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JAMES CLIFFORD

Universidade Federal do Rio de Janeiro

Reitor
Aloisio Teixeira
O O O
Vice-Reitora
Sylvia Vargas A EXPERI Ê NCIA ETNOGR Á FICA
Fó rum de Ci ência e Cultura í
antropologia e literatura no século XX
Coordenadora
O O O
Beatriz Resende

Editora UFRJ Organizaçao e revisão técnica de


Diretor José Reginaldo Santos Gonçalves
Carlos Nelson Coutinho
Coordenação de Edição de Texto
Lisa Stuart
Coordenadora de Produção
Janise Duarte
Conselho Editorial
Carlos Nelson Coutinho ( presidente) .
Charles Pessanha
Diana Maul de Carvalho
José Luis Fiori
José Paulo Netto
Leandro Konder
Virgínia Fontes
3a EDI ÇÃ O
EDITORA UFRJ
2008
K

SOBRE A
:
AUTORIDADE ETNOGRÁ FICA

Ui
_
Clifford considera como seus nativos, assim como seus informantes
[ .] os antropólogos {...]. Estamos sendo observados e inscritos.
-
Paul Rabinow, Representations are socialfacts.

O frontisp ício de 1724 do livro Moeurs des sauvages améri -


gws ,
cains do padre Lafitau , retrata o etnógrafo como uma jovem mulher
sentada numa escrivaninha em meio a objetos do Novo Mundo, da
Grécia Clássica e do Egito. Ela está acompanhada por dois querubins

que ajudam na tarefa de comparação e pela barbuda personagem

do Tempo, que aponta para uma cena que representa a fonte pri-
mordial da verdade brotando da pena do escritor. A imagem para
a qual a jovem mulher dirige seu olhar é a de um conjunto de nu-
vens onde estão Adão, Eva e a serpente. Acima deles estão o homem
e a mulher redimidos do Apocalipse, de cada lado de um triâ ngulo
que irradia luz e ostenta a inscri ção Yahweh, em alfabeto hebraico .
J á em Os argonautas do Pacífico Ocidental, de Malinowski , o
frontisp ício é uma fotografia com o t ítulo “ Um ato cerimonial do
kula”. Um colar de conchas está sendo oferecido a um chefe tro-
briandês, que está de pé na porta de sua casa. Atrás do homem que
presenteia o colar está uma fileira de seis jovens, curvados em re-
verência, um dos quais sopra uma concha. Todas as personagens estão
de perfil, com a aten ção aparentemente concentrada no rito da tro-
ca, um evento importante na vida melanésia. Mas a um olhar mais
atento parece que um dos trobriandeses que se curvam está olhando
para a camera.
n
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O A E X P E R I Ê N C I A E T N O G RÁF I C A O

A alegoria de Lafitau é menos familiar: seu autor transcreve, Este mundo amb íguo , multivocal , torna cada vez mais dif ícil con -
nã o cria. Diferentemente da foto de Malinowski , a gravura n ão faz ceber a diversidade humana como culturas independentes, delimi-

nenhuma referência à experiência etnográfica apesar dos cinco anos tadas e inscritas. A diferen ça é um efeito de sincretismo inventivo.
de pesquisa de Lafitau entre os moicano, uma pesquisa que lhe gran - Recentemente, trabalhos como o de Edward Said - Orientalism
jeou um lugar de honra entre os pesquisadores de campo de qual- (1978a) - e o de Paulin Hountondji - Sur la “philosophic" africaine
quer geração. Seu relato é apresentado n ão como um produto de J1
(

(1983) levantaram d ú vidas radicais sobre os procedimentos pelos
observa çã o de primeira mã o, mas como um produto da escrita em i quais grupos humanos estrangeiros podem ser representados, sem
I um gabinete repleto de objetos. O frontisp ício de Os argonautas, co-
mo toda fotografia , afirma uma presença —
a da cena diante das
propor, de modo definido e sistem á tico, novos m é todos ou episte-
mologias. Tais estudos sugerem que, se a escrita etnográfica naõ
; —
lentes; e sugere também outra presen ça a do etnógrafo elaborando pode escapar inteiramente do uso reducionista de dicotomias e
: arivamente esse fragmento da realidade trobriandesa. O sistema de essências, ela pode ao menos lutar conscientemente para evitar re-
troca kula , tema do livro de Malinovwski, foi transformado em al - presentar “outros” abstratos e a-hist ó ricos. E mais do que nunca
go perfeitamente visível, centrado numa estrutura de percepção, en - crucial para os diferentes povos formar imagens complexas e con -
quanto o olhar de um dos participantes redireciona nossa aten çã o cretas uns dos outros, assim como das relações de poder e de conhe-
para o ponto de vista do observador que, como leitores, partilhamos cimento que os conectam; mas nenhum m étodo cient ífico soberano
com o etn ó grafo e sua camera. O modo predominante e moderno ou instâ ncia ética pode garantir a verdade de tais imagens. Elas são
: de autoridade no trabalho de campo é assim expresso: “ Você está —
elaboradas a cr ítica dos modos de representação colonial pelo me-
lá... porque eu estava l á ”.
f —
nos demonstrou bem isso a partir de relações hist ó ricas específicas
de domina ção e di á logo.
Este estudo traça a formação e a desintegração da autoridade
etnográfica na antropologia social do século XX. N ão é uma explica- As experiê ncias de escrita etnogr áfica analisadas neste texto
çã o completa , nem está baseada numa teoria plenamente desenvol- não seguem nenhuma direção claramente reformista ou evolução.
vida da interpreta ção e da textualidade etnográfica. 1 Os contornos Elas são invenções ad hoc, e não podem ser encaradas em termos de
de tal teoria são problem á ticos, uma vez que a prá tica de represen - uma análise sistemá tica da representa ção pós-colonial. Elas são tal-
ta çã o intercultural está hoje mais do que nunca em xeque. O dile- vez melhor compreendidas como componentes daquela “caixa de fer-
ma atual está associado à desintegração e à redistribui çã o do poder ramentas” da teoria engajada sugerida por Gilles Deleuze e Michel
colonial nas d écadas posteriores a 1950, e às repercussões das teo- Foucault :
rias culturais radicais dos anos 1960 e 1970 . Após a reversã o do
A noção de teoria como uma espé cie de caixa de ferramentas
olhar europeu em decorrê ncia do movimento da “negritude” , ap ós § significa: 1) que a teoria a ser constru ídan ão é um sistema , mas sim
a crise de conscience da antropologia em rela ção a seu status liberal um instrumento, uma l ógica da especificidade das rela ções de poder
no contexto da ordem imperialista , e agora que o Ocidente n ão po- e das lutas em torno delas; 2) que esta investigação só pode se desen -
de mais se apresentar como o ú nico provedor de conhecimento antro- volver passo a passo na base da reflex ão (que será necessariamente
pológico sobre o outro , tornou -se necessá rio imaginar um mundo histórica em alguns de seus aspectos) sobre determinadas situações.
( Foucault , 1980, p . 145: ver també m 1977 , p. 208)
de etnografia generalizada. Com a expansão da comunica çã o e da
influ ê ncia intercultural , as pessoas interpretam os outros, e a si mes- Podemos contribuir para uma reflexão prá tica sobre a repre-
mas , numa desnorteante diversidade de idiomas

uma condi ção
global que Mikhail Bakhtin ( 1981 b) chamou de “ heteroglossia” .2
I intercultural fazendo um inventário das melhores, ainda
senta ção
que imperfeitas , abordagens dispon íveis. Destas, b trabalho de

o 18 c> c> 19 o
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campo etnográ fico permanece corno um m é todo notavelmente Jr., 1983) . Apesar disso , em meados da d écada de 1930 j á se po-
sensível. A observação participante obriga seus praticantes a expe- de falar de um consenso internacional em desenvolvimento: as abs-
rimentar, tanto em termos físicos quanto intelectuais , as vicissitudes traçõ es antropoló gicas , para serem v álidas, deviam estar baseadas ,
da tradução. Ela requer um á rduo aprendizado lingu ístico, algum sempre que possível , em descri çõ es culturais intensivas feitas por
grau de envolvimento direto e conversação, e frequentemente um acadêmicos qualificados. Neste momento, o novo estilo havia se
“desarranjo” das expectativas pessoais e culturais. É claro que h á tornado popular, sendo institucionalizado e materializado em pr á -
um mito do trabalho de campo. A experi ê ncia real , cercada como ticas textuais específicas.
é pelas contingê ncias, raramente sobrevive a esse ideal ; mas como
JL Recentemente, tornou -se possível identificar e assumir urna
meio de produzir conhecimento a partir de um intenso envolvi- m certadistâ ncia em rela çã o a essas conven çõ es.4 Se a etnografia produz
mento intersubjetivo, a pr á tica da etnografia mant é m um certo
interpreta ções culturais mediante intensas experiências de pesquisa ,
status exemplar. Além disso, se o trabalho de campo foi durante
como uma experiê ncia incontrolá vel se transforma num relato es-
algum tempo identificado com uma disciplina singularmente oci - crito e legítimo ? Como, exatamente, um encontro intercultural lo-
dental e uma ciê ncia totalizante, a “antropologia”, tais associações
quaz e sobredeterminado, atravessado por relações de poder e pro-
não sã o necessariamente permanentes. Os atuais estilos de descri ção
pósitos pessoais, pode ser circunscrito a uma versão adequada de
cultural são historicamente limitados e estão vivendo importantes um “outro mundo” mais ou menos diferenciado, composta por
metamorfoses. um autor individual ?
O desenvolvimento da ciê ncia etnográ fica não pode, em ú l Analisando esta complexa transformação , deve-se ter em men -
tima an á lise, ser compreendido separado de um debate pol ítico o fato de que a etnografia está, do começo ao fim , imersa na escri-
- te
epistemol ógico mais geral sobre a escrita e a representa ção da alte- ta. Esta escrita inclui , no m í nimo, uma tradu ção da experiê ncia
ridade. Nesta discussão, por é m , mantive o foco na antropologia . para a forma textual . O processo é complicado pela açã o de m ú lti -
profissional , e especificamente na etnografia a partir da década de plas subjetividades e constrangimentos pol íticos que estã o acima

1950.3 A atual crise ou melhor, dispersã o — da autoridade etno-
gráfica torna possível marcar em linhas gerais u m per íodo, limitado S.
do controle do escritor. Em resposta a estas for ças, a escrita etno-
gráfica encena uma estratégia específica de autoridade. Essa estra-
pelos anos de 1900 e 1960 , durante o qual uma nova concep ção tégia tem classicamente envolvido uma afirmação, n ã o questionada,
de pesquisa de campo se estabeleceu como a norma para as antropo - no sentido de aparecer como a provedora da verdade no texto.
logias americana e europé ia. O trabalho de campo intensivo, rea- Uma complexa experiê ncia cultural é enunciada por um indivíduo :
lizado por especialistas treinados na universidade, emergiu como i We , the Tikopia, de Raymond Firth ; Nous avons mangé la forêt , de
uma fonte privilegiada e legitimada de dados sobre povos ex ó ticos. Georges Condominas; Corning of age in Samoa , de Margart Mead;
.
N ão se trata aqui da dominâ ncia de um ú nico método de pesquisa ,
í r-
'
Os nuer , de E. E. Evans-Pritchard .
( Compare-se Griaule, 1 957, com Malinowski ,
1922, cap. 1 .) Al ém A discussã o que se segue localiza , em primeiro lugar, esta
disso , a hegemonia do trabalho de campo foi estabelecida
nos autoridade historicamente, dentro do desenvolvimento de uma
Estados Unidos e na Inglaterra antes e de forma mais difusa do
que ci ê ncia da observa ção participante no século XX. A seguir, ela
na Fran ça . Os exemplos pioneiros de Franz Boas e da expedi o
çã ao elabora uma cr ítica das suposições subjacentes a esta autoridade e
estreito de Torres foram seguidos apenas bem mais tarde, pela fun
da ção do Institut d’Ethnologie, em 1925 , e pela famosa Missão
- uma resenha de pr á ticas textuais emergentes . Estrat é gias alter-
nativas de autoridade etnográfica podem ser visualizadas em recen-
Dakar-Djibouti, de 1932 ( Karady, 1982; Jamin , 1982a ; Stocking tes experiências feitas por etn ó grafos que conscientemente rejeitam

O 20 O O 21 o
O ETNOGRÁFICA
S O B R E A AUTORIDADE ETNOGRÁFICA o
A EXPERIÊ NCIA

O teó rico- pesquisador de campo substituiu uma divisã o mais


cenas de representação cultural ao estilo do frontisp ício do livio
de Malinowski . Diferentes vers ões seculares daquela iepleta oficina antiga entre o ‘man on the spot” ( nas palavras de James Frazer) e o
de escrita de Lafitau estã o surgindo. Nos novos paradigmas de au- sociólogo ou antropó logo na metr ópole. Esta divisão de trabalho
toridade, o escritor n ã o est á mais fascinado por personagens trans - variava em diferentes tradições nacionais. Nos Estados Unidos, por
exemplo , Morgan tinha conhecimento pessoal de pelo menos algu -

cendentes uma deidade hebraico-cristã, ou seus substitutos no
século XX, o Homem e a Cultura. Nada permaneceu daquele qua - mas das culturas que serviram como material para suas sí nteses
dro celestial , a não ser a imagem desbotada do antropólogo num sociológicas; e Boas foi pioneiro em fazer o trabalho de campo in -
espelho. O silêncio da oficina etnográfica foi quebrado por insis - tensivo condição sine qua non de um discurso antropológico sé rio.
tentes vozes heteroglotas e peio ru ído da escrita de outras penas.5 Em termos gerais, no entanto, antes de MalinrowslovRadcfiffe-B rown
'

e Mead terem estabelecido com sucesso a norma do scholar, treinado


O O v na universidade, testando e fazendo teoria a partir de pesquisa de pri-
meira mão , prevalecia uma organização bem diferente do conheci-
Ao fim do século XIX, nada garantia, a priori, o status do et-
mento etnogr áfico. Por exemplo, The Melanesians (1891 ) , de R .
n ógrafo como o melhor int é rprete da vida nativa — em oposi çã o
ao viajante, e especialmente ao mission á rio e ao administrador, al-
H. Codrington, é uma detalhada compilação de folclore e costu-
mes, elaborada a partir de um período relativamente longo de pes-
guns dos quais haviam estado no campo por muito mais tempo e
quisa como missioná rio e baseada em colaboraçã o intensiva de
possu íam melhores contatos e mais habilidade na lí ngua nativa. O
tradutores e informantes nativos. O livro não est á organizado em
desenvolvimento da imagem do pesquisador de campo na Am érica,
to rn o de uma “experiê ncia’ de trabalho de campo, nem propõ e
5

de Frank Hamilton Cushing ( um excêntrico) a Margaret Mead ( uma


uma hipó tese interpretaciva unificada , funcional , histó rica ou quais-
figura nacional ) , é significativo . Durante este per íodo , uma forma

particular de autoridade era criada uma autoridade cientifica -
mente validada, ao mesmo tempo que baseada numa singular expe-
'
i quer outras. Ele se limita a generalizações de pequeno alcance e à
compilação de um eclé tico conjunto de informações. Codrington
(1972, p. vi- vii) está agudamente consciente da incompletude de
ri ê ncia pessoal. Durante a década de 1920, Malinowski desem -
seu conhecimento, acreditando que a verdadeira compreensão da
penhou um papel central na legitima ção do pesquisador de campo,
vida nativa começa apenas depois de uma década, ou algo assim ,
e devemos lembrar nesse sentido seus ataques à competê ncia de
de experiê ncia e estudo. Esta compreensã o da dificuldade de se cap-
seus competidores no campo. Por exemplo, o magistrado colonial
Alex Rentoul , que teve a temeridade de contradizer as descobertas
tar o mundo de outros povos —
os muitos anos de aprendizado e cle-
saprendizado necessá rios, os problemas para se adquirir uma compe-
da ciê ncia sobre as concep ções trobriandesas de paternidade, foi
excomungado nas pá ginas da revista Man, por sua perspectiva n ão
tê ncia lingu ística suficientemente boa —
tendia a dominar os traba-
lhos da geraçã o de Codrington . Tais suposi çõ es seriam em breve
profissional, judiciá ria (police court perspective ) ( ver Rentoul , 1931a desafiadas pelo confiante relativismo cultural do modelo malinows-
e 1931 b ; Malinowski , 1932) . O ataque ao amadorismo no campo
kiano. Os novos pesquisadores de campo se distinguiam nitidamen -
foi levado ainda mais longe por A. R . Radcliffe- Brown , que, como

te dos anteriores “men on the spot” o mission á rio , o administrador,
Ian Langham mostrou, passou a tipificar o profissional da ciê ncia,
descobrindo rigorosas leis sociais (Langham, 1981, cap. 7). O que
emergiu durante a primeira metade do século XX com o sucesso
!
I
< —
o comerciante e o viajante , cujo conhecimento dos povos indí-
genas, argumentavam , n ão estava informado pelas melhores hipó-
teses cient íficas ou por uma suficiente neutralidade.
do pesquisador de campo profissional foi uma nova fusão de teoria
geral com pesquisa emp í rica , de an á lise cultural com descri çã o Antes do surgimento da etnografia profissional , escritores
etnográ fica . como J . F. McLennan , John Lubbock e E. B . Tylor haviam tentado

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O 22 O
O A E X P E R IÊ NCIA E T N O G RÁFICA
SOBRE A AUTORIDADE E T N O G RÁ F I C A O

controlar a qualidade dos relatos sobre os quais estavam baseadas daquela cultura, mas mantinham a atitude documentá ria, observa-
suas sí nteses antropológicas. Eles o fizeram por meio do roteiro do dora, de um cientista natural . A principal exceçã o antes da terceira
Notes and queries, e, no caso de Tylor, pelo cultivo de relações de década do século XX, Frank Hamilton Cushing, permaneceu um
trabalho prolongadas com pesquisadores sofisticados no campo , exemplo isolado . Como Curtis Hinsley sugeriu, a longa pesquisa
tais como o mission á rio Lorimer Fison . Após 1883, como recém -
de primeira m ã o sobre os zuni , realizada por Cushing, sua quase
nomeado professor conferencista de Antropologia em Oxford, Tylor
absorção pelo modo de vida dos nativos, “despertou problemas de
estimulou a coleta sistemá tica de dados etnográficos por profissio
nais qualificados. O United States Bureau of Ethnology, já devotado
- verificação e explica ção [...] . Uma comunidade de antropologia cien -
tífica nos moldes das outras ciê ncias requeria o uso de uma lin -
avessa -ta refa rfo rnece0 urrTmodelo. Tylor participou anvamente da fun
'

dação de um comité sobre as tribos do noroeste do Canadá. O primei


- guagem comum He discurso , canais de comunicação regular, é pe-
"
~

ro agente do comité na á rea foi E. E Wilson , o veterano mission


- lo menos um consenso m í nimo para julgar um m é todo’ ( Hinsley,'

com 19 anos de experi ência entre os ojibwa. Ele foi logo


ário, 1983, p. 66). O conhecimento intuitivo e excessivamente pessoal
substitu ído de Cushing, a respeito dos zuni , nã o podia oferecer autoridade
por Boas, um físico em processo de mudan ça para a etnografia
fissional. George Stocking Jr. argumentou , de forma convincent -,
pro científica.
e
que a substitui ção de Wilson por Boas “marca o in ício de Em termos esquem á ticos, antes do final do século XIX, o
uma im -
portante fase no desenvolvimento do método etn ógrafo e o antrop ó logo , aquele que descrevia e traduzia os cos-
etnográfico britâ nico:
a coleta de dados por cientistas naturais treinados tumes e aquele que era o construtor de teorias gerais sobre a huma-
na academia , defi -
nindo-se a si mesmos como antropólogos, e envolvido nidade, eram personagens distintos. ( Uma percepçã o clara da ten -
s també m na
formulação e na avaliação da teoria antropológica (Stocking ., são entre etnografia e antropologia é importante para que se perceba
p. 74). Com o pioneiro survey de Boas e a emergê ncia,
Jr 1983, corretamente a uniã o recente, e talvez temporá ria , dos dois proje-
na década de
1890 , de outros pesquisadores de campo que eram cientistas tos.) Malinowski nos dá a imagem do novo “antropó logo” : acoco -
naturais,
.
como A. C Haddon e Baldwin Spencer, o
movimento em direção -
rando se junto à fogueira; olhando, ouvindo e perguntando ; regis-
à etnografia profissional estava a caminho. A trando e interpretando a vida trobriandesa. O estatuto literá rio desta
estreito de Torres pode ser encarada como a culmin
expedição de 1899 ao I: nova autoridade está no primeiro cap í tulo de Os argonautas, com
â ncia do trabalho
desta “geração intermediária”, como Stocking . a *4 suas fotografias, ostensivamente dispostas, da tenda do etn ógrafo ,
Jr chamou. O no-
vo estilo de pesquisa era claramente diferente daquele armada entre as casas da aldeia de Kiriwina. A mais aguda justifi -
rios e outros amadores no campo, e era parte de uma
dos mission á-
tendê ncia geral
1i cação metodoló gica para o novo modelo é encontrada no Andaman
islanders, de Radcliffe-Brown (1948) . Os dois livros foram publica-
que vinha desde Tylor, de elaborar de modo mais articulado
os com - dos com a diferen ça de um ano de um para outro. E embora seus
ponentes empíricos e teó ricos da pesquisa
antropológica” (ibid., autores desenvolvam estilos de trabalho de campo e visões sobre a
P - 72) .
ciê ncia cultural bem diferentes, ambos os textos fornecem argumen -
No entanto, o estabelecimento da observa
intensiva como uma norma profissional
ção participante -
tos expl ícitos para a autoridade especial do antropó logo etn ó grafo.
teria de esperar as hostes Malinowski, como mostram suas notas para a crucial intro-
malinowskianas. A “geração intermediá ria” de
etn ógrafos n ão vivia
tipicamente num só local por um ano du çã o de Os argonautas, estava muito preocupado com o problema
ou mais, dominando a lín - retó rico de convencer seus leitores de que os fatos que estava colo-
gua nativa e sofrendo uma experiê
ncia de aprendizado pessoal com-
pará vel a uma inicia ção . Eles n cando diante deles eram objetivamente adquiridos, não criações
ão falavam como se fizessem parte
subjetivas (Stocking Jr. , 1983, p. 105) . Além disso , ele estava to-
.
O 24 o

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talmente ciente de que “na etnografia, é frequentemente imensa a participante (Thornton , 1983). O novo estilo de representação
distâ ncia entre a apresenta ção final dos resultados da pesquisa e o dependia de inovaçõ es institucionais e metodológicas que contor-
material bruto das informações coletadas pelo pesquisador por meio navam os obstáculos a um rápido conhecimento sobre outras cul -
de suas pró prias observaçõ es , das asser ções dos nativos, do caleidos- turas que haviam preocupado os melhores representantes da gera-
có pio da vida tribal ” ( Malinowski, 1922, p. 3-4). Stocking Jr. ana - ção de Codrington . Essas inovações podem ser brevemente resu -
lisou de forma elegante os vá rios artif ícios literá rios de Os argonautas midas.
(suas constru ções narrativas envolventes, o uso da voz ativa no “pre-
sente etnogr á fico” , as dramatizações encenadas da participaçã o do Primeiro , a persona do pesquisador de campo foi legitimada,
axrroi enT e£]íT25~dã vida Trõbriandesa ), t écnicas que Malinowski
" Â
i
-cante p ú blica -quanto proflssiciualmeme . No domínio popular.
usou para que “sua pró pria experi ê ncia quanto à experiê ncia dos na- figuras de proa, tais como Malinowski , Mead e Marcel Griaule,
tivos [ pudesse] se tornar também a experi ência do leitor ” (Stocking transmitiram uma visão da etnografia como cientificamente rigo-
Jr., 1983, p. 106; ver tamb é m Payne, 1981 e o cap ítulo 3 desce rosa ao mesmo tempo que heró ica. O etn ógrafo profissional era
livro ) . Os problemas de verificação e explicaçã o que haviam rele- treinado nas mais modernas técnicas analíticas e modos de expli -
gado Cushing à margem da vida profissional rondavam as preocu- I cação cient ífica. Isto lhe conferia , no campo, uma vantagem sobre
pações de Malinowski. Esta ansiedade se reflete na massa de dados os amadores: o profissional podia afirmar ter acesso ao cerne de uma
contida em Os argonautas, suas 66 ilustrações fotográficas, e a agora cultura mais rapidamente, entendendo suas instituiçõ es e estru -
curiosa “ Lista cronol ógica dos eventos kula testemunhados pelo turas essenciais. Uma atitude prescrita de relativismo cultural dis-
autor , a constante altern â ncia entre a descriçã o impessoal
do com - tinguia o pesquisador de campo de mission á rios, administradores
portamento t í pico e declarações do gê nero “eu testemunhei ” e e outros , cuja visão sobre os nativos era, presumivelmente, menos
“ Nosso grupo, navegando a partir do Norte ”. imparcial, e que estavam preocupados com os problemas pol í tico-
administrativos ou com a conversão. Al é m da sofisticação científica
Os argonautas é uma complexa narrativa , simultaneamente sobre
e da simpatia relativista , uma variedade de padr õ es normativos
a vida trõ briandesa e sobre o trabalho de campo
etnográ fico. Ela é para a nova forma de pesquisa surgiu: o pesquisador de campo de-
arquet ípica do conjunto de etnografias que com sucesso estabeleceu
veria viver na aldeia nativa, ficar lá por um período de tempo sufi -
a validade cient ífica da observa çã o participante. A hist ó
ria da pes- ciente ( mas raramente especificado) , usar a l í ngua nativa , investigar
quisa constru ída em Os argonautas, no popular trabalho de Mead
certos temas clássicos, e assim por diante.
sobre Samoa e em We, the Tikopia, tornou-se uma narrativa impl ícita
subjacente a todos os relatos profissionais sobre mundos exó ticos. Segundo, era tacitamente aceito que o etn ógrafo do novo es-
Se as etnografias subsequentes n ão precisavam incluir relatos de cam tilo , cuja estadia no campo raramente excedia dois anos , e, freqiien -
po desenvolvidos, foi porque tais relatos eram supostos, a partir de
- temente , era bem mais curta , podia eficientemente “ usar ” as l í ng uas
uma declara ção inicial , tal como a simples frase de Godfrey nativas mesmo sem domin á -las. Num significativo artigo de 1939 ,
Lienhardt
no início de Divinity and experience.- “Este livro é
baseado num tira - Margaret Mead argumentava que o etn ógrafo, seguindo a prescrição
balho de dois anos entre os dinka , no per íodo entre
1947 e 1950 ” de Malinowski de evitar os intérpretes e conduzindo a pesquisa na
( 1961 , p. vii ). l íngua nativa , na verdade nã o precisava demonstrar flu ê ncia nessa
Na década de 1920, o novo teó rico- pesquisador de -
lí ngua , mas podia “ usá la” apenas para fazer perguntas, manter
contato e de forma geral participar da outra cultura , enquanto
desenvolveu u m novo e poderoso gê nero cient ífico e litercampo
etnografia, uma descrição cultural sint é tica
á rio, a obtinha bons resultados de pesquisa em á reas particulares de con-
baseada na observa çã o centra çã o . Isto , com efeito , justificava a pró pria prá tica de Margaret

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C

Bbi,
o 27 c>
O A EXPERI Ê NCIA ETNOGRÁFICA S O B R E A A U T O R I D A D E E T N O G RÁ F I C A V

Mead , que se realizava a partir de estadias relativamente curtas e nados que permitiriam a constru ção de um arcabou ço central , ou
com um foco em dom ínios espec íficos, tais como “ infâ ncia ou per- “estrutura” , do todo cultural . O “mé todo geneal ógico” de Rivers,
sonalidade” , focos estes que funcionariam como “ tipos para uma seguido pelo modelo de Radcliffe- Brown , baseado na no çã o de
síntese cultural . A atitude de Mead em relação ao “ uso” da l íngua “estrutura social ” , fornecia essa espécie de atalho . Era como se
era amplamente caracter ística de uma gera çã o etnogr á fica que alguém pudesse deduzir os termos de parentesco sem uma profun -
podia , por exemplo , reconhecer corno legítimo um estudo intitu - da compreensão da língua nativa e o necessá rio conhecimento
lado Os nuer, que era baseado em apenas onze meses de dif í cil con textual convenientemente limitado .
pesquisa . O artigo de Mead provocou uma aguda resposta de
Robert Lowie (1"940), que escrevia ã partir da primeira tradi çã o
__Quinto, uma vez que a cultura,—vista como arm todo com-
m
. . .
" ^

boasiana, mais filol ógica em sua orienta çã o. Mas sua a ção era de plexo, estavasempre alé m do alcance numa pesquisa de curta
retaguarda ; de forma geral, j á havia consenso quanto ao ponto dura çã o , o novo etn ó grafo pretendia focalizar tematicamente
segundo o qual uma pesquisa legítima poderia na prá tica ser rea algumas instituições específicas. O objetivo não era contribuir
- %
lizada com base em um ou dois anos de familiaridade para um completo inventá rio ou descri ção de costumes, mas sim
com uma
língua estrangeira ( muito embora, como Lowie chegar ao todo por uma ou mais de suas partes. J á mencionei o
sugeria, ningu ém privil égio que se deu , por um certo tempo , à estrutura social . Um
daria crédito a uma tradu ção de Proust que fosse baseada
num ciclo de vida individual , um complexo ritual , como o circuito do
conhecimento equivalente do francês) .
kula, ou a cerim ó nia do naven, poderiam também servir, assim
Terceiro, a nova etnografia era marcada por uma acentuada como categorias de comportamento, tais como economia , pol ítica ,
ênfase no poder de observação . A cultura era pensada e assim por diante. Na ret ó rica da nova etnografia , predomi -
como um
conjunto de comportamentos, cerim ó nias e gestos caracter í f-
sticos nantemente fundada na sin é doque , as partes eram concebidas
passíveis de registro e explica çã o por um observador treinado % como microcosmos ou analogias do todo. Na representação de
. Mead
frisou bem este ponto ( na verdade, seus próprios poderes de á
visual eram extraordin á rios) . Como uma tend ê ncia geral, o
an lise I um universo coerente, o cená rio composto por institui ções, em
primeiro plano , situadas contra panos de fundo culturais, ade-
obser-
vador participante emergiu como uma norma de pesquisa. Por certo , quava-se a conven ções literá rias realistas.
o trabalho de campo bem -sucedido mobilizava
a mais completa Sexto , os todos assim representados tendiam a ser sincrô nicos,
variedade de intera çõ es, mas uma distinta primazia era dada
ao produtos de uma atividade de pesquisa de curta duraçã o. O pes-
visual: a interpretaçã o dependia da descri ção. Após Malinows
ki, quisador de campo, operando de modo intensivo, poderia , de forma
uma suspeita generalizada em rela çã o aos “ informant
es privile
giados” refletia esta preferência sistemática pelas observações (me - plaus ível , tra çar o perfil do que se convencionou chamar “ presente
tó dicas) do etn ó grafo em detrimento das
interpretaçõ es ( interessa-
- m —
etnográfico” o ciclo de um ano , uma sé rie de rituais, padrões de
comportamento t í pico . Introduzir uma pesquisa histó rica de longa
das) das autoridades nativas.
duração teria complicado e tornado imposs ível a tarefa do novo es-
m
-

Quarto, algumas poderosas abstrações teó ¥ tilo de trabalho de campo. Assim , quando Malinowski e Radcliffe-
ricas prometiam
auxiliar os etn ógrafos acad êmicos a “chegar ao cerne” Brown estabeleceram sua crítica à “ histó ria conjectural ” dos difusio-
de uma cultura
mais rapidamente do que algué m , por ¥ mstas, foi muito fácil excluir os processos diacrô nicos como objetos
exemplo, que empreendesse ¥
um inventá rio exaustivo de costumes
e crenças. Sem levar anos do trabalho de campo, com consequ ê ncias que têm sido suficien -
para conhecer os nativos, seus complexos
há bitos e lí ngua, em temente apontadas.
í ntimos detalhes , o pesquisador
podia ir atrás de dados selecio- O O O
i
o 28 o o 29 o
m
o A EXPERI Ê NCIA ETNOGRÁFICA S O B R E A A U T O R I D A D E E T N O C RÁ F I C A

Estas inova ções serviram para validar uma etnografia eficiente , te: seu argumento teó rico é cercado por evoca ções e interpretações
baseada na observa ção participante cient ífica. Seus efeitos combi - habilmente narradas e observadas sobre a vida dos nuer. Estas
nados podem ser visros claramente no que pode ser considerado o passagens funcionam retoricamente como mais do que apenas
tour de force da nova etnografia , Os nuer , de Evans-Pritchard, publi- “exemplificações” , pois efetivamente envolvem o leitor na complexa
cado em 1940. Baseado em onze meses de pesquisa realizada em subjetividade da observação participante. Isto pode ser visualizado
condiçõ es quase impossíveis, Evans-Pritchard foi, todavia , capaz num parágrafo caracter ístico , que se desenvolve por meio de uma
de compor um clássico. Ele chegou , como a notá vel introdução do série de posi çõ es discursivas descont ínuas:
livro nos informa, ao territ ó rio nuer logo após uma expedi ção mili -
-E-dííf eil aneencrarT-em-inglês; uma palavra que dcscreva-ade »
tar punitiva, respondendo a uma solicitaçã o urgente do governo
quadamente a posição social dos did numa tribo. Chamamo-nos
do Sudão anglo-egípcio, e foi o objeto de intensa e constante sus- aristocratas, mas n ão pretendemos dizer que os nuer os consideram
peição. Apenas nos poucos meses finais p ôde conversar efetivamente como de grau superior pois, como ressaltamos enfaticamente, a
com os informantes que, conta ele, eram mestres em esquivar-se ideia de alguém predominando sobre os demais lhes repugna. No
de suas perguntas. Em tais circunstâ ncias, sua monografia é uma
espécie de milagre.
— —
conjunto explicaremos esta colocação mais adiante os diel t êm
mais prestígio do que posi çã o , e mais influê ncia do que poder. Se
você é um diel da tribo em que vive , você é mais do que um mem
bro da tribo. É um dos donos da região , do terreno da aldeia, dos pas-
-
Ao fazer proposições limitadas e sem fazer segredo das dificul-
tos, dos reservató rios de pesca e dos poços. Outras pessoas vivem ali
dades de sua pesquisa , Evans-Pritchard conseguiu apresentar seu
em virtude de casamentos feitos com membros de seu clã, da adoção
estudo como uma demonstração da eficá cia da teoria. Ele focaliza
ms:

pela sua linhagem ou algum outro la ço social . Você é um l íder da
a “estrutura” social e pol ítica dos nuer, analisada como um conjunto tribo, e o nome-de-lan ça de seu clã é invocado quando a tribo entra em
abstrato de relações entre segmentos territoriais, linhagens, conjun - guerra . Sempre que há um diel numa aldeia, esta se agrupa a seu re -
tos et á rios e outros grupos mais fluidos. Este conjunto analitica- dor, assim como o gado se agrupa ao redor de seu touro. ( Ibid., p. 215)
mente constru ído é representado contra um pano de fundo “ecoló- It As primeiras três frases são apresentadas como um argumento
gico” composto por padrões migratórios, relações com o gado, no- M sobre tradu ção , mas de passagem elas atribuem aos nuer um con -
ções de tempo e espaço. Evans-Pritchard distingue claramente seu
lê .
junto est ável de atitudes. ( Mais adiante comentarei mais sobre esse
.
m é todo daquilo que ele chama de documenta çã o “fortuita” ( mali- estilo de atribuição.) Em seguida, nas quatro frases que começam
nowskiana) . Os nuer não é um extenso compê ndio de observações por “Se você é um diel... ", a constru ção na segunda pessoa une o
e textos em l í ngua nativa ao estilo do Os argonautas e do Coral
% leitor e o nativo numa participação textual. A frase final , apresen -
j£r ;

gardens , de Malinowski . Evans- Pritchard argumenta com rigor tada como a descrição direta de um acontecimento t ípico (que o
que “os fatos só podem ser selecionados e articulados à luz da teo- I leitor agora assimila do ponto de vista do observador participante) ,
ria” (1969 , p. 261 ) . A singela abstração de uma estrutura pol í tico- evoca a cena por meio das met áforas nuer sobre gado . Nas oito
social oferece o necessá rio enquadramento. Se eu for acusado de frases do par ágrafo, um argumento sobre tradu ção transforma-se
descrever fatos como exemplificaçõ es de minha teoria , ele ent ão numa ficçã o de participaçã o e , em seguida , numa fusã o metafó rica
assinala, terei sido compreendido ( ibid.). de descrições culturais estrangeiras e nativas. Realiza-se, assim, a união
'
Em Os nuer, Evans- Pritchard defende abertamente o poder M subjetiva de an álise abstrata com experiência concreta.
§g
da abstração cient ífica para direcionar a pesquisa e articular dados Evans-Pritchard depois se afastaria da posi çã o teó rica assu -
complexos. O livro frequentemente se apresenta mais como um - mida em Os nuer, rejeitando sua defesa da “estrutura .social” como
1
argumento do que como uma descrição, mas n ão consistentemen- um enquadramento privilegiado. Na verdade , cada um dos ata-

o 30 o o 31 o
O A E X P E R I Ê N C I A E T N O G RÁE I C A SOBRE A AUTORIDADE ETNOGRÁFICA O

lhos” do trabalho de campo que enumerei anteriormente era e mediadores que haviam figurado de modo mais destacado nos
continua sendo contestado . Apesar disso, pela disposi çã o desses m étodos anteriores. Vimos como o dom í nio da lí ngua foi definido
atalhos em diferentes combina ções, a autoridade do teó rico- pes- como um n ível de uso adequado para reunir um conjunto pequeno
quisador de campo acadê mico foi estabelecida entre os anos de de dados num limitado per íodo de tempo. As tarefas da transcrição
1920 e 1950. Esse am á lgama peculiar de experiê ncia pessoal in- textual e da tradu ção , junto com o papel dialógico crucial de int é r-
tensa e aná lise cient ífica (entendida nesse per íodo tanto como “ ri-
pretes e “ informantes privilegiados” , foram relegadas a um status
to de passagem” quanto como “laborató rio ” ) emergiu como um
secundá rio, ou mesmo desprezadas. O trabalho de campo estava
m é todo: a observaçã o participante. Ainda que entendido de formas
centrado na experiência do scholar que observava / participava . Uma
'varradaspe agora questionado

~
êm rnuitos lugares, esse método con- n í tida imagem , ou narrativa , surgiu a de um estranho entrando
tinua representando o principal tra ço distintivo da antropologia
profissional. Sua complexa subjetividade é rotineiramente repro-
em uma cultura, sofrendo um tipo de iniciação que levaria a um rap -
I port ( minimamente aceita ção e empatia , mas usualmente impli -
duzida na escrita e na leitura das etnografias.
f. cando algo próximo à amizade). A partir dessa experi ê ncia emergia,
<> O o de modos n ã o especificados, um texto representacional , escrito
pelo observador participante. Como veremos, esta versã o da pro-
A observação participante serve como uma fórmula para o du ção textual obscurece tanto quanto revela. Mas vale a pena con -
cont í nuo vaivé m entre o “ interior’ e o “exterior ” dos acontecimen - siderar seriamente o seu pressuposto principal: o de que a experiê n-
tos: de um lado , captando o sentido de ocorrê ncias e
gestos especí- cia do pesquisador pode servir como uma fonte unificadora da
ficos, pela empatia; de outro, dá um passo atrás, para situar esses sig- autoridade no campo.
nificados em contextos mais amplos. Acontecimentos singulares,
assim , adquirem uma significa çã o mais profunda ou mais geral , A autoridade experiencial está baseada numa “sensibilidade”

regras estruturais, e assim por diante. Entendida de modo literal, para o contexto estrangeiro, uma espécie de conhecimento t ácito
a observação participante é uma fó rmula paradoxal e enganosa , mas
acumulado, e um sentido agudo em relação ao estilo de um povo
pode ser considerada seriamente se reformulada em termos herme- o u de um lugar. Esse requisito é frequentemente expl í cito nos
textos dos primeiros observadores participantes profissionais. A
n êuticos, como uma dialética entre experi ê ncia e interpreta çã o.
Assim é como os mais recentes e persuasivos defensores do método o suposi çã o de Margaret Mead de poder captar o princí pio ou ethos
reelaboraram , na tradição que vem de Wilhelm Dilthey, passa por subjacente a uma cultura por meio de uma sensibilidade aguçada
Max Weber e chega até os antropólogos dos “sí mbolos e dos signi - à forma, tom , gesto e estilos de comportamento, e a ê nfase de
ficados , como Clifford Geertz. Experiê ncia e interpretaçã o tê m Malinowski em sua vida na aldeia e a compreensã o derivada dos
“ imponder á veis da vida real ” são exemplos destacados . Muitas
recebido, no entanto , ênfases diferentes quando apresentadas como
estratégias de autoridade. Em anos recentes , tem havido
um notá vel ainda sã o apresentadas no modo experiencial , defendendo , ante
—-
etnografias — por exem pio, a de Colin Turnbull , Forest people ( 1962)
deslocamento de ê nfase do primeiro para o segundo termo. Este e
os próximos segmentos do texto vão explorar os diferentes
riormente a qualquer hipó tese de pesquisa ou m é todo especí ficos,
usos da o “eu estava lá ” do etnógrafo como membro integrante e parti-
experi ê ncia e da interpreta ção, assim como o desdobramento
de cipante.
sua inter - rela çã o.
O crescente prest ígio do te ó rico- pesquisador de Certamente é dif ícil dizer muita coisa a respeito de expe -
campo colo - riê ncia” . Assim como “ intui çã o” , ela é algo que algu é m tem ou
cou em segundo plano (sem elimin á- la )
uma sé rie de processos e n ã o tem , e sua invoca çã o freqiientemenie cheira a . mistifica çã o.

o 32 o 33 c>
O A EXPERIÊ NCIA E T N O G RÁ F I C A S O B R E A A U T O R I D A D E E T N O G RÁ F I C A O

Todavia , podc-se resistir à tenta çã o de transformar toda experi ê ncia e/ ou divinat ó rias. H á espaço aqui para apenas algumas palavras
significativa em interpreta ção. Embora as duas estejam recipro - sobre tais estilos de compreensão em sua relação com a etnografia .
camente relacionadas , n ão sã o id ê nticas . Faz sentido mant ê-las Uma evoca ção de um modo estético é convenientemente Fornecido
separadas, quanto mais n ão seja porque apelos à experi ê ncia muitas por A. L . Kroeber, em uma resenha de 1931 do Growing up in
vezes funcionam como validaçõ es para a autoridade etnográ fica. New Guinea, de Mead :
O argumento mais sé rio sobre o papel da experiência nas ci ê n - Primeiro de tudo , está claro que ela possui em grau elevado as
cias hist ó ricas e culturais está contido na no ção geral de Verstehend faculdades de apreender rapidamente as principais tendências que
— — - —
Na in fl u &nte visão-de IAil-they (-I FF-dj, o -ato-de-eompreen-der os
'

outros inicialmente deriva do simples fato da coexist ê ncia num


uma cultura impinge aos indivíduos , e de delineá-las em retratos
compactos de incr ível agudeza . O resultado é uma representação
de extraordin á ria vivacidade e semelhan ça em rela ção à vida. Ob-
mundo que é partilhado; mas esse mundo experiencial , um terreno viamente, algo de um sensacionalismo intelectualizado , ainda que
intersubjetivo para formas objetivas de conhecimento, é precisa - $ forte , subjaz a essa capacidade; tamb ém obviamente, h á um alto
mente o que falta, ou é problem á tico , para um etn ógrafo ao pene - grau de intuiçã o, no sentido da habilidade de compor um quadro
trar uma cultura estrangeira. Assim , durante os primeiros meses convincente a partir de pistas, pois pistas sã o tudo o que alguns de
seus dados podem ser, com apenas seis meses para aprender uma
no campo (e na verdade durante toda a pesquisa ) , o que acontece
l í ngua e penetrar no interior de toda uma cultura , al é m da espe-
é um aprendizado da linguagem , em seu sentido mais amplo. A
1
t
cializaçã o em comportamento infantil . De qualquer forma, o
“esfera comum” de Dilthey deve ser estabelecida e restabelecida, a
partir da constru ção de um mundo de experi ê ncias partilhadas,
- quadro, tã o longe quanto pode ir, é totalmente convincente para
este resenhador, que admira sem reservas a seguran ça dos insights e a

em relação ao qual todos os “ fatos”, “textos” , “eventos” e suas í nter- eficiência do traço da autora na descrição. ( Kroeber, 1931 , p. 248)
pretações serão constru ídos. Esse processo de se viver a entrada Uma formula ção diferente é fornecida por Maurice Leenhardt
num universo expressivo estranho é sempre subjetivo, por natureza, em Do Kamo: la personne et le mythe dans le monde mélan ésien
mas se torna rapidamente dependente do que Dilthey chama de (1937) , um livro que , em seu por vezes enigmático modo de expo -
“expressões permanentemente fixadas”, formas está veis às
quais a sição, requer de seus leitores justamente o tipo de percep ção est é tica
compreensã o pode sempre retornar. A exegese dessas formas fornece e gestá ltica , na qual distinguiam -se tanto Mead quanto Leenhardt .
o conte ú do de todo conhecimento sistemá tico hist ó rico cultural . % O endosso de Leenhardt a esse tipo de abordagem é significativo,
- i
Assim , a experi ê ncia est á intimamente ligada à incerpreta ção . uma vez que, dada sua ex peri ê ncia de campo extremamente longa,
( Dilthey está entre os primeiros teó ricos modernos a comparar a e seu profundo cultivo de uma l íngua melan ésia, seu mé todo n ã o
£
compreensão de formas culturais com a leitura de “textos”.) Mas pode ser visto como uma racionalização para uma etnografia de
esse tipo de leitura ou exegese n ão pode ocorrer sem uma intensa curto prazo:
participação pessoal , um ativo “sentir-se em casa” num universo
Na verdade, nosso contato com o outro n ã o é realizado por
comum . meio da an álise. Antes, n ós o apreendemos corno um todo. Desde
Seguindo os passos de Dilthey, a “experi ê ncia ” etnogr áfica o in ício, podemos esboçar nossa visão dele a partir de um detalhe
simb ólico, Ou de um perfil, que conté m um todo em si mesmo e
pode ser encarada como a constru ção de um mundo comum de evoca a verdadeira forma de seu modo de ser. Esta ú ltima é o que
significados, a partir de estilos intuitivos de sentimento, percepção nos escapa se abordamos nosso próximo usando apenas as categorias
e infei ê ncias. Essa atividade faz uso de pistas, traços , gestos e restos de nosso intelecto. ( Leenhardt, 1937)
de sentido antes de desenvolver interpretações est á veis. Tais formas
Outro modo de levar a sério a experiê ncia como fonte de conhe-
fiagment á rias de experiê ncia podem ser classificadas como estéticas
cimento etnográ fico é fornecido pelos estudos de Carlo Ginzburg

O 34 .
ç o 35 <*
O A EXPERI Ê NCIA ETNOGRÁFICA SOBRE A AUTORIDADE ETNOGRÁFICA O

(1990 , p. 143-180) sobre a complexa tradi ção das prá ticas de adi- É compreensível , dado seu cará ter vago, que o crité rio expe-
vinha çã o. Sua pesquisa abrange desde as primeiras interpreta ções —
riencial da autoridade cren ças n ão problematizadas no “método”
feitas por ca çadores a partir de rastros dos animais, passando pelas da observaçã o participante, no poder das rela çõ es de afinidade
formas mesopot â micas de predi çã o , pelo deciframento de sintomas —
emocional, da empatia etc. tenha sido submetido a cr íticas por
na medicina hipocrá tica , pela aten çã o aos detalhes na identifica çã o antrop ó logos hermeneuticamente sofisticados. O segundo mo -
de falsifica ção no mundo da arte, at é Freud, Sherlock Holmes e mento na dial é tica entre experiência e interpretação tem recebido
Proust. Estes estilos de adivinhação, que n ã o passam pela experi ê n - aten çã o e elabora çã o crescentes ( ver, por exemplo, Geertz , 1973 ,
cia do transe, apreendem relações circunstanciais específicas de sig- 1976; Rabinow e Sullivan , 1979; Winner, 1976; Sperber, 1981) .
*6 A interpretaçã o, baseada num modelo filológico de “ leitura” textual ,
'

nificado e estã o baseadas em palpites, na leitura de indícios aparen -


temente disparatados e em ocorrê ncias casuais. Ginzburg propõe seu surgiu como uma alternativa sofisticada às afirmações hoje aparen -
modelo de “conhecimento conjectural ” como um modo disciplinado temente ingé nuas de autoridade experiencial . A antropologia inter -
de compreensão, não-generalizante e abdutivo, que é de importâ ncia pretativa desmistifica muito do que anteriormente passara sem
central para as ci ências culturais, embora isso nã o seja reconhecido. questionamento na constru ção de narrativas, tipos, observações e
Esse modelo pode se somar a um estoque de recursos que na verda- descrições etnogr áficas. Ela contribui para uma crescente visibili -
de é bem modesto , e que serve para entender com mais precisão dade dos processos criativos ( e, num sentido amplo , po éticos )
i
como algué m se sente ao penetrar numa situa ção etnogr áfica não- pelos quais objetos “culturais” sã o inventados e tratados como
familiar. significativos.
Precisamente porque é dif í cil pinçá-la , a “experiê ncia” tem O que está suposto no ato de se olhar a cultura como um
servido como uma eficaz garantia de autoridade etnográfica. H á , conjunto de textos a serem interpretados ? Um estudo cl ássico é
sem d ú vida, uma reveladora ambiguidade no termo. A experiê ncia fornecido por Paul Ricoeur, em seu ensaio The model of text: mean -
evoca uma presen ça participativa , um contato sens í vel com o mun ingful action considered as a text ( 1971 ) . Clifford Geertz ( 1973 ,
- cap. 1) , numa sé rie de estimulantes e sutis discussões, adaptou a
do a ser compreendido, uma rela çã o de afinidade emocional com
seu povo, uma concretude de percepção. A palavra també m sugere teoria de Ricoeur ao trabalho de campo antropológico . A “textua-
um conhecimento cumulativo , que vai se aprofundando ( “sua ex lização” é entendida como um pr é- requisito para a interpreta ção,
- a constituição das “expressões fixadas” de Dilthey. Trata-se do pro -
periência de dez anos na Nova Guin é ” ) . Os sentidos se juntam
para legitimar o sentimento ou a intui ção real , ainda que inexpri - cesso pelo qual o comportamento, a fala , as crenças, a tradição oral
e o ritual nã o escritos vê m a ser marcados como um corpus, um
m ível, do etnógrafo a respeito do “seu ’ povo. É importante notar,
porém , que esse mundo , quando concebido como uma criaçã o da conjunto potencialmente significativo, separado de uma situa çã o
experiência , é subjetivo , não dial ógico ou intersubjetivo. O etn ó- imediata discursiva ou performativa . No momento da textuali -
zação, este corpus significativo assume uma relação mais ou menos
grafo acumula conhecimento pessoal sobre o campo ( a forma pos-
est á vel com um contexto ; e já conhecemos o resultado final desse
sessiva meu povo foi at é recentemente bastante usada nos cí
rculos processo em muito do que é considerado como uma descrição et-
antropologicos, mas a frase na verdade significa “ minha expe-
• A•
riencia
?>
).
\ nográfica densa. Por exemplo , dizemos que uma certa instituição
ou segmento de comportamento são t ípicos de, ou um elemento
O O o comunicativo em , uma cultura circundante, como a famosa briga
de galos de Geertz (1973, cap. 15) , que se toma um locus intensa-

o 36 o o 37 c>
SOBRE A AUTORIDADE ETNOGRÁFICA O
O A EXPERIÊNCIA ETNOGRÁFICA

significativo da cultura balinesa. Sã o criadas á reas de sin é- com ele textos para posterior interpretação (e entre estes “textos”
mente
doques nas quais partes são relacionadas a todos, e poi meio das —
que são levados podemos incluir as memó rias eventos padro-
quais o todo
titu ído.
— que usualmente chamamos de cultura é cons- — nizados, simplificados, retirados do contexto imediato para serem
interpretados numa reconstru ção e num retrato posteriores) . O
texto, diferentemente do discurso , pode viajar. Se muito da escrita
Ricoeur na verdade n ã o privilegia as relações entre parte e
etnogr áfica é produzido no campo , a real elabora çã o de uma
todo nem as formas específicas de analogia que constituem as repre-
sentações funcionalistas ou realistas. Ele simplesmente propõe uma
etnografia é feita em outro lugar. Os dados constitu ídos em con -
rela ção necessá ria entre o texto e o “mundo” . Um mundo n ã o p.o_-. dições discursivas, dial ógicas, são apropriados apenas por meio de
de ser apreendido diretamente; ele é sempre inferido a partir de formas textualiz á das. Os eventos e os encontros da pesquisa se
!
suas partes, e as partes devem ser separadas conceituai e percep- tornam anotações de campo . As experi ê ncias tornam-se narrativas,
tualmente do fluxo da experiê ncia. Desse modo , a textualização ocorrências significativas, ou exemplos.
gera sentido por meio de um movimento circular que isola e depois Esta tradu çã o da experiê ncia da pesquisa num corpus textual
contextualiza um fato ou evento em sua realidade englobante. Um separado de suas ocasiões discursivas de produ ção tem importantes
modo familiar de autoridade é gerado a partir da afirmação de consequências para a autoridade etnográ fica . Os dados assim refor-
que se estão representando mundos diferentes e significativos. A mulados não precisam mais ser entendidos como a comunicação
etnografia é a interpretação das culturas. de pessoas específicas. Uma explica çã o ou descri ção de um costume
Um segundo passo fundamental na análise de Ricoeur é seu por um informante n ã o precisa ser constru ída de uma forma que
estudo do processo pelo qual o “discurso” se torna texto. O discurso , inclua a mensagem “fulano e fulano disseram isso”. Um ritual ou
na cl á ssica discussã o de É mile Benveniste (1971 , p. 217-230 ) , é um evento textualizados n ã o est ã o mais infimamente ligados à
um modo de comunicação no qual sã o intrí nsecas as presen ças do produção daquele evento por atores específicos. Em vez disso, estes
sujeito que fala e da situaçã o imediata da comunicaçã o. O discurso 3} textos se tornam evid ê ncias de um contexto englobante, uma
é marcado pelos pronomes ( explícitos ou impl ícitos) eu e você, e realidade “cultural ” . Al ém disso , como os autores e atores específicos
— —
pelos dêiticos este, aquele, agora etc. que assinalam o momento
presente do discurso, em vez de algo além dele. O discurso não
são separados de suas produ ções, um “autor” generalizado deve ser
inventado, para dar conta do mundo ou contexto dentro do qual
transcende a ocasião específica na qual um sujeito se apropria dos os textos são ficcionalmente realocados. Este “autor generalizado”
recursos da linguagem para se comunicar dialogicamente. Ricoeur aparece sob uma variedade de nomes: o ponto de vista nativo , ‘os
argumenta que o discurso não pode ser interpretado do modo trobriandeses” , “os nuer”, “os dogon”, como estas e outras expressões
aberto e potencialmente p ú blico como um texto é “ lido”. Para similares aparecem nas etnografias. “ Os balineses” funcionam como
entender o discurso, “você tem de ter estado lá ”, na presença do os “autores” da briga de galos textualizada por Geertz.
sujeito . Para o discurso se tornar texto, ele deve se transformar em
O usufrui de uma relação especial com uma
etnógrafo , portanto,
algo “autó nomo”, nos termos de Ricoeur, separado de uma locu ção
especifica e de uma intenção autoral. A interpretação n ã o é uma ar origem cultural ou um “ sujeito absoluto” ( Michel -Jones, 1978,
interlocu ção. Ela n ã o depende de estar na presen ça de algu é m p. 14) . É tentador comparar o etn ógrafo com o inté rprete literá rio
que fala.
(e esta comparaçã o é cada vez mais um lugar-comum ) mas mais—
especificamente com o crítico tradicional, que encara como sua a
A relevâ ncia desta distin çã o para a etnografia é talvez ó bvia tarefa de organizar os significados não controlados em um texto
demais. Em última an álise, o etn ógrafo sempre vai embora, levando numa ú nica inten çã o coerente. Ao representar os nuer, os trobrian-

o 38 o c> 39 <>
O A EXPERIÊNCIA E T N O G RÁF I C A

deses ou os balineses como sujeitos totais , fontes de uma inten çã o gráfica. Como resultado, raramente ficamos cientes do fato de que uma
cheia de significados, o etn ógrafo cransforma as ambiguidades e parte essencial da construção da briga de galos como texto é dialógica -
diversidades de significado da situação de pesquisa num retrato a conversa do autor cara a cara com balineses específicos, e não a lei-
integrado . É importante, poré m , assinalar o que foi deixado de la
do. O processo de pesquisa é separado dos textos que ele gera e do
- tura da cultura “ por cima de seus ombros” ( ibid., p. 452) .

mundo fict ício que lhes cabe evocar. A realidade das situações dis O O O
-
cursivas e dos interlocutores individuais é filtrada. Mas os informan
- A antropologia interpretativa, ao ver as culturas como conj un-
tes —
sã o tipicamente exclu ídos de etnograf

juntamente com as notas de campo , intermediá rios cruciais,
de textos , frouxa e , por vezes, contraditoriamente unidos, e ao
ias
^

imas. s aspectos
dial ógicos, situacionais, da interpretação etnográfica tendem ressaltar a inventiva poé tica em funcionamento em toda represen -
a ser ta ção coletiva, contribuiu significativamente para o estranhamento
banidos do texto representativo final. Não inteiramente
banidos, da autoridade etnográ fica . Em seus principais aspectos realistas,
claro; existem a í topoi aprovados para tra çar o retrato do
processo porem , n ã o escapa aos limites gerais apontados por aqueles cr í ticos
de pesquisa.
da representação “colonial ” que, desde 1950, tê m rejeitado discur-
Estamos cada vez mais familiarizados com o relato do traba # sos que retratem as realidades culturais de outros povos sem colocar
-
lho de campo feito em separado ( um subgê nero
que ainda tende m sua pró pria realidade em questão. Nas pioneiras críticas de Michel
a ser classificado como subjetivo , “ leve ” , Leiris, e nas de Jacques Maquet , Talai Asad e muitos outros, a qua-
ou n ã o-cient ífico) , mas
mesmo nas etnografias clássicas, “fá bulas do contato” lidade de não- reciprocidade da interpretação etnográfica tem sido
mais ou me-
nos estereot í picas narram a realização do pleno
participante. Essas fá bulas podem ser contadas de
status de observador I questionada ( Leiris, 1950 b; Maquet , 1964; Asad, 1973) . Conse-
forma elaborada qiientemente, nem a experi ê ncia nem a atividade interpretativa do
ou resumidamente, ingé nua ou ironicam pesquisador cient ífico podem ser consideradas inocentes. Torna-
ente. Elas normalmente
retratam a inicial ignorâ ncia do etn ó se necessá rio conceber a etnografia n ão como a experiê ncia e a in-
grafo, os mal-entendidos, a

falta de contatos freqiientemente, um tipo de
status semelhante terpretação de uma “outra” realidade circunscrita, mas sim como uma
ao da crian ça numa cultura. No Bildung
estes estados de inocê ncia ou confusã
sgeschicbte da etnografia,
o sã o substitu í dos por um
negocia ção construtiva envolvendo pelo menos dois e muitas
— —
vezes mais sujeitos conscientes e politicamente significativos.
conhecimento adulto, confiante e desabusado. Podemos Paradigmas de experi ê ncia e interpretaçã o est ã o dando luga r a
citar no-
vamente a briga de galos de Geertz, em paradigmas discursivos de di álogo e polifonia. Até o final deste
que uma inicial alienação
em relação aos balineses, um confuso status artigo, vamos resenhar esses emergentes modos de autoridade.
de “ não-pessoa” , é trans-
formada pela atraente fá bula da batida policial e sua
de cumplicidade ( 1973, p. 278-283). A anedota
demonstraçã o Um modelo discursivo de prática etnográ fica traz para o centro
estabelece um pres- da cena a intersubjetividade de toda fala, juntamente com seu
suposto de conexão, que permite ao escritor
funcionar em sua análi - contexto performativo imediato. O trabalho de Benveniste sobre o
se subsequente como um exegeta e um
porta-voz onipresente e sá bio . papel constitutivo dos pronomes pessoais e demonstrativos ressalta
Este intérprete situa o esporte ritual como um
texto num mundo con- justamente estas dimensões. Todo uso do pronome eu pressupõe
textual e brilhantemente “ lê ” seus
significados culturais. O abrupto um você, e cada instância do discurso é imediatamente ligada a uma
desaparecimento de Geertz em sua rela

da observação participante é paradigm — -
çã o a quase invisibilidade
ático. Aqui ele faz uso de uma
situa ção específica , compartilhada; assim , n ão h á nenhum signifi-
cado discursivo sem interlocu çã o e contexto. A relevâ ncia desta
conven ção estabelecida para encenar
a realização da autoridade etno ênfase para a etnografia é evidente. O trabalho de campo é significa-
-
o 40 O C> 41 O
S O B R E A A U T O R I D A D E E T N O G R ÁF I C A O
O A EXPERIÊNCIA ETNOGRÁFICA

tivamente composto de eventos de linguagem ; mas a linguagem , m ofa Ikung woman (1981 ) , são exemplos dignos de nota. O modo
nas palavras de Bakhtin , " repousa nas margens entre o eu e o ou- dial ógico é representado com consider á vel sofisticação em dois
tro . Mecade de uma palavra , na linguagem , pertence a outta pes- outros textos. O primeiro , as reflexões teó ricas de Kevin Dwyer
soa” . O critico russo propõ e que se repense a linguagem em termos sobre a “diálogica da etnologia” , nasce de uma série de entrevistas
de situações discursivas específicas; " N ã o há ” , escreve ele , ne- com um informante-chave e justifica a decisão de Dwyer (1977 ,

nhuma palavra ou forma ‘neutra’ palavras e formas que podem 1979, 1982) de estruturar sua etnografia na forma de um registro
não pertencer a ‘ningu ém’; a linguagem é completamente tomada , bastante literal desses intercâ mbios, O segundo trabalho, mais com -
atravessada por inten çõ es e sotaques” ( Bakhtin , 1981 b, p. 293) . plexo , é o de Vicent Crapanzano, Tubami: portrait of a Moroccan ,
As palavras da escritãTtnográficã, p ò rtà nto , n ão podem sé r pensa -

outro relato de uma série de entrevistas que rejeita qualquer sepa-


das como monológicas, como a legítima declara çã o sobre, ou a •
f
Jãt
ra ção n ítida entre um eu que interpreta e um outro textualizado
interpretaçã o de uma realidade abstra ída e textualizada. A lingua- (1980; ver também 1977) . Tanto Dwyer quanto Crapanzano colo-
;
gem da etnografia é atravessada por outras subjetividades e nuances cam a etnografia num processo de diálogo em que os interlocuto-
contextuais específicas, pois toda linguagem , na visão de Bakhtin , res negociam ativamente uma visã o compartilhada da realidade.
é uma “concreta concepçã o heteroglota do mundo” ( ibid. , p. 293) . ’

Crapanzano argumenta que esta m ú tua constru ção est á presente


As formas da escrita etnográfica que se apresentam no modo em qualquer encontro etnográfico , mas que os participantes ten-
“discursivo” tendem a estar mais preocupadas com a representa ção dem a supor que eles simplesmente aquiesceram em relação à reali -
dos contextos de pesquisa e situações de interlocução. Portanto, um dade do outro interlocutor. Assim , por exemplo, o etn ó grafo das
livro como o de Paul Rabinow, Reflections on fieLdioork in Morocco ilhas Trobriand n ão elabora abertamente urna versão da realidade
(1977) , se preocupa com a representação de uma específica situa- em colabora çã o com seus informantes, mas sim interpreta o “ponto
ção de pesquisa ( uma sé rie de tempos e lugares limitadores) e ( de de vista trobriand ês”. Crapanzano e Dwyer oferecem tentativas
uma forma algo ficcional ) de uma sequ ê ncia de interlocutores indi- sofisticadas de romper com esta convenção literá rio-hermen ê utica.
viduais. Na verdade, todo um novo subgênero de “ relatos sobre o Nesse processo, a autoridade do etn ógrafo como narrador e int é r-
trabalho de campo” (do qual o de Rabinow é um dos mais vigo- prete é alterada . Dwyer prop õ e uma hermen ê utica da “ vulne-
rosos) pode ser situado dentro do paradigma discursivo da escrita rabilidade” , frisando as lacunas do trabalho de campo , a posiçã o
etnográfica. O texto de Jeanne Favret-Saada , Les mots, la rnort, Les dividida e o controle imperfeito por parte do etn ógrafo. Tanto
sorts ( 1977) , é uma experi ê ncia incisiva e autoconsciente de etno- Crapanzano quanto Dwyer buscam representar a experiê ncia da
grafia num modo discursivo. 7 Ela afirma que o evento da interlo- pesquisa de uma forma que exp õe a tessitura textualizada do outro,
cu ção sempre destina ao etn ó grafo uma posi çã o específica numa e assim també m do eu que interpreta.8 (Aqui as etimologias sã o
teia de relações intersubjetivas. Não há nenhuma posição neutra no evocativas: a palavra texto est á relacionada , como se sabe , com
campo de poder dos posicionamentos discursivos, numa cambiante tecelagem , e vulnerabilidade, com entrega ou com ferimento, signi-
matriz de relacionamentos de eus e vocês. ficando, nesta instâ ncia, a abertura de uma autoridade até então
Uma sé rie de recentes trabalhos tem escolhido apresentar os fechada . )
processos discursivos da etnografia sob a forma de um diá logo en- O modelo do diálogo ressalta precisamente aqueles elementos
tre dois indiv íduos. O texto de Camille Lacoste-Dujardin , Dialogue
des femmes en ethnologie ( 1 977) , o de Jean -Paul Dumont , The head- — —
discursivos circunstanciais e intersubjetivos que Ricoeur teve
de excluir de seu modelo de texto. Mas se a autoridade interpre-
man and I (1978) e o de Marjorie Shostak, Nisa: the life and words tativa está baseada na exclusão do diálogo, o inverso também é

O 42 o O 43
O A E X P E R I Ê N C I A E T N O G R ÁF I C A S O B R E A A U T O R I D A D E E T N O G RÁF I C A O

verdadeiro: uma autoridade puramente dialógica reprimiria o fato caso de Mareei Griaule e os dogon é bem conhecido e particu -
inescap á vei da textualiza ção. Enquanto as etnografias articuladas larmente esclarecedor. O relato de Griaule sobre seu aprendizado
como encontros entre dois indivíduos podem com sucesso drama- da sabedoria cosmológica dogon, Dieu d’eau (1948a) , foi um pio-
tizar o dar-e- receber intersubjetivo do trabalho de campo e intro - neiro exercício de narração etnográfica dial ógica. Para além desta
duzem um contraponto de vozes autorais, elas permanecem repre - situação interlocutó ria específica, por é m , um processo mais com -
sentações do di álogo . Como textos, elas podem n ão ser dialógicas
plexo estava em funcionamento, pois é claro que o conte ú do e o
em sua estrutura , pois, como Stephen Tyler ( 1981) assinala, em -
gradual ajustamento da longa pesquisa feita pela equipe de Griaule,
bora Sócrates apareça como um participante descentrado em seus
e nco n trospEia tâ o~1e t é m ò p1e ri o controle do diálogo. Este dèslõca-
"
a que durou d écadas, foram monitorados de perto e modelados de
forma significativa pelas autoridades tribais dogon (ver discussão
mento, mas n ão eliminação, da autoridade monol ógica é caracte-
aprofundada em “ Poder e diálogo na etnografia: a iniciação de
rístico de qualquer abordagem que retrate o etn ógrafo como um
% Mareei Griaule” neste livro) . Isto não é mais novidade. Muitos etn ó-
personagem distinto na narrativa do trabalho de campo. Al é m grafos comentaram as formas, ao mesmo tempo sutis e notó rias,
disso, há uma frequente tendê ncia, nas ficções de diálogo, a apre-
pelas quais suas pesquisas foram direcionadas ou circunscritas por
sentar o interlocutor do etn ógrafo como o representante, ou a re-
seus informantes. Em sua provocativa discussã o deste tema, loan
presentante, de sua cultura
— —
um tipo, na linguagem do realismo
tradicional por meio do qual os processos sociais gerais são revela-
T
Lewis (1973) chegou a chamar a antropologia de uma forma de
dos. y Tal retrato restabelece a autoridade interpretativa fundada m “ plágio” .
na sinédoque , por meio da qual o etn ógrafo l ê o texto em rela çã o O processo de dar-e- receber da etnografia é claramente retra -
ao contexto, constituindo , desse modo, um “outro” mundo signifi- - tado em um estudo de 1980, notá vel por sua apresentação , numa
cativo. Se é difícil , para representações dial ógicas, escapar de proce- única obra, tanto de uma realidade “outra” interpretada quanto do
dimentos tipificantes, elas podem , num grau considerá vel , resistir pró prio processo de pesquisa: Ilongot headhunting, de Renato Rosaldo.
ao impulso de representar o outro de forma autolegitimadora . Rosaldo chega às terras altas das Filipinas pretendendo escrever
Isto depende de sua habilidade ficcional em manter a estranheza um estudo sincrô nico de estrutura social ; mas recorrentemente,
da outra voz e de n ão perder de vista as contingências específicas f apesar de suas objeções , ele é forçado a escutar as narrativas inter-
do intercâ mbio. min áveis dos ilongot sobre a hist ó ria local . Por obriga çã o , sem
prestar muita aten ção, numa espécie de transe entediado , ele trans-
O o o creve estas histó rias, enchendo cadernos e mais cadernos com o
Dizer que uma etnografia é composta de discursos e que m que ele considera textos dispensáveis. Só depois de deixar o campo ,
seus diferentes componentes estã o relacionados dialogicamente e após um longo processo de reinterpreta çã o ( processo manifesto
não significa dizer que sua forma textual deva ser a de um diá logo na etnografia) , ele se dá conta de que aqueles obscuros relatos for -
literal. Na verdade, como Crapanzano reconhece em Tuhami, um neciam na verdade seu tema final: o sentido culturalmente distinto
terceiro participante , real ou imaginado, funciona como mediador de narrativa e hist ó ria dos ilongot. A experi ê ncia de Rosaldo do
em qualquer encontro entre dois indivíduos ( 1980, p . 147-151). que pode ser chamado de “escrita direcionada” propõe incisivamente
O diálogo ficcional é de fato uma condensação , uma representação uma questã o fundamental: quem é na verdade o autor das anotações
simplificada de complexos processos multivocais. Uma maneira feitas no campo ?
alternativa de representar essa complexidade discursiva é entender O assuntoé sutil e merece um estudo sistem á tico. Mas já foi
o curso geral da pesquisa como uma negocia ção em andamento. O dito o bastante para se poder afirmar que o controle nativo sobre

O 44 o O 45 O
Ç. A E X P E R I Ê N C I A E T N O G RÁF I C A S O B R E A A U T O R I D A D E E T N O G RÁ F I C A c>
o conhecimento adquirido no campo pode ser consider á vel , e mes- uma variedade de ‘'autores” indígenas. Como essas presen ças
mo determinante. A escrita etnográ fica atual está procurando novos
auto -
rais devem ser manifestas?
meios de representar adequadamente a autoridade dos informantes.
H á poucos modelos em que se basear, mas é importante reconside- C> O O
rar as antigas compilações textuais de Boas , Malinowski , Leenhardt
e outros. Nesses trabalhos, o gê nero etnográfico n ão havia ainda se —
Uma posição ú til ainda que extrema — é trazida pela aná lise
de Bakhtin sobre o romance “polifô nico”. Uma condi çã o funda-
cristalizado na moderna monografia interpretacional , infimamente
mental do g ê nero , ele argumenta , é que ele representa sujeitos fa-
identificada com uma experiê ncia de campo pessoal . Podemos con - -fsn-tes aum-campo- de m ú 11ipios discursos. Omomance fatãrcom ,
" "

templar neles um modo etnogr áfico que n ã o se legitimou ainda I? e encena , a heteroglossia. Para Bakhtin , preocupado com a repre-
naqueles modos específicos que agora estão sendo polí tica e epis- é
sentação de todos n ã o homogéneos, n ão h á nenhum mundo cultu -
temologicamente questionados. Essas compila çõ es mais antigas
incluem muito , ou tudo , do que na verdade é escrito pelos informan -
I
§ ral ou linguagem integrados. Todas as tentativas de propor tais uni -
dades abstratas sã o constructos do poder monológico. Uma “cultura”
tes. Pode-se pensar aqui no papel de George Pí unt na etnografia
é, concreta mente, um diálogo em aberto, criativo , de subculturas,
de Franz Boas , ou dos quinze transcripteurs listados nos Documents
de membros e n ão membros , de diversas facçõ es. Uma “ l í ngua” é
néo -calédoniens, de Leenhardt ( 1932 ) . 10 i
g a intera çã o e a luta de dialetos regionais, jargões profissionais, lu -
Malinowski é um complexo caso de transi çã o. Suas etnografias # : gares-comuns gen é ricos , a fala de diferentes grupos de idade, indi -
refletem uma coalescê ncia ainda incompleta da moderna mono- v íduos etc. Para Bakhtin , o romance polifô nico n ã o é um tour de
grafia. Se ele por um lado foi centralmente responsá vel pela fusão S
'
force de totalização cultural ou histó rica (como cr íticos realistas,
de teoria e descri ção na autoridade do pesquisador de campo profis- como Gyõ rgy Luk á cs e Erich Auerbach , argumentaram ) , mas sim
sional , por outro lado ele incluiu material que não sustentava dire- uma arena carnavalesca de diversidade. Bakhtin descobre um espa ço
tamente sua n í tida perspectiva de interpretação . Nos muitos mitos textual utó pico no qual a complexidade discursiva, a interação dial ó-
e nos encantamentos a ele ditados, e que enchem seus livros, gica das vozes, pode ser acomodada . Nos romances de Dostoievski
publicou muitos dados que, assumidamente, nã o havia compreen - ou de Dickens, ele valoriza precisamente sua resist ê ncia à totalidade;
dido. O resultado foi um texto aberto sujeito a m ú ltiplas reinter- seu romancista ideal é um ventr íloquo —
no idioma do século
XIX , um “polifonista”. “Ele representa a pol ícia com vá rias vozes
pretações. E importante comparar tais velhos compê ndios com o
recente modelo de etnografia , que cita as evid ências para sustentar diferentes” , exclama um ouvinte admirado , sobre o garoto Sloppy,
uma interpretaçã o centrada num foco temá tico, mas que n ão vai que lê em p ú blico um jornal , em Our mutual friend, de Dickens.
muito al é m disso . 1 . Na moderna e legí tima monografia, n ã o h á , Mas Dickens, o ator , performer oral e polifonista, deve ser compa -
na verdade, quaisquer vozes fortes presentes, a não ser a do escritor; rado a Flaubert , o mestre do controle autoral, que se move como
mas em Os argonautas (1922) e em Coral gardens (1935) , lemos pá um deus entre os pensamentos e os sentimentos de suas persona-
- gens. A etnografia, como o romance , debate-se entre essas alterna -
gina após pá gina sobre encantamentos m ágicos, nenhum deles , em
essência , expresso pelas palavras do etn ógrafo. Estes textos ditados tivas. Será que o escritor etnográfico retrata o que os nativos pensam
foram em tudo o mais, com exceçã o de sua inscri ção física , escritos à maneira do flauberciano “estilo indireto livre” , um estilo que su -
por específicos e anó nimos trobriandeses. Na verdade , qualquer ex- prime a citaçã o direta em favor dc um discurso controlador que é
posição etnográfica contínua inclui rotineiramente em si mesma uma sempre, mais ou menos, o do autor ? ( Dan Sperber, 1981, tomando
diversidade de descri çõ es, transcrições e interpreta ções feitas por -
Evans Pritchard como exemplo , mostrou de forma - convincente
que o estilo indireto é sem d ú vida o modo preferido da inter-

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<> 47 c>
O A EXPERI Ê NCIA ETNOGRÁFICA S O B R E A A U T O R I D A D E E T N O G RÁ F I C
A V

preta çã o etnogr á fica . )


Ou ser á que o retrato de outras subjeti- P - 131-150 ) . Muchona, um curandeiro ritual, e Turner se unem
vidades requer uma versão estilisticamente menos homogé nea , por meio do interesse compartilhado pelos s ímbolos tradicionais,
cheia das “vozes diferentes” de Dickens ? as etimologias e os significados esot é ricos. Ambos sã o “ intelectuais” ,
Um certo uso do estilo indireto é inevitável , a menos que a inté rpretes apaixonados das nuances e profundezas dos costumes;
novela ou a etnografia seja composta inteiramente de cita ções, al - ambos são scholars desenraizados partilhando “a insaciável sede de
go que é teoricamente possível mas raramente é tentado . 12 Na conhecimento objetivo” . Turner compara Muchona a um professor
prá tica, poré m , a etnografia e o romance têm recorrido ao estilo universitá rio; seu relato desta colaboração inclui mais do que sim -
indireto em diferentes—n íveis-de -abstração.—Não—precitramos nos ples insinuações de que ele é seu “duplo” psicol ógico .
perguntar como Flaubert sabe o que Emma Bovaiy está pensando, H á , por é m , uma terceira presença nesse di á logo, Windson
mas a habilidade do pesquisador de campo em habitar as mentes Kashinakaji , um veterano professor ndembu da escola mission á ria
nativas suscita sempre d ú vidas. Certamente isto é um problema local. Ele reú ne Muchona e Turner e compartilha da paixão deles
permanente, n ã o resolvido , do m é todo etnogr á fico . Os etn ó grafos pela interpreta çã o da religi ã o tradicional . Por meio de sua educação
t ê m geralmente evitado atribuir cren ças , sentimentos e b í blica , ele “adquiriu um faro apurado para elucidar questões in -
pensa -
mentos aos indivíduos. Mas n ã o tê m hesitado em atribuir estados trincadas” ( ibid.) . Tendo se tornado cé tico a respeito dos dogmas
subjetivos a culturas. A an álise de Sperber revela como frases tais cristãos e dos privil égios mission ários , ele olha com simpatia para
como “os nuer pensam ...” ou “o senso nuer de tempo” são funda- a religi ã o pagã. Kashinakaji , conta-nos Turner, “ transpô s a dist â ncia
mentalmente diferentes de citações ou traduções do discurso na cultural entre Muchona e eu, transformando o jargã o técnico do
tivo. Tais declara ções n ã o t ê m “ nenhum falante específico” e sã o
- 5)1 curandeiro e a picante gíria da aldeia numa prosa que eu pudesse
literalmente equ ívocas, combinando de forma cont í nua as afirma- entender melhor ” ( ibid . ) . Os três intelectuais logo “estabeleceram
ções do etnógrafo com as do , ou dos informantes ( 1981, p. 78). uma espécie de semin á rio diá rio sobre religi ão” (ibid.). Os relatos
Sã o abundantes nas etnografias frases que n ã o sã o atribu ídas a de Turner sobre esse semin á rio são estilizados: “oito meses de esti-
ninguém , tais como: “ Os esp í ritos retornam à aldeia durante a mulantes e ágeis discussões entre nós tr ês, principalmente sobre o
noite ” , descrições de cren ças nas quais o escritor assume na verdade ritual ndembu” (ibid.). Eles revelam um extraordinário “colóquio”
a voz da cultura. etnogr áfico ; mas, significativamente, Turner n ão faz dessa colabo-
Neste n ível “ cultural ” , os etn ógrafos aspiram à onisci ê ncia : ração a três o eixo de seu ensaio. Em vez disso, ele centra o foco em
31 Muchona, transformando portanto um “ triálogo” num di álogo, e
flaubertiana que se move livremente por um mundo de sujeitos
nativos. Sob a superf ície, no entanto , seus textos sã o menos con transformando uma relação produtiva , complexa e sedutora no “ re-
trolados e mais discordantes. O trabalho de Victor Turner fornece
- trato” de um “ informante” (esta redu ção foi de alguma forma exi-
u m exemplo revelador, que vale a pena investigar mais gida pelo formato do livro no qual o ensaio primeiramente apare-
de perto ceu , a importante coletâ nea editada em i 960 por Joseph Casagrande,
como um caso de interaçã o entre a exposição monofô nica e a
poli- In the company of men: twenty portraits of anthropological inform-
fô nica . As etnografias de Turner oferecem retratos soberbamente
complexos dos símbolos, rituais e cren ças ndembu ; e ele forneceu ants ) .
també m alguns vislumbres incomumente explícitos dos Os trabalhos publicados de Turner variam consideravelmente
bastidores.
Em meio aos ensaios reunidos em The forest
of symbols, seu terceiro em sua estrutura discursiva. Alguns sã o em grande parte compostos
livro sobre os ndembu , Turner oferece um por citações diretas; em pelo menos um ensaio, Muchona é iden-
retrato de seu melhor
informante, “ Muchona the Ho met , interpreter of religion” ( tificado como a principal fonte de toda a interpreta çã o ; em outra
1967 ,

o 48 o 49 o
O A EXPERI ÊNCIA ETNOGRÁFICA SOBRE A AUTORIDADE ETNOGRÁFICA O

parte, ele é invocado anonimamente , por exemplo , como um es- Em outra ocasiã o, a conversa recaiu sobre as redes feitas para
pecialista em ritual ” (Turner, 1975, p. 40-42, 87, 154- 156, 244). pegar trutas no lago. As redes estavam ficando escuras, possivelmente
com material orgâ nico , e tendiam a se romper facilmente . Pa
Windson Kashinakaji é identificado como assistente e tradutor, em Fenuatara então contou uma hist ó ria ao pessoal reunido na casa
vez de uma fonte de interpreta ções . De forma geral , as etnografias sobre como , quando estava certa ve /. no lago com suas redes , sentiu
de Turner sã o incomumente polifô nicas, abertamente constru ídas que um esp í rito passava pela rede, tornando- a mais macia. Quando
a partir de citações ( “ De acordo corn um adepto... ” ou “ Um in - ele puxou a rede para fora do lago, a achou pegajosa. O esp írito
havia trabalhado ali. Perguntei a ele então se isso era parte do co-
formante acha... ” ) . No entanto , ele n ão representa os ndembu nhecimento tradicional, a ideia de que esp íritos eram responsá veis
em diferentes vozes, e ouvimos poucas vezes a tal “ picante gí ria da m. pela deterioração das redes . Ele respondeu : " N ão , isso é uma ideia
aldeia” . Todas as vozes do campo foram suavizadas na prosa expo - minha”. Ent ã o acrescentou , rindo : “Conhecimento tradicional de
sit ó ria de “ informantes” mais ou menos intercambi áveis. A ence- -
minha pr ópria autoria”. ( Ibid . , p. 17 18)
naçã o do discurso nativo numa etnografia, o necessá rio grau de Todo o impacto metodol ógico da coletâ nea de Casagrande
tradu çã o e familiariza çã o sã o complicados problemas prá ticos e 1. permanece latente, especialmente quanto à importâ ncia de seus
_
retó ricos . L Mas os trabalhos de Turner, ao darem um lugar vis ível
l
relatos para a produ ção dial ógica dos textos e interpreta ções etno-
às interpreta çõ es nativas dos costumes, exp õ em concretamente gráficos. Esta importâ ncia é obscurecida por uma tend ê ncia a tomar
esses temas do dialogismo textual e da polifonia . o livro como um documento universalizante, humanista , que revela
M
A inclusã o da descri ção de Muchona feita por Turner em The “uma sala de espelhos [...] numa grande variedade, a interminável
Q-
forest of symbols pode ser vista como sinal dos tempos. A colet â nea imagem refletida do ser humano” ( ibid . , 1960, p. xii ) . A luz da
de Casagrande na qual ela originalmente apareceu teve o efeito de m atual crise na autoridade etnográfica , no entanto , estes reveladores
isolar o tema crucial das rela ções entre etn ógrafos e seus colabo- 1
. retratos se imiscuem nas obras de seus autores, alterando o modo
radores ind ígenas. A discussão desse tema ainda n ão tinha lugar como elas podem ser lidas. Se a etnografia é parte do que Roy
nas etnografias cient íficas, mas a coletâ nea de Casagrande abalou Wagner (1980) chama de “a invenção da cultura”, sua atividade é
o tabu profissional pós- malinowskiano sobre os “ informantes pn - plural e além do controle de qualquer indivíduo.
vilegiados . Raymond Firth sobre Pa Fenuatara, Robert Lowie sobre
1 " v O O

Jim Carpenter uma longa lista de reconhecidos antropólogos w: Uma maneira cada vez mais comum de realizar a produ ção
descreveram os “etnógrafos” indígenas com quem eles dividiram ,
em algum grau, uma visão distanciada , anal í tica e mesmo iró nica colaborativa do conhecimento etnogr áfico é citar os informantes
dos costumes. Esses indivíduos se tornaram informantes valorizados ' extensa e regularmente. ( Um not á vel exemplo é We eat the Mines,
porque entenderam , muitas vezes com grande sutileza, o que impli - J§ the Mines eat us, de June Nash (1979) .) Mas esta tá tica apenas come-
iS»
ca uma atitude etnográfica diante da cultura. Na cita ção de Lowie ça a romper a autoridade monofô nica . As citações são sempre co-
de seu intérprete crow (e colega “filólogo”), Jim Carpenter, percebe- locadas pelo citador, e tendem a servir meramente como exemplos
se uma atitude comum: Quando você escuta os velhos contando ou testemunhos confirmadores. Indo-se al é m da cita çã o, pode-se
suas visões , você tem de acreditar nelas” ( Casagrande , 1960, p. 428 ) . imaginar uma polifonia mais radical que “ representaria os nativos
E h á bem mais do que apenas uma piscadela e um assentimento e o etnógrafo com vozes diferentes”; mas isso também apenas des-
c ú mplice na hist ó ria recontada por Firth sobre
ff locaria a autoridade etnográfica , confirmando uma vez mais a or-
seu melhor amigo questração final virtuosística feita por um só autor de todos os
e informante tikopi ano:
discursos presentes no texto. Neste sentido, a polifonia de Bakhtin,

o 50 o O 51 O
O A EXPERIÊ N C I A E T N O G RÁ F I C A SOBRE A AUTORIDADE ETNOGRÁFICA O

muito estreitamente identificada com o romance, é uma hetero- que lista em sua folha de -
rosto, sem distin çã o ( embora n ão , deve
glossia domesticada. Os discursos etnográficos n ão sã o , em nenhu- se notar,em ordem alfabé tica) : Donald M . Bahr, antropólogo; Iuan
ma circunstâ ncia, falas de personagens inventadas. Os informantes Gregorio , xamã; David I . Lopez, inté rprete; e Albert Alvarez, editor.
sã o indivíduos específicos com nomes pr ó prios reais nomes que Três destes quatro são í ndios papago, e o livro é conscientemente
podem ser citados de forma modificada quando necessá rio. As in- destinado a “ transferir a um xamã, tanto quanto possível, as fun ções
ten ções dos informantes são sobredeterminadas, suas palavras, polí- normalmente associadas à autoria. Estas incluem a opção por um
tica e metaforicamente complexas. Se alocadas num espaço textual determinado estilo explanativo , a obrigação de fazer interpretações
autó nomo e transcritas de forma suficientemente extensas, as decla- e explica ções e o direito de julgar as coisas que são importantes e as
rãçoes nativas fazem sentido em termos diferentes daqueles em que n ão o são” ( Bahr et al., 1974, p. 7) . Bahr, o iniciador e orga-
que o etn ógrafo as tenha organizado . A etnografia é invadida pela nizador do projeto, optou por partilhar a autoridade tanto quanto
heteroglossia . possí vel. Gregorio , o xam ã , aparece como a principal fonte da
Esta possibilidade sugere uma estratégia textual alternativa, “teoria da doen ça” que é transcrita e traduzida, em dois n íveis se-
uma utopia da autoria plural que atribui aos colaboradores não parados, por Lopez e Alvarez. Os textos de Gregorio em l í ngua
apenas o status de enunciadores independentes, mas de escritores. nativa incluem explicações compactadas, muitas vezes enigmá ticas,
Como uma forma de autoridade, ela deve ainda ser considerada que sã o elas mesmas interpretadas e contextualizadas por um co-
utó pica por duas razões. Primeiro, os poucos experimentos recentes mentá rio em separado de Bahr. O livro é incomum em sua ence-
de trabalhos de m ú ltiplos autores parecem requerer, como uma na ção textual da interpretaçã o das interpretações.
força instigadora, o interesse de pesquisa de um etn ógrafo que no
Em Piman shamanism, a transiçã o das enuncia ções indivi -
fim assume uma posição executiva , editorial . A estratégia de auto-
duais para as generaliza çõ es culturais é sempre vis ível na separação
ridade de “dar voz’ ao outro nã o é plenamente transcendida . Se - das vozes de Gregorio e de Bahr. A autoridade de Lopez, menos
gundo, a propria ideia de autoria plural desafia a profunda iden -
visível, é semelhante à de Windson Kashinakaji no trabalho de
tificação ocidental de qualquer organização de texto com a intenção
Turner. Sua flu ê ncia nas duas l ínguas guia Bahr pelas sutilezas da
de um ú nico autor. Ainda que essa identifica ção fosse menos forte
do que quando Lafitau escreveu seu Moeurs des sauvages américains, linguagem de Gregorio , permitindo assim ao xamã “falar extensi -
vamente sobre tó picos teó ricos”. Nem Lopez nem Alvarez aparecem
e a crítica recente a tenha colocado em questã o, ela ainda é uma
como uma voz espec í fica no texto , e sua contribui ção à etnografia
poderosa imposi ção sobre a escrita etnográfica . Todavia , h á sinais
de movimento nessa á rea. Os anmopó logos ter ão cada vez mais de permanece em grande parte invisível, a não ser para qualificados
partilhar seus textos, e , por vezes , as folhas de rosto dos livros, papagos, capazes de avaliar a exatid ão dos textos traduzidos e a
com aqueles colaboradores nativos para os quais o termo informante nuance vernacular das interpretações de Bahr. A autoridade de
n ão é mais adequado , se é que u m algum dia o foi . Alvarez reside no fato de que Piman shamanism ê um livro dirigido
a p ú blicos distintos. Para a maioria dos leitores interessados nas
o livro de Ralph Bulmer e Ian Majnep, Birds of my Kalam coun- tradu ções e explicações que os textos trazem em l í ngua piman , ele
try (1977) , é um importante prot ó tipo. (Tipos de letra diferentes será de pouco ou nenhum interesse. O linguista Alvarez no entanto
distinguem as contribuições justapostas do etn ógrafo e dos nativos corrigiu as transcrições e traduções atentando para seu uso no en -
da Nova Guin é , resultado da colabora ção de mais de uma d écada.) sino da l í ngua piman , utilizando uma ortografia que ele desenvol -
Ainda maisis significativo é o estudo de 1974, coletivamente produ -
vera com este propósito. Assim , o livro contribui para a inven çã o
zido. Piman shamanism and staying sick ness (.Ka:cim Munkidag) ,
literá ria dos papago em rela ção à sua pró pria cultura. Esta leitura

O 52 <> <> 53 O
O A EXPERI Ê NCIA ETNOGRÁFICA SOBRE A AUTORIDADE ETNOGRÁFICA O

diference, inserida em Piman shamanism, é de importâ ncia mais A concretização textual da autoridade é um problema recor-
do que apenas local. rente para os experimentos contempor â neos em etnografia. 16 Um
É intrínseco à ruptura da autoridade monol ógica que as etno- —
modo mais antigo , realista representado pelo frontisp ício de Os
argonautas do Pacífico Ocidental e baseado na constru ção de um
grafias n ão mais se dirijam a um ú nico tipo geral de leitor. A mul-
tiplica ção das leituras possíveis reflete o fato de que a consci ê ncia tableau vivant cultural destinado a ser visto a partir de um ú nico
“etnográfica” não pode mais ser considerada monopó lio de certas ponto de vista, aquele que une o escritor e o leitor , pode agora

culturas e classes sociais no Ocidente. Mesmo nas etnografias em ser identificado como apenas um paradigma possível de autoridade.

—que—fekem-os—Eexms-em—língua-nativa:, osMefrcrres indígenas- irão
'

decodificar diferentemente as interpreta çõ es e o conhecimento


"

1
Pressupostos pol í ticos e epistemoló gicos estão embutidos nestes e
em outros estilos, pressupostos que o escritor etnogr áfico n ã o pode
nativo textualizados. Os trabalhos polifônicos são especialmente mais se permitir ignorar. Os modos de autoridade resenhados
abertos a leituras n ã o especificamente intencionais. Os leitores aqui — o experiencial , o interpretativo, o dialógico, o polifô nico —
trobriandeses podem achar as interpretações de Malinowski cansa- estão dispon íveis a todos os escritores de textos etnográ ficos, oci-
tivas, mas considerar seus exemplos e extensas transcri ções evoca- if dentais e n ão-ocidentais. Nenhum é obsoleto, nenhum é puro: há
tivas. Os ndembu n ão irão glosar tão rapidamente quanto leitores 1 lugar para inven çã o dentro de cada um destes paradigmas. Vimos
europeus as diferentes vozes que existem nos textos de Turner. como novas abordagens tendem a redescobrir prá ticas antes descar-
tadas. A autoridade polifô nica olha com renovada simpatia para
A recente teoria liter á ria sugere que a eficá cia de um texto
em fazer sentido de uma forma coerente depende menos das inten- —
compê ndios de textos em l í ngua nativa formas exposidvas dis-
tintas da monografia centralizada num só tema e ligada à observa-
çõ es pretendidas do autor do que da atividade criativa de u m
leitor. Para citar Roland Barthes, se um texto é “a trama de cita ções
çã o participante. Agora que aquelas ingé nuas afirmações da auto
ridade experiencial foram submetidas à suspei ção hermenê utica ,
-
T
retiradas de inumerá veis centros de cultura”, ent ão “a unidade de podemos antecipar uma aten çã o renovada à intera çã o sutil entre
um texto repousa n ão em sua origem , mas em seu destino” ( 1977, componentes pessoais e disciplinares na pesquisa etnogr á fica.
p. 146, 148) . A escrita da etnografia, uma atividade n ã o controlada m .
Os processos experiencial, interpretativo, dial ógico e polifô-
e multissubjetiva, ganha coerê ncia por meio de atos espec íficos
de nico são encontrados , de forma discordante, em cada etnografia ,
leitura. Mas h á sempre uma variedade de leituras possíveis ( al é m
mas a apresentação coerente pressupõe um modo controlador de
das apropriações meramente individuais ) , leituras al é m do controle
autoridade. Um argumento é que esta imposi çã o de coer ê ncia a
de qualquer autoridade ú nica . Pode-se abordar uma etnografia
um processo textual sem controle é agora inevitavelmente uma
cl ássica buscando simplesmente captar os significados que o
pes- questã o de escolha estrat égica. Tentei distinguir importantes estilos
quisaclor deduz a partir dos fatos culturais representados. Ou ,
de autoridade na medida em que se tomaram vis í veis nas décadas
como sugeri , pode-se també m ler a contrapelo da voz
dominante recentes. Se a escrita etnográfica est á viva , como acredito que esteja,
no texto , procurando outras semi ocultas
- autoridades, reinter - ela est á em luta no limite dessas possibilidades, ao mesmo tempo
pretando as descri ções, textos e cita ções reunidos pelo
escritor. que contra elas.
Com o recente questionamento dos estilos
coloniais de represen -
ta çã o , com a expansã o da alfabetiza
ção e da consci ê ncia etnográ fica , Notas
novas possibilidades de leitura (e
portanto de escrita ) das descri ções
culturais est ã o surgindo.15 Apenas os exemplos ingleses, americanos e franceses sã o discutidos. Ainda
que os modos de autoridade aqui analisados possam , muito provavelmente ,
- í
.
o 54 O r 55 ,
ç
O A E X P E R I Ê N C I A E T N O G RÁF I C A S O B R E A A U T O R I D A D E E T N O G RÁ F I C A O

ser am plamentc generalizados, nenhuma tentativa foi feita no sentido de O conceito é algumas vezes muito apressadamence associado à intuição ou
-
estend ê los a outras tradi ções nacionais. Supõ e-se també m , na tradi çã o emparia , mas como uma descri ção do conhecimento etnográfico, Verstehen
antipositivista de Wilhelm Dilthey, que a etnografia é um processo de inter- envolve propriamente uma crí tica da experi ê ncia empá tica . O significado
pretação, não de explicação. Modos de autoridade baseados em epistemologias exato do termo é assunto de debate entre os especialistas em Dilthey (Makreel,
das ciê ncias naturais n ão são aqui discutidos. Em virtude de sua ê nfase sobre 1975, p . 6-7).
a observação participante como um processo intersubjetivo e como traço
Do livro de Favret -Saada ( 1981), ver, especialmente, o capítulo 2. Sua expe-
definidor da etnografia do século XX, essa discussão deixa de lado uma série
de fontes alternativas de autoridade: por exemplo, o peso do conhecimento riência foi reescrita em outro nível ficional em Favret -Saada e Contreras ( 1981).
acumulado em “arquivos” sobre determinados grupos; ou a perspectiva de Seria errado passar por cima das diferen ças entre as posi ções teó ricas de
comparação intercultural; ou o trabalho de levantamento estat ístico. Dwyer c He Crapanzano. Dwyer, seguindnGyõ rgy Luckács, traduzefdi álo-
2
A “heteroglossia” supõe que as go para a dialética marxista-hegeliana, mantendo fora de alcance, portanto, a
[...] l í nguas n ão se excluem , mas sim têm interseções umas com as
possibilidade de uma restauração do sujeito humano, uma espécie de realiza-
outras , de muitas formas diferentes ( a lí ngua ucraniana , a linguagem do
ção no e por meio do outro. Crapanzano recusa qualquer ancoragem numa
poema épico, do primeiro simbolismo, do estudante, de uma geração teoria englobante, sendo sua ú nica autoridade a do escritor do diálogo , uma
específica de crian ças, do intelectual mediano, do nietzschiano etc.) . É autoridade minada por uma narrativa inconclusiva de encontro , ruptura e
poss ível mesmo que a pró pria palavra “ linguagem ” perca todo sentido confusão . ( É importante notar que o di á logo , tal como usado por Bakhtin ,

nesse processo pois aparentemente n ão h á nenhum plano único no qual
todas estas “ linguagens” possam se justapor. ( Bakhtin , 1981 b, p. 291 )
não é redutível à dialé tica.) Para uma defesa da antropologia dialógica, ver
també m Tedlock , 1979.
O que se diz das linguagens se aplica igualmente às “culturas” e às “subcultures”. 9 Sobre os “tipos” realistas, ver Luckács, 1964 passim . A tend ê ncia a transfor-
Ver tamb é m Volosinov ( Bakhtin ?) , 1973, especialmentc cap ítulos 1 -3; e
Todorov, 1981 , p. 88-93.
I mar um indivíduo num cnunciador cultural pode ser observada em Dien
d’ eau , de Mareei Griaule (1948a ) . Isso ocorre ambivalentementc em Nisa ,
3
N ão tentei investigar estilos de escrita etnográfica que possam estar sendo de Shostak (1981 ). Para uma discussã o desta ambival ência e da complexida-
gerados fora do Ocidente. Como Edward Said, Paulin Hountondji e outros de discursiva resultante, ver a discussão cm “Sobre a alegoria etnográ fica”
mostraram , um considerável esforço de “limpeza” ideológica, um trabalho neste livro .
crítico de oposição, é contínuo; é a ele que os intelectuais n ão-ocidentais têm 10 Para um estudo
deste modo de produ ção textual , ver no presente livro “ Tra-
devotado grande parte de suas energias. Minha discussã o se mant é m nos balho de campo, reciprocidade e elaboração de textos etnográ ficos: o caso de
limites de um ci ê ncia cultural realista elaborada no Ocidente , embora em Maurice Leenhardt”. Ver també m , neste contexto, a introdução de Fontana
suas fronteiras experimentais. Mais ainda: ela n ão está considerando aqui ( 1975) a The Pima Indians, de Frank Russell , sobre o oculto co-autor do
como á reas de inovação os gêneros “paraetnográficos” da hist ória oral , do livro, o í ndio papago José Lewis; Leiris, 1 948a , discute a colaboração como
romance n ão-ficcional, o “ novo jornalismo” , a literatura de viagem e o filme co-autoria, tal corno o faz Lewis , 1973. Para uma defesa program ática da
document ário. ênfase de Boas nos textos vern á culos e sua colaboração com Hunt , ver
4
Na atual crise de autoridade, a etnografia emergiu como tema para o escru- Goldman , 1980.
t ínio hist ó rico. Para novas abordagens cr
íticas, ver Hartog, 1971 ; Asad, 1973; " O elaborado Bwiti, de James Fernandez ( 1985) , é uma transgressão conscien-
Burridge, 1973, cap. 1; Duchet , 1971; Boon, 1982; De Certeau, 1980; te da sint é tica forma monográfica , que retorna à escala malinowskiana e
Said , 1978 b; Stockingjr., 1983; e Rupp- Eisenreich , 1984. revive as funções “arquivísticas” da etnografia.
Sobre a supressão do di álogo no frontispício do livro de Lafitau c a 12
Tal projeto é anunciado por Evans- Pritchard cm sua introdu ção a Man and
constitui-
ção de uma antropologia textualizada , a-hist ó rica e visualmente woman among [he Azande (1974) , um trabalho posterior que pode ser visto
orientada ,
ver a detalhada an álise de Michel de Certeau ( como uma rea ção contra a natureza fechada, analítica de suas pr ó prias
1980 ) .

o 56 o <> 57 o
<> A E X P E R IÊ N C I A E T N O G RÁ F I C A

etnografias anteriores. Sua inspiração é reconhecidamente Malinowski. (A


noção de um livro inteiramente composto de citações é um sonho modernis-
ta associado a Walter Benjamin.)
13
Para uma perspectiva tipo “dinâmica de grupo” na etnografia, ver Yannopoulos
e Martin , 1978. Para uma etnografia explicitamente baseada em “seminá-
rios” nativos, ver Jones e Konner, 1976.
SOBRE A
ALEGORIA ETNOGRÁFICA
14
-
O uso que faz Favret Saada do dialeto e do tipo itálico em Les mots, la mort, les

pando por muito tempo os romanrisras realistas:


15 Um —
sorts (1977) é uma solução entre muitas para um problema que vem preocu-

modelo extremamente sugestivo de exposição polifô nica é fornecido


pela edição, planejada para quatro volumes, dos textos etnográficos escritos,
1. Uma histó ria na qual pessoas, coisas e eventos tê m
outro significado, como numa fábula ou numa pará bola:
-
provocados e transcritos entre 1896 e 191 4 por James Walker na reserva
sioux de Pine Ridge. Tr ês t ítulos já apareceram , editados por Raymond .
as alegorias são usadas para ensinar ou explicar.

DeMaille-e Elaine Jahner: Lakota belief and ritual (1982a) , Lakota society
J 2. A apresentação de ideias por meio de tais histó rias... '
(1982b) e Lakota myth (1983). Estes absorventes
volumes na verdade
redescobrem a homogeneidade textual da clássica monografia de Walker, de Num ensaio sobre narrativa, Victor Turner argumenta que as
1917, The sun dance, uma suma das declarações individuais publicadas numa
tradu ção. Essas declarações feitas por mais de trinta pessoas chamadas de
“autoridades” complementam e transcendem a síntese —
bém de senso comum que proporcionam ao processo social uma

performances sociais encenam histó rias poderosas m íticas e tam -
de Walker. Um longo retórica, “uma forma de enredo e um significado” (1980, p. 153).
trecho de Lakota beliefmd ritual foi escrito por Thomas Tyon, intérprete de
Walker. O quarto volume da coleção será uma tradução de escritos de George No que se segue, trato a própria etnografia como uma performance
Sword, um guerreiro e juiz oglala encorajado por Walker a registrar e inter com enredo estruturado por histó rias poderosas. Encarnadas em
pretar o modo de vida tradicional. Os primeiros dois volumes ap resentam
- relatos escritos, tais histó rias simultaneamente descrevem aconteci -
os
textos não publicados dos sábios lakota e as pró prias descri es mentos culturais reais e fazem afirmações adicionais, morais, ideoló-
çõ de Walker em
formato idêntico. A etnografia aparece como um processo de produção coletiva. gicas e mesmo cosmológicas. A escrita etnográfica é alegórica tanto
É essencial notar que a decisão da Sociedade Histórica do Colorado de publi- no nível de seu conteúdo (o que ela diz sobre as culturas e suas
car estes textos foi estimulada pelas solicitações crescentes da
comunidade histó rias) quanto no de sua forma (as implicações de seu modo de
oglala em Pine Ridge por cópias do material de Walker para usá las em aulas
da história oglala (sobre Walker, ver Clifford, 1986a, p. 15 17).
- textualiza ção) .
-
16
Para um survey muito ú til e completo das recentes etnografias experimentais, Um exemplo aparentemente simples introduzirá minha abor-
ver Marcus e Cushman, 1982; ver também Webster, 1982; Fahim , dagem. Marjorie Shostak começa seu livro Nisa: the life and words
1982; e
Clifford e Marcus, 1986. of a IKung woman, com a histó ria de um nascimento ao modo

Ikung com a mulher fora da aldeia, sozinha. Aqui estão alguns
trechos:
Deitei- me ali e senti as dores vindo, outra vez. Então senti algo
molhado, o in ício do nascimento. Pensei : “ Epa, talvez isso seja a
-
crian ça” . Levantei me, peguei um cobertor e cobri Tashay com ele;
ele ainda estava dormindo. Então peguei outro cobertor e minha
pele de antílope e fui embora. Eu não estava sozinha? A ú nica outra

C* 58 O

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