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pela vida, transpassados por todas as possibilidades, abraçando

a incerteza, tornamo-nos mestres de nossa embarcação e não Epílogo


meros observadores na beira da praia, a acenar com lenços.
Subimos a bordo para espantar gaivotas, limpar o convés e nos Poéticas Decoloniais
tornarmos mestres, prontos para apontar em que direção
seguir, abertos para que o caminho se mostre a partir de sua nas Artes da Cena:
própria vontade, se faça a partir de toda interferência geográfi-
ca, cultural e afetiva envolvida no coletivo que se forma ao viajar Identidade e
por águas desconhecidas. Pois, em cada ilha, em cada conti-
nente desbravado, mais algum tripulante embarca ou desem-
barca reconfigurando esse coletivo que segue atravessando
Performatividade
essas águas desconhecidas, perigosas e transbordantes.
Robson Carlos Haderchpek

Referências bibliográficas KASTRUP, Virgínia. A cognição contem-


porânea e a aprendizagem inventiva. Há alguns anos as Artes Cênicas vêm sentindo a necessi-
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Hall, os indianos Homi Bhabha e Gayatri Chakravorty

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Spivak e pelo Grupo de Estudos Subalternos liderado pelo tema há mais tempo, como é o caso por exemplo da Profª Drª
também indiano Ranajit Guha, entre outros pensadores Verônica Fabrini (2013) e do Prof. Dr. Fernando Mencarelli
que estabelecem revisões do pensamento eurocêntrico (2013). Em 2018, após o Congresso da ABRACE, é lançando o
constituído na experiência de subalternidade (2017, p. 16). livro Múltiplos Olhares Sobre Processos Descoloniais nas
Artes Cênicas, com a organização dos(as) professores(as)
Também propondo uma discussão interdisciplinar, o pensa- pesquisadores(as) Ana Carolina Mundim, Bya Braga, Graça
mento decolonial vai surgir na América Latina no final da década Veloso e Narciso Telles.
de 1990, incorporando vários dos temas abordados na teoria Em 2020, numa parceria com os pesquisadores Joice
pós-colonial, mas avançando na análise da política global, na Aglae Brondani (UFBA) e Saulo Vinicius Almeida (USP), eu
análise das relações sociais e da crítica à colonização. Vejamos: lanço o livro Práticas Decoloniais nas Artes da Cena. Contri-
buem para o referido livro 18 autores(as) de universidades das
O termo decolonial começou a ser articulado pelo Grupo mais diversas regiões do Brasil e uma autora do México, todos
Latino-Americano de Estudos Subalternos e, posterior- alinhados com a temática decolonial. A obra foi lançada no
mente, pelo grupo Modernidade/colonialidade, no final da Seminário Práticas Decoloniais nas Artes da Cena, realizado
década de 1990, com seminários e publicações periódicas de 08 a 13 de outubro de 2020 numa parceria entre a UFRN,
em diferentes países. O sociólogo peruano Aníbal Quijano, a UFBA e a USP, com a participação de 664 pessoas.
os argentinos Enrique Dussel e Walter Mignolo, o antropó- Como podemos notar, nos últimos anos as Artes da
logo colombiano Arturo Escobar, o filósofo porto-riquenho Cena vêm dedicando uma atenção especial aos estudos
Nelson Maldonado-Torres, a teórica cultural “chicana” decoloniais, porém, mais do que a sistematização de concei-
Gloria Anzaldúa e a linguista estadunidense radicada no tos ou a publicação de textos relacionados a essa temática,
Equador Catherine Walsh são alguns nomes que propõem cabe frisar que o decolonial se mostra através de atitudes. O
uma revisão das epistemologias importadas da Europa que está em voga é a valorização dos saberes que foram
– mesmo as pós-coloniais (FISCHER, 2017, p. 16/17). relegados no processo de colonização vivido pelos países da
América Latina.
Voltando o nosso olhar para as Artes da Cena, os estudos Tomando como referência os países da Abya Yala,1 o
decoloniais vão chegar de forma relativamente tardia; pou- pensamento decolonial lança luz sobre as colonialidades dos
cos(as) pesquisadores(as) no Brasil se dedicavam ao estudo processos de dominação dos países latino-americanos ainda
desse tema antes da realização do IX Congresso da ABRACE perpetradas pelo sistema capitalista, eurocêntrico, imperialis-
– Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-Graduação em ta e neoliberal que domina o mundo. Segundo o pesquisador
Artes Cênicas, que se propôs a discutir o tema: “Poéticas e Aníbal Quijano,
Estéticas Decoloniais – Artes Cênicas em Campo Expandido”.
O evento foi realizado em Uberlândia em 2016 e, desde então, 1. O termo tem origem pré-colonial, na língua Kuna, nação indígena da região do
os estudos nessa área vêm crescendo. Panamá, cujo significado é “terra de vida, terra madura”. A retomada da denomi-
nação foi sugerida pelo líder aimará Takir Mamani, ao propor que todos os indí-
Podemos, no entanto, citar alguns(mas) pesquisado- genas utilizem Abya Yala como um ato de resistência à dominação dos invasores
res(as) da área das Artes Cênicas que já pesquisam esse que submeteu a identidade dos nossos povos originários (FISCHER, 2017, p. 16).

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a colonialidade é um dos elementos constitutivos e espe- tornou o ocidente. A ideia de colonialidade supõe a impo-
cíficos do padrão mundial do poder capitalista. Sustenta- sição de um sistema de classificação hierárquica de
se na imposição de uma classificação racial/étnica da conhecimentos, espaços e pessoas. A colonialidade é uma
população do mundo como pedra angular do referido sofisticação da colonização, pois, da mesma forma que o
padrão de poder e opera em cada um dos planos, meios colonialismo, ela é uma experiência totalizante (FABRINI
e dimensões, materiais e subjetivos, da existência social apud BRONDANI et al., 2020, p. 22).
quotidiana e da escala societal. Origina-se e mundializa-
se a partir da América (2010, p.73). A colonialidade é uma tentativa de nos manter coloniza-
dos, é uma estratégia do sistema político neoliberal de invisibi-
Para Quijano (2010), há uma diferença entre colonialidade lizar os conhecimentos e saberes dos povos originários, das
e colonialismo. O colonialismo refere-se à estrutura de domina- comunidades e periferias. E nesse sentido as Artes da Cena
ção e exploração dos povos da Abya Yala, incluindo o controle tornam-se um terreno fértil para exercitarmos uma ação
da autoridade política, dos meios de produção, do trabalho e da decolonial. As práticas decoloniais e os debates decoloniais
cultura. Já a colonialidade implica a continuidade do uso dessa nas Artes da Cena quebram com esse processo de hierarqui-
estrutura de poder num período pós-emancipação. É nessa zação do conhecimento e abrem espaço para a diversidade,
relação de dominação, de hierarquização dos valores e dos para a pluralidade.
aspectos culturais que ocorrem os processos discriminatórios É difícil pensar numa arte brasileira, num teatro brasileiro,
(raciais, de gênero, de sexualidade etc.), processos guiados pela numa cena brasileira se não pensarmos os diversos brasis que
diferenciação entre “centro” e “periferia”. No “centro” encon- temos dentro do Brasil. Precisamos valorizar os saberes que
tram-se os países de cultura eurocêntrica e estadunidense, e na emergem das comunidades, da nossa cultura, da cidade onde
“periferia” os países da América Latina, África e Ásia. moramos, e revisitar os saberes que foram relegados e des-
Refletindo sobre essas questões de dominação cultural, considerados pelos colonizadores. Enveredando por esse
política e étnica, as Artes da Cena passam a contribuir com as caminho das poéticas e estéticas decoloniais e repensando os
discussões decoloniais trazendo para o “centro” da cena os conceitos de identidade e performatividade, trago o exemplo
saberes que foram colocados à margem e/ou relegados no do Teatro Ritual:
processo de colonização. As Artes da Cena, em seu modo
plural de ser, intensificam o debate decolonial a partir de O termo Teatro Ritual foi proposto com o intuito de incor-
experiências práticas, de modos de fazer que caminham na porar os saberes que nos foram relegados e desconside-
contramão da cultura eurocêntrica. Segundo Verônica Fabrini, rados no processo de colonização, saberes estes que são
ditos como “primitivos”, mas que ao fim e ao cabo, são
no campo das Artes, é uma atitude politicamente urgente, saberes essenciais das ditas epistemologias do sul. Estes
humanamente ética e poeticamente criativa, assumir o saberes devolvem ao indivíduo a capacidade de agir e
avesso do pós-moderno, que é a ação decolonial. Sem pensar tomando como referência a si mesmo, seu univer-
isso, a visão fica turva, manca, gira em torno de si mesma, so mágico-simbólico e o imaginário coletivo que permeia
no espaço já esgotado, no beco sem saída no qual se a sua comunidade (HADERCHPEK, 2020, p. 4).

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No Teatro Ritual o performer cria em parceria com os mais autêntica liberdade. Em resumo, a festa e o jogo têm
demais performers e, como nós trabalhamos sob uma pers- em comum suas características principais. O modo mais
pectiva ritualística da cena, criamos num limiar entre a dança, íntimo de união entre ambos parece encontrar-se na
o teatro, a música e a performance, dialogando esses diversos dança (2010, p. 25).
saberes com o espectador. A proposta de um Teatro Ritual
coaduna com o debate decolonial na medida em que a arte Trabalhando com o Teatro Ritual (HADERCHPEK, 2021),
ritualística traz para o “centro” da cena os processos de cria- transcendemos os limites do palco, do “lugar de onde se vê” (PA-
ção guiados por um viés do inconsciente, do simbólico, do não VIS, 1999), para encontrar uma região entre, uma zona de en-
racional e do subjetivo: contros onde o que impera é a sabedoria das cadeias mágicas
capaz de reconectar o performer com o ato simbólico e com o
Desenvolver um tipo de teatro que traz para o centro da paradigma da liminaridade. Segundo Richard Schechner, “o foco
cena uma investigação sobre o próprio sujeito inverte o da técnica de treinamento do performer não é transformar uma
paradigma colonial – que invalida o conhecimento do pessoa em outra, mas em permitir que o performer atue entre
outro para impor a ele uma forma de fazer que segue um as duas identidades; neste caso atuar é o paradigma da limina-
padrão hegemônico – e nos permite pensar sob uma ridade”(2011, p. 160. Grifo nosso).
perspectiva decolonial, dando liberdade para que o sujeito Quando atua entre duas identidades, o performer amplia a
seja autor da sua própria estória [...] (HADERCHPEK, sua percepção sobre si e sobre o espaço-tempo simbólico,
2020, p. 111) ressignificando o comportamento humano e operando a partir
de uma lógica ambígua, não linear, não racional e subjetiva. De
Debatendo as questões decoloniais e refletindo sobre as acordo com o antropólogo Victor Turner, “os atributos de limina-
colonialidades que se fazem presentes tanto dentro como fora ridade, ou de personae (pessoas) liminares são necessariamen-
do meio acadêmico, buscamos ampliar o referencial teórico te ambíguos, uma vez que esta condição e estas pessoas fur-
sobre o tema e propor outras possibilidades de leitura da tam-se ou escapam à rede de classificações que normalmente
realidade e outras formas de fazer arte. Nesse sentido, a determinam a localização de estados e posições num espaço
própria ideia que o colonizador tem de teatro (PAVIS, 1999) é cultural” (1974, p. 117). Escampando à essa rede de classifica-
desmistificada no Teatro Ritual, pois este se aproxima mais do ções, a liminaridade nos permite transcender os modelos dados
jogo, da festa e da dança do que do teatro propriamente dito. a priori e nos ajuda a quebrar com a ordem hierárquica vigente,
Segundo Johan Huizinga, fazendo com que as vozes adormecidas ressoem novamente.
Para Richard Schechner, essa qualidade liminal nos ajuda a
existem entre a festa e o jogo, naturalmente, as mais perceber a glória e o abismo da liberdade humana:
estreitas relações. Ambos implicam uma eliminação da
vida cotidiana. Em ambos predominam a alegria, embora Esta questão de múltiplas realidades, cada uma sendo o
não necessariamente, pois também a festa pode ser séria. negativo de todas as outras, não só́ aponta para uma
Ambos são limitados no tempo e no espaço. Em ambos peculiaridade do palco mas, mais do que isto, localiza a
encontramos uma combinação de regras estritas com a essência da performance: ao mesmo tempo, a mais

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concreta e evanescente das artes. E, enquanto a perfor- pensamento eurocêntrico e nos ajudam a refletir sobre as
mance é o principal modelo para o comportamento colonialidades que imperam nos dias atuais (QUIJANO, 2010).
humano em geral, esta qualidade liminal, processual e de Quando valorizamos os nossos saberes e o nosso jeito de ser,
realidades diversas revela, ao mesmo tempo, a glória e o nos empoderamos e retomamos as rédeas da nossa história.
abismo da liberdade humana (2011, p. 160). Em seu livro A Colonização do Imaginário, Serge Gruzinski
nos faz a seguinte provocação:
As Artes da Cena, assim como as manifestações tradicio-
nais da cultura popular, trazem em si um vasto conhecimento Como nasce, se transforma e perece uma cultura? Como
que muitas vezes é colocado à margem em função de um pen- é possível produzir e reproduzir um meio que faça sentido
samento capitalista, produtivista e neoliberal e, portanto, quando se está numa situação marcada por profundas
faz-se mister afirmar que a performance2 traz em si um tipo transformações políticas e sociais, em que os modos de
de conhecimento que transcende a questão do produto final. vida e de pensamento mais variados e as crises demográ-
Coadunando com o pensamento de Schechner, em seu livro ficas parecem ter atingido patamares inigualáveis? Como,
Performance como Linguagem, Renato Cohen afirma: de modo geral, indivíduos e grupos constroem e vivem
sua relação com o real numa sociedade abalada por uma
A questão da performance torna-se central na sua mani- dominação externa sem precedentes? (2003, p. 13).
festação contemporânea e o próprio campo de estudos
amplia-se desde as manifestações da arte-performance, Há mais de 500 anos, vivemos um processo de domina-
cuja genealogia e modo de produção são abordados ção externa na Abya Yala, e uma das formas mais eficientes de
neste livro, desde as questões da ritualização, da oralida- dominar um povo é dominando o seu imaginário. Quando o
de, da tecnologia, até as de todo o contexto cultural envol- colonizador europeu chegou nas Terras de Pindorama3 e nos
vido na ação performática e performativa, estudos esses demais territórios da Abya Yala, chegou matando, saqueando,
que têm sido desenvolvidos pela Performance Studies estuprando e destruindo a cultura local. Impuseram ao povo
– associação filiada aos estudos pioneiros de Richard nativo um Deus do pecado, um Deus que mandava matar em
Schechner da New York University (2002, p. 13). seu nome e que mandava evangelizar o mundo. Esse Deus da
bíblia, um Deus conjugado o tempo todo no gênero masculino,
A ritualização, a oralidade e a ação performática ajudam o chamado de pai, foi usado no processo de colonização para
artista a recriar o mundo lendo-o de forma simbólica e amplian- dizimar os saberes, as crenças, as manifestações culturais e
do o significado da vida. As múltiplas realidades geradas a partir simbólicas da Abya Yala, a mãe.
da Performance e do Teatro Ritual criam fissuras nas bases do Após a invasão, uma nova base epistêmica, cultural e
social foi implantada. Os indígenas foram forçados ao trabalho
2. Segundo Renato Cohen, “a expansão das artes plásticas em direção ao
território do invisível, do irrepresentável questionava a sedimentação do 3. Pindorama (em tupi-guarani quer dizer: pindó-rama ou pindó-retama = “terra/
pensar artístico e reclamava novos conceitos. A noção de performance lugar/região das palmeiras”), é uma designação pré-cabralina dada às regiões
respondeu às novas proposições estéticas e ao mesmo tempo sugeriu uma que, mais tarde, formariam o Brasil. Disponível em: http://www.portugues.seed.
nova perspectiva de leitura da história das artes” (2020, p. 76). pr.gov.br/modules/video/showVideo.php?video=8250. Acesso em: 20 jan. 2021.

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escravo e toda uma estratificação social foi constituída a partir contaminado pelo universo simbólico do povo invasor. A fim de
das crenças, dos modos de ser, de saber e de poder do coloni- resguardar a sua identidade, o povo invadido foge, luta, e
zador europeu (QUIJANO, 2010). Gruzinski (2003) demonstra quando é vencido só resta um caminho: o mergulho para
esse processo de colonização do imaginário através de uma dentro. E é nesse ínterim que as Artes da Cena atuam: elas nos
pesquisa histórica e circunstanciada com povos nativos do ajudam a olhar para dentro e nos reconectam com aquilo que
México, por exemplo. está guardado no mais íntimo do nosso ser. E não estamos
A fim de restaurar esse imaginário e/ou compor novas aqui tratando de uma visão essencialista do ser, estamos
realidades a partir dele, precisamos resgatar a sabedoria das lidando com uma visão de ser que se constrói em comunidade,
cadeias mágicas, precisamos nos reconectar com o ato que se refaz na relação com o outro e que reconhece a sua
simbólico, e nesse sentido as Artes da Cena se apresentam identidade a partir de um universo simbólico comum.
como uma alternativa pungente, uma ação decolonial (FA- Quantos povos indígenas habitavam a Abya Yala antes da
BRINI, 2020). As Artes trabalham os aspectos simbólicos do invasão do colonizador? Quantas etnias habitavam essas
ser, permitem fluir a criatividade, a subjetividade e muitas terras? Quantos universos simbólicos foram destruídos? E
vezes tocam regiões ocultas do nosso inconsciente, e é nesse quantas cadeias mágicas foram rompidas? É por isso que
lugar que as cadeias mágicas habitam. precisamos olhar para os povos indígenas, para os povos
O Teatro Ritual e a Performance nos ajudam a acessar africanos, para os sertanejos, para as comunidades ribeiri-
essas cadeias mágicas, essas regiões ocultas do nosso nhas, as comunidades praieiras, as comunidades quilombolas,
inconsciente. Ao mergulhar em si mesmo para criar o ato pois há um saber que provém deles. Eles são redutos de uni-
simbólico, o performer dá margem para os devaneios, para versos simbólicos, de cadeias mágicas, e tornam-se grandes
as lógicas ambíguas, não lineares, não racionais e carrega- açudes do nosso imaginário.
das de subjetividade. Quando trabalha nesse viés da limina- Trabalhar com as poéticas decoloniais nas Artes da Cena
ridade (TURNER, 1974), o performer constrói uma ponte significa abrir as portas dessas cadeias mágicas e reconstruir
com os saberes ancestrais, os saberes relegados no proces- pontes, acessar identidades e reconstruir universos simbóli-
so de colonização. cos. Daí a importância de refletirmos sobre esse assunto, pois
Esses saberes adormecidos continuam latentes em nosso ele diz respeito a todos nós. Acessar os imaginários que estão
inconsciente, e podemos acessá-los através do nosso imagi- adormecidos nos permite reatar laços e nos apossar de um
nário, através de ações simbólicas que nos conectam com as saber que foi negligenciado no processo de colonização. E. na
estruturas arquetípicas (JUNG, 2012). Ou será que só os contramão das colonialidades (QUIJANO, 2010), as poéticas
Gregos podiam dançar para reverenciar os seus deuses? Não! decoloniais atuam na interrupção do fluxo do pensamento
Cada povo, cada cultura tem as suas crenças, cada povo tem colonizador, no contrafluxo. As poéticas decoloniais nos
os seus costumes e cada povo habita um universo simbólico permitem resgatar um sentido de comunidade, de liberdade
específico, e quando nos conectamos com esse universo e de legitimidade.
descobrimos os saberes que habitam as cadeias mágicas.
Quando um povo é invadido, dominado, a sua identidade
também é invadida, e o universo simbólico desse povo é

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