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Deutsche Gesellschaft für Internationale Zusammenarbeit

GIZ

Produto 2

“Relatório do Estudo de Caso – processo dos arranjos de implementação das


políticas e os elementos do seminário de trabalho”

Consultora: Clarisse do Carmo Jabur

(Contrato: 83100392)

Brasília, janeiro de 2011

1
Sumário

1. Introdução e Objetivos ............................................................................................ 4

2. O povo Yanomami: contato com a população envolvente e luta pela


demarcação e garantia da terra ..................................................................................6

3. A história do atendimento de saúde aos Yanomami...........................................10

4. Histórico da Educação escolar entre os Yanomami e Ye´kuana........................12

5. Dados populacionais .............................................................................................16

6. Caracterização das regiões....................................................................................18

7. Estudo de caso: a região de Maturacá..................................................................21

7.1. Histórico da região...............................................................................................21

7.2. Garantia de cidadania: percursos sinuosos......................................................22

7.3. Casa de Apoio.......................................................................................................24

7.4. Alternativas econômicas e conseqüências.......................................................28

8. Os benefícios sociais e os Yanomami: desafios e possibilidades.....................30

9. Recomendações......................................................................................................33

10. Bibliografia.............................................................................................................35

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“Se o “povo da mercadoria” não quiser que o céu caia sobre ele, é
preciso que ajude a impedir a morte dos indígenas. O dia que o último
indígena morrer, será o fim do mundo” (Davi Kopenawa Yanomami).

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1. Introdução e Objetivos

A presente consultoria está inserida no âmbito do Projeto de Cooperação


Técnica Proteção e Gestão Sustentável das Terras Indígenas na Amazônia Legal
(FUNAI/GIZ), uma das principais linhas de ação no contexto maior da Cooperação
Brasil-Alemanha na área prioritária Proteção e Gestão Sustentável das Florestas
Tropicais. Essa iniciativa intergovernamental conta com o apoio do Ministério Federal
de Cooperação Econômica e Desenvolvimento da Alemanha (BMZ)1.

Neste contexto, a consultoria tem o propósito de apoiar a Coordenação de


Promoção aos Direitos Sociais Indígenas (CGPDS), vinculada à Diretoria de
Promoção ao Desenvolvimento Sustentável (DPDS) da FUNAI em seu intuito de
otimizar a gestão e o acompanhamento de implementação de políticas públicas de
benefícios sociais universalistas, tendo em vista a adequação para os povos
indígenas, principalmente os de “recente contato”.

É necessário construir um diagnóstico dos direitos sociais acessados pelos


povos indígenas que indique instrumentos de verificação dos princípios de promoção
social visando a melhoria dos serviços ofertados. Também devem ser analisados em
particular, os efeitos das referidas políticas para os povos indígenas considerados de
recente contato. E assim, também formular uma proposta de metodologia de trabalho
específica para esse público.

Nesse segundo produto, será apresentado um relatório do estudo de caso


realizado entre os Yanomami de Maturacá, localizados no alto rio Cauaburis,
mostrando como as referidas políticas são implementadas. Também serão levantados
os elementos de debate para um seminário que ocorrerá sobre o tema. A terceira fase
do trabalho consistirá na elaboração de uma proposta para um seminário de discussão
sobre o tema entre os vários sub-grupos Yanomami.

A inserção dos povos indígenas nas políticas públicas de transferência de


renda e de outros benefícios sociais deve ser analisada caso a caso. No entanto,
quando se tratam de povos indígenas considerados de “recente contato” como os
Yanomami, devem ser vistas com várias ressalvas. Nas referidas políticas de
benefícios sociais os povos de recente contato representam um grande número de
beneficiários, pois são os que geralmente possuem baixa renda ou não possuem
nenhuma renda.

Devido à dimensão da Terra Yanomami (TY) de 96.650 km² (9.664.975


hectares), costuma-se tratar um conjunto de casas ou comunidades com uma
delimitação geográfica e cultural como “regiões”. Para os fins desse trabalho, foi
escolhida a região de Maturacá, por ser umas das regiões com o maior número de
beneficiários2. A consultoriaa tentou traçar o “ciclo dos benefícios”. Primeiro
observando a verdadeira odisséia que os Yanomami têm que enfrentar para ir acessar
os benefícios em São Gabriel da Cachoeira, o que inclui transporte fluvial e terrestre e

1
“A cooperação técnica no âmbito deste projeto focaliza o desenvolvimento de capacidades para a
implementação de políticas públicas voltadas à proteção e gestão sustentável das Terras Indígenas (TIs)
na Amazônia. Com este objetivo, o projeto almeja produzir os seguintes efeitos: aprimoramento das
estratégias e dos serviços governamentais e da sociedade civil voltados à proteção e gestão sustentável
das TIs; redução de ocorrências registradas (invasões e ameaças) em TIs selecionadas; gestão
sustentável das TIs; fortalecimento das organizações indígenas nas suas capacidades técnicas e de
articulação” (GIZ).
2
A visita às outras macro-regiões localizadas em Roraima não ocorreu devido a uma outra agenda
existente na época da consultoria.

4
consequentemente um gasto de combustível e com o pagamento do frete pela BR
307. Depois, o beneficiário e vários membros (senão todos os membros da família)
têm que se hospedar em São Gabriel da Cachoeira e há mais gastos com
alimentação. Quando conseguem sacar o dinheiro, compram as mercadorias de que
necessitam e começa a odisséia de retorno a Maturacá. Além de retornarem com
mercadorias, também estão levando lixo que pode não ter destino adequado.
Nesse interflúvio de idas e vindas ocorrem muitos contratempos como o
bloqueio da senha do cartão para ter acesso aos benefícios, a doença contraída na
cidade e levada por algum membro da família à terra indígena, acidentes com
automóvel, ingestão de bebida alcoólica, etc ... É no acompanhamento do cotidiano da
região, na conversa com as mulheres e idosos, que se percebe como se organiza o
“ciclo dos benefícios”. Devido à extensão da Terra Yanomami, é necessário se ter
posteriormente um diagnóstico mais apurado de cada região, que contemple o
cruzamento de dados populacionais, epidemiológicos compondo um panorama da
situação social.

Foram utilizadas várias metodologias consideradas adequadas para analisar a


realidade Yanomami. Primeiro foram realizadas entrevistas com as diretorias das duas
associações Yanomami - Hutukara Associação Yanomami (HAY) com sede em Boa
Vista (RR) e da Associação Yanomami do Alto Rio Cauaburis (AYRCA), com sede em
Maturacá. A consultora também colheu depoimentos dos servidores da Frente de
Proteção Etnoambiental Yanomami e Ye´kuana (FPEYY), dos coordenadores da
Coordenação Regional (CR) do Rio Negro e de Boa Vista e da Coordenação Geral de
Índios Isolados e de Recente Contato (CGIIRC) da FUNAI em Brasília.

A consultora também realizou uma visita à região de Maturacá no período de


12 à 18 de janeiro de 2011, onde pode conversar diretamente com os Yanomami
sobre os problemas e desafios do pleno acesso a essas políticas. No dia 15, realizou
uma reunião juntamente com a diretoria da AYRCA, do coordenador da CTL de
Maturacá, Luiz Pereira. A reunião foi realizada no ginásio de esportes da Escola
Imaculada Conceição em Maturacá com uma presença maciça de jovens, mulheres,
crianças e lideranças tradicionais. O conhecimento e fluência na língua Yanomami e a
vivência anterior da consultora com esse povo facilitou a comunicação e a obtenção
de informações.

5
2. O povo Yanomami: contato com a população envolvente e luta pela
demarcação e garantia da terra

O povo Yanomami é composto de uma população de aproximadamente 19.338


pessoas distribuída pelos municípios de Amajari, Mucajaí, Iracema, Alto Alegre e
Caracaraí, nos estado de Roraima e pelos municípios de São Gabriel da Cachoeira,
Santa Izabel do Rio Negro e Barcelos , localizados do Amazonas (FUNASA, 2010). A
família lingüística Yanomami isolada está dividida em 4 sub-grupos – Yanomae
(dialetos ocidental e oriental), Ninam (ou Xiriana, Xirixana), Yanomamö (ou Xamathari)
e Sanuma. O povo Ye´kuana, de língua Carib também habita a Terra Yanomami.

Os primeiros contatos entre os Yanomami e a sociedade nacional, ainda de


maneira esporádica, ocorreram entre 1910 e 1940 com caçadores, coletores,
exploradores, balateiros, piaçabeiros, soldados da Comissão Brasileira de Delimitação
e Limites (CBDL) e funcionários do Serviço de Proteção ao Índio (SPI). A instalação
permanente de missões religiosas e de alguns postos do SPI até a década de 60
fizeram com que os contatos se intensificassem.

Na década de 70, houve outra fase de contato com o início dos projetos de
desenvolvimento do Governo Federal no âmbito do Plano de Integração Nacional
(PIN) como a construção da estrada Perimetral Norte e do Projeto RADAM - Brasil
revela a existência de um grande potencial mineral estratégico de cassiterita, nióbio,
ouro e vários outros metais (ALBERT, 1992). “Até abril de 1986, haviam sido
concedidos 537 alvarás de pesquisa sobre terras indígenas na Amazônia e outros
1.732 requerimentos que aguardavam deferimento, segundo pesquisa do Centro
Ecumênico de Documentação e Informação (CEDI) e da Coordenação Nacional dos
Geólogos (CONAGE)” (AÇÃO PELA CIDADANIA, 1989:16).

Em 1973, inicia-se a abertura da Rodovia Perimetral Norte (BR 210), um dos


marcos na história epidemiológica dos Yanomami. Nesse primeiro período, “moléstias
infecciosas mataram 22% da população de quatro aldeias, as primeiras atingidas pelas
obras. Dois anos depois, mais 50% dos habitantes de outras quatro comunidades
sucumbiram a uma epidemia de sarampo” (RAMOS, 1993: 9). A população Yanomami
que vivia em contato com esses trabalhadores foram as primeiras a serem afetadas.
“Segundo outros dados da CCPY3, em 1973, 13 aldeias Yanomami – entre os km 40 e
105 da Perimetral Norte – foram reduzidas a apenas oito pequenos grupos de famílias
maltrapilhas e vivendo precariamente à beira da estrada” (AÇÃO PELA CIDADANIA,
1990, 15).

Entre 1975 e 1976, cerca de 500 garimpeiros invadiram a Serra de Surucucus.


Em 1980, mais 2.000 garimpeiros entraram no Furo Santa Rosa do Rio Uraricoera. Na
segunda metade da década de 80 se inicia a maior invasão garimpeira à TY. Em 1985,
a Serra de Surucucus é novamente invadida. Em seu auge, a produção garimpeira
chegou a uma tonelada por mês segunda a revista Veja (CEDI, 1990a: 178). Para se
ter uma idéia da riqueza imensurável que foi retirada da TY, a hora-vôo de um
helicóptero custa trezentos gramas de ouro.

As rotas dos garimpeiros passaram a dar o rumo das epidemias. Segundo os


registros, o ano de 1987 foi o mais difícil. “Nos primeiros sete meses de 1987, a CCPY
registrou 280 casos de gripe numa população de 320 índios, perto do posto indígena
de Surucucus” (AÇÃO PELA CIDADANIA, 1990: 15). “De meados de 1987 a janeiro de
1990, o auge da corrida do ouro, estima-se que cerca de mil Yanomami, ou seja, 14%

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Comissão Pró-Yanomami, organização criada em 1979 com o objetivo de defender e garantir os direitos
do povo Yanomami.

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de sua população em Roraima tenham morrido principalmente por causa de doenças
como a malária. Se considerarmos que esse número se refere apenas aos cerca de
6.700 Yanomami que vivem no estado de Roraima, temos aí uma percentagem de
mais de 22% de mortes em menos de três anos” (RAMOS, 1993: 9).

Em 1988, o próprio governo afirma a existência de cerca de 45 mil garimpeiros


na TY, ou seja, cinco vezes a população indígena de todo o estado de Roraima.
Estima-se que 150 aviões pousavam diariamente no aeroporto de Boa Vista, que
chegou a receber o título de maior tráfego aéreo do país. Para os Yanomami, as
consequências foram trágicas. O intenso movimento de indivíduos, aviões,
helicópteros e máquinas espantaram a caça e os vários rios foram poluídos por
mercúrio, promovendo a extinção dos peixes.

“De meados de 1987 a janeiro de 1990, o auge da corrida do ouro, estima-se


que cerca de mil Yanomami, ou seja, 14% de sua população em Roraima, tenham
morrido principalmente por causa de doenças como a malária. Se considerarmos que
esse número se refere apenas aos cerca de 6.700 Yanomami que vivem no estado de
Roraima, temos aí uma percentagem de mais de 22% de mortes em menos de três
anos” (RAMOS, 1993: 9).

A situação de calamidade vivida pelos Yanomami chegou a um ponto tão


crítico que começou a atrair a atenção internacional. Algumas imagens foram
veiculadas na mídia acompanhadas de um enorme apelo aos direitos humanos.

“Alguns jornalistas conseguiram infiltrar-se na área e trouxeram de volta


imagens em fotos e vídeos de desnutrição aguda: homens, mulheres e crianças
esqueléticos como já nos acostumamos a ver nos telejornais sobre a Etiópia ou a
Somália, cadáveres de Yanomami abandonados pelo mato, arrogantes garimpeiros
distribuindo remédios e enlatados aos índios enquanto zombavam deles, comparando-
os a macacos” (RAMOS, 1993:5-6).

Nesse mesmo ano, várias manifestações foram deflagradas ao redor do mundo


para chamar atenção do genocídio do povo Yanomami. No dia 11 de outubro de 1988,
a Survival International organizou um protesto em frente às embaixadas de todos os
países em Londres e simultaneamente em frente às embaixadas brasileiras de 20
países diferentes. Em 18 de novembro, os religiosos da Missão Consolata entregaram
à ONU um documento com 150 mil assinaturas no qual denunciam a situação dos
Yanomami. Em fevereiro de 1990, integrantes do grupo Amigos dos Índios fizeram um
jejum de 24 horas em frente à embaixada brasileira em Madri e entregaram um
documento ao Presidente Collor pedindo providências. No mesmo mês, o príncipe
Charles, durante uma palestra no Jardim Botânico Kew Garden fez várias críticas ao
governo brasileiro com relação ao tratamento do caso Yanomami. Em março, a
Survival International realizou uma vigília de 48 horas em frente à embaixada do Brasil
em Washington. Um abaixo-assinado com oito mil assinaturas colhidas pela Agência
Católica para o Desenvolvimento Além-Mar em 16 países (entre eles Austrália,
Canadá, Filipinas, Sri Lanka e Zimbabwe) foi entregue na embaixada brasileira em
Londres (CEDI, 1991:178, 189, 190).

Em 1989, um relatório sobre a situação de saúde e sanitária da TY foi


encaminhado diretamente à Secretaria-Geral da ONU. No mesmo ano, em março, o
caso Yanomami foi um dos mais tratados durante um seminário em Genebra sobre
“Efeitos do Racismo e Discriminação Racial sobre as Relações Sociais e Econômicas
entre Estados e Povos Indígenas”. Em agosto, Marcos Terena fez um pronunciamento
em defesa dos Yanomami com o reforço da denúncia de diversas ONGs como o já
citado Indian Resource Center, a Anistia Internacional, Cisa, IWGIA e outras. Em

7
1990, novas denúncias foram trazidas pela Sociedade dos Povos Ameaçados da
Áustria, a Pax Cristi, Terre des homes e Survival International.

Davi Kopenawa4 teve um papel fundamental nessa publicidade pela


importância que lhe foi conferida em meados da década de 80, quando recebeu o
Prêmio Global 500 por sua luta pelo meio ambiente.

Em meio a essa “vergonha internacional”, foi assinada em 13 de setembro de


1988, a Portaria Interministerial nº160/88 que criava a TY com aproximadamente 8
milhões de hectares, composta por 19 áreas indígenas e recomendando a criação de
duas Florestas Nacionais, a de Roraima e a do Amazonas e o Parque Nacional do
Pico da Neblina.

No entanto, em 18 de novembro, apenas dois meses depois, mesmo com a


intensa campanha internacional, o governo assina a Portaria Interministerial nº 250/88
fragmentando a TY em 19 áreas indígenas, propondo a criação das Flonas de
Roraima e do Amazonas e o Parque Nacional Pico da Neblina. Em 19 de fevereiro de
1989, o Presidente José Sarney assina 21 decretos (decretos 97.512 a 97.530 de
17/02/89) homologando as 19 Áreas Indígenas Yanomami (ALBERT, 1991).

Essas ações contradiziam a proposta de 1984 onde a FUNAI e o Conselho de


Segurança Nacional reconheceriam como Área Indígena Yanomami um total de
9.419.108 hectares. Essa proposta foi baseada num estudo completo realizado por
especialistas da CCPY, sobre a distribuição da ocupação Yanomami, o uso do
território e suas necessidades de subsistência. Apesar do extenso levantamento
populacional realizado por um grupo interministerial em 1987/88, chegando ao número
de 9.910 Yanomami no Brasil, o governo brasileiro delimitou essas 19 pequenas e
descontínuas áreas e totalizando menos de 2.500.000 hectares, ou seja, menos de 1/4
da área proposta em 1984 (CCPY, 1990).

Alcida Rita Ramos escreveu um parecer antropológico em agosto de 1989 por


solicitação da Procuradoria Geral da República à Associação Brasileira de
Antropologia5. Destacando a importância das trilhas que ligam as várias aldeias,
Ramos mostra como a hipótese dos Yanomami viverem em “ilhas” não passaria do
papel, era inconcebível. “Por elas [trilhas] passam todos os impulsos sociais que
mantêm viva a cadeia de relações entre comunidades e que tornam virtualmente
impossível o isolamento e a atomização dos grupos locais. As trilhas são como nervos
condutores de sentido social perpassando aldeias, roças, mata e a interação entre
seres humanos e espíritos, ou seja, o sobrenatural (CCPY, 1990)”.

Além das trilhas, com base no uso da terra para sobrevivência, a área
suficiente para os Yanomami foi calculada em no mínimo 16 quilômetros ao redor de
cada aldeia para abastecer de carne de caça as suas populações. Portanto, a área
necessária para a sobrevivência desse povo só seria suficiente se estivesse de acordo
com a proposta de 1985.

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Davi Kopenawa é um porta-voz do povo Yanomami bastante conhecido internacionalmente por sua luta
pelo meio ambiente e pelo direito dos povos indígenas. Em 1988, recebeu o Global 500 Award das
Nações Unidas e em 1989 o Right Livelihood Award considerado o prêmio Nobel alternativo. Foi
condecorado em 1999 com a Ordem do Rio Branco pelo Presidente da República e em 2008 recebeu
uma menção honrosa especial do prestigiado Prêmio Bartolomé de Las Casas outorgada pelo governo
espanhol por sua luta em defesa dos direitos dos povos autóctones das Américas (Hutukara, 2011).
5
“Faz parte do processo que instruiu a Medida Cautelar movida pelo Ministério Público, solicitando a
interdição e reconhecimento da posse imemorial de cerca de 9.400.000 há da área indígena Yanomami e
a retirada de mais de 40 mil garimpeiros invasores” (CCPY, 1990).

8
A Ação pela Cidadania integrada pela Comissão Nacional dos Bispos do Brasil
(CNBB), Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Associação Brasileira de Imprensa
(ABI), Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Central Única dos
Trabalhadores (CUT), Comando Geral dos Trabalhadores (CGT) entre outras, viajou
para Roraima em junho de 1989. O grupo visitou a Casa do Índio e a região do
Paapiu, uma das mais atingidas pelo garimpo, e publicou posteriormente um
importante relatório sobre as condições de vida dos Yanomami (KRENAK, 1990; Ação
pela Cidadania, 1989). O Senador Severo Gomes sentenciou em um artigo publicado
na Folha de São Paulo em junho de 1989, que “nunca houve na história do infortúnio
dos índios brasileiros um genocídio com as características que cercam o fim do povo
Yanomami” (CEDI, 1991). Em 1990, a Ação pela Cidadania produziu um segundo
relatório que foi apresentado no auditório do Senado Federal com a presença de
jornalistas, parlamentares, índios, indigenistas, diplomatas do Itamaraty, e é claro, de
antropólogos. Davi Kopenawa e Raoni discursaram e a situação de saúde dos
Yanomami foi um dos pontos mais citados (Ação pela Cidadania, 1989).

A 20 de outubro de 1989, o Juiz da 7º Vara de Justiça do Distrito Federal, Dr.


Novely Vilanova da Silva Reis, concedeu liminar em favor tanto da interdição quanto
da retirada dos invasores. No dia 13 de dezembro, o presidente Sarney assinou o
decreto criando o Plano de Defesa das Áreas Indígenas Yanomami e da Floresta
Nacional, o que provocou uma reação dos agentes envolvidos no garimpo.

“A reação a essa ordem judicial veio rápida e ousada: empresários, donos de


aviões e outros agentes de garimpo começaram a despejar dezenas de índios doentes
nos hospitais e na Casa do Índio em Boa Vista (...). Transferiam, assim, para a
Fundação Nacional do Índio as atenções acusadoras da opinião pública. Em
novembro de 1989, mais de 200 Yanomami se amontoavam na Casa do Índio,
praticamente sem assistência médico sanitária, famintos pela falta de alimentação
suficiente, assistindo à morte contínua de filhos pequenos. Uma avalanche de
jornalistas brasileiros e estrangeiros desceu sobre Boa Vista e começou então o
espetáculo macabro da dizimação dos Yanomami. Com esse escândalo que expôs o
governo brasileiro a uma das piores campanhas de repúdio, o Estado encheu-se de
brios e começou a organizar programas emergenciais de saúde. Todos aqueles que
estavam proibidos de retornar à área foram chamados para colaborar no esforço de
estancar a sangria de vidas Yanomami” (RAMOS, 1993).

No dia 19 de abril de 1991, célebre “dia do índio”, o Presidente Fernando Collor


de Melo revogou os decretos de Sarney e manteve provisoriamente a área da
demarcação anterior declarada em 1985 justificando a necessidade de mais estudos.
A TY foi finalmente demarcada por meio da Portaria Declaratória 580 de 15 de
novembro de 1991. A TY é a maior terra indígena do Brasil, distribuída pelo estado de
Roraima e Amazonas, com uma extensão de 9.664.975 hectares (96.650 km²). Foi
homologada por decreto presidencial do Presidente Fernando Collor de Melo em 25 de
maio de 1992.

Apesar da homologação, a TY ainda sofre com a intrusão, pois ainda existem


fazendeiros em seu interior e uma grande presença de atividades ilícitas como
garimpagem, pesca, coleta de piaçaba, comercialização de quelônios e “piabas”, etc.
Cada região enfrenta dificuldades e situações epidemiológicas particulares, conforme
a relação estabelecida com os napë pë6 e com as fronteiras de expansão econômica.

6
“Não-Yanomami”, o “outro” por excelência nas 4 línguas da família lingüística Yanomami. Faz-se uma
ressalva que apenas na Língua Sanuma, napö pö é como são chamados os Ye´kuana (povo Karib que
habita a Terra Yanomami). Os brancos que chegaram depois são denominados de setënapi töpö.

9
É fundamental se atentar para essa diversidade e não mostrar uma falsa
homogeneização.

A história do atendimento de saúde para esse povo foi tão emblemática quanto
à história da demarcação da TY e é fundamental para se tentar entender a situação
social atual dos Yanomami.

3. A história do atendimento de saúde aos Yanomami

Em 1991, no mesmo ano em que a Terra Yanomami (TY) foi demarcada, cria-
se o Projeto de Saúde Yanomami, que veio a dar origem ao Distrito Sanitário
Yanomami. A Funasa, então, começou a trabalhar em 80 % da TY. A CCPY, a
Diocese de Roraima, a Médicos do Mundo e a MEVA (Missão Evangélica da
Amazônia), que já trabalhavam com os Yanomami, atendiam as outras regiões com
recursos privados. O trabalho da cada organização era bem localizado e às vezes se
ampliava para outras áreas, como educação e religião.
Em 1994, com o decreto nº 1.141, a Funai assumiu o atendimento diretamente
nos postos de saúde. O Ministério da Saúde e a Funasa ficaram responsáveis pelas
ações de prevenção. Nessa época, muitos postos na TY ficaram abandonados. Então
a Funasa assinou pela primeira vez em sua história um convênio com uma
organização não-governamental para a assistência à saúde indígena - a CCPY.

No final da década de 90, com o Decreto nº 3156/99 e a Lei Arouca (n° 9.836),
o Ministério da Saúde voltou a ser o responsável pela execução do atendimento em
saúde. Discute-se então uma nova política em nível nacional de “Reestruturação da
Saúde Indígena”. Os 34 DSEIs foram implantados e os serviços de atenção básica à
saúde e prevenção passaram a ser executados através da descentralização via
convênios firmados com diversas organizações da sociedade civil - associações
indígenas e indigenistas - e alguns municípios.

Assim, alguns membros da CCPY criam a Urihi – Saúde Yanomami7, uma


organização com um perfil mais voltado para a assistência e a educação em saúde.
Em janeiro de 2000, iniciou suas atividades de campo para cerca de 50 % da
população Yanomami no Brasil. A Urihi investiu na formação de microscopistas
Yanomami que efetivamente faziam a busca ativa, o que diminuiu muito o índice de
malária. As equipes multidisciplinares de saúde começaram a permanecer mais tempo
nos sub-pólos, mesmo nos mais afastados. Os pólos também contavam com uma
infra-estrutura mais completa, sistema de comunicação por radiofonia em todas as
aldeias, sistema de energia solar em todos os pólos e mais barcos, motores,
nebulizadores e microscópios. Observou-se uma grande melhora na situação de
saúde dos Yanomami.

Em 2004, as mudanças no modelo de gestão do sistema de atenção à saúde


indígena decorrentes da publicação das Portarias nº 69 e nº 70 do Ministério de Saúde
determinaram novas diretrizes para a saúde indígena. A Funasa recuperou a
execução direta do atendimento e reduziu o papel das conveniadas apenas à
contratação de pessoal, à atenção nas aldeias com insumos, ao deslocamento de

7
“É uma organização não governamental brasileira sem fins lucrativos, formada por profissionais e
intelectuais com uma larga história de defesa dos direitos dos índios Yanomami. A partir do ano 2000
assumiu, através de um convênio com a Fundação Nacional de Saúde, a assistência básica à saúde de
aproximadamente a metade dos 14.040 índios Yanomami residentes no Brasil” (URIHI, 2004).

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índios das aldeias e à compra de combustível. A não concordância com desses termos
levaram a Urihi a rescindir o convênio que mantinha com a Funasa.

Em 2006, a Fundação Universidade de Brasília (FUB) assumiu a assistência da


maior parte da DSY. O ciclo da malária retornou com força total. Em 2003, no último
ano de atuação da URIHI, foram registrados 418 casos de malária entre os Yanomami.
Apenas dois anos depois, em 2005, foram 1.645 casos, e esse número continuou
crescendo. Somente no primeiro semestre de 2006 foram notificados 2.591 casos,
representando um aumento de 470% em relação ao mesmo período no ano anterior
(Funasa, 2006).

Atrelado a essa piora na situação epidemiológica, houve uma má gestão dos


recursos. O orçamento destinado ao DSY foi quase triplicado em apenas 4 anos.
Mesmo com o aumento de R$ 13 milhões em 2003 para R$ 31 milhões em 2007,
houve um grande decréscimo da qualidade de atendimento. A má gestão foi ficando
cada vez mais aparente. Diversas vezes, entre agosto de 2005 e 2006, o atendimento
de saúde foi suspenso em decorrência da falta de pagamento do convênio da Funasa
(ISA, 2005).

“Graves irregularidades foram detectadas pelo Ministério Público Federal e o


pelo Tribunal de Contas da União (TCU) em seu acórdão TC-019.700/2005-4:
pagamento a pessoas não contratadas para prestar serviços no Distrito Sanitário
Yanomami; deficiências na elaboração das prestações de contas; despesas sem
correlação com as metas, etapas ou fases programadas; pagamento de pessoas sem
especificação da função desempenhada; ausência de procedimentos licitatórios”
(URIHI, 2004). Foi recomendado que o convênio com a FUB não fosse renovado, mas
essa indicação não foi seguida.

Em outubro de 2007, foi executada a “Operação Metástase”, operação conjunta


da Polícia Federal e do Ministério Público Federal que comprovou o desvio de cerca
de R$ 34 milhões da saúde indígena de Roraima, tendo sido apontado como chefe do
esquema o então Coordenador Regional da Funasa Marcelo Lopes. Alguns supostos
envolvidos foram presos e o caso repercutiu nacionalmente.

Ainda em 2007, a Secoya (Serviço e Cooperação com o Povo Yanomami),


organização que já trabalhava com saúde em algumas regiões do Amazonas, assumiu
o atendimento de quase todo o DSY. O atraso no repasses das parcelas do convênio
provocou atraso de salários e conseqüentemente vários processos trabalhistas contra
a organização, provocando um verdadeiro desgaste institucional.

Depois, sem nenhuma conveniada à vista, os profissionais voltaram a ser


contratados como “trabalhadores temporários”. A rotatividade era muito intensa e não
havia acompanhamento de enfermeiros e médicos nos pólos-base, os funcionários
entravam totalmente despreparados e desconhecedores da cultura Yanomami e,
principalmente, não havia infra-estrutura (barcos, motores, rádios, combustíveis) para
atingir o mínimo de qualidade no atendimento. Alguns medicamentos mais básicos,
como paracetamol, dipirona e amoxicilina começaram a faltar nos pólo-base.

A SESAI só foi efetivamente criada no dia 19 de outubro de 2010, em uma


solenidade no Palácio do Planalto, com a presença do líder Davi Kopenawa, líder
yanomami atuante na campanha de criação da SESAI . Assim como em outras regiões
do Brasil, a transição para a SESAI apresentou diversos problemas de
descontinuidade de atendimento.

11
Por meio do Decreto Presidencial nº 6.878, assinado em 18 de junho de 2009,
os DSEIs são transformados em unidades descentralizadas. No entanto, esse
processo se prolongou até 2011, quando o ministro da Saúde, Alexandre Padilha,
anunciou em Brasília que os DSEIs se tornariam Unidades Gestoras Autônomas. Na
prática, o DSY, assim como os outros DSEIs, ainda não alcançou a sua autonomia
plena.

4. Histórico da Educação escolar entre os Yanomami e Ye´kuana

Para se dar completar um panorama mais geral da TY, é necessário também


abordar o histórico da educação escolar, que mostra a atuação das diversas
instituições com objetivos e metodologias diferenciadas. Para os objetivos desse
trabalho, também mostra como a educação escolar está intimamente ligada à
obtenção de renda e autonomia desse povo.
As instituições religiosas foram as primeiras a desenvolverem trabalhos de
escolarização na TY. A MEVA atua nas regiões de Palimiu, Mucajaí e Auaris. Em
Auaris, o início das atividades foi em 1970 com os povos Sanuma e Ye´kuana. No
início, fizeram formação de agentes de saúde para auxiliar no atendimento à saúde.
Também iniciaram um trabalho de alfabetização nas línguas maternas com o propósito
principal de evangelização.
Em comparação com os Ye´kuana, os Sanuma percebem que o trabalho foi
menos intenso e com muitas interrupções, mas que ainda está ativo em pequena
escala. Segundo o relato dos próprios Sanuma, no início, se interessavam em ir para a
escola porque ganhavam roupas e materiais escolares, mesmo sem entenderem o
significado real da escola.
Ramos como membro de uma expedição de saúde em 1991, percebe que
“contrastando com esse desempenho no campo da saúde, o resultado religioso da
presença da missão em Auaris é quase imperceptível. Com exceção de alguns
homens que parecem evitar a poligamia, os efeitos da proselitização são pouco
notáveis” (RAMOS: 1991, 9). Portanto, no início da década de 90, os resultados da
escolarização eram discretos, embora alguns jovens Sanuma tivessem adquirido uma
base de leitura e escrita na própria língua. A MEVA também utiliza a metodologia de
estágios em suas bases de Tepequém e Serra Grande, em Roraima.
Já o trabalho com os Ye´kuana foi mais perene e consistente, centrado
principalmente na pessoa da missionária Jandira iniciado em 1983. A dissertação de
conclusão de curso do Ye´kuana Reinaldo Rocha (ROCHA, 2008) analisa esse
processo de escolarização. O ensino do português era considerado fundamental
naquela época para os Ye´kuana, principalmente para as novas gerações dialogarem
melhor com não-índios, tanto no atendimento da saúde nos hospitais quanto nas
situações comerciais na cidade. Mas Jandira “também ensinava e falava sobre Jesus
Cristo de Deus. Isso se realizava na escola ante de começar a aula uma vez por
semana com duração de meia hora e também ela promovia o culto no dia de domingo,
junto com os que gostavam de assistir o culto, com ajuda com alguns dos professores
Ye’kuana na própria casa” (ROCHA, 2008).
Andrade (2007) também analisa que os Ye´kuana “embora condenassem a
conversão à religião dos brancos, logo os líderes ficaram interessados em aprender o
sistema de escrita. A princípio, mais do que aprender a escrever em ye´kuana, era o
desejo de aprender a escrever a língua dos brancos que interessava. Os Ye´kuana
que iam à Venezuela, onde já existiam e por conseqüência escolas e traziam cartilhas
e começavam a ensinar os outros (...). As dificuldades desse sistema de
aprendizagem logo se apresentaram e os Ye´kuana perceberam que era necessária a

12
presença de um branco para ensiná-los” (ANDRADE, 2007). Os Ye´kuana geralmente
mantinham-se reservados dos missionários e somente em 1983 (depois de quase
vinte anos da chegada dos missionários em Auaris) uma missionária chegou e foi
aceita para ser a professora. “Os Ye´kuana não desejavam conhecer a religião dos
brancos, queriam sim um professor, alguém que ensinasse a língua e o sistema de
escrita” (ANDRADE, 2007).
A MEVA também atua em outras regiões da TY como Alto Mucajaí, Baixo
Mucajaí, Ericó, Uraricoera e Uxiu - todos Yanomami de fala Ninam. O trabalho de
tradução da bíblia é feito através do projeto Henahi – segundo a própria organização,
um “Projeto direcionado por Deus para que todos os ianomâmi de fala ninam sejam
alcançados com a Palavra de Deus já traduzida nessa língua” (MEVA, 2010).
O primeiro contato da MNTB com os Yanomami ocorreu em 1958, quando dois
missionários se instalaram para as proximidades do Posto Indígena Ajuricaba. Em
1964 oito missionários se instalaram com suas famílias na região do alto rio Toototopi.
Dois anos depois iniciaram uma escola com uma média de 15 a 25 alunos que tinha o
objetivo principal de catequização tendo como pano de fundo a mitologia Yanomami.
Depois em 1991, os missionários se mudaram para a região do Novo Demini, onde
ainda estão presentes, além das regiões de Marari e Aracá (SMILIJANIC, 1999).
Consideramos que são as regiões que sofreram mais com o impacto do prozelistismo.
A Diocese de Roraima atua em poucas regiões: Missão Catrimani e Xitei.
Diferente das outras organizações religiosas, dissocia o trabalho de alfabetização com
a evangelização, o que não é um objetivo no trabalho da escola. Inclusive, em seus
cursos, delineia algumas propostas mais inovadoras e ousadas, com objetivo mais
parecido com as outras organizações laicas. Por exemplo, trabalham temas como
“organização política”, incentivam a participação das mulheres em fóruns do
movimento indígena estadual como o OMIR (Organização das Mulheres Indígenas de
Roraima). Isso se deve à herança da Teologia da Libertação adotada por essa ala da
Igreja Católica.
Em seguida, abordamos o trabalho das organizações laicas, que possuem
motivações e objetivos diferentes das referidas instituições anteriormente citadas.
Essas outras organizações – URIHI–Saúde Yanomami, Comissão Pró-Yanomami
(CCPY), Instituto Socioambiental (ISA) e Serviço de Cooperação com o Povo
Yanomami (Secoya) - possuem algumas características comuns. Aqui destaco o
trabalho baseado no acompanhamento pedagógico às escolas in loco e na formação
de professores, com uma busca pela regularização e legalização desse processo.
Essas características, porém, adquirem diferenças de ênfase e de teor
influenciados por fatores geográficos e históricos. A análise do trabalho realizado pela
Comissão Pró-Yanomami será feita com mais profundidade por possuir mais
elementos etnográficos e por ter sido um projeto originado por uma idéia ou “sonho” de
Davi Kopenawa.
Desde 1994 o Serviço de Cooperação com o Povo Yanomami (Secoya) atua
com educação escolar nas regiões de Marauiá, Demini e Aracá (AM) em 7 escolas nas
quais os próprios professores Yanomami ministram as aulas com a supervisão de
assessores não-indígenas. A formação de professores é realizada a partir de três
eixos temáticos: Terra, Língua e Saúde. O Secoya também trabalha paralelamente
com a formação de agentes de saúde indígena (SECOYA).
Outro trabalho de alfabetização e educação em saúde foi desenvolvido pela
URIHI – Saúde Yanomami na maioria das regiões da TY. A URIHI iniciou em 1999
cursos de capacitação de microscopistas indígenas para aprimorar o trabalho de
detecção e tratamento da malária. Os próprios Yanomami foram formados para serem
capazes de coletar e ler lâminas em suas próprias aldeias. Essa experiência foi muito
bem sucedida e foi reconhecida mundialmente.

13
Após a formação de um certo número de microscopistas, a URIHI iniciou em
2000 um projeto de educação em várias regiões onde também fazia atendimento de
saúde criando escolas e começando a alfabetizar jovens para exercerem o papel de
professores. Esses jovens alfabetizariam outros Yanomami que pudessem se tornar
Agentes Indígenas de Saúde (AIS), ampliando assim o treinamento em saúde. Esse
processo de escolarização foi subitamente interrompido com a não pactuação da
URIHI com a Portaria 70 de 20048, levando ao encerramento das atividades dessa
organização na TY. Essas regiões ficaram sem nenhum tipo de atividade em
educação escolar e permanecem da mesma maneira.
A CCPY é a instituição que teve o trabalho em educação mais abrangente
atendendo o maior número de regiões da. Como citado anteriormente, Davi Kopenawa
foi o idealizador do Projeto de Educação da CCPY. Depois de concluída a demarcação
da TY, Davi continuou a sua luta pelo mundo contra a invasão garimpeira na TY. Com
o apoio de outras organizações ele propôs a criação de escolas em sua terra9.
Davi conheceu a escola nos outros povos do lavrado, onde as línguas foram
proibidas e atualmente são pouco faladas, por isso sempre teve a preocupação com a
salvaguarda da língua Yanomami. Para Kopenawa, a escola serviria principalmente
para “resguardar” a cultura Yanomami e preparar as novas gerações a “enfrentarem”
os brancos. Em sua própria fala:
“Nós queremos a escola para aprender a escrever a própria língua Yanomami,
para não perder a nossa língua, para garantir a história dos Yanomami. Se não, os
napë vão continuar invadindo e ensinando só a língua deles, estragando a nossa, e
isso nós não queremos. Nós queremos que nossa língua permaneça com o jeito dos
Yanomami. Queremos aprender a trabalhar com o papel. Para nós isso é importante
porque ajuda a preservar a nossa língua. E também queremos escola para aprender a
escrever a língua portuguesa, queremos ser bilíngües e aprender a contar os
números, para aprender a falar com os napë e não sermos enganados” (CCPY, 2009).
Portanto, um dos objetivos do Programa de Educação Intercultural (PEI) é
“garantir a perenidade e o dinamismo das línguas yanomami, dotando-as de uma
grafia e de um acervo de textos próprios (cartilhas escolares, jornais, livros, etc.),
favorecendo sua apropriação de novos conhecimentos conforme seu sistema de
conceitos e lógica cultural específicos” (CCPY, 2009). Na proposta curricular existe um
predomínio do uso das línguas Yanomami em detrimento à língua portuguesa, onde se
espera que os conteúdos sejam abordados preferencialmente nas línguas Yanomami.
O início do trabalho de alfabetização foi realizado por professores não-
Yanomami na região onde vive Davi Kopenawa, o Demini ou Wathoriki, em 1995. Em
seguida, alguns alunos Yanomami foram escolhidos pela comunidade para serem os
professores e os brancos passaram a ser apenas “assessores pedagógicos”. Depois o
Programa de Educação Cultural (PEI) ampliou a sua atuação para as regiões de
Toototopi e Parawau, onde havia postos de saúde criados pela CCPY. E assim, já em
2002, o trabalho foi ampliado também para as regiões de Papiu, Kayanau e Catrimani
I. Em 2005, a CCPY incluiu também a região de Auaris no trabalho de
acompanhamento às escolas. Em 2009, há a incorporação da CCPY e
conseqüentemente do Programa de Educação Intercultural (PEI) pelo ISA (Instituto
Socioambiental).

8
Portaria 70 de 20 de janeiro de 2004 do Ministério da Saúde, “Aprova as Diretrizes da Gestão da Política
Nacional de Atenção à Saúde Indígena”.
9
Primeiro o projeto foi financiado pela Unesco e depois o projeto foi apoiado pela Organização de
estudantes noruegueses OD (Operação Um Dia de Trabalho) com o apoio da Rain Forest Foundation da
Noruega.

14
O Magistério Yarapiari de Formação de Professores Yanomami, desenvolvido
pela CCPY/ISA formou, depois de 12 cursos em 2009, a primeira turma de 16
professores yanomami foi formada e alguns passaram no vestibular da Universidade
Federal de Roraima (UFRR) em 2011, mas o reconhecimento desse curso ainda é
uma luta que parece que se estenderá ao longo da burocracia engessada e da falta de
vontade política do Estado de Roraima.
Existe uma grande disparidade em relação à situação educacional nas
diferentes regiões da TY. Existem regiões que receberam o trabalho de mais de uma
instituição, como por exemplo, Auaris. Nos anos setenta, foi a MEVA, em 2000, a
URIHI e em 2005 a CCPY e em 2009, o ISA.
No entanto, existem outras regiões que receberam quase ou nenhuma
atividade de educação escolar, como por exemplo, Parahuri, Aratha u e Surucucu,
regiões de conflito. A demanda pela criação de novas escolas é cada vez mais
crescente por parte dos Yanomami. Em todas as Assembléias da Hutukara
Associação Yanomami e até nas reuniões de Conselho Distrital de Saúde, as escolas
são solicitadas pelas lideranças Yanomami.
A demanda pela contratação de professores também é grande, pois a “carreira”
de professor ente os Yanomami ganhou muito prestígio depois dos processos
seletivos, pois o salário compra mercadorias que são levadas para as aldeias. Muitos
jovens almejam ser professores para receberem esses salários. O professor também
se tornou uma figura de destaque na relação com os não-Yanomami, principalmente
por possuir mais conhecimentos da língua portuguesa.
As escolas da CCPY/ISA, URIHI e Secoya são reconhecidas pelos Yanomami
como fundamentais no processo de formação política de jovens lideranças e
influenciam toda a comunidade. É visível que a maioria dos Yanomami percebe a
diferença de abordagem dada às escolas dos missionários, que em geral não
fomentam discussões e a inclusão de temas “políticos” na escola. Os programas de
educação das organizações laicas certamente implementam uma forma diferente de
educação, fomentando elementos e discussões para que o povo Yanomami uma
conquista de autonomia, como por exemplo, o ensino das legislação sobre os direitos
dos povos indígenas, elaboração de projetos, produção de material didático, etc.
Atualmente existem escolas Yanomami e Ye´kuana no censo das escolas
indígenas de 2010 (INEP/MEC) conforme a tabela abaixo.

Estado Escolas Alunos

RR 33 1.718

AM 11 1.045

TOTAL 44 2.763

Os maiores desafios enfrentados pelos Yanomami no campo educacional


atualmente são a estruturação e regularização das escolas Yanomami, a contratação
dos professores Yanomami, a implantação do Ensino Médio Integrado e a
continuidade do Magistério Yarapiari de formação de professores.

15
5. Dados populacionais

A intensificação do contato atrelada às necessidades dos Yanomami por


mercadorias e assistência à saúde, vários grupos fixaram moradia próximo às pistas
de pouso e consequentemente, aos postos de saúde, dos antigos postos da Funai ou
das missões religiosas. Para se fazer um estudo sobre a distribuição populacional
yanomami, utilizaremos os dados do censo do DSY de 2010. Atualmente são 19.338
yanomami atendidos por 37 pólos-base, com 269 aldeias, conforme a tabela abaixo.

Sub-
Estado Município Pólo Base Língua Aldeias População
Total
Alto Mucajai Ninam 6 497
Aratha u Yanomae 5 487
Baixo Mucajai Ninam 2 144
Hakoma Yanomae 10 422
Haxiu Yanomae 16 854
Palimiu Ninam 7 603
Alto Alegre 6.913
Parahuri Yanomae 8 419
Surucucu Yanomae 20 1.425
Uraricoera Ninam 1 69
Waikas Ye´kuana 5 136
Waputha Yanomae 4 466
RR Xitei Yanomae 30 1.391
Auaris Sanuma 32 2.681
Amajari Ericó Ninam 6 209 3.132
Saúba Ninam 5 242
Ajarani Yawaripë 2 120

Caracaraí Baixo Catrimani Waika 2 91 923


Missão
Yanomae 19 712
Catrimani
Homoxi Yanomami 8 459
Iracema 786
Maloca Paapiu Yanomama 12 327
Alto Catrimani Yanomami 7 190
Mucajaí Apiaú Ninam 1 64 374
Kayana u Yanomama 4 120
Santa Isabel Alto Padauiri Yanomamö 4 146
do Rio 1.876
Negro Marauiá Yanomamö 11 1.730

São Gabriel Inambú Yanomamö 2 217


da Maia Yanomamö 2 554 2.167
Cachoeira Maturacá Yanomamö 3 1.396
AM
Ajuricaba Yanomamö 1 147
Aracá Yanomamö 3 194

Barcelos Parawau Yanomae/Yanomamö 9 425 3.167


Cachoeira do
Yanomamö 1 68
Araçá
Demini Yanomae 2 174

16
Marari Yanomamö 5 968
Médio Padauiri Yanomamö 2 208
Novo Demini Yanomae 2 329
Toototobi Yanomae 10 654
2 8 37 269 19.338

Analisando os dados, podemos conferir que os pólos-base mais populosos


(com mais de 1.000 pessoas) são Auaris, com 2.681 pessoas falantes de Sanuma e
Ye´kuana, seguido por Marauia (1.730 pessoas), Surucucu (1.425 pessoas), Maturacá
(1.396 pessoas) e Xitei (1.391 pessoas). As regiões menos populosas, com menos de
100 pessoas são Apiau (64 pessoas), Cachoeira do Araçá (68 pessoas), Uraricoera
(69 pessoas) e Baixo Catrimani (91 pessoas).

As regiões mais populosas, em geral, apresentam índices de desnutrição e de


doenças mais elevados. As terras disponíveis e adequadas para o cultivo cada vez
ficam mais distantes. Apesar de existirem outras regiões desabitadas para esses
grupos se mudarem, existe uma dependência da estrutura criada pela sociedade
envolvente. Muitos grupos Yanomami já revelaram essa vontade mais resistem a
iniciar uma nova ocupação. Já os Ye´kuana iniciaram um processo de migração dentro
da TY, da região de Auaris até a região próxima ao Parahuri, conhecida como
Tucuxim, ao sul e para um outro local próximo à região de Waikas.

Por sua vez, com uma quantidade de alimentação insuficiente para uma
população que cresce vertiginosamente, são as regiões que mais procuram
alternativas econômicas como os benefícios sociais como forma de suprir essa
demanda.

No entanto, não podemos deixar de considerar que algumas regiões mesmo


pouco populosas apresentam uma série de problemas sociais como alcoolismo,
conflitos com fazendeiros e atravessadores de castanha, piaçaba e peixes, caça e
quelônios, entre outros.

17
6. Caracterização das regiões

Como já foi dito anteriormente, por causa da extensão da TY, uma maneira
viável de se ter um diagnóstico completo é considerar a características próprias de
cada região. Em geral, as regiões são identificadas com a mesma abrangência dos
pólos-base do DSY, apenas com alguns ajustes.

O acesso à TY pela capital Boa Vista no estado de Roraima se dá geralmente


por via aérea. Todas as regiões onde se localizam os pólos-base possuem pistas de
pouso (a maioria não homologadas pela ANAC). Também é possível se chegar às
regiões do Alto Mucajaí, Baixo Mucajaí, Ajarani e Uraricoera por via fluvial ou terrestre.
Já o acesso nas regiões do Amazonas é realizada geralmente por via fluvial. Apenas
algumas regiões como Maturacá possuem pista de pouso. As cidades mais
acessadas pelos Yanomami são Boa Vista (RR), Caracaraí (RR), Barcelos (AM),
Santa Isabel do Rio Negro (AM) e São Gabriel da Cachoeira (AM).

Atualmente as regiões da fronteira leste da TY como Ajarani e Apiau sofrem


bastante com a permanência dos fazendeiros mesmo com a homologação da TY e a
proximidade de cidades como Caracaraí aumenta o índice de alcoolismo. Nas regiões
centrais como Surucucu, Parahuri, Arathau, Kataroa e Hakoma existem muitos
conflitos intercomunitários, agravado pelas armas de fogo fornecidas por garimpeiros.
As regiões atualmente mais atingidas pela garimpagem ilegal de ouro são as
localizadas nas calhas dos rios Catrimani (Wakatha u), Uraricoera (Palimi u) e Mucajaí
(Uxi u) como Papiu, Alto Catrimani, Waikas, Homoxi, Surucucu, Parahuri, Kayana u,
Alto e Baixo Mucajaí. Outra caracterização importante das regiões é a intensa
migração na fronteira com a Venezuela. Diferente do Brasil, onde existe uma política
consolidada de atenção à saúde indígena, na Venezuela não os yanomami
principalmente na faixa de fronteira, estão “isolados” do atendimento, migrando para o

18
Brasil em busca de atendimento, remédios e vacinas, mas também trazendo doenças
como malária, infecções respiratórias graves, verminoses entre outras.

Na TY existe a presença de várias instituições religiosas. Abaixo, estão


discriminados os grupos e as regiões onde atuam:
Instituição Região de atuação

Missão Evangélica da Amazônia (MEVA) Auaris, Palimiu, Ericó, Uraricoera, Alto e


Baixo Mucajaí

Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB) Marari, Aracá e Novo Demini

Diocese de Roraima Missão Catrimani e Xitei

Inspetoria Salesiana Missionária da Amazônia Maturacá


(ISMA)

Esses trabalhos missionários têm vários teores diferenciados mas com a


tradução da Bíblia como um objetivo comum. Atualmente a Bíblia está traduzida nas
quatro línguas Yanomami. Certamente os missionários da MNTB e os salesianos
tiveram mais sucesso em sua empreitada de evangelização. Nas regiões de influência
da MEVA e da Diocese esse processo é mais discreto. Mesmo que alguns yanomami
se digam evangélicos, não seguem os mandamentos da religião. Gostam
principalmente dos cantos nas línguas yanomami.

Também existem várias iniciativas diferentes no campo da educação escolar


como abordado anteriormente. Cada região tem uma história própria de escolarização
e de regularização das escolas yanomami. Algumas regiões tiveram iniciativas
pontuais no campo educacional, mas atualmente estão sem escolas. Em várias
regiões os yanomami têm apoio de organizações laicas e religiosas e em outras não
há apoio algum.

Instituição Região de atuação

Instituto Socioambiental (ISA) Auaris, Demini, Toototopi, Parawau, Alto


Catrimani, Papiu e Kayanau

Serviço de Cooperação ao Povo Yanomami Marauia, Novo Demini e Aracá


(SECOYA)

Diocese de Roraima Missão Catrimani e Xitei

Inspetoria Salesiana Missionária da Amazônia Maturacá


(ISMA)

Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB) Marari, Aracá e Novo Demini

Missão Evangélica da Amazônia (MEVA) Palimiu, Alto e Baixo Mucajaí

Regiões sem escola Hakoma, Surucucus, Haxiu, Parahuri, Aratha


u, Homoxi, Waputha, Ajarani

Escolas estaduais sem apoio de ONGs Ericó, Uraricoera, Ye´kuana (Auaris e Waikas)

19
Ainda existem outras duas organizações - Rios Profundos e Pró-Amazônia -
que desenvolvem trabalhos na região de Marauiá.

Os Pelotões de Fronteira estão presentes nas regiões de Auaris, Maturacá e


Surucucu. O Ministério da Defesa, através do Projeto Calha Norte pretende implantar
mais três Pelotões Especiais de Fronteira (PEF) na TY, a contragosto da maioria dos
Yanomami.

20
7. Estudo de caso: a região de Maturacá

A região de São Gabriel da Cachoeira é habitada por 23 povos indígenas


diferentes, que representam 95% da população de cerca de 12.000 pessoas. Também
há uma forte presença militar e religiosa, além de várias associações e organizações
indígenas congregadas pela Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro
(FOIRN).
Maturacá é uma região que apresenta uma grande densidade demográfica em
relação às outras regiões da Terra Yanomami, com uma população em 2010 de 1.350
pessoas. A tabela abaixo mostra o crescimento populacional desde a década de 50.
Percebe-se uma taxa muita alta de natalidade, associada também à incorporação de
alguns grupos vizinhos.
Ano População

1956 150

1961 220

1969 287

1978 381

1980 500

1985 517

1995 644

1998 794

2006 1.250

2010 1.396

Fonte: Menezes, 2010.

A região é composta pelas aldeias Maturacá e Ariabú que estão separadas


pelo rio Maturacá e também por duas comunidades locais menores chamadas
Auxiliadora e União, localizadas mais próximas ao Exército. A aldeia Nazaré está
localizada no rio Ya Grande e é a mais próxima da BR 307. Por esse motivo, sofrem
mais pressão de comerciantes de peixe e de caça.

Outra região chamada Maiá, localizada no rio de mesmo nome, também


apresenta alta densidade demográfica, mas devido à distância geográfica, há uma
falta de articulação das lideranças com os órgãos públicos de São Gabriel da
Cachoeira ou de Santa Isabel do Rio Negro (PEREIRA, 2011a). Também existe uma
comunidade denominada Tamacuaré que se articula regionalmente com Maiá.

7.1. Histórico da região

Em 1956, no mesmo ano do contato realizado pelo antigo Serviço de Proteção


aos Índios (SPI), chegaram os padres salesianos, uma figura de referência nesse
contato é o padre Góes. Pouco tempo depois, em 1961, várias crianças yanomami
foram levadas para internatos em Santa Isabel do Rio Negro e São Gabriel da

21
Cachoeira. Depois essa prática foi impedida pelas lideranças tradicionais pois as
crianças não estavam retornando para Maturacá.

A construção da pista de pouso foi iniciada em 1964 com mão-de-obra


yanomami. Apenas 9 anos depois ocorreu o primeiro pouso de um avião. Em 1975 é
construído um posto militar provocando uma epidemia de sarampo e
consequentemente morte de vários yanomami. Esse posto militar veio dar origem ao
atual 5º Pelotão Especial de Fronteira que conta com um efetivo de cerca de 60
pessoas.

Em 1974 é inaugurada a “Escola Imaculada Conceição” que se torna estadual


em 1977. Segundo os relatos dos próprios yanomami, era enfatizado o ensino da
língua portuguesa e a proibição da prática da língua materna, inclusive com castigos.

“O Sr. Júlio lembra que o avanço da civilização faz com que se perca os
conhecimentos tradicionais, as danças espirituais, as brincadeiras, etc. Diz que os
antepassados cederam espaço para os Salesianos, mas que tudo o que há na
comunidade foi feito pelos Yanomami, por exemplo: a pista, a casa da missão e a
capela” (AYRCA, 2011).
Em 1979 é criado o Parque Nacional do Pico da Neblina através do decreto nº
83.550 de 05/06/79, com extensão de 22.000 km. Em 1987 é instalado, através da
portaria presidencial nº 1.203/87, um posto da FUNAI em Maturacá.

7.2. Garantia de cidadania: percursos sinuosos

Assim como para muitos povos da Amazônia, a emissão de documentos


sempre foi uma dificuldade enfrentada pelos Yanomami, impedindo em muitos casos o
pleno exercício da cidadania. O sub-registro ainda é muito grande. Para se ter uma
idéia mais concreta, apresentamos alguns dados da região considerando todas as
etnias que participam do Território da Cidadania do Rio Negro.

Programa/ Benefício Município Cadastrados Atendidos

Programa Bolsa Família Barcelos 2.190 famílias sem 1.500 famílias


receber por falta de
documentação exigida

Santa Isabel do 500 famílias sem 1.000 famílias


Rio Negro receber por falta de
documentação exigida

São Gabriel da 3.500 famílias


Cachoeira cadastros pendentes
por causa da falta de
documentação,
duplicidade de
documentação ou falta
de cadastramento das
senhas

Benefício de Prestacão São Gabriel da 600 pessoas 118 pessoas


Continuada da Cachoeira
Assistencia Social a
Pessoas com
Deficiência

22
Atendimento à Pessoa São Gabriel da 2.200 pessoas – várias 269 pessoas
Idosa Cachoeira sem documentação

Santa Isabel do 329 pessoas 319 pessoas


Rio Negro

Fonte: TCRN, 2010.

Em geral, os CRAS ou postos de atendimento do INSS são mal estruturados e


não possuem meios de transporte, computador, impressora e acesso à internet,
impedindo a funcionalidade dos programas. Estima-se que o CRAS de Santa Isabel
atende 500 pessoas, mas recebe apenas R$ 6.000,00 para a manutenção, assim com
o CRAS de Barcelos que recebe R$6.300,00 (TCRN, 2011). Essas cidades também
são carentes de tabelião para emitir o registro civil como ocorre em Santa Isabel do
Rio Negro. Não há agência da Caixa Econômica Federal no município de São Gabriel
da Cachoeira.

Em levantamento realizado pelos Agentes de Saúde Yanomami da região,


podemos perceber existe uma necessidade de emitir cerca de 2.250 documentos entre
Certidão de Nascimento, Carteira de Identidade, Carteira de Trabalho, CPF e título de
eleitor. As regiões de Maiá e Tamacuaré são as que têm mais deficiência de
documentação, pois praticamente não houve nenhum tipo de atendimento. Outra
conclusão é que o documento com mais procura é o CPF. Os demais dados estão
demonstrados na tabela abaixo:
Ariabú e Nazaré e Maiá e
Documentos Marauiá TOTAL
Maturacá Inambú Tamacuaré

Certidão de
182 30 60 1.000 272
Nascimento

Carteira de Identidade 257 35 147 1.000 439

Carteira de Trabalho e
Previdência Social 228 30 200 1.000 458
(CTPS)

Cadastro de Pessoa
338 35 202 1.000 575
Física (CPF)

Título de Eleitor 276 30 200 1.000 506

TOTAL 1.281 160 809 1.000 3.250

Fonte: PEREIRA, 2011b.

Luiz Henrique de Araújo Pereira, coordenador Técnico Local de Maturacá já


elaborou um projeto para suprir essa demanda. Abaixo, estão discriminados os
períodos de execução em cada uma das regiões:
 Cauaburis (Ariabú, Auxiliadora, Maturacá e Nazaré): 1 ½ semana
 Inambú, Maiá e Tamacuaré: 1 ½ semana
 Marauiá (aldeias Tabuleiro, Bicho Açu, Ixima, Pukima, Pukima Beira, Raita,
Kona, Xamata, Yapahana, Pohoroa, Pohoro Centro): 1 mês

Apenas recentemente os Yanomami dessas regiões tiveram apoio da FUNAI


para emissão de documentação e inscrição no Programa Bolsa Família. Em 2011,
centenas de Yanomami, sabendo da ação que ocorreria do Ginásio da cidade, se

23
dirigiram à São Gabriel da Cachoeira. Famílias extensas completas sem comida e nem
dinheiro, ficaram se acumulando na FUNAI sem saber para onde ir, já que a Casa de
Apoio era insuficiente para abrigar tanta gente. O técnico Luiz Pereira foi procurado, A
maioria dos Yanomami não tinha nem sequer RANI e nem certidão de nascimento. A
equipe do INSS também iria permanecer apenas uma semana em São Gabriel da
Cachoeira e anunciaram que atenderiam apenas 40 pessoas por dia. Fazendo umas
contas rápidas podemos verificar que essa ação foi ineficiente para atender uma
população esidente em São Gabriel da Cachoeira.

No município de São Gabriel da Cachoeira não existe agência da Previdência


Social, o que os torna dependentes das ações pontuais e paliativas por parte do INSS.
Muitas vezes os “mutirões” ocorrem sem que tenha sido realizada com antecedência a
emissão de documentação básica que é exigida para a realização a emissão e análise
do Cadastro de Atividade Rural.

Já o cadastro do Bolsa família é feito pela Prefeitura através do Centro de


Referência em Assistência Social (CRAS). No entanto, ele apresenta diversos
problemas como, por exemplo: o esclarecimento de informações básicas e das
condicionalidades do Programa pelos Yanomami, erros durante o cadastramento por
causa de falta de informações exigidas pela Caixa Econômica Federal, falta de
agência da Caixa Econômica Federal no município para resolver cadastramento de
senhas, problema no envio dos cartões, bloqueio de cartões por causa de erros de
registro de senhas, não possibilidade de acumular o valor do benefício por mais de
três meses fazendo com que tenham que ir à cidade de dois em dois meses.

Comparado ao valor da aposentadoria, o valor do Bolsa Família é ínfimo.


Aliado a disso, os gastos no trajeto da comunidade até a sede do município de São
Gabriel de Cachoeira são desproporcionais ao valor do benefício, o que faz com que
os indígenas penhorem seus cartões e documentos de identidade junto aos
comerciantes da região. Assim o cartão fica retido até que a dívida seja quitada, porém
com um critério dos próprios comerciantes, que cobram juros abusivos e acabam
criando uma relação de aviamento. A consultora obteve informações que somente em
uma casa comercial de São Gabriel da Cachoeira, haviam 9 Yanomami devendo com
seus cartões “presos” nas mãos do comerciante. Um Yanomami revoltado o denunciou
à Funai que solicitou uma lista dos devedores. As dívidas variavam de R$ 500,00 à
9.000,00.

7.3. Casa de Apoio

A Casa de Apoio em São Gabriel da Cachoeira é utilizada para hospedagem


temporária dos Yanomami das aldeias de Ariabu, Inambu, Maiá, Maturacá, Nazaré e
Tamacuaré. Construída em 2004, o terreno foi cedido pela Diocese de São Gabriel da
Cachoeira, pelo padre Dom Song em 2003. A casa de cerca de 60 m² encontra-se em
situação deplorável, inóspita e perigosa. A consultora, em visita no dia 13 de janeiro de
2012, durante a sua estada em São Gabriel da Cachoeira, verificou as seguintes
situações inadequadas: fios desencapados, falta de caixa d´água (a única água
disponível vem da chuva), banheiros quebrados e sem porta, muito lixo espalhado ao
redor da casa, falta de higiene, inexistência de local adequado para cozinhar, lavar
roupa, espaço pequeno para ocupação de vários grupos Yanomami diferentes. São
questões que representam um grande risco e ameaça à saúde humana.

24
25
26
27
É uma demanda muito grande que se amplie e reforme a Casa de Apoio de
acordo com o projeto elaborado pela FPEY (PEREIRA, 2010). Os Yanomami ainda
sugerem que a Funai construa um outro terreno próximo à ponte do 5º Batalhão de
Infantaria de Selva (BIS), em frente ao Ginásio Arnaldo Coimbra, próximo a um
igarapé. A atual Casa de Apoio não é vista pelos usuários como um patrimônio e por
isso os Yanomami não cuidam dela, como explicitado pela liderança Yanomami Júlio
Góes durante a X Assembléia Ordinária da AYRCA.

Não podemos esquecer que esse é um relato apenas da situação dos


Yanomami que vão até São Gabriel da Cachoeira. Ainda existem as situações dos que
têm que ir à Santa Isabel do Rio Negro e Barcelos, onde não existe casa de apoio e os
Yanomami têm de dormir em suas próprias canoas ou então na outra margem do rio
Negro.

7.4. Alternativas econômicas e consequências

O contato com os napë pë e a presença dos Salesianos na região há 50 anos


provocou o aumento da demanda por produtos manufaturados. As comunidades
cresceram e a necessidade de uma maior quantidade de alimentos também aumenta
a cada dia, associada à uma escassez de terras próximas que ainda sejam produtivas.
No entanto, para que os Yanomami dessas regiões possam ter autonomia dos
programas sociais como o Bolsa Família, dos recursos da aposentadoria, licença
maternidade entre outros e também dos comerciantes da região, necessitam de
alternativas econômicas sustentáveis e viáveis associadas.

Por exemplo em Maturacá existem pouquíssimos assalariados (cerca de 2% da


população): 14 soldados e 1 cabo do Exército, 8 professores contratados pela
SEDUC/AM, 8 agentes de saúde e 1 guarda de endemias.

A população de Maturacá já manifestou através da AYRCA o desejo de


iniciarem a criação de peixes, aves e suínos. Outra possibilidade que já está em
discussão pela FUNAI com as lideranças do Maiá e Tamacuaré é um projeto de
manejo do cipó titica, atividade já realizada entre maio e agosto mas que ainda tem
dependência de atravessadores e intermediários da região. Em São Gabriel da
Cachoeira 1 kg de cipó titica lavado e descascado é vendido a R$ 3,00. Utilizando os
dados levantados por Menezes (2010), durante um mês de trabalho árduo, 3 ou 4
yanomami coletam cerca de 500 kg de cipó titica.

Outra atividade econômica praticada é a venda de manjuba ou “piaba”


(Anchoviella lepidentostole) encontradas nos igarapés afluentes do Cauaburis.
Novamente apoiada pelos dados de Menezes (2010), em uma semana de trabalho,
consegue se capturar cerca de 1.000 peixes, que é vendido ao preço de R$ 200,00 em
São Gabriel da Cachoeira. No entanto, para se chegar com esse número de peixes na
cidade, é preciso coletar 2.000 peixes pois metade morre no trajeto de barco e Toyota.

Também existe outras iniciativas como a venda de artesanato pelo Programa


Pró-Arte Amazônia na região de Marauiá, sobre a qual não possuímos maiores
informações.

As maiores dificuldades enfrentadas pelos yanomami é a falta de meios de


transportes adequados para escoarem sua produção, pois a maioria não possui botes
de alumínio nem motores de popa ou rabetas. Além disso, são dependentes dos 4
motoristas que fazem o transporte de Toyota de São Gabriel da Cachoeira e ao Km 85
da BR 307. O preço chega à R$ 600,00 a 700,00 o trajeto ida e volta. Além disso, as
condições de tráfego da BR, que ainda não é asfaltada, no período das chuvas (final
de junho até início de agosto) se tornam péssimas.

28
Outra atividade econômica realizada pelos Yanomami na região do Pico da
Neblina e na Serra do Padre é o garimpo “manual”, ou seja, sem utilização de
maquinário ou materiais contaminantes como o mercúrio. Também existem balsas de
não-Yanomami que, segundo relatos, pagam um taxa de 20 gramas de ouro a cada
comunidade para subirem o rio Cauaburis. Essa rota também é utilizada pelos
garimpeiros com destino à Venezuela. A FUNAI ainda não possui dados precisos para
mensurar o grau da atividade, mas é sabido que vêm crescendo a cada dia.

Também ocorre a venda de caça, quelônios e peixes para comerciantes e


“atravessadores” da região que ingressam na Terra Yanomami pela BR 307, que liga
São Gabriel da Cachoeira até Cucuí e corta a Terra Indígena Balaio. Atualmente o
posto da FUNAI encontra-se abandonado e nenhuma medida de fiscalização é
realizada no acesso à Terra Indígena, motivo de grande preocupação por parte das
lideranças Yanomami que já solicitaram diversas vezes que a FUNAI tome as devidas
providências.

Outra atividade não regulamentada, mas frequentemente realizada é o turismo


ao Pico da Neblina, procurado por alpinistas por ser o pico mais alto do Brasil, com
2.993,78 metros de altitude. Atualmente existe uma determinação por parte do
Ministério Público Federal que impede a realização do turismo. Essa interdição foi
solicitada pelos próprios Yanomami. No entanto, depois fizeram novo requerimento
solicitando a abertura das visitações. O MPF solicitou então a elaboração de laudo
antropológico para avaliação dos impactos culturais e ambientais. No entanto, até
janeiro de 2012 o laudo não havia sido concluído.

Esse assunto foi pauta da Assembléia da AYRCA, ocorrida em julho de 2011


em Maturacá. Em conjunto, os Yanomami participantes decidiram que:

 realização de oficina para maiores esclarecimentos com pauta específica


sobre o turismo, a ser realizada em Maturacá;
 encaminhamento de documento ao MPF solicitando a conclusão do laudo
antropológico;
 indicação por parte da FUNAI de servidor para participar das discussões
referentes ao tema;
 necessidade de formação de guias turísticos, incluindo realização de cursos
em língua estrangeira, para que os próprios Yanomami sejam os
responsáveis pela atividade;
 instituição de um termo de cooperação entre a FUNAI, ICMBio e AYRCA;
 discutir a organização da gestão do turismo ao Pico da Neblina pelos
próprios Yanomami e pela AYRCA.

Até o presente momento, nenhuma dessas considerações avançou e ainda são


freqüentes as tentativas informais de turistas de subirem o Pico da Neblina. A
comunicação ruidosa da AYRCA e das lideranças locais com o atual coordenador do
ICMBio associada à falta de condições de trabalho e de infra-estrutura do
Coordenador da CTL de Maturacá fazem com que a situação fique tensa em vários
momentos.

Diante de tudo o que foi apresentado, chegamos à conclusão de que a questão


dos benefícios sociais para os Yanomami envolve muito mais do que apenas a
garantia pelo direito social. Ele é visto como uma oportunidade de não buscar outras
alternativas econômicas com consequências prejudiciais, como a garimpagem ilegal
de ouro e diamante.

29
8. Os benefícios sociais e os Yanomami: desafios e possibilidades

Em geral, as políticas públicas não foram desenhadas para atender populações


sócio-culturalmente diversas da sociedade nacional. E apesar de todos os esforços
dos governos e inúmeras comissões e fóruns que se propõem a pensar e adaptar as
políticas públicas aos povos indígenas, ainda é necessário desenvolver metodologias
e tecnologias que promovam esse acesso de maneira diferenciada. Para promover a
equidade também é necessário garantir um atendimento diferenciado.

Quando estamos lidando com povos de recente contato e isolados10, devemos


nos atentar para muitos outros aspectos. Primeiro devemos ressaltar que a política
para esses povos sofreu grandes modificações depois da Constituição de 1988,
quando se acreditava que os índios desapareceriam, sendo integrados à comunhão
nacional gradativamente11 (RIBEIRO, 1970). Nesse sentido, o objetivo era promover o
contato com os índios isolados. Na maioria das vezes, essa aproximação física trazia,
além de objetos para serem trocados, doenças, provocando graves decréscimos
populacionais.

Em 1987, durante o Primeiro Encontro Nacional de Sertanistas, a FUNAI cria o


Departamento de Índios Isolados (DEII) e institui o Sistema de Proteção ao Índio
Isolado (SPII). “Dentro dessa nova política para índios isolados, a proteção ao meio
ambiente e a demarcação de suas terras passam a ser prioridades da instituição,
visando garantir o exercício de suas atividades tradicionais” (FUNAI, 2011).
Hoje a Funai não promove mais o contato, a não ser que este seja buscado
pelos próprios índios ou que a Coordenação Geral de Índios Isolados e de Recente
Contato (CGIIRC) avalie uma situação extrema de vulnerabilidade. Atualmente a
CGIIRC trabalha com unidades denominadas Frentes de Proteção Etnoambiental12
nos estados de Roraima, Amazonas, Pará, Acre, Mato Grosso, Maranhão e Rondônia,
que atuam com atividades específicas de proteção (VAZ, 2011a e 2011b e FUNAI,
2011).
Nesse contexto, foi criada em 26 de agosto de 2009 através da portaria 1.219 a
Frente de Proteção Etnoambiental Yanomami (FPEY), uma Frente nova que ainda
busca se estruturar e estabelecer a sua relação de trabalho com os Yanomami e os
Ye´kuana. Em julho de 2011 foi localizado pela FPEY e Hutukara Associação
Yanomami em sobrevôo um grupo de yanomami isolados denominados
Moxihatëtëma, “aqueles que prendem o prepúcio do pênis entre dois barbantes
amarrados na cintura”. Segundo Albert e Wesley (2011), esse grupo teve vários
contatos com outros grupos yanomami e se manteve isolado desde os primeiros
contatos com os brancos. Ainda existem outras referências não confirmadas de outros
grupos isolados na TY. Daí a necessidade de se pensar com mais cuidado a
implementação de políticas ali.
Existem também outras questões administrativas que dizem respeito à FPEY.
No ano de 2010, houve uma grande intervenção na CR de Boa Vista, com a
exoneração de vários servidores e do próprio coordenador regional. A exemplo de

10
Segundo o Artigo 4º do Estatuto do Índio, são considerados índios isolados os que “vivem em grupos
desconhecidos ou de que se possuem poucos e vagos informes através de contatos eventuais com
elementos da comunhão nacional” (Lei 6.003 de 1973).
11
A expressão utilizada é "integração harmoniosa" dos povos indígenas à "comunhão nacional” e ainda
está presente no Estatuto do Índio.
12
As FPEs são unidades executivas da FUNAI, subordinadas a Diretoria de Proteção Territorial (DPT)
através da Coordenação Geral de Índios Isolados e de Recente Contato.

30
outras situações, praticamente todas as atribuições próprias da CR foram transferidas
para a FPEY, como por exemplo a emissão de RANIs e o trabalho de promoção
social. Essa situação também foi provocada pelo TAC do Ministério Público Federal
assinado em pelos compromissários Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
Educacionais Anísio Teixeira (INEP), a Secretaria de Educação e Desporto de
Roraima (SECD/RR) e a FUNAI determinando que esse último realizasse o Registro
Administrativo de Nascimento Indígena (RANI) de todos os indivíduos em idade
escolar no prazo de 18 meses contando da data da assinatura - 19 de agosto de 2010.
Desde 2010, a FPEY vem fazendo as RANIs e outros documentos auxiliando
os yanomami em todas as ações de promoção social, o que, associado ao número
insuficiente de servidores, acaba por desviar o foco de sua atenção para o verdadeira
atribuição da FPEY, de localização de grupos isolados, da proteção e monitoramento
territorial, entre outros... Nesse sentido, é fundamental que a CR de Boa Vista e a CR
do Rio Negro sejam fortalecidas para fazerem essas ações novamente, respeitando é
claro, as especificidades dos povos Yanomami e Ye´kuana.
O sub-registro da população yanomami é enorme, sendo uma das maiores
preocupações externalizadas nas reuniões e fóruns de discussão. Sem
documentação, os professores e agentes de saúde não podem ser contratados, ficam
também impossibilitados de abrir uma conta no banco, os pacientes de serem
atendidos e internados em hospitais, os representantes políticos de poderem viajar
para outros estados para participar de reuniões e ficam impedidos de acessar os
benefícios previdenciários e do Bolsa Família.
Ao contrário da necessidade de documentação, que é um consenso entre os
yanomami, existem muitas divergências quanto o acesso aos benefícios sociais e
previdenciários. Percebemos vários blocos de convergência de interesses. Os
yanomami do estado do Amazonas, em geral, desejam receber todos os benefícios e
acreditam que a FUNAI deve auxiliá-los com o transporte e acesso ao cadastro. A
maioria dos ye´kuana já possui documentação e vários já acessam os benefícios
sociais e previdenciários, os quais buscam esse acesso de forma mais autônoma que
os seus vizinhos yanomami. Outras regiões da TY que possuem um acesso mais fácil
à cidades mais próximas e aquelas com grande densidade populacional também têm
apresentado interesse em acessá-los. Por último, existe um contingente bastante
grande de yanomami que está completamente alheio a esses direitos.
As três associações representativas desses povos – Associação Yanomami do
Alto Rio Cauaburis e Afluentes (AYRCA), Associação do Povo Ye´kuana do Brasil
(APYB) e Hutukara Associação Yanomami (HAY) também apresentam divergência
sobre esse tema. Enquanto a AYRCA verifica a necessidade de atingir a todos os
yanomami das regiões do Amazonas, a HAY acha que deve existir uma discussão
ampla previamente à qualquer ação de cadastramento.
O Presidente da HAY Davi Kopenawa Yanomami se refere à Bolsa Família
como “Bolsa Preguiça” e alerta para os prejuízos que isso pode trazer aos yanomami
no futuro. Ele acredita que com o passar do tempo, os yanomami deixariam de realizar
as suas atividades produtivas como o cultivo das roças, as atividades de caça e coleta.
Segundo as suas próprias palavras, “para mim o Bolsa Família é a nossa terra
demarcada. Tudo o que nós queremos é a nossa terra protegida de invasores como os
garimpeiros que atualmente praticam o garimpo ilegal e dos fazendeiros que ainda
estão em nossa terra. Na nossa terra, não falta alimento, o que realmente precisamos
é de ferramentas de metal para derrubarmos as roças. O costume dos brancos é forte,
a comida dos brancos é como doença, deixa a gente fraco. Se os Yanomami ficarem
dependentes dela, vão correr apenas para o rastro do dinheiro e não mais dos animais
de caça. Os yanomami não podem ficar dependentes da Funai e do Governo. O que

31
os políticos vão pensar ? Que os yanomami são preguiçosos, primitivos, não querem
plantar. E aí depois vão questionar o tamanho da nossa terra ”.
Consideramos que o maior desafio quando se discute o acesso aos benefícios
sociais na TY é dimensionar todas as diferentes configurações sociais e de contato. É
extremamente necessário que todas essas questões levantadas aqui devem ser
discutidas em um grande seminário na TY com uma participação maciça de
representantes yanomami e ye´kuana envolvendo também outras instituições (MDS,
SESAI, INSS, etc), oportunidade também que deverão ser formuladas propostas
alternativas para a configuração dos referidos benefícios.

32
9. Recomendações

- Promover um processo de esclarecimento sobre as condições para inclusão no


CadÚnico e critérios para acesso ao PBF, bem como o cumprimento das
condicionalidades de saúde e educação para permanência no programa precedendo
as ações de cadastramento. Para realmente atingir os mais velhos, as mulheres e os
jovens, é necessário agir com ações complementares utilizando diversos tipos de
linguagem (inclusive oral e audiovisual) como palestras, cursos, exibição de filmes,
intercâmbio entre representantes indígenas, reuniões ou ainda outros formatos que
podem ser sugeridos.

- Avaliar as consequências da monetarização a curto e longo prazo nos vários grupos


yanomami e ye´kuana considerando as histórias e configurações de contato.

- Avaliar o impacto das cestas de alimentos do ponto de vista da composição


nutricional e das características culturais e regionais.

- Avaliar o impacto e as consequências da introdução de novos alimentos e novas


mercadorias nas comunidades Yanomami que vivem no entorno ou compartilham
territórios com grupos considerados isolados e de recente contato.

- Discutir formas de alternativas econômicas sustentáveis e viáveis envolvendo a


Coordenação Geral de Etnodesenvolvimento (CGETNO/FUNAI) que sejam de
interesse dos grupos Yanomami.

- Discutir formas alternativas de recebimento dos benefícios previdenciários e do Bolsa


Família como: o acúmulo do benefício por mais de três meses, a abertura de uma
conta que junte todos os benefícios de uma determinada região que seja gerida por
uma associação, a abertura de conta-poupança para acumular as parcelas do
benefício, entre outras.

- Acabar ou diminuir radicalmente o sub-registro de nascimento da população


yanomami e ye´kuana.

- Promover a discussão sobre a articulação dos recortes administrativos já existentes


como as Coordenações Regionais (CRs) e as Frentes de Proteção Etnoambiental
(FPEs) da FUNAI, os Distritos Sanitários Indígenas (DSEIs) e os Territórios
Etnoeducacionais (TEEs) do Ministério da Educação.

- Reformar e ampliar a Casa de Apoio dos Yanomami em São Gabriel da Cachoeira ou


construir uma nova casa no local já indicado pelos Yanomami de Maturacá, aliando o
conhecimento tradicional Yanomami a tecnologias ambientalmente sustentáveis de
uso da energia e destinação de resíduos.

- Discutir a construção de uma casa de apoio em Barcelos e em Santa Isabel do Rio


Negro.

- Promover ações interinstitucionais como a “Justiça Intinerante” para a realização da


emissão do Registro Administrativo de Nascimento Indígena (RANI), Registro Civil,
Carteira de Identidade, CTPS, Título de Eleitor e pedido de CPF para todos Yanomami
que necessitem de tal documentação in loco, nas próprias aldeias, sem a necessidade
de deslocamento às cidades mais próximas.

- Discutir o apoio da Funai em relação ao acesso desses benefícios e da emissão de

33
documentação, considerando as atribuições da FPEY, das CR de Boa Vista e do Rio
Negro, da Coordenação Geral de Índios Isolados e de Recente Contato
(CGIIRC/FUNAI) e da Coordenação Geral de Promoção e Desenvolvimento Social
(CGPDS/FUNAI) para as atividades determinadas.

34
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