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Cliente:

Ministério da Previdência Social – MPS


Período de Execução:

Julho de 2010 a março de 2011

Produto 4
Relatório final do diagnóstico sobre o perfil dos povos indígenas das
regiões Norte e Nordeste e sua forma de inclusão social no sistema
previdenciário.

Rua do Pespontão, 238,


Centro, São Luís – MA
CEP: 65010-460
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CNPJ: 06079533/0001-97
Ficha técnica

Contrato: Elaboração de diagnóstico sobre o perfil dos povos indígenas das regiões Norte e
Nordeste, assim como a forma de inclusão social desses no sistema previdenciário.

Cliente: Ministério da Previdência Social – MPS

Unidade Supervisora: Secretaria de Políticas de Previdência Social – SPPS, por meio da


Coordenação Geral de Estudos Previdenciários – CGEP

Responsáveis na CGEP/SPPS/MPS: Emanuel de Araújo Dantas, Edvaldo Duarte Barbosa e


Carolina Veríssimo Barbieri

Instituição Executora: Solar Consultoria em Gestão e Pesquisas Ltda. – EPP

Gerência do Projeto: João de Jesus da Costa

Coordenação Geral da Pesquisa: Adalberto Luiz Rizzo de Oliveira

Fotografia: Paulo Roberto Socha

Sistematização, análise dos dados e redação do relatório final: Adalberto Luiz Rizzo de
Oliveira, João de Jesus da Costa, Laurinete Rodrigues da Silva Delgado e Márcio Rodrigues
Cruz

Coordenadores de campo: Andréia da Silva Barbosa, Laurinete Rodrigues da Silva Delgado


e Márcio Rodrigues Cruz

Assistentes de Pesquisa: Carlos Lourenço de Almeida Filho, Jonaton Alves da Silva Júnior e
Rodolpho Rodrigues de Sá

Transcrição de entrevistas: Allana Ribeiro de Oliveira, Camila Chaves Ferreira, Carlos


Lourenço, Clícia Adriana Abreu Gomes, Danielle Moreira de Sousa, Jonaton Alves da Silva
Júnior, Luana Cristina de Sousa Diniz, Luana Rodrigues de Camargo, Maria do Socorro
Pereira da Costa, Rodolpho Rodrigues de Sá, Swellen Danuza Coqueiro Feitoza da Silva

Revisão Textual: João de Jesus da Costa

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Perfil Indígena na Previdência Social
Regiões Nordeste e Norte, Brasil

Relatório Final

Março, 2011

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SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 13
2 METODOLOGIA .................................................................................................................. 15
2.1 O TRABALHO DE CAMPO .......................................................................................... 16

2.2 FATORES QUE FACILITARAM OU DIFICULTARAM O ACESSO ÀS ÁREAS E


AOS POVOS INDÍGENAS.................................................................................................. 17

3 PERFIL DOS POVOS INDÍGENAS PESQUISADOS ........................................................ 19


3.1 POVOS INDÍGENAS DA REGIÃO NORDESTE......................................................... 20

3.1.1 APANIEKRÁ E RAMKOKAMEKRA-CANELA ................................................. 22

3. 1.2 TENETEHARA-GUAJAJARA .............................................................................. 27

3.1.3 POTIGUARA........................................................................................................... 32

3.2 POVOS INDÍGENAS NA REGIÃO NORTE ................................................................ 36

3.2.1 BANIWA ................................................................................................................. 38

3.2.2 TIRIYÓ .................................................................................................................... 46

3.2.3 SATERÉ-MAWÉ..................................................................................................... 53

4 ABORDAGEM DAS QUESTÕES QUE ORIENTARAM A PESQUISA .......................... 62


4.1 ACHADOS RELATIVOS ÀS ESTRUTURAS DE ATENDIMENTO ......................... 62

4.1.1 APANIEKRÁ E RAMKOKAMEKRA-CANELA ................................................. 64

4.1.2 TENETEHARA-GUAJAJARA ............................................................................... 65

4.1.3 POTIGUARA........................................................................................................... 70

4.1.4 BANIWA ................................................................................................................. 72

4.1.5 TIRIYÓ .................................................................................................................... 74

4.2 ACHADOS RELATIVOS AO ACESSO À DOCUMENTAÇÃO EXIGIDA ............... 94

4.2.1 APANIEKRÁ E RAMKOKAMEKRA-CANELA ................................................. 96

4.2.2 TENETEHARA-GUAJAJARA ............................................................................. 101

4.2.3 POTIGUARA......................................................................................................... 101

4.2.4 BANIWA ............................................................................................................... 104

4.2.5 TIRIYÓ .................................................................................................................. 107

4
4.2.6 SATERÉ-MAWÉ................................................................................................... 109

4.3 ACHADOS RELATIVOS AO ACESSO AOS BENEFÍCIOS .................................... 113

4.3.1 APANIEKRÁ E RAMKOKAMEKRA-CANELA ............................................... 116

4.3.2 TENETEHARA-GUAJAJARA ............................................................................. 119

4.3.3 POTIGUARA......................................................................................................... 122

4.3.4 BANIWA ............................................................................................................... 130

4.3.5 TIRIYÓ .................................................................................................................. 134

4.3.6 SATERÉ-MAWÉ................................................................................................... 145

4.4 ACHADOS RELATIVOS À PRESENÇA DE INTERMEDIÁRIOS .......................... 154

4.4.1 APANIEKRÁ E RAMKOKAMEKRA-CANELA ............................................... 156

4.4.2 TENETEHARA-GUAJAJARA ............................................................................. 160

4.4.3 POTIGUARA......................................................................................................... 162

4.4.4 BANIWA ............................................................................................................... 164

4.4.5 TIRIYÓ .................................................................................................................. 165

4.4.6 SATERÉ-MAWÉ................................................................................................... 166

4.5 ACHADOS RELATIVOS AOS USOS DO DINHEIRO ............................................. 167

4.5.1 APANIEKRÁ E RAMKOKAMEKRA-CANELA ............................................... 167

4.5.2 TENETEHARA-GUAJAJARA ............................................................................. 169

4.5.3 POTIGUARA......................................................................................................... 170

4.5.4 BANIWA ............................................................................................................... 171

4.5.5 TIRIYÓ .................................................................................................................. 175

4.5.6 SATERÉ-MAWÉ................................................................................................... 177

4.6 ACHADOS RELATIVOS AOS IMPACTOS SOCIAIS, CULTURAIS E


AMBIENTAIS NAS COMUNIDADES INDÍGENAS...................................................... 178

4.6.1 APANIEKRÁ E RAMKOKAMEKRA-CANELA ............................................... 179

4.6.2 TENETEHARA-GUAJAJARA ............................................................................. 180

4.6.3 POTIGUARA......................................................................................................... 181

5
4.6.4 BANIWA ............................................................................................................... 183

4.6.5 TIRIYÓ .................................................................................................................. 186

5 CONCLUSÕES E RECOMENDAÇÕES ........................................................................... 190


5.1 CONCLUSÕES GERAIS.............................................................................................. 190

5.2 CONCLUSÕES ESPECÍFICAS ................................................................................... 196

5.1.1 APANIEKRÁ E RAMKOKAMEKRA-CANELA ............................................... 196

5.1.2 TENETEHARA-GUAJAJARA ............................................................................. 197

5.1.3 POTIGUARA......................................................................................................... 199

5.1.4 BANIWA ............................................................................................................... 200

5.1.5 TIRIYÓ .................................................................................................................. 201

5.1.6 SATERÉ-MAWÉ................................................................................................... 202

5.2. RECOMENDAÇÕES ................................................................................................... 203

5.2.1 RECOMENDAÇÕES GERAIS ............................................................................. 203

5.2.2 RECOMENDAÇÕES ESPECÍFICAS .................................................................. 205

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA ........................................................................................ 207


ANEXOS – LOCALIZAÇÃO DOS POVOS SELECIONADOS ......................................... 208

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LISTA DE SIGLAS

AER – Administração Executiva Regional


ANAC – Agência Nacional de Aviação Civil
APITIKATXI – Associação dos Povos Indígenas Tiriyó, Kaxuyana e Txikuyna
APITU – Associação dos Povos Indígenas do Tumucumaque
APS – Agência da Previdência Social
BID – Banco Interamericano de Desenvolvimento
BIRD – Banco Mundial
CASAI – Casa de Saúde do Índio
CDI – Certificado de Dispensa da Incorporação
CGEP – Coordenação Geral de Estudos Previdenciários
CGTSM – Conselho Geral da Tribo Sateré- Mawé
COMABA – Companhia Maranhense de Abastecimento
CNIS – Cadastro Nacional de Informações Sociais
CRAS – Centros de Referência da Assistência Social
CTL – Coordenação Técnica Local
CVRD – Companhia Vale do Rio Doce
DATAPREV – Empresa de Tecnologia e Informações da Previdência Social
DSEI – Distrito Sanitário Especial Indígena
DNV – Declaração de Nascidos Vivos
EMSI – Equipe Multidisciplinar de Saúde Indígena
FAB – Força Aérea Brasileira
FOIRN – Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro
FUNAI – Fundação Nacional do Índio
FUNASA – Fundação Nacional de Saúde
GT – Grupo de Trabalho
IEPÉ – Instituto de Pesquisa e Formação Indígena
IBAMA – Instituto Brasileiro de Recursos Naturais Renováveis
INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
INSS – Instituto Nacional de Seguridade Social
ISA – Instituto Socioambiental
MMA – Ministério do Meio Ambiente
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MME – Ministério das Minas e Energia
MPE – Ministério Público Estadual
MPF – Ministério Público Federal
MPS – Ministério da Previdência Social
MS – Ministério da Saúde
NAL – Núcleo de Apoio Local
OIBI – Organização Indígena da Bacia do Içana
ONG – Organizações Não Governamentais
PAI – Programa Pronto Atendimento Itinerante
PBF – Programa Bolsa-Família
PCPR – Programa de Combate à Pobreza Rural
PDPI – Projetos Demonstrativos dos Povos Indígenas
PEP – Programa de Educação Previdenciária
PIT – Parque Indígena do Tumucumaque
PSF – Programa Saúde da Família
PRÓ-IDOSO – Programa de Proteção ao Idoso
PRODIM – Programa de Desenvolvimento Integrado do Maranhão
PRONAF – Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar
RANI – Registro Administrativo de Nascimento de Índio
SAI – Setor de Assistência ao Índio
SEAS – Secretaria de Estado da Assistência Social do Amazonas
SEDUC – Secretaria de Estado da Educação
SIASI – Sistema de Informação da Atenção à Saúde Indígena
SMT – Serviço de Monitoramento Territorial
SPI – Serviço de Proteção ao Índio
SUS – Sistema Único de Saúde
SUSA – Serviço de Unidades Sanitárias Aéreas
TI – Terra Indígena
UTI – Unidade de Terapia Intensiva

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LISTA DE QUADROS

Quadro 1: População Apaniekrá e Ramkokamekra-Canela / 1983-2008 ............................... 22

Quadro 2: População Tenetehara-Guajajara / 1983-2004 ....................................................... 29

Quadro 3: População Tiriyó / 1908-1997 ............................................................................... 48

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Penso que vai melhorar alguma coisa a partir do momento que vocês
estão levando, eu espero que algum órgão faça alguma coisa, que melhore
principalmente a dificuldade dos aposentados que vão daqui para sofrer
em Macapá, porque a gente não está acostumada a viver lá, a gente está
acostumada a viver aqui. E eu espero que vocês resolvam de fazer uma
linha só de pagamento para nós aqui. Porque a gente também precisa, a
gente compra outras coisas aqui. A gente não compra a caça, porque a
caça está em extinção aqui... E a gente compra e a gente queria esse
benefício não na cidade, a gente quer esse benefício aqui mesmo, para
poder circular aqui mesmo que iria melhorar muito as coisas aqui. E se
tivesse algum sinal que fizesse esse pagamento aqui mesmo na aldeia. E
estou agradecendo em nome de todos da comunidade.
(Tuxaua da Aldeia Missão Tiriyó)

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(...) Eu acho que vocês estão vendo que eu estou sem sandália, que
antigamente a gente não usava e a gente nem se preocupava de espinhos
ou alguma coisa assim, porque a gente era acostumada. Hoje em dia, não,
a gente tem que ter sandália, porque a gente não se acostumou mais. A
gente tem se acostumado com a sandália. E para a gente ter tudo isso a
gente precisa desse benefício. É isso que a gente quer. E comprar a nossa
rede, porque a gente não dorme mais com a rede de antigamente. A gente
dorme na rede, mesmo. Se a rede rasgar, a gente costura, dá um jeito. Não
tem como a gente comprar outra, porque a gente não tem dinheiro (e
mostrou a rede em que dorme, que está costurada). Eu sei que eu sou ser
humano e que eu preciso desses direitos meus, como vocês
[fala de indígena idosa Tiriyó, traduzida por Mitori Kaxuyana Tiriyó]

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Agradecimentos

Para realização da pesquisa as equipes contaram com o apoio de inúmeras


organizações e pessoas.
Registra-se o reconhecimento dos pesquisadores às diferentes formas de apoio
prestadas por gestores e funcionários das Coordenações Técnicas Locais – CTL e Regionais
da Fundação Nacional do Índio – FUNAI, das Gerências Executivas e Agências da
Previdência Social – APS do Instituto Nacional de Seguridade Social – INSS, das
Coordenações Regionais da Fundação Nacional de Saúde – FUNASA, dos chefes de Distritos
Sanitários Especiais Indígenas – DSEI/FUNASA, dos enfermeiros, técnicos e auxiliares de
enfermagem lotados nos Polos-Base de Saúde e nas Casas de Saúde do Índio – CASAI e dos
funcionários de campo, além de agentes indígenas de saúde e professores indígenas.
Registra-se também o especial agradecimento da equipe aos povos indígenas
Apaniekrá e Ramkokamekra-Canela, Tenetehara-Guajajara, Potiguara, Baniwa, Tiriyó e
Sateré-Mawé, cuja disponibilidade individual e coletiva de lideranças tradicionais,
beneficiários efetivos ou potenciais da previdência, lideranças associativas e famílias
indígenas de um modo geral, permitiram a realização de levantamentos e entrevistas
apresentados e analisados nesse Relatório.

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PERFIL INDÍGENA NA PREVIDÊNCIA SOCIAL
RELATÓRIO FINAL

1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho constitui o quarto e último produto da pesquisa “PERFIL


INDÍGENA NA PREVIDÊNCIA SOCIAL”, resultante do Edital de Tomada de Preços nº
001/2010, viabilizado por meio de Contrato estabelecido entre o Ministério da Previdência
Social – MPS e a Solar Consultoria em Gestão e Pesquisas Ltda.
Os objetivos dessa pesquisa foram:
a) Analisar as políticas públicas de previdência e assistência social em relação aos
povos indígenas das regiões Norte e Nordeste do Brasil, no intuito de promover políticas que
visem melhorar o atendimento prestado a esses povos e ampliar a proteção social nessas
regiões;
b) Mensurar a cobertura previdenciária da população indígena em contextos rurais e
urbanos;
c) Elaborar diagnóstico do acesso ao serviço e ao pagamento dos benefícios;
d) Avaliar os usos do dinheiro e a posse de documentação nas populações indígenas;
e) Examinar a articulação entre os direitos previdenciários e a ordem social tradicional
dos diferentes grupos indígenas.
Esse Relatório Final tem como meta a análise do perfil dos povos indígenas incluídos
na pesquisa, considerando a sua localização territorial, a configuração histórica e
sociocultural, a demografia atual, a inserção desses povos junto ao Estado e à sociedade
brasileira, e, em especial, às políticas de previdência e assistência social.
O Relatório visa, ainda, responder às principais questões que demandaram essa
pesquisa, tais como:
1) As estruturas de atendimento aos direitos constitucionais dos povos indígenas –
Fundação Nacional do Índio – FUNAI, Ministério Público Federal – MPF, Ministérios
Públicos Estaduais – MPE; de assistência a esses povos – Fundação Nacional de Saúde –
FUNASA, Secretarias de Estado e Municipais da Educação, Assistência Social, de Assuntos
Indígenas e outras; e instituições responsáveis pela implementação dos seus direitos
previdenciários, nas Regiões Norte e Nordeste do Brasil – Ministério da Previdência Social –

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MPS, por meio do Instituto Nacional de Seguridade Social – INSS – e sua eficácia na
efetivação desses direitos.
2) Os problemas relacionados ao acesso dos povos indígenas aos benefícios
previdenciários e assistenciais garantidos legalmente pelo Estado brasileiro;
3) A atuação de lideranças em organizações sociais e políticas tradicionais,
associações indígenas e de organizações não governamentais de apoio aos povos indígenas e
outras;
4) As modalidades de acesso à documentação exigida, a presença de intermediários e
as formas individuais e coletivas de utilização desses recursos.
O Relatório apresenta, ainda, os contatos institucionais, informações documentais e
entrevistas realizadas junto a agentes tutelares, assistenciais e previdenciários, levantamentos
etnográficos (observações, entrevistas e imagens fotográficas) junto a lideranças indígenas
tradicionais, representantes de organizações indígenas, bem como dos beneficiários indígenas
efetivos e potenciais das políticas de previdência e assistência social brasileiras.
O trabalho constitui um esforço de consolidação do material levantado durante a
pesquisa indicando, ainda, caminhos a serem percorridos em um possível desdobramento
dessa pesquisa.

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2 METODOLOGIA

A metodologia aplicada previa que a apresentação do resultado final da pesquisa dar-


se-ia na forma de um ensaio antropológico-fotográfico, baseado na análise qualitativa da
relação entre as populações indígenas selecionadas, na estrutura burocrática do Estado e no
acesso aos benefícios da previdência e da assistência social. A pesquisa foi implementada a
partir de levantamentos documentais, observações e entrevistas junto a agentes institucionais,
lideranças indígenas tradicionais e associativas e beneficiários da Previdência Social. O
desenvolvimento da pesquisa demandou os seguintes procedimentos metodológicos:
- Identificação e delimitação dos grupos indígenas a serem investigados, levando-se
em consideração critérios estabelecidos pelo citado Edital do MPS, em relação a povos
indígenas das Regiões Norte e Nordeste do Brasil, tendo-se em vista o tempo de contato, a
maior ou menor facilidade de acesso a centros urbanos, a condição rural (aldeados) ou urbana
dos grupos considerados e sua maior ou menor cobertura previdenciária;
- Elaboração de instrumentais de coleta e sistematização de dados, como formulários
de pesquisa, roteiros de entrevista, modelos de relatórios de viagem e de relatórios técnicos,
além da formatação do Relatório Preliminar e Relatório Final da pesquisa;
- Encontros da equipe de pesquisa, com apresentação dos profissionais envolvidos e
realização de capacitação aos assistentes de pesquisa. Em um desses encontros recebeu-se a
visita de um agente da Gerência do INSS em São Luís/MA, o qual teceu explicações sobre a
legislação previdenciária em vigor no Brasil, em particular a que se refere aos segurados
especiais, dentre os quais se inserem as populações indígenas que ainda preservam as
características exigidas para serem consideradas na categoria de segurados especiais;
- Contatos institucionais preliminares com o objetivo de elaboração de roteiros e
cronogramas de pesquisa referentes aos grupos e terras indígenas selecionados e às
instituições e organizações sociais a serem investigadas nas sedes municipais. Esses contatos
visaram, também, a identificação de agentes responsáveis, em nível local e regional, pela
implementação de políticas indigenistas, assistenciais e previdenciárias e o agendamento,
junto a esses agentes, de entrevistas e levantamentos documentais. Também foram tratados
nesses contatos os procedimentos para ingresso e realização de pesquisa em terras indígenas
nos diferentes municípios, o acesso e a permanência das equipes de pesquisa nessas áreas e o
apoio institucional à realização desses levantamentos;
- Levantamentos documentais e entrevistas junto a representantes das instituições
tutelares, assistenciais e previdenciárias, como coordenadores regionais e locais da FUNAI,
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chefes de DSEI da FUNASA, gerentes executivos e outros agentes do INSS, promotores
públicos e procuradores de Justiça dentre outros. Esses levantamentos permitiram a
identificação e a localização de comunidades e aldeias indígenas a serem percorridas e
investigadas, estruturas de atendimento local a essas populações nos municípios e nas terras
indígenas e infra-estrutura para instalação e permanência das equipes de pesquisa durante o
trabalho de campo, meios de transporte disponíveis e outros;
- Levantamentos documentais, observações e entrevistas detalhadas, junto às
lideranças e organizações indígenas tradicionais, bem como professores indígenas, agentes de
saúde indígena, funcionários indígenas da FUNAI e da FUNASA e outros, nas cidades e nas
terras indígenas;
- Levantamentos de casos previdenciários indígenas referentes aos diferentes
benefícios associados à previdência e à assistência social, pelos critérios de benefícios já
implementados e benefícios não implementados, investigando as causas relacionadas.

2.1 O TRABALHO DE CAMPO

As equipes de pesquisa organizadas para o trabalho de campo em cada área foram


compostas por um antropólogo (coordenador de pesquisa), um fotógrafo profissional, um
coordenador de campo (consultor fixo da Solar Consultoria) e um assistente de pesquisa
(graduado e/ou pós-graduado em Ciências Sociais e/ou Antropologia). Foram constituídas 03
(três) equipes, sendo que o antropólogo e o fotógrafo integraram todas.
Nos momentos iniciais das viagens a campo foram realizados contatos institucionais
nas capitais dos estados e nas sedes dos municípios onde se localizam os grupos e as terras
indígenas selecionados, bem como o agendamento dos deslocamentos e a verificação das
condições de acesso às terras indígenas.
Nesses momentos foram realizados, também, levantamentos documentais e entrevistas
junto aos gestores de órgãos públicos e agências vinculadas à questão indígena (FUNAI,
FUNASA, INSS, Secretarias de Estado, Secretarias Municipais e outros) e aos representantes
de associações indígenas localizados nesses municípios e negociadas as formas de apoio
institucional à viagem e à permanência das equipes de pesquisa nas terras indígenas.
As visitas foram implementadas entre os dias 09 de agosto e 26 de outubro de 2010.
As viagens de pesquisa duraram, em média, 14 (quatorze) dias, sendo que os dias iniciais
foram destinados às entrevistas com agentes públicos, organizações indigenistas e lideranças
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indígenas nas cidades. Nos últimos dias, foi realizada a complementação das entrevistas
institucionais e a coleta de outras informações relevantes na região. Dentro desse período,
foram destinados 10 (dez) dias para levantamentos e entrevistas junto às comunidades
indígenas, nas aldeias ou nas áreas urbanas, e junto a instituições vinculadas à assistência e à
Previdência Social.
Durante o processo de pesquisa foram aplicadas as seguintes técnicas de pesquisa:
- Levantamentos documentais, de caráter quantitativo, apresentando dados sobre a
população indígena, associados às localidades a serem visitadas;
- Entrevistas com gestores de órgãos e agências indigenistas (FUNAI e FUNASA);
- Entrevistas com gestores de órgãos previdenciários e assistenciais (INSS e Centros
de Referência da Assistência Social – CRAS-Indígena);
- Entrevistas com gestores e agentes públicos municipais e estaduais (prefeitos,
secretários de Assistência Social; secretários de Assuntos Indígenas; vereadores etc.);
- Levantamentos e entrevistas junto a lideranças e organizações indígenas
(Associações; Coordenações Regionais; Federações e Organizações Não Governamentais –
ONGs);
- Entrevistas com lideranças indígenas tradicionais e não tradicionais;
- Identificação do público alvo por técnica de bola de neve;
- Observação direta das populações indígenas nas aldeias e cidades quando se
deslocam para receber os benefícios;
- Entrevistas com indígenas aposentados e outros beneficiários indígenas;
- Registro fotográfico dos povos indígenas selecionados durante o processo de
pesquisa.

2.2 FATORES QUE FACILITARAM OU DIFICULTARAM O ACESSO ÀS


ÁREAS E AOS POVOS INDÍGENAS

Dentre os fatores que atuaram positivamente, no sentido de possibilitar o


desenvolvimento da pesquisa, destaca-se o apoio institucional de órgãos e agências
vinculados à política indigenista (FUNAI, FUNASA), às políticas de assistência (FUNASA,
Secretarias estaduais e municipais de Assuntos Indígenas, Secretarias estaduais e municipais
de Assistência Social) e à política previdenciária (INSS).

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Esses órgãos atuaram tanto no sentido de favorecer a logística do trabalho de campo
nas aldeias, disponibilizando espaços para hospedagem das equipes de pesquisa, como no
fornecimento de dados e na disponibilidade de seus gestores e demais funcionários para
prestar informações, conceder entrevistas e, em casos pontuais, no acompanhamento dessas
equipes às terras indígenas e na mediação junto a essas comunidades.
Em relação aos agentes vinculados à política e às ações previdenciárias, de modo
geral, os pesquisadores contaram com a colaboração de gestores e funcionários das Gerências
Executivas Regionais do INSS e APS nas capitais e municípios percorridos, pela
disponibilização de documentos e pelas entrevistas concedidas a essa pesquisa.
Quanto aos grupos indígenas, objeto dessa pesquisa, pode-se considerar, de maneira
quase absoluta, o alto grau de participação e colaboração nos levantamentos realizados. Essas
comunidades demonstraram, em todas as oportunidades, um grande interesse pela pesquisa
desenvolvida, concedendo entrevistas, identificando e trazendo casos previdenciários e
assistenciais e acreditando nas possibilidades de uma melhoria no sistema de Previdência
Social em relação aos povos indígenas.
Em relação aos fatores que dificultaram o desenvolvimento dessa pesquisa, pode-se
destacar as dificuldades de acesso às aldeias indígenas mais isoladas, tendo-se em vista, ainda,
o curto período para a realização do trabalho de campo. Por vezes, as dificuldades de
obtenção ou mesmo a ausência de dados documentais consistentes e atualizados sobre a
demografia dos povos indígenas investigados e sua participação como beneficiários de
previdência e assistência social, foram fatores que dificultaram a organização e a
sistematização de um quadro quantitativo atualizado, seja da composição demográfica desses
grupos, seja do alcance das políticas previdenciárias e assistenciais sobre os mesmos.

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3 PERFIL DOS POVOS INDÍGENAS PESQUISADOS

Um dos objetivos desse trabalho foi traçar um perfil dos povos indígenas que
constituem o objeto da pesquisa. Compreende-se aqui “perfil dos povos indígenas
pesquisados” como um conjunto de informações etnológicas e históricas, que permite a
compreensão inicial desses povos, contextualizando-os nas tradições linguísticas e culturais
em que se encontram inseridos, bem como no processo histórico de formação e
desenvolvimento da sociedade brasileira regional, com a qual se relacionam. Também se
refere ao “perfil indígena”, à situação de cada povo indígena considerado, em relação à
facilidade ou dificuldade de acesso à previdência e à assistência sociais brasileiras.
Os perfis dos povos indígenas selecionados foram elaborados com base em estudos
desenvolvidos pelo coordenador dessa pesquisa, fruto de seus trabalhos anteriores com os
povos Canela e Tenetehara-Guajajara, e em informações obtidas no site “Povos Indígenas no
Brasil”, do Instituto Socioambiental – ISA: http://pib.socioambiental.org/pt. Os links
específicos, referentes a cada um dos povos pesquisados, estão disponíveis na Bibliografia, no
final desse documento.
Os povos indígenas contemplados por essa pesquisa constituem exemplos da grande
diversidade linguística e cultural existente no continente sul-americano e, especificamente, no
território brasileiro. Nesse estudo estão representados grupos vinculados às tradições culturais
Tupi (Tenetehara-Guajajara, Potiguara e Sateré-Mawé), Macro-Jê (Apaniekrá e
Ramkokamekra-Canela), Aruak (Baniwa) e Karib (Tiriyó), formando um grande mosaico da
diversidade linguística e cultural indígena em território brasileiro.
Esses povos encontram-se, por sua vez, distribuídos por diferentes regiões
etnográficas ou áreas culturais (Tocantins-Gurupi, Madeira-Tapajós, Alto Rio Negro,
Tumucumaque e Nordeste) e ambientais (Pré-Amazônia Maranhense, Cerrado Maranhense,
Litoral Nordestino, Alto Rio Negro, Baixo Amazonas e Tumucumaque), tornando-se,
portanto, representativos da ocupação pré-colombiana do atual território brasileiro.
Os povos indígenas contemplados nessa pesquisa representam, também, a diversidade
de processos de ocupação histórica das atuais Regiões Norte e Nordeste do Brasil, e os modos
pelos quais os povos indígenas foram inseridos nesses processos. Finalmente, a seleção dos
grupos indígenas a esse trabalho foi realizada em conformidade com os critérios elaborados
pelo Edital Tomada de Preços 01/2010 do MPS, quais sejam:

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GRUPOS INDÍGENAS DA REGIÃO NORDESTE
- Grupo indígena com população rural (aldeada) – Selecionados: Apaniekrá-Canela, na Terra
Indígena Porquinhos e Ramkokamekra-Canela, na Terra Indígena Kanela1, nos municípios de Barra do
Corda, Fernando Falcão e Grajaú, no centro-sul do Maranhão; e Potiguara, nas terras indígenas
Potiguara, Potiguara de Monte-Mor e Jacaré de São Domingos, nos municípios de Baía da Traição,
Marcação e Rio Tinto, no estado da Paraíba.
- Grupo indígena na periferia de uma grande cidade da Região – Selecionado: Tenetehara-
Guajajara, nos municípios de Barra do Corda e Grajaú, no centro-sul do Maranhão.

GRUPOS INDÍGENAS DA REGIÃO NORTE


- Grupo indígena com muito tempo de contato (mais de 100 anos), com terra indígena
demarcada e organização social tradicional, boa cobertura previdenciária, e que permita acompanhar o
deslocamento da terra indígena para a cidade, para o recebimento dos benefícios – Selecionado:
Sateré-Mawé, da Terra Indígena Andirá-Maraú, na confluência entre os estados de Amazonas e Pará;
- Grupo indígena contatado há aproximadamente 50 anos, com terra indígena demarcada,
organização social tradicional e dificuldade de acesso à Previdência Social (distante dos grandes
centros urbanos) – Selecionado: Tiriyó, no Parque Indígena do Tumucumaque – PIT, entre os estados
de Amapá e Pará.
- Grupo formado por indígenas urbanos, com boa cobertura previdenciária – Selecionado:
Baniwa, no município de São Gabriel da Cachoeira, no Alto Rio Negro, estado do Amazonas.

3.1 POVOS INDÍGENAS DA REGIÃO NORDESTE

A chamada Região Nordeste do Brasil, formada pelos atuais estados de Alagoas,


Bahia, Ceará, Maranhão, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte e Sergipe, abriga
um grande contingente indígena. Essa população encontra-se distribuída por numerosas
etnias, vinculadas a diferentes tradições linguísticas e culturais e com situações de contato
também específicas quanto à sua inserção na sociedade contemporânea do Nordeste
brasileiro.
Os contatos entre os povos indígenas do Nordeste e a sociedade luso-brasileira em
formação se deram, inicialmente, com expedições militares e com as frentes de expansão
coloniais, que, a partir do século XVI, ocuparam as terras situadas ao longo do vasto litoral
que se estende da Bahia ao Maranhão, na implantação de uma economia colonial agro-
exportadora. A ocupação litorânea alcançou um conjunto de grupos indígenas que falavam
línguas Tupi, com organizações sociais mais ou menos comuns, alguns dos quais ficaram

1
Quando se trata da Terra Indígena a grafia é Kanela com “K”, pois assim foi registrada; quando se trata do
povo indígena a grafia é Canela com “C”.
20
genericamente conhecidos como “Tupinambás”. Esses povos foram objeto de sujeição e
domesticação, pelas expedições de “resgate” e pela ação missionária, que, para esse fim,
estabeleceu um conjunto de missões e aldeamentos indígenas em áreas litorâneas e no sertão
nordestino.
Subsidiária à economia açucareira no Nordeste, desenvolveu-se no mesmo período
uma frente de expansão pastoril, que, partindo do litoral, e após ocupar o vale do Rio São
Francisco, deslocou-se em direção à Amazônia e ao interior do Nordeste, estabelecendo
guerras de conquista contra os chamados “tapuias” – grupos indígenas culturalmente distintos
dos Tupi do litoral, que viviam no agreste e nos sertões nordestinos e no cerrados do Piauí,
Maranhão e Goiás – contra os quais foram realizadas as mais violentas expedições de
combate e extermínio para a ocupação de seus territórios por fazendas de criação.
Diante do tempo da ocupação territorial e da sujeição étnica a que foram vítimas os
grupos indígenas da Região Nordeste, uma parte desses grupos que permaneceram
etnicamente organizados o fizeram a custa da perda de suas especificidades linguísticas e
culturais. Até meados do século XX, poucos desses grupos eram reconhecidos pelo Estado
brasileiro como indígenas e suas identidades étnicas permaneciam sufocadas, diante dos
mecanismos históricos de dominação e do preconceito incorporado contra índios na região
(Oliveira, 2002).
A partir de meados da década de 1970, várias etnias do Nordeste brasileiro, em uma
retomada positiva de suas identidades, passaram a reivindicar direitos legais junto ao Estado,
como a demarcação de seus territórios, a assistência à saúde e educacional. Como em outras
regiões, os processos demarcatórios ocorreram em contexto de violência extrema, com
assassinatos de líderes indígenas e a ação do aparelho repressivo do Estado em favor de
grandes fazendeiros, empresas agroindustriais e dos interesses ligados ao turismo.
Atualmente, os povos indígenas da região Nordeste encontram-se organizados por
meio de suas instituições tradicionais e do associativismo indígena, por meio dos quais fazem
valer seus direitos diante das instituições do Estado e da sociedade brasileira. Seus territórios,
em grande parte demarcados, vivem sob a pressão de interesses empresariais ligados ao
agronegócio e ao turismo, das grilagens de terra e de grandes obras de infraestrutura
desenvolvimentista, como projetos de exploração mineral, construção de usinas hidrelétricas,
transposição do Rio São Francisco, além de rodovias que cortam os territórios indígenas.
Com o crescimento demográfico acima da média regional e nacional da população
brasileira, esses povos indígenas demandam do Estado brasileiro políticas públicas específicas

21
que garantam a sua continuidade étnica em condições de dignidade. As políticas
previdenciárias e assistenciais têm, portanto, uma função essencial no projeto de continuidade
étnica desses povos e no enfrentamento das dificuldades decorrentes da limitada extensão e da
baixa produtividade de seus territórios, dos seus níveis de crescimento demográfico e das
pressões dos interesses empresariais sobre seus territórios.

3.1.1 APANIEKRÁ E RAMKOKAMEKRA-CANELA

Apaniekrá e Ramkokamekra-Canela são grupos indígenas vinculados à família


linguística Jê-Timbira, uma subdivisão do Tronco Linguístico Macro-Jê. Fazem parte de um
conjunto de grupos etnologicamente conhecidos como Timbira, os quais têm seus territórios
tradicionais localizados em áreas de cerrado e florestas, entre o estado do Maranhão (Krikati,
Gavião-Pukobyê, Krepumkateyê e Kreyê), leste do Pará (Gavião-Parkateyê) e norte do
Tocantins (Apinayé e Krahô). São, regionalmente, conhecidos como Canela.
Os Ramkokamekra-Canela e Apaniekrá habitam, respectivamente, a Terra Indígena
Canela, com 125.212 hectares (ISA, 2010) e a Terra Indígena Porquinhos, com 79.520
hectares (ISA, 2010), localizadas na região central do estado do Maranhão, nos municípios de
Barra do Corda, Fernando Falcão e Grajaú, entre as bacias dos rios Itapecuru e Mearim. As
terras indígenas Canela e Porquinhos foram demarcadas e homologadas nas décadas de 1970-
80 (Dec. no. 87.960, de 22/12/1982 e Dec. no. 88.599, de 10/08/1983) e encontram-se em
processo de revisão demarcatória, o que poderá levar à ampliação dos perímetros dessas áreas.
O quadro demográfico dos Apaniekrá e dos Ramkokamekra-Canela indica que o
crescimento populacional desses grupos, nas duas últimas décadas, esteve em taxas acima da
população brasileira regional. Esse crescimento está associado a fatores como demarcação
territorial, implantação de programas de assistência à saúde, educação e projetos econômicos
pelo Estado e, certamente, adaptação da organização social e simbólica desses grupos às
mudanças econômicas e sociais ocorridas na região.

Quadro 1: População Apaniekrá e Ramkokamekra-Canela / 1983-2008


GRUPOÉTNICO/ANO 1983 1986 1990 1998 2004 2008 Crescimento
Demográfico
Apaniekrá-Canela 274 294 336 423 583(*) 615(*) (124,45%)
Ramkokamekra-Canela 718 791 833 1.290 1698 2.052(**) (185,79%)
(Fontes: Oliveira, 2006; (*) Nascimento, 2009; (**) FUNASA, 2008)

22
Historicamente, os Apaniekrá e Ramkokamekra-Canela resultam do processo de
amálgama de diversos grupos Timbira alcançados pelo encontro de duas frentes de expansão,
que, no final do século XVIII e início do XIX, ocuparam as regiões central e sul do
Maranhão, nas bacias dos rios Corda e Mearim: uma, agrícola, que a partir do litoral
maranhense avançou pelos vales dos rios Itapecuru e Mearim, impulsionada pela economia
colonial de agroexportação; outra, pastoril, vinda do vale do Rio São Francisco em direção à
Amazônia, combatendo índios e ocupando seus territórios com fazendas de criação (Oliveira,
2002).
Essa situação histórica, estruturada a partir da disputa pela terra e pelos recursos
naturais, gerou conflitos que se arrastaram ao longo dos séculos XIX e XX. Em 1913, os
Kenkateyê, um subgrupo vinculado aos Apaniekrá-Canela que habitava a Aldeia Chinela, ao
sul de Barra do Corda, foram massacrados por ordem de um criador local, o que levou à sua
extinção enquanto grupo etnicamente organizado. Em 1963, os Ramkokamekra-Canela,
durante um processo “messiânico”, foram objeto de ataques organizados por criadores do
sertão maranhense, e o massacre não se concretizou, em parte, pela ação de agentes do
Serviço de Proteção ao Índio – SPI, que conduziram os Canela em fuga, até uma região
habitada por índios Tenetehara-Guajajara, onde permaneceram em exílio por 05 anos.
O atual município de Barra do Corda, surgido a partir de uma ocupação pioneira – o
povoado Missões, criado em 1835 na confluência dos rios Corda e Mearim, está
historicamente relacionado às guerras de conquista movidas por agentes coloniais contra os
povos Tupi (Amanayó e Guajajara) e Timbira (vários grupos, dentre os quais os Capiekran ou
“Canelas finas” e os Txakamekran ou “Timbiras matteiros” de que falam os cronistas
coloniais (cf. Ribeiro, 1845, apud Oliveira, 2002).
Palco de conflitos históricos entre índios e brancos, como o “Massacre do Alto
Alegre” (1901), o “Massacre da Aldeia Chinella” (1913) e o movimento messiânico Canela
de 1963, a cidade de Barra do Corda canaliza e sintetiza a tensão histórica entre esses grupos
indígenas e a sociedade brasileira regional que ali se desenvolveu.
Atualmente, com população em torno de 100 mil habitantes, Barra do Corda constitui
um polo agrícola e pecuarista de grande importância no estado do Maranhão, sendo a sede de
uma unidade administrativa estadual, a Região Central do Maranhão. Durante todo o século
XX, Barra do Corda recebeu levas migratórias vindas da região Nordeste, em especial do

23
estado do Ceará, as quais se direcionaram, em parte, para o chamado “sertão cordino”, a
região de cerrados e campos naturais, para a prática da criação extensiva tradicional.
Por força dessa importância histórica e também geográfica – a cidade está localizada
no centro geográfico do estado do Maranhão, em área de transição entre florestas, cerrados e
campos naturais – abriga uma série de instituições federais (FUNAI, FUNASA, INCRA,
IBAMA, IBGE, INSS, Banco do Brasil, Banco do Nordeste, Caixa Econômica Federal, dentre
outras), estaduais (Gerência Regional, SEDUC, SEAGRO, SEMA e outras) e municipais
(secretarias de Assuntos Indígenas e de Assistência Social).
A FUNAI encontra-se presente no município de Barra do Corda desde a sua criação,
em 1969. Anterior a essa criação, Barra do Corda abrigava uma sede do Serviço de Proteção
ao Índio – SPI, o primeiro órgão indigenista republicano brasileiro, criado em 1910, pelo
conhecido Cândido Rondon.
O SPI, tendo-se em vista os conflitos históricos entre índios e brancos na região havia
instalado um escritório em 1918, que se tornou a base da Ajudância da Barra do Corda, cujos
agentes tiveram atuação destacada em situações de conflito eminente entre os Tenetehara-
Guajajara e os Canela Apaniekrá e Ramkokamekra, com segmentos agrícolas e criadores
locais. Entre as décadas de 1930 e 40, o SPI, em acordo com o Governo Estadual do
Maranhão, realizou tentativas de demarcação territorial no município de Barra do Corda, as
quais não se efetivaram naquele momento.
A demarcação das atuais terras indígenas Canela e Porquinhos, respectivamente aos
Ramkokamekra e Apaniekrá-Canela, ocorreram entre o final da década de 1960 e meados da
década de 1980, implementada pela FUNAI, durante o regime militar. Nesse mesmo período
foram demarcadas a maior parte das terras indígenas atuais no Maranhão, inclusive as áreas
habitadas pelos Tenetehara-Guajajara na região de Barra do Corda e Grajaú.
A partir da segunda metade da década de 1980, a FUNAI passou por um constante
processo de reformulação administrativa, quando foram extintas as delegacias regionais e
ajudâncias e criadas administrações regionais vinculadas inicialmente a superintendências
regionais e, depois, diretamente à Presidência do órgão. Barra do Corda sediou uma
Administração Executiva Regional – AER, entre os anos de 1986 e 2004, quando extintas as
AERs e criados os Núcleos de Apoio Local.
Até o final de 2009, em Barra do Corda, havia o Núcleo de Apoio Local Canela
(NAL-Canela) e o Núcleo de Apoio Local Guajajara (NAL-Guajajara), quando essas unidades
foram extintas dando origem à atual Coordenação Técnica Local – Canela, sediada em Barra

24
do Corda e voltada para a assistência aos Apaniekrá e Ramkokamekra-Canela. Também foi
criada, em meados de 2010, a Coordenação Técnica Local – Guajajara, com sede em Itaipava
do Grajaú.
Durante o período de realização da pesquisa, uma unidade estava em processo de
criação, com sede em Grajaú e destinada a administrar questões relacionadas aos Tenetehara-
Guajajara daquele município. Essas unidades, responsáveis pela implementação da política
indigenista oficial, possuem um setor que deve encaminhar as demandas dos povos indígenas
representados em relação aos seus direitos previdenciários e assistenciais – o Serviço de
Assistência ao Índio – SAI.
Assim, cabe ao SAI a produção de certidões de nascimento indígena, as declarações de
trabalho rural e outros documentos necessários à implementação desses direitos, bem como o
encaminhamento de indígenas ao INSS para o cadastramento de novos segurados especiais
indígenas.
Nas últimas décadas, a ocupação espacial desordenada do cerrado maranhense,
associada às políticas de desenvolvimento do Estado brasileiro, levou à redefinição fundiária e
à intensificação da exploração econômica da região, pelo chamado agronegócio. Esse
processo tem resultado em mudanças ambientais, econômicas e socioculturais profundas no
centro-sul do Maranhão, com a expulsão de comunidades sertanejas decorrente da compra e
da grilagem de terras, que transformam essas áreas de cerrado, então utilizadas pela criação
extensiva, em verdadeiros latifúndios voltados à produção de soja e de outras commodities.
Associados às usinas siderúrgicas movidas a carvão vegetal estabelecidas no chamado
“corredor Carajás”2, empresários da soja têm promovido verdadeira devastação na cobertura
do cerrado do centro-sul maranhense, no entorno dessas terras indígenas (Oliveira, 2010).
Os Apaniekrá e Ramkokamekra-Canela não permaneceram passivos a esse processo,
mas elaboraram respostas em diferentes planos. Em nível de sua organização social e
simbólica tradicional, os impactos dessas mudanças levaram ao surgimento de movimentos
socioreligiosos entre os Ramkokamekra, vinculados ao “messianismo Canela”, o qual tem
como referência o mito “Aukhê”, herói cultural cuja transformação, conforme a mitologia
timbira, teria dado origem ao “homem branco”. Esses movimentos trazem a perspectiva de

2
O chamado “Corredor Carajás” é um dos processos associados ao Programa Grande Carajás. Ocupa uma faixa
de cerca de 100 quilômetros ao longo da Estrada de Ferro Carajás, na qual foram implementados, a partir da
década de 1980, usinas siderúrgicas e projetos agropecuários estimulados pela implantação do Projeto Ferro
Carajás. Cf. Oliveira, 2002 e 2006.
25
mudança e inversão das relações de poder entre os Canela e a sociedade brasileira regional
(Oliveira, 2006).
O surgimento de novos modelos de organização política tem sido outra resposta
elaborada pelos grupos Canela. Como forma de inserção nos processos ligados ao
“desenvolvimento”, os Apaniekrá e os Ramkokamekra têm se organizado em associações
indígenas a fim de captar e gerir recursos por meio de projetos de “etnodesenvolvimento”,
financiados por agências governamentais e privadas.
Desde a década de 1980, Apaniekrá, Ramkokamekra-Canela e outros grupos indígenas
no centro-sul do Maranhão foram alcançados por diferentes projetos e programas de
desenvolvimento regional, implementados por meio do “Convênio Companhia Vale do Rio
Doce – CVRD/FUNAI”, FUNASA (Projeto Vigisus3), Ministério do Meio Ambiente – MMA
(Projetos Demonstrativos dos Povos Indígenas – PDPI), Ministério das Minas e Energia –
MME / Companhia Maranhense de Abastecimento – COMABA e outros. Em alguns casos
esses projetos resultaram de convênios entre os governos federal e estadual e as agências
internacionais de apoio ao desenvolvimento.
Assim, os Apaniekrá e Ramkokamekra-Canela foram contemplados, nas últimas
décadas, por subprojetos vinculados ao Projeto Nordeste, ao Programa de Combate à Pobreza
Rural – PCPR e ao Programa de Desenvolvimento Integrado do Maranhão – PRODIM,
implementados junto a comunidades rurais do Maranhão pelo Governo do Estado, a partir de
convênios junto ao Banco Mundial (BIRD) e Banco Interamericano de Desenvolvimento
(BID). Participaram, ainda, de um programa do PRONAF, voltado para a distribuição (venda)
de rezes a comunidades da região, e de projetos implementados por pesquisadores, por meio
da “ajuda humanitária” alemã e da Inter-American Foundation (IAF).
A partir de 2004, foram, ainda, implantadas redes de eletrificação nas Aldeias
Escalvado e Porquinhos, o que estimulou Apaniekrá e Ramkokamekra-Canela à utilização e
ao consumo de geladeiras, televisores, aparelhos de som e outros eletrodomésticos,
intensificando sua dependência em relação aos produtos industrializados. Esses produtos são
adquiridos, em sua maior parte, com recursos decorrentes do pagamento de salários e dos
benefícios previdenciários e assistenciais, como as aposentadorias, os auxílios (salário-
maternidade, por exemplo) e outros.

3
O Projeto Vigisus é um acordo de empréstimo celebrado entre o Banco Mundial e o Governo Brasileiro,
dividido em três fases e em dois componentes distintos. O componente II, Saúde Indígena, atua na FUNASA e
está voltado para ações de fortalecimento da saúde indígena e de saneamento em comunidades remanescentes de
quilombos. Disponível em: http://www.funasa.gov.br/Web%20Funasa/vigisus/startVigisus/index.html. Acesso
em 04 de março de 2010.
26
Assim, Apaniekrá e Ramkokamekra-Canela foram inseridos, de forma irreversível, no
campo dos projetos e programas de desenvolvimento promovidos pelo Estado brasileiro e por
agências internacionais de financiamento, os quais estabeleceram uma perspectiva de
mudanças econômicas e socioculturais, cujas consequências em andamento são objeto de um
projeto de pesquisa específico que o coordenador dessa pesquisa desenvolve junto a esses
grupos.

3. 1.2 TENETEHARA-GUAJAJARA

Os Tenetehara, conhecidos regionalmente como Guajajara, formam uma grande etnia


vinculada ao Tronco Linguístico Tupi. Até o século XVII, os Tenetehara estavam
concentrados no alto curso dos rios Pindaré e Zutiua, quando foram alcançados pelas
expedições de “descimento” e “resgate” organizadas pela administração colonial portuguesa
no Maranhão e deslocados, em grande parte, para as missões jesuíticas de Maracú e Cajari, na
atual baixada maranhense4.
Submetidos à escravização pelos colonos e à servidão pelos religiosos, os Tenetehara
dispersaram-se nos séculos XVIII e XIX por várias regiões. Parte dessa etnia ocupou os vales
dos rios Grajaú e Alto Mearim, territórios que anteriormente foram de domínio de outras
etnias, como os Gamella e os Timbira. Com o povoamento colonial do alto curso desses rios a
partir do início do século XIX, os Tenetehara passaram a ser explorados pelos colonizadores,
como agricultores, remadores e extrativistas (Oliveira, 2002).
No início do século XX, um grande conflito envolveu os Tenetehara do Grajaú e Alto
Mearim a segmentos da sociedade regional, decorrente do processo de sujeição e exploração a
que foram submetidos por moradores locais e por missionários capuchinhos, que se
estabeleceram entre suas aldeias. Em resposta à perda territorial, à reclusão de crianças recém-
nascidas, aos maus-tratos e à imposição de regras de conduta pelos missionários, os
Tenetehara rebelaram-se em um grande levante, conhecido como “Massacre do Alto Alegre”
(1901), executando frades, freiras, moradores regionais e até indígenas em catequese.
A esse fato seguiu-se uma grande repressão organizada pelo governo estadual e pela
sociedade local, que se estendeu por vários anos, até a captura e prisão dos líderes do

4
Durante os séculos iniciais da colonização, “descimento” e “resgate” constituíram duas modalidades históricas
de captura de índios no alto curso dos rios a fim de prover o empreendimento colonial português de força de
trabalho escrava e servil. Ambas articulavam interesses da administração colonial, dos colonos e dos
missionários e resultavam na perda da autonomia política e cultural dos grupos indígenas (Oliveira, 2002).
27
movimento. Com a morte na prisão do cacique Caboré, tido como mentor e principal líder do
movimento, estancou-se a repressão, permanecendo o “Massacre do Alto Alegre”, como um
fato a nortear ideologicamente as relações entre índios e brancos na região.
Os conflitos com a sociedade regional intensificaram-se novamente, entre o final da
década de 1970 e meados dos anos 90, período em que foram demarcadas as terras indígenas
Tenetehara, ao longo dos rios Grajaú e Alto Mearim. Os conflitos se estancaram com a
transferência da população do povoado São Pedro dos Cacetes, remanescente dos ocupantes
da antiga aldeia Alto Alegre, a qual foi reassentada em um núcleo urbano estabelecido em
local próximo à antiga ocupação camponesa5.
A partir desse momento, os Tenetehara desenvolveram novas formas de organização
social e de relacionamento com a sociedade regional. Por meio de um movimento
associativista e da ocupação de espaços nas agências indigenistas (FUNAI e FUNASA), os
Tenetehara têm implementado suas demandas junto ao Estado e à sociedade regional
reproduzindo, em parte, as regras da dominação junto a seus próprios pares e à sociedade
local de Barra do Corda e Grajaú. Conflitos decorrentes da passagem de uma rodovia federal
(BR-226) pela Terra Indígena Canabrava e da permanência de antigas formas de exploração
sobre indígenas têm ocorrido, sem que haja ações efetivas do Estado para sua resolução.
Os Tenetehara continuam sendo objeto de discriminação e preconceito étnico nesses e
em outros municípios em que habitam ou mantêm relações permanentes, agravado pelo
crescente índice de urbanização de sua população. Esse fato ocorre a despeito de que os
recursos manipulados pelos Tenetehara e por outros grupos indígenas na região – por meio de
benefícios previdenciários e assistenciais, de projetos econômicos, da venda de produtos, de
salários e outros – terem um peso significativo no balanço econômico desses municípios.
O quadro a seguir demonstra o crescimento demográfico dos Tenetehara nas últimas
décadas (68,25%), cujo índice é superior ao da população regional no mesmo período. Esse
crescimento pode ser associado à demarcação e à desintrusão6 das terras indígenas na região,
ao estabelecimento de ações indigenistas voltadas à assistência educacional e de saúde e à
implementação de projetos econômicos, por meio de empresas estatais e privadas (Eletronorte
e Vale), e de programas de combate à pobreza rural articulados ao associativismo indígena.
Isso não significa, entretanto, que as ações implementadas pelas agências indigenistas

5
O povoado São Pedro dos Cacetes constituiu um enclave de camponeses no interior da Terra Indígena
Canabrava, demarcada e homologada, desde o início da década anterior. A solução definitiva para esse conflito
surgiu quando o Governo do Estado do Maranhão indenizou e transferiu essa população para um núcleo urbano
denominado Remanso, localizado próximo à BR-226.
6
Retirada de pessoas que ocupam, residem e/ou realizam atividades econômicas em terras indígenas.
28
(FUNAI e FUNASA, Secretaria de Estado, Secretarias Municipais, dentre outras) primem
pela qualidade e pelo respeito às especificidades étnicas desses povos. Em diferentes
momentos, Tenetehara e outros grupos indígenas no Maranhão têm promovido ocupações de
ferrovias, de casas de saúde e até retenção de servidores públicos, como modo de alertar essas
instituições sobre as demandas indígenas e a baixa qualidade dos serviços prestados por essas
agências.

Quadro 2: População Tenetehara-Guajajara / 1983-2004


GRUPO ÉTNICO TERRA ÁREA 1983 1986 1990 1998 2004
INDÍGENA (hectare)
Guajajara/Kreyê/Guarani/Tobajara Pindaré 15.002 402 433 572 520 550
Guajajara/Guajá Caru 172.667 153 2122 260 368 232
Guajajara/Guajá Araribóia 413.587 2.323 2.576 2.381 4.495 4.223
Guajajara Bacurizinho 82.432 1.152 957 1.865 2242 1704
Guajajara Canabrava 131.860 2.552 3671 3.367 3856 3919
Guajajara Lagoa 13.198 ---- 251 285 461 260
Comprida
Guajajara Morro 49 80 153 136 100 94
Branco
Guajajara Rodeador 2.314 ---- ---- 100 76 8
Guajajara Urucu-Juruá 12.697 191 199 286 286 462
(Fonte: Oliveira, 2006)

A urbanização, fenômeno que vem se verificando de modo crescente entre grande


parte dos povos indígenas no Brasil, também ocorre entre os Tenetehara-Guajajara. A partir
dos últimos recenseamentos realizados pelo IBGE, os dados referentes aos índios urbanizados
têm elevado ao dobro o total da população indígena brasileira, e apontado que etnias então
consideradas eminentemente rurais, isto é, aldeadas, possuem contingentes urbanizados cada
vez maiores.
As comunidades indígenas Tenetehara consideradas urbanas têm um histórico de
conflito e formas de relação socioeconômica diferenciadas com a sociedade envolvente e em
relação a outras etnias da região.
As cidades de Grajaú e de Barra do Corda formam os mais importantes centros
urbanos na região central do Maranhão, tanto pela sua constituição histórica, por aglutinarem
grande parte das populações indígenas, como por abrigarem um número significativo de
instituições federais, estaduais e municipais que realizam as políticas e ações governamentais
aos povos indígenas. Divididas territorialmente pela Terra Indígena Canabrava e pela
29
presença de outras áreas indígenas de menor dimensão, essas cidades, a despeito de um
processo histórico relativamente co-participado, têm especificidades nas suas relações com os
grupos indígenas, apesar de certos problemas comuns, como a exploração econômica a que
esses grupos são submetidos. Em relação à Previdência Social, essa exploração se reproduz
com o estabelecimento de intermediários e outras formas de agenciadores.
Na década de 1980, já se verificava no Maranhão a existência de famílias indígenas,
especialmente Tenetehara, que teriam como moradia permanente as cidades de Amarante,
Barra do Corda, Grajaú, Santa Inês, Imperatriz e até a capital do estado, São Luís. Nesse
período, além da permanência de indivíduos e famílias nas cidades próximas às aldeias,
verificava-se a existência de bairros ocupados em grande parte por famílias indígenas,
desenvolvendo atividades comerciais ligadas, por exemplo, à produção e ao comércio de
artesanato.
O bairro Canoeiros, localizado na cidade de Grajaú, constituía, em meados da década
de 1980, uma ocupação de famílias Tenetehara com tendência a tornar-se efetiva. A
proximidade das terras e aldeias indígenas e a dependência crescente das atividades urbanas
levaram à consolidação desses espaços como de ocupação permanente indígena, em contexto
urbano. A existência de núcleos indígenas, como a Aldeia Morro Branco, situada junto ao
perímetro urbano de Grajaú, contribuía para esse fluxo migratório e para o estabelecimento
residencial de parte dos Tenetehara do Alto Grajaú e Mearim em cidades como Grajaú e Barra
do Corda, onde também se consolidava um bairro de população predominantemente indígena.
Esse fenômeno encontra-se associado ao trabalho de alguns Tenetehara em órgãos
públicos (FUNAI, FUNASA, Prefeituras Municipais), às atividades privadas desenvolvidas
por indígenas, bem como ao deslocamento de indivíduos e grupos para estudar nas cidades
próximas às terras indígenas, na busca por serviços de saúde e outros. É possível que os dados
do último CENSO (2010), tragam uma melhor compreensão do processo de urbanização entre
os Tenetehara, fenômeno que também ocorre, em menor escala, com outros grupos indígenas
na região.

30
A pesquisa junto aos Tenetehara-Guajajara em Contexto Urbano

A pesquisa junto aos Tenetehara nos municípios de Barra do Corda e Grajaú foi realizada com
o objetivo de se produzir levantamentos documentais e entrevistas junto a agentes institucionais e
representantes das comunidades indígenas Tenetehara consideradas urbanas, as quais têm um
histórico de conflito e formas de relação socioeconômica diferenciadas com a sociedade envolvente e
em relação a outras etnias da região.
A pesquisa foi realizada em dois momentos distintos, considerando a diversidade
sociocultural, econômica e política atual dos Tenetehara e, especialmente, a sua relação com os
benefícios previdenciários. No primeiro momento, foram realizados levantamentos institucionais e
entrevistas junto a agentes institucionais (FUNAI, FUNASA, INSS, Prefeitura Municipal, Vereadores
etc.) e junto aos Tenetehara que habitam na área urbana do município de Grajaú; em seguida, o mesmo
trabalho foi realizado na área urbana de Barra do Corda.
A dinâmica de trabalho teve também, o objetivo de observar as diferentes situações vigentes
no relacionamento entre os Tenetehara e a Previdência Social, tanto em Grajaú, como em Barra do
Corda, considerando, ainda, a escassez de informações existentes e os diferentes modos de interação
desse grupo com as instituições indigenistas, nos dois centros urbanos.
A fim de se estabelecer um diagnóstico entre os Tenetehara e a Previdência Social nas cidades
de Grajaú e Barra do Corda, optou-se por realizar levantamentos junto às comunidades indígenas
urbanizadas, como também junto àquelas que vivendo em aldeias próximas a esses centros urbanos,
estabelecem um fluxo diário de relações entre a cidade e a aldeia, com impactos na questão
previdenciária.
A pesquisa entre os Tenetehara de Grajaú foi voltada, ainda, para a compreensão das relações
interétnicas na região, considerando-se temas específicos dessa localidade, como as questões eleitorais
debatidas durante o período dos levantamentos, as supostas fraudes previdenciárias, as relações entre
indígenas e “patrões”, a atuação das instituições indigenistas, organizações e lideranças indígenas, a
presença de índios urbanizados e outras.
As formas de intermediação entre os Tenetehara e a Previdência Social, criadas por indígenas
e não indígenas, foram consideradas como “normais” e “necessárias” por esses agentes, embora não
legais, como modos de acesso aos benefícios da Previdência Social brasileira. Tal situação coloca em
destaque, ações que envolvem benefícios e políticas públicas, como mecanismos de “burlar” a
legislação que envolve os povos indígenas, no que se refere à Previdência Social.
Os pesquisadores tinham consciência das dificuldades que enfrentariam em campo devido aos
acontecimentos recentes relativos aos ilícitos previdenciários em Barra do Corda, e puderam decidir
sobre a estratégia de aplicação do instrumental e roteiro de pesquisa a ser seguida em campo, com
objetivo de suprir as necessidades da pesquisa e investigar a realidade vivida pelos indígenas em
relação à Previdência Social.
Esses sentimentos foram gerados, possivelmente, pela ação policial ocorrida naqueles dias em
Barra da Corda, que levou à prisão de diferentes agentes e membros da sociedade local envolvidos em
fraudes previdenciárias7. Diante desses fatos, constatou-se que os entrevistados não se sentiam à
vontade para falar sobre tais assuntos, colocando como condição para a gravação das entrevistas que
as mesmas fossem realizadas coletivamente.

7
Alguns dias antes da viagem da equipe de pesquisa às cidades de Barra do Corda e Grajaú, uma operação
conduzida pela Polícia Federal resultou na prisão de vários agentes envolvidos na manipulação de cartões de
pagamento de benefícios da Previdência Social nesses municípios.
31
A pesquisa privilegiou o uso de registros de campo e gravações para a coleta e mesmo para
complementação dos dados junto aos entrevistados. Além de entrevistas individuais, foram realizadas
entrevistas coletivas, tendo-se em vista a forma com que agentes de instituições indígenas e
indigenistas receberam os pesquisadores, em alguns casos com desconfiança e receio.
A realização de entrevistas com mais de um agente revelou uma boa estratégia, já que os
entrevistados, sentindo-se mais seguros em contexto coletivo, descreveram situações relevantes, o que
possivelmente não ocorreria em uma entrevista individual. A existência de situações de ilegalidade nos
processos de cadastramento e recebimento de benefícios de aposentados, pensionistas e salário-
maternidade, dentre outros que alcançam os Tenetehara estabeleceu uma “corrente de medo” entre as
pessoas que trabalham com essas questões, especialmente quando julgam haver um reconhecimento de
suas pessoas como participantes desses esquemas, ou como delatores de colegas ou das situações
estabelecidas.
É importante ressaltar que a situação vigente causou constrangimento nos agentes públicos
(INSS, FUNAI e FUNASA, Secretarias Municipais) em abordar temas relacionados ao vínculo entre
os Tenetehara e a Previdência Social, a despeito dos pesquisadores informarem aos entrevistados sobre
seus vínculos institucionais e os objetivos da pesquisa em curso. Essa situação resultou na maior
utilização de registros escritos do que gravações eletrônicas junto a esses agentes, a fim de não
inviabilizar os levantamentos.
Entre a população local, a presença dos pesquisadores foi, de alguma forma, associada à
possível presença de autoridades que estariam investigando questões relacionadas às fraudes junto ao
INSS, o que pode ter interferido no discurso dos agentes sobre esse tema. Em relação aos
representantes indígenas, não foi percebida nenhuma restrição à gravação das entrevistas.

3.1.3 POTIGUARA8

Os Potiguara constituem uma etnia vinculada à família linguística Tupi-Guarani que,


como a maior parte dos povos indígenas do Nordeste, falam atualmente apenas a língua
portuguesa. A denominação potiguara é traduzida como “comedor de camarão”, o que remete
a uma atividade tradicional dessa etnia, a criação e o consumo dessa espécie, até hoje presente
nas suas práticas alimentares. Historicamente, os Potiguara foram também designados
“Petinguara”, que significa “mascador de fumo”.
Os Potiguara são também conhecidos como “índios de Acajutibiró e de São Miguel”,
os quais vivem distribuídos por três terras indígenas contíguas situadas nos municípios de
Baía da Traição, Marcação e Rio Tinto, no estado da Paraíba. Até o ano de 2004, esses
Potiguara distribuíam-se pelas Terras Indígenas Potiguara, Jacaré de São Domingos e
Potiguara de Monte-Mor. Em 2005, teve início a identificação da Terra Indígena Novo
Mundo-Viração.

32
Seu histórico de contato com a sociedade luso-brasileira remonta ao início da
colonização, mas se torna mais intenso nos processos que marcaram a conquista portuguesa
dos territórios potiguara nos séculos XVIII e XIX. A formação dos municípios de Baía da
Traição, Marcação e Rio Tinto, que circunscrevem o atual território potiguara, esteve
estreitamente relacionada aos aldeamentos missionários de São Miguel da Baía da Traição e
Monte-Mor, esse último surgido após a destruição do aldeamento de Mamanguape e a criação
das aldeias de Baía da Traição e da Preguiça, sob o controle dos Missionários do Carmo da
Reforma.
A promulgação do Diretório Pombalino, na segunda metade do Século XVIII, fez as
aldeias potiguara passarem por profundas mudanças. Com a expulsão das ordens religiosas no
trato das populações indígenas, e a consequente elevação das aldeias à condição de “vilas” de
índios, o aldeamento de São Miguel passou a ser conhecido como Vila de São Miguel da Baía
da Traição, e o aldeamento de Preguiça, como Vila da Nossa Senhora dos Prazeres de Monte-
Mor.
Quanto ao reconhecimento territorial, os Potiguara situam-se nos opostos da política
local. Enquanto os Potiguara da Baía da Traição tiveram seu território oficialmente
reconhecido na década de 1930, por meio da política indigenista nacional, os Potiguara de
Monte-Mor tiveram sua demanda territorial reconhecida apenas no início do século XXI e
permanecem pressionados e sofrendo violências de invasores do seu território.
Os Potiguara atuais têm uma população estimada em 10.837 habitantes (FUNASA,
2004), distribuída por 32 aldeias, além de um contingente que vive nas áreas urbanas de Baía
da Traição (1.058) e Marcação (648), municípios situados no interior das Terras Indígenas.
Esses grupos procuram manter sua identidade étnica por meio do reaprendizado da língua
Tupi-Guarani, da incorporação do complexo ritual do Toré e das festas de São Miguel e de
Nossa Senhora dos Prazeres, além da produção cultural associada ao turismo étnico.
Os conflitos entre os Potiguara e os invasores de suas terras é um tema que perpassa
diferentes momentos históricos, da formação à consolidação das suas relações junto à
sociedade brasileira regional. Fala-se de um “esquecimento histórico” em relação aos
Potiguara, nos registros da história regional do Nordeste e da Paraíba, com seu
“reaparecimento” no século XIX. Sabe-se que em 1919, o Governo da Paraíba, baseado na
Lei de Terras de 1850, teria colocado a venda as terras dos Potiguara, remanescentes dos
aldeamentos missionários.

33
Uma parte desse território, a que pertencia ao antigo aldeamento de Monte-Mor, teria
sido “vendida” por terceiros ao Grupo Lundgren, proprietário da Companhia de Tecidos Rio
Tinto, associado à Companhia de Tecidos Paulista, com sede em Pernambuco9. As terras da
antiga sesmaria da Baía da Traição ficaram sob o controle dos Potiguara, mas tornaram-se
alvo das investidas da Companhia, para o corte de madeira para construção da fábrica e
alimentação das máquinas, e grande parte dos índios foram expulsos de suas terras. Fala-se
em casas de famílias indígenas destruídas por funcionários da Companhia Rio Tinto em
expedições noturnas, quando as famílias Potiguara resistiam às ações, o que ocasionou
perseguições que levaram à migração de muitas famílias para outras aldeias.
Relatórios do Serviço de Proteção aos Índios (SPI) indicam o processo de mudança
sociocultural dos Potiguara, ainda na primeira metade do Século XX, com a perda de suas
referências linguísticas e culturais e de seus traços fenotípicos indígenas. A partir de 1930, o
SPI instalou um posto indígena para assistir aos Potiguara na Paraíba, localizado na Aldeia
São Francisco, posteriormente transferido para a Aldeia do Forte. Com a extinção do SPI, em
1967 e a criação da FUNAI, o antigo Posto Indígena Nísia Brasileira foi renomeado como
Posto Indígena Potiguara10.
Além dos interesses têxteis, a integridade do território Potiguara, ainda não
demarcado, foi alvo da indústria açucareira, com a instalação de várias usinas na terra
indígena, aprofundando os conflitos territoriais. O desmembramento administrativo do então
Distrito de Baía da Traição, em relação ao município de Rio Tinto, resultou em uma corrida
imobiliária por essas terras, em função dos interesses turísticos emergentes na região.
Com o aval da FUNAI, uma grande empresa açucareira teria se instalado no território
potiguara em 1978, resultando na expansão dos canaviais e no aumento dos invasores na terra
indígena. Os Potiguara desencadearam, a partir daí, uma mobilização com objetivo de garantir
a posse e implementar a demarcação do território. Com apoio técnico da Universidade Federal
da Paraíba, iniciaram a autodemarcação do seu território, a qual, nesse momento, foi frustrada
pela própria FUNAI.
Pressionado por usineiros, o Governo da Paraíba implementou o “Projeto Integrado
Potiguara”, formado por uma série de atividades desenvolvimentistas, que visava
desmobilizar os Potiguara do seu intento demarcatório e causar cisão no movimento indígena,

9
O Grupo Lundgren detinha, ainda, a propriedade das “Casas Pernambucanas”, uma grande rede de lojas de
tecidos de alcance nacional, o que demonstra o poder econômico desse grupo empresarial.
10
Com a recente reestruturação da FUNAI, os postos indígenas foram extintos em todas as terras indígenas
surgindo, em contexto urbano, as coordenações técnicas locais. Assim o Posto Indígena Potiguara deu lugar à
CTL – Baía da Traição, sediada na Aldeia do Forte.
34
uma vez que não abrangia a todas aldeias e causava conflitos internos ao grupo. Sob a
liderança de um cacique da Aldeia São Francisco, os Potiguara iniciaram a autodemarcação,
com a abertura de picadas, que resgataram uma demarcação dos tempos do Império. Assim,
em 1982, a terra indígena foi demarcada, com 34.320 hectares.
Nos anos seguintes, foram constituídos diversos grupos de trabalho pela FUNAI, que
resultaram na redução do perímetro demarcado, fragmentando o território potiguara em
função de interesses agro-industriais e da presença de posseiros. Em 1991, a Terra Indígena
Potiguara de Baía da Traição é demarcada e homologada, com 21.238 hectares. Em 1993, a
Terra Indígena Jacaré de São Domingos é homologada, com área de 5.023 hectares, ficando
excluídas da demarcação, diversas aldeias.
Em 1995, um novo Grupo de Trabalho (GT) delimitou a Terra Indígena Potiguara de
Monte-Mor, com 5.300 ha, cuja proposta demarcatória foi recusada pelo então Ministro da
Justiça Renan Calheiros, que acatou os argumentos dos contestantes e excluiu as terras
ocupadas por usinas e outros empreendimentos empresariais. Após longo processo, onde
foram constituídos novos GTs, realizados laudos antropológicos e propostas demarcatórias,
contestações dos litigantes e longos embates jurídicos, os territórios Potiguara foram sendo
finalmente efetivados.
A Terra Indígena Jacaré de São Domingos foi homologada em 2007; nesse mesmo ano
foi publicada a Portaria Declaratória da Terra Indígena Potiguara de Monte-Mor, a qual foi
demarcada com 7.487 hectares.
Inseridos na condição de um grupo indígena situado na Região Nordeste, com
facilidade de acesso aos centros urbanos e às políticas e ações previdenciárias e assistenciais,
os Potiguara significam um caso específico entre as populações indígenas investigadas nessa
pesquisa.
Se as compulsões históricas do contato com a sociedade brasileira levaram os
Potiguara a um processo de “perda” da unidade fenotípica e cultural, em função dos processos
de fusão com outros segmentos da sociedade brasileira, essa proximidade os levou também ao
aprendizado da ordem sociopolítica nacional e à sua inserção nesse processo. Esse processo
fez dos Potiguara um povo indígena com renovadas formas de organização política interna e
ampla participação nos processos políticos regionais.
Como decorrência, várias lideranças potiguara exerceram e exercem funções na
administração pública dos municípios surgidos no entorno de seus territórios – casos de ex-
prefeitos, vice-prefeito e vereadores, bem como coordenadores locais da FUNAI e FUNASA

35
dentre outros. Por meio de suas organizações indígenas, especialmente as associações, os
Potiguara desempenham papéis relevantes no cenário indigenista regional e brasileiro.
Os Potiguara constituem, ainda, uma experiência pioneira em relação ao novo modelo
de cadastramento de segurados especiais indígenas junto ao INSS, cuja experiência tem
servido de parâmetro para a implantação desse modelo em relação aos demais povos
indígenas no Brasil. Os levantamentos institucionais e junto a lideranças e beneficiários
indígenas refletem essa condição especial dos Potiguara no contexto das relações entre povos
indígenas e as políticas da Previdência e da Assistência Social no Brasil.

3.2 POVOS INDÍGENAS NA REGIÃO NORTE

A Região Norte do Brasil, formada pelos atuais estados do Acre, Amapá, Amazonas,
Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins constitui-se sobre o vasto território da Amazônia
brasileira. Do ponto de vista ambiental, representa uma das mais extensas áreas de vegetação
florestal nativa do Planeta, fato que demonstra a importância da Região Norte, não apenas
para o Estado e a sociedade brasileira, como para o equilíbrio ecológico da Terra como um
todo.
Sobre essa vasta região, composta por uma diversificada cobertura vegetal e de um
regime pluvial que abastece a maior reserva de água doce do Planeta, encontra-se a mais
ampla biodiversidade animal e vegetal de que se tem conhecimento e a maior diversidade de
povos e culturas originários da Terra. No seu conjunto, estabeleceu-se na Região Norte do
Brasil o mais extenso e diverso patrimônio ambiental, genético, humano e cultural do Planeta
Terra.
Sobre essa diversidade ambiental e humana, sobrepõe-se um processo de expansão
social e econômica que, de maneira voraz, tem trazido à Região uma série de problemas
decorrentes da ocupação desordenada e predatória sobre os recursos humanos e naturais, o
que põe em risco a Amazônia brasileira. Torna-se necessário abordar o processo de ocupação
histórica da Região e seus impactos sobre a diversidade ambiental e humana, sobretudo aos
povos indígenas ali localizados.
Desde os primeiros momentos da investida colonial sobre o Continente Americano, as
disputas e os litígios em torno da posse da Amazônia brasileira encontram-se presentes nas
relações entre as nações expansionistas européias, a partir do século XVI, especialmente os
reinos de Portugal e Espanha. O Tratado de Tordesilhas (1498), que garantia, em tese, o
36
domínio espanhol sobre a Amazônia, na prática foi sobreposto pela ocupação concreta dos
agentes coloniais portugueses, em especial as ordens religiosas. Assim, o que por direito
deveria pertencer à Espanha, de fato constituiu-se como território vinculado ao reino de
Portugal.
A partir do século XVIII, toda a região que compõe a atual Amazônia brasileira
constituiu uma unidade administrativa – o estado do Maranhão e Grão-Pará – que em alguns
períodos se estendeu geográfica e administrativamente aos atuais estados do Piauí e Ceará.
Vinculado diretamente a Lisboa e tendo como seu mandatário pessoa próxima do Marquês de
Pombal, então primeiro-ministro do Rei D. José I, sobre o Maranhão e Grão-Pará foram
implementadas políticas de exploração econômica e de domínio político distintas, em certos
aspectos, das que vigoravam no Estado ou Colônia do Brasil.
Diante do rápido esgotamento das populações indígenas litorâneas e da própria
dinâmica do sistema colonial escravista implantado no Brasil para impulsionar a economia
agroexportadora do açúcar no Nordeste brasileiro, o colonialismo português implementou o
tráfico negreiro, atividade extremamente lucrativa e monopolizada pelas companhias de
comércio, para o suprimento de força de trabalho escrava aos engenhos açucareiros.
Na Amazônia, o empreendimento colonial contava com uma vasta oferta de mão de
obra indígena, cujo trabalho de obtenção se limitava à captura e à domesticação. Assim,
mesmo diante da proibição formal da captura e da escravização de índios estabelecida pelo
Diretório de Pombal (1755), essa prática não foi interrompida na Amazônia, a despeito da
expulsão da Ordem Jesuíta e da desapropriação de suas antigas missões e aldeamentos pelo
Estado português, os quais foram transformados em “vilas” e “lugares” (Oliveira, 2002).
As antigas expedições de “resgate” e os “descimentos” não foram totalmente
interrompidos no estado do Maranhão e Grão-Pará, e novas formas de sujeição de índios
foram implementadas. Esses processos atingiram desde povos indígenas situados em regiões
fronteiriças entre os territórios coloniais espanhol e português – caso dos Baniwa e outros
povos que habitam o noroeste amazônico – como aqueles situados no médio e baixo curso do
rio Amazonas e seus maiores afluentes – como os Sateré-Mawé, Munduruku e outros.
A participação desses e de outros grupos indígenas em revoltas nativistas, como a
“Cabanagem”, implicou em uma implacável perseguição pelos agentes coloniais, durante o
século XIX, fato que repercutiu sobre sua dinâmica demográfica, territorial e cultural. No
século XX, a ação missionária, aliada às instituições do Estado, foi, mais uma vez,

37
responsável pela perda de autonomia étnica e cultural dos povos indígenas situados nas
regiões mais isoladas da Amazônia brasileira.
Esse foi o caso dos Tiriyó, grupo alcançado há poucas décadas pelo avanço das
fronteiras econômicas e disputas políticas dos Estados nacionais sul-americanos sobre seu
território tradicional. Envolvidos nas disputas territoriais entre esses Estados, em que foram
compulsoriamente inseridos, os povos indígenas da Região Norte, mais uma vez se viram na
condição de viver sob o domínio tutelar do Estado e sob a intervenção impiedosa promovida
por missões religiosas católicas e protestantes sobre suas culturas.
Assim, o processo de ocupação econômica e política da atual Amazônia brasileira não
apenas transformou a demografia e as culturas indígenas da região, como impôs essas formas
de dominação que se perpetuaram no tempo e cujos reflexos se encontram presentes nos dias
atuais.

3.2.1 BANIWA

Baniwa, Baniva, Baniua e Kuripako são nomes pelos quais são conhecidos alguns
grupos indígenas de língua Aruak, que habitam o extremo oeste do estado do Amazonas, na
fronteira do Brasil com a Colômbia e Venezuela. Esses grupos vivem em aldeias localizadas
às margens do Rio Içana e seus afluentes Cuiari, Aiairi e Cubate, no Alto Rio Negro/Guainía
e nos centros urbanos de São Gabriel da Cachoeira, Santa Isabel e Barcelos (AM).
Baniwa e Kuripako são etnias aparentadas, conhecidas pela cestaria de arumã, arte
milenar ensinada por seus heróis criadores, que vem sendo comercializada no mercado
brasileiro. Os Baniwa também se destacam pela participação ativa no movimento indígena da
Amazônia, junto a outras 22 etnias indígenas, articuladas em uma rede de trocas e
identificadas quanto à organização social, cultura material e visão de mundo.
O termo Baniwa não corresponde a uma autodesignação, mas ao nome utilizado por
esses índios em contextos multiétnicos e diante da sociedade e instituições nacionais. Sua
autodenominação geral é Walimanai (“os novos que vão nascer”), elaborada em contraste
com os antepassados, Waferinaipe, heróis culturais e divindades que criaram e prepararam o
mundo para os vivos, os seus descendentes. Comunidades Baniwa usam, ainda, como

38
autodesignações, os nomes das suas fratrias11, como Hohodene, Walipere-dakenai ou
Dzauinai.
Os Kuripako falam um dialeto da língua Baniwa, mas não se identificam como
subgrupo Baniwa. Vivem em comunidades ao longo do Rio Guainía – nome recebido pelo
Rio Negro na Colômbia e Venezuela – e no Alto Içana, no noroeste do Amazonas. Na
Venezuela se autodenominam Wakuenai (“os da nossa língua”) e vivem em comunidades
situadas no Rio Guainía e seus afluentes. A despeito de sua identidade específica, a etnia
Kuripako é muito próxima culturalmente dos Baniwa.
Segundo a tradição oral Baniwa, seus antepassados estabeleciam malocas nas
cabeceiras dos principais igarapés. Na região do Alto Içana, uma antiga e importante maloca
localizava-se na cabeceira do igarapé Pamari, área ocupada por ancestrais Baniwa da fratria
Walipere-dakenai (“netos das cinco estrelas). Os Walipere-dakenai contam que ali teria
habitado seu primeiro líder, Vetutali (ou Wetsudali), um poderoso guerreiro, ancestral de
todos os Walipere-dakenai atuais. No período colonial, Vetutali e outros Baniwa foram
levados como escravos pelos portugueses. Durante a viagem pelo Rio Negro, Vetutali e um
companheiro, Hohodene, atiraram-se na água e conseguiram escapar, retornando para o Içana.
Outras fratrias contam histórias semelhantes, de líderes guerreiros capturados pelos
“brancos”, que conseguiram fugir e retornar ao seu povo. De acordo com as narrativas, a
região do Içana, após sofrer um esvaziamento quase absoluto, resultante dos descimentos e
outras expedições de escravidão, voltou a ser repovoado pelas fratrias Baniwa.
Em 1952, foi instalada uma missão religiosa católica Salesiana em Assunção do Içana.
Outras quatro bases missionárias evangélicas foram estabelecidas pela Missão Novas Tribos
do Brasil junto aos Baniwa, ao longo do Rio Içana, nas povoações de Boa Vista (foz), Tunuí
(médio curso), São Joaquim e Jerusalém (Alto Içana), entre os Kuripaca. Nesse período, um
pelotão de fronteira do Exército estabeleceu-se, também, em São Joaquim.
Na última década, os Baniwa se distribuíam por 93 núcleos, entre aldeias e sítios,
somando cerca de 15 mil indivíduos. No Brasil havia 4.026 Baniwa localizados no Baixo e
Médio Içana e nos rios Cubate, Cuiari e Aiari. Os Baniwa constituem, também, comunidades
no Alto Rio Negro, e, individualmente ou em grupos familiares habitam as cidades de São
Gabriel da Cachoeira, Santa Isabel e Barcelos. Os Kuripako vivem apenas no Alto Içana,
totalizando, no período, 1.115 pessoas em território brasileiro.

11
Fratrias são conjuntos de grupos locais aparentados como irmãos entre si.
39
A presença de missionários, militares, e comerciantes fez com que os Baniwa,
progressivamente, transferissem suas antigas malocas do interior da mata para as margens do
Içana. A população Baniwa cresceu muito e os Walipere-dakenai se espalharam por todo rio.
Os Hohodene desceram o Cuiari e ocuparam toda a extensão do Rio Aiari. Mais
recentemente, algumas comunidades Baniwa se estabeleceram no Rio Negro, abaixo de São
Gabriel da Cachoeira; alguns Walipere-dakenai e Hohodene vivem próximos a Barcelos.
De acordo com a cosmologia Baniwa, o universo é formado por múltiplas camadas
associadas a várias divindades, espíritos, e “outra gente”. O cosmos é composto por quatro
níveis: Wapinakwa (“o lugar de nossos ossos”), Hekwapi (“esse mundo”), Apakwa Hekwapi
(“o outro mundo”) e Apakwa Eenu (“o outro céu”).
Já a cosmogonia Baniwa (visão sobre a origem do mundo), é constituída por mitos
protagonizados por Nhiãperikuli. Inicia-se com o seu aparecimento no mundo primordial e
termina a com criação, pelo herói cultural, dos primeiros antepassados das fratrias Baniwa e
seu afastamento do mundo. Nhiãperikuli foi responsável pela forma e essência do mundo
sendo, assim, considerado o Ser Supremo da religião Baniwa.
Dessas concepções, resulta a ideia de que o mundo está permanentemente manchado
pelo mal, pela doença e pelo infortúnio, necessitando ser constantemente livrado da bruxaria e
feitiçaria que as pessoas praticam e que levam à morte e ao sofrimento. Esse é o papel dos
pajés que são os “guardiões do Cosmos”, e dos rezadores, que benzem o mundo nos rituais de
iniciação, fazendo-o seguro para as novas gerações.
A vida religiosa tradicional Baniwa baseia-se nos grandes ciclos mitológicos e rituais
relacionados aos primeiros ancestrais, simbolizados pelas flautas e trombetas sagradas.
Baseia-se, também, na importância central do xamanismo (pajés e rezadores, ou donos-de-
canto) e na grande diversidade de rituais chamados pudali, associados aos ciclos sazonais e ao
amadurecimento de frutas.
Os ritos de iniciação masculina são celebrados na época das primeiras chuvas e do
amadurecimento de certas frutas, quando se tem uma turma de meninos de dez a treze anos,
prontos para receber os ensinamentos sobre a natureza do mundo. É absolutamente proibido
para as mulheres e os não iniciados verem as flautas e trombetas sagradas, sob pena de morte.
Os rituais de iniciação para meninas acontecem logo após a primeira menstruação. A
organização do ritual é parecida com a dos meninos; as meninas, porém, são iniciadas
individualmente, quando seus cabelos são cortados bem curtos e não lhes são mostrados os
instrumentos sagrados. Durante o período da reclusão, a moça aprende a fazer os ralos de

40
mandioca (fixar os pedaços de quartzo em desenhos geométricos na tábua já cortada pelos
homens), vários tipos de cerâmica (pratos pintados), instrumentos de fazer beiju, além de
receber conhecimentos sobre o manejo das roças, o preparo de alimentos e outros.
Outro importante ritual tradicional Baniwa é o pudali (dabukuri em língua geral),
celebrado principalmente em épocas de amadurecimento de frutas, mas também em outras
ocasiões como a piracema (a época de desova dos peixes que subiram os rios em grandes
quantidades). São ocasiões em que parentes e cunhados se juntam para beber caxiri
(fermentado de mandioca ou de frutas) e dançar. Nessas ocasiões, quaisquer conflitos que
existam entre parentes podem ser contornados.
Entre os Baniwa, existem duas categorias principais de xamãs: os donos-de-canto
(malikai-iminali) e os pajés (maliiri). Os pajés podem ser cantadores e vice-versa, mas há
diferenças na formação, curas e saberes que cada um domina. Os pajés “chupam” (extraem
por sucção objetos patogênicos de seus pacientes), enquanto os donos-de-canto “sopram”, ou,
como eles dizem, “rezam” (cantam ou recitam fórmulas com tabaco sobre ervas e plantas
medicinais a serem consumidas pelos pacientes).
O poder dos pajés está baseado em seu conhecimento e compreensão da mitologia e da
cosmologia, assim como das fontes das doenças e suas curas. Como mediadores junto aos
espíritos e divindades, os pajés curam, aconselham e orientam os Baniwa, desempenhando
uma função vital para a saúde e para o bem-estar da comunidade. Acredita-se que os pajés
podem se transformar em animais poderosos, especialmente a onça (jaguar), e nas próprias
divindades. As curas são realizadas, em geral, por três ou quatro pajés, sendo os cantos e
ações rituais liderados por um destes.
Já os “donos-de-canto” se valem principalmente de cantos, acompanhados por sopros
de tabaco sobre plantas medicinais e outros materiais. Em geral, são os velhos que cantam ou
recitam fórmulas para várias tarefas: proteção contra doenças, cura e alívio da dor, ou para
chamar os animais de caça e peixes, para fazer as roças crescerem, entre outras atividades.
Nas décadas de 1950 e 60, eclodiram conflitos religiosos nas comunidades Baniwa,
decorrentes da ação missionária católica e protestante, criando uma tensão antes inexistente
entre os especialistas religiosos. As comunidades protestantes perderam quase todos os seus
pajés, junto com o culto de flautas e rezadores Kalidzamai. Somente os donos-de-canto menos
importantes conseguiram continuar suas práticas e conhecimentos sem perseguição.
A intolerância religiosa gerou, ainda, uma crise espiritual entre os donos-de-canto, que
atribuíram a uma “doença”, o esquecimento da sua arte. Alguns pastores mais radicais fizeram

41
campanha contra os pajés do Rio Aiari, o único lugar na área Baniwa onde a pajelança ainda é
praticada. Hoje, a instituição está em franco declínio, com apenas meia-dúzia de pajés em
todo o território Baniwa no Brasil.
Com a conversão evangélica, os pudali foram proibidos pelos missionários e seus
seguidores, surgindo uma geração de Baniwa que nunca ouviu a música dos pudali. A perda
desses rituais gerou inúmeras controvérsias entre os “crentes” e os “tradicionais”, sobre as
condições em que os instrumentos foram queimados ou jogados no rio. Também foram
proibidos o uso do tabaco e do caxiri, utilizados em ritos e festas, o que levou à intensificação
dos conflitos internos. Essas práticas foram ocupadas pelas leituras bíblicas, as cerimônias de
Santa Ceia (mensal) e as Conferências (cada dois ou três meses), as quais, uma vez
consolidadas, substituíram os pudali.
Durante os levantamentos de campo, observou-se, em São Gabriel da Cachoeira, um
grande número de indígenas, inclusive Baniwa, praticantes de cultos católicos e evangélicos.
No bairro Manuel Quirino, formado em grande parte por indígenas de diferentes etnias, foram
constatadas a presença de templos dessas duas vertentes da religião cristã e a adesão de
inúmeros indígenas, inclusive nas atividades administrativas desses templos.
A sociedade Baniwa se subdivide atualmente em várias fratrias – como os Hohodene,
os Walipere-dakenai e os Dzauinai – tradicionalmente localizadas em determinados trechos
dos rios da região. Essas fratrias são exogâmicas (seus membros devem casar-se com
membros de outras fratrias) e, no passado, se organizavam em grupos linguísticos
correspondendo a dialetos da língua Baniwa. Em razão dos seus deslocamentos e migrações
históricas, os únicos grupos linguísticos que continuam a manter sua identidade são os
Kuripako da Colômbia, cujo nome se refere a um dialeto (Kuri- = negativo; -pako = eles
falam) e os Wakuenai (Waku- = nossa fala; enai = coletivo ou “os da nossa língua”).
Os Baniwa traçam sua descendência pela linha paterna. O núcleo das comunidades
locais consiste no grupo de irmãos descendentes da família fundadora, com suas respectivas
famílias. Os laços entre irmãos formam a base de um sistema hierárquico, que funciona de
acordo com a idade relativa.
As regras de casamento entre os Baniwa definem a exogamia entre as fratrias e
expressam uma preferência para casamento com os primos cruzados patrilaterais. A troca
direta de irmãs frequentemente ocorre entre linhagens afins e, em alguns casos, mostra-se uma
preferência para casamentos entre pessoas pertencentes à fratrias diferentes, mas de mesma

42
posição hierárquica. Os casamentos geralmente são monogâmicos, embora existam casos de
poligamia, e arranjados pelos pais do noivo e da noiva.
A virilocalidade (residência do casal na casa da família do marido) é o padrão de
residência predominante; porém, a regra de “serviço do noivo” frequentemente produz
situações de uxorilocalidade (residência do casal na casa da família da esposa) temporária ou
permanente. A intolerância dos missionários evangélicos teria modificado os padrões de
residência e o casamento entre primos cruzados, contribuindo assim à uxorilocalidade
permanente.
De acordo com a tradição Baniwa, um grupo de irmãos descendentes da família
fundadora constituiria o nível político de maior importância em uma comunidade local, sendo
que o chefe dessa comunidade seria idealmente o irmão mais velho da família fundadora. Não
se sabe se essa regra ainda permanece em função do grande número de exceções.
Os “capitães”, tidos como líderes das comunidades, variam conforme a capacidade de
fazer valer sua autoridade, mas as decisões devem ter a aprovação da comunidade –
principalmente do grupo dos velhos. Idealmente, os “capitães” devem agir como
intermediários nos assuntos internos e como interlocutores nas relações com estranhos. Entre
suas funções estão: a organização do trabalho coletivo, a coordenação de reuniões e atividades
religiosas, a distribuição da produção comunitária e o respeito aos padrões de comportamento
coletivos.
Em função de seu desempenho junto à comunidade, os velhos decidem por consenso
sobre a permanência ou substituição do “capitão”. Nas comunidades Baniwa evangélicas a
autoridade religiosa se sobrepõe à hierarquia tradicional dos velhos.
Com a criação de novas associações políticas, a partir da década de 1990, surgiram
vários jovens líderes, os quais são mantidos sob o controle da autoridade política tradicional
de suas comunidades. Com o processo de urbanização dos Baniwa e de outras etnias no
noroeste amazônico, esses líderes têm ocupado espaços cada vez mais amplos nas instituições
públicas, especialmente naquelas voltadas à administração de questões indigenistas na região.
Nesse sentido, durante a realização da pesquisa, foram estabelecidos contatos com o
prefeito e o vice-prefeito de São Gabriel da Cachoeira, ambos indígenas, sendo um deles da
etnia Baniwa. Representantes de diferentes etnias da região participam, ainda, da Câmara de
Vereadores local e de órgãos públicos, como a CTL da FUNAI (ocupada atualmente por um
membro da etnia Tukano), associações de moradores e de categorias profissionais.

43
Os Baniwa, por meio de suas lideranças, têm desempenhado, ainda, um papel
fundamental no processo de organização dos povos indígenas do oeste amazônico e do
movimento indígena brasileiro como um todo. Alguns desses líderes têm se destacado na
participação de organizações locais, regionais e panregionais – como a FOIRN (Federação das
Organizações Indígenas do Rio Negro) e a COIAB (Coordenação das Organizações Indígenas
da Amazônia Brasileira) – o que tem permitido uma atuação na defesa dos direitos indígenas à
saúde, educação, demarcação de terras e outros.
Em nível local, existem no noroeste amazônico mais de 20 organizações indígenas
criadas a partir de critérios étnicos e de região, bem como da ação profissional ou política.
Essas organizações refletem o poder de organização das comunidades indígenas locais, as
quais contam, em grande medida, com o apoio de organizações não governamentais, de
alcance nacional e internacional. É importante destacar que as organizações indígenas na
Amazônia constituem a vanguarda do movimento indígena no Brasil, estando à frente de
questões centrais relativas às demandas presentes e futuras dos povos indígenas.
As atividades que garantem a autossustentação dos Baniwa aldeados são, basicamente,
a agricultura e a pesca, que se equivalem em importância econômica e são culturalmente
complementares. Os Baniwa possuem grande conhecimento sobre as matas da região, o que
lhes permite encontrar as melhores terras para as roças, a localização de árvores frutíferas e a
caça. Enquanto alguns grupos locais têm à sua disposição grandes porções de terra firme para
plantar, mas não possuem igapós (matas inundadas) para a pesca, com outros grupos ocorre o
inverso.
Os Baniwa apontam as manchas de terra preta que, quando possível, são aproveitadas
para roças por sua boa produção. Utilizam, ainda, velhas capoeiras, de onde retiram uma
variedade de plantas medicinais. Além das grandes divisões ecológicas – terra firme (não
inundável), campinarana (floresta arbustiva com folhas duras e rijas, em solos arenosos) e
igapó (floresta inundada durante a maior parte do ano) – os Baniwa demonstram um
conhecimento detalhado das diferenças encontradas nas matas da região. Isso está patente, por
exemplo, nas narrativas de origem dos vários grupos Baniwa.
A pesca é uma atividade realizada o ano inteiro, mas é no “verão” (estação seca) que
são realizadas grandes expedições nas lagoas do Médio Içana. Os Baniwa conhecem muitas
técnicas de pesca, como o uso de armadilhas e redes, iscas, arcos e flechas, facões e lanças e o
timbó. Agricultura e pesca são atividades sincronizadas com indicadores ambientais e
calendários míticos. No passado, essas atividades eram vinculadas a rituais específicos.

44
As atividades comerciais e extrativas têm contribuído para a transformação dos
padrões de autosustentação dos Baniwa. Ao longo da sua história de contato, os Baniwa
participaram como mão de obra de diferentes atividades extrativas: piaçava, borracha, sorva,
castanha, minerais, o que os obrigou a migrações sazonais. As atividades comerciais, por
outro lado, envolvem a produção de artesanato (cestos, raladores de mandioca, redes etc.), de
mandioca e derivados para revenda aos comerciantes, ou nos mercados urbanos.
Os Baniwa são, ainda, considerados excelentes artesãos, únicos, entre os povos
indígenas locais, a produzir raladores de mandioca em madeira com pontas de quartzo, os
quais são distribuídos em toda a região, por meio das trocas interétnicas e dos comerciantes.
São, ainda, os principais produtores de diferentes tipos de cestos, com tamanhos, modelos de
trançado e colorações variadas, além de uma refinada concepção.
Essas atividades impulsionaram a urbanização dos Baniwa e de outras etnias da região
do Alto Rio Negro, as quais formam, atualmente, um contingente significativo na população
desses municípios. Em São Gabriel da Cachoeira, município do noroeste amazônico, os
Baniwa, Desana, Tukano e outras etnias constituem mais de 80% da população local.
Levantamentos realizados pela equipe da pesquisa identificaram membros de várias
etnias inseridos em atividades urbanas, como comércio, empregos domésticos, trabalhos
braçais, feiras livres, dentre outras. Essa presença não significa, entretanto, que Baniwa e
demais etnias do Alto Rio Negro tenham optado por um processo de urbanização irreversível.
Ao contrário, os dados levantados revelam que, em grande parte, indivíduos e famílias
indígenas que vivem em bairros periféricos de São Gabriel da Cachoeira realizam um
movimento pendular entre suas comunidades de origem e o meio urbano. Em seus “sítios” e
“malocas”, mantêm vivos seus vínculos familiares e étnicos e desenvolvem sua produção
agrícola, extrativista e artesanal, a qual é destinada ao mercado local e a outros municípios.
Boa parte dos produtos agrícolas consumidos nesse e em outros municípios do
noroeste amazônico, bem como a comercialização desses produtos em feiras, provêm de
roçados Baniwa e de outras etnias da região, por meio de uma dinâmica social em que
articulam suas atividades agrícolas, extrativistas (inclusive a pesca) e artesanais, com as
demandas da vida urbana.
Exemplos dessa dupla inserção foram encontrados na Feira de Produtores de São
Gabriel da Cachoeira, onde a quase totalidade das feirantes é de mulheres indígenas de meia
idade, com diferentes tempos de migração e vínculos com a vida urbana. Essas mulheres
queixaram-se do fato de não poderem, em sua maioria, requerer o benefício da aposentadoria

45
por idade junto ao INSS, em função das dificuldades de serem cadastradas como
“trabalhadoras rurais”.
Essas senhoras indígenas não são consideradas pelos órgãos indigenistas e
previdenciários como “trabalhadoras rurais”, as quais teriam o direito à aposentadoria por
idade, mas sim como “trabalhadoras autônomas”, em função de suas atividades atuais como
feirantes, ignorando o longo tempo de trabalho agrícola e extrativista nas malocas e sítios em
que viviam e, em muitos casos, ainda vivem. Entrevista realizada com a presidente da
Associação das Feirantes do Centro de São Gabriel da Cachoeira apontou, ainda, dificuldades
dessas feirantes acessarem outros benefícios, como salário-maternidade, auxílio-doença etc.
Em conversas informais com o coordenador da pesquisa, várias dessas feirantes, a
despeito de seu vínculo permanente com o trabalho agrícola, afirmaram que o INSS não tem
reconhecido sua condição de “seguradas especiais”, pelo fato de trabalharem na feira ou em
outras atividades urbanas. Segundo algumas feirantes, a própria CTL da FUNAI tem negado a
elas a declaração de “trabalhadora rural”, documento necessário para o seu cadastramento
como seguradas especiais.
A despeito dessas dificuldades, muitos índios Baniwa e de outras etnias, os quais
vivem em suas malocas e sítios em rios e igarapés, têm se deslocado até São Gabriel da
Cachoeira, para obter documentos comprobatórios da sua condição indígena, a fim de acessar
os benefícios da Previdência Social, especialmente, quando a presença do Barco do Programa
Pronto Atendimento Itinerante – “Barco PAI”, do governo do Amazonas, se faz presente na
região.

3.2.2 TIRIYÓ

Até a década de 1960, os atuais Tiriyó se reconheciam como grupos diferenciados,


com denominações próprias, como Tiriyó, Aramixó, Aramayana, Akuriyó, Piyanokotó,
Saküta, Ragu, Yawi, Prouyana, Okomoyana, Wayarikuré, Pianoi, Aramagoto, Kirikirigoto,
Arimihoto, Maraxó e outros. Esses grupos, de língua Karib, consideravam-se todos Tarëno
(“os daqui, deste lugar”) e relacionavam-se entre si, por meio de redes de troca, guerra,
migração e comércio.
Nesse período, foram alcançados por missionários franciscanos e protestantes, vindos,
respectivamente pelo norte do Brasil e sul do Suriname, quando passaram a ser genericamente
denominados como Tiriyó no Brasil, e Trio no Suriname, mantendo entre si sua própria
46
autodenominação, Tarëno. Assim, Tiriyó passou a ser o termo de identificação desses grupos
diante de outros grupos indígenas, da população regional e dos agentes e instituições
presentes em suas aldeias.
O território Tiriyó fica localizado entre Brasil e Suriname. No lado brasileiro, essas
terras situam-se nos estados do Pará e do Amapá, sendo entrecortadas, de um lado, por rios
que correm em direção ao Suriname; de outro, por uma bacia que deságua no rio Amazonas,
cujos principais afluentes são os rios Marapi, Paru de Oeste, Citaré e Paru de Leste. Nos dois
lados da fronteira, os rios formam cachoeiras que dificultam a navegabilidade.
Essa condição geográfica, somada a fatores históricos, fez com que ao longo do
tempo, o território Tiriyó permanecesse em relativo isolamento e a região de fronteira fosse
pouco conhecida. No Brasil, os Tiriyó partilham com outros grupos indígenas – Katxuyana,
Txikuyana, Wayana, Aparai e outros, a Terra Indígena Parque do Tumucumaque, situada ao
norte do Pará e ao noroeste do Amapá, entre os municípios de Oriximiná, Almeirim, Óbidos e
Alenquer.
Os Tiriyó situados em território brasileiro formam dois conjuntos populacionais,
habitando, respectivamente, as bacias dos rios Paru de Leste e de Oeste. Os Tiriyó da bacia
Paru de Oeste/Marapi, juntamente com os Katxuyana, distribuem-se em torno do médio e alto
curso desses rios. Na bacia do Paru de Leste/Citaré, os Tiriyó encontram-se
predominantemente na cabeceira, enquanto os Wayana e Aparai, habitam seu médio curso.
Historicamente, os Tiriyó conviveram com a grande diversidade linguística e cultural
dos grupos Karib, Tupi e Aruak da área surinamense, e com grupos de africanos e seus
descendentes que, refugiados da escravidão, povoaram a região. Atualmente, além da língua
nativa, os Tiriyó falam ou compreendem as línguas dos grupos e agentes com os quais
mantêm relações ao longo da fronteira Brasil-Suriname: do lado brasileiro, com falantes do
português e do alemão (missionários); no Suriname, com falantes do holandês e do inglês.
No início da década de 1990, cerca de 50 Tiriyó que haviam migrado para o Suriname
nas décadas anteriores, voltaram para o Brasil em decorrência de conflitos com o governo
surinamense, estabelecendo-se junto ao rio Paru de Leste, na porção oriental do PIT. Um
pequeno grupo permaneceu nas cabeceiras e outro desceu até o médio curso desse rio,
instalando-se entre os Wayana e Aparai, no Posto Indígena Apalaí.
Em 1997, 60% da população Tiriyó no Brasil habitava as imediações da Aldeia
Missão Tiriyó, surgida a partir de uma Missão Franciscana, no início da década de 1960. O
restante distribuía-se em 21 localidades diferentes, sendo 19 ao longo do rio Paru de Oeste, e

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duas nas cabeceiras do Marapi, variando de 2 a 80 habitantes por aldeia. Nesse período,
haveria no lado brasileiro em torno de 586 Tiriyó e cerca de 1.000 a 1.200 no Suriname,
distribuídos ao longo dos rios Sipariweni, Tapanahoni e Paroemeu, coabitando com membros
dos grupos Akuriyó, Waiwai e Wayana.
Há cerca de uma década, a população Tiriyó no Suriname totalizava 1.400 pessoas,
enquanto, no lado brasileiro, somava cerca de 939 pessoas, incluindo os Katxuyana e demais
grupos que coabitam o PIT. Considerando essas estimativas, a população total Tiriyó nos dois
lados da fronteira, totalizava, nesse período, pouco mais de 2.300 pessoas.

Quadro 3: População Tiriyó / 1908-1997


População no Brasil População no Suriname População Total
__________ __________ 1.000
500 300 800
461 226 687
240/270 376 616/646
222 500/500 600/700
329 __________ _______
553 800/1.000 1.350/1.550
808 1.000/1.200 1.670/2.000
Fonte: Instituto Socioambiental, 2010

Fontes escritas e orais informam que, até meados do século XX, os Tiriyó mantiveram
contatos esporádicos com não índios. O tenente neerlandês Goeje esteve, em 1906, em aldeias
no lado surinamense recolhendo informações sobre esses grupos. Em 1928, em uma viagem
de inspeção de fronteiras, o General Cândido Rondon encontrou os Maratchó e os Ragú-
Prouyana. Em 1937, o Comandante Braz Dias de Aguiar fez contatos com os Maratchó do
Alto Panamá e com grupos das cabeceiras dos rios Marapi, Cuxaré e Paru de Oeste. Na
década de 1950, aventureiros e exploradores mantiveram contatos com grupos da região,
causando um aumento significativo de doenças e mortes pela transmissão de furunculose,
pneumonia e doenças sexuais.
Essa situação de declínio demográfico começou a se reverter, em ambos os lados da
fronteira, por volta da segunda metade dos anos de 1960, com a introdução da assistência
médica, por meio de missionários protestantes, no Suriname, e católicos, no Brasil.
Atualmente, verifica-se entre os Tiriyó da bacia Paru de Oeste/Marapi uma situação de
48
crescimento populacional estável, que, entre 1981 e 1997, deu-se a uma taxa média anual em
torno de 4,6% ao ano. Na última década, os Tiriyó tiveram sua população praticamente
duplicada em relação ao início do século XX.
A chegada de missões religiosas, a partir de 1960, coincide com a reversão do declínio
demográfico entre os Tiriyó. No lado brasileiro, frei Protásio Frikel, precursor da Missão
Franciscana que se instalou entre os Tiriyó havia estado, em 1950 e 1952, junto aos Prouyana,
Okomoyana e Arimihoto e, em 1953, fez mais duas visitas aos Maratchó e Arimitchó. Três
anos mais tarde, encontrou os Aramagóto nos campos gerais do Recôncavo do Tumucumaque
e ali permaneceu de 1958 a 1959.
Nesse período, a Força Aérea Brasileira – FAB abriu um campo de pouso na região,
promovendo o início da instalação da Missão Tiriyó no lado brasileiro. Na mesma época,
surgiram no Suriname duas missões protestantes, que passaram a disputar entre si a
centralização de grupos indígenas dos arredores. Muitos Tiriyó atravessaram a fronteira
atraídos pelas missões protestantes, enquanto os que permaneceram no Brasil aglomeraram-se
em torno da missão católica que se estabeleceu no Alto Paru de Oeste.
A centralização demográfica dos Tiriyó atingiu seu ápice em 1968, quando toda sua
população esteve concentrada em três núcleos missionários. No lado brasileiro, algumas
famílias de Kaxuyana e poucos remanescentes dos grupos Ewarhuyana e Tsikuyana foram
também atraídos pelos franciscanos. Essa concentração dos Tiriyó no lado brasileiro foi de
curta duração, retornando em pouco tempo à forma anterior de organização das aldeias.
A assistência aos Tiriyó – transporte aéreo, saúde e educação – foi idealizada dentro
do trinômio Missão/FAB/Índios estabelecido no início na década de 1960. Ao longo dos anos,
os programas implantados foram sofrendo alterações, com a redução gradual do apoio da
FAB, que se restringiu praticamente ao transporte aéreo, e o repasse das responsabilidades
assistenciais à FUNAI que, até então, não possuía atuação direta entre os Tiriyó.
Apenas na década de 1980 a FUNAI assumiu a assistência à saúde aos Tiriyó, com a
introdução de profissionais de enfermagem e odontologia. No mesmo período, a Fundação
Nacional de Saúde (FUNASA) passou a executar o trabalho de vacinação, até então realizado
pelo Serviço de Unidades Sanitárias Aéreas – SUSA e por equipes do Instituto Evandro
Chagas e do Instituto E. Barreto, de Belém.
Na última década, com a mudança da condição de Território Federal para Estado da
Federação, o Governo do Amapá passou a oferecer apoio no transporte aéreo e a investir na
contratação de agentes de saúde e de professores indígenas e não indígenas. Inicialmente,

49
esses investimentos foram realizados por meio de convênios com a FUNAI; depois, com a
Associação dos Povos Indígenas do Tumucumaque – APITU, entidade fundada em 1996 com
o objetivo de defender os interesses das comunidades indígenas no PIT.
Os Tiriyó que vivem no Brasil traduzem o termo tamutupë por “tuxaua” e pataentu por
“cacique”. No Suriname, esses termos foram traduzidos, indistintamente, por “Capitain”.
essas traduções remontam ao início dos anos 1960, quando os Tiriyó viviam dispersos por
uma ampla região, com seus respectivos pataentu, e se reconheciam como descendentes de
diferentes tamutupë.
A instalação da missão franciscana no centro-norte do atual PIT, e da missão
protestante em área contígua no Suriname, resultou na concentração de praticamente toda a
população indígena da região, em torno dessas bases missionárias. Essa mudança nos padrões
socioespaciais impactou a organização política dos Tiriyó afetando, em parte, o poder e o
prestígio dos pataentu (cacique) e o tamutupë (tuxaua).
Esse processo de centralização foi seguido de uma nova dispersão dos Tiriyó
conduzida por antigos tamutupë e por antigos e novos pataentu, insatisfeitos com o padrão de
assentamento instaurado pelos missionários. Fora dos assentamentos missionários, as
lideranças tradicionais continuaram a manter sua importância na organização sociopolítica
Tiriyó.
Com a consolidação do poder missionário, o sistema de liderança tradicional perdeu
espaço e prestígio, na medida em que os caciques e tuxauas adquiriram novas posições, junto
aos órgãos governamentais e não governamentais que controlavam a política indigenista na
região. O “indigenismo de base missionária” implantado entre os Tiriyó levou ao surgimento
de uma “elite indígena” que se sobrepôs aos tuxauas e xamãs (püyai), funções muitas vezes
ocupadas por um mesmo indivíduo. A prática do xamanismo foi condenada ou constrangida
pelas missões religiosas, nos dois lados da fronteira.
Nesse processo, os velhos Tiriyó de maior prestígio foram aposentados pelos governos
dos respectivos países, passando a receber uma remuneração mensal, que ainda hoje vigora.
Uma geração de jovens-adultos Tiriyó tomou a linha de frente nas relações com os
missionários de forma que, a conquista de posições de liderança política passou a ser definida
a partir das posições religiosas criadas pelas respectivas missões.
No Suriname, a figura do “capitain”, consolidou-se como liderança política, tendo
como pré-requisito o candidato tornar-se pastor indígena, recebendo para isso, remuneração
dos missionários. No lado brasileiro, surgiu a figura do diácono indígena, por meio da qual se

50
formaram os novos caciques. Ocupar uma posição religiosa de destaque tornou-se condição
para a ocupação de funções políticas importantes.
Embora não houvesse remuneração por parte dos franciscanos, os ocupantes de tais
posições e seus familiares mais próximos passaram a gozar de acesso privilegiado à
capacitação para o trabalho nas oficinas e currais de gado da Missão e ao emprego
remunerado nesses locais, assim como na escola, na enfermaria e nas demais instalações da
Missão, como a cozinha e a horta dos missionários.
Assim, toda a população Tiriyó da região do Tumucumaque foi inserida na ação
missionária, mas apenas um grupo selecionado participou diretamente das relações com os
missionários, formando uma elite destacada do restante da população. É possível diferenciar
três gerações pelas quais essa elite se reproduz. Ao longo desse período ocorreram mudanças
significativas na condução da política indigenista na região do Tumucumaque, o que reflete
no discurso e na atuação política dessas gerações.
A primeira geração constituiu-se em torno do indigenismo missionário vinculado à
filosofia do trinômio, Missão/FAB/índios, onde a atuação dos franciscanos era parte dos
planos da FAB de implantação de um destacamento de fronteira próximo aos Tiriyó. Nesse
contexto, os missionários seriam os mediadores nas relações com os Tiriyó e responsáveis por
sua civilização preparando-os para o convívio com a população não indígena, caso fossem
colocados em prática planos de colonização na região.
Aliando a formação religiosa com a implantação de um modo de vida sedentário, a
ação missionária levou à construção de uma ampla aldeia, conhecida como “Missão Tiriyó”,
que no início dos anos 1960 reunia cerca de 50 pessoas; já nos anos 1970, em torno de 200
pessoas; nos anos 1980, por volta de 400; e na última década, cerca de 450/500 pessoas.
Foram abertos caminhos em direção a outras aldeias Tiriyó, possibilitando a elas acesso fácil
e infra-estrutura de serviços da Missão.
Essa situação artificial de aglutinação de pessoas que se consideravam
significativamente diferenciadas na Missão Tiriyó conflitava com a manutenção do padrão de
relação sociopolítica anterior à chegada dos missionários. Para solucionar o problema, os
próprios índios levaram os missionários a escolher um novo lugar, não habitado
anteriormente, para instalar a Missão.
Em 1976, a Missão foi transferida para cerca de dois quilômetros do local anterior e,
as famílias, para as imediações. A nova Missão Tiriyó foi considerada um lugar de moradia

51
mais neutro do que a Missão anterior, já que, dentre os índios, ninguém se considerava mais o
“dono do lugar”, condição que garante a alguém a posição de pataentu exclusivo.
A primeira geração de lideranças mantinha desconfianças em torno da confiabilidade
das intenções dos missionários alemães, incluindo acusações de exploração da mão de obra
indígena e, ainda, de críticas à sua incompetência em civilizá-los.
A segunda geração de líderes Tiriyó era constituída por filhos e sobrinhos da primeira
geração, que viveram a transição do indigenismo de base missionária para o indigenismo de
Estado, promovido pela FUNAI, a partir dos anos 1980. Vários membros dessa geração foram
enviados pelos missionários, ainda na infância, por intermédio da FAB, para estudar nas
escolas de cidades como Óbidos, Belém e Manaus.
Quando retornaram, esses jovens tornavam-se auxiliares na tradução da Bíblia e de
outros materiais, professores da escola da Missão, motoristas e tradutores dos mais velhos e
de líderes da primeira geração, nos encontros e reuniões com visitantes e representantes de
organizações governamentais e não governamentais.
Apesar de formada pelos missionários, essa geração encontrou entre servidores da
FUNAI, um discurso contrário à atuação da Missão, quando os Tiriyó ouviram pela primeira
vez, opiniões sobre o caráter paternalista da ação franciscana. Nesse sentido, a instalação de
um posto indígena suscitou disputas com a Missão. Paralelamente, a FUNAI passou a destinar
mais recursos para a assistência de saúde e a custear mais transporte da Missão para a cidade
de Macapá, sede da administração regional do órgão.
Em meados dos anos 90, com apoio do Governo do Estado do Amapá para ações
indigenistas na região, a FUNAI conseguiu fortalecer-se e consolidar uma nova fase no
Parque de Tumucumaque, não mais pautada pelo indigenismo de base missionária vigente até
então, mas por uma nova relação com as “elites indígenas” da região, baseada em trocas de
favores com as lideranças da primeira e da segunda geração.
Assim, o Governo do Estado do Amapá transformou-se não apenas em mais um
parceiro, mas em símbolo de um novo tempo para os Tiriyó. Em um período inicial de apoio
desse governo, intermediado pela FUNAI, os Tiriyó não detectaram maiores mudanças, a não
ser o fato de que estavam se abrindo novas possibilidades de assistência e novos espaços de
contratação para profissionais de saúde e educação por meio do órgão indigenista.
Entre essa geração que convive com o novo contexto e a primeira geração de
lideranças surgidas na fase missionária, há uma acentuada diferença de concepções, de
preparo e de compreensão do contexto das relações com os não índios. De outro lado, o

52
acesso a posições de destaque junto às comunidades locais, como professor e agente de saúde,
garante à nova geração o acesso a remunerações mensais com valores nunca antes recebidos.
Esse diferencial ressalta na imagem das “novas elites”, além do papel privilegiado nas
relações com os órgãos indigenistas, o acesso a bens de consumo em uma proporção inédita.
Fato que, aos mais velhos, aparece como um contrasenso, já que eles se consideram com mais
voz ativa e experiência acumulada que os mais jovens. Um reflexo da contrariedade por parte
das lideranças mais antigas tem sido exigir melhor qualidade e mais assiduidade por parte dos
professores e agentes indígenas de saúde em seus compromissos com suas comunidades.
Durante o trabalho de campo realizado, constatou-se que, entre os Tiriyó, como nos
demais grupos indígenas investigados nessa pesquisa, existe uma grande preocupação com o
acesso aos direitos previdenciários e às vantagens materiais que esse acesso possibilita. Na
maior parte das residências dos Tiriyó foi observada a presença de aparelhos de televisão e
antenas parabólicas, a despeito da grande precariedade do restante do equipamento doméstico.
Outro fator de preocupação aos Tiriyó foram as dificuldades de acesso aos centros
urbanos – especialmente à cidade de Macapá – para a realização do cadastramento de futuros
beneficiários, bem como do recebimento desses benefícios por parte daqueles Tiriyó que
formalmente participam do sistema previdenciário. O acesso aos centros urbanos havia se
tornado um processo extremamente difícil, tendo-se em vista as mudanças implementadas
pela FAB em relação ao transporte aéreo de indígenas, e às dificuldades operacionais da
FUNAI em garantir o transporte dos beneficiários.

3.2.3 SATERÉ-MAWÉ

Sateré-Mawé corresponde à autodesignação desse grupo indígena que integra o tronco


linguístico Tupi. O nome Sateré (“lagarta de fogo”) refere-se ao clã mais importante do grupo,
o qual indica a linha sucessória dos chefes políticos. Mawé (“papagaio inteligente e curioso”)
não é designação clânica.
A língua Sateré-Mawé contêm elementos de outras línguas, como o Curuaya-
Munduruku (pronomes) e o Tupi (gramática). Embora seu vocabulário contenha elementos
estranhos ao Tupi, não pode ser relacionado à outra família linguística. Muitas palavras do
Nheengatú, ou “língua geral” foram incorporadas a essa língua, desde o século XVIII.
Atualmente, os homens Sateré-Mawé são bilíngues, isto é, falam a sua própria língua e
também o português. As mulheres, em sua maioria, falam apenas a língua Sateré-Mawé,
53
apesar de três séculos de contatos interétnicos. Já para o contingente dos Sateré que vive em
centros urbanos, o domínio da língua portuguesa é condição necessária para ambos os sexos.
Os Sateré-Mawé habitam a região do Médio Amazonas, em duas terras indígenas
demarcadas e homologadas. A Terra Indígena Coatá-Laranjal, situada no município de Borba,
no estado do Amazonas, possui 1.153.210 hectares, é habitada por índios Sateré-Mawé e
Munduruku. Já a Terra Indígena Andirá-Maraú, localizada na divisa dos estados do
Amazonas e do Pará, tem uma extensão de 788.528 hectares, distribuída entre os municípios
de Itaituba e Aveiro (PA) e Barreirinha, Maués e Parintins (AM).
Desde 1981, os Sateré-Mawé têm experimentado acentuada expansão demográfica.
Em 1987 formavam cerca de 4.710 indivíduos (FUNAI). Em 1997, os Sateré-Mawé e
Munduruku da Terra Indígena Coatá-Laranjal totalizavam 1.768 indígenas. Em 1999, apenas
os Sateré-Mawé constituíam 3.872, na região do rio Andirá, (42 aldeias) e 3.078, na área do
Marau (31 aldeias), em um total de 6.950 pessoas. Em 2002, os Sateré-Mawé da Terra
Indígena Andirá-Marau atingiram 7.376 indivíduos (FUNASA/DSEI-Parintins).
A partir da década de 1970, intensificou-se o fluxo migratório desse povo em direção a
Manaus. Em 1981, 88 Sateré-Mawé viviam na periferia dessa cidade. No final da década de
1990, atingiram cerca de 500 indivíduos, distribuídos em diferentes conjuntos habitacionais
na zona Oeste de Manaus. Essa população urbana tinha como principal atividade de
autossustentação, a venda de artesanato para turistas.
Segundo relatos dos velhos Sateré-Mawé, seus ancestrais habitavam, em tempos
imemoriais, o vasto território entre os rios Madeira e Tapajós, delimitado ao norte pelas ilhas
Tupinambaranas, no rio Amazonas e, ao sul, pelas cabeceiras do Tapajós.
Os Sateré-Mawé referem-se ao seu lugar de origem como sendo o Noçoquém, lugar da
morada de seus heróis míticos, o qual estaria localizado na margem esquerda do Tapajós, em
região de floresta densa e pedregosa, “lá onde as pedras falam”. O antropólogo Nunes Pereira,
que viveu com os Sateré-Mawé na década de 1950, conta que os lagos e rios “piscosíssimos”
que irrigavam as terras, assim como as florestas e campinas “ricas em caças de toda espécie”
formavam uma “paisagem magnífica” para esse povo indígena (NUNES PEREIRA apud ISA,
disponível em http://pib.socioambiental.org/pt/povo/satere-mawe/967).
Os contatos iniciais dos Sateré-Mawé com não índios ocorreram a partir de 1669,
quando missionários jesuítas fundaram a Missão de Tupinambaranas, sob a liderança do Padre
João Valladão. Os ancestrais dos Sateré-Mawé viviam em três aldeias, junto a um lago entre
os rios Andirá e Abacaxi, no Baixo Maués-Açu. Em 1692, a administração colonial declarou

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“guerra justa” contra os Sateré-Mawé, sob acusação de terem matado alguns “brancos”. O
confronto foi parcialmente evitado pelos índios que se espalharam pela floresta, enquanto
alguns ofereceram resistência.
O território ancestral dos Sateré-Mawé foi drasticamente reduzido, em função das
guerras com os Munduruku e Parintintim e pelos confrontos com os agentes coloniais. Em
1835, com a eclosão da Cabanagem, uma das principais insurreições nativistas no Brasil, os
Sateré-Mawé e Munduruku foram combatidos pela sua adesão aos cabanos, tendo-se rendido
em 1839. A ocorrência de epidemias e a perseguição aos grupos indígenas rebelados levaram
à devastação de enormes áreas da Amazônia, que resultou no deslocamento desses grupos dos
seus territórios tradicionais e na sua redução demográfica.
Relatos dos viajantes do século XVIII confirmam essa perda territorial e mencionam a
área situada entre os rios Marmelos, Sucunduri, Abacaxis, Parauari, Amana e Mariacuã como
território tradicional dos Sateré-Mawé. Esses relatos informam, ainda, que as cidades de
Maués (AM), Parintins (AM) e Itaituba (PA) foram fundadas sobre sítios Sateré-Mawé, o que
confirma relatos da história oral desse povo.
Assim, a ocupação da Amazônia pelos chamados “civilizados” (caboclos, brancos,
estrangeiros) restringiu consideravelmente o território tradicional dos Sateré-Mawé. A
ocupação foi iniciada com a chegada das tropas de “resgate” (captura e escravização de
índios) e missões jesuíta e carmelita; prosseguiu com a busca pelas “drogas de sertão”. Esse
processo avançou no século XX, com a extração da seringa e a expansão econômica das
cidades de Maués, Barreirinha, Parintins e Itaituba, com a implantação de fazendas, a extração
do pau-rosa, a abertura de garimpos e as atividades dos “regatões”, que sufocaram a
autonomia econômica, política e cultural dos Sateré-Mawé e de outros grupos da região.
Os Sateré-Mawé se consideram índios da floresta ou do “centro”. Até o início do
século XX, as aldeias e sítios eram implantados em regiões centrais da mata, próximas às
nascentes dos rios, onde a caça é abundante e onde são encontrados os “filhos de guaraná”,
mudas nativas da Paullinia Sorbilis. Nos “centros” se acham grandes variedades de palmeiras
como açaí, tucumã, pupunha e bacaba, que fazem parte da dieta alimentar desse povo,
banhadas por igarapés estreitos, com corredeiras e água fria.
As características desse ecossistema foram essenciais à reprodução da vida tradicional
dos Sateré-Mawé até o começo do século XX. Atualmente, as aldeias que mantêm a forma de
vida tradicional dos antigos Sateré-Mawé estão localizadas nessas regiões.

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As antigas aldeias Araticum Velho e Terra Preta, situadas na cabeceira do rio Andirá,
foram, conforme narrativas dos idosos, o centro de dispersão das 42 aldeias encontradas nas
margens desse rio. Do mesmo modo, a aldeia Marau Velho, que se localizava na nascente do
rio Marau, teria sido o núcleo inicial das 31 atuais aldeias situadas ao longo desse rio e nos
rios Miriti, Manjuru e Urupadi, desaparecidas na década de 1920.
A proliferação de aldeias nas margens dos rios Marau e Andirá vem ocorrendo há
cerca de 80 anos e decorre das interferências na vida tradicional dos Sateré-Mawé, pela
presença de missões religiosas, órgãos indigenistas (SPI e FUNAI), da pressão dos regatões e
epidemias, fatores que levaram os Sateré-Mawé a ficar mais próximos das cidades de Maués,
Barreirinha e Parintins.
O processo de demarcação da Terra Indígena Andirá-Marau, contemplou as aldeias,
sítios, roças, cemitérios, territórios de caça, pesca, coleta e perambulação situadas entre e os
rios Marau, Miriti, Urupadi, Manjuru e Andirá. Apesar de representar uma pequena parcela do
seu território tradicional, os Sateré-Mawé tiveram garantidas as terras que consideram como
suas, mantendo, assim, parte privilegiada do território ancestral.
Tradicionalmente, os Sateré-Mawé se estabelecem em “sítios”, espaço onde uma
família elementar possui sua residência, onde também se encontra o “fogo”, local destinado
ao preparo da comida e à reunião dos moradores. Entre a casa e o rio, fica estabelecida a
“cozinha”, onde os homens torram o guaraná e as mulheres preparam a farinha de mandioca.
O “porto”, situado às margens dos rios e igarapés, é local onde a família toma banho, lava a
roupa, deixa a mandioca de molho, lava o guaraná e ancora suas canoas. Os sítios abarcam as
plantações pertencentes a cada família elementar: os guaranazais, as roças de mandioca,
jerimum, cará, batata doce, outros tubérculos e os pomares.
Os Sateré-Mawé se organizam sob a autoridade do chefe de família extensa, que aí
reside com as famílias dos seus filhos e seus netos. Cabe a ele, a organização da produção do
sítio, coordenando as atividades econômicas dos seus filhos e genros. Eventualmente, convida
os parentes e conhecidos de outros sítios ou aldeias para reforçar seu grupo de trabalho,
reunindo-os nos puchiruns (trabalho coletivo semelhante a um “mutirão”). Para isso são
realizadas caçadas e pescarias e é torrada a farinha para a alimentação dos participantes.
Durante os puchiruns, o chefe de família extensa acompanha de perto a abertura das
roças de mandioca, o plantio e a limpeza dos guaranazais e o beneficiamento do guaraná. Seus
atributos consistem, ainda, em mandar construir casas, ordenar a “faxina” (limpeza do

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terreno), decidir os tipos de coleta e acompanhar a comercialização da produção agrícola e
artesanal dos seus familiares e agregados.
Os sítios formam um domínio privado, onde a terra e os recursos da natureza são
apropriados pelas famílias elementares, submetidas à autoridade do chefe do grupo familiar, o
qual é tradicionalmente reconhecido como “dono do lugar”. O grupo local, unidade básica da
organização política e econômica dos Sateré-Mawé pode se transformar em aldeia, quando o
número de famílias elementares aumenta ou quando seu chefe passa a ser visto como um
tuxaua. Isso ocorre conforme se consolida o prestígio do chefe junto a seus pares, pela
generosidade e pela habilidade nas transações comerciais, e pelas relações que estabeleça com
outros tuxauas próximos e, especialmente, com o tuxaua-geral.
Atualmente, a maior parte das aldeias Sateré-Mawé obedece ao traçado de um
arruado, semelhante aos povoados da região, onde se encontram as residências das famílias
elementares, as cozinhas, os portos, igrejas de diferentes congregações, escola e enfermaria.
Nos arredores das aldeias também se localizam as roças de mandioca, os guaranazais, os
pomares e demais plantações, que pertencem a cada família elementar.
Toda aldeia possui um tuxaua, o “chefe do lugar”, investido de autoridade para
resolver conflitos internos, convocar reuniões, marcar festas e rituais, orientar as atividades
agrícolas e as transações comerciais, mandar construir casas etc. Cabe ao tuxaua hospedar os
visitantes demonstrando sua generosidade e exercer a função cerimonial de oferecer çapó –
guaraná em bastão ralado na água, bebida cotidiana, ritual e religiosa consumida em grandes
quantidades.
Ao tuxaua e a outros chefes de família extensa, compete, ainda, administrar os
interesses da própria família, responsabilidade que assume de forma incisiva, principalmente
quando se trata de solucionar conflitos e determinar as atividades agrícolas e comerciais. Ele
também administra, de forma mais flexível, os interesses das demais famílias extensas e
elementares que aí residem.
A unidade mínima constitutiva da aldeia é, portanto, a família extensa do tuxaua, a
qual pode, ainda, ser acrescida por famílias elementares ou por outras famílias extensas, cujos
chefes se submetem à autoridade do tuxaua local. Essa autoridade política transcende os
limites da aldeia, estendendo-se, conforme seu desempenho local e as suas relações com os
demais tuxauas, sobretudo, com o tuxaua-geral.
A influência política de um tuxaua varia conforme critérios como: o clã ao qual
pertence; as relações de parentesco e prestígio junto aos demais tuxauas; o conhecimento

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sobre a história e a mitologia Sateré-Mawé (“tempo dos antigos”); a sua capacidade como
orador; a tradição como agricultor e beneficiador do guaraná; a habilidade para o comércio, a
capacidade de resolução dos problemas de sua comunidade e o relacionamento que estabelece
com os agentes da sociedade brasileira, principalmente a FUNAI, os patrões e os políticos
locais. O tuxaua-geral seria aquele que consegue um bom desempenho em todas essas áreas.
Além dos chefes de família extensa, dos tuxauas e dos tuxauas gerais, ainda há lugar
na organização política Sateré-Mawé para a figura do “capitão”, instituída pelo SPI e
reforçada pela FUNAI. A principal função do capitão é intermediar as relações dos Sateré-
Mawé com os não índios, ou fazer a conexão entre as lideranças tradicionais dessa sociedade
com as autoridades da sociedade nacional.
Assim, o capitão contracena com autoridades externas, como: representantes da
FUNAI (coordenadores local e regional, técnicos), da FUNASA (chefes de DSEI,
coordenadores de CASAI), autoridades municipais (prefeito, vereadores, delegado de polícia),
autoridades religiosas (padres, pastores). Os agentes do Estado e de instituições religiosas
atuantes na área muitas vezes instituem o capitão e procuram controlar suas ações em função
dos respectivos interesses. Como não se trata de um chefe tradicional, essas idiossincrasias
tornam o capitão, uma figura controvertida dentro na esfera política Sateré-Mawé.
A autossustentabilidade dos Sateré-Mawé baseia-se na agricultura, especialmente nos
plantios de guaraná e nas roças de mandioca. A farinha é a base da sua alimentação, sendo
também comercializada nas cidades de Maués, Barreirinha e Parintins. Para o autoconsumo,
cultivam, ainda, o jerimum, a batata doce, o cará branco e roxo, e uma infinidade de frutas,
principalmente a laranja.
Os Sateré-Mawé desenvolvem, ainda, como atividades de autossustentação, a caça e a
coleta, especialmente o mel silvestre, a castanha, diferentes variedades de coco, além de
espécies de formigas e lagartas. Extraem breu, cipós e vários tipos de palhas para
autoconsumo e comercialização. A caça e pesca de diferentes espécies, praticadas pelos
homens provêm, com a farinha de mandioca, beiju e tacacá feitos pelas mulheres, a
alimentação desse grupo.
Os teçumes – artesanato feito com talos e folhas de caranã, arumã e outras palmeiras,
constituem a maior expressão da diversificada cultura material Sateré-Mawé. Atividade
essencialmente masculina, os teçumes (peneiras, cestos, tipitis, abanos, bolsas, chapéus,
paredes, coberturas de casas etc.) têm importante papel no fornecimento de objetos de uso
doméstico e cerimonial, sendo também comercializados nas cidades mais próximas.

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A cosmologia Sateré-Mawé atribui importância especial ao Porantim, objeto
cerimonial formado por uma peça de madeira com 1,50m de altura, com desenhos
geométricos em baixo relevo, recobertos com tinta branca (tabatinga). Seu formato
assemelha-se a uma clava de guerra ou a um remo trabalhado. O Porantim funciona como um
legislador social, ao qual os Sateré-Mawé se referem como sua Constituição ou sua Bíblia.
Porantim possui, ainda, poderes mágicos, que prevê acontecimentos, podendo
deslocar-se no espaço para conter conflitos internos. Em um lado da sua superfície estão
gravados o mito da origem dos Sateré-Mawé ou a história do guaraná; no outro lado, o mito
da guerra. Para os Sateré-Mawé, o Porantim constitui sua instituição máxima, condensando
nesse objeto, suas esferas política, jurídica, mágico-religiosa e mística.
Como objeto sagrado, uma espécie de oráculo, sob o Porantim recaem algumas
proibições. Assim, foi apresentado ao coordenador da pesquisa um dos raros Porantim ainda
existentes entre os Sateré-Mawé, em caráter sigiloso, durante uma visita em uma das aldeias
da Terra Indígena Andirá-Marau. A “guardiã” desse Porantim, explicou alguns de seus
significados simbólicos, como o fato de conter a “história” dos Sateré-Mawé. Entretanto não
foi permitida a realização de fotografias, filmagem ou qualquer outra forma de documentação
visual sobre esse objeto sagrado da tradição Sateré-Mawé.

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A importância do guaraná para os Sateré-Mawé

Os Sateré-Mawé são conhecidos como o povo criador do cultivo do guaraná, isto é, o plantio e
beneficiamento da Paullinia Cupana, trepadeira silvestre da família das Sapindáceas, transformando-a
em arbusto cultivado. O guaraná é uma planta nativa das terras altas da bacia hidrográfica do rio
Maués-Açu, que coincide com o território tradicional dos Sateré-Mawé, os quais se consideram
iniciadores do cultivo dessa planta, representada no seu mito da origem, onde são concebidos como
“Filhos do Guaraná”.
O guaraná é o produto mais significativo da economia sateré-mawé, obtendo o maior preço no
mercado. A vocação dos Sateré-Mawé para o comércio pode ser explicada também pela importância
do guaraná na sua organização social e econômica. Cronistas do período colonial constataram, em
1699, logo nos primeiros contatos dos Sateré-Mawé com não índios, o manejo botânico e a utilização
cotidiana e ritual do guaraná por esse povo. Em 1819, o naturalista Carl von Martius recolheu e
classificou amostras de guaraná, tendo observado a existência já de um grande comércio do guaraná,
enviado para regiões distantes, como Mato Grosso e Bolívia.
Na região de Maués, no Médio Amazonas, o comércio do guaraná sempre foi intenso,
principalmente o realizado por moradores locais. As propriedades estimulantes, de regulador
intestinal, antiblenorrágico, tônico-cardiovascular e afrodisíaco do guaraná impulsionavam esse
comércio. O guaraná das terras altas beneficiado pelos Sateré-Mawé, considerado de excelente
qualidade, sempre foi mais procurado do que o “guaraná de Luzéia”, beneficiado pelos regionais.
Apesar disso, a comercialização dos Sateré-Mawé sempre foi limitada (2 toneladas por ano), enquanto
a regional, de qualidade inferior, excedia a 40 toneladas por ano.
O çapó, guaraná em bastão ralado na água, bebida cotidiana, ritual e religiosa, é consumida
pelos adultos e crianças Sateré-Mawé, em grandes quantidades. O preparo e consumo do çapó seguem
uma série de práticas, que juntas resultam em um ritual. O ritual de consumo do guaraná é, porém,
diferente de um ritual formal, como são a Festa da Tucandeira ou a da leitura do Porantim.
Durante o fábrico, termo regional utilizado pelos Sateré-Mawé para indicar as várias etapas do
beneficiamento do guaraná, a vida social se intensifica, potencializando o modo de ser desse povo
indígena. Nesse momento, surge uma gama de fenômenos na vida social que se encontram ocultos em
outras épocas do ano. É um período de renovação que ressurge a cada ano, com a chegada da colheita
do guaraná, permitindo aos Sateré-Mawé comungarem com sua gênese mítica, revigorando-se
etnicamente.
O fábrico é um ciclo produtivo predominantemente masculino, que tematiza a relação entre a
divisão sexual do trabalho e a divisão do trabalho por faixa etária. Os Sateré-Mawé prescrevem para as
atividades mais simples do fábrico – que não dependem de tanta arte e experiência – mãos de variadas
idades. Mas, ao se tratar das tarefas mais sofisticadas, serão sempre mãos de pessoa adultas ou idosas
cuidando do guaraná.
A articulação da prescrição sexual com a faixa etária resulta que a colheita dos cachos, a
descasca do guaraná cru, a lavagem do guaraná, a torrefação, a descasca do guaraná torrado e a pilação
são tarefas quase que exclusivamente masculinas, cobrindo a faixa etária dos meninos aos adultos. A
participação do sexo feminino ocorre apenas quando se descasca o guaraná cru e o guaraná torrado,
que são consideradas atividades bem simples dentro do fábrico.

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Ritual da Tucandeira entre os Sateré-Mawé

O ritual da Tucandeira coincide com a época do fábrico e dura aproximadamente 20 dias. Os


índios referem-se a esse ritual como “meter a mão na luva”, também conhecido pelos regionais como
“Festa da Tucandeira”. Trata-se de um rito de passagem – onde os meninos tornam-se homens – de
extraordinária importância para os Sateré-Mawé, com cantos de exaltação lírica para o trabalho e o
amor, e cantos épicos ligados às guerras. As luvas utilizadas durante esse ritual são tecidas em palha
pintada com jenipapo, e adornadas com penas de arara e gavião; nelas, o iniciado enfia a mão para ser
ferroado por dezenas de formigas tucandeiras (Paraponera clavata).
Durante os levantamentos de campo na Terra Indígena Andirá-Marau, a equipe dessa pesquisa
pôde observar, por algumas horas, uma cerimônia da Festa da Tucandeira, realizada na Aldeia
Seringal, situada em posição quase frontal em relação à Aldeia Ponta Alegre, onde a equipe estava
estabelecida.
No período observado, meninos e adolescentes Sateré-Mawé eram trazidos de suas casas até o
local da festa, um barracão aberto nas laterais e coberto por palha, onde havia duas grandes varas
paralelas na posição horizontal. Um grupo de meninos e jovens, vestidos com as luvas da Tucandeira e
conduzidos por um mestre cerimonial, percorria um trajeto ao longo dessas varas, entoando cânticos
relativos à iniciação masculina.
Em uma prova de coragem e força moral para superar a dor, esses meninos e jovens Sateré-
Mawé suportavam as ferroadas das inúmeras formigas inseridas na “luva” da Tucandeira, não
conseguindo deter o choro, que permanecia após a retirada da “luva”. Segundo informações
levantadas, os jovens têm que se submeter a 20 sessões como a que foi observada, com cerca de 30
minutos de duração.

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4 ABORDAGEM DAS QUESTÕES QUE ORIENTARAM A PESQUISA

Para os fins da análise da relação dos povos indígenas com o sistema de Previdência
Social no Brasil buscou-se organizar as informações disponíveis em documentos
institucionais e obtidas por meio de entrevistas e observação direta em torno dos seguintes
componentes: as estruturas de atendimento; as condições de acesso à documentação exigida
pela Previdência Social; as condições de acesso aos benefícios; a presença de intermediários;
os usos do dinheiro procedente dos benefícios previdenciários e assistenciais; e os impactos
sociais, culturais e ambientais nas comunidades indígenas.
Em primeiro plano apresentam-se as questões mais comuns encontradas nas diversas
comunidades visitadas ou na maioria delas. Em seguida, apresentam-se questões específicas
por cada povo indígena, a partir dos relatos e documentos recolhidos pelas equipes da
pesquisa.
Procura-se, dessa forma, indicar os aspectos mais relevantes para a estruturação da
política pública de Previdência Social direcionada às populações indígenas do país,
considerando as interfaces com outras políticas públicas.

4.1 ACHADOS RELATIVOS ÀS ESTRUTURAS DE ATENDIMENTO

As estruturas de atendimento aos direitos previdenciários e assistenciais dos povos


indígenas, localizadas nas comunidades pesquisadas, podem ser assim caracterizadas:

INSS – INSTITUTO NACIONAL DE SEGURIDADE SOCIAL


Agência de Previdência Social – APS
Serviços oferecidos: cadastramento e concessão de benefícios previdenciários;
orientações; ajuste de situações irregulares; agendamento pelo 135; atendimento móvel.
Prev-Barco
Serviços oferecidos: cadastramento e concessão de benefícios previdenciários;
orientações; emissão de documentos indígenas.
Programa de Educação Previdenciária – PEP
Serviços oferecidos: orientação para o acesso aos direitos previdenciários; formação
de multiplicadores.

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FUNAI – FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO
Setor de Assistência ao Índio – SAI / Coordenação Técnica Local – CTL
Serviços oferecidos: emissão de certidão de nascimento indígena; emissão de
documentos de identidade indígena; emissão de declaração de trabalho agrícola;
encaminhamento para o cadastramento das gestantes junto ao INSS para o benefício do
salário-maternidade; encaminhamento de casos para perícia médica visando à obtenção de
auxílios-doença e aposentadorias por invalidez e outros benefícios; acompanhamento aos
indígenas para cadastramento junto aos órgãos previdenciários e assistenciais.

FUNASA – FUNDAÇÃO NACIONAL DE SAÚDE


Polos-Base de Saúde
Serviços oferecidos: atendimento médico local e de pequena complexidade.
Casa de Saúde do Índio – CASAI
Serviços oferecidos: abrigo aos indígenas em tratamento de saúde.

SECRETARIA DE ESTADO DA ASSISTÊNCIA SOCIAL DO AMAZONAS – SEAS


Barco PAI – Programa Pronto Atendimento Itinerante
Serviços oferecidos: emissão de documentos de identificação; atendimento
previdenciário; serviços de cartório; registro de boletins de ocorrência; consultas
oftalmológicas; entrada nos benefícios previdenciários, como aposentaria por idade, auxílio-
maternidade, auxílio-doença, pensão, etc.

OUTRAS INSTITUIÇÕES FEDERAIS, ESTADUAIS E MUNICIPAIS


SECRETARIA DE ESTADO PARA OS POVOS INDÍGENAS DO AMAZONAS
SECRETARIAS DE ESTADO DA EDUCAÇÃO
SECRETARIAS ESTADUAIS DA ASSISTÊNCIA SOCIAL
SECRETARIAS MUNICIPAIS DA ASSISTÊNCIA SOCIAL
SECRETARIA MUNICIPAL DE ASSUNTOS INDÍGENAS
MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
MINISTÉRIOS PÚBLICOS ESTADUAIS

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Segundo as opiniões das pessoas entrevistadas, o corpo de funcionários da FUNAI e
da FUNASA é insuficiente para atender todas as demandas, o que compromete o
encaminhamento dos indígenas para os benefícios. Também segundo os entrevistados, o PEP,
nunca atuou junto aos grupos indígenas Canela, Guajajara, Sateré-Mawé e Tiriyó,
especialmente nas comunidades mais distantes dos centros urbanos.
Inexiste um atendimento específico às populações indígenas por parte das agências do
INSS, o que se explica pelo fato de que a responsabilidade da intermediação entre índios e
organizações públicas é da FUNAI. Os grupos indígenas são submetidos ao mesmo processo
de atendimento que os demais segmentos da população local, contrariando o princípio de
respeito aos direitos específicos reconhecidos aos povos indígenas e da necessidade de
tratamento diferenciado pelo poder público em vista das diferenças étnicas e culturais desses
povos em relação à sociedade brasileira. Como nem todos os funcionários do INSS entendem
as línguas indígenas, o que compromete a comunicação e, consequentemente, a liberação dos
benefícios, torna-se evidente a necessidade de aproximação entre INSS e FUNAI para que os
obstáculos em relação à concessão dos benefícios sejam superados..
São poucas as experiências de intervenção interinstitucional em relação às questões
indígenas, principalmente quanto à garantia dos direitos previdenciários e assistenciais.
As normas e procedimentos estabelecidos para a concessão dos benefícios
previdenciários aos segurados especiais, necessários para a comprovação do direito e também
para evitar fraudes no Sistema de Previdência Social, dificultam a concessão dos benefícios
para quem não possui os documentos exigidos..

4.1.1 APANIEKRÁ E RAMKOKAMEKRA-CANELA

Levantamentos realizados junto à CTL Canela da FUNAI, localizada em Barra do


Corda revelam o trabalho institucional do órgão, nas atividades ligadas ao cadastramento dos
Apaniekrá e Ramkokamekra-Canela junto à agência local do INSS, visando à implementação
dos direitos previdenciários.
Por meio do Setor de Assistência ao Índio – SAI são recebidas as declarações dos
casos de nascimento de crianças, as quais são registradas em certidões específicas da FUNAI
e encaminhadas para o cadastramento das gestantes junto ao INSS para o benefício do salário-
maternidade.

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Pelo SAI é realizado, também, o encaminhamento de casos para perícia médica
visando à obtenção de auxílios-doença e aposentadorias por invalidez e outros benefícios, a
partir de documentos fornecidos pelos Polos-Base da FUNASA. A unidade elabora ainda,
documentos de identidade indígena e declaração de trabalho agrícola, necessários para
encaminhamento dos potenciais beneficiários indígenas, junto à agência local do INSS.
Maria Francisca Oliveira Soares, coordenadora do SAI da CTL-Canela em Barra do
Corda, é responsável pela elaboração de documentos e pelo encaminhamento dos Canela
junto à Previdência Social (INSS) e à Assistência Social (Programa Bolsa Família – PBF). Ela
informou que tem experiência de trabalho junto aos Canela desde 1983, quando atuava na
Administração Executiva da FUNAI em Barra do Corda. A partir de 2003 foi transferida ao
Núcleo de Apoio Local – Canela (NAL-Canela).
Mesmo não formalizada, sua atuação no SAI está relacionada à emissão de
documentação específica (certidões de nascimento indígena, declaração de trabalho rural e
outros) e acompanhar os Canela no cadastramento junto aos órgãos previdenciários e
assistenciais, para a obtenção de benefícios.
Nas entrevistas e levantamentos realizados na Aldeia Escalvado, dos Ramkokamekra-
Canela, foram identificadas algumas questões específicas sobre o relacionamento dos Canela
com a Previdência Social, as quais são aqui apresentadas.
Cornélio Piapit, liderança tradicional e professor Canela, afirmou nunca terem
ocorrido ações da Previdência Social voltadas para o ensino dos direitos previdenciários aos
Canela, o que indica que nunca foram deslocadas equipes do PEP para junto desse grupo
indígena.

4.1.2 TENETEHARA-GUAJAJARA

Atualmente, o município de Grajaú dispõe de uma infra-estrutura de atendimento aos


povos indígenas que inclui uma CTL da FUNAI, Polos-Base da FUNASA destinados ao
atendimento médico local e de pequena complexidade; APS vinculada ao INSS, voltada para
o cadastramento e concessão de benefícios previdenciários, além da atuação do Instituto
Brasileiro de Recursos Naturais Renováveis – IBAMA, Instituto Nacional de Colonização e
Reforma Agrária – INCRA e outros órgãos federais.
A Prefeitura Municipal de Grajaú dispõe, também, da Secretaria de Assistência Social,
por meio da qual são canalizados os benefícios assistenciais à população do município como
65
um todo – caso do PBF – que também incide sobre os povos indígenas. Finalmente, os
Tenetehara-Guajajara são atendidos pela SEDUC, a qual é responsável pela implementação
do ensino escolar nas Aldeias Guajajara e pela inserção e transporte de alunos indígenas em
escolas urbanas de Grajaú.
Um dos agentes institucionais entrevistados foi Sebastião Guajajara, do Polo-
Guajajara da FUNASA no município de Grajaú, o qual os indígenas e autoridades locais
denominam “Polo do Arão” (referência a Arão Lopes, liderança indígena e atual vereador na
Câmara Municipal de Grajaú). Sebastião Guajajara exerce, ainda, a função de Diretor da
Escola da Terra Indígena Morro Branco, localizada no perímetro urbano da cidade de Grajaú.
O agente é filho de uma já falecida líder dessa aldeia e irmão de dona Joana Guajajara,
atual responsável pelo encaminhamento e acompanhamento de possíveis beneficiários da
Terra Indígena Morro Branco à agência local do INSS. Sebastião Guajajara pode ser
considerado, também, como “liderança tradicional” entre os Tenetehara, em função dos seus
vínculos de parentesco. Sebastião é neto de Virgulino Guajajara, um líder tradicional
Tenetehara, que nas décadas de 1970-80 foi um dos articuladores de um movimento de toda a
nação Tenetehara, voltado para a demarcação das terras indígenas na região. É também
sobrinho do atual cacique da Aldeia Morro Branco, Djalma Marizê.
Durante a apresentação dos pesquisadores à comunidade da Terra Indígena Morro
Branco, Sebastião Guajajara deixou clara sua expectativa de que esses produzissem relatórios
que “melhorassem o atendimento e facilitassem o acesso” dos Tenetehara à Previdência
Social. Ele considera que a FUNASA não tem poder ou influência junto ao INSS para emitir
declarações que venham a certificar doenças ou possibilitar outras formas de benefícios
oferecidos pelas políticas públicas brasileiras.
Os pesquisadores do Projeto estiveram junto à coordenadora do Polo da FUNASA. Os
pesquisadores presenciaram o atendimento da indígena Antonia Guajajara, líder da Aldeia
Tamarindo, a qual veio pedir os documentos do censo de sua aldeia para poder dar entrada em
outro polo. Foi realizada uma entrevista coletiva com a Coordenadora do Polo e sua equipe de
trabalho, na qual vários temas foram abordados, como o do deslocamento dos Tenetehara
entre a cidade de Grajaú e as aldeias. Dentre as razões desse movimento, foi colocado pelos
entrevistados, que os indígenas que estavam morando na cidade estão retornando as aldeias
devido ao estabelecimento de novas escolas nas áreas indígenas e a implantação do transporte
escolar, com a consequente facilidade de acesso as cidades vizinhas.

66
Na segunda reunião coletiva realizada na sede do Polo Indígena Guajajara,
coordenado pela esposa do então Vereador Arão Lopes, todos os participantes afirmaram
desconhecer o PEP, implementado pelo MPS, mas demonstraram interesse em solicitar tal
programa para as aldeias as quais coordenam e mantêm relações de atendimentos de saúde.
No município de Grajaú, foram realizados levantamentos junto à APS do INSS.
Segundo o gerente do INSS em Grajaú, a APS atende a uma quantidade considerável de
indígenas, mas o órgão não faz distinção entre cor, sexo ou raça, atendendo prioritariamente
os agendamentos. Os atendimentos agendados pela internet e pelo telefone teriam diminuído
em mais de 80% as filas existentes no INSS, sendo que a maioria dos que procuram os
serviços é de segurados especiais.
Em comparação com outros benefícios, considera que poucos são os indígenas que
procuram o INSS por acidentes ou invalidez. Em muitos casos, a procura se dá pelos
problemas no recebimento dos benefícios, como o bloqueio de cartão ou por falta de
documentação. As dificuldades no deslocamento seriam causadas por fatores naturais, como
queda de árvore, ou pela ausência de transporte adequado.
Descreveu como sendo benefícios mais comuns recebidos por indígenas nessa APS as
aposentadorias por idade, salário-maternidade, auxílio-doença, auxílio-reclusão e
aposentadoria por invalidez. Afirmou desconhecer a existência de legislação específica
relacionada aos povos indígenas e a previdência, e que essa ausência impede que os mesmos
tenham amparo legal e um tratamento específico na estrutura previdenciária.
Segundo o entrevistado, as perícias médicas na APS de Grajaú e em todas as outras do
Brasil são realizadas de forma científica e humanizada, com acompanhamento médico e de
assistente social. Nesse sentido, o MPS procura estabelecer uma relação com a FUNAI para
melhorar o atendimento aos indígenas. Para ele, os funcionários do órgão em Grajaú tentam
trabalhar, mas devido ao atual processo de reestruturação da FUNAI, todos os cargos e
funções estão suspensos, e seus funcionários estão apenas recebendo seus proventos.
Sobre a relação entre FUNAI e APS-Grajaú, o gerente descreveu que após a entrada
de Darlan Lopes como representante da CTL-FUNAI junto ao INSS, o número de fraudes
diminuiu consideravelmente, principalmente porque os processos encaminhados contavam
com a assinatura desse agente. Entretanto, apontou a existência de problemas relacionados ao
cadastramento de indígenas na previdência.
O agente público relatou, ainda, as diferentes formas pelas quais a FUNAI atua na
implantação dos direitos de seguridade dos beneficiários. A ausência de controle de dados

67
pela Instituição, pela inexistência de censos demográficos e socioeconômicos dos indígenas
assistidos naquela, região, favorece, segundo ele, situações em que os indígenas possam ter
acesso a mais de um benefício simultaneamente.
O agente público reconheceu as dificuldades e os problemas vividos pelos indígenas
em relação aos seus direitos previdenciários, mas afirmou que, sem o apoio da FUNAI, não há
como resolver esses problemas. Avalia a necessidade de realização de um recenseamento por
aldeia e o recadastramento dos indígenas junto ao INSS, a fim de se evitar novas fraudes.
Disse, ainda, sobre o temor diante de ameaças a que estão sujeitos os agentes públicos ou
mesmo da cumplicidade a essa situação.
Durante a realização da pesquisa, o Tenetehara Darlan Lopes aguardava Portaria de
sua nomeação como coordenador da CTL/FUNAI em Grajaú. Atualmente, Darlan Lopes é
responsável pela emissão de documentos da FUNAI comprobatórios da condição indígena e
por encaminhar os Tenetehara à agência local do INSS, para obtenção dos direitos
previdenciários.
Após demonstrar resistência inicial aos pesquisadores, a partir da explanação dos
objetivos da pesquisa, Darlan Lopes forneceu dados relativos às aldeias Tenetehara
localizadas no município de Grajaú, que apontam o número expressivo de aposentados nas
terras indígenas Bacurizinho, Bananal e Ipú e o significativo número de idosos vindos da
região de Itaipava do Grajaú, município criado a partir da divisão de Grajaú.
Forneceu, ainda, informações referentes à Terra Indígena Morro Branco localizada no
perímetro urbano de Grajaú. Segundo Darlan, existem entre 70 e 80 comunidades indígenas
que devem ser atendidas pela CTL de Grajaú. Na condição de representante da FUNAI no
município, Darlan afirmou haver um consenso local em torno da sua indicação para a função
de Coordenador da CTL/FUNAI em Grajaú, tendo-se em vista a força política de seu irmão,
Arão Lopes, líder indígena e vereador na Câmara Municipal de Grajaú.
Em relação à articulação entre a representação local da FUNAI e a APS do INSS em
Grajaú, Darlan afirmou que faz questão de assinar os encaminhamentos e declarações para os
indígenas na própria agência local do INSS, na presença do Gerente de Assistência e de outras
pessoas que possam servir de testemunhas.
Vinculado por parentesco a uma família de líderes Tenetehara-Guajajara, José Dilamar
Pompeu, secretário de Assuntos Indígenas de Barra do Corda, exerceu, por mais de uma
década, a função de chefe da Administração Regional da FUNAI em Barra do Corda e Chefe

68
do NAL – Guajajara da FUNAI. Na entrevista, foram levantadas informações referentes aos
conflitos entre indígenas e não indígenas em Barra do Corda envolvendo os Tenetehara.
O ex-dirigente da FUNAI afirmou que a pesquisa sobre as relações entre os povos
indígenas locais e a Previdência Social estaria ocorrendo no momento certo, tendo-se em vista
a operação realizada na cidade nos últimos dias pela Policia Federal, que teria culminado com
a prisão de diversas pessoas envolvidas em operações ilícitas de retenção de cartões de
aposentadorias. Embora a operação policial não tenha sido direcionada especificamente aos
“atravessadores” que operam com cartões previdenciários indígenas, a ação policial impactou
aos que desenvolvem essas atividades ilícitas, tornando oportuna a pesquisa ora desenvolvida.
Dilamar destacou, em relação às diferentes etnias da região, que “atualmente os índios
estão passando necessidades”. Considera que, em função da suposta “inocência indígena”
teria ocorrido a entrega dos cartões por beneficiários indígenas a terceiros, chamados
“patrões”, os quais operam como comerciantes informais na cidade. Completa dizendo que na
relação entre os próprios indígenas não existem esses problemas, pois sendo “parentes”, os
fornecedores não “enrolam” os beneficiários. Para Dilamar, os atos praticados por
“atravessadores” decorrem da relação comercial entre índios e brancos na região.
Os agentes vinculados às unidades da FUNASA em Barra do Corda afirmam não
realizar ações diretamente relacionadas à Previdência Social. José Raimar Pompeu, chefe do
Polo GUAJAJARA da FUNASA em Barra do Corda, é responsável por um dos maiores polos
de saúde da região, que cobre cerca de 45 aldeias, com quase 2.000 indígenas assistidos pela
FUNASA. Ele deixou claro que a FUNASA nada tem a ver com o INSS – em referência aos
fatos que antecederam a chegada da equipe de pesquisa à Barra do Corda – e que não pretende
manter relação com a agência local do órgão previdenciário, tendo-se em vista possíveis
fraudes e pessoas envolvidas em “esquemas”.
Afirmou que em seu polo nenhuma declaração foi encaminhada ao INSS, e que a
única forma de melhorar a situação dos indígenas na região seria por meio da ação policial e
da educação; outras formas de ação não teriam êxito, porque os indígenas – não apenas o
Tenetehara – acabam por sujeitar-se novamente a outro “patrão”. Relatou que um membro de
sua família recebe atualmente apenas um de seus benefícios, o outro está 90% comprometido
com um empréstimo feito por terceiros, de quem o titular do benefício não tem conhecimento.

69
4.1.3 POTIGUARA

Joaquim Neto, gerente da APS de João Pessoa/PB, acredita que o PEP é um


instrumento de manutenção da relação do INSS com os segurados indígenas. O trabalho
educativo foi iniciado no estado da Paraíba em 2000, a partir da observação da realidade e por
intermédio de um funcionário da APS que tinha conhecimentos sobre as áreas indígenas e
“amizades” junto aos Potiguara. Três anos depois, as atividades foram intensificadas.
A idéia que está sendo estabelecida na Paraíba é a permanência dessa relação, mesmo
depois do benefício ser concedido. A partir daí, o diálogo com beneficiários, lideranças e
instituições indigenistas passa a ser constante, no intuito de avançar nas políticas da
Previdência junto às populações indígenas.
Rogério Silva Oliveira, chefe da Seção de Atendimento da APS João Pessoa, ratificou
a importância do PEP na relação com os Potiguara. Ele declarou que a agência do INSS na
capital paraibana está preparada tanto para o atendimento direto dos segurados especiais
indígenas, como também para a orientação prévia para o acesso aos direitos previdenciários,
por meio do PEP, com o apoio das instituições parceiras.
O PEP é uma das atividades desenvolvidas fora das agências de maior destaque junto à
população indígena no estado da Paraíba. A ação in loco vem ganhando reconhecimento e
representatividade junto às comunidades, tornando-se de extrema importância para as
parcerias que foram estabelecidas entre o INSS e seu público-alvo.
Sobre a relação entre INSS e beneficiários, Rogério Oliveira informou que ela termina
logo que o benefício é concedido, sendo substituída pela relação banco/beneficiários. Caso
ocorra algo que venha a desestruturar o recebimento do benefício, a relação entre INSS e
beneficiários é restabelecida.
Segundo ele, mesmo havendo momentos distintos na relação da Previdência com os
segurados, os Potiguara sentem-se seguros ao recorrer às APS, seja para pedir orientações,
solicitar benefícios ou para o ajuste de situações irregulares. Um dos fatores que contribuiriam
para tal situação seriam as estratégias de atendimento direto e indireto, as quais fortaleceriam
os canais de diálogo do INSS com seus clientes. O bom diálogo, contudo, não significa deixar
de exigir o cumprimento das prerrogativas legais para a concessão dos benefícios
previdenciários, mesmo que o órgão leve em consideração as variantes étnico-culturais dos
segurados indígenas.

70
Nas entrevistas com lideranças e segurados indígenas, também foram destacadas as
outras formas de se relacionar com a Previdência, especialmente na questão dos serviços de
agendamento pelo 135 e do atendimento móvel.
Elias Lima, cacique da Aldeia Tramataia, destaca o agendamento por meio do número
telefônico 135. Com o atendimento agendado, os Potiguara não têm mais que aguardar o
atendimento em longas filas na APS do município de Rio Tinto, localizada cerca de 19
quilômetros da aldeia. Como consequência, a relação entre a agência previdenciária e os
Potiguara vem se tornado mais harmoniosa, o que não ocorria no período anterior.
Na saúde, os atendimentos de Alta Complexidade junto aos Potiguara é realizado pelo
DSEI/PB, localizado em João Pessoa. Já nas aldeias, o atendimento é voltado para a Atenção
Básica. Robson Cassiano, chefe do DSEI-PB, explicou que houve um crescimento gradual do
atendimento a toda a comunidade Potiguara, seja pelas ações de Atenção Básica, seja pelas de
Alta Complexidade.
O êxito das ações do DSEI junto aos Potiguara, segundo Cassiano, está diretamente
ligado a determinados fatores próprios daquela realidade. O primeiro é a presença de apenas
um povo na região, com sua unidade étnica e cultural; o segundo fator é o acesso fácil às
aldeias, tanto no sentido da relação amistosa entre profissionais e comunidades, quanto na
logística de deslocamento e permanência; o terceiro fator citado por Cassiano é a existência
de um conselho indígena atuante.
Contudo, Cassiano acredita que a atual estrutura administrativa da FUNASA não é a
ideal, devendo ser substituída pela recém-criada Secretaria Especial de Saúde Indígena –
SESAI. Entre os principais benefícios indicados com essa mudança, estão:
 Autonomia financeira do DSEI;
 Poder de execução;
 Maiores e melhores ações de campo;
 Período de transição estabelecido e acompanhado por Conselho;
 Finanças fundo a fundo; e
 Adaptação estabelecida e confirmada dos profissionais que já atuam nas áreas.
No município de Baía da Traição, Hitler Ferreira, chefe do Polo-Base da FUNASA na
Aldeia do Forte, informou que o polo possui uma equipe profissional bem diversificada,
constituída por: médico; enfermeiro; fonoaudiólogo; psicólogo; nutricionista; odontólogo;
fisioterapeuta; técnico em enfermagem; e agentes de saúde.

71
O atendimento desses profissionais é realizado diretamente nas aldeias, dentro de uma
escala de trabalho organizada antecipadamente. Existe ainda, uma vez por mês, a realização
do HIPERDIA, uma ação de atendimento que envolve nutricionistas, fonoaudiólogos,
psicólogos, médicos e enfermeiros no controle de doenças na comunidade, em especial junto
aos idosos.
Sobre os problemas de saúde mais frequentes entre os Potiguara, os dados dão conta
da presença das doenças mentais e de diabetes, do tipo que pode ocasionar amputação e levar
o doente à aposentadoria por invalidez. Essas informações são coletadas a partir do
levantamento dos atendimentos realizados, que são lançados no Sistema de Informação da
Atenção à Saúde Indígena (SIASI).
Lusilândia Maria Alves Pinto, chefe do Polo Indígena Caeira, no município de
Marcação, destacou que, atualmente, o atendimento abrange 15 aldeias, envolvendo agentes e
técnicos de saúde no acompanhamento às famílias e ofertando, ainda, variados programas de
prevenção. Lusilândia explicou que esse contato dos profissionais com os indígenas, feito
“corpo a corpo”, é essencial para a eficácia das ações de saúde nas aldeias.

Casos Previdenciários

MARIA GABRIELA DA CONCEIÇÃO, 60 ANOS – APOSENTADA


A indígena não teve dificuldades para dar entrada no benefício, principalmente porque foi
atendida por técnicos do INSS por meio do PrevMóvel, quando a Agência Móvel estava na Aldeia do
Forte realizando atendimento aos indígenas da comunidade. Já são cinco anos como aposentada, mas
ela até hoje cultiva mandioca para consumo e vende o excedente na feira.

4.1.4 BANIWA

Irineu Lauriano Rodrigues, representante da Federação das Organizações Indígenas do


Rio Negro – FOIRN informou que o atendimento previdenciário junto às comunidades mais
distantes é realizado pelo Barco PAI que fornece documentos, realiza atendimento
previdenciário, serviços de cartório, atua como delegacia de polícia no registro de boletins de
ocorrência e, também, oferta consultas oftalmológicas.
Irineu informou que o programa é do Governo Estadual, em parceria com os governos
Municipal e Federal. O Barco PAI funciona desde 2003, em uma articulação institucional que
envolve os governos Federal, Estadual e Municipal, com o objetivo de levar cidadania aos
72
povos indígenas mais isolados. A administração geral é da SEAS, que tem como parceiros
órgãos: o INSS, o Exército Brasileiro, a Polícia Civil entre outros.
As visitas seguem um calendário que não ultrapassam 30 dias de permanência,
momento que os indígenas aproveitam para dar entrada nos benefícios previdenciários, como
aposentaria por idade, salário-maternidade, auxílio-doença, pensão etc. Os técnicos do INSS
se instalam na FUNAI ou na Prefeitura.
O coordenador do Barco PAI, Raimundo Kinger de Oliveira, destacou os vários
serviços e documentos oferecidos: Cartório; Certidões de Nascimento; Carteira de Trabalho;
CPF; Carteira de Identidade; CDI – Certificado de Dispensa da Incorporação; Previdência
Social; Clínica Geral; Odontologia; Protético.
São três barcos que realizam os diversos atendimentos na região. Kinger revelou que,
de todos os serviços oferecidos, os benefícios previdenciários são os mais procurados,
especialmente, o auxílio-natalidade e aposentadoria por idade. Por conta da grande demanda,
existe a intenção de se criar um espaço próximo às comunidades para realizar esse
atendimento.
Cada barco que incorpora o serviço da Previdência tem uma agência do INSS, com
dois técnicos do órgão acompanhando a equipe. Outra agência móvel, em um barco menor,
faz os trâmites manuais e volta para Manaus, onde as informações são registradas no sistema.

Fazemos todo tipo de benefício: auxílio-doença, salário-maternidade,


aposentadoria do idoso, tudo. É um trabalho como se fosse na sede, na
capital. (Entrevista com Raimundo Kinger de Oliveira, coordenador do
Barco PAI)
Há uma programação dos itinerários, mas o Amazonas às vezes prega surpresas à
equipe, pois a embarcação depende do movimento de subida e descida dos rios para
prosseguir viagem. Assim, a equipe faz contato por telefone com as prefeituras, para saber das
condições de aportar. Quando o barco não tem possibilidade de chegar até as comunidades
mais distantes, a Secretaria Executiva da SEAS desloca uma equipe de profissionais da
Assistência Social e Saúde e técnicos da Previdência Social.
Cada técnico do INSS faz 10 atendimentos por dia, sendo então 20 atendimentos para
uma demanda de quase 100 por dia, segundo Kinger. “São entregues por dia 20 fichas para os
atendimentos. Mas, quando tem muita gente, quarenta pessoas por dia ainda é pouco, muito
pouco”, protestou Irineu. Muitas pessoas reclamam do serviço e acham que existe burocracia
demais para dar entrada nos benefícios. Por outro lado, as normas e procedimentos para a
concessão de tais direitos previdenciários são para coibir as tentativas de fraude à instituição.
73
Em duas semanas de atendimento, Kinger informou que até aquele momento mais de
200 benefícios foram concedidos pelo Barco PAI juntamente com o Prev-Barco, esse que leva
para as áreas sete técnicos, perito e assistente social. A programação do trabalho das
embarcações é de responsabilidade do PAI, para alcançar o maior número possível de
indígenas.
Ortemar Bindá, técnico do INSS de Manaus, informou que a agência flutuante atende,
prioritariamente, aos índios que estão ao longo dos rios e não aqueles da cidade. A atitude se
justifica pelas dificuldades enfrentadas pelos índios que vivem mais próximos da fronteira,
quando eles se deslocam até as cidades da região que possuem agências da Previdência
Social:

De São Gabriel da Cachoeira, só se chega a Manaus de barco ou avião. Das


comunidades para São Gabriel da Cachoeira, só se chega de barco, no
chamado “bongo”. (Entrevista com Ortemar Bindá, técnico do INSS de
Manaus).
Tal situação é reflexo das mudanças no serviço do INSS local, iniciadas a partir de
2007. Após reivindicações de lideranças indígenas, passou a haver maior articulação entre a
FUNAI e a Previdência Social, o que “minimizou a distância entre os índios e os benefícios
previdenciários”.
Com essa articulação, formou-se uma equipe de técnicos da previdência para atuar
juntamente com os funcionários da FUNAI. “A formação não ocorreu em um curso
específico, o aprendizado se deu na prática”, explicou Ortemar. Assim como de início, o
atendimento da equipe aos índios se dá ao longo dos rios, mediante requisição justificada feita
pela comunidade indígena à Previdência.
A partir da formação da equipe mista, a atenção aos índios aldeados se intensificou.
Contudo, os chamados “índios urbanos” também reclamam de dificuldades de deslocamento à
APS em Manaus, pois a viagem de São Gabriel da Cachoeira é onerosa. Outra reclamação é
que não há uma agência do INSS nessa cidade.

4.1.5 TIRIYÓ

Na pesquisa realizada junto aos órgãos governamentais que atuam junto aos indígenas
da etnia Tiriyó no estado do Amapá, contatou-se a pouca articulação entre FUNAI e
FUNASA no que se refere ao processo de encaminhar os indígenas para solicitar auxílio-
doença e salário-maternidade. Em relação ao salário-maternidade, observou-se, a partir de
74
pesquisa na aldeia Missão Tiriyó, que o pouco conhecimento dos indígenas a respeito de seus
direitos acaba fazendo com que os mesmos não demandem à FUNAI o encaminhamento para
esse benefício, apesar do número crescente de mulheres indígenas aptas para solicitá-lo ao
INSS. Aparentemente, o corpo de funcionários da FUNAI é insuficiente para atender todas as
demandas, conforme opinião dos próprios técnicos do órgão.
Em relação à inserção dos indígenas Tiriyó nos benefícios da Previdência Social,
tentamos esclarecer qual a maior demanda apresentada à FUNAI pela população que vive na
aldeia Missão Tiriyó e por qual motivo os mesmos não têm acessado alguns benefícios a que
têm direito, como o salário-maternidade e o auxílio-doença. Por meio da pesquisa realizada
junto aos indígenas dessa aldeia evidenciamos que geralmente os mesmos têm acesso à
aposentadoria por idade e dificilmente ao salário-maternidade. A partir desse dado preliminar
questionamos Afonso Rodrigues, chefe do Serviço de Monitoramento Territorial – SMT da
FUNAI/Macapá se não existe outro tipo de aposentadoria, nem benefício, e por que o órgão
não encaminha para outros benefícios. O diálogo, com a resposta dessas questões diz:

No caso do auxílio-doença, é a FUNASA já, porque eles têm que ter uma
consulta médica, passar pela perícia para ter esse benefício. Aí, no caso,
aposentadoria por idade, a FUNAI faz todo encaminhamento. Tira a
documentação, encaminha para o INSS para fazer a aposentadoria. Mas na
questão do auxílio-doença, tem que ser pela saúde porque nós não sabemos a
deficiência que a pessoa tem, não é? Tem que passar pela perícia médica.
[E a questão do salário-maternidade, por exemplo? Benefícios assim eles
não recebem?]
Não recebem.
[Mas é uma questão do INSS? O que seria no caso? Eles não se interessam?]
... teria que ter um acompanhamento, mas acontece que não tem. No ano de
2009 nós tivemos um só. Um salário-maternidade.
[Mas como foi para conseguir esse outro (salário-maternidade)?
Ela veio aqui na FUNAI. Teve neném aqui na casa de Saúde e aí o nosso
funcionário deu encaminhamento. (Entrevista com Afonso Rodrigues, chefe
do SMT da FUNAI/Macapá)
No caso da aposentadoria por idade, questionamos o servidor da FUNAI/Macapá
acerca de quais procedimentos a FUNAI utiliza para que os indígenas acessem esse benefício,
pois, geralmente os próprios indígenas não sabem a sua idade. A pesquisa na aldeia Missão
Tiriyó evidenciou que a maioria dos idosos aptos a se aposentarem já recebe esse benefício do
INSS.

75
Sobre o trabalho da FUNAI para que os indígenas tenham acesso à aposentadoria,
esclareceu:

Nós temos um censo populacional por família, não é? Aí sempre quando


chega assim esse período em que eles se aproximam, eles querem saber
quantos anos faltam para se aposentar e ficam naquela expectativa. Aí eles
passam por meio de rádio: “E aí? Fulano já pode ir para Macapá para se
aposentar?”, então a gente verifica: “Não, ainda falta um ano” ou “Esse já
está com data!”. Pode vir. Aí eles vêm. Têm muitos que já têm a
documentação aqui. É rápido. Agora, quando não tem, precisa tirar
identidade, CPF, carteira de trabalho... Aí demora uma semana, quinze
dias... (Entrevista com Afonso Rodrigues, chefe do SMT da
FUNAI/Macapá).
Em relação ao pouco acesso dos Tiriyó aos benefícios de auxílio-doença e
aposentadoria por invalidez, a FUNAI/Macapá observa que apesar de sempre existir alguma
demanda a falta de recursos humanos na FUNAI e na FUNASA de Macapá compromete o
encaminhamento para esse tipo de benefício. Reconhece que a FUNAI faz o que lhe cabe no
processo de organização da documentação, e, além disso, esclarece aos indígenas que alguns
benefícios, como o auxílio-doença, devem ser encaminhados pela FUNASA, que é
responsável pela saúde:

(...) o auxílio-doença não tem muito, mas tem. Muitas vezes crianças
deficientes. Não muito. (...) Agora tudo gira assim em torno da falta de
pessoal, tanto nosso como da FUNASA. Não tem assistente social no quadro
deles para ir verificar essa questão e ir aldeia por aldeia. Tem muita aldeia aí
que tem crianças e jovens com deficiência, mas que não tem o auxílio.
(...) É porque às vezes o próprio índio ele vem direto aqui na FUNAI
procurar aposentadoria. Aí ele pensa que é igual para todo mundo [ou seja,
que todos os benefícios são encaminhados pela FUNAI]. Eles vêm direto
aqui. Aí a gente informa que determinada parte tem que ser encaminhada
pela saúde. Que é dentro do quadro da saúde. Teria que o enfermeiro,
técnico de enfermagem que está lá na aldeia, encaminhar esse deficiente para
cá, para a Casa de Saúde Indígena (CASAI), e daí ele passar por consultas,
pelas perícias. Caberia aqui à FUNAI acompanhar eles na expedição da
documentação toda que vai ser necessária para que eles possam fazer esse
trabalho do auxílio-doença. (Entrevista com Afonso Rodrigues, chefe do
SMT da FUNAI/Macapá).
No tocante à atuação da Previdência Social em áreas indígenas, Afonso Rodrigues
enfatizou que o INSS participou de duas ações em 2010 na região do Oiapoque (AP), com o
objetivo de identificar indígenas aptos a se aposentarem, ou seja, não se tratou de uma ação
educativa sobre os direitos do indígena à Previdência Social. De acordo com a FUNAI, não há
registros sobre a presença do INSS na área de jurisdição do Parque do Tumucumaque para
76
prestar um serviço de educação previdenciária. Ou seja, observamos que não há uma atuação
do PEP nas áreas indígenas, sobretudo junto aos Tiriyó, que carecem de informações sobre
seus direitos previdenciários.
Em entrevista realizada com a gerente executiva do INSS/Amapá, Ana Isabel,
evidencia-se que realmente há uma atuação mais organizada do INSS junto aos indígenas que
vivem no município do Oiapoque (onde o INSS está para inaugurar uma APS) do que com os
Tiriyó, que vivem no PIT. Recentemente, foi extinta a Unidade PREVMóvel, sendo que os
serviços são assumidos por uma equipe que se desloca normalmente duas vezes ao ano.
Atualmente, tem uma unidade que é chamada de PREVCidade, que funciona no Oiapoque e
que também presta esse atendimento. Mas geralmente quando a equipe é deslocada, o
atendimento é mais eficaz, porque vão para as aldeias.
Para Ana Isabel, a limitação territorial de atuação do INSS do Amapá é um dos
motivos que explica a ausência de intervenção organizada e presencial da Previdência Social
– especialmente para prestar esclarecimentos sobre direitos previdenciários do indígena –
junto aos Tiriyó que habitam o PIT.
A falta de maior articulação entre FUNAI, INSS e indígenas Tiriyó é um fator que até
inviabiliza o acesso das mulheres Tiriyó ao salário-maternidade. Ou seja, embora o
INSS/Amapá esteja disposto a receber a solicitação de indígenas ao salário-maternidade, não
atua junto com a FUNAI para divulgação do mesmo junto aos Tiriyó porque o PIT não é sua
área de atuação direta. A FUNAI, que detém a documentação que os indígenas necessitam
para solicitarem o benefício, não esclarece às indígenas sobre os procedimentos que devem
tomar para receberem o salário-maternidade. As indígenas, por sua vez, apesar de terem
informações básicas sobre o direito ao salário-maternidade, não reivindicam a ajuda da
FUNAI para receber esse benefício. As que já conseguiram, agiram isoladamente. Não há
uma organização das lideranças para pressionar o recebimento do benefício pelas indígenas
que têm filhos.
A gerente do INSS/Amapá destacou a importância da parceria que existe entre FUNAI
e INSS para promover ações conjuntas em outras áreas indígenas, com o objetivo de receber
solicitações de benefícios. No tocante à inserção do INSS em outras iniciativas, dos governos
federal e estadual, para garantir aos indígenas o acesso à Previdência Social, ela ressaltou a
participação do órgão nas ações do projeto “Justiça Itinerante”12, que atua em comunidades

12
O projeto “Justiça Itinerante” é desenvolvido pela justiça amapaense desde 1996. Trata-se de uma iniciativa
que oportuniza o acesso à Justiça de primeiro grau, por comunidades isoladas. São jornadas periódicas que
77
isoladas do Amapá, informando que não existe o PREVBarco no Amapá. Esse dado aponta o
esforço do órgão em possibilitar às comunidades isoladas do estado o acesso à Previdência
Social, entretanto não tivemos informações sobre a realização de ações como está junto aos
Tiriyó.
Outra ação importante da Previdência Social junto a comunidades rurais e isoladas,
onde habitam trabalhadores rurais, ribeirinhos e indígenas, é a atuação do PEP. Entretanto,
percebemos mais uma vez, conforme informações da gerente executiva do INSS/Amapá, que
os Tiriyó não têm sido contemplados com as iniciativas do PEP. Isso reafirma que as barreiras
para deslocamento ao PIT têm comprometido a presença do poder público junto aos Tiriyó.
Quando questionada a respeito dos processos realizados pelo INSS após o indígena
solicitar o benefício, como por exemplo, o envio de alguma notificação do INSS ao indígena,
avisando a aceitação ou não da solicitação feita, Ana Isabel respondeu que o aviso é enviado
pelo INSS ao município onde está localizada a aldeia ou à FUNAI, isso depende do endereço
que é cadastrado no ato da solicitação. Quando a carta não chega, a FUNAI vai até a agência
solicitá-la para informar ao beneficiário. Isso confirma que nem sempre a carta é enviada à
FUNAI, o que gera mais uma demanda a essa instituição e até compromete o recebimento do
benefício recém aprovado em tempo hábil.
Sobre a forma como os funcionários do INSS se comunicam com os indígenas que
procuram atendimento na APS, a gerente executiva do INSS comentou que há limitações no
que se refere ao entendimento da língua indígena, o que exige a presença de funcionários da
FUNAI para atuarem como intérpretes.

Trechos da entrevista com Ana Isabel Rodrigues, gerente executiva do INSS/Amapá

Atuação do INSS nas comunidades indígenas isoladas


[O INSS] tinha uma unidade móvel, o PREVMóvel. Então, recentemente, foi extinta a função dessa
unidade móvel. A Unidade PREVMóvel é justamente a que atende a zona rural todinha e,
principalmente, o Oiapoque, onde se concentra o maior número de indígenas. Agora recentemente
acabou a função, mas os serviços continuam. Então o que nós fizemos: montamos uma equipe para

duram até 20h de viagem a vilas, distritos ou municípios, acessíveis por terra ou exclusivamente por água, com
uso de embarcações próprias ou alugadas. Nas edições da Justiça Itinerante são desenvolvidos diversos
trabalhos: jurisdicionais, expedição de títulos eleitorais, carteira de identidade, CPF, vacinação, consultas
médicas e odontológicas, entrega de medicamentos etc. (Fonte:
http://www.arpenbrasil.org.br/index.php?option=com_content&task=view&id=384&Itemid=96. Acesso em
01/02/2011).
78
continuar executando esse serviço. Enquanto não tiver agência funcionando lá, para facilitar, a gente
sempre desloca a equipe, normalmente duas vezes ao ano.
Atualmente tem uma unidade que é chamada de PREVCidade, que funciona lá [no Oiapoque] e que
também presta esse atendimento. Mas geralmente quando a equipe é deslocada, o atendimento é mais
eficaz, porque as equipes vão para a aldeia mesmo, muitas das vezes, ou, quando não, sempre tem
aquele contato com a FUNAI e ela traz o pessoal para a cidade do Oiapoque para ser atendido. Aqui
na capital é bem difícil o atendimento direto dos indígenas, ocorre mais quando a FUNAI traz mesmo.

Situação das mulheres indígenas Tiriyó aptas a receberem o salário-maternidade


[a gente percebeu que tem poucas pessoas acessando esse benefício (salário-maternidade, na aldeia
Missão Tiriyó)]
Mas têm muitas pessoas que têm bebê e que não receberam ainda?
[Sim...]
Foi isso o que vocês identificaram?
[Na verdade, nessa aldeia não tem ninguém que recebe salário-maternidade]
Mas será se já não recebeu, será? Porque salário-maternidade é assim, só naquele período, não é? (...)
De repente pode já ter recebido.
[É mais uma questão de conhecimento mesmo, que eles não têm tido. (...) Mas assim, avaliando as
outras instituições, como que tu verias de quem é a responsabilidade por isso não estar acontecendo?
De não estar sendo encaminhado... Porque lá, realmente elas não acessam esse benefício.]
Acho que aí a gente poderia ver com a própria FUNAI para ver realmente essa questão da divulgação
e trazer as pessoas, porque normalmente quando se desloca uma equipe, ela recepciona tudo quanto é
documento para todos os tipos de benefício. Então, de repente pode ser um caso mais isolado. Foi só
em uma aldeia? Quantas aldeias vocês visitaram?
[A gente foi na Missão Tiriyó, só que lá tem várias aldeias perto. Aí de lá ninguém teve acesso, ainda]
Onde é que fica? No Oiapoque, mesmo?
[No Tumucumaque. Porque na verdade – tem até aqui no mapa – lá já é área do Pará, mesmo.]
Ah, tá... Mas como a aposentadoria funciona por aqui, deve também os outros funcionarem... É porque
assim, normalmente, para o Pará, a gente não faz nenhum deslocamento, até porque já é fora da
nossa... A gente atende os que vêm. Por exemplo, o pessoal que mora em Afuá (AM), o pessoal que
mora em Chaves (PA), o pessoal que mora em Gurupá (PA), geralmente o acesso deles é todo aqui,
mas eles vêm até a gente. Porque assim, a gente tem o nosso limite territorial aqui do Amapá, então os
nossos deslocamentos estão por estado. Então como já é outro município, aí a FUNAI teria que trazer
essas pessoas, de repente, não sei... marcar uma ação para a gente ir atender em um ponto do Pará
mesmo... trazer as pessoas... Pode ser por isso! Porque aí fica uma distância muito grande do Pará, que
não atende. E também, como não é uma área que a gente possa emitir uma diária para um servidor se
deslocar lá para o Pará, teria que ter outra forma de fazer esse serviço aí, já que normalmente a gente
não vai deslocar um servidor para ir para um município que pertence a outro estado, uma vez que tem
gerência que é do Pará. Entendeu? Então eu acho que o problema está exatamente aí. A qual município
que eles [os Tiriyó] pertencem?

79
[Óbidos. O acesso aos benefícios da aposentadoria ocorre por aqui, não é? Consequentemente os
outros também... não?]
Mas Óbidos dificilmente a gente atende. Eu acho que deve ter uma área mais próxima. Deve ter uma
agência mais próxima de lá. (...) eu acredito que em Óbidos dificilmente a gente tenha até segurado
normal, mesmo de lá. Eu acho que deve ter... Não sei se tem agência da Previdência nessa cidadezinha
mesmo, mas deve ter alguma mais próxima que o pessoal de lá não se desloca para cá. Normalmente a
gente atende até Breves (PA), Afuá (AM), Chaves (PA), Gurupá (PA)...
[Nenhum problema de eles darem entrada aqui, não é?]
Não! Não tem problema nenhum. Ele pode dar entrada em qualquer lugar em que ele estiver. (...) Não
tem problema, pode dar entrada. (...) o problema está justamente aí. Como é um outro município,
então por isso é que não está chegando até lá, não é? As informações...
[Mas se eles [os Tiriyó] solicitarem [informações sobre seus direitos previdenciários], qual seria a ação
de vocês?]
Tanto uma ação de intervenção mesmo, para recepcionar o documento, quanto uma ação de
orientação. E normalmente, quando é para ir nessas comunidades assim, já é preferível fazer mesmo o
atendimento. Porque, já é longe, não é? Aí você vai para lá só para dar uma palestra? Às vezes o
atendimento não fica a contento. Então, pela distância, você já vai atrás dos documentos para atender.

Parceria entre FUNAI e INSS para promover ações conjuntas em áreas indígenas
(...) não tem como trabalhar desvinculado. Normalmente, a gente mantêm essa parceria. Tem o
cronograma que a gente faz e então comunica a FUNAI: “olha, tal período vai para lá”. E aí já tem
uma pessoa da FUNAI que acompanha, também, para fazer esse documento, a declaração que é
necessária, principalmente para aqueles que não falam o português claramente.
Inserção do INSS em outras iniciativas do governo federal e estadual
Aqui funciona a Justiça Itinerante que tem um barco. Então a Justiça Itinerante tem um cronograma...
(...) eles normalmente têm um cronograma de viagem que, quando eles vão, solicitam um servidor do
INSS para acompanhar. Aí a gente sempre manda um servidor para ir fazer esse serviço também,
porque aí é já uma unidade de barco que vai por toda essa área ribeirinha do estado (...) [o funcionário
do INSS vai mais com a função de] receber benefício, mesmo. De trazer a documentação... A gente
não tem como fazer o benefício lá, na hora. A gente tem toda uma estrutura, um sistema próprio que é
muito difícil de usar. Atualmente até que a gente já consegue usar em alguns pontos onde pega o sinal
da Vivo, porque a gente já tem um acesso de Rede Privada Virtual (VPN), que a gente consegue, por
meio do modem, utilizar onde pega o sinal. Então, por exemplo, no Oiapoque já tem o sinal da Vivo.
Às vezes o perito vai para lá fazer a perícia e já leva o notebook, o modem da Vivo, e já consegue
fazer todo o benefício lá. (...) Aí, normalmente nessas áreas em que não pega telefone, não pega nada,
só se recepciona o documento e vem trabalhar aqui. E aí dá um prazo para a pessoa. Ou para o próprio
representante da FUNAI para vir em determinado período para receber a resposta daquela solicitação.
Ou a carta de concessão ou a carta de indeferimento. Depende.

Atuação do Programa de Educação Previdenciária – PEP


(...) o Programa de Educação Previdenciária (...) funciona! Funciona muito bem (...) o PEP sempre faz
muitas ações, faz curso de formação de multiplicadores e disseminadores das informações
80
previdenciárias e vai mesmo nessas comunidades mais distantes. Quando o sindicato ou a associação
solicitam, também, eles sempre estão indo. A gente tem a programação própria, mas também atende a
solicitação da comunidade.
[no caso da aldeia (...) dos Tiriyó, que é bem distante, vocês têm alguma informação sobre como está
essa relação de educação previdenciária lá? Vocês já foram lá em algum momento? Inclusive nesse
processo de Justiça [Itinerante] vocês já foram alguma vez?]
Não. Nessa aldeia, não.

Relacionamento com os indígenas após a concessão do benefício


(...) automaticamente, quando você está fazendo uma concessão, aí é enviada a correspondência para o
endereço que a gente cadastra no momento da habilitação. Se a gente cadastra, vamos supor, o
endereço lá da aldeia, aí aquela correspondência vai para o correio que muitas das vezes não entrega,
não sei se eles vão atrás ou se eles não vão, depende do endereço que a gente cadastra. Se tiver, vamos
supor nesse caso aí que falei, se tivesse uma representação legal de uma pessoa da FUNAI para ficar
responsável por aquele recebimento: aí a gente coloca aquele endereço ali e aquela cartinha vai para lá.
Então, normalmente, de acordo com o endereço que a gente coloca, vai para o correio do município.
Aí o correio que se encarrega de entregar ou a pessoa, às vezes, vem ao correio. Normalmente eles não
recebem, muitas vezes eles não vão ao correio ou o próprio correio não vai atrás...
[O que mais ocorre é esse envio para a FUNAI ou é enviado só para o município?]
Normalmente vai para o município. (...) Porque assim, o que acontece: a FUNAI vem aqui e pega essa
carta, entendeu? Porque quando tem uma ação nesse contato, eles já sabem as pessoas que deram
entrada. Aí eles vêm atrás para saber a resposta. (Entrevista com Ana Isabel Rodrigues, gerente
executiva do INSS/Amapá)

Atendimento de indígenas na APS


(...) depois que o benefício já foi concedido, que não recebeu, aí eles vêm já para fazer o desbloqueio
daquele pagamento que já está no banco. Normalmente vem muito. Geralmente eles vêm para essa
ação já de solicitar o desbloqueio do pagamento. (...) São atendidos lá embaixo [na APS], no
atendimento mesmo. Se o benefício estiver suspenso, a gente solicita um requerimento. Para não
mexer no cadastro e depois vir uma auditoria: “mas por que foi feito isso?”. Quando está suspenso, a
gente solicita um requerimento, aí normalmente a FUNAI já traz, eles assinam e a gente faz a
reativação na mesma hora. Agora quando está só bloqueado o pagamento, a gente faz o desbloqueio na
hora só identificando mesmo a pessoa pelo documento de identidade para conferir. E quando está
cessado, também, a gente solicita que seja feito por escrito, mas normalmente isso aí também não tem
problema porque como a FUNAI já sabe desse procedimento, eles já trazem os documentos todos.
[E, no caso, o documento de quando está suspenso, aí eles trazem, tem que levar no banco ou...?]
Eles trazem aqui e a gente entra no sistema e faz a reativação. Aí normalmente dá o prazo de 48, 72
horas para o dinheiro estar disponível lá. (...) Só mesmo a identidade que ele leva lá no ato do
recebimento quando é a primeira vez. Quando não, também já tem o cartãozinho e é só sacar direito.
Não precisa nem a pessoa ficar na fila do atendimento do banco nem nada.

Limitações no entendimento da língua indígena pelos servidores do INSS


81
(...) na verdade a gente tem essa limitação, também. Assim como a gente não tem preparação para
lidar com o surdo-mudo, entendeu? Às vezes fica uma “zoeira” quando chega uma pessoa, porque
realmente a instituição não tem. Ainda está aos pouquinhos. Já tem algumas vagas nos concursos, a
gente já consegue, mas são pouquíssimas as pessoas que já têm essa capacitação mesmo para tratar até
com surdo-mudo. E com indígena, pior ainda. Se não tiver ali a pessoa da FUNAI do lado para estar
fazendo o caminho, fica muito difícil o atendimento. Então realmente a gente não tem essa preparação.
A gente fez o curso da língua indígena para fazer atendimento (...) ainda é muito incipiente nossa
instituição. Apesar de ser um público que está presente ali direto...

Problemas dos indígenas na relação com os benefícios previdenciários


(...) o maior problema que eu vejo, dos indígenas, é a questão do recebimento em si. Porque o que
acontece é que o INSS concede o benefício. Aí, o dinheiro vai para o banco e ele não sai da aldeia para
receber, porque há essa dificuldade de transporte (...). Então passam-se dois meses com o dinheiro
disponível. Aí ele não recebe e suspende. Quando suspende – porque esse aí é um sistema automático:
passou 60 (sessenta) dias lá e a pessoa não foi receber, o sistema automaticamente já bloqueia. É que
acontece às vezes de a pessoa morrer, “coisa e tal”, então isso aí é uma regra geral. Aí quando
suspende, a FUNAI vai e traz esse povo aqui para poder solicitar a ativação e o recebimento do
benefício. (...) Então eu acho que a grande dificuldade deles é mais no deslocamento para receber
mesmo.

Forma de pagamento dos benefícios para os indígenas


Eu ouvi ou li alguma coisa a respeito de um convênio que está sendo firmado entre a Caixa, o INSS, a
FUNAI, justamente para fazer esse pagamento. Mas aí vai funcionar assim: todo benefício que for dar
entrada – quando for indígena –, vai ser direcionado para a Caixa [Econômica]. Aí a Caixa já vai junto
com essa equipe para fazer o pagamento lá. Aí o INSS já não entra mais nessa história. O papel do
INSS vai ser direcionar o pagamento para a Caixa Econômica a partir do momento em que isso tudo
for efetivado. (...) na questão do pagamento em si a gente já não tem participação na ação.
Eu acho o seguinte: como a FUNAI já é uma espécie de tutora legal desses indígenas, eu acredito que
a própria FUNAI poderia ficar responsável em receber esse pagamento e transmitir para o indígena,
assim como são feitos com os abrigos, por exemplo. Tem o abrigo São José que tem determinado
número de pessoas lá. O responsável daquela instituição vem aqui; traz uma documentação; a gente
cadastra ele como responsável legal daquele beneficiário; aí ele mesmo vai lá e saca o pagamento
daquela pessoa que está abrigada, que tem uma responsabilidade legal. Eu acho que a FUNAI também
deveria fazer a mesma coisa: credenciava um responsável para fazer o saque do pagamento e transferir
para o indígena. Seria o meio mais prático, porque ela já tem uma responsabilidade legal, já tem uma
tutela.

Articulação entre os organismos governamentais para garantir o acesso dos indígenas aos seus
direitos previdenciários
Acho que essa articulação nunca vai deixar de existir. Sempre vai ter essa articulação, principalmente
para atender essas comunidades que ficam mais longe mesmo, que o acesso é mais difícil. Eu acho
também que o acesso mais difícil é para aquele indígena que vem pouco mesmo à cidade. Porque, vêm
uns indígenas que já são mais – como posso dizer? – “civilizados” – e nem posso utilizar esse termo –,

82
mas assim, que eles são mais ativos. Mas têm aqueles que não, que ficam mesmo lá e não saem. Já têm
uma resistência em estar se deslocando. Então sempre vai ter que ter essa articulação, senão essas
pessoas não vão ser contempladas pela Previdência.
Até mesmo com a inauguração da agência dentro do Oiapoque, que é a área que a gente mais tem
aldeias, não sei se essas pessoas virão direto para o atendimento. Daí a gente ainda vai analisar depois,
não é? Ou se ainda assim vai precisar estar deslocando uma pessoa para ir lá na aldeia para fazer o
atendimento. Não sei qual é o nível de resistência para ver esse deslocamento, se é a questão da
comunicação, se é a questão mesmo do desdobramento, eu não tenho essa leitura para dizer o que é
que impacta na resistência de ele sair de lá para vir até a Previdência. Então uma avaliação que a gente
vai fazer depois da inauguração da agência é sobre como é que vai ficar essa procura, se eles vão vir
ou se a gente vai continuar tendo que ir até eles para levar o atendimento.
Agora assim, em relação à questão da cobertura, com certeza é muito importante, não é? Não só para o
indígena, como para o trabalhador rural. A partir da Constituição que veio ampliar a Previdência
Social, porque antes tinha aquela divisão entre previdência urbana e previdência rural, e a cobertura
dessa última era muito pequena. Tanto que se a gente analisar o impacto que houve a partir do
momento que a previdência foi universalizada, foi ampliado o direito para todos, a quantidade de
benefícios rurais aumentou consideravelmente. E antes tinha aquela limitação: às vezes, o esposo
recebia e a esposa não podia receber. Tinha que ser o arrimo de família, então havia uma série de
limitações.
Apesar de que a Constituição foi de 88, mas somente em 91 foi implementado efetivamente esse
direito. E aí, até hoje ainda tem assim dificuldades. Mas as dificuldades são mais para o trabalhador
normal do que para o indígena – também nem seria correto falar em “trabalhador normal”, não é?
(sorri) / Mas é que tem que ter uma diferença para os dois. O segurado especial é só um: ele envolve o
pescador, o trabalhador rural e o indígena. Então a partir desse momento a cobertura foi para todos.
Agora essa limitação em sair é que eu acho que ainda está deixando eles à margem do sistema. De sair
da área para ir atrás, não é? Essa aí eu acho que é a maior dificuldade, porque, por exemplo, o
trabalhador rural já vai mesmo, a formação dele já lhe dá maior acesso, ou seja, ele vai ao sindicato,
ele vai à associação, enfim, ele se desdobra para conseguir o direito dele. E o indígena, não, ele fica lá
esperando. Ou a FUNAI se mobiliza, ou alguém vai, senão ele não vai atrás. Então fica naquela
limitação ali, engessado. É um negócio que talvez a rede possa explicar...
(...) Agora em relação a essa aldeia lá que está descoberta, acho que é por conta dessa localização que
não fica nem no Pará, nem no Amapá, não é? Mas acho que uma mobilização aí conjunta da FUNAI e
do INSS dá para resolver esse problema fácil, fácil.

4.1.6 SATERÉ-MAWÉ

Foram entrevistados o coordenador da CTL/FUNAI – Parintins, Pedro de Paula, e a


coordenadora substituta, Maria Nirley Caldas Silva. Pedro de Paula explicou que o processo
de reestruturação da FUNAI implementado durante o ano de 2010, transformou o cenário da
ação indigenista oficial na região do Baixo Amazonas. Na situação anterior, a Administração

83
Regional da FUNAI em Parintins abrangia um vasto território, com uma diversidade de etnias
que formava uma população indígena significativa.
A Administração Regional da FUNAI em Parintins possuía, ainda, autonomia
financeira e administrativa, que permitia a realização de despesas em nível local. Dentre essas
despesas estavam aquelas relativas a transporte e hospedagem dos Sateré-Mawé que se
deslocavam mensalmente a Parintins para o recebimento de seus benefícios, bem como
aqueles que procuravam cadastrar-se junto à agência local do INSS para obtenção desses
benefícios.
Com a reestruturação do órgão indigenista, a então Administração Regional da
FUNAI em Parintins foi reduzida à condição de uma coordenação local, perdendo assim sua
autonomia financeira e administrativa. Essa mudança teve impacto direto na ação mediadora
dessa unidade da FUNAI em relação aos direitos previdenciários e assistenciais aos Sateré-
Mawé e outros grupos indígenas até então vinculados. Como aponta Pedro de Paula,

Sim, foi desativado o financeiro aqui e inclusive a gente não tem uma [verba
para suprir] uma necessidade do índio, a questão de passagem pra quem
precisa vir da área indígena pra cá, para resolver um problema de Bolsa-
Família, por exemplo, e outra situação de Previdência Social mesmo, ele
precisa de passagem para a FUNAI pagar, mas nós não temos autonomia
para dar diretamente a passagem para o indígena. Tem que mandar o pedido
para Manaus autorizar. Ficou... assim... mais complicado! (Entrevista com
Pedro de Paula, coordenador da CTL/FUNAI – Parintins)
O Coordenador da FUNAI afirmou que, com a reestruturação da agência indigenista
oficial, a CTL/FUNAI em Parintins deixou de atender a uma diversidade de grupos indígenas
localizados em diversos municípios do Baixo Amazonas, ficando unicamente com a
assistência aos Sateré-Mawé. Como explicou a coordenadora substituta e responsável pelo
cadastramento de indígenas ao INSS:

Porque antes do decreto, da articulação, porque já foram da mesma regional,


nós trabalhávamos com os municípios de Maués, Boa Vista, Urucará,
Barreirinha, Parintins e Nhamundá, tudo aqui era regional. Com essa
mudança, foi criada essa coordenação em Nhamundá; uma em Maués, que
está extra-oficial, ela funciona de fato, só falta legalizar a situação de direito,
mas está funcionando até porque lá tem uma estrutura, tem INSS, então eles
independem de ter que vir aqui. E também é Sateré-Mawé lá. Hoje a gente
ficou atendendo essa parte de Barreirinha, que é um município menor e não
tem tanta estrutura como tem aqui em Parintins. A cidade não tem INSS, não
tem uma agência bancária e não tem outras coisas, que acaba tendo que vir
resolver aqui. E por isso “se optou” por ficar uma coordenação técnica aqui
para atender tanto essa região grande de Barreirinha como essa região de

84
Parintins mesmo. (Entrevista com Maria Nirley Caldas da Silva,
coordenadora substituta da CTL/FUNAI – Parintins).
Uma questão abordada na entrevista foi o relacionamento interinstitucional entre a
CTL/FUNAI – Parintins e outros órgãos e agências ligados à questão indígena na região,
especialmente em relação à implementação dos direitos previdenciários e assistenciais, o que
envolve as parcerias e cooperações com o INSS local.

A relação institucional é boa. Em algum momento tem um problema sim.


Questão mais assim, burocrática. O atendimento no INSS, às vezes a gente
pena com algum probleminha. Nós tivemos aqui problemas no atendimento
em decorrência da própria estrutura. Ficamos com uma demanda muito
grande aqui, porque não tínhamos coordenador aqui para assinar as
declarações. Aí foi uma demanda muito grande que a gente tá lutando... Nós
estamos atendendo mais de 10 pessoas por dia, de agendamento aqui. Até
porque a gente utiliza as segundas e terças-feiras no agendamento porque no
dia que tem vindo barco da aldeia, eles são atendidos e já “libera” de ter que
ficar uma semana aqui, porque não tem onde morar, muitas vezes não tem
nem o que comer. Aí a gente combinou assim: a gente agenda dia de
segunda ou terça. A não ser que a pessoa... “Ah eu quero, eu vou ficar, eu
me comprometo de ficar”. Aí a gente faz. Fora esses, a gente agenda. Eles
chegam domingo à noite e o barco retorna às terças-feiras, no final da tarde.
(Entrevista com Pedro de Paula, coordenador da CTL/FUNAI – Parintins).
Os agentes da CTL/FUNAI de Parintins informaram que a Prefeitura Municipal de
Barreirinha, cujo administrador e alguns vereadores pertencem à etnia Sateré-Mawé, possui
uma Secretaria de Assistência Social, que desenvolve projetos específicos junto aos Sateré-
Mawé que residem na área urbana do município. Isso ocorre em função de que existe um
contingente indígena, na sua quase totalidade Sateré-Mawé, habitando em bairros e sítios
dessa cidade.
Salomão Marialva Batista, chefe do DSEI-Parintins, explicou, de início, que é servidor
da FUNASA desde 1980 e atua junto à saúde indígena há cerca de dois anos e meio. Teceu
considerações sobre as atribuições da FUNASA, a qual atua na saúde indígena e participa de
ações voltadas à assistência básica da população brasileira. Afirmou que a FUNASA atua em
áreas de difícil acesso,

... lá aonde pouca gente vai, lá de onde poucos índios saem, é lá que nós
atuamos, é lá que nós colocamos a nossa equipe de saúde para dar a maior
assistência possível ao índio. Para que ele não morra, para que ele tenha a
melhor qualidade de saúde e de vida possível. (Entrevista com Salomão
Marialva Batista, chefe do DSEI-Parintins).

85
Nesse sentido, Salomão Batista considera que não se pode perder a referência de que a
responsabilidade da FUNASA é com a promoção da saúde, por meio de ações junto aos
grupos sociais mais isolados dos recursos públicos e privados. Para esse agente, a questão da
desnutrição está relacionada com a produção de alimentos, o que é responsabilidade de outros
ministérios, que não sejam o Ministério da Saúde – MS.
Afirmou que a FUNASA é questionada, porque apenas essa agência se encontra nas
áreas mais isoladas, nunca deixando de oferecer assistência à saúde das comunidades.

Então, veja bem, quando acontece um problema de saúde lá, a gente dá o


primeiro atendimento básico. Caso não se resolva, a gente encaminha para
uma cidade de referência, no caso, Parintins. Quando não se resolve aqui, a
gente manda para os grandes centros. Porque é uma cadeia: nós somos o
básico, o município é o médio e o Estado é a alta complexidade. Por isso o
índio não fica sem assistência de forma alguma. (Entrevista com Salomão
Marialva Batista, chefe do DSEI-Parintins).
O chefe do DSEI-Parintins declarou que, nesse contexto, de dificuldade de transporte
e de profissionais para a remoção de pacientes é que a FUNASA atua, realizando operações
de emergência em terras indígenas, com remoções aéreas que implicam em um emaranhado
de logística e em profissionais para a remoção de pacientes. Caso exigido, a FUNASA faria
remoções aéreas em aviões de Unidade de Terapia Intensiva – UTI, de Parintins ou das
próprias áreas indígenas para Manaus, que é o grande centro regional. Afirmou, ainda, que
existe um questionamento em relação à Agência Nacional de Aviação Civil – ANAC, porque
as pistas de áreas indígenas são consideradas pela ANAC como clandestinas e, portanto, não
podem ser usadas para pousos.

Mas, diante da dificuldade e da necessidade de nós removermos os índios, a


gente não deixa de usá-las para fazer a remoção. Se o caso for crítico, com
risco de morte, a gente faz aquilo que está ao nosso alcance, mesmo que
posteriormente tenhamos que responder legalmente. Nós fazemos aquilo que
é certo. Basicamente a atenção da FUNASA é essa: cuidar da atenção à
saúde indígena. (Entrevista com Salomão Marialva Batista, chefe do DSEI-
Parintins).
Questionado sobre a necessidade de uma maior articulação entre FUNAI, FUNASA e
INSS, no sentido de que os direitos previdenciários dos povos indígenas, garantidos pela
legislação brasileira, alcancem efetivamente os segmentos a que se destinam, o chefe do
DSEI-Parintins ofereceu a seguinte resposta:

Eu gostaria de registrar, em relação ao atendimento do INSS, que ele é muito


precário. Para se conseguir um benefício, eu sei que é necessário que se
cumpra um protocolo, a burocracia. Mas é complicado. Tem a questão da
86
perícia que é terrível, pois temos que ir ou em Manaus, ou em um município
vizinho daqui, Maués, que tem um médico perito lá permanente. Acrescenta-
se a demanda de passagem, de estadia, pois, às vezes, o médico não atende
no mesmo dia. Existe uma demanda de recursos financeiros em geral.
(Entrevista com Salomão Marialva Batista, chefe do DSEI-Parintins).
Mediante as informações prestadas sobre a estrutura da FUNASA na região, formada
por onze polos-base, que atendem a cento e cinco aldeias, além de três CASAIS, Salomão
Batista foi questionado sobre a abrangência da população indígena atendida pelo DSEI-
Parintins, tanto em relação às aldeias, quanto às que vivem em áreas urbanas:

Nós atendemos 100% a todos os onze mil indígenas. A única coisa que não é
100% é a qualidade do serviço e da assistência em si, não pessoal, mas de
estrutura física. Por exemplo, nós não temos postos de saúde em todas as
aldeias. O ideal seria que nós tivéssemos um posto de saúde, com
medicamentos e primeiros socorros em cada uma das aldeias. Nós contamos
com a Equipe Multidisciplinar de Saúde Indígena – EMSI, que é composta
pelo enfermeiro, técnico de enfermagem, nutricionista e odontólogo. Eles
chegam a todas as aldeias. Nem sempre todos os meses nós vamos a todas as
aldeias. Como o espaço geográfico é grande e o acesso é complicado, nós
mapeamos os locais mensalmente de forma que todos tenham assistência
todos os meses. O médico do SUS não vai para área indígena porque, como
eu falei anteriormente, na área indígena nós realizamos apenas o
atendimento básico, o emergencial. Quando surge a necessidade do médico,
o paciente vem para cidade porque mesmo que o médico se dirigisse até lá,
ele poderia diagnosticar e passar um medicamento, mas não teria o
consultório e os equipamentos adequados para fazer os exames mais
aprofundados, por exemplo.
Nós temos Distritos que têm polo-base que está localizado na cidade. Esses
possuem a estrutura física completa. No polo de Solimões é assim. Lá tem ar
condicionado, não falta energia e tem posto de vacinação. Nós, aqui, não
temos energia 24 horas, não temos posto de saúde. Só pelo fato de não ter
energia você já percebe que nenhum equipamento poderá funcionar e como
eu vou levar um médico para área sem proporcionar as adequadas condições
de trabalho? (Entrevista com Salomão Marialva Batista, chefe do DSEI-
Parintins).
Em relação à infra-estrutura e ao atendimento da FUNASA junto aos Sateré-Mawé da
Terra Indígena Andirá-Marau, onde funciona um polo-base na Aldeia Araticum Novo, o chefe
do DSEI-Parintins foi questionado sobre o funcionamento desse polo e a presença de
profissionais em área, ao que respondeu:

Não. No momento, eles (funcionários) estão de adejamento. Além disso, nós


estamos enfrentando um problema devido a uma deficiência de demanda.
Houve uma alta demanda de trabalho em Brasília e os nossos convênios
estão em uma fila de espera para serem analisados. Por conta disso, nós
87
estamos com os salários atrasados há dois meses. Portanto, além deles
estarem em adejamento, eles estão se recusando a entrar em área por conta
dessa situação. Mas está indo um técnico de enfermagem para Araticum. Em
Mirituba (aldeia) já tem um enfermeiro e na Vila Nova (aldeia) também está
indo um técnico de enfermagem para dar suporte daqui a, no máximo, dois
ou três dias. (Entrevista com Salomão Marialva Batista, chefe do DSEI-
Parintins).
Ao final da entrevista, foi solicitada ao chefe do DSEI-Parintins a disponibilização de
dados documentais (registros de nascimentos e óbitos, quadro populacional e epidemiológico
e outros) da FUNASA em relação aos Sateré-Mawé, o qual informou que o banco de dados do
DSEI-Parintins havia se perdido, mas que a assistente social poderia fornecer esses dados.

A assistente social tem os dados. Hoje, o nosso banco de dados de lá foi todo
deletado. Todo trabalho de 2009, a coleta dos dados, foi tudo deletado. No
Hospital Padre Colombo, todas as crianças que nascem já saem com o
registro. Se a mãe souber o nome completo do pai, na hora da alta, ela sai
com o registro em mãos. (Entrevista com Salomão Marialva Batista, chefe
do DSEI-Parintins).
O contato com a Agência do INSS em Parintins foi realizado com Geraldo Sinimu,
chefe de Atendimento da APS, por conta de o gerente regional estar em Manaus. Ele
considera positiva a articulação entre as instituições responsáveis pela implementação dos
direitos indígenas, especialmente FUNAI, FUNASA e INSS, na execução dos direitos
previdenciários dos Sateré-Mawé e de outros grupos indígenas na região.

Esse processo é tranquilo. Às vezes eles vêm aqui conversar com a gente,
nós também vamos lá conversar com eles. Nossa relação é muito boa, não só
com a FUNAI, mas com os sindicatos também. Sempre tem que ter um
feedback, porque quando começa com muito erro, nós temos que conseguir
consertar. Às vezes as instruções são novas e eles não compreendem, aí
temos que colocar em pauta para encontrarmos a melhor solução. (Entrevista
com Geraldo Sinimu, chefe de Atendimento da APS-Parintins).
Geraldo Sinimu foi questionado sobre a articulação da Agência local do INSS, com o
Barco PAI, instituído pelo Governo do Estado do Amazonas, para levar instrumentos de
cidadania às comunidades situadas nas calhas dos principais rios do estado. Em municípios
como Parintins, Barreirinha e até nas terras indígenas o Barco PAI realiza atendimentos,
dentre os quais se incluem serviços prestados por INSS, FUNAI e FUNASA.
Sobre as atividades realizadas no Barco PAI, relativas ao cadastramento de
beneficiários indígenas na previdência e sua relação com a Agência do INSS em Parintins,
Sinimu declarou:

88
Lá eles fazem sem agendamento, atendem a todos que se dirigem até lá.
Depois que a concessão já foi feita ou o indeferimento do benefício, eles
encaminham para a agência. Daí nós fazemos um arquivo separado, pois o
benefício foi concedido no Barco. Tem que ter um código diferente...
(Entrevista com Geraldo Sinimu, chefe de Atendimento da APS-Parintins).
Durante a permanência da equipe de pesquisa na sede da CTL da FUNAI em
Parintins, foram realizados contatos com Derli Bastos Batista e Geter Correia Cabral Filho,
ambos da etnia Sateré-Mawé. Derli Bastos Silva se apresentou como presidente do Conselho
Geral da Tribo Sateré- Mawé – CGTSM, uma organização indígena criada por jovens
lideranças Sateré-Mawé.
No breve contato mantido, uma vez que a equipe aguardava o momento de entrevistar
o Coordenador da CTL/FUNAI – Parintins, as lideranças informaram que, em Parintins, não
existe conselho de tuxauas, mas afirmaram existir uma organização de tuxauas Sateré-Mawé
no Rio Maraú, vinculada ao município de Maués.
O CGTSM forma uma associação indígena, a qual envolve várias aldeias situadas nos
municípios de Barreirinha, Parintins e Maués, na forma de um Conselho Geral. Realizam
assembléias no mês de dezembro, onde lideranças se reúnem para discutir a situação da
região. De acordo com esses representantes, cada “casa de rio” e cada município, a que
pertence a Terra Indígena, possuem suas próprias organizações.

Nós trabalhamos na área do Andirá, que pertence ao município de


Barreirinha, também no Uaipurapá, que pertence ao município de Parintins,
e a região dos Rios Marau e Urupadi, que pertence ao município de Maués;
esses são os três municípios, onde estão situados os Sateré. O Conselho
Geral da Tribo Sateré-Mawé (CGTSM) atua também nesses municípios,
além das associações locais. Ele existe há dezenove anos, criado pelo
cacique tuxaua “geral”, da aldeia de Mirituba, que já é falecido. O nome dele
mesmo era José Melquíades. De então, o Conselho foi regularizado em
1988. Naquela época, não havia nenhuma organização que representasse o
povo, então tínhamos que exigir o direito da população indígena, no que diz
à educação, saúde, de situações precárias. Um dos primeiros coordenadores
do Conselho hoje é prefeito de Barreirinha, e, nós do atual conselho,
atuamos em parceria com prefeituras. (Entrevista com Derli Bastos Batista e
Geter Correia Cabral Filho, lideranças do CGTSM).
Derli Batista e Geter Cabral informaram, ainda, que vivem em “casa de rio”, e que se
deslocam pela Terra Indígena Andirá-Maraú em lanchas, para a realização de reuniões com
lideranças e comunidades Sateré-Mawé. Afirmaram que costumam ficar instalados na Aldeia
Ponta Alegre, de onde viajam para outras aldeias a fim de ministrar oficinas e prestar

89
assessorias a projetos vinculados à Secretaria de Estado para os Povos Indígenas do
Amazonas – SEIND.

Descrição dos contatos com a comunidade indígena da Aldeia Ponta Alegre

Com a chegada à Terra Indígena Andirá-Marau, a equipe de pesquisa ficou instalada na sede
do antigo Posto Indígena da FUNAI, localizado na Aldeia Ponta Alegre, às margens do Rio Andirá.
Essa aldeia constituiu a base da permanência da equipe para a realização de levantamentos junto a
lideranças tradicionais e associativas e aos casos previdenciários entre os Sateré-Mawé.
A equipe foi recebida pelo tuxaua Eliton Barbosa da Silva e por sua esposa, a professora Rosa
Barbosa, os quais organizaram a limpeza das instalações da FUNAI e o preparo da alimentação ao
grupo de pesquisa, durante os dias de permanência na Terra Indígena Andirá-Marau. No final de tarde
e início da noite foram realizados contatos com outros líderes Sateré-Mawé presentes. Ficou definida a
realização de uma reunião de apresentação da equipe à comunidade Sateré-Mawé da Aldeia Ponta
Alegre e de outras próximas, na manhã seguinte, onde seriam explicados os objetivos da pesquisa a ser
realizada.
Nesse mesmo dia, o tuxaua Eliton Barbosa concedeu uma rápida entrevista ao coordenador da
pesquisa, informando sobre um encontro de tuxauas Sateré-Mawé programado para os próximos dias,
na Aldeia Miritiua.
Em um contato inicial, o tuxaua da Aldeia Ponta Alegre, Eliton Barbosa Silva, informou que
estava sendo articulada uma reunião geral dos tuxauas da Terra Indígena Andirá-Marau, onde seriam
tomadas algumas decisões importantes para as diferentes comunidades Sateré-Mawé. Uma das
questões refere-se às providências para a documentação e os reparos em uma embarcação doada pelo
Governo do Estado do Amazonas aos Sateré-Mawé, a fim de facilitar seus contatos com os centros
urbanos, como Barreirinha e Parintins.
Outros temas que seriam tratados nessa reunião de tuxauas, que ocorreria na Aldeia Miritiua,
local de moradia do tuxaua-geral dos Sateré-Mawé seriam a questão da “sub-administração da
FUNAI” (provável referência à CTL de Parintins, recentemente criada pela reformulação
administrativa do órgão indigenista) e sobre mudanças na administração do CGTSM. Nessa reunião
haveria a prestação de contas da atual gestão e a posse da nova diretoria.
O tuxaua Eliton Barbosa explicou que o CGTSM é formado pelos tuxauas de cada aldeia
(atualmente são 48 tuxauas) localizadas na Terra Indígena Andirá-Marau, os quais constituem
lideranças tradicionais que representam as comunidades localizadas ao longo do rio Andirá. As
comunidades Sateré-Mawé localizadas na calha do rio Marau formam outro conselho de tuxauas.
Apesar de formado por lideranças tradicionais, o CGTSM organiza-se de forma associativa,
com a eleição de uma diretoria composta por presidente e demais cargos. De acordo com a explicação
apresentada, o tuxaua-geral seria precisamente o presidente do CGTSM. tuxaua Eliton explicou, ainda,
que as reuniões desse Conselho ocorrem a cada dois anos, quando se dá a prestação de contas da
diretoria em exercício e a eleição da nova diretoria.
Diante da proximidade da próxima reunião do CGTSM, o tuxaua Eliton informou que
apresentaria nesse encontro, informes sobre a reunião entre a equipe de pesquisadores da Solar

90
Consultoria e os Sateré-Mawé, que ocorrerá no dia seguinte, bem como dos objetivos e resultados do
trabalho realizado.
Na manhã do dia 21 de outubro, ocorreu a reunião na sede da Escola Indígena da Aldeia Ponta
Alegre, onde tivemos a oportunidade de nos apresentar formalmente aos Sateré-Mawé, e explicar os
objetivos da pesquisa. A reunião foi bastante produtiva, com a participação ativa dos presentes, os
quais demonstraram grande interesse no trabalho a ser realizado. Após a explicação sobre os objetivos
da pesquisa e a manifestação de alguns Sateré-Mawé, foram criados três grupos de trabalho, para a
realização de levantamentos de casos previdenciários.
A reunião de apresentação foi aberta pelo técnico da FUNAI, da CTL-Parintins, Artur
Oliveira, da etnia Sateré-Mawé, que acompanhava a equipe de pesquisadores, o qual teceu as seguintes
considerações:
Eu queria dizer pra vocês, que nós estamos acompanhando a equipe da
consultoria do INSS composta pela dona Laura, Carlos, Adalberto e Paulo.
Então essa equipe está presente aqui na nossa comunidade. Na verdade,
quem ia acompanhar essa missão era a nossa colega dona Nirley, da FUNAI,
mas como nós temos muito serviço na administração, ou seja, na
coordenação aí a dona Nazaré, a dona Isabel tá ausente, então ela tinha que
ficar lá e eu vim acompanhar essa missão pra... A princípio a equipe quer
visitar a comunidade de Ponta Alegre, que é aqui, Araticum e Castanhal.
Então agora vamos ouvir qual é realmente o objetivo da vinda dessa equipe
pra nossa comunidade e é também, acho que, oportunidade de nós também
fazer perguntas, tirar dúvidas, né sobre... acho que o trabalho do INSS na
nossa comunidade, tá certo gente. Então nos colocamos a disposição da
equipe da consultoria pra que eles possam se pronunciar e explicar
corretamente o objetivo da vinda dessa equipe na nossa comunidade.
A seguir falou o coordenador da pesquisa, o antropólogo Adalberto Rizzo, o qual se
apresentou e aos demais membros da equipe de pesquisa e falou sobre os objetivos dos levantamentos
que seriam realizados nesses próximos dias:
Bom dia a todos, queria dizer que é uma satisfação, uma alegria muito
grande pra gente estarmos aqui com vocês hoje, realizando um trabalho que
eu vou explicar aqui e que certamente a médio ou longo prazo, senão agora,
mais na frente deve resultar em alguma melhoria, digamos assim na
qualidade dos serviços do Estado, do INSS a vocês.
(...) Nós estamos percorrendo vários estados do Brasil, várias aldeias, várias
comunidades indígenas. Já estivemos no interior do Maranhão com os
Canela e os Guajajara; já estivemos em São Gabriel da Cachoeira, aqui no
Amazonas, com os Baniwa; já estivemos na Paraíba com os Potiguara; já
estivemos também no Amapá com os Tiriyó; e agora estamos aqui com
vocês, é a nossa última visita a comunidades. Vocês podem se perguntar
“ah, mas porque a gente?”. Porque foi escolhida essa terra, com tantos povos
indígenas aí pelo Brasil, pelo Norte, porque vocês? É porque esse trabalho,
essa pesquisa, ela se faz a partir de certas situações, que foram já, digamos
assim, percebidas pelo próprio Ministério da Previdência Social.

91
(...) Por que, qual é a razão do nosso trabalho? O Ministério da Previdência
percebe: primeiro, que os índios têm direitos, os mesmos direitos de
cidadania que têm os demais brasileiros, certo? Então os brasileiros têm
direito a aposentadoria por idade, aposentadoria por invalidez, salário-
maternidade, auxílio-doença e outros auxílios, os direitos do cidadão
brasileiro e dos cidadãos indígenas. Só que o Ministério sabe que existem
problemas, ou seja, muitas vezes aquilo que é direito, acaba não
acontecendo.
(...) Então o Governo Federal sabe que existem esses problemas, por isso ele
contratou esse trabalho. Então o que nós estamos fazendo é exatamente
passando nessas aldeias, nessas comunidades pra identificar, pra conversar
com vocês e para identificar esses problemas. Pra fazer o que, no final disso
tudo? Nós vamos fazer um grande relatório, um diagnóstico como se chama,
e entregar para o Ministério da Previdência Social.
(...) Então é por essas razões que nós estamos aqui, pra conversar com vocês,
pra conversar com lideranças tradicionais, com os tuxauas, pra conversar
com lideranças de associações, de organizações, de professores, com
técnicos e com as pessoas também, com os aposentados, com aposentados
que já foram contemplados e já recebem a aposentadoria por idade, com os
aposentados que não recebem e quer saber por que é que não recebem, com
pessoas que teriam direito a aposentadoria por invalidez e que recebem essa
aposentadoria e também com aqueles que não recebem e o mesmo com as
mulheres que têm direito a salário-maternidade tem algumas que recebem e
outras que não recebem.
(...) Então, eu agradeço muito o fato de estar aqui, a recepção de vocês, a boa
vontade de vocês e nós precisamos muito da colaboração de vocês, dos
tuxauas, dos representantes das associações, dos professores, se tiverem
outros agentes, agentes de saúde, das mães que tiveram filhos, dos idosos
que se aposentaram, daqueles que precisam se aposentar, das pessoas que
têm direito a um auxílio e não tiveram ou que tiveram e que possam
conversar com a gente. Mas, não pensem que nós aqui vamos resolver, nós
não somos funcionários do INSS, nós estamos coletando essas informações
para que o governo lá na frente possa fazer o que é preciso fazer, tá bom?
Então, muito obrigado.
Após o coordenador, os membros da equipe de pesquisa fizeram sua apresentação e colocaram
suas expectativas em relação aos levantamentos junto aos Sateré-Mawé. Durante a reunião, que contou
com a presença de líderes e moradores de diversas aldeias, especialmente as mais próximas, foi
proposto aos Sateré-Mawé presentes que fizessem perguntas e questionamentos que achassem
convenientes em relação ao trabalho de pesquisa que seria realizado. Assim, um Sateré-Mawé fez o
seguinte questionamento:
Professor, eu gostaria de fazer uma pergunta. É o seguinte, nós temos aqui
um problema, é o seguinte: tem umas indígenas, por exemplo, casadas com
pessoa que não é índio, mora lá na comunidade lá pra baixo. Quando ela
quer fazer benefício aí ela vai no sindicato e o sindicato manda pra cá,
quando chega no INSS nada resolvido, eu não sei qual é o problema. Por

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exemplo, vai no sindicato direto de Parintins, chega em Parintins, vai no
INSS e dá problema de novo...
Foi colocada aos presentes, a situação dos “segurados especiais”, aqueles que vivem da
atividade rural e a não existência, nos parâmetros legais do INSS, de uma classificação específica para
comunidades indígenas. Foi explicado que, na categoria “segurados especiais”, estão envolvidos
trabalhadores rurais, pescadores, ribeirinhos, seringueiros, comunidades extrativistas em geral e
indígenas, ou seja, aquelas pessoas que não têm um registro de carteira profissional, que não são
contribuintes formais, mas que vivem de atividades consideradas rurais e contribuem com a produção
de alimentos e outros itens relevantes ao País.
A seguir, uma mulher Sateré-Mawé realizou um questionamento associado às dificuldades de
transportes dos Sateré-Mawé até Parintins, sugerindo que seja criada uma agência ou posto do INSS
na cidade de Barreirinha, mais próxima às aldeias dessa etnia:
Só um caso de informação, eu acabei de ouvir sobre a questão do INSS na
sede do município. Nós indígenas aqui, temos muita dificuldade muitas
vezes em se deslocar até Parintins, eu acredito que seria muito bom até um
posto do INSS pra atender principalmente nós indígenas, inclusive hoje eu
tenho muita dificuldade de levar minha mãe que tem 89 anos, ela tá bem
idosa. A situação que nós „tamos enfrentando com essa seca, então tá se
tornando muito difícil nos deslocarmos pra Parintins com muita dificuldade
e também pense na questão, que a maioria daqui são aposentados lá em
Parintins. Se tivesse um posto que atendesse aqui em Barreirinha e talvez a
renda que a gente adquire, porque todas as coisas que nós fazemos temos
que nos deslocar até Parintins. Eu já ouvi falar que o próprio prefeito queria
muito que todos os indígenas daqui fossem transferidos para Barreirinha.
Antes mesmo que pudesse ser dada alguma resposta mais abrangente, outra mulher Sateré-
Mawé realizou uma colocação, em relação às dificuldades relacionadas à perícia médica, no âmbito do
INSS em Parintins, o que obriga, muitas vezes, os Sateré-Mawé a procurarem o encaminhamento dos
direitos previdenciários na cidade de Maués:
Eu queria dar só uma palavrinha sobre a agência de Parintins. Uma das
maiores dificuldades que nós, indígenas, enfrentamos é quanto ao médico de
perícia em Parintins. Atualmente o INSS não tem esse médico em Parintins.
Eu tenho um irmão que há quatro anos ele é deficiente visual e esse ano que
ele conseguiu a aposentadoria dele, mas lá município de Maués, que é onde
o médico vem com mais facilidade. Então nós pertencemos a Barreirinha,
vamos para Parintins, vamos pra Maués, nós aqui de Ponta Alegre, imagina
nossos irmãos lá do alto. A situação geográfica é muito difícil, Parintins tem
uma agência, deveria também ter um médico de perícia lá. O médico em
Parintins é difícil e, quando vem, tem muita gente.
Diante desses questionamentos, foi colocado aos presentes que a equipe de pesquisa havia
mantido contato com um representante do INSS em Parintins, o qual argumentara que a dificuldade
para a realização da perícia médica não ocorreria apenas em relação aos índios, pois o INSS de
Parintins não tem médico-perito. Segundo o agente do INSS, estariam sendo contratados dois médicos
que, a partir de um ou dois meses, estariam atendendo na Agência de Parintins.

93
Foi informado, também, que a equipe de pesquisa havia mantido contatos com o prefeito de
Barreirinha e com um vereador, ambos Sateré-Mawé, os quais manifestaram a necessidade de criação
de uma agência do INSS em Barreirinha, a fim de facilitar o cadastramento e o recebimento de
benefícios da previdência pelos indígenas.
Na fala das mulheres Sateré-Mawé, foi destacada a questão do consumo relacionado a esses
benefícios, como a compra de alimentos e outros materiais, que poderiam ser realizados
exclusivamente no município de Barreirinha, aumentando a renda desse município
Ao final da reunião, ficou decidido que as entrevistas de casos previdenciários seriam
realizadas, inicialmente, na sede da própria Escola, com os pesquisadores distribuídos em três salas de
aula e os Sateré-Mawé presentes deslocando-se a essas salas para explanar sobre as respectivas
experiências na obtenção dos direitos previdenciários. A equipe também realizaria levantamento nas
casas da Aldeia Ponta Alegre, Castanhal, Araticum Novo e outras, dentro do período de sua
permanência na Terra Indígena Andirá-Marau.

4.2 ACHADOS RELATIVOS AO ACESSO À DOCUMENTAÇÃO EXIGIDA

Alguns agentes públicos declaram que o “indígena” é a melhor condição para


concessão do benefício previdenciário porque a própria legislação já é muito favorável a eles.
Normalmente, o que se exige é a declaração da FUNAI, que se responsabiliza ali pelas
informações. Do índio, normalmente são solicitados os documentos pessoais, a comprovação
de casamento, ou no caso de uma pensão, a comprovação de que ele realmente era casado,
que tinha aqueles filhos etc. Os casos “problemáticos” e os não efetivados estão relacionados
a divergências nos documentos, como a data de nascimento ou com a variação da condição
enquanto indígena, como no caso dos Potiguara.
A documentação principal dos indígenas é emitida pela FUNAI, seja para assegurar a
condição indígena (certidão de nascimento, carteira de identidade), ou para demonstrar o
vínculo com a atividade agrícola, que é requisito essencial para a obtenção dos benefícios
como “segurado especial”. Para emitir a declaração de atividade rural é necessário ter o
registro administrativo e, em geral, a FUNAI vai pesquisar para evitar fraudes. No caso de
São Gabriel da Cachoeira/AM, a FUNAI também pode emitir certidão para índios que
trabalham em casas de família, reconhecendo-os na categoria “trabalhador rural”. Em alguns
casos, a moradia do índio na Terra Indígena é questionada pela FUNAI no critério de
atendimento e emissão de documentação que atestem a identidade indígena.
Vários documentos, no entanto, dependem de declarações emitidas pela FUNASA, por
meio dos Polos-Base, a exemplo da DNV e da perícia médica, que são essenciais para a
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obtenção dos benefícios de salário-maternidade e auxílio-doença, respectivamente. Os
indígenas que possuem algum tipo de deficiência e as mulheres aptas ao salário-maternidade
são bastante afetados quando as estruturas da FUNASA não estão adequadamente aparelhadas
para a emissão daqueles documentos. No caso das indígenas Tiriyó, geralmente as mães não
possuem toda a sua documentação. A FUNASA também emite documentos atestando óbitos
de índios, que são a base para a obtenção do benefício previdenciário de “pensão por morte”.
O encaminhamento dos indígenas para os órgãos previdenciários esbarra na ausência ou na
incorreção dos documentos básicos e complementares.
Em algumas das áreas visitadas pelas equipes de pesquisa constatou-se que a FUNAI
cumpre um papel estratégico tanto na emissão quanto na organização e na guarda dos
documentos dos indígenas, o que agiliza a entrada nos benefícios. Nos casos da Paraíba, do
Amapá e de Parintins/AM a FUNAI se encarrega de realizar os agendamentos para
atendimento dos indígenas no INSS.
Outras estruturas, como o PREV-Barco, o Barco PAI, o Balcão da Cidadania e o
PREVMóvel, são exemplos de iniciativas que aproximam os serviços previdenciários e
assistenciais das comunidades mais distantes, o que é fundamental para garantir o acesso aos
benefícios.
A menor incidência de pedidos de aposentadoria por idade decorre da dificuldade dos
indígenas em comprovar a idade que afirmam ter, a qual geralmente diverge daquela que
consta nos registros civis, como no caso dos Canela em que os documentos que atestam a
idade de vários índios foram incorretamente preenchidos.
O desconhecimento por parte dos indígenas acerca da necessidade de alguns
documentos para o acesso aos benefícios gera situações “irregulares” como o desinteresse
pelo “casamento civil”, o que pode afetar a entrada no pedido de pensão.
Identificaram-se casos de intermediários para a aquisição da documentação básica,
além de situações de natureza política em que caciques se recusam a emitir a declaração de
indígena ou exigem “propina” (caso dos Potiguara).
Os indígenas que já são integrados têm uma barreira, porque não são mais
considerados indígenas para terem direito ao benefício como segurado especial. Essa questão
remete à afirmação ou não da condição indígena, envolvendo a contradição entre trabalho
rural e atividades urbanas e entre segurado especial e contribuinte para a Previdência (casos
dos Potiguara, dos Canela, dos Tenetehara e dos Baniwa). Constatou-se que em algumas
dessas situações a FUNAI se recusa a fornecer a declaração de atividade rural, sob a

95
justificativa de que os índios moram ou trabalham na cidade. Uma explicação para essa
atitude é o fato de que, se o índio trabalha na cidade, não pode ser fornecida a ele a declaração
de atividade rural. Entretanto, nada impede que o índio more na cidade e trabalhe na zona
rural.

4.2.1 APANIEKRÁ E RAMKOKAMEKRA-CANELA

Nos contatos mantidos junto a representantes dos Apaniekrá e Ramkokamekra-Canela


em Barra do Corda foram identificadas dificuldades dos membros desses grupos à
implementação dos seus direitos previdenciários. Nos levantamentos realizados
posteriormente na Aldeia Escalvado (Terra Indígena Canela) e na Aldeia Porquinhos (Terra
Indígena Porquinhos) essa perspectiva se confirmou em relação aos diferentes direitos
previdenciários, tanto no cadastramento junto ao INSS, quanto no recebimento dos benefícios.
O coordenador da CTL/FUNAI Canela, Fernando Pedrosa, apontou que as
dificuldades no cadastramento dos Canela junto ao órgão previdenciário constitui um sério
obstáculo ao acesso aos benefícios, uma vez que inexiste um atendimento específico às
populações indígenas, por parte da agência local do INSS.
Isso significa que os Canela, como os Tenetehara (Guajajara) e outros grupos
indígenas situados no município de Barra do Corda – fato comum a outras etnias indígenas no
Brasil – são submetidos ao mesmo processo de atendimento que os demais segmentos da
população local, contrariando o princípio de respeito aos direitos específicos reconhecido aos
povos indígenas e da necessidade de tratamento diferenciado pelo poder público, em vista das
diferenças étnicas e culturais desses povos em relação à sociedade brasileira.
Como resposta a essa necessidade, o agente defende o estabelecimento de formas de
atendimento específicas aos Canela e a outros grupos indígenas pelo INSS, como a realização
do cadastramento dos possíveis beneficiários nas próprias aldeias e o estabelecimento de
caixas eletrônicos na sede da Coordenação Local da FUNAI destinado exclusivamente aos
beneficiários indígenas.
O coordenador da CTL/FUNAI Canela declarou que a instituição responsabiliza-se
pela emissão do registro administrativo (certidão de nascimento) dos Apaniekrá e
Ramkokamekra-Canela que pleiteiam benefícios da Previdência, o qual é utilizado para a
elaboração do registro civil. Informa que a atividade rural dos indígenas, condição para a

96
obtenção de benefícios junto à Previdência, também é atestada por declaração emitida pela
FUNAI.
Reconhece que a idade dos índios mais velhos que consta nos documentos é “idade
aproximada”, em função dos problemas no registro realizados pela FUNAI, nas últimas
décadas. E afirma que os indígenas-funcionários da FUNAI são aposentados segundo as
normas regulares do cidadão não indígena.
Maria Francisca (SAI/CTL-Canela) considera que entre os Canela ocorre maior
volume de solicitação de auxílio-doença e salário-maternidade, em relação a outros
benefícios. A menor incidência de pedidos de aposentadoria por idade decorre da dificuldade
dos Canela em comprovar a idade que afirmam ter, a qual geralmente diverge daquela que
consta nos registros civis.
Em 1987 teria ocorrido um levantamento para prover todos os Canela com os registros
civis (certidão de nascimento), porém naquele momento o Chefe de Posto não se encontrava
na aldeia. Esse fato teria ocasionado o registro com os nomes incompletos de parte dos
indígenas, ou registros feitos a partir de seus apelidos e não de nomes por eles reconhecidos.
A maior dificuldade na obtenção de benefícios previdenciários entre os Canela,
segundo a agente, refere-se aos casos de “pensão por morte”, quando ocorre a perda do prazo
de cadastramento (até 3 meses após o óbito). Além disso, há casos em que as certidões de
óbito demoram a ser entregues à FUNAI para ser dada baixa, em razão do receio dos Canela
em perder outros benefícios. A servidora afirmou ter conhecimento de que o salário-
maternidade só pode ser concedido se a mãe tiver mais de 16 anos de idade.
De acordo com a servidora, o acompanhamento da implantação dos direitos
previdenciários pela CTL-FUNAI é realizado até o momento em que o INSS dá seu
posicionamento, favorável ou desfavorável ao pedido do benefício. “Quando o pedido é
indeferido, já tem gente esperando para agilizar o processo por outros meios”. A instituição
do “patrão”, mesmo ilegal, é percebida como normal, já que é uma prática rotineira. “Há
casos de esses agenciadores virem até a FUNAI pedir documentos dos índios”.
A servidora aponta, ainda, que “não há muitos casos de casamento civil”, pois os
índios entendem que esse documento não é imperativo para dar entrada no pedido de pensão.
Para essa demanda, a união marital pode ser comprovada com três documentos de outra
ordem, como a declaração da FUNAI, o registro civil dos filhos e a certidão de Bolsa-Família.
Também na esfera da FUNASA, os agentes que trabalham diretamente na assistência à
saúde dos grupos Canela elaboram sua visão sobre a relação entre esses grupos e a

97
Previdência Social. Entrevistas realizadas com a enfermeira-chefe do Polo Canela-
Ramkokamekra, Ronayra Carvalho e a técnica em enfermagem Sidene, apontaram como
principal problema enfrentado na questão documental, o fato de que os documentos dos índios
ficam nas mãos do “patrão”. Na visão dessas agentes, a função do Polo seria emitir o
certificado de nascido vivo, porém não há controle sobre o que é feito com os documentos.
As agentes observaram que o atendimento do Polo-Base se dá exclusivamente no
campo da saúde. O envolvimento nas questões previdenciárias ocorre apenas em relação ao
salário-maternidade (declaração de nascido vivo) e ao auxílio-doença (encaminhamento ao
médico perito), não ocorrendo nenhum contato direto entre o Polo e o INSS. Conforme as
profissionais, há uma distância significativa entre o Polo e a realidade das aldeias:

A intermediação legal se dá por meio de uma funcionária da FUNAI e


informal por um índio Canela. (Entrevista com técnicas do Polo-base da
FUNASA em Barra do Corda).
No Polo Canela Porquinhos, foi realizada entrevista informal com a enfermeira Elze
Jane Alves de Carvalho, que prestou algumas informações. Em relação à emissão de
documentos de nascimento pela FUNASA, documento inicial para que os indígenas possam
pleitear o benefício do salário-maternidade, informou que a declaração de nascido vivo ou
morto é emitida na aldeia, raramente se faz na cidade. Informou, ainda, que o atestado médico
(perícia) é emitido ou não pelo médico do município, não havendo atendimento específico aos
indígenas.
Sobre o processo de encaminhamento de documentos à previdência, informou que ele
é realizado por um funcionário da FUNAI, que acompanha o potencial beneficiário à agência
do INSS. Segundo a agente, a FUNASA não tem essa responsabilidade. Segundo elas, os
índios querem ter um atestado de qualquer forma, na ilusão de que, ao ter o atestado em mãos,
já teriam direito ao benefício.
O líder tradicional e professor da Escola da Aldeia Escalvado, Cornélio Piapit também
considera que os documentos que atestam a idade de vários Canela foram incorretamente
preenchidos. Citou casos em que cônjuges são registrados com a mesma idade, mas que na
realidade isso não é correto. Atribui essa situação ao fato de que “quando o SPI (Serviço de
Proteção ao Índio) foi fazer os registros, todos os índios foram colocados com a mesma data
de nascimento”. Citou o exemplo de um Canela que. tendo nascido em 1932, comprovado
pela categoria ocupada por ele nas classes de idade, teve o registro de seu nascimento datado
de 1967.

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Txatú Canela, líder tradicional e associativo dos Canela, considera que o registro
administrativo da FUNAI é feito pelos dados fornecidos pela enfermeira. Segundo ele, “o
setor de Assistência Social da FUNAI acompanha os índios até o cartório para tirar os outros
documentos”.
Nos levantamentos realizados junto a agentes indígenas de saúde (FUNASA) que
atuam no Posto de Saúde da Aldeia Escalvado, foi obtida a informação de que a unidade local
da FUNASA tem como única responsabilidade encaminhar para o Polo-Base em Barra do
Corda os documentos atestando nascimentos e óbitos de índios.
Outro líder tradicional Canela e professor da escola indígena, Raimundinho Beato,
fazendo referência às defasagens de um cadastramento realizado há mais de uma década nas
terras indígenas Canela, afirmou: “o índio de 80 anos não se aposenta porque o registro diz
que tem 30”. Atribuindo aos próprios Canela a responsabilidade pelo registro equivocado
realizado por agentes externos ao órgão indigenista, Beato considerou que “muitos índios não
deram valor no período (do levantamento) ao registro, porque achavam que não servia para
nada aquele pedaço de papel, alguns usaram para fazer cigarro”.
Um professor indígena da Escola da Aldeia Escalvado, Jaldo Canoy, considera que os
erros nos registros civis de grande parte dos Canela decorrem do método de levantamento do
nascimento das pessoas da comunidade. Afirmou que os anciãos escolhidos para o
levantamento não se preocupavam em consultar os documentos. Sobre as dificuldades dos
Canela em ter seus direitos previdenciários implementados, considerou que

é difícil porque não tem uma pessoa da previdência para informar os índios
(...) para ter o benefício, o índio vai por conta própria (...) precisa ter um
índio contratado para ser representante no INSS (...) o funcionário do INSS
impede a entrada do índio, diz que o índio só atrapalha, é melhor que tenha
um dia específico de atendimento dos índios. (Entrevista com Jaldo Canoy,
professor indígena Canela).
As informações obtidas em conversas com Giraldin Awkê Canela apontam que em
1963, ano em que ocorreu um movimento sociorreligioso entre os Canela, esse já tinha
aproximadamente 14 anos. Awkê acredita que haja erro em seu registro civil, elaborado
depois de 1972, e considera necessário corrigir os registros feitos de forma arbitrária na
década de 1970, pois “os velhos já estão doentes, fracos, não podem trabalhar”, o que faz com
que não sejam desejados para serem mantenedores das festas e rituais, pois não poderão
prover a mesma.
Em relação às aposentadorias por idade entre os Apaniekrá, Paulo Tukrã afirmou que
muitos idosos procuram se cadastrar para o recebimento do benefício, mas um levantamento
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etário realizado por agentes de cartório enviados pela FUNAI, há mais de uma década, teria
levado à emissão de certidões de nascimento com idades erradas, o que faz com que vários
indígenas não possam obter aposentadoria.
Citou o caso do pai de sua esposa que, apesar da idade avançada e de ter problemas de
coluna, não pode obter o benefício da aposentadoria; e do índio Valdemar, que havia falecido
há 15 dias. Valdemar teria idade para aposentadoria e tentado obter aposentadoria em Barra
do Corda junto à FUNAI e ao INSS, sem sucesso, ficando sua família sem sustento nas roças.
Para Txukrá, a única forma dos Apaniekrá obterem aposentadoria por idade, seria por meio de
advogados, que providenciariam um novo registro de nascimento, enquanto a FUNAI se
negaria a fazer tal procedimento.
Os erros cometidos nos cartórios de Barra do Corda e outros municípios, em relação
aos nomes indígenas foram comentados por João Hohô, que apontou o erro que ocorreu com
o próprio, que teve seu nome registrado em cartório de forma incompleta (de João Hohô
Chatuk Canela, para João Chatik Canela). Ao observar os registros civis de João Hohô
(nascimento em 1980) e de sua irmã Madalena Saprodenôr Canela (nascimento em 1983)
percebe-se que ambos datam a sua confecção em 05/10/1987 e constam como testemunhas
Newton Ribeiro Iarit e Francisco Perna Thoi.

Casos Previdenciários

NELCINA CANELA – SALÁRIO-MATERNIDADE (EFETIVADO)


Janari Canela e Nelcina Canela comentaram sobre as providências tomadas para a obtenção
de salário-maternidade por Nelcina Canela, quando ela deu à luz um natimorto, aos 8 meses de
gestação. A beneficiária teve que providenciar certidão administrativa junto à FUNAI, para depois
obter a certidão civil em cartório de Barra do Corda. A funcionária responsável pelo SAI na CTL-
Canela teria acompanhado a paciente na entrega de documentação à agência local do INSS.
Concretizado o direito ao salário-maternidade, a beneficiária teria passado a receber na forma de
ordem de pagamento emitida pela agência local do INSS, com data determinada para o recebimento
junto ao banco conveniado.

MANOEL PIFANE – APOSENTADORIA POR IDADE (NÃO EFETIVADA)


Manoel Pifane afirma que em seu registro civil realizado pelo Cartório de Barra do Corda sua
idade é diferente daquela que tem na realidade. Segundo disse, quando foram realizados os registros de
nascimento na Aldeia Porquinhos, diversos índios que não estavam presentes foram registrados com
idades aproximadas. Essa documentação só passou a ser considerada importante pelos Apaniekrá
quando se tornou essencial para potencializar benefícios previdenciários e assistenciais, o que não
ocorria no período desses registros, ocorridos décadas atrás.

100
4.2.2 TENETEHARA-GUAJAJARA

Urupaiti Ambururé, cacique da Aldeia Uruaçu, Terra Indígena Canabrava. Urupaiti é


Ticuna por nascimento, mas foi criado entre os Guajajara, absorvendo seus costumes e
cultura. Casou-se com uma não índia de Barra do Corda, teve nove filhos e, atualmente, tem
oito netos. O grupo familiar tem como renda, dois salários-mínimos e cinco bolsas-família.
Juntamente com sua esposa, Urupaiti descreveu todos os processos de solicitação,
pelos quais deram entrada no Bolsa-Família e salário-maternidade. Apontaram, como ocorreu
com outros índios casados com mulheres não índias, as dificuldades para solicitação e
obtenção de tais benefícios. Segundo disse Urupaiti, nem suas filhas nem sua esposa
obtiveram os benefícios pleiteados.
Urupaiti também relatou que, em anos anteriores, encaminhava para aposentadoria
pessoas de sua comunidade, como forma de complemento de renda. Segundo ele, os
processos eram encaminhados sem intermediários e sem “propina”, uma vez que se mantinha
informado sobre os processos e os documentos em ordem. Também informou que mantinha
contatos com a Ouvidoria do INSS para informar práticas ilegais que havia presenciado.
Em relação à utilização dos benefícios, Urupaiti disse que os cartões previdenciários
que possui encontram-se “empenhados” para que ele possa se valer de empréstimos no
momento em que houver necessidade. Tal prática parece ser uma constante entre vários
beneficiários de aposentadorias, pensões, salário-maternidade e bolsas-família. Na fala desse
líder, o “patrão” não é apenas um agente de exploração, mas também uma figura de ajuda nos
momentos de crise e de falta de dinheiro.

4.2.3 POTIGUARA

Conforme explicou Marcos Santana Potiguara, coordenador da CTL/FUNAI em João


Pessoa, a documentação fornecida para o acesso dos benefícios está mais concentrada na Baía
da Traição, município do litoral norte da Paraíba, com 12 aldeias Potiguara. Esse município
foi sede anteriormente de um Posto Indígena da FUNAI, e todos os processos previdenciários
eram repassados para a APS de Rio Tinto.
Josafá Padilha Freire, coordenador da CTL/FUNAI da Baía da Traição, informou que
além da atividade de alimentar o banco de dados do Cadastro Nacional de Informações
Sociais – CNIS, foi relatado que a própria FUNAI se responsabiliza por juntar, organizar e
101
encaminhar os documentos necessários para o indígena apresentar no momento do
atendimento. A triagem realizada pela FUNAI é essencial para o segurado dar entrada no
benefício, bem como todo o trabalho de orientação realizado com apoio do PEP na Paraíba.
Josafá é um dos responsáveis pela inserção das informações dos segurados indígenas
no novo sistema, agora com características específicas e diferenciadas para os povos
indígenas, mantendo relações diretas com a APS de João Pessoa e a Empresa de Tecnologia e
Informações da Previdência Social – DATAPREV. O novo sistema de cadastramento está
sendo empregado na Paraíba entre os Potiguara para, posteriormente, ser colocado em prática
em todo o Brasil.
A atual CTL da FUNAI da Baía da Traição, sediada na Aldeia Forte, surgiu com a
reestruturação do órgão indigenista após a extinção do então Posto Indígena Potiguara.
Algumas dificuldades estruturais ao trabalho da FUNAI foram relatadas, como a falta de
acesso à internet, o prédio em reforma etc. Mesmo com todas essas debilidades, são feitos os
agendamentos para atendimento dos indígenas no INSS e, quando a documentação está
adequada às exigências, os benefícios são concedidos normalmente. Da CTL da Baía da
Traição saem praticamente todas as documentações necessárias para o acesso aos benefícios
quando esses são solicitados na APS de Rio Tinto.
Clênia Alencar, gerente da APS de Rio Tinto/PB, relatou a dificuldade dos técnicos no
momento de análise da documentação da FUNAI. Ela afirmou que há uma variabilidade de
identidades entre alguns Potiguara que, em um primeiro momento, são e, depois, não são
declarados indígenas e vice-versa. Assim, o problema está na definição dos conceitos de
indianidade que se criou em torno dos Potiguara, o que acaba por atrapalhar o trabalho do
técnico do INSS quando da apresentação dos documentos referentes à solicitação do
benefício.
A motivação para a afirmação ou não da identidade étnica Potiguara tem caráter
político, segundo Clênia Alencar, onde algumas lideranças se legitimam e se fortalecem pelo
poder que possuem em dar legalidade às informações sobre o passado e o presente de um
indivíduo ou núcleo familiar. Dessa forma, o cadastro desses indígenas fica comprometido,
visto que, se o solicitante do benefício não for caracterizado pela liderança da aldeia e pela
FUNAI como de origem indígena e também não comprovar a atividade rural, não é possível
garantir-lhes os direitos previdenciários enquanto segurado especial.
Ainda sobre a questão política entre os Potiguara, foi apontada a existência de duas
facções atuantes e rivais, articuladas entorno do líder Antonio Pessoa Gomes “Caboquinho”,

102
Cacique Geral dos Potiguara, da Aldeia do Forte, de um lado, e do líder Capitão, de outro. Tal
organização política atual do povo Potiguara na Paraíba é considerada pela agente como de
grande influência no acesso aos benefícios previdenciários, pois é responsável direta pela
emissão de documentos e declarações.
Em relação aos procedimentos de cadastramento do INSS junto aos Potiguara, Rogério
Silva Oliveira, Chefe da Seção de Atendimento da APS de João Pessoa, também identificou a
situação-problema relacionada à documentação. Há casos de amostragens de censos indígenas
onde determinada pessoa deixa de ser reconhecida como índio, mas depois retoma sua
identidade indígena em função das variações políticas dos próprios Potiguara. Tal situação se
reflete imediatamente na documentação do indivíduo, gerando transtornos no momento de
acessar os direitos previdenciários.
Cerca de 30% das entrevistas agendadas, tanto por internet como pelo serviço 135, são
canceladas ou o indivíduo não comparece. Essa ausência, na maioria dos casos, ocorre pela
falta da documentação exigida e/ou por não ser validada, situação que ocorre no momento da
apresentação dos documentos e declarações para o acesso ao benefício.
Hitler Ferreira, chefe do Polo FUNASA da Aldeia do Forte, informou que o
acompanhamento de saúde junto aos Potiguara possibilita o fornecimento de informações
necessárias para a solicitação dos benefícios, interligando a FUNASA à FUNAI e ao INSS no
acesso desses segurados especiais aos direitos previdenciários. Segundo Hitler Ferreira, “a
FUNASA precisa de atendimentos, e os beneficiários precisam de declarações. Dessa forma, a
instituição só dá a declaração caso a solicitação esteja dentro dos atendimentos da FUNASA”.
Sobre as relações interinstitucionais entre INSS, FUNASA e FUNAI, o chefe do
DSEI-PB, Robson Cassiano, disse que houve reuniões para definir o papel de cada instituição
no processo de garantia dos direitos previdenciários aos Potiguara. Com essa articulação das
atribuições de cada instituição parceira, os possíveis segurados especiais indígenas foram
orientados a procurar a FUNASA e a FUNAI, a fim de obter a documentação necessária para
dar entrada aos benefícios.
De acordo com o chefe do DSEI-PB, essa parceria tem fortalecido a imagem da
FUNASA enquanto instituição que presta valiosa contribuição no acesso à Previdência. Além
disso, os Potiguara encontram-se intensamente envolvidos, na atualidade, pelas ações da
Fundação, seja nos acompanhamentos neonatais ou nas campanhas de vacinação.
A cacique Claudecy da Silva Braz da Aldeia Monte-Mor e vereadora em Rio Tinto,
acredita que o atendimento do INSS aos Potiguara da Aldeia Monte-Mor tem piorado

103
consideravelmente no último ano. Disse que mesmo sendo, além de cacique, vereadora no
município, ela própria não consegue melhorar tal situação.
A principal crítica da cacique Claudecy refere-se à “descaracterização” dos Potiguara
das aldeias situadas no município de Rio Tinto, no seu direito de “segurados especiais”, pelos
agentes do INSS local. Para ela, esse fato ocorre em função de que os Potiguara de Rio Tinto
encontram-se mais próximos geograficamente da APS local, do que os indígenas de Marcação
e Baía da Traição e, consequentemente, teriam maior convivência com os funcionários da
APS, os quais analisariam as informações apresentadas no atendimento com um “olhar
subjetivo”.
Tais argumentos procuram confirmar a existência de discriminação por parte do INSS
frente aos Potiguara das aldeias situadas no município de Rio Tinto. Segundo a cacique e
vereadora Claudecy, mesmo quando os Potiguara desenvolvem outras formas de trabalho,
além do trabalho rural, esse fato não os descaracteriza legalmente como segurados especiais.
A líder afirma que o INSS local faz isso de forma normal e fora da lei.
Claudecy citou, ainda, dentre as dificuldades estruturais enfrentadas pelos Potiguara de
Rio Tinto, a não existência de CTL da FUNAI naquele município, obrigando os indígenas
locais a se deslocarem até o município de Baía da Traição para resolver suas demandas em
relação aos direitos previdenciários. Em função disso, ficou definido um dia específico
(quarta-feira) para que os Potiguara de Monte-Mor sejam atendidos na CLT de Baía da
Traição.

Casos Previdenciários

IRACY CASSIANO SOARES, 67 ANOS – APOSENTADORIA


Iracy Cassiano Soares revelou que quase sempre as pessoas têm problemas com os caciques,
pois os mesmos querem “propina” para dar a declaração. Tal fato não é só entre aposentados, mas
também entre pensionistas e pessoas com direito aos auxílios de todas as espécies solicitados ao INSS.

4.2.4 BANIWA

Ortemar Bindá, da APS INSS São Gabriel da Cachoeira declarou que o atendimento
do PREV-Barco é informado às comunidades via rádio. A esse atendimento, antecede a
emissão de documentos aos indígenas para agilizar o pedido de entrada dos benefícios.

104
Profissionais são levados para emitir os documentos necessários para dar entrada nos
benefícios. Além de fornecer documentação aos que vivem nas aldeias, a FUNAI também
pode emitir certidão para índios que trabalham nas cidades próximas em casas de família,
reconhecendo-os na categoria “trabalhador rural”.
A emissão de registros se intensifica quando está próximo da ida da embarcação às
comunidades ou localidades próximas. Tudo é feito primeiro manualmente, e somente em
Manaus é que as informações são passadas para os computadores e protocoladas.
Ortemar explicou ainda que é “possível fazer o benefício apenas com o registro
administrativo emitido pela FUNAI, porém, o índio firma o compromisso de providenciar o
registro civil”. Essa exigência do registro civil, mesmo que sua apresentação ocorra em um
momento posterior, é entendida pelo técnico como alternativa para diminuir a possibilidade de
fraudes.
José Francisco Pereira Vieira e José Ribamar Caldas Lima Filho, técnicos da FUNAI,
indicam que uma das ações da FUNAI é o balcão da cidadania, que serve para emitir
documentos à comunidade. A emissão dos documentos indígenas requer o nome em
português, o nome na língua do povo e o nome de benzimento. Esse último nem sempre é
lembrado pelos indígenas. Todavia, “a falta de algum desses nomes não impede a emissão do
Registro Administrativo”, como afirma José Francisco.
Para emitir a declaração de atividade rural é necessário ter o registro administrativo, e
a FUNAI vai para a comunidade pesquisar, para evitar fraudes. Só recebe a declaração quem
comprovar 165 meses de atividade rural, que passa a contar a partir dos 16 anos.
Os balcões da cidadania realizaram o atendimento nas próprias comunidades, tendo
como um dos resultados positivos o aumento da participação de eleitores indígenas. A
emissão dos títulos fez triplicar o número desses eleitores, fator decisivo para hoje haver no
município os primeiros prefeito e vice-prefeito indígenas, algo que nunca aconteceu nos 116
anos de existência do município.
A emissão de documentos hoje representa um avanço na região. A primeira vez que
isso ocorreu foi nos anos 1980, quando missionários católicos iniciaram os batismos dos
indígenas. O Registro de Batismo não era oficial, mas se tornou um importante documento
que, mais tarde, veio a facilitar ao indígena ter a Certidão de Nascimento registrada em
cartório.
Aos índios que são da Colômbia e querem documentos em São Gabriel da Cachoeira,
é emitida uma declaração de que é índio sob a obrigação de se apresentar dois ou três anos

105
depois para entrar com processo de dupla nacionalidade. Para eles, não pode haver divisão na
fronteira.
A FUNAI gasta de R$70 a R$80 mil para trazer uma equipe do INSS. Contudo, os
custos para o deslocamento dos funcionários para as comunidades são divididos entre a
Previdência e a Fundação. Além disso, o retorno às populações indígenas com os benefícios é
de aproximadamente R$5 milhões.
Perguntado sobre a atuação da FUNAI na região, o vice-prefeito de São Gabriel da
Cachoeira, André Fernando, disse que a instituição trabalha quase que exclusivamente com
índios que não têm acesso à cidade, ou seja, os aldeados. Contudo, André defendeu que os
índios urbanizados também passam dificuldades no acesso aos serviços públicos, por falta de
informação e organização do setor público. Isso tem refletido diretamente na emissão dos
documentos para acessar os direitos previdenciários.
André explica que a FUNAI encaminha os índios da cidade à Secretaria de Produção e
Abastecimento do município, onde eles entram na categoria “Produtor Rural”. Muitos
indígenas urbanizados, para conseguirem declarações da FUNAI, informam que são de uma
determinada comunidade, pois a habitação do índio na Terra Indígena é sempre questionada
pela FUNAI no critério de atendimento e emissão de documentação que atestem a identidade
indígena.
Para André,

Isso precisa ter uma discussão, uma adequação dessa política. Porque índio,
ser indígena, não é somente quando estiver na Terra Indígena. Eu sou índio
em qualquer lugar. Até em outro país eu sou indígena, sou Baniwa, acabou.
Então, a FUNAI precisa superar isso. (...) Quem já mora aqui, muitas vezes,
diz que é daquela comunidade ainda de origem, por causa disso. Então, as
pessoas, a sociedade, ela recria sua fórmula própria sempre pra conseguir as
coisas, que acaba sendo como se fosse mentira. Mas é o sistema que não está
adequado para atender as pessoas. (Entrevista com André Fernando, vice-
prefeito de São Gabriel da Cachoeira).
A FOIRN contribui com o acesso do indígena aos direitos previdenciários por meio da
emissão de documentos. Como expôs Irineu:

A gente trabalha muito mais com a questão de documentação. É justamente


um preparo que nós temos para os Baniwa e para os demais indígenas que
estão aqui. Tivemos dois balcões da cidadania, que foi para providenciar
certidão de nascimento, as documentações básicas, porque sem isso eles não
poderão participar dos benefícios do Governo (Entrevista com Irineu
Lauriano Rodrigues, liderança da FOIRN).

106
Casos Previdenciários

BETTY OLEGÁRIO DA SILVA E ALBERTO ALEXANDRE APOLINÁRIO –


APOSENTADORIA POR IDADE (EFETIVADA)
No bairro Miguel Quirino, conversou-se com Mônica Apolinário sobre a situação das
aposentadorias por idade de seus pais, Betty Olegário da Silva e Alberto Alexandre Apolinário. A
família possui casa na área urbana e roça no assentamento Teotônio Ferreira. Mônica disse que a
FUNAI atrapalhou no acesso dos pais ao benefício previdenciário, negando a emissão da certidão de
nascimento e a declaração de residência na Terra Indígena, o que fez o processo ser demorado.

INDÍGENAS JOVENS EM SÃO GABRIEL DA CACHOEIRA – APOSENTADORIA


POR IDADE
Outra questão levantada é o caso dos jovens indígenas que moram na cidade e lá trabalham.
Geralmente não têm a carteira assinada. Isso os coloca em uma situação peculiar, pois terão
dificuldade em comprovar sua indianidade frente à FUNAI, assim como poderão não comprovar a
contribuição exigida para se aposentarem no futuro.

INDÍGENAS FEIRANTES EM SÃO GABRIEL DA CACHOEIRA –


APOSENTADORIA POR IDADE (NÃO EFETIVADA)
As indígenas feirantes expuseram que não conseguem se aposentar como trabalhadora rural
indígena, pelo fato da FUNAI não fornecer a declaração de atividade rural, sob a justificativa de
morarem na cidade. Todavia, a atividade de roça é executada pelos indígenas que vivem em São
Gabriel da Cachoeira, os quais fazem essas atividades nos arredores da cidade. Alegam, ainda, que as
roças de algumas pessoas que moram na cidade são mais distantes do que de algumas comunidades
que ficam na margem oposta do rio. Contudo, é mais fácil para essas últimas comprovar à FUNAI sua
indianidade.
O exercício das atividades na feira, ou de qualquer outra atividade longe das comunidades,
dificulta e até inviabiliza o recebimento da declaração de atividade rural emitida pela FUNAI. Os
produtos comercializados são de origem de trabalho rural, como verduras (roça), peixe (pesca) e beiju
e churrasco, mas a leitura sobre as feirantes passa a ser de sujeitos distantes da presunção legal de
“índio que executa atividade rural”, pois moram na cidade.

4.2.5 TIRIYÓ

Percebemos que, em geral, os indígenas idosos têm mais facilidade para requererem os
benefícios. A organização da documentação dos indígenas na FUNAI facilita esse processo.
Os que não possuem a documentação necessária arquivada na FUNAI/Macapá é que
geralmente enfrentam alguma dificuldade, mas em regra, a FUNAI/Macapá providencia a
emissão de documentação dos indígenas idosos.
107
Por outro lado, os Tiriyó que possuem algum tipo de deficiência e as mulheres aptas
ao salário-maternidade, encontram problemas quando o assunto é a emissão dos documentos
necessários para providenciarem os benefícios da Previdência Social. Geralmente as mães não
possuem toda a sua documentação (principalmente Carteira de Identidade e CPF). Isso é outro
elemento que emperra o acesso aos benefícios previdenciários. Sem esclarecimentos dos seus
direitos e sem documentação, alguns Tiriyó ficam inviabilizados de recorrerem aos seus
direitos.
Apesar da FUNAI/Macapá alegar que atualmente é mais fácil emitir o Registro
Administrativo de Nascimento de Índio – RANI e a Certidão de Registro Civil das crianças
indígenas, notamos que a pouca agilidade nos procedimentos necessários para a emissão dos
documentos pelos órgãos competentes é um complicador para que as mães procurem a
FUNAI e possam pedir ajuda na solicitação de seus direitos previdenciários junto ao INSS,
considerando-se que toda a documentação dos Tiriyó fica arquivada na FUNAI/Macapá, e por
isso, sempre quando necessário, precisam ir até lá. Sobre esse assunto o chefe do SMT da
FUNAI esclareceu:

Principalmente as crianças [possuem documentos]. Porque assim: nasceu lá


na aldeia aí tem que a FUNASA trazer a Declaração de Nascidos Vivos
(DNV) para cá. O técnico da FUNASA faz a DNV e envia para a FUNASA,
a FUNASA encaminha pra gente. Mediante essa DNV a gente faz a certidão
de nascimento deles indígena; (...) a gente manda para o cartório e o cartório
emite a civil. (...) A FUNAI tem um controle, um livro de nascimentos.
Mediante esse livro é emitida uma certidão de nascimento indígena. (...)
Cada posto (da FUNAI) tem um livro de registros de nascimento. (...) A
saúde tem que fazer a DNV para passar para nós, para que possamos fazer
esse cadastro aqui. Passou para o livro a gente emite a certidão indígena.
Essa se chama RANI. Nós mandamos isso aqui para o cartório, assinado
pelos funcionários. E no cartório, com esse documento vai se emitir o
registro civil da criança. Então, se eles encaminharem rapidamente a DNV,
não tem problema: faz o registro no livro e manda para o cartório.
(...) A FUNASA contrata uma empresa, então não é a própria FUNASA, é
terceirizado, aí manda para lá o servidor. Então, muitas vezes eles não
passam as informações direito. Muitas vezes o técnico de enfermagem não
manda. A criança nasce e eles não mandam a DNV e aí vai atrasando as
certidões, as documentações deles. (...) Eles [os técnicos de enfermagem]
encaminham para a FUNASA, a FUNASA encaminha o documento e a
gente manda para o cartório. Aí essa documentação vai ficando aqui, tudo
por aldeia (...) Se a criança vir doente e precisar ser internada na Rede do
Sistema Único de Saúde – Rede SUS, vai precisar dos documentos, da
certidão de nascimento para internar (...) fica aqui em Macapá essa
documentação. Porque ai vem de avião rápido ai não traz o documento (...)

108
A gente emite. Envia para o cartório. O cartório não cobra nada: essa
primeira certidão de nascimento é gratuita. O cartório emite e a gente vai
separando por aldeia. (Entrevista com Afonso Rodrigues, chefe do SMT da
FUNAI/Macapá).
O coordenador da FUNAI/Macapá informou que apenas a escola recebe uma cópia
dos documentos quando precisam das certidões para o censo escolar:

O professor vem aqui e diz: “Eu tenho dez alunos. Eu precisava das
certidões para fazer o censo escolar”. A gente tira cópia, passa para eles...
Trabalhamos de acordo com essas crianças que eles têm lá. E assim é
identidade, CPF, Carteira de Trabalho (...) Faz-se uma separação dos que são
aposentados e dos que não são aposentados. (...) [Essa decisão] não é só
devido à distância, é devido também eles perderem muitos documentos. Às
vezes no próprio deslocamento da aldeia, cai no rio, molha. Então foi uma
decisão tomada com a gente e com eles. [Os indígenas disseram:] “é melhor
ficar guardado aqui, porque aqui é mais fácil. Se a gente precisar de alguma
coisa aqui, a gente vem e pega, protocola e depois vem devolver” (...) Agora
o que a gente está fazendo? Quem tem identidade, precisa se deslocar, ir na
rodoviária pegar um ônibus lá para a Serra do Navio e precisa comprar a
passagem com a identidade, então a gente tira uma cópia colorida. Então eles
andam com uma cópia colorida com eles. O original fica aqui. (Entrevista
com Afonso Rodrigues, chefe do SMT da FUNAI/Macapá).

4.2.6 SATERÉ-MAWÉ

Geraldo Sinimu, agente da APS/INSS em Parintins, declarou que o processo de


atendimento aos indígenas que vêm à procura de seus direitos previdenciários ocorre pela
intermediação da FUNAI que reúne a documentação e realiza o agendamento:

Os índios não vêm fazer cadastro aqui pessoalmente. A FUNAI é que


trabalha com a documentação deles, faz o agendamento e, no dia agendado,
eles aparecem. O que nós fazemos aqui na agência é só o atendimento
simples. Eles chegam e nós atendemos. Fazemos a manutenção do benefício
ou fazemos um novo benefício, dependendo do caso. (Entrevista com
Geraldo Sinimu, agente da APS/INSS em Parintins).
Questionado sobre o tempo que decorre entre o momento da entrega da documentação
pelos indígenas, ou seja, do início do processo do cadastramento até a aprovação final pelo
INSS e início do pagamento do benefício, o agente local informou que

a concessão é imediata. Aqui na nossa região é muito fácil. É difícil a


concessão não sair no mesmo dia. Com 15 a 20 dias ele está recebendo o
dinheiro. Hoje o atendimento do indígena demora aproximadamente 15 a 20

109
minutos, no máximo, para que ele saia com o benefício concedido.
(Entrevista com Geraldo Sinimu, agente da APS/INSS em Parintins).
Em relação ao índice de solicitações aprovadas, por total de benefícios previdenciários
solicitados, o agente do INSS apresentou uma estimativa bastante otimista:

... 99% são concedidos. 1% não é (não ocorre o pagamento) devido a erros
na documentação ou devido ao fato dos indígenas já terem solicitado aquele
benefício. Por exemplo: salário-maternidade. (Entrevista com Geraldo
Sinimu, agente da APS/INSS em Parintins).
Geraldo Sinimu informou, ainda, que não é realizada nenhuma estatística que permita
acompanhar o processo de cadastramento dos segurados especiais indígenas. Segundo o
agente, os indígenas são automaticamente incluídos nas estatísticas do INSS como segurados
especiais. Nessa situação, torna-se impossível identificar, por exemplo, o total de
beneficiários indígenas no INSS de Parintins, e as categorias de benefícios concedidas aos
beneficiários indígenas.
De acordo com o agente, a única diferenciação estabelecida nas estatísticas do INSS
seria entre trabalhadores rurais e urbanos.

Eles [os indígenas] são incluídos na categoria do rural. Nós não fazemos
essa separação, somente do que é rural e urbano. Mas não temos como saber
qual rural é indígena, teríamos que verificar no processo (...) O tipo de
benefício é rural indígena. Só aponta que é rural. O fato do indígena é que
ele já é colocado dentro do benefício que ele é índio tutelado, mas
simplesmente por um código (...) Se você me pedir um relatório, eu não
tenho. Nós não fazemos essa discriminação. Eles são rurais e fica como
rural. (Entrevista com Geraldo Sinimu, agente da APS/INSS em Parintins).
O agente previdenciário informou que o índice de beneficiários não indígenas
cadastrados na Agência do INSS de Parintins é significativa, uma vez que a agência atende a
quatro municípios do Baixo Amazonas (Barreirinha, Nhamundá, Urucará e Parintins).
Entretanto, em todos esses municípios ocorre a presença indígena. Ainda em relação à questão
do acesso dos beneficiários indígenas ao atendimento na agência do INSS em Parintins,
Sinimu completou:

(...) Aqui, nessa região, você vai encontrar os povos indígenas muito
concentrados em áreas distantes. Eles concentram-se nas cabeceiras dos rios.
O responsável da FUNAI, pra essas aldeias normalmente têm um barco, um
transporte marítimo. Como eles fazem? Uma época do mês eles agendam
com a comunidade e eles vêm juntos. Aí eles ficam na FUNAI, na casa do
índio, pro atendimento ser feito no dia marcado. Eles trabalham dessa forma,
nunca vem um deles sozinho. Principalmente quando você tem uma semana
para realizar o atendimento, nós conseguimos atender cinco ou seis índios,
110
em uma única semana. (Entrevista com Geraldo Sinimu, agente da
APS/INSS em Parintins).
Outro tema abordado foi o pagamento dos recursos previdenciários, após a aprovação
do benefício. Os beneficiários indígenas, na impossibilidade de deslocar-se a um centro
urbano, acabam por adiar o recebimento do benefício e, quando têm acesso ao mesmo, sua
conta-benefício pode estar bloqueada. De acordo com o agente previdenciário, em Parintins

(...) isso é raridade acontecer. Até porque quando o indígena sai da agência,
ele já sai informado. Quando o indígena não fala português, há necessidade
de ele ser acompanhado por um agente da FUNASA, para que esse atue
como um tradutor e repasse todas as informações para o indígena. Aqui o
trabalho flui tranquilamente. (Entrevista com Geraldo Sinimu, agente da
APS/INSS em Parintins).
Em relação à documentação encaminhada pela FUNAI às agências do INSS, os
pesquisadores comentaram que grande porcentagem dos processos são efetivados. Entretanto,
existem casos problemáticos, e até mesmo casos em que os benefícios não são efetivados.
Sobre esses casos “problemáticos” e os não efetivados, o agente previdenciário comentou:

Se tiver divergência de data de nascimento, divergência em documentos, ou


seja, erros documentais, normalmente essa é a maior porcentagem de
benefícios negativos, porque tem que corrigir. Naquele momento não será
efetivado aquele processo, mas, posteriormente, ele se encaminha à FUNAI,
conserta a documentação e retorna aqui para solicitar o benefício novamente.
(Entrevista com Geraldo Sinimu, agente da APS/INSS em Parintins).
Questionado pelos pesquisadores sobre a realização de trabalho de educação
previdenciária junto aos Sateré-Mawé e outros grupos indígenas da região, Geraldo Sinimu
afirmou que existe grande dificuldade em deslocar equipes do INSS às terras e aldeias
indígenas da região, em função das grandes distâncias. Segundo ele, grande parte das aldeias
situa-se nas cabeceiras dos rios, o que levaria de dois a três dias de viagem, tornando muito
difícil ao INSS disponibilizar funcionários para essa tarefa.
Entretanto, no que se refere aos segmentos urbanos e rurais, afirmou que a agência
local do INSS mantêm relações estreitas com sindicatos. Quanto a uma articulação entre o
INSS e a FUNAI para levar a educação previdenciária aos grupos indígenas da região,
afirmou:

Em relação à FUNAI, por exemplo, se nós temos que seguir novas


instruções, existe uma nova regra, nós repassaremos para os servidores da
FUNAI. Assim como nós fazemos com o sindicato e com todo mundo, para
que se tenha a menor margem de erro possível. Para que nós trabalhemos
com mais acertos do que erros. Logo, é a FUNAI que fica responsável por

111
repassar as informações, por organizar palestras ou algo nesse sentido.
(Entrevista com Geraldo Sinimu, agente da APS/INSS em Parintins).
O agente de atendimento do INSS foi questionado sobre a ausência de profissionais
que realizam o trabalho de perícia junto ao INSS em Parintins. Esse fato fora comentado nas
entrevistas dos Coordenadores Técnicos da FUNAI e pelo Chefe do DSEI-Parintins como
fator crucial no não atendimento dos direitos previdenciários dos Sateré-Mawé e outros
grupos indígenas da região, tornando-se, assim, a principal questão na relação entre as
instituições responsáveis pela assistência aos povos indígenas na região.
O Sr. Sinimu informou, inicialmente, que não existem médicos nem assistentes sociais
concursados do INSS e lotados na Agência de Parintins, embora o órgão estivesse
providenciando a contratação temporária desses profissionais. Foram realizados concursos
públicos para esses cargos, mas não houve preenchimento de vagas para a Agência de
Parintins.
Segundo o agente previdenciário, o principal problema para a execução das perícias
médicas, atividade fundamental para a concessão de benefícios previdenciários, seria a
indisponibilidade de médicos peritos e assistentes sociais para trabalhar no município de
Parintins. De acordo como Sinimu, a perícia médica não estaria funcionando na região.

Não está funcionando, pois não tem médico. Nessa semana, no dia 25, nós
teremos dois médicos peritos. Eles virão atender por uma semana, mas para
conseguir que eles venham de Manaus, onde a demanda é maior, é uma
grande dificuldade. Esses médicos são do INSS de Manaus e quando a gente
consegue que eles compareçam à agência, eles ficam apenas por uma
semana. Agora, o INSS está contratando dois médicos, não serão servidores
efetivos, mas eles estarão atuando e conseguirão solucionar esse problema.
Eles já foram aprovados, já começarão o treinamento e, provavelmente, no
início de novembro, nós teremos médicos no quadro. (Entrevista com
Geraldo Sinimu, agente da APS/INSS em Parintins).
Questionado sobre as razões da ausência de médicos peritos e outros profissionais
necessários à perícia médica na Agência do INSS de Parintins, Sinimu reputou à falta de
concursos públicos e, também, ao fato de os profissionais aprovados, se recusarem a trabalhar
no “interior”. Mesmo a cidade de Parintins, com mais de 120 mil habitantes, sendo
considerada a segunda cidade mais importante do estado do Amazonas, não atrairia esses
profissionais. Segundo Sinimu,

falta concurso público. Quando os médicos são aprovados, não gostam da


localização. Não querem trabalhar no interior, querem trabalhar na capital.
(Entrevista com Geraldo Sinimu, agente da APS/INSS em Parintins).

112
De acordo com Sinimu, o problema da ausência de peritos médicos em Parintins
ocorre há cerca de dois anos. Anteriormente, havia a contratação de médicos peritos, mas o
próprio MPE no Amazonas teria pressionado para a realização de concurso público. Segundo
o agente, foi aberta nova “brecha” na administração pública e novos médicos peritos estariam
sendo contratados, por meio de nomeações, o que poderia resolver o problema
momentaneamente.

4.3 ACHADOS RELATIVOS AO ACESSO AOS BENEFÍCIOS

Os próprios requisitos legais geram dificuldade para a concessão dos benefícios,


quando alguns indivíduos não conseguem comprová-los, especialmente quanto à condição
enquanto segurado especial.
A dificuldade em caracterizar o segurado especial indígena, principalmente quando o
mesmo está simultaneamente inserido nos espaços urbano e rural, age em desfavor dos
indígenas, pois quando os órgãos responsáveis pela emissão dos documentos ou pela
concessão dos benefícios têm dúvidas quanto à condição indígena ou de trabalhador rural ou
de mãe etc., a consequência é a resposta negativa. Por exemplo, quando as informações do
local da residência e do local da atividade rural ou pesqueira são diferentes, o sistema aponta
o conflito dos dados cadastrados, gerando assim o indeferimento do benefício. Ou quando não
se tem o reconhecimento legal do casamento entre indígenas, pelos cartórios de registro civil
da região. O alto índice de casamentos interétnicos tem provocado o indeferimento às
solicitações de benefícios previdenciários aos cônjuges não indígenas.
Também se constitui em uma dificuldade para o acesso às diversas interpretações em
relação à condição dos indígenas pelos órgãos previdenciários e indigenistas, além de
questões políticas que envolvem alguns grupos indígenas, como os Potiguara, e que
repercutem em descaracterização dos índios enquanto tal.
A falta de informações ainda aparece como principal problema, a exemplo do
desconhecimento de muitos indígenas sobre a existência de legislação específica relacionada
aos povos indígenas e à previdência, como os critérios para o recebimento de salário-
maternidade e para a pensão por morte. Foi amplamente citada pelos entrevistados a
inexistência de censos demográficos e socioeconômicos dos indígenas. No caso dos Canela,
agentes públicos e lideranças indígenas ressaltaram o equívoco de um cadastramento efetuado
na década de 1980 para a regularização dos registros de nascimento dos Canela. A
113
inconsistência no lançamento das datas corretas de nascimento repercute ainda hoje no
impedimento de muitos indígenas Canela em obter a aposentadoria por idade, face à
divergência entre a idade real e a idade que consta nos cartórios. Além disso, geralmente os
próprios indígenas não sabem a sua idade.
Os órgãos previdenciários e indigenistas não realizam estatísticas que permitam
acompanhar o cadastramento dos segurados especiais indígenas. Atualmente, os indígenas
aposentados são automaticamente incluídos nas estatísticas como segurados especiais,
juntamente com trabalhadores rurais, pescadores, ribeirinhos, seringueiros e extrativistas em
geral. Isso mostra que a ausência de um banco de dados específicos para os povos indígenas
dificulta o levantamento de documentos e comprovantes.
Uma das iniciativas do INSS para melhorar o acesso dos indígenas aos direitos
previdenciários um projeto piloto de liberação do acesso da FUNAI ao CNIS com um formato
especial – um cadastro totalmente adaptado às informações dos povos indígenas. Com acesso
a esse módulo especial, a FUNAI pode cadastrar os indígenas no INSS de forma mais
apropriada, inserindo informações no cadastro inclusive sobre a origem étnica do indígena. Os
créditos pelo desenvolvimento do sistema de cadastramento são da DATAPREV da Paraíba,
estado que também tem o pioneirismo na utilização do mesmo, o que vem colaborando no
melhoramento do projeto piloto. Esse cadastro deverá ser, posteriormente, estendido a todo o
país.
Destacam-se também diversas articulações entre FUNAI, INSS e FUNASA, além de
outros órgãos federais, estaduais e municipais, para facilitar as condições de acesso dos
indígenas aos benefícios previdenciários e assistenciais, a exemplo do que ocorre junto aos
Baniwa, aos Potiguara e aos Sateré-Mawé. Na contramão dessa situação, registra-se também
os casos em que a desarticulação entre os órgãos dificulta o acesso dos indígenas aos
benefícios. Inclusive, constataram-se casos em que as instituições não garantem a circulação
ágil das informações acerca da agenda de atendimento ou dos critérios para a concessão dos
benefícios, a exemplo do Barco PAI, cuja chegada é inesperada, principalmente para quem
vive em áreas distantes. Além disso, o tempo de permanência dos técnicos do INSS é muito
curto para atender a todos.
A demanda de pessoas que querem dar entrada nos benefícios da Previdência é muito
alta. Nas diversas áreas pesquisadas, o benefício mais solicitado é a aposentadoria por idade,
seguido pelo salário-maternidade. O auxílio-doença e a aposentadoria por invalidez são
menos requisitados, pois o atendimento desses casos é dificultado pela exigência de perícia

114
por médico cadastrado no INSS. A falta de médicos para a perícia é uma constante em quase
todas as áreas visitadas.
No caso dos benefícios assistenciais, destaca-se o acesso dos indígenas ao PBF no
Amapá. Na maioria dos casos os indígenas que estão sob a jurisdição da FUNAI/Macapá
deixam de acessar o referido programa por questões relacionadas à situação socioterritorial,
ou seja, há uma indefinição sobre a quem cabe a responsabilidade de conceder e/ou
providenciar a inserção dos indígenas nesse programa.
O difícil acesso à cidade pelos povos indígenas aldeados, principalmente os mais
distantes, compromete o acesso e o posterior recebimento dos benefícios, face às regras
quanto a prazos para validade das senhas. Uma das consequências é que muitos beneficiários
ficam com as senhas bancárias bloqueadas após passarem mais de três meses sem recolher o
benefício. Há casos em que a falta de confirmação da aprovação da aposentadoria e indicação
do banco onde o recurso pode ser sacado faz com que o dinheiro permaneça na conta até que
a senha seja bloqueada.
Essa situação está presente em todas as áreas visitadas, mas torna-se mais relevante
nos casos dos grupos indígenas da Região Norte, dada a logística complexa e cara para que os
indígenas consigam comparecer com regularidade às sedes dos municípios. O deslocamento
de quem mora nas extremidades para São Gabriel da Cachoeira representa uma viagem com
duração de dez a quinze dias, para virem receber o benefício de trinta em trinta dias. Em uma
viagem das áreas mais distantes um barco consome aproximadamente 200 (duzentos) litros de
combustível, o que custa mais de R$600, sendo que o benefício tem o valor de R$510,00. No
caso dos Tiriyó o transporte entre as aldeias e os centros urbanos ocorre apenas por meio de
avião, a preços muito elevados para o padrão aquisitivo dos indígenas. Entre os povos
visitados, os indígenas que vivem no Parque do Tumucumaque, entre os quais os da etnia
Tiriyó, são os que mais sofrem com as dificuldades de acesso até a cidade e enfrentam os
maiores problemas para acessar as políticas públicas.
As dificuldades para o deslocamento e a permanência dos indígenas nos centros
urbanos contrastam com o tempo necessário para as diversas etapas de acesso e utilização dos
benefícios, considerando a entrada, a liberação, o saque e o uso do dinheiro. Essa questão
parece estar na raiz dos esquemas de exploração e intermediação que se observou em
praticamente todas as áreas visitadas. Por outro lado, a presença dos indígenas nos centros
urbanos em condições precárias pode gerar problemas como prostituição e uso de drogas.

115
Outra barreira gigantesca é a linguística, seja pelo fato de que muitos servidores
públicos não compreendem e/ou falam os idiomas dos povos indígenas, seja por que parte
considerável dos índios não fala bem o português. Isso limita a interação entre as instituições
e as comunidades indígenas. Diversas situações são relatadas em que as partes simplesmente
não conseguem estabelecer nenhum diálogo acerca das necessidades e dos procedimentos.
Esse é mais um ponto vulnerável para a entrada em cena de terceiros, na ausência de
representantes legais que realizem a mediação entre os indígenas e a Previdência Social.

4.3.1 APANIEKRÁ E RAMKOKAMEKRA-CANELA

As dificuldades de acesso dos Canela aos benefícios da Previdência e da Assistência


Social em Barra do Corda relacionam-se, em grande parte, às dificuldades logísticas com que
se defrontam na cidade. A ausência de um espaço de abrigo coletivo – uma vez que a
chamada “Casa do Índio Canela” foi destruída em 2008, em consequência de um conflito com
moradores locais – obriga os Apaniekrá e Ramkokamekra-Canela, que se deslocam à cidade
para resolver assuntos referentes à Previdência, a utilizar-se da Casa de Saúde do Índio –
CASAI, vinculada à FUNASA, destinada a abrigar os indígenas em tratamento de saúde,
sobrecarregando essa unidade, em prejuízo dos que necessitam de atendimento médico
especializado ou hospitalar.
Diante da situação de aliciamento dos indígenas beneficiários da Previdência Social na
cidade de Barra do Corda, o Coordenador Técnico Local – Canela propõe a implantação de
caixas-eletrônicos específicos, para que os Canela permaneçam o menor tempo possível na
cidade, já que, além do transporte, existem problemas em relação ao alojamento e à
alimentação dos mesmos.
Afirma que o acompanhamento prestado pela FUNAI à implementação dos direitos
previdenciários indígenas não é atribuição legal da mesma, mas, por ser o órgão tutor, exerce
parte dessas atribuições. Reconhece que “é atribuição da FUNAI fiscalizar tudo que possa vir
a lesar os índios”.
O Coordenador Técnico da FUNAI considera que na agência local do INSS não ocorre
atendimento específico aos Canela e demais etnias, resultando em desgaste cada vez maior da
população indígena. Ele acredita que “é necessário que se tenha um atendimento
diferenciado”.

116
A enfermeira do Polo Canela – Porquinhos, Elze Jane Alves de Carvalho, acentuou
que antes os índios não se casavam no civil, prática que se tornou normal em decorrência do
entendimento de que no caso de morte do cônjuge se tem direito de pedir uma pensão.
Cornélio Piapit afirmou que “na Aldeia Escalvado tem mais de 100 salários-
maternidade para serem feitos” e que “mesmo com o acesso à internet, os Canela não
conseguem agendar um atendimento no INSS”. Sobre as dificuldades em acessar os
benefícios da previdência, afirmou ainda que “os médicos negam a perícia e os índios
continuam doentes”.
Txatú Canela, liderança tradicional, ex-funcionário da FUNAI, foi aposentado por
invalidez em 1995, em decorrência de problemas na visão. Essa aposentadoria teria ocorrido à
revelia da sua vontade, o que o impediu de continuar atuando como chefe de Posto, função
que então desempenhava.
Txatú afirmou não existir representante legal na região que realize a mediação entre os
Canela e a Previdência Social, função entendida por ele como necessária e a qual deveria ser
exercida por um “cupê” (não índio; branco), que pudesse transmitir as normas do sistema
previdenciário aos Canela. Considera que essa situação já ocorre informalmente, na medida
em que parentes dos beneficiários atuam como intermediários. Observou, também, que alguns
Canela foram registrados em cartório por seus “apelidos” e não pelos nomes pessoais.
Segundo Txatú “é necessário que tenha um atendimento diferenciado no INSS para os
índios para que se tenha mais controle”. As dificuldades de acesso dos Canela à estrutura de
atendimento de benefícios da Previdência Social ocorrem porque “ninguém sabe com quem
falar quando precisa ir para o INSS”. De acordo com esse líder, as dificuldades seriam
inicialmente de ordem linguísticas: “alguns índios não sabem falar o português, por isso têm
que falar na gíria (língua nativa) e às vezes não é entendido”.
Durante a reunião de apresentação da equipe de pesquisa, Raimundo Perfet, professor
indígena e líder de classe de idade, acentuou que há muitos deficientes físicos na Aldeia
Escalvado que não recebem benefícios da previdência, dos quais citou o exemplo de sua
cunhada.
Em reunião na casa do professor Cornélio Piapit, que então desempenhava a função
cerimonial de “casa de Wütü”, com a presença de diversas lideranças indígenas: Guilherme,
“major” e principal líder político naquele momento; Ricardo Kutokré, representante da
Associação Comunitária Par‟kré; Giraldin, membro do Prokaham; Cristino, membro do

117
Prokaham; Txatú, e outros, foram emitidas as seguintes opiniões dos Canela sobre questões
relativas à Previdência Social:
- Ricardo Kutokré falou sobre a dificuldade linguística dos Canela em acessar os
benefícios e propôs que sejam contratados índios pela Previdência Social para fazer “uma
ponte” (tradução cultural) entre o beneficiário potencial e o servidor;
- Cornélio Piapit falou novamente sobre a necessidade de que as idades dos Canela
sejam regularizadas, trazendo à tona o caso de Giraldin;
- Guilherme reivindicou cursos para que alguns índios sejam capacitados para lidar
com todo o processo de acesso ao benefício previdenciário, diminuindo, assim, a quantidade
de cartões nas mãos de intermediários “brancos”. Isso sugere que há demanda quanto à
mudança dos intermediários, mas não quanto ao sistema de intermediação;
- Raimundo Beato, liderança tradicional e líder de sua classe de idade, apontou como
dificuldade para o recebimento dos direitos previdenciários pelos Canela a falta de interesse
do representante indígena local, o qual “não encaminha os pedidos de benefícios”. Considera
os benefícios previdenciários uma necessidade atual dos Canela, mas causador do “isolamento
das famílias”. Segundo Beato, a dificuldade ocorre porque alguns não sabem com quem falar
ou o que é senha.

Casos Previdenciários

FELIPÃO PAULINO IKOJ CANELA – APOSENTADORIA POR IDADE


(EFETIVADA)
O processo de aposentadoria de Felipão Paulino Ikoj Canela sugere que o controle sobre a
idade para se aposentar é feito pelos próprios indígenas, que ao perceberem a proximidade do
momento, procuram o órgão indigenista oficial. Indica ainda que quando todos os documentos estão
de acordo com o exigido pela Agência da Previdência Social não há maiores problemas para a
concessão do benefício.
Todavia, o atendimento é indiferenciado, os Canela são atendidos pelo INSS sem considerar
suas especificidades. A intervenção da FUNAI no processo limitou-se, nesse caso, aos
encaminhamentos visando à concessão do benefício. Quando a atuação do funcionário não leva ao
resultado esperado pelos indígenas – a concessão do benefício – outros agentes são mobilizados para
agilizar, por outros meios, os processos. Nesse momento a figura do “patrão” ou de outro tipo de
“atravessador” entra nesse sistema de forma ilícita, porém tida como “normal”, ou em último caso,
como a única via possível para acessar os benefícios previdenciários. Além do mais, expressa que há a
necessidade de o potencial beneficiário ser acompanhado por alguém (índio ou não) que tenha maior
desembaraço para lidar com as questões citadinas, entre elas a previdenciária.

118
JUCICLÉIA CANELA – SALÁRIO-MATERNIDADE
Jucicléia Canela abordou o tema do salário-maternidade, um direito previdenciário que muitas
jovens Canela almejam. Afirma ter-se deslocado até a agência do INSS em Barra do Corda para se
informar sobre esse direito e decepcionou-se ao saber sobre a idade mínima para pleitear tal benefício
(16 anos). Esse fato contrasta com as práticas da sociedade Canela em relação à maternidade, que
ocorre geralmente, entre 14 e 16 anos, quando a maior parte das jovens Canela já se encontram
casadas. A motivação para obtenção do salário-maternidade pode ser um fator de mudança de conduta
das jovens Canela, no sentido de estender o período e número de filhos.

EDÉSIO – APOSENTADORIA POR INVALIDEZ (EFETIVADA)


Pedin Apanjekrá, pai de Moisés Neto (liderança jovem). Possui um genro deficiente físico “de
nascença”, já aposentado, chamado Edésio. Afirma a grande dificuldade existente entre os Apaniekrá
para se obter aposentaria, tanto em relação aos mais idosos (aposentadoria por idade), quanto aos mais
jovens (aposentadoria por invalidez). A maior dificuldade é atribuída ao levantamento dos casos pelos
próprios agentes indígenas de saúde na Aldeia Porquinhos, os quais deveriam direcioná-los para o
Polo-Base de Barra do Corda para posterior encaminhamento à perícia médica.

4.3.2 TENETEHARA-GUAJAJARA

O Gerente do INSS em Grajaú relatou que os processos de implementação dos


benefícios devem durar menos de dois meses, do agendamento à conclusão. A Previdência
tem um convênio com uma rede bancária para abertura, manutenção e demais serviços
bancários. Atualmente o Banco Bradesco é o prestador de serviços para a Previdência.
Informou que benefícios permanecem na conta do beneficiário por dois meses. Depois desse
período, caso não seja retirado ou movimentado o benefício, tal quantia retorna ao INSS.
A assistente social Jaciane Pires Nascimento, analista de Seguro Social do INSS da
APS-Grajaú relatou que, pela ausência de informações e de legislação específica, os indígenas
atendidos nessa agência são enquadrados como trabalhadores rurais. Disse, ainda, que, por
força desse enquadramento geral, os indígenas também são vítimas de agenciadores de
empréstimos indevidos, comuns entre beneficiários não índios em Barra do Corda e Grajaú.
Afirmou que o processo de suspensão do benefício para evitar esse tipo de fraude deve
partir do próprio indígena, que deve realizar um Boletim de Ocorrência (BO) na delegacia da
cidade em que o mesmo se encontra, ao qual devem ser anexados outros documentos pessoais
e encaminhados à agência local do INSS onde reside. A assistente social forneceu
informativos do MPS e afirmou que o objetivo principal de seu trabalho é a humanização das

119
ações consideradas prioritárias para os médicos do INSS, agora também estendidas para a
assistente social.
Jaciane relatou que a interação entre o MPS e as comunidades indígenas é limitada,
pela dificuldade em relação às línguas indígenas. Afirmou sentir-se “com as mãos atadas”
porque não sabia como “priorizar o prioritário”. Segundo ela, sua função principal seria
manter os interessados nos benefícios da previdência informados sobre seus direitos e
obrigações, bem como sobre os procedimentos necessários para se ter acesso aos benefícios.
Considerou desnecessária a presença de advogados intermediando a solicitação dos
benefícios previdenciários ou o acompanhamento dos processos por intermediários ligados a
esses advogados. Entre as possíveis soluções e sugestões para melhor atender aos indivíduos
que solicitam benefícios, a assistente social considerou o aumento do número de técnicos de
atendimento e a realização de palestras nas aldeias, conforme a demanda das localidades, e o
acompanhamento dos indígenas por técnicos especializados em todos os momentos da
obtenção do benefício.
Arão Lopes, líder Tenetehara e vereador na Câmara Municipal de Grajaú, recebeu os
pesquisadores em sua casa, na presença de seu pai, dois irmãos, esposas, alguns técnicos em
enfermagem e outros. Houve acordo sobre a informalidade naquele primeiro encontro.
Durante a entrevista, Arão falou sobre as novas políticas indigenistas, a reestruturação da
FUNAI e pouco abordou sobre Previdência Social. Relatou sobre fraudes e dificuldades que
os indígenas têm na implementação dos seus direitos previdenciários, tanto em relação à
língua, como dos aparatos tecnológicos que surgem a cada dia. Falou ainda sobre a presença
de atravessadores e sobre as medidas que possam sanar tais problemas em relação aos
Tenetehara da região.
Arão Lopes destacou a importância da implantação de uma Coordenação Técnica da
FUNAI em Grajaú, a qual deveria realizar o cadastro de todos os indígenas da região para
dificultar a ação dos atravessadores junto aos indígenas.
A coordenadora do PBF da Prefeitura Municipal de Grajaú, Maria da Conceição dos
Santos Campos, relatou as ações voltadas para as populações indígenas, como a concessão de
documentos, cestas básicas, viagens e consultas de óculos e outros benefícios, prestados pela
Prefeitura de Grajaú.
A coordenadora do PBF falou sobre a permanência dos indígenas na cidade, a qual foi
relacionada aos benefícios fornecidos pelo Governo. Afirmou que tal permanência, em
condições precárias, pode causar problemas como prostituição e uso de drogas. De acordo

120
com a agente, as informações a esse respeito sobre os Tenetehara são mantidas no Hospital
São Francisco, onde são atendidos apenas indígenas encaminhados pelos Polos-Base
(FUNASA).
Apresentou, ainda, cartazes, folders e ações desenvolvidas ao longo do ano junto aos
povos indígenas da região. Segundo ela, os critérios para a participação do PBF são a renda
per capta da família, a permanência dos filhos na escola e o acompanhamento da saúde dos
mesmos, que seriam condicionantes dessa participação. As dificuldades em relação às línguas
indígenas são enfrentadas por meio da utilização de intérpretes, como agentes de saúde,
professores, enfermeiros, chefes tradicionais e caciques das suas respectivas aldeias.
Afirmou que os estudantes indígenas, cujos pais participam do PBF, em sua maioria
acabaram por se fixar nas escolas próximas aos seus bairros e aldeias, como na Terra Indígena
Morro Branco e no bairro Canoeiro, onde índios e não índios convivem em uma mesma
ocupação.
Segundo a coordenadora, o número de benefícios do PBF em Grajaú chega a 1.400
bolsas para indígenas. Além disso, mesmo com o programa estando em fase inicial de
implantação, trabalhos são realizados nas aldeias mais próximas, com ações ampliadas para os
idosos indígenas.
Durante os levantamentos na Secretaria de Assistência Social de Grajaú, os
pesquisadores identificaram que os agentes dessa secretaria desenvolvem ações voltadas
especificamente para as comunidades indígenas daquele município. Mesmo que formalmente
tais agentes insistam em afirmar que tais mecanismos são apenas formas de organização do
trabalho com os indígenas é possível constatar que essas ações são direcionadas a esse
segmento social.
O mapeamento das ações municipais relativas ao PBF no município de Grajaú
representa um demonstrativo da interação entre índios e não índios nesse município. O
número expressivo de benefícios concedidos aos indígenas cadastrados na Prefeitura –
Tenetehara, em sua maioria – demonstra que esses suportes econômicos contribuem para a
melhoria da renda familiar, mas também desviam as famílias indígenas das lavouras agrícolas
e de outras formas de autossustentabilidade culturalmente estabelecidas e as aproximam da
urbanização.
Para muitos aposentados e outros beneficiários indígenas, os benefícios da Previdência
Social, quando não são temporários (auxílio-doença, salário-maternidade) oferecem valores
que não suprem as necessidades básicas dos aposentados e de suas famílias extensas. “Como

121
sobreviver com uma aposentadoria com mulheres, filhos e netos tendo que compartilhar de
tais recursos?” Essa pergunta se fazia presente durante as entrevistas e mesmo nas conversas
informais com os aposentados Tenetehara.
O líder tradicional Djalma Guajajara, cacique da Aldeia Morro branco e aposentado
por idade da Previdência Social, apontou que existem situações nas quais os aposentados
Tenetehara são escolhidos por suas famílias para viver na cidade com seus netos e sobrinhos,
especialmente com a função de “cuidar das crianças que estão estudando”. Essa atribuição aos
aposentados estaria em processo de mudança tendo-se em vista o surgimento do transporte
escolar, sob financiamento público. A presença dos jovens indígenas na cidade gera uma
familiaridade com a vida urbana, inclusive com os mecanismos de retirada e utilização dos
benefícios da previdência e assistência social.
José Dilamar Pompeu, secretário de Assuntos Indígenas de Barra do Corda, destacou
em sua entrevista o não reconhecimento legal do casamento entre indígenas, pelos cartórios
de registro civil da região. Relatou que, caso um dos cônjuges venha a falecer, o outro não
recebe a “pensão por morte” correspondente à aposentadoria do(a) parceiro(a) falecido(a).

4.3.3 POTIGUARA

Mesmo defendendo que há facilidade no acesso à Previdência, o chefe da Seção de


Atendimento da APS/João Pessoa, Rogério Silva Oliveira, acredita que existe dificuldade em
caracterizar o beneficiário especial indígena, principalmente quando o mesmo está
simultaneamente inserido nos espaços urbano e rural. O agente da APS informou que alguns
indígenas, mesmo exercendo atividades de pesca ou nas roças da Terra Indígena, têm os
benefícios negados pelo INSS pelo fato de não residirem nas aldeias, mas em cidades
próximas ou mesmo na capital.
Afirma que o sistema aponta o conflito dos dados cadastrados quando as informações
do local da residência e do local da atividade rural ou pesqueira são diferentes, gerando o
indeferimento do benefício. “O estado do índio na cidade não foi ou é permanente, o índio
urbano não foi todo tempo urbano e nem é somente urbano, tem seus locais de retiro para o
trabalho rural”, explica.
Para Oliveira, o problema maior está na ausência de um banco de dados específicos
para os povos indígenas, o que facilitaria a questão do levantamento de documentos e
comprovantes. Apontou que o CNIS em João Pessoa já possibilita a inserção de informações
122
mais detalhadas, proporcionando um melhor atendimento às demandas dos Potiguara na
Paraíba.
O gerente do INSS da Paraíba, Joaquim Neto, destacou as ações do PEP no
fortalecimento das relações da instituição junto aos Potiguara. Segundo ele, com
esclarecimento e diálogo, diminuíram-se as dificuldades no acesso desses povos à
Previdência. Tais dificuldades para a concessão dos benefícios seriam, muitas vezes, os
próprios requisitos legais. Como alguns indivíduos não conseguem comprová-los, acabam por
apontar o INSS como o gerador das dificuldades.
Entre os problemas relacionados aos benefícios previdenciários e assistenciais, foi
citado o grande número de indeferimento aos pedidos que, para os entrevistados, é decorrente
do preconceito da Previdência frente ao povo Potiguara. Segundo os agentes da CTL-FUNAI
– Baía da Traição, Josafá Padilha Freire, coordenador, e Edvaldo Bento de Azevedo,
assistente social, o preconceito estaria na não aceitação, por parte de funcionários do INSS,
das informações apresentadas pelos solicitantes para a definição da sua condição de indígena.
Esse fator é tido como determinante para o alto índice de indeferimentos. Essa opinião foi
compartilhada por Manoel Eufrásio Rodrigues – Cacique da Aldeia São Miguel e Presidente
do Conselho Distrital Potiguara.
A chefe do Polo Indígena Caeira, Lusilândia Maria Alves Pinto, ressaltou que os
indígenas possuem conhecimentos dos direitos previdenciários, tanto que houve um
considerável aumento do número de gestantes depois da institucionalização do salário-
maternidade.
A cacique Comadre, da Aldeia Lagoa do Mato – Baía da Traição, informou que sua
aldeia é habitada por 96 indígenas, organizados em 26 famílias. Entre os casos relacionados
ao acesso desses moradores à Previdência, ela citou uma viúva que foi casada com um
funcionário da FUNAI que veio a falecer. Como não eram casados em juízo, apenas viviam
“juntos”, a viúva não pôde receber o benefício da pensão pela morte de seu companheiro.
Outra situação apresentada por Comadre foi seu próprio genro, o qual vem pleiteando um
benefício de auxílio-doença, por haver sofrido um acidente de motocicleta.
Na aldeia Tramataia, segundo Elias Lima, cacique, o número de solicitações de
benefícios previdenciários indeferidos representa 5%. A maioria dos casos negados pelo INSS
refere-se ao salário-maternidade, tendo por justificativa a incompatibilidade do tempo de
trabalho no campo, já que para esse benefício previdenciário, o tempo de trabalho deve ser de,
no mínimo, 10 meses.

123
Outra situação apresentada pelo cacique Elias refere-se ao alto índice de casamentos
interétnicos, o que tem provocado o indeferimento às solicitações de benefícios
previdenciários aos cônjuges não indígenas. Dessa forma, foi iniciada uma espécie de
intervenção frente a tal problema, com um maior monitoramento das entradas dadas aos
benefícios.
A solução vem sendo construída por meio do diálogo entre o Sindicato dos
Trabalhadores Rurais local, a FUNAI e as lideranças indígenas. A conscientização que o
Sindicato promove também pode auxiliar no acesso aos benefícios previdenciários dos que
são casados com membros da etnia Potiguara.
Diego Jônio Borba Lins, técnico da DATAPREV, é um dos responsáveis pela
formatação do novo cadastro, que vai incluir as seguintes informações:
 Etnia;
 Aldeia;
 Terra indígena;
 Estado;
 Município;
 Período na tribo;
 Novo Modelo de Gestão;
 Descaracterização por período;
 Caracterização estabelecida pelo cadastramento da FUNAI.
O agente previdenciário também descreveu os cursos, oficinas e escolas de
previdência que houve para se chegar a esse modelo atual. Até a data da entrevista, havia
6.000 segurados especiais cadastrados no sistema atualizado e modernizado do CNIS. O
mesmo ainda pode vir a ser modificado, conforme solicitação da FUNAI e dos indígenas.
Durante a visita da equipe à FUNAI no município da Baía da Traição, foi relatada uma
complexa situação que vem desgastando a relação dos Potiguara com o INSS. A questão é a
indianidade dos Potiguara junto à Previdência, que tem provocado conflitos com a APS
localizada no município de Rio Tinto, responsável pelo atendimento aos indígenas da região.
Para Josafá Padilha, Edvaldo Azevedo e Manoel Rodrigues, as reclamações relatadas
são motivadas pela interpretação dos funcionários da APS em relação à condição étnica dos
Potiguara, resultante da ausência de treinamentos e capacitações que venham a mostrar e
instigar esses funcionários ao melhor atendimento e respeito aos indígenas.

124
De acordo com a explicação apresentada pelos agentes da FUNAI, há uma indefinição
do INSS em relação ao método de reconhecimento e representação dos indígenas. Pela
tradição, para reconhecer o Potiguara, existe um processo onde se resgata a linhagem
genealógica e se constrói a identidade a partir do depoimento dos anciões, do reconhecimento
da comunidade, além da autoafirmação do indivíduo como indígena.
Para minimizar os conflitos de informação sobre caracterização desses beneficiários
indígenas, os Potiguaras estão desenvolvendo um banco de dados por meio de um censo etno-
populacional. Nele, estarão todas as prerrogativas de indianidade, principalmente as
características que permitem o reconhecimento de um indivíduo enquanto Potiguara.
Outra dificuldade de acesso ao benefício refere-se ao cruzamento de informações
sobre o exercício de atividades laborais. Os Potiguara vivem uma situação de migração
pendular, na qual o indígena realiza trabalhos não rurais de forma esporádica em outras
cidades. Assim, ele deixa a atividade rural por um período e, somente após haver encerrado o
trabalho na cidade, retorna à aldeia, o que leva à sua descaracterização enquanto trabalhador
rural naquele período.
Sobre sugestões referentes a melhorias por parte do INSS e formas dessa instituição
atuar com maior intensidade, os participantes da reunião acreditam que deve ser feito um
maior controle junto aos possíveis beneficiários, de forma a conscientizar os grupos
familiares. Outras ações sugeridas são a retirada de caixas eletrônicos dos supermercados e o
monitoramento dos cartões dos segurados indígenas.
Para o cacique da Aldeia Jaraguá, Aníbal Cordeiro Campos, há certa insensibilidade
dos funcionários do INSS no tratamento com os indígenas. Argumenta que o fato de a aldeia
ser muito próxima da cidade, tais funcionários acham que os índios deixaram de ser índios, e
se algum deles chegar bem vestido ao INSS será caracterizado como urbano.

Casos Previdenciários

JOSÉ BEZERRA (ZÉ NERI), 8 ANOS – AUXÍLIO-DOENÇA (EFETIVADO)


Zé Neri é hoje beneficiado com o BPC, mas teve por duas vezes a solicitação do auxílio-
doença indeferido junto à Previdência. Somente depois de entrar na Justiça foi que ele passou a
receber o auxílio, permanecendo com o mesmo por mais de dez anos. Com o recurso do BPC, Zé Neri
compra alimentos e roupas.

125
MARIA LUCIA BARBOSA GOMES, 47 ANOS – AUXÍLIO-DOENÇA E
APOSENTADORIA POR INVALIDEZ (NÃO EFETIVADOS)
Apresentando problemas de surdez e deficiência mental, dona Lucia teve a aposentadoria por
invalidez negada pelo INSS. Deu entrada no benefício por duas vezes, sendo que na segunda vez ainda
não foi dado nenhum resultado. Há vários anos vem tentando auxílio-doença, mas agora resolveu
tentar aposentadoria definitiva.
Na residência de dona Maria Lucia, ela e a filha, Janaina Barbosa Silva, sobrevivem apenas do
Bolsa-Família e da ajuda de parentes sanguíneos, que doam parte do pescado. Fora mãe e filha, ainda
vivem mais três pessoas na casa, filhos de Janaina.

SUSETE BARBOSA, 44 ANOS – AUXÍLIO-DOENÇA(NÃO EFETIVADO)


Dona Susete Barbosa informou que toma remédios controlados desde os 20 anos de idade,
pois seu diagnóstico clínico é de epilepsia, síndrome do pânico e arritmia cardíaca. Tentou algumas
vezes o auxílio-doença, mas ainda não conseguiu. Por isso, resolveu dar entrada no mesmo por meio
da justiça.
Ao ser indagada sobre os possíveis motivos para não alcançar o benefício previdenciário, ela
explica que, por serem problemas de cunho neural, a obtenção do benefício parece ser mais demorada
e com maiores dificuldades. Recebeu a orientação das representações indígenas de procurar o poder
judiciário, contratando assim um advogado na Baía da Traição para cuidar do caso.

EDJANE LUNAS DA SILVA, 25 ANOS – SALÁRIO- MATERNIDADE (NÃO


EFETIVADO)
Edjane Lunas tem dois filhos, mas tenta receber benefício apenas do mais novo. Isso porque
ela era menor de 16 anos quando nasceu a filha mais velha, não podendo, dessa forma, dar entrada ao
salário- maternidade. Contudo, ainda não obteve êxito nas várias tentativas de acessar o benefício, pelo
motivo do valor diferenciado a ser repassado para ela.
De acordo com as informações da entrevistada, há um processo que foi acordado em juízo
com determinado valor e, depois, o mesmo processo veio a ser liberado com outro valor pelo juiz da
comarca de Rio Tinto. Ela também se sente prejudicada pelas consequências de tal situação, pois não
conseguiu obter o Bolsa-Família devido a existência desse processo pendente para obtenção do
salário-maternidade, que ainda corre na justiça.

GILBERTO DOMINGOS, 60 ANOS – AUXÍLIO-DOENÇA (EFETIVADO) E


APOSENTADORIA POR INVALIDEZ (NÃO EFETIVADA)
Há 20 anos Gilberto Domingos recebe o auxílio-doença. Ele deseja se aposentar por invalidez,
mas disse que não tem quem lhe ajude a dar entrada nos papéis. Durante a entrevista, mostrou
desconhecer que o atual benefício não servirá como pensão para a esposa, ou seja, o auxílio só tem
validade enquanto ele permanecer vivo.
Foi relatado que a FUNASA fornece medicamentos, mas que, em alguns casos o Sr. Gilberto
acaba utilizando parte do dinheiro do benefício na compra de remédios. A renda dele também é usada
para a alimentação, sendo que ainda o ajuda na locomoção e em outras necessidades que o doente tem.

126
ROSA BATISTA DOS SANTOS – AUXÍLIO-DOENÇA
Rosa Batista é uma senhora com deficiência física. Tem uma perna maior que a outra,
problema que vem causando sério desvio na coluna e deixando a mesma quase aleijada e sem forças
para locomoção. Convive com a deficiência desde a infância, mas foi aos 30 anos que começou a
sentir as fortes dores na coluna.
O agravamento do estado de saúde lhe levou a dar entrada no benefício. Recebeu o auxílio-
doença por um longo período. Em 2009, contudo, o benefício não foi mais renovado, situação que,
para Rosa Batista, deveu-se à entrada de novos médicos na perícia do INSS.
Ela também explicou à equipe de pesquisa sobre o motivo dos indeferimentos das solicitações
junto ao INSS. Casada por um curto período, dona Rosa e o ex-marido foram morar em residências
diferentes após a separação, mas não desfizeram formalmente a união.
Esse fato de não terem se separado legalmente é o que tem atrapalhado na renovação do
benefício e na aposentadoria por invalidez. Ao fazer o cálculo da renda familiar de dona Rosa, a
Previdência soma os ganhos do ex-marido, que recebe mais de um salário mínimo por mês. Só a renda
dele já cobre a das outras pessoas da casa de Rosa.
Atualmente, os familiares que residem com Rosa Batista vivem das atividades de roça,
complementando a renda com três benefícios. Há um Bolsa-Família, que chega apenas pela metade
porque a filha de Rosa fica com a outra parte onde mora, e a mãe de Rosa é aposentada e também
recebe pensão.

RAIMUNDO CANDIDO SOBRINHO, 48 ANOS – AUXÍLIO-DOENÇA (NÃO


EFETIVADO)
O esposo de dona Susete, o Sr. Raimundo Candido Sobrinho, enfrenta a mesma situação, já
que está doente e não tem benefício. Apresenta problemas cardíacos, com o diagnóstico de arritmia e
coração grande, cientificamente chamado miocardiopatia dilatada. Para seu descontentamento, até
agora não conseguiu o auxílio-doença, o que o tem levado a continuar trabalhando na pesca, apesar
dos riscos à saúde.
Contudo, o fato de executar tal trabalho tem sido o motivo dificultador para o não acesso ao
benefício. Ele diz que não pode parar de pescar mesmo estando doente, pois se parar de trabalhar sua
família não se alimenta. Assim, ele se vê forçado a continuar pescando. Por outro lado, o INSS
caracteriza tal ação como descaracterização dos critérios para o auxílio-doença.

JOSÉLIA GALDINO DE LIMA, 30 ANOS – SALÁRIO-MATERNIDADE


(EFETIVADO)
Foi por meio das orientações das lideranças da aldeia, que Josélia Galdino passou a ter
conhecimento dos direitos previdenciários do segurado especial indígena. Desde a primeira vez que
em procurou a APS para acessar os benefícios, já obteve três salários-maternidade. Outro benefício
que recebe é o Bolsa-Família.
Josélia complementa a renda familiar com outras formas de arrecadar dinheiro, realizando
“bicos” com o marido e um dos filhos que ajuda no sustento do lar. Indagada sobre a existência de
idosos com renda na família, afirmou que não há nenhum aposentado na casa em que residem, apenas
as rendas já citadas.

127
MIGUEL ARAÚJO DA SILVA, 42 ANOS – AUXÍLIO-DOENÇA
Miguel da Silva alega ter problemas neurológicos e, mensalmente, é levado ao hospital para
consulta de rotina. Toma remédios controlados e, por indicação médica, está proibido de trabalhar em
roça, pois não pode ficar em contato prolongado com o sol. Os problemas neurológicos estão
atingindo cada vez mais seu estado físico, acarretado problemas de locomoção e outros.
Há cinco anos recebia o auxílio-doença, benefício que foi cancelado. Dessa data aos dias
atuais tentou por três vezes renovar o benefício, sem obter êxito. Usava o benefício para comprar seus
remédios e roupas.

EDILSON CIRIACO DA SILVA – AUXÍLIO-DOENÇA (EFETIVADO)


Edilson Ciriaco possui um auxílio-doença. O atendimento na APS para dar entrada nesse
benefício foi agendado por meio do 135, serviço que os Potiguara utilizam por acharem menos
complicado, explicou Edilson.

LILIA GOMES DOS SANTOS, 25 ANOS – SALÁRIO-MATERNIDADE (NÃO


EFETIVADO)
Lilia Gomes tem uma filha de apenas cinco meses e está com dificuldades para adquirir o
salário-maternidade. Ela explicou que parte de seus documentos apresenta o nome de casada e a outra
parte ainda traz o nome de solteira.
Durante a coleta do depoimento, os indígenas que estavam por perto, acreditando que a equipe
de pesquisa possuía alguma autoridade para ajudá-la diretamente no acesso ao salário-maternidade,
disseram que Lilia seria a última pessoa que o INSS poderia negar o benefício. Argumentaram que ela
trabalha há vários anos na roça, desde sua infância, e que por isso não é justo ter seu pedido
indeferido.

MANOEL PADILHA DOS SANTOS, 61 ANOS – APOSENTADORIA POR IDADE


Nascido na aldeia Coqueirinho, o Manoel Padilha se aposentou como pescador, segundo ele,
depois que foi contestada sua identidade indígena e sua indianidade pelo INSS. Assim, optou por não
esperar se aposentar como segurado especial indígena, apenas como pescador.
Deu entrada em sua aposentadoria a partir de uma visita do PREVMovel, em uma das vezes
em que esse realizou atendimento na praça da Baía da Traição. Após ser atendido, foi especificada sua
categoria como pescador. Perguntado pela equipe como ele se vê, afirma ser indígena-pescador,
tirador de coco e um dos mais velhos moradores da aldeia Coqueirinho.

IVO BATISTA DE MELO, 71 ANOS – AUXÍLIO-DOENÇA (EFETIVADO) E


APOSENTADORIA POR INVALIDEZ (NÃO EFETIVADA)
Com problemas nas pernas, membros superiores e inferiores de tamanhos diferentes e
enfrentando um câncer, Ivo Batista não anda há mais de 20 anos. Recebe o auxílio-doença, mas o que
realmente busca é a aposentadoria por invalidez. As dificuldades e, consequentemente, a demora no
deferimento da aposentadoria por invalidez, tem desestimulado Ivo a alcançar tal benefício. Por conta
do câncer, tem desmaios constantes, necessitando permanentemente dos familiares para seu cuidado.

128
ISABEL CIRIACO DA CONCEIÇÃO, 78 ANOS – APOSENTADORIA E PENSÃO
(EFETIVADAS)
A aposentada Isabel Ciriaco teve sete filhos, dois natimortos e um aborto. Uma das filhas é
deficiente, apresentando problemas físicos e neurais. Além da aposentadoria, recebe pensão deixada
pelo senhor Manoel Antonio dos Santos, falecido há mais de 40 anos.
Contou que conseguiu a pensão por morte só depois de 15 anos que o marido havia falecido. A
demora se explica pelo fato de a mesma ser casada apenas na Igreja, gerando dificuldades de
comprovação do matrimônio.

ANTONIO FELIX DE LIMA, 77 ANOS – APOSENTADORIA POR IDADE


(EFETIVADA)
Quando completou 65 anos de idade, Antonio Félix de Lima conseguiu dar entrada na
aposentadoria sem dificuldades. Sempre trabalhou como agricultor nas terras indígenas, fazendo
roçado. A esposa também é aposentada e eles são pais do atual cacique da aldeia Tramataia.
Para ele, o que mais colaborou no acesso ao benefício foi a precaução em ter toda a
documentação em dias e, também, a proximidade territorial entre a aldeia e a APS de Rio Tinto. Com
as aposentadorias dele e da esposa, o casal decidiu por fazer um empréstimo consignado para reformar
a residência em que vivem.

MARIA GABRIELA DA CONCEIÇÃO, 60 ANOS – APOSENTADORIA POR IDADE


(EFETIVADA) E PENSÃO POR MORTE (NÃO EFETIVADA)
Maria Gabriela da Conceição é aposentada e também gostaria de receber a pensão do marido
falecido, um ex-funcionário da FUNAI que era auxiliar de serviços gerais. Mas por não terem casado
em juízo, ela não está tendo direito à pensão. Assim, entrou na justiça comum para obter o benefício, o
qual tem demorado ainda mais porque os filhos do falecido não reconhecem o casamento do pai.
Já tem nove anos que o processo judicial referente à pensão está na justiça comum. Os filhos
do falecido, oriundos do primeiro casamento, se recusam a assinar a liberação do benefício para Maria
Gabriela. O jeito, então, é contar mesmo com a própria aposentadoria e o dinheiro da venda da
mandioca.

MARIA DAS GRAÇAS SANTANA DOS SANTOS, 47 ANOS – AUXÍLIO-DOENÇA


(EFETIVADO)
Depois de um AVC, há 22 anos, Maria das Graças Santana dos Santos passou a receber o
auxílio-doença. Anda com dificuldades e precisa de uma pessoa para ajudá-la, pois a fraqueza nas
pernas lhe tirou a autonomia de locomoção. A renda da casa é complementada pelo esposo que
trabalha na roça e um Bolsa-Família de R$68,00.
Sobre o acesso à previdência, foi relatado que se tentou por duas vezes dar entrada no
benefício, mas não conseguiram nada. O indeferimento da primeira vez deveu-se à falta de
documentos, mas com a ajuda da filha pode alcançar o benefício na segunda tentativa. Atualmente,
elas fazem de dois em dois anos a renovação do auxílio-doença.

129
ADEMILSON DE OLINDA DA SILVA, 58 ANOS – AUXÍLIO-DOENÇA
A situação de Ademilson da Silva não é das melhores. Tem asma crônica e dificuldade em
respirar quando os níveis de temperatura ficam oscilantes. Também não pode trabalhar em roça,
principalmente no período do inverno, quando o tempo é mais frio e os ataques de asma costumam ser
frequentes.
Por duas vezes teve a solicitação do auxílio-doença indeferida pela perícia do INSS em Rio
Tinto. Atualmente, o processo se encontra na justiça, enquanto uma nova tentativa de receber o
benefício, feita há mais de cinco meses, aguarda resposta.
Para sobreviver, Ademilson insiste em trabalhar em roça, arriscando comprometer ainda mais
a sua saúde. A outra renda vem do Bolsa-Família, R$ 68,00 que uma das filhas recebe pelo neto. Ele
desabafou e disse que esse valor é irrisório em se tratando do sustento de quase cinco pessoas, por isso
tem que plantar roça.
Caso o auxílio-doença seja deferido, o futuro beneficiário pretende comprar mantimentos e
guardar uma parte na poupança. Enquanto isso, continua vivendo aos cuidados da sobrinha, pois não
pode residir sozinho pelo risco de desmaiar durante o ataque asmático. Quando tal problema ocorre, o
irmão que tem motocicleta o leva rapidamente ao hospital.

IRACY CASSIANO SOARES, 67 ANOS – APOSENTADA (EFETIVADA)


Dona Iracy Cassiano Soares aposentou-se em 1999. Disse que não teve dificuldades em
conseguir o benefício e nem em obter a declaração do Cacique da aldeia. Contudo, em se tratando dos
povos indígenas e de suas peculiaridades, acha os prazos determinados pelo INSS incoerentes.

HOZANA CIRIACO, 48 ANOS – BENEFÍCIO DE PRESTAÇÃO CONTINUADA


(EFETIVADO)
Hozana Ciriaco tem deficiência física e intelectual desde nascença, necessitando de fraldas,
remédios controlados e alimentação específica. Recebe o BPC, que só saiu depois de quatro idas da
Curadora e da beneficiária à APS de Rio Tinto.
É assistida por uma Curatela que sua irmã é responsável. Recebe atendimento domiciliar por
não conseguir se deslocar. Periodicamente a FUNASA envia um profissional de saúde até a residência
de dona Hozana, para atender a paciente e orientar os familiares.

4.3.4 BANIWA

O coordenador do Barco PAI, Raimundo Kinger de Oliveira, declara que, geralmente,


o processo para dar entrada no benefício é interrompido por pendências de documentação,
especialmente as declarações da FUNAI que atestam a atividade rural do indígena.

Então, vemos muita coisa aqui, até índia emprestando filho para outra índia
para ter auxílio-natalidade. Aí já estão querendo fazer falcatrua com a
Previdência. Por isso, quem expede um documento de suma importância
para o índio precisa ter muita responsabilidade para realmente ver a origem,
130
nascimento etc. Porque tem gente que diz que é índio da aldeia de Oiritê, aí
tira o benefício por lá, mas ele nasceu mesmo foi no Rio Grande do Norte.
(Entrevista com Raimundo Kinger de Oliveira, coordenador do Barco PAI).
Sobre a relação da Prefeitura de São Gabriel da Cachoeira e a Previdência, o vice-
prefeito destacou que a administração local vai ceder um local para a construção de uma APS,
substituindo as visitas momentâneas pelo atendimento regular às comunidades. André informa
que a chegada do Barco PAI na cidade é sempre inesperada, sem planejamento e organização,
sendo essa a dificuldade principal para o acesso ao benefício, principalmente de quem vive
em áreas distantes.
No geral, o benefício mais solicitado pelos Baniwa é a aposentadoria por idade,
seguido pelo salário-maternidade. O auxílio-doença e a aposentadoria por invalidez são
menos requisitados, pois o atendimento desses casos é dificultado pelas exigências
necessárias para se realizar a perícia, como o médico cadastrado no INSS para dar o laudo.
Segundo André, “às vezes tem médico, mas não é cadastrado. Quando uma equipe completa
vem, o índio consegue. Mas tem muita gente ainda no município que não tem”.
André expôs uma reflexão sobre a questão da interpretação da identidade indígena
pela Previdência, defendendo uma categoria específica, pois acha que “Trabalhador Rural”
não dá conta da dimensão do modo de viver do índio.

Porque ele é mais que um trabalhador, né? É um trabalhador indígena. Sei lá,
teria que pensar melhor o nome, porque na verdade é um trabalhador
também. Só que ele é diferente, não é só Rural. Então por isso que eu acho
que teria que ser Indígena mesmo. Também não tem como separar o índio
urbano e o índio das terras indígenas, né? É índio! Agora existem os com
profissão, como professor, administrador. Mas existe o índio que não tem
nada, que não faz outra atividade além de fazer sua casa, ir na roça, coleta de
frutas, fazer sua roça, produzir, vender artesanato, faz tudo isso ao mesmo
tempo. Ele não tem especialidade, ele é multi. Múltiplo, doutor, pra poder
sobreviver. Acho que é isso que deveria caracterizar a questão da categoria
específica Indígena. (Entrevista com André Fernando, vice-prefeito de São
Gabriel da Cachoeira e a Previdência).
Segundo Irineu Rodrigues, a FOIRN não tem uma grande aproximação com a
Previdência Social. Mesmo assim, já solicitou oficinas do PEP para as lideranças, pois tinham
dificuldade de entendimento sobre o que é um Segurado Especial. Participaram diversos
representantes das associações indígenas da região, pois são eles os multiplicadores das
informações, que viajam pelas comunidades para esclarecer a população sobre o que tem que
de ser feito e a quem se deve procurar.

131
Além da FOIRN colaborar diretamente no acesso dos Baniwa à documentação,
promove a orientação da população indígena sobre as questões previdenciárias,
principalmente junto aos idosos.

A orientação que nós temos para as comunidades é essa: “Quando


completarem 60 anos vocês tem direito à Previdência Social, a um benefício
do INSS, e tem que ter documentação completa”. E na questão dos já
aposentados orientamos: “Não deixem mais os cartões de vocês com os
comerciantes, procurem fazer uma conta corrente no banco. Conversem com
o gerente. Mesmo tendo o número do INSS, o dinheiro pode ser transferido
automaticamente para outra conta, para não mais deixar seu cartão com
alguém. Você pode passar cinco, seis meses sem vir aqui, porque cai e
automaticamente vai para sua conta, assim não tem o perigo desse dinheiro
retornar” (Entrevista com Irineu Rodrigues, liderança da FOIRN).
Uma dificuldade relatada, vivida principalmente pelos idosos, é o deslocamento de
quem mora nas extremidades para São Gabriel da Cachoeira. A viagem tem duração de dez a
quinze dias, para virem receber o benefício de trinta em trinta dias. Conforme ilustra Irineu,
“os mais velhos dizem: “vou ficar apenas dez, quinze dias na minha comunidade e já vou ter
que descer para receber meu benefício de novo”. Eu também acho que fica muito ruim”.
A situação é realmente complicada por conta dos custos elevados e do tempo que leva
a viagem até a sede para receber um benefício que, por vezes, é inferior aos custos da viagem.
Assim, muito indígenas têm que fazer alguma atividade para poder garantir a sua vinda e o
retorno e comprar alguma coisa que precisam. Segundo Irineu, a FOIRN vem dialogando com
o governo local para implantar caixas de autoatendimento nas áreas distantes, facilitando
assim a vida dos idosos.
Outra situação relatada por Irineu é vivida por quem vai fazer a perícia em Manaus
para ter acesso ao benefício. O indígena fica hospedado na casa alugada por um parente
Baniwa que trabalha na SEIND. Em alguns casos, as passagens são fornecidas pela FUNAI
ou pela Prefeitura. Basicamente, as despesas do indígena são com alimentação e cópia de
documentos.
Contudo, quando o benefício é solicitado em Manaus, pode acontecer de o recurso ser
depositado em uma conta do Banco Itaú, que não possui agência em São Gabriel da
Cachoeira. Quando isso ocorre, é necessário retornar a Manaus para fazer a transferência para
uma conta no Banco do Brasil, tendo o indígena que enfrentar o mesmo processo novamente.
Ao serem indagados sobre o conhecimento dos benefícios previdenciários, as
lideranças da OIBI, Mário Farias, Armindo e Raimundo Benjamim disseram conhecer alguns
direitos, mas apontaram inúmeras dificuldades encontradas pelo indígena que desejam tornar-
132
se segurado especial. Entre as reclamações estão a falta de médicos para a perícia e emissão
de declarações como óbito e registro de nascimento.
A maioria dos indígenas tenta a aposentadoria por idade, mas existem outros que
gostariam de se aposentar por invalidez ou apenas receber um auxílio-doença, esbarrando no
problema da falta de peritos.
Segundo Raimundo, a última visita do Barco PAI foi organizada pela FUNAI e a
equipe ficou uma semana na área. As lideranças informam que fazem as solicitações, mas que
os representantes do INSS em São Gabriel da Cachoeira não dão resposta. “A gente pode
fazer um documento e esperar o tempo que for, mas eles não resolvem nada. Agora, quando
esse barco vier, ele vai receber muita coisa”, reclama Mário.
A equipe buscou compreender também um aspecto do atendimento dos técnicos do
INSS junto aos indígenas: a linguagem. Os idosos pouco falam o português, necessitando de
um filho ou neto para acompanhar na tradução. A própria compreensão do índio sobre a
linguagem do branco às vezes é confusa, como explicou Raimundo:

Tem muita dificuldade para o idoso, porque os nossos pais tiveram acesso à
escola, mas eles têm dificuldade para falar e o pessoal do INSS não
consegue entender. Acreditamos até que eles [do INSS] tenham bastante
vontade de atender, mas por falta mesmo de conhecimento da língua é que
acontecem os empecilhos, mesmo que sempre haja alguém ao lado tentando
ajudar.
São três as línguas indígenas faladas na região: Baniwa, Neegatu e Tukano. Quanto
mais se sobe o rio e se distancia da cidade, mais complicada fica a comunicação. Primeiro,
porque nem todos falam as línguas indígenas e o português, principalmente nos locais onde a
língua é viva, ou seja, onde se conserva pura entre os índios por representar toda a realidade
do seu modus vivendi. Segundo, os povos que moram na fronteira não têm praticamente
contato com a cidade, desconhecendo às vezes a própria questão dos direitos sociais e
previdenciários.

133
Casos Previdenciários

FELISBERTO MIGUEL FRAZÃO – AUXÍLIO-DOENÇA E APOSENTADORIA POR


INVALIDEZ (NÃO EFETIVADOS)
Felisberto Miguel Frazão, de 46 anos, afirmou não ter condições de trabalhar por conta de
problemas de saúde. Há seis meses, recebeu o diagnóstico de tuberculose, mas continua sentindo as
mesmas coisas de antes. Antes da tuberculose, trabalhava na lavoura, no plantio de mandioca,
limpando a roça, cortando madeira.
Já tentou se aposentar por invalidez, mas não obteve sucesso. Disse não receber nenhum tipo
de informação na comunidade ou mesmo no Barco PAI, pois esse aglomera muita gente, não sendo
possível atender todo mundo. Reclamou também da FUNAI, dizendo que “a Fundação não presta
nenhuma assistência pra nós daqui de cima [e que] eles não vão dar informações em todas as
comunidades, escolhem alguma e quem quiser tem que gastar para chegar lá”.
Hoje, sem poder trabalhar, ele é ajudado por outros indígenas e familiares. O estado debilitado
de saúde o levou por quatro vezes a São Gabriel da Cachoeira, sem haver melhora das dores pelo
corpo e contínuo mal-estar do organismo. Pelas dificuldades que enfrenta, gostaria de se aposentar,
apesar de reclamar da dificuldade de deslocamento: “É muito distante para cá, tem que comprar
gasolina e não uma coisa para levar para a comunidade”.

4.3.5 TIRIYÓ

Na entrevista realizada com Afonso Rodrigues, chefe do SMT da FUNAI, ficaram


evidentes os procedimentos implementados e as dificuldades enfrentadas pelo órgão para
garantir o acesso dos Tiriyó aos seus direitos previdenciários, como aposentadoria, salário-
maternidade e outros.
Conforme o Sr. Afonso, os indígenas que vivem em áreas sofrem com as dificuldades
de acesso até a cidade. Um exemplo sobre esse tipo de problema é a falta de acesso dos
indígenas ao PBF, do Governo Federal, por conta da indefinição sobre a quem cabe a
responsabilidade de conceder e/ou providenciar a inserção dos indígenas nesse programa. A
FUNAI alega que não tem possibilidades administrativas e recursos humanos para
encaminhar essa demanda. A fala abaixo destaca alguns elementos a respeito dessa questão:

(...) o problema deles [de quem está no Parque do Tumucumaque], é que eles
estão do lado do Pará. Por exemplo, agora, o Censo [do IBGE] está sendo
levantado lá em Santarém. Eles estão sendo colocados no Censo do Pará. A
gente tem um Censo [da FUNAI] aqui do nosso controle, mas no geral eles
estão sendo conferidos pelo estado do Pará. Aí, o que causa problema, por
exemplo: Bolsa-Família. Eles não recebem. Porque ninguém sabe onde que
eles vão procurar esses benefícios. Apesar da FUNAI aqui do Estado ser
responsável por eles, mas eles estão todos cadastrados por Óbitos,
134
Oriximiná, Alenquer [Pará]. (...) Aí muitas vezes eles chegam aqui dizendo
“Ah, eu gostaria de receber o Bolsa-Família”. Mas aí, onde? Por onde é que
eles irão receber? (Entrevista com Afonso Rodrigues, chefe do SMT da
FUNAI/Macapá).
No caso dos indígenas aposentados, as dificuldades se tornam latentes quando o
assunto é o recebimento do benefício após o parecer favorável do INSS. Os problemas que
enfrentam devido ao difícil acesso à cidade geram contratempos tão específicos que as
estratégias formuladas pela FUNAI ainda não foram suficientes para resolver. Um problema
comum entre os Tiriyó que são aposentados é o fato de terem suas senhas bancárias
bloqueadas após passarem mais de três meses sem recolher o benefício da aposentadoria no
Banco. Abaixo, destacamos alguns elementos que abordam os problemas enfrentados pelos
Tiriyó para receberem seus benefícios. Há casos em que a falta de uma carta da Previdência
Social para a FUNAI comunicando a aprovação da aposentadoria e indicando o Banco onde o
recurso pode ser sacado faz com que o dinheiro permaneça na conta até ser bloqueada:

Com noventa dias vence essa senha. Aí, o que acontece? Só com a presença
do aposentado. Aí eles vêm aqui, nosso funcionário vai, leva ele na agência e
eles fazem a renovação da senha. Até mesmo como uma forma de saber se a
pessoa está viva (...) se passar para o quarto mês, [o dinheiro] não fica na
conta. Volta para o INSS. Aí o que acontece: eles vêm aqui e a gente tem
que fazer um ofício para encaminhar para lá informando que aquela pessoa
mora em área de difícil acesso e que devido a isso ele não compareceu no
domicílio bancário em tempo hábil para o recebimento do pagamento. Aí o
INSS vai e faz a pesquisa. Ele tem que estar presente lá, o cidadão. E depois
aquele dinheiro vai para a conta novamente. (...) a Previdência mandava essa
carta de concessão. Aí aqui vem dizendo: “Comunicamos que concedemos
aposentadoria por idade ao indígena (nome) com início de vigência (data) de
forma também que o pagamento será efetuado no terceiro dia útil de cada
mês no domicílio bancário (agência)”. Aí é essa carta aqui que não está mais
chegando agora. (...) A gente mandou, mas não veio nenhum documento.
Essa aqui foi a menina que pediu lá no sistema para puxar e passar para ele
[mostra um documento]. Já estava para voltar esse pagamento. (Entrevista
com Afonso Rodrigues, chefe do SMT da FUNAI/Macapá).
Sobre o processo de emissão do cartão para recebimento de benefício pelo banco e a
guarda do mesmo na FUNAI após a concessão da aposentadoria pela Previdência Social, foi
enfatizado:

A gente identifica o domicílio bancário e vai. Aí no momento eles fazem a


solicitação do cartão e abre a conta para eles. Já vem indicado o benefício,
então o banco abre a conta para ele. Marca 15 dias para receber o cartão. (...)
o INSS manda [o cartão] para o endereço da FUNAI. Quando eles dão
entrada na aposentadoria lá, já vai toda cópia da documentação deles, vai o

135
comprovante de residência da FUNAI, CPF, declaração informando que ele
é indígena, que mora na aldeia e é especificada a aldeia em que ele mora. Aí
quando aposentam, eles mandam. Aí já vem informando aqui. Os cartões
ficam aqui. Todos os bancos vêm e deixam os cartões aqui. (Entrevista com
Afonso Rodrigues, chefe do SMT da FUNAI/Macapá).
Depois que o cartão da conta benefício é emitido pelo banco a serviço da Previdência
Social, há aposentados que optam em criar sua própria conta-corrente, mesmo que precisem
pagar uma taxa de manutenção. O objetivo principal é evitar com que suas contas sejam
bloqueadas a cada três meses caso deixem de sacar o recurso durante muito tempo. O técnico
da FUNAI explicou o procedimento tomado pelo órgão para os casos de conta benefício e
conta corrente, quando o cartão do beneficiário fica sob a responsabilidade da FUNAI:

[Para quem cria a conta corrente] O dinheiro pode chegar e ficar um ano lá
que quando ele chegar ele recebe. Está lá na conta dele. Mas o que é [conta]
benefício só pode ficar lá durante 60 dias. [Então, a FUNAI] Separa esses
que têm conta corrente e emite o saque deles quando completa os dois
meses. Para não voltar, para não cancelar, a gente vai, faz o saque, faz a
pesquisa. Vai deixando aqui. Quando chega a oportunidade a gente manda
para lá para a aldeia. (...) Em abril eu fui a uma ação do Exército para a
Missão Tiriyó, (...) eu tive que sair daqui, levar esse dinheiro para Belém,
passei uma noite no hotel e fui para o aeroporto para levar esse dinheiro para
lá. Só que com o intuito de ajudar. (...). Aí quando foi agora em julho ou
agosto teve outra ação do Exército para cadastrar os jovens no alistamento,
aí a nossa colega também levou mais uma quantidade lá. (Entrevista com
Afonso Rodrigues, chefe do SMT da FUNAI/Macapá).
Conforme percebemos, uma das estratégias da FUNAI para garantir o recebimento dos
recursos da aposentadoria pelos indígenas Tiriyó é se responsabilizar pelos cartões e por sacar
da conta benefício dos aposentados o valor referente a cada sbenefício mensal. O problema é
que não existe uma garantia de quando o recurso recebido irá ser entregue ao aposentado, seja
com a ida do mesmo até a FUNAI, seja por meio de alguma ação realizada pelo órgão para
entregar os benefícios recolhidos.
Na perspectiva de resolver os problemas que advêm dessa nova situação, alguns
aposentados autorizam a FUNAI a comprar equipamentos de trabalho ou itens alimentícios a
serem enviados para a Aldeia Missão Tiriyó. Disso, decorrem novos problemas,
considerando-se que a FUNAI não dispõe de avião para o deslocamento de equipamentos ou
alimentação. Notamos que um círculo vicioso é gerado a cada nova tentativa para enfrentar a
dificuldade de acesso dos Tiriyó à cidade. As ações propostas pela FUNAI acabam
sobrecarregando-a, já que excedem à competência do órgão. Os trechos abaixo denotam os
elementos apontados a respeito desse assunto:
136
Quando vem algum familiar deles aqui, filhos deles, acompanhando alguém
da saúde de carona no avião, aí traz a autorização dele lá. Então se passa
aquele dinheiro à pessoa da família, aí eles vão no comércio, trazem a nota
fiscal e a gente guarda dentro de uma pasta. Fica tudo registrado. Teve uma
índia que guardou o dinheiro dela para comprar um motor de popa. E ela
juntou R$6.200, e comprou um motor de popa. Para eles se deslocarem por
perto da aldeia, para ir comprar um peixe mais distante. Quando o peixe já
não está próximo da aldeia (...) Aí, depois que compra o motor, ela traz a
nota fiscal e ela fica na pasta deles com todos os recibos desse montante
aqui.
(...) Fazemos o orçamento [nas lojas]. E assim é com alimentação: um fardo
de sal. Passa no rádio: “solicito que seja adquirido da minha aposentadoria
trinta quilos de sal, tantos quilos de açúcar...”. A gente aqui gosta mesmo
que vá um funcionário nosso junto com eles. Para que quando eles cheguem
lá não fiquem comprando coisas que não são necessárias para eles. Então o
funcionário vai ao supermercado, faz as compras, leva CPF e identidade para
emitir a nota fiscal e ela fica na pasta deles.
(...) Aconteceu no ano passado que a FUNAI prometeu que mandaria um
avião para cá para dar apoio a eles. Compraram muita alimentação. “O avião
vai chegar! O avião vai chegar!”. E o que aconteceu foi que o avião não veio
e a alimentação estragou. Infelizmente estragou. Foi um monte de coisas. A
FUNAI é cartão Petrobrás, e quem fornecia o combustível aqui para Macapá
era a Shell. Então começou a dar um monte de problemas administrativos.
Então eles fizeram essa aquisição e aí estragou. Então agora a gente está
orientando para que não comprem muita coisa assim porque vence rápido
(Entrevista com Afonso Rodrigues, chefe do SMT da FUNAI/Macapá).
A partir da entrevista acima percebemos que a FUNAI se esforça particularmente para
garantir o acesso dos indígenas ao benefício da aposentadoria. Os demais benefícios
previdenciários, como o salário-maternidade e o auxílio-doença, raramente são acessados
pelos Tiriyó, devido à indefinição dos papéis entre FUNASA e FUNAI no processo de
encaminhamento dos indígenas aos serviços previdenciários. Isso significa que os Tiriyó
deixam de acessar os seus direitos junto à Previdência Social.
Nessa conjuntura difícil, uma das sugestões apontadas pela FUNAI/Macapá para a
melhoria dos serviços previdenciários junto aos Tiriyó está relacionada ao período de validade
da senha bancária que dá acesso aos recursos da aposentadoria dos indígenas:

(...) que essa senha pudesse ter um prazo mais longo, porque dois meses, 60
(sessenta) dias é muito pouco. Então se a gente fizesse uma relação dos
aposentados indígenas, levasse para eles [INSS e banco] e a gente pudesse
fazer um prazo mais longo para renovar essas senhas. Até porque, quando
morrem lá na aldeia, eles passam o rádio “morreu fulano”. Então, mesmo
não tendo uma certidão de óbito no momento, mas eu pego aquele
radiograma, e encaminho por meio de ofício lá para o INSS informando o
137
falecimento daquele aposentado para poder já parar ali. Então acho que não
tem essa necessidade desse prazo de 60 (sessenta) dias. Se pudesse alongar
essa data aí, para seis meses. (Entrevista com Afonso Rodrigues, chefe do
SMT da FUNAI/Macapá).
Em relação aos problemas vivenciados pelos indígenas na sua relação com os
benefícios previdenciários, Ana Isabel, gerente do INSS/Amapá, destacou que esses surgem
particularmente no processo de recebimento do pagamento. Tanto a FUNAI quanto o INSS
evidenciam que a grande dificuldade para os Tiriyó que já são beneficiários da Previdência
Social é se deslocarem da aldeia para recolher seus benefícios no banco, em Macapá. De
acordo com o INSS uma das sugestões que já foram pensadas para resolver esse problema é
que o pagamento dos indígenas seja realizado na própria aldeia, por meio de uma articulação
entre o INSS, a FUNAI e as instituições bancárias.
Na opinião da gerente executiva do INSS em Macapá a ação que resolveria as
dificuldades de descolamento dos indígenas Tiriyó para receberem seus recursos financeiros
dos benefícios previdenciários passa pela responsabilização da FUNAI em recolher esses
recursos e, posteriormente, entregá-los aos índios.
Sobre o que pensam do trabalho realizado pela equipe de pesquisa e as propostas que
têm para melhorar o acesso dos indígenas aos benefícios previdenciários, o tuxaua da aldeia
esclareceu que:

penso que vai melhorar alguma coisa a partir do momento que vocês estão
levando, eu espero que algum órgão faça alguma coisa, que melhore e
principalmente a dificuldade dos aposentados que vão daqui para sofrer em
Macapá, porque a gente não está acostumada a viver lá, a gente está
acostumada a viver aqui. E eu espero que vocês resolvam de fazer uma linha
só de pagamento para nós aqui. Porque a gente também precisa, a gente
compra outras coisas aqui. A gente não compra a caça, porque a caça está
em extinção aqui... E a gente compra e a gente queria esse benefício não na
cidade, a gente quer esse benefício aqui mesmo, para poder circular aqui
mesmo que iria melhorar muito as coisas aqui. E se tivesse algum sinal que
fizesse esse pagamento aqui mesmo na aldeia. E estou agradecendo em
nome de todos da comunidade. (Depoimento do tuxaua da Aldeia Missão
Tiriyó)

138
Casos Previdenciários

IDOSOS TIRIYÓ APOSENTADOS E SUAS DIFICULDADES

Entre os indígenas que já foram aposentados e recebem seus benefícios de modo mais regular,
o tuxaua da Aldeia Missão Tiriyó esclareceu que, apesar de ser aposentado, enfrenta muitas
dificuldades para receber seu recurso: “Eu estou recebendo o meu benefício, mas na verdade é difícil
eu dizer que eu vou receber todo mês e está me beneficiando. Não é bem assim. Está difícil para a
gente, esse dinheiro para a gente receber... tem que ir daqui para Macapá e enfrentar outra realidade lá.
E a gente sente muita dificuldade e eu vou falar da minha esposa um pouco que ela ainda não é
aposentada. Eu tenho duas filhas e eu perdi duas. Faleceram. E o que restou foi ela. Eu penso assim: o
dinheiro, quando elas pedem “poxa, mas a gente deveria comprar alguma coisa para a gente”, eu não
tenho condições de comprar motosserra. Vocês sabem que o dinheiro não vem certo, vem pouco. Eu
lamento muito e é o único que eu posso responder para vocês, porque eu não sou dono de dinheiro. Eu
sou aposentado, mas esse dinheiro não chega até em mim. Eu sinto muito. É assim que eu falo para as
minhas filhas quando elas pedem alguma coisa. “Poxa, pai, a gente deveria melhorar a casa” com
motosserra ou alguma coisa assim, mas eu não tenho como responder e às vezes falo: “Olha, vocês
não podem falar isso, a gente é capaz de fazer casa com a nossa mão, mesmo. A gente pode tentar”,
não é? Porque o dinheiro, dinheiro mesmo não é nosso, é dos brancos. Mas, como eles acostumaram a
gente, eu sei que a gente está precisando disso, tem que ter isso. E às vezes eu penso, eu mesmo,
quando penso nas minhas filhas fazendo as coisas pesadas, eu fico chorando em um canto vendo elas
sofrerem. E eu falo para mim mesmo, fico rezando. Eu sei que dinheiro não leva a gente para o céu, o
dinheiro é daqui da terra. Mas com fé em Deus a gente vai conseguir. E é assim que eu minimizo as
coisas aqui, porque eu tenho fé que Deus está junto com a gente em todos os momentos.”
Os indígenas que se deslocam da aldeia Missão Tiriyó até a cidade de Macapá fazem isso para
cuidar da saúde e para providenciarem o recebimento dos seus benefícios previdenciários. Alguns
desses indígenas foram localizados na casa alugada pelo presidente da Associação dos Povos
Indígenas Tiriyó, Kaxuyana e Txikuyna – APITIKATXI para hospedar pessoas que vêm das aldeias
de Tiriyó e Kaxuyana. Constatou-se a situação precária que precisam enfrentar para terem acesso aos
seus benefícios, pois na casa onde geralmente ficam hospedados vivem em condições insalubres,
cozinham coletivamente e dormem em quartos coletivos, divididos entre homens e mulheres.
Entre os indígenas entrevistados na visita realizada pela equipe de pesquisa à casa alugada
pela APITIKATXI para a instalação dos indígenas, verificou-se que alguns já se encontravam lá há
quatro meses, todos idosos, aparentemente bastante desgastados pela realidade que enfrentam, pois
ficam o dia todo sem muitos afazeres. Ficam conversando e quando tem algum recurso compram
alimentos. É de fato uma situação difícil. Alguns vêm com acompanhantes, filhos, esposas e parentes.
O que ajuda na superlotação da casa onde se hospedam.
Na referida casa havia uma idosa que aguardava o parecer da FUNAI sobre seu benefício, mas
sempre que recorria à instituição não tinha nenhum retorno, pois segundo ela a FUNAI afirmava que
seu recurso estava bloqueado. A partir dos nossos esclarecimentos, uma das indígenas que
acompanhava essa senhora foi até o INSS e se informou sobre a situação da mesma. Na oportunidade
recebeu a informação de que a senhora tinha um recurso acumulado para receber e que só precisaria ir
ao INSS se apresentar e em seguida ir ao banco receber seu benefício. Uma situação simples para
resolver, que custou a mesma quatro meses na cidade de Macapá, totalmente sem informação e sem

139
recursos para se manter. Para muitos a vontade é partir para a aldeia, ainda que não tenham seus
problemas resolvidos, “já deu vontade de ir embora”, disse uma delas.
Em entrevista com a Sra. Nazaré e o Sr. Matias, outro casal indígena que se encontrava na
cidade de Macapá ficou constatado que o fato de terem filhos morando na cidade mobiliza os
indígenas a ficarem bastante tempo sem voltar para as aldeias. Ou seja, nem sempre são os problemas
de recebimento dos benefícios que os mobilizam a ficarem durante longo período na cidade. Esse
casal já estava há mais de um ano em Macapá, mas já tinha um enorme desejo de voltar para a aldeia,
pois tinha outros filhos morando lá. Segundo o intérprete que fez a tradução da língua indígena para o
português, observou-se que “Eles “tão” querendo voltar pra aldeia” “Eles passaram um tempo aqui
com a filha, cansaram e agora “tão” querendo voltar pra aldeia (...) “Tão” com saudade do filho e já
“tão” querendo voltar”. Mas, apesar do desejo não tinham informações precisas de quando poderiam
voltar, pois dependiam de caronas da FUNAI ou de outras instituições, como as organizações sociais
que trabalham com os indígenas da região.

IDOSOS TIRIYÓ COM DIFICULDADES DE ACESSAR A APOSENTADORIA

Na aldeia Missão Tiriyó, foram entrevistados um senhor e uma senhora que reclamaram de
ainda não estarem aposentados. Percebeu-se que a idade dos mesmos já é suficiente para ambos se
aposentarem. Porém, conforme apontaram, a FUNAI ainda não se manifestou para providenciar a
aposentadoria dos mesmos, embora já tenham questionado o órgão sobre seus direitos. O senhor
entrevistado se apresentou como um dos moradores mais antigos da aldeia, afirmando que é Tiriyó
puro, ou seja, que é descendente dos primeiros Tiriyó da região, que ainda não haviam se misturado
com os indígenas da etnia Kaxuyana. Conforme a tradutora que acompanhou a conversa com os
indígenas, o senhor entrevistado afirmou que “eles [a família dele] são os primeiros habitantes daqui,
só que ele tinha aldeia um pouco no rio.(...) Como eles não tinham apoio, ficavam doentes, ficava
muito longe, aí a esposa dele faleceu e ele está aqui com a filha dele”. Outros elementos da fala do
indígena entrevistado denotam as observações já ressaltadas, conforme se visualiza abaixo:
“[Tradutora] Ele está falando que ainda não é aposentado e que quer agora se aposentar
porque não tem condições de fazer outras coisas. Pelo menos uma ajuda. Que nunca veio ninguém,
que ninguém faz nada, principalmente da FUNAI. Já foi falado, as lideranças mandaram o nome dele
para que ele pudesse ser aposentado, só que até agora nada. Por isso que ele está aqui para poder
reivindicar os benefícios dele. Ele já é idoso. (...) Já foi falado para a própria FUNAI quando eles
vieram aqui. Ele não sabe o ano em que nasceu. Ninguém sabe. Nem a FUNAI.”
A declaração acima aponta que um dos elementos que justificam o fato do indígena
entrevistado ainda não ter sido aposentado é justamente a falta de documentação necessária, entretanto
o entrevistado não explicou por que ainda não tem os documentos. Conforme os indígenas
entrevistados havia outras pessoas nas mesmas condições que eles, que embora estejam aptas a se
aposentar ainda não foram encaminhadas para providenciarem seus benefícios.
No caso de outra demanda à aposentadoria, identificou-se o caso de uma indígena que está
ansiosa para que a FUNAI encaminhe seu pedido. A entrevistada já possui toda a documentação
necessária na FUNAI, afinal ela guarda uma cópia de seus documentos, mas é a FUNAI que guarda os
originais.
As dificuldades para poder acessar seus direitos são latentes e a necessidade em resolver a
situação de falta de acesso a recursos financeiros fica evidenciada na fala a seguir:
“Eu quero muito, eu já sou velho, eu sei que não vou demorar muito, mas enquanto eu estou
aqui vivo junto com a minha família e minhas filhas, eu quero o benefício para mim, que me ajude. A
140
minha esposa faleceu e eu estou aqui vivo ainda, mas eu quero. É urgente e eu espero que vocês nos
ajudem. Nós temos direito. A gente sabe que tem. A maioria dos jovens nos informa que nós temos
direito, só que esse direito é negado. Entendeu? Ele não chega até a gente. E vocês estão vendo a
realidade agora, e eu espero que vocês nos ajudem mesmo, de verdade. Que vocês levem o nosso
nome, “olha, o velho está lá”. Eu sofri muito, trabalhei muito na roça e como não tenho mais
condições, eu faria um pouco, mas a vida me obriga a ajudar, mas com esse benefício eu queria
melhorar alguma coisa para mim” [tradução da fala de um indígena não aposentado].

Entrevista com as indígenas aposentadas Josefa Pacheco e Salomé


Realizada por Laurinete Delgado, com a colaboração da tradutora Mitori Katxuyana Tiriyó

Em entrevista com as aposentadas indígenas Josefa Pacheco e Salomé, observamos as dificuldades de


acesso dos indígenas aos recursos financeiros que a aposentadoria junto a Previdência Social lhes
propicia.
Conforme Mitori – que é originária da aldeia Missão Tiriyó e vivencia o cotidiano dos indígenas da
sua aldeia, apesar de atualmente residir em Macapá – o seu povo tem dificuldades para receber os
recursos do INSS. Por isso, muitas vezes, o que era para contribuir com o desenvolvimento das
famílias indígenas acaba dificultando a vida das mesmas.
No decorrer da conversa com as indígenas aposentadas percebemos que essas dificuldades decorrem
principalmente após a aprovação do benefício por parte do INSS. O difícil acesso dos indígenas até a
cidade é um dos fatores que ocasionam problemas para o recebimento dos recursos. Quando as
indígenas nos relataram “as pessoas nos dizem que somos aposentadas, mas não sabemos se somos
realmente aposentadas mesmo” (Josefa e Salomé), percebemos que o fato de não receberem o recurso
mensalmente deixa dúvidas sobre a sua condição de aposentadas pela Previdência Social.
Mas a condição de aposentada das indígenas entrevistadas é inquestionável, apesar das mesmas não
saberem há quanto tempo estão nessa condição. Outro dado importante é que “a maioria dos
aposentados não tem idéia de idade” (Mitori). O esclarecimento de Mitori sobre a fala das indígenas
certifica a incerteza das mesmas sobre o período que recebem e/ou quando devem receber o benefício
da aposentadoria:
Elas não sabem ao certo há quanto tempo estão recebendo, mas é difícil falar
que elas recebem o benefício todo mês, toda semana, todo ano, (...) [ela
falou que de] “vez em quando, as pessoas que são responsáveis enrolam,
dizendo: “o pagamento ainda não saiu. O pagamento só vai sair mês que
vem”. Tem essas coisas que eles inventam para nós” (Tradução de Mitori
para fala de Josefa).
Ela [Mitori se referindo à Salomé] está falando a mesma coisa que a outra
falou: “tenho dificuldades para saber se recebo o benefício ou não. Não
tenho certas palavras para dizer se sou aposentada. Mas, às vezes, vamos
para Macapá, dizem que é para sacar dinheiro, receber dinheiro, alguma
aposentadoria e saímos daqui pensando que iremos receber algum benefício.
Chegamos lá e nada de benefício. Acabei ficando doente, com dor de
coração, com preocupação”. Ela se sentiu mal e ficou aguardando o dinheiro
141
chegar para poder receber e nada. “Aí, finalmente quando estava voltando,
recebi. Enfrentei esses problemas” (Tradução de Mitori para fala de
Salomé).
Com a fala das aposentadas Josefa e Salomé fica nítido que os indígenas enfrentam problemas para
receber os recursos da aposentadoria. Quando questionadas sobre a última vez que foram até Macapá
para acessar seus benefícios, as entrevistadas responderam:
“Isso nem me pergunta. Passamos lá muitos anos. Nesse ano eu passei Natal
lá e não tenho noção de quanto tempo. Passamos o ano inteiro, eu acho,
como eu passei Natal lá. Fui antes de Natal e passei o Natal.” Ela falou que
“passou a época de chuva e depois disso que voltei”. “Demora muito para
poder atender”. (Tradução de Mitori para fala de Josefa e Salomé).
Apesar desse quadro, as indígenas entrevistadas declararam que, quando conseguem acessar seus
benefícios, contribuem com o sustento da família, conforme esclarece Mitori, traduzindo a fala das
aposentadas:
Resumindo as duas, porque falaram a mesma coisa. Uma falou primeiro que
“o pouco que recebem de aposentadoria beneficia a família sim, ficamos
comprando alguma roupa, um prato. Hoje muito dependemos disso.
Vivemos em uma sociedade diferente e nos acostumamos com isso. Quando
recebemos esse dinheiro compramos alguma coisa para nossa família, mas
não temos como sustentar todo mundo, porque é pouco o nosso benefício.
Fazemos o possível, às vezes. E como indígena pensamos na família.
Beneficia sim” (Tradução de Mitori para fala de Josefa e Salomé).
Sobre a configuração familiar geral dos indígenas aposentados a informação obtida é a de que, em
regra, cada família tem um idoso aposentado que contribui na manutenção da casa. Mas existem casos
de indígenas aposentados que vivem sozinhos e contribuem com a criação de netos e bisnetos.
O recebimento do benefício da aposentadoria, apesar das dificuldades, é geralmente feita pelo
beneficiário indígena ou por alguém de confiança (da família ou não), com a mediação da FUNAI,
que, em regra, guarda a documentação e o cartão bancário de benefícios de todos os indígenas da
aldeia Missão Tiriyó.
Para as indígenas entrevistadas, a tentativa da FUNAI em ajudar é plausível, mas não está condizente
com os interesses delas, afinal quando as mesmas têm a possibilidade de ir até Macapá pegarem o
recurso delas junto à FUNAI – que mantêm a guarda dos cartões para sacar o dinheiro mensalmente na
perspectiva de evitar bloqueios ou cancelamentos de senhas – existe sempre algum problema a ser
enfrentado:
Quando o dinheiro está caindo lá, está caindo. Mas quando o aposentando
resolve ir lá... “seu dinheiro só está um mês aqui, só está dois meses”. A
maioria dos aposentados fica aqui, às vezes, seis, sete meses, e quando vão
lá, ficam sabendo que o salário mínimo é R$ 510,00. Nós temos informações
do salário. Estão contando e quando vão lá, dizem: “vocês têm tal dinheiro”.
Era para ter mil reais, entendeu? Elas sabem disso. (Mitori, entrevista
realizada em 15/09/2010).
Ao serem questionadas se vão ao INSS solicitar alguma informação sobre seus benefícios, as
indígenas Josefa e Salomé esclareceram que ao se deslocarem para Macapá procuram inicialmente a
FUNAI e, caso a instituição, detecte algum problema que o INSS precise resolver, as envia, com
142
alguém da FUNAI, para a agência do INSS: “a FUNAI que leva para o INSS, se tiver algum
problema”.
Quando são chamados pela FUNAI para resolver algum problema na agência do INSS, alguns
indígenas aposentados pedem para ser acompanhados por seus filhos, para que ajudem a administrar o
dinheiro e a traduzir a língua indígena para o português. Mas segundo as indígenas “a FUNAI não
aceita isso e diz que [os filhos] roubam o dinheiro da mãe.
Em relação às dificuldades de comunicação entre indígenas, FUNAI e INSS devido à questão da
língua, foi relatado que quando não há tradutores intermediando o processo, o diálogo fica
extremamente inacessível, conforme disse Mitori, ao esclarecer a fala da aposentada Josefa:
Ela está falando que tem dificuldades, sim, de falar (...) e falou que quando
foi ao Afonso, sem acompanhante que traduzisse a língua portuguesa para
ele, [ela] queria falar alguma coisa para o Afonso e só que não tinha como
falar. Ela só apontava aqui e ali, ali. Ela tinha dificuldade...
Em relação à manutenção de seus costumes indígenas e à forma como lidam com o dinheiro que
recebem da Previdência Social, as indígenas Josefa e Salomé relataram:
A nossa atividade aqui é fazer bebida. Vamos para roça, pegar com o
jamicin nas costas traz. É pesado? É, é muito sofrido. Nós somos muito
sofridas. Mas, fazer é o que? É a nossa vida. Temos que preservar a nossa
cultura também. Vamos pegar a lenha, nós ralamos com a nossa mão. Agora
que comprei uma máquina de ralar a mandioca melhorou um pouco, que eu
comprei com o meu benefício, agora melhorou um pouco. Ficamos ralando
com a nossa mão mesmo. Essas coisas são as atividades das mulheres, de
fazer comida, bebida... (Tradução de Mitori para fala de Josefa).
Ela falou a mesma coisa dela que trabalha mais na atividade de fazer
comida, de roça mesmo, de ralar a mandioca, de bebida, farinha, pegar a
lenha, cuidar da nossa comida. Muitas vezes pedimos para cuidar das nossas
filhas, ela me ajuda muito, a única filha que ela tem. Só que não tem como
ajudarmos de outra forma a não ser com o nosso “dinheirinho” para comprar
e poder nos beneficiar. (Tradução de Mitori para fala de Salomé).
A nossa comida mesmo nós temos, nós fazemos na nossa roça e
preservamos até agora. Acho que se tivéssemos largado de tudo teríamos
sofrido mais do que estamos passando agora, mas, graças a Deus, temos esse
costume de preservar.(...) A comida que nós comemos aqui é saudável, é um
alimento muito bom. Nós fazemos também e não falta na comunidade
agrícola. Nós preservarmos e temos. Estamos sentindo falta de comer
comida doce, essas coisas. Nós aqui queremos comer comida saudável,
sobre os animais que precisamos fazer alguma coisa para não comer a
comida dos outros índios. Muitas vezes cobramos o Frei Paulo, o Frei que
nós recebeu. O cobramos e ele cobra de nós, que ele não tem o benefício
para comprar a alimentação para poder dar para elas [as indígenas
entrevistadas]. O Frei resolveu falar com a FUNAI que pudessem enviar
algum dinheiro para os aposentados, para poder ele comprar de Belém para
cá, que seria mais fácil, como saindo de Macapá para cá, [porque existe a
quitanda na aldeia], o que seria melhor. Iria melhora a nossa renda local, nós

143
iríamos fazer alguma coisa com esse dinheiro, em vez de ir até Macapá
gastar por lá mesmo o dinheiro que temos pouco. (Tradução de Mitori para
fala de Josefa e Salomé).
Com essas declarações fica exposto que as aposentadas utilizam o recurso da aposentadoria para
adquirir utensílios que lhes são importantes para o trabalho e alimentação na aldeia. Além disso, elas
contribuem com o sustento dos seus filhos e netos. Uma das propostas das indígenas é que a FUNAI e
INSS organizem o pagamento de seus benefícios na própria aldeia. Pois concordam que, com a
“quitanda” do Frei Paulo, religioso que reside na aldeia, seria possível adquirirem produtos
alimentícios básicos, que não podem ser produzidos na agricultura.
Ao serem questionadas se a família recebe outro tipo de benefício do
Governo, as indígenas Josefa e Salomé alegaram que não, e consideraram
ainda que o Governo deveria ajudar mais: “ela queria que o governo
entregasse para ela o carrinho de mão para carregar, trocar o negócio que
elas carregam... [madeira nas costas] (...). Só que o governo não está nem aí
para o que eles fazem. Não faz nada. (Tradução de Mitori para fala de Josefa
e Salomé).
Em relação aos procedimentos institucionais da FUNAI e do INSS para solicitar a aposentadoria dos
indígenas idosos, as indígenas Josefa e Salomé declararam que essas instituições não vão até a aldeia
fazer o cadastro das pessoas para solicitar o benefício, geralmente é a FUNAI que faz um mapeamento
dos indígenas que estão em idade de se aposentar e depois entra em contato com a aldeia por meio de
rádio, avisando quem e quando deverá ir até Macapá para solicitar o benefício. As entrevistadas
destacam esse procedimento ao exporem:
Foi a FUNAI que mandou ir para a cidade para poder fazer a sua
aposentadoria, não veio diretamente aqui na aldeia para fazer a ficha delas.
A FUNAI as levou. Desde quando começou essa aposentadoria, desde aí
começou essa burocracia de atender com dificuldade, desde aí que elas estão
sentindo isso até agora. (Tradução de Mitori para fala de Josefa).
Então, muitas vezes quando os aposentados vão daqui para lá para abrir o
benefício lá, eles abrem e a FUNAI não dá informação para ela. “Você tem
que retornar tal dia que O INSS marcou para voltar”. A FUNAI não faz isso.
Só fala: “você tem que ficar aqui, não tem jeito”. Aí, ele fica lá o tempo todo
aguardando, nada de informação pelo menos para elas. Entendeu? Nem uma
ajuda de alimentação ou coisa assim. (Tradução de Mitori para fala de
Josefa).
É a mesma coisa. Que foram daqui para Macapá e lá deu entrada na
aposentadoria e pediram para aguardar, aguardar, até que saiu. Só que é
difícil depois de receber por mês. Elas têm dificuldade de receber. (Tradução
de Mitori para fala de Salomé).
Um dos problemas observados em relação à ida dos indígenas até a FUNAI e a agência do INSS em
Macapá para solicitar seus benefícios, é justamente a falta de garantia de transporte para ir até a cidade
e depois para voltar à aldeia. Ou seja, a FUNAI faz o mapeamento dos indígenas que estão em idade
de se aposentar e solicita a presença dos mesmos na sede da FUNAI/Macapá, porém, não garante a ida
de todos até a cidade. Nesse caso, os indígenas ficam aguardando alguma oportunidade para se
exercerem o direito de se aposentar. A situação se complica quando os indígenas precisam aguardar o

144
resultado de suas aposentadorias e o recebimento do primeiro salário na cidade de Macapá, pois a eles
anão se garante Casa de Apoio ou recursos para se manterem. N maioria das vezes ficam dependentes
de ações imediatistas do poder público, ou de “favores” de organizações indígenas e de amigos e
parentes que residem em Macapá.
Quando questionadas sobre o que representa a FUNAI e o INSS nas suas vidas e sobre as propostas
que têm para solucionar os problemas que enfrentam para receberem seus recursos da aposentadoria,
as indígenas Josefa e Salomé responderam:
...FUNAI, FUNAI mesmo, acho que podemos falar que trabalha para os
índios, mas especificamente eles trabalharem para nós, acho que tem
dificuldade em trabalhar com os nossos benefícios. Eu não posso falar da
Previdência, porque não temos contato diretamente. Temos a FUNAI que
tem contato diretamente com o INSS e não temos como falar, porque isso
prejudica também. E não podemos falar que está prejudicando, mas temos
contato com a FUNAI. A FUNAI ajuda sim, mas não tem condições de nos
ajudar como nós queremos. (Tradução de Mitori para fala de Josefa e
Salomé).
(...) as nossas reivindicações para FUNAI era que nos ajudassem a trazer o
dinheiro aqui para a nossa aldeia por meio de alguma coisa. Que fizessem
um plano, para poder fazer o pagamento para nós, como tem essa dificuldade
de acesso, que a FUNAI fizesse isso. Só que até agora ninguém faz nada e
nós estamos por aqui mesmo passando por isso e espero que melhore com a
ajuda de vocês (...). (Tradução de Mitori para fala de Josefa e Salomé).

4.3.6 SATERÉ-MAWÉ

O coordenador da CTL/FUNAI – Parintins e a coordenadora substituta referiram-se às


dificuldades para a obtenção dos benefícios previdenciários pelos Sateré-Mawé e outros
grupos indígenas da região que dependem da execução de perícia médica. O maior problema é
exatamente a falta de médicos peritos, bem como de assistentes sociais e outros profissionais,
especialmente na agência do INSS em Parintins, impossibilitando aos indígenas e à população
regional o acesso a esses benefícios. A coordenadora substituta da FUNAI colocou a questão
na forma de um “apelo”:

Eu nem sei como dizer essa palavra... não é uma solicitação... é um apelo
(risos)... É sobre a questão da perícia médica... A gente não consegue... Aqui
nós temos uma demanda reprimida, porque tem um perito nessa agência. A
gente solicita que quando venha um perito, a gente seja avisada com
antecedência. A gente nunca é avisada, quando vamos saber é pelo rádio que
ele vai estar amanhã. Como é que eu vou buscar alguém que está lá na

145
cabeceira do rio? O maior problema que a gente tem aqui hoje é isso, com
questão ao auxílio-doença. E outro benefício que dependa de uma (...), no
caso da LOAS também. (Entrevista com Maria Nirley Caldas da Silva,
coordenadora substituta da CTL/FUNAI – Parintins).
Eles informaram que já foram realizadas tentativas de negociação junto ao INSS em
relação à questão da perícia médica aos povos indígenas da região, sem obter sucesso. O
maior problema seria a ausência de profissionais de perícia na região, o que dificulta
enormemente a concessão dos direitos previdenciários aos grupos indígenas e, também, à
população regional.

... eu já fui ao INSS. Fui lá conversar sobre a situação, mas a gente não
consegue ser atendido. O que eu estava fazendo há dois meses: lá em Maués,
que é um município menor que Parintins, tem médico, tem perito, tem
assistente social lotado na agência de lá. Eu estava fazendo isso:
encaminhando eles pra lá, deslocava um servidor que ia acompanhá-los. Foi
como eu consegui alguns atendimentos, por meio da agência lá de Maués.
(Entrevista com Maria Nirley Caldas da Silva, coordenadora substituta da
CTL/FUNAI – Parintins).
A ausência de médicos e assistentes sociais vinculados ao INSS em municípios da
região é decorrente não da falta de profissionais concursados, mas do fato de que esses
profissionais, em sua maioria, residentes em Manaus, se recusam a transferir seu local de
moradia e a prestar serviços em municípios como Parintins, embora considerada a segunda
cidade mais importante do estado.
De acordo com o coordenador local da FUNAI em Parintins, as dificuldades
aumentam, na medida em que apenas os profissionais vinculados ao INSS (médicos,
assistentes sociais) estariam autorizados a realizar a perícia junto aos índios e não índios que
pleiteiam benefícios previdenciários, como auxílio-doença e outros, que dependem da perícia.
Segundo esses agentes,

É, porque, outros médicos têm. Outro exemplo também, esse laudo de


assistente social só é aceito se for pelo INSS. Eu acho que fica muito difícil.
A FUNASA também tem assistente social. As secretarias municipais de
assistencial social, ela também tem assistentes sociais. Poderiam elas
“estarem” fazendo. (Entrevista com Pedro de Paula, coordenador da
CTL/FUNAI – Parintins).
Salomão Batista, chefe do DSEI-Parintins, fez referência à existência de portadores de
DST-AIDS nas terras indígenas da região e destacou o caso de um indígena soropositivo, que
foi motivo de denúncias contra o DSEI-Parintins, segundo as quais o paciente não estaria
recebendo assistência da FUNASA. O chefe do DSEI-Parintins afirmou que

146
Nós temos alguns casos soropositivos e fomos denunciados há pouco tempo,
de que esse paciente não estava recebendo assistência adequada da nossa
equipe. Quando eu tive conhecimento da situação, eu pessoalmente fui à
casa do paciente. Cheguei e constatei que ele realmente não estava sem
receber assistência, só que o programa DST/AIDS (Doenças Sexualmente
Transmissíveis/Síndrome da Imunodeficiência Adquirida) é um programa
que não é da FUNASA, mas sim de uma instituição que cuida
exclusivamente disso. O paciente estava sendo medicado e tendo
acompanhamento normal. Convidei-o a se dirigir à CASAI, que é a Casa de
Assistência à Saúde do Índio, e ele disse que não gostaria de ir porque apesar
do seu estado de saúde, ele tem filhos e esposa para cuidar, para sustentar.
Por essa razão ele não quis ir para a CASAI. Perguntei a ele qual era a sua
maior dificuldade no momento e ele respondeu que era a falta de
alimentação, a falta de recursos para ajudar a manter a família. Diante disso,
nós, por meio da CASAI, conseguimos uma cesta básica mensal para ele.
Isso foi o que aconteceu de imediato. (Entrevista com Salomão Batista,
chefe do DSEI-Parintins).
Salomão Batista informou que procurou articular-se com a CTL/FUNAI – Parintins,
para verificar, junto à agência local do INSS, a situação previdenciária do paciente e constatar
se ele estaria recebendo algum benefício previdenciário em função da sua condição de saúde.
Descreveu, então, os problemas enfrentados pelo paciente, que se repetem, de um modo geral,
em relação a indígenas que vão à procura dos seus direitos previdenciários na região:

Vejamos, então, a situação de benefícios desse paciente. Foi feito? Foi. Foi
feita a perícia? Não, porque não tem perito aqui. Fomos ao INSS, eu da
FUNASA e a moça da FUNAI, quando nós chegamos lá, no INSS,
realmente eles estavam com dificuldade de fazer a perícia, mesmo o índio
sendo soropositivo e tendo a aparência já bastante desgastada. Mas ele
estava cadastrado e recebendo o benefício, provavelmente o auxílio-doença.
Sendo assim, eu até mandei fazer um levantamento porque foi denunciado
no Ministério Público Federal que nós não estávamos fazendo o atendimento
ao índio e, também, de que nós não estávamos dando assistência, de que
faltava alimento, essas coisas. Mas essa função não é nossa, a nossa é
fornecer medicamentos e cuidar dele. Mas está aqui, código 31, auxílio-
doença previdenciário. Então, se chegar alguma coisa, algum documento,
nós já temos como nos respaldar. Na verdade, houve um desencontro de
informações, porque aquilo que o governo pode fazer por ele, estava sendo
feito, tanto da nossa parte, da FUNASA, em relação à doença dele quanto da
Previdência, afinal, ele estava sendo assistido pela Previdência Social. Aliás,
está sendo assistido. (Entrevista com Salomão Batista, chefe do DSEI-
Parintins).
O chefe do DSEI-Parintins informou, ainda, sobre o que parece ser o grande obstáculo
ao acesso dos benefícios previdenciários na região, que é a realização da perícia médica.

147
Eu realmente achei que não estava (sendo assistido) porque a Previdência
tem essa dificuldade aqui, no que diz respeito à perícia. Não tem médico
perito aqui, mesmo sendo um município polo. Aqui, em Parintins,
geograficamente, nós estamos rodeados pelos outros municípios, e, por ser
um município que possui uma melhor estrutura, todo mundo migra pra cá,
mas ainda assim permanece com a dificuldade do perito. (Entrevista com
Salomão Batista, chefe do DSEI-Parintins).
Por outro lado, eximiu a FUNASA da responsabilidade de defender juridicamente os
direitos previdenciários dos grupos indígenas, função que acredita ser da FUNAI.

Em relação aos benefícios, essa parte jurídica, a gente deixa a cargo da


FUNAI. Por exemplo, se existe uma pessoa doente, necessitando de um
auxílio, a FUNAI possui pessoas especializadas para cuidar desses casos,
desses trâmites. (Entrevista com Salomão Batista, chefe do DSEI-Parintins).
Salomão Batista referiu-se, ainda, à situação dos grupos indígenas atendidos pelo
DSEI-Parintins, em relação às DST-AIDS e o atendimento desses casos pela FUNASA. De
acordo com esse representante, todos os casos locais pertencem à etnia Sateré-Mawé, sendo
que três portadores residem na Terra Indígena Andirá-Marau. Apesar disso, considera a
relação institucional entre o DSEI-Parintins e o INSS local como positiva.

Na nossa CASAI nós não possuímos casos graves, que necessitam desse
auxílio porque nós não temos nenhum doente crônico permanente. Tem
apenas esse cidadão. Na verdade, são quatro casos de soropositivos em área
indígena, aliás, esse cidadão mora aqui em Parintins e três moram em áreas
indígenas, que pertencem ao município de Barreirinha. Todos são Sateré.
Nós não temos dificuldade em relação à Previdência, uma vez que nós não
lidamos diretamente com essa questão. Agora quando há necessidade,
quando há um caso como o do Jefferson (o soropositivo), que nós tivemos
que tomar iniciativa, nós apoiamos sim. De acordo com a necessidade do
problema, nós estamos prontos para colaborar, afinal, nós não podemos
viver isolados. (Entrevista com Salomão Batista, chefe do DSEI-Parintins).
Questionado sobre o apoio recebido pelo indígena soropositivo em questão, seja por
meio de medicamentos fornecidos pela FUNASA, ou de benefícios previdenciários, pelo
INSS, Salomão Batista afirmou que:

Nós começamos a dar a cesta básica para ele sem saber que ele já estava
recebendo o benefício. Mas mesmo assim nós não iremos cortar. O apoio
que a FUNASA oferece está relacionado a tudo que ele precisa no que diz
respeito à saúde dele. Se precisar, por exemplo, de transporte para conduzi-
lo até o posto em que ele recebe medicamento, para ir à FUNAI, para ir ao
INSS, a gente oferece esse serviço para ele. Considerando-se que esse caso
dele, em que ele e a esposa são soropositivos e as três crianças são negativos.
Mas são casos muito raros. A gente está dando esse apoio para ele. Com

148
certeza, ele não está desamparado pelas instituições. (Entrevista com
Salomão Batista, chefe do DSEI-Parintins).
Salomão Batista afirmou que, no caso dos soropositivos, os medicamentos são
fornecidos pelo MS e distribuídos em Parintins, por meio da instituição Casa do Padre
Vitório. À FUNASA caberia apenas o encaminhamento dos medicamentos à instituição
responsável pela sua distribuição.
Segundo ele, o MS não criou na estrutura da FUNASA um processo de atendimento
específico aos soropositivos indígenas em Parintins. Caso não houvesse uma instituição
responsável, a FUNASA assumiria a distribuição desses medicamentos, como acontece no
caso da malária.
O chefe do DSEI-Parintins foi questionado, ainda, a falar sobre a relação do DSEI-
Parintins com a concessão de benefícios pela Previdência Social. Em relação ao salário-
maternidade, foi colocado que a obtenção desse benefício parte necessariamente da
constatação do nascimento de um novo ser, o qual em terras indígenas tem que ser atestado
por agentes locais da FUNASA (enfermeiras, agentes indígenas de saúde). Do mesmo modo,
a concessão do benefício auxílio-doença parte da constatação de que o indivíduo pleiteante,
de fato, encontra-se impossibilitado de desenvolver suas atividades profissionais.
Nesses casos os agentes da FUNASA devem encaminhar os indígenas, por meio de
documentos específicos, para a execução de perícia médica, condição para gerar os benefícios
previdenciários. Em relação ao processo de encaminhamento de casos previdenciários entre
FUNASA, FUNAI e INSS, Salomão Batista respondeu:

Como eu falei no começo, nós realmente não lidamos diretamente com essa
questão. Nós encaminhamos para FUNAI e damos todo o suporte
documental necessário para que eles continuem com esse procedimento. A
assistente social da FUNASA entra em contato com a assistente social da
FUNAI e encaminha os documentos para eles, que serão os responsáveis por
cuidar dessa situação. (Entrevista com Salomão Batista, chefe do DSEI-
Parintins).
Em relação ao salário-maternidade, o chefe do DSEI-Parintins foi questionado pelos
pesquisadores sobre os procedimentos adotados pela FUNASA no encaminhamento de casos
e a inter-relação com FUNAI e INSS para a implementação do benefício. Ele informou sobre
o procedimento adotado:

O profissional da área encaminha para a CASAI e esta, por sua vez,


encaminha para a FUNAI. Mas, não é muito frequente essa situação, apesar
de nós trabalharmos com onze mil indígenas... Lá eles fazem um registro de
nascimento. Parece-me que agora a FUNAI já está perdendo essa autonomia.
149
Era só ela que concedia as certidões de nascimento, mas agora o indígena já
pode se dirigir diretamente aos cartórios comuns. É encaminhado, via
FUNASA da área indígena, e a CASAI envia para FUNAI, que, por sua vez,
entra em contato com o INSS. O caminho é esse. (Entrevista com Salomão
Batista, chefe do DSEI-Parintins).
Diante do questionamento, de que, embora ocorram muitos nascimentos nas aldeias, a
concessão de salário-maternidade ocorra em números bastante restritos e que, portanto, esse
direito previdenciário atinge uma baixa porcentagem de mulheres gestantes, o chefe do DSEI-
Parintins atribuiu esse fato ao desconhecimento e desinteresse das próprias indígenas em
relação ao benefício:

Os índios que não têm conhecimento não se interessam e não buscam. Os


que têm, vão atrás. Quer dizer, depende muito da iniciativa indígena, dos que
estão fora do nosso conhecimento. Os que são do nosso conhecimento, nós
encaminhamos. (Entrevista com Salomão Batista, chefe do DSEI-Parintins).
Em razão da insistência dos entrevistadores sobre um papel mais ativo que a FUNASA
deveria desempenhar junto aos grupos indígenas, no sentido de informar e esclarecer sobre
direitos como salário-maternidade, auxílio-doença e outros, diretamente vinculados à questão
da saúde indígena e, portanto, às atribuições da FUNASA, Salomão Batista considerou que,

Aqui na região, nós atribuímos essa função à FUNAI. Nós não fazemos esse
procedimento de orientação dentro das áreas. Nós encaminhamos, mas nós
não recebemos nenhuma orientação no sentido de realizar esse
procedimento. Eu não estou dizendo que nós não encaminhamos. Todo caso
que é do nosso conhecimento e que haja necessidade, nós fazemos o
encaminhamento, mas a gente não faz uma palestra ou alguma coisa
relacionada exclusivamente a esse assunto. Eu estou sendo claro acerca de
como a gente atua aqui. (Entrevista com Salomão Batista, chefe do DSEI-
Parintins).

Casos Previdenciários

JOSÉ NIVEOMAR MELQUIADES DE OLIVEIRA, 44 ANOS – APOSENTADORIA


POR INVALIDEZ (NÃO EFETIVADO)
José Melquíades sofreu acidente com arma de fogo – levou um tiro de outro índio quando
caçava na mata – em 1991. Chegou a receber auxílio-doença por até 3 meses, sendo interrompido. Fez
nova perícia e recebeu o benefício por mais dois meses. Não conseguiu fazer outras perícias, mas
recebeu informação de que seria aposentado por invalidez. Desse tempo em diante, tem lutado para
obter o benefício, sem obter sucesso. Afirmou que há sete anos não recebe o benefício. “Aí depois eu
não fui mais fazer a perícia, ficou difícil. Aí disseram que iam me aposentar por inválido”. Melquíades
teria feito várias viagens a Parintins para acionar o INSS, mas não teve êxito.
150
O acidente deixou paralisada uma parte de seu corpo. Disse ter sido operado em Manaus. O
acidente teria ocorrido em 1998 e teria recebido o auxílio-doença até 1999. Para sobreviver, o Sr. José
Melquíades trabalha com uma “rabeca” (espécie de canoa motorizada) fazendo transporte de crianças
para a escola, pelo qual recebe uma gratificação da Prefeitura de Barreirinha, no valor de R$400,00.
Afirmou que deixou de receber o auxílio-doença pela falta de médico perito em Parintins.

MARIA LUCIA CARVALHO DA SILVA, 54 ANOS – APOSENTADORIA POR


IDADE
Maria Lucia Carvalho da Silva informa que tem hérnia (“bico de papagaio”) e, que apenas em
2005 conseguiu passar por perícia médica, a partir daí obteve o benefício do auxílio-doença. Quando
tentou a renovação do benefício não havia médico perito, nesse tempo, as dores não a incomodavam
muito. Mesmo assim, teve que evitar o trabalho braçal mais intenso, como carregar paneiros de
mandioca e torrar farinha. Mesmo afastada desses trabalhos, ainda sente dores na coluna.
Maria Lucia esteve em Parintins, no período citado, quando obteve o auxílio-doença, tendo
recebido o benefício durante sete meses. Tentou entrar novamente com processo para renovação do
benefício, mas não havia médico perito e, por isso, nunca pode obter novo benefício. Depois desse
período, não teria mais retornado a Parintins para nova tentativa de obtenção do auxílio-doença.
Maria Lucia foi informada de que, pelo seu caso ser um problema crônico, ela poderia
requerer junto ao INSS o benefício de aposentadoria por invalidez e, mediante sua idade avançada, até
mesmo a aposentadoria por idade. Novamente, o problema da ausência de médicos peritos na Agência
do INSS de Parintins constitui um sério entrave à efetivação dos direitos previdenciários dos grupos
indígenas e mesmo da população regional.

KEDMA DE OLIVEIRA TAVARES, 50 ANOS – APOSENTADORIA POR


INVALIDEZ (NÃO EFETIVADA)
Kedma de Oliveira Tavares conta que trabalhou como professora junto à Prefeitura de
Barreirinha, por 15 anos, com carteira profissional assinada recebendo contra-cheque, com desconto
de contribuição ao INSS, os quais ela diz ainda guardar. Em 2001 teria adquirido uma “doença muito
grave”, e foi demitida pela Prefeitura. O processo teria ocorrido da seguinte forma: “Foi na época que
eles me tiraram sim, foi na época de troca de prefeito que a prefeita era dona Socorro, né Rosa?
Naquela época. Aí passou ser seu Gilvan, né? Doutor Gilvan, então ela demitiu os “professor”, na
época dele e, já ele não contratou mais. Aí foi o tempo que eu, também, adoeci, já não pude mais
trabalhar. Aí eu fui no INSS, por causa do meu auxílio-doença. Aí lá eles disseram que eu não estava
podendo por que a minha carteira era assinada e lá no contracheque constava que eu tava contribuindo
pro INSS, mas não aparecia. Aí ficou que a prefeitura tinha por direito me dar um documento que eu
pudesse me... até mesmo aposentar por doença, né, ou então pelo... auxílio-doença! Auxílio-doença,
né? Auxílio-doença. Mas eu nunca consegui porque depois... Aí justamente me mandaram pra FUNAI,
aí eu fui na FUNAI, aí eles disseram que eu tinha que ir no sindicato de Barreirinha, aí eu mandei pra
Barreirinha? Mandei não! Eu vim em Barreirinha, o rapaz lá do sindicato pegou minha carteira, e ele
falou, disse: Não, esse documento quem dá pra vocês é assinado por professora aqui por quinze anos, a
senhora contribuiu pro INSS, há quinze anos trabalhou na zona rural e a senhora tem direito, mas só
que a senhora tem que passar pela prefeitura e lá eles tem que dar um documento dizendo que a
senhora era sim professora, a senhora contribuiu pro INSS, trabalhou na zona rural.”

151
Kedma conta que tentou obter junto ao Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Barreirinha
uma declaração de trabalhadora rural, já que possui um sítio e, portanto, poderia comprovar sua
condição rural. Na busca de seus direitos previdenciários junto à agência do INSS em Parintins houve
problemas, pela dupla situação profissional, de modo que Kedma não consegue sua aposentadoria:
“Porque eu, eu... eu trabalhava como professora e a minha carteira era assinada e, eu tinha que passar
pelo sindicato, fui no sindicato, aí lá o rapaz me deu uma declaração, mandei pra prefeitura. Aí chego
na prefeitura, foi que engatou e não me deram o que ele pediu, que eles não deram. Aí poxa eu disse: E
como? Aí eu fui no INSS, seu Ribeiro falou: – Não! Tu tem direito, tu tem direito.”
Conforme conta, Kedma tentou junto à Agência do INSS em Parintins dar entrada em seu
benefício de aposentadoria, mas foi verificado que ainda estaria em vínculo empregatício junto à
Prefeitura de Barreirinha, embora não estivesse sendo realizado o desconto da contribuição ao INSS.
Informou que já não trabalhava na Prefeitura e nem tampouco recebia salários: “E a minha carteira
ficou quase um mês em Barreirinha e é pelo tempo que eu tava doente e eu não podia ir lá. Até que eu
mandei, não! Eu mesmo fui lá pegar a carteira, aí o que pegou, também, isso foi que eles disseram que
eu ainda era funcionária, que eu ainda estava trabalhando, mas eu não tava mais trabalhando, que eu
não tava mais ganhando. E a minha carteira tava assinada, aí foi que empatou, que pegou, que seu
Ribeiro falou que ele não podia mais fazer nada.”
O caso de Kedma Tavares é bastante atípico entre os casos beneficiários indígenas da
Previdência Social. Ao tentar unir os dois sistemas previdenciários – o convencional, onde o cidadão
deve cumprir um determinado número de anos de contribuição, com o de beneficiário especial, onde é
requerida a comprovação de trabalho rural, Kedma ficou impossibilitada de obter o benefício de
aposentadoria.

PERPÉTUA FERREIRA BARBOSA, 33 ANOS – AUXÍLIO-DOENÇA


Perpétua Ferreira Barbosa foi contatada quando estava torrando farinha de mandioca em uma
chapa metálica, que chamam de “forno”. Ela prestou o seguinte depoimento: “Tenho trinta e três anos,
tentei conseguir um auxílio-doença e, em 2005, consegui. Eu tive aborto, aos quatro meses de grávida,
quando fui levada a Parintins, onde foi feita uma curetagem. Dessa curetagem, eu sinto dores há doze
anos. Doem as costas, o peito. Já me consultei, mas o médico não descobriu nada. E ele falou que era
para eu comprar remédio, mas eu não tinha dinheiro e eu tenho um filho para sustentar. O Dr. Rodolfo
me deu um atestado médico só por cinco meses e que, se eu não melhorasse, que pegasse outro
atestado, porque eu não poderia me aposentar, e eu só queria mesmo era uma ajuda por uns meses, até
eu ter saúde. Porque, pra cá, nós somos assim, carregamos farinheiro, e eu não posso estar em locais
muito molhados, porque sinto muitas dores. Eu tomo remédios do mato e tudo que me ensinam. Aí
peguei atestado médico novamente, em março, e me mandaram para Maués tentar um auxílio-doença.
Nesse meu atestado, a doutora colocou que eu tinha dor na pélvica crônica, que era só remédio para
controlar e que era para voltar sempre onde o doutor. Aconteceu que eu nunca mais fui lá, porque o
Seu Lúcio, que ficou responsável por nós, disse na perícia que ele ia pedir o benefício. A última vez
que eu fui ao médico da perícia foi dia 22 de junho desse ano. Ele pediu o atestado que a doutora me
deu, disse para eu fazer procuração de trinta dias, mas eu não fui, porque a gente mora pra cá, e até
agora o Seu Lúcio não disse nada. Eu até queria pedir aposentadoria, mas eu disse para a doutora que
era ela quem diria o que eu tenho, porque eu estou pedindo é auxílio-doença, e eu sei que por meio
disso ela pode pedir aposentadoria, porque são eles que avaliam a gente. Até hoje eu consegui só um
auxílio-doença, que foi em Parintins, que peguei com o Dr. Rodolfo, fiz a perícia com o Dr. Waldo e
Dr. Jorge. Eles disseram que, se eu não melhorasse, deveria pedir outro auxílio. Mas depois eles foram
embora e eu com a peleja com essas dores, pra lá e pra cá, foi quando pedi o atestado, e como não

152
tinha perito em Parintins, tive que ir pra Maués. Aí nós fomos pra lá, no dia 14 de junho, e, no dia 22
de junho, fizemos a perícia. E só me falaram que nada foi resolvido, e só quando chegasse outro
médico em Parintins, iriam bater outro documento para eu fazer. E só tem médico pra resolver isso em
Maués”.
Perpétua Barbosa se mostra descrente na possibilidade de obter novo benefício previdenciário,
seja o auxílio-doença ou aposentadoria por invalidez, como os médicos de Parintins haviam sugerido.
Questionada se não tentaria novamente obter algum desses benefícios, ela respondeu: “Eu não sei por
que, quando a gente sai daqui, a gente enfrenta muita dificuldade. E o meu atestado está aí, só não vale
usá-lo para o outro ano, mas para o mesmo ano pode”.
A entrevistada não demonstra intenção de se aposentar, mas gostaria que houvesse a
renovação do seu auxílio-doença. Em seu depoimento, Perpétua Barbosa revela as dificuldades por
que passou e ainda passa para tentar garantir seus direitos previdenciários: “Eu nunca mais fiquei bem,
eu já estava a sete anos sentindo dores, então eu fui lá, e eles me disseram que eu poderia pedir um
atestado para pedir auxílio-doença. Ainda disseram que tinha dinheiro pra tudo, para aposentadoria,
para pensão e para auxílio-doença. E eu queria de novo outro auxílio-doença, eu não quero me
aposentar, a não ser que seja necessário. Mas só auxílio-doença está bom, porque tenho que comprar
remédio e eu não posso trabalhar, não tenho nada para receber e ainda tenho filho para sustentar.
Então, ele disse que auxílio-doença não é por conta da aposentadoria, que eu deveria estar fazendo
sempre perícia. Só que até hoje eu ainda não tenho saúde, toda vez que trabalho muito, sinto dores. E,
quando eu tomo remédio, as dores não atacam muito. Meu marido trabalha na roça, também não tem
salário. Esses dias mesmo de março, quando fui a Parintins, senti muita canseira. A médica disse que
não sabe mais o que faz comigo, porque as minhas dores não passam e ela não sabe dizer o que eu
tenho. E eu não quero mais fazer procuração, eu mesma vou”.

ROSA DA COSTA BARBOSA – SITUAÇÃO DAS NORAS NÃO INDÍGENAS –


SALÁRIO-MATERNIDADE (NÃO EFETIVADO)
Rosa da Costa Barbosa é professora da Escola Indígena da Aldeia Ponta Alegre. Dos seus três
filhos, da etnia Sateré-Mawé, dois são casados com jovens não indígenas, as quais se encontram
gestantes. Esse fato, de casamentos interétnicos, tem sido fonte de problemas para as famílias
indígenas, especialmente em relação ao direito de recebimento do salário-maternidade. Rosa Barbosa
foi até a unidade da FUNAI informar-se se as noras não indígenas poderiam obter o salário-
maternidade como as mulheres Sateré-Mawé, conforme relata: “(...) aí eu fui lá na FUNAI e falei pra
dona Isabel porque eu não gosto de fazer assim, sempre tomo a informação. Aí eu fui lá e perguntei:
dona Isabel, eu posso fazer por causa da minha nora que é civilizada e é casada com um filho que
mora na... Ela disse assim: olha, Rosa, o direito é pra tudo enquanto é mulher, ela disse. Mas o que a
gente não faz aqui, muita gente, tá fazendo aqui, conforme porque eles vêm aqui, que eles querem
pular muro, ela disse, então: eles não procuram tomar informação e querem fazer como índia e não são
índias.”
Essa espécie de “dupla cidadania” vivida pelas noras de Rosa Barbosa tem constituído em
problema para os órgãos assistenciais e previdenciários vinculados às populações indígenas. Rosa
Barbosa afirma que a agente da FUNAI a teria orientado para obter tanto a declaração da comunidade
indígena, de que a pleiteante é realmente membro da comunidade, como do sindicato de trabalhadores
rurais, e que esses documentos fossem encaminhados ao INSS de Parintins: “Porque ela (servidora da
FUNAI) disse que muitos que são civilizados, elas querem... Elas tiram certidão de índia, né, aí elas
chegam lá pra fazer, não pode, porque elas não são índia, só porque são casadas com índio aí já tiram a
certidão de índia, mas não pode, ela disse. Aí eu falei: como é que eu posso fazer da minha nora? Aí
153
ela disse assim: tu vai lá, pega a declaração do [líder] da comunidade, aí tu vai lá no sindicato e lá no
sindicato ele vai te dar outra declaração, aí tu trás pra nós aqui. Daqui, a gente encaminha lá pro INSS
de Parintins. Assim que é. Tu manda, tu faz tudo direitinho, não tem porque o dinheiro é das mulheres,
ela disse, então... Pois é esse o seu direito.”
Rosa Barbosa conta que a nora dirigiu-se ao sindicato de trabalhadores rurais da sua região,
onde fez entrevista e foram solicitados documentos como carteira de identidade e CPF. Apontou como
dificuldade nesse processo, o fato de a família não possuir “terreno”, isto é, um sítio ou pequena
propriedade rural titulada: “Pediram identidade e CPF, mas só que ela não tinha, agora que ela foi
tirar. Ele tá pra conseguir fazer o dela, mas assim que foi. Eu acho que é a mesma coisa minha (nora)
que tem fazer, ir pelo sindicato, mas só que ela... Porque no caso, aqui a gente não tem terreno pra
poder levar comprovante de que tem terreno, que é trabalhador rural, acho que tem terreno porque
pede assim o pessoal lá fora. Mas pra quem mora aqui, que são civilizados e aí mora aqui, no caso, não
pode pedir porque não tem...”
O caso das noras de Rosa Barbosa pode ser considerado atípico em relação aos demais casos
de segurados especiais indígenas. Tratando-se de pessoas que não são consideradas pelo sistema
previdenciário (INSS) e nem pelo poder tutelar (FUNAI) como “indígenas”, uma vez que não
descendem de famílias indígenas, mas vinculadas a essas famílias pela relação marital, essas jovens
têm grande dificuldade em ter reconhecidos seus direitos previdenciários.
Enquanto seus esposos e filhos são reconhecidos oficialmente como “índios” e gozam,
portanto, dos direitos dos “segurados especiais”, essas mulheres se vêem na obrigação de ter que
provar sua condição de “trabalho rural” por meio de declaração do Sindicato de Trabalhadores Rurais
e, simultaneamente, de declaração da própria comunidade indígena em que se inserem, para ter
legitimados seus direitos previdenciários.

LEONILDA DOS SANTOS, 44 ANOS – APOSENTADORIA POR INVALIDEZ (NÃO


EFETIVADA) – ENTREVISTA COM TRADUÇÃO
Segundo a tradutora, Leonilda dos Santos sente dores na coluna e, por isso não pode trabalhar,
e pergunta sobre como obter aposentadoria, já que se considera doente. Já teria tentado o benefício,
sem sucesso. A doença de Leonilda seria “bico de papagaio”. Ela nunca teria sido encaminhada ao
INSS, portanto nunca obteve ao benefício do “auxílio-doença”. Como sofre periodicamente com dores
decorrente desse problema, teria vindo pedir informação sobre os procedimentos para obter o
benefício. Há cerca de 07 ou 08 anos teria sido encaminhada para Parintins, onde permaneceu por
quase um mês em tratamento. A tradutora informou que estão pleiteando um encaminhamento para a
aposentadoria de Leonilda.

4.4 ACHADOS RELATIVOS À PRESENÇA DE INTERMEDIÁRIOS

Em todas as áreas indígenas visitadas foram identificadas situações em que terceiros


atuam no ciclo dos benefícios previdenciários e assistenciais destinados aos indígenas,
levando a situações em que esses façam pouco uso dos seus benefícios. As denominações
utilizadas são diversas, mas todas se referem à intermediação em alguma fase, sempre
relacionadas à exploração dos indígenas. A intermediação busca estabelecer formas de
154
subtrair parte dos recursos oriundos dos benefícios, seja como remuneração pelo
agenciamento dos benefícios, como cobertura de gastos com alimentação, produtos
industrializados e outros serviços com valores superfaturados, ou ainda como pagamento
antecipado ou não por empréstimos a juros extorsivos.
Os nomes utilizados variam de “procuradores”, “patrões”, “atravessadores” etc. E essa
função pode ser exercida por “sertanejos”, administradores, comerciantes e outros índios
(escolarizados). Em geral, esses papéis são assumidos por não índios, mas não é incomum que
familiares ou outros integrantes das aldeias também realizem a intermediação.
Várias situações de intermediação representam casos de infração dos direitos
previdenciários, tanto na preparação e encaminhamento de documentos ao INSS, como na
retenção e manipulação de cartões de beneficiários indígenas. Por outro lado, parte das
atividades assumidas por esses agentes tem a ver com funções que deveriam ser exercidas
pelo Estado. A barreira linguística, ao dificultar o acesso dos indígenas aos benefícios,
também funciona como estímulo à presença de atravessadores e acompanhantes no momento
de solicitação dos benefícios.
De algum modo, a ausência ou omissão do Estado em relação à garantia do conjunto
dos direitos constitucionais dos indígenas gera contextos de vulnerabilidade dos grupos
indígenas locais em que as necessidades básicas desses segmentos venham a ser atendidas por
ações ilícitas de agentes privados.
A regra nas terras indígenas dos Canela e dos Tenetehara é a de que a presença dos
“patrões” é “normal”, já que é uma prática rotineira e até desejada pelos indígenas, que vêm
na presença desses agentes um mecanismo que facilita o atendimento de suas necessidades.
Um fator que contribui para a sustentação dessas práticas é a compreensão equivocada
dos indígenas sobre o valor monetário do “cartão”. A relação é entendida como sendo de
doação e recepção e não como relação de troca (compra e venda de mercadorias).
O sistema de exploração nessas áreas se estabelece segundo a lógica de que o
“patrão”, sendo o único fornecedor, estipula o valor das mercadorias e condiciona a entrega
das mercadorias à retenção dos cartões. Os indígenas nem chegam a pegar em dinheiro, pois
quando recebem os benefícios, esses já estão quase completamente comprometidos com os
comerciantes, pelo endividamento. Os aposentados indígenas se vêm obrigados a “empenhar”
o cartão de benefícios, a fim de poder comprar mais mercadorias e obter dinheiro a prazo.
Existem também situações em que os depositários dos cartões detêm as senhas bancárias e
continuam a receber os benefícios mesmo quando falece um beneficiário indígena.

155
Também se registra que os próprios filhos, sobrinhos, netos e irmãos retêm o cartão
dos aposentados indígenas, fornecendo apenas o mínimo de mantimentos e assistência ao
segurado. Na maioria dos casos são feitos empréstimos consignados em pequenos bancos,
com ou sem o conhecimento do beneficiário. Essas situações foram identificadas entre os
Potiguara, os Canela, os Tenetehara e os Tiriyó, mas é bem provável que ocorra em outras
etnias.
No caso dos Potiguara, registra-se uma “máfia dos cartões” que acontece de forma
discreta e com a conivência de familiares, envolvendo atravessadores, agiotas e, até mesmo,
membros de algumas instituições.
E constata-se também que não há um combate à intermediação. Dois exemplos
mostram que a atuação mais efetiva da FUNAI e de outras instituições públicas pode
favorecer aos indígenas, como o que ocorre em Macapá onde a FUNAI cuida da organização
da documentação dos Tiriyó e retém os cartões dos beneficiários, administrando os recursos
de acordo com os interesses dos indígenas, e com alguns Canela que, a pedido dos
funcionários da FUNAI, deixam os cartões guardados nessa instituição para evitar que sejam
entregues a terceiros.

4.4.1 APANIEKRÁ E RAMKOKAMEKRA-CANELA

Foram comentados casos de infração dos direitos previdenciários dos Apaniekrá e


Ramkokamekra-Canela por agentes locais que se colocam como “procuradores” e “patrões”
de índios, tanto na preparação e encaminhamento de documentos ao INSS, como, após a
certificação do benefício, na retenção e manipulação de cartões de beneficiários indígenas. Na
semana anterior ao deslocamento da equipe de pesquisa à Barra do Corda, a Polícia Federal
havia realizado uma operação no município, onde foram identificados e detidos indivíduos
envolvidos nessa modalidade de delito, praticado contra idosos locais.
A vulnerabilidade dos grupos indígenas locais diante da ausência do atendimento
diferenciado nas agências bancárias beneficia os “atravessadores” ou “patrões” que lucram
com as atividades ilícitas de cadastramento junto à Previdência Social, além de se colocarem
como única possibilidade dos Canela terem acesso ao dinheiro dos benéficos previdenciários.
De acordo com o Coordenador da CTL/FUNAI, o acompanhamento desse processo pela
FUNAI – que não ocorre, dentre outras, pela escassez de funcionários – poderia inibir a
intermediação ilícita.
156
A falta de atuação mais efetiva da FUNAI nessa área abre espaço para a ação ilícita de
terceiros. A utilização pelos Canela, do termo “buscar”, ao invés de “comprar”, quando se
referem ao ato de adquirir produtos manufaturados no comércio da cidade, aponta para uma
compreensão desse processo, não como relação de troca (compra e venda de mercadorias),
mas como uma relação de doação e recepção. Essa compreensão limitada ou, melhor,
equivocada, sobre o valor monetário do “cartão”, deixado nas mãos do chamado “patrão”,
concorre para a continuidade desse sistema de exploração, uma espécie de atualização do
histórico “sistema de barracão”, ainda hoje presente em várias regiões no Brasil.
O coordenador da CTL/FUNAI admite a existência de “patrão” (atravessador, agente
privado que se coloca como fornecedor de mercadorias com valores superfaturados, realiza
“empréstimos” a juros extorsivos, em função da retenção dos cartões previdenciários dos
Canela) e dos problemas que esses geram aos indígenas, pois sendo o único fornecedor,
estipula o valor das mercadorias e condiciona a entrega à retenção dos cartões.
Maria Francisca, do SAI – CTL-Canela, afirma que o acompanhamento da efetivação
dos direitos previdenciários pela CTL é realizado até o momento em que o INSS dá seu
posicionamento, favorável ou desfavorável, ao pedido do benefício. “Quando o pedido é
indeferido, já tem gente esperando para agilizar o processo por outros meios”.
A instituição do “patrão”, mesmo ilegal, é percebida como normal. “Há casos de esses
agenciadores virem até a FUNAI pedir documentos dos índios”;
Mesmo tendo adquirido um status de importância, já que são percebidos como um
item necessário para acessar os benefícios previdenciários, os documentos (cartão de
benefícios) ainda são deixados pela cidade (geralmente no comércio) como prova de
pagamento.
Antes de receber qualquer tipo de benefício, os índios já estão tão endividados que não
sobra quase nada de dinheiro para eles.
Segundo Elze Jane Alves de Carvalho, enfermeira do Polo Base Canela, os cartões de
benefício previdenciários ficam, de modo geral, nas mãos dos “patrões”. Quando falece um
beneficiário indígena, o seu “patrão” pode continuar recebendo esses benefícios, por meio de
uma “jogada interna”, na qual consegue a senha pela instituição bancária.
Afirmou que os Apaniekrá às vezes dizem que perderam os documentos, mas na
verdade não querem dizer que os deixaram nas mãos do “patrão”. O confisco não é apenas
dos cartões de benefício.
Txatú Canela, liderança tradicional e associativista Canela, destacou que:

157
(...) é necessário que tenha um representante legal para substituir os atuais
intermediários brancos, que só enganam os índios (...) o índio que não se
sentisse em condições é quem deveria pedir a intermediação do
representante (...).
Raimundo Perfet, liderança tradicional e professor indígena, afirmou que, dentre os
Canela que recebem os benefícios de auxílio-doença ou Benefício de Prestação Continuada,
na maioria dos casos, os cartões daqueles que recebem benefícios ficam nas mãos de
“vizinhos brancos”, que vivem no entorno da Terra Indígena.
Para contrapor a essa situação, Perfet propõe que seja estabelecido um “grande
comércio” e uma estrutura bancária, com caixas eletrônicos na Aldeia Escalvado, para que os
benefícios previdenciários sejam acessados na própria aldeia e a renda deles seja investida na
comunidade.
Raimundo Beato afirmou que:

a comunidade não quer ouvir, nem falar do problema dos cartões e dos
documentos que estão fora da aldeia. (...) temos que deixar o cartão ou o
documento no comércio da cidade porque não confiam na gente, somos
estrangeiros (...) para ir atrás do direito, nós temos que ter dinheiro (...) a
FUNAI não acompanha o auxílio-doença (...) quase todo mundo tem Bolsa-
Família, é mais fácil conseguir sem ajuda (...) cada um vai atrás do
benefício sozinho (...) as pessoas que ajudam cobram R$ 100,00 por salário-
maternidade (...) a língua é um obstáculo muito grande, é onde o nó arrocha
(...) os comerciantes é que mandam no esquema do Bolsa-Família (...) os
brancos brigam para saber quem vai ficar com os documentos dos índios.
(Entrevista com Raimundo Beato, líder tradicional Canela e professor
indígena).
Jaldo Kanoy declara que:

é difícil mexer com o caixa eletrônico, aí nós damos o cartão para ter
mercadorias (...) os brancos não forçam o índio para ele dar o cartão, ele
ganha na conversa, não toma o cartão (...) o próprio índio é que procura o
branco para trocar o cartão. (Entrevista com Jaldo Kanoy, professor
indígena).
Felipão Paulino Ikoj Canela, aposentado por idade, comentou que o atendimento é
indiferenciado. Os Canela são atendidos pelo INSS sem considerar suas especificidades. A
intervenção da FUNAI no processo limita-se aos encaminhamentos visando a concessão do
benefício. Quando a atuação do funcionário não leva ao resultado esperado pelos indígenas –
a concessão do benefício – outros agentes são mobilizados para agilizar, por outros meios, os
processos.

158
Nesse momento, a figura do “patrão” ou de outro tipo de “atravessador” entra nesse
sistema de forma ilícita, ou em último caso, como a única via possível para acessar os
benefícios previdenciários. Além do mais, expressa que há a necessidade de o possível
beneficiário ser acompanhado por alguém (índio ou não) que tenha maior desembaraço para
lidar com as questões citadinas, dentre elas a previdenciária.
Pedro Curroy, beneficiário do Bolsa-Família, relatou uma situação em que os cartões
dos Apaniekrá ficam retidos por um “patrão”, morador de um povoado próximo da aldeia.
Afirmou que o “patrão” repassa parte do dinheiro retirado aos índios, utilizado para pagar o
frete para se deslocar até o povoado para comprar mantimentos. Os transtornos com os
deslocamentos para comprar mantimentos fora da aldeia justificariam a manutenção os
cartões nas mãos de terceiros. Todavia, gostaria que os cartões voltassem para a aldeia, pois
não sabe o que está sendo feito com o cartão.
Curroy informa que existem diversas modalidades de “patrões”, onde inclui os
sertanejos, administradores, comerciantes e outros índios (escolarizados). A instituição de um
“patrão” sertanejo refere-se à proximidade física dos povoados com a aldeia, o que diminuiria
em parte as dificuldades de deslocamento, se comparado à ida para Barra do Corda. Porém, o
valor das mercadorias no sertão é bem mais elevado do que na cidade. Ao Apaniekrá resta,
então, escolher o tipo de exploração a que se sujeitará.
Raimundo Xavante adiciona a informação de que alguns índios guardam, a pedido dos
funcionários da FUNAI, os cartões nessa instituição, justamente para evitar que esses sejam
entregues a terceiros. Desse modo, declara que no dia do pagamento vai até a FUNAI em
Barra do Corda para pegar o cartão, em seguida retira o dinheiro no banco, depois deixa o
cartão na FUNAI, faz suas compras na cidade de Barra do Corda e finalmente retorna para a
aldeia.
João Hôho, professor Apaniekrá, não deixa seu cartão previdenciário com
“atravessadores” ou “patrões” e faz suas próprias compras em Barra do Corda, mas reclama
dos altos preços cobrados pelo comércio local aos beneficiários indígenas. Hôho afirma que,
geralmente, os indígenas nem chegam a “pegar no dinheiro”, pois quando recebem os
benefícios, o dinheiro já está quase completamente comprometido com os comerciantes, pelo
endividamento. Esse fato indica a razão aparente dos recursos previdenciários não
provocarem alterações acentuadas nas relações entre os próprios Canela, pois não há inserção
de dinheiro em demasia.

159
4.4.2 TENETEHARA-GUAJAJARA

Sebastião Guajajara, coordenador do Polo Guajajara da FUNASA em Grajaú,


acompanhou os pesquisadores na entrevista junto ao cacique Djalma Marizê, na qual revelou
seu conhecimento sobre a ação de intermediários não índios nas questões previdenciárias.
Confirmou a existência de exploração sobre indígenas em Grajaú, por atravessadores e
“patrões”, e como essa ação dificulta a melhoria da qualidade de vida dos Tenetehara naquele
município.
O gerente do INSS em Grajaú demonstrou indignação diante das denúncias sobre
irregularidades praticadas por intermediários de benefícios junto ao INSS. Ele também
sugeriu mecanismos para diminuir as fraudes, como o uso do leitor biométrico, a implantação
de cartões descartáveis e outras formas de melhorar e maximizar a manutenção desses
benefícios nas mãos dos indígenas.
Informou, ainda, que há 16 anos trabalha na Previdência Social, período em que teria
realizado várias denúncias de irregularidades contra a mesma, mas que, em relação às fraudes
contra indígenas, não teria instrumentos para intervir, uma vez que se trata de uma questão
que fugiria da sua alçada.
Descreveu também as várias formas de fraudes e problemas de falsificação que vêm
enfrentando ao longo de sua gestão. Relatou sobre denúncias e irregularidades, e constatou
que de 14.000 benefícios pagos atualmente pelo INSS em Grajaú, cerca de 2.000 benefícios
foram concedidos a indígenas. Apenas na unidade de Imperatriz, existiriam mais de 2.000
solicitações de salário-maternidade.
O Gerente da APS-Grajaú afirmou, ainda, que os indígenas fazem pouco uso dos seus
benefícios, porque os mesmos não se concentram em suas mãos, mas sim nas mãos de
atravessadores e terceiros, os quais mantêm em seu poder os cartões magnéticos bancários dos
indígenas. O gerente explicou que, em alguns casos os indígenas nem sabem que estão sendo
enganados fora de suas compras mensais, considerando empréstimos e outras formas de
exploração, como por exemplo, a obtenção de mais de um benefício por meio da retirada de
novos documentos.
Aposentado pelo INSS em Grajaú, Djalma Guajajara, liderança tradicional e um dos
caciques da Terra Indígena Morro Branco, conta que foi vítima de empréstimos realizados por
agiotas e teve seu cartão de benefício retido por um atravessador. Afirmou que os recursos de

160
sua aposentadoria são atualmente utilizados como complemento de renda, e não mais como
renda principal, como ocorria anteriormente.
Djalma Guajajara considera os benefícios da Previdência como uma espécie de
“válvula de escape” da fome. Para muitos indígenas significa a entrada em um estado de
miséria, contra a qual recorrem aos “patrões” na busca de “empréstimos”, os quais aproveitam
as oportunidades para intensificar a exploração aos indígenas. Para obter os recursos de que
necessitam Djalma e outros aposentados indígenas se vêm obrigados a “empenhar” o cartão
de benefícios, a fim de poder comprar mais mercadorias e obter dinheiro a prazo. Alega que
se assim não procedesse, ficaria apenas com o valor do benefício, que seria insuficiente para
cobrir suas necessidades familiares.
Na base da exploração de atravessadores e “patrões” sobre aposentados e outros
beneficiários indígenas, Djalma Guajajara constata que os benefícios da previdência quando
não são temporários (auxílio-doença, salário-maternidade), oferecem valores que não suprem
as necessidades básicas dos aposentados e suas famílias. “Como sobreviver com o valor de
uma aposentadoria tendo que compartilhar de tais recursos com mulheres, filhos e netos?” A
pergunta se fazia presente durante as entrevistas e mesmo conversas informais com os
aposentados Tenetehara.
Questionado se língua nativa representava obstáculo no processo de aquisição e
manutenção dos benefícios previdenciários, Djalma Guajajara afirmou ser esse um dos
motivos da existência de atravessadores e acompanhantes nos momentos de solicitação dos
benefícios: “se não nos fazemos entender, aí tudo complica!”.
José Dilamar Pompeu propõe é que seja colocado um caixa eletrônico no interior dos
núcleos da FUNAI com atendimento itinerante, o que tornaria essa atividade mais específica e
com maior possibilidade de fiscalização. A falta de fiscalização, de atendimento específico e
de educação previdenciária foram apontados como fatores ligados a desse processo. Lamenta
o fato de os cartões de benefícios não ficarem nas mãos dos beneficiários. Alertou, ainda, para
o fato de que o cartão é percebido de maneira diferente em relação à forma como se entende o
dinheiro. “Nenhum indígena abre mão de dinheiro, porém essa lógica não se aplica ao
manuseio do cartão”.
Em relação à utilização dos benefícios, Urupaiti, cacique da Aldeia Uruaçú, disse que
os cartões previdenciários que possui encontram-se “empenhados” para que ele possa se valer
de empréstimos no momento em que houver necessidade. Tal prática parece ser uma
constante entre vários beneficiários de aposentadorias, como pensões, salário-maternidade e

161
bolsas-família. Na fala desse líder, o “patrão” não é apenas um agente de exploração, mas
também é uma figura de ajuda e fuga da realidade para os momentos de crise e falta de
dinheiro.

4.4.3 POTIGUARA

Quando indagada sobre possíveis fraudes ou exploração dos segurados indígenas,


Clênia Alencar – Gerente da APS – Rio Tinto (PB), afirmou existir uma “máfia dos cartões”
entre os Potiguara. Contudo, a atuação aconteceria de forma bastante discreta e com a
conivência de familiares. O silêncio do segurado ou da família frente à exploração teria
motivações internas, ou seja, da própria cultura Potiguara, pois eles acreditam que esses
assuntos devem ser resolvidos sem a interferência dos não índios.
Segundo a agente previdenciária, os principais exploradores são atravessadores,
agiotas e, até mesmo, membros de algumas instituições. Enquanto o atravessador ganha por
auxiliar no acesso ao recurso previdenciário, o agiota explora o segurado por meio de
empréstimos ou adiantamento de mercadorias, retendo o cartão do benefício por pequenos
períodos de tempo, até que o débito do indígena seja quitado.
Já as instituições, segundo Clênia, cobram uma taxa para expedir as declarações,
prática que ela afirma existir no Sindicato dos Trabalhadores Rurais do município de Baía da
Traição. Além de tais problemas, Clênia afirmou que os índios sofreram, ao longo do tempo,
outros tipos de exploração praticados pela antiga fábrica de tecidos e pelos usineiros de cana-
de-açúcar locais.
Dr. José Raldeck, Promotor de Justiça da Comarca de Rio Tinto atestou a existência de
casos de exploração de beneficiários da Previdência na região, ratificando as informações já
coletadas pela equipe. Contudo, ele explicou que não há um controle sobre casos específicos
envolvendo indivíduos indígenas. Mesmo assim, as características do tipo de exploração
combatida pelo MPE podem ser aplicadas à realidade Potiguara.
Em relação à exploração de beneficiários da Previdência Social, os processos judiciais
que tramitam na Comarca demonstram que os mais prejudicados são os idosos, que vivem em
situação caracterizada por Raldeck como de “exploração familiar”. São os próprios filhos,
sobrinhos, netos e irmãos que retêm o cartão dos aposentados, fornecendo apenas o mínimo
de mantimentos e assistência ao segurado. Na maioria dos casos são feitos empréstimos
consignados em pequenos bancos, com ou sem o conhecimento do beneficiário.
162
Contudo, Raldeck informou que não tem conhecimento de nenhuma forma ou
organização criminosa instituída, não havendo constatado, também, a existência de “patrões”
de cartões de benefícios do INSS, situação indicada pela equipe de pesquisa, a partir dos
levantamentos na região centro-sul maranhense.
O promotor mostrou conhecimento de casos isolados de exploração familiar de idosos,
mas afirmou que o explorado quase nunca realiza as denúncias. Quem a faz são outros
parentes do beneficiário, indignados com a situação. A partir dessas denúncias, os portadores
não autorizados dos cartões ficam inibidos e, assim, a exploração acaba ou pelo menos
diminui consideravelmente.
A existência de políticas públicas também colabora nesse enfrentamento. Dr. Raldeck
relatou que o Programa Saúde da Família – PSF e o Programa de Proteção ao Idoso – Pró-
Idoso são um diferencial para que casos de exploração de idosos não ocorram com maior
frequência.
Muitas denúncias são feitas por Agentes de Saúde, que estão entre os maiores
parceiros do Ministério Público no combate à exploração dos beneficiários. Graças aos laudos
que esses profissionais fazem junto às famílias em suas residências, o MPE toma
conhecimento da situação dos idosos para, assim, poder intervir.
O Promotor informou, ainda, que existe na cidade de Rio Tinto, uma Comissão
Verificadora de Benefícios, responsável por fazer o levantamento social e a avaliação das
situações relacionadas aos direitos dos segurados. A comissão define um conselho específico
para avaliar desde o acesso ao benefício até a questão dos empréstimos consignados.
Uma das ações do MPE, após a comprovação das denúncias, é o bloqueio dos cartões.
Os outros passos dados são: 1) Parceria com a Assistência Social para o acompanhamento dos
segurados; e 2) Prisão dos envolvidos, caso se comprove a agressão ou representem ameaça às
vítimas.
Por fim, Dr. Raldeck fez algumas considerações sobre a realidade Potiguara. Ele
acredita que há omissão dos indígenas em relação às irregularidades praticadas contra o
segurado especial. Desse modo, não há denúncias e tais assuntos são acompanhados a partir
da limitação de informações do MPE.

163
Casos Previdenciários

ROSANE BRASILIANA DA SILVA, 18 ANOS – SALÁRIO-MATERNIDADE


(EFETIVADO)
Como tem certas dificuldades em lidar com esses processos, ela teve uma intermediária no
acesso ao benefício. Como forma de agradecimento, Rosane Brasiliana da Silva deu a essa pessoa a
quantia de R$300,00. Ela busca receber agora o Bolsa-Família, mas lhe falta ainda o CPF entre outros
documentos, que já está tentando tirar.

4.4.4 BANIWA

Indagado sobre a existência de irregularidades, o técnico da previdência Ortemar


Bindá afirmou que “tem gente que paga as passagens dos índios para ir até Manaus se
aposentarem e depois cobram por isso”. Ortemar deixou claro que não há um combate a esse
tipo de atravessador: “Só tem gente fazendo isso porque a FUNAI não atua”.
Além das complicações abordadas, Irineu Rodrigues aponta outra séria questão: a
retenção do cartão dos beneficiários indígenas das áreas de fronteiras por comerciantes de São
Gabriel da Cachoeira. Ele iniciou a conversação sobre o tema ilustrando uma situação
comum:

Um velhinho que vive na ponta, lá na fronteira, ele não quer vir todo mês
aqui. Então, pega alguém que conhece e diz: “fica com meu cartão, pega o
meu dinheiro e manda para mim”. Coitado! Quando chega aqui, não tem
mais o valor total do dinheiro, porque o cara que ficou com o cartão já
gastou. Isso acontece. Muitas vezes fica até no comércio. Se vocês forem
pesquisar nos comércios vão ver cartões de aposentados lá. Eles [os índios]
vêm aqui, pegam as mercadorias nos comerciantes e, para não virem de novo
para pagar a conta, deixam o cartão e o comerciante vai lá tirar o dinheiro.
Às vezes, ultrapassa do valor que o índio estava devendo. É um problema
sério. (Entrevista com Irineu Rodrigues, liderança da FOIRN).
A retenção dos cartões é notória na cidade, um problema não só para os Baniwa, mas
também para os demais aposentados que moram nos pontos mais distantes. Além do cartão da
Previdência, a situação também atinge quem recebe o Bolsa-Família, principalmente por esse
benefício ser de menor valor. Irineu declara que “para não virem aqui todo mês receber
setenta “reaiszinho”, deixam o cartão aqui e vão embora ou fazem uma procuração, que seria
um pouco mais legal, e fica com o procurador. Mas o procurador também age de má fé, gasta
o dinheiro e não guarda como deveria guardar”.

164
Como tentativa de solucionar tais problemas, a FOIRN está conversando com o
Governo para a implantação de um banco postal onde os próprios índios poderiam sacar o
dinheiro. Um local indicado é o Tunuí, ao longo do Rio Içana. Isso não acabaria com o
contato entre os índios das áreas de fronteira com São Gabriel da Cachoeira, pelo contrário,
pois continuariam se deslocando para realizar a compra das mercadorias na cidade com a
renda que puderam acumular, dinheiro sacado por eles mesmos e por eles autonomamente
investidos.

Casos Previdenciários

BETTY OLEGÁRIO DA SILVA E ALBERTO ALEXANDRE APOLINÁRIO


Para obter o benefício, Betty Olegário da Silva e Alberto Alexandre Apolinário chamaram
para ajudar um intermediário branco, conhecido como Xavier, que já ajudou vários índios da região:
“Ele pegou a documentação e levou até Manaus. Só foi preciso minha mãe ir lá para a entrevista. A
FUNAI só pagou a passagem. Pagamos para o Xavier R$300,00. Isso é o de menos, ele fez muito por
nós”.

FEIRANTES DE SÃO GABRIEL DA CACHOEIRA


Na feira de São Gabriel da Cachoeira, os pesquisadores conversaram com várias feirantes
informalmente, colhendo informações relacionadas às denúncias de outros entrevistados sobre o
esquema dos cartões. Essas mulheres afirmaram que “é regra” os cartões dos índios das comunidades
ficarem nas mãos de intermediadores na cidade.

4.4.5 TIRIYÓ

Na cidade de Macapá, em entrevista com aposentados(as) Tiriyó, questionou-se se o


recurso estava sendo recebido normalmente e um dos aposentados disse: “Quem tá com o
cartão é a minha filha, lá. Ela tá morando aqui. Aqui no Macapá.”
Mas o mesmo estava enfrentando problemas porque, embora o recurso estivesse
saindo normalmente, era o filho que recebia e não entregava ao indígena. Segundo
informações dos entrevistados, foi feito inclusive um empréstimo em nome do aposentado, e o
mesmo estava endividado. A tradução feita por um dos indígenas que falava português
afirmou que o filho tinha feito um empréstimo e o cartão é que estava pagando esse
empréstimo: “Não tá entregando não... Ele pegou o empréstimo e esse é que tá pagando... Foi
meu filho, o Lucas”.

165
Um dos indígenas, ao traduzir a língua daquele que tinha entregado o cartão ao filho
para receber o benefício, afirmou o seguinte:

Ele deve esse empréstimo. Ele deu o cartão na mão dele. Ele entregou pro
filho pra receber porque a gente morava aqui na cidade, aí ele entregou, tá na
mão do filho. Então ele fez um empréstimo de não sei o quê, a gente não
sabe o que ele comprou. Então esse que ele “tá pagando, cai dinheiro e dá
pra pagar esse empréstimo” (Depoimento de indígena Tiriyó).
Quando questionado porque não pegava o cartão de volta, o indígena respondeu “Eu
queria pegar meu cartão (...) É, queria pegar pra comprar o que comer, eu não tenho nada. Ele
fica com meu dinheiro, só fica gastando pra fora”.
Para os indígenas que vivem essa situação a melhor alternativa é responsabilizar a
FUNAI pelo recebimento do recurso. Mas, nesse caso, o indígena nem sabia onde morava seu
filho, por isso não pegava seu cartão de volta e nem passava para outros responsáveis. O
indígena idoso, angustiado sobre sua situação, disse: “Eu “tô” procurando, não sei onde mora.
Tá aqui mesmo no Macapá (...) tava aqui, mas saiu daqui e alugou a casa dele”.

4.4.6 SATERÉ-MAWÉ

Geraldo Sinimu, da APS de Parintins, foi indagado sobre a presença de intermediários


não autorizados na relação entre os povos indígenas e a Previdência Social, definidos como
“procuradores”, “patrões” e outros termos. Diante desse questionamento sobre a possível
ocorrência de formas de exploração sobre as populações indígenas da região de Parintins por
advogados, agiotas, comerciantes e outros agentes, Sinimu afirmou que,

na verdade, uma das nossas exigências junto a FUNAI é que o índio é


tutelado, logo, ele tem que ser acompanhado pelo servidor da FUNAI e nada
mais. No que diz respeito ao cadastramento do indígena, eu nunca vi ocorrer.
Como eu disse anteriormente, saiu daqui, acabou a responsabilidade do
INSS. Se algo nesse sentido acontece, nós não temos conhecimento. Nossa
responsabilidade consiste em conceder o benefício e acreditamos que a
responsabilidade é da FUNAI, que é a responsável pela tutela dos índios e
que tem que ter o compromisso de trabalhar em cima disso. (Entrevista com
Geraldo Sinimu, chefe de Atendimento da APS-Parintins).

166
4.5 ACHADOS RELATIVOS AOS USOS DO DINHEIRO

Os segurados indígenas aplicam os recursos monetários para atendimento de suas


necessidades cotidianas de alimentação (carne, sacos de arroz, feijão, óleo, café, açúcar etc.),
vestimenta (recortes de tecidos, calções etc.), higiene (sabão etc.), moradia (reforma da casa,
compra de motosserra para a construção de casas de madeira) e produção (motor para as
embarcações, construção de casas de farinha, anzol, linha de pesca, espingarda e munição).
Mas, a alimentação é o ponto crucial para aplicação do recurso pelos segurados.
Constatou-se a realização de investimentos na compra de produtos industrializados,
eletrodomésticos (televisão, antenas parabólicas, notebooks, geladeiras, aparelhos de som,
fogão e outros), móveis (cama, colchão, guarda- roupa etc.).
Os benefícios advindos dos direitos previdenciários e assistenciais são utilizados,
ainda, para a aquisição de produtos para serem comercializados no interior das aldeias. Dentre
os produtos destaca-se a comercialização de bebidas alcoólicas.
Outro uso comum do dinheiro é a manutenção de festas da comunidade indígena,
especialmente para a aquisição de gado (carne) e de laranja e para prover os rituais.
Há uma diferenciação no uso do dinheiro por parte de homens e mulheres indígenas,
considerando-se que homens, em sua maioria, usam o benefício para compra de bebidas
alcoólicas e mulheres usam na compra de mercadorias para o sustento da família.
Há muitos relatos de utilização dos recursos para conseguir empréstimos consignados
para realizar investimentos que exigem maior volume de recursos, como a reforma da casa.
Avôs e avós também utilizam o benefício nas despesas escolares dos netos e netas.

4.5.1 APANIEKRÁ E RAMKOKAMEKRA-CANELA

Os Apaniekrá e Ramkokamekra-Canela têm mantido, ao longo dos anos, relativa


autonomia alimentar, a partir das suas roças familiares, nas quais produzem os itens essenciais
de sua alimentação (arroz, mandiocas, cará, fava, frutas diversas etc.), da produção de farinha
e de pequenas criações, como porcos e galinhas. Uma incipiente criação de gado vacum
implementada por meio de projetos econômicos (Convênio CVRD-FUNAI, Programa
Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar – PRONAF, apoio de pesquisadores) e
com recursos dos próprios Canela advindos da Previdência e da Assistência Social foi

167
incorporada como parte essencial dessa autonomia dos Canela, tendo-se em vista o acentuado
crescimento populacional nas últimas décadas e as limitações das respectivas terras indígenas.
De acordo com levantamentos realizados, os Apaniekrá como os Ramkokamekra, em
decorrência de salários (FUNAI, FUNASA), dos projetos citados ou de benefícios
previdenciários chegaram a estabelecer pequenas criações de gado, geralmente utilizado nos
rituais ou festas, ou mesmo para a alimentação das famílias. Nos casos de consumo coletivo
de carne bovina, os animais são comprados, em geral, com a intermediação de vaqueiros ou
moradores da região.
Os recursos monetários introduzidos entre os Apaniekrá e Ramkokamekra-Canela, por
meio da venda de produtos agrícolas (arroz, farinha de mandioca etc.), de artesanato, do
recebimento de salários (funcionários da FUNAI, professores indígenas, agentes indígenas de
saúde, trabalhos eventuais nas cidades), das aposentadorias da Previdência Social, têm sido
investidos na compra de alimentos (carne, sacos de arroz, feijão, óleo, café, açúcar etc.),
vestimentas (recortes de tecidos, calções etc.), produtos de higiene (sabão etc.) e outros
produtos industrializados.
Com a introdução da energia elétrica nas Aldeias Escalvado e Porquinhos, os recursos
monetários decorrentes, sobretudo, de salários, dos direitos previdenciários e assistenciais
intensificaram a aquisição, pelos Canela, de aparelhos eletrodomésticos como televisão,
antenas parabólicas, geladeiras, aparelhos de som, fogão, móveis e outros, o que tem resultado
em mudanças significativas nas práticas sócio-culturais desses grupos.
Os recursos advindos dos benefícios previdenciários e assistenciais são utilizados,
também, para a aquisição produtos para serem comercializados no interior das aldeias. Dentre
os produtos destaca-se a comercialização de bebidas alcoólicas.
Mesmo quando os direitos previdenciários são efetivados, os recursos vindos dos
benefícios não são considerados suficientes pelos indígenas, pois implicam em uma nova
dinâmica de vida social, baseada no consumo de mercadorias. Isso fica evidente na fala de
uma beneficiária do salário-maternidade: “não dá pra se manter, tem que fazer trabalho de
roça para os mehin (índios) aposentados”.
Essa nova situação de beneficiário da previdência implica em alteração nas relações
sociais, que se monetarizam mediante o pagamento em dinheiro. Se não é possível sobreviver
dos recursos advindos dos benefícios previdenciários e assistenciais, também não é possível
viver apenas das roças familiares.

168
O coordenador local da FUNAI considera que um grande contingente dos Canela
(“mais de 90%”) dependem dos recursos obtidos junto à Previdência Social, especialmente
das aposentadorias.
Maria Francisca (SAI – CLT- Canela) informa que há apenas um caso em que a
FUNAI acompanha a maneira como o dinheiro do benefício é gasto. Trata-se de um índio que
é doente mental. Nos demais casos não há fiscalização: “os próprios índios reclamam quando
são perguntados com o que gastam o dinheiro”.
Cornélio Piapit entende que há equívocos na compreensão dos Canela sobre os
benefícios da Previdência Social, atribuindo a essa os salários de professores e de agentes
indígenas de saúde. Segundo ele, os Ramkokamekra consideram que qualquer tipo de renda
advinda do Estado pode ser considerada como benefício.
Piapit afirmou, ainda, que esses benefícios são utilizados, dentre outras, para a
manutenção de festas da comunidade indígena, especialmente para a aquisição de gado
(carne) e de laranja e para prover os rituais.
Raimundinho Beato afirma qual o destino dos benefícios previdenciários:

com os benefícios é comprado gado para as festas e alimentação (...) os


índios não guardam o dinheiro, eles gastam tudo (...) a casa que não tem
benefício, os parentes vão caçar (...) se alimenta com a caça e a agricultura,
os benefícios é para ter coisas do branco. (Entrevista com Raimundinho
Beato, líder Canela).

4.5.2 TENETEHARA-GUAJAJARA

De acordo com a coordenadora do PBF, Maria da Conceição, as informações sobre os


Tenetehara são mantidas no Hospital São Francisco, onde são atendidos apenas indígenas
encaminhados pelos Polos-Base (FUNASA). Ela também descreveu que há uma diferenciação
no uso do dinheiro por parte de homens e mulheres indígenas, considerando-se que homens,
em sua maioria, usam o benefício para compra de bebidas alcoólicas e as mulheres usam na
compra de mercadorias para o sustento da família.

169
4.5.3 POTIGUARA

Em relação ao uso do dinheiro advindo dos benefícios, a gerente do INSS relatou que
a alimentação é a prioridade na aplicação do recurso pelos segurados. Há uma grande procura
pelo salário-maternidade e Benefício de Prestação Continuada (BPC), benefícios mais
requisitados pelos Potiguara junto à APS de Rio Tinto. “Tal índice é um reflexo das
dificuldades econômicas e debilidades sociais que o povo indígena passou e tem passado”,
explica Clênia.

Casos Previdenciários

ROSANE BRASILIANA DA SILVA, 18 ANOS – SALÁRIO-MATERNIDADE


(EFETIVADO)
Quando o primeiro filho de Rosane Brasiliana da Silva nasceu ela ainda não tinha 16 anos. Só
deu entrada no salário-maternidade de seu segundo filho, recebendo o valor de R$1.800,00. Com
apenas quinze dias, o salário-maternidade estava liberado, em nome de Tiago Brasiliano de Oliveira. O
dinheiro foi utilizado nas seguintes ações: reforma da casa; cama; colchão e guarda- roupa.

ISABEL CIRIACO DA CONCEIÇÃO, 78 ANOS – APOSENTADORIA E PENSÃO


(EFETIVADAS)
Com a renda da pensão e da aposentadoria, Isabel Ciriaco da Conceição compra alimentos e
faz o monitoramento de saúde, pois apresenta quadro de hipertensão. Os benefícios também foram
utilizados para realizar dois empréstimos consignados, que somados chegam a R$ 4.500,00. Em cada
benefício é descontado R$ 100,00.

MARIA DAS GRAÇAS SANTANA DOS SANTOS, 47 ANOS – AUXÍLIO-DOENÇA


(EFETIVADO)
A renda do benefício é utilizada na compra de alimentos e mercadorias para as pessoas que
moram junto com Maria das Graças Santana dos Santos. Contudo, só consegue manter a alimentação
constante porque tem locais onde ela pode comprar fiado e pagar mensalmente, sem ter que penhorar o
cartão do INSS.

IVO BATISTA DE MELO, 71 ANOS – AUXÍLIO-DOENÇA (EFETIVADO)


Do auxílio-doença que recebe, Ivo Batista de Melo conseguiu fazer dois empréstimos no valor
de R$ 1.500,00 cada um. Assim, todo mês é descontado de seu benefício o valor de R$ 68,00.

170
MANOEL PADILHA DOS SANTOS, 61 ANOS – APOSENTADORIA POR IDADE
(EFETIVADA)
Manoel Padilha dos Santos é apenas “juntado” com a companheira, tendo, dessa forma, união
estável. As filhas moram na capital, João Pessoa. Ele decidiu ficar na aldeia e, com a desapropriação
das casas em Coqueirinho há pouco mais de dois anos, acabou ficando responsável por uma das
residências desapropriadas. Conta que, anteriormente, sua casa era toda de adobe e que sofria bastante
com o vento e demais intempéries da natureza na beira da praia.
Quando se mudou, tirou um empréstimo consignado para terminar de reformar sua casa na
aldeia. O valor do empréstimo foi de R$5.000,00, que paga mensalmente ao banco em prestações de
R$152,00. Sobre o cartão de aposentado, Padilha afirma ter sua posse e que pede apenas para um
funcionário do banco lhe auxiliar, caso não esteja conseguindo efetuar o saque. Após retirar o
benefício, paga ele mesmo as contas e compra os mantimentos do mês.

MARIA MOURA DA CONCEIÇÃO, 56 ANOS – APOSENTADA (EFETIVADA)


Por ser viúva e não ter casa para morar, Maria Moura da Conceição reside no lar de uma
prima, autorizada pela beneficiária a sacar o dinheiro da aposentadoria todos os meses no banco. Maria
pretende fazer, em breve, um empréstimo consignado. O objetivo é construir uma casa na aldeia.
Enquanto o desejo da casa própria não se realiza, ela continua com a prima, a quem auxilia nas
despesas de alimentação para a família.

MARIA GABRIELA DA CONCEIÇÃO, 60 ANOS – APOSENTADA (EFETIVADA)


A renda da aposentadoria de Maria Gabriela da Conceição é voltada basicamente para o
consumo próprio e na compra de alimentos para a residência. Por não saber lidar com os caixas
eletrônicos, quem saca o benefício é a filha. Tem pagado a uma financeira o empréstimo consignado
feito para a reforma da casa onde mora atualmente.

4.5.4 BANIWA

Sobre as questões de recebimento e uso do benefício, foi informado por Ortemar


Bindá, da APS, que, após o consentimento, o dinheiro é recebido em São Gabriel da
Cachoeira, independentemente da localidade/comunidade de residência na região. Para evitar
o bloqueio dos benefícios, muitos índios possuem conta corrente no Banco do Brasil ou no
Bradesco, únicas agência na cidade. Assim, podem vir de 3 em 3 meses sem que o benefício
seja bloqueado.
Geralmente é o aposentado quem sustenta a família. Em geral, os beneficiários
indígenas usam a renda para suprir as necessidades cotidianas, com a compra de produtos
adquiridos em São Gabriel da Cachoeira. Entre as preocupações relacionadas ao uso do

171
benefício, Ortemar disse que “a gente se preocupa para que os parentes não façam
empréstimos”.
Entre os problemas relacionados ao uso do cartão, os técnicos da FUNAI José
Francisco Pereira Vieira e José Ribamar Caldas Lima Filho informaram que existem
denúncias de empréstimos feitos por terceiros com os documentos dos índios e casos em que
os filhos pegam os cartões e ficam com o dinheiro do beneficiário. Também reconhecem a
existência da retenção dos cartões no comércio local. Porém, “a FUNAI só intervém quando é
requisitada”, explica Francisco.
Como forma de coibir fraudes, a FUNAI realiza um censo previdenciário ao longo dos
rios para evitar que pessoas mortas continuem com o cartão ativo. Quem não pegar o dinheiro
em até 60 dias ou não for localizado pelo censo tem o benefício bloqueado.
Em relação ao saque do benefício, a dificuldade apontada por André Fernando, vice-
prefeito, é o recebimento mensal do dinheiro na cidade, que também é mais sentida pelos
indígenas das comunidades de fronteira. Desse modo, a situação do deslocamento mensal gera
duas consequências: 1) Afastamento do beneficiário das atividades na lavoura; e 2) Retenção
do cartão do segurado pelos “patrões”.
Pelo raciocínio do vice-prefeito, o fato de muitos indígenas se deslocarem todo mês à
cidade, em longas e dispendiosas viagens, tem lhes afastado das atividades agrícolas de
subsistência, refletindo em um desequilíbrio produtivo na própria comunidade. Por outro lado,
tal situação faz com que alguns homens indígenas acima dos 60 anos desistam até de se
aposentar.

Tem muitos velhos no Içana que não querem nem saber de aposentadoria.
Por quê? Porque ele não quer se preocupar em ir na cidade depois. Ele quer
ficar lá tranquilo, pescar, fazer sua rocinha. Ele não vem de jeito nenhum,
porque a partir do momento que vem e se aposenta, antes de chegar lá, já
tem que pegar uma pra chegar aqui de novo e aí não consegue plantar direito
na roça dele, que é fundamental dele, então é uma coisa opcional. Tem
muitos que resistiram e outros que acabaram realmente aceitando, mas tem
muitos ainda que resistem. Aí a gente diz: “O senhor já ta na idade”, mas ele
não quer fazer. (Entrevista com André Fernando, vice-prefeito de São
Gabriel da Cachoeira)
O segundo aspecto exposto por André representa uma estratégia dos indígenas para
fugir do deslocamento mensal. Os beneficiários deixam os cartões com os comerciantes e
pegam as mercadorias de tempos em tempos. Os “patrões” aceitam vender fiado na condição
de cobrar 20% em média acima do preço, mas alguns passam meses sacando o recurso de

172
inúmeros cartões e, quando o índio retorna para uma nova compra, negam haver saldo para
fazê-la.

[Os índios] acabam passando pros comerciantes porque o cartão virou um


instrumento de negócio pra poder pegar mercadoria fiado e poder levar de
volta alguma coisa pra sua família. Só que aí entra a margem. Existem
pessoas de boa intenção, mas tem muito mais gente de má intenção, que
acaba ficando com um monte de cartões e acaba que seis meses depois chega
aqui e aí não tem o saldo, aí acaba novamente caindo. Então não saiu da
questão de patrão, nem de escravidão. (Entrevista com André Fernando,
vice-prefeito de São Gabriel da Cachoeira).
Por outro lado, os índios que conseguem driblar os aproveitadores têm mais poder de
compra no comércio e fazem bons investimentos com a renda do benefício. O artigo mais
comprado é o motor para as embarcações, que na região são conhecidas por “rabetas”. Outros
investem na construção de casas de farinha, para aumentar a renda familiar com a produção e
comercialização do produto. Alguns avôs e avós também utilizam o benefício nas despesas
escolares dos netos e netas.
Os recursos advindos com os benefícios são utilizados pelos índios nos setores de
alimentação, transporte e vestuário. Irineu Rodrigues esclareceu como o uso do dinheiro se
relaciona à cultura e características locais:

Depois que nós tivemos contato com o homem branco, nós também nos
tornamos dependentes de certas alimentações, de certas roupas. Então isso [o
benefício] já facilita um pouco. [...] Apóia na questão de transporte. Com a
aposentadoria hoje, creio que 95% dos aposentados têm o seu motorzinho,
chamado “rabeta”. Eles não andam mais remando como faziam antigamente.
Gastavam trinta dias, mais que isso, para chegar até aqui. Hoje diminuiu o
tempo de viagem porque tem esse motorzinho, viajam tranquilo. [...] Eles
conseguem comprar anzol, linha de pesca, materiais que precisam para
sobreviver lá. Alguns compram espingarda e munição. Isso já ajuda bastante,
ajuda bastante mesmo. (Entrevista com Irineu Rodrigues, liderança da
FOIRN).
Mesmo reconhecendo as vantagens advindas com a renda gerada pelos benefícios às
comunidades, Irineu enfatizou que o poder de compra tem afetado negativamente os hábitos
alimentares, uma das mais fortes características da identidade dos povos indígenas. A região
do Rio Negro, antes uma área quase inalcançada pelos produtos industrializados, hoje é fiel
consumidora de açúcar, biscoitos e refrigerantes.
Entre as más consequências para a saúde indígena estão as cáries. O problema atinge
principalmente as crianças, mais facilmente seduzidas pelos doces e bombons. Outro fator que

173
corrobora para o agravamento da saúde bucal dessas crianças é que elas não têm o hábito de
escovar os dentes após comerem tais guloseimas.
Assim, tal situação se apresenta para Irineu como uma consequência do aumento do
poder de compra na região:

Antigamente, não tinham essas coisas, tinha fruta e outras coisas mais
naturais e que, talvez, não afetavam muito a saúde.[...] Isso não é só por
questão de benefícios dos aposentados, mas hoje já tem professores, agentes
de saúde. Cada um já tem alguma coisa em que trabalha, que ganha o
dinheirinho e compra essas coisas. É por isso que estou dizendo que não é só
por questão de benefício de INSS, mas outros recursos também vão
entrando. Todo mundo já tem alguma coisa para comprar o que precisa na
cidade. (Entrevista com Irineu Rodrigues, liderança da FOIRN).
Os produtos tecnológicos também estão na lista de compras dos indígenas.
Televisores, antenas parabólicas e até notebooks são adquiridos com a renda que atualmente
circula na região. Contudo, a tecnologia aqui não representa uma ameaça à cultura, ao
contrário, já que as próprias lideranças têm exercido um papel de orientação e incentivo para
o uso consciente desses recursos junto aos jovens, de forma a valorizar a memória e a tradição
dos povos indígenas.
Em relação ao papel das lideranças, Irineu revelou que os mais velhos são
fundamentais na construção das relações dos Baniwa com tudo que é exterior à sua cultura:

A partir do momento que tomamos a frente, as pessoas enxergam muito em


nós. Elas se espelham muito em nós. Se eu estou usando uma roupa de
marca, calça social, aí o jovem vai querer a mesma coisa e começa a cobrar
do pai: “eu quero uma roupa igual aquela”. Você tem que ser o mais simples
que tem que ser, tem que procurar igualar. A roupa que ele tem você tem que
usar. Você pode usar quando viaja fora uma roupazinha melhor, mas lá na
aldeia nós Baniwa não fazemos isso, temos que ser por igual. É até melhor,
para não se sentirem ofendidos: “Ah, porque ele tem e eu não?”. Então
procuramos respeitar muito essa tradição da nossa cultura. E hoje
conseguimos manter isso. (Entrevista com Irineu Rodrigues, liderança da
FOIRN).
Assim, é possível perceber que, para os Baniwa, as interferências externas devem
servir para o bem comum, sem gerar grandes diferenças. O uso do dinheiro, advindo de
benefícios ou não, também deve seguir esse princípio. Para isso, é de responsabilidade dos
mais velhos transmitir, por meio de conselhos e, principalmente, pelo próprio exemplo, o
modo de viver do seu povo.
Em relação às melhorias que a renda dos segurados especiais tem trazido para as
comunidades do Içana, Mário Farias, Armindo e Raimundo Benjamim, lideranças da OIBI,
174
destacaram o transporte, pela possibilidade de aquisição do motor para as embarcações, e
moradia, pois o dinheiro também é utilizado na compra de motosserra para a construção de
casas de madeira. No dia adia, a renda é revertida em gêneros alimentícios, produtos de
higiene, limpeza e vestuário.

Casos Previdenciários

BETTY OLEGÁRIO DA SILVA E ALBERTO ALEXANDRE APOLINÁRIO


O dinheiro das aposentadorias de Betty Olegário da Silva e Alberto Alexandre Apolinário é
sacado no caixa eletrônico dentro do banco. O recurso é utilizado com despesas de casa, material
escolar e para ajudar os filhos. Os aposentados dizem que a chegada dos benefícios melhorou a vida da
cidade. Mas só o benefício não é suficiente, tendo as famílias que trabalhar na lavoura para
complementar a renda.

4.5.5 TIRIYÓ

Em relação à percepção da FUNAI sobre o uso que os indígenas fazem do recurso que
recebem, o Sr. Afonso destacou que geralmente gastam com alimentação, pano para fazer
roupa e material de caça e pesca.
Conforme os indígenas eles gastam o dinheiro com suas necessidades imediatas:

A gente compra o que a gente quer. (...) O que a gente quer, a gente compra.
A gente compra, a gente aproveita, a gente come aqui mesmo, só que o
transporte... A gente compra só que o transporte não leva quase material. Pra
FUNAI levar e ninguém leva. E ninguém leva. (Depoimento de indígena
aposentado).
Muitos Tiriyó, ao permanecerem durante longo tempo na cidade, aproveitam para
acumular o recurso que recebem na perspectiva de comprarem produtos alimentícios para
levarem à aldeia. Entretanto, enfrentam dificuldades para transportar o que conseguem
comprar. O avião que utilizam para retornar à aldeia Missão Tiriyó não propicia o transporte
de grandes volumes. Nesse caso, os indígenas precisam escolher entre voltar para a aldeia ou
transportar cargas. Alguns deixam suas mercadorias na FUNAI, para que sejam levadas para a
aldeia, porém não há uma garantia da FUNAI para o envio dos produtos deixados pelos
indígenas. Já houve situações em que os alimentos comprados estragaram porque a FUNAI
não teve condições de levá-los até a aldeia. A fala de um dos indígenas idosos aponta essas

175
questões e a insatisfação pela demora da FUNAI em resolver os problemas que têm junto ao
INSS:

É difícil. A nossa casa pra voltar tá muito difícil. Gente recebe e demora,
demora, demora até receber o outro. Demora, demora, demora até conseguir
dois, às vezes um, mas não leva material quase. (...) Só leva mesmo o corpo.
(...) E pra voltar demora. E por que é que a gente tá demorando? Por que que
a gente ta demorando pra voltar? Por que é que a FUNAI não diz pro
aposentado? Porque o primeiro que era da FUNAI era melhor. (...) Vinha
aposentado e demorava um pouco, aí perguntavam se já tava recebido tudo,
antes vinha te falar que já tava, aí gente não demorava, demorava, mas não é
tanto quanto a gente ta demorando agora. (...) Aposentado vinha e
mandavam comida, a FUNAI mandava a comida antes, porque a gente não
recebia o dinheiro... E agora por que deixaram isso? (Depoimento de
indígena idoso).
Sobre o que os indígenas fariam com o dinheiro, caso conseguissem o benefício da
aposentadoria pelo INSS, a entrevista realizada com alguns indígenas idosos aptos a se
aposentarem enfatizou que os mesmos investiriam em roupas e equipamentos para casa e para
o trabalho. Conforme se destaca nas falas abaixo:

A primeira coisa que eu faria se eu fosse me aposentar, eu compraria uma


roupa, porque eu tenho essa única, e eu faria a compra das coisas aí, das
panelas que a gente precisa. Vocês incentivaram trazer roupas aí, agora a
gente tem que usar mesmo, não tem jeito, e a gente precisa desse dinheiro
para poder se manter comprando roupa e alguma coisa para a gente. Eu acho
que você está olhando as panelas que estão todas acabadas, todas sujas e não
tem como eu lavar, não tem como eu cuidar (...) o pouco que o meu marido
ganha, ele não tem condições de ajudar todo mundo. Ele ajuda a gente aqui,
só que ele, às vezes o pessoal que faz o pagamento para ele não dá muito
dinheiro, dá pouco. E eu preciso me aposentar para ajudar meus netos,
minhas filhas [tradução da fala de uma indígena não aposentada].
[Ele está falando muita coisa, mas o que ele gostaria, primeiramente, é a
rede. Ele não tem. Eu acho que vocês estão vendo a realidade aqui que tem
muitos Carapanãs e ele tem que comprar algumas coisas. Ele está mostrando
a roupa dele que é única, não tem outra.] “Não é de hoje que eu estou
sofrendo. Agora está piorando. Porque eu quero me aposentar o mais breve
possível porque eu estou sofrendo. Estou necessitando comprar algumas
coisas para mim: anzol, faca, panela. Eu quero comprar essas coisas para
mim. O básico que eu quero. Porque eu não tenho como dormir, eu não
consigo dormir direito na rede porque ela está rasgada, está toda costurada e
eu quero melhorar um pouco com esse benefício” [tradução da fala de um
indígena não aposentado].

176
4.5.6 SATERÉ-MAWÉ

Em conversa junto ao tuxaua Eliton Barbosa, à professora Rosa Barbosa e outros


Sateré-Mawé presentes, foi abordada a questão da manipulação dos cartões de pagamento
previdenciário por diferentes agentes nos municípios e Barreirinha e Parintins. De acordo com
os entrevistados, essa manipulação é comum nos pequenos comércios e até em supermercados
da região.
Questionados sobre aos razões pelas quais os indígenas entregam seus cartões
previdenciários aos comerciantes locais, os Sateré-Mawé presentes informaram que os
aposentados indígenas não conhecem seus direitos, sendo facilmente objeto da ação de
atravessadores, os quais repassam produtos a preços superfaturados e retêm os cartões de
benefícios como garantia do pagamento das despesas.

(...) Aparece lá um cidadão: olha, se você levar essa garrafa aqui eu faço por
dez reais! Mas ele tá pedindo numa garrafa dessa cinquenta, sessenta reais.
Aí ele parte pra pagamento por mês, dez reais por mês. Sete, oito meses que
ele pega dez reais, dá uns oitenta reais, não é? Pagando uma coisa, três
coisas, ele pagando em uma coisa só. (Entrevista com lideranças Sateré-
Mawé).
De acordo com os informantes, o indígena entrega seu cartão previdenciário a um
atravessador em troca do recebimento de uma mercadoria ou de uma compra antecipada. Essa
relação é aparentemente voluntária, mas uma vez ocorrida a entrega do cartão, inicia-se um
longo processo de exploração econômica sobre o beneficiário indígena, cujo controle está nas
mãos do fornecedor das mercadorias, que estabelece o valor a pagar e o tempo de retenção do
cartão de seu “cliente”.
Esse processo, muitas vezes, atinge um grande número de beneficiários indígenas e
não indígenas, ocorrendo situações nas quais um mesmo atravessador mantém em seu
controle uma quantidade de cartões previdenciários. De acordo com os levantamentos, muitas
vezes o próprio beneficiário indígena procura um agente que faça esse adiantamento de
mercadorias, deixando seu cartão de benefício empenhado, até que o suposto débito seja
quitado.
A situação torna-se mais crítica em relação aos aposentados, quando a manipulação de
cartões, muitas vezes, é realizada também por membros da própria família. Os aposentados
são vítimas de outras formas de exploração, como a antecipação de dinheiro por agiotas,
também a partir da retenção dos cartões de benefícios, os quais passam a cobrar juros
exorbitantes tornando impagável a suposta dívida.
177
A desinformação e o despreparo dos beneficiários indígenas em lidar com os
instrumentos burocráticos e financeiros associados aos benefícios previdenciários – como o
uso de cartões eletrônicos e a movimentação de contas bancárias – além das dificuldades em
relação ao processo de cadastramento de beneficiários, favorece a ação desses agentes, que se
colocam como intermediários nessa relação, com objetivo de lucrar sobre essa condição.
Essa modalidade de exploração passa, ainda, pela realização de empréstimos em nome
de outros beneficiários indígenas, os quais muitas vezes desconhecem essas operações, uma
vez que seus cartões de benefício estão sob o controle de um desses agentes. Nesses casos,
também ocorrem situações de exploração de aposentados por membros do grupo familiar, o
que, em outros estados, têm sido objeto da ação do MPE.
De acordo com as informações prestadas, chegam à Aldeia Ponta Alegre e outras ao
longo do rio Andirá indivíduos que se dizem representantes de bancos oferecendo
empréstimos aos beneficiários indígenas. Foram descritos, ainda, casos em que são anotados
os documentos pessoais e, posteriormente, surgem empréstimos em nome dos beneficiários,
os quais muitas vezes, nem tomaram conhecimento do processo, nem tampouco receberam os
valores do suposto empréstimo.

4.6 ACHADOS RELATIVOS AOS IMPACTOS SOCIAIS, CULTURAIS E


AMBIENTAIS NAS COMUNIDADES INDÍGENAS

Em nenhuma das áreas foi relatado algum impedimento cultural para que os indígenas
pudessem acessar os benefícios previdenciários e assistenciais. No entanto, registraram-se
avaliações em que é preciso agir com prudência na utilização dos recursos oriundos dos
benefícios para que a cultura das comunidades não seja alterada radicalmente.
Os hábitos alimentares e de consumo estão sendo modificados pela introdução do
dinheiro dos benefícios. As famílias consomem mais produtos industrializados, inclusive nas
regiões de difícil acesso, até mesmo produtos tecnológicos. O relato de indígenas idosos
mostra bem isso: “a gente não era acostumada a usar tudo o que a gente está usando agora:
sandália, roupa etc.”.
Diversas lideranças indígenas e agentes públicos demonstraram bastante preocupação
com o problema do alcoolismo nas aldeias. Há uma percepção de que os homens priorizam a
compra de bebidas com seu dinheiro. Ao lado desses problemas, há relato de aumento dos

178
índices de violência nas comunidades indígenas, principalmente as que se situam mais
próximas dos centros urbanos.
O salário-maternidade também é uma modalidade de benefício que tem forte
repercussão no modo de vida dos indígenas. No caso dos Tenetehara, que consideram o
período de reclusão e tabu sexual de mais de 12 meses, em função da “necessidade” de
solicitar um novo salário-maternidade, os indígenas acabam por engravidar suas esposas antes
do término do resguardo tradicional.
Também é fundamental considerar a crescente dependência econômica das
comunidades indígenas em relação aos recursos dos benefícios. E a presença de uma noção de
propriedade privada que não existia antes e que dificulta o compartilhamento dos bens entre
as famílias.

4.6.1 APANIEKRÁ E RAMKOKAMEKRA-CANELA

Maria Francisca (SAI – CTL-Canela) acentua que não percebe qualquer impedimento
cultural para acessar os benefícios previdenciários. Os problemas são de ordem logística, pois
“eles sofrem muito por causa do transporte”.
Na sua percepção, o fato de os índios “já comprarem as coisas na cidade”, o que faz
com que pouco dinheiro chegue à aldeia, colabora para que as relações internas não tenham
alterações significativas. Todavia, o problema do alcoolismo na aldeia é evidente;
Cornélio Piapit afirma que:

o benefício é utilizado para ajudar nas festas, não é só para comprar antena
parabólica (...) o benefício serve para incentivar as festas na aldeia e chamar
a atenção dos jovens para a cultura (...) a nossa festa tá ficando moderna, não
caçamos mais, só compramos gado (...) quando numa casa não tem ninguém
que recebe benefício, a pessoa não pode manter sua responsabilidade com as
festas. (Depoimento de Cornélio Piapit, liderança Canela).
Em relação aos impactos dos recursos previdenciários, sobre a sociedade e cultura
Canela, Txatú Canela afirma que:

a gente quase não usava açúcar e café, com os benefícios isso muda (...) tem
coisa boa e coisa ruim com o benefício, pinga é ruim (...) temos que
aproveitar os benefícios para comprar coisas boas para a saúde (...) as festas
são feitas como nossos antepassados faziam, os benefícios são pouco
utilizados para esse caso (...) a geladeira é boa, ela conserva os alimentos (...)
a relação com os mais velhos não altera, se eu encontrar um jovem, ele passa
por longe, não pode ter risco de topar em mim, eu posso cair (...) não há
179
influência do benefício na cultura (...) quando recebe o benefício tem que
ajudar toda a família extensa. (Depoimento de Txatú Canela, professor).
Raimundinho Beato entende os impactos desses recursos da seguinte forma:

se for depender só do benefício não tem cultura (...) qualquer um pode exigir
o benefício, não há impedimento cultural (...) o benefício só dá porque ainda
tem caça (...) temos que dividir o benefício com 5 casas de parentes quando
vamos fazer uma festa, fora da festa o uso do benefício é particular (...)
diferente do período do SPI, agora muitos estão recebendo dinheiro e poucos
não estão, isso modifica as relações do grupo, dos vizinhos e do meio
ambiente. (Depoimento de Raimundo Beato, liderança e professor).

Casos Previdenciários

FRANCISQUINHO TEP HOT, APOSENTADORIA POR IDADE (EFETIVADO)


Francisquinho Tep Hot, líder político tradicional, membro do Prokhaman e líder cerimonial
dos Canela, representa, ao mesmo tempo, a imersão na tradição Ramkokamekra e a abertura para as
mudanças impostas pelo contato. Quando foi entrevistado, acompanhava a construção da sede de uma
igreja evangélica ao lado de sua casa, na Aldeia Escalvado.
Questionado sobre a compatibilidade entre a manutenção da ordem tradicional Canela e a
implantação dessa igreja no interior da Aldeia, considerou perfeitamente possível a convivência dessas
práticas culturais entre os Canela. Seu posicionamento é significativo, uma vez que Tep Hot é um dos
principais líderes cerimoniais dos Ramkokamekra-Canela, cuja participação nos grandes rituais de
iniciação Pepyê, Ketwayê e Pepcahac é de fundamental importância à ordem social e simbólica do
grupo.
Tep Hot é também aposentado por idade e afirmou não ter encontrado dificuldade em
processar seu pedido de aposentadoria junto ao INSS. Considera os recursos previdenciários
essenciais, tanto na manutenção da vida familiar, como na aquisição de bens a serem utilizados nas
cerimônias e festas tradicionais.

4.6.2 TENETEHARA-GUAJAJARA

De acordo com o gerente da APS do INSS em Grajaú, o salário-maternidade seria uma


modalidade de benefício que “complica” a cultura dos Tenetehara, considerando o período de
reclusão e tabu sexual de mais de 12 meses tradicionalmente observado. Em função da
“necessidade” de solicitar um novo salário-maternidade, os Tenetehara acabam por engravidar
suas esposas antes do término do resguardo tradicional. De acordo com esse agente, em
função dessa demanda, logo depois de darem a luz, os casais Tenetehara estariam praticando
sexo para terem acesso mais rapidamente a tal auxílio.

180
4.6.3 POTIGUARA

Hitler Ferreira, chefe do Polo-Base da FUNASA na Aldeia do Forte, informou que a


FUNASA também promove orientação sobre os hábitos alimentares e realiza o
acompanhamento nutricional das famílias. Entre as estratégias para uma alimentação mais
saudável está a parceria com o sistema educacional para a adoção de uma merenda escolar
diferenciada e própria para as aldeias.
Além das escolas, os trabalhos de prevenção e conscientização são realizados em
espaços de reunião ou em atividades coletivas dentro das aldeias. Contudo, depois de 2009,
notícias de mudanças na FUNASA ocasionaram o encerramento de alguns contratos, que
foram restabelecidos com certa dificuldade junto à Secretaria Especial de Assuntos Indígenas.
Dona Comadre, cacique da Aldeia Lagoa do Mato, é uma liderança tradicional do
povo Potiguara, sendo ainda uma das coordenadoras do grupo “Índias Guerreiras”, voltado à
recuperação das práticas culturais tradicionais. Elas envolvem a comunidade em diversas
atividades, dentre as quais o “Toré” é a mais conhecida. Essa dança, praticada ativamente pela
Comadre e suas companheiras, se caracteriza como um ritual comum a diversas etnias
indígenas na Região Nordeste, permeado por elementos católicos, espíritas e do candomblé.
Ao lado da organização de mulheres “Índias Guerreiras Potiguara”, outra organização
na linha cultural existente na região é o “Toré Forte”. Além dessas, dona Comadre citou
também:
 OIP – Organização Indígena Potiguara;
 OPIP – Organização dos Professores Indígenas Potiguara;
 OJIP – Organização dos Jovens Indígenas Potiguara;
 AVACUSA – (Não foram informadas as diretrizes dessa associação e nem suas
ações frente aos Potiguara);
 Associação Aldeia São Francisco – cuida dos direitos e costumes dos Potiguara da
aldeia São Francisco.
“Caboquinho”, cacique geral dos Potiguara, defende a ampliação de cursos e
instituições de ensino universitário nos municípios habitados pelos Potiguara, gerando mais
vagas, oportunidades de pesquisa e enriquecimento intelectual de alunos e professores
indígenas. Outro aspecto por ele abordado foi o resgate do saber tradicional Potiguara no
campo da saúde, com a valorização das parteiras, do uso de plantas medicinais e da cura
espiritual, conhecimentos que, segundo ele, seu grupo familiar domina.

181
O processo de resgate das tradições de seu povo está sendo realizado, conforme o
cacique geral, ao longo dos anos, havendo dessa forma um retorno ao que define como a
“essência Potiguara”. Isso tem gerado um sentimento positivo em relação à identidade étnica
potiguara e um movimento para resgatar tais tradições, essencial para que as gerações futuras
redescubram o ethos cultural do povo Potiguara.
Em relação à organização política dos Potiguara, “Caboquinho” falou sobre a
existência de quatro clãs, com seus respectivos líderes, o que coloca a ação política dessas
lideranças em evidência. Dentre outras atribuições, são esses líderes os responsáveis pela
identificação dos membros da comunidade como pertencentes ao povo Potiguara. Essa é uma
questão polêmica, enfatizada em outras entrevistas realizadas, na medida em que a
identificação étnica é o principal fator na definição dos direitos de segurado especial aos
Potiguara.
Pelas informações repassadas por Aníbal Cordeiro Campos, cacique da Aldeia
Jaraguá, essa aldeia tem 320 famílias, entre índios e não índios. Comparada com outras
aldeias da região, ela tem um dos maiores números de crianças, 200 no total. Os adultos
representam o dobro, ou seja, 400 pessoas, e os idosos somam ao todo 95 habitantes.
Os indígenas desenvolvem atividades de trabalho em três setores predominantes:
Agricultura, Pecuária e Pesca. Como exemplo, Aníbal informou que a Aldeia Jaraguá produz
7.000kg de mandioca mensalmente. Outra fonte de renda são os benefícios previdenciários,
sendo que muitos segurados são seduzidos pelas facilidades dos empréstimos consignados
junto a bancos da região.
Mas apesar do crescimento produtivo e dos benefícios que as famílias indígenas
recebem no fim do mês, a Aldeia Jaraguá vem apresentando alguns problemas no campo
social. Entre eles, está o alto índice de violência que, segundo o cacique, aumenta devido à
proximidade com a cidade.

Casos Previdenciários

ELIAS SOARES DA SILVA, 55 ANOS – APOSENTADO


Elias Soares da Silva e sua esposa são Potiguara descendentes de um dos clãs mais antigos da
região, os quais têmcomo matriarca e patriarca, respectivamente, Maria Grossa e João Grosso, ambos
da família dos Cassiano. Por ser Potiguara e dominar a língua portuguesa, Elias entrou na FUNAI
como monitor bilíngue.

182
Na época da entrevista, ainda estava como funcionário da Fundação, mesmo já podendo estar
aposentado. Aguardava o fim do ano de 2010 para dar entrada na aposentadoria por tempo de serviço,
porque não queria ter perdas salariais, as quais chegariam a quase R$ 1.500,00.
Para complementar a renda familiar, a esposa cozinha para fora e trabalha como doméstica em
algumas casas. Junto, o casal consegue mais do que dois salários mínimos por mês.
Na localidade onde vivem a atividade que gera renda para a maioria das famílias é a pesca.
Alguns chegam a ter duas moradias, devido aos deslocamentos constantes nos períodos da pescaria em
mar mais aberto. Assim, também habitam outras terras nos municípios de Marcação e Baía da Traição.
Indagado sobre o jeito de viver do Potiguara, Elias sintetizou: “Os Potiguara não
desapareceram, eles sempre estiveram aqui, com suas relações e formas de conviver, na política e no
diálogo”.

4.6.4 BANIWA

José Francisco Pereira Vieira (engenheiro civil/substituto do coordenador) e José


Ribamar Caldas Lima Filho (técnico indigenista) afirmaram que a FUNAI só atua no que se
refere aos índios aldeados, mesmo se reconhecendo que formalmente essa deve intervir nos
assuntos daqueles que vivem nas cidades também. Pelas estatísticas da Fundação, existem 730
comunidades no Rio Negro, o que soma aproximadamente 20 mil indivíduos. Esses são
assistidos por 210 escolas.
André Fernando, vice-prefeito de São Gabriel da Cachoeira, resgatou o início do
movimento indígena. “Nos anos 70, começam a surgir líderes que começam então a falar
sobre movimento indígena, cuidar de sua comunidade, que trata da terra. Mas somente em 97
que teve duas assembléias grandes, regionais, aqui no município, é que foi criada a Federação
das Organizações Indígenas do Rio Negro”.
O marco histórico da criação da FOIRN foi sua luta pela demarcação das terras que,
anteriormente, no governo Sarney, tinham sido demarcadas em forma de ilhas sem prévia
consulta aos povos, o que gerou a revolta da população indígena. Entre as etnias estavam os
Baniwa, que também passavam a se unir com outras na reivindicação de direitos.
Além de buscarem demarcar a grande área contínua de terras do Alto Rio Negro, as
etnias indígenas lutavam pela autonomia na organização das políticas de educação e saúde.
André Fernando e um irmão dos irmãos foram das primeiras lideranças que iniciaram a
organização do movimento indígena, tendo como bagagem os estudos regulares em Manaus e
os ensinos religiosos.

A gente já como liderança andava de comunidade em comunidade para


divulgar, conscientizar, falar da importância da associação, da organização

183
que a gente tem que ter. “O que é educação?”; “Como é que eu organizo
espaço?”; “Como organizo o município?”; “Porque que as coisas estão
assim?”. Levou uns quatro anos fazendo isso, mas houve um destaque muito
forte do nosso trabalho. (Entrevista com André Fernando, vice-prefeito de
São Gabriel da Cachoeira).
Novas parcerias também foram articuladas pelo movimento, trazendo para a região
ações de grande relevância para melhoria de vida da população indígena. Destacam-se as
contribuições da Universidade Federal do Amazonas, que em 1998 foi parceira no
desenvolvimento do projeto “Medicina Tradicional Baniwa”, premiado pela Fundação
Getúlio Vargas, e o projeto “Arte Baniwa”, do mesmo ano.
Assim, as ações de gestão pública e cidadania ganharam fôlego, tendo como áreas de
intervenção a saúde, a educação e a geração de renda. O principal resultado almejado com as
ações era a permanência do indígena na comunidade, principalmente dos jovens. Para isso, foi
necessário pensar estratégias de geração de renda, como artesanato e qualificação. Um
exemplo disso foi a implantação da Escola de Saúde Indígena, capacitando os próprios
indígenas como agentes de saúde para atuarem em toda a região.
Na questão da formação escolar, os Baniwa contam com Ensino Fundamental
Completo e Ensino Médio, tendo a intenção de implantar também o nível superior. O
direcionamento educacional vem de um projeto específico chamado Escola “Pamaáli”.

A Escola “Pamaáli” é um projeto específico, discutido e debatido pela


população Baniwa, implantado e coordenado pelos próprios Baniwa. Criou-
se um conselho da escola que estabelece a meta, como tem que ser a regra, a
convivência, o conteúdo, o que aprender, o que ensinar, né? Como ensinar,
qual é a relação daquela escola com a comunidade e da comunidade com a
escola. (Entrevista com André Fernando, vice-prefeito de São Gabriel da
Cachoeira).
Uma das preocupações das lideranças indígenas é fornecer aos jovens uma educação
integral, onde os saberes tradicionais e o conhecimento técnico estejam presentes. O ensino
comum não atende à realidade dos povos indígenas, ligados a pesca, agricultura e trabalhos
manuais. Na modalidade de Ensino Médio Integrado, são oferecidos os cursos de piscicultura,
criação de abelha, sistema agroflorestal e criação de pequenos animais.

Você tem que ter uma escola da realidade, que também aperfeiçoa sua
técnica de pesca, aperfeiçoa sua maneira de plantar, procura entender o seu
mundo e, assim, é que a gente pensa no desenvolvimento local. A partir do
desenvolvimento local é que você começa a ter um olhar sub-regional,
regional, municipal e vai embora. A gente está partindo da realidade de cada
lugar para fazer um exercício de pensar e entender o mundo dali e partir para

184
fora. (Entrevista com André Fernando, vice-prefeito de São Gabriel da
Cachoeira).
Mesmo ocupando uma função pública, André Fernando entende que o
desenvolvimento regional sustentável da região depende muito mais do movimento indígena,
por esse ser muito mais complexo que qualquer instituição política. Sendo assim, a Prefeitura
de São Gabriel da Cachoeira tem uma administração aberta às perspectivas do movimento,
como esclareceu o próprio André:

A Prefeitura se adequou bastante com o Plano Diretor do município. Ela


dividiu em regiões administrativas correspondentes às sub-regionais de
Cachoeira e cria o Conselho nos termos de legislação e essa estabelece uma
metodologia de assembléias, de discussões e planejamento descentralizado,
para acompanhar todo o processo direcionado às políticas públicas, que é
uma influência direta do movimento indígena. (Entrevista com André
Fernando, vice-prefeito de São Gabriel da Cachoeira).
Irineu Lauriano Rodrigues é responsável pelo setor administrativo da FOIRN,
instituição que atua ao longo do Rio Içana junto a 23 etnias diferentes. A Federação surgiu das
lutas pela demarcação das terras indígenas, valorização da cultura e dos direitos indígenas,
representando hoje mais de trinta mil indígenas na região.
Oficialmente, as aldeias ao longo dos rios são parte de São Gabriel Cachoeira, que tem
mais de quarenta mil habitantes, mas na sede mesmo vivem vinte mil. Os núcleos familiares
das comunidades são formados por sete ou oito pessoas, aproximadamente. Após os primeiros
cinco anos, as crianças começam a ir para a escola, aprendendo a escrever na própria língua,
que é a língua tradicional da sua etnia.
Algumas comunidades só oferecem o ensino de primeira à quarta série. Assim, quando
os jovens estão na idade de 15 a 17 anos, precisam sair da comunidade para estudar em
escolas maiores, aproximadamente nove, localizadas no Içana. Por isso, eles passam a maior
parte do tempo fora, distante da família e das atividades que desempenhava em casa.
Em uma comparação entre a cidade com o meio rural, Mário Farias, liderança da
OIBI, deu a seguinte declaração à equipe:

O costume do povo Baniwa é receber pessoa e agradecer pessoa. O povo que


vive na cidade é diferente do povo que vive aqui ao longo dos rios. Por
exemplo, o pessoal do Rio Negro é muito diferente do povo da minha região.
Lá na minha região, quando você chega, ele te espera, te cumprimenta. Já no
Rio Negro, não. Você é quem tem que ir atrás. Então, o povo Baniwa aqui
do rural é diferente do povo da cidade, porque lá tem que comprar, precisa
de dinheiro. E no rural, você tem que fazer. (Entrevista com Mário Farias,
liderança da OIBI).

185
Nas comunidades, os pais dividem as responsabilidades domésticas e o cuidar dos
filhos, mas o pai é quem sai para caçar e pescar e a mãe é dedicada à lavoura. Os idosos, que
pela tradição Baniwa residem sempre perto da família, ajudam a desempenhar os serviços de
roça ou na criação das crianças.

4.6.5 TIRIYÓ

Quando se conversou com indígenas Tiriyó em idade de se aposentar, mas que por
motivos diversos, sobretudo pela falta de documentos, ainda não estão aposentados, foi
observado que a falta do dinheiro provoca uma instabilidade no modo de vida da aldeia.
Conforme os entrevistados, ocorrem a perda dos costumes e a valorização dos bens materiais,
como expressam as falas abaixo:

Ela está dizendo que a gente [indígenas] está acostumada com a vida da
sociedade diferente. E a gente precisa muito desse benefício. Que a gente
sabe que não é como vocês, como os brasileiros todos, em geral, que a gente
precisa, a gente necessita para a gente poder comprar pelo menos algumas
coisas para a gente. Disse: “Eu ainda não sou aposentada. Eu fui para
Macapá. Me falaram que a minha idade já dava para se aposentar só que
enquanto eu estava lá em Macapá, ninguém fez nada. Ninguém me procurou.
O pessoal lá da FUNAI sabia que minha idade era para se aposentar. Elas
mesmas me falaram que iriam me aposentar. Só que na verdade eu fiquei um
tempão lá em Macapá, mas ninguém fez nada, ninguém me procurou e eu
fiquei aguardando ansiosamente. E até agora eu estou aguardando isso, esse
benefício para mim. Eu quero me aposentar. Eu só não quero que alguém
chegue aqui e diga: “olha, agora que você vai ser aposentada”, depois que eu
já estiver velha. Não, eu quero me aposentar no meu tempo, agora (Tradução
de fala de indígena não aposentada, por Mitori Kaxuyana Tiriyó).
(...) ele sente o que ela sente. Que muitas vezes a FUNAI veio aqui e alguns
de seus funcionários falaram que iriam chamá-lo para se aposentar. Falaram
de novo, passaram-se anos e voltaram a falar de novo não sei quantas vezes.
Só que ele falou que ficou aguardando a chamada dele, mas ninguém o
chamou para contemplá-lo. E ele está falando que “eu quero me aposentar,
porque eu já estou morrendo. E eu estou sem roupa, sem nada. Quero pescar,
comprar o anzol para mim, comprar alguma coisa para mim. E acho que são
vocês que irão levar isso, porque a gente quer, eu quero e é o meu direito”.
(...) Ele não trabalha mais na roça. Ele não tem mais condições e por isso
está querendo o benefício (Tradução de fala de indígena não aposentado, por
Mitori Kaxuyana Tiriyó).

186
Os indígenas da aldeia Missão Tiriyó deixam claro as influências nos seus costumes a
partir da influência dos não índios e das instituições durante vários anos a partir da fala
abaixo:

chegaram os padres e, quando eles vieram, foram eles que trouxeram as


panelas, as redes e acostumaram a gente. Enquanto eles iam embora e
deixavam a gente aqui, chegou o pessoal da FUNAI. Dizendo eles que iam
ajudar a gente depois dos padres, levando a nossa confiança. E a gente
confiando neles e até agora a FUNAI não está fazendo nada com a gente e a
gente está sofrendo aqui. (Tradução de fala de aposentados indígenas, por
Mitori Kaxuyana Tiriyó).
Em relação às mudanças processadas na cultura indígena após as influências do não
índio na vida das aldeias dos Tiriyó, o relato de indígenas idosos que ainda não são
aposentados demonstra o quanto dependem atualmente de uma ajuda financeira para se
manter e o quanto sofrem com as mudanças sociais em sua organização cultural na atualidade.
O relato dos indígenas idosos apontou que:

Os primeiros que chegaram, foram três franciscanos que entraram aqui na


vida da gente. O indígena disse a gente não era acostumada a usar tudo o que
a gente está usando agora. E na época deles, eles nem precisavam comprar
roupa. (...) Hoje em dia eles precisam disso, porque eles estão vivendo na
sociedade diferente. (...) depois chegou o pessoal da FUNAI. Ela falou
assim: “chegaram os padres e, quando eles vieram, foram eles que trouxeram
as panelas, as redes e acostumaram a gente. Enquanto eles iam embora e
deixavam a gente aqui, chegou o pessoal da FUNAI. Dizendo eles que iam
ajudar a gente depois dos padres, levando a nossa confiança. E a gente
confiando neles e até agora a FUNAI não está fazendo nada com a gente e a
gente está sofrendo aqui.
(...) Eu acho que vocês estão vendo que eu estou sem sandália, que
antigamente a gente não usava e a gente nem se preocupava de espinhos ou
alguma coisa assim, porque a gente era acostumada. Hoje em dia, não, a
gente tem que ter sandália, porque a gente não se acostumou mais. A gente
tem se acostumado com a sandália. E para a gente ter tudo isso a gente
precisa desse benefício. É isso que a gente quer. E comprar a nossa rede,
porque a gente não dorme mais com a rede de antigamente. A gente dorme
na rede, mesmo. Se a rede rasgar, a gente costura, dá um jeito. Não tem
como a gente comprar outra porque a gente não tem dinheiro (e mostrou a
rede em que dorme, que está costurada). Eu sei que eu sou ser humano e que
eu preciso desses direitos meus, como vocês [fala de indígena idosa,
traduzida por Mitori].
(...) Essa é a nossa realidade aqui, como a gente falou e tudo isso o que vocês
estão vendo é o que a gente está passando. A gente está sofrendo: a gente
não tem panela, a gente come, às vezes, com a mão mesmo, ou no chão. A
gente dá um jeito de comer. Eu não tenho condições de comprar. Eu não
187
tenho como comprar. Me dá dor no coração ver os meus netos, minhas
filhas, eu mesmo comer no chão. Dá muita dor, mas essa realidade de não
índios chegou até a gente, nos nossos netos, e a gente está sofrendo. A gente
se acostumou com isso e a gente quer melhorar com esse benefício [fala de
indígena idosa, traduzida por Mitori].
Eu acho que eu não pediria tudo isso se eu tivesse morando no mato mesmo,
porque na época que não existia o branco aqui a gente nem se preocupava
com isso. A gente andava mesmo descalço, sem roupa, porque a gente estava
acostumada, mas hoje em dia, não. Eu acho que vocês estão vendo que todo
mundo está usando sandália, roupa, e a gente tem que comprar isso. Espero
que vocês resolvam isso o mais breve possível que eu vou agradecer vocês e
muito por ter feito aquilo por nós [fala de indígena idosa, traduzida por
Mitori].
“O nosso dinheiro é nosso, mas a gente compra o que é para a gente daqui da
família. Somente a família pode usar, entendeu? Diferente de antigamente
quando a FUNAI mandava alguma coisa como um carrinho de mão, uma
enxada, uma coisa assim, que era da comunidade em geral. Hoje em dia isso
não existe e cada um vai comprando o seu e vai usar somente com a família
mesmo.” Antigamente a FUNAI fazia isso, e é verdade. A comunidade
colocava só em uma casa aí, que era da comunidade. Se a comunidade
quisesse pegar, pegava, entregava. Hoje em dia, não. Por conta dessas
coisas, a comunidade está se separando um pouco, entendeu? Antigamente
era um pouco coletivo porque vinha uma ajuda do motor ou alguma coisa
assim, mas hoje em dia, não. Está difícil porque abandonaram a gente [fala
de Puquïfa, indígena idoso não aposentado, traduzida por Mitori].
Conforme as falas acima, percebemos grandes transformações na cultura dos Tiriyó,
após o acesso a recursos financeiros na aldeia e a influência do não índio. Mas é importante
destacar também que, apesar de algumas mudanças ocorridas na sua cultura, os Tiriyó
aposentados e não aposentados que foram entrevistados destacaram que lhes restam ainda
elementos essenciais que caracterizam seus costumes antepassados, como a prática da
agricultura a partir da criação de roças e a realização de festas. Conforme percebemos na fala
abaixo:

Então... a roça é cultural, mesmo. Não tem nada a ver, todo mundo vai
coletivamente, não precisa pagar. Todo mundo vai, entendeu? E muita gente
fica feliz fazendo roça, tomando sacura em troca de trabalho, vão fazer
festa... É nosso mesmo, é tradição. Não tem nada a ver com troca de
dinheiro. É da nossa cultura e a gente preserva isso (…) “Só que essa cultura
ficou um pouco extinta. E agora, eu como liderança [ele é mais velho e
acompanha a comunidade, ele que faz o movimento aqui], eu pensei assim,
que acho que vou ter que voltar para ensinar os mais jovens, entendeu?
Trabalhar em conjunto, comunitário. E essa foi a minha idéia. Eu acho que
vou incentivar, e eu estou incentivando. Eu mesmo pensei e fui no mato e fiz
um sinal de roça grande que é para todo mundo pegar. Fazer roça, todo
188
mundo faz, mas quando cresce a planta para consumir mesmo, é de cada um.
(Tuxaua da Aldeia Missão Tiriyó).
Em relação à tradição que mantêm por meio da realização de festas indígenas o tuxaua
da Missão Tiriyó informou que:

Tem muitas festas aqui que são tradicionais, são nossas mesmo. Muitos
jovens quase deixaram de fazer, mas estão tipo imitando, entendeu? Porque
a gente não quer perder. A gente está preservando a nossa cultura. A gente
tem festival de banana, no Natal a gente faz dança de jabuti, jacaré... a gente
brinca coletivamente. Não tem isso de separar as coisas. Todo mundo vai
caçar para todo mundo. Vai fazer sacura para todo mundo. E é assim que a
gente brinca. É a nossa cultura mesmo e a gente nem pode esquecer isso.
(Tuxaua da Aldeia Missão Tiriyó).

189
5 CONCLUSÕES E RECOMENDAÇÕES

A partir das falas dos pesquisados e das reflexões da equipe de pesquisa, serão
apresentadas algumas conclusões e recomendações para subsidiar a discussão entre as
instituições públicas e as organizações indígenas, bem como suas entidades de apoio, acerca
da formulação de uma política pública de Previdência Social alinhada com os interesses, as
tradições, a organização social e as peculiaridades geopolíticas dos povos indígenas.
Em função de a pesquisa ter sido realizada em uma amostragem dos povos indígenas
exclusivamente das regiões Norte e Nordeste do Brasil, várias abordagens assumidas nesse
documento devem ser relativizadas aos contextos das comunidades selecionadas, porém não
podem ser desconsideradas enquanto demonstração dos aspectos centrais da relação dos
povos indígenas com o sistema de Previdência Social.

5.1 CONCLUSÕES GERAIS

Os grupos indígenas selecionados para a realização desse levantamento constituem


expressões da diversidade étnica regional, de contatos com a sociedade nacional e de formas
de atuação das agências indigenistas, previdenciárias e assistenciais oficiais, religiosas e não
governamentais.
Nas duas regiões selecionadas para a pesquisa, ficaram demonstrados os processos
históricos violentíssimos de destruição da identidade cultural e da própria vida dos povos
indígenas, submetidos que foram à dominação étnica e à pressão econômica e cultural sobre
seus territórios. O Estado brasileiro, ciente desses processos que atingiram os povos
indígenas, deve ter o compromisso ético de reverter esse quadro e proporcionar níveis
crescentes de autonomia a esses povos. Assim, as políticas indigenistas, de cunho assistencial,
tutelar e previdenciário, têm atualmente a função de promover o bem-estar das populações
indígenas no Brasil, de modo geral e, nas Regiões Norte e Nordeste, em especial.
Os povos indígenas pesquisados apresentam crescimento demográfico acima da média
regional e nacional da população em geral. Por isso, demandam do Estado brasileiro políticas
públicas específicas que garantam a sua continuidade étnica em condições de dignidade. As
políticas previdenciárias e assistenciais têm, portanto, uma função essencial no projeto de
continuidade étnica desses povos e no enfrentamento das dificuldades decorrentes da limitada
extensão e da baixa produtividade de seus territórios, dos seus níveis de crescimento
190
demográfico, das pressões dos interesses empresariais sobre seus territórios e da presença de
atravessadores.
Percebe-se que as condições precárias de sobrevivência das comunidades indígenas
favorecem a dependência cada vez maior em relação aos recursos disponibilizados pelo
Estado por meio dos projetos e dos benefícios. Além do interesse de atendimento às
necessidades básicas de alimentação, vestuário, moradia e produção, bem como de aquisição
de produtos a serem consumidos nas festas e rituais, nota-se um crescente envolvimento das
comunidades indígenas com o consumo dos produtos industrializados tanto alimentícios
quanto eletroeletrônicos, o que implica uma nova dinâmica de vida social, baseada no
consumo de mercadorias. A nova situação de beneficiário da Previdência e da Assistência
implica em alteração nas relações sociais, que se monetizam mediante o pagamento em
dinheiro. Constata-se que os indígenas que se tornam beneficiários da Previdência e/ou da
Assistência Social consideram que os recursos advindos dos benefícios não são suficientes
para garantir sua sobrevivência, o que também não é possível com os recursos obtidos por
meio das roças familiares e de outras atividades agroextrativistas.
A demanda de pessoas que querem dar entrada nos benefícios da Previdência é muito
alta. Foram identificadas em todas as etnias pesquisadas diversas situações de indígenas com
pedidos de benefícios não efetivados pelo INSS por não atenderem aos requisitos necessários
ao seu enquadramento como segurado especial. Há uma percepção generalizada de que os
povos indígenas enfrentam inúmeras dificuldades para o acesso, o recebimento e a utilização
dos benefícios previdenciários e assistenciais. Essas dificuldades perpassam as fases de
documentação, de cadastramento e de recebimento e uso do dinheiro.
Constatou-se que essas dificuldades relacionam-se, principalmente:
1. À logística e ao custo elevado de deslocamento das aldeias até as sedes dos
municípios em que se encontram as estruturas de atendimento, bem como de
hospedagem e alimentação nos centros urbanos;
2. À presença de redes de intermediação, que estabelecem um sistema de exploração
das comunidades indígenas em proveito dos interesses de agentes privados e a
reprodução, em alguns casos, desses procedimentos dentro da própria etnia;
3. Ao desconhecimento, por parte dos indígenas acerca dos seus direitos e dos
requisitos para acessá-los, como os critérios para o salário-maternidade e para a
pensão por morte;

191
4. Aos procedimentos burocráticos para a emissão da documentação exigida para a
concessão dos benefícios, a que se associa certa indefinição de papéis entre as
instituições;
5. Às barreiras linguísticas, pelo fato de que muitos servidores públicos não
compreendem e/ou falam os idiomas dos povos indígenas, ou porque parte
considerável dos índios não fala bem o português;
6. À defasagem entre as estruturas de atendimento das políticas previdenciárias,
assistencial e indigenista em relação à demanda de atendimento. Isso se refere
tanto à quantidade dos servidores e à sua qualificação para atender às
peculiaridades dos povos indígenas quanto às condições operacionais –
equipamentos, veículos, orçamento e outras;
7. Ao comportamento etnocêntrico de alguns servidores.

Para os povos indígenas que habitam regiões de difícil acesso, a ausência de logística
de alojamento e alimentação nos centros urbanos onde se localizam os serviços torna-se um
grande obstáculo para o acesso aos benefícios, combinado com a falta de meios de transporte
para o deslocamento ou com os elevados custos desse deslocamento, como é o caso dos
Baniwa, dos Canela, dos Tiriyó e dos Sateré-Mawé. As dificuldades para o deslocamento e a
permanência dos indígenas nos centros urbanos contrastam com os tempos necessários para as
diversas etapas do acesso e utilização dos benefícios, considerando a entrada, a liberação, o
saque e o uso do dinheiro. Uma consequência tem sido a retenção de pagamentos por conta
dos prazos para validade das senhas, na medida em que os beneficiários não consigam
comparecer com a regularidade necessária para o saque dos recursos.
De algum modo, a situação acima explica uma prática comum entre os indígenas que é
a “contratação” de agentes intermediários para tratar de suas questões relativas à obtenção de
benefícios junto aos órgãos públicos, principalmente nas fases de recebimento e utilização dos
recursos provenientes dos benefícios. Em função disso, constata-se a existência de um forte
esquema de exploração dos direitos indígenas por esses agentes, bem como a reprodução
desses procedimentos, em alguns casos, dentro da própria etnia.
Fica demonstrado que a presença dos intermediários, “aceita” como um fator “normal”
nas relações entre os indígenas e as instituições previdenciárias e assistenciais, ao mesmo
tempo em que é uma resposta à precariedade no atendimento às populações indígenas pelas

192
instituições públicas, representa grande prejuízo aos interesses dos beneficiários, reduzindo os
ganhos oriundos dos benefícios e afetando a organização social e a cultura das comunidades.
Várias situações de intermediação podem estar ocorrendo por falta de uma presença
mais efetiva dos Poderes Públicos, tanto na preparação e encaminhamento de documentos ao
INSS, como na retenção e manipulação de cartões de beneficiários indígenas. Parte das
atividades assumidas pelos agentes de intermediação tem a ver com funções que deveriam ser
exercidas pelo Estado e, de algum modo, a sua ausência ou omissão concorrem para o
aumento da vulnerabilidade dos grupos indígenas locais.
Esses agentes privados, aproveitando-se das dificuldades de acesso dos grupos
indígenas à burocracia institucional e, em alguns casos, do despreparo das agências
responsáveis pela implementação dos direitos previdenciários e assistenciais aos povos
indígenas, realizam um conjunto de práticas lesivas aos indígenas, que vão da cobrança de
taxas para a viabilização do cadastramento junto ao INSS até a apropriação indevida dos
benefícios previdenciários e assistenciais. A retenção de cartões pelos fornecedores ocorre
como garantia do pagamento das dívidas pelos indígenas, que, dependendo do tipo e
benefício, pode ser de três meses (aposentadorias) ou um ano (Bolsa-Família). A retenção está
relacionada ao tipo de benefício e ao tempo que o beneficiário leva para que consiga saldar
sua dívida, a qual é retroalimentada pelo mesmo processo.
Essa dinâmica reproduz um mecanismo histórico de dominação e exploração a que os
grupos indígenas são submetidos nas diferentes regiões do País, o que atinge também outros
segmentos mais fragilizados da população regional, como agricultores e aposentados. Assim,
torna-se necessária uma ação enérgica em relação aos usurpadores dos direitos das populações
indígenas, que, como bem apontou o antropólogo Roberto Cardoso de Oliveira (1976), sofre
dupla discriminação, étnica e de classe: a de serem, simultaneamente, “índios” e “pobres”.
Agentes públicos e lideranças indígenas e sociais manifestam que, a despeito da
necessidade de cumprimento de requisitos legais e dos procedimentos administrativos, a
exemplo da documentação e da perícia, as políticas previdenciárias e assistenciais precisam
aperfeiçoar os mecanismos de gestão para possibilitar o atendimento prioritário e efetivo à
população indígena. Um problema específico, porém extremamente relevante, é o
descompasso entre a idade real e a idade que consta no registro civil de vários indígenas,
como ocorre de forma generalizada com os Canela. Outra questão a ser considerada é que a
agilidade do encaminhamento dos indígenas para os órgãos previdenciários esbarra, muitas
vezes, na ausência ou na incorreção dos documentos básicos e complementares. Nas áreas

193
indígenas em que a FUNAI assume uma função mais ativa na organização e também guarda
os documentos dos indígenas, percebe-se maior agilidade no acesso aos benefícios pelos
indígenas.
As políticas previdenciárias atuais inserem os indígenas na categoria de segurados
especiais, na qual estão incluídos sem diferenciação os indígenas, os trabalhadores rurais, os
pescadores, os ribeirinhos, os seringueiros e os extrativistas em geral, ou seja, aquelas pessoas
que não têm um registro de carteira profissional, que não são contribuintes formais diretos,
mas que vivem de atividades consideradas rurais. Nessa situação, torna-se impossível
identificar o total de beneficiários indígenas e as categorias de benefícios concedidos.
Destaca-se, nos levantamentos realizados, que inexiste um atendimento específico às
populações indígenas, por parte das agências do INSS. Os indígenas são submetidos ao
mesmo processo de atendimento que os demais segmentos da população local nas APS,
contrariando o princípio de respeito aos direitos específicos reconhecido aos povos indígenas
e a necessidade de tratamento diferenciado pelo poder público, em vista das diferenças étnicas
e culturais desses povos em relação à sociedade brasileira, além de desconsiderar
peculiaridades como barreiras linguísticas e culturais, isolamento geográfico da maioria das
aldeias, ausência de suporte logístico para a permanência dos indígenas nos centros urbanos,
elevados custos para deslocamento aos centros urbanos etc.
A articulação interinstitucional entre as estruturas de atendimento e a proximidade dos
serviços em relação à localização das comunidades indígenas são fatores facilitadores do
acesso aos benefícios. No entanto, identificaram-se poucas experiências de intervenção
interinstitucional em relação às questões indígenas.
Destaca-se, também, nas proposições de lideranças indígenas e de agentes públicos, a
necessidade de atendimento diferenciado aos indígenas na Previdência Social, em especial nas
agências de atendimento do INSS. Parafraseando uma das entrevistadas, trata-se de definir
estratégias que permitam priorizar o prioritário. Garantir o atendimento diferenciado exigirá
mudanças na legislação e nos procedimentos institucionais da Previdência Social, de modo
que seja possível estabelecer a categoria “indígenas” para a concessão dos benefícios ou, pelo
menos, definir mecanismos que permitam a caracterização dos beneficiários indígenas e a
identificação ágil dos dados estatísticos referentes à cobertura previdenciária e às condições
de atendimento a esses segmentos.
Nesse sentido, torna-se uma tarefa urgente a qualificação dos instrumentos de
diagnóstico sobre as comunidades e as populações indígenas no Brasil, como a realização

194
periódica de recenseamentos por aldeias, etnias, faixas etárias, acesso a benefícios
assistenciais e previdenciários e outros que potencializem a melhoria das políticas sociais do
Estado brasileiro a essas populações. A modernização e a expansão do sistema de
cadastramento, com características específicas e diferenciadas para os povos indígenas, é uma
urgência.
Por outro lado, é preciso garantir um estatuto independente dos indígenas em relação
às categorias de trabalhador rural, trabalhador urbano, pescador ou trabalhador autônomo.
Também mostra-se fundamental a desvinculação da caracterização da condição indígena da
localização da moradia dos indígenas. A discussão sobre essa questão é urgente e prioritária,
na percepção tanto das lideranças indígenas quanto de parte considerável dos agentes públicos
entrevistados nessa pesquisa. A base para essa proposição é a noção de que o índio é “índio
em qualquer tempo e lugar”.
Muitas situações de dupla inserção econômica dos indígenas foram localizadas, a
exemplo das feirantes Baniwa em São Gabriel da Cachoeira/AM, dos pescadores Potiguara no
litoral da Paraíba, dos jovens Potiguara e Baniwa urbanizados, dos indígenas que assumem
funções públicas nos órgãos indigenistas, sanitários e educacionais etc. Outra situação crítica
refere-se aos indígenas que já são integrados, pois deixam de atender aos requisitos de
“segurado especial”.
A dificuldade em caracterizar o segurado especial indígena age em desfavor dos
indígenas, pois quando pairam dúvidas quanto à condição indígena ou de trabalhador rural a
consequência é a resposta negativa para a concessão dos benefícios. Essa situação ocorre por
que a concessão do beneficio enquanto “segurado especial” está vinculada à condição de
“trabalhador rural” e não à de indígena.
Além das mudanças nas diretrizes das políticas previdenciárias e assistenciais, é
preciso considerar que as estruturas de atendimento não conseguem garantir a cobertura
geográfica e situacional às comunidades indígenas nas regiões pesquisadas. Percebe-se que a
quantidade e a localização dos postos de atendimento e de técnicos são insuficientes para o
atendimento à demanda, sem contar a própria qualificação dos profissionais, a exemplo do
domínio das línguas utilizadas pelos indígenas.
Ainda, observa-se que a organização tradicional e a associativista dos povos indígenas
interferem na abrangência e na qualidade do acesso dos indígenas aos direitos previdenciários
e assistenciais. O fortalecimento das organizações é uma estratégia indispensável tanto para
ampliar o conhecimento dos indígenas em relação aos seus direitos, como para facilitar o

195
acesso e o usufruto dos benefícios pelos mesmos, inclusive com a redução da presença dos
intermediários. Os esforços de várias lideranças tradicionais para manter a identidade cultural
das suas comunidades devem ser valorizados pelo Estado e pela sociedade brasileira.

5.2 CONCLUSÕES ESPECÍFICAS

5.1.1 APANIEKRÁ E RAMKOKAMEKRA-CANELA

As etnias Apaniekrá e Ramkokamekra-Canela vivenciam diversas dificuldades para


exercer seus direitos previdenciários, tanto no cadastramento quanto no recebimento desses
benefícios. Essas dificuldades envolvem o processo de cadastramento junto à Previdência
Social, as intermediações realizadas por FUNAI e FUNASA locais, a estrutura de
atendimento da agência local do INSS, além de fraudes cometidas por intermediários.
Foram identificadas, nas duas etnias, situações generalizadas de não reconhecimento
dos indígenas como segurados da Previdência Social. No município de Barra do Corda
ocorrem casos flagrantes de desrespeito a esses direitos, tanto em relação a indígenas como à
população regional (especialmente idosos), o que tem sido motivo da ação governamental na
região.
Na relação com agentes externos, talvez os casos mais evidentes e críticos sejam a
cobrança de serviço de cadastramento por “procuradores” e a retenção e manipulação de
cartões de beneficiários do INSS por agiotas e comerciantes locais designados como
“patrões”, os quais reproduzem, sob novo modelo, a histórica forma de exploração de
indígenas e camponeses nas regiões Norte e Nordeste, por meio do endividamento.
Os levantamentos acerca da presença de intermediários mostra tanto a presença de
terceiros quanto de agentes entre os próprios Canela. A prática desses agentes é justificada
pelos próprios Canela pela falta de conhecimento dos índios sobre os procedimentos de
recebimento de benefícios.
Um problema específico entre os Canela refere-se ao descompasso entre a idade real e
a idade que consta no registro civil de vários membros dessa comunidade, em função de um
cadastramento realizado décadas atrás. Até hoje essa discrepância provoca prejuízos aos
direitos de aposentadoria por idade dessas comunidades indígenas. Pela relevância desse
problema, é recomendável que se proceda a um estudo de caso visando à reversão desse
equívoco.

196
Os levantamentos nas comunidades indígenas mostram uma dependência cada vez
maior dos Canela em relação aos recursos disponibilizados pelo Estado, especialmente quanto
ao acesso a bens que se tornaram necessários, além das necessidades básicas, e não podem ser
obtidos pelos recursos naturais disponíveis na Terra Indígena.
Existem dificuldades logísticas para a permanência dos Canela em Barra do Corda
tanto para a fase de cadastramento quanto para a de recebimento dos benefícios, o que é
colocado também como justificativa para a utilização dos intermediários, resultando na a
entrega dos cartões de benefícios para que “terceiros” resolvam as questões previdenciárias e
assistenciais junto à agência bancária ou ao comércio local. Outro obstáculo é a falta de meios
de transporte para o deslocamento até a cidade, a fim de receber os benefícios previdenciários.
Já no âmbito do contato com os servidores do INSS, uma grande dificuldade relatada é a
questão linguística.
Verifica-se que entre os Canela as informações acerca dos direitos previdenciários são
melhor distribuídas entre aqueles índios que mantêm relações mais estreitas com os
funcionários da FUNAI, o que pode facilitar o crescimento da figura do “procurador”entre os
próprios indígenas.

5.1.2 TENETEHARA-GUAJAJARA

Os levantamentos etnográficos e documentais realizados junto aos Tenetehara em


Grajaú e Barra do Corda ocorreram em um contexto de tensão, tendo-se em vista as operações
policiais no desbaratamento de esquemas de exploração de aposentados do INSS, ocorridas há
poucos dias da chegada dos pesquisadores nesses municípios.
Foi revelado um conjunto de problemas relacionados à manipulação dos direitos
previdenciários dos Tenetehara por agentes locais, como “procuradores”, “patrões” e
atravessadores de toda ordem. Esses agentes, aproveitando-se das dificuldades de acesso dos
grupos indígenas à burocracia institucional e do despreparo das agências responsáveis pela
implementação dos direitos previdenciários e assistenciais aos povos indígenas, realizam um
conjunto de práticas lesivas aos Tenetehara e a outras etnias indígenas na região.
Mesmo considerando-se o histórico de lutas dos Tenetehara e demais grupos para a
efetivação de seus direitos constitucionais, como a demarcação das terras indígenas, o acesso
à assistência educacional e de saúde, o desenvolvimento de projetos produtivos, constata-se a

197
existência de um forte esquema de exploração dos direitos indígenas por esses agentes, bem
como a reprodução, em alguns casos, desses procedimentos dentro da própria etnia.
Entre os problemas, destaca-se a deficiência das instituições da região na prestação de
serviços aos povos indígenas, tanto pelo número reduzido de servidores quanto pela
burocracia para a liberação dos benefícios. O acesso, a posse e o uso dos benefícios pelos
Tenetehara são etapas de uma dinâmica onde se articulam inúmeros intermediários.
A situação de exploração do segurado indígena é real, complexa e gritante, da qual se
podem apontar algumas características. Na etapa do acesso foram identificadas situações de:
intermediação jurídica, feita em inúmeros escritórios de “Advocacia Previdenciária”,
intermediação de indígenas mais esclarecidos; intermediação de não índios; denúncias de
cobrança indevida na emissão de documentos por representantes da FUNAI; falsificação de
documentos e falsidade ideológica pelos agentes privados.
Na etapa da posse do benefício verificou-se: exploração econômica do segurando pelo
intermediador; extorsão do segurado pelo intermediador; familiares do segurado com a posse
do cartão; retenção de cartões do segurado pelos “patrões”, na maioria das vezes
comerciantes.
A etapa do uso do benefício apresenta as seguintes características: relação de
aprisionamento do indígena ao “patrão”; superfaturamento dos alimentos retirados nos
comércios onde os cartões estão retidos; ameaças e atos de discriminação e humilhação ao
indígena por parte do “patrão”; estímulo ao alcoolismo indígena por parte desses agentes;
A compreensão do universo Tenetehara é de enorme importância a esse diagnóstico,
considerando o tempo de contato desse grupo com a sociedade regional e a relação dos
mesmos com as políticas públicas brasileiras. Os Tenetehara das regiões de Barra do Corda e
Grajaú vivem um processo de tensões e conflitos nas relações de poder internas e externas,
com várias lideranças indígenas sendo sustentáculos de tais redes.
O deslocamento dos Tenetehara para os centros urbanos está associado, em grande
parte, à ausência do ensino, além do fundamental, nas aldeias e terras indígenas. Seja
estabelecendo casas na cidade ou no deslocamento diário a núcleos urbanos por meio do
transporte escolar, estabelece-se uma espécie de migração pendular dos Tenetehara, entre as
aldeias e as cidades de Grajaú e Barra do Corda.
Esse fluxo é sustentado por recursos que os Tenetehara obtêm, a partir de convênios
entre Associações Comunitárias Indígenas e o Governo do Estado, celebrados semestralmente
e estabelecidos por meio de roteiros escolares, no valor de R$4,00 por quilômetro rodado.

198
Diariamente, os carros alugados se dirigem às aldeias, recolhem os alunos e os deixam nas
escolas nas cidades. Ao término das aulas, realizam o trajeto inverso.
Tais ações são interligadas, considerando-se que o PBF e outras políticas públicas têm
como critérios de liberação, a confirmação de que os alunos frequentam as escolas, além do
acompanhamento de saúde, como as vacinações e as frequentes idas ao médico.
Em se tratando do salário-maternidade, os Tenetehara consideram que têm
dificuldades em dar entrada nas petições nos casos de casamento interétnico. Mesmo
possuindo os documentos exigidos, as mulheres não índias casadas com um Tenetehara ainda
sentem-se constrangidas nesse processo.

5.1.3 POTIGUARA

Os levantamentos e as entrevistas realizados junto às instituições publicas e às


organizações indígenas localizadas nos municípios de João Pessoa, Rio Tinto, Baía da Traição
e Marcação, e junto aos Potiguara das terras indígenas Potiguara, Monte-Mor e Marcação
possibilitaram um avanço na compreensão das relações entre os povos indígenas situados na
Região Nordeste do Brasil e a Previdência Social.
Os dados e as entrevistas institucionais levaram, inicialmente, ao mapeamento da ação
governamental junto aos Potiguara, desde a esfera estadual, passando pela ação em nível
municipal e nas terras e aldeias indígenas. Os levantamentos realizados junto às instituições
sediadas na Capital paraibana revelaram a existência de ações interinstitucionais coordenadas
e voltadas para a implementação de políticas indigenistas, previdenciárias e assistenciais aos
Potiguara.
Constatou-se maior nível de organização e articulação das instituições indigenistas,
previdenciárias e assistenciais (FUNAI, INSS, FUNASA, Prefeituras Municipais e Secretarias
de Estado) no estado da Paraíba.
Os levantamentos realizados junto a órgãos e agências vinculados ao MPS (Gerência
Regional do INSS, APS de João Pessoa e Rio Tinto) revelaram maior envolvimento
institucional e maior preocupação dos agentes na implementação dos direitos previdenciários
indígenas, bem como alto nível de informação desses agentes sobre os direitos previdenciários
dos povos indígenas e a coordenação de ações junto a outras instituições federais, sobretudo à
FUNAI, na implementação desses direitos.

199
5.1.4 BANIWA

Os levantamentos documentais, observações e entrevistas realizadas junto a


instituições indigenistas e previdenciárias, bem como aqueles realizados junto às comunidades
indígenas Baniwa, Tiriyó e Sateré-Mawé, revelaram situações gerais e específicas que
envolvem a relação entre os povos indígenas situados na Região Norte do Brasil e as políticas
e ações previdenciárias e assistenciais implementadas pelo Estado brasileiro.
Inicialmente, é necessário ressaltar que é na Região Norte, que compõe a grande
Amazônia Legal, onde está situado o maior número de grupos indígenas no Brasil, em
situações de contato que vão da condição de “índios isolados” até segmentos indígenas que
vivem a várias gerações em pequenas e médias cidades do interior amazônico, ou em grandes
capitais, como Manaus.
Essa diversidade de situações e de tradições culturais é acompanhada por
diversificadas formas de relacionamento interétnico, entre esses povos indígenas, as
populações tradicionais da Amazônia e as agências indigenistas e tutelares, além das agências
religiosas e organizações não governamentais que atuam em diferentes regiões e municípios
da Amazônia brasileira. Dentro dessa grande diversidade étnica e social, institucional e
administrativa, de organizações indígenas, nacionais e internacionais desenvolvem-se as
relações entre os povos indígenas e as políticas previdenciárias e assistenciais na Região
Norte.
Os Baniwa, localizados no extremo oeste do estado do Amazonas, em região
fronteiriça com Colômbia e Venezuela, constituem parte do grande mosaico cultural da região
e, ao mesmo tempo, resultam do processo histórico decorrente da ocupação colonial e
nacional da região.
Partilhando tradições culturais com outros povos do noroeste amazônico, como os
Baré, Desana, Tukano e outros, os Baniwa sobreviveram ao processo de ocupação da região e
às pressões sobre sua cultura decorrentes dessa ocupação, desenvolvendo formas de
enfrentamento e convivência junto aos agentes do Estado e da sociedade brasileira –
missionários, militares, agentes tutelares, comerciantes e, mais recentemente, ONGs e outros.
Focalizando segmentos indígenas com grande índice de urbanização, os levantamentos
realizados no município de São Gabriel da Cachoeira tiveram por objetivo apreender a
realidade de um povo indígena que sobreviveu às compulsões históricas e desenvolveu um
modo de vida adaptando sua organização social tradicional, preservada nas comunidades dos

200
igarapés e grandes rios do noroeste amazônico, com as demandas da vida urbana em
municípios como São Gabriel da Cachoeira, Santa Isabel e outros.
Os levantamentos realizados junto aos Baniwa e às instituições indigenistas,
assistenciais e previdenciárias, bem como às organizações indígenas contemporâneas,
revelaram as dificuldades desse e de outros povos indígenas da região em viabilizar junto a
essas instituições nacionais seus direitos assistenciais e previdenciários, diante de sua
condição de povo que vive em trânsito entre as suas comunidades fluviais e a vida urbana.
Percebe-se que os instrumentos legais que possibilitaram a inserção desses povos
indígenas nas políticas previdenciárias e assistenciais, não reconhecem especificidades como
a dos Baniwa, de ser um povo simultaneamente aldeado, mas com grande inserção na vida
urbana.
As mulheres Baniwa de meia idade, que passaram grande parte de suas vidas nas
comunidades e igarapés e as quais, por razões muitas vezes alheias a suas vontades, se veem
na condição de vida urbana, não têm seus direitos previdenciários reconhecidos, uma vez que
deixam de ser reconhecidas pelos órgãos competentes como “trabalhadores rurais”. Essa
situação expressa a necessidade de criação de novos instrumentos legais que reconheçam
esses direitos, a esses e outros indígenas em condição de vida urbana.

5.1.5 TIRIYÓ

Os levantamentos realizados junto aos Tiriyó localizados no PIT, no extremo norte do


Brasil, entre os estados do Amapá e do Pará, revelam a situação de um povo indígena, que,
em pouco mais de meio século, passou da condição de autonomia étnica para a de um povo
submetido às instituições estatais e religiosas, expressões da expansão e poder da sociedade
brasileira e surinamesa sobre suas vidas.
Alcançados no início da década de 1960 por agentes religiosos, militares e
exploradores de áreas florestais em uma área fronteiriça isolada entre o Brasil e o atual
Suriname, os Tiriyó passaram por intenso processo de mudança cultural, sob a pressão de
missões religiosas que, ao mesmo tempo em que continham os graves quadros
epidemiológicos decorrentes dos contatos com exploradores, lhes imputava a fé cristã em suas
vertentes católica (Brasil) e protestante (Suriname) e a radical mudança em sua organização
social e em suas práticas simbólicas.

201
A presença do Estado brasileiro, inicialmente por meio da FAB e, mais tarde, por meio
das instituições indigenistas (SPI e FUNAI), ao mesmo tempo em que garantiu aos Tiriyó a
proteção de parte de seu antigo território e uma assistência tutelar nos moldes do indigenismo
militar desse período, impôs, junto com o trabalho missionário, uma série de restrições à
autonomia étnica e cultural desse povo.
Inseridos na política previdenciária, os Tiriyó vivem o dilema de ter alguns direitos
previdenciários assegurados – especialmente a aposentadoria por idade – e a grande
dificuldade de acesso aos centros urbanos, especialmente à capital Macapá, onde poderiam
realizar o cadastramento junto ao INSS e o recebimento dos benefícios. A falta de meios de
transporte regulares entre as comunidades Tiriyó e os centros urbanos transforma o exercício
dos direitos previdenciários em uma tarefa hercúlea a ser vencida.

5.1.6 SATERÉ-MAWÉ

Os levantamentos junto aos Sateré-Mawé demonstraram a realidade de um povo


indígena do Baixo Amazonas, cujo tempo de contato remete ao século XVIII, e o qual chegou
ao dias de hoje, como um exemplo de resistência étnica. Inserido em conflitos históricos
como a Cabanagem, perseguidos e explorados por agentes coloniais, os Sateré-Mawé chegam
ao Século XXI, como um povo organizado a partir de suas lideranças e instituições
tradicionais e por conselhos e associações indígenas, na mediação de suas demandas junto ao
Estado e à sociedade regional.
Inseridos nas políticas assistenciais e previdenciárias, por meio de órgãos como
FUNAI, FUNASA e INSS, os Sateré-Mawé exemplificam a situação de um povo indígena
com longo tempo de contato, relativa facilidade de acesso aos órgãos assistenciais e
previdenciários, mas com sérias dificuldades para implementar esses direitos de cidadania.
Os levantamentos realizados revelam que as dificuldades para a implementação dos
direitos previdenciários dos Sateré-Mawé – situação que se estende aos Baniwa, Tiriyó e
outros povos indígenas da Região Norte – relacionam-se, em grande parte, às próprias
deficiências dos órgãos competentes, como a tão citada ausência de médicos peritos e outros
profissionais no INSS de Parintins (extensivo a outros municípios das Regiões Norte e
Nordeste), que simplesmente impede ou dificulta o pleno exercício dos direitos
previdenciários aos grupos indígenas, bem como aos demais beneficiários daquela região.

202
Outras dificuldades, como o transporte fluvial, a falta de recursos para deslocamento,
alojamento e alimentação em cidades como Parintins, acirradas com a perda de autonomia
financeira da CLT/FUNAI incidem no sentido de dificultar o acesso dos Sateré-Mawé e
outros grupos da região, aos seus direitos previdenciários. A esses fatores soma-se a questão
de preconceitos, conforme apontado pelos próprios índios em todas as regiões pesquisadas,
em relação aos povos indígenas e seus direitos constitucionais, bem como a permanência de
situações de exploração de aposentados e de outros beneficiários indígenas, por diferentes
agentes regionais, como agiotas, atravessadores, comerciantes e até agentes públicos.

5.2. RECOMENDAÇÕES

5.2.1 RECOMENDAÇÕES GERAIS

As informações colhidas em entrevistas junto aos órgãos previdenciários, assistenciais


e ao conjunto das organizações indígenas e indigenistas foram analisadas separadamente por
população indígena e, posteriormente, tomadas em conjunto de forma a estabelecer uma
consolidação dos principais problemas enfrentados pelo povos indígenas nas regiões norte e
nordeste do país. A partir das conclusões, já expostas, é possível apontar algumas
recomendações para fins de aprimoramento das políticas públicas:
1. Revisão da legislação que estabelece os critérios para a inserção da população
indígena no Sistema de Previdência Social, em especial quanto à redefinição do
estatuto do indígena na condição de trabalhador rural, de forma que a sua
identificação para fins de obtenção dos benefícios previdenciários e assistenciais
seja pela indianidade comprovada pelo critério de autoidentificação validada pelas
organizações indígenas e pelo órgão de tutela;
2. Implementação de políticas de etnodesenvolvimento nas comunidades indígenas
que contribuam para reduzir a vulnerabilidade dos povos indígenas frente aos
benefícios previdenciários e assistenciais, que devem constituir uma
complementação de renda ao invés de fonte principal de sustentação das famílias e
das comunidades;
3. Atuação integrada dos órgãos de atendimento, fiscalização e repressão para inibir,
identificar, responsabilizar e punir agentes que violem os direitos previdenciários e
assistenciais das populações indígenas;

203
4. Revisão dos procedimentos institucionais da Previdência Social visando à
estruturação de atendimento diferenciado e prioritário às populações indígenas nas
agências da Previdência Social, especialmente nas regiões em que existe maior
concentração de comunidades indígenas;
5. Fortalecimento das estruturas de atendimento às populações indígenas nos centros
urbanos, dotando-as de condições para o suporte logístico aos beneficiários e
potenciais beneficiários, em relação ao deslocamento, hospedagem e alimentação
nos momentos em que se fizer necessária sua presença para cadastramento e/ou
recebimento dos benefícios;
6. Construção de mecanismos de articulação interinstitucional entre os órgãos
indigenistas, previdenciários e assistenciais por meio da elaboração de planos
integrados de atendimento às populações indígenas;
7. Priorização da implantação do novo Cadastro Nacional de Informações Sociais em
todo o território nacional, com características específicas e diferenciadas para os
povos indígenas;
8. Realização de recenseamentos das populações indígenas no Brasil, com
especificidade para as informações necessárias ao acesso a benefícios assistenciais
e previdenciários e às demais políticas públicas;
9. Ampliação e qualificação do quadro de servidores ligados ao atendimento às
populações indígenas, com prioridade para tradutores e peritos;
10. Implementação de programas de fortalecimento institucional das organizações
indígenas;
11. Realização de um Estudo de Caso sobre o cadastramento realizado na década de
1980 entre os Canela, com o propósito de reverter os equívocos cometidos no
registro civil de vários membros dessas etnias.

204
5.2.2 RECOMENDAÇÕES ESPECÍFICAS

Medidas emergenciais foram sugeridas para melhorar o acesso dos indígenas aos
benefícios, tanto na fase de concessão quanto de pagamento. Essas medidas podem ser
adotadas em conjunto ou isoladamente. Podem ser enumeradas:
 Recenseamento dos indígenas e cadastramento dos possíveis beneficiários nas
próprias aldeias;
 Cadastramento de responsáveis legais dos beneficiários junto ao INSS e às
agências bancárias, que possam transmitir as normas do sistema previdenciário aos
indígenas e, ao mesmo tempo, tratar dos assuntos de interesse dos beneficiários;
 Acompanhamento dos indígenas por técnicos especializados em todos os
momentos da obtenção do benefício;
 Contratação de intérpretes índios e não índios para construir a ponte cultural entre
os beneficiários e os agentes públicos, possibilitando o atendimento nos idiomas
português e língua materna;
 Presença sistemática do Programa de Educação Previdenciária nas comunidades
indígenas, especialmente as mais distantes dos centros urbanos, acompanhada por
cartilhas nos dois idiomas;
 Ampliação da atuação da FUNAI e do INSS nas fases de recebimento e aplicação
dos recursos provenientes dos benefícios previdenciários e assistenciais, para inibir
a presença dos atravessadores, inclusive dos grupos familiares;
 Instalação de caixas eletrônicos nas sedes da FUNAI destinados exclusivamente
aos beneficiários indígenas;
 Pagamento direto dos benefícios nas aldeias mais distantes, por meio de equipes
mistas, inclusive com a participação das agências bancárias;
 Ampliação do período de validade da senha bancária que dá acesso aos recursos da
aposentadoria dos indígenas, especialmente dos que moram em regiões de difícil
acesso. Há sugestão contrária, de que as senhas sejam bloqueadas a cada
recebimento. Uma medida que vem sendo adotada em algumas regiões é a abertura
de conta corrente para os beneficiários, permitindo que o dinheiro seja transferido
e permaneça disponível para o saque pelos beneficiários;

205
 Ampliação das equipes de atendimento, principalmente de peritos para a emissão
de laudos que agilizem a concessão de benefícios;
 Estudos para implantação de mecanismos para diminuir as fraudes, como o uso do
leitor biométrico ou a implantação de cartões descartáveis;
 Atribuição de validade jurídica aos casamentos indígenas tradicionais, que
atualmente não têm relevância jurídica, para que o cônjuge possa pleitear pensão,
no caso da morte do esposo ou esposa.

206
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

ISA – Instituto Socioambiental. Povos Indígenas no Brasil: Disponível em:


http://pib.www.socioambiental.org/pt/povo/baniwa. Acessado em 01/09/2010;
http://www.pib.socioambiental.org/pt/povo/canela. Acessado em 10/08/2010;
http://www.pib.socioambiental.org/pt/povo/guajajara . Acessado em 10/08/2010;
http://pib.www.socioambiental.org/pt/povo/potiguara. Acessado em 09/08/2010;
http://pib.www.socioambiental.org/pt/povo/satere-mawe. Acessado em 08/08/2010;
http://pib.www.socioambiental.org./pt/povo/tiriyo. Acessado em 09/08/2010.

LASMAR, Cristiane. De volta ao Lago do Leite. Gênero e Transformação no Alto Rio Negro.
São Paulo: Editora UNESP; ISA;NUTI: Rio de Janeiro, 2005.

LORENZ. Sonia da S. Sateré-Mawé: os filhos do Guaraná. CTI: São Paulo, 1992.

NASCIMENTO, LUIZ A. S. do. Prumkwyi: Drama Social e Resolução de Conflito entre os


Apãnjekra – Jê-Timbira. Dissertação de Mestrado. PPG em Antropologia Social. UFRN:
Natal, 2009.

OLIVEIRA, Adalberto. L. R. de. Ramkokamekra-Canela: Dominação e Resistência de um


Povo Timbira. Dissertação de Mestrado. PPG em Antropologia Social. IFCH-UNICAMP:
Campinas, 2002.

_________. Messianismo Canela: entre o Indigenismo de Estado e as Estratégias do


Desenvolvimento. Tese de Doutorado. PPG em Políticas Públicas. UFMA: São Luís, 2006.

_________. Desenvolvimento, Mudanças Sócio-ambientais e Povos Indígenas no Centro-Sul


do Maranhão (mimeo). XXVII Reunião Brasileira de Antropologia. ABA-UFPA: Belém,
2010.

207
ANEXOS – LOCALIZAÇÃO DOS POVOS SELECIONADOS
Localização das Terras Indígenas dos Povos Canela e Guajajara – regiões Centro e Sul do estado do Maranhão

TI Geralda /
Toco Preto
TI Araribóia

TI Lagoa Comprida

TI Urucu-Juruá
TI Governador

TI Canabrava

TI Morro Branco

TI Bacurizinho

TI Kanela
TI Porquinhos

TI Porquinhos
Apaniekrá

Fonte: Site “Povos Indígenas do Brasil”: http://pib.socioambiental.org/caracterizacao.php?uf=21&id_arp=3637.

209
Localização das Terras Indígenas do Povo Potiguara – estado da Paraíba

TI Potiguara

TI Jacaré de
São Domingos

TI Potiguara
de Monte-Mor

Fonte: Site “Povos Indígenas do Brasil”: http://pib.socioambiental.org/caracterizacao.php?uf=25&id_arp=3830.

210
Localização das Terras Indígenas do Povo Tiriyó – estados do Pará e Amapá

TI Tumucumaque

TI Rio Paru
d’Este

Fonte: Site “Povos Indígenas do Brasil”: http://pib.socioambiental.org/caracterizacao.php?uf=15&id_arp=3885.

211
Localização das Terras Indígenas do Povo Baniwa – estado do Amazonas

TI Alto Rio Negro


TI Balaio

TI Médio
Rio Negro
II

TI Médio Rio Negro


I

Fonte: Site “Povos Indígenas do Brasil”: http://pib.socioambiental.org/caracterizacao.php?uf=13&id_arp=4068.

212
Localização das Terras Indígenas do Povo Sateré-Mawé – estado do Amazonas

TI Andirá-Marau

TI Croatá-Laranjal

Fonte: Site “Povos Indígenas do Brasil”: http://pib.socioambiental.org/caracterizacao.php?uf=13&id_arp=4068.

213

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