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O potencial de

práticas decoloniais na
formação docente

Priscila Elisabete da Silva


doutorado

Socióloga. Doutora em Educação pela Faculdade de Educação da


Universidade de São Paulo (FEUSP). Docente com experiência na educa-
ção básica e no ensino superior.
E-mail: pribety@gmail.com
LATTES: http://lattes.cnpq.br/8556005071497537
2

Resumo

T
endo em vista alargar o potencial da legislação educacional brasi-
leira antirracista e partindo da autorreflexão como docente negra
numa sociedade racista, reflito sobre o potencial da proposta epistemo-
lógica decolonial para o âmbito da Educação e, em especial, à formação
docente. Ao mostrar as estratégias e resultados que venho obtendo para
colocar em prática uma educação nessa perspectiva, delineio e apresento,
como resultado desse percurso, uma proposta metodológica comprome-
tida com a formação antirracista.

Palavras-chave: atitude decolonial, formação docente, antirracismo.

> O potencial de práticas decoloniais na formação docente


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Introdução

A
problemática de que trata este artigo é o racismo e, em especial, seu
impacto na Educação. A persistência do racismo na sociedade brasi-
leira ainda é, no século XXI, sentida e contabilizada. Há uma vasta litera-
tura disponível sobre o tema que o aborda de diferentes perspectivas e que
desvela as muitas facetas apresentadas por esse fenômeno desde sua ins-
talação em terras brasileiras.1 Para além do conhecimento teórico acumu-
lado, o protagonismo dos movimentos sociais negros tem marcado a his-
tória nacional chamando a atenção para o fato de o racismo colocar em
xeque a concepção democrática de nossa sociedade. O campo educacional
tem sido apontado, seja por movimentos sociais, seja por estudos acadê-
micos, como importante esfera de atuação de reprodução de uma cultura
racista. O modo como isso se dá tem sido mapeado por importantes estu-
dos (CAVALLEIRO, 2003 e 2004; MUNANGA, 2001; SILVA, 2007 e 2018;
GOMES, 2013), constantemente ampliados por pesquisas em nível de
mestrado e doutorado desenvolvidas nas principais instituições de ensino
superior do país, além de por análises independentes.
Tais estudos assinalam as diferentes estratégias pelas quais o racismo
se reproduz dentro do ambiente escolar. O material didático, as relações
interpessoais, a negação dos conhecimentos tradicionais e dos saberes
culturais em prol da afirmação do currículo eurocêntrico,2 as estratégias
para silenciar a vítima de racismo são alguns exemplos. Os efeitos tam-
bém são conhecidos e se traduzem em tratamento diferenciado por par-
te do(a)s professor(a)s em relação aos aluno(a)s negro(a)s, o que, por
sua vez, impacta a trajetória acadêmica desses indivíduos, produzindo
maior índice de evasão escolar – em comparação com alunos brancos –
e maior dificuldade em construir uma autoimagem afirmativa. No con-
junto, esse quadro resulta na dificuldade de mobilidade social, cujos
efeitos são sentidos por gerações (CARVALHO, 2005; LOUZANO, 2013;
JESUS, 2018).

1  Silva (2020) apresenta um panorama dessa literatura a partir de seu esforço em entender como
parte da intelectualidade nacional do final do século XIX até as primeiras décadas do século XX lidou
com as diferentes teorias raciais a que teve acesso. A autora ainda destaca como tal debate influenciou
o campo da Educação no Brasil.

2  Relativo ao eurocentrismo, conceito entendido aqui como: “(...) uma específica racionalidade ou
perspectiva de conhecimento que se torna mundialmente hegemônica colonizando e sobrepondo-se a
todas as demais, prévias ou diferentes, e a seus respectivos saberes concretos, tanto na Europa como
no resto do mundo” (QUIJANO, 2005, p. 126).

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Por força de movimentos sociais organizados, sobretudo do Movimento


Negro Organizado, no ano de 2003 esse tema foi tratado de forma proposi-
tiva a partir da alteração da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
(1996), pelas leis 10.639/03 e 11.645/08, que instituem a obrigatoriedade do
Ensino de História e Cultura Africana, Afro-brasileira e Indígena nas esco-
las de todo o país. Instituídas as Diretrizes Curriculares Nacionais para a
Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura
Afro-Brasileira e Africana, tivemos orientações para a implementação des-
sa legislação. Em tais documentos é assinalada atenção especial ao âmbi-
to da formação docente. Entende-se que os cursos de licenciatura preci-
sam formar docentes não só capazes de “(...) compreender a importância
das questões relacionadas à diversidade étnico-racial, mas [de] lidar posi-
tivamente com elas e, sobretudo, criar estratégias pedagógicas que possam
auxiliar a reeducá-las” (BRASIL, 2013, p. 8).
De modo mais sistemático, tem cabido à sociedade civil organi-
zada, principalmente por meio de instituições comprometidas com o
antirracismo, fiscalizar a implementação da legislação antirracista na
Educação. Ações como o mapeamento de práticas educacionais e incen-
tivo à produção científica têm sido estímulos fundamentais para não
permitir que a política pública perca sua força.3 Na esfera acadêmica, o
acompanhamento demonstra que, em muitos casos, a legislação tem se
efetivado pela persistência de indivíduos comprometidos pessoalmente
com a temática (GOMES, 2013).
Este artigo tem por objetivo apresentar reflexão sobre esse contexto
a partir do esforço para responder à seguinte questão: é possível expan-
dir o potencial da legislação antirracista para além dos objetivos apre-
sentados no Parecer CNE/CP 03/2004 e na Resolução CNE/CP 01/2004,
documentos que regulamentam e instituem as Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino
de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana? Procurarei demonstrar
– por meio de experiências concretas – que a resposta para essa questão
é afirmativa. Argumento que a legislação antirracista pode ser o pon-
to de partida para uma guinada epistemológica, qual seja, a transição da

3  Nesse sentido, o Prêmio Educar para a Igualdade Racial e de Gênero, promovido pelo Centro
de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT), tem cumprido papel fundamental,
sobretudo pela perenidade e pelo apoio à implementação efetiva dessa ação afirmativa.

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formação eurocêntrica para a decolonial. Tal proposta é sistematizada


e apresentada no decorrer deste texto como possibilidade metodológica
passível de ser utilizada em contextos de formação docente.
Tendo em vista a característica dessa proposta, penso que é impor-
tante e necessário tecer algumas palavras sobre os elementos que fun-
damentaram essa reflexão. De algum modo estou falando de escolhas,
sendo assim, do caminho metodológico seguido. Escrevo como uma
docente negra comprometida com a educação de qualidade; intelectual
treinada para fazer análise social e que tem por imperativo a autorrefle-
xão. Escrevo, sobretudo, dos lugares de quem se guia por valores huma-
nos universais. Desses lugares sinto, vivo, penso e realizo. São espaços
de formação e que me fazem perceber a docência como um ato insur-
gente (hooks, 2013).
Não se trata aqui de chamar a atenção para um traço que me dis-
tingue como indivíduo, ao contrário, essa “escrevivência” (EVARISTO,
2007) extrapola o âmbito individual porque é também coletiva, de modo
que concebo como produção científica saberes coletivos impressos e
expressos em experiências subjetivas (EVARISTO, 2007; COLLINS, 2016;
hooks, 2013). Partir de minhas experiências não significa que a aná-
lise gerada esteja destituída de validade e capacidade de generaliza-
ção. Longe disso, olhar para minha atitude pedagógica é pressuposto da
metodologia que defendo aqui. Ao realizar a autorreflexão, ponho em
perspectiva meu fazer pedagógico num movimento que procura chamar
a atenção para a renovação do modo como entendemos a ciência (pela
cisão entre razão e emoção).
Isto posto, na sequência pontuo elementos para pensarmos as
características da formação docente em nossa sociedade, seus impac-
tos e possibilidades de mudança. Sigo apresentando e analisando expe-
riências4 que venho acumulando na docência em cursos de formação de
professores. O resultado dessas experiências sinaliza o potencial de pro-
mover uma educação decolonial; assim, sistematizo pontos centrais que
constituem a metodologia que emprego e defendo.

4  Aproveito este momento para agradecer aos colegas docentes, gestores e, especialmente, aos
estudantes que frequentaram meus cursos de formação e construíram comigo esse caminho em prol de
uma Educação mais humanizada e transformadora. Fica aqui meu reconhecimento e gratidão pelo que
me ofereceram.

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O processo de formação

D
urante meu percurso na educação básica pública, em escolas da
periferia de São Paulo, tive muitos colegas afrodescendentes, mas
apenas dois professores (uma professora e um professor). Anos mais tar-
de, já na universidade pública, me dei conta de ser minoria naquele espa-
ço (do grupo de cerca de 30 alunas e alunos, havia eu e mais um colega
negros). Porém, o que mais me impactou foi passar por toda a graduação
e ter tido somente – e novamente – dois professores negros (dessa vez,
só homens). Fiz daquele fato motivação para pesquisa em nível de mes-
trado e doutorado (SILVA, 2008; 2016).
Desde a graduação tenho me dedicado a entender as configurações que
moldam as relações étnico-raciais em nossa sociedade a ponto de ensejar
modos de ser para negros e não negros. Ao pesquisar, ler, conversar e aprender
sobre esse tema, compreendi melhor a intersecção entre minha identidade e a
da sociedade brasileira. Passei a sentir necessidade de compartilhar o conheci-
mento adquirido e, por essa razão, tenho me envolvido em diferentes projetos
de formação de professor(a)s dentro da temática das relações étnico-raciais,
atuando desde o ensino básico ao superior (na esfera pública e privada).
Em quase duas décadas de formação e trabalho na temática da diver-
sidade, tenho observado crescer a dificuldade em quebrar a lógica de for-
mação eurocêntrica que, não por acaso, atravessa as experiências dos
indivíduos, dando-lhes um sentido cognitivo e identitário. Nesse qua-
dro, o que ganha relevância não são os valores humanos, mas a posse do
poder. Formar seres humanos cientes de suas capacidades e responsabi-
lidades perante o mundo não tem sido uma característica de nossa socie-
dade, ao contrário, a lógica da instrução em detrimento da formação é
o que tem imperado na família, na escola, no trabalho, nas mídias, nas
comunidades virtuais. A síntese dessa lógica está na exigência do “con-
teúdo mínimo”, mas também na linguagem empobrecida dos emojis, no
“limite de caracteres” para expressar o pensamento e na economia das vir-
tudes. Esse é um problema presente em todos os países – ainda que em
diferentes graus –, e não chegamos a esse ponto por acaso.
Como nos ensina Aníbal Quijano (2005; 2017), há uma conexão entre
as ideias de modernidade, raça e gênero. Essa relação também é notada
por Torres-Maldonado, que a exprime da seguinte forma:

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A Modernidade começa a aparecer não somente como moder-


na frente a uma Antiguidade ou a uma Idade Média, mas como
branca frente a uma zona que se identifica como não branca e
parcialmente negra. A pele negra permite que a linha ontoló-
gica colonial seja visível e apareça na forma de uma dicotomia
hierárquica entre negro e branco. Da mesma forma, as atitu-
des frente à pele negra denunciam as obsessões e os desejos
dos sujeitos modernos, tanto em sua versão negra como bran-
ca. (TORRES-MALDONADO, 2016, p. 92)

Na sociedade moderna, as relações sociais são orientadas por dualis-


mos que produzem dominação e, consequentemente, subordinação, con-
figurando um modelo particular de exercício da dominação que Quijano
(2005) denominou de “colonialidade do poder”. O exercício de poder tam-
bém se expressa no saber (“colonialidade do saber”) e tem no pensamento
eurocêntrico sua matriz de reprodução.
Como alertam pesquisas e reflexões desenvolvidas no campo dos
estudos étnicos,5 é preciso ter uma postura vigilante diante das verdades
que configuram a modernidade tal qual a conhecemos e que, sob o bri-
lho das instituições modernas, como o Estado-Nação, produzem e repro-
duzem formas de desumanização, ao passo que fortalecem pactos entre
parcela pequena da sociedade,6 mas que concentra poder. Nesse sentido, a
decolonização epistêmica é pressuposto para conceber a decolonização do
ser, do poder e do saber (TORRES-MALDONADO, 2016).
Nessa conjuntura, rever e repensar o modo como a ciência e a cienti-
ficidade têm sido realizadas é fundamental, uma vez que o modelo cor-
rente está impregnado de um pensamento dual que cria oposições em vez
de complementaridade inibindo, dessa forma, a expansão da razão. Às
instituições de ensino, enquanto espaços socialmente legitimados como
5  Vale a pena demarcar o sentido aqui atribuído a esse campo, que vai além da acepção comumen-
te associada ao termo “étnico”. Para tanto, lanço mão da explicação de Torres-Maldonado (2016, p.
77), quando diz que étnico “não nomeia tanto uma diferenciação entre distintas etnicidades, senão que
identifica uma linha divisória entre grupos classificados como étnicos e outros que pareceriam estar
acima da categoria de etnicidade. Em outras palavras, os sujeitos normativos de sociedades tipicamen-
te modernas não se veem como étnicos, senão somente como sujeitos ou sujeitos nacionais. Os étni-
cos são os outros, e estes outros não estão representados de forma equitativa nem na administração
das instituições de poder nem na cultura ou na produção do conhecimento, entre muitas outras áreas”.
Podemos entender os “estudos étnicos” como aqueles que buscam compreender as condições das ditas
“minorias étnicas”, assim entendidas por um ponto de vista que considera alguns sujeitos como nacio-
nais e detentores de direitos, e outros, não.

6  A esse respeito, ver reflexão apresentada por Djamila Ribeiro. O pacto branco e a maldição da
mediocridade. Folha de S. Paulo, 6 maio 2019.

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transmissores do conhecimento acumulado pela humanidade, cabe-


ria cumprir o papel de dar respostas para as demandas apresentadas pela
sociedade. No tocante à temática da diversidade, deveria reconhecer e
estimular suas diferentes expressões, dado que são exemplos da diversi-
dade humana. Apesar disso,

(...) a universidade ocidental e as disciplinas acadêmicas não só


refletem a formação do mundo dividido pela linha secular entre o
chamado religioso e o âmbito público e do Estado-Nação, senão
que também refletem o que pode ser chamado – seguindo W. E.
B. Du Bois – uma “linha de cor”, também de larga duração, entre
o mundo europeu tipicamente aludido pela categoria de huma-
nitas e pelas humanidades e o mundo de comunidades coloni-
zadas e desumanizadas tipicamente aludidas com o conceito de
anthropos. (TORRES-MALDONADO, 2016, p. 76)

No Brasil, a instituição “ensino superior” traz consigo elementos de


hierarquização e racialização (SILVA, 2016; 2020) expressos em signos
ainda vigentes que, no limite, atualizam a colonialidade do poder a partir
da colonialidade do saber (QUIJANO, 2005; SILVA, 2018). No campo peda-
gógico, tem-se insistido na perspectiva de ensino bacharelesca de inspi-
ração eurocêntrica, sobretudo. Ao agir desse modo, o que se tem ensinado
e a quem tem servido o conhecimento gerado e transmitido dentro desses
espaços científicos e educativos?

Atitude e projeto decolonial

P
artindo da compreensão de que a própria concepção de modernidade
que nos orienta está implicada com o processo colonial e seu legado,
tem crescido o movimento que chama a atenção para a necessidade de crí-
tica e de mudança de atitude diante das instituições modernas e os valo-
res que propagam. As lutas em prol da descolonização ainda ecoam mundo
afora. Há, no entanto, uma compreensão de que é preciso ir além. O con-
ceito de decolonização tem guiado a reflexão nesse sentido.

No pretendemos simplemente desarmar, deshacer o revertir lo


colonial; es decir, pasar de un momento colonial a un no colo-

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nial, como que fuera posible que sus patrones y huellas desistan
de existir. La intención, más bien, es señalar y provocar un posi-
cionamiento – una postura y actitud continua – de transgre-
dir, intervenir, in-surgir e incidir. Lo decolonial denota, enton-
ces, un camino de lucha continuo en el cual podemos identificar,
visibilizar y alentar “lugares” de exterioridad y construcciones
alternativas. (WALSH, 2009, p. 15-16)

O conceito decolonial remete a ir além da ideia de desconstruir o legado


colonial construindo projetos alternativos. Tendo em vista a decadência do
potencial humanizador do projeto de modernidade, parece-me necessário
promover uma mudança de atitude, insurgir, em prol de novas formas de
pensar e agir capazes de assegurar novos modelos epistêmicos e cognitivos,
novas formas de viver que estejam em consonância com princípios éticos
universais (visando ao bem comum).
Atuando na academia, seja na docência, seja na produção de conheci-
mento, reconheço alguns dos limites presentes nesse espaço de formação. A
reprodução – muitas vezes descabida – de modelos e teorias alheias à reali-
dade nacional ainda é um fato e demonstra que seguimos fazendo a escolha
por valorizar o conhecimento de fora em detrimento de reconhecer e valorizar
o conhecimento oriundo de nossa própria cultura em suas diferentes mani-
festações. Isso significa dizer que nosso ensino “superior” também reproduz
estruturas e dispositivos que reiteram assimetrias de poder (SILVA, 2020).
Uma vez ocupando esses espaços de poder/saber e tendo mínima cons-
ciência do que são e como operam (dentro da lógica aqui discutida), é pre-
ciso desenvolver uma atitude de enfrentamento, o que não é tarefa fácil,
pois requer capacidade para transitar por poderes constituídos. Não obs-
tante, não basta conseguir transitar, é preciso ter atitude, compreendendo
que essa é “uma dimensão fundamental na tarefa de produzir conhecimen-
to” (TORRES-MALDONADO, 2016, p. 88). A atitude precisa estar direciona-
da à produção de uma episteme decolonial, para tanto, é indispensável ter
uma atitude decolonial, isto é, engendrar “projetos insurgentes que resis-
tem, questionam e buscam mudar padrões coloniais do ser, do saber e do
poder” (TORRES-MALDONADO, 2016, p. 88).

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Consciência decolonial

C
ompreendo que o modo pelo qual tem se estruturado o ensino supe-
rior brasileiro (num processo constante de burocratização e reprodu-
ção de teorias e métodos “em voga”) tem dificultado desenvolver a forma-
ção integral dos estudantes e, consequentemente, impactado a formação
dos profissionais que atuam na sociedade. Não cabe aqui pormenorizar
as diversas causas que ajudam a explicar esse fenômeno, mas certamente
estão relacionadas com o pensamento moderno-colonial já aqui discutido.
Observa Maldonado-Torres (2006) que a academia se faz por dis-
ciplinas e métodos impregnados da visão moderna-colonial na qual há
uma defesa da “linha ontológica colonial”, o que explica estratégias para
a reprodução de hierarquias. Em nossa sociedade, pensemos no racismo
institucional, na branquitude, na discriminação de gênero, classe, orien-
tação sexual, entre outras violências que se localizam e são reiteradas
nesses espaços7 (SILVA, 2020; MÜLLER e CARDOSO, 2017).
Uma proposta para romper com essa lógica seria tecer novas epis-
temologias, novas pedagogias e metodologias capazes de afetar essas
estruturas calcificadas. Nesse sentido, irromper com métodos disciplina-
res é fundamental, e o caminho pode ser por meio da “transdisciplinari-
dade decolonial”, como assinala Nelson Maldonado-Torres:

Estou definindo transdisciplinaridade decolonial como orienta-


ção e suspensão de métodos e disciplinas a partir da decoloniza-
ção como projeto e como atitude. Esta atitude e este projeto são
parte do que podemos chamar de consciência decolonial (deco-
lonial consciousness), em contraposição à consciência moderna
(modern consciousness). Enquanto a consciência moderna encar-
rega-se de afiançar as bases das linhas seculares e ontológicas
moderno-coloniais, a consciência decolonial busca decoloni-
zar, des-segregar8 e des-generar o poder, o ser e o saber (...).
(TORRES-MALDONADO, 2016, p. 93-94)

7  Para exemplificar esse fato, cito a pesquisa Interações na USP, empreendida pelo Escritório USP
Mulheres (durante o período de 2017 e 2018), que mapeou, por meio da percepção do(a)s estudantes
da instituição, as diversas experiências de violências e discriminações vivenciadas no ambiente
universitário. A respeito, ver: Para mais da metade dos estudantes, USP é machista e racista. Disponível
em: https://jornal.usp.br/universidade/para-mais-da-metade-dos-estudantes-usp-e-machista-e-
racista/. Acesso em: 26 jul. 2019.

8  Remete à ideia de superar, também, as marcações de gênero presentes no poder, no saber e no ser.

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No meu fazer docente, procuro fissuras nos processos disciplinares


para conceber estratégias pedagógicas que promovam a empatia, desen-
cadeiem o afeto, o pensamento crítico-criativo, a complementaridade
entre as áreas de conhecimento e o senso de respeito e aprendizado pelo
contato com o “Outro”.
Como aponta Torres-Maldonado (2006, p. 94), a transdisciplinaridade
decolonial pode ser atingida ao “criar laços e novas formas entre esferas
que a Modernidade ajudou a separar: a esfera da política ou do ativismo
social, a esfera da criação artística e a esfera da produção de conhecimen-
to”. O resultado é o desenvolvimento da consciência decolonial, que é:

(...) uma consciência limítrofe e seu pensamento também é


um pensamento de fronteira que se nutrem da experiência de
estarem marcados pela linha ontológica moderno-colonial
(ANZALDÚA, 2012). O caráter fronteiriço do pensamento deco-
lonial também aponta para seu caráter transdisciplinar: o pro-
jeto e a atitude decolonizadora levam o sujeito cognoscente que
emerge da zona do não ser a alimentar-se do ativismo social,
da criação artística e do conhecimento (em algum caso também
da espiritualidade) em vias de revelar, desmantelar e superar a
linha ontológica moderno-colonial. (TORRES-MALDONADO,
2016, p. 94)

A “consciência decolonial acarreta formas de atuar, de ser e de conhecer


que se alimentam dos encontros entre essas áreas” (TORRES-MALDONADO,
2016, p. 94). É uma consciência que surge a partir do questionamento e da
desconstrução da lógica moderno-colonial e impulsiona a atitude decolo-
nial, favorecendo o pensamento crítico e criativo diante de teorias, concei-
tos e práticas anteriores (eurocentradas).

É, por exemplo, a partir da atitude decolonial que o étnico como


conceito é tomado como instrumento para desafiar a boa cons-
ciência do sujeito moderno em seu uso asséptico do conceito. É
também a partir de uma consciência decolonial, comprometida
com a decolonização como projeto e orientada pela atitude deco-
lonial, que as disciplinas e seus métodos aparecem como tecno-
logias a serem desmanteladas, criticadas e usadas em um projeto

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de maior envergadura do que a simples acumulação do conheci-


mento e a consolidação da linha secular moderna. Isto tem prio-
ridade epistêmica, ética e política sobre as artes liberais, sua ati-
tude e seu projeto. (TORRES-MALDONADO, 2016, p. 94)

Tendo em vista esse pensamento, apresento doravante algumas expe-


riências que tenho vivido na docência (seja na formação inicial de pro-
fessores, seja na formação continuada), trabalhando o tema das relações
étnico-raciais e sua intersecção com gênero, adotando como orientação
essa perspectiva.

Consciência decolonial
na formação docente

E
ntre as experiências que tive oportunidade de vivenciar como docente
lecionando disciplinas/cursos sobre diversidades na formação de pro-
fessores, destaco, para reflexão, dois aspectos em particular: (1) o impac-
to que formações sobre relações étnico-raciais (e suas intersecções) pro-
duz à subjetividade da(o)s participantes envolvida(o)s. E esse não é um
dado qualquer. Ainda que tais formações sejam pensadas para produ-
zir uma mudança de perspectiva (reeducação das relações) a depender das
estratégias utilizadas, nem sempre o resultado final é o que se espera-
va. No entanto, percebo que, construindo uma atmosfera adequada, é pos-
sível atingir as subjetividades com potencial para produzir impacto cultu-
ral. Ao final dos encontros de formação, tive oportunidade de testemunhar
vários relatos emocionantes de pessoas negras e não negras que expres-
savam o quanto tinham sido tocadas tanto pelo conhecimento adquirido
quanto pelo modo como este tinha sido transmitido. E (2) a intersecciona-
lidade entre raça e gênero. Nos encontros de formação, algumas mulheres,
especialmente negras e jovens, vinham a mim tecer comentários acerca de
minha formação acadêmica, mas também sobre minha estética,9 destacan-
do esses elementos como referências positivas para si mesmas.
Consciente do que representa ser mulher negra no Brasil, isto é, estar
entre as piores estatísticas nos indicadores sociais, ser vista como obje-

9  Destacavam, sobretudo, o fato de eu manter o cabelo ao natural, isto é, crespo.

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to sexual, serviçal, exótica, insensível à dor, ser arrimo de família e ter de,
constantemente, afirmar sua racionalidade (CARNEIRO, 2003; RIBEIRO,
2018), compreendi que a ação de minhas interlocutoras – de algum modo
– me dizia algo sobre o desejo de saírem desses enquadros destinados às
mulheres negras; o que me fez entender que o empoderamento docente
está atrelado ao empoderamento em outras esferas. Também percebi que
o corpo pode ser um mediador de conhecimento, isto é, um instrumen-
to pedagógico (hooks, 2013) e decolonial. Entendo que esses dois pontos
indicam o cuidado que é preciso ter com a dimensão pedagógica quan-
do se trata da temática diversidades. O que remete à formulação de uma
metodologia que considere essas dimensões, ou seja, as intersecções que
atravessam a docência.
Ao trabalhar com a educação para as relações étnico-raciais, bem
como com sua intersecção com o gênero, um dos grandes desafios é sen-
sibilizar para o tema. Lançar mão da legislação educacional vigente,10
ainda que seja uma estratégia necessária, em minha experiência não tem
se mostrado eficaz como meio suficiente para a sensibilização. Por outro
lado, recorrer apenas a argumentos teóricos (por meio de textos acadê-
micos) para explicar preconceitos e discriminações, embora necessário,
também apresenta seus limites de alcance da subjetividade.
É preciso considerar que o tema do racismo, o preconceito, as dis-
criminações, os estereótipos, embora atuante socialmente – e cada vez
mais contundente – não tem histórico de ser abertamente debatido em
nenhum espaço social, nem mesmo na Educação. De modo que, quando
se tem uma tentativa de fazê-lo, esta é fatalmente marcada pela ausência
do diálogo em favor da imposição de sistemas cognitivos binários e anta-
gônicos. De modo geral o indivíduo reproduz em seus posicionamen-
tos pessoais a mesma lógica que lhe foi ensinada no âmbito social/global.
Não raramente o ambiente é tomado pela atmosfera de conflitos e intole-
rância, o que elimina a possibilidade de empatia e diálogo.
Para quebrar esse histórico tenho recorrido a um método inspirado no

10  A importância dessa legislação (entendida como legislação antirracista) deve ser reafirmada
constantemente, dado seu papel na construção de uma sociedade que saiba conviver e aprender com a
diversidade étnico-racial. Não é demais assinalar que essa legislação foi concebida como uma resposta
aos movimentos sociais, sobretudo negros e indígenas, que constantemente denunciam os processos
desumanizadores também reproduzidos pela educação escolar, além de enfrentarem esse cenário
com ações práticas, como registram a produção de Núcleos de Estudos Afro-brasileiros (NEAB) e
instituições como UNIAFRO, entre outras.

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afro-brasileira: uma perspectiva identitária na educação escolar
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conhecimento de populações tradicionais (herança africana e ameríndia


que trago como legado ancestral). Trata-se do estímulo ao diálogo fran-
co, mas terno e acolhedor, das diferenças num contexto em que os envol-
vidos desejem aprender conjuntamente, isto é, com o outro. bell hooks,11
ao refletir sobre formas insurgentes de educar para a liberdade, também
observa essa dimensão quando chama a atenção para a necessidade de se
formar “comunidade de aprendizagem”, isto é, “criar um contexto comu-
nitário para o aprendizado” (hooks, 2013, p. 212).
Compreendi que atingir o universo do sensível é uma estratégia neces-
sária. O primeiro passo se constrói num movimento que busca entender
o que a(o)s estudantes já conhecem sobre o assunto em pauta. Conseguir
que falem é o desafio nesse momento. Por se tratar de temas quase sem-
pre vistos como tabus (raça e gênero), tenho observado que a construção
de um ambiente seguro é fundamental. A “comunidade de aprendizagem”
a que me refiro tem a ver com um contexto educacional (que vai além do
ambiente físico) construído pelos envolvidos com a aprendizagem, e para
estes. Não é algo preestabelecido, mas um processo que parte do reco-
nhecimento do “Outro” como fonte de conhecimento e sabedoria ancestral.
Implicar-se é necessário. Essa etapa ocorre por meio da partilha de vivên-
cias pessoais sobre o tema em foco. Inicio esse processo contando minhas
experiências com o racismo e vou refletindo-as tendo por base o conteúdo
teórico estudado. Tenho lançado mão de textos produzidos por intelectuais
e pesquisadora(e)s negra(o)s, sobretudo, uma estratégia de enfrentamen-
to da colonialidade epistêmica. Aos poucos ocorre a empatia e outras vozes
vão se fazendo ouvir, trazendo também suas experiências.
A docente, escritora e feminista negra bell hooks nos aponta a postura
que é preciso ter quando se deseja educar para a liberdade.

Para começar, o professor precisa valorizar de verdade a pre-


sença de cada um. Precisa reconhecer permanentemente que
todos influenciam a dinâmica da sala de aula, que todos contri-
buem. Essas contribuições são recursos. Usadas de modo cons-
trutivo, elas promovem a capacidade de qualquer turma de criar
uma comunidade aberta de aprendizado. (hooks, 2013, p. 18)

11  Gloria Jean Watkins, cujo pseudônimo é bell hooks, escrito com letras minúsculas, como prefere
essa autora.

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A concepção de “comunidade aberta de aprendizagem” é muito cara à


metodologia que defendo. Identificar o que é “comum” a todos é o ponto
de partida para sua construção. Devemos partir do fato de que – dian-
te das diversidades –, para dialogarmos, temos de procurar o que nos é
comum, por exemplo, a condição humana e sua capacidade de mudança.
Partindo desse pressuposto, busco compartilhar minhas experiên-
cias pessoais que dizem respeito às diversidades de maneira sincera e
consciente do processo pedagógico. O que tem se mostrado muito eficaz
para estimular a troca de vivências que acabam por emergir como um
ato de empatia e solidariedade. Num contexto que se assemelha a uma
catarse coletiva, surge um movimento de pensar conjuntamente e ana-
lisar o fenômeno discutido não de modo pessoal (individual), mas cole-
tivo e na coletividade. Nessa conexão dialógica e que imprime signifi-
cado ao conteúdo teórico, vamos nos conhecendo de maneira profunda,
pois não raro as falas são entrecortadas por silêncios reflexivos que, por
vezes, comovem a toda(o)s e estimulam o questionamento sobre a rea-
lidade imediata.
Tem se tornado recorrente escutar questões do tipo: “Por que isso
acontece, professora?”, “Por que temos tanto racismo e discrimina-
ção?”, “Por que não posso ser quem eu sou de verdade?”. Desse modo, a
explicação surge da necessidade de entender a realidade que os cerca e
os atravessa. Ao despertar a vontade de saber, parto para outra etapa:
recorro a um recurso de ensino muito antigo utilizado em sociedades de
tradição oral: o ensino por meio do recurso da narração.
Do ponto de vista do conteúdo teórico, sempre que possível utilizo
textos históricos narrados em primeira pessoa, buscando trazer à tona
a experiência contada por quem a viveu. Outro recurso que utilizo é o
de apresentar análises que visam apontar para diferentes perspectivas
sobre a história que nos foi ensinada. Para tanto, utilizo textos de lite-
ratura (poesias, romances históricos, cordéis, letras de música) e ain-
da depoimentos disponíveis em vídeos, documentários, entre outros
recursos. As leituras são “dramatizadas” (recurso que encontrei para “dar
vida” aos personagens históricos a fim de que possamos senti-los mais
próximos). O esforço tem por objetivo mobilizar os sentidos, produzin-

> O potencial de práticas


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do outros caminhos para se aprender, além de apresentar perspectivas


teóricas não eurocêntricas.
Colocar-se no lugar do “Outro”, saber conhecer esse “Outro” a par-
tir de sua visão de mundo narrada pela própria pessoa, tem ajudado a
reconhecer e a entender o conceito de alteridade. Como explicitado,
recursos audiovisuais, narração de experiências leituras compartilha-
das têm se mostrado instrumentos importantes que contribuem para
alcançar o que há de sensível em cada ser. Assim, conceitos árduos vão
saindo do papel e se apresentando na fala e na escrita de estudantes ao
narrar (e avaliar) as experiências proporcionadas pelos encontros.
Observei expressivo progresso em relação à capacidade de escuta e
diálogo que rompe com diferenças de gênero, raça, classe e geracional.
Essa metodologia que venho aplicando considera estimular momentos
de produção criativa por parte da(o)s participantes. Destaco aqui expe-
riências que tive quando atuava como docente num curso de Pedagogia.
Na ocasião, desenhei o programa da disciplina de modo que a(o)s estu-
dantes pudessem ter momentos de conhecimento teórico para que,
posteriormente, pudessem apresentar propostas didáticas práticas de
intervenção em relação aos temas trabalhados (diversidade étnico-ra-
cial e de gênero na Educação).
De modo geral, as turmas, depois de terem passado pelas etapas de
formação teórica a partir da metodologia que aqui apresento, reuniam-
-se em pequenos grupos para atender à proposta por mim lançada de
pensar e desenvolver estratégias de ensino antirracistas inovadoras que
fossem aplicáveis em diferentes realidades educacionais. A(o)s estu-
dantes demonstraram excelente capacidade crítico-criativa, produzin-
do – a partir de suas habilidades pessoais – estratégias como: jogos de
tabuleiro; intervenções teatrais e de flash mob; saraus; paródias; decla-
mação de poemas de resistência; elaboração de poemas durante os
encontros de formação; cordéis, livros infantis para contação de his-
tória; programas de entrevistas; histórias em quadrinhos (em parceria
com outras disciplinas). Ao apresentarem suas produções, sentiam-se
realizados. Na temática gênero e Educação, destaco exercício de análise
realizado em materiais já disponíveis no mercado.
São esses alguns exemplos, entre muitas outras práticas desenvol-
vidas por estudantes dessa “comunidade de aprendizado” construída

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para aprender-ensinar sobre as Diretrizes Curriculares Nacionais para


a Educação Escolar Indígena; as Diretrizes Curriculares Nacionais para
a Educação Escolar Quilombola; as Diretrizes Curriculares Nacionais
para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História
e Cultura Afro-Brasileira e Africana; os Parâmetros Curriculares
Nacionais: pluralidade cultural, orientação sexual; e os Parâmetros
Curriculares Nacionais: apresentação dos temas transversais, Ética.
Seguem fotos de alguns dos trabalhos realizados:

Jogo de tabuleiro para ensinar sobre as Diretrizes Curriculares


Nacionais para a Educação Escolar Quilombola. Produção discente12

12  Fonte: https://www.facebook.com/pg/pedagogiafho/photos/?ref=page_internal.


Acesso em: 2 jun. 2020.

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Jogo de tabuleiro, guarda-chuva para contação de história, varal de cordéis. Materiais pro-

duzidos com base nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Indígena,

as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola e as Diretrizes

Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de

História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Produção discente.13

13  Fonte: https://www.facebook.com/pg/pedagogiafho/photos/?ref=page_internal.


Acesso em: 2 jun. 2020.

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No momento de autoavaliação e avaliação da disciplina, os relatos


expressavam o quanto a experiência foi formadora, o quanto contribuiu para
alterar a percepção dos estudantes sobre si e sobre as demais pessoas. Alguns
relatos14 destacaram o impacto causado por depoimentos de colegas que
sofreram racismo e outras formas de discriminação. A experiência de supera-
ção de dificuldades de convivência em prol de uma atitude antirracista (para
reeducar as relações) também me chamou a atenção nos relatos. Lembro-me
de falas que ressaltavam a mudança de visão sobre si e sobre sua sociedade
(ver beleza em seu fenótipo e cultura), o que aponta para o início de um pro-
cesso de decolonização do ser. Não raro destacava-se, ainda nos relatos, que
tal experiência de formação seria lembrada quando exercessem a docência.
Houve ainda quem me procurasse para contar que já havia exercitado o que
aprendera no contexto dos estágios que realizava. Para alguns e algumas, o
processo de formação se desdobrou também em vontade de pesquisar o tema,
originando assim Trabalhos de Conclusão de Curso (TCC).
Entendo que, de modo geral, os exemplos aqui compartilhados con-
seguem ilustrar o despertar da consciência decolonial dos participantes,
isto é, a desnaturalização de opressões sociais como o racismo e a toma-
da de atitude decolonial impulsionando novos projetos (que conside-
re outros saberes, advindos, inclusive, da experiência de vida dos sujeitos
subalternizados pela lógica moderna) para promover a educação antir-
racista como ferramenta de mudança social. Essas experiências apontam
para o fato de que os indivíduos, ao terem contato com projetos educa-
cionais que partam do pressuposto de decolonização do ser, do poder, do
saber, podem responder de maneira muito criativa e apresentar respostas
aos problemas sociais que nos aflingem.

À guisa de conclusão

E
sta reflexão partiu da seguinte indagação: é possível expandir o
potencial da legislação antirracista? Os exemplos arrolados e discuti-
dos apontam que sim. A legislação antirracista pode ser o ponto de parti-
da para uma mudança epistemológica (da perspectiva eurocêntrica para a
decolonial) e, consequentemente, cultural.

14  Na ocasião não solicitei autorização para publicação dos relatos. Por esse motivo, não faço
referência direta. Estou me valendo da leitura atenta que fiz de cada um deles.

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Os espaços de formação docente (inicial e/ou continuada) são luga-


res privilegiados para tanto. Para que isso seja possível, é necessário, no
entanto, partir de uma metodologia que seja capaz de acessar as subjeti-
vidades e despertar a consciência decolonial e produzir atitude decolonial.
Nesse caminho é fundamental, para além da obtenção do conhecimen-
to teórico, que se desenvolva uma pedagogia comprometida com valores
legados pela sabedoria ancestral dos diversos povos que compõem nos-
so país (e não apenas de um deles). Com tal propósito apresentei, ao longo
deste texto, uma proposta metodológica que venho aplicando e que enten-
do ser passível de ser adaptada e aplicada em diferentes contextos de for-
mação, desde que se organize a partir dos fundamentos que seguem:
1  entender o papel da educação como instrumento para expan-
são do potencial humano (desenvolvimento das diversas
competências) com o objetivo de formar para o saber conviver
(viver com);
2  construir uma “comunidade aberta de aprendizado” (hooks,
2013). Para que isso ocorra é fundamental ter consciência de
si e do “Outro” (de suas dificuldades, medos, experiências,
características...). Partir da concepção de que toda(o)s são
capazes de aprender e ensinar;
3 interessar-se pelas pessoas e reconhecer-se nelas;
4 interagir com sua história e com a dos envolvidos (entender
suas experiências como instrumento pedagógico); e
5 utilizar a dimensão criativa (a partir do potencial de cada
um) para aproximar conceitos teóricos. Caminhar do plano
da informação à formação.

É possível “in-surgir”, isto é, surgir de dentro da estrutura cristalizada,


desde que haja atitude para tanto. Essa atitude pode partir de uma pessoa,
mas sua efetivação certamente está atrelada a outras pessoas que acre-
ditem na mudança e na capacidade de desenvolvimento humano a par-
tir da convivência com as diversidades. Promover ações que façam fren-
te à “atitude moderno-colonial” (TORRES-MALDONADO, 2016) é dever de
todos e todas, mas, sobretudo, de quem se compromete com a formação.
O que foi aqui apresentado reforça, ao meu ver, a importância e o poten-
cial inerente em projetos decolonizadores, sobretudo no campo educacio-

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nal. Indica ainda um duplo processo: atua tanto na promoção de uma for-
mação docente decolonial quanto na constituição de modos insurgentes de
produzir conhecimentos e de fazer ciência que levem em consideração o
reconhecimento de saberes múltiplos, de conhecimentos tradicionais que
tocam e produzem mudanças e ensinam sobre as diferentes expressões de
ser humano. Por ora penso que é importante salientar que novas formas de
ensinar a conviver são possíveis, o desafio está em construir novos modos
de engendrar conhecimentos que afetem os alunos a ponto de formá-los
significativamente a partir de alicerces mais fortes, porque diversos.

> O potencial de práticas


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