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PENSAMENTO DIASPÓRICO E O
“SER” EM GINGA:
DESLOCAMENTOS PARA UMA
FILOSOFIA DA CAPOEIRA
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Revista de Humanidades e Letras
RESUMO
Este ensaio apresenta o enredamento entre reflexões dos estudos
ISSN: 2359-2354
afro-diaspóricos, da crítica ao colonialismo e da emergência de
Vol. 4 | Nº. 2 | Ano 2018
pensamentos, saberes e gramáticas inscritas em presenças subal-
ternizadas. Assim, reivindicamos a crítica pulsada pela condição
ambivalente do “ser” na diáspora, alguns complexos de saber ne-
gro-africanos transladados e ressemantizados nos fluxos transa-
Luiz Rufino tlânticos e as suas políticas operadas nos interstícios da lógica
colonial para propor interrogações sobre as existências e os co-
Cinézio Feliciano Peçanha nhecimentos na capoeira. Assim, a capoeira emerge neste texto
(Mestre Cobra Mansa) como disponibilidade para problematizações filosóficas sobre o
ser/saber no Novo Mundo. Para o tratamento das questões lança-
Eduardo Oliveira remos o conceito de “ser em ginga”, um modo tático de remonta-
gem do ser/saber, integibilidade, comunicação e possibilidade de
uma filosofia outra assente no jogo de corpo.
Palavras-chave: Diáspora africana- Capoeira- Filosofia
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ABSTRACT
Cruzando a Kalunga
Engraçada a vida, a fama chegou para mim como se eu não a merecesse ou não estivesse
preparado. No princípio, sentia uma certa vaidade e pensava: formidável, todos falam de
mim, todos necessitam de mim, um mulatinho descendente de escravos. Terrível é des-
cobrir que tudo isso é falso. Que de tudo a única coisa real foi à capoeira.
Mestre Pastinha.
1
Pedagogo, Doutor em Educação (UERJ), Pós-doutorando em Relações Étnico-Raciais (PPRER-CEFET).
2
Mestre de capoeira angola, doutorando no DMMD/UFBA, membro da Rede Africanidade e Kilombo Tenonde.
3
Professor Doutor da Faced-UFBA, professor permanente do Doutorado em Difusão do Conhecimento- DMMDC e
Coordenador do Grupo de Pesquisa Rede Africanidades.
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O termo calunga grande é presente em culturas como o jongo, a macumba carioca, omolocô e a umbanda. O termo
presente nas tradições identificadas como rito/culto ancestral a memória das populações negro-africanas transladadas
para as Américas na condição de escravizados, a linha dos pretos (as)- velhos, também chamada de linha das almas
ou do povo do cativeiro designa a noção do oceano como um imenso cemitério. Nesse caso, a noção de calunga
como cemitério transcende a ideia convencional do mesmo, pois se emprega uma compreensão de ressignificação da
vida tendo como referência principal a noção de ancestralidade como a entronização da vida, presença e memória via
a prática do rito. A noção de calunga como grande cemitério presente nas culturas afro-diaspóricas emerge como um
desdobramento da conceitualidade inscrita com “k”, kalunga própria da tradição dos povos bakongos.
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Kalunga, além de significar a divindade suprema ou “Deus”, também significa o mar, o oceano. Outras noções
atribuídas ao termo são os descendentes de escravos em Goiás, no Brasil, boneca elemento sagrado dos candomblés
de Pernambuco e dos blocos de maracatu, no Brasil. Para os bakongo a linha da Kalunga e a linha que leva de volta a
alma dos afrodescedente após a morte e reentra no mundo espiritual.
da nos cursos da sua diáspora que tem como marca/anseio6 identitário a tessitura de uma política
em favor da vida. Como orientação ética/estética para o lançamento dessa hipótese reivindica-
mos a máxima filosófica versada por Vicente Ferreira Pastinha: “capoeira é mandinga de escra-
vo em ânsia por liberdade”.
Assim, na continuidade desse texto trabalharemos com dois argumentos principais, o
primeiro é que os modos de ser produzidos como respostas e orientados por uma ética/estética
contracultural a modernidade, Gilroy (2008), são existências de ginga. Ou seja, a ginga é o pres-
supostos inteligível e existencial para os modos de ser submetidos à política de morte do coloni-
alismo europeu-ocidental. Nessa perspectiva, a ginga não é meramente uma coreografia, mas o
próprio substantivo que possibilita a tessitura dos repertórios comunicativos na diáspora, a ginga
é linguagem e não diz meramente sobre as formas, mas sobre as existências em si.
Considerando que a condição de vida no Novo Mundo é encruzada a de morte, não co-
mo oposição, mas como dupla consciência. A ginga emerge como inscrição do ser frente à polí-
tica de desvio existencial. Assim, o que seria uma condição do ser vacilante é reinscrita por uma
condição do ser gingada, negaceada em constante movimento e inacabamento. Essa condição
emerge como tática de rasura da apreensão das identidades produzidas como subalternas pelo
colonialismo europeu-ocidental. Assim, dialogamos com Tavares (2012), que nos diz que a gin-
ga, portanto, é “pauta por onde se configuram os arranjos cinéticos das defesas e dos ataques. É
ela um elemento essencial para a execução da prática, atuando por um efeito dissimulador da
intenção”.
Nessa perspectiva, a ginga emerge como uma força existencial dotada de uma integibi-
lidade que lança o “ser” em uma escrita de si que confronta os determinantes impostos pela
agenda colonial. O seu efeito dissimulador, negaceado faz com que o ser pratique as frestas, os
vazios deixados pela própria intenção de dominação. Assim, o ser se constitui nos fazer nas bre-
chas daquilo que foi imposto para ele, ao gingar, negacear, pular nos vazios deixados o mesmo
desautoriza a ordem, refaz a dinâmica do jogo mesmo que de forma provisório. Dessa maneira,
se o ser se refaz na condição de ginga, a vida é interpretada como uma dinâmica de jogo inaca-
bada. É nesse sentido, que os praticantes reivindicam um aforismo que diz muito sobre essa pro-
blematização: “o mundo dá voltas”.
6
Menção ao pensamento do Mestre Pastinha: “capoeira é mandinga de escravo em ânsia por liberdade...”.
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No meu tempo eu era capoeirista, também tinha capoeirista que andava torto mais torto como a natureza não fez
ele. Porque ele pegava um lenço e botava no pescoço, um lenço grande, uma calça boca que dava 30 centímetros de
boca, chinelo de chagrin, chapéu jogado do lado direito conforme fizesse o jeito, se ajeitava nisso, né. Andava no
meio da rua com aquele gingado, né... (1969).
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Mestre Pastinha em depoimento no ano de 1967.
ção de ginga que fizeram? A ginga aposta na não obviedade, pois é dúvida comunicada na força
da presença, no baile de suas performatividades.
Nessa perspectiva, defendemos que a capoeira, assim como outras esferas de saber pa-
ridas na diáspora são gramáticas fundamentais para uma revisão do ser/saber/poder que apontem
para ações de desestabilização da Colonialidade. Assim, reconheça-la como patrimônio da hu-
manidade nos diz algo, mas tomá-la como potência que emana as invenções, táticas e luta dos
seres desmantelados pelo projeto de dominação colonial enuncia sobre seu caráter como exis-
tência em ginga. Uma sabedoria inconformista, rebelde, tática, antirracista e contrária à escassez
produzida por um modelo de mundo avesso a diversidade. Nessa perspectiva, Oliveira (2007)
comenta,
Dentro da ginga que o capoeirista descobre o seu corpo ancestral, no jogo de corpo da
ginga e que o capoeirista começa a perceber, a ligação corpo, mente e percepção devem
trabalhar em conjunto. A Crítica da análise cognitiva proposição e os movimentos.
A ginga é enigma que nasce da ânsia de liberdade como menciona Mestre Pastinha. Des-
sa forma, não seria a ginga uma escrita em encruzilhada, uma vez que emerge como um campo
de possibilidades? O corpo e os seus movimentos morada do grande senhor dos caminhos, a pró-
pria expressão e imanência desse poder, aquele que volta antes de ir, que já foi lá sem nunca te
saído do lugar. Exu como esfera do ser, saber e linguagem é também a esfera que se multiplica
para perspectivarmos o fenômeno da ginga. Assim, é na ginga que se finge que vai, mas não vai
e quando menos se espera você se lança outra rota, invenção do ser no mundo. A ginga manifes-
ta a remontagem das sabedorias transladas na diáspora africana, uma cosmovisão que salta nos
vazios para produzir presença de outro modo possível.
Nestas exclusões dos saberes temos de maneira concreta um total distanciamento daque-
le que foi a principal arma dos negros para ativar uma resistência empreender o registro
de sua história de rebeldia o seu corpo apesar de dinamitado pelo processo de escravidão
e dominação o corpo negro preservou e condensou uma sabedoria pelos movimentos,
pelos ritmos e pela energia, bem como pela oralidade que vem sendo transmitida como
que um plano conspirativo invisivelmente instalado no interior da própria sociedade (Ta-
vares, 2012).
A ginga se lança como rota inventiva para a reivindicação do ser, uma espécie de remon-
tagem performática, inacabada e ambivalente das existências que são violentadas pela lógica de
violência e escassez produzida pelo sistema colonial. Implicado a ginga o jogo emerge como
uma espécie de o que se faz da vida. Ou seja, uma forma de responder com a própria vida ao
mundo e aos outros que o interpelam. Na perspectiva de um pensamento de fronteira próprio das
experiências e interlocuções tecidas na diáspora, a vida é concretude, é corpo. Dessa maneira,
tudo que é vivo está para o mundo na perspectiva de se constituir enquanto corpo seja baixando
em algum suporte físico, se transmutando, se dinamizando enquanto movimento ou até mesmo
O capoeirista tem a habilidade de ver sem olhar, ou seja, ‘durante a negação’, o capoeira
apenas acompanha o movimento dos olhos do seu oponente, pelo olhar conhece o local
vigiado pelo agressor, pois o mesmo antes de dar o golpe marcava com a vista o ponto
vulnerável a ser atingido. Para evitar, assim ser descoberto, o capoeirista filiado a luta
regional baiana procurava treinar e possuir um olhar manhoso ou de soslaio evitando que
seus olhos fossem fixados pelo adversário eles os conservava abaixado os fintos em pon-
to diversos olhando o contentor, de 'canto de olho’ ou por meio de uma rápida visão de
conjunto. Quando se defrontavam os contendores que possuíam essa mesma qualidade, a
luta era mais perigosa e mais difícil. O capoeirista impossibilitado de se orientar pelos
olhos do seu oponente aplicava o mesmo sistema de 'olhar manhoso', (Abreu, 2017,
p.119).
A capoeira é esse jogo de “entrar saindo e sair entrando sem ser notado”. A chamada –
o movimento de passo a dois – pode ser lida como a síntese do que é a capoeira, uma verdadeira
encruzilhada. Ali, tem que saber entrar de mansinho para poder sair sem cair na armadilha que
está ali guardada e escondida esperando o momento certo para ter pegar. Uma ratoeira armada
para o rato kalunga, que no jogo de corpo, sai no momento certo antes da porta fechar. Assim,
diríamos que cada golpe de um capoeira é uma chamada. Exige sagacidade para entrar e pra sair,
numa ordem que frequentemente se inverte, porque nada é linear, fixo e acabado. Assim, para se
viver, é preciso ser sagaz, é preciso ter jogo de corpo. Para lidar com capoeira, tem que ser inte-
ligente. Para lidar com Exu tem que ser rato kalunga. Para entrar numa chamada tem que saber
gingar na linha de kalunga, se não, vai se atrapalhar. É como uma metáfora sobre o viver entre
os dois mundos simultaneamente sem divisão, minha mãe diria: "Um olho no gato outro no pei-
xe". “Um olho no Padre outro na missa".
A capoeira como expressa no aforismo pastiniano9 é “mandinga de escravo em ânsia
por liberdade (...) a capoeira é tudo que a boca come e o corpo dá”. Reivindicaremos como um
saber em encruzilhada, Rufino (2018). Seu caráter de vida e jogo define quem é quem. Quem
volta e quem fica. Quem vai pra esquerda e quem vai para direita. A capoeira não é partida, a
capoeira é inteira. Na roda da vida, quem está no meio da roda ou na encruzilhada tem todas as
possibilidades, os caminhos estão abertos.
Mestre Moraes nos ensina que existem duas rodas, a pequena e a grande roda. A peque-
na roda é a da capoeira onde tudo pode acontecer, da amizade a falsidade. Nela seu melhor ami-
go poder te dar uma rasteira e ainda no final sair sorrindo como se nada tivesse acontecido. As-
sim, é na pequena roda que você vai se preparando, que se aprende a cair e cai bem se levantan-
do com dignidade. Aluvaiá10, a potência e o saber dos caminhos nos lança na encruzilhada, seja
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Em uma leitura orientada pelos princípios explicativos assentes na capoeira, definimos aforismo pastiniano como
uma breve narrativa verbal que enuncia uma regra, um pensamento, um princípio ou uma advertência para a roda e
pra vida ao mesmo tempo em que integra o jogo de corpo e mente em uma noção de vida e sociedade. Assim, se
inscreve no ar como um pensamento mandigueiro realçado pela expressividade orgânica de uma mensagem vibrante
adquirida no tempo/espaço da roda.
10
Nos candomblés de Naçao Angola, Aluvaiá é o Inkisse que leva e traz informações entre os dois mundos, por isso
tido como aquele que potencializa caminhos na perspectiva das possibilidades. Em uma aproximação com os
candomblés de tradição Nago Aluvaiá estabelece identificações com o orixá Exu.
REFERÊNCIAS
ABREU, F. J. Nagé: o homen que lutou capoeira até morrer. Salvador: Barabo, 2017.
DU BOIS, W.E.B. As almas da Gente Negra; tradução, introdução e notas, Heloísa Toller Go-
mes. Rio de Janeiro: Lacerda ED., 1999.
HALL, S. Da Diáspora: Identidades e mediações culturais. Liv Sovik (org.). Belo Horizonte:
UFMG, 2003.
_____. Mestre Pastinha e sua Academia- Capoeira Angola. LP Capoeira Angola, Mestre
Pastinha e sua academia, Stereo 6485 119 Série Economica, Polygram Discos LTDA. 1969.
RUFINO, L. “Pedagogia das Encruzilhadas”. Revista Periferia, v.10, n.1, p. 71-88, Jan./Jun.
2018.
TAVARES, J. C. Dança de guerra- arquivo e arma: elementos para uma Teoria da Capoei-
ragem e da Comunicação Corporal Afro-Brasileira- Belo Horizonte: Nandyala, 2012.
Luiz Rufino
Pedagogo, Doutor em Educação (UERJ), Pós-
doutorando em Relações Étnico-Raciais (PPRER-
CEFET).
Eduardo Oliveira
Professor Doutor da Faced-UFBA, professor per-
manente do Doutorado em Difusão do Conheci-
mento- DMMDC e Coordenador do Grupo de
Pesquisa Rede Africanidades.
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