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(Lei 9.610 de 19/02/1998.)
2ª Edição
Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e acontecimentos descritos são produtos da imaginação
da autora. Qualquer semelhança com nomes, datas e acontecimentos reais é mera coincidência.
Editora Angel
Campinas/ SP
SUMÁRIO:
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Capítulo 38
Capítulo 39
Capítulo 40
Capítulo 41
Capítulo 42
Capítulo 43
Capítulo 44
Capítulo 45
Capítulo 46
Capítulo 47
Capítulo 48
Capítulo 49
Capítulo 50
Capítulo 51
Capítulo 52
Capítulo 53
Capítulo 54
Capítulo 55
Capítulo 56
Capítulo 57
Capítulo 58
Capítulo 59
Capítulo 60
Capítulo 61
Capítulo 62
Capítulo 63
Capítulo 64
Epílogo
Leia a continuação
Agradecimentos
Sobre a autora
Editora Angel
Dedico esse livro a cada pessoa que já perdeu alguém que amava.
“Eu procuro um amor, que ainda não encontrei
Diferente de todos que amei,
nos seus olhos quero descobrir uma razão
para viver e as feridas dessa vida eu quero
esquecer...”
Segredos – Frejat
Liz
Escutei um barulho infernal que parecia querer explodir meus tímpanos, abri
os olhos e reconheci o som, era o despertador do meu celular. Virei a cabeça para o
lado, estiquei o braço e desliguei o alarme. Essa tinha sido outra noite que revirei na
cama me perguntando como sair disso, na verdade, eu sabia que não tinha
escapatória. Estava trancada numa situação sem rota de fuga. Como podia mudar o
passado? Como tirar da mente o que não dava para apagar? Era impossível.
Demorei para me levantar, porque sabia que tinha que reunir forças para
enfrentar um novo dia. Meu corpo todo doía, resultado de outra noite mal dormida
virando de um lado para o outro na cama.
Respirei fundo e acendi as luzes, entrei em piloto automático. Se tinha uma
coisa que minha mãe sempre esteve certa, era sobre como vestir-se bem te torna
aceitável em qualquer ambiente, mesmo que por dentro você só queira vestir um
pijama e seus chinelos de dedo. Lidar com pessoas ricas te faz aprender como se
adequar a esse meio e nada como estar bem-vestida para isso não ser tão traumático.
Escolhi uma saia lápis preta decente, uma camisa social de botão vermelha
em um tecido elegante e meus sapatos de saltos médios pretos do dia a dia. Olhei-
me no espelho, meu rosto estava abatido, cansado e sem vigor. Puxei a nécessaire de
maquiagem da gaveta da cômoda e comecei a fazer a "Operação Cara Nova";
comecei a chamar assim porque, depois da aplicação de uma boa maquiagem, sinto
como se vestisse uma máscara e pudesse me esconder por trás dela. É assim que
tenho feito nos últimos anos. Guardo como estou me sentindo em uma gaveta que
criei na minha cabeça, passo a chave e me preparo para começar o dia. Depois de
base, corretivo, rímel, um pouco de blush, batom e, pronto, senti-me outra pessoa.
Uma nova Liz sem sentimentos.
Apanhei minha bolsa na poltrona no canto do quarto, chequei se tudo que
precisava estava dentro dela, peguei minhas chaves sobre a mesa de café e saí.
Andei até o elevador, apertei o botão e esperei. Comecei a fazer uma lista
mental de tudo que precisava fazer e todas as coisas que necessitava evitar pensar.
1. Chegar ao trabalho
2. Fingir interagir com meus colegas
3. Lembrar-me de sair para almoçar (isso se meu chefe deixar!)
4. Ter força de vontade em querer voltar ao trabalho após o almoço
5. Fazer supermercado (Urgente! Na geladeira só tem água e ketchup)
6. Abastecer o carro
7. Tentar não bater em um poste
8. Chegar em casa
9. Tentar cozinhar
10. Dormir (Urgentíssimo!)
Ouvi o sinal de que o elevador chegou ao meu andar, entrei e apertei o botão
da garagem. Estava sozinha dentro dele para o meu alívio, sentia-me sufocada em
elevadores lotados, a mistura de odores e olhos atentos me deixavam desesperada,
mas meu alívio durou pouco, o elevador parou no 18º andar e entrou um rapaz. Não,
ele não era bem um rapaz, estava mais para um homem, acho que deve estar entre os
seus 25 ou 26 anos, talvez 1,90m de altura, o corpo construído como o de um deus
grego com ombros largos e estruturados, quadris estreitos sustentados por pernas
longas e tonificadas. Descaradamente usava uma camiseta surrada de uma banda de
rock dos anos oitenta bem justa, deixando os braços tão apertados nas mangas que
não deixavam nem espaço para minha imaginação criativa. Todo seu braço direito
era coberto de tatuagens interessantes indo do bíceps a junta dos dedos. Eram tantos
desenhos, que não tive tempo de decifrar cada um, porque meus olhos percorreram
despudoradamente dos seus braços até suas mãos grandes e masculinas.
Uau! São mãos enormes.
Qual o sentido de alguém admirar as mãos de um estranho? Mudei o foco da
minha investigação e desci meus olhos para a parte de baixo do seu corpo. O
homem estava vestindo um jeans preto tão surrado quanto a camisa. Mas, meu Deus,
quem se importa com roupa quando se tem um corpo desses? A calça se agarrava
nos quadris displicente, como se estivesse acostumada a vestir homens gostosos o
tempo inteiro. O que eu estava fazendo, devorando um desconhecido que
provavelmente era meu vizinho?
Que vergonha, Liz!
Essa minha análise de raio X só durou cerca de quatro ou cinco segundos,
tempo suficiente para ele entrar no elevador e levar o dedo até o botão do G1 que já
estava selecionado devido a ser exatamente o mesmo que o meu.
Santa coincidência!
O moreno até então desconhecido, me cumprimentou com um discreto bom
dia e uma leve voz de sono. Desviei meus olhos do painel do elevador para
responder e foi aí que reparei bem em seu rosto, um par de olhos cor de uísque me
encarava, atraindo os meus como ímãs. O desconhecido me olhava tão atentamente
que parecia decifrar cada pequeno segredo oculto que eu carregava. Ele
simplesmente não me olhava como fazemos quando vemos algo interessante, ele me
percebeu. O moreno bonito parecia ver muito mais do que minha maquiagem bem-
feita e minhas roupas caras. Ele via sobre minha pele, e eu não sabia como me sentia
sobre isso.
Por puro instinto continuei a observar seus detalhes: seus cabelos escuros e
bagunçados caíam em sua testa como se seu pente fosse seus próprios dedos, o rosto
quadrado e bem desenhado carregava uma barba rala, sobrancelhas grossas e
expressivas, nariz bem feito, a boca parecia ter sido feita para ser beijada...
Já estou viajando de novo.
Pisquei algumas vezes para orientar meus pensamentos, e respondi o bom
dia discretamente. Ele sorriu para mim, e meu coração perdeu uma batida, eu sei é
um termo clichê, mas não me lembro de nada mais apropriado para comparar a
maneira que ele me fez sentir. Uma fila de dentes brancos me cumprimentou,
retribuí o sorriso e olhei para os meus pés encabulada. Um alerta vermelho piscou
na minha cabeça com letras maiúsculas gigantes dizendo: PERIGO!
Não, não podia estar fantasiando com um desconhecido. O elevador
começou a fazer seu caminho lentamente. Não sei se era impressão minha, mas o ar
começou a esquentar, toda a minha pele se arrepiou e senti o calor começar a colar
minha franja na testa. Levantei meu olhar e encontrei os mesmos olhos cor de
uísque me encarando.
Santo Deus!
Ele descaradamente me deu um sorrisinho cínico de canto de boca que me
deixou zonza. Apertei com força a alça da minha bolsa e desviei o olhar, implorando
a Deus para o elevador se apressar.
— Você mora aqui? — o desconhecido perguntou sorrindo sedutor.
— Sim, no vigésimo andar. — Assim que fechei a boca me recriminei
mentalmente.
Meu Deus, nem conheço o homem e já estou dando informações pessoais.
— Bom saber que tenho vizinhas bonitas. — O moreno flertou
descaradamente como se estivesse me falando qualquer banalidade corriqueira,
como um comentário sobre o tempo. Eu gelei, olhei novamente para os meus pés,
porque não tive coragem de olhar no rosto dele e me deparar com aquelas tochas de
fogo me calculando.
Santo Deus, Liz, até parece que você é uma adolescente! Aja como a mulher
de 25 anos segura e independente que você é.
Respirei fundo e levantei o olhar na defensiva.
A quem eu quero enganar?
— Obrigada, gentileza sua — agradeci com a voz mais fraca do que eu
queria demonstrar, mas não pude ser melhor que isso.
— Não é gentileza nenhuma, mas é muita sorte minha. — Ele continuou
ainda com aquele sorrisinho que dá vontade de cobrir a boca dele com um beijo para
fazê-lo parar imediatamente de me deixar tão perturbada.
Até parece que um cara desses ia flertar comigo, o homem parece um deus
do sexo, quente como o inferno. Ele só pode estar brincando. Talvez esteja
acostumado com mulheres bobas como eu olhando para ele assim o tempo todo. O
moreno bonito deve ser integrante de alguma banda de rock da moda e não estou
lembrando. Corrigi a postura e desviei minha atenção para os números do painel do
elevador que foi acendendo de acordo com os andares.
16º...
15º...
14º...
Suspirei tentando me acalmar e me preocupei em pensar no longo dia que
terei pela frente.
13º...
12º...
Santo Cristo!
Isso é um elevador ou uma geringonça? Fiz outra nota mental de reclamar
com o síndico, porque não era justo pagar um aluguel tão caro para passar por isso.
11º...
— Você está nervosa? — perguntou o moreno misterioso.
— O quê? — indaguei sem entender.
Esse cara é louco? Ou eu devo estar sonhando, que um homem como esse
iria puxar papo comigo.
— Você está nervosa... Só me resta saber o porquê — disse ele, com os
olhos cerrados me fitando cuidadosamente.
Olhei-o incrédula, sério mesmo que esse cara está falando comigo?
Conhecemo-nos há o quê? Três minutos?
— Não! Não estou nervosa, mas mesmo que eu estivesse, nem te conheço.
Por que eu te devo satisfação de como estou me sentindo? — rebati sua intromissão
mais grossa do que planejei, mas eu precisava levantar minha armadura, nenhum
cara fez minha pele eriçar dessa maneira antes e isso só pode ter me feito baixar a
guarda.
Ele riu da minha resposta malcriada, uma gargalhada completa, masculina e
cheia de personalidade.
— Desculpe, eu fui inconveniente. É que você está fazendo os sinais de
quem está nervosa.
— Sinais? Que sinais? — perguntei na defensiva.
— São alguns maneirismos que as pessoas fazem inconscientemente quando
estão nervosos ou inquietos sobre alguma coisa ou situação.
— E quais foram os sinais que dei para essa sua conclusão?
— Eu poderia listá-los. Você não para de colocar o cabelo atrás da orelha e
encarar os próprios pés repetindo os gestos nessa ordem. E quando me olha está
com esse olhar assustado que parece que vai me devorar se eu me aproximar um
centímetro.
Ele lê os gestos de estranhos em elevadores, e sabe sobre essa coisa de
sinais inconscientes? O que é ele é? Algum tipo de psicólogo? O estranho parece ser
bom observador, sempre tenho essas reações quando estou sem graça. Me pego
curiosa querendo muito descobrir mais sobre ele.
9º...
— Me desculpe, eu fui rude, é que mal nos conhecemos — disse sem graça.
— Então deixe eu me apresentar, me chamo Gustavo. Sou novo no prédio,
na verdade, acabei de me mudar, pelo visto para dois andares abaixo do seu — ele
explicou me estendendo a mão.
Olhei um segundo reticente para sua mão grande e masculina e
instintivamente estendi a minha. Quando ele apertou minha mão, senti o calor
morno de sua pele contra a minha e algo estranho aconteceu, se eu acreditasse nessa
coisa de destino, poderia jurar que foi uma sensação de reconhecimento. Os dedos
ásperos, na minha pele suave me deram arrepios que seguiram até a minha nuca.
Abri a boca para falar meu nome e nada saiu. Fiquei como um peixinho fora d'água
abrindo e fechando a boca sem qualquer reação.
O que deu em mim?
— Hã... Me chamo Liz Albuquerque, é... já moro a-aqui há alguns anos.
5º...
— Prazer, Liz, lindo nome. Tem a ver com a flor? — perguntou.
— Sim, minha mãe recebeu do meu pai uma flor-de-lis quando se
conheceram, então, ela colocou esse nome em mim para lembrar-se desse dia.
Alguma bobagem assim... — Soltei suas mãos e deslizei minha palma pela saia para
tentar parar o formigamento.
— Eu não acho bobagem, acho um lindo nome, lhe caiu bem, você tem
mesmo cheiro de flor.
Pisquei sem acreditar no que ouvi. Não, isso é gozação e ele está de
brincadeira. Um silêncio sem graça invadiu o elevador, até finalmente chegar à
garagem, me deixando ainda mais ansiosa de sair de perto desse homem
enlouquecedor.
4º...
3º...
Deus, que demora!
2º...
Não consigo respirar...
1º...
Anda logo, elevador, desgraçado!
G1...
Ufa!
As portas se abriram, Gustavo se afastou estendendo a mão em um gesto
cortês me deixando sair primeiro do cubículo de aço, e depois saiu logo atrás de
mim. Caminhei com as pernas bambas. Nossa, Liz, agora você desaprendeu a
andar? Bastou um cara bonito te elogiar para suas pernas virarem geleia? Assim
que consegui chegar até o meu carro, catei a chave na bolsa, abri a porta e me
sentei. Quando fui fechá-la, uma mão segurou a porta aberta. Oh, meu Deus... Meu
coração acelerou. O que ele pensa que está fazendo? Sem cerimônia, meu novo
vizinho se debruçou sobre o carro invadindo meu espaço pessoal de uma maneira
muito ruim. Olhei dentro daqueles olhos cor de uísque que, de tão lindos, estavam
me deixando bêbada a cada minuto e esperei o que ele tinha a dizer.
— Preciso de você — disse ele, passando a mão nos cabelos bagunçados
fazendo a camiseta se estender sobre o abdômen, a ação acabou por me mostrar um
filete de pele bronzeada.
— O quê?
— Não conheço nada na cidade, você pode me falar onde eu consigo um
mecânico de confiança? É que meu carro está ruim, e a minha moto de passeio só
chega nos próximos dias. Então, preciso de ajuda.
Fico sem saber o que responder no primeiro momento. Não que eu não
conheça um bom mecânico, é que a vulnerabilidade dele me tocou. Pode um homem
assim tão cheio de si precisar dos outros?
— Eu posso te passar o endereço do meu mecânico, ele é um velhinho
ranzinza, mas é de confiança e nunca me enganou. Você sabe como é, mulher e
mecânicos nem sempre são uma boa combinação.
— Ah, você não é uma mulher que alguém poderia enganar.
Limpei a garganta sem graça, Gustavo continuou:
— Vim dirigindo de Minas Gerais até aqui e o freio ruim, acho que as
pastilhas estão desgastadas.
— Você está saindo nele? Mesmo sem freios? É muito perigoso, você já viu
como é o trânsito de São Paulo? — perguntei aflita calculando os riscos.
— Vai ser preciso, tenho que resolver umas coisas no Centro e não estou a
fim de ficar preso dentro de um táxi no trânsito de São Paulo. A Rose ainda não
chegou dos Estados Unidos, e mesmo que ela estivesse aqui, ainda estaria sem ter
como me locomover, ela odeia concreto, Rose só gosta de ar livre.
— Bem, se você quiser posso te dar uma carona, também estou indo para o
Centro, não é grande coisa.
Depois que ele sorriu para a minha oferta, percebi a burrada que cometi, não
acredito que ofereci carona para um estranho, mesmo que seja lindo de morrer,
ainda não me sinto segura para isso. E quem é essa tal de Rose que ele citou? A
curiosidade me atingiu como um gancho de direita. Seria a namorada dele?
— Perfeito! — disse ele satisfeito com o convite.
— Não, eu quis dizer... — Enquanto tentava corrigir o que eu disse, Gustavo
deu a volta no carro e entrou no banco do passageiro sem qualquer cerimônia. É
engraçado vê-lo um tanto espremido no pequeno compartimento já que suas pernas
parecem ter quilômetros de comprimento.
— Vou ficar te devendo essa, Liz — agradeceu me olhando nos olhos.
Pisquei percebendo que era tarde demais para me arrepender, só podia rezar
para ele não ser um estuprador ou algum psicopata, e rapidamente dei partida. Meu
carro era um sedan caindo aos pedaços, mas tinha apego emocional, comprei-o
numa loja de usados quando terminei a faculdade. Olhei ao redor do carro para ver
se não tinha nada que pudesse me comprometer, porque meu carro era uma bagunça,
fazia quase tudo que podia dentro dele para economizar tempo. Trocava de roupa
para ir à academia, fazia minhas refeições rápidas nos engarrafamentos e o usava
como depósito. Roupas, sapatos, embalagens de chocolate e latas de energéticos já
viraram acessórios. Enquanto nos colocamos no tráfico pesado desse horário, meu
passageiro se remexeu no banco, mas fingi não olhar. Gustavo colocou a mão por
baixo da perna e puxou a única coisa no mundo que ele nunca, jamais, deveria
encontrar: uma calcinha.
Oh, meu Deus!
Gustavo levantou a maldita peça na altura do rosto e a examinou como se
nunca tivesse visto coisa igual na vida. A tanguinha minúscula de renda preta que
tirei ontem para colocar a roupa da academia, balançou como um relógio usado para
hipnose, porque seus olhos nem piscaram encarando o objeto. Imediatamente dei
uma tapa na mão dele e a calcinha caiu em seu colo, eu puxei e a escondi dentro do
porta-luvas com um safanão.
Santo Cristo!
Será que alguém no mundo pode ser mais azarada? Eu não estou me vendo,
mas posso sentir minhas bochechas queimando de vergonha.
— Eu gosto da cor e do tamanho — disse Gustavo com um sorrisinho
presunçoso.
Fingi que não escutei seu comentário embaraçoso, estiquei o braço e liguei o
rádio para tentar não pensar que ele está aqui tão próximo de mim e ainda por cima
sabe o que estava vestindo ontem como roupa de baixo. Santo Deus, ajude-me a
passar os próximos 30 minutos com esse homem dentro deste carro, implorei
mentalmente.
— Então, vizinha, em que você trabalha? — Gustavo perguntou puxando
assunto como se nada tivesse acontecido há um minuto.
— Eu sou advogada, me formei há dois anos — expliquei tentando me
concentrar no trânsito.
— Você tem mesmo cara de advogada. — Ele sorriu.
— Posso saber, por quê? — perguntei irritada com o seu comentário
engraçadinho.
— Calma, é que você sempre está na defensiva, deve ser uma boa advogada
criminal.
— Não, nunca trabalharia nessa área, sou advogada da vara da família. Eu
trabalho em casos de adoção, abusos, e coisas desse gênero.
— Uau! — Gustavo me encarou surpreso.
— E o que você faz?
Antes de responder, ele deslizou as mãos sobre as coxas, dei uma rápida
olhada no movimento e percebi o que as letras tatuadas nos seus dedos queriam
dizer. O homem tatuou na própria pele a palavra free, o que traduzido do inglês
significa livre, tomei isso como um sinal.
— Eu sou piloto de motocross. — Olhei para ele intrigada, eu deveria
imaginar que o homem lindo sentado ao meu lado era tão selvagem e corajoso para
viver de um esporte desses como ganha pão, mas juro que pensei que fosse um rock
star de alguma banda, ou quem sabe modelo de alguma grife masculina ou algo
desse tipo, mas nunca um piloto de motocross. Não conhecia o esporte, no entanto,
tinha uma ideia do que eles faziam com suas motos e toda aquela roupa colorida.
— Nossa! — Não consegui esconder minha surpresa.
— Acabei de voltar de um campeonato mundial nos Estados Unidos, fiquei
entre os cinco primeiros colocados.
— Então, você é bom — confirmei.
— Sim, acho que sim — falou Gustavo sem soar pretensioso, e gostei do
pouco caso que ele fez disso.
— Mas por que você se mudou pra São Paulo? Em Minas não seria melhor
para treinar? Acho que aqui não tem muitos locais para isso, é quase tudo cimento,
estamos numa verdadeira selva de pedra. A não ser que você vá a cidades vizinhas
longe de todo esse caos — palpitei e percebi que estava sendo invasiva.
— Precisei vir para tratar de alguns problemas, mas também quis vir por
vontade própria, mudar um pouco, sair da mesmice. Não consigo ficar muito tempo
em um mesmo lugar, o mundo me chama. Já morei em alguns estados e em alguns
países, estou acostumado com as mudanças de rotina.
— Então, a tatuagem na sua mão tem um significado verdadeiro para você?
— perguntei.
— Mais do que isso, ser livre é um estado de espírito, é o que me move a
continuar seguindo em frente.
Respirei fundo, olhando para Gustavo perplexa e invejando essa liberdade
que ele estava falando. Como eu queria ser assim, não ter medo em recomeçar e
enfrentar o desconhecido. Ele me lembrava alguém...
— E sua família é daqui? Quer dizer, sua esposa lida bem com essas viagens
e todas essas mudanças de estado? — perguntei sobre a esposa mesmo já
desconfiando dele não ser casado devido ao fato de eu não ter visto uma aliança em
sua mão esquerda, apesar de hoje em dia as pessoas não se importarem tanto com
essa tradição.
— Não tenho mulher, e é por esse motivo mesmo que não quero uma. Minha
mãe e meus irmãos estão em Minas. Minha mãe tem um restaurante em Belo
Horizonte, todos trabalham no negócio da família, menos eu, claro.
— Mineiro, então — falei em voz alta o que deveria não ter saído da minha
boca e apenas ter permanecido nos meus pensamentos, eu deveria ter notado o leve
sotaque.
— Come quieto! — acrescentou com uma risadinha debochada.
Encarei-o rapidamente com as bochechas vermelhas, tentando não enxergar
o duplo sentido nas suas palavras. Fiquei me perguntando o que mais eu podia
descobrir sobre a vida desse homem. Questionei-me como ainda não tinha visto
nada sobre ele na tevê; se era realmente verdade que ele era um bom piloto já devia
ter saído alguma notícia sobre ele. Não era fã de esportes radicais, mas vez ou outra
dava uma olhada no caderno de esportes do meu jornal. Nunca fui uma pessoa
curiosa, no entanto, eu gostaria de descobrir tudo sobre esse homem tão intrigante.
Uma dúvida surgiu em minha mente. Se ele não era casado devia ter uma namorada,
ou uma ficante oficial. Um homem como Gustavo não estaria solteiro em hipótese
alguma, deve ser a tal de Rose que ele falou, será que vão morar juntos?
A curiosidade era mais forte que meu autocontrole em parecer indiferente a
tanta beleza, e antes que eu percebesse, perguntei:
— E Rose quem é? Sua namorada? Ou apenas uma delas?
Gustavo gargalhou de uma maneira incontrolável. Não fazia ideia de por que
ele ria de tudo que eu falava, mas ouvi-lo rir era refrescante. Ele tinha várias facetas,
podia sufocar uma mulher com aqueles olhos intensos e corpo enorme, e também
podia sorrir como um garoto bobo, esse detalhe sobre ele era lindo.
— Me desculpe, não estou rindo de você — explicou ele secando os olhos
lacrimejados de tanto rir.
— O que foi tão engraçado?
— Bem, eu poderia considerar a Rose uma esposa, já que ela me acompanha
em todos os cantos que vou. Passo mais tempo com ela, quer dizer, em cima dela,
do que já passei em cima ou próximo de qualquer coisa na vida. — O sorriso maroto
não saiu de seu rosto.
Uma onda de raiva e decepção ferveu em minhas veias, ele ainda tinha
coragem de confessar que tratava uma mulher assim enquanto paquerava outras,
sem falar que ele gargalhou quando perguntei se a moça era sua namorada. Safado!
— Ei, não é o que você está pensando. — O idiota ainda lê a mente das
pessoas?
— Ah, não? — Levantei uma sobrancelha em interrogação.
— Não, Rose é como chamo a motocicleta que uso nas competições. Por
isso falei que ela não gosta de concreto, é uma máquina calibrada para competições,
não saio com ela a passeio. Uma moto de corrida é tão importante como um joelho
saudável para um jogador de futebol.
Minhas bochechas queimaram como se eu tivesse passado lava no lugar da
maquiagem.
— Oh! — É só o que consegui falar em constrangimento. E, ao mesmo
tempo, senti alívio, ia ser muito decepcionante um homem lindo como esse ser um
cafajeste.
Enquanto o sinal fechou mudei de assunto:
— Ah, eu já ia esquecendo, preciso te dar o telefone do Sr. Jorge, o
mecânico. — Alcancei o meu celular na bolsa que estava no painel e comecei a
procurar o número da oficina. Após ditar os números para ele agendar no celular, o
silêncio predominou até nós chegarmos ao Centro, onde ele pediu para descer perto
do Hospital Santa Cecília. Fiquei interessada e não resisti em perguntar:
— Indo visitar alguém doente? Espero que não seja nada grave. — Gustavo
me encarou com olhos surpresos e profundos, como se o assunto o machucasse de
alguma maneira. No mesmo momento me arrependi de ter me intrometido.
— Não, nada com que deva se preocupar. — Ele sorriu gentilmente e
verificou o celular como se consultasse a hora.
Estacionei na calçada do hospital. Ele desceu, se debruçou na janela e me
deu aquele sorriso completo. Nossa, esse sorriso ainda vai ser minha perdição!
Imaginei o que ele faria se eu me esticasse e beijasse sua boca. Só um selinho, será
que ele se importaria?
Lá vamos nós de novo... Acorda, Liz, ele não é para o seu bico!
— Obrigado pela carona e pela ajuda com o mecânico, foi muito gentil da
sua parte, Liz. — Quando ele falou meu nome, eu me arrepiei inteira, meu nome se
tornou único na voz dele, como uma pequena melodia. Recitada tão perfeitamente
que eu não me cansaria de ouvir. Parece clichê, mas ao ouvi-lo pronunciar meu
nome me senti um pouco mais íntima e presente.
— Oh, não precisa agradecer, não foi nada de mais. — Fiquei embevecida
naqueles olhos, totalmente paralisada e perdida nos pingos dourados da sua íris.
Esforcei-me para desviar o olhar e verifiquei o relógio.
— Preciso ir, não posso me atrasar para o trabalho — falei parecendo uma
tola, mas daria um braço para não mexer uma única célula do meu corpo de lugar.
Ele riu.
— Claro, não quero te atrapalhar. Nos vemos por aí, Liz. — Gustavo
alcançou meu rosto com as mãos, pressionou os lábios macios contra minha pele por
cerca de alguns segundos, sorri e saí andando em direção ao hospital.
Fiquei ali digerindo tudo que aconteceu desde a hora que acordei, e
admirando aquela bunda perfeita no jeans, enquanto toquei a região que queimou
pelo seu contato.
Nossa e ainda não tomei nem um café preto.
Dei partida no carro e fui para o escritório.
Assim que abri a porta ouvi a voz do meu chefe gritando com outro pobre
coitado. Essa não, mas já? Luana, a recepcionista, me olhou com aquele olhar que
diz "a coisa está feia", sorri em agradecimento ao apoio. O Dr. Estefan Salgueira era
um senhor de meia-idade carrancudo que estava sempre suado e vestindo um terno
pequeno demais para o seu tamanho. Fui contratada através de um rigoroso processo
de seleção que durou cerca de um mês de cansativas entrevistas. Através das minhas
excelentes notas, eu fui classificada para o cargo.
Para falar a verdade, eu apenas tolerava meu trabalho, lidar com casais ricos
que queriam adotar crianças para mostrar aos amigos do clube o quanto eram
generosos não era o que eu sonhava em fazer na faculdade. Meu sonho mais
profundo e antigo era trabalhar em abrigos facilitando a burocracia que era adotar
uma criança, sempre quis poder ajudá-las, lhes ofertar uma família amorosa, cheia
de segurança e conforto. Ainda não consegui, mas me virava no que podia. O que
tinha por enquanto era esse trabalho e era o que pagava minhas contas no final do
mês.
Fui até minha mesa, guardei minhas coisas e entrei na sala do meu chefe
para receber as ordens do dia. Caminhei até a mesa de carvalho antiga que ele estava
sentado no centro da sala, rodeado de livros de Direito e ética na estante que tomava
toda a parede as suas costas. Ri só de pensar que ele com certeza não leu nenhum
desses livros, já que ética era uma palavra que não constava no seu vocabulário.
— Bom dia, Sr. Estefan. Desculpe o atraso, o trânsito estava horrível.
Meu chefe, que estava de cabeça baixa lendo o jornal, me olhou como se eu
não fosse grande coisa.
— Sempre cheia de desculpas por sua incompetência. Traga-me um café e
depois busque os processos dos casos de hoje e vá para o abrigo. Um dos nossos
casais vai visitar as crianças, e eu quero você lá indicando-lhes as coisas.
— Claro. Só um minuto, senhor. — Inspirei profundamente e me arrastei
para fora da sala.
Meu dia ia ser longo.
“Eu tento não pensar
Na dor que eu sinto por dentro
Você sabia que costumava ser meu herói?
Todos os dias que você passou comigo
Agora parecem tão distantes
E parece que você não se importa mais...”
Perfect – Simple Plan
Gustavo
Entrei no hospital respirando fundo. Como posso me concentrar depois de
ficar trinta minutos do lado de uma mulher daquelas? Não consigo pensar em outra
palavra que não seja perfeita para descrever minha nova vizinha. Liz Albuquerque
era diferente de todas as mulheres com quem me envolvi. Seu jeito engraçado,
perspicaz e inteligente me intrigou. Sua personalidade somada a sua beleza, me
deixaram zonzo, precisei lutar todos o tempo que estive ao seu lado contra a atração
feroz que senti.
Nunca imaginei que uma advogada usando tons sóbrios e comprimentos
discretos pudesse ser tão sensual. Levei todo meu alto controle para não soltar
aquele coque bem arrumado em seus cabelos e beijá-la dentro daquele elevador.
Como se não bastasse ter um corpo de uma deusa, ainda era dona de um rosto
irretocável. Seus olhos eram de um tom de azul tão claro que algumas vezes tive a
impressão de serem transparentes.
O seu jeito acanhado me deixou um tanto nervoso, mesmo demonstrando
timidez, ela arrebitava aquele nariz bonito quando se sentia desafiada, eu adorei o
tom desafiador que ela forçava nas palavras. A maioria das mulheres que eu saía
não faziam questão de demonstrar interesse, mas Liz sempre corava quando eu
olhava demoradamente para ela, e a cara que ela fez quando eu encontrei a calcinha
no carro foi memorável, nunca vi uma mulher tão sem graça na minha vida. E que
calcinha! Liz com certeza me deu motivos para sonhar com ela à noite.
Quando ela saiu do elevador e caminhou na minha frente balançando os
quadris, eu não podia simplesmente ir embora, eu precisava de mais. Eu passaria
uma vida inteira olhando para aquela mulher.
Preciso mais dessa loira!
Eu não sou santo e também não sou de enlouquecer por qualquer uma, meu
gosto por mulheres sempre foi exigente. Perdi a virgindade aos 15 anos no banheiro
da escola com uma garota do segundo ano, e desde então, as mulheres sempre
passaram pela minha cama.
Talvez o mistério em torno dos seus olhos azuis é que tenha me fisgado
dessa forma. Cada vez que ela olhava em minha direção, meu coração saltava em
disparada.
Acordei desorientado devido ao jet lag da viagem e todo quebrado por
dirigir de Minas Gerais até aqui, pulei da cama e entrei na primeira roupa que
encontrei na mala que, por sinal, ainda não tive tempo de desarrumar. Agora, pela
manhã, vou poder visitar meu pai depois de todos esses anos em que ele sumiu da
cidade deixando minha mãe, eu e meus três irmãos mais velhos sozinhos.
Uma enfermeira me ligou no mês passado dizendo que ele estava no hospital
entre a vida e a morte dependendo de um transplante de rim. E eu, como nunca
consegui entender por que ele nos abandonou para vir pra São Paulo, agora estou
aqui, pronto para obter respostas. Depois do telefonema, voltei de Los Angeles
faminto por explicações, e vou consegui-las antes dele morrer.
Localizei a recepção e fui até lá. Uma senhora de cabelos grisalhos estava
atrás do balcão atendendo ao telefone, aguardei ela terminar a ligação.
— Bom dia! Vim visitar o Sr. Luiz Augusto Salles, pelo que me foi
informado ele está aguardando um doador de órgão.
A senhora ajeitou os óculos de grau no nariz, digitou alguma coisa no
computador e me deu um sorrisinho sem graça.
— O senhor quem é? — ela me perguntou levantando a sobrancelha.
— Sou Gustavo Salles, filho dele.
Essa última frase me deixou um gosto amargo na boca, fazia anos que não
falava isso em voz alta.
A mulher confirmou com um aceno de cabeça, pediu para olhar minha
identidade e me indicou a enfermaria em que ele estava. Quarto 101, lá estarão as
respostas das minhas dúvidas. Dúvidas que carreguei comigo por longos anos e que
agora vou poder desvendá-las.
Caminhei entre os corredores do hospital e minhas mãos começaram a
tremer. O que eu estou fazendo aqui? Por que insistir nessa história? Eu já deveria
ter esquecido isso como meus irmãos fizeram. Até minha mãe, que foi deixada com
os quatro filhos pequenos para cuidar, sempre me disse que já perdoou esse homem.
Como ela pôde ser capaz de esquecer e perdoar? Nunca conseguirei
compreender. Mas eu não esqueço assim tão rápido, sempre desejei me encontrar
com ele para lhe jogar na cara tudo que tenho engasgado no peito, todas as vezes
que esperei que ele voltasse para casa e dissesse que nunca iria embora de novo, eu
só tinha sete anos, meu pai era o meu herói e simplesmente foi embora e nunca me
procurou, nem uma ligação no Natal ele nunca fez.
Hoje era o dia de encerrar essa história. Olhei para a numeração da porta do
quarto 101, coloquei a mão na maçaneta e entrei.
“Uma teia de aranha está emaranhada comigo
E eu perdi minha cabeça
O pensamento de todas as coisas
estúpidas que eu disse...”
Trouble – Coldplay
Liz
Cheguei ao abrigo e fiquei esperando o casal que faria a visita hoje. Como
estavam atrasados, eu fiz uma visita rápida à sala de Cristina Serra, uma das
assistentes sociais, que também é minha melhor amiga. Minha amizade com Cris
surgiu das diversas visitas que fazia ao abrigo acompanhando casais interessados em
adotar ou quando vinha para visitar as crianças. Nossa primeira troca de palavras foi
no banheiro do orfanato quando a encontrei chorando porque quebrou o pó
compacto. Não resisti e ensinei a ela um truque que aprendi na internet para juntar
novamente o pó rachado.
Bati na porta, e um minuto depois, a bela morena de sorriso fácil abriu-a e
saiu para me cumprimentar.
— Amiga! Meu Deus, há quanto tempo? — ela gritou me abraçando tão
apertado que comecei a tossir, Cris continuou falando como se nada tivesse
acontecido: — Pensei que tinha me esquecido, sua egoísta! Posso saber por que
você não atende minhas ligações há duas semanas? Por acaso resolveu ceder ao meu
conselho e conheceu um gatinho? E está muito ocupada na cama dele?
— Não! Claro que não. Eu só estava ocupada, você sabe — respondi
rapidamente querendo evitar que Cris criasse mais histórias.
— Você está sendo uma grande egoísta, dona Liz, eu ligo porque me
preocupo com você sozinha nesta cidade. E porque também quero conversar com a
minha amiga. Tenho tanta coisa para te contar, mas você sempre inventa uma
desculpa para não me atender.
— Eu sinto muito, é que essas semanas estão sendo muito difíceis para mim,
eu não seria uma boa companhia para ninguém, eu sei que não mereço sua
amizade... — falei com os olhos cheios de lágrimas porque sei que andei sendo uma
cadela com a minha melhor e única amiga.
— Eu sei que você me ama, agora não precisa chorar, Liz. — Cris sorriu e
me abraçou de novo. Na verdade, eu estava mesmo precisando desse abraço.
Cristina era a única pessoa que eu tinha nessa cidade, não podia perdê-la.
— Bem, para quitar o débito que você tem comigo, que tal uma saidinha
amanhã?
— Você sabe que dia é amanhã, não serei uma boa companhia.
— Por isso mesmo, vamos pensar assim, será uma noite nossa só de meninas
com um belo vestido e alguns bons drinks, poderemos por o papo em dia e esquecer
um pouquinho o drama que vivemos. O que acha?
— Você sabe que há anos não vou a uma balada, não sei se é uma boa ideia,
Cris, não seria melhor pegarmos um cineminha? — tentei convencê-la, com minha
melhor voz de amiga boazinha.
— Claro que não, somos jovens demais para perder tempo com um filme
bobo em pleno sábado à noite. Vamos lá, sua chata. Você me deve.
Respirei fundo, olhei para aqueles olhos negros pidões que estavam me
encarando com cara de cachorro que caiu da mudança e pensei: “Amanhã será um
dia terrível se eu ficar em casa lamentando mais um dia, e é uma boa data para
encher a cara com uma amiga”.
— Tudo bem, eu topo — concordei finalmente.
Cris pulou gritando feito uma louca, o que me fez rir.
— Eu sabia que você não iria me decepcionar, eu te amo e você sabe, agora
espera aí, você está diferente.
Eu comecei a rir e neguei com a cabeça.
— Está sim, conheço esse sorriso, você conheceu alguém? É isso?
Uma coisa tinha que concordar, a Cris era maluquinha, mas me conhecia
como ninguém, mas eu não conheci ninguém ao certo, só dei carona a um vizinho,
só isso. Ela não precisava saber que ele me deixou suspirando.
— Não conheci ninguém, agora me deixa voltar lá para a recepção que estou
esperando mais um casal para a visita.
Cristina me deu aquele olhar avaliativo, que só ela sabia fazer, e perguntou:
— Aquele cretino ainda está te infernizando no escritório? Te fazendo de
babá dos ricaços?
— Você sabe, ele não muda. Deixe-me ir, antes que o casal chegue e ligue
para ele me procurando. O babaca só está esperando uma chance para me colocar na
rua.
— Uau! A senhorita certinha está xingando? — Cris falou rindo.
— Não enche, Cris, vou nessa. — Dei um abraço nela e saí em direção à
recepção.
— Amanhã te ligo para combinarmos, agora atende esse celular! — ela
gritou. Não resisti e ri pelas loucuras da minha amiga.
Cheguei à recepção e já encontrei o casal conversando com a recepcionista,
me apresentei e os encaminhei ao pátio onde as crianças estavam brincando. O
orfanato era um prédio antigo no estilo colonial com uma grande fachada azul e
muitas janelas; na frente foram construídos um lindo jardim com balanços,
escorregadores e banquinhos de madeira. Ideal para as crianças sentarem com os
pretendentes a pais para conversar. Era um lugar agradável, mas mesmo assim muito
impessoal, o que me deixava triste. Todas as crianças mereciam ser felizes em
lugares seguros e cheios de amor. "Amor", será que ainda acredito nessa palavra?
Afastei os pensamentos e indiquei ao casal Sherman as crianças que estavam
dentro das características que eles queriam. Como sempre, crianças entre zero a seis
anos, brancas e sem problemas físicos ou psicológicos. Isso me partia o coração,
ainda mais por ver as outras crianças maiores que não possuíam essas características
brilharem os olhinhos na esperança de serem as escolhidas. O pátio estava cheio de
meninas e meninos correndo e brincando no sol da bela manhã de outono.
A Sra. Sherman era uma linda mulher de meia-idade, um pouco engessada
com tanta maquiagem (talvez eu também seja assim), ela vestia um belo tubinho
azul-marinho e sapatos de salto agulha que, provavelmente, era desconfortável para
andar na grama pela forma que ela olhava para as crianças. Já seu marido era um
belo homem por volta dos trinta e poucos anos, cabelos levemente grisalhos
cortados perfeitamente em um corte sério e sofisticado, vestindo um elegante terno
risca de giz sem gravata, o que me levou a pensar que ele ainda ia voltar ao trabalho.
Seu olhar era mais acolhedor para as crianças, ele as examinava com um olhar de
amor e compaixão.
O Sr. Sherman caminhou até um garotinho magricelo de uns cinco anos de
idade que estava sentado sozinho no balanço tentando se balançar, mas as pernas
curtinhas o impediam, ele se aproximou e perguntou se podia ajudá-lo. O menininho
confirmou com a cabeça e os dois começaram a brincar. Um empurrava o balanço e
o outro sorria fechando os olhinhos sentindo o frio na barriga causado pela
gravidade da descida. Me peguei sorrindo com a cena tão simples e tão tocante, me
voltei para a senhora Sherman, que olhava incrédula para os dois.
— Ele está muito enganado se pensa que vamos ficar com aquele negrinho
— resmungou irritada.
Encarei o rosto amargo da mulher.
— A senhora deveria estar procurando amor ao invés de cor da pele, Sra.
Sherman, se acha que isso desclassifica uma criança está no lugar errado, talvez um
pet shop fosse mais indicado, aí sim a senhora poderia escolher um animal da raça
que lhe agrada e com certificação de pedigree, e não aqui procurando uma criança
que será seu filho. Apesar de que tenho certeza de que nem um animal a senhora
deva ser capaz de criar com tanta amargura.
Terminei de falar tremendo de raiva daquela mulher pedante que me
encarava com olhos fulminantes que tenho certeza de que se pudessem, me
matariam ali mesmo.
— Quem você pensa que é, mocinha, para falar assim comigo? Vou
comunicar ao seu chefe o tipo de gente que ele contrata no seu escritório. Olhe para
você, uma pobre coitada me dizendo o que devo fazer — rebateu de dentes
trincados.
Assim que ela fechou a boca percebi a presença do Ricardo ao nosso lado
com o menino no colo olhando para a esposa, como se não acreditasse na asneira
que ela estava falando.
— Olívia, cale-se! — disse ele severamente. — Você deveria se envergonhar
por comportar-se dessa maneira, não vou admitir seu preconceito nem mais um
segundo. Peça imediatamente desculpa à senhorita Liz.
— Jamais faria isso, ela me destratou de uma maneira terrível, e você está
muito enganado se pensa que irei concordar em adotar esse menino que está em seus
braços. — Ela ainda ousou demonstrar desprezo quando disse a palavra menino.
Vadia!
Ele respirou fundo com o rosto tão vermelho, que imaginei que ele estivesse
morto de vergonha pelo comportamento prepotente da mulher.
O Sr. Sherman se virou para mim.
— Liz, eu peço desculpas pela minha mulher, você poderia levá-lo para
tomar água enquanto eu converso com minha esposa?
Concordei com a cabeça e estendi os braços para pegar o garotinho.
Enquanto caminhamos até a entrada do orfanato me virei e vi o casal discutindo
calorosamente. Como pode um homem, que aparenta ser tão decente, ter se casado
com uma mulher horrível daquelas?
Mas não é para menos, tinha exemplos de que, quando queria, uma mulher
podia destruir a vida de um homem quando se propunha a isso. Ajudei o garotinho a
tomar água no bebedouro, quando ele terminou abaixei-me e perguntei qual era o
nome dele. Ele me olhou com olhos assustados e disse:
— Meu nome é Muel. — Sua voz era aguda como de qualquer criança. Sorri
da forma errada que ele falou seu próprio nome e me apresentei:
— Samuel, eu me chamo Liz, e achei você um garoto muito lindo. —
Ele riu e baixou a cabeça, uma supervisora passou por nós e me perguntou se ele
deu algum trabalho e eu respondi que viemos só tomar uma água e já estávamos
voltando para o pátio.
Saí de mãos dadas com ele para o jardim, continuando a fazer perguntas
sobre suas brincadeiras preferidas. No momento em que estávamos nos
aproximando dos degraus da frente do prédio vi Sherman caminhando sozinho até
nós. Ele abriu um sorriso quando viu Samuel.
— Me desculpe, Liz, minha esposa precisou ir embora, ela não está em um
bom dia. — Acenei com a cabeça. — Agora me passa esse garotinho aqui que
vamos brincar mais um pouco antes que o horário de visitas acabe.
Os dois saíram para o parquinho e começaram a brincar. Provavelmente
Ricardo Sherman mandou a esposa ir embora devido à sua atitude, Olívia mais
atrapalharia do que ajudaria junto às assistentes sociais, mesmo que eu esteja
trabalhando para eles, preciso lembrar-me de contar a Cristina a atitude daquela
mulher, eu não seria tola em achar que ela cuidaria bem de uma criança. Mas como
um casal que discorda de algo tão sério pode estar dando entrada num processo de
adoção?
O horário de visitas acabou por volta das onze da manhã, uma das
orientadoras encaminhou as crianças para dentro do prédio, Sherman se despediu do
Samuel com um beijo no rosto, um abraço apertado e a promessa de voltar na
próxima semana para brincarem no balanço. Meu coração apertou quando vi a
satisfação da criança com a promessa.
Após todos entrarem, eu toquei no assunto da adoção:
— Sr. Sherman, vejo que o senhor ficou encantado com o garoto.
— Sim, o olhar triste que ele me deu assim que cheguei aqui me tocou, devo
confessar que acho que já encontrei meu filho.
Sorri com a confissão emocionada dele e toquei no assunto que gostaria de
evitar:
— Mas o senhor sabe que, para o processo de adoção dar certo, é preciso
que o casal esteja de acordo com a escolha da criança, para assim evitarmos futuras
devoluções. E, pelo que vi, sua mulher não ficou muito feliz com a aproximação de
vocês. Sinto lhe dizer que, se as assistentes sociais notarem a atitude da sua esposa,
podem não lhe dar a guarda do Samuel.
Sherman me olhou com os olhos cheios de decepção.
— Eu sei, e é por isso que terei uma conversa séria com ela assim que
chegar em casa hoje. Sempre sonhei em ter um filho e, como a Olívia nunca quis
engravidar, achei que poderíamos adotar uma criança, mas, pelo visto, ela não
concordou totalmente com a ideia. Eu não vou abrir mão de ter uma família, mesmo
que Olivia se negue a me dar isso.
Fiquei em choque com o que disse, ele aparentava ser um bom homem e,
com certeza, sua esposa não o merecia.
— Sinto muito, imagino como deve ser difícil para o senhor. Mas tente fazer
isso da melhor forma possível. Faça o impossível para que nunca mais esse tipo de
situação aconteça na frente de uma das crianças do abrigo, elas não merecem mais
esse tipo de desprezo. Qualquer dia que precisar, é só contatar o escritório que lhe
acompanho para mais uma visita. Vai dar tudo certo e o senhor será um ótimo pai.
Ele me olhou acanhado como se não esperasse o elogio, caminhamos em
silêncio até o estacionamento e ao chegar ao meu carro nos despedimos e ele
caminhou até a Mercedes dele.
A viagem de volta foi tranquila, as músicas do rádio levaram minha mente
para um futuro distante onde me imaginei cuidando dos meus próprios filhos. Será
que eu seria uma boa mãe? Será que eu os magoaria como fui magoada? Será que
um dia encontrarei alguém que seja um bom pai?
Parei num restaurante perto do trabalho, comprei uma salada de frango com
ricota para viagem e voltei para o escritório. Com certeza, meu chefe estaria com
uma pilha de processos para eu revisar.
Quando entrei na sala, o Sr. Estefan não estava, mas Luana, a recepcionista,
me informou que ele não voltaria mais hoje, pois estaria viajando com a família para
o interior neste fim de semana e que só voltaria na segunda. Sorri aliviada, mas ela
logo me avisou que uma lista de tarefas me esperava em cima da minha mesa.
Respirei fundo, aliviada, e fui para a minha sala engolir rapidamente a salada
para tentar terminar tudo que tinha para fazer ainda hoje. O que, pela lista que ele
passou, incluía revisar dois processos de duzentas páginas, fazer um relatório da
visita do casal Sherman, tirar cópias de todos os processos da semana que vem e
anotar todos os recados dele. Enfim, não sei que hora sairei daqui.
Lá pelas sete da noite percebi o escritório vazio, todos haviam ido embora
para os seus compromissos de fim de semana e eu ainda aqui. Finalmente terminei
tudo que eu tinha para fazer, me alonguei sentindo as costas doerem e decidi que já
era suficiente por hoje. Organizei minha mesa, apaguei as luzes e fui até o
supermercado.
O Walmart, próximo de casa, estava lotado, casais e famílias fazendo
compras do mês, solteiros comprando vinhos e queijos, o que me fez pensar que
alguns teriam encontros românticos hoje. O que me deixou ainda mais frustrada,
porque há anos não vou a um encontro. Nunca fui muito de namorar. Nos meus
vinte e poucos anos só tive um único namorado e foi na escola quando eu ainda
tinha uma vida normal, era um carinha popular do colégio que não entendia o que
era um pedido para parar com as mãos bobas.
Foi só mais uma decepção para minha coleção, ele me traiu, assim que a
bomba explodiu na minha vida, com a minha melhor amiga. Mais um que me virou
as costas quando mais precisei. Apesar de que não foi uma grande perda, ele beijava
mal e ainda era um idiota prepotente.
Nunca chegamos a nada além de amassos, naquele tempo eu ainda não me
sentia preparada para dar esse passo, e hoje em dia agradeço por ter resistido e não
ter dormido com ele. Se minha vida não fosse tão confusa e eu tivesse tempo de ser
uma pessoa normal, eu já teria procurado alguém para resolver meu problema da
virgindade.
Peguei um carrinho e comecei a encher com as porcarias que gostava de
comer: congelados, chocolates, sorvete e refrigerantes. Não que eu não soubesse
cozinhar, até sabia, mas não tenho vontade de ir para o fogão desde meus quinze
anos, quando tudo aconteceu. Quem me ensinou a cozinhar desde garota foi meu
pai, ele cozinhava todas as refeições da casa, minha mãe nunca teve tempo e
interesse para isso. Mas para variar o cardápio de congelados com gordura saturada
e muito sódio, escolhi uma massa fresca, alguns legumes e verduras.
Na seção das carnes e frutos do mar comprei alguns camarões, um belo filé
de salmão e frango. Indo para o caixa peguei algumas garrafas de vinho, trabalhei a
semana inteira e merecia um jantar decente. Talvez assim, eu conseguisse uma boa
noite de sono.
Fui para a fila do caixa, que estava longa; enquanto isso pensei no que ia
fazer assim que chegasse em casa: um bom banho, cozinhar uma massa com
camarões e cogumelos, algumas taças de vinho e uma playlist de músicas
relaxantes. Sim, isso será perfeito.
Assim que cheguei à garagem do prédio, procurei o carrinho de carga que
sempre ficava aqui para ajudar os moradores com as compras, mas ele não estava
em lugar nenhum. Provavelmente algum vizinho chegou primeiro do que eu.
Pensei em como ia subir tantas sacolas de compras de uma só vez, não
queria descer várias vezes para buscá-las. Isso demandaria muito tempo e estragaria
todos os meus planos em ter um fim de noite relaxante. Desci do carro suando,
coloquei a minha bolsa no ombro, abri o porta-malas e peguei as sacolas dividindo-
as em ambas as mãos e fui em direção ao elevador.
Antes dele chegar já estava com os dedos machucados do peso das compras.
Que droga! Ainda faltavam vinte andares antes de chegar ao meu. Entrei no
elevador vazio agradecendo aos céus por isso, ele parou na portaria; assim que as
portas se abriram, imagine quem estava em pé com os olhos em cima de mim?
Sim, Gustavo.
Ele ainda estava com a mesma roupa de mais cedo, os cabelos pretos ainda
mais bagunçados, porém dessa vez o habitual olhar divertido e galanteador foi
substituído por uma tristeza profunda.
Gustavo entrou sorrindo quando me viu.
— Pelo visto sou um homem duplamente sortudo, te encontro no começo do
dia e no final. Isso é um bom sinal.
Retribuí o elogio com um sorriso sem graça. Gustavo olhou para as minhas
mãos cheias de sacolas e me pediu para ajudar.
— Não precisa, eu posso fazer isso — neguei sem jeito, tentando ignorar a
forma estranha que ele me fazia sentir.
Gustavo insistiu:
— Eu não seria um cavalheiro se te deixasse carregar esse peso todo
sozinha. Dê-me aqui essas sacolas.
Ele as tomou das minhas mãos sem me dar nenhuma chance de recusar.
Mentalmente fiquei aliviada, meus dedos já estavam queimando. Gustavo ficou ao
meu lado no elevador, ele cheirava tão bem, uma mistura de notas amadeiradas e
suor que me deixou ofegante com a proximidade. Como é possível passar o dia
inteiro na rua e continuar cheirando tão bem?
— Liz? — Ele me flagrou descaradamente olhando para o seu pescoço
moreno e masculino.
Enrubesci, e desviei o olhar para o seu rosto.
— Sim?
— Você teve um bom dia no trabalho? — Gustavo me encarou esperando a
resposta.
— O de sempre, e você conseguiu resolver o problema no seu carro?
— Ah, sim. Você tem um bom mecânico, ele veio até aqui fazer o reparo na
minha pick-up, só consigo me virar em consertar motos, carros não são meu forte.
Ficamos em silêncio assistindo os botões do painel se apagando conforme
avançávamos os andares, até que ele falou:
— Obrigado, você salvou o meu dia mais uma vez.
Olhei para ele sem entender o que quis dizer com isso.
— Como assim? Mais uma vez?
— Tive o pior dia da minha vida sem dúvida, e você apareceu cheia de
sacolas salvando o meu dia de novo, primeiro foi a carona e o número da oficina e
agora você está aqui.
Gustavo demonstrou tanta fragilidade em suas palavras que me perguntei o
que será que aconteceu para que ele tivesse um dia tão ruim, com certeza foi algo
horrível pela forma que seu olhar estava abatido e os olhos vermelhos como se
tivesse chorado.
— Não fiz nada de mais, você é que está sendo gentil em me ajudar — tentei
aliviar o assunto.
No 14º andar entrou um jovem casal no elevador que fingiu não nos ver e
começaram um beijo que estava mais para preliminar; o garoto apertou a bunda da
menina como se estivesse apenas colocando o cabelo dela atrás da orelha.
Gustavo me pegou encarando a cena de olhos arregalados. Ele piscou para
mim e sorriu o sorriso desavergonhado de antes. Meu Deus, o que esse homem faz
comigo? Baixei a cabeça e comecei a olhar para os meus pés, morta de vergonha
pela situação. Percebi que passamos o andar dele, quando chegou ao meu, pedi as
sacolas e ele negou com a cabeça fazendo questão de me acompanhar até a porta do
meu apartamento.
O que ele acha que está fazendo?
— Gustavo, muito obrigada pela ajuda com as sacolas — agradeci tentando
alcançá-las.
— Vou te ajudar a guardá-las, se você não se importar. Na verdade, não
quero me despedir ainda, acho que se sair agora sem a sua companhia vou fazer
alguma besteira, ou encher a cara até cair bêbado em algum lugar.
De repente me passou uma ideia pela cabeça, nós poderíamos ser amigos,
afinal tantas mulheres tem amigos por aí. Não seria nada de mais ter alguém com
quem conversar, alguma amizade com os vizinhos não faria mal algum, certo? Com
certeza, ele não tem ninguém na cidade assim como eu; para falar a verdade, tenho a
Cristina, mas não tenho nenhum amigo homem. Então, tomei a atitude mais idiota
que eu poderia tomar.
— Bom, eu estava pensando em cozinhar alguma coisa e tomar um vinho.
Quer me acompanhar? Talvez você queira conversar — sugeri já sabendo que ele
não ia querer jantar comigo, aliás, ele nunca iria achar graça em uma mulher como
eu para passar o tempo. Com certeza deve ter outros compromissos mais
interessantes.
— Claro, por que não? Fico muito grato pelo convite, e devo confessar que
estou morrendo de fome — Gustavo respondeu sem pestanejar aceitando o convite e
continuou: — Agora, se você quiser abrir a porta seria uma boa ideia, as sacolas
realmente estão um pouco pesadas — concluiu franzindo a testa.
Peguei-me olhando feito uma idiota para ele com as chaves na mão.
— Ah, claro... desculpe-me.
Abri a porta e entramos.
“As luzes se apagam e eu não posso ser salvo
Ondas, que eu já tentei nadar contra
Vocês me colocaram de joelhos
Oh, eu imploro, eu imploro e suplico, cantando...”
Clocks – Coldplay
Gustavo
Quando abri a porta do quarto que meu pai estava internado, a minha
primeira reação foi ficar em choque com o que vi. O homem deitado na cama estava
totalmente diferente da imagem que recordava dele. Nas minhas lembranças ele era
grande, mais ou menos do meu tamanho, talvez até mais alto, com o corpo forte e
bem construído e cabelos escuros iguais aos meus.
Na verdade, eu me parecia muito com o homem que ele foi anos atrás. Só
um único detalhe, eu puxei aos olhos castanhos da minha mãe. Meu pai tinha os
olhos azuis-escuros, tão intensos que pareciam um oceano. Lembrei-me de que,
quando eu era pequeno e estava aprontando, só bastava um olhar recriminatório do
meu pai para eu saber que estava encrencado, ele nunca nos batia ou gritava com a
gente, era só preciso olhar com aqueles olhos duros e sabíamos que depois teríamos
que nos explicar sobre o nosso comportamento. Isso bastava.
Éramos quatro crianças traquinas e saudáveis que corriam pela casa toda,
mas que sempre sabíamos ser educados quando necessário. Afastei o pensamento da
minha infância para não me trazer mais dor e aproximei-me da cama. A cada passo
que dava, meu coração acelerava mais contra minha caixa torácica, olhei-o mais de
perto.
Eu poderia até pensar que a recepcionista me indicou o quarto errado, que
este homem não era o meu pai, no entanto, assim que olhei para aqueles olhos azuis
em forma de oceano, tive certeza, esse era o meu pai. O homem que nos abandonou.
O herói que, de uma hora para outra, se transformou em vilão. O homem que um dia
amei como se ele fosse alguém imbatível, incapaz de nos fazer mal. Como fui
ingênuo.
Ele estava conectado a duas intravenosas, um tubo de respiração no nariz, e
uma máquina que eu não reconhecia, apitava a todo instante. A sua pele esverdeada
e seca cobria seu corpo cadavérico, cheio de ossos salientes como uma luva de
pelica de má qualidade. Fitei seu rosto abatido coberto de uma barba cinzenta e
profundas olheiras embaixo dos olhos. Com certeza, ele tinha a aparência de alguém
muito doente; quando me falaram que ele estava entre a vida e a morte, não estavam
brincando.
Limpei a garganta criando coragem e pensando em como ia começar a
questioná-lo sobre o passado. Respirei fundo e fiz a pergunta mais difícil da minha
vida.
— Lembra-se de mim? — perguntei lançando um olhar cético em sua
direção enquanto ele me encarou como se não pudesse crer que eu era real.
Meu pai afastou o tubo do rosto e olhou nos meus olhos.
— Sim, filho, nunca me esqueci de você... nenhum dia sequer. — Sua voz
estava rouca e fraca. Ouvi-la novamente depois de tantos anos me deixou
completamente consternado.
— O quê? — indaguei irritado. Esse cara só pode estar de brincadeira com a
minha cara.
— Filho, nunca me esqueceria de vocês, estou tão feliz que você está aqui.
Esperei tanto para te ver.
Dei um sorriso amarelo, tentando entender qual a sua intenção.
— Você ficou louco ou o quê? Você nos abandona por todos esses anos e
agora vem dizer que nunca se esqueceu de mim e dos meus irmãos? Eu não sou
idiota. Pode cortar a conversa fiada agora mesmo.
— Eu sei que você não é idiota, filho, e fico feliz por isso.
— Dá para parar de me chamar de filho? Você nunca esteve lá para mim.
Você não é nada para mim, além de um estranho.
— Eu sei, Guto, e sinto muito por isso — ele disse com a voz falha.
— Não me chame assim, nunca mais, você não tem mais esse direito. O que
você quer? Por que mandou me ligarem? Para começar, como conseguiu me achar?
— perguntei para ele com as mãos tremendo de tanta raiva. Como ele ousava me
chamar da mesma forma de quando eu era criança? Como se ainda tivesse
intimidade para isso.
— Filho, eu não quero nada seu. Te vi na tevê e pensei que seria bom me
despedir. — Uma lágrima escorreu dos olhos do meu pai.
Anos atrás eu me comoveria com aquilo, mas não hoje. Chantagem
emocional não vai me convencer de que está arrependido.
— Por que eu? Por que você procurou a mim? E não a meus irmãos? Ou a
minha mãe?
— Porque eu sempre soube que eles me perdoariam e você não.
— Você não tem ideia, não é? Você não sabe de nada... eu odeio você.
Sempre odiei, desde o dia que você foi embora nos deixando para trás. Ódio é a
única coisa que sinto em relação ao que você representa. O que você quer? Dinheiro
para te manter aqui nesse hospital? Sinto muito, mas procurou a pessoa errada, eu
até tenho a grana, mas prefiro gastá-la com quem se importa comigo, e não com
quem me abandonou quando eu só era um moleque e só reaparece quando está
fodido em cima de uma cama.
Senti as lágrimas lavarem o meu rosto, mas não consegui me controlar, sabia
que ele era meu pai, que estava em cima de uma cama correndo o risco de não sair
vivo dela, mas eu precisava falar. Meu peito estava doendo, como se uma mão
apertasse meu coração me sufocando. Não podia controlar minha raiva, são muitos
anos de mágoas e ressentimentos para agir cordialmente.
Precisava desabafar e dizer que não esqueci tudo que ele me fez. Ele era meu
pai, era dever dele prezar pela minha felicidade. Cuidar de mim, dos meus irmãos e
da minha mãe. E não fugir como um garoto imaturo atrás de aventura sem se
preocupar com quem ele estava deixando para trás com essa decisão. Senti-me
abandonado por todos esses motivos e nunca nem soube o porquê, me culpei por
não ser um bom filho, mas depois que cresci percebi que a culpa não era minha, e
sim dele que decidiu partir.
— Eu não acredito nisso, filho, você me ama, sempre me amou, se não,
nunca teria se dado ao trabalho de vir até aqui. Eu não preciso do seu dinheiro,
longe disso. Trabalhei todos esses anos para deixar vocês em uma situação
confortável. Por isso estou aqui, gastei toda a minha vida trabalhando para repor a
falta que vocês me faziam. — Meu pai tentou se levantar, mas foi impedido pelos
fios ao qual está conectado. Ele começou a tossir, mas isso não me afetou.
— Nunca precisamos do seu dinheiro, nem depois de morto isso aconteceria.
Minha mãe trabalhou duro para nos criar, e hoje eu e meus irmãos temos nossas
vidas planejadas, não precisamos de nada que venha de você. Acredite nas minhas
palavras quando digo que odeio você. — cuspi sem qualquer remorso, porque era a
verdade.
A máquina começou a apitar um pouco mais alto me deixando zonzo, senti-
me enjoado. Mas meus olhos continuaram travados nos seus, senti meu corpo tremer
pela força das minhas palavras. Sequei as lágrimas antes de uma enfermeira entrar
no quarto e começar a verificar meu pai na cama.
Ela pediu para eu esperar lá fora enquanto o examinava, porém eu já disse
tudo que tinha para dizer.
Assunto encerrado. Saí cambaleando para o corredor, simplesmente não
enxerguei nada ao meu redor, eu estava com tanta raiva, tanta amargura e
ressentimento que, se eu pudesse, bateria em alguma coisa. Vi uma lixeira, corri até
ela e vomitei tudo o que tinha no meu estômago. Isso foi demais para mim, vê-lo
naquele estado me dizendo aquelas palavras foi mais difícil do que imaginei que
seria. Comecei a me perguntar se ele morreu, será que ele está bem? Por que a
enfermeira pediu para eu sair? Será que ele vai morrer sem acreditar que eu não o
amo? Que ele não é o meu pai? Será que ele vai morrer porque vim até aqui? Eu sou
um maldito idiota! Mas essa é a verdade, não é? Eu o odeio. Quer dizer, isso é o que
eu deveria sentir, não é? Mas por que me sinto tão ansioso para saber se ele ainda
está vivo?
Esse assunto nunca estará encerrado, porra!
Sentei em um dos bancos da recepção do hospital, baixei a cabeça entre os
joelhos e tentei me acalmar respirando profundamente. Depois de alguns minutos, a
enfermeira que estava com meu pai me chamou. Eu fui até ela prevendo suas
palavras. O pânico em imaginar que ele poderia não ter resistido a minha visita me
deixou ainda mais angustiado.
Apesar de tudo, eu sou sangue dele. Não posso ficar feliz com a morte do
meu próprio pai; pelo contrário, sinceramente espero que ele fique bem, entretanto,
apenas fique longe de mim.
A enfermeira me lançou um sorriso bobo. O mesmo sorriso que as mulheres
me davam quando estavam interessadas. Azar o dela, porque não estava com cabeça
para isso.
— Agora ele está bem, só ficou nervoso. O Sr. Augusto está com a saúde
muito fraca para ter emoções muito fortes, então nada de assuntos delicados. Você é
o filho piloto de quem ele tanto fala?
— Hum... não sei. Não posso lhe responder quantos filhos ele abandonou
por aí — resmunguei baixinho ainda interpretando suas palavras.
— Garanto que não muitos. Seu pai fala muito de vocês, todas as pessoas do
hospital amam seu pai. Ele é meu paciente preferido, sempre tão sábio e amoroso.
Mas não o deixe saber que eu lhe disse isso, às vezes ele fica um pouco metido.
— Não sei porque está me dizendo isso. Só quero saber se ele ainda está
vivo.
— Ah, me desculpe, não quero lhe alongar. Bem, nós ligamos para você,
para que possa fazer o teste de compatibilidade para o transplante. O médico daqui a
pouco vai falar com você. — A enfermeira sorriu e saiu me deixando pensando no
que ela acabou de dizer. Teste de compatibilidade? Que merda é essa? Nem fodendo
irei doar meu rim para esse cara.
Um médico baixinho e careca se aproximou de mim e perguntou:
— Você é o filho do Sr. Luiz Augusto Salles, não é?
— É o que me dizem — confirmei irritado descontando minha frustração de
toda situação nele. Sei que eu era um idiota, mas estava muito puto para raciocinar
direito e, nesse momento, eu não queria ser o filho miserável de um homem
acamado.
— Me chamo Dr. Antônio Pontes e estou acompanhando o caso do seu pai.
Poderíamos ir até minha sala para conversarmos?
— Eu não sei em que posso ajudar, doutor.
— Vamos até minha sala, fica logo ali, lá conversaremos mais à vontade,
assim posso te explicar o porquê da nossa ligação — ele insistiu.
Mesmo sem vontade, eu o segui até seu consultório. O Dr. Antônio sentou-se
atrás de sua mesa e me fez um sinal para sentar na cadeira à sua frente. Comecei a
me sentir enjoado novamente, Santo Deus!
— Gustavo, descobrimos seu contato com uma revista de esportes que fez
uma matéria sobre você no mês passado, seu pai nos contou que você é piloto de
motocross. O Sr. Augusto tem muito orgulho de você. Ele coleciona todas as
revistas e jornais em que você aparece.
— Eu estava em Los Angeles para uma competição quando vocês me
ligaram.
— Eu vi que você ficou entre os cinco primeiros colocados, parabéns! Seu
pai ficou exultante de felicidade.
— Acho que orgulho não é o sentimento que ele nutre por mim, talvez culpa
possa se encaixar melhor. Eu realmente não sei em que posso ajudá-lo, como já lhe
falei anteriormente, nós não temos nenhuma relação afetuosa, o senhor me entende?
— Imaginei, mas quero que saiba que seu pai infelizmente está com os dias
contados se ele não fizer um transplante o mais rápido possível. Estamos correndo
contra o tempo e eu não sou um homem de desistir de meus pacientes. Estava
contando que você pudesse fazer um teste de compatibilidade para doar o rim ao seu
pai. Gustavo... — O senhor baixinho e calvo à minha frente me encarou com a testa
franzida, girando a caneta entre os dedos num gesto de impaciência. Ele respirou
fundo e continuou: — Não sei sobre o relacionamento de vocês, mas espero que
você entenda que a vida dele depende disso. — O médico concluiu fazendo questão
de frisar a palavra vida, como se isso fosse me fazer entender a necessidade de ele
ter me chamado até aqui.
— Eu não sei o porquê você espera isso de mim, doutor. Sei que o senhor
está fazendo seu trabalho, e admiro isso, mas é como lhe falei, não tenho nada a ver
com esse homem.
— Esse homem é o seu pai. Esse é o porquê eu espero que você faça o teste,
como também indique outros parentes para que também possam fazê-lo.
Fitei o médico ainda sem acreditar no que eu ouvi. Eu não podia fazer isso.
Não depois de tudo que ele nos fez passar.
— Dr. Antônio, eu respeito sua opinião, mas acho que não posso fazer isso.
— Fui curto e grosso, para deixá-lo ciente de que eu estava fora dessa
responsabilidade que ele queria jogar nas minhas costas.
— Pelo menos pense, Gustavo, pense que você pode deixar seu pai morrer,
caso não concorde em fazer o teste. É só um teste. Não tem nada certo ainda, e eu
não estou lhe pedindo o coração, é só uma parte do seu rim, isso caso sejam
compatíveis. — Ele sorriu fracamente para mim.
— E a fila de doação? Deve haver outra maneira, eu não vou fazer isso.
Como deve saber, sou atleta e não posso passar nem perto de um procedimento
como esse.
— Meu caro, reflita. Não acho que você viveria uma vida plena sabendo que
não fez o bastante para salvá-lo. A fila para transplantes no Brasil chega a durar dois
anos de espera para acharmos um doador compatível, e a fila tem cerca de trezentas
pessoas para esse tipo de órgão e não temos tempo para isso. Então, se você ou
alguém da sua família puder ser o doador será maravilhoso, além de que poderíamos
tirar a chance de salvar a vida de outra pessoa usando um órgão doado pelo sistema
tendo um parente compatível e legível para doar. Agora se você me der licença
tenho que atender outro paciente.
Saí da sala atordoado com toda essa informação, fui direto em direção à
saída do hospital. Preciso sair daqui. Preciso de ar. Preciso respirar. Andei pelas
ruas sem saber em que direção seguir, só queria andar e esquecer que essas últimas
duas horas aconteceram.
Avistei um café e entrei, pedi a garçonete um expresso. Sentei-me em uma
mesa próxima a rua e fiquei observando o vai e vem de pessoas. Será que a vida
delas tem tantos dramas como a minha? Arrependi-me de ter atendido aquela
ligação do hospital. Nada disso estaria acontecendo se eu não fosse curioso e tivesse
atendido a chamada do número desconhecido. O que eu estou fazendo aqui? É a
pergunta que não quer calar na minha cabeça. Agora tinha a responsabilidade da
vida de uma pessoa nas minhas costas. Começo a relembrar as palavras do meu pai.
Sim, filho, nunca me esqueci de você nem um dia sequer.
Ele só podia estar brincando comigo, como ele tem coragem de dizer isso na
minha cara, depois de tudo? Faz vinte anos que ele foi embora, porra!
Filho, nunca me esqueceria de vocês, estou tão feliz que você está aqui.
Ah! Ele só pode estar feliz, já que está contando que eu lhe dê um rim. Foi
por isso que ele me procurou, para eu ajudá-lo. Procurou a mim porque sabia que eu
era um fraco e seria mais fácil me enganar. Ele precisa saber que eu não sou um
idiota e não tenho mais sete anos.
A garçonete chegou com o café, me entregou e saiu rebolando querendo
chamar minha atenção. Estava tão confuso, que nem reparei no rosto dela.
Eu não acredito nisso, filho, você me ama, sempre me amou.
Não, eu não o amo, quem o amava era o garotinho de sete anos que pensava
que o pai era o super-herói incrível, que lhe protegeria das dores do mundo e sempre
estaria ali, perto. Daria qualquer coisa para não ter vivido esse dia, mas logo me
arrependo do que desejei porque hoje eu conheci a mulher mais linda que já vi na
vida. Liz, a garota com nome e cheiro de flor.
Imediatamente lembrei-me do mecânico e liguei para combinar o conserto
do carro, por sorte, o Sr. Jorge tinha a tarde livre e ficou de me encontrar no prédio
para fazer o reparo do carro.
Graças a Deus! Hoje mesmo terei meu carro funcionando, apesar de que não
me oporia a ganhar uma carona de Liz todos os dias.
“ Pegue minha mão, entrelace seus dedos entre os meus.
E nós sairemos deste lugar escuro pela última vez...”
Open your eyes – Snow Patrol
Liz
Gustavo entrou olhando ao redor do meu apartamento, reparando nas cores
frias das paredes em contraste com os quadros coloridos pendurados na sala. Meu
apartamento era pequeno, mas foi o que pude pagar nesta área da cidade. Eu mesma
o decorei, pintei as paredes de branco para destacar os quadros de flores coloridas
que meu pai pintou para mim. Quando ele me deu para enfeitar meu quarto, disse
que as cores lembravam minha alma colorida. Se meu pai soubesse que agora minha
alma deve ser cinza, fria e mórbida com certeza ele ficaria decepcionado.
Na sala, um sofá de três lugares azul-turquesa está de frente para o home
com uma tevê e meu tocador de vinil antigo, que consegui em um antiquário quando
me mudei para cá, a sala tinha uma bancada americana que fazia a divisão do
cômodo com a minha minicozinha. Tenho tudo que uma pessoa pode precisar para
fazer uma comida decente. O lugar era simples, mas tinha meu jeito em tudo.
Pedi a Gustavo para colocar as sacolas em cima do balcão da cozinha para
que eu pudesse guardar as compras.
— Seu apartamento é muito legal, adorei os quadros, parecem com você —
disse sorrindo encantadoramente em minha direção.
— O que você disse? — perguntei intrigada.
— Eu disse que os quadros me lembram de você. Quem é o artista?
— Meu pai os pintou — confessei um pouco sem jeito.
— Uau, ele é bom. Deixa eu te ajudar com essas coisas — Gustavo falou se
aproximando de mim na cozinha.
De repente, me peguei olhando dele para os quadros impressionistas, como
se estivesse assistindo a um jogo de tênis. Como ele foi capaz de ligar esses quadros
a mim? São apenas flores coloridas pinceladas em diversas formas, será que ele
também acha minha alma colorida como meu pai costumava dizer? Impossível, eu
só o tratei defensivamente até aqui.
O moreno bonito continuou tirando minhas compras das sacolas e colocando
em cima do balcão da cozinha, como se estivesse acostumado a essa tarefa.
— Ah! Pode deixar que eu faço isso, pode sentar que eu lhe sirvo uma taça
de vinho e conversamos sobre o seu dia, é para isso que estamos aqui — disse
pegando duas taças do armário.
— Não custa nada ajudar, você pode me servir a taça de vinho e eu continuo
te ajudando a guardar essas coisas.
Coloquei as taças na bancada e comecei a abrir as gavetas.
— Tudo bem, me deixa só achar o abridor. — Peguei o abridor de vinho na
gaveta, ele tomou-o da minha mão; quando nossos dedos se tocaram senti aquele
mesmo arrepio incomum que senti de manhã. Afastei minha mão rapidamente e
Gustavo abriu a garrafa de vinho sem esforço, como se fizesse isso todos os dias.
Serviu nossas taças e me ofereceu uma. Estendeu a taça dele em minha direção,
encostei a minha na dele para fazer o brinde.
— A vizinhança! — disse sorrindo.
Sorri de volta e tocamos as taças, o tilintar do cristal me arrepiou, tomamos
um gole e voltei a olhar em direção das compras tentando parar a sensação que eu
sentia desde que pus meus olhos sobre esse homem.
Guardei tudo de que não vou precisar para o jantar.
— O que vamos cozinhar? — ele me perguntou levando a taça à boca, eu
fiquei ali olhando para aquela cena tão mundana, mas que me fez pensar naquela
boca encostando em outros lugares que não fosse a taça. Queria muito aqueles
lábios no meu pescoço, beijando e mordendo a pele delicada. Deixando com a barba
trilhas de arranhões delicados.
Ah, meu Deus, Liz pare com isso!
— Ah, eu estava pensando em fazer uma massa com camarões e cogumelos,
mas se você não gostar ou for alérgico posso fazer outra coisa, trouxe um salmão
bem bonito. O que você acha?
Quando terminei de falar, ele estava sorrindo aquele sorrisinho cínico que
me deixava louca. Não sei o que era mais sexy, esse sorriso ou as mãos dele
circulando a borda da taça me fazendo ter pensamentos muito ruins com esses
dedos.
— Hum... adorei a ideia. Posso te ajudar, também sei cozinhar algumas
coisas.
— Ah... não precisa, posso cuidar disso. Por que não me fala sobre seu dia
enquanto arrumo tudo?
— Tudo bem, mas a louça é toda minha, faço questão. — Gustavo piscou
para mim e eu corei. Ele estaria flertando?
Peguei as panelas que ia precisar e coloquei a água no fogo para a massa.
Enquanto a água fervia, piquei os cogumelos, a cebola e o alho. Senti que ele me
olhava atentamente a cada movimento que fazia, o que me deixou bastante nervosa
e desconfortável.
— Então? — perguntei querendo tirar o foco de mim, pedindo para ele
começar a falar.
— Liz, você já teve que tomar uma decisão que iria mudar tudo a respeito
das suas convicções e do que é justo para você?
— Hum... não lido muito bem com grandes decisões. Sou uma pessoa alheia
a riscos. Mas as poucas que já tomei, foram assertivas — respondi sinceramente
olhando para ele.
— E se dessa decisão dependesse a vida de outra pessoa? — ele me
perguntou com os olhos brilhando; se a luz me ajudasse, poderia jurar que vi
lágrimas neles, o castanho âmbar queimava em ondas pela minha pele como um
eletrodo, dissolvendo qualquer possibilidade de uma resposta racional.
— O que você quer dizer com isso, Gustavo?
— Eu estou tão confuso, eu não sei o que pensar, Liz. Minha cabeça está
uma enorme confusão, e meus pensamentos não me levam a lugar nenhum.
— Você só precisa ser maior e mais forte que os seus medos, sei que parece
clichê, mas às vezes optar pela loucura é a melhor decisão a ser tomada. Nem
sempre a resposta está na razão. Se você quiser me contar, talvez eu possa te ajudar,
Gustavo, sei que a gente se conhece há menos de 24 horas, mas você pode confiar
em mim, afinal não conheço ninguém nessa cidade, então não poderia fazer fofoca,
pode ficar tranquilo. Eu só conheço a Cris, mas ela é muito minha amiga e não sou
muito de fofocar de toda maneira então...
Quando terminei minha divagação, ele pegou o meu braço fazendo-me virar
de frente para ele. Nós estávamos tão próximos que, se eu me afastasse uns
centímetros, estaríamos nos beijando. Gustavo olhou dentro dos meus olhos tão
intensamente que me derreti por dentro. Seus dedos apertaram suavemente um
pouco acima do meu cotovelo e um calor subiu pelas minhas costas causando
espasmos por todo o meu corpo. Como eu queria que ele me beijasse agora.
— Hum... Desculpe-me... eu é, eu... eu estava apenas divagando — gaguejei
como uma completa idiota. Mas não seria possível ser segura com as palavras,
quando tinha um homem como esse tão próximo, ainda mais com sua mão forte e
tatuada me segurando tão firme e deixando tudo formigando.
— Confio em você, Liz, desde o momento que pus meus olhos sobre você.
— Eu também confio em você, aliás, te convidei para o meu apartamento e
você bem que poderia ser um assassino em série e...
— Liz... — Gustavo me cortou falando meu nome de uma maneira tão forte
que me deixou sem ar nos pulmões. Nesse momento, eu já estava com a respiração
acelerada, meu coração parecia que estava tocando uma peça de Mozart de tão
intenso que batia.
— Oi — balbuciei.
— Você pode me dar um abraço? — Gustavo me pediu, e foi nesse momento
que eu achei que podia me apaixonar por esse homem, não hoje nem agora, mas
talvez futuramente, eu tinha certeza de que ele sentia que, se ele me beijasse, eu iria
retribuir, mas ao invés de um beijo, que qualquer outro homem no lugar dele
pediria, ele me pediu um abraço.
Como pode? Será que ele é gay? Ou apenas não faço seu tipo?
Comecei a pensar em várias possibilidades. Ele poderia simplesmente me
achava feia demais para isso e fora dos limites, ou talvez só me considerasse uma
vizinha qualquer. Mas, quando eu balancei a cabeça confirmando, Gustavo se
aproximou ainda mais de mim, passando um braço pela minha cintura me puxando
ao encontro do seu corpo, e o outro pelo meu pescoço. Eu o abracei também,
envolvendo minhas mãos pelos seus ombros e costas, meus dedos sentiram sem
qualquer dificuldade a massa de músculos tonificados do seu corpo, fechei os olhos
e me senti tão bem.
O calor do seu corpo contra o meu, a rigidez dos seus músculos contra a
maciez da minha pele era como um sonho. Senti-me segura e acolhida, como nunca
me senti antes, acho que eu estava precisando desse abraço tanto quanto ele. Mesmo
que eu não soubesse disso.
Tenho certeza que ele estava sentindo o trovejar das batidas do meu coração,
porque estávamos com nossos peitos encostados um no outro, barriga com barriga e
nossas respirações em sintonia. Inspirei fundo, e me deleitei do cheiro delicioso do
seu corpo, era uma mistura única de algum perfume amadeirado e cheiro de
Gustavo. Masculino e inebriante, tão único, tão especial.
Sua mãe esquerda se aninhou na minha nuca, enquanto a outra mão fez
círculos contra as minhas costas. Eu não queria sair do seu domínio nunca mais,
necessitava aproveitar esse aconchego. Faziam anos que ninguém me tocava tão
intimamente, e isso me fez perceber o quanto estava carente. Ficamos desse jeito
por não sei quanto tempo, mas assim que nos afastamos, eu tive certeza de que um
abraço foi pouco demais.
— Liz, esse foi o melhor abraço que eu já recebi em muito tempo —
Gustavo disse com um sorriso de canto a canto do rosto.
— Eu também gostei, um abraço é sempre bom, é comprovado
cientificamente. — Virei-me rapidamente para que ele não visse o quanto eu estava
constrangida e afetada com a situação. Percebi que a água já estava fervendo,
coloquei o talharim para cozer e comecei a lavar os camarões, que já estavam
descascados e limpos. Gustavo se aproximou e repôs o vinho nas nossas taças.
— Você mora sozinha, Liz? Você me parece tão misteriosa, fale-me um
pouco de você, estou curioso para saber onde seu namorado está em uma sexta-feira
à noite que não aqui ao seu lado, vendo-a cozinhar.
— Minha mãe mora em Curitiba, e como não tive irmãos, sou apenas eu —
respondo admirada da possibilidade de ele achar que eu tenho um namorado.
— E seu namorado onde está?
— Não tenho — respondi enquanto flambava os camarões com os
cogumelos.
— Isso é impossível.
— Por quê? — Fitei-o curiosa.
— Você é linda, interessante, bem-sucedida, cozinha incrivelmente. Nem
provei, mas posso prever porque o cheiro está divino. Então por que não teria um
namorado caidinho por você?
— Eu não sei. Nunca me importei com isso, não sei se tenho espaço para um
relacionamento deste tipo na minha vida — respondi secamente, o que era pura
mentira, sempre me perguntei o que havia de errado comigo.
Gustavo respeitou meu espaço e começou a me fazer perguntas sobre a
cidade, enquanto terminei de servir nossos pratos e organizei o balcão para que
pudéssemos nos sentar para comer, nunca deixando de me olhar com aquele sorriso
de canto de boca que eu “detestava”.
— Hmmm... está parecendo divino e o cheiro está fazendo meu estômago
roncar. — ele falou ao sentar-se de frente ao prato, mas antes puxou a cadeira para
mim. Tão cavalheiro... Gustavo agia como um príncipe à moda antiga, educado e
cuidadoso.
Ele deu uma garfada generosa na massa e levou-a à boca, dando um gemido
de prazer, fiquei boquiaberta, apenas observando e pensando como um homem pode
ser tão gostoso sem fazer esforço algum, apenas sendo ele mesmo. Gustavo
começou a comer punhados da massa, mastigando e gemendo repetidamente
alternando com um gole do vinho. Ele levantou os olhos e me pegou admirando-o.
— Você não vai comer? — ele perguntou quando terminou de mastigar.
Só aí que me lembrei de que tinha que começar a comer também, estava tão
mais divertido admirá-lo, engoli em seco e me preparei para começar a refeição,
assim que coloquei a primeira garfada na boca percebi que a massa realmente estava
muito boa, do jeito que meu pai fazia para mim: al dente temperado perfeitamente
com camarões suculentos e no ponto certo de cozimento.
— Você deveria ser chefe de cozinha, Liz — disse de boca cheia.
— Imagina, eu não cozinho tanto assim, só alguns pratos para sobreviver.
— O camarão está explodindo na boca de tão bom. E olhe que entendo de
comida boa, minha mãe é chefe no restaurante da minha família.
— Nossa, que incrível! — falei admirada.
Continuamos a comer e eu o peguei olhando para mim vez ou outra durante
a refeição com olhos compridos. Quando já estava satisfeita, levantei o olhar e vi
que o prato dele estava limpo. Além de lindo ele era bom de garfo. Sempre gostei de
pessoas assim, sem frescuras com a quantidade de calorias das refeições, sempre fui
do time de pessoas que comem pelo prazer.
— Liz, vou precisar me superar para cozinhar para você. Com quem
aprendeu? Você parecia tão à vontade com o que estava fazendo.
— Essa receita aprendi com o meu pai, ele me ensinou a cozinhar quando eu
tinha uns treze anos, era uma diversão para nós dois passar horas na cozinha
experimentando novas receitas.
— Ele deve ser um cara e tanto, um grande artista, um bom cozinheiro e,
pelo visto, um grande pai.
— Ele era incrível.
— Era? — Gustavo parou a taça a caminho da boca para olhar para mim
esperando a resposta.
— Ele morreu.
— Me desculpe, Liz, eu não quis ser indelicado — ele se desculpou,
Gustavo estendeu o braço sobre a mesa e alcançou a minha mão. Sua mão enorme
cobriu a minha e eu olhei admirada com a sensação de formigamento que esse gesto
causou na minha pele.
— Não precisa, não tem importância — comecei a me levantar para tirar os
nossos pratos, mas Gustavo me interceptou, ele levantou e me encostou contra a
cadeira para eu voltar a sentar.
— Eu falei que a louça é minha. Sente-se aí, posso fazer um café? Só precisa
me dizer onde encontro o pó.
— Está ali no armário na porta à sua direita.
Levantei-me e fui até o home e coloquei meu vinil da Ella Fitzgerald para
tocar, eu precisava relaxar e não tinha nada melhor do que um bom e velho disco. A
voz suave e sensual da cantora começou a encher o espaço cantando They can't take
that away from me. Sorri com a letra da canção.
— Ótimo gosto musical — Gustavo falou sorrindo enquanto colocou o café
na cafeteira.
— Amo essa canção, era a preferida do meu pai também, esse vinil era dele,
costumávamos ouvir música enquanto cozinhávamos. Desculpe, estou me sentindo
nostálgica nesses últimos dias com relação a ele, é bobagem minha — disse com a
voz embargada de melancolia.
— Não acho bobagem relembrar uma pessoa querida que se foi, isso é muito
bonito na verdade. — Gustavo piscou e voltou sua atenção à cozinha, começando a
lavar os pratos enquanto o café estava sendo feito.
Olhei para suas costas largas na camisa e para os músculos dos seus braços
sendo estendidos no processo repetitivo de ensaboar e enxaguar. O que significa
esses desenhos tão bem feitos em sua pele? Queria tanto contornar os traços com
meus dedos e sentir a textura da sua pele.
Meu Deus, como ele é lindo!
Assim que o café ficou pronto, levantei e servi duas canecas e lhe entreguei
uma, ele secou as mãos num pano de prato que tinha no ombro, pegou a dele e se
virou para mim.
— Você toma seu café com açúcar ou adoçante, Gustavo?
— Puro. — Ele definitivamente tinha personalidade.
Sentamo-nos no sofá, um de frente para o outro, apreciando a bebida quente
e deliciosa. A essa altura da noite, eu sabia que a garrafa de vinho que tomamos no
jantar tinha feito seu efeito, porque comecei a me sentir mais leve e mais corajosa de
acordo com o álcool sendo absorvido no meu sangue.
— Você sempre janta com suas vizinhas? — perguntei de supetão deixando
até eu mesma surpresa.
— Só as bonitas. — Ele sorriu me encarando com uma sobrancelha erguida.
— Só janta? — atirei de volta.
— Nem sempre.
O que ele quer dizer com isso? Eu não sou boa o suficiente para ele querer
mais do que apenas jantar comigo?
— Ah, o que acontece além da janta é antes ou depois do prato principal? —
perguntei sendo ousada como nunca fui.
O moreno na minha frente cravou os olhos em mim por cima da sua caneca
de café. Nunca fui olhada com tanta cobiça.
— O que você quer saber exatamente?
— Gustavo, você é gay? — questionei muito interessada na resposta. Meu
Deus, eu não perguntei isso, perguntei? O arrependimento me atingiu
imediatamente.
— O quê? — ele perguntou tossindo o café.
— Ah, me desculpe, não quis lhe deixar constrangido. Não sou
preconceituosa — tentei me desculpar.
— Não sou gay! De onde você tirou isso? — Ele me olhou atônito.
— Eu só pensei... — tentei explicar enquanto ele tirou a xícara de café da
minha mão, colocou-a no centro à nossa frente e me puxou para si. Mais uma vez,
eu estava com a respiração ofegante, implorando mentalmente que ele me beijasse
antes que a coragem de corresponder ao beijo passasse. Gustavo me olhou como se
fosse me devorar viva, dos seus olhos pareciam sair faíscas de fogo.
— Não, Liz, eu não sou gay. E se eu fosse fazer com você o que eu tenho
fantasiado desde que te vi naquele elevador, iríamos acordar os vizinhos do prédio
inteiro de tanto que eu ia fazer você gritar a porra do meu nome — ele disse
impaciente.
Imediatamente corei e fechei os olhos, suando e me perguntando se a minha
pergunta acordou o monstro dentro dele. Como ele falava uma coisa dessas assim,
soando tão sexy?
— Eu não quis lhe deixar constrangido — esforcei-me para me desculpar.
— Você está se perguntando isso por que não lhe beijei ainda, é isso?
Gustavo estava tão próximo do meu rosto que senti o hálito quente dele
esquentando as minhas bochechas.
— Não, eu só...
Gustavo pressionou os dedos nos meus lábios.
— Shhh... Eu só vou lhe beijar quando eu tiver certeza de que você será
minha, Liz. E isso vai ser em breve, não gosto de esperar pelo que eu quero.
Também não quero assustá-la, quero ser o cavalheiro que você merece.
Estremeci inteira com sua declaração, ainda cética pelo que ouvi. Em que
século ele acha que estamos? Que história é essa de ser dele? E ele me quer? Desde
quando?
— O jantar estava delicioso, obrigado. Agora acho que preciso ir tentar
organizar a bagunça que está meu apartamento.
— Ah, claro, obrigada por ter me ajudado com as sacolas e a louça. —
Levantei-me do sofá, caminhando até a porta. Ele me seguiu, abri a porta lentamente
já me sentindo triste por ele ter que ir, Gustavo me olhou com aqueles olhos cor de
mogno. Aproximou-se de mim e recuei para trás, ele me deixou acuada entre a porta
e a parede.
Gustavo colocou as mãos dos dois lados da minha cabeça e aproximou o
rosto do meu, acho que eu nunca estive tão perto de outra pessoa na vida, a
adrenalina percorreu minhas veias e essa proximidade foi tão desafiadora que me
senti um pouco mais viva. Ele encostou o nariz logo abaixo da minha orelha e
inspirou profundamente, como se quisesse ter certeza de que não se esqueceria do
meu perfume.
Virei geleia, mal podia sentir minhas pernas, só o formigamento entre elas.
Ele arrastou o nariz até minha bochecha e a beijou. Um beijo demorado, apenas
pressionou seus lábios macios contra minha pele, mas me deixou tonta.
— Tenha uma boa noite, Liz. — Gustavo sussurrou e saiu em direção ao
elevador. Fiquei parada completamente embasbacada admirando suas costas largas
até ele sumir de vista.
Desliguei a música, arrastei-me para o meu quarto, tirei toda a roupa e tomei
um banho gelado para apagar todos os pensamentos sujos que criei na minha cabeça
a partir desse beijo. Joguei-me na cama ainda com o roupão do banho e apaguei.
“Vim para te encontrar, dizer que sinto muito
Você não sabe quão adorável você é...”
(The Scientist – Coldplay)
Gustavo
Entrei no elevador tão excitado que tive certeza de que minhas bolas
estavam azuis. Precisei sair antes de cometer uma loucura, não queria assustá-la,
mas minha vontade era de arrancar aquela saia e devorá-la em cima do balcão onde
jantamos. E que janta!
Liz estava tão linda e sensual controlando as panelas, tão satisfeita com a
tarefa de cozinhar para mim. Como uma mulher incrível daquelas está sozinha?
Cozinha como ninguém, tem um corpo incrível, os olhos do azul mais límpido que
já pousaram sobre mim. E ainda era cheia de mistério e inocência. Como eu tive
vontade de puxá-la para o meu colo e chupar aquela boca até ela ver estrelas.
Aqueles lábios carnudos sugando a massa do garfo me fez imaginá-la usando-os
para outra coisa muito suja. Não sabia que observar uma mulher comendo fosse algo
tão sensual.
Nossa, Gustavo! Controle-se, homem!
Liz com certeza salvou o meu dia, depois de tudo que passei naquele
hospital, e a quantidade de feridas que foram arrancadas do cascão, eu estava
péssimo e ela conseguiu acalmar meu coração. Aquele abraço colocou mertiolate
em minhas feridas, que estavam sangrando e isso mexeu comigo. O cheiro que
exalava do seu corpo reconfortou a minha alma, Liz tinha o cheiro de um jardim
florido em um dia de sol na primavera, fresco e limpo, doce e viciante.
Como eu queria aquela mulher, queria sentir aquele cheiro para sempre,
olhar para aqueles olhos o máximo de tempo que eu pudesse. Sorri ao lembrar a cara
de embaraço dela ao ver o casal se beijando dentro do elevador, Liz tinha um pudor
de uma mulher inocente que não experimentou muito da vida. O que será que ela
conhece em um relacionamento entre um homem e uma mulher? Será que ela é
virgem? Afastei esse pensamento da cabeça, com certeza, ela não era. Liz já devia
ter uns vinte anos, idade suficiente para uma mulher ter tido alguns parceiros na
vida.
Entrei no meu apartamento, tirei a camisa, entrei no quarto, joguei o celular
na cama e fui para o banheiro, precisava de um banho frio urgente e de uma mulher
gostosa para me fazer parar de ficar obcecado pela minha vizinha, e porra, não fazia
nem um dia que conheci a garota. Saí do banheiro e me sequei com uma camisa que
encontrei na cama porque não tive coragem de achar a caixa com toalhas nessa
bagunça.
Deitei e apaguei.
— Guto, venha, seus irmãos já estão no carro — meu pai chamou das
escadas.
Calcei rapidamente meus tênis e corri. Hoje meu pai ia nos levar para
pescar. Eu e meus irmãos esperamos por isso a semana inteira, esse seria meu
primeiro dia de pesca com meu pai. Meus irmãos já foram, mas eu não. Estava tão
ansioso.
— Já estou indo, papai! — gritei descendo as escadas.
Minha mãe que já estava na porta da nossa casa, me beijou na cabeça, se
aproximou do meu pai e deu um beijo nele de despedida.
Entrei no carro onde meus irmãos já estavam brigando uns com os outros,
era sempre assim, Carolina, sempre cheia de manha, vivia reclamando com meus
irmãos mais velhos pelo lugar perto da janela do carro, ela nunca brigou comigo,
Carol sempre fez questão de dizer que eu era o bebezinho dela. Quando nasci, ela
tinha seis anos e sempre gostou de ajudar mamãe a cuidar de mim.
Meu pai se despediu da mamãe com um beijo demorado e entrou no carro.
— Crianças, se comportem! — minha mãe pediu.
Todos nós ,gritamos:
— Tá certo, mamãe.
Mamãe continuou acenando para nós enquanto nos afastamos. Pegamos o
caminho para o rio onde meu pai tinha um barco de pesca, o dia estava fresco e
com o céu cheio de nuvens claras, as nuvens me faziam lembrar algodão-doce. O
doce preferido de Thiago, meu irmão mais velho. Papai colocou seu CD favorito do
Raul Seixas para tocar e começou a cantar baixinho, eu e meus irmãos já sabíamos
as letras das músicas de tanto ouvi-lo cantar em casa com a minha mãe. Thiago,
começou a cantar com meu pai a letra da música, começamos a rir e, de repente,
todos no carro estavam cantando, inclusive eu.
Acordei assustado com meu celular tocando, o alcancei na cama ao meu lado
e atendi mal-humorado:
— Fala.
— É assim que você atende sua mãe, seu desnaturado?
— Mãe, me desculpe. Não sabia que era você. Estava dormindo, que horas
são? — Esfreguei os olhos.
— Já é hora de acordar, Luiz Gustavo, posso saber por que você não me
ligou para me dizer que chegou bem?
— Mãe, eu estive ocupado — justifiquei sabendo que fui um idiota em não
ter me preocupado em ligar, ouvir a voz da minha coroa era tão bom.
— Como sempre, Gustavo, você sempre esquece que tem uma família que se
preocupa com você, meu filho. Não custa nada ligar para sabermos como você está.
— Mãe, não quero brigar com a senhora agora, acabei de acordar.
— Filho, eu me preocupo, eu sou sua mãe e tenho direito de brigar com
você sempre que eu precisar. Mas não foi por isso que liguei, o Guilherme já enviou
sua Harley pela transportadora, eles ficaram de entregá-la hoje à tarde.
— Que bom, quase fico a pé ontem. Meu carro estava ruim e minha Harley
estava aí. Sorte que consegui uma carona com uma vizinha. Obrigado, mãe, por me
avisar, me desculpe por não ter ligado ainda. Estou perdoado, dona Carmen?
— Dessa vez vou deixar para lá, rapazinho. — Sorri pela reprimenda.
— A senhora não muda, mãe.
— Essa é minha função. Filho, como está a mudança? Já conheceu os
vizinhos então? Está gostando da cidade nova? Você sabe que pode voltar para
casa a qualquer momento, não é?
— Sei, mãe, está tudo bem. A cidade é ótima e os vizinhos também. — Sorri
ao lembrar-me de Liz, mas perdi a graça ao perceber que, em breve, terei que seguir
em frente sem ela. — Mas não vou ficar aqui por muito tempo — conclui.
— Fico tão preocupada com você nessa cidade desconhecida, mas já
deveria estar acostumada. Você nunca parou em casa. Posso dizer a sua irmã que
você virá para o batizado da Cléo? É daqui a três meses, filho.
— Ainda falta todo esse tempo, mãe, diga a Carol que irei.
— Graças a Deus, Guto, sua irmã não iria lhe perdoar se você não viesse,
estamos com saudade de você, Gustavo, agora me deixa ir, o restaurante já vai
abrir para o almoço. Te amo, filho.
— Um beijo, mãe, também estou com saudades. Assim que puder volto para
fazer uma visita. Dá um beijo no pessoal, te amo! — Minha mãe se despediu e
desligou.
Suspirei frustrado, não era justo com minha família toda distância que criei
deles. Não era certo descontar todo rancor que tinha do meu pai nas pessoas que
mais se importavam comigo nesse mundo, mas não me conformava que eles
pudessem ter esquecido algo que nunca vou poder deixar para lá.
Olhei para a hora: 10h48. Droga! Precisava organizar essa bagunça,
consegui esse apartamento com um amigo do meu técnico, que era corretor de
imóveis, graças a Deus ele já era mobiliado, a decoração bem sofisticada e jovem,
tons escuros de azul-marinho e marrom e detalhes cromados davam um charme no
lugar. Apesar de ser espaçoso e bem decorado, ainda precisava desempacotar um
monte de caixas com minhas coisas e ir ao supermercado comprar alguma comida.
Levantei, espreguicei-me e fui para o banheiro, um banho sempre era bem-vindo
para despertar, porque o dia ia ser longo.
Já no final da tarde consegui organizar a grande maioria das coisas, só me
restava algumas caixas de livros que irei desempacotar amanhã. O porteiro me
avisou que estavam entregando minha Harley Davidson. Desci um momento para
conferir e receber os papéis da entrega. Ainda tinha que ligar para a transportadora
americana para saber quando "minha bebê" ia estar aqui, estava ansioso para subir
na Rose e dar uns bons saltos. Não havia nada melhor do que o sentimento de
liberdade que era estar em cima da minha moto, o vento batendo no rosto, a lama
molhada agarrando em minhas roupas, o frio na barriga quando ia realizar as
manobras. Isso era felicidade!
Precisava voltar aos treinos o quanto antes, no próximo mês tinha outro
torneio para disputar. Essa era a minha vida!
“Eu estive ignorando este nó na garganta
Eu não devia estar chorando, lágrimas são para os fracos...”
What Now? – Rihanna
Liz
Acordei cedo, por algum milagre senti-me descansada. Isso era inédito em
um mês. Fazia tempo que não me sentia tão bem. Algo me dizia que foi o vinho, não
era acostumada a beber tanto assim, além de toda confusão que foi meu dia ontem.
Não parava de me perguntar se a noite de ontem foi real. Mas ainda podia
ver os olhos dele na minha mente. Sorri lembrando-me do nosso jantar e de como
ele deixou uma sensação diferente no meu peito, nunca me senti tão vulnerável
assim com nenhum outro homem. Mas rapidamente o encantamento pelo meu
vizinho gato se desfez e deu lugar a tristeza do dia de hoje.
10 de maio. Há dez anos minha vida mudou completamente e deixei de
acreditar em tudo que significa a palavra família. Nunca poderei esquecer meu
passado e as feridas que ainda estão sangrando por conta dele.
Levantei-me, fui ao banheiro escovar os dentes e depois à cozinha passar um
café. Diferente de anos anteriores, eu estaria chorando na cama lamentando tudo que
passou. Mas hoje não, não podia mais viver me lamentando, sentindo pena de mim e
de tudo que já aconteceu. Estou triste, é claro, mas não queria mais chorar, queria
ser forte, precisava ser forte. Precisava passar por esse dia da melhor forma possível.
Tomei meu café, e resolvi ler um livro. Uma ótima forma de fugir da minha
realidade. Como dizia Fernando Pessoa: "A literatura é a maneira mais agradável
de ignorar a vida", ele sabia das coisas.
Na hora do almoço, fiz um sanduíche rápido e voltei a ler. O livro era tão
bom que só percebi a hora quando meu celular começou a tocar e sabia quem era.
Corri para atender antes que Cris ficasse chateada.
— Oi, Cris.
— Oi, já está arrumada?
— Não está muito cedo? Não sei nem para onde vamos.
— Abriu um barzinho novo com música ao vivo aí perto, não se preocupe,
daqui a quinze minutos estou aí para te ajudar a se vestir.
— Ok, mas olha, Cris, não fique chateada se eu não quiser demorar muito.
— Liz, nem vem, você me prometeu, agora vá para o chuveiro e trate de se
depilar, não vou andar com um gorila do meu lado — provocou. Não resisti e
comecei rir, essa garota era louca, essa era a única explicação plausível.
— Cris, eu me depilo — rebati ressentida.
— Só estou brincando, em um minuto estou aí — falou divertida.
Ela desligou e continuei rindo, vi que eram 19h15. Corri para o banho,
esfoliei a pele, lavei o cabelo, depilei as pernas (para garantir não parecer um gorila
como Cris falou) e fui me trocar; quando estava vestindo a calcinha, a campainha
toca.
Cris entrou com um vestido curtíssimo de paetês prata, uma sandália na
mesma cor com saltos assassinos. Os cabelos negros e cacheados caindo nos ombros
como cascatas de seda. Ela estava linda como sempre.
Abraçou-me seguindo para o meu quarto tagarelando em como estávamos
atrasadas, não sei como ela respirava.
— Por que não abriu a porta com a chave que te dei? — perguntei.
— Acabei esquecendo na outra bolsa, só lembrei dentro do táxi. Mas deixa
para lá. Amiga, hoje é dia de brilhar... temos que te deixar ainda mais linda. — Ela
deu uma tapa na minha bunda e correu em direção ao guarda-roupa procurando
alguma coisa que eu não sei se terei coragem de vestir. Com um sorriso travesso, ela
pegou um vestido preto que comprei na internet e nunca tive coragem de usar e me
entregou. Ele tinha um jogo de mostra e esconde com transparências, as costas em
um decote tão profundo que nunca seria possível vesti-lo com sutiã.
— É esse. — Cris bateu palminhas de realização.
— Nunca vou vestir isso, é curto demais, estou pensando em dá-lo a você —
tentei fazê-la mudar de ideia.
Fui até o guarda-roupa e peguei um vestido de comprimento midi, lilás
rodado e mostrei a ela.
— Liz, você não é nenhuma senhora de cinquenta anos, e não está indo
trabalhar. É sábado à noite, quer parar de ser chata uma vez na vida? O vestido preto
está perfeito, e você precisa mostrar essas pernas lindas que tem.
— Tudo bem, você é um saco sabia, Cris? Agora se eu parecer uma vaca
gorda com esse vestido e todo mundo rir de mim, a culpa vai ser sua. — Fiz drama.
— Queria saber quem colocou isso na sua cabeça, garota, você é linda e seu
corpo é perfeito, juro que se eu não gostasse tanto de homem ia te dar uma chance.
Gargalhei e comecei a vestir o vestido que ela escolheu. Calcei um par de
scarpins vermelhos, e me olhei no espelho.
Ok, Cris tinha razão, o vestido era lindo e não me deixou tão gorda assim;
era curto, mas não ia ficar muito tempo em pé mesmo. Caprichei na maquiagem, fiz
um olho de gatinho com um esfumaçado com sombra preta e passei um batom
vermelho sangue que me deixou poderosa.
Quando me virei para Cris, ela sorriu de satisfação.
— Fofinha, você está linda! — elogiou, puxando-me em direção á porta.
1
— Calma, me deixa pegar uma bolsa. — Peguei uma clutch vermelha,
coloquei dinheiro, meu celular e saí.
Na portaria do prédio pedi para o porteiro pedir um táxi para nós, porque se
queria beber não serei a motorista da rodada. O porteiro nos olhou como se nunca
tivesse visto mulher na vida, totalmente embasbacado.
***
O táxi nos deixou em frente ao barzinho. Era um galpão antigo recém-
reformado numa rua movimentada do Centro de São Paulo. Com mesas na calçada
cheias de jovens bebendo, fumando e jogando conversa fora. Dentro do bar, as
mesas estavam lotadas, uma banda de rock cantava um belo cover do Coldplay, uma
banda britânica que eu adorava. Cris me puxou pela mão até a lateral do palco, onde
ainda restava uma mesa vaga. Sentamos e um garçom jovem, loiro e bonito veio nos
atender.
— Boa noite, garotas! Sejam bem-vindas, o que vão querer hoje?
Cris abriu aquele sorriso de quem estava aprontando algo.
— Oi, lindo, bem que você poderia nos trazer uma rodada de margaritas bem
caprichadas, não é?
O garçom sorriu olhando para ela como se quisesse levá-la para o depósito e
arrancar o vestido dela ali mesmo.
— Claro, já volto, garotas. — Ele saiu e eu a encarei.
— Cris, você estava dando em cima do rapaz? — perguntei.
— Não, só estava sendo simpática — respondeu com os olhos risonhos.
— Você disse que essa era a noite das meninas. E por falar nisso, cadê o Sr.
Modelo Internacional? — questionei querendo saber que milagre foi esse do
namorado dela não ter ligado milhares de vezes querendo saber onde ela estava.
— Não quero falar dele, nós demos um tempo.
— Sério? Acho que estou feliz por você — confessei tentando soar mais
sincera possível, porque realmente, sempre me perguntei como minha amiga era
capaz de viver um relacionamento daquele, cheio de falta de confiança e abusos.
— Eu sei que você não suportava o Daniel, mas eu o amava, Liz. Nossa
última briga foi horrível e eu não poderia aceitá-lo de volta.
— O que ele fez? — indaguei.
Os olhos de Cristina se encheram de lágrimas, ela piscou para mim e
começou a olhar sobre meu ombro para as pessoas no bar.
— Cris, você pode me contar qualquer coisa. Ele te machucou de alguma
maneira?
— Você não atendeu minhas ligações, Liz, eu precisei da minha amiga.
Nessa última semana, as coisas foram bem difíceis para mim.
— Sinto muito. Eu sou uma cretina, mas agora estou aqui. Conta-me, por
favor. Também não estava bem e achei que não seria boa companhia.
— Eu o peguei com uma modelo da agência que ele trabalhava. Fiquei
louca, eu amava aquele idiota. Ele ainda teve coragem de dizer que a culpa era
minha, porque eu trabalhava demais. Você imagina? Ser traída e ainda ouvir que a
culpa é sua? Fiquei arrasada, Liz. Dois dias depois, ele foi me procurar no meio da
noite, começou a bater na minha porta feito um louco. Tive medo dele amiga, medo
dele querer me machucar.
— Meu Deus, Cris! Por que você não chamou a polícia? Ele já havia te
machucado antes? Você deveria ter me ligado, eu iria até lá.
— Eu não podia ligar para a polícia, ia ser muito escândalo com os vizinhos,
e não queria lhe meter nessa confusão. Ele nunca me machucou antes, então abri a
porta para ele entrar e parar de gritar na minha porta e foi aí que percebi... —
Quando ela ia continuar a falar, o garçom voltou com nossos drinques, ele os deixou
na mesa e saiu sorrindo. Dessa vez, Cris não lhe jogou nenhum sorriso.
— Ele estava drogado de novo. Vinha percebendo que estava estranho,
mentindo, cheio de segredos, sempre precisando de dinheiro. Não sei como fui tão
burra.
— Oh, minha amiga, não acredito que você passou por tudo isso sozinha, eu
sinto tanto. Mas o que ele fez com você? Achei que ele estava limpo. — Apertei sua
mão.
— Ele estava fora de si, queria que o aceitasse de volta. Que transasse com
ele, eu estava enojada de toda a situação.
Percebi que algumas lágrimas escorreram pelos olhos da minha melhor
amiga, eu estava tão cheia dos meus próprios problemas que esqueci que não era a
única no mundo que precisava lidar com seus monstros diários.
— O que você fez, Cris?
— Eu tive que dormir com ele, eu estava com muito medo.
Meu Deus...
— Sinto muito. — Apertei ainda mais as mãos dela em cima da mesa. Que
raiva daquele idiota, como ele pode ter feito isso com a uma mulher que o amava
tanto? Ele precisa ser denunciado. Ele é um monstro.
— Liz, o pior é que gostei de transar com ele, mesmo drogado e violento, ele
estava ali comigo, de alguma maneira eu precisava dele. Precisava parar de me
sentir sozinha. De manhã, não conseguia me olhar no espelho, ele acordou e
começou a me pedir desculpas por ter vindo até minha casa àquela hora da noite e
eu não consegui dizer nada, todas as desculpas que já tinha ouvido antes ele repetia
para mim, aquilo foi a gota d'água. Apenas me levantei fui até a porta e a abri. Ele
entendeu o recado e saiu.
— Você o amava, não se sinta culpada por isso, ele te machucou
fisicamente?
— Só algumas manchas roxas pelos braços. Mas já passou. — Ela forçou
um sorriso, tomando um gole da bebida.
— Tem certeza? Você ainda quer denunciá-lo? Eu vou com você. Esse idiota
precisa pagar por isso, Cris! — perguntei preocupada.
— Não, Liz, a culpa em ter aberto a porta foi minha, eu sabia o que ele faria.
E Daniel não me procurou mais, então acho que já está em outra. Não vim aqui para
falar do passado e sim para me divertir.
— Nunca se culpe pelos erros dos outros, Cris.
— Podemos mudar de assunto? Já estou bem agora.
Concordei com a cabeça me esforçando a acreditar, levantamos nossas taças
e brindamos a nós por sermos capazes de passar por tanta coisa e por ter uma à
outra. Sabia que essa conversa ainda não terminou, mas agora não era o momento.
— Acho que precisamos de algo mais forte. Garçom, nos traga uma rodada
de tequila. — Ela pediu após algumas muitas margaritas depois.
A banda foi substituída por um DJ superanimado. O bar estava quente e
ainda mais lotado com o correr das horas. Depois que tomamos as tequilas, eu criei
coragem para dançar, eu merecia. Merecia ser feliz.
Fomos para o meio do bar onde já estava cheio de pessoas balançando os
corpos no ritmo da música. Fechei os olhos e me deixei levar, antes de tudo
acontecer sempre gostei de dançar. Sentia-me livre com meu corpo, sentia falta
dessa sensação, como também falta da garota que eu era antes daquele dia.
Mexi os quadris no ritmo da música enquanto Cris estava dançando com um
rapaz, sorri lembrando dela me dizendo que era a noite das meninas. Levantei os
braços e me soltei no ritmo da batida. Era disso que precisava. Com certeza estava
bêbada depois de alguns shots da bebida mexicana, as luzes do bar começaram a me
deixar zonza. Senti-me sufocada pela massa de corpos suados dançando juntos,
avisei a Cris que ia até o banheiro.
Saí me espremendo nas pessoas até o banheiro. Depois que me aliviei de
todo líquido ingerido, fui até a pia lavar as mãos e percebi o quanto estava suada.
Passei as mãos úmidas no pescoço para aliviar o calor e fui procurar a Cris. No meio
do caminho até a mesa onde estávamos sentadas senti meu celular vibrando na
bolsa, desbloqueei a tela e li uma mensagem de número desconhecido. Franzi o
cenho, porque nunca recebia ligações no meu telefone pessoal. Pouquíssimas
pessoas tinham meu contato, no primeiro momento pensei em ignorar, mas a
curiosidade falou mais alto.
Desbloqueei a tela e li:
DEVERIA SER PROIBIDO SER TÃO LINDA ASSIM.
Só pode ter sido o porteiro, deixei com ele meu telefone caso precisasse me
falar alguma coisa relacionado ao prédio. Ele não tinha o direito de distribuir meu
número por aí.
VOCÊ É LOUCO!
E VOCÊ É UMA DELÍCIA NESSE VESTIDO.
O quê? Como ele sabe o que estou vestindo? Minhas bochechas coraram
imediatamente e os pelos da minha nuca arrepiaram. Olhei ao redor tentando ver se
ele estava aqui me observando ficar mexida como uma colegial, não vi ninguém.
Como ele conseguiu me achar? Quem ele pensa que é? Algum perseguidor? Ele
acha que está sendo engraçado fazendo esse tipo de jogos? Desliguei o celular e
chamei Cristina para ir embora, ela insistiu que queria ficar mais um pouco com o
rapaz que estava dançando, mesmo sem achar uma boa ideia concordei em voltar
sozinha. Assim que nos despedimos eu saí.
“Olhe para as estrelas
Olhe como elas brilham para você
E para tudo o que você faz...”
(Yello – Coldplay)
Gustavo
Estava descendo as escadas da portaria do prédio na intenção de ir ao
supermercado, quando a vi subindo em um táxi com uma amiga. Jesus, o que era
aquele vestido? Liz estava totalmente diferente da versão profissional e recatada que
conheci ontem, agora ela estava vestida para abalar mundos e destruir famílias com
aquela roupa. Porque, com certeza, homens e mulheres comprometidos ou não,
gostariam de despi-la.
As costas de Liz estavam nuas até a cintura, a pele branca feito leite reluzia
contra a luz amarelada do poste da rua, a bunda estava coberta por apenas uma
mísera tira de renda, deixando as pernas torneadas e firmes completamente
expostas, pareciam infinitas por conta dos sapatos de salto vermelhos que ela
calçava, sexy como o inferno.
Vi ela subir desajeitadamente no táxi me dando um belo vislumbre de sua
bunda empinada e meu pau fez sinal dentro das calças, assim que o táxi se afastou,
corri novamente para dentro do prédio. Bati a mão no balcão da portaria e acabei
assustando o porteiro que estava distraído assistindo um jogo de futebol.
— Oi, amigo — cumprimentei tentando ser agradável.
— Pois não, senhor? — perguntou intrigado.
— Eu preciso de um grande favor seu, muito grande mesmo.
— Em que posso ajudá-lo, senhor? — o porteiro me perguntou curioso.
— Sabe aquela moça que acabou de sair em um táxi?
— Ah sei, é a senhorita Liz. — respondeu risonho e isso me irritou.
— Sim essa mesmo, na noite passada acabei esquecendo minha carteira no
apartamento dela. Será que você poderia me conseguir o número do telefone dela?
O porteiro hesitou e respondeu acanhado:
— Não sei, Sr. Gustavo, a senhorita Liz é uma moça de respeito, nunca
soube de nenhum homem que esteve no apartamento dela.
Santo Cristo! Será que ele não poderia cooperar?
— Ah, não é nada disso que o senhor está pensando, eu só a ajudei ontem
com as sacolas e tomamos um café juntos. E eu estou precisando muito da minha
carteira.
— Se é assim, só um momento, me deixe procurar. — Ele deu de ombros.
O homem vasculhou em um livro que imaginei ser o registro dos moradores,
anotou um número num papel e me entregou. Guardei o papel no bolso da calça e
agradeci a boa vontade dele. Decidi que mesmo enlouquecido por aquela loira, iria
manter meus planos de ir ao supermercado. Não tinha ideia de onde achá-la, o que
mais podia fazer?
Todo o caminho parecia que o papel no meu bolso estava queimando, resisti
até onde pude para não ligar para ela, mas queria vê-la. Queria saber onde ela estava
e com quem ela saiu. O pensamento de outros homens com as mãos na minha Liz
era aterrorizante.
Espera aí, Gustavo, ela não é sua namorada, vai com calma, isso é só uma
atração.
Frustração sexual, é isso que é, preciso urgente de uma mulher para resolver
essa coisa estranha que estou sentindo por aquela loira. Mas alguma coisa me dizia
que nenhuma mulher iria conseguir me tirar Liz da cabeça. Aqueles olhos, aquela
boca e aquele corpo precisam ser meus.
Cheguei ao supermercado com as mãos tremendo, fui colocando no carrinho
tudo que precisava, fazendo de tudo para chegar em casa mais rápido possível para
poder fazer alguma coisa a respeito dessa inquietação que ela me fazia sentir.
Precisava ligar para ela ou ia enlouquecer. No entanto, não queria atrapalhar sua
noite, ainda mais se ela estivesse em um encontro. Talvez encher a cara fosse uma
boa opção para esquecer que Liz podia estar sendo beijada e tocada por outro,
quando eu é que queria fazer tudo isso. Fui para o corredor das bebidas, peguei uma
garrafa de uísque e fui para o caixa.
Quando cheguei ao meu apartamento, guardei as compras e procurei um
copo para despejar uma dose de uísque, precisava me controlar. Precisava resolver
tantas coisas comigo mesmo, o problema do meu pai martelava na minha cabeça.
Esse deveria ser meu objetivo nesta cidade, resolver o meu passado deveria ser uma
prioridade para mim e ir embora na mesma velocidade que vim. Mas a imagem de
Liz naquele vestido não parava de me atormentar.
Ela é especial demais. O tipo de mulher perfeita para um homem manter,
construir um futuro, ter filhos, e não ser apenas mais uma na minha cama. Todos os
outros casos de uma noite ou no máximo duas foram medíocres, apenas uma
sucessão de rostos sem nome. Nenhuma delas me deixou estranho como estou me
sentindo desde que conheci Liz. Isso tinha que significar alguma coisa.
Não posso ligar para ela agora. Como explicaria como consegui seu
telefone? Ela vai me achar um stalker lunático.
Porra!
Onde Liz está? Daria tudo para ter essa resposta, talvez eu devesse ter
apenas seguido aquele táxi e ter estragado qualquer chance que ela tivesse de estar
com outro homem. Quem sabe eu não estaria mais aliviado?
Liguei o som e Coldplay começou a cantar melancolicamente.
Aqueles cabelos loiros brilhantes, os olhos expressivos, o perfume de flores,
a boca rosada e cada polegada de pele macia. Eram tantas características que me
encantavam que não conseguia decidir de qual delas gostava mais.
Porra! Ela está no meu sistema. Preciso vê-la e que se dane seu maldito
encontro.
Peguei meu celular, procurei o papel no meu bolso e disquei o número, não
tive coragem de apertar o botão para chamar. Toda minha coragem desapareceu,
talvez fosse melhor uma mensagem. Pensei em mil maneiras de escrever algo que
fosse engraçado e não parecesse perseguidor demais. Nunca fui tão inseguro na
vida, era mais fácil fazer um salto a metros do chão em cima da Rose do que tomar
uma decisão do que fazer para fazê-la minha.
Droga!
Será que ela passou mal novamente? Deixei o celular desligado para ela não
me ligar enquanto eu estivesse no hospital e eu ter que inventar outra mentira. Fui
para casa.
“Todas as coisas que quero dizer
Não estão saindo direito
Estou tropeçando nas palavras, você deixou minha mente girando
Eu não sei aonde ir a partir daqui...”
You and me – Lifehouse
Liz
— Liz? Está tudo bem? — Matheus perguntou me ajudando a ficar em pé.
— Sim, é só um enjoo.
Ele olhou para a caixa que eu segurava.
— Liz, você está suando. Estranho, o dia hoje está tão frio. Você tem certeza
de que está bem, quer que eu te leve até seu carro? Você parece pálida.
— Não estou com meu carro, Gustavo me trouxe, estou tentando pegar um
táxi. Mas todos estão ocupados. — Soltei um suspiro frustrada.
— Essa caixa é o que eu estou pensando que é? — Matheus me lançou um
olhar especulativo.
— Ah... sim, acabei de pedir demissão do trabalho.
— Sinto muito, tem algo que posso fazer para te ajudar? Um táxi neste
horário será um milagre. Se quiser posso te dar uma carona.
— Você faria isso? Faz um tempo que tento chamar um táxi e todos me
ignoram.
— Claro, Liz, estou indo vistoriar uma obra, não seria nada de mais ajudá-la.
— Obrigada.
Matheus me ajudou com a caixa contendo meus pertences até entrarmos no
seu carro, peguei um limão na minha bolsa e comecei a cheirar, ele me olhou de
canto de olho estranhando, mas o ignorei, o cheiro cítrico da fruta foi aliviando o
enjoo.
— Liz, vou sentir falta de te ver todos os dias — Matheus falou sorrindo.
— Ah, nos vemos por aí em breve, não precisa se preocupar, São Paulo não
é tão grande assim.
— Olhe que sou bom em encontrar pessoas — ele falou divertido.
Sorri pela graça, e continuei olhando os carros passando ao nosso lado para
afastar a lembrança do enjoo. Meu estômago continuou dando voltas, rezei baixinho
para chegar logo em casa. Cada vez que parávamos em um sinal sentia que ia
morrer.
— Você parece chateada — Matheus sondou, curioso.
— E estou, mas vai passar.
— Quer falar sobre isso? — sondou.
— Não, agora não. Senão vou voltar a chorar e isso é tudo que não quero.
— Foi tão horrível assim o que aconteceu lá?
— O que me fez tomar essa atitude foi horrível, mas mesmo assim estou
ponderando se fiz a coisa certa.
— Não sei o que houve no escritório, Liz, mas sei que o que quer que tenha
sido não merece as suas lágrimas.
— Obrigada, Matheus. — Sequei uma lágrima e me esforcei para ser forte.
Vinte minutos depois, Matheus estacionou na frente do meu edifício. Antes
de destravar as portas para que eu pudesse descer, Matheus abriu o porta-luvas
pegou um cartão de visita e estendeu para mim.
— Esse é o número do meu telefone. Caso precise de alguma coisa não
hesite em me ligar, ok? Gosto muito de você, Liz, espero que seja feliz.
Fiquei envergonhada em recusar, peguei o cartão e coloquei-o na bolsa, não
tinha nada de mais em ter o telefone de um amigo. Agradeci sua gentileza em me
trazer e subi, depois de prometer sempre ligar para dar notícias.
Fui direto para o apartamento de Gustavo, sua casa se tornou tão familiar
para mim que, às vezes, preferia ir para lá, a subir mais dois andares até o meu
apartamento. Sua casa me mantinha perto dele, mesmo que fosse apenas uma
sensação. Entrei com a cópia das chaves que ele me deu no dia seguinte de ser
informada que estávamos namorando. Só de lembrar desse dia tenho vontade de rir.
Tirei os sapatos e olhei em volta do apartamento, ele não estava aqui. Fui até
a cozinha, tomei um remédio para enjoo, coloquei uma roupa mais confortável e
deitei na sua cama. Quando estava quase cochilando, o telefone residencial tocou
me assustando. Ninguém nunca ligava neste número, senti um calafrio atingir minha
espinha, isso era um mau sinal, comecei a pensar em quem ligaria para esse número.
Corri até o aparelho e atendi.
— Alô? — perguntei apreensiva.
— Olá, bom dia. Aqui é do Hospital Santa Cecília, eu poderia falar com o
Sr. Luiz Gustavo, por favor. — Uma voz feminina falou do outro lado da linha.
Hospital? Meu coração acelerou. O que será que houve?
— Aqui é a noiva dele, ele não está em casa. Aconteceu alguma coisa?
— A senhora pode lhe passar um recado?
— Claro.
— Avise a ele para não esquecer de vir pegar o resultado de seus exames.
— Exames? — perguntei sentindo todo meu corpo tremer.
— Sim, obrigada — A moça falou e desligou.
Fiquei tentando compreender o que ela quis dizer com exames. Recordei-me
de que, quando dei uma carona a ele no dia que nos conhecemos, deixei-o em frente
ao hospital Santa Cecília, provavelmente não era nada de mais. Talvez fossem
exames de rotina que ele precisou fazer para as competições esse mês. Ou será algo
sério que ele não tenha me contado? Minha cabeça começou a fazer mil suposições.
Mas não podia tirar uma conclusão precipitada, Gustavo nunca me esconderia algo
sério sobre sua saúde, até porque nunca percebi nada que me levasse a suspeitar que
ele estava doente. Enchi um copo d'água na cozinha e sentei-me no sofá. Fiquei sem
saber no que pensar, minha cabeça estava atordoada de problemas. E agora mais
essa pulga atrás da minha orelha. O que o hospital queria com ele?
Deus! O que mais precisa acontecer para piorar o meu dia? Perdi meu
trabalho, eu não o amava, mas era o que pagava minhas contas e o que me mantinha
próxima das crianças no orfanato. Como vou pagar as dívidas do mês? Vou precisar
entregar o meu apartamento. Onde irei morar? Não sei o que farei com as despesas
do casamento e do bebê. Tinha algum dinheiro na poupança devido a todos os anos
em que fui controlada, mas esse dinheiro não dava nem para manter meu
apartamento por três meses de aluguel. Meu chefe sempre pagou mal, nunca sobrou
muito para guardar.
Minha cabeça ia explodir!
Quando estava travando uma batalha entre como conseguir um novo
emprego e pagar as contas, a porta se abriu para um Gustavo desesperado, seus
olhos estão vermelhos e seu cabelo estava mais despenteado do que o normal.
— O que houve? — ele perguntou correndo em minha direção e me
abraçando apertado.
— Ei, estou bem — disse tentando acalmá-lo.
— Você estava chorando? — Gustavo me examinou.
— É uma longa história...
— Conte-me, tenho tempo para ouvi-la. — Gustavo se sentou ao meu lado
no sofá.
— Contei ao meu chefe sobre o bebê e ele disse coisas horríveis, e insinuou
que o bebê poderia ser de um dos clientes, você acredita? Ele deixou claro que não
havia espaço na empresa para mim, porque eu estava esperando um filho, aí eu
surtei. Como ele pode dizer algo assim, quando trabalhei feito uma louca naquele
escritório? Ele só precisava me liberar uma vez ou outra no mês para que eu fosse às
consultas do pré-natal, e o desgraçado simplesmente fez eu me sentir uma vadia,
quem pode fazer isso com alguém que acabou de descobrir que está gerando uma
vida? Ele disse que eu era burra por interromper minha carreira, me acusou de ter
um filho bastardo de algum homem casado, porque ele não viu uma aliança no meu
dedo. — Comecei a chorar novamente, como a manteiga derretida que me tornei
nesses últimos meses. Só de me lembrar da cara de nojo do senhor Estefan, meu
estômago embrulhou e eu tive mais vontade de chorar.
— Liz, como esse idiota teve coragem de te falar algo assim? Eu vou
quebrar a cara desse palhaço! Ele nunca poderia ter dito algo tão horrível sobre você
e, principalmente, sobre o nosso filho. Eu vou voltar lá agora e destruir a cara dele,
ele tem que respeitar a minha mulher. Vou mostrá-lo que ele mexeu com quem não
devia! — Gustavo gritou com as veias do pescoço saltadas, as narinas dilatadas e os
olhos escuros, tomado de ódio.
— Não!!! — Segurei seus ombros. — Não vá, eu disse tudo que estava
entalado na minha garganta, ele ouviu poucas e boas antes que eu saísse.
— Liz, ele foi longe demais.
— Depois que gritei com ele, juntei minhas coisas e vim embora, mas eu não
devia ter feito isso, eu me precipitei.
— O quê? Eu não ia deixar você trabalhar com aquele imbecil, Liz. Que tipo
de homem eu seria? Você agiu certo em vir embora.
— Meu amor, você não está entendendo. Agora não tenho como pagar
minhas contas, terei que devolver o apartamento, e tem as despesas com o bebê e
com o casamento. Esse foi o pior momento para isso acontecer — disse secando as
lágrimas com as costas das mãos.
— Porra, Liz, eu sou um homem! Nós vamos nos casar e você está com meu
filho na barriga. Você acha mesmo que eu ia aceitar seu dinheiro? Meu dinheiro
agora é nosso, eu ganho uma pequena fortuna dos meus patrocínios mensalmente,
dará suficientemente para vivermos. Economizei bastante grana ao longo dos anos,
isso não será um problema para nós. E mesmo se fosse, eu sou um homem, eu iria
trabalhar para sustentar você e nosso filho e dar a vida que vocês merecem.
— Eu não quero depender de você. Nunca dependi de ninguém, sempre fui
independente... Sempre andei com minhas próprias pernas... me orgulho disso —
disse muito triste por estar nesta situação, mas muito admirada da sua generosidade
e caráter em não me desamparar.
— Ei, pare de chorar. Pra que andar com suas próprias pernas se posso te
carregar no colo? Venha cá, esse idiota perdeu a melhor funcionária que ele tinha e
terá na vida. — Sentei em seu colo encaixando meu rosto em seu pescoço.
— Sempre fui sozinha, é estranho poder contar com alguém. É horrível a
sensação de não ter mais um salário no fim do mês.
— Você nunca mais estará só, Liz. Agora somos eu, você e nosso filho.
Acho que, enquanto você estiver grávida, vai ser difícil conseguir outro emprego,
mas quando o bebê nascer tenho certeza de que conseguirá uma oportunidade ainda
melhor. Pense pelo lado positivo, poderemos organizar a chegada do bebê e os
preparativos do casamento com calma. Também poderá me acompanhar nas
competições desse mês, teremos mais tempo juntos, teremos mais tempo para
sermos felizes.
— Você sempre vê o lado positivo nas coisas. Amo você.
— Também amo você, Liz, você e nosso filho são minha prioridade agora.
Espere, tenho duas coisas para lhe dar. — Gustavo se levantou e caminhou até o
quarto, ele voltou segurando a sacola que o vi comprando em Minas Gerais.
— Tome, abra. — Ele me estendeu o pacote. Peguei, abri a embalagem e
meus olhos se encheram de lágrimas quando vi o palhacinho de tecido que vi na
lojinha de artesanato, lá em Belo Horizonte.
— Que lindo! — Abracei o boneco e sorri para ele agradecida. Ele comprou
o primeiro brinquedo do nosso filho ou filha.
— Eu vi que você gostou dele na loja, esse é o primeiro presente do nosso
bebê. Eu queria ser o primeiro.
— Eu amei, meu amor, é lindo. Tudo que você tem feito por mim é perfeito.
— Mas tenho outra coisa para você, o que o idiota do seu chefe falou sobre
não ter uma aliança no seu dedo era só uma questão de tempo. Eu estava procurando
a melhor ocasião, mas não vejo melhor momento para isso do que agora, pensei em
propor-lhe em uma situação mais romântica, mas não sou muito de seguir
protocolos, você deve ter percebido pela forma que entrei na sua vida, de repente e
tomando conta de tudo. — Gustavo fez uma pausa, respirou profundamente e
segurou meu rosto com ambas as mãos, me fazendo olhá-lo dentro dos olhos e
depois continuou: — Quero que saiba que estou inteiro nisso, eu quero você, Liz.
Quero nossa família, quero acordar todos os dias ao seu lado, quero que você tenha
meu nome, quero ser tudo que você precisa e com quem você pode contar. Quero
ver nosso bebê crescer, e que você esteja comigo em todos os momentos. Vocês
foram as melhores coisas que aconteceram na minha vida. Você, Liz, foi uma
exceção no meio de tanta gente sem sentido que a vida me fez conhecer, você me
fez acreditar que é impossível ser feliz sozinho, que amar pode ser a coisa mais
gratificante quando se é amado de volta. Seu amor me transformou em um homem
melhor. E por isso eu quero saber se você quer ser minha, mesmo sabendo que eu
não tenho um diploma para pendurar na parede, que sou um bruto tatuado que ganha
a vida arriscando o pescoço em cima de uma moto, mas que é cheio de esperança e
te ama como um louco. E é com muita esperança que te pergunto: Você aceita casar
comigo?
Oh, meu Deus! Eu preciso responder?
Pulei em seus braços e o abracei tão apertado quanto pude. Eu o amava
tanto, sentia como se cada fibra do meu corpo dependesse dele para continuar em
funcionamento, eu não poderia mais negar, ou criar desculpas, logo eu, Liz Maria
Albuquerque, a mulher que se vestia de indiferença e fingia todo esse tempo não ter
sentimentos, se apaixonou perdidamente e não pode mais viver sem isso, sem
Gustavo, sem o meu motoqueiro.
— Eu te amo, tanto, tanto — confessei contornando seu rosto perfeito com
meus dedos, prendendo meus olhos nos seus.
Gustavo me lançou seu melhor sorriso, aquele sorriso que fez com que me
apaixonasse por ele, aquele sorriso sexy que destruiu qualquer barreira que criei a
minha volta, e é como se na vida nada mais importasse, se eu apenas tiver esse
sorriso lindo todos os dias sei que ficarei bem. As lágrimas que antes eram de
tristeza e frustração por ter perdido o emprego, agora são de felicidade por Deus ter
colocado na minha vida um homem tão perfeito. Meu Gustavo.
— Isso é tudo que eu preciso — disse deixando as lágrimas lavarem meu
rosto.
Gustavo me abraçou tão forte que senti as batidas do seu coração contra o
meu peito, ele se afastou e tirou uma caixinha azul de veludo do bolso, abriu a
tampa e me mostrou um anel de ouro branco com uma pedra oval de um azul tão
claro e límpido que nem pude acreditar que fosse real, fiquei de boca aberta e com
as mãos tremendo sem saber o que fazer.
Ele tirou a pequena esfera brilhante da caixinha, alcançou minha mão direita
e deslizou-o no meu dedo. Cobri a boca com a mão livre, sem poder conter minha
emoção.
— Eu pensei em lhe comprar um diamante, mas quando vi esse anel com
essa turmalina paraíba azul da cor dos seus olhos, eu não resisti. Ele tinha que ser
seu. Quando você acorda e abre os olhos para mim é como se eu visse em seu rosto
duas pedras como essa, tão claras e profundas que tenho vontade de mergulhar neles
e nadar em direção a sua alma.
— Meu Deus... — choraminguei.
— Você gostou? — ele perguntou beijando minha mão onde colocou o anel.
— Meu amor, eu estou sem palavras. É perfeito, você é perfeito... eu te amo
tanto. — Beijei-lhe os lábios delicadamente como se a qualquer movimento eu
pudesse quebrar aquele encanto que estávamos vivendo.
Gustavo me pegou no colo até o quarto, caímos na cama e fizemos amor, o
mais puro e sublime amor. Lento, sem pressa, apenas dando e recebendo prazer,
para selar nossa felicidade e nossa promessa de pertencermos um ao outro pelo resto
da vida e de toda a eternidade. Porque o que sentia por Gustavo com certeza não
será suficiente ser vivido em uma única vida, mas em milhares de vidas depois
desta.
Depois de um banho delicioso de banheira deitamos no sofá abraçados,
Gustavo conectou o celular no sistema de som e ficamos escutando nossas músicas
preferidas do Coldplay, apenas sentindo o calorzinho um do outro, neste dia frio de
São Paulo.
— Minha flor? — Gustavo falou depois de algum tempo.
— Hum? — gemi sonolenta.
— Como veio para casa? Você pegou um táxi?
— Não, na verdade passei mal quando saí do escritório e o Matheus me
ajudou me oferecendo uma carona.
— Quem? — ele exclamou desfazendo o semblante sereno para dar lugar ao
desespero, como se eu tivesse dito que peguei uma carona com um chefão da máfia
russa.
— Matheus me deu uma carona, seu telefone só dava desligado e eu estava
passando mal. O que foi, meu amor? Foi apenas uma carona, eu não conseguia um
táxi.
— Nada, eu só não gosto daquele idiota! — Gustavo apertou ainda mais seu
domínio sobre mim.
— É, mas o idiota me socorreu quando você não estava lá. Matheus me
ajudou, você deveria ser grato por isso.
— Liz, me desculpe. Eu estou sendo um ogro possessivo — Gustavo falou
me beijando na bochecha.
— Por que você não confia em mim? Será que sempre vamos voltar a bater
na mesma tecla?
— Me desculpe. Nunca estive em um relacionamento sério com ninguém,
você precisa ter paciência comigo. Eu não sei se estou fazendo certo, eu só quero ser
bom para você e acabo me atrapalhando. Tenho tanto medo de perdê-la que termino
enfiando os pés pelas mãos e me atrapalho todo. Me desculpe... — Gustavo suspirou
pesarosamente e passou as mãos pelos cabelos, livrando-os da testa.
— Claro que você está fazendo tudo certo, só precisa ser um pouquinho
menos ciumento. Tudo bem? Eu também estou aprendendo.
— Vou tentar. — Ele beijou minha têmpora.
— Ah Gustavo, já ia esquecendo. Ligaram para cá ainda agora — lembrei.
— Quem era? Ninguém liga nesse telefone. — Gustavo franziu a testa
curioso.
— Era do hospital Santa Cecília, pediram para você ir buscar seus exames.
Está tudo bem com você? — perguntei apreensiva, vi o semblante de Gustavo
rapidamente mudar.
— Claro — exclamou.
— Exames de rotina? — sondei desejando que ele me falasse mais sobre o
assunto.
— Sim, me esqueci de ir buscá-los. Agora vem cá, não quero falar disso,
quero beijar minha futura esposa — respondeu me puxando para um beijo
devastador.
Minutos depois, não lembrava nem do meu próprio nome.
***
Os próximos dias foram tranquilos, as manhãs sempre enjoadas e as tardes
de muita fome, sem falar nas mudanças de humor repentinas, mudava do estado de
choro a sorrisos em questão de segundos. Gustavo estava sendo um príncipe em
lidar comigo e meu turbilhão de hormônios. Nunca imaginei que estar grávida fosse
tão louco.
Todas as tardes Gustavo ia para o sítio treinar, o que me deixava com um frio
na barriga durante todo tempo que ele estava fora. Ficar desempregada e sozinha em
casa me dava muito tempo livre para me preocupar, o bom é que ele sempre
chegava suado e com as botas cheias de lama, o que me deixava muito excitada. Às
vezes, eu o acompanhava nos treinos, levava uma manta grossa, travesseiros,
lanches e bebidas, deitava sob a sombra do velho carvalho e lia um livro enquanto
ele fazia suas voltas. Dudu sempre estava por perto, então nunca mais pudemos
repetir a nossa cena sobre a moto, mas me contentava em apenas vê-lo correndo e
voando alto no céu. Nunca pensei que lama e suor me deixasse tão louca.
No próximo fim de semana, ele tinha uma competição no Rio e por isso
estava tão focado nos treinamentos, e eu estava animada para poder conhecer a
cidade e aproveitar as praias ao lado do Gustavo. Ele estava pirando só porque
comprei um biquíni novo para a ocasião e desfilei com ele pela sala para saber sua
opinião.
Cris me ligava todos os dias, ontem almoçamos juntas e ela me contou que o
ex-namorado viciado em drogas não lhe procurou mais desde aquele fatídico dia, o
que me deixou muito mais tranquila porque aquele cara não era de confiança. Ela
também me disse que estava acompanhando o casal Sherman no processo de
adoção, sei que ela fará o possível para ajudar o Ricardo, ele merecia conseguir a
guarda do Samuel.
Gustavo tem sido muito parceiro e amoroso, nossas vidas pouco a pouco
foram se encaixando, terminamos a mudança das coisas do meu antigo apartamento
ontem, trouxe tudo que dava, o restante dos móveis e utensílios doei ao abrigo. Os
quadros que meu pai me deu Gustavo fez questão de colocá-los na sala e um deles
no quarto, ele disse que queria acordar e poder ver as flores que o fazia lembrar-se
de mim.
Fofo, não é?
Dona Carmen ligava todos os dias para saber como eu queria os detalhes do
casamento, pelo bom gosto dela, tinha certeza de que seria uma festa linda, ela e
Carol ficaram de vir na próxima semana me ajudar a escolher um vestido
juntamente com Cris. Também nos falamos no Skype para conversar sobre os
preparativos, minha sogra e minha cunhada estavam ensandecidas com todos os
detalhes. Carolina parecia querer se redimir pela forma que me tratou no primeiro
momento, decidi que sempre era melhor tê-la como amiga, do que como inimiga.
Carolina era irmã do homem que eu amava, eu precisava me dar bem com ela.
Jurei que não ia me tornar uma noiva enlouquecida, mas as borboletas
voando no meu estômago constantemente não me deixavam esquecer que em
questão de dias veria meu motoqueiro em pé no altar, lindo como um príncipe
encantado, esperando por mim, quer dizer, esperando por nós.
“Só agora eu sei o quanto
A minha vida e o meu amor
precisam permanecer
No seu coração e na sua mente
Eu estarei com você por todo o tempo...”
Wherever you will go – The Calling
Gustavo
Quando entrei em casa aquele dia e vi Liz me olhando com o rosto inchado
de tanto chorar, eu sabia que algo estava errado. Saber que ela perdeu o emprego por
estar grávida do meu filho me deixou puto. Como aquele idiota foi capaz de fazer
uma coisa dessas? Liz sempre foi uma excelente funcionária, sempre trabalhava
além do seu horário para agradar aquele imbecil e ainda trazia trabalho para casa.
Faltou-me pouco para ir naquele escritório e lhe encher de pancada, pensando bem
agi certo em ouvir Liz e não ir enfrentá-lo.
O cara era advogado e não seria bom para a minha imagem sair por aí
batendo nas pessoas, com certeza a notícia repercutiria na imprensa e eu perderia
meus patrocínios, o que seria uma merda. Só ia ser mais confusão, e eu estava
querendo me livrar de problemas, já estava cheio deles. Mas estava disposto a
qualquer coisa para proteger minha mulher. E faria se ela não tivesse me pedido
para ficar.
Vê-la ali tão triste e sentindo-se derrotada, só me deu mais coragem de pedi-
la em casamento. Comprei o anel assim que soube da gravidez, só planejava fazer o
pedido em outras circunstâncias. Quis esperar o momento certo, eu tinha planejado
levá-la para jantar em um lugar bacana e finalmente fazer o pedido oficial,
entretanto, não poderia ter sido um momento melhor, o olhar de admiração que ela
me deu quando mostrei meu primeiro presente para o bebê me deixou com o peito
explodindo de alegria, e as lágrimas de felicidade depois que a pedi em casamento e
lhe dei o anel me fez o homem mais feliz do mundo. Liz não precisava de jantares
caros, champanhes finos e nada dessa merda de gente grã-fina, ela só precisava de
amor e cuidado, e isso eu tenho dado a ela. Liz é o que faz meu mundo girar, disso
não tenho dúvidas.
Quando ela falou da ligação do hospital, não tive outra opção a não ser
confirmar que eram exames de rotina. Não queria estragar o momento. Essa omissão
estava virando uma bola de neve, prestes a me soterrar. Esse seria o momento
perfeito para contar a ela sobre tudo, mas eu não queria estragar o pedido e nem a
deixar mais triste. Então, tratei de mudar de assunto e procurar outro dia e outra
maneira de contar tudo para ela.
Meus irmãos e minha mãe vieram a São Paulo para fazer o teste de
compatibilidade, vieram e voltaram no mesmo dia. Não contei a Liz, preferi omitir
novamente. Outra grande furada da minha parte, mas eu ainda não estava pronto
para contar que vinha mentindo para ela desde o começo. Que homem eu sou?
Mentindo para mulher que eu amo, porque tive medo de contar a ela que meu pai
me abandonou e que eu estava ponderando se ia salvar ou não a sua vida. Talvez,
quando descobrisse toda essa história, ela deixe de me amar e de me ver com os
mesmos olhos.
Afinal, eu deixei o orgulho esmagar minha compaixão pela vida do meu
próprio pai, mesmo eu tendo aceitado fazer a cirurgia, eu neguei-me a isso no
começo e estou prolongando o máximo que posso agora, porque simplesmente não
posso deixar de lado meu passado e meus fantasmas de criança. Como isso pode ser
visto com bons olhos por alguém com o coração como o da Liz?
Quando contei ao meu técnico que possivelmente farei uma cirurgia, Dudu
detestou a ideia, mas ele sabia que a decisão era exclusivamente minha, meu amigo
sabia o momento certo de me deixar assumir as rédeas da minha carreira. Ele não
concordou, mas me apoiou e era isso que esperava dele. Enquanto esperava o
resultado dos exames dos meus irmãos, seguia minha vida vivendo um dia de cada
vez.
Remexi-me na cama e abri os olhos, Liz estava abraçada ao meu corpo, sua
cabeça descansando sobre o meu peito, os braços ao redor da minha cintura me
apertando firmemente, o edredom cobrindo apenas uma parte de sua bunda nua sem
calcinha. Fiz cafuné em seus cabelos macios e deslizei minhas mãos em suas costas.
— Hummm... — ela gemeu manhosa como fazia toda manhã.
— Bom dia, dorminhoca.
Ela fez uma careta preguiçosa e abriu os olhos, me lançando dentro do azul
mais profundo que já vi. E cada vez que ela me olhava assim, me deixava
desconcertado e louco de amor.
— Será que o bebê terá seus olhos? — perguntei lhe fazendo cafuné.
— Por quê? — perguntou levantando a sobrancelha clarinha.
— Porque eu amo os seus olhos. Esse tom azul profundo que eles têm é tão
especial, Liz, queria muito que nosso filho herdasse a cor deles.
— E eu amo a cor âmbar dos seus, mas posso concordar com isso se ele for
moreno como você.
— Tudo bem, pode ser moreno, mas tem que ter seus olhos. Será uma boa
mistura, não?
Rimos juntos.
— Vamos para o Rio amanhã à tarde, aproveitamos a noite e no sábado será
a competição. Vou ter que dar algumas entrevistas após a corrida, mas assim que
terminar voltamos juntos para o hotel. Dudu também estará lá conosco, vou me
livrar dele e dos repórteres e podemos curtir nosso domingo na praia, só nos dois. —
Lhe joguei de costas na cama e comecei a beijá-la lentamente, contudo, Liz não se
deixou vencer pelo meu charme assim tão rápido.
— Gustavo, só me prometa que vai se cuidar durante a corrida.
— Liz, eu agora sou um pai de família — brinquei, continuando a lhe tentar
com meus carinhos.
— Então prometa que sempre vai voltar para mim.
— Claro, minha flor. Estou aqui e não vou a lugar nenhum.
Depois de fazermos amor e de um bom café da manhã, fui ao hospital ver o
resultado dos testes dos meus irmãos, e de lá para o meu último treino antes da
competição.
“Por que todas as estrelas estão desaparecendo
Apenas tente não se preocupar, você as verá algum dia
Pegue o que você precisa
E siga seu caminho
E faça seu coração parar de chorar…”
Stop Crying Your Heart Out – Oasis
Liz
Enquanto Gustavo estava no treino, aproveitei para arrumar uma mala
pequena com as coisas que levaria para o Rio de Janeiro, coloquei short, vestidos e
alguns biquínis com a pura intenção de provocar meu motoqueiro. Terminei de
arrumar tudo e decidi fazer um chá, já que estava evitando cafeína. Quando
atravessei o corredor em direção à cozinha, o telefone residencial tocou me
assustando mais uma vez. Torci o nariz desconfiada e fui atender, um mau
pressentimento me tomou assim olhei para o aparelho. Peguei-o em minha mão e
encostei-o ao ouvido.
— Alô?
— Olá, é do Hospital Santa Cecília. Eu poderia falar com o Sr. Gustavo
Salles?
— Oi, aqui é a noiva dele, é sobre os exames? Eu o avisei para ir buscá-los,
achei que ele já tivesse ido.
— Não, dessa vez é outro assunto.
Que outro assunto? Meu sexto sentido me dizia para tentar descobrir.
— Gustavo está no banho. Pode me dizer que assim que ele terminar dou o
recado.
— Ah, tudo bem. O doutor Antônio pediu para avisá-lo que compareça o
mais rápido possível ao hospital na próxima segunda-feira.
— Segunda, certo. Como é mesmo o nome do médico que ele deve
procurar? — perguntei sentindo meu coração pulando no peito. O que está
acontecendo?
— Dr. Antônio Pontes, médico do setor de cirurgias nefrológicas e
transplantes.
As últimas palavras que a telefonista disse congelou todas as partículas do
meu corpo no lugar, esqueci como me mover e respirar.
Não pode ser.
Gustavo está se consultando com um cirurgião e não me falou nada? Mas
para quê? Ele parece tão bem, então por que, meu Deus? O que isso significa? Foi
por isso que ele estava no hospital naquele dia que descobri sobre o bebê. Isso quer
dizer que ele está doente?
Mesmo desnorteada peguei minha bolsa, eu precisava fazer alguma coisa,
uma luz se acendeu na minha mente.
Eu sabia para onde ir.
***
Estacionei na frente do hospital em uma freada brusca, algumas pessoas que
passavam olharam em minha direção assustadas, mas não tive tempo para isso.
Entrei correndo na recepção, parei no meio do hall de entrada, girei ao redor
procurando alguém que pudesse me ajudar. Localizei uma enfermeira, corri até ela e
mesmo sem fôlego perguntei onde encontrava a sala do Dr. Antônio Pontes. A
enfermeira me disse e saí correndo gritando um agradecimento pela ajuda. Quando
entrei na sala indicada encontrei vários pacientes sentados esperando para serem
atendidos. Parei ofegante e, assim que olhei para a porta ao qual todos estavam
olhando ansiosos para serem chamados, vi as costas largas vestindo a jaqueta de
couro que eu tanto amava.
Gustavo.
Ele estava entrando na sala do médico, ele não podia me ver, mas antes que
ele abrisse completamente a porta eu gritei:
— Gustavo! — Minha voz saiu aguda. Ele girou na direção da minha voz e
me olhou de olhos arregalados, como se não acreditasse que eu estava ali de
verdade.
— Liz! — Gustavo pronunciou meu nome completamente transtornado.
— Você está mentindo para mim? Você está doente? — perguntei com olhos
ardendo de lágrimas não derramadas.
— Minha flor, eu posso explicar! — Gustavo disse andando em minha
direção, mas eu não podia ouvir nada naquele momento. Caminhei para trás
esbarrando em um senhor que ia entrando na sala. Comecei a sufocar.
Como Gustavo pode ter mentido para mim todo esse tempo sobre sua
saúde? Logo para mim? Como eu fui burra, como fui tola por acreditar que eu podia
confiar em outra pessoa.
Corri pelo hospital ouvindo os gritos desesperados de Gustavo me
chamando, entrei no carro e saí para o tráfego cantando pneus. Não podia ouvi-lo,
não queria desculpas para suas mentiras. Não podia acreditar que ele mentiu, que
estava me enganando sobre seu estado de saúde.
Minhas mãos tremiam contra o volante do meu carro, meu coração batia
acelerado e minhas bochechas estavam queimando, enquanto o suor escorria pelas
minhas costas.
Dirigi até em casa enquanto chorava balbuciando palavras desconexas, subi
o elevador ignorando a cara dos vizinhos. Quando entrei no apartamento dele
comecei a me perguntar o que iria fazer?
Sentei-me no sofá e esperei, era tudo que podia fazer. Eu deveria ter lhe dado
a chance de se explicar com calma. Meu Deus, como fui idiota de ter fugido dele
sem ter lhe dado uma chance de falar! Eu deveria ter entrado com ele no consultório
e ouvido o que quer que aquele médico tinha a lhe dizer. Como posso dizer amá-lo
se na primeira adversidade lhe deixei sozinho?
“Eu sei que algum dia você terá uma vida bonita,
eu sei que você será uma estrela
No céu de um outro alguém, mas por quê?
Não pode ser, não pode ser no meu?
Nós, deveríamos ficar juntos!
Black – Pearl Jam
Gustavo
Corri atrás de Liz por todo hospital, vi-a entrando no carro e saindo para o
tráfego dirigindo feito uma louca, os pneus cantavam enquanto ela se infiltrava no
tráfego. Pulei na minha pick-up e fui atrás dela, mas era tarde demais, não consegui
mais enxergar que direção ela tomou.
Meu Deus, estávamos bem! O que merda está acontecendo agora? Como,
porra, ela descobriu onde eu estava? Tudo que eu não queria estava acontecendo. E
não sei o que fazer. Liguei em seu telefone e só chamou, onde ela terá ido? E por
que ela não me atende? Liguei para Cristina em seguida, a amiga de Liz me atendeu
e disse que não falou com ela desde ontem.
Droga!
Ela só pode estar em casa, corri para o apartamento rezando a Deus que eu
estivesse certo quanto ao meu palpite.
Assim que abri a porta, vi-a sentada no sofá com as pernas cruzadas embaixo
de si e as mãos sobre a barriga. Quando Liz me viu entrando pela porta se levantou
rapidamente e veio em minha direção com seu rosto bonito coberto de lágrimas.
— Gustavo! — ela grita pulando em cima de mim. Eu não me movi, nem
retribuí o abraço também, porque estava paralisado de medo para poder reagir.
Fechei a porta e fiquei parado olhando para a parede oposta da sala, eu não
tinha coragem de olhar dentro dos seus olhos, porque não sabia como ia me livrar de
tantas mentiras. Ver Liz chorando assim partia meu coração. Eu não sabia por onde
começar, eu só queria fazê-la parar de me olhar com esses olhos cheios de
arrependimento e tristeza, como se fosse ela que tivesse me feito mal, quando na
verdade o único mentiroso era eu.
— Liz, precisamos conversar. — Engoli o bolo na minha garganta, pronto
para enfrentar as consequências das minhas mentiras.
— Você está doente? É isso? Você está me deixando? — Liz me encheu de
perguntas, engoli em seco novamente, afastei-me dela e sentei no sofá, procurando
uma forma de disfarçar minhas pernas que não paravam de tremer.
Liz me olhou consternada e confusa quando me afastei, mas ela não desistiu,
caminhou lentamente e sentou-se do meu lado. Decidi que não era hora de criar
novas desculpas, e sim de falar a verdade para a única pessoa no mundo que não
merecia derramar mais nenhuma lágrima.
— Não, Liz, eu não estou doente. — Minha voz saiu fraca, porque minha
garganta parecia cheia de espinhos afiados.
Liz me abraçou sufocando um soluço na curva do pescoço e começou a me
beijar desesperada, consegui sentir seu corpo tremendo.
— Meu Deus, Gustavo, eu pensei que...
Antes dela continuar a pedir desculpas por uma coisa que não tinha culpa, eu
a interrompi:
— Liz, eu menti para você.
— O quê? Sobre o quê? — Liz me olhou sem entender o que eu disse,
levantou a sobrancelha me fitando confusa.
— Sobre meu pai. — Fiz uma pausa para respirar. — Ele não morreu.
— Como assim não morreu? Mas você me disse que...
— Eu menti. Meu pai está vivo.
Por um segundo, Liz pareceu em choque, em seguida se levantou
transtornada, afastou-se de mim me olhando com lágrimas grossas caindo em seu
rosto bonito.
— O que você está falando? — perguntou baixinho.
Levantei-me e caminhei até ela, que se afastou a cada passo que eu dava.
Tudo que eu mais temia tinha acontecido. Liz descobriu minha mentira da pior
forma possível.
— Liz, quer me escutar? Eu tenho uma explicação pra tudo isso.
— Então é melhor você começar a falar! — ela gritou secando as lágrimas
com as costas da mão.
— Quando eu tinha sete anos, meu pai nos abandonou para vir morar em
São Paulo. Desde essa época ninguém teve notícias dele, até que no começo do ano
me ligaram do hospital pedindo que eu viesse lhe visitar porque ele está morrendo.
— Você mentiu para mim? Você disse que seu pai estava morto... — Liz
falou entre soluços.
— Eu não sabia como te contar. Quando eu estava em Los Angeles recebi
uma ligação me informando que ele estava entre a vida e a morte, dependendo de
um transplante de rim. Eu me mudei para cá no intuito de buscar respostas sobre o
meu passado, eu precisava descobrir o porquê ele me abandonou. Mas o médico
acabou me pedindo para fazer o transplante, entende agora? — esbravejei para que
ela me escutasse. — Liz, eu alimentei uma mágoa enorme no meu coração por ele
ter nos deixado, como eu posso agora perdoá-lo como se nada tivesse acontecido?
— Você me enganou esse tempo todo? Desde o início? Você me escondeu
algo sério como isso? Logo de mim, Gustavo? Eu contei toda a minha vida a você.
Eu te revelei coisas que não disse nem a minha melhor amiga, eu confiei a você os
meus maiores medos e você não teve sequer a decência de retribuir a confiança. —
Ela jogou na minha cara enquanto caminhava em círculos pela sala.
— Liz, pelo amor de Deus! Eu ia te contar, eu só não queria te envolver
nessa lama. — Tentei tocá-la, mas ela me empurrou como se estivesse sentindo nojo
de mim.
— Lama? A vida do seu pai é uma lama? Como você pode falar uma coisa
dessa do seu próprio pai? — Os gritos de Liz eram misturados a soluços roucos.
— Liz! Ele me abandonou todos esses anos e agora aparece precisando do
meu rim? Como eu posso passar uma borracha no passado? Como posso tirar do
meu peito essa sensação de rejeição que esmaga meu coração cada vez que penso
sobre o assunto? — perguntei com a voz um pouco mais baixa, porque não tinha
mais forças para negar nada, só queria fazê-la entender o que eu sentia.
— Sabe o que eu daria para poder abraçar meu pai de novo, Gustavo? — ela
me perguntou colocando a mão sobre o coração. — Tudo, eu daria tudo, Gustavo.
Você não sabe a sorte que tem em ainda ter um pai.
— Minha flor, me escute — implorei em vão.
— Não me chama assim, você mentiu esse tempo todo. — Liz secou as
lágrimas, e pronunciou cada palavra como se estivesse com ódio de mim. Só via
desprezo em sua postura.
— Eu não menti, eu só omiti. Porque não queria lhe envolver nisso, e logo
depois você descobriu a gravidez e eu não queria que você se preocupasse em vão.
Você estava enjoada, depois acabou perdendo o emprego. Eu não queria jogar meus
problemas sobre você. E os exames para o transplante poderiam dar negativo, tá
legal? Talvez um dos meus irmãos pudesse salvá-lo.
— Eu não pedi que me protegesse de nada. Eu só queria que você fosse
verdadeiro comigo.
— Sinto muito, Liz, por não ser quem você gostaria que eu fosse.
— Você já recebeu os resultados? Você é compatível?
— Sim, eu sou o doador perfeito.
Proferir essas simples palavras rasgou meu peito, porque sabia que ela não
vai me perdoar sabendo que eu já poderia ter doado e salvado a vida do meu pai e
estou enrolando, porque sou um covarde de merda.
— Como você ainda pode ter dúvidas sobre salvar a vida de outra pessoa?
Como, Gustavo? — Eu estava certo.
— Eu não sei, Liz — falei derrotado.
— E o que você está esperando? Seu pai morrer de verdade? É isso? —
Cada palavra de Liz em minha direção era acompanhada de decepção.
— Estou esperando sair o resultado dos meus irmãos e da minha mãe —
falei inaudível.
— Todos sabiam, então? Todos mentiram para mim, eu sou a última a saber
sobre algo tão grandioso? Meu Deus, Gustavo, eu te contei a minha vida inteira e
não fazia nem uma semana que eu te conhecia. E você mentiu para mim todo esse
tempo com a simples desculpa de me proteger?
— Eu já te expliquei, Liz, eu quis contar no começo, mas depois foi virando
uma bola de neve e nunca surgia a oportunidade certa, eu só queria evitar que você
sofresse, só isso.
— Não vejo sentido em mentir se você sabia que mais cedo ou mais tarde eu
descobriria tudo. Você estava no hospital no dia que descobri sobre o bebê, e você
mentiu dizendo que me viu entrar. Como pude ser tão burra? Quantas mentiras
foram, Gustavo? Dezenas, centenas, milhares? — Ver Liz neste estado dilacerava
minha alma, porque sabia que ela estava sofrendo e eu era o único culpado dessa
confusão toda.
— Liz, se acalme, por favor — pedi tentando fazê-la ficar mais calma por
conta do bebê.
— Me acalmar? Como posso fazer isso, se o homem que eu amo mente para
mim com a cara mais lavada do mundo, me engana e me deixa de fora da sua vida
como se eu fosse uma estranha? Eu queria poder te ajudar, Gustavo, eu poderia estar
te ajudando todo esse tempo.
— Minha flor, eu ia te contar em Belo Horizonte, mas Carolina te falou
aquelas coisas e já era coisa demais para você digerir. Você estava distante e tensa,
eu não podia te ver ficar ainda mais preocupada.
— Gustavo, eu não sei como construiremos uma vida juntos, quando os
alicerces do nosso relacionamento estão podres por mentiras.
— Liz, o que você está dizendo?
— Sinto muito, mas não posso fingir que nada disso está acontecendo. Eu
não lido bem com mentiras e traições. Você deveria saber — ela falou severamente
se distanciando ainda mais de mim, toda a expressão do seu corpo gritava “Não me
toque!”. Sentia-me aqui em pé, no meio da sala do nosso apartamento, como um
garoto sendo repreendido pela mãe, que sabia que fez uma besteira muito grande e
não tinha como consertar, porque que pedir desculpas não seria suficiente.
— Não faz isso, Liz, eu amo você! — gritei lhe agarrando pelos ombros
tentando lhe fazer acordar e ver que nada mudou entre nós. Porque, nesse momento,
o puro desespero percorria em minhas veias, controlando minhas ações, eu
precisava fazer alguma coisa.
— Como você pode planejar um casamento, viajar para competir, olhar nos
meus olhos, e dormir à noite sabendo que seu pai pode morrer? — Liz perguntou
contando nos dedos cada questionamento. Ela continuou apunhalando meu coração
com suas palavras. — Sabendo que o homem que ajudou a colocá-lo no mundo está
em um hospital dependendo de você?
— Estou desesperado! Como você acha que estou me sentindo, porra? Estou
guerreando dia e noite com a minha consciência! — vociferei a assustando,
fazendo-a dar um passo para trás, eu conhecia o olhar que Liz estava dando para
mim, era o mesmo olhar que o meu pai me deu antes de ir embora. Eu não vou
resistir dessa vez.
— Eu não podia simplesmente ir naquele hospital e fingir que eu não sentia
o que eu sinto por ele, meu pai nos abandonou e foi embora atrás de aventura,
deixando minha mãe sozinha com quatro crianças pequenas. Cresci e aprendi a
odiá-lo. Agora ele surge do nada, bagunçando tudo, como eu poderia escolher ele a
você? Como eu poderia escolher fazer a cirurgia e não estar aqui para cuidar de você
e do nosso filho? Como eu poderia escolher ele ao invés da segunda coisa que mais
amo na vida que é correr? Me fala? Porque eu tenho questionado isso a cada
segundo do meu dia. — As lágrimas escorreram livres pelo meu rosto. Queria que
ela visse que também estou destruído, que também estou perdido no meio dessa
história.
— Sinto muito, Gustavo, mas estou muito machucada. Eu me deixei
envolver por você, passando por cima de todas as barreiras que construí para me
proteger das pessoas, me esforcei nisso por todos esses anos. Mas bastou você sorrir
que coloquei tudo a perder, pelo simples fato de achar que você nunca seria capaz
de mentir para mim, o que você fez mais de uma vez.
— Me perdoe, Liz, eu só achei que estava fazendo o que era certo lhe
protegendo, protegendo a nós dois do meu passado.
— Mentir nunca é a melhor opção, magoar as pessoas com a desculpa de
protegê-las também não — ela falou alcançando a sua bolsa que estava em cima do
sofá.
Eu não podia deixá-la sair sem implorar que me escutasse e me desse mais
uma chance para fazê-la entender que fui um idiota, estava disposto a tudo para que
me escute. Dei um passo apressado em sua direção e puxei a alça da sua bolsa, que
caiu de seu ombro espalhando suas coisas pelo tapete da sala.
— Gustavo! — Ela suspirou irritada.
— Me desculpe, Liz. Eu não queria... — pedi atrapalhado me abaixando
para juntar suas coisas, quando fui catando sua carteira e chaves, vi um cartão de
visitas, peguei-o e passei a vista sobre o papel, meus olhos travaram no que estava
escrito: Matheus Braga – Engenheiro Civil.
Uma descarga de possessividade e ciúmes invadiu minhas veias, esmaguei o
cartão na minha mão, desejando tanto que fosse a garganta daquele desgraçado.
— Você está indo ficar com ele? — questionei mostrando o cartão destruído
a ela.
— Do que está falando? — Liz perguntou tomando o papel, agora amassado,
das minhas mãos.
— Ele é melhor do que eu, Liz? Era sobre isso o tempo todo?
— Eu não permito que você fale comigo dessa maneira! — ela gritou
exasperada.
— Então, por que você quer me deixar? Você vai procurá-lo? Vai ligar para
aquele engenheirozinho de merda pedindo ajuda porque não tem para onde ir?
— Você sabe muito bem porque não tenho mais um lugar para ir. Você está
sendo um idiota! — Liz tocou a barriga de forma protetora.
— Vocês têm se visto, é isso? Cansou de mim? Não sirvo mais para você,
Liz? Por que sou um motoqueiro fodido que não tem a porra de uma faculdade?
Você sempre mereceu um cara melhor do que eu, mas é pelo motoqueiro fodido
aqui — bati no peito. — que você chama quando está na cama! — berrei tentando
fazê-la perceber que era a mim que ela amava e não aquele imbecil com diploma.
Liz me encarou por um momento, em seguida respirou profundamente,
secou as lágrimas e caminhou até mim, quando ela estava à minha frente levantou a
mão até o meu rosto. Apesar do seu tamanho, Liz tinha uma mão pesada, sua
bofetada atingiu minha bochecha em um estalo, deixando ondas de ardor por todo
meu rosto.
— Chega, Gustavo... — ela murmurou baixinho, pegou sua bolsa do chão e
saiu da minha vida batendo a porta pela segunda vez, mas agora achava que era para
sempre.
“O manhã virá e eu farei o que é certo
Apenas me dê até lá
Para que eu desista dessa luta…”
I Can't Make You Love Me – Adele
Liz
Saí do prédio chorando, com meu coração sangrando, uma dor aguda me
rasgando por dentro. Eu não sentia meu corpo, era como se eu estivesse anestesiada
e a única coisa que me fazia sentir viva era a dor que latejava no meu peito. Entrei
no carro e saí em direção ao trânsito infernal de São Paulo, fechei os olhos
rapidamente e vi o rosto de Gustavo quando saí de lá. Como isso tudo foi acontecer?
Será que é castigo pelo que eu fiz com meu pai?
Deus, o que eu farei da minha vida agora? Estou com um bebê na barriga
que depende de mim, não tenho muito dinheiro, não tenho família, não tenho
emprego, não tenho para onde ir e acho que não tenho mais um coração, porque
meu peito dói como se tivessem o arrancado de mim. O que eu vou fazer agora sem
olhar naqueles olhos que me deixavam bêbada de amor? O que eu vou fazer com
tanto amor?
Gustavo não parava de ligar no meu celular, não podia atendê-lo, desliguei o
aparelho e joguei-o no banco do passageiro. Continuei dirigindo sem destino, eu não
sabia para onde estava indo, só queria me afastar de Gustavo e fazer com que essa
dor parasse. Entrei em um bairro residencial, casas bonitas e bem conservadas se
estendiam por toda rua, vi crianças brincando de bola na pracinha, abafei um soluço
e continuei chorando.
Desde que Gustavo entrou na minha vida, destruiu toda a ordem que eu
mantinha sobre tudo. Meus sentimentos, minha vida, meu futuro e meu destino
estavam bagunçados como uma agulha no palheiro, agora não sabia mais como
seguir sem ele.
Vi uma capela em uma rua, respirei profundamente algumas vezes e resolvi
parar, não podia continuar dirigindo nervosa desse jeito, podia ser perigoso. E
brincar com o perigo não era algo do meu feitio, o que parecia ter mudado desde
que conheci Gustavo, estava sempre na borda da loucura com todos os meus
sentimentos à flor da pele.
Desci do carro, desamassei minha saia, peguei minha bolsa e entrei. Sentei
em um banquinho no fundo da igreja vazia, havia apenas velas queimando no altar,
que estava enfeitado com flores brancas em jarros de porcelana, o cenário era
bucólico. Inspirei fundo, sequei as lágrimas que teimavam em cair dos meus olhos e,
pela primeira vez na vida, eu rezei. Nunca pedi nada a Deus porque sempre me
achei indigna de pedir qualquer coisa a Ele, mas dessa vez eu só tinha a Ele para
recorrer.
"Deus, não sei como fazer isso, também sei que nunca estive aqui e nunca
nos demos muito bem, o Senhor tem todos os motivos para não me ouvir, mas eu
não quero pedir por mim. E sim, pelo meu filho. Ajude-me a cuidar do meu bebê, eu
estou sozinha agora, não tenho mais ninguém. Nunca conseguirei abrir mão dele.
Ajude-me a achar uma alternativa, eu só tenho o meu filho e ele só tem a mim. Meu
bebê é tudo que me resta. Por favor, Deus."
Terminei minha prece silenciosa, sequei as últimas lágrimas e fiquei ali
paralisada, apenas olhando as velas queimarem lentamente enquanto organizava na
minha mente meus problemas e as maneiras de sair deles. Um tempo depois me
senti mais calma, agir racionalmente sempre foi meu álibi. Eu já passei por tanta
coisa sozinha e sempre saí de pé de todas elas, com certeza conseguirei sair dessa
também. Então ergui minha cabeça e comecei a agir como uma adulta novamente.
Voltei para o carro, peguei meu celular e liguei para a Cris, que atendeu no primeiro
toque.
— Liz, graças a Deus! Onde você está? — Cris berrou do outro lado da
linha.
— Posso ir até a sua casa? — perguntei.
— Claro, Liz. Gustavo já me ligou mil vezes preocupado com você, onde
você está?
— Você me faz um favor, Cris?
— Claro.
— Não diz para ele que estou indo até aí.
— Eu não acho certo deixá-lo desesperado daquele jeito, Liz, ele ligou
chorando como uma criança. Eu nunca imaginei vê-lo assim, você sabe o que é ver
um homem como aquele chorar? — Cris disse com a voz pesarosa.
— Por favor — pedi com um suspiro. — Não fala nada para ele, eu preciso
de tempo — concluí.
— Tudo bem — ela concordou e eu desliguei, precisava voltar a ser a Liz
fria e calculista que sobreviveu até aqui.
Parei do outro lado da rua do prédio da minha amiga, olhei em direção ao
edifício e criei coragem para fazer o que precisava nesse momento: ser forte. Talvez
eu não fosse tão forte assim, talvez eu tivesse desaprendido a fingir que nada me
afetava.
Porque mesmo quando meu coração parecia ter vida própria, ele estava
chorando, pedindo para voltar para casa, para os braços de Gustavo. Como faço
minha mente pensar igual ao meu coração? Eu tinha que fazer o que era certo para
o meu filho agora, me afastar de tudo que pudesse machucá-lo. Mesmo que isso me
levasse para longe do homem que eu amava.
Toquei a campainha, Cris abriu a porta para mim rapidamente. Assim que
me viu na soleira da porta, pegou minhas mãos e me puxou para dentro do seu
pequeno apartamento. Minha amiga me abraçou apertado antes que eu conseguisse
proferir qualquer palavra.
— Onde esteve, minha amiga? — Cris perguntou enquanto me apertava
forte, no típico abraço de urso. Eu não resisti e abracei-a de volta bem apertado.
Chorei tudo que tinha para chorar.
Entre soluços balbuciei:
— Acabou...
— Oh, Liz...
— O que eu faço agora? Está doendo tanto...
— Vem, vamos sentar, você precisa me contar do começo. Não posso
acreditar que isso está acontecendo.
Sentamos no sofá e depois de Cris me fazer tomar um copo de água para me
acalmar, contei tudo que aconteceu desde a hora que acordei, enquanto ela me
olhava consternada.
— Meu Deus, amiga, que história! — Nunca vi Cris de olhos tão arregalados
como ela ficou ao me ouvir contar tudo.
— Eu não posso perdoá-lo.
— Liz, eu sempre estarei do seu lado, mas você não pode deixar de entendê-
lo. Ele foi abandonado pelo pai quando era um menino, Gustavo não criou uma
relação afetuosa com ele. Ninguém pode cobrar dele nada mais do que
ressentimento. Mesmo assim ele concordou em fazer os testes de compatibilidade,
ele não é uma pessoa ruim. Provavelmente só estava esperando o resultado dos
irmãos para poder ficar tranquilo e cuidar de você e do bebê.
— Agora a culpa é minha? — perguntei muito chateada por ela ainda
defendê-lo, eu que fui enganada.
— Não, Liz. Se ponha no lugar dele, Gustavo só queria poder estar bem para
acompanhar a gravidez, você não pode culpá-lo por isso.
— E sobre mentir que o próprio pai estava morto?
— Eu não sei, Liz. Gustavo pode ter errado em mentir sobre o pai e depois
lhe acusar de ter algum envolvimento com o Matheus, mas ele te ama. Só de olhar
para vocês dois juntos, qualquer pessoa pode enxergar que existe amor entre vocês.
É palpável o que sentem um pelo outro. Eu vi como ele olhava para você, Liz, eu só
conseguia enxergar amor, talvez até algo mais parecido com devoção. Ele te olhava
como eu olho para uma bolsa da Chanel.
— Cris! — recriminei sua brincadeira.
— Me desculpe, mas é verdade.
— Mas amor não é suficiente quando não existe confiança Cris, e isso ele
me provou duas vezes que não tem em mim. Primeiro escondeu o pai, depois me
acusou de estar tendo um caso com o Matheus.
— Amiga, ele só estava com raiva. Tenho certeza de que foi só coisa da boca
para fora.
— Ele não tinha o direito de me acusar de uma coisa dessas. E quer parar de
defendê-lo?
— Só estou sendo justa, Liz. Vocês precisam conversar.
— Eu preciso da sua ajuda, eu sei que é pedir demais, mas será que eu podia
ficar aqui? É só enquanto consigo um trabalho e vejo um cantinho para mim e o
bebê, você nem vai perceber que eu estou aqui. Prometo.
— Liz, está ficando louca? Claro que eu vou te deixar ficar pelo tempo que
precisar. Agora vem cá. — Ela me abraçou e depois que nos afastamos, Cris alisou
minha barriguinha e sorriu.
— Vai ficar tudo bem, Liz. — Cris me tranquilizou com os olhos negros
cheios de amor.
— Eu sei — disse mesmo não tendo tanta confiança nisso. Mas não iria me
abater.
— Agora que tal tomar um banho enquanto peço uma comidinha para gente?
Tenho certeza de que você ainda não alimentou minha sobrinha.
— Pode ser sobrinho — corrigi-a.
— Sim, pode ser. — Ela fez uma careta.
“Quando as lágrimas começam a rolar pelo seu rosto
Quando você perde algo que não pode substituir
Quando você ama alguém, mas é desperdiçado
Pode ser pior?...”
Fix You – Coldplay
Gustavo
Assistir Liz dando as costas para o meu amor e indo embora me deixou
enlouquecido. Como pude perder minha mulher assim? Como fui estúpido ao ponto
de que não ser capaz de contar a verdade para ela? Eu não conseguia parar de me
culpar. Como tive coragem de acusá-la de ter um caso com aquele cara quando ela
sempre esteve aqui do meu lado, apenas me dando o amor que nunca recebi de
ninguém? Meu corpo estava em estado de choque, mal sentia minhas pernas,
ajoelhei-me no tapete da sala e chorei.
O que eu faria sem olhar para aqueles olhos azuis? Sem seu cheiro de flor?
Sem tê-la todas as noites na nossa cama? O que seria de mim sem meu filho?
Corri para o telefone e comecei a ligar, ela precisava me atender. Ela
precisava saber que eu não conseguia mais viver sem que ela estivesse ao meu lado,
que eu era um estúpido apaixonado que não conseguia mais respirar se ela não
estivesse nos meus braços. Ficar longe de Liz não era e nunca seria uma opção.
Deixei trinta e oito mensagens na caixa postal. Trinta e oito, porra! Mandei
dezenas de mensagens e nada. Liguei para a Cris desesperado, ela me atendeu
entusiasmada, mas não tive tempo para comprimentos, comecei a perguntar se ela
sabia de Liz, estava parecendo um adolescente patético chorando como um tolo.
Mas não me importava, queria minha mulher de volta.
— Eu preciso dela, Cris, me ajuda a trazê-la de volta — implorei. — Por
favor!
— Gustavo, o que aconteceu?
— Ela me abandonou, Cris, me ajuda, pelo amor de Deus, você é amiga
dela, tem que fazê-la me ouvir. Eu fui um imbecil, mas eu sou louco por ela. Eu a
amo, Cris.
— Você está bêbado? — A amiga da minha mulher perguntou assustada.
— Não, claro que não! Cris, me ajuda, porra! — estava gritando, mas não
me importo.
— Calma aí, Gustavo, não estou entendendo nada, mas vou ligar para ela e
tentar entender essa confusão, tudo bem? Agora, acalme-se homem, assim que eu
tiver qualquer notícia dela te mando uma mensagem.
— Obrigado, Cris — agradeci e desliguei.
Caí de costas no tapete e deixei o desespero me atingir, afastei os cabelos do
rosto e cobri o rosto com as mãos, deixando os soluços romperem no meu peito.
Chorei me sentindo como anos atrás, quando meu pai foi embora de casa e nunca
mais voltou, levando junto com ele minha confiança nas pessoas e minha paz de
espírito.
Aos sete anos, eu já estava deitado e quase dormindo quando ouvi o ranger
da porta do meu quarto, forcei meus olhos a abrir para ver meu papai em pé ao
lado da minha cama. Quase não tínhamos nos falado durante todo o dia, ele e a
mamãe brigaram mais uma vez no café da manhã, houve gritos e escutei minha
mamãe chorando baixinho no seu quarto em seguida, logo ouvi o motor do carro do
papai descendo a rua. Ele voltou no início da noite fedendo a uísque, fiquei com
saudades dele, eu e meu pai passávamos os dias juntos.
Eu sempre o ajudava a repor os guardanapos do restaurante quando não
estava na escola, ele dizia que ninguém podia fazer isso melhor do eu. Meu pai
sempre me elogiava, dizendo o quanto me amava e o quanto eu era um bom garoto,
eu amava meu pai também, porque ele brincava comigo e meus irmãos na maior
parte do tempo, todos os garotos na minha escola queriam ter um pai igual ao meu.
Mas não gostava de dividi-lo, meu pai era a única coisa no mundo que não gostava
de emprestar, mesmo que fosse a um amigo. Já tinha que dividi-lo com meus irmãos,
por isso sempre aproveitei o máximo nosso tempo juntos, ele e eu.
Sorri para ele em pé ao lado da minha cama, meu pai se abaixou, deslizou
as mãos pelos meus cabelos bagunçados e retribuiu o meu sorriso.
— Papai, o senhor veio me contar historinhas? — perguntei.
Seus olhos azuis brilharam como estrelas cadentes contra a fraca luz do
meu quarto, ele lentamente desfez o sorriso.
— Vim me despedir, filho... — Sua voz já não era a mesma, sempre forte e
serena. A voz do meu pai estava trêmula, assim como seus dedos que não paravam
de afagar meus cabelos.
— O senhor vai viajar, papai? — ponderei.
— Filho, papai vai precisar ir embora por um tempo — meu pai explicou.
— Quanto tempo, papai? — Antes que eu percebesse, minha voz estava
ficando como a do meu pai, fraca e quase inaudível.
Meus olhos começaram a pinicar e as lágrimas começaram a se formar nos
meus olhos, prontas para serem derramadas. Mas meu pai não me respondeu, ele
abaixou-se e beijou minha cabeça demoradamente, sussurrando o quanto me
amava. Eu não entendia. Para onde ele ia? Nós somos sua família, somos tudo que
ele tem.
— Pai... O que o senhor está falando? Por que o senhor tem que ir? —
murmurei envolvendo meus braços em seu pescoço.
— Guto, prometa que vai continuar sendo esse menino bonzinho que você é.
Prometa ao papai. Saiba que eu sempre terei muito orgulho de você, sempre...
Papai te ama, filho... muito, papai te ama muito.
Meu pai me deu um último abraço, seguido de um beijo, soltou meus braços
do seu pescoço e saiu do meu quarto para nunca mais voltar, ignorando meu choro
desesperado, eu gritava e implorava que ele ficasse, que ele me levasse junto, que o
seu lugar era ali comigo, com meus irmãos e com a mamãe.
Mas ele não voltou, eu saltei da cama e fui procurá-lo pela casa. Eu não
poderia deixar que ele fizesse isso, corri o máximo que pude com minhas pernas
curtas de menino, mas quando desci as escadas o barulho do motor do seu carro ia
sumindo pouco a pouco pela rua abaixo, era tarde demais para fazê-lo mudar de
ideia. Abri a porta pesada de madeira, corri até a calçada e só pude ver os faróis
traseiros do carro desaparecendo lentamente no breu da noite.
— Papai! — Usei toda a força do meu peito para chamá-lo de volta, mas ele
não me ouviu. Eu não cheguei rápido o suficiente para convencê-lo a ficar.
Minha mãe apareceu logo em seguida e me pegou no colo. Assim como eu,
ela chorava. O rosto da minha mamãe, sempre bonito e amoroso, estava tomado de
dor, ela me pegou no colo e me levou de volta para dentro de casa. Meus irmãos
também estavam chorando na sala, a mamãe pediu a todos nós para irmos deitar
na cama que ela dividia com papai. Choramos unidos e apertados até cairmos em
um sono profundo. Naquele fim de madrugada, eu sonhei que meu pai me levava ao
lago.
Relembrei aquela noite como um maldito flashblack, a dor era a mesma. Ela
ainda sufocava da mesma maneira, olhei para o teto por um longo tempo, depois
deixei meus olhos vagarem pelo apartamento. A presença de Liz estava por toda
parte. Seus quadros na parede, seus discos no home, seus livros na mesa de café.
Seu cheiro de flor impregnando por todos os lados. Eu não podia ficar aqui
remoendo a falta que ela me fazia e todas as palavras que ela me disse, levantei-me,
peguei as chaves do carro e saí.
Dei voltas pela cidade tentando encontrá-la em praças e parques, olhei as
calçadas e não a vi em lugar algum. Onde ela terá ido?
Já exausto encontrei um pub sujo no Centro, entrei dando uma olhada no
lugar, o cenário era deplorável. Não muito diferente de como eu me sentia, sentei no
balcão madeira velha cheio de manchas e pedi uma dose de uísque. Algumas
pessoas circulavam pelo lugar, algumas mulheres me olharam de longe com cobiça,
mas eu as ignorei, assim como ignorei que todos os homens estavam me olhando
desconfiados.
Depois que engoli a oitava dose, levantei a mão para pedir o resto da garrafa
ao barman mal-encarado, quando senti meu celular vibrando no bolso da calça.
Atendi desesperado achando que era a Liz.
— Liz, meu amor! — disse angustiado.
— Filho? O que houve? — minha mãe perguntou do outro lado da linha.
Droga!
— Ela foi embora, mãe. — Chorei ao telefone, não adiantava mentir para
mais ninguém, muito menos para a mulher que me pôs no mundo.
— Quem, meu filho? A Liz?
— Sim, mãe, ela descobriu tudo e me deixou. — Senti meu corpo pesado, e
meus movimentos mais lentos, esfreguei os olhos e passei as mãos pelo cabelo
bagunçado.
— Gustavo, onde você está?
— Mãe, ela descobriu tudo e me deixou. Eu menti, mãe, eu disse que o papai
tinha morrido.
— Meu Deus, filho, você está bêbado? Você está de carro? Você não pode
dirigir nessas condições. Que confusão foi essa que você se meteu?
— Mãe, a senhora não está entendendo. Ela foi embora com meu filho, mãe.
A mulher da minha vida me abandonou e levou junto meu bebê, eu sou igual ao
meu pai, mãe, eu abandonei meu filho e ele vai crescer me odiando. Da mesma
forma que odeio meu pai! — A raiva me invadiu, desliguei o telefone, deixei
algumas notas no balcão e saí do bar cambaleando.
Peguei o carro e segui a rodovia, eu sabia que estava sendo um
inconsequente, eu não poderia ter bebido tanto e estar dirigindo nessas condições.
Estava fodido, e Liz levou com ela quando me deixou o pouco de sanidade que
ainda me restava. Meu celular continuou tocando, eram ligações dos meus irmãos e
da minha mãe. Eles deviam estar sem entender nada, mas eu não podia falar agora,
eu só precisava achá-la. Meu celular avisou que chegou mais um torpedo, resolvi
ler, porque Cris me prometeu que me avisaria se tivesse notícias da Liz. Eu estava
certo, era uma mensagem dela avisando que Liz estava em sua casa.
“Diga alguma coisa, eu estou desistindo de você
Sinto muito por não ter conseguido te alcançar
Eu te seguiria para qualquer lugar
Diga alguma coisa, eu estou desistindo de você...”
Say Something – A Great Big World & Christina Aguilera
Liz
Cris estava sendo uma grande amiga, me emprestou uma roupa limpa e
pediu japonês para jantar, porque eu estava morrendo de fome. Ainda me deixou
deitar com ela na cama e agora estávamos aqui, assistindo uma comédia antiga na
tevê. Sei que ela estava preocupada comigo, mas estava do meu lado e isso me fez
perceber que não estou tão sozinha quanto pensei que estaria. Quando Cris começou
a me contar sobre uma possível separação entre o casal Sherman, ouvimos a
campainha tocar. O som estridente e desesperado fez um frio atingir minha espinha.
Duas opções passaram pela minha cabeça, ou era o ex-namorado da Cris em uma de
suas crises, ou o Gustavo.
Cris me olhou claramente assustada, ela fez um gesto para eu permanecer
onde estava e foi até a porta. O caminho que ela percorreu foi pequeno, devido ao
seu apartamento ser apenas um vão e não ter divisórias de espaços. Assim que ela
abriu uma fresta da porta vi parte do corpo de Gustavo em pé na soleira. Cris se
afastou um pouco mais me dando total visão dele na penumbra. Ele parecia
destruído, seus olhos estavam inchados e vermelhos, seus cabelos mais
desgrenhados do que o comum, entretanto, ele continuava lindo. Meu corpo foi
tomado por uma onda de calor, fiquei estática. Por que não posso resistir a esse
homem, meu Deus?
— Gustavo, o que você está fazendo aqui? — Cris perguntou tentando
fechar a porta, ele colocou o corpo para dentro a impedindo. Quando seus olhos
cruzaram com os meus, ele passou por Cris e veio até mim.
— Eu vim te buscar — ele disse tentando me abraçar. Eu me afastei de suas
mãos. Sua respiração cheirava a uísque, suas roupas fediam a mofo, como se ele
tivesse permanecido muito tempo em um lugar fechado.
— O que você está fazendo aqui, Gustavo? — perguntei.
— Liz, eu vou te levar para casa. Venha embora comigo, você não pode me
deixar, minha flor — Gustavo tentou me tocar enquanto disse as palavras em meio
ao choro.
— Gustavo, por favor! — implorei, meu coração estava tão machucado
vendo-o ali tão frágil e vulnerável.
— Volta para mim, Liz, eu estou implorando — Gustavo pediu ajoelhando-
se aos meus pés e abraçando minha cintura apertado, enquanto beijava minha
barriga entre lágrimas.
Meu Deus!
— Gustavo, pelo amor de Deus, levante-se. Você está bêbado. — Eu não
aguentava vê-lo sofrendo, não suportava ver o homem que eu amava de joelhos
implorando por mim, uma parte do meu coração queria ir embora com ele, mas
sabia que não seria bom para nós construirmos uma vida cheia de mentiras e
desconfiança. Ainda mais quando tínhamos um bebê no meio de tudo isso.
Eu me ajoelhei e o puxei para mim passando uma mão pela sua nuca e a
outra pelas suas costas, Gustavo me abraçou e começou a chorar com o rosto
emaranhado no meu cabelo.
— Não faz assim, Gustavo, levanta. Vem? — Chorei junto com ele. Não de
pena, mas por compartilhar a dor que ele estava sentindo, deixá-lo doeu mais em
mim do que nele. Porque abri mão da única chance que eu tinha de ser feliz.
— Por favor, levantem do chão — Cris pediu tocada pela situação. Minha
amiga parecia perdida nos observando.
— Vem, Gustavo... — Senti seu corpo amolecer no meu abraço, o peso do
seu corpo estava dobrado, eu não conseguiria nunca levantá-lo sozinha.
— Vem, Liz, eu te ajudo — Cris pediu o pegando por baixo de um dos
braços enquanto eu peguei do outro lado, ele forçou as pernas para ficar em pé, não
sei como por um milagre conseguimos colocá-lo no sofá.
— Liz, por favor, me perdoa. Quero você, quero nosso filho. Eu fui um
idiota, agora sei disso... sei que não posso te enganar. Ninguém pode fazer isso...
ninguém, não vou deixar mais ninguém te enganar, porque eu te amo... eu te amo
tanto — Gustavo sussurrou beijando meus lábios e rosto em prantos.
Não consegui retribuir o beijo no primeiro momento, porém o sabor único
dos seus lábios acordou memórias que ainda estavam muito vivas em mim. Queria
tanto passar uma borracha em tudo isso e começar de novo, mas a vida não tinha
volta. Precisávamos lidar com nossas ações, mesmo que para isso tivéssemos que
abrir mão do que mais amávamos. Tratei de afastar as lembranças, e liguei apenas o
lado racional do meu cérebro.
— Gustavo, como você veio até aqui? Meu Deus, quanto você bebeu?
— Eu saí para te procurar, eu não podia ficar dentro daquela casa sem você,
meu amor, e sem o nosso filho. Vamos embora, Liz, eu vou te levar para casa.
— Liz, seu celular está tocando, na tela diz que é dona Carmen — Cris falou
me entregando o aparelho.
— É a mãe dele. O que eu faço? — perguntei a minha amiga.
— Atenda — respondeu ela enfaticamente.
Respirei profundamente, desenrosquei os dedos de Gustavo dos meus
cabelos e atendi ao celular.
— Alô?
— Liz, graças a Deus que você atendeu, Gustavo...
— Ele está aqui — eu a cortei.
— Ah, estou tão aliviada. Liz, minha querida, eu não sei o que está
acontecendo, não consegui entender muita coisa, mas onde vocês estão? — ela
perguntou.
— Na casa da minha amiga.
— Liz, meu filho me disse que estava de carro e com certeza ele bebeu mais
do que deveria, posso te pedir um favor de mãe para mãe? — pediu dona Carmen.
— Dona Carmen... — Estava esperando que ela pedisse para eu perdoá-lo.
— Liz — ela me interrompeu. — leve-o para casa em segurança. Não tem
mais ninguém nesta cidade que eu possa pedir esse favor. Só tenho você.
— Vou tentar falar com o Dudu. Ele virá buscá-lo — sugeri.
— Não, eu já liguei para o Eduardo, mas ele não atendeu.
— Eu não posso, dona Carmen, me desculpe... — disse baixinho.
Eu não queria que Gustavo confundisse minha ajuda com uma possível
reconciliação, não queria dar-lhe falsas esperanças. Olhei para Gustavo que estava
com os cotovelos apoiados nos joelhos e com as mãos cobrindo o rosto chorando
entre soluços. Nunca o vi tão suscetível e fragilizado, senti-me um pouco culpada,
mas logo afastei a culpa. Ele que me enganou por todo esse tempo.
— Liz, eu não vou descansar meu coração. Por favor, ajude meu filho. — A
mãe dele implorou ao telefone.
— Dona Carmen, eu amo o Gustavo, as coisas ficaram difíceis entre nós,
mas eu nunca deixaria nada de mal acontecer a ele. Eu vou dar um jeito de fazê-lo
chegar em casa em segurança. Eu prometo.
— Obrigada, querida. — ela agradeceu chorosa e eu desliguei.
Cris estava em pé ao lado do sofá com os olhos brilhando e cheios de
lágrimas.
— Liz, eu posso fazer isso — minha amiga ofereceu-se a levá-lo para casa.
— Não, eu já atrapalhei demais sua noite, Cris. Você tem trabalho amanhã
cedo e precisa dormir. Poderia chamar um táxi para levá-lo, mas nesse estado ele
não teria condições de subir até seu apartamento sozinho — ponderei.
— E o que você pretende fazer? Ele não cabe no meu sofá — Cris brincou,
enquanto olhamos para ele.
— Eu vou levá-lo para casa. É o melhor que posso fazer — afirmei,
enquanto forcei um sorriso para ela.
Peguei minha bolsa e pedi para Gustavo se levantar, ele resmungou e
cambaleou entre os pés. Era um verdadeiro milagre ele ter chegado inteiro até aqui
bêbado desse jeito. Olha como as coisas estão mudando, eu era a garota que não
acreditava em milagres e agora eu não parava de falar deles.
Cris me ajudou a levá-lo até o seu carro do outro lado da rua.
— Gustavo, onde estão suas chaves? — perguntei apalpando seus bolsos da
calça. Senti seus quadris pelos meus dedos, engoli em seco pelo contato. Depois de
alguma procura achei as chaves no bolso da jaqueta que ele vestia. Destravei as
portas do carro, Gustavo sentou no banco do passageiro com nossa ajuda e eu
afivelei seu cinto de segurança. Despedi-me de Cris com um abraço e entrei no
carro. Dirigi em silêncio todo o caminho até o meu antigo prédio, Gustavo
permaneceu calado cochilando no banco, vez ou outra murmurando algumas coisas
incompreensíveis. Quando estacionei na garagem, peguei minha bolsa e dei a volta
no carro para ajudá-lo a descer da pick-up.
— Gustavo, chegamos. Vem, desça do carro — avisei destravando o seu
cinto de segurança, ele abriu os olhos e olhou para mim. Nessa mera aproximação
fiquei um momento perdida na força daqueles olhos cor de uísque que sempre me
deixavam inebriada.
— Você veio? — Gustavo sussurrou passando a mão áspera e cheia de calos,
devido ao incessante contato com o guidão da moto, no meu rosto delicadamente, da
mesma forma que tocamos nas flores, lentamente para sentir a textura.
— Sim, venha, vamos para dentro — confirmei para não criar ainda mais
caso.
Ele desceu do carro com passadas pesadas, passei seu braço pelo meu ombro
e fui sustentando seu corpo pesado até o elevador, que para minha sorte estava vazio
por conta do horário.
Graças a Deus!
Abri a porta do apartamento e Gustavo foi tropeçando até o sofá, sentou-se e
tentou tirar a bota inutilmente. Suas mãos sem coordenação motora alguma não
conseguiam desfazer o cadarço. Suspirei, sempre amei observá-lo, vê-lo movendo-
se enquanto fazia as coisas, mas hoje essa cena era algo que eu não gostaria de ter
visto. Gustavo bêbado não era atraente, muito pelo contrário, era aterrorizante,
porque me machucava vê-lo triste e vulnerável.
Joguei minha bolsa no sofá, me abaixei e ajudei-o. Ele deitou-se no encosto
do estofado de olhos fechados. Terminei de tirar seus sapatos e meias, desafivelei
seu cinto, abri sua calça jeans e puxei-a pelas pernas. Deixei-o apenas de cueca. Já
fiz isso tantas vezes, mas nunca imaginei despi-lo nessa situação.
Ele resmungou ébrio, sentei-me ao seu lado e tirei sua jaqueta, em seguida a
camisa.
— Liz, você voltou?
— Vamos tomar um banho, você está fedendo — disse guiando-o até o
chuveiro.
Liguei a ducha e verifiquei se a água estava quente, Gustavo observava meus
movimentos com os olhos pesados. Puxei sua cueca rapidamente e caminhei com
ele para o boxe. Uma vez ele cuidou de mim quando exagerei na bebida, não
custava nada ajudá-lo também. Quem liga se minha vontade é beijá-lo até esquecer
tudo isso?
— Venha, entre — pedi.
Gustavo entrou no boxe se apoiando na parede do banheiro para conseguir
manter-se em pé, quando me virei para pegar uma toalha ele me puxou pela cintura
para baixo do chuveiro me molhando inteira. Eu estava com uma camiseta e uma
calça de moletom da Cris, toda minha roupa ficou colada no meu corpo, enquanto
suas mãos deslizaram pelo meu abdômen e seios.
— Gustavo, o que você está fazendo?
— Você não me quer mais? — ele perguntou tentando me beijar.
— Gustavo, por favor... — choraminguei.
— Você me ama, Liz. Não é? Eu sinto — ele questionou me abraçando
apertado. Já não adiantava mais tentar me soltar, já estava toda molhada debaixo do
forte jato do chuveiro.
— Gustavo, vá para a cama. — Fugi da resposta com o coração dolorido de
não poder gritar que o amava, que o amava mais que tudo nessa vida, mesmo ele
sendo um mentiroso.
— Liz... — Gustavo cerrou os olhos para mim esperando uma resposta.
— Eu vou ficar gripada, a água está gelada. Deixa-me pegar uma toalha —
inventei uma desculpa para sair dali o mais rápido que pude, juro que não aguentaria
nem mais um segundo olhar para ele daquele jeito.
— Não quero que você fique doente. Só quero você... minha flor, só você.
— Suas palavras soaram pesadas, cada sílaba sendo pronunciada mais tempo do que
necessário.
Mesmo bêbado ele era adorável, me olhando tão miserável, tão quebrado.
Quase não lembrava o homem que ele era e vê-lo assim sabendo que a culpa era
minha me matava lentamente. Ajudei-o a sair do banheiro e deitar na cama. Como
todas as minhas coisas ainda estavam em seu apartamento, vesti um dos meus
pijamas. Enquanto secava os cabelos com a ajuda de uma toalha, sentei na cama ao
seu lado até lhe ver dormir tranquilamente. Admirei seu rosto bonito, eu amava cada
pequeno detalhe do seu rosto, desde suas sobrancelhas aos cílios cheios e negros, a
sombra da barba despontando, seu queixo quadrado, seus lábios macios e cheios,
não tinham nada sobre ele que eu não amasse. Vou sentir tanta falta das pequenas
coisas, como poder roubar-lhe um beijo quando ele estiver distraído, ou de sentir o
roçar macio da sua barba por fazer na minha pele. Essa constatação me fez derramar
uma lágrima que sequei imediatamente. Precisava ser forte e isso eu sabia ser.
Olhei para o relógio: 1h34 da madrugada. Fui até o sofá e me aconcheguei,
não conseguiria deitar na mesma cama que ele, mas meu corpo todo doía, talvez
devido ao fato de sustentar seu peso da garagem até aqui. Mas não podia dormir,
precisava estar acordada, caso ele precisasse de mim. Fechei os olhos só por um
minuto. Apenas um minuto para me recompor.
Apenas um minuto.
“Eu sei, tudo pode acontecer
Eu sei, nosso amor não vai morrer
Vou pedir aos céus
Você aqui comigo
Vou jogar no mar
Flores pra te encontrar...”
Eu sei – Papas da Língua
Gustavo
Acordei assustado sem saber onde estava, respirei aliviado quando percebi
que era meu quarto. Não tinha qualquer ideia de como cheguei até aqui. Que porra
aconteceu? Lembrei-me de estar indo procurar Liz na casa de Cristina e depois
minha mente estava em branco. Alcancei meu celular no criado-mudo ao lado da
cama e conferi a hora: 7h02.
Merda!
Levantei o pescoço dolorido e minha cabeça estava rodando, não me
lembrava de ter batido a cabeça na parede. O mais estranho era que estava nu. Como
será que cheguei em casa? Como tive condições de tirar a roupa se nem lembro
como cheguei?
Recordei-me apenas de estar no bar e mais alguns flashes incoerentes que
minha mente não conseguia juntar para formar qualquer lembrança, minha cabeça
estava doendo demais para lembrar-me de algo mais concreto. Olhei ao redor do
quarto para tentar identificar qualquer anormalidade. Minhas roupas sujas de ontem
estavam dobradas em cima da cadeira, minhas botas descansando ao lado da porta.
Eu não as coloquei ali, isso tinha certeza.
Será que eu trouxe alguma mulher para casa? Como eu poderia fazer isso?
Isso justificaria eu estar nu? Comecei a me xingar mentalmente só por supor uma
idiotice dessa, aí sim eu estaria assinando um atestado de imbecil, ainda mais na
primeira noite que passei sem Liz. Fui até a sala me preparando para o que podia
encontrar e vi o impossível.
Liz estava deitada no sofá em posição fetal, tão linda como um anjo era
capaz de ser. Será que isso tudo foi só um sonho ruim? Será que ela nunca foi
embora?
Fiquei parado no meio da sala observando-a ressonar enquanto sua mão
repousava sobre o estômago, agora um pouco maior do que me lembrava. Mesmo
inconsciente ela estava segurando nosso bebê e protegendo-o. Meu coração apertou,
eu precisava descobrir o que aconteceu ontem à noite. Não tinha a menor ideia de
como ela voltou para casa, mas se ela estava aqui era porque me perdoou, não é?
Mas se fosse esse o caso, se Liz realmente tivesse voltado para mim, o que
justifica ela estar deitada no sofá frio, ao invés de estar aconchegada nos meus
braços? Isso estava errado, ela não voltou, mas irei descobrir uma maneira de trazê-
la de volta para a minha vida. Agora decidido a recuperá-la, voltei para o nosso
quarto, coloquei uma bermuda e escovei os dentes, mesmo assim o gosto amargo do
uísque vagabundo não saiu da minha boca.
O dia estava esfriando, as nuvens pela janela estavam tão pesadas e cinzas
quanto os meus pensamentos. Que ironia!
Entrei novamente na sala e Liz continuava lá, dormindo serena. Fui para a
cozinha e preparei um café, minha cabeça doía como nunca doeu antes na vida,
precisava colocar cafeína nas veias para essa porra parar. Sentei-me com uma
caneca fumegante em uma cadeira de frente a ela, suas pernas estavam nuas e sua
bunda coberta com um pequeno short de dormir. Liz se remexeu e encolheu-se no
sofá como se estivesse com frio. Que filho da mãe eu sou! Dormi no calor da cama e
minha mulher aqui, nesse sofá desconfortável e frio.
“Você é um idiota, Gustavo!”, xinguei-me mentalmente.
Voltei quase correndo para o quarto e peguei um cobertor limpo no armário
para aquecê-la. Peguei também um travesseiro para deixá-la um pouco mais
confortável. Se não estivesse morrendo de medo de acordá-la iria transferi-la para a
cama. A nossa cama, lugar de onde ela nunca deveria ter saído. Quando ergui a
coberta para agasalhá-la, duas esferas azuis cristalinas me encararam. Liz abriu os
olhos piscando os cílios para mim.
Fiquei parado pairando sobre seu rosto encostado ao braço do sofá,
ponderando se devia apenas me abaixar e beijá-la como sempre fiz quando via-a
acordar todos os dias. Esse seria um costume difícil de me acostumar a não ter. Vê-
la dormir era uma cena linda demais para que eu simplesmente ignorasse.
Engoli em seco e limpei a garganta:
— Ah, me desculpe, eu só estava lhe cobrindo, você parecia estar com frio
— expliquei tentando não a assustar.
Liz levantou e sentou-se sobre as pernas bocejando.
— Que horas são? — ela perguntou passando as mãos pelos cabelos
assanhados.
— Ainda é bem cedo. Desculpe-me, eu não queria acordá-la.
— Na verdade, eu não queria ter dormido tanto, mas estava exausta.
— Você poderia ter dormido na nossa cama — disse tentando não forçar a
barra o máximo que podia.
— Eu não tinha a intenção de dormir, queria estar acordada caso você
precisasse de mim.
— Se eu precisasse de você, o que quer dizer? O que aconteceu ontem? Eu
não consigo lembrar como cheguei em casa... minha mente está em branco —
confessei envergonhado.
— Você foi até à casa da Cris completamente bêbado, eu não quis te deixar
voltar dirigindo daquele jeito. Você foi um irresponsável, Gustavo, você poderia ter
se machucado, ou pior, ter machucado um inocente.
— Me desculpe, eu nunca fiz isso, não sei o que deu em mim, nem como
pude ser tão irresponsável. Mas... Liz?
— O quê?
— Por que acordei sem minhas roupas? — Olhei para ela intrigado, será que
transamos e eu não lembro? Porra! Seria mais uma idiotice para a minha lista.
— Eu te ajudei a tomar um banho, você estava fedendo. Nada aconteceu...
— Liz respondeu constrangida e continuou: — Em seguida deitei aqui para
descansar e acabei dormindo.
— Liz, foi só isso mesmo que eu fiz? Porque eu não me lembro de nada,
então, se falei ou fiz alguma coisa que te magoou me desculpe — disse sentindo que
ela estava me escondendo algo.
— Sim, foi só isso, você não me deve nada, apenas retribuí um favor que
você me fez há algum tempo. Agora eu preciso ir. — Ela se levantou.
— Liz, por favor... você não acha que precisamos conversar como dois
adultos?
Ela alcançou a bolsa no braço do sofá, enquanto me olhou por um momento,
eu sei que ela está hesitando. A vontade que eu tinha era de agarrá-la e jogá-la na
cama. Eu sabia que estava sendo difícil para ela também, seus olhos não brilhavam
mais como antes. Seus lábios não sorriam como ela sempre fazia quando eu estava
por perto.
— O que você quer falar? — indagou acanhada.
— Liz, senta um pouco e me escuta, por favor... — implorei aos céus que ela
me desse a chance de me redimir.
Ela ponderou minha proposta por um minuto e voltou a sentar no sofá.
Então, comecei com meu plano de tê-la de volta.
— Liz, sinto muito que tudo isso esteja acontecendo. Eu sei que tenho
tendência a destruir tudo que toco, mas não quero acabar o que nós temos. Você é
muito importante para mim.
— Gustavo, se isso é que você vai falar eu não...
Eu a interrompi:
— Me escuta! Eu fui um idiota com você, por ter ocultado o que estava
acontecendo e por ter te acusado de estar me traindo. Mas o assunto do meu pai era
muito difícil de falar, eu nunca encontrava palavras, quando nos conhecemos eu
estava tão confuso sobre tudo... Todos os meus fantasmas foram acordados quando
recebi a ligação do hospital pedindo que eu viesse vê-lo... eu também sei que o que
fiz foi horrível e que não mereço sua confiança. Liz, eu já te implorei para me
perdoar e já disse que não concordo em terminarmos, mas se a sua escolha for essa
eu preciso aprender a aceitar. Porém, não é justo você sair daqui grávida, sem
trabalho e sem ter um lugar para onde ir. Você perdeu seu trabalho porque está
grávida do meu bebê. Então, eu não seria um homem se te deixasse sozinha agora.
Eu só preciso que você aceite minha ajuda.
— O que você quer dizer com isso? — perguntou com os olhos
lacrimejando.
— Que eu não vou abrir mão de acompanhar o desenvolvimento do bebê, e
também não vou abrir mão de lhe ajudar. É o meu dever e direito, Liz.
— Eu vou conseguir um trabalho, não preciso de ajuda — rebateu nervosa,
soube disso porque ela começou a colocar a mecha imaginária de cabelo atrás da
orelha.
— Grávida?
— Não quero o seu dinheiro — recusou cética.
— Liz, seja realista. Você acha que vão contratar uma funcionária que daqui
a alguns meses precisará tirar licença-maternidade? E eu já falei diversas vezes que
tudo o que tenho é seu. Eu não vou deixar você ao léu, ainda mais grávida! —
exclamei um tom mais alto, pois precisava tentar convencê-la.
— Eu vou tentar arrumar alguma coisa — Liz estava com o orgulho ferido,
sabia o quanto era difícil para ela dar o braço a torcer e aceitar ajuda de alguém, ela
sempre viveu por si só, ser independente estava no seu sangue.
— Liz, por favor, aceite. Não vou impor você a minha presença, vou ficar
em um hotel e você fica aqui, na nossa casa. Será mais confortável do que morar na
Cris. O apartamento dela é muito pequeno e sua amiga precisa de privacidade. E
além disso, vamos arrumar o quarto vago com as coisas do neném, eu vou te
acompanhar nas consultas e te ajudar no que for preciso.
— Por que você está fazendo isso?
— Porque amo você — respondi automaticamente, e me arrependi logo em
seguida. Não queria forçar a barra, muito menos afastá-la derramando meus
sentimentos.
— Você acha que eu não te amo? — Os olhos de Liz brilharam repletos de
lágrimas. Vi que ela se esforçava para não desabar.
— Ama? — perguntei esperançoso.
— Você acha que está sendo fácil para mim? Você apareceu na minha vida e
me fez sentir tudo que há muito tempo meu coração achava que não existia mais.
Caí de amores por você, para em seguida descobrir que você mentiu o tempo todo.
Agora estou sem casa, sem trabalho, grávida e sem o homem que eu amo, Gustavo.
— Eu estou aqui, Liz. — Tentei abraçá-la, mas ela me afastou.
— Não, não é tão simples assim. Eu deveria saber que amor entre homem e
mulher só traz sofrimento. Isso tudo estava fadado a terminar mal.
— Liz, não complique as coisas mais do que já estão complicadas. Ligue
para a Cris e diga que vai ficar aqui, pelo menos até o bebê nascer e você conseguir
um novo emprego.
— Não sei se esse arranjo vai funcionar.
— Liz, por favor, custa me ouvir ao menos uma vez?
— Se eu ficar, você promete não forçar nada? — Liz levantou-se e foi até a
janela da sala, ficando de costas para mim enquanto aguardava minha resposta,
sabia que ela fez isso porque não teria coragem de me pedir algo assim olhando nos
meus olhos, porque eu reconheceria se ela ainda me quisesse como homem e não
apenas como o pai do seu bebê.
— Liz, eu só quero cuidar de vocês, tudo bem? Deixe-me fazer isso, pelo
amor de Deus... Estou desesperado por tê-la a colocado nessa situação. Me deixe
fazer o que é certo — implorei.
Ela desviou o olhar da janela e balançou a cabeça confirmando.
— Será por pouco tempo, apenas enquanto consigo um novo emprego e me
estabeleço novamente.
— Tudo bem, agora posso te fazer um café? — perguntei querendo cortar
essa estática enlouquecedora que estava entre a gente.
“É, mas eu tenho grandes esperanças
Elas me levam de volta para
quando nós começamos...
E o mundo continua dando voltas...”
High Hopes – Kodaline
Liz
Gustavo me preparou o café da manhã em silêncio, esse simples gesto me
lembrou das nossas manhãs apaixonadas, eu amava a nossa rotina como casal, nós
funcionávamos bem um com o outro. Funcionávamos, no passado. Certo?
Gustavo preparou uma omelete, enquanto eu comia ele pediu licença e foi
até o quarto arrumar sua mala. Meu peito estava sangrando, tínhamos tantos planos
para essa viagem. A fome sumiu, revirei a comida de um lado para o outro no prato,
tentando entender porque as coisas deram tão errado.
Antes de partir ele parou ao meu lado na cozinha, hesitante soltou sua mala e
uma bolsa de mão ao seu lado, e deu um passo em minha direção. Recusei-me a
encará-lo, se eu o fizesse não o deixaria sair desse apartamento.
— Estou indo — ele balbuciou.
Assenti com a cabeça e tomei um gole do meu leite frio tentando esconder
minha emoção.
— Você não vai olhar para mim? — ele insistiu.
— Gustavo, por favor... — implorei. Não era justo que ele fizesse isso
comigo.
— Liz, você não vai se despedir de mim?
Inspirei profundamente, tentando encontrar forças dentro de mim para lidar
com essa pergunta.
— Boa viagem e boa sorte na competição.
— Dane-se a competição! — ele exclamou. — Eu estou indo embora, Liz.
Eu sabia disso, por isso doía tanto. Levantei da cadeira e o abracei, Gustavo
gemeu quando sentiu meus braços o envolvendo. Meu abraço falava por mim. Ele
me aconchegou no calor do seu corpo, e num sussurro eu falei a única coisa que eu
podia falar:
— Cuide-se.
— Se precisar de mim, por favor, ligue. Não me importa o que seja, apenas
ligue.
— Tudo bem — menti.
Ele beijou meus cabelos e saiu para embarcar para o Rio de Janeiro, onde
aconteceria a competição. Mesmo que eu precisasse, não ligaria, não queria
confundi-lo ou distraí-lo do seu trabalho. Além disso, nem mesmo todo amor e
admiração que sentia por ele, não me faria esquecer todas as mentiras.
Depois que me recuperei da sua partida, liguei para a Cris para avisá-la que
iria ficar no apartamento de Gustavo, porque tínhamos feito um acordo. E assim que
possível, passaria lá para buscar meu carro. Coisa que ela não deixou, fez questão de
trazê-lo para mim, junto com sorvete e comida do meu restaurante preferido.
Cris fez questão de enfatizar o quanto Gustavo estava sendo correto em
querer me ajudar, eu concordava com ela. Minha amiga também reforçou seu apoio
e admiração por ele ter reconhecido o erro, só pessoas maduras são capazes de
gestos como esse, segundo ela. Mas isso eu já sabia, Gustavo continuava sendo
incrível, igual ao homem por quem eu me apaixonei, não o Gustavo que mentia e
enganava, mas o verdadeiro, que encantava e protegia.
Ficar neste apartamento vão tornar as coisas mais fáceis, mas muito mais
complicadas para o meu coração. Cada canto dessa casa me trazia uma lembrança
de nós dois juntos, rindo e fazendo amor em cada cômodo, suas coisas estavam
espalhadas em todos os lugares: discos, livros, revistas, roupas, até seu cheiro
pairava no ar. Seria pedir demais que sua casa não parecesse com ele.
Depois de um longo tempo observando a casa e o silêncio incomum sem sua
presença, tomei um longo banho e desfiz a mala que eu tinha preparado para ir com
ele ao Rio de Janeiro. Quando já estava tudo arrumado, deitei na cama sentindo-me
muito mal para fazer qualquer outra coisa... Sua cama, que até um dia atrás era
nossa. Os lençóis cheiravam ao perfume dele, puxei-os até meu rosto e inspirei
fundo.
Eu iria enlouquecer!
O fim de semana passou lentamente como eu já esperava, Cris veio almoçar
comigo no domingo, conversamos sobre tudo, menos minha situação com Gustavo,
eu precisava de um tempo para respirar, ela me contou que na semana seguinte iria
reencontrar o Ricardo Sherman, ele estava entrando em um processo de divórcio
para adotar o Samuel. Fiquei tão tocada por ele abrir mão de seu casamento, para
poder ter um filho de coração, que derramei algumas lágrimas de admiração. Achei
Cris diferente ao falar do Ricardo, mas talvez fosse apenas coisa da minha cabeça.
Ela parecia tão admirada pelo caráter dele, talvez admirada não fosse a palavra
certa, ela parecia encantada. Perdidamente encantada por ele. Também, o homem
era lindo, bem-sucedido e, pelo que parecia, tinha um coração gigante.
Domingo à noite choveu bastante em São Paulo, passei as horas revezando
entre a cama e o sofá. Acabei ligando a tevê e vi uma reportagem sobre o
campeonato de motocross que Gustavo foi participar. Ele ficou em primeiro lugar,
Gustavo deu várias entrevistas para programas esportivos. Mesmo sem querer
assumir acessei todos os portais de esportes para ler notícias e comentários sobre
como ele. Não nego que fiquei muito orgulhosa de vê-lo tão bem no que ele gostava
de fazer. Ele me acusou de querer alguém com um diploma, mas mal sabia ele que o
que ele fazia valia muito mais do que qualquer pedaço de papel habilitando alguém
em uma profissão. Ninguém podia negar que era preciso mais do que talento para
voar em cima de uma moto em 360º graus e aterrissar sem um arranhão sequer no
chão. Ele comentou o feito nas entrevistas, espirituoso, sempre pronto com respostas
inteligentes e perspicazes. Meu peito encheu-se de orgulho. Eu queria estar ao seu
lado para poder dizer o quanto ele era incrível. Porém, as coisas não são como
desejamos e precisava lidar com isso como uma adulta.
A semana seguinte foi apenas uma repetição de ações, era como se eu não
estivesse dentro do meu próprio corpo. Alimentava-me, mas não sentia sabor.
Deitava, mas não dormia. Lia, mas não entendia uma palavra do que estava escrito
nas páginas. Sorria, mas chorava por dentro. Só sentia um vazio tão profundo que
parecia que não ia ter forças para encarar o dia seguinte, e essa sensação era a
mesma a cada dia.
Em uma das manhãs solitárias meu telefone tocou, senti um frio na barriga
com a possibilidade de ser Gustavo. Mas era a mãe dele, olhei para o telefone por
um tempo, tentando tomar coragem para ouvir o que ela tinha a dizer. Quando
restavam poucos segundos para a ligação cair, apertei o botão verde.
— Liz, querida. Como vai?
— Estou bem e vocês? — menti, eu odiava jogar conversa fora, mas
precisava ser gentil.
— Estamos todos bem. Mas não foi para falar da gente que liguei. Quero
saber como você está. Não concordei com a atitude do meu filho, e não quero
defendê-lo, porque no seu lugar também estaria muito chateada. Mas, Liz, quando
Gustavo nos contou sobre o retorno do pai vi a aflição dele por estar escondendo a
verdade de você. Ele achou que ocultando a verdade estaria te protegendo.
— Dona Carmen, não quero falar sobre isso.
— Eu sei, Liz. Só que não consigo não tentar interferir, vocês formam um
casal tão lindo, estão prestes a formar uma família, não é justo que um mal-
entendido afaste vocês.
— Agradeço a preocupação. Tenho pensado muito sobre o que aconteceu e
tentando lidar com tudo isso.
— Liz, meu caçula é um bom homem. Não estaria lhe dizendo isso se
achasse que ele não ama você. Gustavo sofreu muito com a ausência do pai, e essa
magoa ainda interfere em sua vida. Pense nisso, por favor...
***
As palavras da mãe de Gustavo ficaram girando na minha mente nos dias
seguintes, eu podia compreender a dor que ele estava sentindo. No entanto, isso
ainda não era motivo suficiente para ele mentir para mim.
Passamos a nos falar todos os dias por mensagens, basicamente para ele
saber como eu estava me sentindo. Daí em diante ele começou a vir me ver duas
vezes por semana, sempre carregado de sacolas de comidas, alimentos muito
nutritivos durante a gravidez, segundo os livros que ele leu sobre maternidade.
Mesmo eu falando que era um exagero, e que a geladeira ainda estava cheia de
comida, ele continuava vindo e o número de sacolas só aumentando. Em meio à
montanha de comida, ele também tinha a gentileza em trazer produtos de higiene
que eu usava, como meu xampu preferido e meu sabonete corporal.
Gustavo nunca tocou em qualquer assunto que pudesse me constranger, ele
apenas falava sobre assuntos seguros. Sobre o bebê ou sobre o tempo bipolar de São
Paulo. Estava dando o espaço que eu precisava, mas ainda assim eu tinha medo de
que ele soubesse o que fazer sem mim em sua vida, pois eu estava completamente
perdida sem ele.
Na terceira semana sem Gustavo, eu coloquei na minha cabeça que precisava
reagir. Na segunda-feira mandei meu currículo para vários escritórios e recebi
algumas ligações, mas assim que eles ficaram sabendo que eu estava grávida
disseram que a vaga já tinha sido preenchida. Durante as tardes comecei a caminhar
no parque perto de casa, às vezes, caminhava até não conseguir mais pensar; em
outros dias, eu apenas sentava em um banco e olhava o tempo passar acompanhando
o movimento das folhas das árvores.
No sábado Cris me acompanhou no passeio, ela insistiu que eu precisava
conversar com um psicólogo, mas não concordei. Insisti que estava bem e ela
acabou deixando o assunto para lá. O que eu precisava tinha nome e sobrenome e
não era um psicólogo, e sim um motoqueiro moreno, dono do par de olhos
castanhos mais lindos e vivos que já vi.
Mas ela me trouxe uma boa notícia, Ricardo Sherman retirou o caso de
adoção do escritório onde eu trabalhava, e queria que eu assumisse o processo, o
trabalho veio em boa hora. Eu precisava desse dinheiro mais do que nunca, e
também seria de uma ajuda enorme ocupar minha cabeça com algo útil.
No domingo de manhã acordei com a campainha tocando, abri a porta e me
deparei com Gustavo parado no vão da porta, ainda mais lindo do que eu lembrava.
Seu queixo carregava uma barba rala de dias sem fazer, ele estava mais magro por
baixo do jeans, camiseta branca e jaqueta de couro. Seu estilo me lembrou do James
Dean, só que ele conseguia ser ainda mais bonito à sua própria maneira.
Gustavo contraiu a mandíbula enquanto me olhava, como se estivesse
fazendo uma conferência de todas as partes do meu corpo. Minhas roupas esses dias
tinham sido um revezamento entre moletom e baby-dolls de algodão, não tinha para
onde ir, então não precisava trocar de roupa. Meu cabelo estava cada dia maior e
mais despenteado, não pintei mais as unhas nem usei maquiagem, isso era tudo
perda de tempo. Então você deve imaginar o estado em que me encontrava.
— Bom dia, Liz! — ele me cumprimentou, em seguida me fitou com olhos
predadores.
— O-oi... — gaguejei percebendo que estava de boca aberta admirando-o.
— Posso entrar? — Gustavo fez um gesto com a cabeça em direção ao
apartamento.
— Gustavo... — falei sem graça, ele precisava entender que era meu tendão
de Aquiles, não conseguiria ficar no mesmo ambiente com ele e manter minha
decisão de que somos melhores separados.
Era sufocante demais a vontade que tinha de beijá-lo.
— Só queria te ver. — Seu olhar pesaroso me desestruturou.
Respirei fundo e fiz um gesto para que ele entrasse.
— Você já comeu? — indagou.
— Não.
— Trouxe croissant quentinho e mais algumas coisas gostosas da padaria.
Posso nos fazer um café? — Ele levantou uma sacola de papel cheirando muito
bem. Meu estômago traidor roncou alto. Nem lembrava a última vez que comi algo
saudável. E sempre gostei tanto do café caprichado que ele fazia para mim.
Ela estava jogando sujo!
— Tudo bem — disse sem conseguir evitar sorrir, ele não perdia essa mania
de querer me alimentar o tempo todo.
— Suco de laranja para você?
— Para mim está bom — respondi constrangida, fazia dias que não nos
víamos, sua presença parecia me sufocar, sentia-me como se tivesse desaprendido a
respirar cada vez que ele estava aqui.
Meu Deus, ele continuava tão lindo!
Depois de alguns minutos constrangedores de silêncio, Gustavo preparou
uma mesa com ovos, pães, biscoitos, sucos e frutas. Um verdadeiro banquete que
não via há muito tempo. Sentei na cadeira do outro lado da mesa e comi um
pãozinho com suco. Estava com saudade desse cuidado, com mais saudades do que
queria confessar.
Percebi que ele olhava para as minhas mãos, principalmente para a mão que
ainda usava o anel de noivado. Escondi a mão embaixo da mesa, Gustavo percebeu
minha reação e fitou meu rosto.
— Você ainda está usando o anel — afirmou.
— Esqueci de tirar — menti.
— Certo. — Seu olhar vagou pelo meu corpo e ele continuou: — Você está
mais magra, mesmo eu trazendo suas comidas preferidas. — O olhar dele sobre
mim era intimidante, ele parecia notar cada pequeno detalhe, como se estivesse
fazendo uma minuciosa vistoria dos estragos que causou.
— Vou tomar isso como um elogio — respondi.
— Você está linda com barriguinha... ainda mais do que antes, porque agora
você está carregando o meu filho — seu comentário me desconcertou.
— O bebê está crescendo, é isso que está acontecendo — tentei soar o mais
indiferente possível ao seu floreio.
— Seu cabelo também cresceu.
Passei as mãos nos fios desgarrados.
— Não tenho para onde ir, penteá-los é uma perda de tempo.
— Eu gosto deles assim, soltos e livres caindo por todos os lados, cobrindo
seus ombros e costas. Na verdade, não tem nada sobre você que eu não goste ou que
meus olhos não aprovem.
Engoli em seco. Ele sorriu sem graça da minha reação.
— Veio até aqui para me deixar sem graça?
— Me desculpe, não queria lhe deixar constrangida.
— Eu não quis ser grossa, me desculpe, é que me deixa aflita saber que
alguém está prestando tanta atenção em mim.
— É que é impossível tirar os olhos de você, mesmo que eu tente. —
Gustavo fixou o olhar em mim, o calor se espalhou pelas minhas bochechas, nem
precisava me ver em um espelho para ter certeza de que fiquei da cor de um tomate
maduro. Uma onda de excitação percorreu pelas minhas veias, minha libido já
estava em alerta.
Meu rosto corou mais uma vez quando me lembrei de que estava usando
apenas de camiseta sem qualquer sutiã. Os olhos de Gustavo se afastaram do meu e
vi-os descendo até minha boca, lentamente até meu pescoço, colo e seios. Ele
encarou aquela região do meu corpo com um olhar selvagem, minha respiração
ficou imediatamente ofegante, a conexão sexual entre nós ainda estava lá. Ainda era
a mesma.
Mas aí eu me lembrei de que não era apenas disso que se fazia uma relação.
Levantei-me e fui para a cozinha acalmar meus hormônios de grávida cheia de tesão
acumulado. Enchi um copo de água gelada e tomei de uma só vez, como se
conseguisse esfriar meus pensamentos com isso.
— Liz, a consulta com a obstetra é na próxima semana, posso acompanhá-
la?
— Claro. Nunca iria me impor a isso, Gustavo.
Ele assentiu, e olhou para a comida em seu prato intocada. Vir me trazer café
da manhã era uma desculpa, Gustavo estava planejando alguma coisa.
— Obrigada, pelo café — agradeci.
— Na verdade vim te buscar para irmos ao shopping, você já fez uma lista
do que é necessário comprar para o bebê?
— Por quê?
— Precisamos comprar as coisas do neném.
— Gustavo, está cedo para pensar nisso. Além disso, eu não sei se é uma boa
ideia irmos juntos.
— Por que não? Eu quero participar de tudo, não irei abrir mão disso.
Olhei para ele ali tão solícito e bem-intencionado que uma angústia esmagou
meu coração. Meus olhos começaram a arder, eu sabia que se continuasse olhando
para ele iria começar a chorar feito uma idiota.
— Ok, vou tomar um banho. Já volto.
“Olhos fechados, pra te encontrar
Não estou ao seu lado, mas posso sonhar
Aonde quer que eu vá
Levo você no olhar
Aonde quer que eu vá...”
Aonde quer que eu vá – Paralamas do Sucesso
Gustavo
Eu iria explodir.
Como pode uma única pessoa mexer tanto com a minha cabeça? Eu estava
enlouquecendo sem ver Liz por tanto tempo, preferia lidar com seu tratamento frio e
apático do que não ter nada dela. Estava tentando respeitar seu espaço e vir checá-la
o mínimo possível. Estava agindo como um adulto e dando o tempo que ela
precisava para colocar as coisas no lugar, mas estava morrendo de medo de dar
tempo demais e ela entender que pode viver sem mim. E eu morreria se ela fizesse.
Todo santo dia eu ficava feito um idiota pensando no que eu podia fazer para que ela
me perdoasse. E não conseguia pensar em nada, eu deveria saber antes de esconder
as coisas dela, Liz odiava mentiras. Por que achei que ela lidaria bem com as
minhas?
Minha mãe sempre ligava para saber como estava passando por isso e como
estava me preparando para a cirurgia. Já que o resultado dos exames dela e dos
meus irmãos saiu e, para surpresa de todos, dos quatro eu era o único compatível
para doação. Então, terei que fazer o transplante que foi marcado para o próximo
mês. Estava surtando, minha mãe queria que eu voltasse para casa para poder cuidar
de mim, porém eu nunca seria capaz de deixar Liz aqui sozinha nessa cidade. Parei
com os treinos e agora gastava meu tempo antes da cirurgia pesquisando como era
ser pai, como fazia para saber quando um bebê estava com fome, e como não
enlouquecer antes dos trinta.
Quando ela abriu a porta do apartamento, todo meu sangue aqueceu, parecia
que meu corpo, que antes estava em estado de morte, recebeu um sopro de vida nos
pulmões. Fiquei embasbacado, vendo seus olhos cristalinos me olhando, a boca
suculenta aberta em surpresa me desejando, as sardas enfeitando o rosto corado,
seus seios apertados contra a malha fina da camiseta parecendo tão bons para serem
tocados. Suas pernas incrivelmente nuas no pequeno short de dormir. Seus cabelos
loiros claríssimos despenteados e sensuais caindo nos ombros. Precisei me esforçar
para voltar a respirar e não parecer um pateta. O nosso apartamento continuava o
mesmo, tudo no mesmo lugar desde o dia que saí daqui.
Precisava aproximar-me lentamente e ir quebrando o muro de proteção que
ela construiu novamente, com paciência precisava quebrar tijolinho por tijolinho
para alcançar novamente seu coração, não podia mais suportar tê-la tão distante, tão
reticente.
Enquanto Liz estava no banho, uma onda de excitação me fez querer entrar
no chuveiro com ela, e deslizar minhas mãos por cada pedaço de pele que pudesse
alcançar. Na verdade, daria tudo para tocar sua barriga que estava cada dia maior e
mais redonda. Deslizar minhas mãos por sua pele macia e nunca mais soltá-la.
Rapidamente mudei de ideia, não queria assustá-la, isso só faria Liz se afastar ainda
mais.
Cris tem me mantido informado sobre tudo que diz respeito a ela, o que tem
me deixado ainda mais aflito. Quando ela me contou que Liz andava triste e
desanimada, fiquei dias sem conseguir dormir, morrendo de vontade de vir até aqui
bater na sua porta e implorar seu perdão. Com relação à Liz, não tenho qualquer
dignidade de sofrer calado.
Para passar o tempo, enquanto esperava por ela, lavei a louça e limpei a
mesa em que tomamos café.
Uns vinte minutos depois Liz apareceu na sala com um vestido verde de
crepe com pequenas estampas, a cintura bem marcada e a saia godê lhe deixaram
com a circunferência abdominal avantajada ainda mais evidente, por cima da peça
fina ela vestiu um blazer branco que eu amava quando ela o usava para trabalhar,
toda profissional e sexy.
— Podemos ir agora? — perguntou sem graça por me pegar lhe secando.
— Você está linda, Liz — elogiei tirando-lhe um sorrisinho de canto de
boca, ela passou na minha frente e deixou um rastro agradável do seu perfume
floral. Essa mulher queria me enlouquecer.
Fomos no meu carro, durante todo o caminho até o shopping ficamos em
silêncio. Passei os olhos pelas suas coxas e um desejo de tocá-las me consumiu por
dentro. Para desviar meus pensamentos de como gostaria de comer Liz viva contra o
painel do carro, liguei o rádio, e a música Honest, do Kodaline, tocou pelos
altofalantes. Liz me fitou, comparando o quanto a letra da música se encaixava
perfeitamente nessa situação. Respirei fundo tentando aceitar o que estava
acontecendo entre nós.
Ajudei Liz a descer da pick-up e um instinto natural me fez colocar a mão no
final de sua coluna para guiá-la. O toque naquela região, mesmo que por cima da
roupa, fez todo o meu corpo arrepiar de desejo, travei a mandíbula e pensei em
filhotes de cachorros para tentar baixar a minha ereção.
Porra! Nunca fiquei tanto tempo sem tocar em uma mulher na vida.
Olhamos as vitrines das lojas distraídos por um tempo, até avistarmos uma
grande loja com artigos para bebês, peguei a mão de Liz e entramos. Era uma
infinidade de roupinhas, fraldas e brinquedos. Fiquei completamente perdido. Uma
vendedora sorridente de meia-idade se aproximou de nós na intenção de ajudar.
— Olá, bom dia, em que posso ajudá-los? — perguntou solícita.
Eu olhei para a Liz, e ela me encarou como se buscasse ajuda sobre o que
responder.
— Bem, nós estamos querendo comprar um enxoval para o bebê —
expliquei.
— Vocês já sabem o sexo? — perguntou a vendedora.
— Ainda não, só na próxima visita a obstetra — Liz respondeu.
— Ok, temos algumas opções de decoração para o quarto em tons neutros
que serve tanto para menino como menina, mas claro que depois vocês podem
colocar alguma cor em pequenos detalhes após descobrir o sexo do bebê.
— Ah... — Liz suspirou sem jeito.
— Vocês têm uma lista? — a mulher perguntou e vi o rosto aflito de Liz por
não ter pensado nisso.
— Não sabia o que seria preciso — Liz respondeu constrangida, incomodada
por não saber desses detalhes.
— Pais de primeira viagem? — a vendedora indagou abrindo um sorriso
ainda maior.
— Sim. Eu quero que nos mostre tudo que iremos precisar — adiantei-me.
— Quero levar tudo que meu filho tem direito e mais um pouco.
— Claro, nossa loja fornece uma lista para ajudar pais como vocês. Vamos
ver primeiro os móveis do quarto. Vocês têm preferência de cores?
A vendedora, que depois se apresentou como Adriana, era mãe de cinco
filhos quase todos criados e tinha muita experiência com crianças. Ela nos mostrou
gentilmente vários modelos de quarto com berço, guarda-roupa, cadeira de apoio
para amamentação e cômoda.
Nós gostamos de um conjunto branco com móveis no estilo provençal,
simples e muito elegante. O enxoval do berço, Liz escolheu um todo branco com
detalhes em dourado, que a vendedora informou que depois poderíamos adicionar
elementos na decoração para deixar mais com a cara do bebê.
Depois começamos a escolher cortinas, lençóis, colchas, mantas, roupinhas,
sapatinhos, e uma infinidade de coisas que eu nem sabia para que existiam.
Enquanto a vendedora dava dicas sobre como usar cada coisa e para que serviam,
observei Liz encantada em aprender cada detalhe de como cuidar do nosso filho.
Meu coração sorriu por ela estar feliz em esperar nosso fruto. Quando saímos da
loja, Liz permaneceu com um sorriso bobo no rosto. Desde o nosso rompimento, eu
ainda não tinha a visto sorrindo dessa maneira.
— Gustavo, eu quero te pagar por tudo aquilo. Estou tentando vender meu
carro e tenho trabalhado em um caso — ela me disse.
— Como é? — perguntei sorrindo. — Liz, eu não vou aceitar nenhum
dinheiro pelo enxoval do nosso filho. E não concordo que você venda seu carro para
me pagar. Eu quero dar a vocês tudo que estiver ao meu alcance. Mas fico feliz que
esteja se mantendo ocupada trabalhando.
— Eu quero poder te ajudar com as contas do apartamento.
— Liz, me deixa fazer pelo menos isso por nós. Não é tanto dinheiro assim e
não é nada que vá me fazer falta.
— Tudo bem — bufou irritada.
— Está com fome? — perguntei torcendo para ela aceitar almoçar comigo,
queria prolongar cada segundo que podia ter ao seu lado.
— Sim, muita. — Liz sorriu.
— Então, vou alimentá-la.
Levei-a em um restaurante no shopping mesmo, pedimos uma massa para
almoçar. Liz comeu toda a refeição, e eu mal dei duas colheradas, meu interesse era
ficar apenas a admirando, linda e esfomeada atacando a comida e fazendo uma cara
de prazer indescritível.
— Você não vai comer? — ela perguntou apontando para o meu prato
intacto com o garfo.
— Estou com pouca fome. — “Prefiro ficar admirando você”, pensei.
— Ultimamente eu não tenho sentido muita fome. Mas hoje o bebê parece
estar feliz com o almoço. Desculpe-me — ela falou de boca cheia.
— Quando sentir vontade de comer alguma coisa me avise que levo para
você. Você precisa se alimentar melhor, pelo bebê e por mim também, gosto de ver
você comer bem — confessei e vi suas bochechas corarem. Liz parou de mastigar e
limpou a boca com o guardanapo constrangida. — Me desculpe, eu não quis ser
inconveniente — tentei corrigir a mancada.
— Não precisa se desculpar. Podemos ir agora? Estou cansada, não sabia
que dava tanto trabalho escolher roupinhas de bebê.
Deixei Liz no apartamento, depois de ter lhe ajudado a subir as sacolas. O
resto das coisas a loja entregará amanhã. Quando ela abriu a porta para eu ir embora
vi-a hesitar em me deixar ir.
— Gustavo... — Liz sussurrou.
— Liz? — Rezei para ela me pedir para ficar, daria meu outro rim para
dormir em seus braços pelo menos por mais uma noite.
— Obrigada por tudo. — Seus olhos cristalinos não me diziam o que sua
boca sussurrou. Forcei-me a dar-lhe uma resposta amigável para não cometer a
loucura de enfiar os pés pelas mãos e imprensá-la contra essa porta e mostrar o
quanto estou desejando provar sua boca.
— Estou aqui, Liz, para o que precisar. — O azul profundo de seus olhos
ficaram enevoados de lágrimas não derramadas, como se as minhas palavras
ferissem algo nela. Saí de lá um pouco mais confiante, ela ainda se importava. Todo
seu corpo demonstrava isso.
Cheguei ao quarto no apart-hotel em que estava morando e caí na cama, as
imagens de Liz alisando a barriguinha saliente e conversando com a vendedora não
paravam de girar na minha cabeça. Como eu queria livrá-la daquele vestido, beijar
aqueles lábios carnudos, sentir seu cheiro de flor acalmando minha alma.
“Como cortar pela raiz se já deu flor?
Como inventar um adeus se já é amor?
Como cortar pela raiz se já deu flor?
Como inventar um adeus se já é amor?...”
Morada – Sandy
Liz
Depois do nosso domingo comprando o enxoval do bebê, meu coração
estava ainda mais machucado. Todo meu corpo queria convidá-lo para ficar e
permanecer para sempre ao meu lado. Mas eu não podia, eu não podia esquecer que
ele me enganou, quando escondeu de mim todo aquele tempo uma coisa tão
importante sobre seu passado, e a forma horrível que ele me acusou de tê-lo traído
com o Matheus ainda martelava na minha cabeça dia e noite. O perdão era algo que
eu ainda não aprendi a exercitar... nem sei se algum dia irei, depois de tudo que já
passei quando meu pai se foi. Não, ele não se foi, ele escolheu ir.
Pensando bem era muita hipocrisia a minha, não podia perdoar o homem que
amava, mas queria que ele perdoasse o homem que lhe abandonou quando ele era
apenas uma criança. Pelo simples fato de que eu daria minha vida para ter a chance
que ele estava tendo agora, de poder ir e salvar a vida do meu pai. Como eu queria
poder ter tido essa chance... talvez hoje eu não fosse tão resguardada sobre tudo,
talvez eu não me sentisse estranha e deslocada a maioria do tempo. Talvez, apenas
só talvez, eu não tivesse tantos traumas sobre ser abandonada. Era egoísmo meu
comparar nossos passados, marcados miseravelmente pelo abandono da figura que
mais amávamos no mundo. Cada um dos nossos pais teve seus motivos para partir,
mas ainda assim, eu e Gustavo não fomos suficientes para mantê-los.
E eu que pensei que éramos pessoas completamente distintas, quando, na
verdade, éramos iguais no tamanho da dor que carregávamos. Ser deixado para trás
era uma ferida que nunca cicatrizava, esse fato irá nos acompanhar como uma
cicatriz no rosto e cada vez que nos olharmos no espelho, iremos lembrar que não
fomos bons o suficiente para que nossos pais quisessem ficar nas nossas vidas.
O dia do aniversário de Gustavo chegou como um raio. Certamente hoje já
estaríamos casados, ou quem sabe o grande dia fosse hoje? Imaginei-me entrando
naquela linda capelinha de Belo Horizonte enquanto Gustavo me esperava no altar
com um sorriso bobo. Eu estaria radiante.
Ri com a lembrança da conversa inusitada entre Gustavo e o padre no
batismo da Cléo, recordei-me da forma que ele resolveu sem qualquer delonga
nosso casamento. Eu amava a sua forma descomplicada de resolver a vida, ele
sempre sabia como resolver as coisas com praticidade, diretas e retas. Sentia falta do
seu jeito intempestivo, eu nunca sabia o que esperar dele, na verdade sentia falta de
tudo. Afastei a saudade dos meus pensamentos e voltei a fantasiar em como seria
meu grande dia.
Olhei o céu chuvoso pela janela e pensei no quanto eu estaria ansiosa agora,
preparando um aniversário, ou quem sabe estaríamos de volta na praia aproveitando
seu dia especial entre as ondas azuis do mar, ou quem sabe nos amando sob as
estrelas.
Perdemos tantas coisas... precisava parar de me lamentar.
Subitamente senti-me ousada e corajosa a ponto de querer ir vê-lo, eu
precisava desejar-lhe parabéns. Mesmo que não pudéssemos ser um casal, ainda
seríamos pais dessa criança que estava em meu ventre, precisávamos manter uma
convivência saudável, eu apreciaria desfrutar da sua amizade. Gustavo sempre me
fez rir, sentia falta disso.
Então, por que não ir desejar-lhe parabéns? Seria muito deselegante da
minha parte fingir que não sabia que dia era hoje. E também, talvez o amor
transforme erros incorrigíveis em apenas erros.
Corri para o quarto, vesti um vestido soltinho, um dos poucos que ainda
cabiam em mim. Peguei um cardigã e saí para encontrá-lo. Gustavo me passou o
endereço do apart-hotel em que ele estava hospedado, ele preferiu ficar em um lugar
perto de mim para o caso de eu precisar dele para alguma urgência, mesmo eu tendo
deixado claro que não precisava, ele insistiu em ficar no mesmo bairro. Para falar a
verdade, eu me sentia um pouco mais segura sabendo que ele estava a apenas
algumas quadras de mim.
Cheguei lá rapidamente, porém antes de ir passei em uma padaria e comprei
um bolo de aniversário para ele, afinal, não era aniversário se não tinha um bolo. Na
recepção do hotel pedi a recepcionista para não ser anunciada porque queria fazer
uma surpresa, subi o elevador e bati na porta ansiosa. Alguns segundos depois, a
porta foi aberta e encontrei um par de olhos castanhos e arregalados me encarando
como se não acreditasse no que via.
Gustavo vestia apenas uma calça de moletom amarrada tão baixa no cós que
deixava aquele V delicioso mostrando todo o caminho para o paraíso. Já não bastava
ser lindo, ainda tinha que estar sempre parecendo ter acabado de sair de uma capa de
revista da Vogue.
Mas não me deixei ser afetada por seu abdômen.
— Feliz aniversário! — exclamei levantando o bolo de chocolate coberto
com morangos na frente do seu rosto.
— Liz? Uau, que surpresa boa! — ele falou surpreso.
— Atrapalho? — perguntei constrangida.
— Não, vem entra — Gustavo disse sorrindo. Antes de pegar o bolo das
minhas mãos, ele me deu um beijo no rosto e eu o acompanhei para dentro do
quarto.
— Me desculpe por ter vindo sem avisar, mas não poderia deixar de vir. O
bolo é todo seu.
— Muito obrigado, esse é um gesto muito gentil. Nem sei qual foi a última
vez que soprei velinhas. Sempre passo meu aniversário longe de casa.
— Não foi nada, é uma pena que não siga a tradição. Todo aniversário
precisa de um bolo para que você possa fazer o pedido de aniversário. Meu pai dizia
que esse é o melhor momento para pedir algo inalcançável.
— Ah, é? — Gustavo pareceu interessado na história, então continuei a
tagarelar para disfarçar meu nervosismo.
— Uma vez eu queria muito um par de patins rosa que todas as minhas
coleguinhas da escola tinham. Mas meu pai não queria comprar porque eu tinha
ganhado uma bicicleta no Natal e quase nunca a usava. Ele tinha medo que eu
ignorasse os patins como fiz com a bicicleta, meu pai odiava desperdiçar dinheiro.
Mas continuei insistindo.
— Já posso imaginar uma menininha loira e linda fazendo birra — Gustavo
brincou.
— Me deixe continuar, você precisa ouvir isso. Eu estava quase desistindo
dos patins quando papai me contou que eu poderia fazer um pedido especial quando
soprasse as velinhas do meu aniversário. Ele disse que tudo que eu pedisse naquele
momento seria realizado. Esperei três longos meses até minha festinha de dez anos,
quando soprei as velas pedi com toda minha fé meu par de patins rosa. No dia
seguinte, quando acordei, encontrei o meu tão sonhado par de patins que cheirava a
chiclete ao lado da cama. — Sorri da lembrança. Gustavo pareceu encantado me
ouvindo tagarelar, então continuei: — Antes, quando morava sozinha e não
conhecia ninguém na cidade, eu mesma comprava meu próprio bolo de aniversário
soprava as velinhas, fazia meu pedido e depois comia sozinha assistindo seriados na
tevê. Eu sei que era decadente, mas era um ritual para mim... — terminei de falar e
olhei ao redor do quarto para evitar encarar meu interlocutor atento.
— Não é decadente.
— Ah, era sim, era bem solitário também. E por saber quanto é ruim passar
esse dia sozinha resolvi vir te fazer companhia.
Gustavo me fitou com olhos afetuosos, nos encaramos até ele dizer meu
nome, fazendo um arrepio espalhar-se pela minha pele.
— Liz... — Sua voz suavizou. — Posso saber o que você pedia a cada ano?
— Não posso contar. Quebra a magia. — Sorri.
— Gosto de descobrir os detalhes sobre sua vida — Gustavo galanteou.
Sei que ele estava tentando ser charmoso, mas deveria avisá-lo que para isso
não precisava se esforçar. Fingi que não ouvi o que ele disse, olhei o lugar. Era
agradável, entretanto pouco pessoal. O quarto era simples e muito bagunçado, bem
diferente de como ele mantinha seu apartamento. Vi uma imensidão de
equipamentos de treino espalhados por todos os lados, no centro havia uma cama
branca com lençóis azul royal, um frigobar, uma mesa com computador e uma TV
de plasma na parede em frente à cama.
— Esse bolo está com a cara muito boa, mas não esperava que você
lembrasse — falou colocando-o no balcão.
— Gustavo... — Ele se virou para mim com um olhar angustiado. — Eu
nunca esqueceria.
— Fico muito feliz em te ver hoje, Liz. Poder ver você é o segundo melhor
presente que eu poderia ganhar — Gustavo falou se aproximando.
Segundo? Não resisti e perguntei:
— E qual seria o primeiro?
— Casar com você — ele respondeu rapidamente sem se afetar.
Engoli em seco e mudei de assunto fingindo que essa informação não me
desestruturou como um castelo de cartas que desaba quando é retirada uma das
peças que sustentam sua estrutura.
— O que você vai fazer hoje? Não te atrapalhei, não é?
— Claro que não, acho que ia tomar umas cervejas, pedir pizza e assistir
alguns filmes. Seria só mais um dia, mas agora você está aqui, então, acho que
preciso comemorar.
— Poderíamos assistir a um filme, posso te fazer companhia — Tentei ser
mais agradável possível.
— Mas eu escolho o filme, afinal é o meu aniversário — Gustavo ponderou.
— Tudo bem, mas tenho uma condição.
— O quê?
— Você escolhe o filme se eu e o bebê pudermos escolher as comidas.
Gustavo gargalhou alto como há muito tempo não ouvia quando me ouviu
falar "eu e o bebê".
— Trato feito — concordou e sentou-se na cama com as costas encostadas
na cabeceira acolchoada. Ele flexionou o braço e pegou o controle, o movimento me
fez reparar em cada músculo do bíceps e costas.
Santo Deus, isso será uma tortura!
— O exorcista? Não, Gustavo, eu pensei em algo como uma comédia —
perguntei sentando ao lado dele, enquanto ele olhava as opções de filmes de terror.
— Sim, você sabe que adoro filmes de terror, minha flor. — Ele selecionou o
filme e sorriu para mim.
— E você sabe que eu tenho medo. Mas não vou reclamar porque é o seu
dia.
— Eu te protejo. — Baixei os olhos sem graça pelo comentário, mas sei que
foi apenas algo automático. Esse seria o tipo de brincadeira que teríamos se ainda
estivéssemos juntos como um casal.
Ele apagou as luzes em um interruptor ao lado da cama, deixando acesa
apenas a luz da soleira da porta, o quarto ficou com uma iluminação confortável.
Assistimos em silêncio boa parte do filme, um do lado do outro na cama sem nos
tocar.
Estávamos tão tensos com essa proximidade que mal podia ouvi-lo respirar.
Meus olhos não desfocavam da televisão, mas se me perguntarem o que está
acontecendo eu não saberei responder. Porque minha mente está obcecada pelo
moreno ao meu lado sem camisa.
Em dado momento levei um susto por uma cena horripilante do filme e me
agarrei nele por puro instinto de buscar proteção. Minhas mãos pousaram frias sobre
o seu tórax quente, meus dedos formigaram de desejo com o simples toque. Eu tinha
esquecido o quanto seu corpo estava sempre quente. Gustavo capturou meu olhar
com tanta fome que toda minha carne implorou por mais. Suas mãos me seguraram
pelas costas, me prendendo firme contra seu peito nu. Fiquei com a boca
entreaberta, ofegante e incapaz de ter qualquer reação.
Ele ainda me queria, e saber disso, sentir como o afetava mesmo com o
estômago parecendo uma bola de futebol me encheu de calor. As mãos de Gustavo
deslizaram pela minha coluna lentamente me enlouquecendo e explodindo toda a
ânsia que guardei durante o tempo que estávamos separados.
Passei a mão por seus cabelos e lhe beijei na boca, Gustavo puxou meus
cabelos trazendo nossas bocas mais próximas, com fome e sofreguidão. Minha
perna enlaçou seu quadril e antes que eu sequer percebesse já estava montada sobre
ele, o tecido leve do vestido levantado até a cintura, me deixando friccionar
livremente contra o que meu corpo ansiava, me esfreguei feito uma louca, muito
ensandecida de tesão para ter vergonha.
— Meu Deus, minha flor, que saudades... — Gustavo balbuciou entre os
beijos.
— Gustavo... — choraminguei baixinho, apenas amando a forma que ele me
fazia sentir.
— Eu estava ficando louco, Liz. — Gustavo disse enquanto raspava os
dentes pela pele sensível do meu pescoço.
— Gustavo, por favor... eu preciso tanto... — implorei tomada de luxúria,
com as ondas de calor aquecendo o meu núcleo, a cada movimento que fazia com o
corpo, uma partícula de desejo era acesa, a qualquer momento eu cairia em queda
livre e não precisava de asas para voar de tanto prazer que só Gustavo era capaz de
me fazer sentir.
“Hoje eu preciso ouvir qualquer palavra tua
Qualquer frase exagerada que me faça sentir alegria
Em estar vivo...”
Só Hoje – Jota Quest
Gustavo
Esse, sem dúvida, foi meu melhor aniversário, acordei puto da vida e
sozinho. Já estava disposto a passar o dia na cama, me embebedar na esperança de
esquecer a droga que minha vida se tornou desde que decidi mentir para a única
pessoa no mundo que eu não poderia ferir. Correr na Rose seria um risco já que em
São Paulo estava caindo um temporal.
Quando estava procurando no frigobar algo para beber ouvi a campainha
tocar. Fui abrir a porta já imaginando como ia dispensar o Dudu para aproveitar meu
dia de fossa, mas ao contrário do que pensei, vi um anjo loiro sorrindo para mim,
meu coração parou de bater por um segundo, como se eu morresse e voltasse à vida
em uma questão de segundos.
Liz me trazer um bolo foi tão doce, ouvi-la tagarelar sobre sua infância com
seu pai encheu meu coração de amor, mas logo depois ouvir sobre os anos que ela
passou o aniversário sozinha me partiu ao meio, me doeu como um soco. Como
pode alguém não desejar passar cada segundo em sua companhia? Porque era
assim que me sentia. Queria poder estar ao seu lado sempre.
Quase perdi meu controle e lhe arranquei um beijo na boca nesse momento,
mas respirei fundo e me conformei em lhe beijar a bochecha e convidá-la para
entrar. Travei outra batalha para não lhe jogar na cama, respeitei seu limite de
espaço e me mantive afastado, eu mal olhei em direção ao filme, meus olhos não
queriam se afastar dela. Observei cada pequena reação, cada respiração pesada e
cada vez que ela tocava o ventre com nosso filho. Quando Liz se assustou com o
filme e me agarrou, ponderei se devia aproveitar a deixa e abocanhar sua boca
esperta, mas antes que eu me decidisse, ela tomou a iniciativa e simplesmente
encostou os lábios nos meus; eu perdi a cabeça.
Meu Deus, que saudade...
Quando ela montou em mim, tive certeza de que ela estava sentindo minha
falta tanto quanto eu estava sentindo a dela, a prova que precisava era sua calcinha
molhada sobre meu pau dentro da calça, ela estava excitada.
Por mim, porra!
Puxei lentamente seus seios para fora do vestido que estava usando e
comecei a sugá-los, senti um gosto adocicado, aproveitei imaginando o quanto meu
filho ia ser um bebê de sorte. Ela arqueou as costas quando suguei com força sua
aréola e pressionei a língua áspera contra seu mamilo.
— Eu não posso... — Liz choramingou no meu pescoço.
— Minha flor, você quer, qual o problema? — perguntei não lhe dando
qualquer chance de resposta, cobri sua boca com a minha em um beijo esfomeado.
— Não posso — ela repetiu agarrando meus ombros me fazendo parar.
— Eu estou com tanto tesão, faz muito tempo, Liz, que estive dentro de
você...
— Eu também estou com saudade, meus hormônios estão enlouquecidos, eu
quero você todos os dias... Tanto — Liz falou movendo-se em cima do meu membro
pressionado contra ela.
Rapidamente, eu me ergui e deitei-lhe de costas no colchão, cobrindo seu
corpo com o meu.
— Deixa, por favor... Estou cheio de desejo e você também, pense que
estamos apenas nos divertindo, e dando prazer um ao outro. Não raciocine tanto as
coisas. Viva, Liz!
— Eu perco qualquer razão quando suas mãos estão sobre mim... não é justo
— Liz falou me oferecendo os seios inchados.
— Me deixa te dar prazer. Se permita uma vez na vida apenas aproveitar...
— implorei lhe sugando os seios com força fazendo-a gritar; quando soltei, soprei
sobre a pele sensível deixando-a ainda mais necessitada.
— Ah, o que você faz comigo? Isso é errado, não é saudável — sussurrou.
— Eu sei como você gosta, Liz. Saudável é ser feliz, deixa-me te melar com
aquele chocolate e te lamber inteira, deixa? — provoquei.
— Você não teria coragem — acusou-me em tom desafiador, mas ela deveria
saber com quem estava brincando. Me chamo Gustavo Salles, porra! É claro que eu
tenho coragem.
Levantei-me num pulo e caminhei até o bolo, parti uma fatia, servi em um
prato e trouxe para a cama. Quando voltei, vi-a deitada com as pernas abertas, com
uma tanguinha vermelha de renda e o vestido enrolado em uma tira sobre o
abdômen. Era a imagem do paraíso.
— Gustavo, você não faria isso — Liz gracejou.
— O primeiro pedaço é seu. — Peguei um pedaço com os dedos e lhe dei na
boca, ela abriu os lábios e ao fechá-los sugou lentamente meu dedo, me provocando.
Apoiei o prato na cama, tirei seu vestido e calcinha, comecei a espalhar
pedaços de bolo pelos seus seios e sugá-los, me deliciando com o sabor sofisticado
do chocolate meio amargo e a pele saborosa de Liz. Cada beijo que dava em sua
pele, eu era respondido com um gemido, a boca de Liz formava um "O" de lasciva.
Quando comecei a espalhar beijos e mordidas deste o seu tornozelo até as
coxas, baixei até seu núcleo molhado, ela puxou meus cabelos forçando meu rosto
ali.
— Seu cheiro e seu gosto é melhor que qualquer outro doce, sou viciado em
você. Eu me masturbo todas as noites para conseguir dormir, você tem noção do que
faz comigo minha flor? — perguntei comendo a ganache com um pedaço de
morango sobre seu clitóris.
— Oh, meu Deus, Gustavo! — ela arfou em delírio.
— Deliciosa! — gritei, provocando-a naquela região até vê-la agonizando
em prazer, com nossos corpos pegajosos pelo doce entre os farelos de bolo
espalhados pela cama, mas nada disso importou. Quando já estava me levantando
para penetrá-la, Liz se levantou de repente.
— Minha vez — ela disse com a sobrancelha levantada e um sorriso sapeca.
— O que você quer? – perguntei.
— Provar você... — Quem sou eu para negar um pedido desses?
Deitei de costas na cama obedecendo aos desejos dela, Liz puxou minha
calça e ficou toda lambuzada sobre os joelhos me admirando nu. Os olhos azuis dela
brilhavam como os de uma criança em frente a uma loja de doces.
— Gosta da vista? — perguntei presunçoso, deslizando a mão pelo meu
estômago e me tocando lentamente.
— Vai ficar mais bonita com uma boa camada de chocolate e morango. —
Ela mordeu um pedaço do bolo e voltou a beijar minha boca, quando senti o sabor
rico do cacau gemi deliciado.
Ela seguiu seu caminho de beijos, lambidas e chupões por todo o meu corpo,
quando já estava chegando perto da minha barriga eu ofeguei em antecipação, Liz
mordeu o lábio e enfiou o dedo na cobertura no prato, passou sobre toda a extensão
do meu pênis e colocou-o na boca, todo meu corpo se arrepiou.
Liz começou uma sequência de carícias com seus dedos aveludados e
carícias molhadas com sua língua. Quando já estava chegando perto, tentei puxá-la
para mim, mas ela não parava de me chupar.
— Liz... — implorei com a voz falha.
— Está tão gostoso... — ela disse afastando a boca de mim e me acariciando.
Quando terminou de falar colocou-o novamente na boca e eu não aguentei, explodi
em um orgasmo louco.
Caí sem fôlego no colchão, Liz levantou-se e eu a puxei para mim,
abraçando-a enquanto voltei a respirar.
— Gustavo, nós não deveríamos ter feito isso.
— Liz, o que foi? Por que não? Isso é só o começo, estou com tanta saudade
de você que nunca será suficiente.
— Não devíamos, foi um erro. — Ela cobriu o rosto com as mãos.
— Liz, eu pensei que você tivesse gostado — comentei consternado, afastei
suas mãos para ver seu rosto.
— Eu gostei, esse é o problema...
— Não tem problema algum. — Abracei-a.
— Não, Gustavo, não podemos confundir as coisas. Eu preciso ir.
— Porra, Liz! É meu aniversário, fica. Por favor...
— Gustavo, eu não deveria ter vindo. — Liz se sentou cobrindo os seios
com as mãos, deixando-me ainda mais irritado de vê-la me privando de ver seu
corpo.
— Por favor, Liz, fica, juro que não encosto em você. Tomamos banho e
terminamos o filme, depois pedimos comida para almoçarmos, quando terminarmos
te levo em casa.
— Jura? — ela perguntou levantando a sobrancelha.
— Vá para o banho — pedi me levantando e vestindo a calça.
Liz se banhou de porta fechada enquanto limpei a bagunça da cama.
Tomei banho sozinho e muito chateado, vesti-me e fui para o quarto
decepcionado por Liz ter mudado de ideia, cheguei a acreditar que ela iria me
perdoar e as coisas entre nós voltariam ao que era antes... Porra, ela me queria tanto
quanto eu ansiava por ela. Então qual a dúvida? Estava escrito nos seus olhos que
ela ainda me amava.
Desisti de ficar irritado, preferia tê-la aqui, mesmo que não fosse para fazer
amor nem para aceitar ser minha novamente.
— Que tal se eu ligar para aquele restaurante italiano que você gosta? —
sugeri secando o cabelo.
Liz penteava os cabelos, constrangida. Mas quando me ouviu falar sobre seu
restaurante preferido que descobrimos juntos, ela abriu um sorriso.
— Talvez poderíamos ir até lá — sugeriu.
— Está um vendaval lá fora e o trânsito deve estar um inferno. É melhor
pedirmos. — Preferia ter Liz só para mim do quer ter que dividir seu olhar e sua
atenção com outras pessoas.
— Ah, tudo bem. Só não peça sobremesa, tem todo esse bolo para ser
devorado.
Sorri satisfeito com a resposta, passei por ela e dei-lhe um beijo na testa,
liguei para o restaurante e pedi o nosso almoço.
Voltei para a cama e reiniciei o filme de onde paramos. Liz dessa vez se
manteve afastada o tempo todo, mesmo que isso fodesse minha esperança. Ainda
assim aproveitei sua companhia, ela assistiu atenta e gargalhou com uma cena
caricata e meu coração sorriu com o som.
Que saudade de ouvi-la rir!
A comida chegou um tempo depois, nos servi e comemos ali mesmo na
cama, os gemidos de Liz, que antes eram motivados por prazer carnal, agora eram
motivados por outro tipo de prazer: a comida.
Esbaldei-me em vê-la tão relaxada, com as bochechas coradas comendo a
lasanha com vontade. Depois de limparmos os nossos pratos, peguei o bolo agora
faltando uma fatia e coloquei na nossa frente. Liz pegou a bolsa e tirou de dentro
dela uma vela de aniversário, colocou sobre o bolo já partido e acendeu com uma
caixa de fósforos que trouxera e começou a cantar parabéns com a voz desafinada.
Meus olhos encheram-se de lágrimas, nenhuma mulher com quem passei
meu aniversário me deu um bolo de presente e cantou, desafinada, para mim.
Controlei o impulso de abraçá-la e agradecer-lhe da forma correta.
— Parabéns pra você, nesta data querida, muitas felicidades, muitos anos de
vidaaaaaa. É big, é big, é big, é big, é big, é hora, é hora, é hora, é hora, é hora, ra-
tim-bum Gustavo, Gustavo... — Liz canta sorrindo, linda como uma estrela no céu.
Soprei a vela fazendo um pedido, afinal tudo podia se tornar realidade
segundo o pai de Liz, e se ela ganhou seus patins, eu também podia ganhar o que
desejo. E esperava que fosse rápido.
Faz ela voltar para mim, faz ela voltar para mim, faz ela voltar para mim,
faz ela voltar para mim, pedi silenciosamente em meu coração.
— O primeiro pedaço, eu já dei a você. — Cortei um novo pedaço do bolo.
— Mas darei o segundo para o nosso filho, então você terá que comê-lo para
garantir que ele receba — terminei de falar oferecendo o prato.
Liz me olhou com os olhos marejados, ela piscou várias vezes e vi uma
lágrima rolando pela sua pálpebra em direção à bochecha corada.
— Eu te amo, Gustavo, e desejo do fundo do coração que você seja muito...
mas muito feliz, mesmo que não seja ao meu lado — ela murmurou quase inaudível.
— Liz... — Me aproximei dela mergulhando no azul daqueles olhos.
— É verdade, eu vim até aqui porque queria poder estar perto de você no seu
aniversário, nem que seja um pouquinho. Sinto tanto sua falta... — ela confessou
com os olhos cheios de lágrimas.
— Meu amor... — Peguei sua mão, beijando suavemente sua palma.
— A gente não pode mais construir uma família juntos, mas eu quero que
saiba que nunca irei esquecer o que vivemos...
— Liz, não podemos construir uma família, porque já somos uma. Eu, você
e nosso filho. Vocês são minha família!
— Não, Gustavo, eu não quero começar uma vida em cima de mentiras e
desconfianças. Vai ser melhor assim, vai ser melhor para nós dois.
Fiquei sem acreditar no que ela estava dizendo. Como ela pode achar que
não temos futuro? Ela está esperando um filho meu, disse que me amava, mas não
pode ficar comigo? Essa conclusão não era plausível para mim, engoli o nó na
garganta.
— Respeito a sua opinião, mas não entendo. Eu não sou sua mãe, Liz. —
Tentei engolir toda raiva que sentia dessa situação e da minha maldita omissão.
— Isso não tem nada a ver com a minha mãe — Liz protestou fechando os
olhos como se estivesse sentindo dor.
Inspirei e expirei tentando manter a calma, mesmo que eu estivesse
explodindo de frustração por dentro mudei de assunto.
— Liz, eu não quero estragar nosso dia. O que me diz se a gente começar o
seu ritual de aniversário e comer todo esse bolo? — Tentei cortar o clima pesado.
— Eu também não quero estragar nosso dia — Liz concordou em dar o
assunto por encerrado e começou a devorar a fatia de bolo que eu tinha dado a ela e
ao nosso filho. Cortei uma fatia enorme para mim e comecei a comer. Quando
coloquei o segundo pedaço na boca, meu celular começou a tocar, levantei-me e
peguei o telefone em cima do balcão.
— Alô — atendi.
— Parabéns, cara! E aí, vamos sair para comemorar? — Meu técnico e
melhor amigo tagarelou animadamente do outro lado da linha.
— Valeu, amigo, mas não. Já tenho planos — cortei-o logo tentando
dispensar o convite por saber que os convites de Dudu incluíam bebida e mulheres.
Se fosse há alguns meses claro que eu iria aceitar, mas não agora. Amava demais a
Liz para pensar em qualquer outra garota. Ela me enfeitiçou com esses malditos
olhos.
— Ei, não aceito recusa. Não vou te deixar na fossa no seu dia, cara. Você é
um campeão, não um perdedor.
— Obrigado. Mas não vai dar, estou ocupado — recusei.
— Ok. — Dudu simplesmente desligou o telefone na minha cara. Ele sabia o
quanto odiava esse tipo de merda. Fiz uma nota mental para lhe dar um esculacho
quando o vir. Sentei-me novamente junto de Liz, ela me olhou como se estivesse
intrigada com o telefonema.
— Fique à vontade para dizer se você quiser sair — ela me disse levantando-
se e indo lavar as mãos.
— Não, nada interessante. Era apenas o Dudu. — Terminei de engolir o
bolo.
Ela voltou sorrindo, tirando um pacote da bolsa.
— Tudo bem, nós temos um presente. Mas estou com vergonha de te
entregar, você vai me achar sentimental e boba.
— Nós? — perguntei.
— Sim, eu e o bebê. Nós — ela repetiu como se fosse óbvio.
— Presente? Cadê? Eu vou adorar tenho certeza, e você não é boba —
corrigi-a ficando em pé na frente dela tentando alcançar o pacote.
— Calma... — Liz se afastou empurrando o meu braço e protegendo o
embrulho atrás do corpo.
— Estou curioso, você não pode me culpar. — Peguei em sua cintura
aproximando seu corpo junto ao meu, inspirei o aroma do seu cabelo e senti sua
respiração acelerar devido à proximidade. Deslizei minhas mãos por suas costas
macias.
— Gustavo, não faz assim... Não é justo — ela gemeu.
Afastei seus cabelos dos ombros e comecei a beijar suavemente sua nuca
arrepiada, podia até perdê-la, mas nunca sem lutar.
— Hum... Uso as armas que tenho — gemi deslizando minha mão em sua
bunda e apertando a carne firme e arredondada.
— Oh... — Liz balbuciou me deixando arrepiado.
Encontrei seus lábios e pressionei minha boca na dela. No começo, ela
resistiu às minhas investidas, mas depois desistiu e se entregou a um beijo
avassalador. O tipo de beijo que só existia com Liz, com a mulher que eu amava,
com a mulher que destruía cada partícula de juízo e sanidade que eu ainda tinha.
Quando puxava Liz de volta para a cama a campainha do quarto tocou.
“Puta que pariu!”, xinguei em pensamento, porque seja lá quem for chegou em
péssima hora.
— Gustavo, atenda a porta — Liz falou interrompendo o beijo.
— Não, deve ser a camareira. — Tentei voltar a beijá-la.
— Gustavo, atenda! — ela me interrompeu empurrando meu peito.
Respirei fundo e passei as mãos no cabelo, ajeitei meu pau na calça para
disfarçar minha ereção e fui atender o empata-foda que estava me atrapalhando.
Assim que abri a porta, Dudu entrou com uma garrafa de tequila e duas
mulheres vestidas em roupas provocantes.
— Ei, cara, achou que ia te deixar na merda? Trouxe bebida e garotas —
meu amigo falou caminhando pelo quarto todo espaçoso.
Quando me virei, vi Liz ao lado da cama de braços cruzados com um olhar
incrédulo assistindo a cena.
— Dudu, valeu. Mas estou acompanhado, você precisa ir embora — falei
tentando forçá-lo a sair.
Meu amigo franziu a testa, desconfiado pela minha recusa e virou-se em
direção a cama. Quando viu Liz, ele imediatamente começou a fazer um raio-X pelo
corpo dela, e soltou um assobio de aprovação.
Desgraçado!
— Cara, a loira continua uma delícia desde a última vez que a vi — ele tirou
sarro sorrindo com as pupilas dilatadas e a testa coberta de suor. O filho da puta
devia estar chapado para ter a coragem de cantar minha mulher na minha frente.
Cerrei o punho, pronto para partir sua cara. Mas fui interrompido quando vi Liz
caminhar até sua bolsa colocando-a no ombro e caminhando até mim.
— Não está mais acompanhado, Gustavo, aproveite sua festinha. Com
licença — falou irritada arrebitando aquele nariz enxerido e saindo pela porta.
Porra!
— Idiota! — Atirei para Dudu.
Corri atrás dela tentando fazê-la entender que aquilo não era nada do que ela
estava pensando. Até pensar sobre isso me fazia parecer culpado.
— Liz, por que você vai embora? — Puxei-a pelo cotovelo fazendo-a parar
no corredor.
— Não seja idiota, não vou atrapalhar sua festinha. Pareceu-me bem
divertida.
— Não tem festinha nenhuma — argumentei enquanto ela apertava o botão
do elevador.
— O que você está fazendo aqui? Suas amigas estão lhe esperando! — ela
gritou irritada com as bochechas vermelhas.
— Liz, eu nem sei quem são elas!
— Uau, que grande babaca você é! Come as mulheres e nem se dá o trabalho
de lembrar os nomes, será que você ainda sabe o meu?
— Minha flor. — Peguei em seus ombros tentando fazê-la parar e me ouvir,
mas Liz estava muito brava para me obedecer.
— Me solta! — ela gritou e começou a me bater com a bolsa.
— Quer parar de gritar? O que porra você acha que viu lá dentro? —
perguntei nervoso.
— Vi o suficiente para entender que você é um idiota. Volte para a sua festa,
Gustavo, não é elegante deixar seus convidados esperando.
— Não! Você não pode me deixar de novo... E eu não convidei ninguém! —
Agora foi minha vez de ficar irado.
— Posso sim, e já te disse adeus.
— Seu coração é igual ao meu, Liz, você nunca me deixará ir
completamente da sua vida. Você depende de mim como agora eu dependo de
você...
Os olhos de Liz piscaram ao ouvir minhas palavras, ela arrebitou o nariz e
preferiu fingir que não me ouviu.
Deus, por que ela quer negar o óbvio?
— Me deixa ir embora, ou eu vou gritar até aparecer um segurança.
— Você não faria isso.
— Tente.
As portas do elevador se abriram no timing perfeito, Liz me lançou um
último olhar decepcionado, secou as lágrimas e entrou sem olhar para trás. Observei
as portas se fecharem sem acreditar que isso realmente estava acontecendo. Que
ironia, conheci-a em um elevador e agora ela estava me deixando enquanto entrava
em um.
Essa foi a primeira vez que ela me deixou chegar tão perto desde a nossa
briga, em alguns momentos cheguei a acreditar que essa era nossa reconciliação.
Mas aí as coisas mudaram facilmente. Liz, que há alguns minutos estava me
deixando tomá-la de volta, agora achava que eu estava me divertindo com mulheres
que não conhecia. Mulheres essas que estavam no meu quarto, lugar de onde ela
nunca deveria ter saído.
“Não venha me dizer que está arrependido
Porque você não está
Querido, eu sei que você só está se desculpando
Porque foi flagrado...”
Take a bow – Rihanna
Liz
Saí de lá enxergando vermelho de raiva, o ciúme inundou minhas veias tão
intensamente que seria capaz de bater em alguém, entrei no meu carro com as mãos
tremendo e sem respirar direito. Como ele pode dizer que me quer, e estar transando
por aí com aquelas mulheres lindas?
Como ele pôde escolher a mim rodeado de mulheres siliconadas, morenas,
com bundas enormes e com roupas sensuais? A resposta era simples, ele não podia.
Porque elas eram tudo o que eu não era, já que estava cada dia mais inchada e com a
barriga maior, os cabelos desidratados e gorda como uma vaca. Porque estava
grávida do seu bebê e tudo que eu fazia era chorar a sua falta.
Dirigi sem rumo pela cidade enquanto xinguei Gustavo com palavrões que
nem sabia que existiam. Meu telefone tocou sem parar, mas ignorei, porque
imaginei quem era. E não estava a fim de ouvir mais desculpas e mentiras
esfarrapadas. Dessa vez eu vi, tinha duas mulheres lá para participar da festinha
deles. Era uma garota para cada.
Respirei fundo tentando controlar minha respiração e aumentei o som do
carro, fazendo com que os vidros tremessem com a potência do volume. Eu queria
abafar qualquer ruído externo. Queria ter o poder de abafar toda raiva e insegurança
que estava sentindo. Esse era um daqueles momentos em que eu com certeza
compraria um vinho e iria pra casa encher a cara. Mas não podia mais fazer isso por
conta do bebê, droga!
Parei em um posto de gasolina, entrei na loja de conveniência e procurei nas
prateleiras algo para me acalmar que não fosse álcool.
Como ele pode ter encontros? Será que ele não teve a dignidade de deixar
sua cama esfriar antes de jogar outra mulher sobre ela? Eu sou uma idiota mesmo,
já ia dormir com ele e esquecer todo o mais. E o que eu fiz com todo aquele
chocolate? Eu me martirizava por ser tão fraca.
Parei no freezer de sorvetes, olhei concentrada para todas as opções, peguei
um pote de sorvete napolitano e pensei no quanto já comi hoje. Mas aí me lembrei
dos sabores de creme equilibrado e suave, o sabor rico do chocolate e o azedinho
adocicado do morango. Era tudo que eu precisava, quem não tinha cão caçava com
gato. Iria me afundar em açúcar, já que não podia fazer isso em vinho.
Comprei o pote de sorvete, algumas barras de chocolate e voltei para o carro.
Quando cheguei em casa, liguei a tevê tentando não pensar em Gustavo nu com
aquelas mulheres maravilhosas. Ai, que ódio!
Peguei uma colher, destampei o sorvete e me aconcheguei no sofá comendo
diretamente do pote, cada colherada naquela delícia gelada, sentia quase um prazer
sexual de tão bom.
— Quem aquele idiota pensa que é? — perguntei para a tevê em voz alta. —
O desgraçado me deixa apaixonada, me engravida, mente e agora já está se
divertindo com as amiguinhas como se nada tivesse acontecido? — gritei para as
imagens da televisão com lágrimas caindo dos meus olhos.
Como eu me tornei uma pessoa tão medíocre para chorar por homem? Eu
era patética!
Nada disso fazia sentido, nem o doce gelado que comia, joguei o pote de
lado e olhei ao redor. O que eu estou fazendo? Parecia que eu parava de raciocinar
sempre que Gustavo estava envolvido.
Guardei o sorvete na geladeira, fui para o quarto e caí na cama, me cobrindo
com os lençóis. Fechei os olhos e explodi em lágrimas, botei toda a frustração que
eu sentia para fora, fazia tempo que não chorava assim em voz alta sem ter vergonha
das lágrimas derramadas, esperneei, esmurrei o travesseiro e chorei, chorei muito.
Estava cansada de esconder o que sentia, de tentar achar canos de escape, eu queria
gritar bem alto toda minha raiva, toda mágoa que estava me sufocando e quase me
matando aos poucos.
“Eu recordarei
o amor que nossas almas
Juraram criar
Agora eu observo a chuva que cai
E tudo o que minha mente consegue enxergar
Agora é a sua (face)...”
Cemetery Gates – Pantera
Gustavo
Voltei para o meu apartamento puto da vida. Dudu estava sentado em uma
poltrona com uma garota no colo.
— Ei, preciso falar com você — disse irritado.
— Qual era a da Liz? — meu amigo perguntou.
— Não gostei do jeito que olhou para a minha mulher. Você está chapado.
Desde quando você está fazendo essa merda? — falei com muita vontade de dar um
soco na sua cara só por ter cantado Liz na minha frente.
— Sei o que estou fazendo, só quero me divertir. Sobre a Liz, putz, cara... eu
não sabia que vocês se acertaram, achei que você precisasse de uma animada.
— Espero que saiba mesmo o que está fazendo, já que da última vez você
quase fodeu sua vida.
— Relaxa, você anda muito estressado, brother.
— Dudu, depois a gente conversa, agora cai fora com essas garotas, que eu
vou atrás da minha! — vociferei pegando as chaves do carro e um casaco.
— Ei, man, também não precisa me expulsar, foi mau cara.
— Tudo bem, Dudu, agora tira essas garotas daqui. — Quando terminei de
falar, uma delas veio até mim sorrindo como o gato de Alice.
— Oi, Gustavo, lembra de mim? — perguntou alisando o decote da blusa.
Eu olhei para ela e não consegui ter qualquer ideia.
— Não, e fico feliz por isso. — Afastei-me dela e vesti uma camiseta. —
Agora se me derem licença, vocês precisam sair — pedi indo em direção à porta.
Meu amigo pegou a sua garota, colocou o uísque embaixo do braço e saiu,
fui em seguida guiando-os para fora.
— Você é um idiota, Gustavo! — A garota sem nome berrou para mim indo
em direção à saída. Pensei que ela podia ter se poupado, eu já sabia que sou um
idiota por ter perdido a minha mulher.
Dudu riu da menina, ele era um cara boa-pinta, alto com os dois braços
cobertos de tatuagens, algumas delas foi até eu que desenhei, ele também tinha um
bom rosto e os cabelos compridos que batiam no ombro, sempre viviam assanhados,
o que lhe deixava com uma cara mais malvada do que ele precisava, mas chamava a
atenção das garotas.
Enquanto eles esperavam o elevador, não perdi tempo e fui de escada até a
garagem, optei pela moto, subi na Harley e fui em direção ao nosso apartamento,
voando como um louco entre os carros no trânsito infernal de São Paulo. Um pouco
antes de chegar ao centro senti-a desnivelada e com uma vibração que só podia ser o
pneu traseiro estourado.
Porra!
Encostei o mais rápido que pude para verificar, o pneu traseiro da moto
realmente estourou. Chutei a roda com o máximo de força que pude. Droga! Só para
atrapalhar minha vida. O destino só podia estar de brincadeira comigo.
Quase uma hora e meia depois, entre empurrar a moto até uma borracharia,
trocar o pneu e o congestionamento da Paulista, enfim toquei a campainha de Liz.
Meus dedos nervosos apertaram incessantemente o botão. Mas ela não atendeu,
insisti até começar a ficar preocupado.
Peguei minhas chaves e abri a porta, eu poderia ter feito isso logo, mas não
queria invadir sua privacidade, queria que ela se sentisse à vontade no meu
apartamento.
Quando entrei, o lugar estava vazio. Onde ela terá ido? Peguei o celular e
liguei para ela, só chamava. Resolvi ligar para a Cris, talvez Liz tivesse ido
encontrar a amiga, afinal hoje era sábado, provavelmente Cris estaria em casa.
— Alô? — Cris atendeu no terceiro toque.
— Oi, Cristina. A Liz está com você?
— Não, aconteceu alguma coisa? — perguntou preocupada.
— Houve um mal-entendido e agora não sei onde achá-la. Ela não está aqui
no apartamento.
— Porra, Gustavo, quando é que você vai parar de fazer a Liz sair
chorando por aí? Você é idiota ou o quê?
— Cris, eu sei que sou um idiota, mas um idiota que ama sua amiga, então
me avisa se você souber dela, ok?
— Não deveria, mas aviso, seu idiota! Se acontecer alguma coisa com ela
mato você — Cris me ameaçou.
Não consegui imaginar para onde ela poderia ter ido, sentei no sofá e insisti
em ligar. Depois de várias tentativas em vão, resolvi tentar ligar para a portaria, o
porteiro podia ter visto algo.
“Casos de amor
Cacos de vidro na areia
Cacos de vida no chão
Parte de mim
Acha que o tempo passou
Outra diz que não...”
Cacos de amor – Luiza Possi e Zizi Possi
Liz
Levantei-me da cama para lavar o rosto e vi meu celular tocar sem parar.
Voltei para a cama e peguei o aparelho, um número desconhecido piscava na tela.
Não costumava atender números que não reconhecia, mas uma onda de curiosidade
me tomou. Resolvi atender, mesmo um pouco cismada.
— Alô?
— Oi Liz, que bom que atendeu. — Reconheci imediatamente a voz.
— Matheus? — perguntei retoricamente.
— Oi, Liz. Desculpe-me te ligar assim, consegui seu número com a Flávia lá
do escritório que você trabalhava, estou precisando de ajuda e não pensei em
alguém melhor que você para me orientar.
— Minha ajuda? O que seria? — perguntei curiosa.
— Sim, na verdade minha irmã está com um problema com o ex-namorado e
queria um conselho de uma amiga confiável.
— Em que posso ajudar? É algo sério? — Meu faro de advogada ficou
atiçado.
— Podemos nos ver? Assim poderei te explicar melhor. Podemos tomar um
café ou beber alguma coisa, se não for problema para você.
— Nos ver? Eu não sei, estou um pouco enrolada aqui — menti.
— Liz, é uma urgência. Preciso falar com você pessoalmente. Em quinze
minutos estarei aí, tudo bem?
— Tudo bem, estarei lá embaixo em dez minutos. — Ir encontrar Matheus
era muito melhor do que ficar aqui chorando feito uma pateta por um homem que
não me amava como deveria.
— Até daqui a pouco. — Ele desligou.
Deveria ter recusado o convite devido a todo estresse emocional que havia
sido meu dia. Mas que mal tinha sair para tomar um café com um amigo num
sábado à tarde, já que Gustavo estava fazendo mais do que tomar um café com
aquelas garotas?
Arrumei o vestido, calcei novamente os sapatos, refiz a maquiagem, apanhei
minha bolsa, o casaco e desci para a portaria. Quando as portas do elevador abriram
no térreo, Matheus já estava esperando por mim na recepção com as mãos nos
bolsos da calça. Ele continuava forte e viril, o rosto bonito sempre carregando um
sorriso gentil.
— Ah, aí está ela... — falou olhando para mim, seus olhos desceram pelo
meu corpo, assim que notou minha barriguinha de grávida franziu a testa surpreso.
— Oi, Matheus — cumprimentei dando de ombros pela cara de surpresa que
ele fez.
— Liz, você está linda, mas por que não me contou que estava esperando um
bebê?
— Ah, não tive oportunidade, da última vez que nos vimos eu estava
passando mal demais para contar sobre qualquer coisa.
— Eu deveria ter imaginado, mas está tudo bem. Vem, o carro está logo ali.
— Descemos as escadas do prédio e o ar seco da cidade invadiu minhas narinas,
uma mistura de calor e umidade tão característicos de São Paulo.
Entrei na Range Rover de Matheus e seguimos para um café charmoso em
Moema, sentamos em uma mesa perto da vidraça da porta. Uma garçonete se
aproximou de nós e com um sorriso nos ofereceu o cardápio.
— Um cappuccino, por favor — pedi.
— Um café expresso e alguns cupcakes — Matheus disse.
Quando a moça se afastou para fazer nossos pedidos eu fiquei um pouco sem
graça, tentei ir logo ao assunto que me trouxe aqui.
— Então, em que posso ajudar?
— Bom, Liz, não posso negar que estou surpreso em você estar esperando
um bebê. Pelo tamanho da sua barriga acredito que esteja com pouco tempo de
gestação.
— Estou no primeiro trimestre.
— E como vai seu relacionamento com Gustavo?
— Não temos mais um relacionamento. Foi para isso que me chamou? —
perguntei começando a ficar chateada com a direção que a conversa estava tomando.
— Não, claro que não, só fiquei curioso. Me desculpe.
— Tudo bem.
— Te chamei aqui porque minha irmã está enfrentando um problema com o
ex-namorado.
— Que tipo de problema?
— Gabriela engravidou do idiota aos dezessete anos, ele a abandonou assim
que descobriu sobre a gravidez, eu crio o menino com a ajuda da minha mãe para
que ela possa continuar estudando.
— Nossa, Matheus, não sabia! Que bom que sua irmã tem você para ajudá-la
com o bebê.
— Gabriela é uma menina muito esforçada apesar de tudo, mesmo com o
bebê ela continua querendo conquistar um futuro para ela e o meu sobrinho. Ela
conseguiu uma bolsa de estudos em Harvard nos Estados Unidos, mas só irá aceitar
a oportunidade se o Nicholas for junto, minha irmã não quer se afastar do filho.
— O que é totalmente compreensível. Nenhuma mãe que se preze aceitaria
se afastar do filho por livre e espontânea vontade. Mas com quem ela vai deixá-lo
para estudar? Acredito que um curso em Harvard seja bem puxado, já que essa é
considerada uma das melhores universidades do mundo.
— Aí é que está, minha mãe decidiu ir junto e ajudá-la com o Nicholas. Mas
o pai não quer permitir que ela leve o garoto. — Quando Matheus terminou de falar,
a garçonete chegou carregando uma bandeja com nossos pedidos.
— Com licença, aqui está, trouxe os sabores que os casais mais gostam:
cupcake amor eterno, que é chocolate ao leite com morango; e dois amores, que é de
chocolate meio amargo com chocolate branco. Vocês vão gostar.
— Ah, obrigado — Matheus disse sorrindo pela garçonete ter deduzido que
éramos um casal.
Eu tratei logo de corrigi-la.
— Obrigada, mas não somos um casal. Somos apenas amigos.
A moça me olhou envergonhada pela gafe.
— Não que eu não quisesse que fôssemos mais que amigos... — Matheus
gracejou sem cerimônia, me deixando atônita pela revelação.
— Ah, me desculpe, não quis ser inconveniente — a pobre garota se
desculpou e saiu sem graça com sua bandeja de volta para trás do balcão.
— Que história é essa, Matheus? — perguntei irritada.
— Só estava brincando. Mas não menti.
— Quer parar, de onde você tirou isso?
— Tem razão, me desculpe — falou chupando o dedo sujo de chocolate.
— Bom, voltando ao que interessa, realmente sua irmã não pode sair do país
com a criança sem uma autorização assinada e reconhecida firma em cartório pelo
pai. É mais fácil vocês tentarem entrar em um acordo amigável, combinando épocas
do ano em que ele poderá ficar com o filho, como férias ou datas comemorativas
como Natais, ou Páscoas.
— Liz, ele não fica com o Nicholas. Ele mal viu o garoto desde que ele
nasceu. Ele só está implicando para atrasar a vida da Gaby.
— Para que ele possa barrar a viagem, ele precisa apresentar os pontos
negativos da ida deles aos Estados Unidos em juízo. E, pelo que você está me
falando, não há nenhum; se caso isso não funcionar, vocês podem alegar ao juiz o
comportamento negligente do pai durante a gravidez e após o seu sobrinho nascer.
Vocês vão precisar de testemunhas de que ele não contribui com a criação do
Nicholas nem de forma afetiva nem financeiramente. Nenhum juiz ficará do lado
dele — terminei de falar e tomei minha bebida quentinha, a sensação cremosa
aquecendo o corpo fazia um carinho na alma. Eu estava mesmo precisando.
— Liz, preciso da sua ajuda. Não sei por onde começar, juro a você que já
tentei ir lá falar com pai do Nicholas, mas o cara é um idiota.
— Se você quiser posso fazer o trâmite de autorização para a viagem do
menor, mas antes peça a sua irmã para me encontrar na segunda-feira trazendo todas
as informações para não deixar nada de fora do caso, aí primeiramente marcaremos
uma reunião com o pai da criança para tentarmos conversar e deixá-lo a par da
situação. Podemos informá-lo que um processo de pensão alimentícia será muito
trabalhoso para ele. E que esse afastamento é temporário.
— Você acha que ele pode ficar com medo?
— Sim, podemos calcular o valor que ele deveria ter dado todos esses meses
a criança, isso vai assustá-lo e fazê-lo recuar. E se não for o caso, vamos ao tribunal.
Tenho certeza de que nenhum juiz dará a guarda para um cara que até então é um
desconhecido para o garoto, muito menos impedirá a mãe de realizar algo tão
grandioso como estudar em Harvard.
— Que bom ouvir isso, Liz, sempre soube que você era uma ótima
profissional.
— Obrigada, mas esse é um caso bem simples de resolver na verdade.
Quantos anos o Nicholas tem? — Fiquei muito curiosa.
— Dois anos, ele é uma criança incrível, não pode ficar longe da mãe por
puro egoísmo do pai. A bolsa de estudos é excelente e será muito bacana para o
currículo da Gaby. Sentirei falta deles, afinal crio o Nicky como se fosse meu filho,
mas é para um bem maior. E viajarei sempre que puder para vê-los.
— Imagino, sua irmã tem muita sorte por ter vocês. Que curso ela está
fazendo?
— Medicina.
— É uma bela profissão, agora quanto tempo ela vai precisar ficar lá? É
muito importante informar o período no processo.
— Um ano, eu já consegui alugar um apartamento para eles ficarem, o prazo
está se encerrando, ela precisa ir daqui a dois meses.
— Então precisamos correr. Mas fique tranquilo, esse rapaz não tem que
exigir nada porque ele não faz parte do dia a dia do menor, qualquer juiz vai
autorizar a viagem, já que o pai não tem responsabilidade e condição de criar o
menino. Além de eles terem uma data certa para o retorno.
— Gosto de ver você falando assim — Matheus disse olhando dentro dos
meus olhos, limpei a garganta constrangida e tomei um último gole da minha
bebida.
— Nada de mais. É apenas costume.
— Liz, naquele dia que lhe dei carona, você já estava grávida?
— Sim, eu tinha acabado de descobrir.
— Eu acompanhei a gravidez da minha irmã, esse é um momento único para
uma mulher. Mas é ainda mais prazeroso para o homem que pode desfrutar desse
privilégio. Ver seu filho crescendo poupo a pouco deve ser sensacional. Depois do
Nicholas decidi que quero ter muitos filhos.
— Você será um bom pai — disse achando seu desejo muito fofo.
— Ainda tem chances de você voltar para o pai do bebê?
— Não quero falar sobre isso — falei olhando o celular na bolsa.
— Liz, se você precisar de mim para qualquer coisa é só falar. Qualquer
coisa, ouviu?
— Obrigada, Matheus.
Continuamos conversando banalidades e sobre as fofocas do escritório.
Nossa relação sempre foi leve e, após o constrangimento inicial, ele entendeu que
não havia espaço para mais do que já lidava no momento. Então, ele voltou a ser o
Matheus divertido e gente boa de antes.
Já no início da noite lembrei que precisava voltar para casa.
— Acho que preciso ir embora — avisei.
— Claro, me deixe só pagar a conta.
— Eu posso pagar a minha parte — falei pegando a bolsa.
— Não, faço questão.
Quando chegamos à frente do meu prédio, uma chuva torrencial estava
encharcando a cidade. Matheus perguntou se podia me ajudar com um guarda-chuva
que ele tinha no banco de trás do carro, aceitei imediatamente, não queria correr o
risco de ficar resfriada por conta do bebê.
— Tome minha jaqueta. Cubra-se com ela e eu ajudo com o guarda-chuva.
— Ele me entregou a jaqueta sendo gentil.
— Não precisa — recusei sem graça.
— Claro que precisa, é chuva de vento, o guarda-chuva não vai adiantar
muita coisa. A jaqueta vai te proteger.
— Tudo bem. — Desafivelei o cinto de segurança e vesti sua jaqueta estilo
militar, que ficou enorme em mim, mas foi bom para cobrir minha roupa. Um leve
aroma cítrico encheu meus pulmões.
Matheus saiu na chuva forte rodeando o carro para abrir a porta para mim,
quando a porta do meu lado foi aberta pingos de chuva gelada molharam meu rosto,
ele abriu o guarda-chuva rapidamente e me ajudou a descer do automóvel. Ele tinha
razão, não adiantou muita coisa, o vento entortou as arestas do guarda-chuva
molhando nossas roupas. Corremos para o prédio desviando das poças de chuva,
assim que entramos no hall vi o porteiro de olhos arregalados para nós.
— Matheus, você se molhou todo para me ajudar. Você não quer subir para
se secar? — perguntei passando os dedos pelos cabelos molhados escorrendo pelas
minhas costas.
— Eu adoraria — disse fechando o guarda-chuva e esfregando os cabelos
para tirar o excesso de água.
— Dona Liz! — O porteiro me chamou.
— Oi, já desço para falar com o senhor, seu Juca, preciso me secar — falei
indo para o elevador.
Quando abri a porta do apartamento, vi Gustavo em pé no meio da sala de
braços cruzados olhando para mim como se fosse me engolir viva. Seus olhos
castanhos carregados de fúria, sua mandíbula travada e as mãos em punhos
fechados.
— Gustavo? — perguntei surpresa, ele nunca entrou aqui sem eu estar em
casa.
— Estraguei seu encontro? — ele cuspiu a pergunta fulminando um Matheus
molhado atrás de mim. Rapidamente meu amigo ficou ao meu lado e segurou meu
braço em um gesto protetor.
— Tudo bem, Liz? — Matheus me perguntou sem desviar os olhos de
Gustavo.
— Sim, tudo bem. O que você está fazendo aqui, Gustavo?
— Esse ainda é meu apartamento — ele respondeu encarando Matheus.
— Ah, sim, não me esqueci disso. Vem, Matheus, vou pegar uma toalha para
você se secar no quarto — debochei.
Matheus se movimentou para me acompanhar, mas Gustavo deu um passo à
sua frente barrando o caminho.
— Ele pode esperar a toalha aqui — Gustavo alertou com ódio exalando dos
poros.
— Sim, eu posso esperar aqui, Liz, se você quiser — meu amigo falou
cordialmente, no fundo sabia que ele estava se segurando para se manter educado.
Fui até o quarto sem mais delongas, peguei duas toalhas felpudas e voltei
para a sala entregando-as a ele. Matheus se secou enquanto tirei sua jaqueta e
devolvi para ele. Gustavo assistiu a tudo ali de braços cruzados com os olhos
fulminantes e as narinas dilatadas de raiva.
— Bom, acho que me sequei o suficiente. Vou indo nessa, você vai ficar
bem, Liz? — Matheus perguntou me entregando as toalhas.
— Sim. Obrigada, Matheus, você foi um verdadeiro cavalheiro em me
ajudar — falei para provocar Gustavo.
— Até segunda então, obrigado por aceitar sair comigo — Matheus disse
piscando o olho para mim.
O que ele pensa que está fazendo? Tentando provocar o Gustavo? Só quem
pode provocá-lo sou eu.
Homens!
— Até segunda — despedi-me sem graça. Antes de sair, meu amigo se
aproximou, beijou minha bochecha e foi embora. Quando fechei a porta, Gustavo
estava tirando a jaqueta e jogando-a no sofá.
— Onde você estava? — perguntou friamente.
— Não sei se isso é da sua conta — respondi estarrecida, passando por ele
dando-lhe as costas e indo em direção ao quarto.
— Liz, você está dando as costas para mim? — A voz de Gustavo estava fria
como aço.
— Foi o que você viu.
— Que merda é essa? Bastou sair da minha cama e já vai correndo para esse
idiota? Sabe o quanto me segurei para não foder a cara dele de pancada? —
vociferou.
— Não grite comigo! — berrei de volta.
— Como não? Esse cara estava te comendo com os olhos. E por que você
estava vestindo a jaqueta dele? Posso saber?
— Já chega, Gustavo! Estou cansada das suas insinuações, eu não sou uma
vadia igual às mulheres que você está acostumado a sair. O que você queria que eu
fizesse? Participasse da sua festinha particular? É isso? Eu não lhe devo satisfações,
você já seguiu em frente e eu também estou seguindo — disse apenas para irritá-lo,
eu merecia vê-lo com ciúmes depois do que presenciei hoje.
— Seguindo em frente? O que você quer dizer com isso? Você está ficando
com aquele imbecil? Grávida do meu filho? — Ele deu um passo em minha direção.
— Ainda não, mas é o que eu deveria fazer, Gustavo.
— Você tem certeza? — O motoqueiro sedutor estava de volta, Gustavo
perguntou tirando a camisa, lentamente expondo o torso definido. O amor da minha
vida em um excesso de ciúmes começou a se despir na minha frente ali no meio da
sala, sem perder contato visual comigo.
— O que você está fazendo? — gritei muito irritada, com muita vontade de
bater nele por ser tão irresistível e me desconcentrar.
— Quando cheguei aqui e não lhe encontrei, fiquei feito um louco lhe
procurando, aí o porteiro me disse que você saiu com um cara.
— Ele não tinha o direito de lhe contar nada.
— Não tinha? Eu não sou nada pra você?
— Não lhe devo satisfações da minha vida.
— Ah, não? Minha vontade, Liz, era sair de canto em canto dessa cidade lhe
procurando, e quando lhe achasse colocá-la no ombro e te trazer embora para casa.
Mas aí resolvi esperar, eu queria ver se você teria coragem de convidá-lo a subir.
Martelei na minha cabeça a tarde toda se você seria ousada a esse ponto. Quando
menos espero, vejo você e aquele cara entrando por essa porta.
— Gustavo... — falei ofegante enquanto ele se aproximou ficando atrás de
mim, pressionando o rosto na minha nuca, seu hálito quente criando círculos de
sensações na minha pele úmida da chuva.
— A pergunta de um milhão de dólares é... — Ele fez uma pausa dramática
e continuou: — Você ia dormir com ele?
— Você é um idiota! — choraminguei, suas mãos circularam minha cintura
e me puxaram contra seu corpo forte.
— Responde? Você ia ser uma garota má, Liz? Você ia dar o que é meu para
ele?
— Gustavo para... — Ofeguei com a ereção encostada contra minha bunda.
— Você ia dormir com ele, Liz? Para me punir?
— Eu não sou uma vadia.
— Eu sei que não, mas será que ele ia te fazer se sentir como eu faço? — Ele
colocou a mão por baixo do meu vestido molhado e subiu sensualmente pela minha
pele, seus dedos alcançaram meus seios, Gustavo apertou o bico excitado e eu gemi
de prazer.
— Você é minha, Liz. O que eu preciso fazer para você entender isso? — Ele
me virou e abriu meu vestido puxando-o pela minha cabeça, me deixando só de
sutiã e calcinha.
— Tire! — ordenou como se fosse meu dono.
— Não.
— Liz, eu estou mandando.
— Você não manda em mim.
— Agora... — Sua voz saiu rouca e sensual, causando um arrepio na minha
espinha.
Meu corpo tremeu de excitação com a ordem que ele me deu, precisava
parar de deixá-lo me controlar. Ele não podia querer me cobrar nada, eu sempre lhe
respeitei, ele é que continuava curtindo a vida.
— Sim, Senhor — zombei e deslizei as alças do sutiã lentamente, depois
abri o fecho nas costas e deixei a peça cair. Alisei os meus seios pesados olhando
para ele.
Passei a mão na barriga, enfiei os dedos na tira da calcinha e abaixei a
lingerie de renda. Gustavo me olhou de boca aberta. Fui até a cama dando as costas
para ele e uma bela visão da minha bunda, ouvi seus passos atrás de mim. Deitei no
meio da cama, abri as pernas levantando os joelhos apoiando os pés na cama,
ficando totalmente aberta para Gustavo que estava em pé no meio do quarto de
olhos cerrados.
Levei a mão direita até a boca, chupei lentamente dois dedos e alisei a minha
vagina molhada. Senti-me verdadeiramente uma deusa do sexo em ver sua
expressão de puro desejo estampada em seu rosto. Lubrifiquei minha boceta e
depois enfiei um dedo no canal, não senti vergonha pelo que estava fazendo, apenas
raiva e desejo carnal.
— Oh... — ofeguei encarando-o desavergonhada como nunca imaginei ser.
— Liz, você está me provocando? — perguntou baixinho com a voz grave.
— Eu vou te mostrar que não preciso de você nem de ninguém se quiser
sentir prazer.
Ele abriu o zíper da calça sem tirar os olhos de mim.
— Ah é? Tudo bem — falou acariciando seu pênis com a mão num gesto
muito sensual, uma gota da sua semente brilhou na cabeça do seu pau e minha boca
encheu d’água.
— Oh, meu Deus... — Comecei a me aproximar da borda, aumentei a
velocidade dos meus dedos e gritei jogando a cabeça para trás de prazer, quando
consegui respirar novamente, senti Gustavo sentando na cama fazendo o colchão
afundar.
— Liz, me deixa fazer amor com você — ele implorou sussurrante.
Sorri satisfeita por vê-lo implorando, fechei as pernas e me levantei como se
nada tivesse acontecido. Rebolei provocativamente até o banheiro e fechei a porta.
Tomei um banho quente e demorado, quando saí, Gustavo estava deitado na cama
com uma sobrancelha negra arqueada olhando para mim.
— Está na hora de você ir embora — atirei.
— O quê? — ele perguntou confuso.
— Vá embora, estou cansada, preciso dormir.
— Liz, olha, eu sei que você deve ter entendido que eu estava tendo algo
com aquelas garotas, mas não é o caso. Dudu deduziu que eu estaria deprimido e
achou que seria uma boa ideia. Mas assim que você saiu, eu os mandei embora.
— Não é da minha conta.
— Então por que você saiu de lá correndo, já que está pouco se lixando?
— Não sei, eu sou uma idiota, nós não temos nada, então não sei por que me
incomodar com quem você fica ou deixa de ficar.
— Mas eu me importo.
— Gustavo, hoje é seu aniversário. Eu só queria te fazer companhia, tudo
que aconteceu foi um grande erro, então esqueça. Não quero que você pense que o
que rolou é motivo para voltarmos, eu só estava com tesão, coisa de mulher grávida.
— Tesão? Era só isso?
— Sim, deve ter sido os hormônios, mas, como você viu, eu posso me dar
prazer sozinha. Você me ensinou muito bem sobre meu próprio corpo.
— Eu não acredito em você.
— Não posso te obrigar a acreditar, mas foi o que aconteceu.
— Tudo bem.
Ele levantou da cama, vestiu a roupa e saiu batendo a porta feito um furacão,
igual estava meu coração devastado pelo vendaval chamado Gustavo.
Os dias seguintes foram apenas mais do mesmo. Acordar, comer, atender
ligações, sorrir para as pessoas, mas por dentro, meu coração estava sangrando.
“Durmo em cima do telefone,
São duas da manhã e eu estou sozinho esperando
Me diga, por onde você tem andado?”
Your love is a Lie – Simple Plan
Gustavo
Quando o porteiro me disse que Liz saiu com um cara, me descontrolei
como nunca fiz antes. Minha cabeça entrou em parafuso.
Andei de um lado para o outro no apartamento, resolvi que o melhor a fazer
era esperá-la, a cidade era enorme, ela não foi com o carro dela, o que significava
que estava em um espaço pequeno bem próxima de um homem que eu não sabia
quem era.
Será que ela teria coragem de convidá-lo para subir? Será que ela tem
saído com ele outras vezes? Quem é o filho da puta? Será aquele engenheiro de
merda, que trabalha no prédio em que ela trabalhava?
Sentei e esperei. Já no começo da noite escutei o trinco, Liz entrou sorrindo,
toda molhada vestindo um casaco que não era o meu, com o babaca do Matheus
também molhado logo atrás dela.
Eu sabia que era ele! Bingo!
Meu sangue se encheu de adrenalina, meu estômago apertou e uma sensação
horrível invadiu minhas veias, minha vontade foi de enchê-lo de porrada, mas não
podia agir como um ogro raivoso, isso só iria deixar Liz mais puta comigo.
Mas como não tinha sangue de barata, marquei meu território e não tirei os
olhos daquele imbecil. Quando Liz foi pegar uma toalha o canalha teve a cara de
pau de olhar para a bunda dela, na minha frente, fulminei o infeliz.
Depois que exigi saber o que ela estava fazendo com aquele cara, um
sentimento de posse me dominou. Queria marcá-la, dizer que ela era minha para o
mundo todo. Quando me aproximei e percebi que Liz estava com o cheiro dele, meu
corpo tremeu de raiva.
Parecia um pervertido fazendo perguntas ridículas a ela, nunca fui um cara
possessivo, mas Liz mexia com algo dentro de mim, ela me fazia colocar para fora o
melhor e o pior que podia ser como homem, Liz estava sempre me levando ao
limite.
Tirei a roupa para tentar fazê-la perceber que eu era melhor que ele. Quando
pedi para ela tirar a roupa, sua recusa me excitou, sua boca esperta tinha sempre
uma resposta para tudo, seu nariz empinado bancando a durona. Quando ela deu as
costas nuas para mim, indo em direção ao quarto, pensei que aquilo fosse um
convite e não uma provocação, Liz já não era mais uma garota inocente na cama, ela
agora conhecia seu corpo, seus pontos sensíveis e como alcançar o prazer, fiquei
feito um bobo excitado, um verdadeiro voyeur apenas admirando e sentindo prazer
em vê-la tão vulnerável. Quando Liz gozou em sua glória de mulher satisfeita, me
aproximei.
Precisava fazer amor com ela, estava ficando louco. Mas quando ela me
deixou sozinho na cama soube que ela ia me mandar embora, era quase um costume
agora entre nós.
Liz saiu do banheiro indiferente a minha presença, ainda tentei discutir, só
que ela jogou na minha cara que foi só tesão, que foram os hormônios da gravidez.
Como ela pode falar uma coisa dessas na minha cara, quando sei que o que
rola entre nós é muito mais que sexo?
Saí de lá com tanta raiva, tão confuso, quando a vi de manhã na minha porta
achei que teria o melhor aniversário da minha vida e agora, via que estava sendo o
pior. Voltarei para aquele quarto de hotel idiota enquanto a mulher que eu amava
não me queria porque eu era um idiota e a culpa era toda minha.
Precisava fazer algo para mudar isso, e logo.
“Eu não sei, não tenho certeza, não tenho muita certeza de como é se sentir
Ao lidar com isso todo o dia
E eu sinto sua falta, amor...”
Miss You Love – Silverchair
Liz
Hoje era o dia da primeira consulta do pré-natal, Gustavo ficou de vir me
buscar para irmos juntos, desde o aniversário dele nos falamos apenas por telefone.
Me esforcei para esquecer qualquer resquício de memória sobre aquele fatídico dia.
Focava meu tempo em pensar em como ser uma mãe para o meu filho e cuidar da
minha saúde para que ele fosse um bebezinho saudável, já estava com o resultado
dos exames de rotina que a médica tinha pedido na primeira consulta.
Arrumei-me toda, mesmo não querendo parecer muito produzida para ele,
mas queria que ele me visse bem e me achasse bonita. Quando a campainha tocou,
as borboletas começaram a alçar voo no meu estômago, caminhei até o espelho, dei
uma conferida na maquiagem e fui abrir a porta.
Quando abri vi-o em pé com um buquê de lírios.
— Bom dia, para você — Gustavo disse me ofertando aquele sorriso
escancarado que eu tanto amava.
— Oi, bom dia, obrigada, são lindas — agradeci e peguei o buquê.
— Elas não são tão lindas quanto você, mas hoje é um dia especial. Vamos
finalmente conhecer nosso bebê — gracejou.
— Obrigada, você é muito gentil. Deixe-me colocá-las em um jarro. — Fui
até a cozinha e abri o armário para pegar um vaso.
— Como ficou o quarto do bebê, você já arrumou? — perguntou
interessado.
— Ainda não desempacotei as coisas, não quero enchê-las de poeira agora.
— Hum, me chame quando for fazer isso, vou montar o berço e quero ver
como tudo vai ficar. Quando descobrirmos o sexo, precisamos voltar na loja para
comprar os detalhes.
— Sim, farei isso. Podemos ir para o hospital agora. — Coloquei o jarro
cheio de flores no centro da sala.
***
Chegamos ao hospital e as lembranças me invadiram como uma enxurrada
de memórias. O dia que descobri que estava grávida, as imagens de Gustavo
entrando na sala do médico, o olhar que ele me deu. Senti um arrepio pela espinha.
Assim que entramos na sala da médica, ela verificou meus exames, fez
algumas perguntas e finalmente me mandou deitar na cama de ultrassom para
verificarmos como o bebê estava. Dessa vez, ela apenas me pediu para levantar o
vestido e passou o aparelho de ultrassom pela minha barriga ainda discreta. Quando
o monitor mostrou uma imagem acinzentada um pouco maior do que da outra vez
que vi, senti Gustavo apertar minha mão, lágrimas escorreram por minha bochecha
involuntariamente quando comecei a ouvir seu coraçãozinho batendo forte.
— Vocês querem saber o sexo? — a doutora Paula perguntou escancarando
um sorriso.
— Sim, claro! — Gustavo confirmou.
— Bem, vamos ver. O bebê está com as perninhas fechadas, deixe-me mexer
com ele — ela disse passando o aparelho em uma região específica da minha
barriga. Minhas mãos começaram a tremer eu não sei o porquê, mas me vi
desesperada para saber se meu bebê era menino ou menina. Como se essa resposta
fosse resolver todos os problemas da minha vida.
— Então, doutora? — Gustavo perguntou apertando minha mão tão forte
que minha palma estava formigando.
— Bom, papais, vocês têm preferência?
— Não — respondi rapidamente.
— Que bom, porque não vão precisar escolher entre um e outro.
— Por quê? O que a senhora quer dizer com isso? — Gustavo perguntou
nervoso.
— Porque são gêmeos. Um menino e uma menina escondidinha aqui,
olhem... — Quando ela pressionou o aparelho na lateral da minha barriga, o monitor
mostrou outro pontinho cinza, e logo o som de dois corações batendo rapidamente
encheu a sala. A médica nos mostrou os dois fetos.
— Oh, meu Deus! — exclamei atordoada com a notícia.
Eu estou sonhando.
— Gêmeos? — Gustavo perguntou enlouquecido, seus olhos estavam como
piscinas transbordando em lágrimas não derramadas.
— Sim, um menino e uma menina, parabéns! Eles estão se desenvolvendo
bem e estão bem encaixados, as batidas dos corações também estão fortes e
constantes. Vocês estão muito bem... Como seus exames estão bons, agora, Liz,
você precisa cuidar um pouco melhor da alimentação, e não abrir mão de se
alimentar de três em três horas, os bebês precisam de muitas vitaminas para crescer
e você precisa se manter saudável e no peso ideal, eu vi que você perdeu peso desde
a última visita, isso não é bom.
— Eu vou me atentar a isso, doutora — Gustavo falou, secando as lágrimas,
que ele não pode segurar.
— Tudo bem — concordei, ainda atordoada.
— Pode se levantar, Liz — a doutora Paula pediu limpando com papel
toalha o gel que ela espalhou no meu ventre.
Saí do hospital ainda sem acreditar, ela imprimiu a foto dos bebês e me
entregou. Eu não parava de olhar para elas, como se não acreditasse que aquilo
realmente era verdade. Quando Gustavo estacionou em frente ao prédio, ficamos
estáticos em nossos lugares olhando para a rua. Alguns minutos depois, ele
perguntou se podia subir, concordei porque ele parecia que também estava surtando.
— Meu Deus, Liz, vamos ter dois bebês!
— Eu sei — afirmei sentando no sofá ao lado dele.
— Precisamos de um apartamento maior, de outro berço e outro enxoval.
Meu Deus, um menino e uma menina, Liz! Em breve teremos não um, mas dois
filhos.
— Não precisamos mudar de apartamento.
— Tudo bem, mas depois eles vão querer quartos separados. Lembro como
brigava com meus irmãos pelo melhor quarto da casa.
— Gustavo, ainda vai demorar muito para isso.
— Estou em choque, minhas mãos não param de tremer — ele confessou.
— E mal posso respirar — acrescentei.
Ficamos olhando um para o outro, refletindo sobre a nova notícia. Nós
seríamos pais de duas crianças, eu e ele. Duas pessoas quebradas que estavam
nadando em círculos e tentando alcançar a superfície. Mesmo assim, não imaginava
alguém melhor para ser o pai dos meus filhos do que Gustavo.
De repente, uma curiosidade me atingiu.
— Gustavo, qual foi o resultado dos exames dos seus irmãos?
— Negativo. — Ele suspirou. — Eu sou o único compatível. Farei a cirurgia
no começo do mês. — Deu de ombros.
— Mas já? — perguntei aflita.
— Sim, não podemos mais esperar, meu pai está sem tempo. Perdemos
muito tempo tentando encerrar todas as outras possibilidades.
— Mas é assim tão rápido? — soei mais incomodada do que deveria.
— Sim, quanto antes melhor. O médico quer aproveitar que ele está estável,
sem nenhuma infecção ou bactéria — Gustavo respondeu baixando a cabeça.
— Gustavo, onde você vai ficar após a cirurgia? Creio que você deva
precisar de algum cuidado.
— Ficarei no apart-hotel.
— Sozinho?
— Minha mãe está vendo se consegue vir, ela está treinando uma pessoa
para assumir a cozinha do restaurante. Mas caso ela não consiga irei contratar uma
enfermeira.
— Eu posso cuidar de você. — As palavras saíram da minha boca antes
mesmo de eu refletir sobre o que elas significavam. Nem podia imaginar uma
enfermeira cuidando dele dia e noite.
— Você está falando sério? — ele perguntou surpreso.
— Sim, você vem para cá e eu te ajudo com o que precisar. Nada mais justo,
o apartamento é seu. Quero retribuir o favor que está fazendo por me deixar aqui.
— Tudo bem então, um dia antes da cirurgia trago minhas coisas.
— Isso era outra coisa que eu ia te falar, você deve estar pagando uma
fortuna no hotel, então não seria mais fácil você vir logo para cá?
Gustavo prendeu um sorriso e apenas disse:
— Vou pegar minhas coisas no hotel.
— Ótimo — concordei um pouco aliviada por saber que em algumas horas
ficarei perto dele de novo. Seriamos pais em breve, nada mais justo que agíssemos
como dois adultos bem resolvidos.
— Obrigado, Liz, eu é que deveria estar cuidando de você e não o contrário.
— Não seja bobo — Sorri para ele.
***
Por volta das seis da tarde, Gustavo tocou a campainha do apartamento
mesmo tendo as chaves, ele trouxe uma mochila e uma mala pequena de rodinhas,
na mão direita ele levantou uma sacola de um restaurante italiano que tinha minha
comida preferida.
— Trouxe comida — avisou levantando a sacola, no mesmo instante um
aroma de manjericão e molho de tomate invadiu minhas narinas e meu estômago
roncou.
— Hum... Como você adivinhou que eu estava faminta? — perguntei
pegando a sacola sem cerimônia.
— Imaginei que ter dois bebês na barriga deve te deixar com fome o tempo
todo, eu trouxe nhoque e de sobremesa o tiramisù que você adorou da outra vez.
Gustavo deixou as malas em um canto da sala e me ajudou a devorar toda a
massa bolonhesa e o doce delicioso que ele trouxe.
Enquanto eu lavava os nossos pratos, ele se encarregou de desfazer a
bagagem. Quando estava terminando, ele me chamou na sala.
— Liz, eu pensei em comprar uma cama e colocá-la no quarto que será dos
bebês. Vou ficar muito tempo na cama quando voltar do hospital.
— Não! — exclamei.
Gustavo me olhou como se não entendesse minha reação.
— Não precisa, Gustavo, essa casa é sua. Você dorme na sua cama.
— Nossa cama, Liz — ele me corrigiu.
— Tanto faz. Tudo bem? — perguntei.
— Se não for te incomodar, por mim tudo bem.
— Não vai. Nós já dormimos juntos tantas vezes, não terá nada que eu já
não tenha visto. Sua cama é enorme e vai caber nós dois perfeitamente, você nem
vai perceber que estou lá. — Sorri para ele, que sorriu de volta.
Comecei a gostar dessa nova relação que estávamos criando.
— Tudo bem, então — Gustavo assentiu com um sorrisinho torto. Como eu
amava esse sorriso.
Passamos a noite planejando as coisas que ainda precisávamos comprar para
a chegada dos nossos filhos, quando chegou a hora de dormir, Gustavo tomou banho
com a porta do banheiro aberta, todo o meu corpo queria ir até lá. Eu sabia que ele
devia estar fazendo isso de propósito, desgraçado!
Percebi o quanto sua presença preenchia todos os vazios deste lugar, percebi
o quanto senti falta dele, do som das suas risadas, de vê-lo comer, mexer-se,
caminhar, pronunciar as palavras com seu sotaque mineiro.
Como eu o amo, chega a doer.
Um comichão no meu núcleo começou a se espalhar, imaginei seu corpo
delicioso todo molhado e suculento, a água caindo sobre seu corpo firme e lavando
seus músculos. Deitei na cama e esperei ele vir deitar, alguns longos minutos depois
ele saiu do chuveiro apenas de cueca boxer, o que me deixou ainda mais nervosa, na
sua barriga ainda restava alguns pingos de água. Mordi o lábio e tentei não olhar.
Gustavo secou o cabelo com a toalha estendendo os músculos dos braços e
abdômen, ele me deu as costas para ir até a cozinha, meus olhos travaram em seu
bumbum gostoso e depois foram subindo lentamente pelas suas costas, e perdi o ar.
Na sua omoplata esquerda vi uma tatuagem em cores vivas, o desenho de
uma flor-de-lis estava conectado com uma imagem do meu rosto. O desenho era
extremamente realista, meus olhos estavam abertos e misteriosos, meus cabelos cor
de areia voando despenteados.
A figura na sua pele ficou linda, mas eu entrei em choque. Quando ele fez
isso? Ele fez meu rosto nas suas costas? Ele é louco!
E essa loucura estava me engolindo completamente, porque eu percebi que
no fundo eu gostei de estar ali, marcada em sua pele para nunca mais sair. Pois era
assim que gostaria de estar impregnada em seu coração.
Gustavo já tinha o braço direito e mão cobertos de tatuagens incríveis, mas
ele escolher justo meu rosto para um novo desenho foi demais, isso definitivamente
mexeu comigo.
— Gustavo! — chamei, ele parou na porta do quarto ainda de costas para
mim. Virou-se e me encontrou em pé olhando para ele.
— O que você fez? — indaguei.
Gustavo franziu a testa como se não entendesse, aí sorriu como se acabasse
de lembrar.
— Você gostou? — perguntou acanhado.
— Meu Deus, Gustavo, por que você fez uma coisa dessas? — indaguei me
segurando para não chegar mais perto e beijá-lo.
— Porque eu sou fascinado pelos seus olhos, Liz, e não suportaria não poder
tê-los para mim novamente.
Aproximei-me dele ficando tão próxima que seu peito ainda úmido estava
colado nos meus seios.
— Você é louco... — sussurrei.
— Sou louco por você, Liz, por cada parte de você. Olho em seus olhos e
encontro sua alma, azul e tão profunda como um oceano... um oceano que eu quero
me afogar — Gustavo falou e todo o autocontrole que estava na minha mente
desapareceu.
Peguei seu rosto e choquei nossas bocas com tanta fome e sede que senti um
leve gosto de sangue, mas ignorei, eu devorei seus lábios, puxei seus cabelos
arranhando minhas unhas em sua nuca, precisava senti-lo novamente, eu não
conseguia tirar da cabeça que ele ia fazer uma cirurgia tão invasiva e perigosa, eu
não podia perdê-lo, mesmo que ele não voltasse a ser meu, eu queria saber que o
homem que eu amava estava bem.
Gustavo gemeu em minha boca, me pegou pela bunda me enganchando em
sua cintura. Ele me levou até a cama e deitou em cima de mim, com sua ereção
evidente pressionada contra minha coxa, exigi sua boca como se eu fosse sua dona e
ele me servisse apenas para o meu bel-prazer. Suas mãos apertaram minhas coxas e
eu arqueei as costas de tanta excitação.
“Eu estava assustado,
Cansado e despreparado
Mas eu esperei por isso
Se você for, se você for
Então deixe-me aqui sozinho
Então eu esperarei por você, sim...”
In My Place – Coldplay
Gustavo
De uns meses para cá resolvi arriscar a voltar a desenhar, e o rosto de Liz foi
o melhor incentivo, eu queria fazer uma surpresa para ela. Quando lhe pedi em
casamento terminei o rascunho dessa tatuagem, mas como nós brigamos, acabou
não acontecendo. Mesmo assim achei que valeria a pena ter aquele rosto no meu
corpo, já que ele já estava marcado para sempre na minha mente e no meu coração.
O tatuador foi indicação do meu treinador, o cara era conhecido por fazer
tatuagens super-realistas, eu queria que ele fizesse o rosto de Liz perfeitamente
como o real, principalmente aqueles olhos pelos quais sou fascinado.
Quando vi a expressão de preocupação em seu rosto quando contei da
cirurgia, percebi que ela ainda me amava, não era só preocupação ali e sim amor e
cuidado. Liz pedir para que eu voltasse para o apartamento me fez renovar as
esperanças em tê-la de volta. Era disso que eu precisava, estar perto da mãe dos
meus filhos.
Esqueci-me da tatuagem e fui caminhando para a cozinha quando Liz me
chamou. No primeiro momento me xinguei por dar essa mancada, não sabia se ela
estava pronta para saber o que fiz. Já sabia o que ela queria, tinha certeza de que
ficaria puta comigo e me acusaria de não ter o direito de fazer algo deste tipo sem
consultá-la.
Virei-me para ela ansioso esperando sua reação, porém Liz me fitou com
olhos cheios de posse e desejo, quando ela me beijou eu juro que achei que estivesse
sonhando, Liz me pegou como se precisasse me sentir para saber que aquilo
realmente estava acontecendo, eu a levei para a cama e deitei sobre ela como um
louco. Eu precisava do seu amor novamente para conseguir fazer o que tinha de
fazer para salvar a vida do meu pai.
Sua boca continuava deliciosa, sua pele permanecia cheirando a flores, seus
seios agora maiores e mais inchados por conta da gravidez estavam ainda mais
doces e provocativos.
Meu Deus, como senti falta dessa mulher! Sem Liz eu me virava na hora do
banho pensando nela, mas nunca seria a mesma coisa que tê-la ali embaixo de mim,
gemendo e me arranhando como uma gatinha manhosa no cio.
Tirei sua camisola de renda preta que certamente ela colocou para me
provocar e percebi que ela estava sem calcinha. Afastei-me apenas para poder
admirar seu corpo maravilhoso, seus olhos misteriosos e azuis como o céu de verão
me olhando, sua boca entreaberta de prazer, os mamilos dos seus seios excitados e
rosados pedindo atenção, sua barriguinha cada dia maior, suas pernas abertas me
mostrando o paraíso, sorri pela felicidade que sentia em saber que, mesmo que ela
não admitisse ela era minha, sempre seria.
Tirei a cueca e a penetrei lentamente, senti que estava voando em um céu de
prazer e paz. Sentir-me dentro de Liz era como voltar para casa depois de uma longa
viagem, era como estar de volta ao lar.
Ela gemeu de prazer, eu beijei sua boca como se estivesse me deliciando de
um vinho antigo e caro, onde você tomava cada gole devagar, sentindo cada nota,
cada aroma e acidez. Apreciei esse momento como se fosse o último da minha vida,
ela exigia sempre mais, para eu ir mais fundo, mais forte, mais selvagem, mais cru.
Perdi-me e levei-a junto entre carícias e sensações. Chegamos ao clímax juntos
olhando nos olhos um do outro, eu tive certeza de que vi uma lágrima escorrer pela
sua face, e isso me deixou ainda mais alucinado. Seu choro me cortou como a
navalha mais afiada. Queria recompensá-la por cada lágrima derramada, queria
apenas fazê-la feliz.
Fazer amor com Liz sempre era uma surpresa, cada vez achava que foi
melhor que a última, porque ela sempre se superava. Abracei-a junto a mim, meu
peito se encheu de medo de perdê-la novamente, inspirei profundamente o cheiro
doce de seus cabelos.
— Gustavo...
— Oi, minha flor — respondi sentindo o meu coração doer, ansioso pelo que
ela diria a seguir, porque sabia que sua cabecinha estava cheia de pensamentos.
— Me faz acreditar que nada daquilo aconteceu, faz abafar as vozes que
estão na minha cabeça, gritando que estamos fazendo a coisa errada, me abraça e diz
que nunca vai mentir para mim de novo.
— Liz, eu prometo o que você quiser. Me arrependi de te esconder o meu
passado a cada segundo dos meus dias, eu nunca quis te machucar, nunca. Eu te
amo... — sussurrei apertando-a firme contra mim e beijando sua fronte.
— Apaga as luzes e volta para a cama — ela pediu baixinho manhosa.
Levantei-me cobrindo-a com os lençóis, apaguei as luzes do apartamento e
voltei para a nossa cama. Pensar sobre isso era tão bom. Quando a envolvi em meus
braços, Liz deitou com a cabeça sobre o meu peito como costumava fazer antes,
lentamente senti suas lágrimas molharem minha pele.
— Liz, meu amor... O que houve? — perguntei lhe beijando os cabelos.
— Às vezes tenho tanto medo de estar cometendo os mesmos erros dos
meus pais. Nós vamos ter dois filhos, e mal sabemos cuidar de nós mesmos. Estou
com tanto medo, estou tão desesperada em fazer tudo certo para eles. Mas não vou
conseguir sem você...
Rapidamente Liz subiu sobre o meu corpo me beijando veementemente, eu
retribuí seu toque. Se fosse isso que ela queria de mim, eu ficarei feliz em poder lhe
dar. Começamos a fazer amor de novo, ela não disse mais nenhuma palavra sobre o
assunto anterior, nem como vai ser daqui para frente, apenas cavalgou sobre mim de
olhos fechados, era uma pena a luz do quarto estar apagada, não consegui admirar a
cena, mas ela era surpreendente. Seu corpo escultural subia e descia enquanto seus
cabelos balançavam espalhados sobre os ombros, com suas mãos espalmadas no
meu peito me segurando no lugar.
Quando estávamos satisfeitos, Liz caiu sobre mim exausta, caímos no sono
já no começo da madrugada. Estava completamente no escuro sem saber ao certo o
que isso significou para nós, ela estava tão sensível e intensa essa noite. Talvez fosse
a gravidez, talvez fosse por termos descoberto que vamos ter gêmeos, talvez fosse
porque ela ainda não me perdoou totalmente. Talvez fosse por tantos motivos que
nunca poderei descobrir nem compreender, mas me restava apenas torcer que ela
entendesse o quanto minha vida estava ligada à dela desde o dia que ela enxergou
minha alma através dos seus olhos azuis.
Beijei cada lágrima de Liz que teimou em cair essa noite, eu lhe amei e
escalei seu corpo com todo amor e devoção que havia dentro mim, mas senti que
ainda não foi suficiente. Estar aqui com ela depois da cirurgia poderia melhorar as
coisas entre nós, mas nunca iria trazer de volta a confiança que ela tinha em mim.
Fiz uma prece a Deus para que eu estivesse enganado e que essa noite tivesse sido
uma reconciliação. Fiz uma prece que ela fosse minha, e fizesse meu coração parar
de doer...
“O mundo estava em chamas e
ninguém poderia me salvar, a não ser você
É estranho o que o desejo faz as pessoas tolas fazerem
Eu nunca sonhei que conheceria alguém como você
E eu nunca sonhei que perderia alguém como você...”
Wicked Game – Chris Isaak
Liz
Acordei com as pernas e braços entrelaçados no corpo quente e rígido de
Gustavo. Sua respiração constante e tranquila aqueceu minha alma como um
cobertor. Que saudades eu senti de acordar protegida por seus braços.
Fechei os olhos e relembrei tudo que aconteceu na noite passada. Eu nunca
deveria ter começado isso. Fui uma idiota, deixei-o acreditar que eu estava disposta
a perdoá-lo.
Isso eu até já fiz no meu coração, mas não podia construir uma família
sabendo que os alicerces estavam podres, corroídos de mentiras. Precisava deixá-lo
livre para amar de novo e ser feliz. Não podia acorrentá-lo a uma vida triste e
enraizada por mentiras como foi o casamento dos meus pais. Eu não podia viver o
papel que minha mãe exerceu por tantos anos. Gustavo nunca me deixou entrar
totalmente em sua vida, ele me evitou com muros altos de proteção no que mais era
importante em sua vida. Nunca foi totalmente sincero comigo, ele mentiu diversas
vezes para ocultar algo tão importante, achando que eu não seria capaz de conviver
com aquilo. O que ele achava que eu era? Uma garotinha indefesa?
Ele hesitou em salvar o seu pai por mágoas passadas, por orgulho bobo. Eu
não poderia me esquecer disso. Mas também não poderia esquecer que ele era
humano e cheio de falhas, igual a mim. E que, apesar disso tudo, ainda era o senhor
dos meus pensamentos, o pai dos meus bebês, era preocupado e presente, carinhoso
e gentil, leal e honrado, protetor e amoroso e também o homem da minha vida.
Deus! Estava tão confusa, meus pensamentos se chocavam contra meus
sentimentos e eu definitivamente não sabia o que fazer, então me esforcei a esquecer
meu coração e ouvir minha razão que gritava que me manter distante seria melhor
pra todos.
Mas eu não queria isso...
Sentia uma lágrima quente escorrer pelo meu rosto, aproveitei os últimos
minutos me aquecendo em seu corpo. Não consegui segurar um soluço do meu
peito, Gustavo se mexeu e me abraçou ainda mais forte.
Senti sua ereção pressionada contra mim. Ele sempre acordava animado,
nossas manhãs sempre foram muito agitadas, mesmo quando mal tínhamos dormido
a noite toda fazendo amor, o sexo entre nós era como um transmissor de sensações,
sempre queríamos estar mais próximos possível um do outro, nós tínhamos vocação
em querer dar prazer um ao outro.
— Bom dia, minha flor! — ele ronronou contra meu ouvido, causando
arrepios por todo meu corpo, que logo tratei de ignorar.
— Bom dia — disse secamente, secando qualquer vestígio de lágrimas do
meu rosto.
— Pensei que eu tinha voltado a ser seu motoqueiro gostoso de novo —
gracejou.
— Não vai mais acontecer, Gustavo — expliquei de forma ríspida, virei-me
ficando cara a cara com ele.
— O quê? O que você quer dizer? Não vai mais me chamar de motoqueiro
gostoso? — ele perguntou sem entender.
— Não, não vai mais acontecer o que aconteceu ontem à noite. Desculpe-
me, foi um grande erro, não quero confundir sua cabeça.
Gustavo levantou-se em um único movimento, ficando em pé em frente à
cama completamente nu, as mãos em punhos fechadas ao lado do corpo. Lançou-me
um olhar tão incrédulo e triste que me dilacerou muito mais do que qualquer arma
que ele pudesse dirigir a mim. Passou as mãos nervosamente pelos cabelos e
suspirou antes de voltar a falar:
— No fundo, eu já sabia, Liz. Estava apenas esperando você voltar atrás e
achar que o que sentimos é pouco demais para lhe convencer de que é para a vida
toda. — Gustavo esfregou os olhos marejados e continuou: — O pior de perder
alguém é saber que isso está próximo de acontecer. Vi você dormir e comecei a me
perguntar se o que aconteceu foi apenas uma recaída ou era para valer.
— Gustavo — tentei interrompê-lo.
— Sabe o que mais me irrita? Vou lhe dizer. Nada, absolutamente nada nos
impede de ficarmos juntos. Não há uma ex-namorada maluca, não há famílias
brigadas, não há distância nos separando, não há doenças terminais que vão nos
matar daqui a pouco. Nada, Liz, não existe nada entre nós... Além de você ser a
única a querer ir embora — Gustavo disse calmamente.
Como é difícil fazer isso. Deus, me ajude a ser forte!
— Gustavo, me desculpe, tá legal? Não quis lhe magoar. Podemos agir como
dois adultos e superar isso? — pedi chocada com minha própria idiotice.
— Sinto muito, Liz. Se não sou o suficiente para você, infelizmente não
posso lhe forçar a me amar de novo, se é que isso algum dia foi real para você —
Gustavo disse me dando as costas e indo em direção ao banheiro.
— Você tem razão, você não pode forçar alguém a sentir o que ela não sente
— falei enquanto uma lágrima solitária caiu dos meus olhos.
Gustavo parou e virou-se para mim, ele parecia em choque ao me ouvir. Ele
me encarou com seus olhos decepcionados e cheios de mágoa. As tochas cor de
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âmbar estão escuras como duas painitas , sua mandíbula travada e as narinas
dilatadas respirando com dificuldade, mas ele não disse nada. Apenas confirmou
lentamente com a cabeça e continuou a caminhar para o banheiro, dessa vez ele
fechou a porta em um baque.
Quando ele saiu do toalete, já estava vestida preparando um café, segurando-
me para não desabar em lágrimas, na verdade eu estava esperando uma nova cena,
um bate-boca ou no mínimo que ele dissesse o quanto sou uma vadia sem coração,
mas Gustavo apenas abriu a porta e saiu sem me dirigir nenhuma palavra.
Ele só voltou no final do dia, todo sujo de lama e no mais absoluto silêncio,
assim tem sido nossa rotina, só falávamos o essencial, ele me acompanhava ao
supermercado, comíamos as refeições juntos revezando quem cozinhava a cada dia,
mas ele quase não falava comigo. Mesmo morando aqui, minha única companhia
era a sua quietude.
No dia das consultas com a médica, ele sempre estava presente, fazia
perguntas e se preocupava, mas só. Mesmo dormindo na mesma cama, não nos
tocamos, nem por acidente. Nossa cama parecia ter uma divisão invisível de algum
material muito resistente que evitava que qualquer um de nós se mexesse mais do
que o necessário.
Essa distância entre nós doía na minha alma e em cada partícula do meu
corpo, que implorava pelo seu.
Logo chegou a véspera da tão esperada cirurgia, Gustavo arrumou sossegado
uma mochila com as coisas que ia precisar no período de internação.
Tomei uma chuveirada, coloquei um vestido simples, bebi um iogurte e
esperei para acompanhá-lo até o hospital.
— Estou pronta para ir — avisei-lhe no vão da porta do quarto.
Silêncio.
Gustavo não se opôs que eu lhe acompanhasse, mas permaneceu calado todo
o caminho, como se não me enxergasse.
— O trânsito hoje está pior do que os outros dias — comentei.
Silêncio.
— Estou tão ansiosa para que tudo ocorra bem.
Silêncio.
Ignorando a forma como ele estava me tratando cantei baixinho a música no
rádio. Isso sempre fazia com que ele risse da minha desafinação, mas hoje ele
apenas baixou o volume.
— Está com dor de cabeça? — perguntei.
Silêncio.
Droga, isso está ficando chato!
— Tudo bem, você deve estar nervoso. Eu também estaria, mas se caso
estiver com dor de cabeça posso desligar o som, não tem problema. — Levei o dedo
ao botão do rádio e desliguei.
Gustavo me fulminou com os olhos e ligou o som novamente.
— Ok! A música fica. — Sorri para ele, que me fitou como se apenas minha
existência o irritasse.
Baixei o ar-condicionado, mas ele não me disse uma única palavra sequer.
Gustavo me ignorou até o nosso destino, quando desceu do carro apenas me passou
as chaves para que eu pudesse levá-lo de volta. Caminhei em passos apressados para
poder acompanhar o ritmo de suas passadas até a ala do pré-cirúrgico, a enfermeira
lhe passou as informações do que ele precisava fazer e pediu para aguardar o
médico.
Meu estômago apertou só de imaginá-lo desacordado em uma mesa de
cirurgia. Seu celular começou a tocar, peguei na mochila e lhe entreguei. Gustavo
pegou da minha mão com cuidado para não me tocar, apesar de ter pedido para ele
se afastar, sua rejeição estava me machucando profundamente. Nunca sequer
imaginei que ter sua rejeição fosse tão terrível.
— Alô? — ele esbravejou ao telefone. Um segundo depois, ele ficou um
pouco mais sereno. — Oi, mãe, não precisava, eu te avisei. Eu vou ficar na Liz ou
em um hotel, Dudu pode me ajudar. Mãe e a Cléo? Vocês estão exagerando. —
Gustavo passou as mãos pelos cabelos, irritado. — Tudo bem, a senhora que sabe.
Estou esperando o médico, mas a cirurgia só será amanhã. Até mais, mãe — ele se
despediu chateado.
Desligou o telefone e me encarou.
— Minha família está a caminho, então não precisa ficar aqui perdendo seu
tempo. Pode ir embora, daqui a pouco eles estarão aqui. — Gustavo desdenhou da
minha presença enquanto tirou a camiseta colocando a bata do hospital.
— Gustavo, eu não quero ir embora.
— Não faz nenhuma diferença para você, então, por favor, saia.
— Gustavo, você está me mandando embora?
— Sim, da mesma forma que você me mandou embora da sua vida.
— Eu não fiz isso — defendi-me.
— Você deve me achar a porra de um palhaço! Estou farto de forçar você
sentir por mim algo que deixou bem claro que não sente, nem nunca sentiu. Então,
Liz, saia! — Gustavo vociferou me assustando.
— Eu não vou sair daqui. Não vou deixá-lo sozinho — disse engolindo o
choro.
— Eu não te quero aqui — ele disse olhando dentro dos meus olhos.
— Sinto muito... — desculpei-me por tudo isso.
— Eu não. — Gustavo menosprezou minhas palavras com sarcasmo. Ele
estava sendo maldoso de propósito.
— Não seja cruel.
— Não force a barra — ele bufou.
Observei-o e vi que realmente estava falando a verdade, eu não tinha mais
lugar aqui, tampouco na sua vida. Peguei minha bolsa, passei as mãos sobre a minha
barriga e saí, atendendo ao seu pedido.
Cheguei ao corredor do hospital e fiquei parada sem saber o que fazer, as
pessoas passavam apressadas esbarrando em mim, e eu não sabia para onde ir.
Caminhei até a sala de espera e sentei-me em uma das cadeiras reformulando cada
frase de Gustavo que acabei de ouvir. Dudu apareceu e sentou ao meu lado.
— Como ele está? — perguntou.
— Acho que bem.
— Ele te expulsou do quarto? — O amigo e técnico de Gustavo perguntou,
levantei o rosto e olhei para ele. Os cabelos longos desarrumados sobre a jaqueta de
couro, nos pés as botas pesadas, ele era tão bonito quanto Gustavo. Mas seus olhos
eram enevoados com alguma coisa diferente, talvez remorso.
— Sim, ele fez isso.
— Sinto muito, ele é um imbecil na maioria do tempo. Mas se te reconfortar,
saiba que isso é só fachada, Gus é louco por você. Eu na verdade nunca o vi tão
fascinado por alguém como ele é por você. O cara virou a porra de um marica.
— Vá lá e faça companhia a ele. Por favor, eu não posso culpá-lo por me
tratar assim, eu até mereço sua raiva.
— Ficarei lá com ele. — Dudu se levantou e antes de se afastar virou em
minha direção e disse constrangido: — Me desculpe pela forma que falei com você
no outro dia, Liz, eu estava fora de mim. Gustavo não teve nada com aquilo, eu que
convidei as mulheres.
— Tudo bem, obrigada.
Algum tempo depois, toda a família Salles apareceu afobada no hall do
hospital. Dona Carmen, elegante como sempre, caminhou até mim quando me viu,
seus irmãos também vieram, inclusive Carolina que carregava Cléo nos braços.
— Liz, querida — Dona Carmen cumprimentou me abraçando.
— Oi, Dona Carmen — respondi sem graça.
— Nossa, como sua barriga está enorme! Descobriram o sexo? — perguntou
animada. Nós ainda não tínhamos contado sobre os bebês, estávamos querendo
fazer uma surpresa para só revelar no chá de fraldas que Cris estava organizando.
— Sim, é... — Não soube o que dizer com todos ali olhando para mim
aguardando uma resposta. — Acho que Gustavo vai gostar de lhe contar.
— O que você está fazendo aqui fora? — Thiago perguntou beijando minha
bochecha. Seu porte elegante preenchia o lugar com seu tamanho e sutileza.
— Gustavo queria ficar um pouco sozinho — inventei uma desculpa.
— Sério? — Guilherme perguntou levantando uma sobrancelha visivelmente
intrigado. Corei de vergonha, eles deviam estar percebendo que estava mentindo,
mas eu não teria coragem de contar que Gustavo me expulsou do quarto.
— Hum-hum... — Grande mentirosa, Liz.
— Como vai, Liz? Nós não suportaríamos ficar lá sem poder ver meu irmão
antes da cirurgia, ainda tem nosso pai. — Carolina falou enquanto me abraçava.
— Estou bem, Carol. E, claro, eu entendo que queiram vê-los. Vocês já têm
onde ficar? — perguntei.
— Sim, estamos hospedados em um hotel aqui próximo — Thiago explicou
solícito.
— Tudo bem, o apartamento do Gustavo é pequeno, porém se vocês
quiserem ficar lá podem ficar à vontade.
— Não, minha querida, somos muitos e espaçosos ficaremos bem no hotel.
Agora onde posso ver meu garoto? — Dona Carmen perguntou.
Indiquei o quarto onde ele estava internado e todos entraram para vê-lo.
Thiago e dona Carmen acompanharam a visita do médico e se informaram sobre os
riscos e detalhes da cirurgia. Pelo que o Thiago me contou, o transplante seria feito
às oito da manhã. Carolina e Guilherme revezaram entre os quartos do pai e do
irmão. Não deixei de reparar que eles voltavam chorando do quarto do pai. Não era
para menos.
Dudu, que se mostrara um grande amigo para Gustavo, foi embora no fim da
tarde com a promessa de voltar no dia seguinte.
Chegou a noite e percebi quanto tempo fiquei aqui sentada nesta cadeira de
plástico, apenas acompanhando a porta do quarto de Gustavo abrir e fechar. As
paredes creme da sala de espera, o ranger das portas se abrindo e fechando, o solado
dos sapatos de um lado para o outro no piso de linóleo, o zumbido chato do ar-
condicionado, o zum-zum-zum das pessoas falando, nada disso me fez parar de
lembrar dos seus olhos me mandando ir embora. Eu magoei-o profundamente e
agora não sabia como desfazer isso. Passei a mão sobre minha barriga e senti o
estômago roncar.
— Liz? — Dona Carmen sentou-se do meu lado me acordando de meus
pensamentos.
— Oi, ele está bem? — perguntei.
— Sim, querida, ele está preocupado com você sentada aqui o dia todo.
— Ele sabe que estou aqui?
— Claro que nós dissemos a ele que você estava aqui na recepção o dia
inteiro.
— Ah... não deveriam, não quero preocupá-lo, eu só não vi a hora passar.
— Ele me contou sobre os bebês, querida, que bênção! Nunca imaginei que
iria ser avó de gêmeos — dona Carmen disse colocando as mãos na minha barriga.
— Ficamos muito surpresos também.
— Sim, e pelos bebês, Gustavo pediu para lhe mandar ir para casa, comer e
descansar. Você não pode passar o dia com um sanduíche da lanchonete do hospital.
— Tudo bem, eu já estava indo, não tenho servido para muita coisa aqui fora
mesmo. — Dei de ombros.
— Liz, eu sinto muito que as coisas entre vocês não tenham dado certo. Mas
eu tenho certeza de que meu filho te ama e sei que você também o ama muito, senão
não teria perdido seu dia presa num lugar como esse. — A mãe de Gustavo apertou
minhas mãos e sorriu tristemente para mim.
— Acho que ele não mais... O que importa isso agora, não é? Eu vou indo.
— Dei-lhe um abraço apertado e fui em direção ao estacionamento, não sem antes
prestar atenção nos olhos tristes de dona Carmen.
***
Cheguei em casa e atirei a bolsa no sofá, tirei os sapatos e deitei na cama.
Fiquei ali quietinha deixando as lágrimas lavarem toda dor que estava me triturando
em pedaços pequenos. A grande ideia de afastá-lo foi minha, agora estava sofrendo
por isso. Nem eu mesmo me entendia, minha razão e meu coração se digladiavam
todo dia sobre o que fazer.
Abracei os travesseiros com nossos cheiros misturados, seu suor ainda
estava nos nossos lençóis. Como eu pude ser tão burra? Desmoronei porque o
homem que eu amava me odiava e deixou claro que não tinha mais espaço para mim
em sua vida. Depois de ter chorado todo o líquido que meu corpo foi capaz de
produzir em forma de lágrimas, fui até a cozinha procurar algo para comer, não
podia deixar meus filhos com fome. Eles precisavam crescer.
Fiz um sanduíche com frango desfiado, tomates e queijo e comi com um
copo de leite. Arrastei-me de volta para o quarto, tomei um banho e caí na cama,
estava tão cansada, mas não conseguia dormir. Minha cabeça era um emaranhado de
pensamentos e sensações, só tentei fazer o meu melhor para nós dois, porém não
estava funcionando. Queria apenas voltar para o começo, sentia-me presa; quanto
mais tentava consertar as coisas, mais as deixava erradas, mais confusas eu as
tornava.
Às cinco da manhã, levantei, tomei um banho frio e troquei de roupa,
precisava vê-lo. Precisava estar lá com ele, mesmo que ele não me quisesse,
Gustavo teria que aceitar que nunca vai poder se livrar de mim. Não podemos mais
ser um casal e construir uma família juntos, mas isso não me tirava o direito de
querer estar ao seu lado e me preocupar com ele.
Comi uma maçã enquanto fui para o hospital, assim que estacionei na
garagem, verifiquei o relógio e vi o quanto estava cedo, passei alguns minutos
dentro do seu carro aproveitando seu cheiro ali na cabine da pick-up, no banco de
trás havia uma camisa que ele usava para treinar, estava suja de lama e suor, inspirei
seu cheiro delicioso.
Quando me senti forte o suficiente para enfrentar esse dia, fui até o quarto
dele, abri a porta devagar e vi dona Carmen sentada ao lado de sua cama
cochilando.
Assim que ela ouviu o barulho da porta, ela me olhou e sorriu.
— Bom dia — cumprimentei baixinho.
— Oi, minha querida.
— Se a senhora quiser ir tomar um café, eu posso ficar com ele.
— Claro, mas vou aproveitar a chance para fazer algo que eu espero fazer há
muitos anos — ela disse levantando-se devagar para não acordá-lo.
— Tudo bem — assenti curiosa, mas não querendo ser invasiva.
Ela saiu do quarto e fiquei ali ao lado da cama, Gustavo estava deitado
tranquilamente, sua mão esquerda estava ligada a uma intravenosa depositando soro
na sua veia. Aproximei-me cuidadosamente, seu rosto estava rígido e suas
sobrancelhas tensas, mas seus olhos continuavam fechados. Levantei a mão e passei
a ponta dos meus dedos delicadamente pela sua mandíbula. Os meus dedos
transmitiam uma onda de calor da sua pele até meu coração. Sua barba rala estava
nascendo no seu queixo bonito, seu nariz imponente, seus lábios macios e quentes.
Ele era perfeito.
Ele era o homem da minha vida, eu não podia mais negar isso. Senti uma
necessidade insuportável de lhe beijar, umedeci meus lábios e aproximei-me da sua
boca, pressionei-a contra a minha, era como estar no céu.
Quando percebi, as minhas mãos já estavam segurando sua cabeça,
deslizando suavemente por seus cabelos bagunçados exigindo que ele retribuísse
meu beijo, que ele me quisesse de volta. Gustavo travou a mandíbula, abriu os olhos
e me empurrou com a mão direita, eu me afastei dele e vi-o limpando a boca com as
costas da mão com nojo.
— O que você pensa que está fazendo? — perguntou rosnando com ódio de
mim.
— Desculpe, Gustavo, eu fiz sem pensar. — Levantei as mãos para tocar
seus ombros, mas ele me impediu.
— Você só pensa em você, como a grande egoísta que é.
— Gustavo, não precisa me tratar assim.
— Você que pediu por isso, tudo sempre gira em torno do que você quer,
Liz. Você só acredita nas coisas da sua própria cabeça, eu cansei.
— Gustavo, por favor... — pedi chorando.
— Por favor você, Liz. Estou cansado de tentar desvendar sua cabeça, nem
você sabe o que você quer. Uma hora está gemendo meu nome, em outra está
dizendo que está arrependida. Você é uma maldita xarada que eu não tenho a
mínima paciência em tentar desvendar.
— Me perdoe, eu não quis lhe confundir... — pedi tentando tocá-lo
novamente.
— Saia do meu quarto, Liz...
— Gustavo, eu estou preocupada com você... Meu amor, me deixe ficar.
Posso consertar as coisas, me desculpe, eu te magoei e sinto muito por isso. Não foi
porque eu quis, eu estava confusa.
— Tarde demais, não me interessa mais o que te preocupa, só me interessa
meus filhos, esse será o único contato que vou ser obrigado a ter com você. Agora
sai! — Gustavo gritou essa última palavra de apenas três letras, mas causou uma
destruição imensa no pouco de esperança que me restava em tê-lo de volta.
Levei um minuto inteiro para processar o que ele disse, engoli o choro e
virei-me saindo pela porta tão devastada quanto entrei.
Era real, eu perdi o homem que eu amava.
Para sempre.
“Quando você fechar seus olhos,
saiba que eu estarei pensando em você (...)
Hoje à noite eu não estarei sozinho, mas você sabe que não
Significa que eu não estou sozinho, eu não tenho nada a provar
Pois é você que eu morreria para defender...”
Bed of Roses – Bon Jovi
Gustavo
Ontem, quando pedi pra Liz sair do quarto, lutei contra todo o amor que
sentia por ela e me armei de orgulho. Não poderia ficar em paz quando ela estava
aqui, tão perto e tão longe ao mesmo tempo. Doía saber que ela não me queria da
maneira que eu queria estar na vida dela. Mas mandá-la embora doeu mais em mim
do que poderia doer nela.
Como se expulsa alguém da sua vida que parece estar enraizado até ossos?
Dominando-lhe o coração, mente e alma?
Simplesmente não pode, mas eu deveria. Então evitá-la era o que eu podia
fazer de melhor.
Passei o resto do dia sondando sobre onde ela estava aos meus irmãos,
minha mãe me prometeu fazê-la comer alguma coisa. Não fiquei feliz de saber que
ela passou o dia todo apenas com um sanduíche. Ela estava comendo bem por conta
dos gêmeos, devia estar sentindo fome. E só de imaginar isso me sentia um filho da
puta egoísta.
Thiago, Carol e Guilherme revezaram entre meu quarto e o do meu pai a
tarde toda, mas minha mãe não saiu de perto de mim. Acho que ela ainda não estava
preparada para encará-lo. Eu a entendia, porque eu também não estaria.
Ao anoitecer fiz minha mãe prometer fazê-la ir para casa, Liz não podia ficar
a noite toda aqui sentada em uma cadeira de plástico desconfortável. Ela podia
sobrecarregar a coluna e passar mal. E eu não queria isso.
Depois que minha mãe retornou ao quarto me informando Liz foi embora,
fiquei mais tranquilo. Ela merecia descansar em uma cama confortável e nada
melhor do que a nossa cama para isso.
Adormeci pensando em como eu e Liz chegamos a essa situação, tínhamos
tudo para dar certo, mas a vida tinha outros planos para nós bem diferentes do que
eu esperava. Lembro-me de estar sonhando com nossa última noite de amor, quando
senti seus lábios sobre os meus, pensei que o sonho estava ficando muito real. Abri
os olhos e, para o meu descontrole, aquele toque macio não era um sonho, Liz
estava me beijando.
Uma onda de raiva e desejo reprimido me atingiram. Ela não podia me
enlouquecer dessa maneira, uma hora estava me beijando, em outras dizendo que
não damos certo e que tudo não passou de um erro. Tratei de clarear as coisas entre
nós, ela precisava estar na mesma página que eu.
Observei suas costas saindo do meu quarto, seu rosto estava coberto de
lágrimas. Essa não era a imagem que eu queria ver hoje. Estar aqui nessa cama
prestes a ser operado, expulsando a mulher que eu amava da minha vida.
Merda! O que mais pode acontecer para piorar meu dia?
Uma enfermeira entrou na sala e começa a ejetar alguns medicamentos no
meu soro, ela sorriu me dando uma piscadinha. Virei o rosto sem interesse, ela
escolheu uma péssima hora para me paquerar.
— Onde está minha mãe? — perguntei a ela.
— Está no quarto do seu pai, precisa de alguma coisa?
— Não sei como ela consegue... — resmunguei falando sozinho.
— O que você disse? — a moça perguntou recolhendo seus materiais.
— Nada.
Algum tempo depois, minha mãe entrou na sala com olhos vermelhos, ela
andou chorando e tive certeza do porquê.
— Filho, cadê a Liz? — minha mãe perguntou parecendo triste.
— Mandei-a embora. — respondi de forma grosseira.
— Meu Deus, Gustavo, o que você está fazendo? Essa garota ama você,
filho, e vejo nos seus olhos que você também a ama.
— Mãe, eu só me importo com meus filhos de agora em diante, não quero
nenhuma relação com aquela mulher depois que eles nascerem.
— Não fale besteira, ela sempre será a mãe dos seus filhos, você vai precisar
conviver com isso e tratá-la com respeito, eu não lhe criei para isso.
— Eu sei. Agora me diga o que a senhora estava fazendo no quarto do meu
querido pai? — perguntei sarcástico.
— Sabe, filho, esse rancor e toda essa mágoa que você guarda contra seu pai
te fez esquecer o homem maravilhoso que ele sempre foi para nós antes de ir
embora. Eu nunca terei ódio do homem que me deu uma família e me ensinou o que
é amar de verdade, ele me deu vocês... E eu nunca poderei agradecê-lo
suficientemente por isso. Augusto errou, mas eu já o perdoei porque, no fundo,
também contribuí para o que aconteceu. Seu pai ter ido embora daquela forma
também foi culpa minha. Passei tempo demais fingindo não ver o rancor que você
guardava da única pessoa no mundo que não merecia. Eu nunca quis lhe contar o
motivo do seu pai ter ido embora, afinal você era só um garotinho, achei que
estivesse lhe protegendo, filho, mas eu tive culpa por ele ter nos deixado, Gustavo.
— O quê? — perguntei sem entender.
Do que ela está falando?
— Gustavo, eu também cometi erros que venho tentando lidar e corrigir há
muito tempo... eu amava seu pai e seu pai me amava. Nós éramos felizes juntos, e
quando não estávamos felizes, estávamos tentando ser. Os anos se passaram
enquanto criávamos vocês, com o tempo veio a rotina do casamento e os problemas
do restaurante. Por orgulho e um grande mal-entendido dei a entender que estava
apaixonada por outro homem. Eu era tão boba, Gustavo, tão cheia de orgulho... —
Minha mãe limpou as lágrimas, segurou minha mão livre e continuou: — Eu bolei
um plano para chamar a atenção do Augusto. Eu mesma me mandava flores, fazia
questão de esquecer bilhetes de amor que eu escrevia pela casa, para que ele
encontrasse... Começou como uma brincadeira idiota que funcionou, mas não como
deveria. Eu só queria que ele voltasse a me olhar como antes, que me desejasse e
que sentisse ciúmes de mim. E ele sentiu, Augusto colocou na cabeça que eu tinha
um amante, o que na verdade nunca existiu. Eu só queria fazê-lo perceber que eu
estava ali, que ainda era bonita e interessante. Deu certo, mas o ciúme excessivo se
tornou possessivo.
— Mãe, o que a senhora fez? — As mãos dela tremiam contra a minha.
— Seu pai começou a beber mais do que deveria e isso desencadeou as
brigas incessantes. Augusto era cabeça-dura, quando eu quis consertar as coisas e
contar a verdade ele não aceitou, achou que eu estivesse mentindo. Eu fui longe
demais, não poderia culpá-lo. Podia?
— Mãe, eu não posso acreditar... — murmurei.
— Uma noite ele saiu para beber com os amigos, voltou para casa depois do
jantar quando vocês já estavam dormindo. Seu pai entrou no quarto e me viu
passando um batom em frente ao espelho. Ele ficou enlouquecido, começou a me
acusar de estar me arrumando para outro homem, eu nunca tinha visto-o daquela
maneira, acusou-me de coisas horríveis. Foi demais para mim, revidei e comecei a
atacá-lo com socos e empurrões... — Minha mãe respirou entre os soluços para
continuar em seguida: — Começamos uma briga feia, ele tentando se defender e eu
tentando machucá-lo da mesma forma que ele estava me machucando com suas
palavras e por chegar fedendo a uísque vagabundo todas as noites. Mentir para ele
não foi o meu pior erro. O que fiz a seguir é que mudou tudo e exterminou qualquer
chance que tínhamos de ainda ter uma família.
— O que você fez, mãe? — Minha voz saiu como um grito rouco.
— Eu estava tão ensandecida que acabei alcançando um perfume na cômoda
e joguei em sua direção. O vidro atingiu sua testa e causou um corte profundo na
sua têmpora, a roupa do seu pai logo ficou coberta de sangue. Assim que vi o que
fiz me arrependi, mas não tive tempo para isso, Augusto entrou em estado de
choque, em questão de segundos ele estava me empurrando contra a cômoda. Eu caí
devido a sua força e bati com a cabeça na quina do móvel de madeira.
Interrompi-a:
— Mãe... O que a senhora está...
— Me deixe terminar... eu fiquei desacordada por alguns minutos, eu não sei
ao certo quanto tempo. Acordei do desmaio e encontrei seu pai... — Minha mãe não
conseguiu pronunciar as palavras a seguir, ela fez uma pausa para abafar um soluço.
— Mãe, eu preciso saber.
— Seu pai estava no banheiro com uma lâmina de barbear pressionada
contra o pulso, pronto para tirar a própria vida. Porque ele achou que havia me
matado...
— Mãe! — exclamei em total estado de choque.
— Gritei e implorei que ele não fizesse aquilo, nunca vou esquecer o
desespero que vi nos olhos do seu pai naquela noite. Mas ele apenas levantou do
chão do banheiro, arrumou a mala e preferiu ir embora... deixando você e seus
irmãos e me poupando do homem que ele se tornou, ele quis evitar que vocês
sofressem pelos nossos problemas. Seu pai sempre foi um homem digno, ele não
queria que vocês fossem criados dentro de um casamento fracassado. Eu forcei-o a
tomar péssimas decisões e o álcool e a raiva fizeram com que ele se tornasse um
agressor. Seu pai se arrependeu do que fez, eu vi em seus olhos assim que ele viu
que eu estava viva.
— Meu Deus...
— Ele me amava tanto que preferiu ser odiado a vê-los me odiando. O meu
orgulho não me deixou ir atrás dele, quis mostrar-lhe que eu poderia viver sozinha e
mesmo após tudo isso... Depois de todos esses anos, quando fecho os olhos para
dormir, lembro dele e de como fui burra por perder o homem da minha vida por um
simples capricho. Mesmo longe, Augusto depositava todo dinheiro que ganhava em
uma conta poupança para vocês. Ele nunca nos deixou faltar nada — ela terminou
de falar aos prantos. O corpo esguio da minha mãe balançava enquanto chorava
copiosamente lembrando da tragédia que marcou a sua vida e a minha para sempre.
Não tive qualquer reação em abraçá-la, queria tanto acreditar que isso não
passava de um sonho, ou de algum efeito alucinógeno dos remédios. Todos esses
anos minha mãe não me contou a verdade. Eu acreditei que ele tinha ido embora
porque não nos amava. Cultivei ódio e rancor por alguém que não merecia.
— Mãe, como você pôde não ter me contado nada disso? Me deixou no
escuro por todos esses anos. Como pôde? — perguntei com a garganta seca.
— É a mim, filho, é a mim que você deve odiar. Você entende agora? — ela
murmurou entre as lágrimas.
— Mãe, a senhora não podia fazer uma coisa dessas... meus irmãos sabiam?
— Eu sei... Gustavo, eu nunca disse isso a ninguém, mas seus irmãos, como
eram mais velhos, lembram-se de nossas brigas e nunca odiaram seu pai por ter ido
embora. Você não precisa me odiar, eu já paguei por isso vivendo uma vida de
solidão longe do homem que eu amo. Então não cometa o mesmo erro que eu e seu
pai cometemos.
— Com licença. — Olhamos em direção à voz do doutor Antônio nos
interrompendo. — Tudo bem aqui? — Ele olhou de mim para minha mãe com a
sobrancelha arqueada questionando a cena.
— Não está nada bem — sussurrei ainda incrédulo.
— Bom, espero que o que quer que tenha causado esse choro já tenha sido
resolvido. Está na hora, Gustavo, precisamos prepará-lo para a cirurgia — meu
médico avisou.
Foi neste exato momento que tive um estalo, percebi que não podia deixar o
orgulho me dominar e fazer da minha vida o mesmo que minha mãe fez com a dela ,
amava a Liz com todas as forças que havia em mim e nunca poderei viver longe
dela, por mais que eu tentasse. Não seria qualquer orgulho besta que faria isso.
Minha mãe deixou o orgulho dominá-la e perdeu uma vida inteira ao lado do meu
pai, do homem que a amava.
— Mãe, a Liz ainda está lá fora? Eu preciso falar com ela — disse antes do
doutor Antônio querer me levar para a sala de cirurgia.
— Deixe-me olhar — ela disse indo em direção à porta rapidamente,
enquanto se recompôs secando as lágrimas.
O doutor Antônio me olhou, curioso.
— Sua mãe é uma bela mulher. — O médico sorriu.
— Obrigado — agradeci, mesmo sem ter gostado do seu comentário.
— A bela moça grávida chorando fora do quarto é sua namorada? — ele
perguntou.
— Sim. — Senti um aperto no peito ao confessar isso, porque sabia que a
culpa era toda minha por cada lágrima derramada da minha flor.
— Você tem sorte, meu amigo. Trate de se acalmar, não quero que sua
pressão arterial aumente — o médico disse verificando meu soro e a intravenosa.
Olhei para o homem baixinho e senti afeto e gratidão por ele. Pelo seu jeito
insistente em querer salvar seus pacientes, em ter me feito fazer o exame de
compatibilidade. E por agora, me lembrar de que eu era um homem de sorte. Tinha
uma família que me amava, ainda tinha a chance de pedir perdão ao meu pai, tinha
uma mulher que amava mais que a minha própria vida e dois filhos que logo
chegariam ao mundo para iluminar tudo que havia em mim.
Liz entrou no quarto segurando a bolsa no ombro e a outra mão apoiada
sobre a barriga.
— Você me chamou? — ela perguntou apreensiva.
— Sim, venha cá... — chamei me sentindo um pouco sonolento.
Ela caminhou até o lado da cama e olhou para mim me iluminando com
aqueles olhos cristalinos. Peguei sua mãe fria e apertei firme deslizando meu
polegar em sua pele.
— Minha flor, me perdoe, amo vocês. Eu sou um idiota e não paro de agir
como um. Sinto muito, eu estava tão cego de raiva. Você me magoou em não me
querer em sua vida. Decidi que iria fazer o que você queria, mas não posso mais
continuar mentindo, eu não sei viver sem você... não me culpe por isso, você não me
deu escolha... — disse sentindo minha fala lenta, mas não poderia esperar mais
nenhum segundo para fazê-la ver que eu era louco por ela.
Liz se aproximou do meu rosto e falou baixinho:
— Nós também te amamos, meu amor. Eu e nossos filhos, motoqueiro, te
amamos muito. Graças a Deus, pensei que você não me queria mais. — Liz beijou
minha testa. Senti suas lágrimas molhando meu rosto, peguei a minha mão livre e
passei sobre sua barriga de quatro meses de gestação, seu abdômen se contraiu em
uma onda. Liz me olhou de olhos arregalados.
— Gustavo, os bebês mexeram — ela disse colocando as mãos sobre a
minha e deixando as lágrimas caírem de seus olhos em gotas.
— Nossos filhos... obrigado por isso. — Sorri sentindo-me cada vez mais
mole.
— Sim, meu amor, nossos filhos — minha flor disse me beijando entre
lágrimas, fechei os olhos sorrindo e uma nuvem negra me abraçou.
“Lá do alto, eu ouvi
Os anjos cantarem essas palavras para mim
E às vezes, em seus olhos
Eu vejo a beleza no mundo ...”
Liz
Uma coisa era certa, eu amava aquele homem e nunca conseguiria viver
longe dele. Ele era como o oxigênio que me mantinha viva, sem ter Gustavo eu não
conseguiria sequer respirar sozinha. Com o coração explodindo de felicidade, vi-o
apagar lentamente com o efeito das medicações, quebrando nossa bolha de
felicidade.
O médico que assistia a toda cena dramática atrás de nós se aproximou.
— Não se preocupe, nós demos a ele um tranquilizante para levá-lo à sala de
cirurgia e fazer toda a preparação para realizar o procedimento, Gustavo estava
muito nervoso, não seria indicado que ele tivesse mais emoções.
— Essa já é a anestesia?
— Não, a anestesia geral quem aplica é um profissional específico. Acalme-
se também, terá muito tempo para relaxar, a operação poderá durar de quatro a seis
horas.
— Isso tudo? — perguntei secando o rosto.
— Seu namorado é um homem forte. Fique tranquila, dará tudo certo — o
médico me disse.
Alguns enfermeiros levaram Gustavo para a sala de cirurgia e eu, dona
Carmen e seus irmãos sentamos apreensivos na recepção para aguardar. Dudu
retornou e nos fez companhia durante todo o dia, seus olhos estavam cansados, ele
passou as mãos no cabelo ansioso e fez um coque com os fios no alto da cabeça.
— Liz, querida, vai dar tudo certo — dona Carmen disse apertando minhas
mãos.
Thiago estava segurando Cléo dormindo em seu colo, Carol estava deitada
no ombro de Guilherme, que por mais durão que ele aparentasse ser, estava com os
olhos fundos e vermelhos.
— Eu sei. — Apertei suas mãos também, tentando ser confiante.
Cinco intermináveis horas se passaram. Quando já estava enlouquecendo
desesperada por notícias, o cirurgião apareceu com o semblante cansado, nada
parecido com o senhor gentil de mais cedo. Caminhei até ele.
— Como foi? Ele está bem? Cadê ele? Já posso vê-lo? — perguntei aflita
por qualquer notícia, o médico nos olhou com as sobrancelhas cerradas e com duas
bolsas sob os olhos de cansaço.
— Em partes, a boa notícia é que o transplante foi um sucesso, mas no final
do procedimento o doador teve uma hemorragia interna.
Todo meu sangue foi drenado das minhas veias, senti minhas pernas virarem
gelatina, um frio atingiu minha espinha e lágrimas escorreram dos meus olhos, parei
de ouvir o barulho ao meu redor, a imagem das pessoas de repente pareceu borrada.
Pisquei os olhos para tentar enxergar melhor e uma escuridão me abraçou
lentamente.
***
Quando abri os olhos e luzes fosforescentes atingiram minha íris, tentei
levantar a cabeça, mas estava tonta, na minha mão havia uma intravenosa em um
soro, eu vestia uma bata do hospital, instintivamente passei a mão na minha barriga.
Meus bebês!
A porta se abriu e uma enfermeira entrou com uma prancheta na mão, ela
sorriu para mim.
— Oi, como está se sentindo? — a moça perguntou.
— O que aconteceu? Meus bebês? Eles estão bem? — indaguei em
desespero só de pensar que podia ter acontecido algo a eles.
— Eles estão bem, a médica virá conversar com você.
— Oh, graças a Deus! E como está meu noivo? Eu quero saber dele. Você
deve ter ouvido falar, ele se chama Gustavo Salles e é piloto de motocross. Me fala!
— exigi preocupada.
— Calma, você precisa relaxar — a enfermeira disse indo em direção à
porta.
— Me acalmar para quê? Enfermeira! Cadê o meu motoqueiro?
Meu Deus, por que ela não quer me dizer? A moça me olhou entristecida e
saiu da sala me deixando sozinha com minhas dúvidas.
Recordei das palavras do médico “ O doador teve uma hemorragia”.
O homem da minha vida teve uma hemorragia. Deus, faça com que nada
tenha acontecido a ele, temos tanto a fazer, preciso tanto dele ao meu lado! Gustavo
não pode ter me deixado, não pode.
Doutora Paula apareceu assustada no quarto.
— Onde ele está? — berrei em sua direção me levantando da cama.
— O que aconteceu? Por que está tão nervosa? — a médica perguntou.
— Alguém me fala alguma coisa, por favor... — gritei.
Carolina entrou no quarto correndo.
— Como ele está, Carol? Diga que não foi nada de mais — implorei entre
soluços.
— Ei, Liz, calma, querida. Seu noivo agora está bem, os médicos
conseguiram reverter a hemorragia, ele teve uma reação a um dos medicamentos
utilizados na cirurgia, mas já foi medicado e está fora de risco. Ele está dormindo e
se recuperando muito bem. Dentro de uma semana, ele estará em casa com você. —
Minha médica me tranquilizou sorrindo de todo drama que acabei de fazer.
— Oh, meu Deus! — Chorei aliviada.
— Liz, está tudo bem. Meu irmão é forte. — Carol me abraçou. Agarrei-me
a ela muito feliz por ver um rosto conhecido.
— Eu tive tanto medo, Carol... não aguentaria perdê-lo.
A doutora Paula nos observava.
— Ei, mocinha, trate de se acalmar! Sei que o que está acontecendo com seu
noivo é muito estressante, mas você precisa se preocupar com os bebês. Toda essa
emoção não tem lhe feito bem. Você desmaiou porque não tem se alimentado
direito, os gêmeos precisam ganhar peso, Liz. Te colocamos no soro e te demos um
tranquilizante para você descansar e se hidratar. Mas agora você precisa comer, só te
darei alta depois que você estiver bem alimentada e me prometer parar de passar
com fome.
Sorri agradecendo a Deus por estar tudo bem com as pessoas mais
importantes da minha vida: meus filhos e o meu motoqueiro.
Depois de devorar um prato de sopa de legumes e torradas, a doutora Paula
me deixou sair da cama. Infelizmente não pudemos ver Gustavo, devido ao risco de
infecções, não era permitido visitas na UTI onde ele passaria a noite.
Mas voltei para a recepção para ficar com sua família, que nesse momento
sentia que também era a minha. Sentei ao lado de dona Carmen, segurei sua mão e
juntas agradecemos a Deus por ter dado Gustavo novamente para nós, nunca mais
irei sair de perto dele.
Nunca mais.
“Não vou desistir de nós
Mesmo que os céus fiquem furiosos
Estou te dando todo meu amor
Ainda estou melhorando...”
I Won't Give Up – Jason Mraz
Gustavo
Acordei na manhã do quinto dia no hospital com o quarto cheio de pessoas
que me amavam, minha Liz estava segurando minha mão ao meu lado, minha mãe
estava do outro lado da cama alisando meus cabelos, meus irmãos e minha afilhada
estavam em pé me observando. Dudu e até a Cris estavam aqui.
O quarto estava cheio de flores e balões por todos os cantos.
Esse era o primeiro dia que foi autorizado receber visitas, logo no pós-
cirúrgico não pude ver muita gente, no segundo dia liberaram a entrada da Liz e da
minha mãe em visitas rápidas e após elas estarem vestidas com toucas e aquelas
roupas esterilizadas de centro cirúrgico.
— Oi, meu motoqueiro gostoso — Liz sussurrou beijando castamente a
minha boca.
— Oi, minha flor — cumprimentei ainda um pouco desorientado sem saber
quanto tempo eu dormi desde que vim para o apartamento.
— Oi, filho — minha mãe disse apertando minha mão.
— Ei, cara — Thiago falou apertando meu pé.
— Oi, mano — respondi.
— Porra, Gustavo, só você para nos fazer estar aqui em pé há duas horas te
esperando acordar! — Guilherme brincou sorrindo.
— Gui! — minha mãe o repreendeu.
Eu não resisti em rir, o movimento me causou dor no local da cirurgia. Mas
não me importei, gostei de saber que estavam todos bem, até minha afilhada estava
sorrindo.
— Meu irmão, ela não parou de pedir para vê-lo, tive que trazê-la.
— Oi, linda do tio — brinquei com minha afilhada, Carolina se aproximou
com Cléo no colo, a menininha me beijou no rosto.
— O médico acabou de passar aqui e disse que seus últimos exames foram
excelentes, você está se recuperando muito bem, meu amor — Liz me informou,
sorrindo, e beijando meus cabelos.
— Como você está se sentindo? — minha mãe perguntou.
— Só um pouco dolorido e sonolento.
— Vai passar, meu amor... — Liz disse fazendo cafuné em mim
carinhosamente.
— E meu pai? — perguntei preocupado.
— Nosso pai está reagindo muito bem à cirurgia, o médico falou que tem
chance dele se recuperar totalmente, ele precisa de um pouco mais de atenção até
seu corpo se adaptar com o novo órgão, mas o doutor Antônio falou que os exames
estão ótimos — Thiago explicou.
— Que bom. Ele já acordou? Eu quero vê-lo.
— Meu amor, você vai falar com seu pai? — Liz perguntou animada.
— Sim, eu não vou perder nenhum segundo a mais da minha vida. — Sorri
para ela, vi Liz levar a mão até a barriga e abrir um sorriso.
— O que foi? — perguntei curioso.
— Os bebês estão se mexendo de novo, parece que eles só mexem quando
estou perto de você. Eles gostam de ouvir sua voz — contou emocionada.
— Eles estão felizes, filho. Fale com eles — minha mãe explicou.
— Oi, filhos, vocês estão bem? Papai está louco para pegar vocês no colo.
— Liz sorriu. — O que foi? — perguntei.
— Coloque a mão aqui — ela pediu e eu estiquei o braço até o seu ventre
que estava se contraindo em ondas. Meu coração se encheu de alegria.
— Meu Deus, vocês estão fazendo a festa, hein? — perguntei orgulhoso dos
meus bebês.
— Nós te amamos, motoqueiro — Liz sussurrou antes de me beijar.
Minha família e meus amigos pouco a pouco saíram para almoçar e
descansar da pressão que foi os últimos dias. Liz permaneceu do meu lado, ela me
contou que a cirurgia demorou muitas horas, quando questionei porque dormi tanto,
ela acabou me confessando que tive uma moderada hemorragia por ter tido reação a
um medicamento. Eu poderia nunca mais ter visto esses olhos azuis tão profundos e
límpidos novamente. Quando perguntei o que ela ficou fazendo durante o tempo que
dormi, ela me enrolou e, pelo que a conhecia, sabia que estava escondendo algo.
— O que você não está me contando? — indaguei.
— Nada, meu amor. — Liz começou a colocar uma mecha imaginária de
cabelo atrás da orelha. Ela estava ficando nervosa.
— É melhor falar, querida.
Liz suspirou se rendendo.
— Tudo bem, você é irritante, sabia? — perguntou arrebitando aquele nariz.
— Fale logo.
— Acabei desmaiando, fiquei nervosa quando soube da hemorragia e, como
não tinha me alimentado o dia todo, apaguei.
— O quê? E ninguém mandou você comer? Vou matar os meus irmãos! —
berrei tentando me levantar e senti uma pontada de dor no lugar da cirurgia.
— Não precisa gritar. — Liz suspirou e continua: — Você passou muito
tempo na cirurgia, não saímos da recepção esperando notícias suas. Aí acabei não
me lembrando de comer e quando o médico disse que você tinha tido uma
hemorragia, meu corpo não aguentou.
— Liz, como você faz uma coisa dessas? Você não pode ficar sem se
alimentar, quantas vezes já te falei isso? Você tem duas crianças aí dentro, precisa
comer. Droga, Liz!
— Vai continuar brigando comigo? Logo agora que estamos bem? — ela
perguntou fazendo biquinho daquele jeito que eu não resistia.
— Prometa que vai se cuidar. Se não for por mim, que seja pelos nossos
filhos, Liz.
— Prometo! Prometo o que você quiser.
— Ah, Liz, se eu não estivesse nessa cama eu ia lhe mostrar como não é uma
boa ideia me contrariar.
— Gustavo, não provoca, estamos no hospital — ela disse baixinho
envergonhada.
Puxei-a mais para perto da cama e beijei-lhe a boca, seus lábios macios me
acalmaram, só de imaginar que ela poderia ter se machucado ou machucado os
bebês desesperei-me.
Liz apoiou-se na lateral da cama e ficamos perto um do outro da maneira que
dava para ficar, contando com a minha situação.
— Que saudade do seu cheiro, minha flor.
— Estava com saudades de tudo relacionado a você. Te amo tanto, Gustavo.
— Minha flor, amo vocês mais do que é considerado saudável.
— Você tem que parar de me falar essas coisas. Se não quiser que eu te
sequestre desse hospital e te amarre na minha cama. — Sorri.
— Seria uma boa ideia. Mas antes quero te pedir uma coisa.
— O que é? Posso fazer o que você quiser. Quer comer alguma coisa
especial? Ou quer que eu traga um filme? Posso trazer alguns livros e revistas pra
você passar o tempo. Vi uma banca que tem...
— Leve-me para ver meu pai — interrompi-a.
— O quê?
— Quero vê-lo.
— Mas, amor, está tarde e ele pode estar dormindo, e eu não sei se vão
deixar você ir até ele, pode ser perigoso. Você ou ele pode contrair uma infecção.
— Peça a enfermeira, Liz, por favor — implorei a ela, vendo seus olhos
repletos de amor e compreensão com meu pedido.
— Claro, meu amor. Estou tão orgulhosa de você — ela assentiu me dando
um beijo apaixonado e saindo para chamar a enfermeira.
Liz demorou cerca de uns dez minutos, depois voltou com uma cadeira de
rodas e um sorriso travesso.
— Você vai sentado aqui, não quero as mulheres vendo sua bunda nesta
bata. — Sorri do seu ciúme.
— Onde você conseguiu isso? — perguntei ainda sorrindo.
— Subornei uma enfermeira.
— Como?
— Com o telefone do Guilherme. — Nós rimos enquanto ela me ajudou a
levantar da cama, a minha cirurgia foi do lado esquerdo, senti uma queimação na
região, porém nada que eu não pudesse suportar. Sentei na cadeira cuidadosamente,
Liz me guiou pelos corredores silenciosos do hospital até o quarto do meu pai.
Ela abriu a porta e me empurrou para dentro do quarto, quando nós
entramos, olhei para a cama e vi-o deitado dormindo. Liz aproximou minha cadeira
e eu fiquei admirando o homem que eu tanto amei quando criança e por um mal-
entendido eu o perdi da minha vida. Liz baixou a cama para podermos ficar na
mesma linha de visão, com o movimento ele abriu aqueles olhos azuis intensos
como o mar mais revolto.
— Pai — chamei me segurando para não desabar apenas em pronunciar
aquela palavra de apenas três letras, mas que sempre foi sinônimo de dor para mim.
— Filho... — meu pai disse com a voz fraca e rouca.
— Meu pai, me perdoe, papai — disse apertando sua mão, esse simples
contato fez meu coração aquecer.
Ele limpou a garganta.
— Oi, Guto — me chamou pelo apelido de quando eu era criança.
— Pai, eu não te odeio. Eu nunca te odiei. Perdoe-me, eu estava tomado pela
mágoa. Eu estava cego de tanto rancor. Me perdoe... eu fui um imbecil... É que sua
falta me machucou demais — implorei o perdão do meu pai encostando minha
cabeça em seu peito e chorando como um menino. O menino de sete anos que se
sentiu rejeitado pelo homem que mais amava quando ele foi embora para nunca
mais voltar.
— Eu sei, filho, eu sinto muito por você ter sofrido por algo que não teve
culpa. Eu e sua mãe fomos os únicos culpados — ele disse alisando meus cabelos.
— Eu sei, ela me contou tudo. Foram vinte anos sem poder sentir o seu
cheiro, meu pai. Senti tanta falta do seu colo, de ouvir a sua voz. De ter você na
minha vida... Ninguém nunca supriu a falta que o senhor me fez, ninguém —
engasguei-me entre os soluços.
O cheiro do meu pai, o calor da sua pele na minha, ouvir sua voz me
chamando de meu filho me fez lavar toda mágoa e todo rancor que eu carregava no
peito.
— Guto, eu passei todos esses anos sonhando com esse abraço.
— Eu também, me perdoe por tudo que eu lhe disse. Foi tudo da boca para
fora, eu me sentia rejeitado, não lhe odeio. Nunca te odiei, nunca, pai. O senhor
acredita em mim? — perguntei encarando-o.
— Claro, filho, eu te amo e sei que você também me ama. Perdoe-me por ter
ido embora, eu machuquei sua mãe e não podia me perdoar por aquilo. Fui longe
demais, magoei a mulher que eu amava, não vi outra solução naquele momento. Ir
embora me pareceu a melhor saída.
Um soluço rompeu no meu peito, abracei meu pai da melhor forma que
encontrei pela situação que nós estávamos. Chorei em seu ombro todas as lágrimas
que me apertavam a garganta todos esses anos. Meu pai chorou afagando meus
cabelos da mesma forma que fazia quando eu tinha sete anos.
Quando levantei a cabeça vi Liz chorando no canto da sala sentada em uma
cadeira assistindo a nós dois.
— Pai, essa é a Liz, a mulher da minha vida e a mãe dos meus filhos —
apresentei-a orgulhoso chamando-a com um gesto.
— Filhos? — ele perguntou sorrindo e olhando para a Liz encantado.
— Sim, estou esperando um casalzinho de gêmeos — ela respondeu se
aproximando e dando um beijo na cabeça do meu pai.
— Filho, você é um sortudo, sua garota é linda — meu pai falou alisando
meus cabelos.
— Pai, quero você de volta na minha vida, quero que você participe da vida
das crianças. Não quero perder nem mais um segundo da sua companhia.
— Meu Deus, Guto, que alegria! Tudo que sempre quis foi poder ter a
chance de voltar atrás. Claro que estarei na sua vida daqui em diante, nunca mais me
afastarei de você nem dos seus irmãos. Parece que estou sonhando, conheci a Cléo e
agora fico sabendo que terei mais dois netos.
— Sim, pai, eu quero recuperar todo tempo que passei longe do senhor.
— Liz, eu fico feliz que meu filho tenha alguém ao seu lado, você é muito
sortuda, esse moleque aqui é incrível. Meu garotinho se tornou um grande homem,
ele doou o próprio rim para o homem que o abandonou quando criança, eu não o
culparia se ele se recusasse, mas Guto me surpreendeu e aceitou salvar a minha
vida, mesmo sem saber de toda verdade. — Meu pai me beijou na testa e chorou
junto comigo.
— Eu sei disso, Gustavo é um homem maravilhoso, por isso eu o amo tanto.
Não vou deixá-lo escapar — Liz disse piscando para mim.
Conversamos por mais algum tempo até uma enfermeira aparecer e pedir
para voltarmos para o nosso quarto. Liz passou a noite comigo, deitada em uma
poltrona reclinável, apesar de eu insistir para ela deitar comigo na cama estreita do
hospital, Liz ficou alegando que não queria me deixar desconfortável.
Liz me amava, agora eu tinha certeza.
Quatro dias depois, eu estava em casa. Toda minha família, Cris, e meu
técnico estavam no meu apartamento para me receber, minha mãe preparou um belo
almoço e Carol fez a minha sobremesa preferida: quindim. Foi um dia maravilhoso
ao lado das pessoas que eu amava, passei a refeição observando Liz sorrir, enquanto
conversava com as pessoas e brincava com a Cléo.
Vê-la sorrindo era tão delicioso.
As pessoas começaram a ir embora já no finzinho da tarde, meus irmãos
voltaram para Minas Gerais, só minha mãe ficou para cuidar do meu pai enquanto
ele ainda estava no hospital, porque, pelo que parecia, eles estavam se entendendo
novamente. Pela primeira vez na vida sentia que as coisas estavam dando certo e eu
me sentia imensamente feliz.
— Amor, está sem sono? — Liz perguntou quando estávamos deitados na
nossa cama.
— Só estou pensando — respondi alisando seus cabelos.
— Hum, posso saber em quê? — perguntou beijando minha boca e
pressionando o corpo sobre o meu. Uma dor aguda apertou na minha cirurgia que
estava coberta com um curativo.
— Humm... Droga... — gemi e pressionei a mão no local fazendo careta
com a dor.
— Ah, meu Deus, te machuquei? Meu amor, o que foi? — Liz perguntou
assustada.
— Só a cirurgia que está doendo um pouco. Não foi nada de mais.
— Jura?
— Já passou, querida.
— Gustavo, você não imagina o que eu senti quando me falaram que você
tinha tido uma hemorragia. Só de imaginar não ter mais você, eu enlouqueci. Doía
tanto, tanto....
— Eu nunca iria embora sem conhecer meus filhos. Seria preciso mais que
uma hemorragia para me privar disso.
— Ah, seria só pelos nossos filhos que você ficaria?
— Não, sua boba. Pela mãe deles também.
— Já ia esquecendo, ainda não dei seu presente de aniversário. — Liz
passou as mãos no meu rosto, sorri com seu carinho.
— Não precisa, meu amor.
— Claro que precisa, só um minuto. — Liz levantou-se deixando à mostra
aquela bunda que eu tanto amava.
Ela estava com uma camisola verde de alças, que por conta da barriga estava
mais curta que o normal, o que era bom para eu poder apreciar a vista.
Ela voltou sorrindo com uma caixa pequena e um envelope.
— Abra apenas a caixinha, o envelope é para o dia do nosso casamento. Isso
se você ainda quiser casar comigo — disse sentando ao meu lado e me entregando a
caixa.
— Não seja boba, casar comigo é uma sentença para você. — Liz riu da
piada.
Dentro da caixa revestida em couro havia um relógio de pulso lindo, com a
pulseira de couro marrom trabalhado e a base em platina. Dentro da caixa também
tinha um cordão em prata com um pingente quadrado.
— Abra — ela pediu sorrindo me mostrando como abrir o pingente, quando
apertei o encaixe e a placa de prata se abriu em duas partes, dentro havia uma foto
de Liz no dia do batizado da Cléo e o outro lado estava sem foto.
— Motoqueiro, eu sei que, quando você se recuperar, vai voltar a treinar e
terá que viajar. Como eu não vou poder te acompanhar em algumas viagens por
conta dos bebês, o colar é para você lembrar-se de mim e voltar para casa o mais
rápido possível. O outro lado do pingente deixei sem foto para colocarmos a foto
dos bebês quando eles nascerem. Assim a gente vai poder estar com você sempre. O
relógio é para você nunca se atrasar para voltar para casa. Para sua família.
Como não amar essa mulher?
— Eu amei, minha flor... — Puxei-a para um beijo emocionado. — Esse,
sem dúvida, foi o melhor presente da minha vida. Não se preocupe, porque sempre
voltarei para você, sempre — completei.
— Não quero te perder, nunca.
— Eu estou aqui, meu amor, não vou a lugar nenhum. — Beijei-lhe
apaixonadamente, desfrutando da delícia de amar e ser amado por alguém que
verdadeiramente se importava.
Dormimos abraçados, ela sobre meu peito do lado contrário da cirurgia e eu
com a mão sobre sua barriga sentindo nossos filhos.
Aninhados, como toda família devia ser.
“Você é a única exceção
Bem, você é a única exceção
E eu estou a caminho de acreditar
Oh, e eu estou a caminho de acreditar...”
The only exception – Paramore
Liz
Estava radiante, apesar da minha barriga estar cada dia maior e mais pesada,
cada etapa da gravidez era um presente maravilhoso para nós. Tenho amado e me
deliciado com a dor e o prazer de carregar meus filhotes. Mês passado finalmente
conseguimos decidir os nomes dos gêmeos, eu escolhi o nome do menino e Gustavo
o da menina.
Nosso menino se chamará Luiz Arthur, eu quis manter o primeiro nome do
Gustavo porque descobri que todos os homens da família Salles têm como primeiro
nome o Luiz, que também era o primeiro nome do Sr. Augusto, pai deles. E eu quis
manter a tradição, o que deixou o Sr. Augusto e a dona Carmen emocionados com a
homenagem.
O nome da menina será Laís, que significava leão. Nos ultrassons ela era
sempre a mais agitada, Gustavo insistiu porque era parecido com o meu nome,
apenas acrescentando uma vogal. Também vamos acrescentar o meu Maria. Não
ousamos na escolha dos nomes, mas a escolha não poderia ser diferente. Então, em
breve Luiz Arthur Albuquerque Salles e Laís Maria Albuquerque Salles estarão
correndo pela casa.
Meu motoqueiro tem sido um perfeito cavalheiro, ele resolveu que seríamos
mais felizes morando em Belo Horizonte junto de sua família para nos ajudarem
com os bebês, já que éramos pais de primeira viagem, o que gerou muito protesto da
Cris, que era madrinha da Laís juntamente com o Thiago. Acabei concordando,
Belo Horizonte era linda e eu já me sentia parte integrante da família Salles, adorava
o restaurante, a vizinhança, o clima, e o céu estrelado mais lindo que já vi na vida.
Meu futuro marido se recuperou muito bem da cirurgia, assim como Sr.
Augusto, graças a Deus. Fiquei um pouco apreensiva por conta da tal hemorragia
que Gustavo teve, mas o médico nos deixou tranquilos quando fizemos uma bateria
de exames para investigar o que aconteceu e, graças aos céus, sua saúde estava mais
do que bem.
A casa que estávamos morando era fantástica, ficava na mesma rua do
restaurante. Como era de dois andares, tinha bastante espaço para as crianças
brincarem. Foi um milagre conseguirmos um lugar tão incrível em tão pouco tempo,
quando Gustavo me trouxe para conhecer o lugar, assim que desci do carro, fiquei
sem fôlego pela beleza da construção, a fachada em tons de terracota e cores pastéis
deixam a construção com ar moderno e acolhedor, a parte superior continha uma
bela varanda, que seguia por toda extensão do segundo piso com sacada em vidro
temperado, o que provavelmente proporcionaria belas noites admirando as estrelas
do céu de Belo Horizonte.
A lateral da casa tinha uma boa garagem para comportar tranquilamente dois
ou três carros. Como a rua era bastante arborizada, algumas árvores ficavam na
lateral da casa fazendo sombra por toda a sua lateral indo em direção à piscina.
Mesmo achando a casa linda, não pude deixar de considerá-la grande demais
para um casal e duas crianças, nem pude imaginar a fortuna que devia custar. Mas
Gustavo estava tão empolgado em poder criar nossos filhos na mesma rua que ele
cresceu brincando de bola com os irmãos, que não pude deixar de concordar.
Terminei de me convencer totalmente quando ele me levou até o quarto,
onde seria nossa suíte no segundo andar, Gustavo me persuadiu que aquele era o
melhor lugar para posicionarmos nossa cama.
Como a casa pertencia a um velho casal amigo da família, o processo de
compra foi bem rápido, a casa era recém-reformada, então só precisamos cuidar da
mobília e da decoração. Cada pequeno detalhe da casa escolhemos juntos. Gustavo
se revelou um homem de muito bom gosto escolhendo cores neutras e sofisticadas,
mas tudo com muita personalidade e vida. Tudo com nossa cara. Ele disse que não
queria morar em uma casa triste e eu concordei.
“Impossível ser triste com ele ao meu lado”, pensei comigo mesma.
Terminamos de arrumar o quarto dos bebês, ficou um charme. Arrumei com
tanto amor e carinho que chorei de felicidade quando vi tudo pronto para esperá-los.
Trouxemos tudo que tínhamos comprado em São Paulo.
Um verdadeiro quarto de um príncipe e uma princesa, claro que não pude
esquecer-me de colocar o palhacinho que Gustavo comprou na minha primeira visita
a Belo Horizonte, em uma prateleira do quarto. Voltamos na loja de artesanato mês
passado e compramos a palhacinha para fazer um casal e não deixar as crianças com
ciúmes.
Gustavo fez questão de casarmos na igreja, como as mudanças foram muitas
e foi a maior correria nos preparativos da casa nova, do enxoval dos bebês e todo o
resto, então, só conseguimos marcar o casamento para hoje, quando estou com oito
meses e meio de gestação: doze de fevereiro.
Mesmo com as costas doendo, os pés inchados e os seios pesados, meu
noivo disse que estou mais linda do que nunca.
Terminei de me arrumar com a ajuda da Cris, que era minha madrinha de
casamento, juntamente com a Carolina, que apesar de todos os atritos que tivemos
antes, tem se mostrado uma boa amiga.
— Você está parecendo um anjo — Cris disse me virando para o espelho.
— Você é a noiva mais linda que eu já vi na vida... — Carol disse
emocionada, quando me olhei no espelho me senti a mulher mais linda e feliz do
mundo.
O vestido que escolhi era um modelo de renda francesa, de manga longa,
com a saia caindo aos meus pés em seda fluida, as costas em um decote V profundo
e o arremate uma faixa de cetim dando um laço delicado nas costas.
Meus cabelos estavam amarrados com cachos soltos e desarrumados,
enfeitados apenas com flores brancas. A maquiagem que escolhi era bem leve,
apenas ressaltando meus olhos azuis que meu futuro marido tanto gostava. Na boca
um batom rosado deu o toque final.
Uma batida na porta do quarto me tirou do devaneio, virei-me e vi minha
sogra entrar em um lindo vestido champanhe discreto e elegante.
— Oh, meu Deus, como você está linda! — dona Carmen se aproximou e
me beijou no rosto.
— Obrigada, não fale assim que estou me segurando pra não borrar a
maquiagem. O cabeleireiro e o maquiador acabaram de sair e eles me cansaram
tanto que não quero que voltem — disse, sorrindo, abraçando-lhe um pouco
atrapalhada devido ao volume da barriga de gêmeos.
— Estou tão feliz que esse dia está acontecendo, minha querida. Fico feliz
que vocês não deixaram o orgulho atrapalhar o futuro lindo que ambos têm juntos.
Devo confessar, Liz, que fiquei muito feliz com a sua chegada à nossa família, ainda
mais me presenteando com dois netinhos. Quero que saiba que eu tenho muito
prazer em abençoar vocês, mas não foi para isso que vim até aqui... — Ela secou
uma lágrima dos olhos.
Funguei emocionada pelo seu carinho.
— Não era isso? Aconteceu alguma coisa? — perguntei curiosa.
— Meu filho pediu para te entregar isso. — Ela me estendeu um envelope
marfim. Peguei de suas mãos e apertei o papel fino sobre o peito.
— Mas antes, você precisa de algo emprestado e algo azul para dar sorte.
Ela me mostrou uma corrente de ouro fininha com o pingente azul em forma
de gota muito delicado.
— Que coisa linda! — Peguei a correntinha de sua mão.
— Eu casei com esse colar e Carol também, ele foi da minha mãe e gostaria
que você mantivesse a tradição. É algo emprestado e algo azul, espero que te dê
muita sorte, minha querida. — Dona Carmen me ajudou a fechar o colar no meu
pescoço, nossos olhos se encontraram no espelho, Cris e Carol nos olhavam
emocionadas escutando nossa conversa.
— Eu fico tão feliz por ter conhecido vocês, a senhora tem sido a mãe que
não tive. Obrigada, dona Carmen. Obrigada, meninas. Eu amo vocês — confessei
sem conseguir conter as lágrimas. Recebi um abraço coletivo dessas mulheres que
estavam se mostrando tão incríveis e tão importantes na minha vida.
— Agora, meninas, vamos saindo que a noiva precisa ler o que está naquele
envelope — dona Carmen cantarolou puxando as meninas para fora do quarto sob
muito protesto.
Fiquei parada alguns segundos olhando para o papel, respirei fundo e passei
as mãos na barriga, senti meus bebês chutarem um pouquinho, sorri comigo mesma
e abri o envelope.
“Minha flor,
Depois de ler tudo o que você me escreveu, nada do que eu tentar dizer será
capaz de lhe superar, ainda estou em choque, mas mesmo com as minhas simples
palavras, saiba que vocês são a luz dos meus dias, você me mostrou o que é sentir-
se completo, pertencente a algo e a alguém.
Você cultivou flores no meu coração, que antes era habitado por espinhos
agudos que me feriam a cada dia, você me mostrou que o perdão é o melhor
remédio para qualquer dor. Eu termino de escrever essas poucas palavras para ir te
esperar no altar. E lá declarar para o mundo inteiro que você é minha e eu sou seu,
agora e para sempre.
Porque cada vez que olho nos seus olhos encontro sua alma azul e tão
profunda quanto um oceano, que eu quero mergulhar e me perder.
Como dizia Guilherme Arantes: “Quando eu mergulhei fundo nesse olhar,
fui dono do mar azul de todo azul do mar”.
Estou aqui, e não vou a lugar algum porque te amo.
Eternamente,
Seu motoqueiro gostoso.”
Terminei de ler com as mãos tremendo de emoção, meu coração batia tão
forte que parecia se chocar contra minhas costelas, sorri de felicidade mesmo com o
rosto banhado em lágrimas. Como eu era sortuda por amar alguém tão especial e
único como Gustavo, agora eu sabia que nunca conseguiria viver longe dele. Nunca!
“Pegue minha mão, meu coração e alma
E eu só terei olhos pra você
E você sabe, tudo muda mas
Vamos virar estranhos se nós dois continuarmos desse jeito
Você pode ficar dentro dessas paredes e sangrar
Ou só ficar comigo...”
One – Ed Sheeran
Gustavo
Fui me arrumar na casa da minha mãe onde a reunião dos homens estava
acontecendo, minhas pernas não pararam de tremer desde a hora que acordei.
Thiago e Guilherme não me pouparam, riam de mim a cada vez que me viam
suando e andando de um lado para o outro pela casa enquanto esperava a hora de ir
à igreja.
Meu pai era o único que estava tentando me acalmar, após a cirurgia não
havia sentido dele continuar morando sozinho em São Paulo, seu lugar era aqui
conosco. Olhando para ele, elegante em seu terno cinza grafite, quase não
reconhecia o homem debilitado que vi no hospital há alguns meses, ele estava mais
forte e corado, seus olhos brilhavam cada vez que olhava em nossa direção.
Ele e minha mãe pareciam estar se entendendo, apesar deles dormirem em
quartos separados, mas suspeitava que isso não duraria muito tempo. Meu pai até já
tinha ajudado um pouco no restaurante e minha mãe cozinhava cada dia melhor,
seus olhos brilhavam de felicidade e ela estava sempre cantando como fazia quando
éramos pequenos.
— Pai, eu vou ali no meu antigo quarto. Quando terminar podemos seguir
para a capela — informei indo ler a carta que Liz me entregou um tempo atrás, junto
com meus presentes de aniversário, me pedindo para abrir apenas no dia do nosso
casamento. Me remoí de curiosidade todos esses meses, mas fiz o que ela pediu, não
queria estragar a surpresa.
— Claro, só não demore que esse costume é da noiva — meu pai concordou,
rindo.
Abracei meu velho daquela maneira que os homens se cumprimentavam e
fui até meu quarto, sentei na cama e abri o envelope branco sem conseguir controlar
o tremor das mãos.
“Meu amor,
Espero que esteja lendo essa carta a caminho do altar, no dia que ligaremos
nossas vidas diante dos homens e de Deus, apesar de nossas almas já estarem
ligadas desde o primeiro instante que nos olhamos.
Quando eu te conheci, eu era uma pessoa completamente diferente da
mulher que eu sou hoje, a verdadeira Liz naquele tempo estava escondida para dar
lugar a Liz responsável e sozinha no mundo que só tinha a si mesma para contar.
Eu cresci desacreditada no amor, desacreditada no sentido da palavra
família, eu era completamente incrédula de que o amor existisse na vida real e nos
tornasse pessoas melhores uns para os outros. Todos os exemplos de amor que
conheci eram errados e efêmeros, tornando-me alguém que eu não gostaria de ser.
Eu também não acreditava em milagres, para mim milagres eram apenas ilusões
que as pessoas inventavam para justificar coincidências agradáveis da vida, mas
quando nossas mãos se tocaram pela primeira vez dentro daquele elevador, juro
que senti como se nossas almas tivessem se reconhecido naquele instante. Aquilo foi
real, eu mergulhei nos seus olhos castanhos e reconheci a parte que faltava em mim.
Hoje percebo que você foi criado pra mim, e eu nasci pra amar você e juntos
curarmos um ao outro.
Confesso que no começo resisti ao que estava sentindo porque eu sempre
preferi manter uma distância confortável das pessoas, mas você pouco a pouco foi
derrubando camada por camada que me escondia do mundo, você me fez renascer
para quem eu era antes. Uma mulher cheia de amor e esperança no futuro.
Agradeço a Deus a cada segundo por ter encontrado você, que é um homem
intenso, leal, honesto, carinhoso, preocupado, bondoso, honrado e tantas outras
qualidades que me fazem a cada minuto te amar um pouco mais. Depois de tantos
anos me sentindo estranha e fora do lugar, você foi a única exceção que me fez
acreditar que é possível.
É possível contar os segundos para encontrar alguém, é possível sentir
borboletas voando no estômago cada vez que você olha para mim, é possível sentir
o sangue esquentar a cada toque seu, é possível me sentir flutuar com um simples
beijo, é possível me sentir única cada vez que você sorri pra mim.
E por isso quero te dizer que eu não conseguirei viver nenhum segundo da
minha vida longe de você, longe do seu amor. Eu e os nossos filhos sempre
estaremos aqui, orgulhosos torcendo e aplaudindo o homem fantástico que você é. E
quando eu estiver velhinha, passando suas camisas de botão, e nossos filhos, netos
e bisnetos vierem nos visitar eu sempre irei contar a eles sobre esse dia, sobre o dia
que me tornei oficialmente a Sra. Liz Salles, a mulher mais feliz do mundo.
E cada vez que você voltar para casa, saiba que estarei contando os
segundos para te receber de braços abertos, porque em você encontrei o meu lugar,
o meu lar.
Te amo, meu motoqueiro tatuado. Hoje e infinitamente,
Sua flor de Liz”
As lágrimas caíram descontroladamente dos meus olhos, meu peito apertou
de tanto que eu amava essa mulher, suas palavras ficariam gravadas para sempre no
meu coração, nunca me esquecerei desse dia. Resolvi surpreendê-la e lhe escrever
algumas poucas palavras antes de irmos para a igreja, assim que terminei, pedi para
o Guilherme pedir para a nossa mãe entregar a ela o envelope e segui juntamente
com meu pai e meus irmãos para a capela.
Minha mãe, como sempre, fez um bom negócio com a decoração da igreja,
um corredor iluminado com velas dentro de jarros de vidros dava um ar moderno e
os arranjos de flores-de-lis e flores do campo deixavam o ambiente perfumado e
romântico. Os bancos já estavam cheios de conhecidos e familiares quando
chegamos.
Mês passado percebi que Liz não estava completamente feliz, uma parte de
seu passado precisava ser deixada para trás, resolvi pedir ajuda a um amigo policial
para tentar localizar a mãe dela. A busca foi difícil e, quando a encontrei, travei
outra luta para fazê-la concordar em vir ver sua filha em um momento tão especial
que era o casamento.
Caminhei até o altar ao lado da minha mãe, nossa família e padrinhos já
tinham feito suas entradas. Padre Benedito estava a postos com um sorriso.
Quando a cerimonialista nos avisou que Liz já chegou à igreja, minhas mãos
começaram a suar, minhas pernas estavam como gelatina, logo eu, que estava
acostumado com doses imensas de adrenalina nos meus saltos e nas corridas de
motocross nunca me senti tão ansioso.
As portas da igreja se abriram, os convidados ficaram em pé ansiosos para
ver a noiva adentrar a igreja, músicos começaram a tocar a melodia da música The
Only Exception, da banda americana Paramore, em uma versão acústica de violino e
piano.
Todos os pelos do meu corpo se arrepiaram quando vi aquele anjo loiro
vestido de branco ao lado do meu pai aparecer na porta da capela, Liz caminhava
devagar com os olhos azuis brilhantes de lágrimas, ela vestia um lindo vestido
branco rendado, sua barriga de oito meses exuberante entre os tecidos finos, seus
cabelos enfeitados de flores como se ela fosse apenas mais uma flor na primavera,
uma de suas mãos segurava um buquê de flores do campo. Ela parecia um
verdadeiro anjo descido do céu apenas para alegrar meus dias. Todas as pessoas na
igreja estavam emocionadas, meus olhos arderam no esforço de não chorar vendo
aquela cena: a mulher da minha vida, de braços dados com o meu pai, vindo aceitar
ser minha por toda a vida.
Meu pai me abraçou e me entregou a mão de Liz quando terminaram seu
percurso no tapete vermelho, quando ela olhou nos meus olhos, lágrimas escorreram
pela minha face, não eram lágrimas de tristeza ou de arrependimento, e sim lágrimas
de gratidão por ser merecedor de tanto amor.
Padre Benedito começou o sermão.
— Queridos, é com grande prazer e alegria que estamos celebrando hoje a
união desses dois jovens: Liz Maria Albuquerque e Luiz Gustavo Salles. Na
Sagrada palavra, Deus nos mostra que tinha tanto amor que não cabia nele. Por isso
criou o mundo, para dividi-lo. Para a criação do mundo, Deus tinha um plano, fazer
o homem à imagem dele e a família é a imagem de Deus. O ato de hoje é a fusão de
duas carnes tornando-se uma só, no dia a dia devemos ser uma só carne. Casamento
é renúncia, queridos, é adaptação para ser igual ao outro. É deixar de fazer o que
gosta para fazer pelo outro. É respeitar o outro. No caminho surgirão medos e
dificuldades, mas onde há amor tudo é possível. Por esse motivo devo perguntou-
lhes: Liz, você aceita Gustavo como seu esposo, para honrá-lo e respeitá-lo na saúde
e na doença até que a morte os separe?
— Sim — Liz respondeu olhando para mim, o alívio percorreu meu corpo.
A mulher da minha vida aceitou ser minha, e eu era muito sortudo.
— Gustavo, você aceita Liz como sua esposa, para amá-la, respeitá-la e
protegê-la, na saúde e na doença, até que a morte os separe? — o padre me
perguntou.
— Sim — respondi sem hesitar e vi as lágrimas de Liz deslizarem pelo seu
rosto.
— Podem trocar as alianças — o padre ordenou.
Uma música tocou e minha sobrinha Cléo entrou na igreja carregando uma
cestinha com as alianças. Peguei a aliança e fiz meus votos:
— Liz, prometo ser um homem digno, que mereça estar ao seu lado a cada
dia de nossas vidas, prometo lhe amar mais e mais, prometo ser o melhor pai para
nossos filhos, envelhecer ao seu lado e demonstrar esse amor a todo instante em que
eu respirar. Amo você e sempre estarei aqui. — Com a voz embargada de emoção,
beijei-lhe a testa e deslizei a aliança em seu dedo anelar.
Liz sorriu para o gesto e pegou a minha aliança.
— Meu amor, eu prometo ser a mulher que você merece ter ao seu lado, para
cuidar e amar você cada minuto da minha vida. Eu prometo ser a mãe dos seus
filhos, educando-os com muito amor para se tornarem pessoas de bem, prometo
envelhecer ao seu lado e nunca esquecer que foi você que escolhi para amar, agora e
para sempre. Sempre serei sua — ela falou escorregando a aliança de ouro na minha
mão direita. Liz beijou minha mão, suas lágrimas molharam a minha pele, eu
estendi o braço e as sequei.
— Bom, agora o noivo pode beijar a noiva, eu os declaro marido e mulher
para os homens e para Deus — o Padre Benedito concluiu e eu passei as mãos no
rosto de Liz e a puxei para beijar-lhe os lábios, o beijo foi carinhoso no começo,
mas Liz puxou meus cabelos aprofundando o beijo, isso fez as pessoas gritarem
agitadas, e eu retribuí o ataque, não podia dizer não a uma mulher grávida de
gêmeos.
Saímos da igreja debaixo de uma chuva de arroz.
Quando chegamos ao restaurante estávamos eufóricos, minha mãe contratou
uma banda para animar a festa, todas as mesas estavam decoradas com as mesmas
flores da igreja e castiçais com velas acesas, jarros de vidros e espelhos espalhados
pela decoração davam um toque de sofisticação ao salão, o fim de tarde estava
fresco para o bem de todos, as pessoas começaram a se reunir na pista de dança, as
risadas e música enfeitavam o lugar.
Vi Liz distraída conversando com alguns convidados, sorrindo como uma
criança na manhã de Natal. Aproximei-me e beijei sua nuca.
— Amor, que susto! — ela exclamou sorrindo virando-se para mim.
— Minha esposa poderia me conceder essa dança? — perguntei passando
uma mão por seu pescoço e a outra na sua barriga.
— Hum, não sabia que você dançava, motoqueiro. — Ela levantou uma
sobrancelha em deboche.
— Você me faz fazer coisas que nem eu posso acreditar — falei jocoso.
— Ah, já que é assim eu gostaria muito de dançar com meu marido.
Trouxe Liz para o centro da pista de dança, a banda começou a tocar a
música Yellow, do Coldplay, no timing perfeito, eu passei uma mão pela sua cintura
e com a outra a puxei para um beijo, fechei os olhos e guiei nossos quadris no ritmo
lento da música, não encaixamos perfeitamente nossos corpos devido ao fato de sua
barriga impedir uma maior aproximação, mas me alegrei só de pensar que nossos
filhos estavam presentes no nosso grande dia, Liz me beijou me segurando pelos
ombros, quando afastei nossas bocas ela sorriu.
— Não via a hora de poder dizer o quanto você está linda. Parecendo um
anjo, o meu anjo — elogiei rouco em seu ouvido, sem resistir beijar a pele suave e
perfumada do seu pescoço.
— Amor, pensei que você ia dizer que eu estava sexy — Liz gracejou.
— Você também está sexy, não vou aguentar até o fim da festa para te levar
para casa. Só vamos demorar mais uns vinte minutos. — Fui o mais sincero
possível.
— Meu motoqueiro não aguenta esperar, é? Você também está parecendo um
príncipe de tão lindo. — Liz beijou meu pescoço bem perto do colarinho do terno
que vestia, fazendo toda minha pele arrepiar de desejo.
Meu Deus, essa mulher me enfeitiçou desde que entrei naquele maldito
elevador!
— Não, seu motoqueiro quer tirar esse vestido lentamente e beijar todo o seu
corpo, adorando-a como você merece — sussurrei e vi sua respiração ficar ofegante.
— Gustavo, não faz assim, senão vou te arrastar para o depósito e arrancar
peça por peça deste terno como estou fantasiando.
Gargalhei e comecei a traduzir a letra da música que sempre me fez pensar
em Liz no seu ouvido:
— Olhe para as estrelas, olhe como elas brilham para você e para tudo o que
você faz. Você sabe que eu te amo tanto? Eu atravessei o oceano, eu superei
barreiras por você, eu tracei uma linha... por você eu daria todo o meu sangue, é
verdade, olhe como elas brilham para você, olhe como elas brilham para você...
Todas as estrelas do céu brilham só por você, minha flor. — Beijei seu pescoço e me
afastei para olhar em seus olhos.
— Gustavo, eu amo você.
— Eu sei.
— Sabe?
— Sim, eu sinto — confessei antes de cobrir seus lábios com os meus.
“Você faz meu coração parecer que é verão
Quando a chuva está caindo
Você faz o meu mundo inteiro parecer
certo quando ele está errado
É por isso que eu sei que você é a única
É assim que eu sei que você é a única...”
The one – Kodaline
Liz
Mais cedo quando fui saindo pelo corredor da igreja vi uma figura sentada
no último banco, todo meu sangue gelou nas veias, pisquei os olhos na expectativa
de ser apenas coisa da minha cabeça, mas não era, eu conhecia aquela pessoa que
estava sentada ali nos olhando. No caminho para o restaurante confrontei Gustavo
no carro, eu sabia que ele tinha algo a ver com a presença daquela pessoa no nosso
dia.
— Amor, eu vi uma pessoa na igreja, foi você que a convidou?
Meu agora marido me lançou aquele olhar desconcertado que eu conhecia
tão bem e antes que ele abrisse a boca já sabia a resposta.
— Liz me escute, eu sinto que você ainda tem essa mágoa e não quero que
carregue isso com você na nossa nova vida.
— Você não tinha o direito, Gustavo! — exclamei secando lágrimas de
frustração.
Oh, homem imprevisível!
— Meu amor, foi você mesmo que me ensinou a perdoar. Então escute o que
ela tem a dizer, apenas isso. Por mim? — Gustavo segurou minha mão e olhou
dentro dos meus olhos esperando uma resposta.
— Eu não sei se posso.
— Claro que pode, faça isso por mim e por nossos filhos que irão nascer.
Calei e imediatamente mudei de assunto para não estragar meu dia, quando
chegamos ao restaurante fomos cumprimentar os convidados e familiares, eu já
estava cansada pelo peso da barriga, meus pés inchados doíam dentro dos sapatos.
Resolvi ir até à toalete retocar a maquiagem. Quando fui caminhando até lá,
ouvi uma voz me chamando. Todos os pelos do meu corpo se arrepiaram.
— Filha.
Virei-me já sentindo minhas bochechas queimando.
— Regina — balbuciei.
— Podemos conversar por um minuto — a mulher pediu se aproximando.
Olhei para os lados e comecei a pensar se as pessoas presentes sabiam o que
ela é para mim, e tudo que me fez passar.
— O que você quer? O que você está fazendo aqui? — questionei-a na
defensiva.
— Vim ver o casamento da minha única filha. — Ela forçou um sorriso
amarelo.
— Não seja condescendente.
— Por favor, filha, podemos falar? — Ouvi-la me chamando assim me
revirou o estômago.
— Não é um bom momento — avisei.
— Preciso falar com você, não viria até aqui se não fosse importante.
Suspirei profundamente, e assenti. Pedi que ela me seguisse até o escritório
do restaurante. Minha mãe me acompanhou com passos apressados atrás de mim.
Entramos e indiquei-lhe a poltrona.
— Sente-se.
— Obrigada — ela agradeceu e sentou-se colocando a bolsa de mão brilhosa
sobre o colo. Minha mãe continuava tão bonita e elegante quanto me lembrava,
éramos tão parecidas fisicamente, que as pessoas poderiam facilmente nos confundir
com duas irmãs. Mas a arrogância de antes já não marcava seu semblante. Havia
algo mais em seus olhos, dor e talvez um pouco de arrependimento.
— O que você quer falar? Eu estou no meio da minha festa de casamento.
— Claro, não vou me alongar. Liz, eu quero te pedir perdão, eu sei que você
tem todos os motivos do mundo para me odiar, eu sei. Mas eu quero apenas te
explicar tudo que aconteceu, talvez assim você me entenda.
— Eu não sei se entendo uma mãe escorraçar a própria filha da sua vida. —
Meu Deus, mal casei e já vou matar meu marido por trazer essa mulher até aqui!
— Filha, eu amava seu padrinho muitos anos antes de conhecer seu pai. Ele
não me amava, tanto que se casou com sua madrinha pouco tempo depois de termos
rompido por ele me trair com minha colega de quarto. Quando conheci seu pai, eu
gostei de me sentir única para alguém, namoramos e eu engravidei, logo em seguida
casamos e você nasceu. Com o passar dos anos percebi que admiração não era
suficiente para manter um casamento, então não resisti e acabei cedendo à paixão
antiga que ainda tinha pelo seu padrinho.
Franzi a testa para a explicação torpe que ela me dava para tudo que me fez.
— Não estou dizendo que foi certo trair seu pai, mas quando se ama, se
esquece o que é certo ou errado. Eu errei, fui cega. Eu não enxergava, filha. Eu não
podia enxergar o homem que eu tinha em casa me esperando toda noite.
Aquela mulher de meia-idade que me olhava com olhos lacrimejantes me
teve em seu ventre por nove meses. E agora estava aqui tentando justificar o
injustificável para o que significava o amor de uma mãe.
— Filha, quando eu encontrei seu pai morto naquele dia eu descobri que não
queria perdê-lo. Eu o amava, Liz, eu só não sabia naquele momento, mas agora eu
sei, sabe por quê? Eu não paro de lembrar-me dele a cada instante, pode apostar que
cada gotícula de sangue do meu corpo está arrependido por não ter enxergado isso
antes. Eu não consegui olhar para você depois daquilo tudo, porque você me
lembrava dele e ainda me lembra, filha. Sua risada, seus olhos, seus gestos. Tudo em
você tem um pouco do seu pai. Por isso precisei te afastar e acabei com o resto de
vida e dignidade que eu ainda tinha. Por isso, Liz, eu sei que não tenho o direito,
mas gostaria muito de saber se você me perdoa, filha...
— Regina — chamei minha mãe pelo nome.
— Me chame de mãe, Liz, eu não sou uma estranha! — ela pediu
exasperada.
— Ouvi o que aconteceu, Regina. Na minha vida não há mais espaço para
mágoas nem rancor. O que passou, passou. Mas não posso passar uma borracha em
tantos anos de abandono. Se você quiser participar da vida dos meus filhos fique à
vontade, as portas da minha casa estarão sempre abertas para você. Eu te perdoo, só
não te entendo. E não sei se um dia entenderei...
— Filha... — minha mãe balbuciou secando as lágrimas. — Eu daria tudo
para participar da sua vida e da vida dos meus netos, mas tem outra coisa...
— O que é? — sondei curiosa.
— Carlos te deixou isto — quando minha mãe pronunciou o nome do meu
pai, meu peito apertou. Ela me entregou um envelope, passou as mãos na minha
barriga com gestos reticentes e saiu do escritório.
Vi-a sumir pela porta, uma lufada de risos e música entrou no ambiente e, de
repente, foi interrompida pela porta que se fechou novamente, deixando-me sozinha.
Olhei para o papel em minhas mãos, sentei-me, respirei fundo e abri o envelope.
“Minha menina,
Quando você chegou, meus dias se tornaram mais lindos e cheios de cor.
Ainda me lembro de quando você nasceu em um dia ensolarado de primavera. A
tarde estava fresca e quente, por isso sempre que você sorri pra mim eu sinto os
raios de sol aquecendo minha alma. Seus cabelos dourados são tão brilhantes
quanto o sol do meio-dia, seus olhos mais azuis que uma manhã quente de verão.
Você sempre foi meu jardim florido, Liz.
Filha, papai não pode mais continuar tentando se encaixar neste mundo
onde não há espaço para os espíritos livres, sempre vai me faltar algo que nem
você, tão perfeita como é, vai conseguir preencher. Por isso te peço, perdoe o papai.
Eu desejo, filha, que você cresça, seja uma mulher decente e justa. Que viva
sua vida seguindo a voz do seu coração, ame e seja amada intensamente, sorria e
receba sorrisos singelos, abrace verdadeiramente e seja abraçada, seja gentil e
receba gentilezas. Papai espera, Liz, que você tenha muitos filhos e que dê a eles
todo amor que você me deu. Tenho certeza de que eles serão as crianças mais
sortudas do mundo. Cada quadro que pintei, deixei um pouco da minha alma.
Então, filha, sempre estarei de longe cuidando de você.
De todo o meu coração,
Papai.”
Terminei de ler com o papel amarrotado de lágrimas, quanta saudade eu
sentia do meu pai. A porta do escritório se abriu e vi Gustavo entrar, ele sentou-se
do meu lado em silêncio e apenas me abraçou, isso era tudo que eu precisava no
momento: seus braços acolhedores e o seu silêncio confortável.
— Está tudo bem? — perguntou preocupado depois de um tempo. Ele puxou
do bolso do terno um lenço e me entregou.
Peguei o lenço, limpei as lágrimas e assoei o nariz.
— Agora sim, eu tenho vocês... Vamos aproveitar nossa festa. — Dobrei o
papel delicadamente e guardei carinhosamente no peito ao lado do meu coração.
A festa rolou até a madrugada, foi tudo lindo, parecia que eu estava em um
conto de fadas rodeada de pessoas que eu amava, com o homem da minha vida
colado em mim o tempo todo.
Um bolo de seis andares delicioso e toda a infinidade de comida, bem-
casados, docinhos, champanhe e vinho entreteram as pessoas até tarde. Nem nos
meus melhores sonhos imaginei que seria tão perfeito.
Quando meus pés começaram a doer mais do que o normal, meu marido
percebeu minha cara de desconforto, me ajudou a me despedir das pessoas e fomos
para casa.
***
Assim que abri a porta do nosso quarto, fiquei paralisada.
Pétalas de rosas cobriam toda a nossa cama, velas aromáticas estavam
espalhadas sobre todos os móveis do quarto. Um balde com champanhe, suco de
uva e duas taças esperavam por nós em uma mesa posicionada no canto do quarto.
Uma travessa de prata com uma taça de morangos e chocolate, além de pequenos
petiscos finos e frios. As luzes baixas deixavam o lugar parecido com uma cena de
um lindo romance.
— Amor... — sussurrei me virando para ele com a boca aberta em choque.
— Como não vamos poder viajar agora para a praia como eu lhe prometi,
pensei em termos uma noite especial, afinal essa é nossa noite de núpcias.
— Está tudo perfeito — girei ao redor do quarto encantada.
— Vem cá, me deixa tirar esse vestido. — Gustavo posicionou-se atrás de
mim, começou a depositar beijos suaves por toda minha nuca, alisando a pele nua
das minhas costas e causando arrepios de desejo por todo o meu corpo. Levantei os
braços trazendo sua cabeça para mais perto de mim e deitando um pouco mais as
costas contra seu peito firme. Virei-me e não resisti em beijar-lhe a boca em um
beijo feroz, do jeito que almejei o dia todo e não tivemos chance. Não queria
horrorizar as crianças que estavam na festa, nem o padre Benedito com a luxúria
que ele despertava em mim.
Meu marido gemeu, engolindo minha boca em resposta e me tocando com
mãos firmes onde podia alcançar. Ele afastou nossas bocas mesmo sob meus
protestos.
— Vire-se, quero tirar esse vestido, vamos tomar um banho de banheira, irei
lhe fazer uma massagem e depois me enterrar em você o resto da noite. — Sua
promessa soou tão bem.
— Hummm... parece uma boa ideia — concordei.
Virei de costas, meu marido desabotoou devagar cada botão de pérola do
fecho do vestido e me ajudou a deslizá-lo pelos meus braços.
Optei por não usar sutiã devido ao decote das costas ser muito cavado e o
vestido ter uma taça de sustentação, por isso quando saí dos tecidos estava vestida
apenas com uma calcinha de renda branca, cinta-liga na mesma cor, meias três
quartos e meus sapatos. Gustavo se afastou com um sorriso satisfeito para me
admirar, seu olhar era de adoração. E mesmo com quilos extras, uma barriga de oito
meses de gêmeos, eu me senti a mulher mais sexy do mundo.
Gustavo começou a beijar meu ombro, o toque suave da sua boca em contato
com minha pele me fez ofegar.
— Amor... — gemi baixinho em antecipação. Ele me sentou delicadamente
na cama, tirou meus sapatos, começou a puxar devagar as minhas meias de seda
beijando minhas coxas enquanto baixava-as.
— Eu sou louco por seu cheiro. Poderiam engarrafar, mas sou um filho da
puta egoísta e prefiro ter só para mim o cheiro da minha mulher — Gustavo disse
inalando a pele entre as minhas coxas. Ele terminou seu trabalho, puxou minha
pequena calcinha, me colocou sobre meus pés e me levou para o banho.
Nosso banheiro estava lotado de rosas e velas iguais às do quarto. A
banheira estava cheia de espuma perfumada. Meu marido me deixou despi-lo,
beijando cada pedaço de pele que descobri sem pressa e entrou na banheira me
chamando para sentar na sua frente, com as costas contra seu peitoral. A água estava
morna e deliciosa, o óleo essencial começou a exalar no ambiente notas de canela e
sândalo.
— Venha, quero te lavar. — Gustavo sentou-se com as pernas abertas e eu
me encaixei na sua frente. Ele começou a tirar as flores do meu cabelo e os frisos
que os mantinham presos, cada vez que ele tocava minha pele, ondas de inúmeras
sensações me atingiam.
Começou a me ensaboar, começando pelos meus ombros, braços e seios.
Quando sua mão alcançou minhas coxas, eu já estava ofegante. Sua ereção estava
como pedra contra a minha bunda. Sabia que ele estava lutando bravamente tanto
quanto eu para prolongar o momento, mas estar com Gustavo era uma missão
impossível de resistir.
— Levanta um pouco, minha flor — ele me pediu mordendo o lóbulo da
minha orelha. Levantei o bumbum enquanto Gustavo esticou as pernas me deixando
pronta para sentar sobre ele. Quando deslizei em cima do seu comprimento, gritei
explodindo em uma avalanche de sensações. Nessa posição era como se estivesse
empalada por ele.
— Ahhhhh.... — ofeguei jogando as costas para trás.
Gustavo continuou beliscando meus seios intensificando o prazer, ele
chamou meu nome como um lobo uivando para a lua. Não demorou muito para
transbordarmos em prazer sublime, puro e carnal.
Algumas horas depois de massagens, beijos, carícias e gemidos de prazer,
estávamos na nossa cama (como Gustavo faz questão de se referir) deitados de
conchinha. Meu marido alisava minha barriga carinhosamente como costumava
fazer todas as noites.
— Minha flor, não consigo dormir — Gustavo disse no meu ouvido
baixinho.
— Hum... — gemi morrendo de sono e cansaço pelo longo dia que tivemos,
e pela quantidade de sexo que fizemos ainda agora.
— Estou muito eufórico, parece que estou sonhando. — Ele inspirou meus
cabelos.
— Eu também. Mas estou tão cansada — digo me aconchegando mais
contra ele.
— Nossa vida está apenas começando e já passamos por tanta coisa. —
Gustavo beijou meu ombro.
Sem estar esperando, uma dor muito forte rasgou minhas costas. De onde
veio isso? Oh, meu Deus! A dor que parecia estar me matando era muito parecida
com as dores das contrações que a médica me alertou.
— Ai... — resmunguei segurando minha barriga.
— Minha flor, o que foi? — meu marido perguntou preocupado.
— Hum, acho que estou sentindo contrações.
— O que você quer dizer com isso? Você está tendo os bebês? Amor, ainda
falta um mês — Gustavo berrou desesperado se levantando da cama em um supetão.
— Não grita, você está me deixando ainda mais nervosa. Ai! — gritei com
uma nova contração que parecia quebrar os ossos dos meus quadris.
— Meu amor, o que eu faço? — Gustavo me ajudou a sentar na cama e me
contorci com outra onda de dor. Olhei para ele, que estava com os cabelos
amassados pelas minhas mãos de mais cedo, sua mandíbula travada como fazia
sempre que estava nervoso. Ele andava nu pelo quarto de olhos arregalados.
A cena seria deliciosa de assistir se eu não estivesse sentindo tanta dor.
Então, tratei de orientá-lo.
— Primeiro, se vista; segundo, pegue uma roupa confortável para eu vestir;
terceiro, ligue para a sua mãe; quarto, pegue minha bolsa e a mala dos bebês e
vamos para o hospital. Rápido! — gritei com outra contração.
Entre o intervalo de uma contração e outra vesti um vestido soltinho e
corremos para a maternidade, minhas contrações estavam muito próximas uma da
outra, o que significava que eu estava em trabalho de parto avançado. Quando nos
mudamos para Belo Horizonte, precisava de outra obstetra para acompanhar minha
gestação e por indicação da doutora Paula, de São Paulo, conheci a Dra. Lúcia
Brandão, que me acompanhou por todo o tempo que estou na cidade, mandei uma
mensagem para avisá-la que estava a caminho do hospital. Quando chegamos minha
médica já estava me esperando sorridente, fui encaminhada para uma sala de pré-
parto para que a equipe de obstetrícia me examinasse.
— Liz, querida, como está se sentindo? — a obstetra perguntou.
— Ai, meu Deus, parece que vou morrer! Ainda estou com oito meses,
doutora. — Chorei.
— Você precisa ser forte agora, se você deseja dar à luz aos seus bebês
naturalmente. Mas antes vamos examiná-la.
— Doutora, não tem algum remédio que ela possa tomar, minha mulher está
sofrendo muito. — Gustavo tentou me ajudar apertando minha mão.
— Infelizmente, só podemos apenas tentar aliviar com massagens,
movimentos relaxantes e coisas do tipo.
— Aaaaai! Oh, meu Deus, eu não vou aguentar! — vociferei num grito
rouco.
— Liz, vamos fazer um ultrassom para verificar como os bebês estão, tudo
bem?
— Sim, doutora.
Quando a doutora Lúcia começou o exame, imediatamente identificou que
um dos bebês estava em posição pélvica, por esse motivo seria necessário fazer uma
cesariana. Gustavo se desesperou por saber que eu precisarei ser operada, mas tentei
pensar positivo, precisava passar por isso para conhecer meus filhos. E não iria
desistir de tê-los agora, nunca vou desistir dos meus bebês.
— Liz, querida, vamos levá-la à sala de parto. Seu marido pode acompanhar
o nascimento dos bebês, se ele quiser. Não se preocupe, seus filhos estão bem, é
comum em gestações de gêmeos um deles estar na posição errada — ela me
tranquilizou.
— Eu não sei se consigo ver, minha flor — Gustavo disse beijando minha
cabeça.
— Amor, eu quero você comigo, não quero ir sozinha. Estou com medo.
Largue de ser frouxo e venha conhecer seus filhos — uma nova onda de agonia me
atingiu e falei engasgada com as lágrimas.
— Tudo bem, estou aqui e não vou a lugar nenhum.
Gustavo beijou minha testa e segurou minha mão. Com ele do meu lado, eu
seria capaz de tudo. Alguns minutos depois estava no centro cirúrgico, Gustavo ao
meu lado segurando minha mão vestido em um uniforme azul, senti apenas as mãos
da médica no meu ventre, mas não sentia mais dor depois que tomei a anestesia.
Senti as mãos calejadas de Gustavo suando contra as minhas, beijei sua mão
já sentindo lágrimas nos olhos por saber que em minutos iria conhecer os rostinhos
dos meus filhos. Poucos minutos depois escutamos um choro estridente, forte e
agudo. Tinha certeza de que foi Laís que nascera, ela sempre foi a mais agitada na
barriga, meus bebês eram bivitelinos e estavam em placentas diferentes. Olhei para
cima e vi Gustavo com o rosto vermelho, chorando como uma criança. A médica o
chamou para se aproximar e assistir.
— Pai, quer cortar o cordão umbilical? — a doutora Lúcia perguntou a ele.
— Posso? — Gustavo soltou minha mão.
— Claro, venha eu vou lhe mostrar. — Ele foi até ela receoso, fiquei ali
parada sem poder ver o que estava acontecendo na sala.
— Oh, meu Deus, que princesa linda do papai! Posso pegá-la? — Escutei ele
dizer, meu coração pulou dentro do peito com tanta emoção que não contive as
lágrimas de alegria.
— Deixe-me primeiro apresentá-la para a mamãe. — A Dra. Lúcia trouxe
minha filha até mim, deitando-a sobre meu peito. Vi aquela bonequinha toda
enroladinha mostrando apenas os cabelos escuros e cheios entre os lençóis do
hospital. Quando minhas mãos tocaram seu rosto, ela olhou dentro dos meus olhos e
vi os meus olhos nela, azuis. Laís olhou para mim como se me reconhecesse e eu
não resisti.
— Oi, princesa, mamãe está tão feliz em lhe conhecer. — Chorei beijando-
lhe o rostinho. Gustavo nos beijou emocionado, eu só conseguia chorar, nunca senti
nada mais forte e inacreditável.
Minha obstetra chamou novamente Gustavo para acompanhar o parto do
Arthur, alguns segundos depois senti um movimento no meu estômago e depois
outro grito ocupou a sala. Um grito forte, mas mais contido que o da Laís, tinha
certeza de que as personalidades já se formavam desde a barriga. Arthur com
certeza seria um menininho mais calmo e tranquilo, já a irmãzinha seria uma
pimentinha.
Sorri com meu pensamento, continuei sorrindo como uma boba e beijando
minha princesa impaciente no meu peito. Depois de alguns minutos, Gustavo trouxe
meu menino nos braços sorrindo como um idiota de felicidade.
— Meu Deus, Liz, ele é lindo! Nosso filho tem seus cabelos e meus olhos —
Gustavo falou colocando-o com a ajuda da enfermeira sobre meu outro peito.
Quando senti os dois pacotinhos ali em cima de mim, eu fechei os olhos e agradeci a
Deus.
— Obrigada, Senhor — sussurrei baixinho agradecendo a Deus com toda
força do meu ser.
— Eles são perfeitos, obrigado! — Gustavo agradeceu me beijando e nós
ficamos ali chorando e gratos a Deus por um milagre tão grande nas nossas vidas.
Sabia que o caminho para nos tornarmos pais seria árduo e difícil, mas com certeza
seria muito gratificante.
“Pra você guardei o amor
Que sempre quis mostrar
O amor que vive em mim vem visitar
Sorrir, vem colorir solar
Vem esquentar
E permitir...”
Pra você guardei o amor – Nando Reis
Gustavo
Não conseguia parar de sorrir, depois que vi meus filhos nascerem tudo
mudou, o mundo mudou. Tudo estava mais intenso, as cores mais vivas, as luzes
mais claras, os sons mais altos, os perfumes mais intensos e minha respiração cada
vez mais acelerada. Meu coração deixou de bater no meu peito, ele se dividiu em
três: Liz, Arthur e Laís.
Quando saí da sala de parto, a recepção estava cheia de gente, toda minha
família e amigos estavam aqui ansiosos, sorrindo e alguns chorando. Mesmo após
uma festança que foi a do nosso casamento, todos fizeram questão de vir conhecer
meus filhos.
Filhos.
Que palavra gostosa de falar, não parava de repetir: meus filhos.
— Gustavo, como eles estão? — minha mãe perguntou secando as lágrimas.
Meu pai estava ao seu lado, abraçando-a.
— Mãe, eles são lindos. Laís tem meus cabelos e os olhos da Liz, já o Arthur
tem meus olhos e é loirinho como a mãe. É uma perfeita misturinha — contei com o
peito explodindo de orgulho.
Uma sessão de beijos, abraços e parabéns começaram entre todos, quando a
enfermeira avisou que eles já estavam no quarto e podiam receber visitas, corremos
para lá.
Liz estava deitada na cama, no entanto seu rosto abatido pelo esforço não
diminuía sua beleza. Ela segurava um bebê em cada braço enquanto a enfermeira
tentava ajudá-la a amamentá-los. Senti um pouco de ciúmes por ver seus seios nus
na frente dos meus irmãos, meu pai e meu técnico, afinal eles estavam vendo algo
que antes era exclusivo para os meus olhos.
Liz cobriu os seis assim que viu as pessoas entrando no quarto. Eu me
aproximei e beijei-a no rosto.
— Liz, querida, não iremos demorar, você deve estar cansada, mas só
queríamos lhe dar um beijo e ver o rostinho desses anjinhos — minha mãe falou
beijando-lhe a cabeça e fazendo carinho no cabelo do Arthur. Laís estava agitada,
não parava de chorar.
— Claro, dona Carmen — Liz falou com a voz cansada.
A visita deles foi bem curta, a enfermeira quis deixar Liz descansar e fazer
silêncio no quarto para os bebês conseguirem mamar. O resto da madrugada foi bem
agitada. Quando um bebê dormia, o outro acordava chorando querendo sua
mamada. Fiquei entregando-os a Liz um pouco desajeitado ainda ao pegá-los para
ela dar-lhes de comer.
Rapidamente Liz pegou o jeito, parecia ter nascido para isso. Meu menino
era o mais calmo, dormiu bastante dando um descanso para a mãe. Laís era uma
esfomeada, chorou a noite toda e mamou até não aguentar mais. Os seios de Liz
estavam inchados e cheios de leite, ela fez questão de querer alimentá-los no peito,
rejeitando qualquer mamadeira que lhe foi sugerida como complemento. Isso me
deixou orgulhoso, sei que esse gesto vai cobrar muito esforço dela, estamos falando
de alimentar várias vezes ao dia dois bebês.
No começo da manhã, Liz dormiu um pouco e eu fiquei apenas babando nos
meus tesouros no bercinho do hospital, vestidos em suas roupinhas que eu e a mãe
escolhemos com tanto carinho.
Sentindo o cheirinho de cada um, contando os dedinhos deles e sorrindo
feito um bobo, não preguei o olho de tanta emoção. Ainda estou em estado de graça.
Liz acordou quando uma enfermeira entrou no quarto trazendo uma
medicação, ela olhou para nós sorrindo, sorri de volta.
— Bom dia, minha flor — eu disse.
— O melhor dia — ela falou tentando se levantar, mas fazendo careta devido
à cirurgia. Eu me aproximei para ajudá-la.
— Como está se sentindo? — quis saber preocupado.
— Bem, só dolorida. Eles devem estar com fome, meus seios estão doendo e
vazando de tão cheios.
— Seus seios estão muito apetitosos, isso sim — brinquei.
— Bobo... — sussurrou beijando a minha boca.
Três dias depois levei minha família para a casa, meus filhos não precisaram
ficar na UTI neonatal por terem nascido antes dos nove meses, como eles estavam
com o peso acima de dois quilos, após alguns exames, verificaram que eles estavam
prontos para terem alta. Minha mãe arrumou tudo para recebê-los.
Devagarzinho, Liz voltou à silhueta de antes, menos seus seios, que a cada
dia estavam mais bonitos para a minha agonia. Meus filhos com certeza eram uma
bênção, cada um com sua personalidade. Enquanto eles ainda eram bem pequenos,
fiz questão de estar em casa, deixei os torneios para o próximo semestre.
Nada neste momento era mais importante que eles. Agora queria apenas
curti-los e ajudar Liz a cuidar deles, minha mãe e minha irmã vinham todo dia nos
ajudar na hora do banho e na hora das refeições devido ao fato de Liz estar de
resguardo, devagarzinho estamos criando nossa própria rotina como uma verdadeira
família, mas a hora que mais gostava do dia era quando deitávamos na cama e
ficávamos babando nossos filhotes.
Sem dúvidas, eu estava realizado.
— Amor. — Liz falou baixinho na hora de tentarmos dormir.
— Oi, minha flor — disse lhe abraçando.
— Estou com saudades. — Ela acariciou meu peito.
— Hum, nem me fale — confessei de pau duro, esses dias sem sexo estavam
sendo uma batalha árdua.
Nossa rotina era de fazermos amor pelo menos duas vezes ao dia, o que já
achava pouco, agora então, estava um verdadeiro suplício.
— Você também? — minha mulher perguntou manhosa.
— Claro, amor, não está sentindo? — perguntei pressionando meu corpo
sobre o dela.
— Estava com medo de você não me achar mais atraente.
— Isso é impossível, você é a mulher mais linda que já conheci. Eu nunca
deixarei de sentir tesão por você, difícil será me controlar durante um mês sem sexo.
— Jura? — perguntou levantando uma sobrancelha.
— Liz, é claro. Você é a minha flor, mãe dos meus filhos, a dona desta casa,
dona da minha vida. Esqueceu?
— Sim, preciso que você me diga todos os dias. — Liz beijou meu peito
causando arrepios de prazer.
— Liz... — gemi seu nome para fazê-la parar, porque não ia aguentar.
— Eu estou de resguardo, você não. — Ela continuou beijando minha
barriga, e meus músculos retesaram.
— Minha flor, o que você está fazendo? — perguntei tentando impedi-la.
— Dando prazer ao meu marido — disse baixando minha cueca e
abocanhando meu pênis. Engoli em seco e fiquei sentindo minha mulher me dar
prazer, mesmo sabendo que não teria nada em troca.
Quando Liz terminou, eu estou ofegante e sem fala, realmente criei um
monstro. Minha esposa me devorou, deixando-me completamente desnorteado.
No momento que estávamos pregando os olhos, ouvimos o choro do Arthur
no quarto das crianças, pulei e corri para pegá-lo.
E assim tem sido nossos dias, passamos o tempo em função dos nossos
filhos, curtindo cada segundo ao lado deles.
Perdidamente apaixonados.
Liz
Um ano depois...
— Amor, corre, vem ver! — gritei pulando feito uma louca no meio da sala
cheia de brinquedos espalhados. Gustavo entrou com a roupa do treino toda suja de
lama e suor.
— O que foi, minha flor? — perguntou e imediatamente se calou com a
cena.
Laís e Arthur estavam de mãozinhas dadas dando os primeiros passinhos
inseguros começando a andar, há alguns meses eles já estavam engatinhando pela
casa, o que nos fez ficar ainda mais atentos, mas agora eu estava radiante de
felicidade em poder ver essa cena. Meu marido superprotetor ficou em pé com o
capacete da moto na mão, de boca aberta sem respirar, como se a qualquer
movimento as crianças pudessem cair.
— Quando eles começaram a fazer isso? — perguntou atônito, com o rosto
pálido.
— Agora. Oh, meu Deus! — respondi lhe abraçando, peguei o celular no
sofá e comecei a filmá-los.
— Liz, eles podem se machucar, não é seguro. Precisamos emborrachar todo
o piso.
— Quer parar, eles não vão se machucar, amor. Todo bebê precisa começar a
andar. E não vamos emborrachar nada, nossa casa está linda do jeito que está.
— Eu sei, é que eu fico com o coração na boca só de imaginar se algo
acontecer a eles.
— Ei, não seja superprotetor. Eles estão crescendo, motoqueiro.
— Eu não consigo acreditar — Gustavo disse me dando um selinho na boca
e indo em direção as crianças.
Arthur começou a choramingar querendo o colo do pai, Laís se segurou no
sofá querendo andar. Gustavo beijou nosso menino e passou a mão nos cabelos
castanhos dourados da nossa menina.
— Papa — Arthur falou chamando Gustavo.
Fiquei feito uma boba admirando os homens da minha vida.
— Amor, eles já estão arrumados e você está todo suado, vá tomar banho,
daqui a pouco as pessoas chegam para a festa.
— Me deixa só falar com meus bebês, que já vou me aprontar.
Hoje as crianças completavam um aninho, organizamos uma festinha com
nossa família e amigos, até minha mãe ficou de vir. Não somos unha e carne, porém,
desenvolvemos uma relação saudável pelas crianças e em memória do amor que
meu pai sentia por ela.
Decoramos nosso jardim com o tema piquenique, um bolo colorido, e várias
comidinhas que minha sogra preparou. As crianças vestiam jardineirinhas jeans,
camisetas e All Star. Laís estava com um lacinho rosa nos cabelos, meus filhos
estavam uma graça.
Eu estava usando um vestido amarelo verão acima do joelho, fiz cachos
despenteados no cabelo e pouca maquiagem. Trajava-me assim ultimamente, roupas
mais frescas e leves e quase nada de maquiagem, não precisava mais me esconder
do mundo, agora eu queria mostrar o quanto estava feliz.
Como as crianças ainda eram pequenas, eu não quis ajuda para criá-los, meu
marido não me deixou continuar trabalhando nos poucos casos que eu estava
tratando no final da gravidez. Apesar de que ele tinha razão, eu estava muito
cansada e sem nenhum tempo, com casamento, casa nova, mudança e tantas outras
coisas para tratar. O caso do sobrinho do Matheus foi resolvido rapidamente, só
bastou eu citar ao pai da criança o quanto ele precisaria pagar de pensão alimentícia
e ele assinou a autorização para que o Nicholas pudesse ir para os Estados Unidos
com a mãe.
Eu precisei abandonar o caso do Ricardo Sherman sobre a adoção do
Samuel, devido ao fato de não morar mais em São Paulo.
Cris estava em uma eterna ponte aérea, ela fez amizade com os irmãos Salles
e como ela e o Thiago eram padrinhos da Laís, ela estava sempre por aqui mimando
meus gêmeos. Guilherme, que juntamente com Carolina, era o padrinho do Luiz
Arthur, não passava um dia sem vir aqui em casa brincar com as crianças e trazer
presentes para os sobrinhos, mesmo que eu reclamasse não adiantava de nada para
aquele homem.
Dona Carmen e o Sr. Luiz Augusto estavam juntos novamente, o reencontro
foi gradual, devagarzinho eles começaram a esquecer do passado e darem uma nova
chance para o amor e para a vida juntos. Meus sogros eram como segundos pais
para mim, sempre presentes e carinhosos com as crianças e comigo.
Aprendi uma nova maneira de amar as pessoas. Quem gostava dos meus
filhos, sempre tinha mais chance de se tornar meu amigo.
Gustavo, tem sido um exemplo de pai e marido, sem dúvida uma exceção.
Atencioso, amoroso, paciente com as crianças e superprotetor conosco. Ele me
ajudava com as crianças desde que nasceram, estava sempre presente quando não
estava viajando nas competições de motocross, e quando isso acontecia, ele não
parava de me ligar para saber como eu e as crianças estávamos. Meu amor por ele se
renovava a cada dia, ainda tínhamos inseguranças e medos, mas juntos tentávamos,
a cada oportunidade, fazer nosso melhor.
Nunca dormimos chateado um com o outro, aprendemos a pedir perdão sem
demoras, e a sempre sorrir. Afinal, éramos muito sortudos de termos um ao outro
para amar.
Eu nunca imaginei que amar alguém fosse tão delicioso.
Um tempo depois, a campainha tocou e uma multidão de pessoas cheias de
presentes entraram na nossa casa, meus filhos passaram de braço em braço sendo
beijados e acarinhados pela nossa família e amigos. Meu marido, agora já tomado
banho e cheiroso, não saiu do meu lado, ficou comigo admirando a movimentação.
Crianças corriam de um lado para o outro no jardim, pessoas sorriam e
jogavam conversa fora, meus amigos confraternizavam entre si, meus filhos
brincavam sem parar com os animadores que chamamos para a festinha. Eu me
afastei de Gustavo, que estava conversando com um casal de conhecidos, caminhei
até a varanda, onde vi o sol de fim de tarde refletindo os fios dourados dos cabelos
loiros do meu menino, seus olhos cor de mogno eram idênticos aos do pai, o
castanho dos cabelos de Laís destacava-se em seu rosto claro de olhos azul
profundo. Nossos filhos são perfeitos.
— Eles são lindos. — Virei-me e vi minha mãe.
— Não vi a senhora na festa. Chegou agora? — perguntei um pouco tensa.
— Tempo suficiente para vê-la admirando suas crias, você se tornou uma
mulher e mãe maravilhosa, Liz.
— Obrigada, mãe. — A palavra saiu da minha boca e eu engoli em seco. Foi
automático, mas desde que ela me mandou para o colégio interno não a chamava
assim. Ela sorriu para mim, se aproximou de um jarro cheio de flores-de-lis. Minha
mãe inspirou o aroma da flor, sorriu melancolicamente e se afastou.
Olhei para suas costas até sua silhueta sumir entre as pessoas, virei-me
novamente para as crianças. Senti um beijo no meu ombro e sorri porque conhecia a
presença do meu marido.
— Posso saber o que minha mulher está fazendo aqui sem mim? — Gustavo
passou as mãos pela minha cintura me puxando em sua direção.
— Oi, amor. Estou só admirando nossos filhos brincar.
— Eles estão se divertindo, não é?
— Sim, eles estão crescendo tão rápido.
Meu Gustavo suspirou.
— Um dia desses, eles estavam chorando sem parar, agora estão brincando
no seu primeiro aniversário e dando os primeiros passos para a vida.
— Uma vida linda, não é? — perguntei.
— Sim, uma vida linda.
— Amor?
— Oi, minha flor.
— Obrigada por ter me dado uma família. Lembro que, quando descobri a
gravidez, pensei que não fosse capaz de dar a eles o amor que mereciam, mas você
me fez acreditar que eu sou capaz de amar cada vez mais.
— Minha flor, você transpira amor e contamina qualquer um que chegar
perto, é como o pólen nas flores.
— Pólen? E você é meu zangão? — gracejei cheia de más intenções.
— Não, eu sou o seu motoqueiro gostoso, esqueceu?
— Jamais, eu te amo — disse beijando-lhe os lábios deliciosos.
— Eu também te amo.
— Ei, pombinhos, minha mãe está chamando para cantarmos os parabéns.
Dá para se pegarem mais tarde? Aqui está cheio de crianças, porra! — Guilherme
interrompeu nosso momento romântico, me fazendo cair na gargalhada.
— Cale a boca, Gui! — Gustavo gritou.
Pegamos nossos filhos e fomos para a mesa do bolo, que já estava rodeada
de crianças ansiosas. Cantamos parabéns em uníssono, eu segurei Laís e Gustavo
segurou o Arthur no colo, posamos para as fotos sorridentes e orgulhosos dos nossos
filhos.
A festa foi perfeita, assim como eles mereciam.
Deixei as crianças dormindo no quarto já no final da noite, peguei a babá
eletrônica e fui procurar meu marido. Encontrei-o sentado em uma namoradeira na
nossa varanda, vestindo apenas a calça que estava usando mais cedo na festa.
Gustavo segurava uma taça de vinho branco entre os dedos, com seu olhar
focado em um ponto no céu estrelado de Belo Horizonte.
Aproximei-me silenciosamente e sentei em seu colo.
— Olhando as estrelas? — perguntei beijando-lhe a boca.
— Hum, estava aqui esperando você e admirando-as.
— Percebi que você estava focado nelas, nem percebeu minha aproximação.
— Boba, eu tinha esquecido que Minas têm o céu mais estrelado que já vi,
porque passo todo meu tempo olhando para você. — Ele beija meu pescoço nu
causando calafrios. — As crianças demoraram a dormir?
— Estavam muito agitados, o dia deles foi cheio. — Encaixei meus dedos
em seus cabelos escuros, despenteados e macios. Comecei a massageá-los.
— Não via a hora de ficar sozinho com você. Passei a semana contando as
horas para nossas férias na praia. — Gustavo começou a beijar o meu decote, entre a
curva dos meus seios e o tecido do vestido.
— Hum... eu também. As crianças vão amar conhecer o mar, e eu vou amar
aproveitar o sol. Já está tudo pronto para a nossa viagem, é só cairmos na estrada
amanhã bem cedo.
Encaixei-me sentando totalmente sobre o colo do meu motoqueiro gostoso,
ficando cara a cara com ele. A luz da varanda estava apagada, um escuro agradável
predominava o ambiente.
— Estou ansiosa para ver a cor do mar — sussurrei.
— Eu vejo o mar todo dia quando olho dentro dos seus olhos, ainda consigo
enxergar a sua alma azul e tão profunda quanto um oceano.
— Você não pode me falar essas coisas e não querer que eu lhe ataque...
Gustavo, eu amo quando você me fala coisas fofas.
— E eu amo apenas saber que você é minha.
Começamos a nos beijar como dois viciados em abstinência um pelo outro,
arranhei as costas fortes do meu marido, ele gemeu na minha boca necessitado de
mais. Tirou meu vestido pela cabeça, deixando-me apenas de calcinha.
Comecei a me movimentar sobre a sua ereção pressionada contra o meu
núcleo, suas mãos me tocaram em todos os lugares, sua boca só abandonou a minha
para beijar meu pescoço, ombros e seios. Gemi baixinho para não acordar as
crianças.
Gustavo levantou-se e eu passei as pernas na sua cintura. Caminhou me
segurando como se eu não pesasse mais que uma das crianças até nosso quarto.
— Não quero os vizinhos admirando o espetáculo. — Ele me colocou no
meio da cama.
— Ciúmes?
— Muito. — Ele rasgou minha calcinha em questão de segundos, tirou a
pouca roupa que vestia e me penetrou.
Meu corpo todo implorava por esse contato, eu ofeguei em ondas de prazer.
Nossos beijos ficaram frenéticos como os nossos movimentos, minhas mãos não
eram suficientes para apertar toda a pele que tinha vontade, minhas unhas
afundaram na sua bunda firme, Gustavo beijou meus seios, revezando entre
lambidas e mordidas, me deixando ainda mais próxima de chegar ao máximo.
— Minha flor — Gustavo balbuciou entre um beijo e outro.
— Meu motoqueiro — gemi.
— Olhe pra mim, veja o quanto eu amo você.
Eu forcei os olhos para mantê-los abertos em meio a tanto prazer, as palavras
de Gustavo atingiram meu âmago, caí em um profundo e dilacerante orgasmo, de
olhos abertos, mostrando-lhe o que ele fazia comigo, chamei seu nome como se ele
pudesse me acompanhar nessa subida até o céu.
Gustavo intensificou os movimentos e chamou meu nome como um louco
quando chegou ao prazer beijando minha boca com fome e precisão. Ficamos
abraçados, respirando afobados pelo esforço e ainda sentindo os espasmos do corpo
um do outro, entrelacei meus dedos nos seus e fechei os olhos.
Como um filme eu visualizei tudo que já vivemos até aqui, tantos mal-
entendidos, tantas lágrimas derramadas, tanto amor, tanta entrega. Sorri porque
fomos mais fortes que os traumas passados, erros dos outros, mágoas profundas e
inúteis. Aprendemos a pular barreiras e construir escadas para subir nos obstáculos
que estivessem em nosso caminho. Construímos uma família, segura e cheia de
amor. Aprendemos a encontrar um lar no abraço um do outro e isso era o que
qualquer pessoa podia ter de mais precioso.
— Amor... — chamei baixinho alisando meus dedos sobre seu peito.
— Oi, minha flor.
— Diz pra mim que nunca vamos nos perder pelo caminho, me diz que você
sempre estará aqui.
— Estou aqui, minha flor, e não vou a lugar nenhum.
Continua...
Leia a continuação da história de amor de Liz e Gustavo no livro
Azul Tormenta, confira a sinopse:
Será que só o amor é capaz de manter um casamento?
No livro Azul Profundo nos apaixonamos pela história de dor e perdas da Liz
e do Gustavo, Em Azul Tormenta, você vai poder descobrir que nem sempre o “final
feliz” é o fim de uma história de amor.
Duas pessoas marcadas tentando viver um casamento em meio a conflitos,
fama, paixões arrebatadoras e intrigas.
Neste livro, a Tormenta é só um meio para a eternidade.
Liz
“Eu não acreditava em amor até conhecê-lo. Ao seu lado descobri a tão
sonhada felicidade. Mas viver a dois é um tiro no escuro.”
Gustavo
“Liz, meus filhos e minha carreira eram a luz dos meus olhos. Eu nunca
imaginei perdê-los. Também não podia prever o que o destino tinha reservado para
nós.
Eu só queria que a vida não tivesse sido tão cruel.”
Agradecimentos
Desde que eu era apenas uma menina, nunca me conformei com a forma
crua e real que as outras pessoas enxergavam a vida. Sempre preferi acreditar que
estávamos vivendo um sonho onde tudo era possível e todos nós estávamos
protegidos da dor. Ainda criança, percebi que eu estava errada e a realidade que
estamos fadados a viver não é nenhum conto de fadas. Não fui preparada para
enxergar a verdade sobre as coisas. Então, quando cresci, tentei enfrentar o que a
vida tinha para me dar, errei e acertei incontáveis vezes, e incontáveis vezes preferi
não viver nessa realidade tão dura. Não que eu não fosse feliz, a vida me presenteou
com pessoas incríveis que, mesmo que eu viva mil anos, nunca poderei agradecer
suficientemente, mas eu estava vazia.
Eu trabalhava, estudava, fazia alguns amigos, perdia outros, via as pessoas
que eu amava seguirem suas vidas, mudava os planos, retomava planos antigos.
Mas continuava me sentindo vazia, até que um dia eu resolvi me permitir
sonhar novamente da mesma forma que eu fazia quando criança. Então comecei a
escrever este livro sem qualquer pretensão, comecei com uma lauda que trouxe
outra, e mais outra, e logo se formaram capítulos que formaram esse livro. Essa foi a
maneira que encontrei apenas para voltar a ser quem eu era antes. Quando eu
acreditava em finais felizes, perdão, reencontros, destinos traçados e todas essas
coisas que parecem baboseira para alguns, mas que para mim é o que me move. São
esses pequenos milagres da vida que me fazem ter vontade de continuar vivendo.
Então, apresentei a vocês aqui, Liz e Gustavo, um amor que criei com o puro
intuito de fugir da realidade e dialogar com algo tão doloroso como o rancor e a
mágoa.
Podemos nos sentir abandonados por diversos motivos, mesmo sem ir
embora, alguém pode nos abandonar. Seja na falta de um gesto, em um silêncio, e
em tantas circunstâncias que passaria dias aqui listando.
A pergunta que me fiz ao terminar esse livro é a mesma que faço a você,
caro leitor: Quem sai ganhando? Quem vai embora com o coração vazio e com a
culpa de ter partido, ou quem fica com o coração sangrando por ter sido deixado?
Não cheguei a uma conclusão, mas em minha opinião, tanto quem vai
quanto quem fica tem motivos que os levaram a isso, ir embora é uma espada afiada
de dois gumes, que fere os dois lados.
E o que seria de nós se não tivéssemos o dom de perdoar? Passar uma
borracha no passado e sermos altruístas para dar o braço a torcer que quem mais te
machuca é quem mais te ama. E só descobrimos isso quando afastamos a mágoa dos
nossos olhos.
Antes de me despedir de você, quero te contar quem me ajudou até aqui com
cada parte do processo que foi escrever esse livro.
Primeiramente agradeço a minha família por todo amor e cuidado que vocês
têm comigo. Mainha, a senhora é uma rainha, sua coroa não é feita de ouro, mas é
feita de todo amor que lhe cerca. P.S.: Obrigada por me dar um irmão tão gentil!
Agradeço também ao meu marido pela paciência e carinho.
Quero deixar meu muito obrigado, a todas as minhas leitoras por toda
atenção e dedicação em me ajudar a desenvolver essa história: Elen Almeida
(Menina, obrigada por me dizer umas verdades de vez em quando. Você foi
fundamental em cada etapa, amo você), Camila Rodrigues, Kelly Becker, Nayara
Encarnação e tantas outras que nem conheço pessoalmente, mas que tem um
lugarzinho no meu peito.
Também agradeço infinitamente a todos que fazem parte do Jampa Literária,
em especial a Kalina Nascimento, Anelise Diniz e a cada amigo próximo ou distante
que me deu força, fez um elogio ou compartilhou sobre meu trabalho, saibam que
são vocês que me mantém sonhando.
Doem órgãos, salve vidas.
Um beijo no coração,
Priscilla Ferreira
Sobre a autora
Priscilla Ferreira nasceu em 1990, é jornalista formada pela Faculdade
Maurício de Nassau, considera as palavras suas melhores amigas, por esse motivo
escolheu escrever como profissão. Indo contra a regra, odeia câmeras e falar em
público não é o seu forte, prefere sentar-se em frente a um computador e contar
histórias reais ou de ficção. É uma romântica incorrigível que acredita ter nascido na
década errada. Não resiste a histórias de amor avassaladoras, filmes de época, café,
papear com as amigas, cafuné e tempestades. Para ela, os dias de chuva são seus
melhores, mesmo morando em João Pessoa, cidade conhecido pelo sol nascer
primeiro.
Editora Angel
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Notas
[←1]
Bolsa de mão
[←2]
Painita é considerada uma das pedras preciosas mais raras do mundo, e tem como característica a cor
marrom escuro.
Table of Contents
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Capítulo 38
Capítulo 39
Capítulo 40
Capítulo 41
Capítulo 42
Capítulo 43
Capítulo 44
Capítulo 45
Capítulo 46
Capítulo 47
Capítulo 48
Capítulo 49
Capítulo 50
Capítulo 51
Capítulo 52
Capítulo 53
Capítulo 54
Capítulo 55
Capítulo 56
Capítulo 57
Capítulo 58
Capítulo 59
Capítulo 60
Capítulo 61
Capítulo 62
Capítulo 63
Capítulo 64
Epílogo
Leia a continuação
Agradecimentos
Sobre a autora
Editora Angel