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Ainda de manhã, Pedro, mais uma vez, sentou ao lado dele, alocando perna após

perna até chegar ao pleno conforto. Certamente, era o quarto dia consecutivo que
insistia em um contato com seu parceiro de ônibus.

—Uaah, que sono! - falava entre bocejos.


(um silêncio ensurdecedor)
—Tá frio aqui, né?! Acho que vou pedir ao motorista para aumentar a temperatura.
(barulho de buzina)
—E esse tempo…uma loucura! Não dá pra sair de casa sem uma sombrinha.
(inaudível)

Toda tentativa verbal era falha. Uma vez, às 6:07 da manhã, Pedro deixou seu celular
despertando para que o homem, já coroa, com uma barba bem feita e cabelo esvoaçante,
se incomodasse e dirigisse a palavra a ele.
— Ô moleque, tá surdo?! Desliga essa porcaria, tem trabalhador querendo dormir aqui.
O velho do banco de trás protestava.
Pedro, virou daqui, virou dali, como quem se espreguiça na cama. Logo em seguida,
manteve seus olhos semicerrados para espiar o rosto de seu parceiro de assento que,
naquela altura, parecia não se incomodar com o som.
—Vem cá, você não tá me escutando não?! Já o puxando pelo braço.
Era um sujeito grande, eufórico, fedido de cigarro da cabeça aos pés. Para Pedro, aquilo
era um espanto, nunca tinha entrado numa discussão e não seria agora que faria.
Arregalou os olhos, redimiu-se com o rapaz em baixa voz e seguiu sua viagem em
silêncio.

“Mas que diabos, Dona Clarice! Já fiz de tudo que me orientou. Perfume, guia
da Padilha, até o mel na cueca passei”. Verdade era que Pedro havia se divorciado há
dois anos. Desde então, nunca se apaixonou por ninguém. Teve poucos amores. Suas
preferências eram difíceis de serem atendidas. Gostava de homens musculosos, mas
nem tanto. Gordos, mas não em excesso. Os magros não lhe eram uma opção. O ponto
certo era aqueles que possuíam a barriga do chopp, como costumava falar. Os braços
tinham que ser peludos, mas nada que beirasse ao desleixo. As mãos precisavam ser
grossas e calejadas. Mão de macho. No geral, seus desejos contemplavam a terceira
idade. Assim era o homem do ônibus 746. Devia ser um homem dos seus 57 anos,
corpo farto, robusto, de mãos grandes e coxas opulentas. O interessante é que usava um
perfume amadeirado que deixava seus pêlos grisalhos ainda mais sedutores. A tendência
são os ursos, Pedro dizia em toda mesa de bar. A barba grossa lhe trazia o desejo de
saliva de homem.

—Entende, Dona Clarice? Já não sei o que fazer. Até sonhando com esse homem eu tô.
—Como é que pode, menino?! Isso deve ser coisa de outra vida. Outros laços que esta
reencarnação não consegue responder. Nem eu, nem você.
(Pedro olhava embasbacado)
Continuava Dona Clarice:
—Nada, neste mundo, pertence a nós, garoto! Nem a nossa própria história. Somos
marionetes do destino. Cada passo seu está escrito nas mãos de Oxalá. O que você sente
por esse homem, são vestígios do amor que seus antepassados um dia tiveram. Você não
pode deixá-lo. Tá me ouvindo?!
(Pedro assentiu com a cabeça)
— Agora, na próxima vez que o ver, você faz o seguinte:
(Dona Clarice sussurrou no ouvido de Pedro as instruções)

No quinto dia consecutivo, às 5:53 da manhã:


—Calma, rapaz, calma! É só agir naturalmente.
Seu corpo treme:
—Calma, respira! 1...2...3….Lá está ele!
(Pôs seus dedos em riste)

Pedro subiu no ônibus, balbuciou algumas palavras de bom dia ao motorista e


atravessou a catraca. Não conseguia administrar suas reações perante as luzes do
corredor, a textura do corrimão, mas, sobretudo, ao aroma amadeirado que corria ali.
Agia como uma criança animada. Lembrou-se da mesma sensação que teve quando foi à
primeira passeata gay com seu ex-marido. Caminhou até seu assento rotineiro. Abriu e
fechou a boca, numa tentativa de dizer “oi”, mas foi ignorado novamente.
Primeira perna alocada:
“Meu santíssimo Oxalá, o que eu estou fazendo, será que não está muito cedo, mas e se
ele…” pensava Pedro.
Segunda perna alocada:
—“Tá bom! É agora! Assim como Dona Clarice me orientou…”
Pedro põe a mão no bolso esquerdo da calça e confere:
—“Fita vermelha e branca, certo”
Agora o direito:
—“Extrato de maracujá, aqui!”
Sua mão trêmula se engatinhava até o último bolso, na mochila:
—“Canivete, tudo certo!”

Tirou a mão dos bolsos antes que qualquer pessoa pudesse reparar o que trazia
consigo. Pedro estava abrindo suas pernas, até ser capaz de realizar um encontro com a
do sujeito. Enfim, juntas. Arfou em silêncio. Os pelos da perna confundiam-se entre si.
Agora, sentia, em sua pelve, uma pequena contração que lhe resultou no despejo de um
líquido invisível, assim como Pedro era para seu admirador: invisível!
Ao mesmo tempo que a bermuda chupava todo fluido ali derramado, Pedro, sem
nenhuma palavra, decidiu executar o plano de Dona Clarice. Com sua mão esquerda,
apreciou a nudez de sua própria perna esbarrando, propositalmente, na do maduro. O
homem não dizia uma palavra. Parece estranho falar assim, mas Pedro sentiu algo rígido
na altura da tíbia do coroa. Por isso trocou o percurso e foi lentamente até o escopo.

(respiração pesada)
—Está gostando? Sussurrou Pedro, enquanto percorria pelas linhas da coxa de seu
amado.

(respiração profunda) (toque)


(gemido)
Pasmo, Pedro não sabia o que pensar, o plano de Dona Clarice estava dando certo. E, de
fato, era uma coisa estranhíssima. Era capaz de sentir o sexo enrijecido em suas mãos,
mas, nem sequer, pensou que seria correspondido. Subitamente, assim que o Coroa
virou-se para encarar o rosto de Pedro, ele sacou o extrato de maracujá e espirrou no
rosto da vítima. Dona Clarice dizia que o fruto maracujá tivera origem nos Estados
Unidos “ e lá, eles chamam de passion fruit, o que quer dizer, meu garoto, fruta da
paixão. Apenas duas borrifadas concentradas enquanto segura os testículos dele, vai ser
o suficiente para ele te amar perdidamente. Caso não der certo, amarre uma fita
vermelha em seu braço e uma branca na do pretendente. Dê um nó; por fim, rompa com
um canivete”.
Lá estava Pedro, mal ousava respirar. Já o desgraçado, coitado! Tossia como
nunca:
—Cof-cof, cof-cof
As mãos grossas, tiradas das calças de Pedro, corriam brutalmente pelo seu rosto como
uma forma de se livrar do aroma. Tinha vergões nos pulsos e pescoço. E ainda havia um
cheiro forte no ar que o agonizava. Estava se engasgando. Suas unhas esfregavam
lascivamente a região dos olhos causando microscópicas feridas na epiderme. Em
estágio terminal, a boca expurgou uma secreção espumosa e amarelada umedecendo
toda sua barba.
—Ele tá morrendo! Socorro! - Gritou Pedro, saindo pelos corredores, em busca de
ajuda.

No mesmo dia, por volta das 9:30:


—E há perigo de vida, dotô?
—Claro!
Pedro não disse nada, nem devia. Porém, começou a visualizar sua vida no inferno. De
olhos ainda abertos, era capaz de ouvir tudo que Dona Clarice havia lhe ensinando ainda
quando criança. “Não matarás; Não roubarás; Não cobiçarás o amor do próximo”. O
coração batia mais depressa enquanto mastigava suas lembranças. E continuou seu
raciocínio até que o médico o interrompeu:
—Meu senhor, de onde você conhece o rapaz que está no quarto?
Pedro de pronto respondeu “somos amigos de trabalho". Mentiu.
—E você não sabia que ele era extremamente alérgico à maracujá?
— Sabia! E aí? - Mentiu novamente.
—Pois bem, meu senhor! O que o Coronel Geraldo me contou foi que você quem
borrifou contra ele uma ducha de extrato de maracujá. Isto procede?
Naquele momento, Pedro recuou o corpo para trás. Engoliu em seco. Coçou o nariz por
alguns segundos, respirou fundo e se perdeu nas duas informações que passavam pela
sua cabeça. “Então o nome dele é Geraldo e…E ELE FALA?” Sendo a segunda,
proferida em voz alta.
—Meu senhor, ele me contou tudo através de uma folha pautada que demos a ele.
Respondeu de maneira impaciente. Você, sendo amigo dele, deveria saber que o
Coronel Geraldo é um grande homem na vizinhança que serviu ao Exército Brasileiro e
foi o único a retornar da guerra contra os nazis. Além de seus companheiros e parte de
sua tíbia, o Coronel também perdeu sua audição e, por isso, decidiu fazer um voto de
silêncio até o final de sua vida. Agora me responda, da onde você conhece o Coronel?
Parecia que nada dissuadia Pedro, ele só pensava na saúde de Geraldo e na sua possível
eternidade nas chamas do inferno:
—Eu só preciso saber se ele está bem…
—Sim ele está, meu senhor! Agora me responda.
Naquela hora, Pedro saiu correndo por entre os enfermos gritando “Ele está vivo! Ele
está vivo! Não morreu! Obrigado, meu amigo Oxalá! Meu pai Ogum! Ô, muito
obrigado! Muito Obrigado, ele tá vivo!” Gritava Pedro, excitado, beijando a testa de
todos que passavam ao seu redor.
O médico com menos paciência ainda:
—Pois, meu caro senhor! Será com os Homens que terá de tratar a sua tentativa de
assassinato.

Pega o telefone e disca 190:


—Boa tarde, gostaria de denunciar uma tentativa de assassinato contra o Coronel
Geraldo...
—Uhum…Isso mesmo! Número 91.
—Tudo bem…podem vir com calma, o marginal tá desacordado e preso aqui na minha
sala…

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