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práticas decoloniais na
formação docente
Resumo
T
endo em vista alargar o potencial da legislação educacional brasi-
leira antirracista e partindo da autorreflexão como docente negra
numa sociedade racista, reflito sobre o potencial da proposta epistemo-
lógica decolonial para o âmbito da Educação e, em especial, à formação
docente. Ao mostrar as estratégias e resultados que venho obtendo para
colocar em prática uma educação nessa perspectiva, delineio e apresento,
como resultado desse percurso, uma proposta metodológica comprome-
tida com a formação antirracista.
Introdução
A
problemática de que trata este artigo é o racismo e, em especial, seu
impacto na Educação. A persistência do racismo na sociedade brasi-
leira ainda é, no século XXI, sentida e contabilizada. Há uma vasta litera-
tura disponível sobre o tema que o aborda de diferentes perspectivas e que
desvela as muitas facetas apresentadas por esse fenômeno desde sua ins-
talação em terras brasileiras.1 Para além do conhecimento teórico acumu-
lado, o protagonismo dos movimentos sociais negros tem marcado a his-
tória nacional chamando a atenção para o fato de o racismo colocar em
xeque a concepção democrática de nossa sociedade. O campo educacional
tem sido apontado, seja por movimentos sociais, seja por estudos acadê-
micos, como importante esfera de atuação de reprodução de uma cultura
racista. O modo como isso se dá tem sido mapeado por importantes estu-
dos (CAVALLEIRO, 2003 e 2004; MUNANGA, 2001; SILVA, 2007 e 2018;
GOMES, 2013), constantemente ampliados por pesquisas em nível de
mestrado e doutorado desenvolvidas nas principais instituições de ensino
superior do país, além de por análises independentes.
Tais estudos assinalam as diferentes estratégias pelas quais o racismo
se reproduz dentro do ambiente escolar. O material didático, as relações
interpessoais, a negação dos conhecimentos tradicionais e dos saberes
culturais em prol da afirmação do currículo eurocêntrico,2 as estratégias
para silenciar a vítima de racismo são alguns exemplos. Os efeitos tam-
bém são conhecidos e se traduzem em tratamento diferenciado por par-
te do(a)s professor(a)s em relação aos aluno(a)s negro(a)s, o que, por
sua vez, impacta a trajetória acadêmica desses indivíduos, produzindo
maior índice de evasão escolar – em comparação com alunos brancos –
e maior dificuldade em construir uma autoimagem afirmativa. No con-
junto, esse quadro resulta na dificuldade de mobilidade social, cujos
efeitos são sentidos por gerações (CARVALHO, 2005; LOUZANO, 2013;
JESUS, 2018).
1 Silva (2020) apresenta um panorama dessa literatura a partir de seu esforço em entender como
parte da intelectualidade nacional do final do século XIX até as primeiras décadas do século XX lidou
com as diferentes teorias raciais a que teve acesso. A autora ainda destaca como tal debate influenciou
o campo da Educação no Brasil.
2 Relativo ao eurocentrismo, conceito entendido aqui como: “(...) uma específica racionalidade ou
perspectiva de conhecimento que se torna mundialmente hegemônica colonizando e sobrepondo-se a
todas as demais, prévias ou diferentes, e a seus respectivos saberes concretos, tanto na Europa como
no resto do mundo” (QUIJANO, 2005, p. 126).
3 Nesse sentido, o Prêmio Educar para a Igualdade Racial e de Gênero, promovido pelo Centro
de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT), tem cumprido papel fundamental,
sobretudo pela perenidade e pelo apoio à implementação efetiva dessa ação afirmativa.
4 Aproveito este momento para agradecer aos colegas docentes, gestores e, especialmente, aos
estudantes que frequentaram meus cursos de formação e construíram comigo esse caminho em prol de
uma Educação mais humanizada e transformadora. Fica aqui meu reconhecimento e gratidão pelo que
me ofereceram.
O processo de formação
D
urante meu percurso na educação básica pública, em escolas da
periferia de São Paulo, tive muitos colegas afrodescendentes, mas
apenas dois professores (uma professora e um professor). Anos mais tar-
de, já na universidade pública, me dei conta de ser minoria naquele espa-
ço (do grupo de cerca de 30 alunas e alunos, havia eu e mais um colega
negros). Porém, o que mais me impactou foi passar por toda a graduação
e ter tido somente – e novamente – dois professores negros (dessa vez,
só homens). Fiz daquele fato motivação para pesquisa em nível de mes-
trado e doutorado (SILVA, 2008; 2016).
Desde a graduação tenho me dedicado a entender as configurações que
moldam as relações étnico-raciais em nossa sociedade a ponto de ensejar
modos de ser para negros e não negros. Ao pesquisar, ler, conversar e aprender
sobre esse tema, compreendi melhor a intersecção entre minha identidade e a
da sociedade brasileira. Passei a sentir necessidade de compartilhar o conheci-
mento adquirido e, por essa razão, tenho me envolvido em diferentes projetos
de formação de professor(a)s dentro da temática das relações étnico-raciais,
atuando desde o ensino básico ao superior (na esfera pública e privada).
Em quase duas décadas de formação e trabalho na temática da diver-
sidade, tenho observado crescer a dificuldade em quebrar a lógica de for-
mação eurocêntrica que, não por acaso, atravessa as experiências dos
indivíduos, dando-lhes um sentido cognitivo e identitário. Nesse qua-
dro, o que ganha relevância não são os valores humanos, mas a posse do
poder. Formar seres humanos cientes de suas capacidades e responsabi-
lidades perante o mundo não tem sido uma característica de nossa socie-
dade, ao contrário, a lógica da instrução em detrimento da formação é
o que tem imperado na família, na escola, no trabalho, nas mídias, nas
comunidades virtuais. A síntese dessa lógica está na exigência do “con-
teúdo mínimo”, mas também na linguagem empobrecida dos emojis, no
“limite de caracteres” para expressar o pensamento e na economia das vir-
tudes. Esse é um problema presente em todos os países – ainda que em
diferentes graus –, e não chegamos a esse ponto por acaso.
Como nos ensina Aníbal Quijano (2005; 2017), há uma conexão entre
as ideias de modernidade, raça e gênero. Essa relação também é notada
por Torres-Maldonado, que a exprime da seguinte forma:
6 A esse respeito, ver reflexão apresentada por Djamila Ribeiro. O pacto branco e a maldição da
mediocridade. Folha de S. Paulo, 6 maio 2019.
P
artindo da compreensão de que a própria concepção de modernidade
que nos orienta está implicada com o processo colonial e seu legado,
tem crescido o movimento que chama a atenção para a necessidade de crí-
tica e de mudança de atitude diante das instituições modernas e os valo-
res que propagam. As lutas em prol da descolonização ainda ecoam mundo
afora. Há, no entanto, uma compreensão de que é preciso ir além. O con-
ceito de decolonização tem guiado a reflexão nesse sentido.
nial, como que fuera posible que sus patrones y huellas desistan
de existir. La intención, más bien, es señalar y provocar un posi-
cionamiento – una postura y actitud continua – de transgre-
dir, intervenir, in-surgir e incidir. Lo decolonial denota, enton-
ces, un camino de lucha continuo en el cual podemos identificar,
visibilizar y alentar “lugares” de exterioridad y construcciones
alternativas. (WALSH, 2009, p. 15-16)
Consciência decolonial
C
ompreendo que o modo pelo qual tem se estruturado o ensino supe-
rior brasileiro (num processo constante de burocratização e reprodu-
ção de teorias e métodos “em voga”) tem dificultado desenvolver a forma-
ção integral dos estudantes e, consequentemente, impactado a formação
dos profissionais que atuam na sociedade. Não cabe aqui pormenorizar
as diversas causas que ajudam a explicar esse fenômeno, mas certamente
estão relacionadas com o pensamento moderno-colonial já aqui discutido.
Observa Maldonado-Torres (2006) que a academia se faz por dis-
ciplinas e métodos impregnados da visão moderna-colonial na qual há
uma defesa da “linha ontológica colonial”, o que explica estratégias para
a reprodução de hierarquias. Em nossa sociedade, pensemos no racismo
institucional, na branquitude, na discriminação de gênero, classe, orien-
tação sexual, entre outras violências que se localizam e são reiteradas
nesses espaços7 (SILVA, 2020; MÜLLER e CARDOSO, 2017).
Uma proposta para romper com essa lógica seria tecer novas epis-
temologias, novas pedagogias e metodologias capazes de afetar essas
estruturas calcificadas. Nesse sentido, irromper com métodos disciplina-
res é fundamental, e o caminho pode ser por meio da “transdisciplinari-
dade decolonial”, como assinala Nelson Maldonado-Torres:
7 Para exemplificar esse fato, cito a pesquisa Interações na USP, empreendida pelo Escritório USP
Mulheres (durante o período de 2017 e 2018), que mapeou, por meio da percepção do(a)s estudantes
da instituição, as diversas experiências de violências e discriminações vivenciadas no ambiente
universitário. A respeito, ver: Para mais da metade dos estudantes, USP é machista e racista. Disponível
em: https://jornal.usp.br/universidade/para-mais-da-metade-dos-estudantes-usp-e-machista-e-
racista/. Acesso em: 26 jul. 2019.
8 Remete à ideia de superar, também, as marcações de gênero presentes no poder, no saber e no ser.
Consciência decolonial
na formação docente
E
ntre as experiências que tive oportunidade de vivenciar como docente
lecionando disciplinas/cursos sobre diversidades na formação de pro-
fessores, destaco, para reflexão, dois aspectos em particular: (1) o impac-
to que formações sobre relações étnico-raciais (e suas intersecções) pro-
duz à subjetividade da(o)s participantes envolvida(o)s. E esse não é um
dado qualquer. Ainda que tais formações sejam pensadas para produ-
zir uma mudança de perspectiva (reeducação das relações) a depender das
estratégias utilizadas, nem sempre o resultado final é o que se espera-
va. No entanto, percebo que, construindo uma atmosfera adequada, é pos-
sível atingir as subjetividades com potencial para produzir impacto cultu-
ral. Ao final dos encontros de formação, tive oportunidade de testemunhar
vários relatos emocionantes de pessoas negras e não negras que expres-
savam o quanto tinham sido tocadas tanto pelo conhecimento adquirido
quanto pelo modo como este tinha sido transmitido. E (2) a intersecciona-
lidade entre raça e gênero. Nos encontros de formação, algumas mulheres,
especialmente negras e jovens, vinham a mim tecer comentários acerca de
minha formação acadêmica, mas também sobre minha estética,9 destacan-
do esses elementos como referências positivas para si mesmas.
Consciente do que representa ser mulher negra no Brasil, isto é, estar
entre as piores estatísticas nos indicadores sociais, ser vista como obje-
to sexual, serviçal, exótica, insensível à dor, ser arrimo de família e ter de,
constantemente, afirmar sua racionalidade (CARNEIRO, 2003; RIBEIRO,
2018), compreendi que a ação de minhas interlocutoras – de algum modo
– me dizia algo sobre o desejo de saírem desses enquadros destinados às
mulheres negras; o que me fez entender que o empoderamento docente
está atrelado ao empoderamento em outras esferas. Também percebi que
o corpo pode ser um mediador de conhecimento, isto é, um instrumen-
to pedagógico (hooks, 2013) e decolonial. Entendo que esses dois pontos
indicam o cuidado que é preciso ter com a dimensão pedagógica quan-
do se trata da temática diversidades. O que remete à formulação de uma
metodologia que considere essas dimensões, ou seja, as intersecções que
atravessam a docência.
Ao trabalhar com a educação para as relações étnico-raciais, bem
como com sua intersecção com o gênero, um dos grandes desafios é sen-
sibilizar para o tema. Lançar mão da legislação educacional vigente,10
ainda que seja uma estratégia necessária, em minha experiência não tem
se mostrado eficaz como meio suficiente para a sensibilização. Por outro
lado, recorrer apenas a argumentos teóricos (por meio de textos acadê-
micos) para explicar preconceitos e discriminações, embora necessário,
também apresenta seus limites de alcance da subjetividade.
É preciso considerar que o tema do racismo, o preconceito, as dis-
criminações, os estereótipos, embora atuante socialmente – e cada vez
mais contundente – não tem histórico de ser abertamente debatido em
nenhum espaço social, nem mesmo na Educação. De modo que, quando
se tem uma tentativa de fazê-lo, esta é fatalmente marcada pela ausência
do diálogo em favor da imposição de sistemas cognitivos binários e anta-
gônicos. De modo geral o indivíduo reproduz em seus posicionamen-
tos pessoais a mesma lógica que lhe foi ensinada no âmbito social/global.
Não raramente o ambiente é tomado pela atmosfera de conflitos e intole-
rância, o que elimina a possibilidade de empatia e diálogo.
Para quebrar esse histórico tenho recorrido a um método inspirado no
10 A importância dessa legislação (entendida como legislação antirracista) deve ser reafirmada
constantemente, dado seu papel na construção de uma sociedade que saiba conviver e aprender com a
diversidade étnico-racial. Não é demais assinalar que essa legislação foi concebida como uma resposta
aos movimentos sociais, sobretudo negros e indígenas, que constantemente denunciam os processos
desumanizadores também reproduzidos pela educação escolar, além de enfrentarem esse cenário
com ações práticas, como registram a produção de Núcleos de Estudos Afro-brasileiros (NEAB) e
instituições como UNIAFRO, entre outras.
11 Gloria Jean Watkins, cujo pseudônimo é bell hooks, escrito com letras minúsculas, como prefere
essa autora.
Jogo de tabuleiro, guarda-chuva para contação de história, varal de cordéis. Materiais pro-
duzidos com base nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Indígena,
À guisa de conclusão
E
sta reflexão partiu da seguinte indagação: é possível expandir o
potencial da legislação antirracista? Os exemplos arrolados e discuti-
dos apontam que sim. A legislação antirracista pode ser o ponto de parti-
da para uma mudança epistemológica (da perspectiva eurocêntrica para a
decolonial) e, consequentemente, cultural.
14 Na ocasião não solicitei autorização para publicação dos relatos. Por esse motivo, não faço
referência direta. Estou me valendo da leitura atenta que fiz de cada um deles.
nal. Indica ainda um duplo processo: atua tanto na promoção de uma for-
mação docente decolonial quanto na constituição de modos insurgentes de
produzir conhecimentos e de fazer ciência que levem em consideração o
reconhecimento de saberes múltiplos, de conhecimentos tradicionais que
tocam e produzem mudanças e ensinam sobre as diferentes expressões de
ser humano. Por ora penso que é importante salientar que novas formas de
ensinar a conviver são possíveis, o desafio está em construir novos modos
de engendrar conhecimentos que afetem os alunos a ponto de formá-los
significativamente a partir de alicerces mais fortes, porque diversos.
Referências bibliográficas
BRASIL. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações
Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e
Africana. In: BRASIL. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação
Básica: diversidade e inclusão. Brasília: Conselho Nacional de Educação:
Ministério da Educação, SECADI, 2013.
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nio de los pueblos afrodescendentes. Ciudad Autónoma de Buenos Aires:
CLACSO, 2017.