos é de responsabilidade de todas/os, e é isso o
que pretendo fazer, este vínculo não irá se restringir a alguns
encontros para o estudo, continuará em minha vida enquanto
um compromisso ético-político de uma cidadã, e futura
psicóloga, para com os povos originários.

MULHERES INDÍGENAS: IDENTIDADE E VIVÊNCIAS

Para que possamos continuar a reflexão, é preciso


ressaltar que os termos “índio/indígena” são termos
colonizadores, isto é, foram impostos pelos colonizadores
europeus, assim como “cacique”, que segundo Patrícia, é um
nome para juruá entender quem é a liderança. Por falta de
nomes mais adequados, continuaremos utilizando estas
nomenclaturas.
Na experiência de campo encontramos mulheres
indígenas que são mães, trabalhadoras, lideranças que afirmam
que vivem com um acúmulo de funções, já que são papéis que

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

demandam muito tempo e ações. Além disso, relataram


episódios de preconceito e violência, episódios absurdos, cruéis
que sinalizam para o que Jessé Souza, em “A ralé brasileira”30,
chama de subcidadania, em que algumas pessoas são
consideradas aprazíveis, enquanto outras desprezíveis, ou seja,
há uma hierarquia valorativa de pessoas em que umas valem
mais e outras menos.
O conceito de subcidadania também carrega a
culpabilização dos pobres e a criminalização da pobreza. Ao
mesmo tempo em que o Mito da Brasilidade - também presente
na obra de Jessé Souza - oculta as disputas sociais e a violência.
Por exemplo, têm-se a imagem social compartilhada do povo
brasileiro como pessoas afetivas, calorosas, malandras,
acolhedoras, sendo que esta imagem encobre o fato do país ser
fruto de estupros, agressões e crueldade, como o genocídio dos
povos originários e constantes violações de direitos daqueles
que sobreviveram.
E foi parte dessa população que é tida como
“subcidadã”, cuja história é encoberta pelo Mito da Brasilidade,
que encontramos nas aldeias Guaranis do Jaraguá, ora vista
como carente - portanto passível de receber doações como mera
expressão do voluntarismo - ora vista como perigosa, quando
reivindica por seus direitos (veremos com mais profundidade
no quarto eixo temático sobre o contexto da relação com a
cidade).
As Guaranis do Jaraguá fazem enfrentamentos diários
às inúmeras naturalizações eurocêntricas, além de identificarem
na própria aldeia “homens machistas” que questionam suas

30SOUZA, Jessé. A ralé brasileira: quem é e como vive. Belo Horizonte, Editora UFMG,
2009.

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Gênero, mulheres, raça e
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habilidades, capacidades e sabedorias de serem lideranças.


Mesmo diante das adversidades, elas continuam. Como disse
Patrícia: “Sou uma guerreira”, assim como vê todas suas parentes
- termo utilizado para se referir a outras indígenas - que
também são lideranças. Elas se identificam como guerreiras.
Para falarmos sobre identidade, devemos retomar que
este conceito foi desenvolvido por Ciampa com os aportes
teóricos da Sócio-Histórica, que considera o sujeito como
produto e produtor de seu tempo. Para Ciampa, a teoria da
Identidade corresponde a um jogo de construção permanente,
resultante de um processo em constante tensão e
transformação, afinal, não somos as mesmas de acordo com o
lugar e o papel que temos que desempenhar, ou seja, conforme
o lugar me expresso de determinada maneira. Logo, falamos de
Identidade metamorfose, em que o ser é múltiplo.

Defino identidade como processo de metamorfose, como


movimento das transformações que vão configurando nossas
identidades, seja como história de vida – um passado que se fez
pela minha atividade –, seja como projeto de vida – um futuro a
ser buscado a partir de meu desejo –, ou seja, desenvolver a
competência de falar e agir com autonomia para afirmar quem
sou e quem gostaria de ser.
[...]
O desafio é a prática que vai concretizar esse sentido
emancipatório, adotando uma política de identidade (coletiva)
que não negue a possibilidade de uma identidade política
(individual). Cabe ao próprio grupo chegar ao auto-
entendimento do que está sendo e do que gostaria de ser. Ele
tem que decidir com autonomia, senão cai naquela velha
questão da heteronomia: o “outro é quem diz para ele o que
deve fazer”. Pode-se afirmar que o sentido emancipatório surge
autenticamente apenas como auto-reflexão. O próprio grupo

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

precisa refletir sobre as condições materiais e históricas em que


se dão sua existência, sua atuação e seu reconhecimento, bem
como refletir sobre possibilidades e desejos de mudanças.
(CIAMPA, 2006)31

Estas mulheres presentes no diário de campo, mães,


trabalhadoras, que enquanto lideranças se identificam como
guerreiras, evidenciam a máxima expressão da luta cotidiana
por seus direitos e pela sobrevivência na cidade, na luta
pelas/os suas/seus. Luta está muito presente na fala de todas
elas, e é desta forma que começaremos o próximo eixo temático.

LUTAS, SABERES E FEMINISMO INDÍGENA

Como vimos no diário de campo, há diversas passagens


protagonizadas pelas lideranças das aldeias urbanas do
Jaraguá, em que as mesmas são linha de frente nos movimentos
de reivindicação pelos direitos dos povos originários. Além
disso, enfrentam, diariamente, o patriarcado, seja em episódios
de violência contra a mulher dentro e fora da aldeia, ou o
questionamento de suas habilidades, capacidades e sabedorias
para serem lideranças. Segundo elas, tal deslegitimação é feita
por “homens machistas”.
Embora em nenhum momento tenham se referido ao
movimento feminista, tampouco ao Feminismo Comunitário,
não quer dizer que não exista luta por igualdade e justiça em
termos étnicos/raciais e de gênero. Afinal, tais discussões não

31CIAMPA, Antônio da Costa. Constr. psicopedag., São Paulo , v. 14, n. 11, dez. 2006 .
Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1415-
69542006000100002&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 15 jun. 2020.

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Gênero, mulheres, raça e
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precisam aparecer com estes nomes/termos para que se


considere que elas estão ou não lutando.
A luta está no cotidiano, nas rodas de conversa, no
Guarani, na ocupação, nas inúmeras reivindicações por seus
direitos, no papel de liderança de uma aldeia, além das
tentativas diárias de se manterem vivas e garantirem a
sobrevivência das suas e dos seus.
Falar das mulheres da Tekoá Pyau é referir-se a uma
luta que se expressa tanto na luta pelos indígenas (mulheres e
homens) quanto pelas mulheres. Sendo que há reflexão,
organização e ação no coletivo. Isso é Feminismo Comunitário
na prática e que considera as categorias de opressões que se
encontram entrelaçadas e inseparáveis. Estamos falando de
consubstancialidade.
Como vimos, o conceito de consubstancialidade,
desenvolvido por Danièle Kergoat32, refere-se à relação entre os
mecanismos de opressão: raça, gênero e classe, sobretudo no
contexto da América Latina, marcado pela colonialidade, um
sistema de dominação-exploração que foi e é estruturado
consubstancialmente (relação simbiótica e não hierárquica) pelo
racismo, existência de classes sociais - que pressupõe a relação
de desigualdade - e o patriarcado. Diferentemente do conceito
de Interseccionalidade, que visa apenas a identificação das
opressões, Consubstancialidade tem como horizonte a
emancipação, isto é, a construção de estratégias de emancipação
política e humana (Brambilla, B., 2018. Comunicação pessoal,
aula ministrada em 06/03/2018). Vemos este fenômeno através

32O conceito de Consubstancialidade está presente na obra de Danièle Kergoat chamada


“Dinâmica e consubstancialidade das relações sociais”, 2010.

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das ações das mulheres lideranças das aldeias do Jaraguá,


embora o mundo acadêmico denomine como Feminismo
Comunitário ou Feminismo Indígena. A prática do Feminismo
Comunitário é afirmada pelas falas de Julieta Paredes em
entrevista no mês de maio de 202033:

O feminismo comunitário é a luta de qualquer mulher, em


qualquer parte do mundo, em qualquer tempo da história, que
luta e se rebela contra um patriarcado que a oprime ou
pretende oprimir [...]
[...] O feminismo comunitário, hoje em dia, também é uma
corrente de pensamento. Mas nós não nascemos da academia,
da teoria, da intelectualidade. É muito diferente. Nós nascemos
como uma prática social que nomeia seus sonhos, suas
propostas, suas lutas, e vamos encontrando na construção
teórica a explicação do que estamos fazendo.
[...] O fundamental para nós é que, para fazer revoluções,
mudanças, transformações, tem que ser com os nossos povos,
com nossas organizações sociais, com nossos irmãos e irmãs
que fazem parte da nossa sociedade. Senão, com que povo
vamos fazer a revolução? (PAREDES, 2020).

Com o intuito de resgatar os aspectos centrais da Sócio-


Histórica, para então relacionarmos com o diário de campo
articulado com o Feminismo Indígena, podemos entender que o
fenômeno do Feminismo Indígena está presente nas aldeias
urbanas do Jaraguá na prática social. Isto é, na Sócio-Histórica
fala-se em práxis, que configura o entrelaçamento entre as
categorias consciência e atividade que constituem a subjetividade,

33“Temos que construir a utopia no dia a dia”, diz a boliviana Julieta Paredes em
entrevista. Disponível em: <https://apublica.org/2020/05/temos-que-construir-a-utopia-
no-dia-a-dia-diz-a-boliviana-julieta-paredes/#.Xr9LhplFcuQ.facebook>. Acesso em: 01
jun. 2020.

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

a produção de sentidos. “Atividade, a ação no mundo, é


entendida como a base da construção da consciência. E
consciência é compreendida como o direcionamento dado à
ação diante da reflexão acerca da atividade” (Gonçalves, M. G.
M., 2020. Comunicação pessoal, aula ministrada em 16/04/2020).
Portanto, são categorias que são constituídas mutuamente,
assim como as demais categorias trabalhadas pela Sócio-
Histórica, mas que não nos debruçaremos sobre elas por não
fazerem parte do objetivo do estudo.
Assim, identificamos a práxis, a prática, no cotidiano das
lideranças da Tekoá Pyau, e da liderança da Itawera, afinal,
estão envolvidas na militância. As rodas de mulheres de povos
originários, planejamentos de ações, presença diária nas lutas,
enfim, aspectos que corroboram com a ideia de que o que
amplia a consciência é a possibilidade de refletir no coletivo o
vivido, a realidade. Ou seja, a prática/militância aumenta a
resistência e a compreensão. Entretanto, acadêmicos, muitas
vezes, não dão consequência - não fazem ações, intervenções -
não produzem formas de enfrentamento. Diferentemente
daquelas/es que vivem na prática, na militância, que podem
nomear o fenômeno de outra maneira, diferente da
denominação atribuída pelos acadêmicos (Gonçalves, M. G. M.,
2020. Comunicação pessoal, aula ministrada em 16/04/2020).

CONTEXTO DA RELAÇÃO COM A CIDADE

A relação estabelecida entre a aldeia urbana e a cidade é


marcada por tensão, violência, discriminação e desigualdades,
embora percebamos relações de parceria com
ONGsxexpessoasxquexsexdedicamxaoxmovimentoxindígena.

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

As lideranças afirmam que o território brasileiro é um território


indígena (de fato é), e cada vez mais é roubado dos povos
originários. Assim foi feito com uma área próxima às aldeias do
Jaraguá, onde uma construtora anunciou que construiria um
condomínio. Os povos originários do Jaraguá se uniram e
organizaram a ocupação YARY TY, com o objetivo da
construção do Parque Ecológico YARY TY (CEYTY) e Memorial
da Cultura Guarani.
Na ocupação foram desenvolvidas atividades de
conscientização, venda de artes Guaranis, rituais, caminhadas
pelo território, limpeza das nascentes, além de informarem a
série de crimes cometidos pela construtora, dentre eles a
derrubada de árvores de área de preservação, produção de
documento fraudulento para iniciar a obra, e o não
cumprimento da lei que impede (ou deveria impedir)
construções próximas às aldeias. Todas essas informações,
inclusive a reivindicação por um centro de memória e
resistência indígena de administração compartilhada entre
povos originários e população local, estão no abaixo-assinado
produzido pelas lideranças, e transcritas no diário de campo
deste trabalho, além das páginas das redes sociais que, quase
diariamente, atualizam a situação delicada da ocupação em
tempos de isolamento social.34
Portanto, podemos afirmar que a militância também
configura uma forma de sobrevivência em meio à cidade, que a
todo o momento invade, delimita a vida das mulheres

34É possível acompanhar a luta pelo Parque Ecológico YARY TY (CEYTY) e Memorial
da Cultura Guarani. através da página dos Guardiões da Floresta no Instagram
https://www.instagram.com/lutaparquejaragua/, além da página no Facebook da Aldeia
Tekoá Pyau https://www.facebook.com/tribo.mbya.

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Gênero, mulheres, raça e
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indígenas, seja dificultando a demarcação de territórios


indígenas, seja intimidando com as mais variadas formas de
violência contra a mulher, de modo que tenham medo de sair
de casa sozinhas, ou até mesmo, como a construtora fez: “Não se
assustem se ouvirem barulho da motosserra”.
As lideranças do Jaraguá se uniram e organizaram a
ocupação, além disso, em nenhum momento
desresponsabilizaram o poder público por permitir que uma
série de crimes sejam cometidos, novamente, contra os povos
originários. O envolvimento das mulheres indígenas neste
movimento corrobora com argumentos de Marize Vieira de
Oliveira35 sobre a criação de associações indígenas que
defendem os direitos das mulheres indígenas:

Essas associações indígenas foram criadas, no início, seguindo


as especificidades das mulheres. Mais tarde, foram se inserindo
nas lutas nacionais, cujo objetivo era promover políticas de
desenvolvimento das mulheres, assegurando seus direitos e
participação em várias instâncias, além de contribuir para o
avanço do movimento indígena como um todo.
[...] Nós somos invisíveis, principalmente quando estamos em
contexto urbano. [...] Essa invisibilidade demonstra a gravidade
da situação, pois elas (mulheres indígenas), ao lado dos homens

35Marize Vieira de Oliveira, indígena em contexto urbano, professora de história das


redes estadual do Rio de Janeiro e municipal de Duque de Caxias. Pós-graduanda em
história social do Brasil pela Fundação Educacional de Duque de Caxias (Feuduc) e
mestranda em educação em relações étnico-raciais pela Universidade Federal Rural do
Rio de Janeiro (UFRRJ). Coordenadora do Movimento Tamoio dos Povos Originários,
uma das fundadoras da Aldeia Maracanã e secretária executiva da Associação Indígena
Aldeia Maracanã (AIAM).

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Gênero, mulheres, raça e
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indígenas, constituem o povo mais excluído e discriminado na


sociedade brasileira. (2008, p. 309)36

A partir de produções teóricas articuladas com o diário


de campo, além de aspectos da Sócio-Histórica, podemos
enfatizar a necessidade da historicidade para a compreensão
dos fenômenos, o que inclui a multideterminação, isto é, as
diferentes formas de opressão que se encontram entrelaçadas
nas vivências das mulheres indígenas em contexto urbano. A
naturalização das opressões quanto à raça/etnia, gênero e
classe, impedem a transformação e luta por justiça social.

Silvia Lane [...] uma das influências do que hoje se denomina de


Projeto do Compromisso Social da Psicologia. Trabalho
coletivo, consciência crítica e atenção permanente e
comprometida com as urgências e necessidades da população.
(BOCK et al., 2007, p. 47).

Para tanto, saber que os fenômenos não são


simplesmente dados, mas construídos histórica e socialmente, é
fundamental para pensarmos em transformações da realidade,
sobretudo quando falamos da América Latina, marcada pela
exploração-dominação e naturalização das desigualdades.

36 Estes trechos foram retirados do texto Feminismo Indígena, presente na obra chamada
Explosão Feminista (2008) organizado por Heloisa Buarque Hollanda. É possível
encontrar este e outros textos feministas na pasta online, criada por Rita von Hunty.
Disponível em:
<https://drive.google.com/drive/mobile/folders/0B39TyMsTYbM_MEtVYWp0OXd2NXc
>.
Acesso em: 30 mai. 2020.

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Ainda sobre Sílvia Lane37 e uma Psicologia comprometida com


a realidade brasileira:

Sua preocupação básica em construir uma psicologia social


voltada para a realidade brasileira e latino-americana, com
vistas a contribuir para a superação das desigualdades e das
situações de opressão, demandava uma construção teórica que
permitisse compreender o homem como participante do
processo social. (BOCK et al., 2007, p. 49).

Diante da convocação para que a Psicologia se implique


na transformação da realidade latino-americana - convocação
que também foi feita pelas mulheres lideranças da aldeia
Guarani do Jaraguá - é importante pensarmos na possibilidade
real de participarmos da transformação. Falamos da
necessidade de um otimismo crítico, isto é, o movimento de
abandonar a ingenuidade, desnaturalizar os fenômenos,
considerar as contradições, as multideterminações, para então
agir vislumbrando a transformação social, a justiça social.
Afinal, uma das formas do capitalismo se manter é nos fazer
acreditar que não há saída. Mas, devemos nos atentar ao fato de
que a transformação social é um processo cotidiano, e a
Psicologia pode, e deve, configurar um projeto de
transformação (Bock, A., Santos, L. 2020. Comunicação pessoal,
aula ministrada em 02/06/2020).

37Professora Sílvia Tatiana Lane foi pioneira nas formulações teóricas que colocaram a
Psicologia Social brasileira em questão, ressaltando a necessidade de se explicitar seu
vínculo com interesses dominantes e de se redirecionar sua produção no sentido de
contribuir para a transformação social. Estas informações estão presentes no artigo
“Sílvia Lane e o Projeto do ‘Compromisso Social da Psicologia’”(2007) de Bock, Ferreira,
Gonçalves e Furtado, alunas de Sílvia Lane.

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Gênero, mulheres, raça e
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Considerando as discussões feitas neste estudo,


podemos dizer que as mulheres indígenas da aldeia urbana
Tekoá Pyau ocupam lugares que são delas, lugares de fala, de
luta, conquistam o próprio espaço em meio a tantas
adversidades. Não queremos romantizar a situação, seria um
reducionismo absurdo, mas é justamente abandonar a
ingenuidade, considerar os fatores que determinam o contexto
e buscar superá-los. É compreender aspectos da
multideterminação que são estruturantes da sociedade
contemporânea, isto é, as desigualdades que atravessam as
experiências dessas mulheres, que limitam suas possibilidades
e, assim, justificam toda a luta por justiça. Estamos falando em
potência de transformação. Para tanto, devemos reforçar nosso
compromisso e responsabilidade para com elas diante da luta
diária para sobreviver e manter as suas e os seus vivos com o
máximo de direitos que podem garantir.
Além disso, reafirmamos o compromisso ético-político
da Psicologia para com os povos originários, assim como está
prescrito no documento Referências técnicas para a atuação de
psicólogas(os) com povos tradicionais, do Conselho Federal de
Psicologia:

Uma nova Psicologia pode ser elaborada, tendo também como


espaços de produção teórica as escolas, as universidades, os
espaços públicos, as políticas públicas, as redes sociais e as
mídias alternativas. Ou seja, onde se debate o país, diretamente
com seus povos e suas comunidades trazendo e expondo suas
demandas e propostas, suas contradições e conflitos, suas
potencialidades e seus limites.
Nestes espaços de diálogo entre conceitos e práticas
estabelecidas da Psicologia com saberes e fazeres tradicionais,
podem surgir novas propostas teóricas e novas propostas

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metodológicas e práticas profissionais, resultando na


construção coletiva de uma nova ciência e de uma nova
profissão, orientadas pela prática das alianças, pela
horizontalidade dos saberes e pela produção da autonomia das
vidas humanas e dosxterritórios.(CFP, 2019,p.122).

Diante das discussões aqui propostas, e que não se


propõem a esgotar o tema38, enfatizamos a necessidade do não
esquecimento e da desnaturalização das histórias destas
mulheres, marcadas por violências extremas, além do fato de
estarem na cidade que continua engolindo seu território, e
mesmo assim procuram manter diálogo, mesmo assim
consideram importante a articulação entre povos originários e a
população paulistana para uma vida melhor. Têm seus direitos,
cotidianamente, violados pelos juruás, e mesmo assim os
convidam para serem batizados e para firmar um compromisso
com a luta que é diária, que representa a justiça social, o reparo
histórico. Isso é o máximo da potência!
Assim, consideramos pertinente pontuar os princípios
da atuação de psicólogas(os) em Carta da Rede de Articulação
Psicologia e Povos da Terra39, que encontra-se anexada ao

38 Sugerimos a continuidade dos estudos sobre as vivências de mulheres indígenas em


aldeias urbanas e o Feminismo Indígena, com o intuito de abordar questões que não
foram contempladas neste trabalho, ou aprofundar pontos que foram discutidos
superficialmente.
39 A Rede Articulação é constituída por psicólogas e psicólogos de todo o Brasil que, nas

suas regiões, atuam de forma dialógica com os povos da terra, a partir de seus
territórios, suas lutas, suas culturas, suas subjetividades, seus afetos, seus projetos de
futuro e a partir de suas formas de viver e conviver. Esta carta, produzida em 2008 na
cidade de Guararema-SP, a partir do I Encontro da Rede de Articulação Psicologia e Povos
Tradicionais, Indígenas, Quilombolas, de Terreiros e em Luta por Território, encontra-se em:
Referências técnicas para a atuação de psicólogas(os) com povos tradicionais.
Conselho Federal de Psicologia. Brasília, 2019, p. 141-144.

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217
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

documento de Referências técnicas para a atuação de psicólogas(os)


com povos tradicionais. Dentre os princípios norteadores de uma
prática comprometida com a realidade social e demandas
históricas dessas populações, estão:
● defesa dos direitos humanos e sociais e defesa
dos territórios;
● horizontalidade, respeito à autonomia e
organização política dos povos;
● políticas públicas de qualidade e condições
dignas de trabalho de psicólogas e psicólogos;
● diálogo e construção conjunta de conhecimentos:
a descolonização da Psicologia;
● aliança entre povos.
Para que ocorra a transformação da Psicologia enquanto
ciência, profissão e atuação política, precisamos descolonizar os
saberes psicológicos (Carta da Rede de Articulação Psicologia e
Povos da Terra, 2008). Para tanto, podemos afirmar que as
mulheres da Tekoá Pyau evidenciam o movimento de não
precisar de nomes e explicações complexas, muitas vezes não
entendidas pelas pessoas, para colocar em prática o que falas
rebuscadas, muitas vezes, não fazem. É visceral, está no corpo,
na dança, no canto, na pintura sobre a pele, na arte, no
cachimbo, no chimarrão, no Guarani, no modo de existir. É
sabedoria que transborda. É potência que transborda e nos afeta
com o choque de outra cosmovisão que se mostra
extremamente respeitosa, acolhedora, consciente, crítica -
inclusive sobre as próprias questões da aldeia - reflexiva,
atuante e que nos convoca enquanto cidadãs que podem e

Coleção Insurgências Decoloniais, Psicologia e os Povos Tradicionais


218
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

devem somar à luta.

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222
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

VOZES AMAZÔNIDAS: A SAÚDE MENTAL DA


MULHER NEGRA NA AMAZÔNIA NORTISTA

Carla Carolina Santos da Fonseca


Isabela Ramos da Silva

INTRODUÇÃO

NEGROS? NA AMAZÔNIA? BREVE


CONTEXTUALIZAÇÃO DA PRESENÇA NEGRA NA
AMAZÔNIA NORTISTA

Para uma compreensão das origens da presença negra


na Amazônia nortista, a obra de Vicente Salles, “O negro no
Pará”, se faz de extrema importância. A legitimação do negro
(SALLES, 1971) como imprescindível na formação dos
componentes étnicos da população paraense é evidenciada com
o intenso fluxo desse grupo para o Pará já na segunda metade
do século XVIII, acelerando, portanto, o desenvolvimento da
cultura nessa região.
Nota-se uma dificuldade em delimitar com precisão a
quantidade de negros trazidos para a Amazônia com fins de
trabalho escravo, já que os registros relacionados à época
contém possíveis adulterações no que diz respeito à presença
de negros que trabalhavam em condições de escravidão - por
ser prática comum aos escravocratas na intenção de sonegar os
impostos (SALLES, 1971) -, além de não conter recortes de
gênero nessas fontes (COSTA, 2017).

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223
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

Apesar de se ter uma imprecisão nos dados, estima-se


que cerca de 80 mil pessoas em situação de escravidão tenham
sido trazidas para a Amazônia entre os séculos XVII e XVIII
(SAMPAIO, 2009), com maioria vindas dos portos da África
Ocidental e da África Central Atlântica.
Um outro fato importante diz respeito às epidemias que
devastaram uma enorme quantidade de povos indígenas
escravizados durante o período de colonização da Amazônia
(CHAMBOULEYRON et al., 2011), como as pestes da bexiga e
do sarampo. Esse genocídio ocorrido em decorrência das
epidemias e das condições desumanas que o modelo
escravocrata submetia à esses povos resultou na “justificativa”
para que os colonizadores trouxessem povos africanos como
forma de sanar a falta do trabalho escravo indígena sob o
pretexto de que, sem esse “trabalho", essa região não poderia se
desenvolver.
Observa-se então que a atual composição étnica da
Amazônia ocorreu através dos principais grupos étnicos
encontrados nesse território, como o indígena, o negro e o
europeu (SALLES, 1971). O autor pontua ainda que o negro na
região amazônica não se perpetuou de forma “pura”, como
menciona, mas misturou-se a esses demais grupos étnicos
presentes na região, constituindo, dessa maneira, os
denominados “pardos" dentro do fenômeno da mestiçagem.
Cabe destacar que é preciso romper com a ideia de que
foi a partir da chegada do europeu, no período colonial, que a
sociedade amazônica - e brasileira - foi formada, já que vários
povos, com suas respectivas culturas, habitavam esses
territórios antes mesmo da invasão europeia. Entretanto, a
partir desse contato novas produções de ser e existir no mundo

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224
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

foram sendo formuladas, através do genocídio, etnocídio e


epistemicídio dos povos que aqui habitavam e habitam.
Nesse longo percurso histórico de violência e destituição
de direitos direcionados à população negra, os quilombos
surgem como “comunidades autônomas de resistência, que
visam a organização e o fortalecimento dentro desse grupo,
além da preservação de sua cultura e resgate de sua
humanidade” (BRASIL, 2007).
Os remanescentes quilombos se configuram como
representação da identidade e território resistente, se
constituem em legado e herança cultural e material que lhe
confere uma referência presencial no sentido de ser e pertencer
a um lugar específico (ANDRADE, 1997, p. 47). Atualmente, da
região Norte, o Pará se configura como estado com o mais
expressivo número de comunidades quilombolas tituladas em
todo Brasil, estando, em sua maioria, no nordeste do estado.
(CPISP, 2010; CONAQ, 2010; INCRA, 2010). Segundo a CPISP
(2010), o estado do Pará tem, dos seus 144 municípios, 90 com
comunidades quilombolas. Destas, 43 quilombos já com título
definitivo e 50 estão em processo de titulação. Além disso, é
considerado o estado pioneiro, pois no município de Oriximiná
foi oficializado o primeiro título coletivo de terras, em 1995.
Arrojada, esta legislação garante o direito à autoidentificação
das comunidades sem necessariamente possuir laudo
antropológico, fato que o Governo Federal só reconheceu em
2003 (MARQUES, 2009; TRECCANI, 2006).
Outras manifestações de resistência da negritude
aparecem na formação étnico-cultural amazônida através da
linguagem, religiosidade, ritmos, danças, folclore (SANTOS et
al., 2014), etc., como exemplo, o carimbó, o Boi Bumbá, o lundu,

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225
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

a capoeira, o tecnobrega - que se expandiu da periferia


belenense para o centro urbano (LEMOS, 2008) - dentre outras
manifestações culturais que marcam o território nortista do
país.
A opressão, material e ideológica, presente na história
da população negra possui repercussões de caráter perverso, no
sentido de que é elemento deste cenário a naturalização da
integração subalternizada, muitas vezes, por parte da própria
população negra, e da dificuldade na percepção do racismo
enquanto fator de estabelecimento de tais modelos (BENTES,
2013).
O censo demográfico do IBGE (2010), aponta que a
região Norte abrange o maior percentual de negros (pretos e
pardos) do Brasil, com 73,7%, seguido do Nordeste, com 69,2%
e do Centro Oeste, com 56%. Entretanto, a forte presença negra
na região é colocada em um lugar de invisibilidade
(CONRADO et al, 2015) na medida em que se adota o uso da
morenidade como eufemismo para ocultar a identidade negra.
Para compreender-se acerca da defesa e romantização
de uma suposta morenidade em detrimento da aceitação e
(auto) identificação da identidade negra, é necessário ter
conhecimento de como se deu o processo de
embranquecimento da população brasileira já no período pré-
abolicionista.
Se configurava como discurso comum aquele baseado
no branqueamento da população brasileira no período pré-
abolicionista (CARONE, 2014) através do dispositivo da
miscigenação. Os juristas positivistas brasileiros, que embora
fossem favoráveis à abolição da escravatura, foram os que mais
defenderam argumentos em favor do branqueamento da

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226
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

população negra por intermédio da mestiçagem, como uma


espécie de darwinismo social.
O Estado junto à elite brasileira passa então a investir
fortemente em políticas de imigração europeia, trazendo para o
Brasil 3,99 milhões de imigrantes europeus em 30 anos
(BENTO, 2014) como promoção e implementação do projeto de
branquitude.
Vale ressaltar que esses ideais de embranquecimento
partem do pressuposto de que existe um grupo inferior à um
outro, e essa adjetivação atravessa diversos aspectos, como os
ligados à intelectualidade, à estética, à possibilidade de ter ou
não direitos garantidos e assegurados, etc., sendo construído
de forma à caracterizar aqueles que são humanos e os que são
sub-humanos.
Pra que essa ideia e adjetivação de inferioridade
relacionada ao negro fosse validada, a minoria branca que
detinha o poder de decisão nos critérios sociais recorria à
recursos que iam para além do uso da força e da violência,
como a um sistema de “pseudojustificação de estereótipos”, ou
ao processo de “domesticação psicológica” (RAMOS, 1995). Ao
se utilizar de diversos recursos estratégicos para reafirmar
constantemente a inferioridade atribuída ao negro, a
estigmatização se observa como um dos fatores resultantes
deste processo de subordinação.
A defesa do discurso da mestiçagem como forma de
propagar o embranquecimento aparece na população negra da
Amazônia através de maneiras de (auto) identificação, com
forte repercussão na região, marcada pelo uso dos termos
“parda/o", “morena/o", “cabocla/o" (COSTA, 2017) de forma a
deixar de lado a afirmação da identidade negra pelo uso de

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227
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

terminologias e eufemismos que visam invisibilizar a existência


de uma negritude nesse território.

MANIFESTAÇÕES DO RACISMO

A colonização produziu sistemas de hierarquização em


diversas instâncias que, ao perpassar o imaginário social,
infundiu a ideia de categorização de sujeitos, de maneira em
que o nível de acesso a direitos estabeleceu-se com base na
classificação de soberanias (MBEMBE, 2017).
O racismo se manifesta historicamente como uma
ferramenta de exclusão e negação de direitos de um grupo
colocado enquanto inferior na sociedade por determinação de
seu fenótipo (DEUS, 2008), e se estrutura na
contemporaneidade como uma doutrina de exclusão e
dominação desse grupo, determinando, nesse sentido,
estruturas de classe baseadas nessa subordinação.
As manifestações do racismo precisam ser
compreendidas de formas específicas de acordo com as
particularidades da formação social de cada Estado
(ALMEIDA, 2018) já que este não é um fenômeno que se
expressa de maneira uniforme.
Diante de suas diversas formas de manifestação, o
racismo nem sempre atua de maneira direta, se utilizando,
muitas vezes, de artifícios que se introjetam na subjetividade
dos corpos negros por meio de uma “docilização”, a exemplo, o
embranquecimento simbólico mediante a utilização de
“metáforas de cores", haja vista a morenidade (CÂMARA,
2017).

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228
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

Esses ideais de branqueamento são interpretados no


contexto brasileiro como sendo um problema do negro, já que
este está sempre insatisfeito com sua identidade, procurando,
dessa forma, se aproximar das características lidas enquanto
belas, geralmente associadas as características de pessoas
brancas. Bento (2014) destaca que quando se tem um estudo a
respeito da Branquitude brasileira, percebe-se que este ser
social é de extrema importância na projeção que o negro tem
diante de sua imagem corporal.
Kilomba (2019) ressalta que a combinação do
preconceito e do poder admitido ao sujeito branco vai formular
aquilo que é racismo. Nisso, o racismo se constitui através de
três aspectos: estrutural - onde as estruturas políticas e sociais
excluem pessoas negras em benefício dos brancos; institucional
- no qual as instituições formulam arranjos como forma de
demarcar privilégios dentro de sua organização; e cotidiano -
que atravessa o campo das relações e se apresenta através de
discursos e ações que reafirmam uma estigmatização à pessoa
negra.
É dentro dessa estrutura, que está enraizada na
sociedade, que as manifestações de racismo vão se fazendo
despercebidas, muitas vezes, aos olhares que já naturalizaram
as desigualdades e violações de direitos voltadas para grupos
fenotipicamente dispostos e marcados pela discriminação. O
Estado contribui com a fomentação dessa desigualdade a partir
do momento em que deixa de investir e efetivar políticas
públicas voltadas para a população negra, colocando-a em um
lugar de vulnerabilidade.
O Brasil é um país onde as desigualdades têm cor,
afirmação que pode se basear, por exemplo, na expressiva

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229
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

quantidade de notícias registradas pela mídia nacional nas


quais homens e mulheres negras são vistos, frequentemente, em
acontecimentos ligados à violência e/ou situações de
sofrimento.
Vaz (2002) em seu estudo que objetivou analisar a
representação de pessoas negras em jornais impressos com base
na análise de três grandes jornais, sendo dois de nível nacional,
detectou duas narrativas associadas ao negro que aparecem
constantemente nesse formato de mídia: as ligadas à miséria,
onde pessoas negras são associadas a situações de sofrimento e
miséria; e a narrativa onde pessoas negras são relacionadas à
criminalidade, seja como autores do crime ou como vítimas.
O autor expressa o pensamento de que, através dessas
representações, repetidas e inúmeras vezes, as singularidades
desses indivíduos são ignoradas nessa construção de narrativa,
sendo associados exclusivamente à essas imagens acima
ressaltadas.
Ainda que o Brasil tente associar estas representações
como atribuição inerente à esses indivíduos, é inegável que o
imaginário racista criado sobre pessoas negras tenha
responsabilidade diante dessa situação.
Partindo da concepção de mito, Souza (1983) ressalta
que, para além de ser somente uma fala, o mito se constitui
ideologicamente como um instrumento que visa “escamotear o
real, produzir o ilusório, negar a história, transformá-la em
‘natureza'" (SOUZA, 1983, pg. 25) e é diante dessa elaboração
que se instaura o que a autora denomina de “mito negro”.
O mito negro seriam todas as concepções forjadas ao
indivíduo negro, de maneira a firmá-lo dentro de um
imaginário que o coloca em um lugar depreciativo. “O

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230
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

irracional, o feio, o ruim, o sujo, o sensitivo, o superpotente e o


exótico são as principais figuras representativas do mito negro.
Cada uma delas se expressa através de falas características,
portadoras de uma mensagem ideológica que busca afirmar a
linearidade da “natureza negra" enquanto rejeita a contradição,
a política e a história em suas múltiplas determinações”
(SOUZA, 1983, pg. 28).
Dessa maneira, a construção do mito negro e sua
constante reafirmação, sujeita os indivíduos negros aos
estereótipos racistas construídos ideologicamente sobre eles,
como forma de sustentar esse lugar no qual existem categorias
de sujeitos considerados dentro de suas individualidades e
particularidades e os que são considerados dentro de uma
concepção de grupo - estereotipado e degradado -, excluindo a
possibilidade de serem reconhecidos como sujeitos particulares,
com suas próprias subjetividades.
Se tratando da omissão da Branquitude sobre a
manutenção das desigualdades e do preconceito racial, Bento
(2014) ressalta que este fator poderia ser associado ao interesse
de manter o privilégio que esse grupo – branco - representa, de
modo a se isentar do compromisso com o grupo em
desvantagem e manter sua autopreservação narcísica, já que a
Branquitude é colocada como referência de existência no
mundo.
Como ressalta Gonzalez (1981), o racismo é uma
construção ideológica que intenciona promover a exclusão e a
discriminação racial e que se manifesta de acordo com os
interesses particulares daqueles que são beneficiados por ele.
Tendo posto isso, Moreira (2019) faz uma análise ao uso
de piadas e representações de estereótipos racistas voltados

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231
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

para pessoas negras, onde o uso do humor é colocado como


justificativa para que essas designações não sejam reconhecidas
enquanto racismo, já que seriam utilizadas apenas em
momentos de descontração, logo, não seriam ofensivas e não
prejudicariam o grupo étnico-racial por elas representado.
Em contraposição à essa perspectiva, o autor pontua que
esses estereótipos raciais negativos usados como forma de
humor estimulam atos discriminatórios contra os grupos ali
representados em situações que ultrapassam o momento em
que foram expressadas.
Historicamente foi construído um imaginário associado
aos povos brancos no qual eles são referenciados como sendo
um modelo a se seguir. Todas as qualidades são associadas a
esse grupo. Em contrapartida, ao negro o lado pejorativo foi-lhe
circunscrito como uma marca (RAMOS, 1995), sendo ele a
representação do modelo que deve se afastar, aquele que não é
bem visto, o ruim. O autor pontua ainda que “[...]O negro tem
sido objeto de versões, cuja elaboração não participa. Em todas
essas versões se reflete a perspectiva de que se exclui o negro
como sujeito autêntico.” (RAMOS, 1995, pg. 248).
Portanto, o racismo diante de suas estratégicas formas
de manifestação se instaura no imaginário social através da
manutenção dessa ideologia por intermédio da branquitude,
que se beneficia dessa categorização de sujeitos e formula a
relação que a sociedade, como um todo, vai estabelecer com o
sujeito negro, demarcando o lugar que esses indivíduos se
encontram e estipulando a naturalização das desigualdades
sociais a que são submetidos.

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232
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

SAÚDE MENTAL

O momento entre o início do século XIX até meados do


século XX foi marcado pelo delineamento das práticas
manicomiais (FILHO et al., 2012) as quais foram atravessadas
pelo crescimento do número de hospitais psiquiátricos e pela
caracterização daquilo que era considerado saudável ou
patológico no âmbito da saúde ou da “doença” mental.
O entendimento do asilo enquanto lugar de reprodução
da verdade médica foi apropriado pela lógica de dominação
política que se apossou do corpo-biológico (AMARANTE;
NUNES, 2018) de forma a atender as necessidades econômicas
vigentes criando, dessa maneira, dispositivos de
exclusão/inclusão que se perpetuam até a atualidade.
A saúde mental se configura como um campo do
conhecimento de atuação plural, transversal e intersetorial
(AMARANTE, 2007). Portanto, definir saúde mental neste
material implica em entendê-la a partir de uma perspectiva
sócio-histórica, enquanto campo que se configura no social e
político, permeado pelas contradições do capitalismo e
hegemonia branca (ROSA, 2011).
Assim, a “doença” mental é compreendida pela
burguesia dominante enquanto uma ameaça à eficiência
capitalista, interpretando a loucura como uma forma de
improdutividade e aquela que coloca em xeque um princípio
basilar do capitalismo: a razão. Sob este entendimento, torna-se
fundamental em uma análise crítica apreender o transtorno
mental no contexto de totalidade das relações sociais
capitalistas, evitando individualizar a responsabilidade do

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233
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

sujeito histórico pela condição de sua saúde mental (DA SILVA,


2015).
Segundo Gonçalves (1983), Laing, em sua análise,
esclarece um aspecto vital da questão da saúde mental. Trata-se
da alienação, que é compreendida enquanto loucura, sendo
produto direto da desigualdade das relações sociais que
normatizam os modos de trabalho e o capital. Está imbricada
nesta concepção modelos sofisticados de uma violência dada
como silenciosa, homogeneizadora e autoritária. Portanto, de
acordo com Laing, o que consideramos normal é um produto
de repressão, violência e cisão.
Aqueles considerados enquanto loucos, neste período,
marcado por práticas de exclusão social, eram reconhecidos e
detidos pela autoridade leiga (CUNHA, 1986) com base em
pressupostos do senso comum dos determinantes de
anormalidade. Um detalhe importante diz respeito ao
contingente de pessoas de baixa renda e de negros que, em
grande maioria, compunham esses espaços.
Dessa forma, o desenvolvimento de transtornos mentais
e comportamentais está diretamente relacionada a condições
objetivas (socioeconômicos) e subjetivas (OMS, 2001) que pode
ser agravada pela falta de acesso e acessibilidade a serviços de
saúde mental e/ou acesso por certos grupos à atenção desses
serviços. No Brasil existem carências de recursos para atenção
em saúde mental e os que existem, em geral, não atendem os
segmentos sociais mais pobres da sociedade, que é constituído
majoritariamente por pessoas negras.
Destaca-se que na Amazônia no final do século XIX, a
loucura se tornará um tópico de relevância para os médicos e
para governantes da região, pois muitos documentos oficiais

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234
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

mais antigos silenciam sobre a presença de loucos no espaço


público (NASCIMENTO et al, 2009). Com a repressão, os
registros escassos de documentação hospitalar, bem como os
registros policiais, começavam a revelar os “vadios, os
mentecaptos, os ciganos e toda a sorte de gente que circulava
pela cidade de Belém”, localizada no estado do Pará, ao Norte
do Brasil (SILVA, 2015). A presença desses sujeitos em lugares
públicos da cidade divergia com o modelo de homogeneização
urbana e limpeza da cidade, impulsionado pelo discurso de
“desodorização” da região que marcou a agenda municipal da
virada do século XIX para o XX. Médicos, higienistas e gestores
públicos da época preocupavam-se com o processo de limpeza
das áreas centrais da cidade, na tentativa de estabelecer um
controle mais rígido sobre o espaço urbano (SILVA, 2015 apud
SARGES, 2000; FIGUEIREDO, 2003; AMARAL, 2006).
A mobilização em busca da Reforma Psiquiátrica no
Brasil foi marcada por uma intensa disputa ideológica com o
setor da psiquiatria (CAMPOS, 2019), e essa movimentação
possibilitou a criação de redes assistenciais no país, tendo
também uma considerável expansão de serviços comunitários.
As denúncias de violências existentes no âmbito
manicomial foram viabilizadas pelo Movimento dos
Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM), protagonizando
neste período uma crítica ao saber psiquiátrico prevalente e ao
modelo hospitalocêntrico no que diz respeito ao cuidado às
pessoas com transtornos mentais (BRASIL, 2005).
Surge, em 1987, o primeiro CAPS do Brasil, em São
Paulo, e, em 1989, o início do processo de intervenção da
Secretaria Municipal de Saúde de Santos na Casa de Saúde de
Anchieta, um hospital psiquiátrico responsável por maus tratos

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235
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

e mortes de pacientes (BRASIL, 2005), que possibilitou uma


outra visão no que diz respeito à elaboração de uma rede de
cuidados capaz de substituir o modelo hospitalocêntrico.
A promulgação da Constituição Federal no ano de 1988
possibilita a criação do Sistema Único de Saúde (SUS) e, em
1992, o Projeto de Lei Paulo Delgado inspira movimentos
sociais na conquista da aprovação, em diversos estados
brasileiros, da criação de leis que determinam a substituição
dos hospitais psiquiátricos pelas redes integradas em saúde
mental (BRASIL, 2005), representando um marco histórico no
âmbito da saúde mental no Brasil e um avanço em favor dos
direitos da população. Dentre os serviços especializados do
SUS, são disponibilizados serviços de saúde mental em áreas
hospitalares através de urgência e emergência além de
internação provisória e serviços do Centro de Atenção
Psicossocial (CAPS) para acompanhamento sistemático e
inserção no Programa de Saúde Mental (SILVA, 2015).
No que diz respeito à questão relacionada ao debate de
saúde mental da população negra no âmbito das políticas
públicas, a pesquisa de Silva (2016) aponta que já existia uma
sinalização antiga referente à esse tema, embora não tenha sido
implantada pelo Poder Público.
Na pesquisa, a autora, através de entrevistas com
agentes do governo, de movimentos sociais, do movimento
negro e com representantes da sociedade civil, todos
envolvidos com a temática da saúde mental e/ou questão racial,
pontuou sete obstáculos que impedem o desenvolvimento de
uma política pública capaz de atender as necessidades da
população negra, sendo eles: a ideologia da democracia racial
existente no país que faz com que a população não admita a

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236
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

presença do racismo, juntamente ao racismo institucional; a


falta de preparo dos profissionais para abarcar o tema da
questão racial; o debate entre políticas universalista versus
políticas localizadas, que acabam recebendo críticas ainda que
não envolva a questão dos privilégios da Branquitude; a falta
de levantamento de dados por parte de entidades como o
Ministério da Saúde; a dificuldade de articular o movimento de
saúde mental junto ao movimento negro; a falta de interesse
político; e a indústria farmacêutica, que não leva em
consideração o sofrimento causado pelo racismo em si, e
investe em medicamentos como forma de blinda-lo.
A escassez de um recorte racial nas políticas e ações de
saúde (SILVA et al., 2005) contribuem para manutenção da
vulnerabilidade da população negra conforme se mantém os
obstáculos que distanciam a criação de medidas assistenciais
para esses sujeitos.
A luta histórica do movimento Frente Negra desde o
momento de sua criação em 1931 e do Movimento Social Negro,
desde 1970, garantiram a conquista de espaços dentro do
cenário político brasileiro. No âmbito da saúde, na década de
1980 houveram as primeiras menções relacionadas à saúde da
população negra nas ações governamentais, tanto no âmbito
estadual quanto no municipal (BRASIL, 2007).
Diante desse movimento de busca por direitos e
cidadania por parte de representantes de movimentos sociais,
sobretudo, do Movimento Social Negro, cabe destacar a criação
da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra
(PNSIPN) aprovada pelo Conselho Nacional de Saúde em 2007,
que tem enquanto objetivo geral “Promover a saúde integral da
população negra, priorizando a redução das desigualdades

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237
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

étnico-raciais, o combate ao racismo e à discriminação nas


instituições e serviços do SUS” (BRASIL, 2007).
A Portaria nº 1.434 de 14 de julho de 2004, que foi
vanguardista em instituir mudanças significativas na atenção
básica de populações assentadas e remanescentes de
quilombos, constitui-se como uma ação política afirmativa. Esta
portaria define alterações no financiamento da Atenção Básica
em Saúde (ABS), no âmbito da Estratégia Saúde da Família
(ESF), para equipes de saúde da família e Saúde Bucal em áreas
quilombolas por considerar as desigualdades no acesso à ações
e serviços e a necessidade da promoção de equidade,
principalmente em área de difícil entrada e saída, como
assentamentos rurais e comunidade quilombolas. De acordo
com Cavalcante (2011) a portaria também define um aumento
em 50% o valor do repasse relativo às equipes de saúde da
família e saúde bucal que atuem nessas comunidades. Mesmo a
Portaria nº 648/06 de 28 de março de 2006 tendo sido revogada,
ela representou uma medida de avanço ao acesso à saúde de
populações remanescente de quilombos, tanto que os avanços
apontados por ela não foram alterados com esta última.
A Política Nacional de Saúde Integral da População
Negra (PNSIPN) aponta e reconhece em suas sessões o racismo
histórico e estrutural e institucional, bem como as
desigualdades étnico-raciais estruturantes de modelos sociais
como determinantes das condições de saúde, seja mental, social
ou física.
De acordo com o conceito ampliado de saúde, é de suma
importância o debate sobre a política pública de regularização
fundiária para a população quilombola, principalmente no
contexto histórico do estado do Pará, intensamente marcado

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238
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

pelos conflitos agrários de massacres e assassinatos contra a


população negra (CAVALCANTE, 2011).
Posto isto, os impactos diversos à saúde mental
produzidos pelo contexto sócio-histórico, em um país de
maioria negra, corrobora para a primordialidade de psicólogas
/os afinados com as problemáticas do racismo e seus impactos a
vida cotidiana da/o negra /o na atualidade brasileira e
amazônica. Portanto, a psicologia enquanto ciência produtora
de saúde mental deve objetivar a construção de ferramentas
necessárias para a promoção do tema relacionado ao
enfrentamento do racismo.
Câmara (2017) em sua pesquisa intitulada “Mulheres
negras amazônidas frente à cidade morena: o lugar da
psicologia, os territórios de resistência” procura compreender
as formas de construção da negritude entre mulheres negras
amazônidas e destaca a esfera da Psicologia, onde muitos
profissionais da área não se atentam para o racismo em seus
requintes de manifestação, deixando de observar e considerar,
algumas vezes, elementos da constituição das negritudes
amazônidas, o que resulta em compreensões pueris e
neutralizadoras dos impactos do racismo nesta população.
Veiga (2019) menciona que, ao utilizar-se apenas de
teóricos brancos e europeus, a psicologia brasileira ignora a
subjetividade negra, o que leva a reprodução do racismo na
escuta dos psicólogos, que deixam de ouvir o que esses sujeitos
trazem levando em consideração a questão racial que tem forte
impacto na constituição desses indivíduos.
Urge ainda a dificuldade de encontrar produções
acadêmicas no campo da Psicologia, dentro do território
amazônico, direcionadas à saúde mental da mulher negra

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239
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

originária desse lugar. Levando-se em consideração a massiva


presença negra da região, esse não direcionamento para esta
problemática pode trazer uma sensação de desamparo à essas
negritudes, trazendo também a indagação de que,
possivelmente, as mulheres negras amazônidas não estejam
sendo consideradas e escutadas dentro da Psicologia de acordo
com suas particularidades constitutivas.
Na área da saúde mental brasileira que, de acordo com o
Art. 1° da Resolução n° 18/2002, do Conselho Federal de
Psicologia (CFP), institui que “Os psicólogos atuarão segundo
os princípios éticos da profissão, contribuindo com o seu
conhecimento para uma reflexão sobre o preconceito e para a
eliminação do racismo”, entretanto, a falta de autores negros
adotados como referência nos cursos de psicologia se mostra
como um fator que deve ser questionado. Para quais sujeitos a
psicologia se direciona?
O racismo está tão bem estruturado na sociedade que
muitas vezes passa despercebido. O mundo foi colonizado pra
se tornar o reflexo do branco. Portanto, este trabalho busca em
sua complexidade esmiuçar a presença do racismo nas formas
de ser e existir, visto que estão massivamente atenuadas por
uma naturalização da subordinação e exclusão da população
negra, expressando-se de maneira específica sobre a mulher
negra da região amazônica nortista, que é atravessada tanto
pelo racismo como pelo sexismo e ainda pelo campo da
territorialidade. Em virtude do que foi exposto, torna-se
substancial a utilização de autores negros na construção desse
trabalho, visto que, dessa maneira potencializa-se a presença de
vozes negras na produção no campo da psicologia e da saúde
mental, além de que o direcionamento para a saúde mental das

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240
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

mulheres negras amazônidas e, aqui destacado, a nortista,


possibilita com que essas mulheres sejam consideradas
enquanto objeto de estudo dentro dessa área e, dessa maneira,
melhor compreendidas.

ATRAVESSAMENTOS DE RAÇA E GÊNERO

O termo raça primordialmente foi utilizado pelas


ciências naturais para a classificação de animais e vegetais,
sendo, após um longo percurso de transformações, designado
para denominar grupos de indivíduos que possuíam
ancestralidade e características físicas em comum. A
classificação surge, dessa maneira, como ferramenta para
“operacionalizar o pensamento”. Entretanto, essa categorização
foi utilizada como estratégia para justificar hierarquizações de
grupos de indivíduos (MUNANGA, 2004).
No período escravocrata, a hierarquização social foi
instituída pelo povo branco, na qual era sustentada por
categorias de raça e gênero, de modo em que homens brancos
se beneficiariam dessa hierarquização estando no topo de uma
suposta pirâmide social, e as mulheres brancas se situariam
logo abaixo e, algumas vezes, ao lado de homens negros, que
ficariam em uma posição ainda mais inferior, e as mulheres
negras ficariam em último lugar, na base da pirâmide (HOOKS,
1981).
As primeiras concepções formuladas para explicar os
lugares sociais que homens e mulheres ocupavam, eram
conferidas por fatores biológicos, de modo a justificar aquilo
que poderia ser entendido enquanto de “natureza feminina" ou
“natureza masculina" (SANTOS, 2006) e, assim, legitimar as

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241
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

desigualdades entre mulheres e homens. Entretanto, de acordo


com a autora, por serem construções históricas, não poderiam
ser limitadas enquanto fator natural, tendo em vista que a
concepção de gênero varia de acordo com o tempo.
O conceito de gênero poderia ser interpretado enquanto
uma categoria, construída historicamente, na qual se organizam
as concepções de masculino e feminino (SAFFIOTI, 2004), e
através do âmbito social se organiza de maneira desigual entre
mulheres e homens, se constituindo dentro de relações de
poder (LOURO, 1997).
A segunda ordem do feminismo possibilitou a
formulação do conceito de gênero devido a insatisfação de
pesquisadoras com os conceitos e categorias já formulados,
como o conceito de patriarcado, o qual era considerado
problemático (PISCITELLI, 2009). A autora postula ainda que
feministas negras do terceiro mundo não se sentiam
contempladas com a construção acerca de gênero, já que a
maneira como mulheres negras e brancas foram constituídas
socialmente não se assemelha.
Ainda de acordo com a autora, enquanto mulheres
brancas eram percebidas enquanto mulheres, as mulheres
negras eram constituídas socialmente próximas ao animalesco,
enquanto fêmeas. Portanto, a partir do pensamento das
feministas negras, uma nova concepção de gênero foi
formulada, na qual essa categoria passou a se relacionar com as
demais categorias, como raça, nacionalidade, sexualidade,
classe social, faixa etária (PISCITELLI, 2009).
É preciso estar atento que gênero e raça são estruturas
inseparáveis e que o racismo se exprime na construção de
ambas as estruturas, causando impactos específicos em

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242
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

mulheres negras, na interrelação das opressões manifestadas


diante desses construtos (KILOMBA, 2019).
É dentro dessa inter-relação entre gênero e raça que se
observa o imaginário construído entorno da mulher negra. E
conforme for atravessando, ainda, as demais categorias
(sexualidade, classe, idade, etc.) a opressão vai sendo
transfigurada, em um elo de interseccionalidades.
Collins (1990) pondera que as instituições de
comunicação e informação reproduzem imagens controladoras
que estigmatizam mulheres negras, e as colocam em um estado
de constante negociação, no intuito de regularem-se diante
desse cenário.
Gonzalez (1981) pontua que a mulher negra é vista a
partir de duas perspectivas, as quais chama de “profissões”- a
doméstica e a mulata- sendo a mulata fruto de uma alienação
que sujeita essa mulher à exposição de seus corpos e à
hipersexualização.
Quando a mídia, continuamente, direciona papéis
racistas e sexistas, como o da mulata ou o da empregada
doméstica, para mulheres negras (CARNEIRO, 2003),
sistematicamente estabelece essas imagens à essas mulheres,
fomentando os estereótipos que colidem com a afirmação de
suas identidades raciais e impõe uma representação negativa.
Dentro dessa perspectiva, as imagens de controle
associadas às mulheres negras se estabeleceram tacitamente no
imaginário social, e a manifestação racista se afiançou como
estratégia de dominação, de maneira a atravessar diversos
campos da vida, colocando essas mulheres de forma
marginalizada dentro dos âmbitos social, político e econômico,
sujeitas às mais variadas formas de violência e desigualdades.

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

CONSEQUÊNCIAS PSÍQUICAS DO RACISMO NA


MULHER NEGRA

A negação, ou ainda, a vergonha de assumir sua


negritude com rigor devido a falta de referências positivas, que
ultrapassem a perspectiva do negro enquanto sujeito
subalternizado (CÂMARA, 2017), se inscreve na subjetividade
de pessoas negras e moldam a relação que esse sujeito constrói
consigo.
Jesus (2017) propõe pensar o racismo e seus impactos na
subjetividade do sujeito negro a partir de três aspectos: do
silenciamento do sofrimento, da negação do corpo negro e da
resistência nas mais diversas expressões.
No que tange ao primeiro aspecto - o silenciamento do
sofrimento - a autora pontua que esse silenciamento pode ser
observado para além da passividade diante de uma
discriminação racial, como a exemplo, a partir de uma forma de
resistência (ainda que não consciente), tendo em vista que o
enfrentamento do racismo possa vir a ser bastante exaustivo.
Entretanto, esse silenciamento pode causar sofrimento a partir
do momento em que o sentimento de impotência diante da
atitude racista emerge.
Prosseguindo para o segundo aspecto - a negação do
corpo - a autora circunscreve expressões produzidas na relação
do sujeito negro diante do racismo e menciona alguns impactos
como “a timidez, a baixa autoestima, a insegurança, a
dificuldade de relacionar-se" que podem ser observados a partir
do entendimento da construção da personalidade diante do
contexto racista. Dentro dessas expressões manifesta-se a

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

dificuldade de aceitar seu corpo enquanto um corpo negro,


levando esse sujeito, muitas vezes, ao desejo de querer
embranquecer-se e fugir de qualquer característica que ressalte
sua negritude.
Esse desejo de afastar-se de características que remetem
à sua negritude pode ser exemplificado pelo significativo
número de mulheres negras que alisam seus cabelos
crespos/cacheados na intenção de aproximarem-se do padrão
estético pautado no modelo de beleza europeu e não sofrerem
(tantas) discriminações raciais associadas à esse elemento da
estética. É uma tentativa de serem aceitas socialmente no
mundo branco.
Diante dessa insatisfação corporal que ultrapassa a cor
da pele, o cabelo da mulher negra tem impacto na construção
de sua auto percepção, mesmo que nem todas tenham o cabelo
crespo, como é o caso de muitas mulheres negras da Amazônia
que possuem o cabelo liso, resultado do contexto de
miscigenação ocorrido nesse território (CÂMARA, 2017).
Ressalta-se que essas adesões estéticas com o intuito de
assimilar-se ao padrão de beleza da Branquitude se configura
como algo violento, podendo causar bastante sofrimento
(KILOMBA, 2019). É a rejeição do próprio corpo para dar lugar
ao corpo idealizado.
Chegando ao último aspecto - a resistência - Jesus (2017)
complementa que, dentro do contexto de desigualdade racial,
as atitudes expressadas são uma resposta ao racismo sofrido,
que não necessariamente precisa ser embasado a partir de uma
compreensão mais ampla do racismo ou de um aspecto teórico
ou político, mas como uma reação à uma violência racista.

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Gênero, mulheres, raça e
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A partir de um de um viés psicanalítico, Souza (1983)


parte do conceito de Ideal de Ego - que é a instância a partir da
qual o sujeito pode se constituir, dentro de uma estruturação do
sujeito psíquico, e que estabelece a relação desse sujeito com a
Lei e a Ordem - para explanar como o discurso racista se
instaura na constituição do sujeito.
Ora, se o sujeito se constitui dentro de um contexto em
que sua imagem é constantemente estigmatizada,
subalternizada, ridicularizada e agredida por intermédio dos
mais variados discursos e atos racistas, como esse sujeito vai se
organizar psiquicamente senão querendo desviar-se de todas as
características que o remetem à essa identidade?
A autora discorre que a violência racista descaracteriza a
identidade da pessoa negra de tal forma que, sem ver uma
escapatória, tenta assimilar-se ao sujeito branco através da
internalização compulsória de um Ideal de Ego branco,
formulando para si uma projeção que entra em conflito com sua
imagem real.
Ao ir em busca desse Ideal de Ego forjado, o negro se vê
em uma situação que Fanon (2008) vai denominar de alienação.
A alienação proposta por Fanon parte do princípio de que o
negro - estando dentro de um complexo de inferioridade que
foi construído dentro de um duplo processo, atravessado pelo
âmbito econômico e pela “epidermização dessa inferioridade"
(FANON, 2008; pg. 28) - vai utilizar-se de mecanismos para
tentar ser assimilado dentro da realidade colonial que o
subjuga.
Então, o autor expressa que quanto mais a pessoa negra
tenta se introduzir nessa realidade forjada pelo colonizador,
mais tenta se afastar de sua negritude, numa realidade

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

alienante. Mas ao mesmo tempo, reiteradamente, o sujeito


negro será afirmado e estabilizado em lugares socialmente
aceitáveis para a sua produção. Vale ressaltar que se o negro se
vê nessa situação de inferioridade, se ele se situa em uma
condição de alienação, é porque o racista o colocou ali
(FANON, 2008).
No contexto amazônico, pela ideia romantizada de
morenidade e da falsa concepção de democracia racial
perpetuada pelo país, a mulher negra desse território tem seu
sofrimento em decorrência do racismo posto de lado, levando
em consideração que sua negritude é, muitas vezes, não
reconhecida, logo, o sofrimento deixa de ser escutado.
Câmara (2017) traz a narrativa de uma entrevistada que,
ao procurar atendimento psicológico e relatar o sofrimento
causado pelo racismo, foi negligenciada pelos profissionais que
a atenderam, os quais negaram que o sofrimento trazido pela
paciente tinha ligação com o racismo, já que de acordo com a
fala de uma das psicólogas “em Belém nem existe racismo, todo
mundo com essa pele tão morena”.
Se tratando da mulher negra, Câmara (2017) discorre
sobre as imagens de controle que são pautadas em estereótipos
voltados para discriminar o corpo-sujeito e que são reforçadas
através de veículos de comunicação, como filmes, novelas,
dentre outros meios midiáticos; colocando essas mulheres
dentro de um imaginário social associado ao cômico, à serviçal
ou a de prostituta.
A exemplo, temos aqui no Brasil diversos programas de
“humor" que, através de figuras caricatas, ridicularizaram a
imagem e características de mulheres negras. Ou ainda, nos
carnavais brasileiros que, durante décadas, desfilam pelas ruas

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Gênero, mulheres, raça e
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das cidades do país com fantasias de “nega maluca", onde uma


mulher negra retinta é retratada de forma aviltante.
Essas imagens de controle são tão destrutivas para a
constituição psíquica de mulheres negras que, como se observa,
conforme vão sendo constantemente reafirmadas, moldam uma
auto percepção negativa por parte dessas mulheres, a ponto de
desejarem desassociar-se de seu próprio corpo, na intenção de
afastar-se dessa identidade continuamente depreciada.
Nogueira (1998) retoma o conceito de “vergonha de si"
proposto por Radmila Zygouris (1995) e fomenta que,
direcionado à pessoa negra que em situações cotidianas se
depara com denominações ofensivas associadas à seu fenótipo,
a faz se deparar com “a marca da imperfeição” a qual seu corpo
é constantemente remetido. Sua pele negra é visualizada
enquanto defeito, o qual tenta corrigir como se fosse uma
mancha que pudesse ser apagada.
Observamos, dessa maneira, que a utilização de
imagens de controle, constantemente reafirmadas pela
Branquitude racista - a qual não consegue ver o outro senão a
partir de si mesmo enquanto referência - causa um impacto
visceralmente desestruturante para a mulher negra, e reflete-se
diretamente no seu corpo, já que é a partir desse corpo que são
subjugadas no discurso racista.
Levando-se em consideração que mulher negra, que é
atravessada por intersecções de gênero, raça, classe e
sexualidade, cabe dizer que essa percepção negativa de sua
própria identidade pode trazer, ainda, dificuldades em se
estabelecer relações com outros indivíduos. Câmara (2017)
pontua que, por não terem ensinado a mulher negra a se amar,

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Gênero, mulheres, raça e
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isso resultaria em dificuldades para direcionar afetividades


para o outro.
Pacheco (2013) traz o olhar para a solidão da mulher
negra, pautando-se em que, os esterótipos racistas que
estigmatizam a identidade da mulher negra e suas
características, podem se direcionar para suas afetividades, as
colocando em um imaginário social excludente, onde mulheres
negras e mestiças não são consideradas para se ter em
relacionamentos afetivos mais sérios e fixos, destinando-se
apenas para relacionamentos momentâneos e sexuais.
Partindo dessa perspectiva, a solidão da mulher negra
pode se estender para além de relacionamentos afetivos, como a
exemplo, na falta de referências positivas de mulheres negras
representadas nas mídias, causando um sentimento de não
pertencimento, de isolamento (CÂMARA, 2017). Dessa
maneira, a solidão da mulher negra se associa ao “sistema de
apagamento físico, afetivo e simbólico" (CÂMARA, 2017, pg.
180) pela qual essa mulher é atravessada.
Recorre-se à Souza (1983) no que tange respeito ao
processo de emancipação da mulher negra diante dos impactos
psíquicos transpostos pelo racismo cotidiano, em que a autora
propõe que, através do rompimento com essa estigmatização
criada sobre a identidade negra, é possível, para esse sujeito, se
reconstituir a partir de uma outra perspectiva.
Fanon (2008) propõe o rompimento dessa condição
alienante através de uma atuação sobre o indivíduo e sobre o
grupo, fazendo-o tomar reconhecimento dessa situação que o
alienou a fim de produzir mudanças.

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

METODOLOGIA

O presente trabalho possui caráter exploratório e


qualitativo, baseando-se na leitura de livros e coleta de
referenciais teóricos através de plataformas digitais como Scielo
e Google Acadêmico que, juntamente com a participação em
debates voltados para o tema da Saúde Mental da População
Negra, nortearam a construção desta pesquisa.

RESULTADOS E DISCUSSÕES

A produção de corpos negros dentro do território


amazônico nortista atravessa a constituição da mulher negra
dessa região de maneira específica, pois a invisibilização da
negritude amazônida, sob a romantização de corpos morenos,
decorrente do mito da democracia racial e das tentativas de
embranquecimento da população, causa impactos em sua saúde
mental e na sua constituição enquanto sujeito.
A recusa da presença negra no território amazônico se
constitui enquanto mecanismo de apagamento desses corpos na
região, logo, se manifesta enquanto violenta reprodução de
racismo, já que negar é também colocar enquanto inexistente, o
que faz com que esses sujeitos não tenham as suas demandas
decorrentes do racismo reconhecidas e credibilizadas,
agredindo, portanto, sua dignidade humana e causando um
sentimento de desamparo.
Nota-se ainda uma escassez de produções científicas
dentro da área da Psicologia e da saúde mental voltadas para a
mulher negra e, aqui destacado, para a mulher negra que habita
o território amazônico, o que revela uma possível falta de

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

importância direcionada à população dessa região, sobretudo,


para essas mulheres.
Pautando-se na Resolução n° 18/2000 do Conselho
Federal de Psicologia, que “estabelece normas para a atuação
de psicólogos no que diz respeito ao enfrentamento do
preconceito e discriminação racial”, se questiona se os
profissionais de psicologia estão, de fato, contribuindo para a
produção de conhecimento e enfrentamento do racismo em um
território como o Brasil e a Amazônia, onde uma maioria negra
se faz presente e é fortemente atravessada por esse fenômeno.
Percebe-se que a psicologia necessita de uma profunda
revisão e mudança nas suas formas de produção de
conhecimento e atuação, tendo em vista que a grande maioria
de autores utilizados para embasar o conhecimento nos
currículos acadêmicos são brancos e europeus, revelando a
pouca relevância dada para teóricos negros nesse campo, além
de que a escassez de produções científicas voltadas para o tema
da saúde mental da mulher negra se mostra como empecilho
para a escuta dessas mulheres dentro de suas especificidades.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Enquanto os sujeitos negros da região amazônica se


fazem silenciados dentro do cenário brasileiro, esta pesquisa
emerge como um grito que pretende ecoar para além do espaço
acadêmico, de modo a chamar atenção para aqueles que não
são percebidos e possibilitar com que essas vozes sejam
escutadas.
A necessidade de trazer ao olhar o tema da saúde
mental da mulher negra e, especialmente, da que vive em

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251
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

contexto amazônico e nortista, foi o principal motivador para a


realização deste trabalho, tendo em vista a insuficiência de
produções acadêmicas dentro da área da Psicologia voltadas
para a saúde mental dessas sujeitas, o que pode ser relacionado
à pouca relevância direcionada para esta população e à
perpetuação de um olhar colonizador que pretende apagar
todas as formas de existência que dele difere.
Diante de um contexto histórico em que a mulher negra
- e a população negra - é compreendida enquanto objeto, sendo
falada em terceira pessoa, como um infans - que é aquele que
não tem capacidade de falar, um ser infantilizado, falado pelo
outro (GONZALEZ, 1980), o foco no tema da saúde mental
direcionada à essa população se mostra como norteador da
concepção de que, esse que é creditado enquanto objeto, é
sujeito, e tem uma voz que precisa ser escutada.
É de fundamental importância que a psicologia,
enquanto área de fomento do conhecimento acerca da saúde
mental, direcione o olhar para corpos que há muito tempo não
são escutados dentro de seus sofrimentos e particularidades,
sobretudo, em um território tão invisibilizado quanto a
Amazônia nortista e sua população de origem. Ambos são
pouco valorizados como tema de pesquisas e estudos, além da
limitada importância direcionada à região como produtora de
conhecimento válido.

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262
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

DIREITO A CIDADE, MULHERES E A PERSPECTIVA


DECOLONIAL

Eliza Dala Costa


Raíssa Silveira de Melo

INTRODUÇÃO

O lugar das mulheres nas cidades brasileiras, assim


como na sociedade capitalista é marcado por exclusões,
desigualdades e violências. Essas violências são multifacetadas
e se concretizam no cenário político, econômico, cultural e
midiático. O espaço urbano de formação colonial entrelaça
opressões de raça, classe social e gênero. (FERNANDES, 2009).
Os valores vigentes nas relações sociais urbanas são
predominantemente formados por valores patriarcais e
capitalistas que tornam as cidades espaços opressivos para as
mulheres. A exclusão das mulheres dos espaços públicos da
cidade também se torna natural à medida que o imaginário
coletivo é alimentado e retroalimentado com discursos que
colocam a mulher como um ser subalterno e não pertencente ao
espaço público. As cidades brasileiras são coloniais, patriarcais,
capitalistas, racistas e não permitem a vivência plena da
pluralidade de identidades das mulheres que habitam o espaço
urbano. (PINTO, 2019). Nesse contexto de opressão, dominação
e exploração, buscamos identificar a influência do imaginário
coletivo urbano na formação das representações das mulheres e
também a influência dessas representações em suas vivências
nas múltiplas dimensões das cidades.

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263
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

MÉTODO, PROBLEMÁTICA, JUSTIFICATIVA E OBJETIVO

Possuir a convicção das razões pelas quais escolhemos


escrever esse artigo, de acordo com essa temática, vai além da
abordagem e elaboração de uma pesquisa bibliográfica,
partindo da conjuntura da formação das cidades brasileiras e
suas performances decoloniais, segregadoras e com falsas
esperanças emancipacionistas para o todo na construção do se
existir como mulher. Esse artigo representa o nosso lugar de
fala como mulheres, as quais vivenciam as nuances de uma
política urbanista moldada por uma ótica colonial que não
sustenta as condições para o nosso existir seguro, mas, de fato,
por exemplo, banaliza a construção de vias de circulações não
só iluminadas em quesito do proporcionar segurança e conforto
para todas que necessitam utilizar das vias públicas, mas
também iluminar no sentido de, aos poucos, progredir na
ruptura com os alicerces opressivos que ainda alimentam
nossas áreas de convivências urbanas. Além disso, percorremos
essa análise para afirmar que, como mulheres brancas,
reconhecemos que somos privilegiadas nessa construção, ainda
que desigual para gênero, para raça não somos contempladas
com os muros distanciadores do bem comum, muros presentes
para mulheres negras, mulheres indígenas, mulheres
migrantes. A partir de um lugar de fala jornalístico, em que a
urbanidade denúncia as disparidades da restrição da
comunicação e da ainda construção de um lugar de fala na
psicologia, em que se modifica os olhares para a propulsão na
necessidade dos renascimentos dos sujeitos para uma
formulação subjetiva em liberdade, partindo, nesse artigo, de

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

uma abordagem humano-existencial, a revisão bibliográfica


pode ser definida como ativista feminista, ou seja, militante e
acadêmica ao mesmo tempo, em que afirmamos não percorrer
nossa escrita para prejuízo de nenhuma das competências em
questão.
Nesta direção, iniciamos a revisão “O imaginário social
e a construção da colonialidade”, evidenciando que são muitos
os limites físicos e as dimensões simbólicas que constroem as
cidades brasileiras. Conceituou-se os fatores determinantes
para formação do imaginário coletivo urbano e definimos a
relação entre os diferentes espaços da cidade, as relações sociais
entre os sujeitos e como a organização espacial da cidade se
relaciona com o poder simbólico de cada território. A formação
do imaginário social reforça o processo segregacionista, que, a
partir das imagens de cidadãos, divide a população em
“cidadão da cidade” e “cidadãos da segunda favela”,
reservando a segunda categoria uma imagem de indesejáveis e
sujeitos com menos direitos. (FERNANDES, 2009).
Após isso, enfatizamos a perspectiva histórica da
colonialidade no território brasileiro “Estruturas coloniais e o
lugar da mulher na cidade”, em que nosso referencial teórico
foi Quijano (2005), ao apresentar desde a chegada dos
colonizadores, até a fixação no modo de ser, no que se
constituiria a herança colonial. Citamos brevemente a discussão
acerca da dizimação dos povos indígenas, resultados dessa
colonização forçada, da exploração dos escravos no período
colonial, acreditando que não era nosso foco central detalhar
explicitamente os anos de 1500 em diante, mas, de fato, abordar
os efeitos dessa colonialidade na contemporaneidade, por meio
de uma revisão bibliográfica precisa.

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265
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

Delimitar nossa escrita pela análise bibliográfica do


direito à cidade em uma perspectiva decolonial não ocorreu
aleatoriamente, uma vez que entendemos suas correlações e
suas necessidades de compreensão em conjunto, haja vista a
reflexão acerca das disputas nas cidades, as quais se iniciam no
plano simbólico e se materializam no plano real, por meio das
estruturas da colonialidade do poder, das relações sociais e da
construção do espaço urbano. Assim, empreendeu-se que as
relações de gênero na cidade envolvem o combate às
hierarquias de opressão e exploração masculina e precisam ser
compreendidas como realidade enfrentado em todo o sistema
moderno, colonial, patriarcal capitalista. Embora os
demarcadores de opressão sejam comuns entre os territórios e
povos colonizados, a especificidade de cada lugar e também a
multiplicidade das identidades das mulheres junto a articulação
do patriarcado com o racismo e sexismo são elementos
necessários para análise (HOOKS 2005). O direito a cidade é
essencial para a implementação da justiça social e territorial
como horizonte de sentido para construção na nova vida
urbana. (QUIJANO, 2000).
Sobre o viés da interseccionalidade com principal
análise em fragmentos de Hooks (1995), Beauvoir (1980),
Ribeiro (2019) e Akotirene (2019), a revisão proporcionou
verificar que não se pode realizar uma análise de conjuntura
sem levar-se em conta gênero, raça e classe. O pensamento
decolonial vem com uma proposta emancipacionista e busca
desprender quais são as ferramentas necessárias de sofrerem
rupturas para que os sujeitos possam realizar as escolhas em
liberdade, sem as amarras do projeto hegemônico de poder, o
qual privilegia uma identidade em favor de outras.

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

“A interseccionalidade pode ajudar a enxergarmos as


opressões, combate-las reconhecendo que algumas opressões
são mais dolorosas. Ás vezes oprimimos, mas às vezes somos
opressores.” (AKOTIRENE, março 2019, p.97).

Ao seguir essa abordagem realizamos a menção as


mulheres sobre o processo de favelização e sobre quais
perspectivas a pobreza afeta e limita suas potencialidades de vir
a ser, como também de que modo são significadas a partir do
modo de habitação que possuem. Entre as principais teóricas,
trabalhamos com Carneiro (2005) e Jesus (2006), em virtude de
suas vivências pessoais e grande impacto de suas obras para o
Brasil e América Latina, principalmente.
E, por fim, nas considerações finais, refletiu-se sobre
como a construção do imaginário social urbano é moldado de
acordo com as heranças coloniais europeias, as quais reforçam
as estruturas que propõem a marginalização das mulheres,
principalmente as negras. Também se verificou que a
espacialidade e a arquitetura do espaço urbano produzem
efeitos dispares de acordo com a posição econômica
pertencente, a qual se é reproduzida pelos padrões coloniais, os
quais são impostas por meio de símbolos e outras maneiras
incorporadas de modo inconsciente. Enquanto a espacialidade é
uma barreira física de ascensão das mulheres na cidade o
inconsciente coletivo, a maneira pejorativa, o racismo e a
lgbtfobia são maneiras de barrar o movimento não só físico,
mas também o movimento de pensamento e de vozes
decoloniais.

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267
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

Em favor de sabermos que a temática é ampla, a revisão


literária não tem a intenção de esgotar-se, uma vez que muitos
aspectos foram pouco abrangidos, dado o crescente estudo na
América Latina sobre a colonialidade e seus efeitos na
urbanidade contemporânea. De modo assim, realizamos um
recorte, por meio da análise bibliográfica, a fim de incentivar
posteriores pesquisas complementares.

REVISÃO DE LITERATURA

O IMAGINÁRIO SOCIAL E A CONSTRUÇÃO DA


COLONIALIDADE

Ao analisarmos a espacialidade das cidades podemos


identificar a dimensão da vida cotidiana e como se estabelecem
as relações sociais entre indivíduos e territórios. A cidade passa
a se dividir em cenas, dramas formados pelas percepções
individuais e pelo imaginário coletivo da sociedade sobre
determinados territórios e seus habitantes. O estudo sobre o
imaginário social é abordado por diversas áreas do
conhecimento científico, assumindo caráter multidisciplinar. A
partir da investigação do imaginário social é possível
compreender os processos pelos quais as imagens são
assimiladas como conteúdo coletivo e assim provocam a
formação de representações sociais, resistências e pré-conceitos.
(MELO, 2018). Figueiredo (2011) define imaginário social como
a trilogia: imagem, imaginação e imaginário. Imagem é a
representação de algo, seja um objeto, um lugar, um sujeito, já a
imaginação é relacionar a imagens com variações de
sentimentos, cores, sons e odores que ainda não pertenciam a

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268
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

imagem e o imaginário é capacidade que temos de criar de


sentimentos e certezas acerca de nossas próprias imaginações e
construirmos o mundo que habitamos. Ainda segundo
Figueiredo (2011), imaginário social é compreendido como um
conjunto de imaginações coletivas e por isso se tornaram
representações de poder. Nesse sentido o autor destaca a
natureza política do imaginário social, uma vez que transporta
os universos de imaginações para o mundo real e para
interações sociais, definindo hierarquizações e outras variáveis
do espaço e da sociedade.
O imaginário social no espaço geográfico é alimentado
pelo marketing, mídia jornalística, histórias, textos literários,
fotografias, mapas e aplicativos online e se auto alimenta de
zonas e conceitos imaginários que são capazes tanto de
mascarar quanto potencializar realidades, transformando
territórios em uma realidade simbólica e afetando diretamente
o cotidiano da população e da cidade. (RIGONATO, 2016). O
autor ainda destaca que o imaginário coletivo sobre a cidade é
diretamente responsável por comprometer a significação que os
habitantes interpretam locais e pessoas, e que esse o imaginário
social urbano se auto alimenta de memórias coletivas junto
com ações cotidianas presentes no território, ou seja, a
formação simbólica inconsciente coletiva é formada pelo
passado recente junto as imagens consumidas no presente que
levam a imaginações sobre o território e futuro imediato do
espaço geográfico, formulando as relações sociais em
determinados espaços urbanos.
Rolnik (2009, p.18) compara a dinâmica da vida na
cidade com construção de um texto:

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269
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

“A arquitetura da cidade é ao mesmo tempo continente e


registro da vida social: quando os cortiçados transformam o
palacete em maloca estão, ao mesmo tempo, ocupando e
conferindo um novo significado para um território; estão
escrevendo um novo texto. É como se a cidade fosse um imenso
alfabeto, com o qual se montam e desmontam palavras e frases”

Rolnik afirma que o próprio espaço urbano é


responsável por contar sua história e que ao viver em uma
cidade vivemos em uma dimensão pública e de vida coletiva
que resulta na necessidade de um poder regulador político e
administrativo. (ROLNIK,2009). E ainda de acordo com a
autora a origem cidade leva o surgimento dos termos de
diferenciação/ centralização do poder,

“A relação dos moradores da cidade/poder urbano pode variar


infinitamente em cada caso, mas o certo que é que desde sua
origem cidade, significa ao mesmo tempo uma maneira de
organizar o território e uma relação política. Assim, ser
habitante da cidade significa participar de alguma forma da
vida pública, mesmo que em muitos casos esta participação seja
apenas a submissão a regras e regulamentos” (
ROLNIK,2009,p.21)

Não há como conceber o sentido da cidade, estudando


suas partes separadamente: casa, rua, bairro, região, mercado,
política e população, formando assim a cidade. O espaço
urbano é fragmentado de acordo com interesses capitalistas,
reproduzindo a lógica de espaços hegemônicos e espaços e os
espaços hegemonizados, os que ditam as ordens e os que
obedecem. Mas a cidade não é apenas a somatória desses dois
espaços e sim uma totalidade, onde um espaço depende do

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270
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

outro para existir. (FERNANDES,2009). Se os processos sociais


formam as cidades e as representações sociais dos espaços são
construídas a partir das memórias e imaginações e revelam a
dinâmica social entre os indivíduos não é possível ignorar os
fenômenos de colonialidade,isto é, reconhecer as relações de
poder estabelecidas e sustentadas pelas relações econômicas
políticas sociais e culturais identificando uma perspectiva
hegemônica na cidade. (ZEIFERT e ANGNOLETTO, 2019).
Essa perspectiva hegemônica de poder e dominação que
chamamos de colonialismo. Entendemos que o colonialismo
não se limita às relações formais de exploração e dominação
mas perpassa também por relações intersubjetivas de posições
de domínio e subalternidade. A colonialidade se mantém e se
perpetua por meio da internalização dos conceitos valorizados
pelo colonizador. A cidade se torna colonial quando certos
grupos e territórios são silenciados pela lógica colonial. Dessa
maneira alguns territórios e por consequência aqueles habitam
e frequentam esses lugares considerados civilizados sentem-se
superiores e mais dignos de direitos do que aqueles que
habitam espaços vistos como inferiores. Se nos bairros centrais
onde a lógica colonial do capitalismo permitiu a formação de
uma elite prossificionalizada capaz de usufruir de
oportunidades e proteção social o sentimento é de
pertencimento e capacidade usufruir a cidade, nos bairros
periféricos, onde a população é majoritariamente formada por
povos que foram explorados pelos seus colonizadores vivem as
consequências do estigma de não pertencerem a classe
dominante resultando na marginalização de seus espaços e
corpos sendo obrigados a conviver com o execesso de políticas

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271
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

de repressão e falta de políticas de seguridade social. (COELHO


E CUNHA, 2020).

ESTRUTURAS COLONIAIS E O LUGAR DA MULHER NA


CIDADE

Ao analisar o espectro historiográfico brasileiro


constatamos a estruturação em favor de determinadas
categorias étnicas, as quais foram modeladas não só em razão
de uma cadeia histórica de poder e de fazer existir um modelo
binário nas relações humanas: a hierarquização das classes
sociais, mas também pela estruturação de uma política de
embranquecimento populacional e dizimação de boa parcela
dos povos nativos que aqui se encontravam. Genocídio que
teve início com a chegada dos colonizadores e, o qual, perdura
até a contemporaneidade, sem o devido olhar punitivo a essa
herança colonial,

“O genocídio vem sendo praticado impunemente. Os


espancamentos, independentes de idade e sexo, são praticados
como rotina e só despertam atenção quando aplicados em
exagero, provocam a morte” (JORNAL DO BRASIL, 26 março
1965, p.28)

Sem aprofundar a análise dos efeitos da colonialidade


aos povos nativos, caminhamos para a compreensão de sua
significância na ótica do autor Anilbal Quijano, o qual elaborou
o conceito de colonialidade do poder para apresentar as
performances da dominação postas e enraizadas na América
Latina. Essa expressão deriva da conquista da América em
1492, em que se tem a união do poderio com o modo colonial

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272
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

de exploração, dando origem a um novo padrão de poder


mundial baseado na classificação da população pela raça, as
quais são envoltas de hierarquias e papéis sociais impostos de
dominações (QUIJANO, 2005). Essa perspectiva é constitutiva
da modernidade, em que tanto pode ser correlacionada ao
capital e mercado mundial como ser as práticas, teorias e
atitudes relacionadas ao estabelecimento e manutenção de um
império. (CASHMORE, 2000).
Para além da abrangência conceitual, ao abordar as
relações estruturais escravagistas e de servidão, podemos notar
a colonialidade como suporte de validação da ação. Os diversos
povos que conviviam nesse território possuíam lugares fixos
diante a ótica do colonizador. Homens e mulheres brancas.
Homens e mulheres negros. Indígenas. Não houve
compartilhamento do mesmo solo no existir humano do
período colonial, mas, de fato, a efetivação de uma hierarquia
racial e de gênero. Afinal, raça, trabalho e sexo apresentaram-se
como naturalmente associados, o que tem sido até o momento
bem efetuado (QUIJANO, 2005).
De um modo geral, ao colocar em discussão a questão
da vivência das mulheres, a partir das epistemologias surgidas
até o dado momento, nota-se que elas são racializadas,
posicionadas em um espaço onde o racismo, a classe e o gênero
se encontram postos em concretizar muros de negligências de
oportunidades. “Inseridas nos processos coloniais, as mulheres
negras são separadas e classificadas em identidades femininas
estigmatizadas, com prestígio inferior ao do gênero feminino
do grupo racialmente dominante, das mulheres brancas”
(CARNEIRO 2003, p.119)

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273
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

A vivência feminina carrega estigmas não só de


expectativas carregadas quanto ao ser e existir como mulher,
para suprir as demandas sociais oriundas da herança colonial,
mas também da descaracterização do corpo olhado a partir de
uma ótica colonizada, destituído de vontade, subjetividade,
pronto para servir, destituído de voz (HOOKS, 1995).
A partir da colaboração da autora, podemos realizar a
compreensão de que no discurso colonial os corpos são
desvinculados de potência, tornando-se alvos de objetificação,
alimentando a comercialização do prazer, sem excluir nenhuma
vivência feminina de estar inclusa na opressão, pois há
diferentes maneiras das classes subalternizadas expressarem
seus projetos epistêmicos, partindo-se dos diferentes lugares de
fala. “Seria, principalmente, um debate estrutural. Não se
trataria de afirmar as experiências individuais, mas de entender
como o lugar social ocupado por certos grupos restringe
oportunidades” (RIBEIRO, 2019, p. 60). Diante disso, é
importante ressaltar para essa discussão que não se é mulher
devido ao sexo biológico em si, mas torna-se mulher pela
herança colonial que se é repassada de geração em geração.
“Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a
forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o
conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário
entre o macho e o castrado que qualificam de feminino”
(BEAUVOIR, 1980, p.99).
Em decorrência dessa análise da opressão do corpo é
que se valida o projeto da decolonialidade na análise do sujeito,
o qual parte do reconhecimento das diversas facetas coloniais
utilizadas para realizar a dominação, bem como é a
possibilidade de elo entre os diferentes lugares epistêmicos

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274
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

para expor como sexo e gênero foram estruturados nos enlaces


da colonialidade, ressaltando o fator racial como ponte dessa
construção, devendo, assim, ser levado em conta a
interseccionalidade para examinar o conjunto da dominação
colonial,

“O pensamento interseccional nos leva reconhecer a


possibilidade de sermos oprimidas e de corroborarmos com as
violências. Nem toda mulher é branca, nem todo negro é
homem, nem todas as mulheres são adultos heterossexuais,
nem todo adulto heterossexual tem locomoção política, visto as
geografias do colonialismo limitarem as capacidades humanas”
(AKOTIRENE, março 2019, p.45).

Dessa forma, em face das perspectivas históricas


construtivas do processo de dominação é que se evidencia a
necessidade de se estabelecer esse diálogo. Não se baseia em
um processo conciliador, mas, de fato, reparador e de potencial
de ruptura. O romper se encontra nas literaturas que persistem
na defesa de que ocorreu e vivenciamos uma democracia racial,
de que as formas opressivas foram suspensas com medidas
afirmativas de cor e oportunidades profissionais. Um romper
com as defesas na generalização do gênero e na crença de que a
emancipação feminina se efetivou. Devemos nos questionar e
analisar as referências historiográficas a respeito de quais
mulheres foram impactadas diretamente com os avanços sociais
femininos. Os lugares de fala e realidades sociais são distintos,
por isso não se deve generalizar os grupos.
A partir desse ponto das conquistas confirmo o
mencionado acima com a realidade do direito à cidade. Nesse
sentido, não pensar o processo de locomoção da mulher

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275
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

favelada, por exemplo, até os centros urbanos, para realizar


suas tarefas trabalhistas, em razão das altas taxas de violências
de gêneros, é a constatação de que as cidades não foram
projetadas para determinados gêneros e classes sociais e isso é
efeito das raízes coloniais. Assim, o medo de usar os espaços
públicos, especialmente a rua, o transporte público e os parques
urbanos, é o que não permite que as mulheres possam exercer
seu direito à cidade.
Em partida ao cenário da exclusão social, das dores, dos
preconceitos, das restrições de cidadania, a voz das mulheres
esquecidas, subalternizadas, ecoam pelo rastro de símbolos de
resistência aos desgovernos coloniais, como Carolina de Jesus, a
qual registrou sua história, na representação de muitas as quais
vivem na busca dessa emancipação em um local em que se
deposita pessoas e não as dignifica.

“Às oito e meia da noite eu já estava na favela respirando o


odor dos excrementos que mescla com o barro podre. Quando
estou na cidade tenho a impressão que estou na sala de visita
com seus lustres de cristais, seus tapetes de viludos, almofadas
de sitim. E quando estou na favela tenho a impressão que sou
um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo”
(JESUS, 2006, p.33)

O quarto de despejo é habitado por imigrantes, negros


majoritariamente mulheres. A autora denuncia durante toda
sua obra o quanto a falta de urbanismo e intervenções de
políticas públicas nas favelas marcam o cotidiano dos seus
moradores configurando não só um obstáculo de melhora de
condições de vida, mas principalmente age como um elemento
formador de estigma para a população moradora da favela, as

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276
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

tornando uma ameaça da cidade. Carolina Maria de Jesus,


descreve a expropriação de sua existência, contextualiza as
mazelas da favela e das mulheres negras. Ainda que ao longo
das décadas alguns direitos tenham sido conquistados a
feminização da pobreza ainda é uma realidade. (PEREIRA
2015).
De acordo com Carneiro (2005), a pobreza surge de um
conjunto de fatores que impedem o desenvolvimento humano,
fruto não de elementos naturais, mas sim resultantes de uma
construção social que perpassam decisões políticas. A autora
explica que são os homens que produzem a riqueza e por
consequência a pobreza humana. Ela associa o processo de
empobrecimento das mulheres ao aumento de famílias pobres
chefiadas por mulheres, ou seja, investiga quais são as
consequências econômicas e sociais de ser mulher e como isso
acaba conduzindo a pobreza. Carneiro (2005) considera que
pobreza não é simplesmente uma questão monetária, mas a
privação do escolher situações elementares, como estar bem
nutrido, escapar do frio e até a auto-estima de ser uma parte
ativa das relações sociais. Pensar pobreza implica em
compreender as diversas nuances que invisibilidade social traz.
A desigualdade de gênero reforça o modelo posto e contribui
para manutenção da pobreza e exclusão social, de uma parte
significativa da população brasileira. As mulheres experienciam
a pobreza de forma diferente dos homens, uma que as
desigualdades são taxativas nos rankings de mortalidade,
desigualdade de oportunidades, desigualdade da visão das
tarefas do lar entre outras. Pereira (2015), atenta para que o
sentido da expressão “feminização da pobreza” e caracteriza
um processo de dimensão temporal, gerando a necessidade da

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

comparação entre complexadas variáveis, compreendendo


mulheres no mercado de trabalho, recorte neoliberal sobre a
vida no trabalho, classe, raça e gêneros, formação familiar entre
outros. A degradação somada a precarização e aumento da
presença de mulheres no mercado informal aumenta ainda
mais a pauperização das mulheres e consequentemente faz que
mulheres habitem zonas precárias da cidade.
De um modo geral, após analisar a quais condições as
mulheres favelizadas são expostas, precisamos centralizar o
debate afirmativo de que a segregação urbana se dá tão
somente pelos níveis econômicos e problematizar essa falácia.
No Brasil, dá-se como naturalizado determinar o local em que
negros de classes mais baixas habitam como sendo as regiões
periféricas, ao ponto de os brancos de classes sociais mais
elevadas residirem em locais urbanos favorecidos. Todo esse
contexto deriva da permanência do mito da democracia racial,
da crença em uma harmonização das disparidades coloniais, ao
passo de que, segundo Jessé de Souza (2009), essa construção de
um sentimento de pertencimento nacional foi necessário para
repassar uma imagem de idealização da construção de um
mesmo projeto de Brasil por todas as raças, sem conflitos e sem
a crítica a esse sistema, justamente por repassar uma projeção
supostamente perfeita. A ocorrência do mito da democracia
racial provoca a disseminação de um senso comum em que a
mensagem é a naturalização da pobreza e do racismo. Esse
naturalizar elimina do indivíduo a capacidade crítica de olhar
para a realidade, ao trazer em mente as regras impostas pela
sociedade (Souza, 2009).
A partir da desmistificação dessa suposta democracia,
nota-se que a questão econômica não é suficiente para explicar

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

os índices de segregação urbana. Desse modo, partindo dos


estudos de Edward Telles, 2012, p.172,

“A segregação residencial entre brancos, pardos e pretos não


pode ser atribuída apenas ao status socioeconômico; segregação
residencial por cor ocorre entre pessoas de renda semelhante
em cinco áreas metropolitanas. Então, a economia apenas não
explica a segregação racial no Brasil. A auto-segregação, o
racismo, ou ambos contribuem para a segregação racial, além
da classe”

Assim, de acordo com o autor, pode-se notar que o viés


autoritário por de traz da distribuição das classes nas cidades
encoberta modelos urbanos pautados na eugenia e nos
processos higienistas ocorridos no século XX, os quais selam a
tentativa de negligenciar o direito à cidade aos povos
periféricos. Dessa forma, como boa parte da população negra,
além de vivenciar as consequências do racismo, é desvalorizada
no quesito monetário, permanece restrita em obter o direito de
escolha de onde irá residir, estando refém dos alicerces
coloniais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esse texto procurou construir uma revisão bibliográfica


sobre a problemática da construção do imaginário social
urbano, a partir das representações dos grupos sociais
marginalizados, em especial as mulheres. Desse modo, nota-se
que as representações se aprofundam em estigmas quando
levamos em conta a interseccionalidade ao considerarmos raça,
classe e gênero, uma vez que a marginalização dessas mulheres

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279
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

é construída por grupos que seguem os interesses da classe


hegemônica, moldada pelo Status quo, cujo capital tem a
intencionalidade na forma com que idealizam e difundem a sua
visão sobre os corpos, trajetórias, subjetividades e espaços que
essas mulheres ocupam na cidade. Esses estereótipos têm
tornos das mulheres marginalizadas, os quais têm por função
justificar e legitimar ações dos setores dominantes, em que são
reforçados pelas mídias de massa, presentes também na
construção urbana-sócio-espacial. Esse imaginário social
coletivo é assimilado não só por aqueles que têm a manutenção
dos seus privilégios garantidos, mas também pelo grupo social
estigmatizado que recebe e incorpora os valores simbólicos da
opressão como reais, ainda que sejam prejudiciais para
emancipação e superação das opressões urbanas. A história que
se consolidou na formação sócio espacial das cidades é
fundamentada pelo modelo civilizacional europeu, com
referências na estética e cultura da Europa e, como
consequência, sua lógica escravista, machista, racista,
capitalista, sexista e colonial seguem afirmando os espaços,
locais das elites e marginalizando, privando os direitos de
outros povos, em especial os das mulheres.
Essa cidade fragmentada e marcada profundamente
pelas desigualdades de seus territórios é palco de reflexões para
as mulheres que atravessam e observam as diferenças impostas
pela lógica do mercado e pela lógica colonial. No caso das
narrativas de Carolina de Jesus percebemos nitidamente suas
subjetividades e descontentamento com a lógica imposta. A
partir das suas reflexões é possível compreender como a cidade
é distinta para cada grupo, bem como os símbolos difundidos
pela mídia, instituições e, até mesmo, zonas invisíveis, onde a

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

contenção sócia espacial se dá por mecanismos intrínsecos na


maneira de agir, observar e receber mulheres, as priva de
circular em todos os espaços. Como efeito desse imaginário
coletivo colonial urbano, identificamos a formação de territórios
não totalmente fechados, permeáveis, mas seletivos e inóspitos
para vivência de mulheres. Desse modo, evidencia-se que o
preço por ultrapassar essas fronteiras simbólicas pode ser a
violência, o constrangimento, a falta de acesso a políticas de
emancipação.
Redefinir o lugar das mulheres na cidade exige a
ruptura com um conjunto de normas e mecanismos simbólicos,
a quebra da “cordialidade” de exploração, como a
normalização de abordagens policiais na favela, distinção de
elevadores e banheiros de serviço entre outras maneiras
subjetivas de demarcar limites entre colonizados e
colonizadores. A convivência de mulheres pobres em espaços
que não as pertencem, como as áreas tidas como nobres, ou
simplesmente com a presença do poder público atuante para o
bem estar dos cidadãos e não para repressão aliada a função
colonialista, onde as classes dominantes tem conforto máximo e
a exclusiva função da pobreza como empregados, sem direito à
vida, apenas com a funcionalidade do trabalho, repetindo a
relação entre escravas e senhores, casa grande e senzala, agora
atualizadas a lógica da falsa democracia racial de gênero e
igualdade de oportunidades para todos e, assim, definindo a
normalidade para opressão de gênero, raça e classe, definindo a
subalternidade das mulheres junto a normalização da
dominação cultural, econômica e ideológica.
Logo, a cidade nesse contexto sociopolítico-espacial
fragmentado reforça o distanciamento e as possibilidade

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Gênero, mulheres, raça e
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emancipação de mulheres, principalmente aquelas que tem que


enfrentar a pobreza, o racismo, a homofobia e outras opressões,
pelos signos e narrativas construídas por uma elite diretamente
privilegiada pela lógica colonial, ao fazer com que seus
privilégios sejam mantidos por meio da manutenção dos
preconceitos e incorporação subconsciente da auto-estigmação.
Assim, percebemos, em vista das autoras da revisão
bibliográfica, que esse processo não ocorre sem resistências e
que a consciência das barreiras impostas pelo lógica colonial
são questionadas em razão do pensamento decolonial, cujo
lugar das mulheres na cidade é questionado, por meio das
vozes que perceberam que o campo simbólico implementado
pela elite não favorece suas vivências e existências e, por isso,
resistem e colocam suas narrativas e suas perspectivas em favor
de livros, epistemologias, movimentos sociais e manifestações
culturais. Portanto, enfrentar uma reorganização da gestão do
espaço perpassa por repensar a lógica da herança colonial,
propondo uma ruptura pela formulação de um discurso
decolonial, ao enfrentar o capitalismo, o racismo, a homofobia e
executar políticas públicas visando a equidade entre homens e
mulheres, derrubando as opressões que impedem os corpos e
as vozes de mulheres circularem pelas cidades em segurança e
liberdade.

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Acesso em: 08 set. 2017.

AGNOLETTO, Vitória et al. Justiça social e gênero: a


desigualdade multidimensional e os obstáculos para o
desenvolvimento de sociedades justas na América Latina. In: VI
CONGRESSO LATINO AMERICANO, São Leopoldo: Ufscar,
2019. v. 6, p. 577-591.

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

VOZES NEGRAS: A MÚSICA COMO ESPAÇO DE


EXPRESSÃO DE MULHERES NEGRAS

Priscila Santos Muniz Dias

INTRODUÇÃO

“O jogo só vale quando todas as partes puderem jogar


Sou mulher, sou preta, essa é minha treta
Me deram um palco e eu vou cantar
Canto pela tia que é silenciada
Dizem que só a pia é seu lugar
Pela mina que é de quebrada
Que é violentada e não pode estudar
Canto pela preta objetificada
Gostosa, sarada, que tem que sambar”
(Preta Ferreira – Não precisa ser Amélia, 2019)

Pensar e falar sobre os movimentos de visibilidade


feministas e antirracistas de mulheres negras é reflexionar sobre
os diversos espaços que foram conquistados por estas mulheres
através de suas lutas, e que utilizaram esses lugares
conquistados como possibilidades de emancipação. A música,
entre outros, é um dos importantes lugares de fala das
mulheres negras, que através desse instrumento expressam
suas angústias, anseios, incômodos, experiências cotidianas,
pensamentos políticos, críticas sobre desigualdade social, racial,
de gênero, e seus desejos de transformações.
Uma importante ferramenta estratégica, com o uso de
suas vozes através do canto, acaba por alcançar diferentes
escutas de diversas posições e lugares sociais, o que contribui

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Gênero, mulheres, raça e
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para a expansão do discurso. Assim, tais críticas alcançam


pessoas que não vivenciam determinados problemas sociais, e
por esse distanciamento acabam por não desenvolverem a
empatia, o que contribui para a manutenção de uma sociedade
racista, machista e desigual economicamente. Mas, através das
músicas de mulheres negras aumentam as possibilidades de
contato com o debate feminista negro.
As histórias dos movimentos feministas negros nos
apresentam que as mulheres negras lutaram para conseguir
espaços em que o colonialismo branco e machista as tomou.
Algumas vezes por meio do diálogo, outras pelo grito, ou por
revoltas e lutas, como nos apresenta Dandara, figura
importante no cenário de luta pela libertação do povo negro e
abolição da escravatura.
Durante, e principalmente após o período de
colonização, surgiram diferentes movimentos feministas
organizados de mulheres a favor de seus direitos, como o
direito ao voto, à suas participações na política, no ambiente de
trabalho, na educação, nas universidades, entre outros:

“Las feministas negras fueron, desde el principio,


extraordinariamente lúcidas a la hora de posicionarse, y fuertes
a la hora de establecer alianzas. Con los hombres de su propia
«raza» en las antiguas comunidades de esclavos, con las
mujeres blancas en la lucha por el sufragio femenino y, sobre
todo, con todas las mujeres negras cuando el racismo
contaminó el movimiento sufragista estadounidense y cuando
la emancipación incorporó las diferencias de género a las
comunidades negras” (JABARDO, 2012, p. 28)

Ou:

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“En Estados Unidos, las tempranas y cortas alianzas entre las


luchas abolicionistas y las luchas feministas del siglo xix y las
superposiciones de estas reivindicaciones en campañas
comunes por el sufragio de la población negra y de las mujeres
pusieron en evidencia las similitudes de funcionamento del
racismo y del sexismo.” (VIVEROS, 2016, p.3)

Ao longo dos anos, as mulheres negras, insatisfeitas com


suas condições sociais de inferiorização, mostraram para a
sociedade que poderiam alcançar espaços de poder, e ocupar as
posições que desejassem.
Porém, após o período histórico de tentativa de
estabelecer a república, onde começou a se olhar para o direito
de todos os cidadãos, surgiu uma preocupação maior
relacionada à igualdade, percebeu-se que mesmo dito pela lei,
nem todos eram iguais. Mulheres negras viviam na base da
sociedade na pirâmide da desigualdade, quais viviam a
margens dos direitos civis.
Com o ocorrido das ditaduras imperialistas na década
de sessenta nos países latino-americanos, diversas organizações
se fortaleceram com o objetivo de redemocratizar de seus
países. Principais movimentos identitários como o movimento
negro e o movimento feminista se estruturaram para
analisarem suas diferentes situações de desigualdade diante
desse contexto histórico e sócio-político.
Porém, mulheres negras se sentiam deslocadas em meio
a este cenário, por razões das divisões dos movimentos, onde
não se sentiam encaixadas em nenhum grupo. Perceberam a
existência do machismo no movimento negro, e no feminista a
predominância de brancas falando sobre uma realidade em que
mulheres negras não se reconheciam (GONZALEZ, 1988).

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classe afroindígena-latino-americanos

Então percebeu-se a necessidade de conciliar suas lutas, e criar


um movimento que abraçasse suas questões de forma integral,
surgindo assim os movimentos feministas negros, que é uma
forma de olhar para as desigualdades de modo interseccional.
Esse momento histórico pode nos ser relevado através
do seguinte relato:

“En Brasil, las problemáticas de las mujeres negras como temas


de debate político al interior del Partido Comunista Brasileño
(Barroso y Costa, 1983) fueron planteadas desde la década de
1960; diversas activistas e intelectuales (Thereza Santos, Lelia
González, Maria Beatriz do Nascimento, Luiza Bairros, Jurema
Werneck y Sueli Carneiro, entre outras) promovieron la teoría
de la tríada de opressiones “raza-clase-género” para articular
las diferencias entre mujeres brasileñas que el discurso
feminista dominante había pretendido ignorar. Por otra parte,
desde el Segundo Encuentro Feminista de América Latina y el
Caribe celebrado en 1983 en la ciudad de Lima (Curiel, 2007),
distintos movimientos feministas han puesto en evidencia la
ausencia de la cuestión del racismo en los debates políticos del
movimiento feminista. (VYGOYA, 2016, p.5)

Através dos movimentos feministas negros, a luta por


espaços de voz, de poder, e até de direito a presença de seus
corpos, foram mais fortalecidas e ganharam maior visibilidade,
garantindo as mulheres negras conquistas significativas como
maior inserção nas escolas, universidades, na dança (Mercedes
Baptista é um grande exemplo, onde foi a primeira bailarina
negra a integrar o Teatro Municipal do Rio de Janeiro), no
teatro (Teatro Experimental do Negro no Brasil, surgindo com
Abdias Nascimento), no mercado de trabalho, na música, entre
outros.

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Gênero, mulheres, raça e
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Apesar de sabermos que ainda as mulheres negras


vivem em maiores margens de direitos sociais, e que ainda se
tem muito a lutar por maiores conquistas, é inegável que suas
lutas foram importantes para a garantia de direitos. A música é
hoje um grande lugar de demarcação dessas conquistas.

METODOLOGIA

O presente trabalho visa discorrer sobre a importância


dos movimentos feministas negros para a amplitude da
participação de mulheres negras em diferentes espaços de
visibilidade social. A partir disto baseia-se em autoras
feministas negras quais trouxeram estas discussões políticas da
militância para o espaço acadêmico, e foram grandes
contribuintes para a notoriedade e crescimento desse debate.
Tem-se alguns exemplos como Lélia Gonzalez, qual foi
pioneira do movimento feminista interseccional dentro
academia, qual relatou seu desconforto com o machismo
presente no movimento negro da época (CARDOSO, 2014),
sendo uma importante participante deste. Mas também notada
que os coletivos e organizações feministas eram organizados e
liderados por mulheres brancas, quais não expunham suas
realidades e mazelas em totalidade.
Lélia foi importante na história dessa construção por ter
desenvolvido um olhar para das realidades que ainda
encontravam-se invisibilizadas nos debates políticos e
acadêmicos. Em principal, por destacar a importância de se
pensar uma luta antirracista e feminista a partir do contexto
sócio-histórico da América Latina e do Caribe, acreditando que
essas regiões havia diferentes efeitos do racismo, colonialismo e

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Gênero, mulheres, raça e
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ainda com o imperialismo (GONZALEZ, 1988), e que esses


efeitos foram de diversas reações desencadeadas nesse
território da América.
Com isso, Lélia propõe o que vai a se chamar e ser
amplamente conhecido de amefricanidade, dizendo: “eu
proponho o de americanos (...) para designar a todos nós.”.
(GONZALEZ, 1988; ênfase original). Acredita que este conceito
refere-se, denomina e englobe as dos povos negros e indígenas
de forma interseccional, contra o racismo, patriarcado,
colonialismo, imperialismo e capitalismo desencadeados nessa
região.
Outra proposta para o debate realizado foi a linha de
pensamento trazida, o conceito de interseccionalidade qual
fortificou os debates feministas negros sobre um viés latino-
americano e caribenho, onde acredita-se que esse conceito se
difere nesta região por seu contexto social (VIVEROS, 2016). E,
traz a analise de que os debates estadunidenses privilegiavam
somente a raça e o gênero, deixando a questão de classes à
margem das discussões, em que se tornaram apenas menções
esporádicas (VIVEROS). Com isso, esta ideia nos traz a ideia de
triple opressão vivenciada nesses espaços regionais, que só
podem ser superadas através de um pensamento e uma prática
de luta interseccional.
Esta linha do pensamento é desenvolvida por diferentes
autoras sobre diversos ângulos como: Lélia Gonzalez, Luiza
Bairros, Mara Viveros Vigoya, e Joice Berth.
Utiliza a importante contribuição de Mercedes Jarbado
qual realizou um trabalho de resgaste e documentação de todo
o percurso histórico dos feminismos negros, iniciando seus
relatos com os surgimentos dos movimentos negros e de

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mulheres, até apresentar e fundamentar a importância do


surgimento dos feminismos negros para a vida destas
mulheres.
Ainda, apropria-se de um estudo realizado pela CEPAL
como fonte de bases estatísticas que fundamentam a
desigualdade social existente de forma mais opressiva â
mulheres negras.
Trazer a história da música negra americana, em
particular seus efeitos na história do Brasil, tornando-se grande
mecanismo de resistência, luta, emancipação e empoderamento
para os sujeitos negros e negras do Brasil (GOMES, 2017;
BERTH, 2019), em particular as mulheres negras.
Por fim, analisa através das letras de músicas de rap
compostas e cantadas por mulheres negras, particularmente as
canções de Psicopretas e Preta Ferreira, como o campo da música
se tornou um espaço e uma ferramenta para mulheres negras
expressarem suas lutas, perspectivas, e difundir as ideias
produzidas nos movimentos feministas negras de forma
acessível a um público amplo. Tem-se assim uma perspectiva
da música como uma arma de luta feminista e antirracista,
obtendo a internet como grande ferramenta em que possibilitou
a abertura para vozes e corpos marginalizados, mesmo sendo
ainda uma ferramenta excludente e padronizada.

RESULTADOS E DISCUSSÕES

A música em diferentes regiões da América foi e


permanece sendo uma importante ferramenta de demarcação
cultural e política dos movimentos negros.

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Podemos ver que sua importância na história,


principalmente para as comunidades negras e seus processos
de vivências desde África à exploração na América, em que:

A musicalidade é um dos instrumentos mais fortes da cultura


afro. Desde antes da escravização, ainda na África, músicas
marcavam o tempo de trabalho coletivo e era o meio de passar
todo o conhecimento para outras gerações.
Como elemento cultural de formação da identidade africana, a
musicalidade também foi um dos mais importantes
instrumentos de resistência à escravidão. Nas plantações de
algodão dos Estados Unidos, nas lavouras de cana-de-açúcar do
nordeste brasileiro ou nas minas subterrâneas do sudeste do
Brasil as músicas cantavam planos de fuga, estratégias de
sobrevivência de Quilombos e sonhos de volta à liberdade na
amada África (GOMES, 2017).

A música assim serviu como meio de suportarem suas


dores, de resistirem às opressões, de lutarem por suas
emancipações, e de expressarem suas diferentes perspectivas de
vida.
O samba e o rap são alguns dos movimentos culturais
oriundos da população negra americana, usados como forma
de expressarem suas culturas, seus ritmos, quais possuem uma
enorme carga política em suas letras, sendo assim um grande
espaço social de expressão de movimentos negros.
Também, na música negra, podemos ver uma
participação relevante destas em acontecimentos políticos para
garantias de direitos, como:

“A musicalidade afro – nos Estados Unidos – embalou o


Movimento pelos Direitos Civis e fim da segregação racial nos

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Gênero, mulheres, raça e
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anos 1950. E da resistência negra nasceu o rhythm and blues, o


soul, o rock and roll, o rap, o hip hop.” (GOMES, 2017).

Apesar de nos últimos tempos, ter ganhado notoriedade


através da apropriação dessas produções por vozes brancas, e
assim obterem maior prestígio social, ganharem mais espaço
nas mídias e um reconhecimento geral da sociedade, se tem
ocorrido um grande movimento de resgate e demarcação de
suas origens, como propriedade e meio de expressão da
negritude.
Uma questão que correntemente acontece é que, essas
expressões artísticas que vimos surtir dos movimentos negros,
quando produzidas por seus autores se obtêm outra
visibilidade e forma de recebimentos, pois:

“Enquanto tambores, beatbox, capoeira e danças divertiam os


senhores de escravos, a cultura africana foi tolerada. Mas o fim
da escravidão representou outra violência que perdura até os
dias de hoje: a violência cultural.” (GOMES, 2017; ênfase
original).

Percebemos assim que, qualquer manifestação cultural


voltada ao público branco, seja como autor ou plateia, como
entretenimento, é bem recebido e autorizado socialmente.
Porém, quando praticado por negros torna-se até crime
decretado por lei.
O samba por muitos anos foi perseguido pelos brancos,
por fazer parte dos movimentos de expressões corporais e de
pensamentos de homens e mulheres negras, um ato de racismo
que ocorreu durante muitos anos no Brasil (GOMES, 2017). Por
causa de seu batuque, similar aos do candomblé, religião

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Gênero, mulheres, raça e
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demonizada pelos colonizadores, também o samba acabou por


se enquadrar em tal estigma.

“O samba e a capoeira, os mais celebrados elementos culturais


brasileiros, já foram considerados crime. Desde os tempos do
Império – antes da Independência – praticantes de capoeira e
sambistas deveriam ser presos, por praticarem “vadiagem” ou
‘não tomar uma ocupação honesta e útil de que possa subsistir,
não tendo renda suficiente’” (GOMES, 2017).

Porém, atualmente, através da apropriação cultural


muitos brancos cantam e tocam samba, e lucram com isso,
mostrando assim que não importa o trabalho a ser realizado,
mas que o capital sempre destina-se a mãos brancas.
Com a abolição da escravatura, criaram-se outros
mecanismos da colonialidade para que fosse preservada a
supremacia branca e se perpetuasse o racismo, a fim de
continuar a existir uma justificativa para oprimir pessoas e
obterem mãos de obras baratas a serviço do capitalismo. Então,
pós-abolição, o racismo criou novos rostos em muitos setores
sociais, em principal nas expressões culturais.

“No Brasil, também foi a musicalidade de raiz africana que


forneceu os mais belos elementos da cultura de resistência
brasileira, desde as trovas nordestinas, forró ao samba, rap, hip
hop, funk e tantos outros estilos musicais marcados pela
presença de elementos milenares de identidade afro.
Porém, tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil, países cujas
elites europeias mais se beneficiaram com a exploração do
trabalho escravo africano, o/a negro/a continua em uma escala
inferior de cidadania e acesso a direitos.
Ao/À negro/a ainda é associado/a a imagem de violência e
irracionalidade. Além da segregação espacial urbana –

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favelização-, afrodescendentes ainda possuem acesso limitado e


precário ao ensino e melhores condições sociais. E toda a nossa
ancestralidade e cultura é transformada, de forma
preconceituosa, em símbolos de violência.
Os ataques às religiões afros demonstram esse dolorido
processo. Mas, para, além disso, é construída socialmente uma
imagem que vincula o/a negro/a a criminalidade e justifica o
encarceramento e o extermínio em massa, pelo Estado, da
população afro. Não é à toa que a cada vinte e três minutos, um
jovem negro/a é assassinado no Brasil.
Um dos instrumentos mais poderosos do Estado Racista para
justificar esse massacre é a criminalização da cultura negra e,
assim, impedir que a musicalidade continue sendo o maior
veículo de resistência afro.” (GOMES, 2017).

Mas, podemos ver, que através de diversos mecanismos


essas expressões artísticas qual compõem o cenário cultural
brasileiro resistem ao longo do tempo, tanto para manterem
suas existências como para propagar um discurso contra-
hegemônico a paralelo a colonialidade. O rap, gênero musical
advindo da cultura hip-hop qual através da organização Zulu
Nation, fundada por Africa Bambaataa, foi criado o conceito de
“4 elementos do rap” que são dança, o grafite, o DJ e MC qual
enuncia a música.
Considera-se que, através de um agrupamento de
estudos sobre o rap realizado no trabalho em Rap e política e sua
a busca das possíveis ligações do rap com as ancestralidades
dos povos africanos, percebeu-se que possivelmente este tal
como é estruturado, em uma pronúncia, uma fala, muitas vezes
composto por músicas que levam um tempo maior a contar
uma história, se assemelha a prática dos griots dos povos
africanos, que são os sujeitos responsáveis pela manutenção e

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disseminação das histórias daquelas comunidades, através da


contação de histórias, (CAMARGOS, 2015). Os griots são
considerados as bibliotecas destes povos, e simbolizam a
importância da oralidade e a disseminação da filosofia de um
povo por meio destes.
Assim como o samba, também o hip-hop foi muito
perseguido e ainda é marginalizado socialmente. Também na
atualidade é mais uma expressão cultural apropriada. Porém,
vemos que esses ritmos sendo apropriados e expressados por
vozes brancas, perdem seus significados, marcações e posições
políticas que possuem em suas origens e histórias. Tais ritmos
foram criados e originados por pessoas negras a fim de
exporem as problemáticas de suas vivências, e através dessa
apropriação perdem seu sentido originário.
Como na canção Psicopretas 2, onde através de sua letra
o grupo expressa que “Apropriadores não sentiram nossas dores”,
nos mostrando como relatado que considera-se que o rap assim
como o samba é um meio de comunicação de pessoas negras
expressarem as desigualdades sociais sofridas e fazerem essas
opressões visíveis. A apropriação desse meio por pessoas
brancas acaba que gerando uma complexidade, pois estes
acabam modificando sua função inicial e então enfraquece a
potência dessas produções como o do samba e do rap como
território de luta. Como:

“Num é Twitter isso aqui, fi, é vivência de quebrada


Respeito pra ter conceito, num é só chegar pra ser
aceito”.(PSICOPRETAS 2, 2019)

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

Ainda que essas expressões culturais ainda sejam


produzidas por negros, quando reproduzidos por brancos são
recebidas de outra forma. Essa apropriação denuncia a
colonialidade ainda em curso, em que se é legalizado
socialmente a prática de brancos saquearem as populações
negras, sejam seus territórios, culturas, assim como fizeram
com seus corpos no período de escravização.

“Há mais de 500 anos, todo o saber negro foi, violentamente,


sequestrado da África. Transformados/as em mercadoria,
homens e mulheres africanos/as foram escravizados/as,
violentados/as, invisibilizados/as nas Américas para o
enriquecimento da Europa... todo seu saber acumulado foi
apropriado pelos colonizadores-escravistas” (GOMES, 2017).

Assim, perpetuam as estruturas desiguais de racismo,


pois, quando é reproduzido por vozes negras é perseguido,
mas por brancas é valorizado e aplaudido. Assim ocorre com
muitos outros símbolos das culturas negras, incluso na estética
(BERTH, 2019). Muitas pessoas negras que por escolhas
políticas decidem manter seus cabelos naturais, são muitas
vezes ridicularizadas, sofrendo com esta prática racista, desde
suas infâncias.
Um exemplo são pessoas que usam dreads como forma
de demarcação cultural, e que são ridicularizadas de formas
variadas, mas que na atualidade tal elemento tornou-se um
símbolo estético apropriado por pessoas brancas, e quando
usado por um branco é visto e aceito de forma positiva. E que
em contraponto, para BERTH (2019) as pessoas negras que se
iniciam no processo de demarcação de sua negritude através de
seus corpos, ainda não estão totalmente conscientes do processo

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Gênero, mulheres, raça e
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de emancipação particular que necessitarão vivenciar, através


de uma busca profunda de amor próprio, resgatando assim
seus traços de ancestralidade, suas raízes em sua formação
pessoal.
Podemos ver também:

“Me camuflava nos teus espaços


Alisando o cacho
Fiz mó embaraço
Na angústia do passo
Que não encontrava par no salão
Tem dia que ainda tô sozinha naquele salão
Mas não tem dia que me falte o pé no chão
Pra me fazer solitude nessa solidão
Nesse chão me firmei, deixei a gira girar
Quando o cabelo eu armei” (Psicopretas, 2018).

Portanto, assumir os cabelos é resistir ao modelo estético


que é vendido pelo capitalismo, que é o padrão branco
europeu. Outra canção que podemos ver relato dessa opressão
estética, como ditadura da beleza produzida pelo capitalismo
que é patriarcal, ou seja, uma repressão voltada principalmente
as mulheres quais sentem-se cobradas e tem suas autoestimas
fragilizadas por esse padrão inalcançável e inexistente, é uma
música performada por Preta Ferreira e sua companheira de
vida Doralyce, quais obtêm um trabalho conjunto e através da
música realizam uma luta interseccional.
Pois, como bem nos apresenta uma publicação em uma
revista online do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais
Sem Terra):

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

“Independente de qual face da identidade observemos, uma


coisa é certa: ao longo dos séculos, a música tem sido usada
para traduzir e conferir sentido ao sofrimento e a resistência. E
na perspectiva da interseccionalidade e da maior
representatividade, não faltam exemplos de vozes e sons que
surgem contra o racismo, machismo, sexismo e a LGBTfobia.”
[...]
“Bia Ferreira e Doralyce traduzem a poética da luta a partir de
suas músicas, um sentimento em prol da igualdade que
transpassa o corpo e evocam uma ancestralidade. E é disso que
se trata a interseccionalidade também.” (ALCÂNTARA, 2019).

Através das músicas destas cantoras podemos perceber


esse trabalho político interseccional exercido por ambas, em
que abordam as lutas através dos pontos de diferentes
identidades e suas opressões sofridas. Com isso, expressam em
suas músicas diferentes fenômenos políticos, como vemos:

Mode on high tech


Modelo ocidental
Magra, clara e alta
Miss beleza universal
É ditadura!
Quanta opressão
Não basta ser mulher
Tem que tá dentro do padrão
Foda-se o padrão!
Miss beleza, miss beleza universal
Miss beleza, patriarcado passa mal
Miss beleza, miss beleza universal
Miss beleza, patriarcado passa mal
(Preta Ferreira e Doralyce)

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

Todas as expressões culturais produzidas por


afrodescendentes, a partir do processo de diáspora, foram
categorizadas como movimentos inferiores, não pertencentes ao
patrimônio cultural, por não poderem ser consideradas e
validadas como cultura, como conhecimentos que possa ser
passados durante as gerações.
Assim como:

“Similaridades ainda mais evidentes são contestáveis, se o


nosso olhar se volta para as músicas, as danças, os sistemas de
crenças, etc. Desnecessário dizer o quanto tudo isso é encoberto
pelo véu ideológico do branqueamento, é recalcado por
classificações eurocêntricas do tipo ‘cultura popular’, ‘folclores
nacional’ etc, que minimizam a importância da contribuição
negra.” (GONZALEZ, 1988, p. 70).

Movimentos culturais como o samba, a capoeira, o hip


hop e o funk, foram símbolos da luta negra para que essas
produções do povo negro se tornassem patrimônios culturais
da nação, e assim fossem defendidas pelo Estado e não
atacadas. Porém, mesmo com a atual legalização do Estado, o
racismo institucional permite práticas legais de perseguição a
tais conhecimentos.
Exemplos desses ocorridos é o funk carioca que ocorre
nas favelas do Rio de Janeiro, locais em que constantemente
ocorrem operações policiais, onde são invadidos de forma
violenta, muitas vezes durante estes eventos, colocando as
vidas de muitos moradores de favela em riscos e expostas à
violência do Estado.
Outra problemática é a que o atual prefeito desta mesma
cidade deslegitimou por diversas vezes e por diferentes formas

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

eventos de samba em que ocorriam constantemente pela


cidade, sendo legalmente perseguidos pelo governo, e muitas
vezes tiveram que ser cancelados. Uma violência simbólica
causada por forças superiorizadas.
Vemos assim o incomodo que ainda os movimentos
culturais negros causam a uma sociedade pautada pela
colonialidade, e como estas práticas são baseadas por lei. O que
simbolicamente de forma implícita o Estado constantemente
busca dizer que ainda ser negro é crime, é algo marginal e
marginalizado socialmente.
A cultura hip hop e o rap provindo desta são
constantemente relacionados e estigmatizados à marginalização
social, e de fato o são marginalizados por não obterem um
apoio efetivo do Estado. Estes artistas em sua maioria não
possuem financiamento, e ao menos espaços na cidade em que
possam exercer suas práticas. Um exemplo é o grafite, que hoje
em dia é aceito em espaços limitados, e sua estética, sua
imagem ainda é moldada por um padrão de beleza, uma crítica
trazida por muitos outros que também a exercem e acreditam
na total liberdade de expressão dessas produções, que vão do
grafite à pichação (CAMARGOS, 2015).
Mas, apesar da apropriação e da perseguição
constantemente sofridas, surge-se a necessidade de demarcação
deste território, afirmando-se assim essas expressões como
espaços sociais de enunciação majoritária das vozes negras, e
para escutas negras. Pois o samba e o rap resistem como
espaços de resistência, de visibilidades sociais ocupados por
pessoas negras, onde na sociedade racista que vivemos espaços
de poder e de visibilidade lhes são constantemente negados.

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

Ainda, a música é considerada um importante


mecanismo educativo, em que é possível garantir acesso a
conteúdos e informações a um número considerável de pessoas,
se pensarmos que qualquer um pode ter contato,
principalmente nos dias de hoje com a internet.

“Sin embargo, las mujeres también confirmen el aumento en


espacios feministas por el neoliberalismo (ibid). Debido a la
globalización hay más posibilidades de comunicación. Por
medio del Internet la palabra de la revolución feminista puede
difundirse y llevar a nuevas ideas (ibid).” (RAMIREZ, 2016, p.
2).

O racismo estruturado nesses espaços de conhecimento


e informação invisibiliza a todo tempo o debate sobre o racismo
existente, o que faz com que muitas pessoas não tenham
conhecimento das críticas apontadas pelos movimentos negros,
o que intencionalmente contribui para a perpetuação do
racismo. Afinal, quem controla os meios de comunicação e
conhecimento desejam e incluso necessitam da permanência
das estruturas de desigualdade para manterem suas posições
privilegiadas de poder, e obterem sujeitos inferiorizados
socialmente para que lhe sirvam.
E isso ocorre também com a educação, que ainda é
controlada por privilegiados dominadores que precisam da
reprodução dessas desigualdades, e que exprimem isso nos
setores formais e informais de educação, onde atacam
constantemente movimentos de luta para uma educação negra,
baseada nas culturas africanas, afroamericanas e caribenhas
(GOMES, Nilma; 2011). Ainda, invisibilizam e bloqueiam as
oportunidades de conscientização da população sobre questões

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

como racismo, machismo, homofobia (GONZALEZ, 1988).


Mantem as pessoas alienadas para simplesmente reproduzem
as estruturas e programadas para descartarem tais debates,
rejeitando inclusos pessoas que defendam seus direitos.
Outra expressão da necessidade de se manter a
desigualdade na educação é que, muitas pessoas ainda não
possuem a efetivação plena de seus direitos básicos como
ingresso as escolas. Ainda vivemos uma realidade em que um
número considerável da população ainda não possui acesso à
educação formal. A maioria são negras (CEPAL, 2018).
O rap então garante o acesso de jovens a
questionamentos e críticas sociais, a uma consciência política a
muitos jovens que foram marginalizados do acesso à educação
formal, que não possuíram essas possibilidades (CAMARGOS,
2015).
Com isso, a música é um dos poucos meios possíveis
que garantem a oportunidade dessas pessoas excluídas
ouvirem sobre suas próprias histórias. A cantora Preta Ferreira
ao início de uma apresentação nos mostra isso:

“Esse som que eu vou fazer agora ela fala por quem eu canto,
porque eu canto, pra quem eu canto. E eu sempre gosto de falar
que o meu som ele é um som feito para educar pessoas pretas
que não tiveram acesso ao mesmo tipo de informação que eu
tive.” (FERREIRA, 2019)

E reitera:

“Então, não fica bravo comigo, mas você pessoa branca, que ta
assistindo o show agradeça muito porque o show não foi feito
pra você. Mas aproveite, aproveite, aproveite que você ta aqui,

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

porque o racismo só existe por causa de vocês, então se vocês se


educarem, a gente já para de morrer. Só que a gente não tem
tempo de ficar educando vocês e ainda tenta não morrer, bota
fé? Então, se você conseguir fazer isso e passar isso pra frente é
muito importante. Então, obrigado à vocês que estão aqui
ouvindo, pelo menos espere que alguma coisa entre”
(FERREIRA, 2019).

A partir dessas práticas, desses momentos artísticos de


encontros ocasionais, que são geradas as possibilidades de
pessoas negras falarem para pessoas negras/seus pares sobre
suas lutas, vivências desiguais, despertando assim consciência,
empoderamento sobre as opressões ocorridas. Também auto-
aceitação, amor, afeto, e ainda poderem contar a versão de suas
histórias, sobre uma perspectiva negra, por uma voz negra,
pois:

As preta reunida veio pra fazer bilhões


Muito branco falando, poucas reparações
Afroempreendedoras, dona do próprio negócio
Autoestima, autoamor, hoje se tornaram sócio
Cês abafaram nossa história
Pra esconder potencial
Fez parecer que desde sempre
É cana ou cafezal
(Psicopretas 2)

Através desse mecanismo, nos apresentam as opressões


sofridas pelo racismo:
“É que minha pele ocupa a maioria das covas, prisões e
periferias”
(Psicopretas 2)

Ou:

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

“Presídios empretecidos, pretos trazem falecido


Antes do nome segundo a estatística
Quero vê-los na estica, não esticando mais um
Pretas executivas e não executadas
Quem é mais preto ou quem é menos preto, enquanto sobe
mais um”
(Psicopretas 2)
[...]
“Os canas querem acertos senão é só desacerto
Matando flores do gueto, é
Pra morrer basta tá vivo ou basta ser LGBT e preto?”
(Psicopretas 2)

Assim, denuncia o racismo estrutural do Estado


ocorrido através de políticas de genocídio e encarceramento em
massa. Denunciam o racismo presente sobre as religiões de
matrizes africanas, e constantemente durante as melodias
fazem referências as suas ancestralidades, como formas de
resistências religiosa e cultural:

“Exu guia minha estrada, por Dandara abençoada”


(Psicopretas)
[...]
“Projeto Preto em ação, além da expressão
É auto-afirmação de vida a cada batida
O beat é atabaque, traz o conhaque, salve ao santo!”
(Psicopretas)

Ou:

“Minha mãezinha, me abençoe pr'eu sair


Que eu nem sei mais se eu volto
O inimigo tem barca, tem moto

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Gênero, mulheres, raça e
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Arma na palma e também tem voto


Caneta pronta pra assinar óbito”
(Psicopretas 2)

Também, através do rap, mulheres negras expõem


críticas sobre as opressões interseccionais, denunciando o
machismo e racismo sofrido, em que muitas são assassinas por
tais opressões (VIGOYA, 2016):

“Quantas Matheusa ainda vão ter que partir?


E quantas Marielle ainda vão ter que morrer?
Pra fazer boy entender
Hip hop num é banheiro químico pra tu cagar no meu rolê”
(Psicopretas 2)

Vemos também a chamada sobre posicionar o rap como


espaço de critica social, e que deve ser utilizado como forma de
posição política. Mas, ainda é um espaço como muitos outros,
em que mulheres sofrem com o machismo, e que além das
dificuldades que possuem para estar naquela posição,
expressando suas ideias, ainda tem muitos homens que usam as
letras para atacar as mulheres.

“No obstante, la revolución feminista no sólo es visible en el


político sino también en el aspecto sociocultural como la música
latinoamericana, incluso el género hip hop.” (RAMIREZ, 2016,
p. 3)

O rap tornou-se um grande meio, por toda a América e


Caribe, de mulheres denunciarem o machismo sofrido em seu
cotidiano, e incluso no próprio meio musical, em que é
predominantemente masculino. Podemos ver:

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

“Este trabajo trata de la contribución del “hip hop feminismo” o


el “rap feminista” en la sociedad latinoamericana hoy en día. Es
un tipo del rap bastante nuevo, pero ya tiene mucho impacto en
la región debido al contenido del mensaje que quiere difundir.
Además, el papel negativa de la mujer en la música rap se lleva
a la superficie y entonces el “hip hop feminismo”. Y luego, el
“hip hop feminismo” como género popular y música de
protesta será discutida mediante el análisis de dos canciones
populares.” (RAMIREZ, 2016, p. 2).

Ou diante da afirmação:

“As mina rima sim!”


(Cypher – Rimas e Melodias, 2016)

Além da problemática do racismo disseminado nesses


espaços artísticos, de desvalorização da arte negra, e tentativa
de apropriação e valorização quando que reproduzido por
brancos, ainda existe fortes opressões machistas nesses espaços,
onde as mulheres costumam não serem aceitas.

“En general el estereotipo de la mujer en la cultura hip hop es


muy negativa por el sentimiento sexista que impregna la
música rap tradicional que se ve reforzada por la referencia
constante a las mujeres como “bitches” y “ho's” (Dyson, 2004).
Justo al inicio de la escena del hip hop en los años sesenta en las
calles de Nueva York, empezó a crecer la exposición sexual de
mujeres en los vídeos de rap; unido con la commercialization
de la música rap (Berry, 1994). De esta manera la dominación
masculina, el patriarcado y las mujeres como objetos sexuales
destinados exclusivamente al placer masculino se han
convertido en algunos elementos característicos de la cultura
hip hop y su música rap, al lado del uso de las drogas y la

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

violencia entre grupos marginados (DYSON, 2004).”


(RAMIREZ, 2016, p. 3).

Através do rap das mulheres negras vemos a força e a


potência dos corpos e vozes negras femininas, que cada vez
mais ganham lugar em um espaço predominantemente
masculino, machista e misógino. Assim, exercem uma luta
interseccional (VIGOYA, 2016), apresentando na prática o que
vemos na teoria. E ainda, possibilita o acesso às pessoas que são
excluídas dos debates acadêmicos e das produções teóricas.

“Aparte de estas características negativas, la música rap


también contiene objetivos positivos. Es el producto de una
fuerte necesidad de auto-expresión auténtica y el deseo de
mejorar las experiencias de los espectadores en los eventos
musicales comunitarios. El género musical surgió para
promover la lucha contra la violencia y justicia social (Viega,
2015). El énfasis en la potencia y el poder de la palabra hablada,
la improvisación y la narración en la música rap son
características importantes que pueden funcionar como terapia
para los que experimentan el racismo, la discriminación o la
opresión (ibid).” (RAMIREZ, 2016, p. 3).

Vemos essa afirmação através de alguns trechos das


músicas das Psicopretas, quais foram selecionadas por causa do
nome do grupo, de sua representação social e simbólica para o
cenário musical, e da presença e ideias políticas trazidas pelas
mulheres através da composição do grupo. Assim:

“Disse que não curte rap de mina e que nenhuma presta


Vou me trancar no quarto, chorar
Rasgar minhas rimas, é o que me resta
Tá cheio de bandidão, Nelson Rubens de Internet

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Gênero, mulheres, raça e
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Sua mãe trocando suas fraldas


Eu nas ruas fazendo rap
Xiu, baixa a guarda, moleque
Respeita quem abriu os caminhos, fez história”
(Psicopretas)
[...]
“Cê nem sabe que na minha veia tem sangue de Teresa Benguela
Pra nós é muita treta ver uma preta contra outra preta
Destruindo nossa luta, um branco inventa e ceis aceita?!”
(Psicopretas)
[...]
“Tem quem quer dividir, mas vim multiplicar
Todo ouro pra mulher preta”
(Psicopretas)

Ainda:

“Sobra o anonimato pras Latifah zica da periferia


Dona Clementina, Jovelina espia
Cês nem vem tentar, meu bem, nós somos dessa cria
Essa cena é hype, né?
Nós aqui é premier
No mano a mano, pergunto
Meu mano, tu tá argumentando que as mina não rima ainda?
No game eu tô trampando há uns tempos
Cês gostem ou não, ganhei meu respeito
E de cabeça erguida vivendo
No mic X-Woman, vai vendo!”
(PSICOPRETAS 2)

Assim, é essencial enxergar o peso político e histórico do


trabalho produzido por essas mulheres negras, que vemos que
além de seus trabalhos serem uma luta contínua para a
manutenção de seus espaços sociais nesse território
predominantemente masculino que é o rap, ainda apresentam

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

relatos históricos, políticos, visibilizam e tornam de


conhecimento público personagens que ainda não são
conhecidas pela camada popular da sociedade, quais às vezes
não se encontram nas próprias histórias das escolas. Porém
acabam por muitas vezes não possuírem o mesmo valor de uma
produção acadêmica, que se pensarmos na funcionalidade de
seu exercício, o meio usado por estas artistas torna mais
possível o acesso para mulheres negras que não obtêm acesso à
educação formal.
Por isso, é importante serem defendidas diferentes lutas,
como de mais visibilidade e abertura de espaço a mulheres
negras nesses cenários de anunciação, o que também contribui
na luta de garantia de direitos de mulheres negras ao estudo,
trabalho, saúde, autonomia, respeito, para uma vida mais digna
e humanizada. Ou seja, necessitamos de políticas integrais
interseccionais que se desenvolvam sob a perspectiva das
diferentes opressões, a fim de superá-las.
Através de uma das obras de arte das Psicopretas
podemos obter uma fala de Angela Davis, qual incluso seu
discurso aparece no clipe da música. Pensar que muitas
mulheres que nunca foram à universidade através de uma
música podem ter acesso à fala de uma negra acadêmica é
extremamente simbólico e representativo, mostrando assim a
importância desse trabalho. E, como é dito por Angela Davis em
sua fala no discurso: “Resistência em nossa arte e em nossa
música.”.

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

CONSIDERAÇÕES FINAIS

“As preta reunida veio pra fazer bilhões


Muito branco falando, poucas reparações
Afroempreendedoras, dona do próprio negócio
Autoestima, autoamor, hoje se tornaram sócio
Cês abafaram nossa história
Pra esconder potencial
Fez parecer que desde sempre
É cana ou cafezal
Retomando o trono, coroa e tradição”
(PSICOPRETAS 2).

Através deste relato, em que representa a voz da


juventude sobre a perspectiva das mulheres negras, vemos
através de uma música da atualidade que ainda nos dias de
hoje as devastadoras consequências do colonialismo sobre o
povo negro, através da racialização por cor e pele, e
inferiorização da pele escura, o genocídio do povo negro, o
machismo e o feminicídio, ainda não foram devidamente
reparados, apesar de terem sido ecoados gritos durante todos
esses anos expondo as desigualdades e injustiças.
Através do trecho “Retomando o trono, a coroa e tradição”
vemos a importância do resgate das culturas negras como
tradição, algo que deve ser tratado com respeito, e valorizado
socialmente, que como vemos, ainda não é validado justamente
da forma que se deveria.
A retomada do trono e da coroa é uma grande e
importante referência história, que nos faz recordar que muitas
mulheres negras foram trazidas forçadamente para a América,
quando viviam em suas sociedades africanas, eram rainhas,

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313
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

princesas, ou possuíam outros postos de poder em suas devidas


comunidades. Resgatar tal informação é recordar e demarcar a
verdadeira história dos povos negros por esse mundo, pois
ainda os livros de história só nos contam a “conquista” e
“vitória” dos brancos europeus sobre os povos negros e
indígenas, como se a história do mundo se iniciasse na
colonização, na América (GOMES, Nilma; BERTH).
Através dessas histórias é possível humanizar a figura
da mulher negra, mostrando não só a população negra como
escrava, inferior, e incapaz de reger, pensar, administrar,
liderar. Resgatar sua posição de rainha, é entrar na disputa
contra-epistemológica da visão gerada sobre os negros pelo
colonialismo, e apresentar a vida que acontecia na África, pois
havia vida, havia espaço e direitos em seus territórios, mas que
foram roubados junto com a retirada forçada de seus corpos.
E que, o que levanta uma mulher negra nessa sociedade
machista e racista, é outra mulher negra. Por isso é essencial se
manterem juntas, a fim de unidas se reerguerem, se levantarem,
e retomarem o trono, a coroa e a tradição. Então, através dessa
união de fortalecimento, juntas gritam suas dores e seus desejos
de transformação, a fim de viverem em uma sociedade justa,
através de um empoderamento coletivo (BERTH, 2019). Uma
levanta a outra. Assim, vemos:

“Preta, quanto amor perdeu, que te corroeu


Cadê o seu valor? Seja seu próprio amor
Não aceite menos do que entregou
É que pra moldar o mundo tem que vir de dentro”
(Psicopretas 2)

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Gênero, mulheres, raça e
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Através da música vemos que muitas mulheres


conseguem exprimir essas vontades, e que é uma grande
ferramenta de emancipação dos excluídos (BERTH, 2019). Pois,
Ramirez apresenta em seu texto Voces de resistência um relato de
uma rapper, Tijoux, que nos conta que uma fã a disse que
através de sua música conseguiu perceber o machismo sofrido
em sua relação, incluso agressões físicas, e criou forças para
acabar com tal situação.
Vemos que com esses relatos, podemos acreditar que o
rap está cumprindo a sua missão, e que é mais que necessário
lutar para que cada vez mais o movimento ganhe espaço e
notoriedade social, para assim chegar a muitos ouvidos, e tocar
corações que pulsem a fim de reparações e transformações
sociais, para vivemos em uma sociedade justa e sem opressões.

REFERÊNCIAS
ALCÂNTARA, Fernanda. Por que precisamos entender a
interseccionalidade? Revista do MST (Movimentos dos
Trabalhadores Rurais sem Terra): 24, de outubro de 2019.
BAIRROS, Luiza. Nuestros feminismos revisitados. Política y
Cultura. Distrito Federal – México: Universidad Autónoma
Metropolitana - Unidad Xochimilco, n.14, 2000, pp. 141-149.

BERTH, Joice. Empoderamento. In: Feminismos plurais. Minas


Gerais: Polén, abril de 2019.

CAMARGOS, Roberto. Rap e política. São Paulo: Boitempo,


2015.

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

CARDOSO, Cláudia Pons. Amefricanizando o feminismo: o


pensamento de Lélia Gonzalez. Revista Estudos Feministas.
Bahia: Universidade do Estado da Bahia, 2014.

CEPAL. Mujeres afrodescendientes en América Latina y el


Caribe. Deudas de igualdad. Naciones Unidas – Santiago:
CLACSO, 2018.

GOMES, Maíra Neiva. A musicalidade negra como resistência


em
Géledes: Rio de Janeiro, 2017 em
<https://www.geledes.org.br/musicalidade-negra-como-
resistencia/> acesso 20 de Julho de 2020.

GOMES, Nilma Lino. O movimento negro no Brasil: ausências,


emergências e a produção dos saberes. Revista Política e Sociedade,
nº 18, v. 1º, abril de 2011.

GONZALEZ, Lélia. A categoria político-cultural de


amefricanidade. In: Tempo Brasileiro Tempo Brasileiro Tempo
Brasileiro Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro: Revista Tb Rio de
Janeiro, 1988.

JABARDO, Mercedes. Feminismos negros – Antología. Madrid:


Mapa, 2012.

RAMIREZ, Churampi. Voces de resistencia: el hip hop para


promover el feminismo en América Latina. Rebeca Eunice Vargas
Tamayac & Ana María Merino Tijoux. Leiden: Universidad de
Leiden, 2016.

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316
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

RIOS, Flávia. RATTS, Alex. A perspectiva interseccional de


Lélia Gonzalez. In: CHALHOULO, Sidney. PINTO, Ana Flávia
Magalhães, org. Pensadores Negros – Pensadoras Negras: Brasil
século XIX e XX. Belo Horizonte: Coleção UNIAFRO – UFB,
v.11, 2016.

VIGOYA, Mara Viveros. La interseccionalidad: una


aproximación situada a la dominación. Bogotá: Debate feminista,
2016, p. 1-17.

ANEXOS I – MÚSICAS
Bia ferreira e Doralyce – Miss Beleza Universal – 2017 em
<https://www.letras.mus.br/bia-ferreira/miss-beleza-universal/>
acesso 20 de Julho de 2020.

Psicopretas 1 – 2018 em <https://www.letras.mus.br/narceja-


producoes/cypher-psicopretas/> acesso 20 de Julho de 2020.

Psicopretas 2 – 2019 em <https://www.letras.mus.br/narceja-


producoes/psicopretas-vol-2/> acesso 20 de Julho de 2020.

Rimas e Melodias - Cypher - em


<https://www.letras.mus.br/rimas-e-melodias/cypher/> acesso
20 de Julho de 2020.

ANEXO II - VÍDEO
Bia Ferreira - Não precisa ser Amélia - 2019 em
<https://www.youtube.com/watch?v=psxSY400Pn8> acesso 20
de Julho de 2020.

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

ANEXO III – RECOMENDAÇÃO


Rimas e Melodias – Origens em <
https://www.youtube.com/watch?v=jBTUZC0j1ug> acesso 20
de Julho de 2020.

Psicopretas 2 em
<https://www.youtube.com/watch?v=bxqhIctLlZY> acesso 20
de Julho de 2020.

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Gênero, mulheres, raça e
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“A CARNE MAIS BARATA DO MERCADO É A


CARNE NEGRA” OBJETIVAÇÃO E SEXUALIZAÇÃO
DO CORPO DA MULHER NEGRA

Vanessa Valeska Xavier do Nascimento


Emanuela Silva Neves
Marcossuel Gomes Acioles
José Maria Nogueira Neto

INTRODUÇÃO

A luta antirracista mobilizada pela população negra


incorpora no movimento construções de representações sociais,
assim, quando esta é instaurada é possível se articular com as
demais representatividades. A dificuldade de pensar as
questões raciais está ligada intrinsicamente ao processo de
embranquecimento dos homens e a construção da diáspora
africana principalmente no que cerne a construção da
identidade negra no Brasil, no qual gera diversos
impedimentos relacionados às relações sociais, onde os negros
por muitas vezes não conseguem se sentir parte dos grupos.

Sentir-se parte de um grupo através de atividades (...) sociais


concede ao individuo de origem negra sentimentos de pertença,
autoestima que (..) atualizam a memória e a identidade social
através de suas pertenças (GOMBERG, 2011, p.79).

O corpo negro independente do gênero tem associações


de vários estereótipos, aqui, destacamos a ênfase no campo da
hipersexualização e objetificação. Tais concepções são

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319
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

observadas até os dias atuais. O corpo de homens e mulheres


negras denotam discriminação e dominação (HEILBORN,
ARAUJO & BARRETO, 2010). O corpo negro não deve mais ser
abordado e observado apenas dessa forma, mas como um
agente produtor de sentidos e significados que modelam e
constrói a vida das pessoas, nesta discussão, a exclusão da
feição única da mulher negra, aquela cujo corpo fica à mercê do
patriarcado e das mídias que, só favorecem sua subordinação e
opressão são constantemente infligidos. Os sentidos e
significados que refletem na forma escancarada de conflitos
sobre os discursos frente a esse corpo negro, são sempre
político e revolucionário, não basta simplesmente ter espaço é
preciso ser negro nos espaços e, por meio destes, exalar sua
resistência e todo seu potencial de ancestralidade, Franz Fanon
(2008, p.123) “nestes olhares brancos que não é um homem
novo que está entrando, mas um novo tipo de homem, um
novo gênero. Um preto!”.
O feminismo negro é uma grande premissa para se
falar sobre mulheres negras, todos os caminhos demostram um
constante processo de luta e resistência, o mundo não é
apresentado para as mulheres negras com toda a sua maestria
permeada de possibilidade.

As mulheres negras foram assim postas em vários discursos


que deturpam nossa própria realidade: um debate sobre
racismo onde o sujeito é homem negro; um discurso de gênero
onde o sujeito é a mulher branca; e um discurso sobre a classe
onde “raça” não tem lugar (...) mulheres negras habitam um
espaço vazio, um espaço que sobrepõe às margens da “raça” e
do gênero chamado de “terceiro espaço” (KILOMBA, 2012,
p.56)

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Gênero, mulheres, raça e
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O corpo feminino negro perpassa por sofrimentos e


dores durante toda a história do Brasil. Segundo Miriam Alves
(2010), o ecoar de vozes de antepassados se faz relutante por
quem vivenciou a sexualização dos tempos passados, no
sentido de que as marcas vivenciadas no período colonial ainda
estão presentes em forma de lembranças na atualidade dos
indivíduos, permitindo que os mesmos atribuam significados e
sentidos para suas vidas.
O legado da escravidão elegeu o povo branco como
privilegiado em detrimento do povo negro, que tem sido
excluído desde o período colonial a fim de saciar os interesses
da classe então dominante. É possível constatar através do que
foi citado anteriormente que as pessoas negras que pertenciam
ao nosso país foram silenciadas por vários períodos históricos,
sendo vítimas de constante exploração e abandono. Com o
delinear do tempo, ao se organizar, a população negra
circunscreve uma marcha diária de uma sociedade que busca
estar livre de opressão e com direitos igualitários.

Buscamos explicitar não ser esse um problema que se limita ao


âmbito interpessoal, comportamental, sendo uma questão
estruturante das relações sociais, que em sua intersecção com o
gênero e a classe demarca lugares sociais. Daí a importância de
observar as singularidades históricas, sob o risco de afastar o
debate ideológico do combate ao racismo de questões ligadas a
transformações societárias. (MADEIRA, GOMES, 2015, p. 268)

No âmbito de cada sociedade engendrada em sua


cultura, a noção de corpo vai se construindo e modificando de
acordo com as particularidades de cada época e costumes. Por

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

conseguinte, ao longo da historicidade surgiram padrões de


beleza, posturas, sexualidade, dentre muitos outros marcos de
referência cultural.
A vis temos sobre o corpo até hoje é advindo da Grécia
Antiga. Um corpo idealizado, glorificado e de interesses
estatais. Conforme Foucault (1994), antigamente era possível
observar que havia uma preocupação a mais sobre os cuidados
que as pessoas deveriam tomar frente ao seu corpo, sendo de
extrema necessidade os cuidados da sua alma que eram
bastantes empregados e desfrutados, também tinham zelos com
o corpo físico, o uso das vestimentas adequadas, fazer
exercícios e dietas, pois, somente desta forma alcançariam a
plenitude do viver.

O corpo era valorizado pela sua saúde, capacidade atlética e


fertilidade. Para os gregos, cada idade tinha a sua própria
beleza e o estético, o físico e o intelecto faziam parte de uma
busca para a perfeição, sendo que o corpo belo era tão
importante quanto uma mente brilhante. A moral quanto ao
corpo e ao sexo não era rigidamente organizada e autoritária,
apenas estabelecia algumas formas de conduta para evitar os
excessos (MATOS e COSTA, p.25, 2011)

Com o advindo do Cristianismo, obtivemos uma nova


concepção de corpo, este saiu do local de beleza e passou a ser
considerado pecado, homens e mulheres tinham que esconder
seus corpos mantinham uma postura rígida em relação ao sexo,
aonde este só deveria ser consumado para a procriação. Todo e
qualquer desejo tinha que ser reprimido, a oração era a maior
fonte de cura e libertação.

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

Uma das razões será porque o cristianismo possui uma história


própria e de difícil relação com o corpo. Durante muito tempo
foi central a espiritualização e o controle de tudo o que é
material (...) corpo, prisão da alma, era pois um vexame, devia
ser escondido (...)carregado de culpas por ser feito de carne e de
sexo, assaltado por pudores, encobriu os seus membros e os
seus músculos. (MATOS e COSTA, p.26, 2011)

No final da Idade Média, muitas mulheres foram mortas


e queimadas o ponto central era que, as mulheres eram a
personificação do próprio demônio, pautados no discurso
religioso que desenvolvia o movimento chamado de caça às
bruxas. Efetivando a morte de mulheres que supostamente
teriam poderes sobrenaturais, ou que apresentavam alguma
deficiência física, até mesmo por terem idades avançada e
discursos contra-cultura, a prática foi desenvolvida para causar
medo na população e inibir questionamentos realizados perante
a doutrina religiosa. As denominadas como belas poderiam ser
denunciadas como bruxas se não fossem ao encontro com
aqueles que lhe desejavam. Segundo Matos e Costa (2014),
nenhuma mulher era politicamente correta, as mulheres eram
despidas, seus cabelos e pelos eram raspados para ser por
completo examinado a procura de verrugas, cicatrizes e outros
que as pudessem comprometer.

A mulher, através do pecado original, tornou-se responsável


pelas dores e a morte do gênero humano. Com isso, passou,
então, a simbolizar a tentação, o pecado e o mal. A imagem de
Eva na Bíblia, como uma mulher que seduz, construiu uma
representação negativa para o sexo feminino através da
tradição judaico-cristã. Acreditava-se que, como Eva, todas as
mulheres eram seres não confiáveis e com moral inferior. A

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Gênero, mulheres, raça e
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menstruação, a gravidez e o parto doloroso eram castigos justos


para a culpa do maldito sexo feminino (...) vale ressaltar que a
visão que se tinha da mulher no período da Idade Média era
predominantemente negativa (SOUZA, p.115, 2014).

Essa ideia negativada frente ao corpo feminino trazida


na Idade Média fortalece o entendimento de que este corpo está
sujeito às ordens dos outros, pois a mulher não é digna de
confiança e que mereciam ser castigadas de alguma forma. Esse
corpo que é hipersexualizado, é desprezado, sempre ficava
nesse movimento de prazer e descaso, os estereótipos e o
fetiche corroboraram para fazer uma única referência à mulher
negra. Quando trazemos essas discussões estamos falando que
hipersexualizar um corpo negro é tirar essa da condição de
mulher e vê-lo como um corpo pronto para simplesmente
satisfazer os desejos sexuais.

Perdemos muito tempo ensinando como as meninas devem se


preocupar com o que os meninos pensam delas. Mas o oposto
não acontece. Não ensinamos os meninos a se preocupar em ser
“benquisto”. Se, por um lado perdemos muito temo dizendo às
meninas que elas não podem sentir (...), por outro elogiamos ou
perdoamos os meninos pelas mesmas razões (ADICHIE, 2015,
p. 10)

Dentro desse processo cultural a mulher não é pensada


a partir de si mesma, mas sim em uma constante comparação
ao homem. Os homens que as veem querem tomá-las como um
objeto de sexualidade e submissão. Como exemplos, uso de
termos pejorativos que identificam a mulher negra como
referência ao “bumbum grande, corpo de violão, lábios grossos,
corpo definido, genética boa e outros.”.

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324
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

Ser mulher mulata ou parda é não ser preta [...] o


gerenciamento da gradação da cor morena – cor de jambo,
morena – cabo-verde moreninha acarreta num status
diferenciado em relação às mulheres de cor preta, chamadas de
“nego não” o que se remete a traços grossos a corpo cheio. O
que sugere uma diferenciação entre ser preta e ser parda
(SANTOS, 2013, p.16).

O termo mulata vem de mula que é o filhote advindo


pela reprodução de uma égua com um burro. Para Gomes
(2010) a “mulata” representa a miscigenação que propaga uma
sensualidade e sexualidade de identidade que por várias vezes,
é exibida em propagandas e na televisão. Outra frase utilizada
ainda hoje é: “negra da cor do pecado”, geralmente, associada
como uma elogio, faz referência a uma pessoa branca que
depois de algum tempo de exposição ao sol ficou com marca de
biquíni e exala sensualidade. Para Assis (2015), a
hipersexualização da mulher negra é fruto de uma sociedade
machista e racista que em sua grande maioria representada o
corpo de uma mulher negra e jovem como objeto de satisfação
dos desejos dos brancos, essas circunstâncias habitualmente
acarretam danos na vida das envolvidas, pois não conseguem
se sentir donas do seu próprio corpo ou se frustram pelas
diferenças que existem com relação as pessoas brancas.

A partir do momento em que o negro toma consciência do


racismo, seu psiquismo é marcado com o selo da perseguição
pelo corpo-próprio. Daí por diante, o sujeito vai controlar,
observar, vigiar este corpo que se opõe à construção da
identidade branca que ele foi coagido a desejar. A amargura,
desespero ou revolta resultantes da diferença em relação ao

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325
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

branco vão traduzir-se em ódio ao corpo negro (SOUZA, p.6,


1983).

Relevante destacar que em discussões sobre relações


raciais a Psicologia nem sempre foi voltada para questões
insurgentes que contemplam o micro em vez do macro, a
profissão ainda é considerada enquanto elitista dentro da
ciência, segundo Pérez et al. (2001) uma das visões mais
deturpadas que aparece é a transmissão do caráter elitista da
ciência. Acolher e escutar requer de início conhecimento para
quem e para que ofertamos nossos serviços, descolonizar a
Psicologia, implica em ir de embate com uma ciência branca
demais para acolher os efeitos devastadores do racismo nas
subjetividades.

Como poderiam as ciências humanas, históricas – etnologia,


economia, história, antropologia, sociologia, psicologia e outras
– nascidas, cultivadas e definidas para povos e contextos
socioeconômicos diferentes, prestarem útil e eficaz colaboração
ao conhecimento do negro, à sua realidade existencial, aos seus
problemas, aspirações e projetos? Seria a ciência social
elaborada na Europa e nos Estados Unidos tão universal em sua
aplicação? (NASCIMENTO, A., 2009, p. 206).

Assim, iniciamos a produção proposta demarcando as


perspectivas sobre o corpo, especificamente, o corpo da mulher
afro-brasileira, buscando trazer discussões que se referem a sua
hipersexualização, objetificação deste, envolvendo elementos
relacionados a cultura machista e ao preconceito étnico-racial.
Tema relevante, principalmente no campo da Psicologia, que
dentro do seu escopo de produções, mostra-se iniciando um
processo de compreensão e estudos sobre o povo negro.

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326
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

REFERENCIAL TEÓRICO

O homem, apesar de ter seus privilégios na sociedade


também sofre com a objetificação do corpo, principalmente
quando esse homem é preto. Rodrigues (2020) desmitifica o
mito do “homem negro, viril, másculo, incansável sexualmente
e sempre pronto disposto a satisfazer desejos sexuais”,
apresentando uma discursão sobre a desconstrução dessa
imagem.

O mito está localizado num tempo muito antigo, “fabuloso”.


Nos tempos da “aurora” do homem; ou, pelo menos, os
homens o colocam nos seus tempos da “aurora”, fora da
história; o mito não fala diretamente, ele esconde alguma coisa.
Guarda uma mensagem cifrada. O mito precisa ser
interpretado. (…) o mito não é verdadeiro no seu conteúdo
manifesto, literal, expresso, dado. No entanto, possui um valor
e, mais que isto, uma eficácia na vida social. (ROCHA, 1991, p.
8)

Segundo Freyre (1998), nos mercados negreiros, os


senhores compradores faziam os negros ficarem praticamente
nus; abriam as suas bocas, pediam para tossir. Além disso,
existiam aqueles que examinavam minuciosamente os órgãos
genitais dos homens e apalpavam os seios das mulheres, com
essas analises os interesses estavam interligados a reprodução o
quão de prazer aqueles corpos poderiam conceber.

Os negros tinham que se submeter a tudo: eram apalpados,


apertados, beliscados, cheirados, amolengados, quase
mordidos. Os mercadores ciganos eram os que mais expunham
as negrinhas de tenra idade em posturas sedutoras para atrair

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327
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

os compradores, tapando apenas seu sexo com tecidos


diminutos (FREITAS, 2011, p.66).

Durante o período escravocrata relações carnais e


amorosas entre homens brancos com suas escravas aconteciam
normalmente, porém, esse tipo de feito ficava entre quatro
paredes pois, era visto pela sociedade como errôneo. As
mulheres negras eram comercializadas, seus corpos eram tidos
como propriedade e objeto de prazer daqueles que a
arrematavam. A objetificação de corpos de mulheres negras
teve início no sistema escravista no Brasil colonial quando
mulheres negras eram escravas sexuais dos seus senhores. Por
mais que fossem tidas como objeto de cunho sexual pelos
homens brancos, eram consideradas um perigo, estigmatizadas
como portadoras de inúmeras doenças (HEILBORN, ARAÚJO
& BARRETO, 2010).

Nenhuma casa grande do tempo da escravidão quis para si a


glória de conservar filhos maricas ou donzelões. O que a negra
da senzala fez foi facilitar a depravação com sua docilidade de
escrava: abrindo as pernas ao primeiro desejo do senhor-moço.
Desejo não, ordem.( FREYRE, 1998, p.113).

E diante da afirmação de Saillant e Genest (2012, p.28)


podemos refletir que “quando se fala de corporeidade não se
trata de limitar seu alcance a uma relação espaço-temporal,
restrita a um lugar e a uma época, mas de captar as múltiplas
mediações da ‘história feita corpo” e como esses elementos
afetaram o desenvolvimento dos envolvidos, principalmente as
mulheres. Essa noção diz muito sobre a história e constituição
do processo de busca de inclusão da mulher em atividades que

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328
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

antes eram apenas destinadas aos homens, por vários motivos


sendo um deles hierarquização até mesmo do próprio corpo.

A corpolatria passa pelo treino, pela sexualidade, pela estética e


pela medicina, promovendo mudanças que fazem o corpo
enquadrar-se em uma ordem discursiva segundo a qual ele
deve ser (…), fortalecido, bem-modelado (…) belo e jovem. A
sua sexualidade pode ser escondida ou mostrada, a depender
de fatores como a posição-sujeito ocupada pelos sujeitos.
Observou-se que nos enunciados direcionados ao público
feminino o apelo à beleza dá-se por meio dos sentimentos de
confiança e autoaceitação, enquanto naqueles direcionados ao
público masculino o culto ao corpo ocorre principalmente para
adquirir força e tornar-se sexualmente atrativo. (LACHI;
NAVARRO, 2012, p. 35).

Tele, Adi e Barreiras (entre 2000 e 2020) tecem


discussões acerca dos possíveis danos referentes a essa
hipersexualização, o quão os estereótipos, afetam mulheres
negras. Normatização de ditos através da comunidade verbal
gera naturalização da sexualização, tais questões geram
sofrimento psíquico e danos para tais. Segundo o pensamento
de Silva (2004), o inconsciente coletivo marcado pelo racismo e
sexismo, manifestado através do preconceito produz danos
psíquicos.

Mulheres negras, por exemplo, possuem uma situação em que


as possibilidades são ainda menores-materialidade! – e, sendo
assim, nada mais ético do que elas possam ter direito a voz e as
melhores condições. Nesse sentido, seria urgente o
deslocamento do pensamento hegemônico e a ressignificação
das identidades, sejam de raça, gênero, classe para que se
pudesse construir novos lugares de fala (RIBEIRO, 2017, p.43).

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

O construto permeado sob a identidade negra da


mulher, passa pela valorização da mulher branca, no livro
segundo sexo, Beauvoir (p.23) repassa que, o indivíduo que é
mantido em uma situação de inferioridade de fato, são
inferiores, mas faz um alerta como precisamos entender o
alcance da palavra ser.

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

O presente estudo utilizou como método de pesquisa a


revisão integrativa de literatura. De acordo com Souza, Silva e
Carvalho (2010), a revisão integrativa é um tipo de revisão
literária que tem como finalidade possibilitar ao pesquisador
um resumo de forma elucidativa das informações, e de como
acontece a sua aplicação no que diz respeito aos resultados de
estudos que possuem importância considerável na pratica. Por
conta disso o pesquisador que utiliza esse método obtém uma
compreensão abrangente sobre a temática desejada e faz uso de
referências significativas no campo cientifico, para Barbosa,
Melo (2008), a revisão integrativa gera conclusões de estudos
anteriores, sua realização possibilita oferecer subsídios para a
modificação de condutas para obter uma qualidade por meio de
modelos de pesquisas.
Os dados necessários para a construção desta pesquisa
foram coletados por meio de livros e plataformas on-line, nelas
utilizaram-se artigos e publicações referentes ao título: “A carne
mais barata do mercado é a carne negra: Objetivação e
Sexualização do corpo negro”. Dentre a variedade de
plataformas on-line disponíveis na íntegra as que foram

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

selecionadas e manuseadas para a construção do vigente estudo


resumiram-se em: Literatura Latino- Americano e de Caribe em
Ciências da Saúde (LILACS), Biblioteca Virtual em Saúde
(BVS), SientifieElectronie Library Online (SCIELO). Sendo
selecionados e empregados artigos do período de 2010 a 2020.
Utilizou-se como critério de inclusão dos estudos
escolhidos: livros, artigos e publicações originais escritos em
língua portuguesa, disponíveis na integra com acesso gratuito
nas bases de dados descritas anteriormente, publicados entre o
período de 2010 a 2020, com os seguintes descritores “corpo”,
“negro” e “objetivação”. Excluíram-se da revisão presente:
monografias, teses, dissertações, assim como artigos sem a
possibilidade de acesso gratuito, publicações que não estejam
disponíveis na íntegra e nas plataformas selecionadas, que
sejam escritos em outras línguas, artigos que foram publicados
em anos inferiores a 2010 e os que não se relacionam ao tema
proposto.
A análise de dados aconteceu por meio de quatro fases
com objetivo de abranger e obter os melhores dados para a
elaboração da pesquisa. A primeira fase é constituída pela
investigação e seleção de cada um dos estudos para averiguar
se os mesmos são de interesse para a pesquisa em questão e se
estão dentro dos critérios de inclusão e exclusão. Segunda, se
caracteriza pelo fortalecimento da leitura como também das
investigações, a fim de descarta mais estudos que não se
enquadram nesta pesquisa, logo em seguida, na terceira fase
aconteceu à organização e distribuição dos dados para facilitar
o entendimento e resolução do que a pesquisa propõe. No
processo de organização é importante ressaltar que os artigos
escolhidos para compor o estudo foram distribuídos em tabelas.

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

Tem vista a organização e entendimento por parte do


leitor, a tabela é constituída por: título, ano de publicação,
autores método e objetivos. Por fim, a última fase da técnica de
revisão foi realizada a verificação do que foi escolhido e
categorizado antes, discorrendo e permitindo a conversação
entre as pesquisas com os interesses deste estudo.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A necessidade de conhecer mais sobre a trajetória da


mulher negra mostra-se fundamental, tendo em vista a formas
de inclusão e enaltecimento de sua história que, por vezes,
foram e são marcadas por diversas situações de opressão e
isolamento. As mulheres negras não estão apenas em busca de
um território, mais sim de algo maior, que envolve
reconhecimento e garantia de seus direitos que constantemente
são violados, impossibilitando os evolvidos conquistarem esses
objetivos pela falta compreensão por meio da sociedade ou por
não receberem atenção necessária para o desenvolvimento e
ganhos dessas metas.
Nesse estudo, as pesquisadoras apresentam sobre a
população negra, tendo como foco as mulheres como já citada
anteriormente. Os processos de desconstrução dos estereótipos
e preconceitos relacionados a imagem da pessoa negra também
perpassa por um processo de opressão histórica que precisa ser
revertida, assim como a condição de ser mulher numa
sociedade que também é responsável por tanto sofrimento
quando relacionado a questões de gênero e sexualidade.

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

Diante do que já foi trazido, as discussões serão


interligadas aos artigos abaixo, que foram divididas em título,
ano, autores, método e objetivos.

TÍTULO A AUTORES MÉTODO OBJETIVOS


N
O
A partir da leitura
A PRECE DE FRANTZ das obras de Franz
FANON: Revisão de Fanon, o artigo
OH, MEU CORPO, 2 COSTA Literatura / fala sobre o
FAÇA SEMPRE DE 0 Qualitativo colonialismo e,
MIM UM HOMEM QUE 1 como durantes
QUESTIONA! 6 várias épocas o
negro necessita
demarcar o seu
espaço, sua
identidade e deu
corpo.
HIPERSEXUZALIZAÇÃ E TELES, ADI E Qualitativa / Analisar como
O DAS MULHERES n BARREIRAS. Bibliográfica ocorreu a
NEGRAS: AS PECTOS t exploratória construção
SÓCIO-HISTORICOS E r histórica e cultural
A INFLUÊNCIA DA e do estereotipo
MÍDIA hipersexualizado
2 das mulheres
0 negras e como
0 estes se mantem
0 até os dias atuais.

2
0
2
0
Trazer um
A VISÃO SÓCIO- levantamento
HISTÓRICA DA Revisão de histórico sobre a

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

CONSTRUÇÃO DO 2 NOGUEIRA Literatura construção dos


FEMININO: UMA 0 Exploratória femininos
QUESTÃO DE 1 / Qualitativo brasileiro e
GÊNERO. 7 narrativas
coloniais. O texto
propõe discussões
que demarcam a
representividade.

DESMISTIFICANDO A Revisão de Verificar


SENSUALIDADE 2 RODRIGUES Literatura / discussões acerca
NATURALIZADA DO 0 Qualitativo da virilidade
ÉBANO: UM ESTUDO 2 masculina imposta
ACERCA DA 0 ao homem negro a
OBJETIFICAÇÃO DO partir de
CORPO DO HOMEM construtos ao
NEGRO. longo da
sociedade.

Revisão Analisar
MENINA MULHER 2 GESSER E Narrativa de discussões sobre o
NEGRA: 0 COSTA Literatura / ser mulher negra
CONSTRUÇÃO DE 1 Abordagem na adolescência no
IDENTIDADE E O 8 Psicodrama contexto escolar
CONFLITO DIANTE em especial,
DE UMA demarcando um
SOCIEDADE QUE NÃO local de resistência
A REPRESENTA. em uma sociedade
que não respeita a
sua
ancestralidade.
Apresentar a
O CORPO COLONIAL Revisão relação entre o
E AS POLITICAS E 2 LOPEZ Narrativa de corpo colonial e,
POÉTICAS DA 0 Literatura/ discussões para
DIÁSPORA PARA 1 Etnografia compreender o
COMPREENDER AS 5 lugar afro-latino-
MOBILIZAÇÕES americano. Além
AFRO-LATINO- disso, tece falas
AMERICAS. sobre o feminino
negro, raça e

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

gênero.
Traz discussões a
QUEM TEM MEDO DO partir da leitura da
FEMINISMO NEGRO? 2 MALCHER E Revisão de filósofa Djamila
A URGÊNCIA DO 0 RIAL Literatura / Ribeiro. As
DEBATE RACIAL NO 1 Qualitativo autoras a partir da
BRASIL. 8 sua leitura
discutem
identidade,
movimentos
feministas e como
especificamente as
mulheres negras,
não são tratadas
como humanas.

O artigo de Costa (2016) e Lopez (2015) trata de uma


percepção fenomenológica sobre o evento do colonialismo e o
lugar do corpo negro dentro deste processo, debate questões
relacionadas ao racismo e mobilizações afro-latina-americana,
por onde anda e, aonde vai o preto permanece um preto, e é aí
que o preto se depara também com epidermização do racismo,
isto é, a objetivação do corpo preto relacionado com todos seus
medos, angústias e lutas.

O negro será lembrado que é um negro, muitas vezes de uma


maneira sutil (...) quando as coisas ordinárias são feitas por
negros, elas parecem extraordinárias para estes não-seres.
Portanto, estes são lembrados que não participam do mundo
dos seres às nossas relações com o mundo (COSTA, 2016,
p.510).

Nogueira (2017), Gesser e Costa (2018) e Malcher (2018)


apresentam pontos com discussões sobre a mulher negra,
movimentos feministas e a representatividade da feminilidade

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

brasileira. No ano de 1988 no Rio de Janeiro, foi realizado o I


Encontro Nacional de Mulheres Negras, neste encontro
estiveram presente por volta de 450 mulheres negras de vários
estados do Brasil, esse encontro foi tão grande que passou ser
considerado um marco do feminismo negro no país.

A menina mulher negra encontre em sua matriz de identidade


sua identificação subjetiva positiva para a construção de
autoafirmação e autoestima como uma forma de fortalecimento
e preparação para o enfrentamento do preconceito e
discriminação racial (...) inicia-se um processo de metamorfose
pessoal, (...) gradualmente, demolindo velhas perspectivas e, ao
mesmo tempo, passa a desenvolver uma nova estrutura pessoal
referenciada em valores étnicos raciais. ( GESSER, COSTA p.26,
2018).

Esses movimentos foram essenciais para a efetivação de


direitos e, além disso, acarretaram diversos ganhos positivos
para a inclusão de mulheres em espaços diversos. Ainda é
possível observar certo tipo de resistência construída e
reforçada pela sociedade, impedindo de certa forma o
crescimento rápido e efetivo da causa em questão.
Gesser e Costa (2018) traz no artigo “Menina Mulher
Negra: construção de identidade e o conflito diante de uma
sociedade que não a representa”, como é edificada a identidade
de uma menina mulher negra, onde traz cenas em que se
depara com a discriminação sofrida ao longo da vida. Diante
disso, podemos associar a produção de Ferreira e Pinto (2014,
p.264) que apresenta como a Psicologia pode contribuir “em
suas diferentes abordagens, para analisar os fenômenos
subjetivos ligados aos processos de construção da identidade da
pessoa negra e nos processos de desenvolvimento da

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

autoestima”. Com isso, a mulher negra se constrói diante do


seu meio e dá significados a ser mulher negra, e ao longo da
construção do seu eu, participando de movimentos feministas,
estas são agentes ativas, lutando sobre as suas necessidades
reais, como ser humano em sua totalidade.

Feministas negras promovem debates e discussões sobre a


saúde, em solicitação ao governo, por meio de parcerias com
ONGs, que surgiam em apoio as causas do gênero e raça no
país. Então, tomam conhecimento de que o governo tentava
manipular a natalidade da população negra, através de
políticas de intervenções, como esterilização cirúrgica das
mulheres negras e mulatas brasileiras, assim relata Damasco,
Maio e Monteiro (2012). As ativistas negras, voltaram-se para a
luta pela conquista em atenção à saúde reprodutiva das
mulheres negras, exigindo regulamentação do governo, que
atendesse a diferentes práticas de saúde pública e “garantia de
liberdade reprodutiva para as etnias discriminadas”
(DAMASCO; MAIO; MONTEIRO, 2012, p. 143).

Quando se é mulher, preta e militante gera incômodo


numa sociedade estereotipada e machista. Afinal, quando essa
mulher toma consciência de seu lugar no social, elas se tornam
mulheres revolucionarias que lutam pela união das demais,
exclamando seu espaço na sociedade, “formando núcleos de
reconhecimentos e estratégias políticas denominando o
movimento feminista, e assim, estimulando uma nova
estruturação de constituição do feminino brasileiro”
(NOGUEIRA, 2017, p. 23).
Através dos dados obtidos por meio do presente estudo
é possível constatar e reafirmar o quão as pessoas negras são
alvos de constantes violações de direito, racismo e preconceitos.

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

É relevante compreender que esse fenômeno se faz ainda mais


presente quando diz respeito à mulher. Conseguimos observar
que, a mulher desde a antiguidade é marcada e limitada por
um processo contínuo de opressão, uma dimensão repetitiva
até os dias atuais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente artigo teve como objetivo discutir os


impactos da hipersexualização enquanto construção social,
cultural e também histórica que abarca na sua maioria, corpos
de mulheres negras. A partir de tais explanações, foi possível
destacar que, no período colonial em que os senhores brancos
tomavam o corpo de suas escravas como objeto de fetiche e
cunho unicamente como sexual, deu-se início processos que
deixaram marcas profundas em nossa cultura, principalmente
no que tange a mulheres negras, tal concepção se solidificou no
período escravocrata e permeia até os dias atuais. Essas
tessituras tão antigas e impregnadas de preconceitos disparam
debates acerca da “raça” e seus impactos sobre corpos, sobre
vidas. Acredita-se que essas objetificações, reforçam a
necessidade de combater o racismo e perspectivas coloniais.
Não basta mudar a visão de mundo, mas sim, fazer uma luta
prática contrapondo a alienação colonial. Estamos em um país
que investe na política de embranquecimento da população,
vivemos em um governo que não considera o negro, que se
esquiva de enxergar estas lutas.
Os corpos negros foram produzidos pelo olhar de
inferioridade, pelo olhar do colonizador, estes, que invadiram

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

nosso espaço e tentaram nos calar por vários anos as relações de


poder e estereótipos.
No que se refere ao tipo de construção do corpo da
mulher negra, é um tipo de luta marcada pelo lugar de fala,
construção do seu espaço na sociedade que é afrontado desde o
período colonial. O movimento do feminismo negro apresenta
uma grande importância de se pensar lutas para as mulheres,
ou seja, marcar seu espaço na pirâmide social de supremacia
branca e patriarcal, a influência de propagações midiáticas
reforça ditos racistas e discriminativos que estão internalizados
em diversas esferas da sociedade. Ditos como, “mulata
gostosa”, “boa de cama”, “fogosa”... , quem faz essa divisão de
patriarcado e racismo que atinge diretamente a mulher negra, a
luta e o lugar de fala na mulher negra auxilia o seu
empoderamento frente a civilização ainda marcada pelo
período colonial, as lutas e movimentos negros se fazem
necessários para exterminar pré-conceitos e pré-juízos.
O racismo é uma problemática estrutural, se faz
necessário conceber o racismo como algo não natural
desenvolvendo politicas de defesa a população negra.
Considera-se pertinente continuar a problematização e os
discursos, inclusive a partir da colaboração de outros autores.
Faz-se salutar a demarcação do espaço da mulher negra no
debate.
É essencial que profissionais da Psicologia, tenham
consciência desse processo e se impliquem na transformação da
realidade. Desde a graduação a ciência em questão passa uma
visão elitista e excludente de classes, passa um olhar falso da
realidade vivida por várias pessoas.

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339
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

A DAMA DE CAO COMO AGENTE DO


DECOLONIALISMO E DO FEMINISMO: UM ENSAIO
SOCIAL E MUSEOLÓGICO A PARTIR DA CULTURA
MOCHICA E A SUA MUSEALIZAÇÃO

Renata Croner Giquel da Silva


Diogo Jorge de Melo

INTRODUÇÃO

No final de 2004 foi realizado um achado arqueológico


singular na localidade de El Brujo, região norte do Peru, que
ocasionou um verdadeiro reboliço, não só para a Ciência, mas
para toda a população da região do seu entorno.
Transformando plenamente diversas estruturas e relações
sociais locais. Principalmente por esta localidade, a partir deste
fato, ter adentrado no grande circuito turístico do país. No
entanto, em nosso ponto de vista, esse achado também serviu
ideologicamente como um marco de favorecimento à
decolonialidade, principalmente de questões de gênero (SILVA
& MELO, 2020). Já que esse achado nos provoca a repensar as
nossas epistemes genéticas e nos convida a sair de nossas
“zonas de conforto”. Então nos questionamos nesse trabalho se
a descoberta arqueológica da Dama de Cao é capaz de auxiliar
reflexões de estruturações de pensamentos decoloniais e das
questões de gênero, principalmente na Museologia.
Devemos assim, ter em foco que vivemos em uma
sociedade construída a partir de bases machistas, patriarcais e
raciais, que se estruturaram, por exemplo, a partir do crivo de

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

dominações étnico-raciais e de gênero, como das mulheres.


Processo que cercearam comportamentos e construíram corpos
dominados, impondo-os diversos pesares sociais, que os
estudos feministas e de gênero vem apontam historicamente,
como: a violência doméstica, a cultura do estrupo, má
remuneração trabalhista, a destinação à uma vida doméstica,
uma dupla jornada de trabalho, dentre muitos outros
(FRIEDAN, 1983; COSTA & SCHIMDT, 2004; GONÇALVES,
2006).
Podemos entender que a colonialidade (QUIJANO,
2002; 2005) vem formando “corpos dóceis” femininos, como
diria Michel Foucault (2014) e que as mulheres neste contexto
histórico de dominação foram e ainda se encontram fadadas a
não ocuparem lugares de poder e prestígio. Uma realidade que
vem se transformando positivamente ao longo das últimas
décadas. Exemplificando este processo que Melo e Adriano
(2019) demonstraram a dificuldade das mulheres se manterem
em espaços de poderes, demonstrando diversas conotações
sexistas e preconceituosas, em um sentido de desmerecimento,
sofrido por elas, quando conseguem alcançar espaço de poder e
prestígio como a presidência de um país. Justamente nesse
sentido que acreditamos que a descoberta arqueológica da
Dama de Cao é capaz de se opor simbolicamente a esta
dominação, nos mostrando que existiram outras possibilidades
de realidades do ser mulher ao longo da história da
humanidade. Sendo a Dama de Cao um exemplo tácito que
ocorreu na América Latina pré-colonial nos mostrando que
uma mulher ocupou um lugar de poder e prestígio social,
político e religioso. Assim esse achado pode ser entendido
como a descoberta de um grande legado cultural/epistêmico e a

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

partir deles conseguimos desenvolver inferências sobre as


concepções museológicas junto às questões feministas e de
gênero nos espaços museais40 (SILVA & MELO, 2019; 2020).
A Dama de Cao factualmente é um corpo mumificado
feminino que comprova que uma mulher ocupou um cargo de
poder que antes era considerado improvável de ter sido
ocupado. Não por ela ter sido uma sacerdotisa de amplo poder,
que foi um processo aparentemente comum nas culturas pré-
colombianas peruanas, principalmente na cultura Mochica
onde foram encontradas diversas evidências deste fato, mas por
seu contexto arqueológico apontar que exerceu um alto poder
político na região, onde muito provavelmente foi uma
governante deste grupo. Comparativamente, devemos destacar
que no período pré-colombiano peruano as mulheres ocuparam
cargos sacerdotais, como no Império Incaico, no entanto eram
fadadas e vidas celibatárias e de claustro e estavam à mercê dos
caprichos e vontades do Inca e de outros homens com prestígio
religioso e político, que decidiam seus destinos e as utilizavam
como valiosas moedas de troca (FRANCO, 2004; SILVA &
MELO, 2019).

O COMPLEXO ARQUEOLÓGICO DE EL BRUJO E O


MUSEO CAO

O Complexo Arqueológico de El brujo, onde a Dama de Cao


foi encontrada, está localizado às margens do vale do rio

40Quando nos referimos a concepções museológicas estamos nos reportando as bases


constitutivas da área do conhecimento nominada de Museologia e concepções museais
estamos indicando a diversidade de processos decorrentes nos espaços que nominamos
ou consideramos como sendo museus.

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

Chicama, na costa norte do Peru, cerca de 60km da cidade de


Trujillo e 4 km do povoado de Magdalena de Cao, no Estado de
Ascope, região de La Libertad. Abrigando diversos sítios
arqueológicos, em sua grande maioria pertencentes a cultura
Mochica, que perdurou entre 100 d.C. a 750 d.C.. Uma
população arqueológica considerada oriunda de um hibridismo
entre as culturas Cupisnique e Salinar, compondo uma das
tradições políticas e religiosas mais representativas e
permanentes da tradição pré-hispânica andina (FRANCO,
2004).
Os Mochicas possuíam uma das elites políticas e
religiosas mais marcantes da tradição pré-hispânica da região
andina e sua perduração cultural durou cerca de quase seis
séculos e deixou um legado marcante entre os povos do norte
do Peru. Uma herança comprovada pela presença de sítios
arqueológicos de grandes centros cerimoniais, mausoléus e
templos religiosos, reconhecidos como as maiores construções
que se tem notícia na América do Sul. Constituindo assim uma
tradição onde o poder religioso se confundia com o poder
político controlado por uma elite guerreira, que acredita ter
sido detentora de um conhecimento seleto, principalmente o da
cosmologia e dos rituais religiosos (FRANCO, 2004).
Devemos destacar que os conhecimentos atuais que
possuímos sobre os Mochicas se baseiam principalmente nos
vestígios de suas culturas materiais, objetos arqueológicos e
ruínas de suas edificações, já que não possuíam escrita e não há
relatos históricos dos colonizadores. Lembrando que os
Mochicas não mais existiam no período da chegada dos
espanhóis. Claro que também devemos ter em mente que muito
dos seus legados culturais ainda se encontram representados

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

nas culturas indígenas locais. Desta forma, os registros mais


expressivos dos Mochicas se encontra em suas cerâmicas, que
possuem muitas representações simbólicas, como a de rituais
religiosos de sepultamentos e sacrifícios (OSTOLAZA, 2015).
Devemos também destacar que alguns achados de
sepultamentos de múmias Mochicas em localidades como São
José de Moro, vem demonstrando que a religiosidade deste
grupo era baseada no poder feminino. Havendo diversos
registro de múmias associadas a muitas riquezas, condizentes
com mulheres de grande poder e prestígio. Fato que evidencia
uma relação religiosa de poder interligada a manutenção do
governo com os rituais religiosos, e que aparentemente estava
predominantemente na mão de mulheres (BUTTERS &
CHUNGA, 2008).
O Complexo Arqueológico de El Brujo é composto
basicamente por três centro cerimonial, que compõem os sítios
arqueológicos das Huaca Prieta, Huaca Cortada e Huaca Cao Viejo
(Figura 1), todos preponderantemente da cultura Mochica, mas
podendo ter tido ocupações anteriores, como a de grupos
caçadores e coletores, com datações de cerca de 5.000 anos de
idade (JORDÁN, 2017; SANTOS, 2018).
Neste complexo se destaca a Huaca Cao Viejo, que é
composta por uma pirâmide construída nos padrões
tradicionais Mochica, com diversos recintos com murais em alto
relevo. O sítio é composto por um edifício principal, pirâmide,
orientado a noroeste com uma praça cerimonial e construções
contínuas. Na parte de cima da pirâmide encontra-se um pátio
cerimonial, cercado por uma plataforma e um altar e as suas
paredes estão entalhadas por relevos policromados de caráter
monumental (SANTOS, 2018).

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Gênero, mulheres, raça e
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Foi justamente nesta Huaca que no final de 2004, que foi


encontrada a Dama de Cao, uma mulher que possuía
aproximadamente 25 anos e sua datação lhe atribuía uma
antiguidade de aproximadamente 1.700 anos de idade. Ela foi
encontrada em uma tumba na esquina superior do lado
noroeste da pirâmide, em um recinto que continha seu fardo
funerário, que pesava cerca de 100 quilos, estando
contextualizada com muitas oferendas, joias e insígnias de
chefia, como a narigueira41. Também foram encontrados outros
sepultamentos associados ao dela, o de um homem e uma
mulher. A múmia masculina se tratava de um sacerdote e a
múmia feminina parece ter sido um sacrifício aos deuses. Em
uma fossa próxima também foi encontrado um outro sacerdote,
aparentemente de menor nível hierárquico, que morreu
estrangulado e em outra fossa, no lado oeste, encontraram um
indivíduo sepultado de maneiras mais simples, sem oferendas
(JORDÁN, 2017). Temos também que destacar que o corpo da
Dama de Cao foi encontrado em um bom estado de conservação,
que permitia visualizar diversas tatuagens, como as em suas
mãos e antebraços, com representações de animais como de
serpentes, aranhas, peixes e figuras geométricas (JORDÁN,
2017; SANTOS, 2018).

41Objeto característico dos governantes das culturas pré-hispânicas, utilizado por


aumentar o som da voz.

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Gênero, mulheres, raça e
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Figura 1: Huaca Cao Viejo com intervenções patrimonialistas, toldo de proteção


U.V. e placa informacional. Retirado de https://www.elbrujo.pe.

Devemos fazer um adendo, que no processo da retirada


da Dama de Cao do seu mausoléu foi realizada uma cerimônia
por um sacerdote local, conhecido como Omballec, sendo
posteriormente seu corpo levado em procissão até o laboratório
pesquisa (JORDÁN, 2017). Um processo ritualístico bem
interessante que nos desvela alguns aspectos culturais que
tangenciam um processo dado como “respeitoso” por parte dos
habitantes locais e dos pesquisadores. No entanto, pode
também denotar um não reconhecimento da Dama de Cao como
um de seus mortos, um ancestre direto, por terem aceitado sua
exumação. Eles também podem ter sido obrigados ou coagidos
a aceitar este fato, mesmo que tenham ocorrido negociações
postas de maneira sutil, podendo existir tensões que
desconhecemos.
Este achado arqueológico produziu grande rebuliço no
meio acadêmico, na mídia e no contexto local, pois as pesquisas

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

apontavam que se tratava de uma mulher sacerdotisa e


provavelmente uma governante Mochica. Isto é, uma mulher
ocupando o cargo máximo no poder político e religioso, como
já mencionado anteriormente, e que nos mostra que em algum
momento na história das culturas sul americanas existiu um
“matriarcado”, que demarca uma estrutura de poder inversa da
que foi posta pela colonialidade e que nos serve de símbolo
para a reconstituições de compreensões de mundo. Como na
possibilidade de se pensar em giros decoloniais (BALLESTRIN,
2013) e em um processo de libertação epistêmica. Como base
nestes aspectos que Silva & Melo (2020), inferiram:

No entanto, mesmo com o achado da Dama de Cao, ainda


consideramos que as interpretações devidas ainda encontram-
se embaçadas e obscurecidas pelos aspectos machistas ainda
vigentes na Ciência contemporânea e que mesmo em um sítio
arqueológico como o da Huaca Cao Viejo, as suas concepções
expográficas e patrimoniais não conseguem representar
simbolicamente essas novas concepções paradigmáticas,
pautadas em uma base nos estudos feministas e nas concepções
de gênero e decolonialidade. Devemos assim destacar, que em
nossa percepção, a Dama de Cao deve ser entendida como um
símbolo libertador, capaz de nos mostrar um outro olhar ou
olhares para com o mundo. Logo, entender as concepções
museais e patrimoniais que foram instauradas ao seu redor, a
partir da sua descoberta, são demasiadamente importantes de
serem apontadas e analisadas (...) (SILVA & MELO, 2020, p.61)

Justamente a partir da descoberta da Dama de Cao que se


iniciou um processo mais intenso de patrimonialização e
musealização da Huaca Cao Viejo, pois este possibilitou a
construção do Museo Cao. Já que sua repercussão viabilizou o
aporte de diversos investimentos gestados pela Fundação

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

Wiese, que através de um contrato firmado entre esta instituição


e o Ministério da Cultura Peruano (antigo Instituto Nacional de
Cultura), realizou um convênio de 10 anos. Garantindo a
abertura e o fortalecimento do turismo relacionado ao Complexo
Arqueológico de El Brujo, incluindo a Huaca de Cao Viejo.
Realizando assim um planejamento de desenvolvimento de
estruturas para a recepção do turismo nacional e internacional,
abrigando e conservando os vestígios arqueológicos ali
encontrados (JORDÁN, 2017).
Neste processo também foi proposta a adequação do
complexo arqueológico de El Brujo ao projeto da Rota Moche42.
Composta de um plano de ações que articularam entidades
públicas e privadas, no âmbito patrimonial/museal, turístico e
econômico em um sentido de reafirmação das identidades
locais. Sabemos que a abertura do Complexo Arqueológico de El
Brujo ao turismo se deu no dia 12 de maio de 2006. Sendo este
considerado a efetivação de processo de patrimonialização e
musealização, que se iniciou na década de 1990 e que
possibilitou a estruturação do Museo Cao, aberto ao público em
abril de 2009. Um projeto da arquiteta Claudia Ucelli, que
tentou dialogar com a paisagem local, tentando não obstruir a
vista, paisagem, da Huaca Cao Viejo (Figura 2).

42Circuito turístico também denominado de a “nova Machu-Pichu” e que engloba as


cercanias das cidades de Trujillo e Chiclayo e seus sítios e achados arqueológicos, que
ganharam destaque a partir da década de 1990, principalmente os da cultura Mochica.

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Figura 2: Museo Cao e Huaca Cao Viejo ao fundo, projeto arquitetônico de


Claudia Ucelli. Retirado de https://es.wikipedia.org/wiki/Museo_Cao.

Com relação a concepção expográfica presente no Museo


Cao, ele aborda uma narrativa da história da ocupação Mochica
e seus contextos culturais. Sendo dividido em sete salas, sendo
a última onde se encontra o corpo mumificado da Dama de Cao
com seus respectivos tesouros fúnebres. Sendo este o ponto
ápice da exposição, em que o visitante entra em contato direto
com os restos mortais da Dama de Cao. O museu também conta
em sua estrutura com diversos laboratórios de pesquisa,
conservação, auditório e escritórios administrativos, auxiliando
nas pesquisas envolvidas na região (SILVA & MELO, 2020).
Devemos novamente destacar que a sua implementação
trouxe uma grande mudança no fluxo de turismo local, o que
propiciou o “desenvolvimento” cultural, turístico e econômico
do povoado de Magdalena de Cao em seu entorno, cerca de 4km
de distância. Claro que devemos lembrar que todos estes
processos de aumento de fluxos turísticos acabam por gerar

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impactos negativos, logo não queremos aqui fazer uma leitura


desenvolvimentista sem constar que existem críticas a este
processo. O que queremos apontar em especifico é que
existiram diversas ações para com este povoado, que após o
advento da Dama de Cao foi moldado para proporcionar uma
“melhor experiência turística”, sendo realizadas diversas
representações arqueológicas da cultura Mochica, além de
capacitações de guias locais, de qualificação hoteleira, comercial
e artesanal, como a valorização de uma bebida local chamada
de “añejo de Cao” ou “chicha de año” (JORDÁN, 2017).
Neste processo de remodelação ou adequação cultural
do povoado de Magdalena de Cao, devemos destacar alguns
pontos que se consolidaram em uma perspectiva de
monumentalização para com a valorização patrimonial e a
simbologias Mochicas e da Dama de Cao, sendo eles: a
implementação de uma Casa da Cultura, as composições
artísticas na Praça de Armas, com a escultura da Dama de Cao,
diversas placas indicativas/instrutivas e uma série de retratos
ampliados de anciãs (Boulevard das Novas Damas de Cao),
dispostos no muro de uma escola primária (Figuras 3 e 4).
Segundo Jordán (2017) a escolha destas mulheres retratadas no
muro se deu por critérios de idade, ascendência familiar e por
sua produção para com o bem-estar do desenvolvimento do
povo, sendo elas denominadas de as “damas de Cao”. Um
processo que nos mostra como foram construídas e como essas
mulheres estão postas neste processo de relações identitárias e
de identificações femininas, de gênero, interligadas
simbolicamente à imagem da Dama de Cao. Nos demonstrando
que de alguma forma este achado arqueológico é posto como
um símbolo do feminismo local. Apesar de acreditarmos que

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este processo se sucedeu de maneira imperialista, no sentido de


uma eleição construída principalmente do museu para com a
população local. Cabe destacar que a estátua da Dama de Cao na
cidade foi produzida a partir da reconstrução em 3D de sua
face no Museo Cao (ASENSIO, 2017).

Figura 3: Boulevard das Novas Damas de Cao na cidade de Magdalena de Cao.


Retirado de https://www.elbrujo.pe.

SENHORA DE CAO: MULHER, MUSEÁLIA E SÍMBOLO


DO FEMINISMO E DA DECOLONIALIDADE

Adentrando em relações mais específicas sobre a Dama


de Cao (Figura 5), pensando-a como uma museália ou até como
um objeto híbrido, que transita entre o universo humano e não
humano (LATOUR, 1994). Devemos ter em mente que seu corpo
se preservou no tempo e que ela se encontra exposta à
contemporaneidade no momento em que foi deslocada de seu
mausoléu para o Museo Cao. Ganhou assim toda a visualidade

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Gênero, mulheres, raça e
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fornecida pela musealização e pela mídia, adquirindo


significações simbólicas que se contextualizam juntamente com
a percepção de uma realidade pretérita em um novo tempo de
existência. Nesse sentido, seu corpo representa uma marca
temporal, uma evidência biológica de um ser humano, de um
corpo, de uma mulher, de um processo de existência, de uma
vida, de uma representação de uma cultura e de um passado
que se coloca na frente de toda uma dada contextualização, que
permite construções simbólicas intencionais ou inusitadas.
Pensar o corpo da Dama de Cao nos leva para uma
discussão ética em que os museus vêm tendo que lidar nas
últimas décadas, que é o questionamento das exibições de
corpos humanos em espaços museais em toda a sua
diversidade possível, que atravessa discussões como: da
curiosidade, da exoticidade, da cientificidade, do Direito e da
Ética. Com relação a esta percepção, devemos destacar que o
Código de Ética (Deontologia) do Internetional Council of
Museuns para com os museus, em seu Capítulo 4, mais
especificamente no item 4.3, se manifesta em relação ao que
considera objetos “sensíveis” ou que “podem ferir sensibilidades” e
infere:

Os restos humanos e os objetos considerados sagrados devem


ser expostos de acordo com normas profissionais, levando em
consideração, quando conhecidos, os interesses e as crenças dos
membros da comunidade, dos grupos religiosos ou étnicos de
origem. Devem ser apresentados com cuidado e respeito à
dignidade humana de todos os povos. (ICOM, 2010, p.21-22).

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Gênero, mulheres, raça e
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Figura 4: Escultura da Dama de Cao na Praça das Armas em Magdalena de Cao.


Retirado de https://www.fundacionwiese.org.

Como processo análogo, pensado os corpos humanos


em museus, temos as relações das questões que foram
apresentadas por Montechiare (2020), quando estudou as
questões sobre o corpo do gigante Agustín Luengo, exposto no
Museu Nacional de Arqueologia em Madrid (Espanha). Esta
autora discutiu as questões sobre os restos mortais de Agustín,
mencionando sobre a sua condição híbrida:

(...) entre ser ou não considerado ‘humano’. Como ‘humano’,


Agustín é visto e reconhecido como detentor de memória,
biografia e direitos; como ‘peça de museu’, demanda
tratamento diverso, como manutenção e conservação material
de suas partes. Em ambos os casos, a noção de propriedade está
presente, pois permanece classificado como acervo (...)
(MONTECHIARE, 2020, p.6).

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Gênero, mulheres, raça e
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Uma concepção que nos mostra que um objeto museal


nessas condições é capaz ganhar diversas possibilidades
interpretativas e simbólicas que os envolvem, inclusive
podendo se tornar ícones que sustentam histórias em sentido de
lendas e mitos. Lembrando que muitas vezes até ganham
nominações, como o caso da Luzia43, encontrada no Brasil, ou
da Lucy44, encontrada na Etiópia, dentre muitos outros achados
arqueológicos (AGUILAR, 2000).
Devemos mencionar que o corpo de Agustin além de
estar musealizado deu origem a outras museálias, como a
escultura do seu corpo e toda o contexto expográfico que o
cercava. Fenômeno parecido pode ser descrito para com a Dama
de Cao, pois podemos entender que um processo similar
ocorreu, no entanto, muito mais complexo, pois foi a partir do
seu corpo mumificado que se ergueu um complexo museal em
El Brujo, sendo ela, sem sombra de dúvidas, o ícone máximo
deste contexto.

43 Esqueleto humano encontrado em lagoa Santa, Minas Gerais com cerca de 10mil anos
de idade.
44 Esqueleto de um ancestral humano, descrito como sendo de um Australopithecus

afarensis.

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

Figura 5: Reconstituição da Dama de Cao no Museo Cao. Retirado de


https://es.wikipedia.org/wiki/Dama_de_Cao.

Podemos entender que as múmias nesses diversos


contextos de musealização se fazem pertinentes para esta
discussão. No entanto, devemos entender que alguns destes
restos mortais musealizados ganham status simbólicos que
extrapolam diversas questões sociais. Por exemplo, o caso
icônico da múmia de Tutankhamon, um faraó que teve pouca
significância dentro do contexto da civilização egípcia, mas que
ganhou notoriedade museal por sua tumba ter sido descoberta
sem violação, isto é, não foi saqueada e destruída por ladrões.
Este faraó menino assim se tornou uma espécie de “garoto
propaganda” da cultura egípcia (EINAUDI, 2009). Algo que dê
certo ponto acabou acontecendo com a Dama de Cao.
No entanto, ainda devemos destacar que a Dama de Cao
se difere de diversas outras múmias encontradas, por possuir

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

diversas representações simbólicas, que a tornam singular. Não


só por ter sido uma mulher de prestígio ou destaque social, mas
principalmente por ser um corpo feminino que exerceu uma
função de poder no período pré-colombiano e que hoje pode ser
assimilado como uma base estrutural para discursos de
empoderamento junto das concepções decoloniais e feministas.
Devemos lembrar que seu lugar social não era uma
dissimulação de seu sexo, com por exemplo sabemos que
aconteceu com Hatshepsut, a mulher faraó do Egito antigo
(SOUSA, 2010).
Devemos também lembrar das múmias dos “Niños de
Llullaillaco” encontrados na região de Salta na Argentina.
Segundo Cosmai et al. (2013) estas múmias foram encontradas
na expedição de Llullaillaco em 1999, que no dia 17 de março
encontrou o corpo de “El Niño” e “La Doncella” e dois dias
depois “La Niña del Rayo”. Junto a esses corpos foram
encontradas réplicas pequenas de objetos do uso cotidiano,
cocares de plumas e arranjos têxteis, dentre outros objetos.
Sendo eles considerados mensageiros dos deuses e os seres
humanos que estiveram mais próximos do Deus Sol.
Sabemos que cinco anos depois deste achado se iniciou a
exibição ao público destas múmias no Museo de Alta Montaña na
cidade de Salta, criado especificamente para este achado
arqueológico, como o caso do Museo Cao. No entanto neste
processo existiram conflitos mais explícitos, pois a retirada dos
niños de Llullaillaco foi considerada uma profanação de um
lugar sagrado e destas múmias, já que para os povos
tradicionais da região elas não se encontravam mortas e sim em
um estado de hibernação. Logo este processo para Cosmai et al.
(2013) se caracterizou por um musealização que se estabeleceu

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

primordialmente por seu víeis econômico produtivista, atrelado


a possibilidade de melhoramento turístico da região, não tendo
a participação da população dos povos originários. Processo
que parece ter ocorrido de maneira diferente com a Dama de
Cao, já que sabemos que na sua retirada do sepultamento teve a
participação da população local, que realizou ritos religiosos,
colocando-a em um status de santidade, inclusive com direito a
uma procissão.
Com base em Simone de Beauvoir (1970), que
pronunciou que “ninguém nasce mulher, mas se torna uma”,
trazemos a Dama de Cao de encontro com essa diretriz, que
também nos ajuda a pensar seus contextos sociais, culturais,
temporais e principalmente museais. Como entendemos que ela
se tornou algo além do “ser mulher”, função que exerceu em
seu contexto de vida, mas sabemos que ela também se tornou
uma museália. Fato que abriu novas formas para esta
compreensão do “ser mulher”, posta na contemporaneidade
pelas instâncias simbólicas que a cercam, principalmente as
vinculadas as identidades femininas locais. Desta forma, seu
corpo é um testemunho de um tempo onde existiam outras
relações epistêmicas de compreensão de mundo e que nos
mostra que existiram outros lugares para mulheres, foras de
instâncias altamente machistas que as impedem atualmente de
chegarem em lugares de poder.
Consequentemente e simbolicamente seu corpo se põe
nesse sentido em uma interposição entre “ser mulher” no
período Mochica e ser um elemento que contribui diretamente
para as representações do feminino e de suas militâncias na
contemporaneidade. Fundindo questões de identidades entre
passado e presente, onde seu corpo e sua representação

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364
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

simbólica podem ser um instrumento de transformações


sociais. Principalmente se apropriado pelo feminismo e
movimentos sociais das mulheres indígenas das cercanias de
Magdalena de Cao, que estão de alguma forma representadas nos
painéis fotográficos espalhados pela cidade. Constituindo uma
dinâmica que reconhecemos como uma possibilidade de giro
decolonial, que se contrapõe a uma colonialidade do poder, onde
os valores eurocêntricos são reafirmados.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir do exposto, nos cabe arguir sobre a questão


posta no início deste trabalho, que é a possibilidade da Dama de
Cao poder nos auxiliar em um recontextualização epistêmica,
principalmente da Museologia e seus espaços? Questão que
lançamos a partir da possibilidade dela ser entendida como um
instrumento simbólico de poder para com o feminismo e,
consequentemente, o decolonialismo. Sendo a Dama de Cao uma
museália hibrida, que transita no espaço dos humanos e não
humanos e que se configurou primordialmente neste espaço
como um elemento fetichista da produção capitalista, em um
sentido de um projeto constitutivo e estruturante de um
complexo museal/turístico, devemos nos provocar e indagar
como construir diversos forma para que ela rompa esse sistema
colonial. Destacando que as suas relações temporais e espaciais
a colocam como uma representação de um poder feminino que
emerge do passado e que permite assimilações simbólicas
contemporâneas de representatividade do que foi o seu poder e
seu lugar como mulher em sua sociedade e como ela pode
servir como um outro paradigma para a contemporaneidade.

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365
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

Simplesmente a temos como uma representatividade


singular presente nos espaços museais e que nos faz pensar que
os museus podem se metamorfosear como lugares ou agências
do decolonialismo. Seja de forma intencional ou não, sendo
gerada a partir dos contextos culturais que a cercam. No
entanto, apesar de reconhecemos todas estas questões, não
observamos na prática a utilização da Dama de Cao nesse
sentido de uma reestruturação epistêmica e museológica45. Por
isso acreditamos na necessidade de estudos mais aprofundados
para com a comunidade do entorno do Complexo Arqueológico de
El Brujo, principalmente o povoado de Magdalena de Cao. No
sentido de compreender como esta população está lidando com
a representatividade da Dama de Cao, em distintos contextos,
como nos movimentos políticos de mulheres, nos discursos
feministas e principalmente nos processos de ensino, locais
onde normalmente as professoras são capazes de exercerem
seus protagonismos46.
Devemos mencionar que o Museo Cao, com toda sua
infraestrutura, no entanto, optou por uma estruturação mais
tradicionalista dentro da Museologia, o que normalmente é
esperado e acaba por reproduzir um contexto científico de
dominação e conquista, apoiado na concepção do cogito
cartesiano (DUSSEL, 2008; GROSFOGUEL, 2016). Apesar disso,
acreditamos que a Dama de Cao, por meio de sua representação
simbólica e sua corporeidade pode se capaz de possibilitar um

45 Usamos o termo museológico de forma intencional, no sentido de acreditarmos em


possibilidades de transformações não só dentro dos contextos museais (de museus),
mas da Museologia como área acadêmica.
46 Devemos destacar que o desenvolvimento deste trabalho caminha justamente para

uma melhor compreensão de como a Dama de Cao foi assimilada e é apresentada pelas
professoras do povoado de Magdalena de Cao.

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

processo diferenciado e de giro decolonial dentro e fora da


própria instituição. Um processo que acreditamos que já está se
construindo junto aos movimentos populares locais e que em
determinado momento vai transparecer socialmente com mais
intensidade, principalmente a partir de demandas e
reinvindicações da população local.
Por fim, gostaríamos de lembrar que além de tudo a
Dama de Cao é um corpo feminino que foi construído
individualmente e culturalmente, por ela em seu contexto
social, mas que hoje se encontra exposto como um objeto de
museu. Mesmo estando exibida com “gran respeto al ancestro
feminino”, mesmo que seu corpo esteja “cubierto con un tul fino”
e que “se muestra al público a través de un espejo”, como dito por
Jordán (2017, p.110), a sua identidade ainda está posta como
sendo a de um outro. Como um elemento exótico e um objeto
museal igual a grande maioria, possuindo inclusive uma
relação aparentemente diferenciada da que descrevemos em
Salta. Neste aspecto, acreditamos que existiram negociações de
dimensão apaziguadora, onde a Senhora de Cao se tornou uma
“santa” em seu andor durante uma procissão, mas ensejamos
que ela possa ser posta como um marco que permita ações
decoloniais que a faça ser reconhecida de fato como uma
ancestralidade libertadora47, principalmente no âmbito regional.

47O termo libertadora é utilizado pelo sentido posto por Paulo Freire (2014) em sua
Pedagogia do Oprimido.

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

MULHERES INDÍGENAS NA VIDA E NA HISTÓRIA:


OLHARES DA PSICOLOGIA SOCIAL SOBRE A
RESISTÊNCIA NO CHÃO DE CRATEÚS-CE

Larissa Maria Matos Oliveira


Kevin Samuel Alves Batista

INTRODUÇÃO

Como sugere seu próprio sintagma, a Psicologia Social


se dedica a estudar as relações entre indivíduo e sociedade,
prioritariamente no que diz respeito à influência social no
indivíduo, em seus mais variados aspectos (LANE, 1994). No
entanto, após diversas crises, que demandaram discussões e
reflexões, viu-se que esta ciência não deve se restringir somente
a análises passivas e distantes da realidade, adotando
metodologias cientificistas e engessadas. Ao invés disso, essa
ciência traz consigo o dever de abordar temas relevantes ao
contexto socioespacial do espaço-tempo em que está inserida
(ÍÑIGUEZ-RUEDA, 2003). Consoante a isso, a Psicologia Social
– sobretudo de vertentes sociológicas e críticas – se propõe a
ultrapassar as barreiras da academia, bem como as da própria
Psicologia, incluindo-se nos mais diversos grupos e instituições
da sociedade e trabalhando juntamente com as demais ciências
sociais e conhecimentos populares.
Como resultado de tais processos, vê-se um número
admirável de trabalhos realizados por psicólogos sociais acerca
de temas contemporâneos, como, por exemplo, feminismos e
gênero. Ultrapassando os debates reduzidos a questões de

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373
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

gênero, muitas autoras têm trazido à tona estudos


interseccionais feministas, que apontam as raças/etnias como
atravessamentos decisivos e indissociáveis da vida das
mulheres, em suas resistências diárias contra as negações de
direitos. Como vítimas e lutadoras históricas contra a opressão
de seu gênero e de suas identidades, estão as mulheres
indígenas, no Brasil e no continente americano, como um todo.
Neste texto, abordaremos os desafios das mulheres
indígenas e sua invisibilidade nas lutas feministas. Com base
em trabalhos realizados por autoras e autores do Brasil e de
outros países da América, pretendemos trazer reflexões sobre o
papel da Psicologia Social nessas lutas, de modo a atentar às
singularidades e contextos vividos pelas mulheres indígenas,
na atualidade. Ademais, em uma perspectiva regionalista,
pretendemos aprofundar e focar o olhar sobre a realidade e a
luta das mulheres indígenas dos Sertões de Crateús, no interior
do estado do Ceará, fazendo um resgate histórico e uma análise
das lutas atuais dessas mulheres que estão na linha de frente do
Movimento Indígena no chão destes sertões.

METODOLOGIA

Para esta escrita, nos embasamos na metodologia de


revisão bibliográfica, metodologia essa que, segundo Galvão
(2010), possibilita a potencialização de pesquisas com os
conhecimentos coletivos, além de embasar estudos e possibilitar
sujeitos a usufruir de condições cognitivas mais avançadas em
termos de embasamento científico. A utilização da revisão de
literatura tem a finalidade de evitar a duplicação de pesquisas,
gerar questionamentos acerca de pesquisas já realizadas,

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

observar os processos de realização de estudos, propor temas,


hipóteses, problemas que cubram ou exponham lacunas
existentes na literatura, trazendo enorme contribuição para a
ciência e para a sociedade.
Para a obtenção dos estudos embasadores deste texto,
realizamos a pesquisa em duas etapas. Primeiramente, para
uma análise introdutória, pesquisamos pelas palavras
Mulheres; Indígenas; Psicologia Social, na plataforma Google
Acadêmico, encontrando pesquisas sobre experiências de
mulheres indígenas de alguns estados brasileiros e de países da
América Latina. Em um segundo momentos, pesquisei pelas
palavras Mulheres; Indígenas; Ceará, acrescentando,
posteriormente, a palavra Crateús, na mesma plataforma,
encontrando os textos que fundamentaram a análise do
contexto crateuense.

RESULTADOS E DISCUSSÕES

MULHERES INDÍGENAS NAS AMÉRICAS

A luta das mulheres indígenas enfrenta muitos desafios


de representatividade dentro dos movimentos feministas. Para
compreendermos isso, no entanto, é necessária uma
compreensão básica do Feminismo Ocidental, em sua trajetória
ao longo do tempo na Psicologia Social. Desse modo,
poderemos, posteriormente, entender as diferenças
epistemológicas e históricas entre as lutas de mulheres
indígenas e mulheres ocidentais.
Desde a gênese da ciência positivista, a psicologia, assim
como demais áreas de pesquisa, utilizou-se de argumentos

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

“científicos” para a classificação dos gêneros, promovendo uma


imagem feminina quase sempre inferior à masculina. Valendo-
se de supostas qualidades femininas – sensibilidade
exacerbada, docilidade, vaidade, timidez – para justificar a
ausência de protagonismo feminino no desenvolvimento da
ciência, a estrutura patriarcal da academia passou a enfrentar
forte resistência dos movimentos feministas da segunda metade
do século XX (GRUBITS; DARRAULT-HARRIS; PEDROSO,
2005). A partir disso, apoiando-se no questionamento da
indubitabilidade dos métodos científicos já consolidados na
Psicologia, psicólogos e psicólogas sociais passaram a estudar
gênero a partir da visão do contexto sócio histórico das
sociedades, considerando-o uma construção social, não
dependendo, portanto, exclusivamente de determinismos
biológicos (Idem).
No entanto, apesar do admirável ativismo feminista e de
suas numerosas conquistas na Ciência e na sociedade, no que
tange a questões indígenas, muito são as particularidades, que
não vêm sendo consideradas ou estudadas satisfatoriamente,
desde as bases epistemológicas, filosóficas e culturais até às
necessidades práticas. Dentre as diferenças mais notórias, está a
própria visão de ser humano, entre as duas culturas. Ao passo
que o Feminismo é estruturado com base nas ideias iluministas
de individualismo e liberdade, as culturas indígenas se baseiam
nos conceitos de comunidade e complementação de papéis. Ou
seja, as culturas indígenas veem o ser humano como parte de
um todo e não como um ser individual e completo, tanto no
que se refere à ideia de comunhão entre o ser humano e a
natureza, quanto de comunhão e completude entre homens e
mulheres (BLACKWELL et al, 2009).

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

Outra importante diferença que pude perceber ao fazer


a leitura do texto “Mulheres Indígenas: poder e tradição”
(GRUBITS; DARRAULT-HARRIS; PEDROSO, 2005), que é
resultado de uma pesquisa feita em comunidades indígenas do
Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, são as diferentes visões
acerca do conservadorismo, entre feministas ocidentais e
mulheres indígenas. Ao passo que as feministas da sociedade
liberal lutam pelo rompimento com as tradições ocidentais, por
essas serem machistas e opressoras, as mulheres indígenas
lutam pela conservação de suas tradições, pois essas lhes
garantem um espaço de importância igualmente essencial ao
dos homens, na comunidade. Faz-se, assim, necessária a
reflexão sobre um feminismo indígena adaptado para as
necessidades das mulheres índias, conforme diz o artigo
“Cruces de fronteras, identidades indígenas, género y justicia en las
Américas”, que foi formado a partir de pesquisas em projetos
desenvolvidos com povos indígenas dos Estados Unidos,
México e Guatemala. Segundo Blackwell et al(2009), as
organizações neoliberais responsáveis por projetos e aliadas aos
Estados-nação na América trazem consigo, culturalmente, as
noções de liberdade, propriedade e individualismo
provenientes de um contexto específico: o iluminismo europeu.
Deste modo, até mesmo instituições feministas não
governamentais e projetos sociais para indígenas organizados
por organizações internacionais de ajuda impõe, em sua
intenção de levar os conceitos feministas a esses povos,
concepções de gênero baseadas em noções ocidentais
universalizantes. Neste projeto aqui citado, realizado em uma
metodologia de intervenção participativa, as discussões
giraram em torno de uma outra lógica de relação de gênero,

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

esta característica das culturas indígenas. Mulheres indígenas


organizadas nesses diversos países ressignificam essas ideias
ocidentais, propondo ideias de uma vida digna que vá para
além do direito de propriedade. Estas definições incluem a
prática de relações justas tanto entre homens e mulheres,
quanto entre seres humanos e natureza (BLACKWELL et al,
2009).
Apesar disso, o que se pode perceber é um insistente
descaso, por parte dos pesquisadores e pesquisadoras das
ciências sociais acerca desse tema, se comparado a todo o
estudo acerca de outros temas, como Feminismo, Gênero e
Feminismo Negro. Há um número consideravelmente menor
de pesquisas e trabalhos realizados, sobretudo no Brasil, acerca
das várias complexidades, necessidades e dificuldades
enfrentadas pelas mulheres indígenas. E, ao contrário do que se
possa pensar, isso não se deve a inexistência de problemáticas
relacionadas a gênero em comunidades indígenas.
Uma pesquisa realizada com as comunidades de Bororo
(MT), Guarani/Kaiowá e Kadiwéu (MS) mostra crescentes
problemas relacionados ao choque de culturas que as mulheres
vêm enfrentando. A dissolução de suas culturas tradicionais,
resultante da necessidade de adaptação à cultura geral,
decorrente da desapropriação de terras, de perseguições ou de
influências externas, vem fazendo com que as mulheres percam
espaço protagonista dentro das aldeias ou sejam as únicas a
esforçarem-se em manter a cultura. Ademais, a apropriação de
ideias machistas e patriarcais por parte dos homens da aldeia,
em decorrência da busca de trabalho nas cidades e/ou fazendas,
vem causando sérios problemas à tradicional participação

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

equalitária entre gêneros nas aldeias (GRUBITS, DARRAULT-


HARRIS, PEDROSO, 2005).
Além disso, os abusos sofridos por mulheres na
sociedade brasileira são consideravelmente intensificados
quando se trata de mulheres indígenas, desde a colonização,
quando essas mulheres eram sequestradas e estupradas por
colonizadores. Casos de estupro, alcoolismo e prostituição são
frequentes em aldeias próximas a grandes obras, bem como
assassinatos, torturas e perseguições aos membros dos
movimentos indígenas, atingindo muitas mulheres. Conforme
muito bem discorre Mayara Mello, o modelo capitalista de
desenvolvimento econômico brasileiro atinge, sobretudo as
mulheres indígenas. A exploração irresponsável e violenta dos
biomas brasileiros saqueia terras indígenas e gera prejuízos
dificuldades às mulheres, que, geralmente, são as responsáveis
pela alimentação. Para além disso, a relação sagrada com a terra
e a soberania produtiva e alimentar roubada dos povos
indígenas pela destruição da natureza leva muitos homens a
submeterem-se aos trabalhos nas cidades ou fazendas,
sobrecarregando as mulheres nas responsabilidades na aldeia e
na criação dos filhos, bem como roubando a possibilidade
destas de produzir sua subsistência e renda dos recursos
naturais roubados de suas terras. Ademais, o inchaço das
cidades e a implantação de grandes projetos que atingem
comunidades indígenas impacta gravemente os costumes
destas comunidades, bem como a violência existente nas
grandes cidades recai, principalmente, sobre as mulheres, que
passam a sofrer com a exploração sexual, a violência decorrente
do consumo abusivo de bebidas alcoólicas, dentre outros
problemas(MELLO, 2018).

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Gênero, mulheres, raça e
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Acerca disso, os movimentos de mulheres indígenas já


cobram medidas governamentais, sendo, contudo, ignorados,
na maioria das vezes, conforme declara a Organização de
Mulheres indígenas de Roraima (MELLO, 2018):

Nós, mulheres indígenas, temos sido as principais vítimas das


bebidas alcóolicas; somos agredidas, abusadas sexualmente, e
vivemos sob ameaça das consequências da bebida alcoólica.
Nossas comunidades já escreveram inúmeras cartas pedindo
providências para a retirada dos bares que comercializam
bebidas no interior das aldeias indígenas, mas até o momento
não temos resultados em nossos pedidos. É a nossa vida que
está em questão, e não podemos calar, mas cobrar
(MULHERES, 2006 apud MELLO, 2018, online).

Todavia, apesar de tais reivindicações, muito poucas são


as políticas públicas que atendem a esse público, como afirmam
Valéria Paye Pereira Kaxuyana e Suzy Evelyn de Souza e Silva:
“O Estado brasileiro tem demonstrado ações ainda muito
incipientes voltadas para a mulher indígena. São ações
pulverizadas entre os ministérios, e muitas vezes, embora
tenham como um de seus alvos as mulheres indígenas, não há
nenhuma rubrica ou programa oficial específicos para esse
público (KAXUYANA, SILVA, 2008, p.39).”
No entanto, há esperanças. Apesar de as discussões
sobre gênero ainda não serem o foco principal das reuniões de
mulheres indígenas nas aldeias, a participação política de
mulheres tem tido avanços. Há alguns anos, os movimentos de
mulheres das bases indígenas têm tido alguns sucessos em sua
busca por representatividade. Além da participação política em
reuniões nas aldeias, as mulheres indígenas têm conquistado
espaço em eventos e reuniões de níveis estaduais, municipais e

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federal (KAXUYANA, SILVA, 2008). Podemos ver, na citação a


seguir, algumas dessas conquistas:

Em janeiro de 2007, a Fundação Nacional do Índio (FUNAI),


órgão indigenista oficial, criou a Coordenação da Mulher
Indígena, subordinada à presidência do órgão e chefiada pela
uapixana Leia Bezerra do Vale. [...] Anteriormente à criação da
Coordenação da Mulher Indígena, a FUNAI, por meio de sua
Coordenação Geral de Desenvolvimento Comunitário (CGDC),
também coordenada por uma indígena, a caingangue Rosane, já
desenvolvia, desde 2006, uma atividade com previsão no Plano
Plurianual (PPA) denominada Ação de Promoção das
Atividades Tradicionais das Mulheres Indígenas. [...] Por
ocasião da II Conferência Nacional de Mulheres promovida
pela Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, em
agosto de 2007 — na qual, das 2.500 mulheres representantes
dos mais diversos segmentos sociais do País, apenas 31 eram
indígenas —, a Coordenação da Mulher Indígena da FUNAI
consolidou, em conjunto com o Departamento de Mulheres,
Infância e Juventude Indígena da Coordenação das
Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (DMIJI/Coiab),
todas as propostas até então encaminhadas pelas mulheres
indígenas do País ao longo dos anos e com base em eventos
nacionais. (KAXUYANA, SILVA, 2008, p.39-40).

MULHERES INDÍGENAS NOS SERTÕES DE CRATEÚS

Antes de adentrar especificamente o contexto


crateuense, é preciso trazer breves informações acerca das lutas
dos movimentos indígenas no Ceará. A realidade de violação
de direito é algo presente no dia a dia dos povos indígenas
cearenses, sobretudo nos últimos anos de governos autoritários
e inimigos das causas populares. Tendo apenas 4 terras

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381
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

demarcadas, a luta pela retomada da terra é uma realidade


presente para a maior parte das 14 etnias indígenas do estado
do Ceará. Ademais, as lutas por políticas públicas nas aldeias e
o enfrentamento do preconceito na sociedade e em espaços
públicos são parte dos gargalos enfrentados por esses povos,
diariamente. Apesar disso, esses povos estão organizados,
construindo suas próprias formas de resistência, contando suas
histórias e unindo-se em resistência (PITAGUARY, 2018).
No que tange às mulheres, as violações de direitos se
agravam, sobretudo referindo-se à violência doméstica e a
invisibilização dessas violências pelo estado, uma vez que a Lei
Maria da Penha não se adequa a realidade destas mulheres,
deixando, até mesmo, de socorrê-las por morarem em território
federal (SAID; KAGAN, 2018). Na perspectiva da luta, a
resistência e a força das mulheres se destacam, a exemplo dos
Jenipapo-Kanindé, que elegeram Cacique Pequena, fazendo
dela a primeira mulher cacique do Brasil, elegendo,
posteriormente, sua filha, Cacique Irê, como sua sucessora. Para
além desses exemplos, estão diversas mulheres indígenas pajés,
professoras, assistentes sociais, curandeiras, dentre outras
profissões, que resistem e constroem as lutas das etnias
indígenas no Ceará. Coletivos e associações de mulheres já
surgem e fortalecem-se em toda extensão estadual, além da
Associação de Mulheres Indígenas do Ceará - AMICE, a nível
estadual (SILVA, 2018).
Analisando o contexto específico crateuense, pode-se-ia
dizer que o Movimento Indígena de Crateús hoje existente foi
iniciado, predominantemente, por líderes mulheres,
permanecendo, até à atualidade, com uma participação
expressiva de lideranças femininas. Antes de tudo, é preciso

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382
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

trazer em questão o contexto indígena de Crateús, elucidando o


fato de que a emergência étnica desses grupos ocorre na cidade,
sendo o movimento, até hoje, constituído, em sua maioria, por
aldeias urbanas. A emergência étnica dos povos indígenas de
Crateús acontece nas décadas de 1980 e 1990, com lutas por
moradia nas periferias cidade. Segundo os cadastros do Distrito
Sanitário Especial Indígena do Ceará (DSEI/CE), a população de
Crateús conta com 2272 indígenas, sendo estes divididos entre
as cinco etnias, Potyguara (47,2%), Kalabaça (7,4%), Tupinambá
(0,7%), Kariri (5,9%) e Tabajara (37,2%), entre os quais 54,3% são
mulheres e 45,7% são homens e 39,2% cadastrados como não-
aldeados. Há, ainda, 1,6% de não-índios, sendo, esses, 56%
mulheres e 43,2% homens (LIMA, 2018).
Segundo os dados do DSEI-CE, a população indígena de
Crateús corresponde a 12,6% dos indígenas do Ceará, sendo
essa população localizada, em sua vasta maioria, na zona
urbana. Abaixo, está uma tabela que mostra a presença das
etnias de Crateús nas aldeias urbanas. Para além destas, há as
aldeias Mambira (Potyguara e Tabajara) e Nazário (Tabajara e
Potyguara).

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

FONTE: Movimento Indígena Do Ceará, 2017.

A análise histórico-geográfica do território crateuense o


aponta como uma terra originalmente indígena, ocupada,
posteriormente, por fazendeiros e destituída de sua moradores
originais, que foram mortos ou dispersos. Esse violento
processo de constituição da referida cidade levou a séculos de
silenciamento quanto a ancestralidade indígena do território e a

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384
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

existência de índios na população. A localização do município


como passagem para muitos lugares do Brasil fez com que sua
sede fosse alvo de imigração constante de pessoas em busca de
trabalho, incluindo, entre estas, famílias indígenas que haviam
perdido suas terras na região ou em outras regiões do Ceará, de
modo que Crateús foi novamente povoada por povos
indígenas. No entanto, a histórica violência desencorajou esses
grupos a assumirem-se enquanto indígenas, uma vez longe de
suas terras e sem organização entre si. Outro ponto importante
a ser ressaltado é a localização das moradias dessas famílias
indígenas, levadas, pela pobreza e ausência de políticas
públicas, a morar em periferias, em casas alugadas.
A articulação desses grupos em comunidades começa a
partir da atuação da Igreja Católica, por meio das pastorais
sociais, Campanhas da Fraternidade e Irmandade do Servo
Sofredor - grupo católico fundado pelo padre suíço Frédy
Kunz, conhecido popularmente como Padre Alfredinho, e que
realiza trabalhos filantrópicos, missionários e de organização
comunitária - nas áreas mais socialmente vulneráveis da cidade.
Com o tema da Campanha da Fraternidade voltado para a
negritude, Helena Gomes (ainda não reconhecendo-se como
potyguara, na época), juntamente com outros agentes pastorais,
passaram a trabalhar a identidade negra com as pessoas das
periferias da cidade. Com o prosseguir do trabalho de base, viu-
se que a necessidade mais básica daquele povo era o direito à
moradia, partindo a organizar uma luta por terrenos para esse
povo, através de uma ocupação na qual elena se engajou como
liderança por dois anos. Essa luta organizada conseguiu
derrubar 4 processos da prefeitura que pediam a saída do local,

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385
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

conquistando, por fim, o terreno para a construção de casas


para 36 famílias (PINHEIRO, 2012).
Concomitante a isso, iniciava-se o trabalho da Pastoral
Raízes Indígenas, idealizada por Dom Antônio Batista Fragoso,
primeiro bispo da Diocese de Crateús, e coordenada pela freira
Margarete Maufliet. Para a implantação dessa pastoral, Irmã
Margarete contou com o apoio de Helena desde o começo,
quando ainda não havia pesquisado a raiz indígena de sua
ancestralidade, trabalhando apenas enquanto agente pastoral.
A supracitada pastoral tinha o trabalho inicial de identificar
fenotipicamente aqueles que pudessem vir a identificar-se como
indígenas, usando do único recurso possível à época para a
identificação: os traços físicos. O público participante desta
pastoral veio a ser o mesmo do até então movimento negro, a
maioria descobrindo, através da metodologia de contação de
histórias dos antepassados utilizada nas reuniões, ser
descendentes diretos de indígenas, e não de negros, ou pelo
menos não somente de negros, uma vez que esses dois grupos
étnicos se misturam nesta região. Helena acredita ter existido
uma força que os levava a não desistir de suas lutas conjuntas
em suas ocupações, a qual ela atribui ser a força indígena, que
já os reunia, sem que soubessem (PALITOT, 2008).
Esses mesmos grupos, através do trabalho da Pastoral
Raízes Indígenas - que consistia no trabalho de reconhecimento
nesses sujeitos de sua identidade indígena - passaram a buscar
suas origens, reconhecendo-se enquanto indígenas de Crateús.
A própria Helena passou a conhecer suas origens a partir do
trabalho da pastoral. Os relatos sobre essa história contam, com
exceção das famílias de Tereza Kariri, Severino Tupinambá e os
conhecidos como Jandaíra/Kalabaça (esses já identificados em

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386
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

seus etnônimos), os indígenas não sabiam seu etnônimo,


levando o grupo a se identificar apenas como indígenas de
Crateús. Com o prosseguir das pesquisas sobre sua origem,
surgiu a necessidade de descobrirem seus grupos étnicos,
levando-os a procurar um pesquisador que estudava a origem
geográfica das etnias indígenas no Ceará. Baseados nos seus
locais de origem, os indígenas se identificaram em cinco
grupos: Kariri, Potyguara, Tupinambá, Tabajara e Kalabaça
(LIMA, 2010).
A partir desse processo, Helena se reconhece como
Potyguara, passando a ser uma importante liderança indígena a
nível regional e estadual. A mulher conta das lutas que ainda
hoje são travadas, as quais giram em torno de conseguir mais
terra para a construção de casas para as próximas gerações e
para a auto-sustentação da aldeia com a agricultura, caça e
pesca, possibilitando a saída das periferias da cidade, que os
coloca em situação de risco com a violência e os leva a contrair
vícios, lhe tirando a possibilidade de viver com dignidade
(PALITOT, 2008).
Tereza Kariri, Pajé do povo Kariri de Crateús, voltou a
assumir sua identidade indígena a partir do contato com uma
agente da Missão Tremembé, em uma viagem que fez a
Canindé-CE. Ela, no entanto, foi a primeira a assumir-se
indígena em Crateús, sendo também a primeira a tomar parte
da luta. O povo Kariri da linhagem de Tereza não participou da
Pastoral Raízes Indígenas, mas suas lutas e os movimentos
dentro das aldeias também tiveram apoio das pastorais (Idem).
Tendo nascido e vivido boa parte da sua vida na região do
Cariri cearense, Tereza foi levada a deixar seu local de
nascimento na zona rural, para morar na cidade de Crato com

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387
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

uma tia. Com isso, foi distanciada de sua identidade indígena


Kariri, tendo apenas como memória destas as histórias de seus
familiares, sobretudo de sua mãe (LIMA, 2010).
Tereza não pôde conviver muito tempo com sua mãe,
que morreu muito jovem, mas sempre ouviu histórias de suas
habilidades mágicas de cura e de adestramento de animais
bravios, como conta de um episódio em que a mulher teria
“amansado” instantaneamente um boi que ninguém jamais
havia conseguido, apenas estendendo sua mão em direção ao
bicho. Tais memórias a acompanharam do Cariri a Crateús,
onde passou a viver em 1988, casando-se com Antônio Tabajara
(como depois passou a reconhecer-se) e construindo sua prole
em solo crateuense. Também participante dos movimentos
religiosos da Igreja Católica da época, Tereza encontrou-se com
uma agente da Associação Missão Tremembé, em uma romaria
a Canindé, a qual a questionou se ela seria indígena. Tereza lhe
respondeu positivamente, passando, a partir daí, a buscar o
conhecimento das raízes de seu povo e a tomar parte, como
liderança, na luta dos indígenas de Crateús, como na época
eram conhecidos (Idem).
O povo Kariri, liderado por Tereza e, posteriormente,
por suas filhas Cristina e Tetê Cariri, assim como pela família
Venâncio, também do povo Kariri, está presente em três
povoamentos indígenas de Crateús, tendo, porém, maior
concentração na aldeia urbana Maratoan, onde está localizada a
Escola Tabajara-Kariri, administrada pelas filhas de Tereza,
Cristina e Tetê Kariri (PALITOT, 2008).
A etnia Tabajara de Crateús também traz consigo a
história e a luta da liderança feminina, desde o início. Movida
pelo convite de Helena Potyguara, D. Tereza Tabajara foi a líder

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388
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

responsável por mobilizar o povo Tabajara disperso pelas


periferias de Crateús para a ocupação do terreno da atual
Aldeia Vila Vitória, hoje ocupada por Tabajaras e Kalabaças. A
partir do balcão em que morava no bairro Fátima I, na periferia
da cidade, D. Tereza e sua irmã Mazé, assumiram-se dentro de
sua identidade Tabajara contemporaneamente à luta por
moradia em Crateús, luta esta que foi também assumida pelo
grupo liderado pelas duas irmãs (Idem).
Assim como Helena, os Tabajara, sob a liderança de
Mazé e Tereza, também somaram nas fileiras da luta assumida
pela Pastoral Raízes Indígenas, tendo, por fim, a conquista do
território onde, em mutirão, construíram suas casas e o centro
comunitário onde funcionou, por muitos anos, a sede do
Conselho dos Povos Indígenas de Crateús e Região –
CINCRAR. Apesar de residirem na Vila Vitória, os Tabajara
reivindicavam seu território original na Serra das Melancias –
na grande Serra da Ibiapaba – e no território de Nazário, na
zona rural do município. Cansados do sofrimento da vida na
periferia da cidade, um grupo de 15 famílias, novamente
liderado pelas irmãs Tereza e Mazé Tabajara, partiu para
Nazário, levando seus pertences em lombos de jumentos e seus
corpos sob a sola de seus pés. Os indígenas lutaram pelo
reconhecimento da terra como território indígena pelo INCRA,
sendo, por fim, reconhecidos. D. Tereza permaneceu no local
até a sua morte, ocorrida por falta de assistência médica
(PALITOT, 2008).
A ausência de políticas públicas e recursos para a
subsistência fez com que algumas dessas famílias retornassem a
cidade, entre os quais também retornou D. Mazé – tendo ela,
posteriormente, voltado ao Nazário. Os Tabajara da Vila Vitória

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389
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

sonham conseguir voltar a sua terra, mas as condições de


pobreza e falta de políticas públicas no local fazem com que
permaneçam na zona urbana, onde resistem e se articulam com
a liderança dos filhos de D. Tereza.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A histórica luta das mulheres indígenas no Brasil e nas


Américas vem carregada de dores que não podem ser
ignoradas pelo feminismo e, tampouco, pela Psicologia. Em um
contexto de exploração capitalista ininterrupta de suas terras e
perseguição de suas culturas, essas sujeitas sofrem diariamente
as opressões da colonização, tais como o machismo, racismo,
sexismo, exploração sexual e tantas outras tão já conhecidas
desta terra desrespeitada há séculos. No entanto, articulações
de mulheres indígenas já emergem, levantando gritos pelos
direitos dessas mulheres.
Em Crateús, lideranças femininas já resistem desde o
início do Movimento Indígena nessa terra. Além dos exemplos
trazidos neste texto, muitas mulheres resistem o cotidiano das
aldeias e que não foram citadas aqui, tais como as donas dos
salões de cura e tantas outras lutadoras que somam nas fileiras
dessas lutas. Pretendemos, a partir dessa pesquisa, trazer a luta
dessas mulheres como compromisso de uma Psicologia Social
Crítica e presente a realidade das lutas populares.
Com a insistente permanência e crescimento das causas
que resultam em tantos problemas e ameaças para a vida das
mulheres indígenas, urge a necessidade de uma Psicologia
Social comprometida com as causas destas mulheres, que seja
meio de visibilidade das necessidades das suas nas

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390
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

universidades, mas também esteja presente nas lutas e nas


aldeias. Conforme afirma Lupicinio Íñiguez-Rueda em sua
análise sobre as consequências da Crise, a Psicologia Social
deve assumir um papel ativo e um posicionamento crítico
diante das contradições presentes na sociedade (ÍÑIGUEZ-
RUEDA, 2003). As mulheres indígenas são vítimas do sistema
dominante desde a colonização e têm seus gritos silenciados
continuamente. Portanto, é papel também da psicologia
visibilizar essas mulheres e seus problemas, conhecendo-as e
fazendo da academia um espaço onde esses gritos são ouvidos,
de modo a mostrar “que essas mulheres existem e sofrem de
forma ainda mais impactante as violações de direitos; que estão
se organizando cada vez mais no sentido de lutar pelos seus
direitos e que suas pautas precisam sair da invisibilidade”
(MELLO, 2018, online).
Quanto a isso, já há movimentos emergindo do solo
crateuense, no sentido de visibilizar, discutir, ouvir e entender
esta e outras lutas no território. Trazemos aqui um destes
movimentos,que surge na academia, com essa proposta: o
Grupo de Estudos e Extensão em Psicologias Sociais - GEPS,
que conta com psicólogos, estudantes de Psicologia, Serviço
Social, História, professores universitários e participantes de
Movimentos Sociais, reunidos no projeto de construir uma
Psicologia Social Crateuense. Tal compromisso só poderá ser
comprido com o somar na luta dos povos indígenas e das
mulheres indígenas, que geral vida e resistência neste chão.

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391
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

POR UM FEMINISMO DECOLONIAL: RESISTÊNCIA


AO PATRIARCADO, RACISMO E COLONIALIDADE
PARA ALÉM DO FUNDAMENTO BRANCO

Aline de Campos Guedes

INTRODUÇÃO

As discussões acerca de um feminismo antirracista com


aporte pós-colonial datam da década de 1970 com surgimento
nos Estados Unidos. Contudo, o desenvolvimento e necessário
aprofundamento de tal abordagem deu-se por meio do trabalho
de teóricos latino-americanos e caribenhos. Intelectuais
afrodescendentes e indígenas debruçaram-se sobre a
colonialidade do poder e elaboraram amplo pensamento como
aporte de práticas políticas na região. Buscando uma outra
construção social possível, os estudos decoloniais, em lugar dos
pós-coloniais que visavam desfazer a lógica colonial,
conquistaram não apenas espaços teóricos na academia, mas
também lugar na articulação política que julga insuficiente
desfazer a colonialidade sem uma proposta que configure um
novo cenário social e político. Retomando as contribuições da
concepção de amefricanidade apresentada pela antropóloga
afrobrasileira Lélia Gonzalez, que a partir de sua compreensão
anteviu conceitos contemporâneos como a interseccionalidade e
o feminismo decolonial, é propiciado um debate em torno das
epistemologias afrolatinoamericanas.
Em questão central encontra-se a possibilidade de
elaboração de caminhos futuros para a resistência feminista de

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395
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

mulheres não brancas. Caminhos políticos que contemplem


uma revolução que supere as realidades experienciadas na
encruzilhada de desigualdades a qual estão opressivamente
direcionadas. O debate sobre articulação feminista entrecortada
por gênero e raça, adentrando o conceito de decolonialidade,
realizado no artigo, tem como objetivos (i) expor a importância
de uma abordagem feminista que abarcasse realidades distintas
das elaboradas no surgimento do feminismo clássico, (ii)
discutir sobre como as práticas colonizadoras favorecem a
manutenção de sociedades centradas no cisheteropatriarcado e
racismo, (iii) bem como, a partir do debate, através das
contribuições bibliográficas, repensar práticas teóricas e de
convívio social que viabilizem a decolonialidade.
No primeiro tópico, discute-se a historicidade da
estrutura opressora imposta às mulheres racializadas e a
insurgência do movimento negro frente aos estudos de gênero
justamente para introduzir a identificação não encontrada no
feminismo branco. A seguir, discorre como a racialidade dos
corpos atinge territórios de contexto multirracial, pluricultural
e, sobretudo, racista. No terceiro tópico, pós-colonialidade,
descolonialidade e decolonialidade são explicadas na essência
de sua teorização permitindo compreensão das diferenças,
semelhanças e objetivos de cada uma das abordagens. Ao final
do artigo, no último tópico, com base nas definições de
amefricanas, feministas interseccionais e feministas decoloniais,
busca-se um diálogo comum que resulte em vias práticas desse
debate contemporâneo em torno da construção da resistência
de mulheres afrolatinoamericanas.

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396
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

REFERENCIAL TEÓRICO

Não há dúvidas das contribuições que os conceitos


fundamentais do feminismo ofereceram para as sociedades.
Contribuições estas responsáveis por se pensar e executar
importantes mudanças que refletiram tanto nas relações sociais
e, sobretudo, em avanços no campo das conquistas políticas.
Entretanto, notou-se que a permanência de um discurso único
para a categoria “mulher” implicava na manutenção da
invisibilidade de tantas outras mulheres, tendo em vista que a
experiência de ser mulher se dá historicamente de formas
sociais determinadas (BAIRROS, 1995, p. 461).
Considerando este fator, a discussão sobre o cruzamento
de diferentes opressões, para além do recorte de gênero, foram
ampliados ao longo das décadas. Com o intuito de pensar os
aportes para a construção de um feminismo que interseccione a
pluralidade das realidades de mulheres, o artigo traz os
conceitos de amefricanidade, interseccionalidade e
decolonialidade objetivando propiciar um debate agregador
para o feminismo.
No Brasil, o conceito de amefricanidade trouxe atenção
justamente para as realidades existentes fora do eixo branco
centralizado no feminismo. Lélia Gonzalez, entre as décadas de
1970 e 1980, dedica-se a adentrar as resistências e culturas dos
descendentes africanos e indígenas propondo resgatar uma
herança histórica apagada pela colonização. Seu trabalho
propunha discutir as opressões da mulher latino-americana, um
debate que para ela representa “falar de uma generalidade que
oculta, enfatiza, que tira de cena a dura realidade vivida por
milhões de mulheres que pagam um preço muito caro pelo fato

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397
Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

de não ser brancas” (2018, p. 14). Como apontado por Bairros


(2000, p. 54), de acordo com a concepção de Gonzalez, a
recuperação ancestral gera a construção de identidade
particular.
A partir de base jurídica, Kimberlé Crenshaw (1989),
contextualiza as dimensões das relações raciais e de gênero,
bem como a marginalização de mulheres negras no movimento
feminista, ao passo que eram descredibilizadas. Assim,
Crenshaw destacou a urgência de se repensar e reformular a
ideia construída acerca das mulheres negras (1989, p. 140).
Carla Akotirene (2019), denota grande valor metodológico no
conceito de interseccionalidade: ‘Uma vez no fluxo das
estruturas, o dinamismo identitário produz novas formas de
viver, pensar e sentir, podendo ficar subsumidas a certas
identidades insurgentes, ressignificadas pelas opressões” (p.
46).
Akotirene credita à Gonzalez o princípio da discussão
em torno do recorte racial dentro do feminismo. Assim, como
Ochy Curiel que julga ter sido possível enxergar a latinidade
com outros olhos, olhos não eurocêntricos, com base em seu
trabalho: “A partir de seu conceito de amefricanidade,
Gonzalez denunciou a latinidade como uma nova forma de
eurocentrismo” (2019, p. 240). No feminismo decolonial, entre
os trabalhos teóricos desenvolvidos, encontra-se a ideia de
colonialidade do poder de María Lugones. O sistema de gênero
surge no regime colonial que define quem é humano e quem
não é, e quais tratamentos serão dispensados as pessoas dentro
da classificação que criaram (LUGONES, 2008, p. 94). Valendo-
se desses aportes, Curiel se debruça a articulações para

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Gênero, mulheres, raça e
classe afroindígena-latino-americanos

construção de uma nova sociedade e não na reformulação da


sociedade existente, princípio defendido na teoria decolonial.

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Para o desenvolvimento deste trabalho fez-se uso de


pesquisa bibliográfica online e em acervo físico. Os conteúdos
anteriores aos anos 2000 foram pesquisados em sites de mídia
negra como o brasileiro Geledés e o site dedicado à compilação
das obras de Lélia Gonzalez também foi eventualmente
consultado para localização de artigos escritos pela autora em
jornais das décadas de 1970 e 1980. Conteúdos da bibliografia
contemporânea foram pesquisados por meio de palavras-chave
na busca online, via ferramenta de busca Google ou Safari.
Para a busca foram utilizados termos, como: feminismo
negro; feminismo decolonial; mulher negra;
interseccionalidade. A partir das referências localizadas foi
possível identificar quais materiais estariam disponíveis online
ou não. Em sua maioria, os textos estudados foram encontrados
no banco de dados da ferramenta Google Scholar, onde foram
utilizados os arquivos em formato PDF. Outros, a minoria, foi
consultada em livros físicos devido a recente publicação do
material.

RESULTADOS E DISCUSSÕES

A partir da análise dos conceitos apresentados e do


estudo bibliográfico de suas aplicações e articulações político-
feministas oriundas de suas ideias, é possível conhecer as
contribuições epistemológicas latino-americanas. A inserção de

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classe afroindígena-latino-americanos

autoras não brancas e de origens que partem fora do eixo


europeu possibilitam outros entendimentos da experiência
generificada do que é ser mulher nas sociedades
contemporâneas. Além de, com exemplos históricos, evidenciar
que tais experiências encontraram-se silenciadas por décadas.
Por exemplo, sobre a interseccionalidade de Crenshaw,
Curiel é crítica no sentido de defender uma posição radical que
supere, de acordo com sua concepção, o conceito que não foi
suficiente na construção de propostas (2008, p. 10). Não há
anulação dos conceitos anteriores, e sim complementação para
a discussão feminista, possibilitando caminhos mais igualitários
para práticas presentes e futuras.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Compreende-se que os fundamentos do feminismo


clássico foram e ainda são importantes para discutir a opressão
e desigualdade de gênero que privilegia homens. Ao incluir o
fator raça na discussão, entende-se que o privilégio social
imposto pelo patriarcado encontra-se com a desigualdade racial
decorrente de processos colonizadores. Portanto, a opressão
privilegia homens e brancos, não apenas homens, e ao
considerar a racialidade adentramos na estrutura social que
mantém diferentes opressões, mesmo entre as mulheres.
Com isso, questiona-se até que ponto o feminismo
clássico, de origem branca, abraça as opressões impostas
especificamente as mulheres negras. É neste cenário que
conceitos que vislumbram o feminismo negro são importantes.
Akotirene, destaca muito bem que não há hierarquia de
opressões, há sim identidades que se sobressaem ao olhar

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Gênero, mulheres, raça e
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ocidental (2019, p. 46), o que corrobora para a marginalização,


em seu sentido literal de ser posto à margem, das identidades
historicamente apagadas. Decolonizar os saberes, é
fundamental para que mulheres afro-latino-americanas tenham
suas realidades reconhecidas, para que assim seja possível
construir mudanças estruturais nos diferentes níveis sociais.

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