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Tóxico

Copyright © 2017 Nicole Blanchard


Copyright da Tradução © 2023 Editora Five
Todos os direitos reservados.
Produção Editorial: Grupo Editorial Five
Arte de Capa: Graziela Lancellotti
Tradução: Elaine Lima
Revisão e preparação: Thátia Gonçalves de Sá
Diagramação: Carol Dias
Imagens de diagramação: rawpixel.com/Freepik e
Mehwish/Flaticon
Nenhuma parte do conteúdo desse livro poderá ser reproduzida
em qualquer meio ou forma — impresso, digital, áudio ou visual —
sem a expressa autorização sob penas criminais e ações civis.
Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e
acontecimentos descritos são produtos da imaginação da autora.
Qualquer semelhança com nomes, datas ou acontecimentos reais é
mera coincidência.
Sumário

Início
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Epílogo
Agradecimentos
Sobre a autora
Sobre a Five
Aviso:
Este livro contém cenas explícitas de violência doméstica e
violência em geral, essas cenas são sensíveis e podem ser
gatilhos para alguns leitores.
Leia com cautela.
Dedicatória
Para todas as garotas boazinhas com um lado sombrio.
Há manhãs em que acordo sem saber ou me importar com
qual dia da semana é. Às vezes, passo longos períodos sem sequer
verificar a data. Prefiro assim.
As chances de eu ter esperança de uma vida melhor é bem
menor quando todo o vazio que sinto se mistura ao meu cotidiano.
Acima de mim, meu marido me manipula com movimentos
repetidos que o meu próprio corpo reconhece e responde, mesmo
que apenas por hábito. Sua cabeça se inclina de forma deliberada
para o lado, assim ele não precisa me olhar nos olhos. Como ele me
disse inúmeras vezes: foder não precisa ser pessoal para ser eficaz.
De alguma maneira, ele ensinou o meu corpo a acreditar nele.
Tocou-o e o afinou tão bem quanto um músico faz a um instrumento.
Ele me posiciona e move ao seu gosto, e o deixo até que eu não
seja nada além de uma coisa que ele programa para o próprio
prazer… sua rainha pornô, seu robô sexual de carne e osso. É de
se admirar que algo tão maltratado ainda possa responder à causa
de seu estado de abandono.
O arranhão suave de sua cabeça com cabelo raspado
esfregando no meu rosto me deixa em carne viva. É uma irritação
da qual não me atrevo a me afastar. O cheiro de sexo, almíscar e
lubrificante enche meu nariz, então deixo de respirar por ele e passo
a soltar gemidos pela boca. Ele gosta quando faço barulho, mesmo
sendo apenas para o benefício dele em vez uma reação real a
qualquer coisa que esteja fazendo entre as minhas pernas.
Dedos machucam a pele dos meus pulsos com tanta
facilidade quanto podem esmagar a carne delicada de um pêssego.
Dedos que antes eram motivo de prazer, mas agora não causam
nada além de devastação. Os movimentos de Vic aceleram com o
meu grito estrangulado até suas estocadas alcançarem um ritmo
implacável. Levanto meus quadris ao mesmo tempo que os dele,
tentando ao menos atiçar a faísca necessária para queimar o nada
que minha existência se tornou. Qualquer coisa para esquecer.
Cada impulso de seu pau mistura o prazer e a dor até eu não
saber mais como diferenciar um do outro. Até essas sensações se
misturarem na escuridão insondável que eu vim a conhecer e amar.
Eu a persigo, ansiando por ela me envolver em seu conforto
sombrio.
Os grunhidos dele me atraem para a outra direção, de volta à
realidade. O prazer desaparece com cada uma de suas respirações
agudas no meu ouvido, o breve instante de prazer proporcionado
pelo torpor é interrompido por um lembrete irritante. Uma coceira
que não conseguirei aliviar. Quero rosnar e arranhá-lo, mas torço os
punhos no lençol da cama e fecho os olhos até as lágrimas vazarem
dos cantos, descerem pelas bochechas e por fim molharem a minha
fronha. Ao nosso lado, na mesa de cabeceira, o despertador toca e,
em minha mente, começo uma contagem regressiva dos longos
minutos até que ele termine e eu possa estender a mão e desligá-lo.
Com os braços como uma gaiola implacável ao meu redor,
ele se enrijece acima de mim e grunhe. A promessa do
esquecimento desaparece, levando consigo a feliz sensação do
nada. O som do alarme perfura a prometida névoa de alívio e a
realidade abre seu caminho de volta. O suor que une nossos torsos
me lembra de como me sinto suja, mas sei que é melhor eu não me
mexer, melhor esperar até ele sair de cima de mim.
Quando ele fizer isso, vou rolar para o meu lado da cama,
fazer ruídos agradecidos quando ele perguntar se estava bom para
mim, depois vou tomar banho e me preparar para mais um dia.
Repito a lista de tarefas em minha mente até que ele alavanca seu
peso com uma mão antes de jogar o corpo para o lado com outro
grunhido. Suspiro de alívio e me cubro com um lençol. Há muito
tempo perdi a capacidade de sentir vergonha no que diz respeito a
ele, mas há uma parte de mim, lá no fundo, que sempre precisa
correr e se esconder.
Ele cai de costas com um gemido satisfeito e dá tapinhas no
estômago com uma mão grossa.
— Você precisa de um banho, — ele diz. — Está com uma
aparência de merda.
Outra de suas alfinetadas não tão sutis. Engulo a minha
réplica furiosa e apenas respondo que tomarei um. Sua atenção se
volta para cheiro de café sendo passado no andar de baixo.
Enquanto ele se balança para fora de seu lado da cama, minha
respiração e frequência cardíaca retornam ao normal, e já estou
contando os segundos até poder seguir com o meu dia, mesmo
tendo que começar tudo de novo amanhã de manhã.
Ele caminha para a cadeira da escrivaninha, pega o roupão e
o joga ao redor dos ombros. Sem mais uma palavra ou um olhar
para trás, ou mesmo uma demonstração de preocupação pelo fato
de eu não ter gozado, ele sai do quarto e desaparece pelo corredor.
Depois de alguns segundos, ouço os sons de armários abrindo,
seguidos pelo clique de sua xícara de café no balcão, depois o som
de líquido sendo derramado.
Enfio o desconforto no fundo da minha mente, como faço
com o resto, e vou tomar um banho. A água quente não lava muito
além do suor agarrado à minha pele. Nunca entendi as pessoas que
pensam que chuveiros podem torná-las limpas. Sinto-me tão suja ao
sair deles quanto ao entrar. Há algumas coisas que a água e o
sabão simplesmente não são capazes de lavar.
Eu me visto com um uniforme cinza e simples de enfermeira,
passo secador nos meus cabelos longos e escuros até ficarem lisos
e depois os prendo de volta em um coque firme na nuca. Apenas
aplico corretivo nas manchas arroxeadas sob meus olhos e passo
rímel sobre meus cílios, mais por hábito do que qualquer
preocupação real com minha aparência física. Menos é mais. A
última coisa que preciso é chamar a atenção para mim. Seja a de
Vic, ou de qualquer outra pessoa. Já fiquei habilidosa em passar
despercebida.
Com uma respiração firme, viro as costas para o espelho e
me junto a ele na cozinha. Vic se senta à mesa com o jornal
espalhado à sua frente, a xícara de café ao lado do cotovelo com o
vapor ondulando do topo. É uma manhã típica. Quase pitoresca. O
maldito sonho americano. Só faltam as tradicionais duas crianças e
o Golden Retriever.
Encho uma garrafa térmica com café e pego uma banana
para encher meu estômago.
— Tenha um bom dia de trabalho, — digo em direção a sua
cabeça baixa, enquanto passo por ele até a porta.
Vic me para com uma mão no braço e inclina a bochecha
para mim. Dou o requerido beijo.
— Vejo você no jantar, — ele diz, a ameaça velada do que
vai acontecer se eu me atrasar pesa entre nós.
O jantar deve ser servido de forma pontual às seis da tarde a
partir de um menu aprovado. Nem me importo mais com falta de
autonomia. Além disso, há muito tempo perdi a capacidade de
desfrutar da comida que como, e esse é apenas um dos aspectos
da minha vida que ele controla.
Dispensando-me, ele volta para o jornal e eu atravesso a
porta lateral que leva à nossa garagem coberta. Vivemos na
Península Superior de Michigan e agora em fevereiro o frio é tanto a
ponto de se infiltrar pelo meu casaco com dedos gelados e
penetrantes. Na pressa para me afastar de casa e do meu marido,
esqueci de pegar minhas luvas. Voltar é impensável, então
destranco o carro com os dedos dormentes e resolvo lidar com isso.
Dirigir até o trabalho é um processo árduo. As estradas estão
escorregadias da neve da noite anterior, ainda é muito cedo para os
removedores, mas não tenho tempo para esperá-los limpar a neve
do caminho. Esmago a camada de gelo por baixo dos flocos que
caem enquanto chego ao portão para mostrar minha identificação.
O guarda de serviço, Ernie, enfia a cabeça para fora da
janela antiga, as bochechas vermelhas. Apesar de suas
sobrancelhas brancas espessas, não deixo de notar a olhada que
ele me dá.
Sem dizer uma palavra, entrego o meu crachá. Qualquer
bom dia amigável que planejei murcha quando os olhos de Ernie
permanecem no V do meu uniforme, exposto pelo meu casaco
aberto. Quando ele enfim se afasta, espero enquanto escaneia a
identificação no computador. Quero ralhar com ele e dizer para
manter os olhos para si, mas permaneço calada. Ernie vai passar o
resto do dia aqui no frio, digo a mim mesma. Seu sofrimento é um
conforto. Nem sempre fui assim tão fria, mas, enquanto espero, a
irritação que reprimi por não alcançar o agradável estado de torpor
essa manhã volta com muito mais força. Só que desta vez ela é
dirigida a Ernie. Minha complacência quanto ao seu olhar descarado
sobre mim, só me faz lembrar no que Vic me transformou, e quero
descontar minha raiva em Ernie agarrando o pescoço dele e
batendo seu rosto na moldura da janela.
O surto de fúria me choca e dou um pulo quando Ernie se
inclina para frente com o meu crachá.
— Opa, calma, — diz, como se eu fosse um cavalo
assustado que ele pode acalmar. — Deve estar nervosa por causa
do grande dia.
Certifico-me de pegar minha identificação entre dois dedos
para não precisar tocá-lo de novo. Minha concentração é tanta que
leva alguns longos segundos de silêncio para perceber que ele está
esperando pela minha resposta.
— Como assim? — pergunto, sabendo haver olhos sobre
mim, mesmo agora, que repassam tudo ao meu marido que, sendo
o diretor de Blackthorne, não é alguém com quem queiram ter
problemas. Apesar dos meus sentimentos, devo interpretar o papel
de esposa obediente e ter uma conversa agradável, pois qualquer
funcionário que eu encontrar tem o potencial de relatar minhas
ações para Vic.
Ernie faz uma careta.
— Recém-chegados, — responde devagar. — Não soube?
Dizem que um deles é daqueles que dá trabalho.
Fecho os olhos por um segundo e puxo a memória da
conversa que tive na noite anterior com o meu marido e me lembro
dele mencionando para ser mais cuidadosa hoje. Pelo visto, um dos
novos presos é de alto risco. Deve ser, para justificar tal aviso.
— Talvez seja o próprio presidente, — digo, lembrando-me
de lhe dar uma resposta.
Ernie bufa.
— Tenho certeza de que ele pensa que é. Tenha cuidado.
Seria muito ruim se um desses criminosos estragasse esse seu
lindo rosto.
O riso borbulha no meu peito e quase se liberta. Por um
momento, a risada ameaça me dominar, mas a sufoco de volta e
aceno para um Ernie perplexo enquanto dirijo meu carro para o
estacionamento.
A corrida rápida do meu carro até a entrada leva uma
eternidade. Nesse ínterim, perco toda a sensação abaixo dos meus
joelhos e as pontas dos meus dedos e nariz formigam com um calor
entorpecente. Quando entro no escritório úmido, sonho acordada
com praias arenosas, bebidas de coco e multidões grandes o
suficiente para me perder.
No entanto, não importa quanto penso sobre isso. Uma
pequena parte da minha mente sabe que esses muros da prisão são
a minha realidade. Atravesso a entrada principal dos funcionários,
tiro os sapatos confortáveis e os entrego, assim como a sacola com
meu almoço, ao guarda que monitora o detector de metais. Ele
acena um “bom dia” com a cabeça, mas não me envolve em
conversas inúteis. Os olhos dele mal registram a minha presença.
Ao calçar os meus sapatos de volta, vou até a sala de
controle e retiro as minhas chaves para a ala médica. O guarda de
plantão faz uma pausa antes de entregá-las.
Aprendi que é melhor esperar até que joguinhos de poder
como este se desenrolem sozinhos, então encaro o homem de
meia-idade até ele falar.
— Você tem um paciente esta manhã.
— Uhm? — digo sem inflexão, embora isso desperte minha
curiosidade, afinal, cheguei no trabalho não faz dez minutos e já tem
alguém esperando por tratamento. — Quem é?
O guarda recua e sei que devia apenas ter continuado. Não é
como se eu não fosse descobrir quem é o paciente em poucos
minutos. Olho para as portas, insinuando que gostaria que me
deixasse passar e ele cede sem responder à minha pergunta. Pela
primeira vez, o corredor interno está silencioso como um túmulo. A
quietude é tão incomum que continuo olhando para trás, esperando
alguém saltar de uma das portas.
A caminhada para a ala médica é longa e estou tão nervosa
que sequer olho para cima enquanto destranco a porta. Meus olhos
estão nos meus pés enquanto coloco meu almoço na geladeira do
pequeno escritório reservado para as enfermeiras de plantão. Eu me
viro para pegar as fichas dos pacientes que passaram a noite na ala
e quase ofego quando percebo que não sou a única pessoa na sala.
Abro a boca para gritar ou questionar sua presença, mas
algo me impede. Sem dizer uma palavra, o homem sentado na
mesa de exame na minha frente consegue fazer o que meu marido
levou dois anos para aprender: como me calar com apenas um
olhar.
O cabelo na parte de trás do meu pescoço fica de pé
enquanto meu corpo reconhece a presença de um predador. A
camada de músculo debaixo da minha pele se contrai, preparando-
se para fugir, mesmo quando dou um passo para mais perto do
detento à minha frente. Os outros guardas e enfermeiras estão na
enfermaria, que fica perto, mas, ao mesmo tempo, a uma eternidade
de distância. Não há nada que impeça este homem de me
machucar. Basta um olhar em sua direção para saber que é bem
capaz de fazer isso, caso sirva aos seus objetivos. Músculos
definidos, que são grandes demais para o uniforme padrão da
prisão, esticam-se contra os limites da parte de cima de sua roupa.
Aglomerados de tinta serpenteiam em torno de seu antebraço direito
e do bíceps esquerdo.
Engulo em seco por instinto enquanto meus olhos disparam
para os seus. Ele não me provoca, mas seu sorriso fala mais alto do
que palavras.
Sou enfermeira no Instituto Correcional Blackthorne há cinco
anos, então lidar com detentos, do dócil ao mortal, não é novidade.
Nenhum dos truques que aprendi em meu ofício funcionam para
acalmar meu pânico quando o homem direciona toda a força de sua
atenção para mim.
— Disseram para você esperar aqui para o seu exame de
admissão? — pergunto, e fico grata quando minha voz não trai meu
nervosismo repentino.
Ele levanta um ombro, o material de seu macacão manchado
de sangue farfalhando na sala de exames silenciosa.
Mesmo que os sinos de advertência estejam soando na
minha cabeça, dou passos cuidadosos para a frente até chegar ao
final da mesa de exame onde ele está empoleirado. A maioria dos
homens que vêm aqui para cuidados sabe muito bem que não se
deve mexer com os funcionários, mas há sempre a chance de hoje
ser o dia de um deles mudar de ideia. Então, quando pego a
prancheta pendurada em um clipe na extremidade da maca com as
informações do recém-chegado, faço isso com um olho nele. Algo
me diz que seria uma má ideia virar as costas para ele.
Depois de alguns passos cuidadosos para trás, para permitir
um pouco do tão necessário espaço, arrisco uma olhada no
prontuário dele. Não há nenhum nome nas anotações, apenas o
número do detento, isso transforma minhas entranhas em gelo e
acaba com qualquer dúvida que eu possa ter tido sobre quão
perigoso ele é.
Deve ser o sangue.
Muitos detentos entram em brigas ente eles ou com os
guardas durante o transporte, mas alguém deve ter o tratado em
algum momento. Há um curativo no nariz e um esparadrapo na
maçã do rosto. O sangue na boca deve ser de um dente que foi
arrancado, talvez? Ou um corte no lábio. De qualquer forma, não há
nada demandando minha atenção imediata, mas isso só me lembra
de ser mais cautelosa.
— Diz aqui que você não fez o questionário de histórico
médico com os guardas antes que o trouxessem aqui.
Ele assente.
— Certo, vamos começar com isso. — Vou para a minha
mesa e me acomodo no meu espaço. — Você está vendo um
médico para qualquer doença em tratamento ou problema de
saúde?
Ele nega com a cabeça e eu anoto. Além dos arranhões e
hematomas, não preciso avaliá-lo para saber que está em perfeita
saúde. A vitalidade transpira de seu corpo, tentando-me a chegar
mais perto. Anos de lições nas mãos de Vic me forçam a manter
distância, mas não posso deixar de me perguntar como seria ter a
atenção desse homem em mim em um ambiente diferente.
Olho de volta para o questionário para redirecionar meus
pensamentos. Enquanto as engrenagens do meu cérebro param,
bato a caneta no lado da prancheta, tentando em vão reunir o pouco
do profissionalismo que ainda me resta.
— Está tomando qualquer medicação com ou sem receita?
Ele dá outro aceno negativo de cabeça, e me dou conta de
que podemos passar por toda essa entrevista sem que ele nunca
diga uma palavra.
É isso mesmo o que acontece.
Ele responde a cada pergunta balançando a cabeça de um
lado para o outro ou de cima para baixo. Descubro que nunca fez
uma cirurgia de grande porte, não tem alergias e não possui
histórico familiar de doenças graves, isso tudo sem nunca saber seu
nome ou o som de sua voz.
Quando chego ao fim do histórico médico, paro de me
preocupar que ele vá tentar fazer qualquer coisa. Se quisesse me
machucar, já o teria feito. Já fiz essas triagens de admissão milhares
de vezes, então assim que entro no ritmo, fica mais fácil esquecer a
minha primeira impressão dele, além da minha curiosidade, e seguir
os procedimentos.
— Vamos colocá-lo na balança agora para registrar o seu
peso atual.
Ele grunhe, o que tomo como um sim, e aceno para a
balança ao lado da porta da sala. Apesar de seu volume, ele se
move com a graça de um felino enquanto atravessa o lugar. A
balança tilinta enquanto ele sobe, e eu me ocupo em ajustar os
pesos e fazer anotações no prontuário.
Quando volto a erguer o olhar, preciso me controlar para não
arfar, pois ele está olhando para mim com uma intensidade
surpreendente. A curiosidade flagrante torna seu olhar afiado e faz o
meu estômago revirar com um nervosismo e excitação que eu não
sentia há anos. É uma reação que, se eu cedesse a ela, poderia me
levar a dez tipos diferentes de problemas federais.
— Uhm, vamos medir a sua altura agora.
Indico a fita métrica fixada na parede ao nosso lado e ele se
arrasta até ela de forma obediente, o tempo todo me olhando com
uma expressão confusa, como se eu fosse um problema que está
determinado a resolver. Ele se submete ao meu manejo enquanto
registro sua altura. Um metro e oitenta e dois de puro macho feral se
ergue sobre os meus meros um metro e sessenta e sete.
Sem pensar, ergo as mangas compridas do meu uniforme
enquanto anoto suas medidas e verifico o relógio enquanto conto,
com desespero, os minutos até a minha primeira pausa. Acabei de
chegar e já estou impaciente pelas 10h30, só para ter meus quinze
minutos de solidão.
Um arrepio percorre minha espinha e, como a presa que sou,
congelo antes de me forçar a olhar para a porta. Espero ver Vic ali,
observando-me. Essa é a única explicação possível para a forma
como todo o meu corpo congela e a necessidade urgente de fugir
que assume o controle. Verifico a sala, certa de ele estar à espera
de que eu faça algo errado. Como respirar sem a sua permissão. No
entanto, em vez dos olhos do meu marido em mim, é a atenção do
detento que está causando o meu pânico. Meu olhar segue o seu e
quando me movo para esconder meus pulsos, os músculos dele
ficam rígidos.
Contusões escuras e roxas cercam a minha pele, devido ao
aperto cruel que Vic deu neles esta manhã na cama. O suor brota
no meu lábio superior e meus ouvidos zumbem. Congelada em
estase, não consigo pensar em uma resposta ou desculpa
apropriada, não que eu precise dar uma a ele, de todas as pessoas.
Depois de um momento de pausa carregada de suspense, no qual
meus olhos se voltam para os seus semicerrados, viro as costas
para ele e vou para a enfermaria para chamar os guardas de volta
para levar o detento. Como sempre, parecemos estar com falta de
pessoal, não é incomum se dividirem entre os dois ambientes da
ala, e agora, estou amaldiçoando isso com todas as forças.
Mas não chego tão longe.
Eu devia ter imaginado. Cada instinto desde que entrei na
sala vem me dizendo para me manter alerta, porque no momento
em que eu tirasse os olhos dele, ele atacaria.
E, merda, é isso o que acontece.
Na longa duração de um piscar de olhos, o detento está tão
perto das minhas costas que seu calor me rodeia. Ele me encurrala
entre seu corpo e a parede, sua frente em minhas costas. Uma
pontada de medo profundo me engole e não consigo controlar o
grunhido que explode da minha garganta.
Ele não comete o erro de me tocar, contudo, a ameaça está
lá. Que é exatamente o que ele quer que eu saiba. Ele pode ser o
preso da situação, mas é o único com o poder agora.
Ele fala pela primeira vez, e o meu corpo vira gelo. Pelo
menos, espero ser gelo. A única outra explicação é uma que nem
me atrevo a considerar.
— Alguém te machucou, ratinha? — sua voz é tão vazia e
severa quanto seu olhar. Um abismo de segredos e mentiras. Ele se
mexe, mas ainda não me toca enquanto se inclina para frente e
inspira.
Ele está cheirando o meu cabelo?
— É por isso que você parece querer rastejar de volta para
um buraco?
Dizer qualquer coisa é impossível. Mas isso não parece
importar para ele, porque continua falando.
— O que uma garota como você faz neste lugar? Hein?
Ele não espera que eu responda, então não o faço. Também
acho que não conseguiria se tentasse.
Ele cutuca meu ombro, tocando-me pela primeira vez para
indicar que quer que eu me vire. Então o faço, certificando-me de
manter um olhar cauteloso sobre ele. A respiração escapa aos
poucos por meus lábios, as rajadas saindo em staccato. Minhas
mãos cerram em punhos ao meu lado.
As mãos dele se levantam e eu me encolho. Minha reação é
tão sutil que eu não esperaria que ele percebesse, mas seus olhos
disparam para os meus em uma compreensão abrupta. Há um
puxão no bolso do meu uniforme na altura do peito, mas não me
atrevo a desviar o olhar dele.
Tudo que posso fazer é esperar.
Minhas vistas embaçam enquanto ele levanta minha
identificação até sua linha de visão. Estremeço com o gelo
acumulado em meu estômago enquanto ele estuda minha imagem e
nome.
— Tessa Emerson, enfermeira, — murmura, olhando no
fundo dos meus olhos. — É um prazer conhecê-la oficialmente.
Suspeito que a gente vai se ver muito.
Talvez seja por causa da manhã que passei debaixo do meu
marido. Ou do brilho muito autoconfiante nos olhos deste criminoso.
Talvez seja insanidade. Seja o que for, algo cresce dentro de mim.
Minha pele aperta e quase espero que rache e se parta, mas ela
não se rompe. Em vez disso, meus braços disparam para frente e
eu empurro o peito dele com as palmas das mãos. Elas entram em
contato com a parede de músculos firmes, enfatizando quão
impotente sou. O detento não move sua forma montanhosa, mas
cede e me dá alguns centímetros de espaço para respirar, os quais
preciso de modo desesperado. O ar entre nós é denso de tensão e
eu me vejo inalando-o com goles gananciosos, mas não é
suficiente.
No entanto, minha explosão de raiva parece agradá-lo, pois
as rugas no canto dos seus olhos se contraem e ele mostra os
dentes em um sorriso selvagem.
Encontro a minha voz, minha irritação aumentando com a
diversão dele. Mas sou eu quem está no controle aqui.
— Afaste-se, — ordeno, forçando o máximo de firmeza em
minha voz.
Ele levanta as mãos em uma demonstração de complacência
que não parece condizer com sua figura, enquanto os guardas
escolhem o segundo seguinte para aparecer. Os olhos deles se
movem entre o preso e eu até que, por fim, focam em mim.
— Está tudo bem por aqui? — um deles pergunta.
Eu poderia relatar a má conduta do detento, porém, mesmo
quando o pensamento me ocorre, sei que não o farei. O pior é que
ele parece ler minha mente quanto a isso, e seu sorriso se alarga.
Explicar o que aconteceu a um guarda só vai significar que os
sussurros vão chegar até o meu marido e eu vou pagar o preço.
Pela primeira vez, ressinto-me dessa vida que Vic me obrigou a
viver. O guarda que fez a pergunta suga os dentes de maneira
impaciente. O som rasteja sobre a minha pele sensível como um
inseto indesejado, e eu estremeço.
— Sim, — respondo alguns segundos depois, incapaz de
suportar a pausa desconfortável. — Está tudo bem.

Com certeza, não está tudo bem.


Sangue escorre do meu nariz e não consigo ver pelo olho
direito. O líquido vermelho-escuro respinga no piso de azulejos
imaculado e corre ao longo da linha do rejunte. Contemplo, de
maneira vaga, quanto tempo levará para eu o esfregar, enquanto
meu marido agarra meu cabelo e me coloca de volta aos meus pés.
— Você me fez parecer um idiota, — ele diz, disparando
cuspe dos lábios.
Sem dúvida, os guardas, compensados de forma generosa
por isso, correram para Vic assim que deixaram a enfermaria. Não
importa que nada tivesse acontecido entre o detento e eu. Ou que
eu sequer tenha colocado a mão no homem, exceto ao tentar
empurrá-lo para fora do meu espaço pessoal. O que valia era
qualquer que fosse o cenário fodido criado por Vic em seu pequeno
cérebro distorcido. Para absolver os meus pecados imaginários, ele
está me sujeitando à sua versão de tortura.
Até que a morte nos separe, certo?
Até já fui à polícia para denunciar o abuso dele. Cheguei a
ponto de prestar queixa. Eu estava apavorada, mas fiz o que pensei
ser necessário para me salvar. Mas o honorável juiz Edward Milton,
eu jamais esqueceria seu nome, desistiu do caso. Em vez de Vic ser
punido, fui a única condenada e descartada como uma mulher
emocionalmente instável. Agora faço a única coisa que posso…
suportar.
Meus olhos se movem para a mancha no rejunte e começo a
listar as maneiras de removê-la.
Primeiro, esfregue a mancha com uma esponja e um pouco
de água fria.
Vic, ele odeia ser chamado de Victor, como soube na
primeira noite em que ele me bateu na nossa lua de mel, dá um tapa
em meu rosto com as costas da mão, fazendo minha cabeça virar
para o lado. A força do golpe me derruba, o cabelo ainda enrolado
na mão dele rasga o meu couro cabeludo.
Se isso não remover a mancha, use uma escova de dentes
com bicarbonato de sódio.
— Não quero que você se associe com aquele preso outra
vez, está me ouvindo? McNair e Summers não conseguiam parar de
sorrir para mim quando me encontraram. Você me humilhou.
Engulo o sangue acumulado na minha boca, meus olhos
ainda nos azulejos manchados. O gosto metálico permanece na
parte de trás da minha garganta e queima até chegar ao estômago.
Ele se instala lá, uma pedra caindo em um lago de bile. Então ele
me chuta na barriga só por garantia, e a pedra se desintegra com a
força da minha raiva.
— Entendi, — digo, embora a palavra saia trêmula. Deixo-o
presumir que é devido ao medo.
Seu punho aperta meu cabelo, forçando minha cabeça para
trás até a sua expressão desdenhosa preencher minha visão.
— É bom mesmo, — murmura. — Quando o vir de novo, não
quero ouvir falar de você flertando com ele. Me entendeu?
Ele sabe que há circunstâncias nas quais apenas uma
enfermeira está de plantão, mas aceno com a cabeça de qualquer
maneira. Não adiantaria falar isso. Em momentos como este, a
lógica só parece alimentar a loucura de Vic.
— Quero ouvir da sua boca! — suas palavras são como
pedras enquanto ele as cospe em mim.
— Quando eu o vir de novo, não vou flertar com ele, — repito
de modo mecânico, o sangue escorrendo pelo meu queixo de onde
mordi a bochecha para não dizer o que de fato quero.
Ele se afasta, limpando as mãos nas calças do terno e
sibilando enquanto desabo no chão. O azulejo frio pressionado
contra o meu rosto ajuda a me firmar, e eu cravo minhas unhas nas
dobras do tapete em vez de no rosto dele.
— Limpe-se antes de fazer o jantar. — Ele faz uma pausa
para se olhar no espelho e se vangloriar. — Acho que quero bife
hoje à noite.
Ele me deixa enrolada como uma bola no chão, o sangue
pingando no rejunte. Levo um minuto antes de me colocar na
posição sentada. Cada protesto dos meus músculos alimenta a
mesma descarga de raiva que me inspirou a empurrar aquele
detento. Enquanto pego uma esponja debaixo da pia, imagino o que
aconteceria se fizesse o mesmo com Vic.
A única coisa “boa” em receber o punho de Vic na minha
cara é isso garantir que não serei obrigada a transar com ele por,
pelo menos, alguns dias. Segundo Vic, ele não fode coisas feias. A
seu modo, suponho que seja um elogio às avessas. No entanto, é
sua culpa eu ter um lábio partido e um olho roxo em primeiro lugar.
Pego uma licença no trabalho durante o tempo que leva para
o inchaço diminuir e minto que estou com gastroenterite. Meu rosto
não está bem de volta ao normal, mas está o suficiente para eu
conseguir cobrir os hematomas com maquiagem. Além disso, Vic já
esqueceu o motivo de ter ficado tão irritado a ponto de enfiar o
punho nos meus olhos, pelo menos por enquanto. Por sorte, tenho
sido capaz de aplacá-lo com boquetes e suas refeições favoritas, e
ele voltou a um temperamento agridoce. Doce no sentido que ele
me mima, amargo por saber que é apenas uma questão de tempo
até Vic querer transar de novo. Temo e anseio pela libertação que
isso proporcionará, mas receio ele ser capaz de perceber quanto
tocá-lo revira meu estômago.
Ele fala enquanto se veste, e eu faço o meu melhor para
ignorá-lo. O que não é tão fácil como costumava ser. Não quando
continuo imaginando como seria despejar o café escaldante sobre
sua cabeça careca ou derramar por “acidente” anticongelante em
seu mingau de aveia. Eu não costumava fantasiar sobre como seria
causar mal a ele, mas cada vez que me espanca, as fantasias ficam
mais vívidas. Na semana em que fiquei afastada do trabalho,
comecei a perder a noção do que é real e do que não é, enquanto
espero por qualquer punição horrível reservada para mim a seguir.
— Você me ouviu? — Vic pergunta.
Encolho-me quando esfrego o corretivo com um pouco mais
de força sobre as contusões que cercam meu olho e depois pisco
depressa. O devaneio que eu estava tendo, no qual espetei minha
tesoura de cutícula na carne de sua coxa, dá lugar à realidade e
volto a focar no espelho, e em Vic, que está atrás de mim.
— Desculpa, — peço assim que encontro as palavras. Mas
elas já não são tão fáceis de forçar para fora como eram antes. —
Estava pensando no trabalho. Posso te servir uma xícara de café?
Ele olha para o meu reflexo no espelho por tempo suficiente
para fazer a minha frequência cardíaca acelerar um pouco. Quando
ele só apoia a mão no meu ombro e aperta, solto a respiração que
estou segurando.
— Sem açúcar, — diz, enquanto se vira para calçar os
sapatos.
Observo seus movimentos até que ele caminhe pelo
corredor, só então relaxo a minha coluna. Não sou a única que tem
agido de forma estranha nessa última semana. Vic tem sido muito
solícito, mais calmo, e até ouso dizer que está atencioso. Isso só me
deixa mais desconfiada. Estou tão nervosa a ponto de mal
conseguir comer ou dormir. A essa altura, o trabalho será como tirar
férias.
Antes de ele começar a gritar para eu me apressar, consigo
me concentrar o suficiente para terminar de me vestir. Adoraria
poder deixar o meu cabelo solto para cobrir as sombras nas minhas
bochechas, mas é contra os regulamentos, então o tranço e faço um
coque. Para minha decepção, as pessoas no trabalho já se
acostumaram às minhas desculpas, então duvido que alguém se dê
ao trabalho de perguntar sobre minha aparência. Se eu tiver sorte,
hoje vai ser lento e não terei tantos pacientes para tratar.
Vic está esperando na cozinha, e eu corro como a boa
menina que sou e preparo para ele uma garrafa térmica de café. Ele
olha por cima do meu ombro e eu levanto minha bochecha para
receber seu beijo enquanto coloco a garrafa térmica em suas mãos.
Fantasio sobre esmagá-la em seu crânio e quase posso ouvir o
barulho agudo que ela faria ao quebrar, a maneira como seu corpo
desabaria no chão e como o sangue e o café se espalhariam sobre
o azulejo.
Enquanto ele assobia ao sair pela porta, decido ser uma
coisa boa que eu saiba como tirar manchas de sangue do rejunte.
Só por precaução.

Há duas enfermeiras avaliando os pacientes na ala médica


quando chego ao trabalho, mas a enfermaria está vazia. Passo
muito tempo durante todo o início do dia repetindo os eventos do
café da manhã na minha cabeça e tentando decidir se enfim
enlouqueci de vez. É por isso que, quando olho para cima e vejo o
último detento que quero ver, parado na porta, congelo, certa de
estar alucinando.
O que diabos ele está fazendo aqui de novo?
— Vim pegar instruções de trabalho, — ele responde, e
percebo que devo ter dito aquilo em voz alta.
Furiosa por me sentir encurralada e até mesmo
envergonhada, afasto-me dele. Mas conter minhas emoções e
impulsos é como tentar evitar que as ondas molhem a areia. Não
importa quantas barricadas eu coloque, sempre conseguem se
derramar sobre as bordas. Tê-lo por perto não vai ajudar. Eu só o vi
uma vez e sinto que ele pode enxergar além daquelas barricadas e
através de mim. Pior ainda, esse homem me faz querer derrubar as
barreiras e mostrar todas as minhas partes fracas e vulneráveis para
ele.
— Desde quando? — pergunto, quando enfim consigo olhar
para ele sem querer correr na direção oposta. Trabalhar na ala
médica é uma posição cobiçada pelos presos. A presença dele só
pode significar que Vic mudou de táctica. Eu sabia que seu humor
estava bom demais para ser verdade. Ele estava usando esse
detento para me lembrar quem detém o poder na nossa relação, e
se eu colocar um único dedo fora da linha, serei punida.
Ele levanta um ombro e enfia as mãos nos bolsos.
— Há alguns dias.
Meus dentes cerram em resposta automática às palavras
acaloradas que estavam determinadas a escapar por minha boca.
Talvez os espancamentos de Vic sejam bons para alguma coisa. Se
nada mais, ensinaram-me a controlar minha boca sarcástica.
— Eles poderiam usá-lo na ala médica para ajudar com os
pacientes de longo prazo.
Antes mesmo de eu terminar a frase, ele está balançando a
cabeça.
— Me disseram para vir aqui. — Então ele sorri um pouco. O
sacana está gostando de me ver constrangida.
— Tudo bem. As manhãs serão lentas, mas você pode
começar organizando o material no armário. — Qualquer coisa para
mantê-lo fora do meu espaço pessoal. Duvido que ele entenda o
significado de espaço pessoal.
Seu sorriso se alarga apenas uma fração e sou grata pelos
guardas que alternam entre a ala médica e a enfermaria.
Sem dizer mais uma palavra, volto para a papelada e faço
algumas anotações. No entanto, meu cérebro parece estar nublado
e mal me lembro do que escrevi. Continuo a ter visões das fantasias
distorcidas que imagino com Vic. Só que agora elas têm o horror
adicional do olhar caloroso do detento avaliando os resultados da
minha autodestruição.
Recomponha-se, Tessa.
A ponta da minha caneta crava no pedaço de papel, e xingo
baixinho quando ela rasga através dele e deixa marca na superfície
da mesa. Estou um caos. Suspiro mentalmente. Ah, a quem estou
tentando enganar, sempre fui um caos. A minha vida tem sido um
desastre desde o início: um pai abusivo e a mãe ausente. Nasci já
sob o efeito de drogas e abandonada. Não vi meus pais até dois
meses depois, quando os médicos acreditaram que eu estava
estável o suficiente para suportar ir para casa. O Serviço de
Proteção à Criança manteve um olhar cauteloso, claro, mas fui uma
das sortudas que acabaram deixando passar. Pelo visto, eu era boa
em ser invisível mesmo quando era bebê.
Não é supressa nenhuma Vic ter visto em mim a vítima que
nasci para ser.
— Você está bem? — escuto o detento falar após uma
eternidade.
Não sei por quanto tempo fiquei sentada encarando a folha
de papel rasgada ou do motivo de sua pergunta me encher de tanta
tristeza. No entanto, pensando bem, não sei o motivo de eu fazer
muitas das coisas que faço hoje em dia.
— Estou bem, — afirmo, satisfeita ao notar que minha
resposta sai sem tom e apática.
Vejo-me escorregando para o mesmo estado de dormência
para o qual me volto quando Vic decide se forçar entre as minhas
coxas. Como se eu estivesse vendo a minha vida de fora para
dentro, de um lugar onde nada e ninguém pode me machucar de
verdade.
— Quando terminar com o armário, as macas bem que
precisam de uma troca de lençóis, — indico as prateleiras com os
quadrados bem dobrados de um verde doentio.
Obrigo-me a voltar para os papéis que estava preenchendo,
certa de que ele fará como foi instruído se eu continuar a ignorá-lo.
O tédio da tarefa me distrai em meu estado de torpor e alguns
minutos se passam antes de eu pensar em olhar para cima para
verificar e me certificar de que ele não ignorou as minhas ordens.
Ele não se moveu um centímetro para cuidar das macas. Se
alguma coisa, está mais perto do que antes.
Com um suspiro, levanto-me e vou até a porta que leva à ala
médica para encontrar outra enfermeira para lidar com ele, mas
penso melhor. Não vou fugir desse confronto, e se vamos trabalhar
juntos, ele vai aprender a aturar uma mulher lhe dando ordens.
Com grande dificuldade, volto para a sala na qual ele
permanece, o quadril encostado na mesa onde eu estava
trabalhando.
— Do que precisa? — pergunto, olhando entre a prateleira,
as macas e ele. Quero acabar com isso o mais rápido possível e
não me importo se ele notar a minha pressa.
Ele empurra uma folha de papel para mim.
— Nós nunca terminamos no outro dia.
Um bufo de escárnio escapa de mim. Bato com a mão na
boca, assustada com a minha reação. Meu olhar arregalado se
dirige a ele, mas encontro um sorriso em vez de uma carranca. É
apenas uma pequena curva em seus lábios, porém o mais
impressionante são seus olhos. Eu estava distraída demais quando
nos conhecemos para notá-los, mas são um tom de verde que
nunca vi antes. Tão brilhantes que parecem alterados
quimicamente.
Quando consigo desviar o olhar, percebo que ele não está
mais sorrindo. E eu estou olhando fixo para ele. Minha boca se
aperta em uma linha enquanto pego o papel de sua mão antes de
virar as costas para ele e me mover em direção a minha mesa.
Nossa curta história já me ensinou que o melhor seria manter a
distância em todos os momentos.
Com um tom profissional, passo depressa pelas perguntas,
na esperança de concluir rápido a entrevista. Não cometo o erro de
erguer o olhar de novo, e depois de um quarto de hora, finalizo sem
incidentes e devolvo o papel para ele.
— Isto era tudo? — questiono, lançando um olhar firme às
prateleiras e indicando para ele voltar ao trabalho.
Mas o detento apenas se aproxima da cadeira de madeira
desconfortável e apoia os cotovelos na borda da mesa. Ele se move
e desvia o olhar para os meus pulsos, como se me lembrasse do
que causou a tensão e a tão delicada compreensão em primeiro
lugar. Ele é uma cobra à espera do bote, prestes a fazer perguntas
as quais não quero responder. Então, puxo minhas mãos para trás e
as coloco sobre as coxas, onde ele não pode inspecioná-las.
Permaneça profissional, Tessa, lembro a mim mesma,
enquanto imagino azulejos manchados de sangue e dor abrasadora,
o sexo mecânico e grunhidos laboriosos. Se terei que o aturar, seria
um erro deixá-lo cruzar mais limites.
Aqueles olhos voltam para os meus, ele inclina a cabeça
para o lado e percebo quanto essa seria uma tentativa fútil. Pelo
visto, este homem tem a missão de cruzar todos os limites.
— Tenho trabalho a fazer, se estiver tudo bem para você.
Seus olhos se estreitam e eu cravo minhas unhas nas
palmas das mãos diante do semblante feroz em seu rosto.
— O seu homem gosta de fazer isso com você? — pergunta,
dando um aceno de cabeça para indicar o meu rosto e as contusões
que não devo ter coberto direito.
— Isso não é da sua conta. — Levanto-me para colocar
alguma distância entre nós. Um olhar desamparado através da
pequena janela que dá para a área central da ala médica, mostra as
enfermeiras em meio a uma discussão ou atendendo pacientes. Não
quero chamar muita atenção para nós dois. Se eu fizer isso, a
notícia, com certeza, vai chegar até Vic, mas também quero que ele
vá embora logo. Encurralada. Presa. Um olhar em sua direção
mostra que ele sabe como me sinto e se deleita com isso.
Mantenho um olho nele e o outro nas enfermeiras, na
esperança de poder afastá-lo assim que elas prestarem um pingo de
atenção em nós dois. Segundos passam como horas e, mesmo que
eu esteja gritando comigo mesma para fazer o contrário, não me
movo quando ele se levanta e dá a volta até estar bem ao meu lado.
Está tão perto a ponto de eu poder sentir o cheiro do sabão que ele
deve ter usado no chuveiro.
Não é uma fragrância complexa, não é como o perfume caro
que meu marido coloca, como se fosse sua missão se banhar nele.
Neste homem grande e perigoso, o cheiro é indescritível. O aroma
esconde segredos. Segredos que o meu nariz quer investigar.
Quero procurar todas as cavidades onde se escondem e catalogá-
los. Descobrir todo e qualquer esconderijo, saquear e mapear até
que não haja mais lugares inexplorados.
— E se eu disser que estou fazendo com que seja da minha
conta? — murmura. O pano áspero de seu macacão farfalha
enquanto ele levanta as mãos para traçar os hematomas
sombreados na elevação da minha bochecha.
Um choque me atravessa como um mergulho num rio
gelado, seguido por uma explosão de vergonha. Coloco distância
entre nós e cruzo os braços sobre o peito.
— Então você estaria perdendo o seu tempo.
Aqueles olhos verdes me estudam como se soubessem com
exatidão o que eu estava pensando apenas alguns segundos antes.
Os nervos clamam dentro de mim e eu rezo em silêncio por um
motim, uma onda de vírus estomacais, uma maldita epidemia,
qualquer coisa para distrair o foco desse homem.
— Não acho que estaria.
— Veja, senhor… — Lembro-me de que sequer sei o nome
dele e solto um suspiro, irritada tanto comigo quanto com ele. —
Veja bem. O que faço na minha vida pessoal não é da sua conta.
Agora, se me der licença, nós dois temos trabalho a fazer.
— Uma mulher como você… — sua voz profunda e sombria
me segue mesmo enquanto passo por ele para voltar à minha
papelada. — Não merece ser tratada dessa maneira.
Dou a volta para encará-lo.
— Você nem me conhece. — Não que isso importe. Não que
eu algum dia fosse escapar da prisão que eu mesma criei. O ridículo
da situação é evidente. Afinal, ele é um detento, um criminoso.
A expressão dele se torna predatória.
— E se eu dissesse que quero te conhecer?
Eu não o dignifico com uma resposta. É óbvio que ele é o
tipo de cara que gosta do jogo de gato e rato, prendendo suas
presas e vendo-as sofrer. Já tenho um homem autoritário na minha
vida, não preciso de outro.
Diante do meu silêncio, ele diz:
— Vamos lá, Tessa. O que você tem a perder? Não é como
se eu pudesse fazer nada enquanto estou aqui. Há guardas na outra
sala, além disso, vamos trabalhar juntos. Não vamos tornar isso
mais estranho do que precisa ser.
— Não há nada de estranho. Só precisamos trabalhar e isso
é tudo. Não vejo qualquer motivo para nos conhecermos. — Apesar
da minha curiosidade agonizante, sei que é do meu próprio
interesse manter o profissionalismo na vanguarda das nossas
interações.
— Tudo bem, sendo assim, deixo você me conhecer. Pode
me perguntar o que quiser saber. — Ele sorri. — Sou um livro
aberto.
— Duvido muito disso. — Sufoco o meu sorriso, virando-me
para ele não poder perceber.
— Você sabe que quer… — diz por cima do meu ombro. Ele
tem razão, talvez eu queira mais do que deveria. Mais do que é
considerado profissional. Na verdade, com toda certeza os meus
interesses não são nem um pouco profissionais.
— Vou ceder, mas apenas para podermos voltar ao trabalho.
— Se você diz, — ouço o sorriso em suas palavras. — Pode
mandar.
Considero minhas opções enquanto classifico os prontuários
dos pacientes que já organizei. Posso perguntar o nome dele, mas
não sei se quero saber. De alguma forma, sinto que saber vai torná-
lo muito real, muito poderoso. Isso também vale para qualquer crime
cometido por ele para colocá-lo na prisão em primeiro lugar.
Assassinato, estupro, agressão, roubo… nenhuma das respostas
leva a nada de bom. Muitas coisas na minha vida são complicadas
demais, e essa conexão com ele é fácil. Mesmo sabendo que é
errado, quero que continue assim. Pelo menos, por agora.
— De onde você é? — a pergunta parece segura o
suficiente.
— Essa é muito fácil, mas vou responder. Nasci na Geórgia.
— Seu sorriso é doce como sacarina enquanto seu sotaque se
aprofunda. — Um bom e tradicional garoto sulista, só que sem as
boas maneiras.
— Óbvio.
— E quanto a você? — pergunta, enquanto enfim começa a
tirar os lençóis de uma das macas.
— Sempre morei aqui.
Ele despeja os lençóis sujos em um cesto, em seguida, pega
um novo conjunto da prateleira.
— Verdade?
— Sim, verdade.
— Ao menos você faz ideia de que há um hemisfério inteiro
onde tem sol, certo?
— Sol? — digo com uma risada. — O que é isso?
Nossos olhos se encontram e meu coração dispara em meu
peito. Volto a me concentrar nos arquivos, o zumbido rítmico do ar-
condicionado e o barulho do tecido preenchem o silêncio. Isso foi
uma péssima ideia.
— Você merece algo melhor, sabe, — ele diz após alguns
minutos.
A gaveta de arquivamento fecha com um barulho que ecoa.
— Ah, é mesmo? Você acha que me trataria melhor?
Por sorte, assim que ele está prestes a fazer minha
compostura frágil desmoronar, a porta se abre e outro paciente
entra. Os guardas que o escoltam permanecem na porta até que eu
os dispense com um aceno de cabeça. Atravesso depressa para o
lado do recém-chegado, um pouco feliz demais por sua aparição
oportuna. Este preso, cuja tarja no macacão o identifica como
Salvatore, está segurando a mão sangrando com a outra.
— Me cortei na cozinha, — ele explica.
— Vamos cuidar disso, — digo, enquanto conduzo Salvatore
a uma maca vazia, onde ele se reclina com um grunhido, o rosto
pálido. — Você fica sentado aqui e vamos dar uns pontos e fechar
essa ferida bem rápido.
Eu me viro para pegar meus suprimentos do próprio armário
que o fiz organizar, e encontro Olhos Verdes ainda esperando,
observando, exceto que, desta vez, seu foco está no paciente.
— Pode ficar à vontade para voltar ao trabalho, — digo a ele
com uma indiferença forçada.
— Sim, sra. Emerson. — Ele me entrega o kit que eu ia
pegar, olhos brilhando com o riso que ele estava contendo.
Levanto um ombro antes de pegar o kit da mão dele.
— Faça como preferir.
— É o que normalmente faço, mas vou te dizer o seguinte,
vou deixar você voltar ao seu trabalho aqui e ficarei fora do seu
caminho pelo resto do dia se você me fizer um favor.
O sorriso que dou em resposta é calmo ou, pelo menos,
espero que sim.
— O que seria?
— Me conte. Diga para mim quem te machucou e eu te
deixarei em paz, — sua voz é apenas um sussurro quando ele
pergunta, então sei que Salvatore não poderia ter ouvido.
O papel do kit de sutura amassa sob o meu aperto forte. Ele
está muito perto. Não de maneira física. Não é seu corpo que está
invadindo o meu espaço pessoal nesse momento. Ele está próximo
demais de uma maneira emocional, psicológica. Esses olhos verdes
servem para mais coisas do que apenas decorar o seu rosto. Algo
me diz que ele enxerga muito além do que me deixa confortável de
compartilhar.
— Por que isso é tão importante para você?
Ele se inclina contra o batente da porta.
— Você está evitando responder à pergunta. Quer me
manter aqui por mais tempo? — Sua sobrancelha se ergue em
questionamento.
Minha garganta se move enquanto engulo em seco, pois eu
estava certa. Ele consegue me ler muito bem. Sabe que não quero
responder à pergunta. Não só por ter medo do que significará se eu
fizer isso, mas porque não importaria se eu gritasse meus
problemas dos telhados. Não há uma pessoa na minha vida que se
importe com o que acontece comigo. Nem uma sequer. Estou
cercada por centenas de pessoas que deveriam defender a lei, mas
acabam deixando Vic se safar de tudo o que faz comigo. Isso não é
algo fadado a mudar. Então percebo como Vic ficaria chateado se
eu dissesse a este homem o que ele faz comigo. Além disso,
importa mesmo se esse detento sem nome souber? Ele acabará
fazendo alguma merda e sendo transferido de qualquer jeito. Depois
disso, nunca mais precisarei vê-lo. Esta é a minha única
oportunidade de contar, de estender a mão e me conectar com
alguém. Estou isolada há tanto tempo que estou quase vibrando
com a necessidade de receber uma atenção positiva de alguém,
qualquer um, mesmo sendo da última pessoa na terra com quem eu
deveria querer fazer isso.
— Meu marido, — sussurro, depois volto para tratar o meu
paciente que estava esperando.
O som do meu batimento cardíaco enche meus ouvidos
enquanto desembrulho com cuidado o material de sutura e me
preparo para dar pontos na ferida de Salvatore. Não deveria ter
contado a ele. Não devia ter dado essa vantagem. Eu não deveria
tê-lo deixado pensar que poderia ter poder sobre mim de alguma
forma.
Mas foi o que fiz.
E, sem dúvida, vou sofrer as consequências.
Ele fica quieto o resto do turno. De um modo quase
assustador. Continuo o espiando enquanto ele descarta o lixo
hospitalar, troca lençóis e passa o esfregão em torno de cada
paciente, esperando-o me pressionar para obter mais informações.
Mas ele não o faz, o que só pode ser parte de qualquer que seja o
seu jogo.
Pela primeira vez na vida, é quase um alívio deixar a
enfermaria durante o meu intervalo de almoço. A fuga que o meu
trabalho me proporciona é um dos únicos aspectos da minha vida
que me traz alegria. Tê-la arruinada coloca um gosto amargo na
minha boca enquanto tento me forçar a engolir as sobras do frango
refogado com legumes que eu trouxe de casa.
Deixo os sons do refeitório dos funcionários me distrair, e
tento esquecer as quatro horas que passei lidando com o que
parecia uma granada prestes a explodir. Mais algumas semanas de
trabalho com ele e estarei tão tensa quanto a corda de um arco,
pronta para se partir à menor provocação. Sem dúvida, Vic vai
gostar de brincar comigo sobre isso.
Com meu apetite arruinado pelo pensamento, despejo os
restos na lixeira e faço o meu caminho de volta para a enfermaria.
Enquanto me aproximo, as poucas mordidas que consegui colocar
no estômago ameaçam ressurgir. Passo a língua em meus lábios
secos e me repreendo em silêncio por não ter pegado uma garrafa
de água da máquina de venda automática. Ao passar pelo corredor
para a saída, penso por um instante em pedir para não trabalhar
pelo resto do dia, para não precisar voltar e encará-lo, mas não o
faço. Estive ausente por tempo suficiente. É provável que tirar outro
dia de folga levantaria suspeitas, mesmo para mim e, com certeza,
irritaria Vic.
A ala médica está movimentada com pacientes regulares
recebendo seus medicamentos após o almoço. Aceno para uma das
enfermeiras novas, Annie, e uma veterana, Patrícia, e ambas
sorriem, mesmo que um pouco distraídas, em resposta. Seus
olhares deslizam sobre mim e minha atenção cai sobre as portas da
enfermaria. Colo um sorriso relaxado no rosto, para o caso de
alguém estar observando, e forço meus pés a me carregarem pelo
resto do caminho até a porta.
A sala está vazia.
Não me atrevo a chamá-lo, com muito medo de quebrar o
silêncio tênue. Fazer isso só admitiria que uma parte de mim quer
vê-lo outra vez, o que é ridículo. Enquanto me sento à minha mesa,
decido que quanto menos tempo passarmos juntos, melhor.
Puxo uma pilha de papelada na minha frente, minha mão
pronta para escrever, mas a ponta da caneta para, pairando logo
acima do papel de rascunho em cima do meu arquivo. Pisco várias
vezes, tentando compreender o que estou vendo. Então percebo,
impressionada, que o rosto para o qual estou olhando… é o meu.
Afasto-me da minha mesa e passo as duas mãos pelo meu cabelo,
minha respiração é irregular e pesada até mesmo para os meus
ouvidos. Meu rosto está quente e as pontas dos meus dedos estão
dormentes.
Esfrego os olhos com os nós dos dedos, mas não há como
confundir o desenho com traçados primorosos à minha frente. Deve
ter sido feito hoje, pois meu cabelo está com o mesmo tipo de trança
e estou trabalhando em Salvatore, cuja imagem é apenas uma
sombra na minha frente, minha expressão é da mais silenciosa
concentração.
Quando ele fez isto? Eu o mantive ocupado para que ele não
tivesse tempo de fazer mais perguntas. Deve ter sido após eu ter
saído para almoçar.
No desenho, pareço quase bonita. Serena. É isso que ele vê
quando olha para mim? No canto inferior, em um rabisco masculino
apressado há uma palavra: King.
Não sei como responder a isso ou o que fazer com esta
informação, então dobro o desenho com cuidado em um pequeno
retângulo e o coloco no meu bolso. Não cheguei a me tornar tão
indiferente a ponto de não reconhecer a onda de ternura que senti
ao me dar conta de que ele prestou tanta atenção assim em mim,
mas essa é uma emoção perigosa. Então, escondo esses
sentimentos junto ao desenho para examiná-los quando não mais
parecerem tão à flor da pele.
Há uma batida à porta e eu me viro com o coração na
garganta. Mas ele volta ao lugar quando percebo que é só Annie.
— Tenho um para você! — ela diz de modo alegre, alheia do
meu tumulto interior.
— Obrigada, — respondo e levo o detento, que está
gemendo, até uma maca.
O próximo preso designado para trabalhar na enfermaria
chega logo depois disso, e não sei se estou aliviada ou desapontada
quando não é King.

Acontece que Vic não colocou King na enfermaria para me


torturar. Quem quer que tivesse designado King para a enfermaria
era poderoso ou bem relacionado. Vic se queixou sobre isso por
dias, e faz o seu melhor queixando-se com os punhos. Como diretor
de Blackthorne, ele gostava de controlar seu pequeno reino até o
mínimo detalhe. Quando não consegue o que quer, sou eu quem
paga. Desta vez, ele teve o cuidado de não me marcar onde
qualquer um pudesse ver. Mas não foi capaz de me machucar onde
importava de verdade. Com a promessa constante de ver King outra
vez, havia uma chama brilhante de esperança dentro de mim que
nem mesmo a dor infligida por Vic seria capaz de diminuir.
Ainda assim, a cada dia que eu trabalhava com King na
enfermaria, havia um silêncio pesado entre nós. Uma semana
depois, a gripe se espalhou em um dos blocos, deixando pouco
tempo para eu perceber a tensão. Após ver o esboço e saber como
ele me via, o desejo de deixá-lo chegar um pouco mais perto foi
quase mais forte do que minha autopreservação. É uma batalha
constante para manter minha boca fechada e nossas conversas
curtas apenas no ambiente do trabalho.
As queixas incessantes de Vic, as provocações e os
espancamentos também não ajudam. Posso sentir que estou me
desfazendo a cada dia que passa e, com certeza, minha aparência
demonstra isso. As manchas sob meus olhos por falta de sono
fazem a minha pele morena parecer macilenta e enrugada sob a
iluminação fluorescente. Não tenho sido capaz de comer muita
comida nas últimas duas semanas, e isso fez minhas maçãs do
rosto ficarem mais salientes e meus olhos afundados. Diabos, até as
minhas roupas ficam penduradas no meu corpo em vez de abraçar
as minhas curvas. Estou desaparecendo bem diante dos meus
olhos e se eu não fizer algo em breve para me salvar, não haverá
mais nada.
— Por que você fica? — King me pergunta um dia.
Eu me viro devagar, tomando cuidado com as minhas
costelas.
— Fico onde? — pergunto, embora ambos saibamos do que
ele está falando. Eu sabia, ele estava só aguardando para poder
cutucar todos os meus pontos fracos. Eu deveria ter adivinhado que
ele escolheria um momento no qual eu me sentisse mais vulnerável.
Meus olhos vão para a porta, porém, pela primeira vez desde
que a gripe estourou, não há pacientes. Nunca pensei que sentiria
falta do caos de homens adultos vomitando e reclamando como
crianças sobre ondas de calor e frio. Agora, há uma sensação
melancólica, quase suave no ar. Se eu não estivesse encalhada
com a personificação da tentação, teria classificado esse como um
bom dia.
Ele me lança um olhar que diz para falar sério, e eu quase
sorrio.
O calor se desenrola dentro de mim em lugares há muito
congelados.
— Tenho medo do que ele poderia fazer comigo se eu
partisse. — Eu não deveria estar surpresa com a minha própria
admissão, mas estou.
Ele abre as pernas e estala os dedos ao lado do corpo. Seus
olhos verdes se tornam duros e cruéis. Não sei o motivo de ele estar
preso, mas não me surpreenderia se sua ficha contivesse uma
longa lista de crimes violentos.
— Devia se preocupar mais com o que ele está fazendo com
você agora. — Uma veia pulsa em sua têmpora, sua mandíbula
flexiona enquanto ele range os dentes para evitar dizer mais do que
já disse.
Minhas próprias costas se enrijecessem diante da acusação
dele, os sentimentos quentes e confusos desaparecem.
— Consigo me virar muito bem.
Eu tinha esquecido quão rápido ele se move e, um segundo
depois, está a centímetros de distância, tão perto que posso ver a
pulsação em sua garganta. Minhas mãos se erguem por instinto e
eu juro que ele se joga para a frente só para eu ser forçada a
colocar as palmas das mãos contra o seu peito. Ele é tão diferente
de Vic que é um choque para o meu sistema ter o seu corpo
tocando o meu. Não toquei em outro homem desde Vic, apesar das
suas constantes acusações de infidelidade, e fazer isso me leva a
soltar um gritinho e virar a cabeça. Eu o empurro, mas é como tentar
mover uma pedra. Ele não se mexe.
A minha boca se abre para protestar, mas logo em seguida,
suas mãos sondam as minhas costelas. A dor aguda dos golpes que
Vic desferiu em mim me faz morder o lábio. Vergonha torna a minha
cabeça pesada e traz o meu olhar para os meus pés.
Só quando ele abaixa as mãos e me dá algum espaço que
consigo olhar para cima.
Ele me dá um olhar demorado e severo.
— Foi o que pensei.
— Quem é você para me julgar? — pergunto, quando
consigo recuperar o fôlego. Mesmo assim, minha voz é pouco mais
do que um suspiro ofegante e sem o menor sinal do meu sarcasmo
habitual.
Sua voz se aprofunda e, embora pareça impossível, ele se
torna ainda mais imponente.
— Sou alguém que sabe muito bem que não se deve bater
em uma mulher.
As minhas suspeitas sobre o porquê de ele estar na prisão
se solidificam. Este é um homem capaz de coisas muito cruéis. Isso
devia me assustar, mas não assusta. Há algo sobre a maneira
evidente como ele exibe sua dominância que é quase reconfortante.
Ele não tenta esconder quem é.
Quando namorei Vic, ele tentou ser exatamente o que eu
queria que fosse. Carinhoso, subserviente e gentil. Não tenho essas
ilusões com King. O que vejo é o que recebo. Só não sei se isso é
uma coisa boa ou não.
Reviro os olhos para o pensamento e gesticulo com a mão
que não está segurando as minhas costelas.
— Você ao menos sabe onde está? Você está na prisão. O
que deixa bem claro que não é nenhum cidadão íntegro.
— Nunca afirmei ser íntegro, ratinha.
Bem, se isso não é a confirmação da minha avaliação, não
sei o que é. Olho para a janela e vejo que a ala médica está tão
vazia quanto a enfermaria e franzo a testa quando me viro para ele.
— Por que se importa?
Ele se aproxima mais uma vez e eu endureço, sem saber
como meu próprio corpo reagirá à proximidade dele.
— Talvez eu saiba pelo que você está passando.
Considero essa afirmação insondável e quase
escarnecedora. Quase. Há algo sobre a maneira como ele disse
isso que me faz pausar. A mulher lá dentro que sofreu inúmeras
agressões reconhece uma alma semelhante.
Sem perceber, dou um passo à frente.
— Como assim?
Os olhos dele encontram os meus e ele ergue um ombro. Se
ele fosse um tigre, agora estaria ferido e irritado em mostrar isso.
Não tenho dúvidas de que, se tentasse me aproximar, ele me
enxotaria como se eu fosse uma mosca desagradável.
— O meu pai costumava bater na minha mãe e em mim. —
Ele se aproxima um pouco mais. Seu olhar nunca se afastando do
meu. — Estou surpreso que mais pessoas não tenham visto. Mas
talvez seja preciso passar por isso para saber com certeza.
Reconheço os sinais. Pode ter sido há muito tempo, mas é algo que
nunca esquecerei. A maneira como você tenta parecer menor e
como parece andar como se todos os ossos do seu corpo
estivessem quebrados.
Estremeço, olho para as minhas mãos e tento ignorar a
queimação das lágrimas e o formigamento na parte de trás da
garganta.
— Não devíamos estar falando sobre isso. — Eu me viro e
olho em volta sem de fato ver nada. — Vamos, uhm, devemos voltar
ao trabalho.
— Não cometa o mesmo erro da minha mãe, — diz,
enquanto passo por ele.
Eu me acomodo atrás da mesa e ele me observa por mais
um momento antes de ir fazer suas tarefas matinais. Minha
respiração alivia, e uso a tarefa entorpecente de preencher
prontuários de pacientes para manter minhas mãos ocupadas, mas
não consigo parar de pensar no que ele disse. Minha percepção de
sua presença já era alta. Agora, sinto cada movimento de King com
todo o meu corpo.
Uma vez que os pacientes começam a chegar, perco a
noção dele, enquanto cuido dos feridos e doentes, mas sei que ele
nunca está longe de mim. Depois do almoço, volto para a
enfermaria com uma nova sensação de anseio. Estou quase
passando correndo por Annie e Patrícia na ala médica, na
esperança de poder encontrá-lo antes que ele encerre os trabalhos
do dia. Ele não está lá, mas há outro desenho na minha mesa.
Esfrego os dedos no meu uniforme para não borrar a tinta e
eles ficam tudo menos firmes enquanto pego o pedaço de papel.
Desta vez, ele me desenhou olhando para as minhas mãos, como
eu estava fazendo durante a nossa conversa, as mechas de cabelo
caídas sobre o meu rosto, bloqueando a minha expressão. Estou
vulnerável e triste como na última imagem que ele desenhou, mas
há força na linha firme dos meus lábios e nos meus ombros eretos.
Nunca me considerei uma pessoa forte. Se fosse, não teria
sido vítima das maquinações de Vic. Eu as teria visto pelas
promessas vazias que eram. Ao estudar o desenho de mim mesma,
começo a pensar que talvez eu possa ser a mulher que ele vê em
mim, assim como um osso quebrado fica mais forte quando se cura.
Dobro com cuidado o desenho e o coloco no bolso. Ao fazê-
lo, algo muito mais poderoso se enraíza dentro de mim e, enquanto
sigo com meu trabalho, algo pulsa logo abaixo da superfície, uma
escuridão borbulhante muito parecida com o homem que a inspirou.
A conexão e tentação que sinto sempre que King está por
perto só continua a crescer quanto mais trabalhamos juntos. Minha
coleção de esboços aumenta de dois para três e está avançando
para dez. Ele desenha cenas mundanas à primeira vista, momentos
que nem percebo que aconteceram e os transforma em magia. Ele
me transforma em magia.
Os desenhos se tornaram, de modo secreto, o momento
mais esperado do meu dia. Estou ficando aos poucos viciada
neles… e nele.
Se eu achava que estava em uma situação ruim antes, não é
nada comparado ao tumulto de emoções nas quais navego agora.
Eu me sirvo de uma xícara de café, com cuidado para não
estender muito o braço ou me mover rápido e acabar machucando
mais as minhas costelas. Vic não faz sexo há algumas semanas, o
que no início era algo bom, mas agora seu temperamento está mais
explosivo e os punhos balançam com mais força. Mal me curei da
última vez. Quando ele entra na cozinha atrás de mim, coloco minha
xícara de café com cuidado no balcão. Levantei-me antes dele
porque não consigo parar de imaginar o que faria com ele se tivesse
coragem. As fantasias se tornaram tão vívidas que começaram a
penetrar meus sonhos. Acordei de um deles com a minha pele
formigando e saí depressa da cama como se estivesse cheia de
insetos em cima de mim.
Seus braços passam pela minha cintura e eu engulo em
seco, tentando não recuar.
— Bom dia, — diz, sua boca contra a pele da minha nuca.
— Bom dia, — eu o imito, minha voz desprovida de qualquer
inflexão ou emoção.
— Senti a sua falta quando acordei. — Tomo um gole
estratégico de café em vez de dar uma resposta e suas mãos
apertam o balcão da cozinha de cada lado de mim. — Venha para a
cama comigo, — chama e, desta vez, não consigo me impedir de
me encolher. Fecho os olhos e desejo que meu coração se acalme
enquanto espero o golpe nas costelas ou o punho dele no cabelo,
puxando-me para trás.
Quando ele se afasta, esperando que eu o siga, não consigo
fazer o mesmo. Penso na mulher nos desenhos que guardei em
uma caixa de absorvente interno debaixo da pia do banheiro. Aquela
mulher não pode continuar assim. Se esta relação não me custar a
vida, será pelo menos a morte do que resta do meu espírito.
Em vez de o seguir, viro-me com um sorriso frágil e forçado.
— Até iria, mas se formos para a cama, ambos sabemos que
ficaremos lá por um tempo e não quero que você se atrase para o
trabalho.
Ele vem para cima de mim. Ao contrário de King, quando Vic
se aproxima, tudo o que quero é ficar o mais longe possível. Ele me
puxa para um abraço e pousa a boca na curva suave do meu
pescoço.
— Vamos, podemos ser rápidos, — diz. Não me deixo
enganar pelo seu tom de bajulação. Sei que se eu continuar a
recusar pode ficar feio, mas não consigo me submeter.
Engulo o gosto amargo do meu desgosto para a minha
resposta soar sedutora.
— Você não quer fazer rápido depois de todo esse tempo,
não é? Quando voltarmos para casa do trabalho, podemos fazer
com calma. E do jeito que você quiser, — acrescento, os dedos dos
pés contraídos nos sapatos com o pensamento.
Há uma longa pausa enquanto ele considera meu pedido
antes de se afastar. Meu quadril apoiado no balcão é a única coisa
me impedindo de ceder de alívio. Enquanto ele observa, pego minha
xícara de café e tomo um gole para disfarçar o nervosismo.
— Pensei que podíamos ter…
Seu punho me pega no estômago, a xícara de café cai da
minha mão e se estilhaça logo antes de eu desabar no chão,
cortando meus joelhos nos cacos. Meu peito arde com a falta de
oxigênio e eu seguro uma mão na frente do meu rosto, que ele
afasta com um tapa. Ouço o barulho metálico da fivela de seu cinto
se abrindo, e vergonha, raiva e ódio lutam pelo domínio dentro de
mim.
— Vic, por favor, — minha voz estremece em torno do meu
chiado. Sinto gosto de sal nos lábios. Nem notei que estava
chorando.
Então seu pau está para fora, o almíscar atinge o meu nariz
e me dá ânsia de vômito.
— Cala a porra da boca e me chupa.
Não é um pedido, ele não permite nem sequer um segundo
para eu me opor. No próximo suspiro, a cabeça do pau dele passa
pelos meus lábios e banha minha língua com o gosto salgado de
sua pré-ejaculação. Não há chance de revidar, não quando meu
foco é respirar e tentar não entrar em pânico. Faço sons
aterrorizados em torno de suas investidas brutais, mas isso só
parece excitá-lo mais. Lágrimas vazam do canto dos meus olhos
enquanto ele enfia tão fundo que parece impossível.
— Tome, — diz, enquanto joga sua cabeça para trás.
Minhas mãos cravam em suas coxas enquanto a força de
seus golpes ameaça me jogar contra os armários. Tento afastá-lo
quando minha visão escurece, mas ele apenas enfia os dedos no
meu cabelo para me segurar no lugar e empurra com mais força, a
cabeça de seu pau batendo na parte de trás da minha garganta e
desencadeando meu reflexo de vômito.
— Siiiiim, — sibila acima de mim, animado com a minha luta,
enquanto engasgo ao redor dele. Por um instante, penso em mordê-
lo, mas tenho medo de que isso só o enfureça mais.
Ele nem se importa quando minha ânsia vem tão forte que
bile e saliva vazam por todos os cantos disponíveis da minha boca.
O meu nariz arde, minha garganta e pulmões gritam por socorro,
mas não há nada que possa me salvar. No final, apenas posso
torcer para ele terminar o mais rápido possível. Ele não dura muito
tempo, e quando sinto seus impulsos encurtarem e ouço seus
gemidos aumentarem, aproveito seu aperto frouxo e me afasto
antes que ele possa ejacular em minha boca.
O sêmen jorra para o chão, fazendo sons molhados doentios.
Isso o desagrada. Sem dúvida, o final menos do que estelar acabou
com qualquer prazer que ele teve ao me forçar a me curvar à sua
vontade. Enquanto sua mente batalha entre decepção e frustração,
eu me levanto e me afasto, tentando ao máximo recuperar o fôlego.
É tudo o que posso fazer para não vomitar na pia. Meu corpo inteiro
está tremendo tanto que quase vomito, apesar dos meus esforços
para conter.
Atrás de mim, posso ouvir Vic se vestir, e cada farfalhar de
movimento envia uma pontada de medo, ansiedade e raiva por todo
o meu corpo. Não sei se quero cair no chão e soluçar, correr e me
esconder, ou arrancar os olhos dele com as minhas próprias mãos.
Decido por um meio-termo e não faço nada, mesmo com a minha
mente disparando com variações de todos os três. Quando ele está
vestido, coloca a mão em meu quadril, ignorando o fato de eu me
encolher, e beija minha bochecha ainda úmida. Ele admira a
desolação na minha expressão por um momento antes de sorrir e
sair, cantarolando para si.
Quando olho para cima de novo, percebo que estou atrasada
para o trabalho. Até demais. Solto um gemido esganiçado e, na
minha pressa, deslizo sobre os restos da xícara de café caída.
Xingando, fico de quatro e junto os pedaços com um pano de
cozinha. Lágrimas escorrem das minhas bochechas e se misturam
ao café derramado. Jogo os cacos da xícara no lixo, com pano e
tudo, e começo a me preparar para ir ao trabalho.

Pela primeira vez, desde que King e eu tivemos uma


conversa franca sobre o abuso do pai dele, não quero ter que
trabalhar com ele. Não suporto a ideia de ele ver os restos das
minhas emoções, ver o desalento em meu rosto, causados pela
“atenção” matinal de Vic. Não quero ouvi-lo dizer “te avisei”.
Eu o flagro olhando para mim muitas vezes, tentando me
entender. Ele nem sequer é discreto quanto a isso. Cada vez que
termina uma tarefa e se aproxima para receber outra, posso sentir
seu olhar como um peso em cima de mim, exceto que tem o efeito
oposto, elevando meu espírito de qualquer miséria terrível que me
espera em casa. No entanto, nenhuma quantidade de olhares
acalorados ou gestos de paquera me tirará do poço do desespero
que ameaça me devorar.
Apesar da minha resolução de ficar longe, trabalhar com ele
se tornou o ponto alto dos meus dias. Isso me energiza da mesma
forma que um raio. Uma rajada de luz na escuridão. Eletrizante de
uma forma perigosa que sei muito bem que se eu chegar perto
demais, vou acabar queimada. O fato é que ele é a única pessoa na
minha vida miserável que já perguntou sobre os hematomas nos
meus braços ou rosto.
Não tenho família, ao menos não com quem conversar. Vic
não me permite ter amigos e as pessoas no trabalho estão muito
envolvidas nelas mesmas para prestar atenção. Estou isolada por
completo.
Provável ser assim mesmo que Vic me quer.
Depois de dois anos sob seu governo totalitário, a
preocupação de outra pessoa, até mesmo alguém como King, é
como um raio de sol bem-vindo no meio de um inverno estéril. Sou
uma flor que se vira na direção dele para mais um vislumbre de luz,
florescendo a cada centelha de atenção que ele me dá. É patético, e
eu me odeio por cada tremor no meu estômago e cada aceleração
do meu coração quando noto sua presença pelo canto do meu olho.
Mas hoje, depois do que Vic me sujeitou, não quero a
atenção dele. Quero voltar a me esconder como costumava fazer.
Invisibilidade me ajudou a mascarar com torpor e King me faz sentir
coisas demais. Ele me dá esperança, e às vezes a esperança faz
uma situação de desalento parecer ainda pior.
Ernie olha feio para mim enquanto entrego meu crachá.
— Alguém está muito atrasada.
Quando não respondo, o sorriso dele vacila e ele gagueja,
balançando minha identificação enquanto a devolve. Sem dizer uma
palavra, acelero o carro e atravesso o portão, incapaz de repetir
nossas interações diárias mais uma vez sem desmoronar.
— Está tudo bem? — Annie pergunta. Olho em volta,
esperando que outra pessoa esteja ao meu redor, mas não há
ninguém.
Pigarreio e sorrio hesitante.
— Tudo bem. Estou bem. Apenas me atrasei um pouco.
— Foi um péssimo dia para se atrasar, — Annie diz com um
sorriso.
Um alerta dispara através do meu corpo, mas o seu
progresso é lento.
— Por quê? O que aconteceu?
— Sabe como é. Alguém decidiu começar um motim no
refeitório durante o café da manhã. Já há um à sua espera para ser
remendado na enfermaria. Boa sorte! — Annie grita, enquanto me
apresso até a porta.
— Sinto muito pelo atraso… — meu pedido de desculpas
morre em minha garganta.
Assim como a primeira vez que o vi, King está sentado na
maca coberto de sangue. Só que desta vez, está sem camisa e há
manchas marrom-ferrugem ao longo do seu peito. Sombras roxas
escuras cobrem sua mandíbula e costelas. Mesmo que eu não o
tenha examinado, posso dizer pela maneira como ele respira que
está com dor. Pensamentos dos meus traumas recentes
desaparecem por trás da minha preocupação.
Não quero sentir nada, na minha vida é sempre mais fácil
manter um senso estrito de apatia quanto a tudo, mas quando ele
ergue o olhar, seu rosto tão quebrado e machucado quanto minhas
entranhas se sentem, o fio de familiaridade que nos conecta se
fortalece. Somos dois lados da mesma moeda fodida, quer eu goste
ou não.
— Bom dia, Tessa, — ele diz ao me ver na porta. O uso do
meu nome quase me distrai de seus ferimentos. Quase.
— O que diabos você fez? — pergunto, enquanto me
aproximo da maca em que ele está sentado.
Ele ri, mas o som termina em um chiado. Eu tinha razão. Ele
está com dor.
— Você acreditaria em mim se eu dissesse que não foi culpa
minha?
Atravesso a sala até dele.
— Nem um pouco.
Ele cospe sangue, mas estou preocupada demais com suas
costelas para recuar enquanto o líquido respinga no chão de
azulejos. Meus olhos se estreitam na mancha de sangue e minha
mente volta para aquela noite há algumas semanas. Levei muito
tempo para tirar o sangue do rejunte da minha cozinha. Alguém vai
ter um serviço de merda quando eu terminar de fazer curativos nele.
— Bem, eu estaria mentindo de qualquer maneira. — Desta
vez, quando ele ri, é sem humor. — A verdadeira questão aqui é: o
que aconteceu com você?
Um pequeno suspiro me escapa, como se houvesse uma
pressão se acumulando logo abaixo da superfície de todos os
segredos e mentiras.
— Vamos nos preocupar primeiro com você.
Ele se submete aos meus exames, mas posso o sentir
fazendo sua própria avaliação de mim. É inútil tentar forçar a minha
expressão a ficar neutra. Já sei que ele pode, de alguma forma,
entender tudo o que estou pensando.
— Parece que levou uma bela surra.
— Você devia ver o outro cara.
Minhas mãos enluvadas inclinam sua cabeça para examinar
um corte ao longo da têmpora.
— Tenho certeza de que o verei aqui mais cedo ou mais
tarde.
As mãos dele cobrem as minhas e eu fico quieta.
— Você vai se esquivar da pergunta para sempre? Pensei
que já tínhamos passado desse ponto.
Tento afastar as mãos, mas ele as mantém firmes em seu
rosto. Seus olhos se fecham por um instante e ele acaricia a própria
pele com as minhas mãos. Da forma como estamos posicionados,
estou quase entre as pernas abertas dele. Se alguém olhasse,
apenas veriam uma enfermeira examinando um paciente, mas ele e
eu sabemos que é muito mais.
— Não quero falar sobre isso, — sussurro.
— Acho que você precisa. — Uma lágrima escorre por minha
bochecha e uma de suas mãos deixa a minha para enxugá-la. —
Me conte. — Quando não respondo, ele diz: — Por que não
adivinho, então?
Aperto os lábios e faço que sim com a cabeça, fungando.
— Ele te bateu? — pergunta, e eu finjo indiferença. Sua mão
cai para o meu ombro antes de deslizar pelo meu braço até
descansar na minha cintura, onde aperta. — Ele te machucou outra
vez?
Incapaz de olhar para ele por mais tempo, afasto minhas
mãos de seu rosto e tiro lenços antibacterianos do meu kit para
desinfetar o corte em sua têmpora enquanto ele fala.
King inclina meu queixo para cima e repete a pergunta.
— O que você acha? — De jeito nenhum vou me submeter à
humilhação de contar o que aconteceu essa manhã a alguém, muito
menos a ele. Distraída, pressiono forte demais com o lenço
antibacteriano, o que o faz grunhir. — Desculpe, — peço de forma
distraída.
— Você não me disse que ele era o diretor, ratinha.
— Você parece pensar que tudo sobre mim é da sua conta,
— comento em vez de responder. — Pensei que já soubesse.
Pego mais lenços antibacterianos e começo a limpar o
sangue em sua pele. Há cortes finos e cruéis ao longo do peito e
abdômen. Nada sério, mas são uma confusão horrível e devem doer
pra caramba. As contusões nas costelas vão dificultar a respiração
nos próximos dias, mas não vejo nada que seja grave. Digo isso a
ele quando finalizo de inspecionar os ferimentos.
Ele não me questiona sobre seus ferimentos, optando por
continuar a bisbilhotar.
— Você parece acreditar que não é da minha conta.
— Provavelmente porque não sou. Não sei o que te faz
pensar que tem o direito de interferir, mas não preciso ser salva.
Não preciso de nada vindo de você.
— É aí que você se engana. Acho que sou exatamente o que
você precisa.
Não falo por alguns minutos, sem saber até onde ele quer
chegar com isso. Foi estúpido da minha parte desfrutar desses
longos olhares para ele. Ou admitir qualquer coisa sobre a minha
vida pessoal. Eu sabia que pagaria por isso em algum momento e
essa nova familiaridade com ele deve ser o preço.
— Como você pode ser o que preciso quando nem sei o seu
nome? — digo de repente, enquanto aplico creme anestésico nas
contusões.
Ele se reclina enquanto faço isso, como se gostasse do meu
toque, e sorri para mim. Os cantos de seus olhos se enrugam e eu
me pergunto quantos anos ele tem. Idade suficiente para ter tomado
uma decisão bem ruim que o levou à prisão como convidado VIP,
cortesia do governo dos Estados Unidos.
Contudo, pensando bem, tenho apenas 27 anos e fiz um
trabalho incrível ao foder a minha própria vida, então o que eu sei?
Meu coração dispara dentro dos limites das minhas costelas
quando ele diz:
— Isso é você me perguntando o meu nome, querida?
Minhas mãos flexionam sobre sua pele, mas King está tão
atento à minha resposta que não percebe ou não se importa. Sob o
meu toque, ele se transforma em granito e uma parte de mim quer
voltar no tempo e não ter dito nada, mas não posso.
— O que foi? — pergunto, e espero que ele esqueça o que
eu disse e mude de assunto. — Machuquei você?
Ele quebra o contato visual e olha para baixo, para onde as
minhas mãos estão tocando sua pele. No momento em que seus
olhos pousam onde nossos corpos se conectam, isso me faz querer
baixar as mãos. É surpreendente quão perto ele sempre consegue
chegar de mim assim que me deixo levar pela minha curiosidade, ou
minha estupidez.
— Seria preciso mais do que isso para me machucar, ratinha.
Sinto as palavras dele como se fossem segredos obscuros.
Elas se desenrolam dentro de mim, uma mistura líquida de prazer e
vergonha, uma combinação inebriante, convidando-me a pedir mais.
Ele é um desejo do qual não consigo me livrar. Uma doença que se
espalhou aos poucos em meu corpo. Minha cabeça me diz que devo
ir embora, mas meu coração ganancioso implora por mais de sua
atenção ilícita.
— Ratinha? — Mantenho o foco nos meus dedos. Caso
contrário, eles vão trair os meus nervos. Espalho o creme
antibacteriano sobre sua pele e percebo que resistir é quase
impossível. Não quando posso sentir os músculos flexionando
debaixo das minhas mãos, o calor saindo dele em ondas e o meu
corpo pulsando em resposta.
Faz tanto tempo que não sinto nada além de violência e
medo. Os dois se tornaram tão entrelaçados que eu tinha certeza,
até agora, de que nunca mais sentiria isso. Nunca mais sentiria o
calor se acumulando em meu ventre e irradiando através do meu
núcleo, ou a umidade entre as minhas pernas em resposta.
Horror acompanha a onda de prazer, e quero me atirar para
trás, mas sei que não posso deixar este homem perigoso ver a
minha reação. Não posso deixá-lo saber o efeito que tem sobre o
meu corpo. Não devo permitir que King tenha esse tipo de poder
sobre mim.
— Sim, — ele diz por fim. — Porque você sempre parece
querer correr para um canto e se esconder.
Suas palavras me fazem querer fazer exatamente isso. Meus
olhos se movem em direção à porta e depois voltam para a minha
mão, enquanto tiro outra mancha de sangue de sua pele. Seria tão
fácil escapar dele e do seu olhar perceptivo demais. Da reação que
não posso negar. Do anseio. Dez passos me trariam de volta à
minha vida sombria, onde posso me afogar na miséria do dia a dia e
na dor que ofusca minha infeliz realidade.
São dez passos que eu não dou. Recuso-me a deixar King
me abalar assim outra vez e volto a tratar suas feridas, trocando os
lenços por ataduras brancas e limpas. Ao contrário de Vic, quando
esse homem me pressiona, testa meus limites, eu me vejo querendo
revidar, querendo ir até ele com os dentes à mostra e os punhos
cerrados.
Ele coloca uma mão grande e arranhada sobre a minha,
prendendo-a à pele aquecida de seu peito esculpido. Olho através
dos meus cílios e encontro o canto de sua boca inclinado em um
meio sorriso que ficaria agradável em qualquer outro homem.
Em King, é um aviso.
Ou uma ameaça.
Meu coração bate forte no peito, um coelho tentando escapar
da perseguição de um predador. Respiro fundo para tentar acalmar
seu ritmo frenético, mas é uma tentativa fútil enquanto estiver na
presença dele. Finalizo o curativo em seu peito sem morder a isca.
Apesar do quão viva ele me faz sentir, ou talvez por causa disso,
não vou encorajá-lo. Não vou seguir por esse caminho. Já o fiz uma
vez e me custou tudo.
Estou esperando que ele lance outro desafio enquanto
termino com o peito e os braços dele, mas no fim, apenas despejo o
lixo em um saco e o coloco perto da porta.
— Consegue ficar em pé? — Gesticulo com um rolo de gaze
que peguei da minha bolsa de suprimentos. — Preciso enfaixar suas
costelas até conseguirem fazer um raio-X em você.
Ele faz o que peço, lembrando-me de um animal não
domado por completo, submetendo-se à atenção humana apenas
para se virar segundos depois e arrancar a garganta da pessoa. Seu
abdômen ondula e o zumbido baixo do desejo que tenho tentado
ignorar ruge de volta à vida, tornando-se enlouquecedor diante da
iminência do perigo.
Como fazer sexo em lugar público.
É errado e sujo e você meio que se odeia por gostar tanto,
mas também é quando você tem o maior orgasmo de sua vida. Esse
pensamento faz minha respiração ficar irregular e receio que ele
possa me ouvir, mas não consigo encontrar a força de vontade para
me afastar.
Preciso me inclinar perto para envolver a atadura em torno
do peito dele, o que não ajuda. Seu cheiro preenche o meu nariz
como uma droga. Meus dedos roçam contra seu abdômen, e eu
daria qualquer coisa por cinco minutos para explorar a linha de
músculos que desaparece sob o cós da calça.
O fato de eu conseguir terminar de atar seu peito é um
pequeno milagre. Durante todo esse tempo, ele não faz um
movimento para me tocar, mesmo que eu gaste cada segundo
desejando que ele o fizesse. Quando finalizo, posso sentir seus
olhos em mim, pacientes e predatórios, enquanto arrumo o resto do
meu material.
— Pare de fazer isso! — disparo, revelando quanto ele está
me deixando nervosa.
King me dá aquele meio sorriso outra vez.
— Fazer o quê?
— Me olhar assim. Está tentando me irritar? Quer que eu
peça para transferirem você para outra pessoa?
Como se me desafiasse, ele dá um passo à frente.
— Você não vai fazer isso, — desafia.
— Não? — retruco, embora consiga ouvir o tom frágil da
minha voz.
Seu sorriso fica maior.
— Não.
Balanço a cabeça e sinto meu corpo se aproximar do dele.
— Não sei o que você quer de mim, não sei o que pensa que
estamos a fazer aqui, mas, de todo modo, não devíamos. Vamos
deixar isso bem claro agora mesmo. Além disso, agradeço sua
preocupação com a minha segurança, mas não há nada que você
possa fazer para me ajudar, e esse tipo de atenção só vai piorar a
minha situação.
Ele se move e todo o meu corpo endurece quando ele leva
os lábios à minha bochecha, onde a memória do machucado ainda
lateja.
— Não, — protesto, mas a palavra sai mais ofegante do que
firme.
— Vou propor um acordo, — diz, enquanto diminui um pouco
mais da distância entre nós. Eu quase choramingo de frustração,
medo e desejo. — Um beijo. Um beijo e não te incomodo mais.
Ninguém precisará saber.
— Você não pode estar falando sério, — sussurro, mas sei
pelo olhar determinado em seus olhos que ele está. — Por quê?
Seus lábios voltam à minha bochecha, surpreendendo-me
com sua gentileza, e quase me envergonho que meu instinto inicial
seja me afastar dele. Ele parece notar isso e suspira, parando
apenas para encontrar meus olhos. Nós esperamos… olhando um
para o outro. Mas quando ele não segue adiante com um tapa ou
um comentário mordaz, meu corpo traidor relaxa.
Sem dúvida, meu corpo é idiota.
— Vamos lá, — incita, enquanto seus lábios ficam mais
ousados. — Me deixe dar isso a você. Um beijo. Prometo que vai
gostar. Deixe-me mostrar a você uma pequena coisa doce para tirar
o amargo da sua vida. Um beijo e se quiser que eu vá embora
depois disso, eu irei.
Ele é o diabo encarnado, a serpente que tentou Eva. No
entanto, eu com toda certeza não estou no paraíso. Odeio-me por
considerar isso. Detesto como o meu corpo grita comigo para dizer
sim.
— Nunca mais vai voltar a me incomodar? — O brilho
triunfante nos olhos dele grita que dei um passo para fora de um
precipício. Não haverá como voltar atrás depois disso.
— Palavra de escoteiro. — Solto um som de escárnio,
fazendo-o sorrir. — Então, isso é um sim?
— Você me perguntou mais cedo se eu queria saber o seu
nome.
Ele assente, mas é um movimento rápido e brusco. Pela
primeira vez, é ele quem é pego desprevenido.
— Acho que quero saber. — Vai ser como dizer adeus ou,
pelo menos, é o que digo a mim mesma. Adeus à emoção do
desejo, à sensação de estar viva. Foi divertido enquanto durou, mas
esse nível de loucura não leva a nada de bom.
Por um momento, acho que os meus ouvidos estão me
enganando, mas não. King dá um gemido profundo e satisfeito na
parte de trás da garganta. Estou tão distraída que não o percebo se
aproximando aos poucos até que seu corpo está todo pressionado
contra o meu. Minhas mãos vão para os seus ombros, e sou grata
pelas ataduras que nos separam. Muito contato com a pele dele e o
meu cérebro, sem dúvida, entraria em curto-circuito.
— Gracin, — diz, os lábios tão próximos que roçam a minha
orelha. — Meu nome é Gracin.
Então sua boca cobre a minha.
É o meu fim.
O beijo é diferente de qualquer outro que já tive na vida. Eu
não fazia ideia de que um toque tão delicado poderia vir de um
homem tão grande e brutal.
É como perceber que tenho feito isso errado há anos. Como
se todos os toques e encontros desastrados no banco de trás e o
sexo brutal de Vic tivessem sido… errados, e é assim como um
beijo deve ser.
Macios…
Deus, como os lábios dele são macios. Tanto que é
surpreendente, considerando quão cruel e feroz ele parece por fora.
Estou descobrindo que ele não é nada do que parece ser.
Isso me faz desejar mais, precisar de mais, e ele deve sentir
meu desespero crescente, pois seus lábios se separam e sua língua
avança, dominando-me da maneira mais bem-vinda. Eu cedo com o
primeiro toque de sua língua e gemo com o segundo.
A gaze e os materiais que estou segurando caem no chão
com um barulho que ignoro. As enfermeiras na sala ao lado estão
muito longe para ouvir o som. Naquele segundo, sequer me
importaria se elas estivessem lá assistindo. Toda a minha
capacidade mental se concentra nos movimentos ternos de sua
boca sobre a minha. No calor quente e úmido vindo dele e que é
mais explícito do que qualquer coisa que já vi ou fiz antes. Ele me
ilumina de dentro para fora, derretendo e relaxando tudo no
caminho.
Depois de um momento, ou uma eternidade, ele recua.
Atordoada, abro os meus olhos e estremeço contra ele quando a
necessidade ruge em uma onda implacável e feroz, tingida de culpa
e vergonha. Ainda assim, minha respiração fica presa na garganta
quando estudo o rosto dele. É a primeira vez que estive perto o
suficiente para ver o anel dourado em torno de seus olhos verdes
vívidos.
Adoraria que ele se abaixasse e colocasse os lábios nos
meus outra vez.
Que tipo de pessoa deseja receber mais de um homem como
ele? Que tipo de mulher anseia por outro beijo de um criminoso?
Eu.
Eu quero mais. Quero tudo.
Agora mesmo.
De novo. E de novo. E de novo.
Penso em todas as noites que passei debaixo do corpo de
Vic, todas as vezes que meu prazer foi usado como arma, todas as
vezes que o prazer se transformou em dor e depois em dormência.
Lembro-me do que ele me forçou a fazer apenas algumas horas
antes e como o meu poder, o meu livre arbítrio foi arrancado de mim
contra a minha vontade. Penso em tudo, e agora quero mais do tipo
proibido que é Gracin. Desejo isso pela maneira como me faz sentir
viva pela primeira vez em anos. Pela maneira que, mais uma vez, o
prazer pertence a mim. Pela forma como o meu corpo parece voltar
a me pertencer.
Então, entrelaço as mãos no pescoço dele e o beijo.
Devo tê-lo surpreendido, pois ele faz um som contra a minha
boca e leva alguns segundos para o seu corpo dele alcançar o meu.
Gosto do fato de conseguir surpreendê-lo. Gosto de ter o poder de
chocá-lo, fazê-lo me querer. Querer a mim.
Suas mãos famintas não são mais gentis, não hesitam mais.
Elas se contraem em torno da minha cintura até não haver um sopro
de espaço entre nossos dois corpos. Até que não haja como negar o
comprimento quente e duro dele contra o a minha barriga ou o calor
úmido que se acumula entre as minhas pernas, o cheio se
espalhando no ar ao nosso redor.
Meus dedos se movem pelos fios curtos de sua cabeça
raspada. A sensação macia e sedosa deles raspando contra minhas
palmas faz um arrepio percorrer os meus braços, e um som
profundo e grave reverbera na parte de trás da garganta dele.
Nunca ouvi nada tão sexy na minha vida. Repito o movimento com
as mãos e raspo as unhas ao longo de seu couro cabeludo, e algo
nele se rompe. Quase posso jurar que consigo ouvir seu controle se
partindo.
Então ele está me empurrando contra a parede e o espaço
inexistente entre nós se dobra sobre si, um buraco negro de calor e
desejo. Gracin está tão perto que é como se estivesse tentando
fazer parte de mim, provocando uma nova onda de arrepios que
dançam ao longo da minha coluna, deslocando-se tão suave quanto
uma aranha.
O macacão da prisão e o meu uniforme de enfermeira são
praticamente um sussurro de material combinado, deixando-me
poder sentir tudo. Quando não protesto contra o movimento, ele
empurra uma perna entre as minhas e depois as abre. Com os
braços livres, pois o peso dele está me segurando contra a parede,
ele agarra meus joelhos e me levanta, alinhando sua rigidez com a
minha suavidade, fazendo-me soltar um grito contra seus lábios.
Ele substitui a boca pelas mãos para abafar os sons que não
consigo controlar. Fixando seus olhos sempre vigilantes nos meus,
usa a mão cobrindo meus lábios para guiar meu rosto para o lado,
então sua boca faz coisas no meu pescoço e orelha que tornam a
mão cobrindo minha boca muito necessária. Mesmo assim, meus
gemidos e gritos ecoam por toda a sala pequena.
Como se ele estivesse lendo a minha mente, os lábios de
Gracin sobem até minha orelha. Então sussurra:
— Eles podem entrar a qualquer momento e ver a garota
indecente que você é, — ele enfatiza suas palavras com um impulso
lento dos quadris. Juro que posso sentir cada crista, cada veia em
seu pau enquanto ele o arrasta ao longo do meu centro.
Não digo nada, afinal, seria inútil com a mão cobrindo minha
boca, mas respondo de outras maneiras. O cheiro da minha
excitação fica mais forte, e sei que minhas roupas devem estar
molhadas. A vergonha queima minhas bochechas com um vermelho
violento ao pensar em Gracin podendo ver minha excitação. Sendo
capaz de senti-la, se é que já não pode. Gritos ofegantes e
sufocados emanam da minha garganta, não importa quanto eu tente
engoli-los de volta. Minha mente oscila entre o pensamento dos
guardas entrando na sala e o pau duro entre minhas pernas, uma
combinação de estimulantes bem eróticos e voláteis.
Deveria afastá-lo.
Uma boa pessoa faria isso.
Uma boa pessoa não o teria deixado beijá-la em primeiro
lugar.
Sua língua encontra minha orelha de novo com uma precisão
surpreendente. Sempre tive orelhas muito sensíveis, e uma
respiração quente e áspera desfaz qualquer indício de raciocínio
que eu estava montando. Choques dançam ao longo das minhas
terminações nervosas enquanto o som de sua respiração áspera me
rodeia, envolve-me. Minhas mãos se agarram aos seus ombros com
um aperto contundente que ele nem parece se importar. Considero
os seus ferimentos por um momento, penso em perguntar se está
tudo bem, não que sua mão sobre a minha boca fosse deixar, mas
ele se desloca, inclinando os quadris para cima de um jeito que a
cabeça bulbosa de seu pênis atinge meu clitóris bem no ângulo
certo, fazendo meu mundo explodir.
Esqueço as convenções, esqueço as regras, esqueço as
expectativas. Ignoro até mesmo a lei. As leis que dizem que eu não
deveria tocar neste homem. Não devia encorajar a atenção de
Gracin. Ou me esquecer que ele é meu paciente. Que é um
criminoso condenado.
Um lado sombrio e indecente de mim emerge e, em vez de
empurrá-lo
para longe, uso minhas pernas para puxá-lo para mais perto. Ele
grunhe em minha orelha, um som áspero e sexy, e eu arqueio
minhas costas, abrindo minhas pernas ao máximo para acomodar
seus quadris. Minhas coxas queimam e meus quadris doem de tão
esticadas, mas nada disso importa à medida que o calor cresce
dentro de mim. Eu me torno uma coisa selvagem e irracional, e
apenas sei que quero mais.
Mais pressão. Mais proximidade.
Mais dessa selvageria dolorosa e indecente.
Seus dentes deixam marcas onde ele morde em meu ombro
para conter seus sons de satisfação, seus dedos apertam minha
boca quase a ponto de deixar marcas. Sinto o gosto de sangue de
onde meus dentes puxaram meu lábio inferior.
Então ele está sussurrando ao meu ouvido, sua voz como o
do próprio diabo.
— Você quer isso. Seu desejo é tanto que quase consigo
sentir o gosto.
Sons carentes e animalescos são a minha única resposta.
— Quero dar isso a você, Tessa. — O ritmo dos quadris dele
diminui e eu quase grito. — Me deixe dar isso a você.
Eu teria deixado se ele não tivesse puxado sua mão para
longe da minha boca e substituído pela dele. Em seguida, sua
língua se torna uma metáfora para o seu pau pela forma como
avançam em mim em conjunto.
Esqueço-me de como respirar. Como falar. Como pensar.
Sou incapaz de me preocupar com qualquer coisa, exceto o impulso
constante do comprimento de Gracin contra mim, sua boca contra a
minha.
Não sabia que algo podia ser tão bom.
Então ele coloca a mão atrás das minhas costas, forçando
meus quadris a se inclinarem no mesmo momento em que uma das
enfermeiras ri do lado de fora, bem do outro lado da porta
destrancada…
Todos os pensamentos ruins e errados inundam minha
mente de volta, mas nesse momento, a mão dele está na minha
garganta, fazendo faíscas dançarem diante dos meus olhos. A
pontada firme e aguda de prazer me atravessa e minha cabeça
desaba para trás, batendo na parede antes de ele engolir meu longo
e silencioso grito.
Volto a mim em ondas e a consciência pisca, superfocada
em seu comprimento duro ainda pulsando contra meu corpo.
Acredito que essa é uma sensação da qual nunca vou ser capaz de
esquecer. Ele é grosso e longo, e o vazio dentro de mim chama por
ele para preenchê-lo. Minha boca enche d’água com o pensamento,
mesmo minha luxúria esfriando enquanto me recupero do orgasmo.
Depois disso, seus braços estão agora em volta da minha cintura,
segurando-me contra ele, de modo quase… carinhoso, ou o que
seria carinhoso para ele.
Nesse instante, ouço as enfermeiras outra vez. Suas vozes
são baixas, mas discerníveis; sua conversa é sobre algum programa
de televisão ou qualquer outra coisa, uma conversa comum, como
se o mundo não tivesse acabado de virar de cabeça para baixo.
Gracin está me observando com aqueles olhos atentos, e
não tenho dúvidas de que viu a progressão das emoções passar
pelo meu rosto. Ele vê demais. Compreende demais.
Meu corpo, que havia acabado de ficar em brasa, esfria e
com isso vem o terror.
Oh, Deus, o que acabei de fazer?
Eu tive exatos dois casos de uma noite na minha vida, e a
sensação de agora é quase a mesma que tive depois deles, só que
infinitamente pior. O êxtase de se estar no limite do ilícito é delicioso
em sua ascensão e mortificante na queda. Como o próprio homem
em minha frente, é aterrorizante e viciante. Ele é a personificação de
um narcótico. De um tipo bem mortal.
Posso sentir o erro do que fizemos de forma mais eficiente
do que um soco cruel no plexo solar. Quase prefiro um. A violência é
fácil em comparação com isso.
A umidade entre as minhas pernas faz a minha calcinha se
agarrar, provocando uma consciência desconfortável do quanto
ferrei as coisas enquanto Gracin se afasta o suficiente para meus
pés pousarem de volta no chão. O calor queima minhas bochechas
e depois escoa, deixando-me fria, abalada e muito lúcida.
Troco os pesos dos pés, tentando descobrir qual deveria ser
o meu próximo movimento e estremeço com a dor remanescente do
quanto ele alargou meus quadris para acomodá-lo. Não consigo
falar nada. A indecisão é paralisante.
O que uma pessoa faz após foder com tudo de uma forma
tão monumental?
A dor latejante e constante dentro de mim ainda anseia por
ser preenchida, mesmo quando a vergonha ameaça me deixar de
joelhos. Não me senti assim tão mal nem na primeira vez que Vic
me bateu. O tremor em meus dedos se intensifica à medida que o
choque desaparece e o horror emerge em seu rastro.
Ele inclina meu rosto para cima com um dedo e meu pescoço
palpita em resposta, o sangue correndo para o lugar onde sua mão
tinha estado apenas alguns segundos antes. Vic já fez isso tantas
vezes, mas nunca contei a ninguém o que deixei que ele fizesse
comigo. Expor minha vergonha desta forma dói bem lá no fundo e
eu quero correr. Meus olhos querem se encher de lágrimas e tento,
de modo desesperado, contê-las até poder sair desta sala. Repito
isso como um mantra: ficarei bem desde que consiga sair desta
sala.
Abro a boca para falar, mas o que posso dizer? Eu
literalmente pedi por isso. Quaisquer que sejam as repercussões do
que acabou de acontecer, a única pessoa que posso culpar sou eu
mesma. Quando as palavras ainda não vêm, dou a volta por ele,
ajustando um pouco as minhas roupas, o calor desconfortável da
angústia me cobrindo como um cobertor, mesmo que por dentro eu
pareça estar congelando.
— Tessa, — ele começa, e eu estremeço.
— Não, — minha voz não treme enquanto me acomodo na
dormência familiar. Suas ataduras não ficaram muito bagunçadas,
então arrumo o restante do material enquanto me mantenho de
costas para ele. De alguma forma, sei que ele não vai me pressionar
agora. De alguma forma, sei que ele quer mais do que a minha dor,
e isso é quase pior.
Dor, eu sei como lidar com ela. Mas isso… seja o que for que
ele me faça sentir, é muito mais perigoso.
Quando me viro, ele está à minha espera no corredor da
enfermaria, sua postura é casual, mas sei que é pura enganação.
Aqueles braços, que estavam ao redor do meu corpo, estão
cruzados sobre o peito que ainda mal posso esperar para explorar
como eu bem entender, apesar do arrependimento percorrendo o
meu corpo como veneno. Sei muito bem que ele é dissimulação
coberta por camadas de enigma, mas o meu corpo ainda anseia por
ele.
— Isso não pode acontecer de novo, — digo sem encontrar
os olhos dele. Agarro-me à promessa que ele fez como se eu
estivesse me afogando. Ela é a minha única tábua de salvação.
Minha única maneira de dar um sentido ao erro que cometi. — Você
não vai tentar me beijar outra vez ou me procurar, — digo com
firmeza. — Fiz o que você queria… agora, acabou.
Ele acena com a cabeça, mas noto que não confirma ou
nega que não vai voltar a me procurar.
— Pense o que quiser, — diz em vez disso, — mas estamos
longe de terminar.
Não quero discutir com ele por medo de uma repetição,
então coloco minhas coisas de volta no meu kit e corro para o
armário como a ratinha que ele pensa que sou. Sinto o seu olhar em
minhas costas durante todo o caminho, em seguida, passo muito
mais tempo do que o necessário organizando e reorganizando os
materiais. Eles já estão alinhados com perfeição, todos os
medicamentos e bandagens em pequenas fileiras. Invejo a ordem
deles, quando estou em tanta desordem.
Não faço ideia do que estou fazendo ou de onde pertenço.
Sei que eu deveria planejar o meu próximo movimento e me
preparar para lidar com o que vem a seguir. Mas o meu cérebro está
muito ocupado disparando para todos os lados, tentando entender o
que acabou de acontecer. Mas é inútil de qualquer maneira. Não há
como dar lógica ao caos. E Gracin é isso. Caos.

Horas depois, por fim, tenho alguns minutos para mim. Sem
pensar direito, pesquiso o nome de Gracin no diretório de pacientes.
O prontuário que recebi para seus registros médicos lista apenas o
número de detento para fins de segurança, e isso com certeza não é
o caso do registro oficial dele.
Sua foto deveria ser repulsiva. Quero dizer, quem fica bem
com os macacões azuis sem-graça que obrigam os prisioneiros
usarem? Ele fica, é claro. Seu cabelo está mais comprido na foto,
então devem ter raspado depois que ele chegou à prisão. Gracin
encara a câmera com o queixo inclinado de forma insolente e um
olhar duro e cruel, o qual conheço de maneira tão íntima. A
iluminação forte torna as sombras sob suas lindas maçãs do rosto
ainda mais pronunciadas, deixando seu rosto cheio de ângulos e
bordas duras. Tal como o homem, penso eu.
Respiro de forma profunda e restauradora, enquanto tento
me convencer do que estou prestes a fazer, mas é inútil. Em vez
disso, afasto os olhos da foto dele e começo a ler as anotações em
seu arquivo. Ao fazer isso, meu coração começa a bater forte no
peito e mordisco uma unha enquanto minha outra mão bate no
relatório.
Gracin Kingsley.
Gracin Kingsley.
Só de repetir o nome dele agora faz o meu sangue disparar.
As minhas partes mais primais e animalescas, que
desfrutaram de nosso momento indecente, reagem com uma
crueldade incomum e imploram para saber mais.
Depois de uma rápida olhada para a porta do escritório,
debruço-me sobre o teclado e continuo a ler. De acordo com a data
de nascimento no formulário, Gracin tem 35 anos, nascido e criado
em Macon, Geórgia, como ele me contou quando nos conhecemos.
Viveu uma vida não tão encantada de abuso e pobreza antes de
seus pais morrerem e ele ser mantido sob custódia do estado.
Passo para o histórico médico e meu estômago despenca. Ele não
estava mentindo sobre sofrer abuso nas mãos do pai. Anexo em seu
arquivo está uma extensa lista de relatórios de vários funcionários e
profissionais de saúde contendo dezenas de lesões, incluindo, mas
não limitado a concussões, queimaduras e ossos quebrados. Meu
coração se parte quando o imagino como um garotinho nas mãos de
um homem como Vic. A lista de crimes em sua ficha criminal é
aterrorizante e… impressionante. Seus registros não explicam o
motivo de ele estar na prisão, mas deve ser algo terrível para Gracin
ter acabado em Blackthorne.
Na verdade, nem sei se quero saber.
Dentro dos limites dos portões da prisão, nosso
relacionamento, por falta de uma palavra melhor, está em uma
pequena bolha. Sei que estou segura até certo ponto, afinal ele não
pode sair. Além do nosso breve contato durante seu dia de trabalho,
não preciso vê-lo se não quiser, e sei que se eu precisasse de
ajuda, ela estaria a apenas um chamado de distância. Mesmo
assim, aprender mais sobre o seu passado torna tudo muito real,
concreto e definitivo.
Fecho o registro e saio do computador para o meu turno,
deletando a minha presença ao longo do caminho o melhor que sei.
É um risco bisbilhotar o arquivo restrito, mas eu tinha que descobrir
mais. Agora, receio saber demais e não o suficiente.

A casa está silenciosa quando chego com uma hora de


atraso, mas já sinto a tensão crepitando no ar. Não vejo Vic em
lugar nenhum, mas consigo senti-lo. Como uma presa que sabe que
o predador está por perto. Observando. Esperando para atacar.
Pela primeira vez desde que ele começou a me bater, não
estou apavorada. Estou com raiva. E sei que Gracin é a razão para
isso. Ele me faz querer coisas que não posso ter. Uma vida
diferente. Querer… ele. Querer revidar.
É perigosa, esta semente de esperança.
Talvez seja um pouco loucura.
Como pode um homem como ele me fazer querer ser uma
pessoa mais forte? A ironia é risível.
Na verdade, enquanto estou congelada na porta da frente, eu
rio. Sem dúvida, Vic deve se perguntar o que diabos há de errado
com a sua esposa boba para ela rir como uma louca, mas, pela
primeira vez, não me importo. Não me importo se ele lançar seus
punhos em mim num futuro muito próximo.
Não me importo de ter beijado um homem que não é o meu
marido.
Acho que cruzar a linha profissional, percebendo que sou
capaz de coisas terríveis, fez algo com o meu cérebro.
Talvez os anos que passei sofrendo nas mãos de Vic enfim
me enlouqueceram. A garota que eu era nunca deixaria um homem
como Gracin passar por suas defesas. Ela nunca teria sequer
considerado quebrar as regras, muito menos a lei. Contudo,
pensando bem, ela talvez nunca teria imaginado que deixaria o
marido usá-la como saco de pancadas também.
Uma voz, soando muito como o próprio Gracin, sussurra em
minha cabeça.
O que mais você pode fazer?
Até onde iria?
Como é possível que um homem que deveria defender a lei,
possa me derrubar, e o outro que deveria ser a escória da terra,
possa me edificar?
Dou um passo hesitante para dentro da casa na qual passei
os últimos anos escondida. Uma casa que só conseguiu gerar terror
e pesadelos e, pela primeira vez, não tenho medo. Na verdade, é a
minha falta de medo que me aterroriza.
É um estado de ser me levando a sentir que posso fazer
qualquer coisa.
E isso é, sem dúvida, o que Gracin pretendia.
Olho ao redor da sala de estar a caminho da cozinha,
observando a maleta ao lado da poltrona reclinável e o copo de
conhaque na mesa lateral. Vic está em casa. A antecipação me
preenche, sombria e potente. Um gêmeo do desejo que me inspirou
a puxar a cabeça de Gracin para baixo e prolongar o beijo que foi a
minha ruína.
Ele deve estar no quarto, e o pensamento dele e uma cama
enche minha boca com bile. Sei, sem sombra de dúvida, que nunca
mais vou dividir a cama com ele. Nunca mais o deixarei me tocar.
Nunca mais o deixarei me machucar.
Prefiro morrer.
Abro a geladeira, mais por hábito do que por qualquer outra
coisa, e retiro as costeletas de porco que tinha separado esta
manhã para o jantar. A tarefa mundana de preparar o jantar vai
acalmar a selvageria que está se formando dentro de mim. Isso me
impedirá de tomar decisões precipitadas. Bem, desde que Vic não
faça nada estúpido.
Pego cenouras e batatas e as coloco na ilha da cozinha.
Reúno os ingredientes para assar as costeletas de porco e coloco a
banha para aquecer numa frigideira no fogão. A cama range no
quarto e uma sensação avassaladora de expectativa se desenrola
no meu estômago. Os passos dele fazem a madeira no corredor
ranger e minha respiração prender.
— Por onde andou? — ele pergunta com uma indiferença
enganosa.
É assim que todas as suas “discussões” começam. Ele
sempre encontra uma desculpa, qualquer uma, para picuinhas. Em
seguida, vocifera e delira. Depois parte para as agressões.
É um ciclo. Um que li em livros e vi em filmes tantas vezes
que já perdi a conta. Só não percebi que estava presa a um até
acontecer. Uma e outra vez.
Mas já chega, estou farta.
Com medo da raiva incomum que sinto disparando através
de mim, lavo os vegetais com um cuidado extra. Uma névoa branca
começa a invadir minha visão e, após colocar as cenouras e batatas
no balcão, esfrego os olhos, perguntando-me se talvez eu não
esteja cansada demais.
Vic faz um som frustrado.
— Estou falando com você, — diz com um tom que
costumava me fazer tremer e encolher de medo. Agora só me deixa
exausta.
Por que o deixei me agredir durante tanto tempo? Por que
demorei tanto para ver?
Não respondo a Vic enquanto escolho uma das facas do
bloco na cozinha e começo a cortar as cenouras em fatias finas.
Enquanto faço isso, imagino que estou cortando as amarras que ele
tem ao meu redor. As que me sufocam há tanto tempo, o peso delas
é como uma segunda pele. Não demora muito para essas amarras
se transformarem em uma visão do próprio homem, e fecho os
olhos para dissipar a imagem.
Corto as cenouras com mais violência. Vic deve sentir meu
humor e, num movimento inteligente da parte dele, não diz nada até
eu colocar a faca no balcão e trocá-la por um descascador.
Descasco as batatas sem erguer os olhos enquanto o faço.
Acho que tenho medo de olhar.
Receio que quando o fizer, tudo mudará. Que partes
fundamentais de mim foram alteradas de modo irrevogável.
— Vai me responder? — pergunta, e sua voz sobe um tom
no final, como se não acreditasse que tenho coragem de desafiá-lo.
Sua esposa obediente desta manhã se foi, e ele não sabe como
lidar com isso.
Deve ser muito desconcertante para ele. No entanto, o poder
que me inunda é imensurável.
— Não, — digo, enquanto coloco uma panela de água para
ferver as batatas.
— Não? — Questiona, sua voz ficando aguda de um jeito
estranho.
Preparo outra panela com uma pequena quantidade de água
para as cenouras e dispenso uma olhada rápida para ele antes de
pré-aquecer o forno.
— Não, não vou responder à sua pergunta. Você sabe muito
bem onde eu estava.
— O que você disse para mim? — Ele dá a volta na ilha e
fica perto das minhas costas de forma ameaçadora.
Com meus dedos ainda sobre a assadeira forrada, onde
estou espalhando biscoitos para levar ao forno, olho para cima e
quase rio da expressão no rosto de Vic. A pele dele está manchada
de vermelho. Gotas de suor brotam em suas têmporas e o lábio
inferior treme. Se eu precisasse adivinhar, diria que ele está quase
se deleitando com a possibilidade de um confronto. O próprio
pensamento me deixa com náuseas. O medo tem sido um
companheiro constante, embora indesejável.
Até agora.
A mão de Vic sacode onde ele agarra o balcão, e os nós dos
seus dedos estão brancos nos locais em que se feriram e curaram
tantas vezes. Essas mãos são atrações frequentes dos meus
pesadelos. Ele apenas precisava erguê-las, mesmo que de forma
quase imperceptível, e eu me submeteria no mesmo instante.
Recuaria em pânico como a ratinha tímida que Gracin diz que sou.
Hoje, no entanto, mesmo vendo suas mãos flexionarem em
ameaça, não tenho medo. É como se minhas emoções estivessem
embrulhadas em algodão e eu as sentisse através de uma caixa de
vidro.
Se eu fosse ser sincera comigo mesma, admitiria que esta
ruptura já estava prestes a vir há muito tempo. O abuso, tanto
emocional quanto físico, foi demais. A sensação de isolamento e
desolação é muito severa.
Há um limite do quanto uma pessoa consegue aguentar, e
esta manhã foi o ponto da virada.
Não é nem por causa de Gracin. Ele é um sintoma de um
problema muito maior. Talvez eu tenha ido para os seus braços para
forçar esse confronto. Para acabar com tudo.
Ele é a minha ruína.
Precisei chegar ao fundo do poço para ver uma saída.
A faca brilha no halo amarelo de luz da luminária da cozinha
acima. Quando ergo o olhar, Vic me observa com olhos como de
uma cobra. Ambos sabemos o que está por vir.
O dia seguinte começa como qualquer outro. Acordo e tomo
banho, tomando um cuidado extra com a minha aparência. Até uso
o esfoliante de açúcar que uma das outras enfermeiras me
presenteou no Natal passado. Enrolo-me em uma das grandes
toalhas luxuosas de Vic, coloco loção perfumada de lavanda e
aplico uma camada mais grossa de maquiagem para cobrir as
sombras sob meus olhos e a magreza nas minhas bochechas.
Após me vestir com o uniforme obrigatório de enfermeira,
contorno a bagunça que sobrou do jantar na cozinha e preparo uma
vitamina rápida para o café da manhã. Por hábito, pego o jornal na
varanda da frente e o coloco na mesa da cozinha. Não penso no
porquê de fazer isso enquanto pego as chaves e a bolsa, depois
entro no carro.
Pelo jeito, não pensar se tornou minha escolha padrão para
lidar com todos os meus problemas. Mas tudo está tão fodido de
uma maneira fenomenal, que lidar com eles significaria enfrentar
todas as decisões horríveis que tomei nos últimos tempos, e não
estou pronta para fazer isso.
Nem pensar.
Então dirijo para o trabalho e faço de conta que este é como
qualquer outro dia.
Finjo que o meu casamento não é uma farsa. Que não
estraguei a minha vida no dia em que me casei com o primeiro
homem que me fez sentir especial. Que não fiquei no casamento
porque não tinha para onde ir. Meus pensamentos fazem uma
parada brusca por aí, pois quase pensei no nome de uma certa
pessoa, quem talvez tenha me ferrado ainda pior do que o otário do
meu marido.
Ernie nem sequer me incomoda enquanto tenta olhar para o
meu decote quando entrego o meu crachá. Ele é um peixe pequeno
na minha lista de merdas para me preocupar. Até dou a ele um
sorriso um pouco maníaco demais que congela seu olhar no rosto
enquanto pego de volta o meu crachá e me afasto.
Meu carro derrapa na lama cinza no estacionamento
enquanto estaciono ao acaso, a ponta do meu carro beijando um
monte de neve. Mas também não penso nisso. Minha traseira está
invadindo cerca de quinze centímetros da vaga ao lado, mas não
volto para o meu carro para arrumar.
Chego à enfermaria sem incidentes e planejo passar as
próximas oito horas com meu foco total na papelada e nos
pacientes, exceto um, o qual teve o dia de folga após sua briga para
se recuperar e relaxar.
Um dos homens sem nome e sem rosto se senta na maca
hospitalar, tentando não fazer careta enquanto procuro, sem
sucesso, por uma veia para tirar uma amostra de sangue. É algo
que já fiz mil vezes, mas, por tudo que é sagrado, meus dedos
teimosos não estão cooperando.
— Desculpe, — peço outra vez. — Vamos tentar o seu outro
braço.
Ele resmunga baixinho enquanto dou a volta na maca para o
outro lado. Duvido que ele queira que eu o espete mais cinco vezes
e ainda acabe sem uma gota, mas estou determinada a manter o
sorriso alegre no meu rosto e fingir estar focada. Mais duas
espetadas e atinjo o alvo. O alívio inunda a expressão do detento e
eu recolho a amostra de sangue dele, anoto suas informações e o
mando embora. Ele me olha feio e resmunga sobre processar a
prisão enquanto se afasta e eu deslizo para a cadeira da minha
mesa.
Pelo canto do olho, vejo um contorno borrado do macacão
azul de um preso, e mesmo tendo dito a mim mesma o dia todo para
não pensar nele, para não me lembrar da coisa horrível que fiz, não
posso evitar.
Quanto mais tento não pensar, mais meu cérebro se
concentra nele. Como uma coceira que não consigo alcançar, mas
estou morrendo de vontade de passar a unha.
Eu me contorço no meu assento enquanto tento me
concentrar nos registros, mas é inútil. Por duas horas, as palavras
nadam e dançam diante dos meus olhos. Li a mesma frase pelo
menos dez vezes e ainda não entendi. Quando a outra enfermeira
de plantão me lança um olhar irritado porque continuo soltando
suspiros profundos, desisto.
Até pediria desculpa. Em geral, sou uma colega de trabalho
muito solícita. Eu chego, faço o meu trabalho com muito pouco
alarde e vou para casa. A garotinha perfeita, essa sou eu. Vic me
treinou bem.
Frustração e raiva borbulham debaixo da minha pele e rolo
meus ombros enquanto caminho para o meu armário para pegar
meu almoço. Até pensar no nome de Vic me faz querer rasgar algo
com as minhas próprias mãos. Preciso encostar a testa contra o
armário para esfriar minha pele aquecida.
— Enfermeira Emerson, — uma voz atrás de mim diz,
fazendo-me bater a cabeça contra o armário de metal.
Eu me viro, segurando a mão no local dolorido, e encaro o
guarda que me dá um sorriso de desculpa.
— Sinto muito por isso, — ele diz. — Pensei que você me
ouviu chamar.
Dou um pequeno aceno.
— Não foi nada, tenho uma cabeça dura. O que posso fazer
por você?
Ele se aproxima devagar, os olhos me avaliando um pouco
demais para o meu gosto, e me entrega uma prancheta.
— Tenho aqui alguns relatórios sobre o preso que você tratou
ontem. Confidencial, certo?
O meu coração acelera no meu peito.
— Relatórios?
Ele acena com a cabeça para a prancheta que não percebi
ter tirado de suas mãos e se dirige para a porta.
— Está tudo aí. Cuide-se, até mais.
Sei, antes mesmo de olhar para a página, o que está lá e de
quem é. Há uma possibilidade de o guarda informar Vic, porém, com
certeza, Gracin o pagou para ficar quieto. Entretenho a ideia de
jogar o papel direto no lixo, mas não consigo me obrigar a fazê-lo.
Meus ouvidos começam a zumbir enquanto me concentro na versão
que ele desenhou de mim desta vez. É como deveria estar minha
aparência logo depois de ele me levar ao estado brutal de um
orgasmo poderoso. Meus olhos ainda estão fechados, meus lábios
estão inchados, macios e um pouco machucados. Pela primeira vez,
ele se incluiu no desenho. Apenas sua mão na lateral da minha
garganta, o polegar na borda da minha mandíbula. Não parece
significativo para mais ninguém, mas é tudo para mim. Ele assinou
com o seu nome completo, e sob a assinatura estão três palavras:
Venha me ver.
Estou no meu intervalo, mas não me importo. Comer é agora
a última coisa na minha mente. A impaciência, a irritação e a raiva,
acumulando-se sob a minha pele o dia todo como um gêiser,
borbulha e agita a cada passo que dou. Agarro a prancheta na
minha mão como um escudo, e ainda não decidi se quero jogá-la na
cabeça dele assim que o ver ou não.
A parte de mim que não zombou de sua audácia de me
convocar até ele, exulta em sua atenção. É uma faceta vulgar e má
da minha personalidade que eu nem sabia que possuía. Vanglorio-
me com o conhecimento de que um homem como Gracin, alguém
poderoso e perigoso, me quer. Posso até ser a única opção dele,
mas meu cérebro nem parece registrar isso quando toda a atenção
dele está em mim. Mesmo sabendo que estou trilhando um caminho
traiçoeiro com consequências fatais em ambos os lados, não
consigo parar.
Os guardas na entrada do bloco de celas dele devem ter sido
subornados também, pois fazem vista grossa quando apareço.
Barulhos altos das manivelas da porta sendo abertas, seguidos por
um grito para me acompanharem, são os únicos sinais de que estão
cientes da minha presença. Fico bem do lado de fora da área aberta
do bloco prisional e a percepção arrepiante de que o próximo passo
que eu der será um momento decisivo, sobrecarrega-me de
indecisão.
Dou um passo inseguro, puxada pela conexão inexplicável
que estimulou muitas das minhas decisões precipitadas. As minhas
partes sombrias encontram consolo na escuridão dentro dele. Almas
iguais se encontrando e se incendiando.
Eu me aproximo da cela que sei ser dele, sem saber ou
mesmo consciente de quaisquer presos nas celas ao redor. Consigo
ouvi-los assobiando e batendo em suas grades, mas isso não me
incomoda. As barras da cela dele precisam muito de uma nova
camada de tinta. Flocos cinzas caem das palmas das minhas mãos
enquanto agarro o ferro.
— Por que me chamou aqui? — questiono. — Nós tínhamos
um acordo. — As minhas palavras dizem que não, mas a minha voz
soa toda errada. Ofegante. Como uma pequena virgem incerta de
que quer ir até o fim, apesar de quão bem ela sabe que pode se
sentir.
Seu abdômen contrai quando ele se ergue para uma posição
sentada. Por mais que tente, não consigo desviar o olhar. Com
certeza mereço um lugar no inferno pelos longos segundos que
passo olhando sua barriga exposta.
Ele não percebe ou não comenta enquanto se levanta do
beliche para atravessar até as barras. Sua postura só parece
relaxada, com um ombro contra o metal, mas ele não me engana.
Tenho a sensação de que todas as coisas não ditas por ele são
armazenadas apenas para outro momento, mas só por não servirem
para ele nesse instante.
Ele alcança através das barras, sua expressão contemplativa
enquanto enrola uma mecha do meu cabelo em volta dos dedos.
Como um gato brincando com a presa.
— Acho que a pergunta mais importante, sra. Emerson, é:
por que você veio?
As palavras formam um nó na minha garganta e o horror
drena todo o sangue do meu rosto.
— Porque nós cruzamos uma linha e você precisa saber que
não podemos fazer isso de novo.
Ele abandona meu cabelo para tocar minha mandíbula, o
dedo traçando da ponta do meu queixo até a curva da minha orelha.
Começo a me afastar, só então percebo que a sua outra mão está
envolvendo meu pulso. Eu não podia me mexer mesmo se
quisesse. Quando foi que ele se apoderou de mim?
— Então você está falando que veio me ver para me dizer
que não quer voltar a me ver? — sua voz é tão suave, tão inocente
e fascinante, e me vejo inclinando para ele, querendo saborear suas
palavras direto da fonte. Quando os dedos, trilhando o meu queixo,
deslizam para cima e sobre meus lábios, sinto o gosto dele… o
sabor terroso de sua pele explodindo em minha língua como um
afrodisíaco, então, balanço a cabeça para limpar a mente.
— Pare de distorcer minhas palavras. — Tento arrancar meu
braço das garras dele, mas sem sucesso. Seu aperto é mais eficaz
do que algemas. — Me solte.
Ele inclina a cabeça como se soubesse quanto quero que
continue me tocando.
— Não creio que vou. Nós não terminamos.
— Terminamos com o quê?
Estou horrorizada e envergonhada ao descobrir quanto essa
nossa discussão me deixou molhada. É tudo diversão e jogos até
me dar conta de que gosto disso. Não apenas o aspecto proibido,
ou o perigo, mas quanto isso é errado.
Deve haver algo perverso dentro de mim. As partes que Vic
quebrou se remendaram, mas as bordas irregulares não conseguem
mais se encaixar direito. O pânico jorra através de mim, quente e
vital… instintivo. Ele não me segura forte o suficiente para machucar
e, de alguma forma, isso só intensifica seu apelo, mas ele também
não me deixa ir.
— Nossa conversa, — diz em voz baixa. — Agora, responda
à pergunta.
— Gracin, por favor.
Ele suga uma respiração profunda através dos dentes, e isso
faz com que os cabelos nos meus braços e na parte de trás do meu
pescoço fiquem em pé. Gracin se aproxima, pressionando o corpo
contra as barras entre nós. Está tão perto que posso sentir seu calor
através do metal. Se eu me mexesse, mesmo que fosse um pouco,
nosso peitoral se encostaria. A tentação me faz estremecer.
Seu grunhido faz as barras vibrarem, e meu sangue zumbe
em resposta.
— Diga isso de novo.
Puxo o meu braço, mas o aperto dele fica mais forte e ele me
puxa para frente, de modo a estarmos quase nos tocando. Já passei
tanto do limite que nem sei se foi intencional ou não.
— Pare, — ordeno, sem um pingo de convicção.
Com a testa contra as barras, ele fecha os olhos.
— Diga, ratinha.
— Direi, se me soltar.
— Diga meu nome.
Quem me dera não estar tremendo. Mostrar a ele qualquer
vulnerabilidade é apenas o pedir para explorá-la.
— Por favor…
Ele solta um grunhido irritado.
— Eu…
— Diga.
— G-Gracin.
— Excelente, ratinha. Agora me conte por que veio. Diga por
que você parece prestes a fugir da própria pele.
Sabendo que o silêncio é a minha única opção segura,
balanço a cabeça.
O aperto dele no meu pulso é suave e posso sentir sua
respiração na minha mandíbula.
— Me conte.
— Você estava certo.
— Boa garota, —as palavras saem quase como um gemido.
A sexualidade flagrante no som é quase demais para suportar. —
Sobre o que eu estava certo?
Eu deveria estar preocupada com os guardas, com o meu
trabalho, com a minha sanidade, mas não há espaço para nada
além de Gracin em minha mente.
— Eu o enfrentei.
— O seu marido? — pergunta, porém, pela expressão
presunçosa em seu rosto, ele sabe de quem estou falando.
Eu tento e falho em conter os arrepios que devastam meu
corpo por causa de sua proximidade. Tentar me concentrar com ele
perto é inútil.
— Ele tentou… ele tentou me agredir de novo.
O sibilar dele é tão afiado e letal quanto uma lâmina na
garganta.
— Aposto que sim. — Há um segundo de silêncio antes de
ele perguntar: — O que você fez? Você o feriu? Hein, ratinha? — a
última palavra é suave, quase um ronronar ao meu ouvido.
— Eu tentei… — minha voz mal é um sussurro, mas minhas
palavras o iluminam. — Eu estava preparando o jantar e ele partiu
para cima de mim. Eu não queria cortá-lo, mas estava com uma
faca na mão e ele não parava.
— Não se envergonhe, — diz quando baixo meu olhar. — Ele
é o único que deveria sentir vergonha. Nenhum homem deve bater
em uma mulher.
Olho fixo para ele e ergo uma sobrancelha, embora seu
registro nunca tenha indicado nada disso.
— Eu nunca te machucaria, ratinha. É por isso que você veio
até mim.
— Vim porque sou uma idiota, — tento colocar energia na
minha voz, mas não sobrou nenhuma. — O que quer de mim? Que
jogo é esse que você está fazendo?
— Estou jogando o mais perigoso dos jogos e você é o
prêmio. O nosso acordo está cancelado, Tessa. Quero você e vou
ficar com você de qualquer maneira que puder.
A respiração fica presa em minha garganta.
— Não vou… não posso fazer isso de novo.
— Mentirosa, — cantarola, enquanto os dedos não enrolados
no meu pulso traçam o hematoma desbotado no meu lábio. — Você
não está chateada porque não gostou. Está zangada porque
adorou.
Protestos se agarram à minha garganta e estou prestes a
responder quando os alarmes soam. Alguém deve ter nos
denunciado afinal. Minha resposta é abafada pelo barulho estridente
das sirenes. O tempo esgotou. Olho de volta para ele e seu sorriso é
lento e predatório. Ele sentiu o cheiro do sangue e está se
preparando para o abate.
— Me diga! — Gracin grita da cela. — Volte e me diga,
ratinha, se ele não vai olhar para você de maneira diferente. Se
haverá uma faísca de respeito nos olhos dele na próxima vez que
tentar te machucar.
— Não farei isso.
Seu sorriso fica afiado, os olhos brilhando com as luzes
vermelhas de alarme enquanto piscam. Os guardas enfim irrompem
pelas portas e disparam pelo corredor, mas não consigo ouvir os
gritos com os meus pensamentos de pânico e batimentos cardíacos
estrondosos. Eles correm por mim para destrancar a porta da cela
dele, e ele me liberta, recuando com as mãos sobre a cabeça em
um gesto suplicante que todos sabemos ser apenas fachada.
Mesmo sendo o único atrás das grades, de alguma forma, ele ainda
detém todo o poder.
Ele mantém meu olhar fixo no dele, e dou um passo
automático em retirada. Mas não importa quanta distância eu
coloque entre nós, ainda posso sentir suas mãos em mim.
— Falo com você amanhã, ratinha. Eles me liberaram para o
trabalho.
— Você está bem? — Annie pergunta, enquanto cobre o meu
posto algumas horas depois.
— Estou bem, — digo e estremeço quando minha voz soa
como se eu tivesse a cortando com uma motosserra. Pigarreio. —
Foi apenas um dia daqueles.
Ela acena com a cabeça, indicando que me entende,
embora, na verdade, ela não tenha ideia, mas sou grata por isso. Se
ela soubesse o que fiz de fato, estaria correndo o mais rápido que
pode na direção oposta. Somos treinadas para não nos
aproximarmos dos detentos por esse exato motivo. Perdemos a
nossa objetividade e isso pode ser perigoso, até mesmo mortal. Um
erro… um passo em falso, e podíamos estragar tudo e custar a vida
a alguém. Ou perder a nossa.
Repreendo-me por minha estupidez e completo egoísmo.
Deve ter sido insanidade, eu acho. Nada mais explicaria o motivo de
ter deixado Gracin me tocar. Ou fazer muito mais do que me tocar.
Não.
Não posso pensar nisso.
— Se cuida, — Annie me diz, enquanto enrola um
estetoscópio no pescoço.
Respondo algo apropriado ou, pelo menos, espero que sim.
Annie parece aceitar minha resposta e começa a verificar os
prontuários. Deus, preciso me recompor. Enfio os dedos nos olhos
até ver manchas.
Comparada à minha própria vida, a de Annie é tranquila. Ela
tem uns 25 anos, talvez. Sou apenas dois anos mais velha, mas
parece que uma vida inteira de diferenças nos separa. Segundo ela,
este é apenas um trabalho temporário e planeja usar a experiência
para conseguir um emprego como enfermeira itinerante. Ela quer
sair dessa cidade e conhecer o país. Nunca viajei para fora de
Michigan, e não prevejo um fim para a minha vida em Blackthorne,
pelo menos não enquanto Vic tem algo a dizer sobre o assunto. Ele
gosta de me manter, literalmente, ao alcance de suas mãos. Annie
está feliz solteira, e eu sufoco um pouco mais a cada dia que passo
casada com Vic.
Um suspiro se transforma em bocejo enquanto volto para os
armários para recuperar minhas coisas. A minha autopiedade é
exaustiva. Eu mesma me coloquei nesta confusão. O meu
casamento com Vic, o meu… seja o que for com Gracin. Ambos são
culpa apenas minha.
Despeço-me das pessoas na recepção, mas elas não
prestam mais atenção em mim do que prestaram esta manhã. Às
vezes, penso que eu poderia entrar na prisão com uma arma como
uma lunática delirante e ninguém piscaria um olho. É como se
tivessem treinado para não olhar para mim. Mas aprendi que é
assim que são as coisas. As pessoas não querem ver o que as
assusta. Não querem ajudar você com os seus problemas. Querem
que você fique bem longe da vida deles, pois a complicação do seu
sofrimento é inconveniente demais.
O vento gelado açoita meu cabelo quando atravesso as
portas. Puxo meu casaco para mais perto e me inclino para frente, o
que só serve para deixar o frio se infiltrar pelo meu pescoço. Solto
uma gargalhada. Nunca consigo vencer. Essa é a história da minha
vida.
O interior do meu carro antigo não está melhor e leva três
tentativas para o motor pegar. Enquanto o interior esquenta,
aconchego-me no meu casaco e descanso a cabeça no volante.
Enfio as mãos, que já se tornaram blocos de gelo, entre as pernas
para tentar fazê-las descongelar. No meio de um inverno rigoroso do
Michigan, é uma tentativa quase inútil, mas a ação é reconfortante.
Bem que preciso de um pouco de conforto.
Ou um monte dele.
Lágrimas se acumulam nos meus olhos, mas pisco para
voltarem, e isso faz minhas pálpebras doerem. Toda a minha vida,
senti como se estivesse à procura de afeição, algo que parece vir
tão fácil para todos os outros. Meus pais, se é que podem ser
chamados assim, sequer saberiam o significado da palavra. Quando
não estavam gritando e esbofeteando um ao outro, estavam
berrando e dando tapas em mim. Do mais, apenas fingiam que eu
não existia.
Devo ter sido o alvo perfeito para Vic. Eu não era inocente.
Não desde que Tommy Blankenship me coagiu para o banco de trás
de seu Ford Taurus com todo o charme e promessas que sua
reputação de quarterback no ensino médio poderia lhe agraciar.
Claro, também não houve nenhum carinho nessa ocasião. A transa
no banco de trás durou dez minutos, não que Tommy tenha dado a
mínima para isso. Eu não podia culpá-lo. Sua rapidez veio da
ignorância e não da malícia.
Ainda assim, eu deveria ter aprendido depois disso, mas é
claro que não foi assim. Seguindo o doce e atrapalhado Tommy,
houve uma série de garotos e depois homens que pareciam apenas
alimentar o meu nada. Após obter o meu bacharelado em
enfermagem, conheci Vic e, estúpida como sou, pensei que ele era
diferente.
Como estava enganada.
Ele não me mostrou o rosto por trás da máscara no início. Na
verdade, ele era o homem mais encantador que já conheci. Vic me
cobria de atenção como se eu fosse a mulher mais fascinante que
ele já conheceu. Havia encontros improvisados, os quais só mais
tarde descobri estar além de suas condições, mas na época, eu já
estava perdida sob seu feitiço. Tudo isso só tornou o dia em que ele
me bateu pela primeira vez ainda mais chocante. Não demorou
muito depois disso para eu aprender no que a minha nova vida
implicaria.
Solto uma gargalhada, o som o mais próximo de um riso
humano quanto possível, quando minhas mãos enfim se aquecem o
suficiente para segurar o volante com alguma aparência de controle.
Controle. Isso sim é uma piada. Jamais me senti no controle da
minha vida… nunca.
Quando saio do estacionamento, balanço a cabeça em
negação, mas o pensamento sussurra através das paredes que
ergui, tão determinado quanto o vento gelado em busca da minha
pele. Você sem dúvida estava no controle nos braços de Gracin.
Simples assim, já não sinto mais frio. O desejo que foi dominado a
duras penas durante três anos de casamento parece ser chamado à
superfície com um mero pensamento no que diz respeito a ele.
O vento bate contra o carro enquanto percorro com cuidado
as ruas escorregadias de volta para a casa que Vic e eu
compartilhamos. O confronto com Gracin hoje só ressalta um fato
que venho ignorando: não posso ficar com Vic.
Não sei como vou conseguir fugir dele. Até mesmo pensar
nisso me faz querer estremecer de medo, mas sei que preciso
escapar. Qual alternativa tenho? Deixá-lo me matar? Não vou mentir
para mim mesma e dizer que eu já não tinha contemplado isso.
Deixá-lo acabar com isto de uma vez por todas. A morte seria quase
um alívio.
Mas há uma parte de mim que simplesmente não me deixa
desistir. Quase me odeio por isso, porém, apesar das vezes que ele
tentou tirar isso de mim, ele ainda não conseguiu.
Começo a planejar enquanto faço o longo trajeto para casa.
Sem dúvida, Vic vai se vingar por eu revidar, mas farei o que faço de
melhor: aguentarei. Mas só por mais um dia. Mais um dia e,
enquanto ele estiver no trabalho até tarde amanhã, compensando
as horas que perdeu hoje, colocarei meu plano em ação assim que
sair do meu turno. Vou fugir e me esconder o tempo necessário para
me livrar dele.
Gracin… foi um erro o que aconteceu entre nós. Um calafrio
percorre o meu corpo quando entro na garagem e fico parada por
mais alguns preciosos segundos de paz. Beijá-lo, deixá-lo me tocar
e me dar prazer foi uma medida de controle, de liberdade, que eu
não tinha há muito tempo. Deu-me a sacudida necessária para
despertar e me libertar do controle de Vic. Decido deixar por isso
mesmo antes que qualquer outra coisa aconteça. A intuição me diz
que ele é tão perigoso quanto parece e eu tive homens
manipuladores suficientes para toda a vida.
Uma luz se acende na janela da sala de estar. Vic está, sem
dúvida, à minha espera lá dentro. À espreita, preparando-se,
esperando o momento certo. O castigo desta noite, com certeza,
será pior do que qualquer coisa pela qual já sobrevivi, mas sairei
viva disso, sei que vou, porque amanhã…
Amanhã estarei livre da prisão que eu mesma criei.
Minha marcha é lenta enquanto caminho pela calçada
escorregadia. Um cansaço profundo se instala sobre mim, tornando
cada passo um pequeno feito por si só. Minha demonstração de
desafio na noite anterior pegou Vic desprevenido, mas esta noite,
ele estará pronto. Ele teve o dia todo para pensar sobre as coisas
perturbadoras que quer fazer comigo.
Abro a porta com as mãos firmes e o encontro sentado no
sofá assistindo a um jogo de futebol americano, o que me faz querer
rir de novo. Durante todo esse tempo juntos, Vic sempre odiou a
ideia de assistir esportes, prefere os jornais ou documentários. Por
esse motivo, sei que ele só está fingindo para o meu benefício,
tentando me atrair para uma falsa sensação de segurança.
— Cheguei, — digo descontraída, porque dois podem jogar
este jogo.
Ele resmunga, mas não olha para mim. Enquanto passo para
colocar minha bolsa e jaqueta no armário de casaco, não deixo de
notar a forma como as mãos dele se apertam por reflexo no braço
do sofá. Aposto que ele as imagina em volta da minha garganta.
Vou direto até a cozinha para começar a preparar o jantar. Cerca de
uma hora depois, uma vez que os utensílios afiados estão fora do
caminho, ele faz sua aparição na porta.
— O jantar está pronto, — digo em um tom calmo e coloco o
bife, o purê de batatas e o feijão-verde orgânico no prato. O hábito é
a única coisa que me impediu de queimar a carne e cozinhar demais
os feijões.
Eu não deveria ter me incomodado, pois Vic sequer olha
para a comida.
— Você chegou tarde de novo, — diz, sua voz fingindo
calma.
— Houve um isolamento em um dos blocos de celas, —
tento manter minha própria resposta calma e prática para ele não
ouvir a mentira em minha voz.
— Mesmo? — fala, mas não é uma pergunta.
A tensão aumenta e minha mente vai para as etapas de
limpeza para fazer depois do jantar.
Primeiro, preciso recolher os pratos sujos e guardar as
sobras.
— Sim, houve outra briga hoje, acho. Estávamos muito
atolados.
Vou lavar os pratos na pia e deixar as panelas mais sujas de
molho enquanto faço a pré-lavagem e coloco o resto na máquina de
lavar louça. Quando isso acabar, vou limpar o forno, as bancadas e
a pia até brilharem.
— Aham, — é tudo o que ele diz.
Empurro o prato dele em sua direção e me viro para fazer
dois copos altos de chá. No momento em que eu virar as costas, sei
que ele vai fazer a jogada dele, e é o que acontece. Só estou triste
por ele não ter começado na sala, onde escondi uma arma debaixo
de uma mesinha lateral quando reuni coragem suficiente para deixá-
lo.
Sua mão avança e seus dedos se emaranham nos meus
cabelos longos, puxando para trás e rasgando fios desde a raiz.
Grito de surpresa e dor quando o meu corpo entra em contato com o
dele.
— Não sei o que diabos deu em você, mas vai parar agora.
Inclino o queixo para cima em um convite silencioso para ele
fazer o seu pior.
— Nisso você tem razão, Vic. Quero o divórcio.
Tudo dói.
Meus braços, minhas pernas, minha cabeça, até mesmo meu
cabelo, latejam com cada batida do meu coração. Não há um ponto
no meu corpo que não esteja doendo, mas eu me levanto da cama
de qualquer maneira. É só o pensamento de partir que me mantém
em movimento. Como um imã me atraindo.
Agora tome um banho, diz o tal imã. Lava o cabelo, depois
passa maquiagem e se arruma.
Fazer essas coisas convencerá Vic de que não mudei nada.
Sem dúvida, ele ainda acredita que a surra completa de ontem à
noite foi suficiente para reprimir minha pequena e ineficaz rebelião.
Se alguma coisa, os machucados e dores só servem para firmar a
minha determinação. Ele acha que me convenceu a ficar, mas não
podia estar mais enganado.
Quando enfim vou até na cozinha, Vic já saiu de casa.
Considero sem entusiasmo o fato de que nunca mais o verei. O
pensamento é menos preocupante do que eu imaginava. Na maioria
das vezes, apenas me sinto cansada. Como alguém da minha idade
pode se sentir tão cansada?
Verifico meu reflexo no espelho retrovisor enquanto espero o
carro aquecer. Pelo menos ele ficou longe da minha cara desta vez.
Não posso dizer o mesmo do resto do meu corpo. Meus braços
estão com tantas manchas roxas que eu uso uma camisa fina de
manga comprida debaixo do meu uniforme para escondê-los. Afinal,
aprendi a minha lição. A última coisa da qual preciso é que Gracin
veja o que Vic fez comigo. Não sei qual seria a reação dele, e não
tenho a menor vontade de descobrir.
Meu objetivo hoje é manter a cabeça baixa, fazer o pouco
trabalho designado para mim, voltar para casa, fazer as malas e dar
o fora.
Demora uma eternidade para eu chegar à enfermaria, pois o
frio faz meus músculos, já doloridos, doerem ainda mais. Sinto-me
como se fosse um grande hematoma latejante quando chego lá. Por
sorte, Gracin, o cara que é pontual a um nível doentio, ainda não
chegou. Quando ligo as máquinas, um guarda informa pelo rádio
para encontrá-los no salão principal. Ao mesmo tempo, gritos
surgem do lado de fora da ala médica.
— Fica quieto, porra! — o guarda grita. — Enfermeira!
A adrenalina dispara, permitindo-me mover com relativa
facilidade. No entanto, quando vejo o que me espera no corredor,
quero correr de volta para a enfermaria e me esconder.
Três guardas têm um prisioneiro entre eles, mas o homem
está se debatendo muito para se libertar. Reconheço-o de algumas
semanas atrás. Tinha suturado sua ferida no dia que conheci
Gracin. Leva alguns minutos para lembrar seu nome: Salvatore.
Suspiro em minha mente. Já estou exausta e o dia ainda nem
começou. Diabos, claro que eu teria uma emergência no dia em que
preciso sair mais cedo.
Fico parada assistindo horrorizada e um pouco afastada,
enquanto os guardas, por fim, conseguem subjugar Salvatore, que ri
como se fosse tudo um grande jogo para ele. Como se não
percebesse que está na prisão e este deveria ser seu ponto mais
baixo. Como deve ser ter tanta convicção assim? Só sei que não
faço ideia. Não há uma única coisa na minha vida neste momento
da qual eu tenha certeza, além do fato de tentar abocanhar muito
mais do que consigo. A vida inteira foi apenas como um pedaço de
penugem de dente-de-leão flutuando no vento, seguindo a direção
do capricho dos ventos.
Respiro bem fundo, tentando recuperar meu senso de
desapego e calma, mas é inútil quando percebo que verei Gracin
em breve.
Como se os pensamentos dele o tivessem convocado das
entranhas da prisão, Gracin aparece ao meu lado e, apesar da
maneira como minha vida parece estar se desenrolando ao meu
redor, sua mera presença acalma os meus nervos. Ele e o
prisioneiro se encaram e uma conversa silenciosa passa entre os
dois. Salvatore rosna e uma energia se agita em torno de Gracin
como se fosse algo vivo. Será que se conhecem além daquele
primeiro encontro quando dei pontos em Salvatore?
— Siga-nos para a enfermaria, — um dos guardas vocifera
antes de Salvatore se debater de novo, tentando se libertar do
domínio deles. O preso está com ataduras, algumas manchadas de
vermelho brilhante pelo sangue fresco. Foi com ele que Gracin
brigou? — Maldição, seu desgraçado, acalme-se.
Grata pela distração, sigo a equipe de guardas enquanto
lutam contra Salvatore por toda a ala médica e tentam colocá-lo em
uma maca. Meus dedos tremem enquanto os deslizo pelo cabelo.
Quando foi que a minha vida ficou tão espetacularmente fora de
controle?
Salvatore se acalma quando chegamos à enfermaria. Ele
permite que os guardas o empurrem para uma maca hospitalar,
onde se senta como se fosse seu trono. Gracin segue em silêncio
atrás de mim, e gesticulo para ele pegar meu kit do armário
enquanto coloco as luvas.
— Você vai ficar bem aqui? — um dos guardas pergunta,
enquanto os outros algemam o preso à maca. Mas quando vê
Gracin voltando do armário, Salvatore começa a gritar.
O médico, que supervisiona tanto a ala médica quanto a
enfermaria e as enfermeiras, intervém, como costuma quando se
lembra de fazer seu trabalho. Com precisão fria, passa uma gaze
sobre o ombro de Salvatore e depois pressiona a agulha em sua
pele. Salvatore tenta lutar contra o sedativo, mas não é páreo para a
sua potência e sucumbe em poucos minutos. O médico me dá
instruções para verificar suas feridas anteriores, enfaixar as novas,
depois monitorá-lo e o avisar sobre qualquer mudança até poderem
liberá-lo.
O guarda espera na porta até que eu erga o olhar de onde
estou verificando as ataduras.
— Sim, tenho tudo sob controle. Você pode ir, — digo a ele.
— Tem certeza? — o guarda pergunta, seus olhos vão para a
forma intimidante de Gracin ao lado da maca.
Reviro os olhos enquanto tiro um curativo velho para
substituí-lo por um novo.
— Tenho. Só me deixe fazer o meu trabalho.
Quando estamos sozinhos outra vez, viro-me para Gracin e
encontro seu olhar sobre o detento inconsciente, as palavras
emergem da minha boca por vontade própria.
— O que quer de mim? — pergunto. — Desde que nos
conhecemos, você virou a minha vida de cabeça para baixo. Quero
saber o porquê. Qual é o seu objetivo aqui?
O corpo dele fica imóvel de uma forma nada natural. Como é
que ele faz isso? Como é que ele tem um controle tão fenomenal de
si quando eu pareço desmoronar?
— Tessa, — diz com a voz baixa. — Acho que ambos
sabemos o porquê.
Eu me ocupo em limpar o sangue da testa de Salvatore para
não precisar responder à pergunta dele. Então digo:
— Ajude-me a virá-lo para eu poder trocar essas ataduras.
Não quero perguntar o motivo de ele não me deixar em paz.
Não quero acabar envolvida no que quer que seja isso. As
perguntas estão queimando em minha garganta, mas mordo a
língua para impedi-las de exigir uma resposta real dele. Enquanto
limpo e cubro a ferida de Salvatore, repito várias vezes na minha
cabeça que isso não é da minha conta.
Faça o seu trabalho e dê o fora.
Faça o seu trabalho e dê o fora.
Após enfaixar Salvatore, vou manter a cabeça baixa e
terminar o meu turno. Então estarei livre.
— Você pode jogar isso fora para mim? — peço, distraída,
empurrando um punhado de ataduras sujas na direção de Gracin.
Minha mente está tão focada na tarefa que não percebo que ele não
se moveu para fazer o que peço. Quando olho para cima, pronta
para repreendê-lo por não fazer o seu trabalho, congelo.
No início, não assimilo o que estou vendo. É como se a
conexão entre os meus olhos e o meu cérebro estivesse
experimentando um pane. Gracin, que teve que se mudar para o
outro lado da cama para me ajudar a virar Salvatore, segura uma
tesoura médica na mão direita. A ponta contundente está
pressionada no pescoço de Salvatore e uma gota de sangue se
forma, escorrendo pelo lado da garganta e sumindo em suas costas.
O momento parece levar horas, e o peso puxando meu
pescoço e ombros desaparece, permitindo-me encontrar os olhos de
Gracin. Já os tinha visto estreitos assim antes, como no dia em que
o conheci nesta mesma sala. Mas essa expressão é pior. Meu
primeiro instinto é fugir. Para me afastar do perigo o mais rápido
possível, mas não posso deixar o meu paciente. Parte de mim, a
parte que se submeteu ao seu toque, também não consegue deixá-
lo. Não sem entender.
— O que está fazendo? — A minha respiração é ofegante e
a minha cabeça ruge. — Tire as mãos dele.
As mesmas mãos que me proporcionaram tanto prazer estão
firmes como as de um cirurgião e preparadas para matar. Não posso
deixá-lo fazer isso.
Espero que ele diga alguma coisa, faça exigências, implore,
mas ele não faz nada além de me fitar com um olhar ilegível. Seu
corpo indica sua intenção antes mesmo de ele mover um músculo,
mas não sou rápida o suficiente para impedi-lo de mergulhar a
tesoura no pescoço de Salvatore em um golpe eficiente e mortal.
Um grito escapa de mim e eu avanço para estancar o
sangramento, mas há muito, e está vindo muito rápido. Adormecido
como está, Salvatore sequer se contorce quando Gracin puxa a
tesoura do pescoço dele e sua vida se esvai aos poucos pelos meus
dedos. Segundos passam antes que Salvatore convulsione uma vez
e depois volte a ficar parado de vez.
Com manchas vermelhas-escuras de sangue cobrindo
minhas mãos e se infiltrando em meu uniforme, tropeço para trás.
Tudo o que sei é que preciso fugir. Ir para bem longe do que acabou
de acontecer, para longe de Vic, deste lugar, de Gracin. Apenas
fugir.
Eu me viro, com a intenção de fazer exatamente isso quando
Gracin vem atrás de mim e me prende contra o peito dele.
— Nem pensar, — diz ao meu ouvido, e eu estremeço contra
ele, sentindo muito frio e muito calor ao mesmo tempo. — Ainda não
terminamos.
— Por favor, não me mate, — peço. Pelo visto, Vic não me
espancou a ponto de não conseguir mais implorar pela minha vida.
— Por favor, só me deixe ir. Não direi nada.
— Ah, sei que não dirá nada. — Suas mãos apertam um
pouco mais os meus braços. — Você vai ficar bem quietinha
enquanto cuido do nosso homem aqui. Se alguém entrar, diga que
tem tudo sob controle, assim como fez antes. Consegue fazer isso,
ratinha?
Minhas entranhas ficam mais frias do que a droga de uma
manhã de inverno em Michigan.
— Seu cretino, — sibilo.
— Ora, não fique tão chateada. Apenas faça o que peço e
ninguém mais se machucará.
Se eu tivesse alguma coisa em minhas mãos, eu a teria
jogado no seu rosto cuidadosamente inexpressivo. Minha sede de
vingança se acalma quando ouço o rangido de tênis contra o chão
de azulejos e todo o sangue escorre do meu rosto. Alguém está
vindo. Deixo meus sentimentos de lado e tento descobrir como
diabos vou sair dessa confusão.
— Ei, Tessa, você está bem? — a voz de Annie chama do
corredor.
Meus ombros estão tensos e eu pisco depressa enquanto
minha mente acelera para encontrar uma estratégia de saída. Como
se ele pudesse sentir a direção dos meus pensamentos, os braços
de Gracin me apertam mais.
— Não faça nada estúpido, — avisa. — Me tire daqui e não
terei que ferir mais ninguém.
— Tirar você daqui? — digo, enquanto ofego.
— Blackthorne. Me tire de Blackthorne e não farei nada com
ela. Arranje um jeito de me tirar daqui sem alertar os guardas ou
sermos pegos, e não direi ao seu marido o que fez comigo. Não
contarei o quanto você queria gritar por mim.
— Vá se ferrar! — Tento me afastar dele, mas seus braços
ficam ainda mais apertados ao meu redor.
O som dos passos está bem do lado de fora da porta quando
ele diz:
— Decida-se, ratinha, ou tudo isso acaba aqui.
— Se eu fizer isso, você a deixará em paz? — Não confio
nele, mas não posso arriscar que ele mate mais alguém, ainda mais
alguém como Annie, que não merece.
— Não farei nada. Mas você precisará se livrar dela antes de
ela suspeitar de alguma coisa, ou precisarei cuidar disso.
Não quero saber o que cuidar disso significa, então empurro
os braços dele e, desta vez, Gracin me solta. Antes que Annie
possa virar a esquina e entrar na sala, jogo outro cobertor sobre o
corpo imóvel de Salvatore e torço para cobrir a maior parte do
sangue em seu corpo. Não posso fazer nada sobre o chão, então só
espero que ela não olhe para baixo. Também não posso fazer nada
quanto ao sangue no meu uniforme, mas limpo a maior parte dele
das minhas mãos com uma toalha e a jogo atrás da maca assim que
o rosto preocupado de Annie aparece.
— Ei, — ela já está dizendo com pressa. — Ouvi você gritar
e queria ter certeza de que estava bem… — Sua voz desaparece
quando nota as minhas roupas ensanguentadas e Gracin de pé a
poucos metros de distância. — Tessa?
— Eu sei, estou uma bagunça, não é? — Tento rir, mas soa
como se estivesse sufocando. — Eles acabaram de trazer esse cara
com um ferimento de faca. — Aceno com o dedão por cima do
ombro na direção do corpo de Salvatore. — Sangrou como um filho
da mãe.
— Eu que o diga, — Annie fala devagar, como se não
conseguisse entender o clima estranho na sala ou a razão de eu
estar agindo como uma louca. — Está tudo bem mesmo?
— Tudo sim. Apenas uma bagunça enorme para limpar. —
Quando ela não sai depois de outra pausa, acrescento: — Obrigada
por verificar. Desculpa se te assustei. Não sabia que você estava
trabalhando esta manhã também.
Ela faz uma pausa, os olhos disparando de um lado para o
outro, entre Gracin e eu.
— Precisei fazer um plantão duplo, — ela diz e percebo as
manchas escuras sob seus olhos. — Tem certeza de que está tudo
bem por aqui?
— Tudo certo. — Olho por cima do ombro para a expressão
ilegível de Gracin. — Ele estava prestes a me ajudar a limpar essa
bagunça, — digo como se ele não tivesse acabado de matar um
homem com uma tesoura e depois ameaçado matá-la e, talvez, a
mim também.
Annie deve perceber alguma coisa nos meus olhos, alguma
emoção que não consigo controlar porque ela faz um movimento
para correr, para pedir ajuda. Antes de poder avisá-la para parar ou
até mesmo virar na direção de Gracin, ele está do outro lado da sala
com as mãos enroladas na garganta de uma Annie perplexa. Os
braços dele flexionam e as lágrimas vazam dos olhos dela enquanto
Annie luta para respirar. O fato de eu ter deixado este homem me
tocar faz a bile subir para a parte de trás da minha garganta.
Consigo olhar nos olhos de Gracin, e me assusto ao
perceber que os mesmos olhos que eu achava tão sedutores agora
parecem tão mortos e tão duros quanto o gelo cobrindo as pedras
no chão do lado de fora.
Seu aceno de cabeça é quase que uma sacudida.
— Me tire daqui e deixarei a doce e pequena srta. Annie
correr para casa.
— Tudo bem! — respondo, quase gritando. Eu faria qualquer
coisa se isso significasse que ele tirasse as mãos dela.
Gracin solta Annie e murmura palavras que não consigo
ouvir, mas posso adivinhar o que seria. Seu rosto empalidece e eu
lhe envio um olhar suplicante, torcendo para ela entender que ele
vai mesmo matar nós duas se ela não o obedecer. Se eu sobreviver
hoje, posso muito bem matar Gracin por isso. A única coisa me
impedindo de enlouquecer nesse momento é imaginar todas as
diferentes maneiras que eu poderia matá-lo.
— Não faça nada estúpido, — o próprio diabo adverte,
enquanto outro conjunto de passos se aproxima da sala.
Para minha surpresa, Annie consegue se recompor assim
que os passos param. O que quer que Gracin tenha dito a ela deve
ter sido eficaz, porque a única evidência de sua angústia é a
vermelhidão que circunda seus olhos e inunda suas bochechas.
Enquanto Gracin se senta em uma das macas, rezo para o meu
controle ser tão absoluto quanto o dela.
— Como estão todos aqui? — o guarda pergunta, por fim
colocando a cabeça através da porta. Se ele percebe em alguma
coisa estranha entre nós três, não diz nada. Seus olhos apenas
percorrem a sala sem de fato ver nada antes de ele acenar para a
maca em que Salvatore está. — O doutor deu autorização para tirá-
lo daqui?
No final, eu nem sequer preciso pensar duas vezes sobre o
que farei. A ação parece tão natural quanto respirar. Talvez eu tenha
me tornado melhor em mentir do que pensava.
— Vou precisar mantê-lo em observação. Aqueles caras
fizeram mesmo um estrago nele. Ele pode ter uma concussão. —
Fico feliz ao descobrir que o medo não me faz gaguejar. Meu tom
parece tão entediado e impaciente quanto o dele.
O guarda se mexe, sem dúvida desconfortável, seja pela
menção da surra que deram no preso ou porque vão ralhar com ele
por não trazer o prisioneiro de volta.
— O sargento não disse nada sobre ele precisar ficar de
observação. Ele deveria voltar para a cela quando você terminasse
o tratamento.
Preciso reunir toda a determinação que não sabia ter
enquanto digo:
— Por acaso vai se responsabilizar se ele sofrer mais lesões
só porque você estava muito impaciente? Apenas me deixe fazer o
meu trabalho. E você faça o seu. — Então espero, pois aprendi que
as pessoas ficam mais desconfortáveis quando há um silêncio
tenso, e elas farão qualquer coisa para evitá-lo.
— Você quem manda, — ele diz, passando a mão pelos
cabelos e dando um passo para trás em direção à porta. — Eu que
não vou arriscar. Ele é todo seu. — O guarda faz uma pausa, talvez
enfim sentindo a tensão emanando em ondas tanto de Annie quanto
de mim. — Tem certeza de que está tudo bem? Se quiser, posso
pedir a outro guarda para vir…
— Não, não há necessidade, estamos bem, — eu o
interrompo. Meu tom sai mais brusco do eu que pretendia, porque
ele não faz ideia do quanto está próximo da verdade.
O guarda, sem dúvida irritado com a minha interrupção e
tom, levanta as mãos.
— Como quiser, — responde e se afasta.
Com o coração na garganta, volto-me para Annie para
oferecer uma explicação ou defender meu caso, mas ela se afasta,
seus movimentos tão rápidos e instintivos que quase tropeça nos
próprios pés.
— Não, — choraminga. — Apenas… não.
Gracin observa do seu lugar do outro lado da sala, sua
expressão ilegível. A atração que tem estado sempre presente
desde que nos conhecemos se transforma em raiva, mas consigo
canalizá-la em determinação. Tenho que fazer isto dar certo. Por
Annie.
— Você vai precisar ficar fora do caminho até chegar a hora,
— digo a ele. — Vamos ter que esperar pela mudança de turno, e
você já causou problemas suficientes hoje.
— Sim, senhora, — diz, a diversão clara em seu tom.
Cerro os dentes e o imagino sendo estripado com um bisturi.
Annie se senta atrás do computador, deixando-me para
enfrentar a onda de pacientes da tarde, uma mistura de regulares
que vêm para tomar seus remédios e um punhado de presos para
exames anuais. O trabalho mantém minhas mãos ocupadas, mas
minha mente está em Gracin, que permanece sentado com
tranquilidade no canto. Quando a enfermeira encarregada dos
cuidados médicos passa para perguntar sobre a presença de Annie,
eu imploro, dizendo que estou atolada e preciso muito da ajuda de
Annie.
Sob seu olhar severo, limpo a cena do crime com mãos
instáveis, lágrimas silenciosas escorrendo pelo meu rosto. Há
sangue por todo o rejunte de novo, e não posso deixar de comparar
isso com a noite em que fui obrigada a limpar o meu próprio depois
de uma das sessões de espancamentos de Vic. Engasgo com o
meu desgosto e jogo as toalhas ensanguentadas no cesto
apropriado. Permito que Gracin se levante por tempo suficiente para
me ajudar a trocar os lençóis da cama de Salvatore. Quando
termino, parece que ele está apenas descansando em paz, e isso só
me faz chorar mais.
No final do dia, meus nervos estão abalados e não consigo
parar de tremer. O pobre homem, cujo remédio estou tentando
administrar, aguarda vários longos minutos enquanto me atrapalho
com frascos até encontrar o correto. Murmuro um pedido distraído
de desculpas, enquanto o paciente me lança um olhar irritado.
Mesmo que eu tenha tentado com todas as forças ignorar
Gracin, sempre me pego olhando para cima enquanto estou no meio
do tratamento dos pacientes. Todas as vezes, ele está me
observando, à espera. Em resposta, mostro meus dentes, mas isso
só o faz sorrir. É óbvio que ele me tem nas mãos. Não há
necessidade de continuar com a farsa. Isso só me dá vontade de
arrancar seus olhos.
Quando Gracin se levanta para uma posição sentada e me
prende com um olhar, sei que chegou a hora. Com um aceno de
cabeça, olho para a porta e descubro que o guarda abandonou seu
posto para a mudança de turno da noite. O próprio pensamento do
quão preciso Gracin orquestrou toda essa situação faz todo o meu
corpo gelar. Se ele pode fazer isso, do que mais é capaz?
Assassinato pode parecer o pior ato no espectro, mas após anos de
tortura pelas mãos do único homem em quem eu deveria confiar,
descobri haver coisas piores do que uma morte rápida.
Annie ainda não me disse uma palavra, e ela não saiu do seu
lugar atrás da mesa. Quando Gracin se levanta e segue na direção
dela, ela se encolhe contra a cadeira, o móvel fazendo um rangido
terrível.
— Gracin, não…
Mas antes de eu terminar o meu apelo, ele ataca com uma
graça rápida, sua velocidade sempre me deixa surpresa,
considerando o corpo volumoso. O punho dele colide com a
bochecha de Annie, os olhos dela rolam na parte de trás da cabeça
e ela cai de qualquer jeito na cadeira. Ele ignora meu grito de
protesto e ajeita com cuidado o corpo dela de frente ao computador.
Quando acaba, as costas de Annie está virada para a porta. Caso
alguém olhasse para ela, pareceria que está trabalhando. Durante a
mudança de turno, ninguém vem para a enfermaria e a maioria dos
detentos está ocupada indo e voltando do refeitório para o jantar.
Espera-se que Salvatore durma a noite toda para observação, e
ninguém além de mim saberá de seu verdadeiro estado.
Isso está mesmo acontecendo e meu estômago afunda com
o pensamento. Estou prestes a arruinar a minha vida por este
homem. Todos os prisioneiros que nos viram juntos. Os guardas
subornados por ele. Todos me verão tirá-lo da prisão, e só posso
imaginar as notícias no jornal. O julgamento. Meu Deus, Vic vai ficar
furioso.
— Hora de brincar, ratinha.
— O que é, exatamente, que você quer que eu faça? —
questiono. Passo a língua sobre os meus lábios secos. A minha
garganta está tão arranhada a ponto de fazer os meus olhos
encherem d’água. O pânico faz isso com você, eu acho.
— Quero que você faça uma chamada para uma emergência
médica.
Minha mente dispara, conectando os pontos, os quais eu
estava distraída, ou cega demais, para notar em primeiro lugar.
Esse é o motivo para Gracin ter me escolhido como alvo quando
nos conhecemos. O motivo de ele não me deixar em paz desde
então. O porquê de ele fazer de tudo para se aproximar de mim
quando eu estava no meu momento mais vulnerável.
— Você… — Ranjo os dentes para conter o fluxo de
palavras. — Esse era o seu objetivo final. Não me procurou porque
se preocupava com o que o meu marido fazia comigo. Você não dá
a mínima para isso.
Ele se aproxima, mas não recuo. Seus olhos percorrem a
minha expressão dura.
— Você pode me punir por isso mais tarde, — diz. — Faça a
ligação.
Gracin caminha de volta até o lugar dos computadores, onde
Annie cai um pouco grogue sobre o teclado. Ele coloca a mão na
cabeça de Annie e acaricia seu cabelo de forma distraída.
A ameaça é clara.
Minhas mãos não tremem quando alcanço o aparelho na
mesa e disco o número da sala de controle. A linha toca por alguns
longos segundos, então uma voz familiar responde.
— Sala de controle, sargento Bennet falando, em que posso
ajudar?
— Sargento Bennet, aqui é a enfermeira Emerson da ala
médica. Tenho um paciente aqui necessitando de uma ambulância
para transportar ao hospital.
— Número do detento e informações médicas?
— Número 8942589. O detento apresenta sintomas de
apendicite. Precisa ser transportado imediatamente para mais
exames, — tento soar o mais impaciente possível para parecer estar
apenas fazendo o meu trabalho.
— Prepare o detento para o transporte.
— Obrigada, — respondo.
Eu me viro e encontro Gracin parado atrás de mim.
— Deite-se logo na maca, — digo depressa a ele. — Era
para você estar doente.
— Gosto quando você fica mandona, — provoca com um
sorriso, enquanto pula na maca e se reclina.
— Já eu gosto quando você mantém a boca fechada.
Ele geme como se estivesse satisfeito.
— Você só está melhorando as coisas para mim, ratinha.
Eu o amarro e dou um tapinha nos bolsos para me certificar
de as chaves do carro ainda estarem lá. Não terei muito tempo entre
colocá-lo na ambulância e fugir. A próxima pessoa a passar por
aquelas portas vai encontrar Annie, e ela, sem dúvida, não hesitará
em contar tudo, então a polícia estará atrás de mim. Eu só preciso
fugir antes de isso acontecer.
Não sei para onde vou, mas precisa ser um lugar longe o
suficiente para Vic, a polícia e Gracin não me encontrarem.
Tipo uma ilha deserta no meio do oceano.
— O que você está pensando tão concentrada assim? —
Gracin pergunta, enquanto começo a levá-lo pelo corredor.
— Em férias, — respondo. – Agora fique calado. Você
deveria estar incapacitado e com uma dor excruciante.
— Continue falando comigo assim, — murmura, — e uma
parte de mim vai doer de verdade.
— A sua cabeça, porque posso muito bem derrubar o seu
traseiro no concreto por acidente. Então, mantenha a boca fechada
até chegarmos à ambulância.
Antes de ele ter a chance de responder, o guarda convocado
pelo diligente sargento Bennet chega para nos escoltar até a
ambulância no portão. Minha chance de dar meia-volta vem e vai,
então sou obrigada a seguir o guarda enquanto ele se move a um
ritmo acelerado. Preciso dar dois passos para cada dele enquanto
atravessamos a prisão em direção ao portão oeste, onde a
ambulância está esperando.
A partir daí, tudo acelera. Quase consigo fingir que as coisas
estão acontecendo através do filtro de um sonho. Se não fosse por
esse filtro, a gravidade da situação teria sido demais, a ponto de o
peso dela poder me esmagar. Quando uma onda de pânico ameaça
me sufocar, sinto a mão de alguém roçar a minha e encontro Gracin
me observando. Afasto a minha no mesmo instante e respiro fundo.
Você consegue fazer isso, Tessa.
Nós saímos direto para o frio escorregadio e eu xingo
baixinho quando recebo o tapa de ar gelado contra a minha pele
nua. Sem o meu casaco, é como saltar no oceano atlântico no estilo
Titanic. Porém não há herói para me convencer a sair da borda. No
meu caso é o vilão quem me força a dar o primeiro passo para a
água.
A ambulância já está à espera junto ao portão, com outro
guarda numa van parada ao lado da torre de controle. Uma parte de
mim vinha torcendo para algo dar errado. Para alguém descobrir
Annie ou Salvatore, perceber o fingimento de Gracin ou me
questionar sobre a doença dele, mas nenhuma dessas coisas
acontece.
O guarda nos escoltando guia a maca até a parte de trás da
ambulância e eu me agarro a ela, mesmo que apenas para ter uma
âncora no turbilhão da minha incerteza. Um paramédico emerge da
parte de trás da ambulância, depois ele e o guarda transferem
Gracin para outra maca e o carregam sem qualquer problema. Uma
sensação doentia e oleosa começa a rolar no meu estômago e a
minha mandíbula cerrada é a única coisa me impedindo de vomitar
aos pés deles.
Em segundos, o guarda está pulando na ambulância atrás de
um Gracin deitado, enquanto o paramédico fecha a porta.
Cambaleio de volta nos calcanhares, tropeçando no pavimento
escorregadio e estendendo a mão de forma cega para a maçaneta
da porta para me manter em pé. A ambulância segue para o portão
e faz uma pausa enquanto ele se abre. Meu coração dispara,
batendo de maneira errática enquanto espero que alguém soe o
alarme, mas nada acontece. Na verdade, a ambulância desliza
através do portão aberto e a van segue atrás sem qualquer alarde.
Acontece que, quando a sua vida desmorona bem diante dos
seus olhos, não é com um estrondo… é com um sussurro.
Por todo o caminho de volta, atravessando a prisão até a
sala de controle, tenho certeza de que alguém vai me parar e exigir
saber onde Gracin está. Pulo com cada som e paro de respirar
sempre quando ouço passos ou vozes vindo em minha direção. Mas
eles apenas passam sem olhar. Deveria ser reconfortante, mas tem
o efeito oposto, aumentando a minha ansiedade até me sentir como
se fosse partir ao meio de tanta tensão.
Volto para os vestiários e recolho as minhas coisas. Quando
fecho a porta do armário, percebo como esta talvez seja a minha
última vez aqui, então o abro de volta, limpo todos os meus
pertences e jogo fora o pouco de lixo dentro dele. Minha bolsa está
um pouco mais pesada do que o normal, meus passos são
hesitantes e arrastados enquanto faço o meu caminho até a sala de
controle, onde reina o caos.
Há dois guardas de serviço e ambos estão tão ocupados que
leva alguns minutos até me verem esperando do outro lado do vidro
grosso. Um levanta a sobrancelha para mim, eu coloco minhas
chaves através da guarita e bato o ponto. Não é o fim do meu turno
e Annie é a única enfermeira de plantão, mas não comentam e eu
não me atrevo a chamar a atenção para o fato.
— Até amanhã. — São as primeiras palavras que extraio do
guarda.
Dou uma resposta apropriada, mas a minha voz falha. Não
consigo forçar qualquer entusiasmo nas palavras.
Não vou voltar. Ou fujo deste lugar, ou eu mesma vou para a
cadeia.
O choque me atinge no caminho para casa, então a
dormência me inunda, e sou grata por isso. A sensação dissipa
todas as dúvidas, os medos e as esperanças. Sinto tudo através de
uma camada agradável de névoa quente e difusa, e só consigo
estacionar o carro na garagem com segurança porque já tinha feito
isso tantas vezes que é quase uma memória muscular.
Movendo-me no piloto automático, estaciono e vou direto
para o quarto para fazer as malas. Não há razão para me demorar.
Além disso, não quero arriscar estar aqui quando Vic ou a polícia
aparecerem. Sutiãs e calcinhas, camisetas, jeans, todos são
jogados no saco de maneira indiscriminada. Não vou precisar de
nada extravagante. Em especial a lingerie ridícula que Vic uma vez
insistiu para eu vestir. Isso fica na gaveta. Por um momento,
contemplo queimar a peça, mas o esforço não valeria a pena.
Pego minhas coisas do banheiro e olho para o quarto onde
vivi nos últimos três anos. Não há nenhuma lembrança da minha
infância, nenhum álbum de fotos ou cobertores de bebê. Joguei tudo
do meu dia de casamento fora depois da lua de mel, também não
me incomodei com o álbum de fotos depois disso. Não quero levar
mais nada comigo além das roupas.
Talvez isso seja uma coisa boa. Um novo começo.
Carrego a bolsa e vou para a porta da frente, planejando os
meus próximos passos à medida da necessidade. Talvez eu vá para
o México. Ou algum outro lugar com sol para queimar toda a
tristeza.
Eu nem teria visto o desenho se não estivesse colado à porta
bem na frente do meu rosto. Só há uma pessoa capaz de tê-lo
colocado lá.
— Não, não, não… — Não percebo que estou falando isso
até a minha voz falhar com as lágrimas. O desenho sou eu no dia
em que visitei a cela dele. Estou agarrada às barras e parecendo
um pouco selvagem, meus olhos brilhantes e minhas mãos
agarrando o metal como se as barras fossem o meu amante.
Claro, isso só pode ser fruto da minha imaginação, como um
terror noturno, exceto que estou no meio do dia. Não consigo
acreditar que Gracin está parado na porta até ele dizer meu nome.
— O que está fazendo aqui? — pergunto, olhando aflita em
volta, como se eu fosse capaz de encontrar as respostas no ar. Mas
nada disso adianta. Sei muito bem o motivo de ele estar aqui.
Estaria mentindo se dissesse que não esperava voltar a vê-lo.
Quando Gracin entra e fecha a porta atrás dele, percebo sua
mudança de roupa. Não está mais usando o uniforme padrão da
prisão. Estreito os olhos quando ele vem para a luz, tentando ver o
que ele está vestindo. Então me dou conta. As calças são tão
familiares porque as vejo no trabalho todos os dias. São de um
uniforme dos guardas da prisão. Não é preciso ser um gênio para
descobrir que Gracin deve ter dominado o guarda o escoltando na
parte de trás da ambulância e escapado de alguma forma.
Engulo o nó na garganta e faço a pergunta que está fazendo
o meu estômago revirar.
— Você… você os matou?
Ele ergue uma sobrancelha. Depois de uma pausa, diz:
— Não, não os matei.
Se eu não o conhecesse, diria que sua voz parecia quase
cansada, mas isso é algo impossível. A energia emanando dele em
ondas tem meu pulso respondendo da mesma forma. A adrenalina
dispara e queima em meu sangue. Enquanto ele se aproxima, dou
passos atrapalhados para trás. Com um olho nele, procuro uma
arma, quase fervendo de raiva. Estou farta de ser caçada nesta
casa. De ser aterrorizada e intimidada por homens como ele.
Em vez de recuar, avanço em sua direção. Gracin não está
esperando meu movimento repentino e, desta vez, meu empurrão o
pega desprevenido e o joga contra a parede. Os quadros se
deslocam do lugar, caindo no chão em uma espetacular chuva de
vidros quebrados. Suas mãos se levantam para bloquear enquanto
ataco com os punhos, descarregando um turbilhão de frustração
reprimida em qualquer parte dele ao meu alcance.
Minha fúria não conhece limites, eu bato, soco e arranho
cada centímetro disponível de sua pele. Sons irreconhecíveis
rasgam minha garganta e logo estou ofegante pelo esforço. Minhas
unhas descem por sua bochecha e arranham ao longo da garganta,
rompendo a pele. Ele xinga e pega os meus pulsos com facilidade
em uma mão e me prende contra o sofá com os quadris.
— Por que você está aqui?! — grito com ele. — Fiz o que
você queria. Eu te tirei de lá. Você ganhou!
Seu corpo fica imóvel e ele pressiona, aproximando-se o
máximo possível de mim. Meu coração vai parar na garganta e
minha pulsação acelera de forma descontrolada.
— E se eu quiser você? — pergunta em voz baixa.
Meus lábios se separam e, pela primeira vez, não tenho uma
réplica. Jamais esperava que ele dissesse isso.
Quando consigo falar, sai mais como um grunhido.
— Você é doente, — digo, tentando me afastar dele. —
Depois de toda a merda que fez, voltou a me procurar para quê?
Uma transa? Vá se ferrar!
Ele me ignora e diz:
— Venha comigo.
Meu cérebro entra em curto-circuito.
— O quê?
Ele afrouxa o aperto nos meus pulsos.
— Venha comigo. Agora. Vamos embora juntos.
— Não pode estar falando sério! — exclamo. — Você acabou
de matar um homem! Não vou a lugar nenhum com você.
— Falo muito sério, — responde. — Você não pode ficar
aqui, por isso venha embora comigo. Posso te manter segura.
— Me manter segura? Você está fugindo da polícia! Acabei
de te ajudar a escapar da prisão. — Nesse momento, uma risada
escapa de mim e meu corpo se dobra, minha cabeça indo para o
peito dele enquanto as emoções borbulham. — Pelo visto isso
significa que eu também preciso fugir da polícia.
Ele inclina o meu queixo para cima.
— Então fuja comigo.
Não tenho a oportunidade de responder a sua pergunta
porque Vic escolhe esse momento para entrar pela porta da frente.
O meu coração vai parar na garganta e o meu corpo se transforma
em pedra. Gracin não hesita em me empurrar para trás, protegendo-
me contra Vic.
Isso não pode estar acontecendo.
Os olhos de Vic nos encontram na sala de estar, ele solta um
suspiro e os olhos se arregalam. A expressão seria quase cômica se
a situação não fosse tão terrível. Suas bochechas ficam vermelhas
de raiva e uma veia no canto de sua têmpora começa a pulsar
quando ele avança… direto para o punho de Gracin.
Se eu o achava capaz de violência antes, não é nada
comparado à surra que ele dá em Vic. O som dos punhos se
encontrando com a carne me lembra de todas as vezes que Vic fez
o mesmo comigo. Uma voz dentro da minha cabeça me diz que
devo intervir, pedir para Gracin parar, concordar em ir embora com
ele, qualquer coisa para fazê-lo desistir, mas não consigo dizer as
palavras. Extraio uma satisfação doentia e distorcida de cada som
de dor, de cada golpe. É a vingança que eu não sabia que
procurava. O rosto de Vic está coberto de sangue e o olho já está
inchado, mas Gracin continua.
— Porra de pedaço de merda, — diz, grunhindo com o
esforço necessário para levantar um Vic cambaleando de volta aos
seus pés. — Qual é a sensação de apanhar, filho da puta?
— Vá se foder, — Vic diz, cuspindo sangue e ganhando outro
soco. A força do impacto o faz guinchar e sua cabeça se inclina para
trás, o sangue jorrando do nariz.
Gracin se prepara para dar outro golpe quando Vic se lança
para o lado e agarra o abajur da mesinha lateral. Um do tipo bem
caro. Então ele bate no lado da cabeça de Gracin.
— Não! — grito, enquanto ele desaba no chão perto da mesa
de café.
Corro para o lado de Gracin, tentando sentir sua pulsação e
sou tomada por alívio quando ela bate contra meus dedos.
Não tenho tempo para examiná-lo de forma adequada antes
de Vic tropeçar para o meu lado e me colocar de pé com um punho
enrolado no meu cabelo. Eu me viro por instinto, com a arma na
mão. Minha mente não deixa de notar o detalhe: mesmo tendo
escondido uma arma, em nenhum momento a saquei para me
proteger contra Gracin.
Vic solta uma risada.
— Acha mesmo que vai usar isso em mim, garota? — Sua
mão sai coberta de cuspe e sangue enquanto ele limpa o rosto. —
Você não tem culhões para isso. Sua puta maldita.
Gracin geme ao meu lado enquanto eu endireito os pés, a
arma levantada e apontada para a forma imponente de Vic.
— Cale-se e fique onde está, — aviso a Vic. — Um
movimento e não hesitarei em colocar uma bala nesse seu maldito
pau.
Sinto o movimento ao meu lado e dou uma olhada rápida
para baixo, vendo Gracin envolver uma mão machucada em torno
do meu tornozelo. Só de tê-lo me tocando me acalma de uma
maneira que nunca aconteceu antes. Tiro força da sensação da mão
dele em mim e volto a encarar Vic.
— O que vai fazer? Atirar em mim? — Ele ri, o sangue
escorrendo pelo queixo. — Isso eu pago para ver.
— Gracin, — digo à sua forma caída. — Consegue se
levantar? — Sua mão pressiona a cabeça e ele se levanta para uma
posição sentada com um gemido. — Consegue andar?
Quero ajudá-lo, mas não posso tirar os olhos de Vic.
Gracin se ergue até ficar de quatro e depois se agacha.
— Sim, — ele diz, a voz bem rouca. — Sim, estou bem.
Vic dá um passo em nossa direção e eu levanto a arma.
— Não, — digo entredentes.
— Se vai atirar em mim, então me mate logo, — Vic diz. —
Pare de ficar enrolando.
Eu o ignoro e ajudo Gracin a ficar de pé com a minha mão
livre, o que não é fácil, considerando o tamanho dele.
— Estou bem, — digo a ele.
— Ele está bem, você está bem, estamos todos bem nessa
merda, — Vic diz. — Vai me dizer ou não o que ele está fazendo na
minha casa?
— Estou indo embora, Vic. — O alívio em apenas dizer
essas palavras, ainda mais acreditando que nunca seria capaz de
falar, é intenso e imediato. A mão de Gracin aperta a minha. — Nós
vamos sair agora, e você não vai nos seguir.
As narinas de Vic dilatam.
— Você não vai a lugar nenhum, — diz e dá um passo
ameaçador à frente.
Gracin se endireita atrás de mim, sem dizer nada, mas ele
não precisa. Sua presença me faz sentir segura pela primeira vez
desde quando Vic começou a me agredir. Em vez de desmoronar,
meus joelhos travam no lugar e meu braço vacilante se firma.
Gesticulo com a arma.
— Levante as mãos e afaste-se da porta.
Vic não faz nem um nem outro. No entanto, para ser sincera,
eu não esperava que ele me obedecesse.
— Quer saber, — Vic diz. — Eu sempre soube que você era
uma vadia. Lixo como você nunca será nada além disso.
Meu dedo puxa o gatilho, mas o tiro sai sem controle,
atingindo a parede. A poeira do reboco se espalha no ar, cobrindo o
braço de Vic e parte de seu rosto enquanto ele pula para o lado.
Dou um salto para trás e vou de encontro com a parede dura que é
o peito de Gracin.
— Jesus Cristo, você é uma psicopata, — Vic diz, quando
consegue recuperar a voz, por mais instável que esteja.
— Tem toda a razão. Sou a psicopata com a arma. Aquela
capaz de te ferir, para variar. Então, pare de falar e saia do meu
caminho.
Vic olha para mim com uma expressão perplexa, como se
nunca tivesse me visto antes. E nunca viu mesmo. Não essa versão,
pelo menos. A que está farta e cansada de ser o saco de pancadas
dele. Ao menos ele fez como pedi. O tiro o assustou o suficiente
para ele pular bem longe do caminho da porta agora. Aproveito seu
momento de choque e começo a avançar na direção da saída. Não
me atrevo a olhar para Gracin quando ele começa a se mover, pois
sei o que vou fazer com ele quando sairmos daqui.
Se sairmos daqui.
Aponto a arma para ao barriga de Vic, e ele levanta as mãos.
Gracin chega à porta primeiro e, quando eu começo a acreditar que,
afinal, posso sobreviver à noite, Vic avança para a arma.
Sinto o recuo nos meus braços antes mesmo do meu cérebro
registrar o que aconteceu. A força percorre todo o caminho até o
osso, quase fazendo a minha mão ficar dormente. Eu me preparei
para o primeiro tiro, mas este me surpreende tanto quanto a Vic,
que está com dificuldade para respirar. O pequeno buraco em seu
peito expele sangue e ele grunhe, suas mãos tentando em vão parar
o sangramento enquanto ele cai no chão.
A arma desaba no chão e eu caio de joelhos, minhas mãos
lutando para ajudá-lo a cobrir o buraco em seu peito, mas meus
esforços são em vão. Os minutos até ele ofegar seu último suspiro
são os mais longos de toda a minha vida. Seus dedos, de repente,
apertam os meus e depois se soltam, os braços caindo para os
lados.
— Vic! — Agarro os ombros dele. Gracin vem para o meu
lado e eu olho para cima, desesperada. — Ligue para a emergência!
— Quando Gracin não se mexe, berro com ele. — Ligue para a
emergência!
Ele só me encara com uma expressão ilegível e isso me faz
querer machucá-lo.
— Por que você só fica aí parado me encarando? Ele está
morrendo!
Com uma calma que me enfurece, Gracin diz:
— Não há nada que você possa fazer. Ele está morto.
Levanto-me do chão, incapaz de suportar encarar o olhar
vazio de Vic, mas sem saber o que fazer comigo mesma. O ar na
sala está espesso com o cheiro de cobre de seu sangue e tento
respirar mais dele, mas parece que estou o puxando através de um
cobertor grosso. Começo a tatear às cegas ao redor da sala,
batendo em móveis e esbarrando em paredes até mãos me
puxarem e me envolverem com força.
— Ei, — diz uma voz suave. — Ei, não, está tudo bem.
Querida, se acalme. Preciso que você fique calma. Está tudo bem.
Você está bem.
É uma ladainha de conforto me pedindo para segui-la de
volta à realidade. As peças começam a se unir aos poucos, então,
de repente, tudo de uma vez. Como se estivesse acordando de um
pesadelo terrível.
— Pronto, assim mesmo. Você consegue. Volte para mim.
Abro meus olhos cerrados e encontro Gracin olhando para
mim. Alívio, ou algo parecido com isso, brilha em seus olhos verdes
antes de dar lugar para outra expressão bem familiar.
Empurro para me afastar dos braços dele, mas não adianta e
eu já devia saber disso. Ele tem suas garras fincadas em mim. Acho
que nunca me deixará ir.
— Tire suas mãos de cima de mim, — rosno e preciso
desviar o olhar, pois nunca ouvi minha própria voz soar tão
selvagem e desesperada.
— Ah, jamais farei isso. — Ele segura o meu queixo e me
obriga a olhar para ele. — Você não vai mais fugir.
— Vá se foder! — grito na cara dele, o cuspe voando, mas
nem me importo. Já não estou nem aí para nada, tanto que apenas
sinto um entorpecimento agradável. — Dane-se! Você arruinou a
minha vida.
Ele me puxa mais perto até nosso peito se tocar. Ele está
próximo demais e eu só consigo ver os seus olhos, enquanto
pousam em mim.
— Arruinei a sua vida? Não, até onde posso ver, dei
exatamente o que você queria.
— Eu não queria isso…
Não percebi que estava balançando a cabeça até ele pegar o
meu rosto nas mãos para me fazer parar.
— Eu sei o que você quer, — diz e depois ataca.
Sua boca está na minha antes de eu poder impedi-la. Minhas
emoções são indomáveis, insondáveis, e ele as provoca até
entrarem em ebulição dentro de mim, levando-me à beira de um
buraco negro de um prazeroso nada, e o que mais quero é deixá-lo
me consumir.
E como quero ser consumida.
Quero me afogar no seu gosto até ele devastar o mundo com
uma enorme onda de necessidade. Ele é cataclísmico, e eu anseio
para implorar pela minha própria destruição.
— Não aqui, — ele diz, e sou sacudida de volta à realidade.
Um arrepio me percorre e percebo que ainda estamos na
mesma sala com o cadáver de Vic. O sangue dele está se
acumulando na madeira brilhante que já esfreguei tantas vezes.
Está nas minhas mãos e no meu uniforme, o qual não tive tempo de
trocar depois do trabalho.
Mas ele não me dá a oportunidade de pensar nisso. Gracin
apenas me conduz até o corredor e me puxa para perto dele. Vou
com ele porque quero fugir da carnificina na outra sala. Não sei se
quero rir, chorar ou gritar. Gracin parece imperturbável, seu único
foco sou eu.
— Tenho pensado sobre isso desde que você gozou em cima
de mim. Senti o seu cheiro durante dias. Ele estava me
enlouquecendo, — diz ao meu ouvido. Posso senti-lo, longo e
grosso, pressionando com desespero contra a minha barriga,
enquanto ele rasga minha camisa com uma violência mal contida.
Seus olhos vão para os meus hematomas e escurecem. Quando as
mãos dele se estendem sobre as marcas, seu toque é gentil. —
Depois de tudo que ele fez com você, fico feliz de o cretino estar
morto.
— Não, — digo a ele, empurrando suas mãos. — Não
podemos. Não aqui. Não dessa forma.
Ele me pressiona até o chão e, por estar tão fora de mim,
sou incapaz de protestar, apenas sibilo quando minhas costas
entram em contato com a madeira fria.
— Sim, — diz contra os meus lábios. — Assim mesmo.
Quero que você se lembre dessa sensação mesmo quando eu não
estiver ao seu lado. Quero que se lembre de como você foi forte
quando o enfrentou. E que nunca mais vai deixar ninguém te tratar
como merda outra vez, nem mesmo eu.
— Então me solta. Você queria escapar, então o que ainda
está fazendo aqui?
Ele não responde. Sua boca está muito ocupada em meu
pescoço, seus lábios, dentes e língua trilhando seu caminho até
minha orelha. A respiração dele sopra ao redor da pele sensível e,
apesar de eu não querer, meus quadris se erguem contra ele. O que
estamos fazendo é algo tão horrível, tão terrivelmente errado e
imoral, e esse fato só faz o meu sangue aquecer mais rápido, meu
corpo querendo mais.
Isso é o resultado de anos de abuso, esse anseio obscuro e
sujo… ou é apenas ele?
Ele sequer me dá um segundo para encontrar o meu
equilíbrio. Não há guardas aqui, nem algemas ou barras. Nada para
o impedir de tomar o que ele quer de verdade. E ele me quer.
Seus dedos se entrelaçam no meu cabelo e puxam minha
cabeça para trás para um ângulo melhor.
— Vou prová-la em todos os lugares, — diz de modo
sombrio, e Deus me ajude, eu quero que ele o faça.
Minhas mãos vão para os ombros dele.
— Não podemos fazer isso aqui, — repito, mas meus quadris
se erguem quando a sua outra mão passa pelos meus seios e
desliza para o cós da minha calça. De repente, todas as minhas
roupas parecem insubstanciais demais contra seus dedos
exploradores. Arqueio o corpo, pressionando a cabeça no piso de
madeira em busca de alguma clareza.
A dor domina o meu foco e eu estendo minha mão para
afastar a dele.
— Gracin, por favor.
Sua mão desliza por baixo da minha calça e mergulha na
minha calcinha.
— Por favor, o quê? — pergunta, seu toque é tão gentil a
ponto de mal consigo senti-lo misturado com todas as outras
sensações que tento processar. — Por favor, não, pare. Por favor,
continue. Vai ter que ser mais específica.
Ele me encontra molhada e carente, então gememos em
uníssono. E quero morrer. Quero gritar. Quero que ele nunca pare.
— Por favor. Não devíamos fazer isto aqui.
Minhas mãos vão para os pulsos dele, mas Gracin é forte
demais e seus dedos são muito talentosos. Eles me fazem ver
estrelas em segundos.
— Aqui. Agora mesmo, — diz.
Minha cabeça balança para frente e para trás contra a
madeira, os fios do meu cabelo se prendem nas rachaduras e são
arrancados, mas eu mal sinto a dor. Na verdade, em algum lugar ao
longo das minhas terminações nervosas, ela se transforma, funde e
torna-se apenas prazer. Quero parar, quero parar, mas não consigo.
O meu corpo não sabe o que deve fazer. Meu cérebro não sabe o
que pensar.
— Sim, — ele sussurra no escuro. — Permita-me.
Com a mais breve das pausas, ele arranca meus tênis
ortopédicos e puxa meu uniforme e calcinha branca simples para
baixo e os tira. Então empurra minhas pernas para cima e as ajeita
para me espalhar como um banquete diante dele. O olhar em seu
rosto é lindo de um jeito selvagem e há um lampejo de dentes
brancos antes de ele me cobrir com sua boca.
As mãos segurando os pulsos dele se movem para o cabelo.
— Não, — eu gemo. — Gracin, ah Deus, por favor.
— Parece que você não consegue se decidir, ratinha, —
brinca, e posso sentir seus lábios se movendo contra o meu clitóris
enquanto fala.
Meus pensamentos se despedaçam quando sua língua faz
um novo ataque. Puxo seu cabelo e arranho as costas, mas ele nem
parece reparar. Qualquer resistência da minha parte é recebida com
uma determinação ainda maior dele, e meu corpo reconhece seu
toque como prazeroso, apesar da confusão do meu cérebro sobre o
assunto. Mesmo o desconforto do piso de madeira implacável nas
minhas costas e a viscosidade pegajosa do suor não atrapalham o
meu orgasmo crescente.
Ele abre mais as minhas coxas e envolve as mãos em volta
das minhas pernas para me manter aberta entre seus ombros
largos. Não sei se estou lutando para ele parar… ou continuar. A
linha entre o pânico e o prazer é borrada a cada movimento de sua
língua. Ele chupa e mordisca, provoca e saboreia até eu me
esfregar no rosto dele e gemer de maneira descarada.
Nunca me senti tão suja em toda a minha vida. Nem mesmo
quando Vic me espancava. Ou quando o traí com Gracin.
Porém, também nunca me senti mais viva, e não sei o que
me assusta mais.
O orgasmo cresce a proporções esmagadoras. Luto para me
afastar dele, quase soluçando, mas Gracin apenas solta uma perna
para poder manobrar as calças o suficiente e libertar sua ereção.
Antes de eu conseguir me mover, ele está me penetrando, e eu grito
quando o orgasmo rasga através de mim com uma violência tão
brutal quanto o homem que o inspirou.
Ele atinge rápido seu primeiro orgasmo, mas não há nada de
bonito nisso. É selvagem, impiedoso e feio. No entanto, ver o
tumulto do prazer misturado com a dor em seu rosto me fez implorar
por mais. Eu me odeio por sequer pensar isso. Ainda semiduro
dentro de mim, ele não para de bombear, mesmo enquanto volto à
realidade e começo a lutar para me libertar dele.
Por um segundo, consigo me livrar de seu peso enquanto ele
ainda está tremendo. Seu pau sai, e a perda dele dentro de mim me
faz gemer. Viro de barriga para baixo e uso as mãos para erguer
meu tronco do chão. A umidade escorre de dentro de mim, molha
minhas coxas e a madeira por baixo.
Continuo me levantando até a minha bunda estar nivelada
com o rosto dele, então um braço vem em torno da minha cintura e
me prende no chão de novo.
— Para onde está indo?
— Você conseguiu o que queria, — digo entre respirações
ofegantes e tremores. Só de tê-lo por perto é o suficiente para
causar um curto-circuito no meu cérebro. Meu cérebro continua
dizendo para sair, sair, sair e, no mesmo fôlego, foder, foder, foder…
nem mesmo os meus hormônios conseguem decidir. — Agora, me
solte.
— Se acha que só quero isso de você, vai ter um verdadeiro
choque dentro de alguns segundos.
— O que você… — Suas mãos se esgueiram e separam as
minhas nádegas, e fico chocada a ponto de não conseguir falar. Não
consigo pensar. Só posso sentir.
Dedos cravam em minha pele, então sua respiração aquece
lugares no meu corpo que até mesmo Vic jamais se aventurou a
violar. Eu me contorço debaixo de Gracin e bato minhas mãos
contra a madeira para arrastar meu corpo para longe dele, mas sem
sucesso. No instante seguinte, sua boca está sobre mim, provando-
me, torturando-me. Em todos os anos com Vic, mesmo com todas
as coisas que ele fez comigo, sempre houve um certo limites. Com
Gracin, não há limites, nem barreiras ou segredos.
— Não. Não faça isso, — sussurro com desespero.
— Sim, — responde, beijando uma nádega e depois a outra,
antes de dar um beijo final na base da minha coluna. — Quero você
por inteiro, Tessa, e falo sério quanto a ter você.
O nome de Gracin explode dos meus lábios enquanto ele
prende meu tronco no chão e um de seus braços circula minha
barriga para sua mão poder chegar ao meu clitóris. Com um
grunhido, ele ergue meus quadris e trilha beijos no meio da minha
bunda esticada, deslizando a língua em torno do meu buraco
enquanto seus dedos se preparam para abalar o meu cérebro.
Eu gemo enquanto sua língua me lambe de um buraco para
o outro e depois de volta. Não há nenhuma palavra para descrever
isso além de sujo. Nunca fui uma pessoa tímida quanto a sexo,
afinal, qual seria o ponto? Mas ele não apenas conquista a minha
parte secreta sem hesitar, mas também não mostra aversão em
lamber cada parte de mim ainda coberta de esperma. Mesmo
enquanto me contorço debaixo dele, aflita por outro orgasmo, estou
lutando contra o chão para fugir da doce violação que ele está
determinado a cometer.
— Se eu te soltar, você vai fugir de mim?
Ele mantém os dedos massageando o meu clitóris já muito
sensível até os meus quadris começarem a empurrar contra sua
língua. Pressiono minha testa no piso de madeira, esperando a dor
me levar a uma sensação de clareza, mas não o faz. Não há nada
sensato sobre o que está acontecendo, nada lógico na forma como
reajo a ele.
— Não, — digo, odiando a nós dois.
— Boa garota.
Ele dá um beijo na minha coluna e solta o aperto nas minhas
costas. Tenho tempo suficiente para respirar fundo antes de sentir
as cócegas dos pelos de suas coxas nas minhas e a presença de
seu corpo pairando sobre mim. Meu clitóris dói a cada batimento
cardíaco, e mesmo quando considero correr para a porta dos fundos
a poucos metros de distância, minhas costas se arqueiam para
aceitar o primeiro impulso delicioso.
Um punho se entrelaça no meu cabelo, o outro prende o meu
quadril. Estou presente no momento apenas através do ponto em
que nosso corpo se conecta como se minha consciência
dependesse da existência dele. As mãos que eu usava para me
afastar, agora empurram o chão para jogar meu peso de volta contra
ele, fazendo-o me foder mais fundo do que qualquer um antes.
A mão no meu cabelo puxa minha cabeça para trás até eu
ficar de quatro, e ele me aproxima o suficiente para roçar os lábios
na minha orelha.
— Você acha mesmo que não quer isso? — pergunta, e ele
não está se referindo ao que está fazendo comigo, porque não
tenho como negar o quando quero isso. Não quando estou gritando
para ele me comer com mais força, mais rápido. — Você não
deveria. — Os dentes dele mordem o meu ombro. — Não devia me
querer. Não sou um homem gentil. Não sou um bom homem. Faço
coisas más para pessoas más. — Ele lambe o lugar da mordida e
sua boca desliza pelo meu pescoço. — Quero fazer coisas
perversas com você.
Ah, Deus me ajude, mas quero que ele faça essas coisas
comigo. Na verdade, eu imploraria para que ele as fizesse. Mas a
mão no meu cabelo me inclina com brutalidade para trás a ponto de
respirar ser uma luta, tornando impossível falar. Enquanto estou me
concentrando em levar ar para os meus pulmões, não presto
atenção à outra mão dele até ela tocar o buraco apertado que ele
havia excitado por completo. Faço barulhos agudos na parte de trás
da minha garganta enquanto o polegar dele penetra um pouco a
fenda tensa, mas é o suficiente para fazer meu corpo se debater
com os primeiros espasmos do orgasmo.
— Relaxe ao meu redor.
Penso ter dito que não posso, mas sai distorcido enquanto
suas estocadas são lentas, afastando-me do orgasmo iminente.
Estendo a mão para trás até o quadril dele, mas não há como movê-
lo. Lágrimas frustradas escorrem dos meus olhos.
— Se abra para mim, Tessa, e eu darei o que você precisa,
— pede, e suas palavras são seguidas por um impulso longo e
lento, eu o sinto em todos os lugares.
Meus músculos relaxam e eu fico mole em seus braços. Sou
dele para controlar, mas Gracin não está apenas me dominando.
Está pedindo por isso e eu me submeto a ele de livre e espontânea
vontade.
— Assim mesmo, querida, — elogia, e eu grito enquanto o
polegar dele me penetra lá por completo.
Seu pau enfia em mim com mais força e ele solta o meu
cabelo para segurar a minha garganta. Ofego para respirar e seus
dedos acariciam meus lábios. Eu os mordo sem pensar, sem me
importar. Precisando prová-lo, ter uma parte sua, assim como ele
tem tudo de mim, eu chupo um na minha boca. Ele ruge atrás de
mim e eu arqueio para trás para tomá-lo ainda mais fundo. Não há
um lugar no meu corpo que não tenha sido descoberto por Gracin,
nenhuma parte não conquistada por ele e, ainda assim, quero
encontrar mais para dar.
Não é o pau ou as mãos dele, ou mesmo a violência, que me
leva ao clímax desta vez. É um beijo. Ele afasta a mão e eu solto o
seu dedo da minha boca com um estalo audível. Com a palma da
mão agarrando minha mandíbula, ele me vira para aceitar sua boca,
e eu aceito, com avidez. Não deveria haver nada certo sobre o que
estou deixando ele fazer comigo, mas não há um único toque de
seus lábios ou impulso que pareça errado. Tudo isso é mais certo do
que qualquer coisa que já fiz.
Quando esse pensamento surge, gemo contra sua boca e o
orgasmo me alcança, lavando todas as dúvidas, todos os medos e
todo o senso comum. Algo em Gracin se rompe quando me contraio
ao seu redor e a tensão em seus músculos se esvai. Em uma
investida longa e lenta, ele remove o polegar, fazendo o meu
orgasmo se multiplicar. Ele sibila em resposta e me enche de seu
próprio prazer enquanto gozamos juntos.
Algum tempo depois, percebo que ainda estamos no chão.
Minhas extremidades não respondem quando lhes digo para se
moverem, mas está tudo bem. O peso de Gracin sobre mim é uma
âncora me prendendo à terra. A realidade se intromete,
acompanhada do frio enquanto ele se desloca para o lado, seus
braços e pernas ainda emaranhados com os meus.
— Precisamos sair daqui, — ele diz após um tempo. Meu
cérebro ainda não está funcionando, mas desperta com tudo
quando ele acrescenta: — A polícia chegará aqui em breve e é
melhor não estarmos aqui quando vierem. Temos que ir. — Ele se
levanta para puxar as calças para cima e abotoá-las.
Olho em volta, procurando o meu uniforme e roupa íntima,
mas não posso vê-los na escuridão quase absoluta do corredor.
Mas talvez a escuridão seja uma coisa boa. Enquanto o frio se
apodera do meu corpo, a memória do cadáver de Vic é suficiente
para clarear meus pensamentos sobre o que acabou de acontecer
entre nós. Mas guardo isso para… mais tarde. Bem, bem mais
tarde, quando não mais conseguir sentir o vazio dolorido dentro de
mim.
Gracin retorna com a minha roupa na mão e eu me visto,
minhas bochechas alternando entre corar e empalidecer, enquanto
minhas emoções oscilam entre envergonhada e horrorizada.
— Vista-se. Vou buscar um carro. — Ele me beija, deixando-
me com o meu próprio gosto em meus lábios.
Assim que ele sai, eu me levanto e começo a me vestir. Não
posso estar aqui quando ele voltar. Independentemente de como ele
me fez sentir e quanto quero fazer isso de novo, não posso permitir
que isso aconteça outra vez.
Eu pensava que o meu casamento com Vic era a definição
de abuso, mas Gracin me ensinou que há algo muito pior que a
violência física.
Certas vezes, Vic me deixava tão quebrada e ensanguentada
a seus pés, e só pensava que não era possível atingir um ponto
mais baixo em minha vida.
Eu estava muito, muito errada.
Pois, a maneira como me sinto agora? Sabendo que Gracin
destruiu por completo tudo de bom em mim e me fez gostar disso?
É muito pior do que qualquer soco que já tomei.
Fico de pé e termino de me vestir a apenas um cômodo de
distância de onde o corpo do meu falecido marido ainda está
jogado, ficando cada vez mais frio a cada segundo. Tomo cuidado
para manter os meus olhos longe. A casa está tão silenciosa que
cada som é ampliado, fazendo os meus ouvidos se esforçarem por
qualquer sinal da polícia ou Gracin voltando.
Mas os únicos sons são dos meus passos e o som áspero da
minha respiração pesada.
Estremeço com a dor em minhas coxas enquanto me abaixo
para pegar minha mochila. Procuro a arma, mas não a vejo e
percebo que Gracin deve tê-la levado com ele. A excitação e a
adrenalina que haviam dominado o meu corpo, insistindo para eu
deixar Vic e começar de novo, são quase inexistentes agora. Sinto
que só estou fazendo as coisas, pois sei que ser apanhada aqui
seria pior do que fugir. Uma parte de mim ainda reconhece isso,
pelo menos. No entanto, eu podia muito bem jogar a culpa de tudo
isso em Gracin.
Ele me perseguiu no trabalho, forçou-me a ajudá-lo a fugir,
depois matou o meu marido e me violou, porém, mesmo que eu
pudesse mentir, ainda há o corpo de Salvatore e o testemunho da
Annie. Sem dúvida, no momento em que ela acordou, contou a
todos sobre o que aconteceu. Se confrontada, eu teria um trabalho
do inferno para explicar como fui cúmplice de não apenas um, mas
dois assassinatos.
Começo a carregar a bolsa e depois percebo que preciso
trocar de roupa. O meu uniforme está salpicado com o sangue
espirrado do tiro, além de amassado e até mesmo rasgado no
ombro. Se eu sair pela porta com esta roupa, apenas chamarei
atenção para mim mesma. Mesmo me custando um tempo precioso,
vou até o quarto e escolho as roupas menos chamativas que tenho
no meu armário. Um par de jeans desgastados, uma camiseta
comum e um par de tênis velhos.
Meu rosto está manchado de lágrimas e corado, então dou
uma lavagem rápida com água fresca. Enquanto estou no banheiro,
prendo o meu cabelo num rabo de cavalo. Já que não tenho que me
preocupar com Vic vindo atrás de mim, crio coragem para fazer a
única tarefa que mais temo. Antes de tudo acontecer, eu ia fugir sem
isso, mas agora que Vic está morto e eu estou desesperada, não
tenho outra escolha. Ele guardava um cofre, mas não sabia que eu
tinha descoberto, e o código da fechadura está guardado dentro da
carteira. Não sei se estou em choque ou se vi tanta morte e horror
nas últimas vinte e quatro horas que acabei me acostumando, mas
ao tomar minha decisão, sou capaz de ser indiferente à cena
enquanto empurro o corpo dele de lado para poder alcançar sua
carteira.
Quando consigo pegá-la, atrapalho-me e caio de bunda no
chão, tremendo enquanto rastejo o mais longe possível dele. Isso
pode até fazer de mim um monstro, mas não sinto nada agora que
ele se foi. Talvez eu seja tão má quanto Gracin, afinal.
Giro a fechadura do cofre para os números escritos no
pequeno pedaço de papel e pego o dinheiro escondido lá. Não é
muito, talvez uns dois mil, mas vou precisar de tudo o que conseguir
se quiser desaparecer. Coloco os maços na minha bolsa, junto às
joias que ele me deu quando namorávamos. Hesito ao chegar na
porta da frente, mas acabo levando o desenho, mesmo indo contra
o meu bom senso.
Não sei para onde vou ou o que farei a seguir, mas sei que
preciso ir o mais longe possível desta casa e da prisão. Não me
atrevo a levar o meu celular ou notebook, para o caso de haver
alguma maneira de me rastrear a partir do sinal. O carro também
não é uma opção porque as placas estão registadas no nome de Vic
e isso será a primeira coisa que os polícias procurarão quando
descobrirem o corpo dele e o meu envolvimento na fuga de Gracin.
A minha única opção é roubar um carro.
Escondida nas sombras da varanda, estudo as casas ao
redor. Não quero pegar nada tão perto da cena que seja perceptível.
Os vizinhos nas imediações estão fora de questão, então me
concentro nessas três ou quatro casas no final da rua e tento
lembrar qualquer informação sobre elas.
Meu casamento com Vic não permitia muito tempo para
socializar, mas pelo que me lembro, havia um velho casal
acostumados a passar férias em algum estado no Sul durante o
inverno. Se nada mais, é um bom lugar para começar, já que
minhas opções são bastante limitadas.
Amaldiçoo Vic, amaldiçoo Gracin e, em especial, a mim
quando dou o primeiro passo da varanda para a calçada e meus pés
afundam na neve. Uma camada fina de neve se comprime sob
meus pés enquanto tento me aproximar da casa do jeito mais casual
possível. São apenas dois quarteirões de distância, mas na
temperatura abaixo de zero, parecem duzentos. Não me preocupo
em deixar rastros porque o vento está soprando tão forte que
qualquer um que eu deixar, será coberto em questão de minutos.
Verifico meu relógio e xingo baixinho. Não são nem seis da
tarde. Parece que se passou um século, quando, na realidade, só
foram algumas horas. A maioria dos meus vizinhos está escondida
em suas casas para se proteger do frio, suas janelas estão escuras
e as casas tão silenciosas quanto um cemitério. A que acredito
pertencer ao velho casal fica num terreno de esquina, e a garagem
está bem trancada.
A maioria das casas no empreendimento são restos de uma
antiga base militar abandonada. Em algum momento, foram
colocados para alugar por um preço baixo. Então, a maioria delas
não está conectada a sistemas de segurança, o que é um golpe de
sorte para mim. A em questão é quase idêntica à nossa casa, então
consigo encontrar rápido a porta lateral da garagem e empurrá-la
até conseguir entrar.
O cheiro de mofo característico do desuso é substancial, e
levanto a mão para cobrir minha boca enquanto a poeira se mistura
às rajadas de neve. Pela primeira vez durante todo o dia, a sorte
está do meu lado, porque parada na garagem há uma pequena
caminhonete que eu espero estar em condições de uso. Não é
muito, mas se der partida, pode ser a minha salvação.
Abaixo-me na garagem e fecho a porta atrás de mim,
deixando a escuridão me envolver. Leva alguns segundos para os
meus olhos se ajustarem e, mesmo assim, tenho que manter as
mãos na minha frente para evitar dar de cara nas paredes. Meus
dedos roçam contra o metal e sinto meu caminho até a porta do lado
do motorista, que está trancada. Xingo baixinho e começo a ir até a
entrada da casa. Se abandonaram o carro, então é provável ter
outro conjunto de chaves.
Minha sorte acaba quando tento abrir a porta e a encontro
trancada. Droga. Olho ao redor da garagem escura em busca de
algo para ajudar. Não há muito. O velhote que vive aqui não deve
ser do tipo que gosta de consertos, pois a única coisa semelhante a
uma ferramenta é um tubo de metal solto, o que não me ajudaria em
nada quando se trata de abrir uma fechadura.
— Merda, — sussurro e olho para o teto, sentindo-me
sufocada pela angústia.
Um lampejo de movimento chama minha atenção e me
escondo atrás do carro. Meu coração dispara quando percebo que é
uma janela. É claro, temos uma no mesmo lugar que leva a uma
pequena área de serviço fora da cozinha. O movimento foi a cortina
balançando no vento uivante. Subo em uma mesa com o cano de
metal na mão.
Quando tenho a certeza de que não vou cair, tiro o casaco e
o enrolo em volta do cano, na esperança de abafar a maior parte do
som. É grosseiro, mas faz o trabalho e a janela quebra. Após
murmurar um breve pedido de desculpas aos proprietários, quebro o
resto do vidro para fora da moldura, ergo o meu corpo e atravesso a
janela.
Como a maioria das propriedades da área, as garagens
foram anexadas depois de construírem as casas para atrair mais
compradores. Funciona para mim, pois me permite entrar sem ser
detectada. Rastejar através da janela é estranho, e eu caio de
joelhos no azulejo frio, fazendo doer todos os lugares machucados
pela surra que Vic me deu. Passaram-se apenas vinte e quatro
horas desde então? Parece que foram anos.
Não me atrevo a acender a luz, então preciso caçar com a
cozinha às escura. Quando minhas mãos pousam no chaveiro
pendurado num gancho perto da porta dos fundos, quase grito em
triunfo. Por um momento, penso em olhar através da casa para
procurar qualquer coisa valiosa para penhorar com as minhas joias,
mas não quero arriscar ser pega. Há uma pilha de correspondência
no balcão que eu recolho. Se houver uma oferta de cartão de
crédito, pode ser útil mais tarde.
Sentindo-me cada vez mais desesperada para deixar este
lugar para trás, destranco a porta às pressas e recupero minhas
bagagens. Leva várias tentativas até encontrar a chave certa, mas
quando o faço, jogo minhas coisas no banco do passageiro e ligo o
motor para aquecer enquanto abro a porta da garagem. Passo um
minuto vigiando a minha casa, procurando por qualquer sinal de que
Gracin tenha voltado, mas está silenciosa. Assim como o restante
do bairro, mas essa calma pode não durar muito mais tempo. A
polícia vai aparecer em breve. Outro golpe de sorte é a garagem do
meu vizinho. Não faço ideia de quem está a mantendo sem
acumular neve, mas alguém a deixa livre e sou muito grata por isso.
Tirar o carro da garagem e estacioná-lo para fechar a porta
da garagem leva um tempo precioso que eu não tenho, mas
também não quero revelar minha fuga se não for preciso. Quanto
mais tempo e distância
puder colocar entre a polícia e eu, melhor. No momento em que
atravesso a cidade, a neve volta a cair constante e a caminhonete
range quando passo dos cinquenta quilômetros, então minha fuga é
lenta e dolorosa.
Ligo o rádio e o primeiro anúncio faz meu estômago revirar:
— A polícia está em busca de um preso que escapou da
Instituição Correcional Blackthorne. Os ouvintes devem ser avisados
que o fugitivo é considerado armado e perigoso. Uma foto recente
pode ser encontrada no nosso site e nas redes sociais. Por favor,
fique atento e relate quaisquer informações de seu paradeiro à
polícia imediatamente.
Eles vão procurá-lo nas estradas principais, então me
mantenho nas secundárias. Não estão à minha procura, mas
estarão em breve e prefiro não correr o risco de encontrar a polícia.
Isso acrescenta horas à minha jornada, mas consigo evitar todos os
pontos de verificação, exceto um, o qual passo com uma facilidade
surpreendente. Considerando que estou num veículo roubado,
decidi que enfim estou sendo recompensada por toda a minha má
sorte dos últimos três anos.
Dirijo durante a noite toda, fazendo paradas quando preciso
de gasolina ou tenho que usar o banheiro. Ao chegar aos arredores
de Detroit, paro na primeira loja aberta e separo dinheiro suficiente
para um celular pré-pago e algo para comer. Não tenho apetite,
mas, de qualquer maneira, compro um sanduíche pré-embalado e
refrigerante de uma máquina de venda automática. Enquanto me
sento no estacionamento e ativo o celular, engulo a comida sem de
fato prová-la. Após configurar o aparelho, reservo uma passagem
para o próximo ônibus para o destino mais distante possível, que
passa a ser uma viagem direta para Los Angeles saindo em duas
horas.
O pensamento da luz do sol quase, quase, dissipa a pontada
constante de pavor que queima meu estômago. Guardo as
embalagens de comida em um saco plástico enquanto a náusea me
atravessa. Consegui não pensar no que abandonei na longa viagem
para o Sul, mas agora que não estou tão focada em fugir, tudo me
atinge de uma vez. O soluço que escapa do meu peito desperta
todas as minhas mágoas e dores.
Eu me dou dez minutos para sucumbir às emoções, mas é
isso. Quando o meu tempo acaba, limpo o rosto com cuidado e
pressiono a garrafa de refrigerante fria nas minhas bochechas. Não
posso me dar ao luxo de desmoronar agora. Isso pode esperar até
chegar aonde quer que eu esteja indo. Paro numa casa de penhores
na cidade, a primeira que encontro, já que não tenho tempo para ser
exigente, e penhoro minha aliança de casamento e joias por
dinheiro rápido. O homem mal-humorado atrás do balcão me dá os
mil e cem em notas amassadas. Ele não faz perguntas e eu não
reclamo da quantia porque é mil e cem a mais do que eu tinha.
O movimento do trânsito matinal me atrasa um pouco, mas
consigo chegar no terminal de ônibus com vinte minutos de sobra.
Paro a caminhonete na área de estacionamento de longo prazo e
resisto ao desejo de deixar um bilhete de desculpas aos
proprietários. É melhor não ajudar a polícia se conseguirem me
rastrear até aqui. Carrego minha bagagem e mantenho a cabeça
baixa enquanto espero na fila para pagar a passagem que reservei.
Há poucas pessoas ao redor e permaneço perto da área de
embarque enquanto espero o ônibus.
Meus olhos estão pesados de exaustão, mas ainda estou
acesa pela dose de cafeína e adrenalina. Cada vez que um guarda
de segurança passa, fico tensa, esperando que ele me reconheça e
me prenda. Quando enfim anunciam o meu embarque, já estou
esgotada.
O assistente que verifica as passagens me dá uma olhada
curiosa.
— Dia longo? — ele comenta, rindo para si.
Você não tem ideia, penso, mas dou um sorriso sem graça e
pego o comprovante de embarque da mão dele.
O ônibus cheira a couro, chulé e desinfetante, mas os
assentos são macios e o aquecedor funciona. Guardo minha
bagagem na área acima do assento, mas mantenho minha bolsa ao
meu lado. A próxima parada só será em duas horas, e pretendo
passar cada segundo dormindo, então a ideia de ter a minha bolsa
em qualquer lugar que não seja ao meu lado seria desconfortável.
Todo o dinheiro que tenho está nela, e se ela desaparecer, posso
muito bem me entregar de uma vez.
Quando o ônibus se afasta da parada e eu começo a
adormecer, meu último pensamento é o rosto de Gracin e quão
bravo ele deve ter ficado quando voltou para uma casa vazia.
— Precisa de ajuda?
Ajeito minha bolsa por cima do ombro e olho para o cara à
minha frente. Eu estava dormindo desde a última parada e não o
reconheço, então ele deve ter embarcado nela.
— Obrigada. Não precisa.
— Que vista, hein?
Ele não está errado. Mesmo através das janelas escurecidas
do ônibus, Los Angeles é deslumbrante. Uma multidão atravessa as
calçadas perto do terminal de ônibus e mal posso esperar para me
perder nela. O isolamento na Península Superior de Michigan era
tão completo que ter tantas pessoas ao redor deveria me paralisar
de ansiedade, mas isso não acontece. Espero com impaciência até
que os outros desembarquem e, assim que meus pés atingem a
calçada, levanto o rosto para o sol e me deleito com seu calor, e me
imagino sendo limpa por completa pelos raios. O que ajuda a aliviar
a culpa sufocante, mas apenas um pouco.
Não tenho para onde ir e ninguém a quem recorrer, mas isso
não me assusta. A sensação esmagadora de alívio guerreia com a
culpa e a batalha me leva para longe do terminal de ônibus e em
direção ao cheiro cada vez mais forte de sal no ar. Não sei quanto
tempo ando ou para onde vou, tudo o que me importa é me perder.
Talvez, se eu puder fazer isso, acabe de alguma forma me
encontrando também.
Ouço as ondas antes de ver a praia. O som delas batendo
contra a costa preenche minha cabeça, bloqueando a repetição do
som de sangue quente espirrando contra o azulejo, de uma bala
rasgando a frágil estrutura da pele. Meus joelhos vacilam quando
chego a um sinal vermelho para pedestres. Aqueles ao meu redor
se aglomeram com impaciência, mas não lhes dou atenção. Sigo
em frente com a multidão quando a luz muda e a deixo me levar
através da rua até o calçadão.
O peso da minha bolsa faz a alça cravar no meu ombro e ela
bate em ritmo contra minha coxa a cada passo desajeitado pelas
escadas desgastadas até o tapete de areia parecendo açúcar
mascavo. Chuto os sapatos, dobro as barras da calça e tiro o suéter
leve que estava usando para combater o ar-condicionado gelado do
ônibus. Após guardar os itens na minha bolsa, faço o meu caminho
até a água e afundo os dedos dos pés na areia com um suspiro alto
de prazer.
Talvez eu fique bem, talvez não. De qualquer forma, vou
deixar de ser a vítima e começar a revidar. Ninguém nunca mais me
fará sentir como Vic fez, nem mesmo Gracin.
Fico na praia até meus dedos estarem azuis do frio e a praia
quase vazia de famílias e adolescentes. O celular pré-pago que
comprei está quase sem bateria, mas há energia suficiente nele
para pesquisar um hotel barato para passar a noite. No caminho até
lá, pego algumas batatas fritas, um hambúrguer e um refrigerante de
um vendedor de rua, essa acaba sendo a melhor refeição que já
comi em toda a minha vida.
Gostaria de poder dizer que a minha onda de sorte
continuou, mas não é o caso. O hotel parece ter saído direto de um
episódio de American Horror Story, mas é barato e só vou precisar
dele por algumas noites. Reboco rachado, manchado de água e
pisos arranhados são a menor das minhas preocupações. A
recepcionista nem repara nas minhas roupas amarrotadas e
manchadas, pago antecipado por uma estadia de três noites e peço
um quarto no primeiro andar, perto do lado movimentado da rua,
caso precise fazer uma saída rápida. Depois de um banho breve no
banheiro pequeno, mas, para minha felicidade, asseado, visto
roupas limpas e desmaio em cima do edredom, minha arma ao
alcance, apenas por precaução.
Leva todos os três dias para localizar um apartamento
mobiliado adequado e providenciar a mudança do nome nos recibos
dos serviços básicos. Dei-lhes o nome que consta em um
passaporte falso que comprei na internet. O proprietário não
questiona quanto a ele e nem a empresa de serviços. No quarto dia
após chegar a Los Angeles, tenho um lugar para morar e consegui
um emprego como garçonete em um restaurante próximo.
Enquanto espero pelo meu primeiro dia de trabalho, limpo o
apartamento e crio um plano de fuga. Não quero ser apanhada
desprevenida e acabar presa. Pergunto-me também se Gracin se
importa o suficiente para vir atrás de mim. É provável que ele esteja
nem aí para mim.
Uso uma parte do dinheiro para estocar munição para a arma
que comprei no caminho para Los Angeles, assim como um spray
de pimenta e um teaser. Mantenho o spray e o teaser na minha
bolsa e a arma numa gaveta acessível na minha sala de estar. Com
a permissão do proprietário, compro fechaduras e correntes extras
para as portas. As janelas já estão seladas, mas testo cada uma
para ter certeza de que não vão ceder. A preparação faz os dias e
as noites passarem bem rápido. Apesar da minha apreensão, durmo
como os mortos todas as noites sem a ameaça da presença de Vic
ao meu lado.
Na manhã do meu primeiro dia de trabalho, levanto-me mais
cedo para me vestir e percorrer a rota do ônibus. Viro-me para
trancar a fechadura da porta da frente e fico de cara com um
desenho.
Eu congelo.
Perto dali uma criança grita de tanto rir e eu me encolho com
o som. Com o coração martelando, dou a volta e observo a área em
busca de algo fora do comum, mas os inquilinos nos apartamentos
próximos ainda estão em sono profundo e não há um único sinal de
Gracin.
A imagem sou eu no meu primeiro dia em Los Angeles, na
praia, com os pés na água. Fiquei tão fascinada naquele dia que
nem pensei em procurar se tinha alguém me seguindo. Afinal, por
que faria isto? Eu estava do outro lado do país e não tinha deixado
pistas sobre para onde estava indo.
Por um longo momento, o desejo de entrar em um ônibus e
fugir me domina, mas minha já escassa reserva de dinheiro está
diminuindo depressa. Não posso continuar fugindo para sempre.
Uma vez que a razão retorna, ocorre-me que, se Gracin quisesse
me ver, ele teria dado um jeito de entrar em meu apartamento
enquanto eu estava dormindo.
Mas ele não o fez, e isso me diz que, embora soubesse onde
eu estava e quisesse que eu soubesse disso, ele não me forçaria a
vê-lo.
Só não sabia o porquê.

Não tenho certeza, mas acho que alguém está me seguindo.


Nas oito semanas desde a minha chegada, tenho estado
paranoica ao ponto da insanidade. Sempre verifico minhas
fechaduras, faço rotas diversas quando vou e volto do trabalho e
vasculho religiosamente as notícias em busca de sinais de Gracin,
qualquer pista sobre a investigação policial quanto as mortes em
Blackthorne, ou meu desaparecimento. Não houve nenhuma pista
de sucesso, mas isso não significa que eu deva ficar menos
vigilante.
Pelo visto, por uma boa razão.
O homem sentado na minha seção pediu para se sentar nela
durante toda a última semana. Regulares não são fora do comum,
mas há algo sobre esse cara que deixa todo o meu corpo em alerta
máximo. Não é nada que ele tenha feito, por si só, mas depois de
ser encurralada por um criminoso violento, não quero que isso
aconteça de novo. Todos são uma possível conexão com Gracin.
— Acho que alguém aqui tem um fã, — diz outra garçonete,
Melinda, enquanto se aproxima da janela para esperar pelo pedido.
— Se você não pedir o número dele, eu peço, — acrescenta,
enquanto navega pela multidão com uma bandeja de comida
erguida sobre a cabeça.
Sua atitude impetuosa e franqueza me fazem sorrir, mesmo o
gesto parecendo um pouco fora de lugar nos meus lábios. Ela é
exatamente o que eu amo sobre essa cidade. O grande número de
pessoas, incluindo as covardes, me faz sentir segura. Depois de
anos vivendo no isolamento desolado da Península Superior de
Michigan, o calor e o anonimato me atraem. Pelo menos as pessoas
aqui são francas sobre não passarem de idiotas completos, quando
é o caso.
Nem me incomoda que o meu aluguel para um apartamento
de um quarto seja ultrajante ou o bairro de Van Nuys esteja
localizado nas fronteiras do território de gangues hispânicas. Depois
do que passei, os bandidos na rua nem me intimidam. Na verdade,
é algo quase reconfortante. Prefiro ter uma arma na cara a um
homem de fala doce e boa aparência que me apunhalará pelas
costas com falsas promessas.
O homem sai no final do meu turno. Faço uma nota mental
para ficar de olho nele, o que será quase impossível, já que ele se
parece muito com qualquer outro californiano. Jeans como outro
qualquer, sandálias de couro e uma camisa de botão enrolada nas
mangas. Seu cabelo não é loiro, nem castanho e ele é de estatura
média. Mas aprendi, no meu curso intensivo de dois meses, como
encontrar uma característica que diferencia cada pessoa. Para o
meu companheiro de almoço… são os olhos dele. Não a cor, como
o verde nada natural de Gracin, mas sua forma. Em específico, as
sobrancelhas.
Reparei nelas porque me lembravam o homem das cavernas
do anúncio do seguro de carros. Elas enfatizam seus olhos
profundos e dá a ele um ar de brutalidade, e isso me faz lembrar
muito de todas as coisas da qual estou tentando fugir. É mais do
que provável ele acabar sendo um cara simpático e eu só esteja
exagerando.
Ainda assim, mantenho uma imagem mental dele. Só por
precaução.
Melinda volta com uma carranca no rosto.
— Malditas crianças, dão mais trabalho do que qualquer
outra coisa, — ela se queixa, fechando a caixa registradora e
embolsando a gorjeta.
Penduro o pedido para a mesa que atendi e me viro para ela.
— Algum cliente que lhe deu problemas?
— Bem que eu queria, — resmunga. — Se fosse esse o
caso, eu poderia apenas dizer a eles para irem se ferrar, mas não,
estou falando dos meus filhos mesmo.
De repente, os guardanapos que estou dobrando demandam
toda a minha atenção.
— Mesmo? — Rezo para a minha voz não soar tão áspera
para ela como parece para os meus ouvidos.
— Odeio perguntar isso, já que ainda está se adaptando,
mas pode ficar com o meu turno da tarde? — Sua expressão
dolorida dispara para o celular e eu encolho os ombros. Não é como
se eu tivesse algo melhor para fazer.
— Claro que posso, — digo a ela.
O trabalho vai manter a minha mente ocupada e colocar mais
dinheiro no meu bolso, duas coisas das quais preciso muito. A
mísera quantia que consegui juntar não durou muito e estou vivendo
de salário em salário. Não poderei ficar em Los Angeles para
sempre. Preciso continuar me movendo.
Meu plano é trabalhar e economizar dinheiro suficiente para
arriscar viajar para o sul, para o México. Depois disso, quem sabe?
Em algum momento, todo o disfarce que criei aqui vai cair, então
também preciso economizar o suficiente para comprar uma nova
identidade. A porcaria que arranjei quando cheguei aqui não vai
aguentar sob um escrutínio mais intenso, mas é boa o suficiente
para o meu gerente de contratação e para eu me apoiar durante
esse tempo.
— Você é uma querida, — Melinda diz e aperta meu braço.
— Não sei como te agradecer por isso. Na verdade, vou deixar o
cara gato para você. — Ela se vira com uma piscadela e uma
risada, e eu esqueço sobre esse tal cara gato pelo resto do meu
turno.

A cidade está quieta, ou melhor, tão silenciosa quanto


possível para Los Angeles, quando me despeço de Jean-Paul, um
dos cozinheiros do turno do jantar. Fiquei chocada ao vê-lo, pois o
reconheci de vários comerciais e programas de televisão. Aprendi
rápido que a maioria das pessoas nesta cidade é um ator
desempregado. Talvez seja por isso a minha sensação de me
encaixar aqui. Estamos todos desempenhando um papel.
É quando chego ao ponto de ônibus que sinto o incômodo
entre os ombros, fazendo com os pelos dos meus braços ficarem de
pé. Agarro minha bolsa com mais força contra o meu corpo e relaxo
meu rosto para não mostrar nenhuma reação.
Quando olho para frente, não vejo de imediato nada fora do
comum. Há duas famílias, uma mãe e seus filhos, e um bando de
meninas esperando no ponto de ônibus comigo. Ainda assim, não
descarto a sensação de alarme e mantenho a guarda alta quando
entro no ônibus. A viagem cheia de paradas e desvios para o outro
lado país não foi suficiente para despistar Gracin, e eu não me
esqueço desse fato por um segundo.
Não recebi mais desenhos, nem sequer o vi de relance, mas
sei que ele está lá, observando-me. Não sei pelo que ele está
esperando. Também não sei se me importo, contanto que se
mantenha longe de mim. Apenas sei que esse pressentimento, essa
pessoa me observando, não é ele.
A sensação de ser observada não diminui ao longo da longa
viagem de volta a Van Nuys. Mordisco a minha unha, um novo
hábito que adquiri em vez de algo pior, como beber até cair no
esquecimento. Ninguém no ônibus se vira na minha direção. Ou
sequer tenta me atrair para uma conversa fiada sem sentido.
Devo estar só paranoica, decido. Devo ter finalmente
surtado. Estou tão perdida em pensamentos que quase perco a
minha parada, então passo apressada pela multidão e quase me
jogo do ônibus. É anoitecer, mas as ruas ainda estão quentes.
Provável que o calor vá se manter assim durante a noite. Levanto
meu rosto para o céu e, mesmo que a nuvem de poluição esteja
bem espessa hoje, eu me banho nos últimos raios de sol do dia.
Demorei semanas para sentir que enfim deixei para trás o inverno
amargo de Michigan. Mesmo agora, quando saio da cama, levo
alguns minutos para perceber que não preciso me preparar para o
frio.
Meus pés se arrastam enquanto deixo o ponto de ônibus e
caminho os dois quarteirões necessários para chegar ao meu
pequeno apartamento antigo. Se é que se pode acreditar, está em
pior forma do que a casa que dividi com Vic, mas é minha, e é
barata… bem, pelo menos para os padrões da Califórnia. Contudo,
nunca vou me conformar com o fato de menos de mil metros
quadrados de espaço poder custar tanto quanto uma casa de cinco
quartos em Michigan.
Destranco a porta e a abro, em seguida, estou caindo em
direção ao chão enquanto um peso me empurra. Eu me enrolo por
instinto, usando minhas mãos para amortecer minha queda e grito
quando elas cedem sob a pressão.
Não dou ao meu agressor um momento para planejar seu
próximo ataque, pois já estava à sua espera. Girando debaixo de
seu peso, balanço os pés e os jogo no peito largo dele. Ergo-me
reunindo todas as minhas forças e consigo me libertar quando ele
me agarra. Suas mãos seguram meu uniforme e machucam meus
braços na tentativa de me segurar, mas chuto meu agressor no
rosto e sorrio enquanto ele urra de dor.
Isso me permite tempo suficiente para andar para trás no
chão de linóleo liso e procurar por minha bolsa o spray de pimenta
que sempre carrego comigo.
Aponto o frasco na direção dele com uma mão e, assim que
ele se levanta, disparo o spray, nesse momento, percebo que é o
cara do restaurante, com um rosto tomado pelo gás de pimenta. Ele
se engasga, os olhos e o nariz começando a escorrer de forma
automática.
Há apenas uma fração de segundo para eu escapar e uso
isso para a minha vantagem. Pego um lado do sofá-cama e o
empurro para bloquear o caminho dele. Sem conseguir enxergar, o
cara tropeça e bate a cabeça na parede, amassando o gesso.
Não fico para ver se ele está bem. Corro pelo corredor que
leva à porta dos fundos, deixando uma pista de obstáculos menores
no meu rastro para desacelerá-lo ainda mais. Cestos cheios de
roupa suja, pequenas prateleiras que usei como despensa
improvisada e estantes espalham seu conteúdo por todo o chão.
O agressor ainda está urrando e se debatendo na sala de
estar enquanto mergulho pela porta dos fundos. Não tinha dinheiro
para conseguir comprar um carro para uma fuga rápida, mas envio
um pedido de emergência para um Uber me pegar no café que fica
a alguns quarteirões de distância. Havia cronometrado o percurso
depois de me mudar para o apartamento. Se manter o passo, leva
apenas pouco menos de cinco minutos, quase o mesmo tempo que
um Uber na região levará para chegar.
Estou no meio do beco quando ele sai pela porta dos fundos.
Posso ouvir seus passos pesados me seguindo, mas sou mais ágil e
sua forma volumosa não é páreo para me alcançar. Meu coração
está na minha garganta como se eu soubesse, em algum lugar lá no
fundo das minhas partes mais primitivas, que se eu não escapar
deste homem, posso muito bem cortar minha garganta. É um tipo
puro de medo que me leva a continuar além do ponto de exaustão.
Viro uma esquina e vejo o café no próximo quarteirão. A
visão me estimula a mover as pernas mais rápido, apesar da
queimadura nos pulmões. O som do meu perseguidor começa a
desaparecer e eu diminuo o ritmo para verificar o meu celular,
encontrando o alerta do Uber que o meu carro está esperando por
mim.
As calçadas estão cheias de pessoas, e não há como ele
fazer nada quando há testemunhas por toda parte. Tento
desacelerar e parecer como qualquer outra pessoa, mas estou
empurrando meu caminho através de turistas e hipsters como rota
mais depressa para o meio-fio onde o Uber está esperando.
Sem parar para trocar cumprimentos, mergulho no carro e
digo:
— Lakeland com a Quinta, por favor. E se apresse.
Ele resmunga e me dá um olhar curioso, mas, por sorte, não
discute. Quando ele se afasta do meio-fio, olho para trás e examino
a multidão, mas o homem da lanchonete não está em lugar algum.
Tento suspirar de alívio, mas minhas entranhas ainda estão
apertadas de medo.
O trânsito ainda está terrível à medida que nos fundimos com
longas filas de carros, mas estar cercada por eles por todos os lados
me faz sentir um pouco mais segura. Assim que chegarmos ao
depósito alugado, poderei recuperar a sacola que guardei lá apenas
para esta ocasião. Não sabia se precisaria usá-la, mas não queria
ficar presa sem um meio de escapar outra vez. Assim que cheguei a
Los Angeles, jurei nunca mais voltar a ficar indefesa. Eu tinha me
dado conta de como seria possível para um criminoso mais
experiente me rastrear se tivessem os meios, motivo e dinheiro. Não
estava muito certa se Gracin tinha o último, mas sabia que possuía
os dois primeiros.
O armário alugado tem algumas mudas de roupas, uma boa
parte do meu dinheiro, mais armas e as joias que eu ainda não
havia penhorado. Absorvo a paisagem em goles gananciosos
enquanto avançamos pela rodovia. Vou sentir falta deste lugar.
Talvez eu vá para a Flórida, mantendo-me em áreas onde a luz do
sol é predominante. Acho que nunca mais voltarei para o Norte se
puder evitar.
Quando a adrenalina começa a passar, envolvo meus braços
em torno de mim para evitar os tremores que me destroem até os
ossos. Uma parte de mim, a parte que queria acreditar na mentira
inventada por Gracin, quer desmoronar e chorar, mas essa parte
está murcha, apenas uma casca de quem eu costumava ser. A
mulher que emergiu das cinzas da minha vida passada é mais
severa, menos confiante e determinada.
Não vou deixar que acabem comigo. Não o permitirei ser
mais um erro que vai arruinar a minha vida.
Estou exausta, o cansaço de um longo dia de trabalho faz
meus olhos caírem e minha mente ficar confusa. É por isso que não
percebo o carro seguindo na direção errada até que seja tarde
demais.
— Com licença, — digo ao motorista, um pouco irritada. —
Você está indo na direção errada. Devia ter virado na última saída.
Você pode, por favor, pegar o próximo desvio?
— Sim, senhora, — ele responde.
— Obrigada.
Solto um suspiro pesado. Era só o que eu precisava. Mais
um atraso para sair da cidade. Quase solto uma risada. Realizar
uma fuga às sete da noite é quase um esforço infrutífero. O trânsito
entre as vias quatro e oito é quase parado, mas não há nada que eu
possa fazer quanto a isso.
No ritmo lento que somos forçados a andar, leva mais trinta
minutos antes de chegar à próxima saída. Fico tensa enquanto fico
de olho até encontrar a placa do desvio e relaxo quando ela
aparece.
— Bem aqui, — digo ao motorista, que não ouve ou não se
importa em seguir minhas instruções. — Uhm, senhor? Essa era a
saída. Está me ouvindo? — Ele não responde, e isso faz os pelos
na parte de trás do meu pescoço se arrepiarem. — Licença?
Quando ele me ignora outra vez, tento as portas, mas estão
trancadas e, apesar de apertar todos os botões, nada adiantava.
Pânico inunda meu corpo e eu quase choramingo. De repente, estar
encurralada e cercada por veículos não parece tão seguro quanto
há alguns minutos. Tiro a arma da minha bolsa, onde a tinha
guardado depois do ataque no meu apartamento.
Firmo as mãos e mantenho a arma por perto, por precaução.
Não acho que esteja exagerando, mas se estiver, vou acabar sendo
apenas mais uma garota louca numa cidade cheia delas. Mas não
vou arriscar, mesmo se for forçada a tirar outra vida.
E pensar que há alguns meses, a minha única preocupação
era salvar vidas, e agora está sendo tirá-las para proteger a minha.
Dirigimos em silêncio, ganhando velocidade à medida que o
trânsito começa a melhorar. Não conheço o resto de Los Angeles
tão bem quanto a área ao redor do meu apartamento, então não
consigo discernir para onde ele está me levando. A certa altura, ele
sai da rodovia e isso nos deixa em algum lugar no centro da cidade,
mas o carro se move rápido demais para eu arriscar uma fuga sem
ferimentos potenciais.
— Por favor, — peço ao motorista. — Por favor, só me deixe
ir. Entrego o dinheiro, o que você quiser.
Nesse instante, aprendo que há algo mais aterrorizante do
que os punhos de um homem: o silêncio.
Não saber o que vai acontecer.
A antecipação é mil vezes pior que a violência real. Ela crava
suas garras em mim, provocando-me.
A falta de resposta do cara me diz que não há nada que eu
possa oferecer para o dissuadir. Não consigo pensar em uma única
pessoa com motivos para me raptar além de Gracin, e chego à
conclusão de que ele deve ter dado uma boa grana a esse homem
para me pegar. Não sei com quem Gracin está envolvido e eu não
quero saber. Mas tenho a sensação de que vou descobrir de
qualquer maneira.
Não me atrevo a atirar nele enquanto está dirigindo. Se ele
cair, não há garantia de que eu vá conseguir escapar. Vou precisar
deixar a minha fuga para quando pararmos. A arma me dá uma
vantagem. Só tenho que ser inteligente ao usá-la.
Quando paramos em um armazém escondido, todo o meu
corpo fica tenso e a arma escorrega nas minhas palmas úmidas.
Não há luzes do lado de fora, então só consigo ter um vislumbre do
contorno do edifício enorme. Nada sobre ele é reconfortante.
Preciso dar o fora daqui.
Meu primeiro tiro atinge a parte maciça do braço dele,
fazendo-o dar um grito animalesco. O segundo se enterra em sua
garganta. Nunca esquecerei o som borbulhante que ele faz
enquanto se engasga com o sangue. Empurro tudo para o fundo da
minha mente, pois não tenho tempo para pensar sobre isso.
Subo pelo console central e destranco a porta da frente,
evitando as mãos dele enquanto empurro seu corpo para jogá-lo
pela porta do lado do motorista. Ele é pesado, e o ângulo é
estranho, mas consigo derrubá-lo. Estou prestes a fechar a porta
quando três homens, vestidos com ternos que parecem caros, saem
correndo do prédio em direção ao carro.
O carro ainda está ligado, então o coloco em marcha à ré,
mas antes de eu poder pisar fundo, a porta do lado do passageiro
se abre e um quarto homem aponta uma arma para o meu rosto.
— Largue a arma e saia do carro, a menos que você queira
uma bala entre esses olhos adoráveis, — ele ordena.
Solto a arma, deixando-a cair no assento, e ele a agarra.
Minha mão vai para a minha barriga, não porque estou me sentindo
enjoada, embora esteja um pouco, mas para proteger a vida que
cresce lá.
A vida que Gracin e eu criamos e pela qual eu morreria para
proteger.
Dois dos homens de terno me arrancam do carro,
desconsiderando por completo o corpo no chão. O sangue encharca
os meus sapatos e sei que não haverá qualquer quantidade de
limpeza capaz de tirar a mancha. Os dois meio que me carregam,
meio que me arrastam para o armazém, pois nem ferrando quero ir
para onde estão me levando.
Meus pensamentos frenéticos giram em torno de como
escapar e que coisas horríveis planejaram para mim.
Dentro do armazém, uma lâmpada solitária balança a partir
de um fio e duas cadeiras estão encostadas em uma mesa. Há uma
longa corda pendurada no teto e os homens de cada lado de mim
me levam até ela, para poderem amarrar minhas mãos acima da
minha cabeça. Um se afasta e puxa a corda mais para cima,
forçando-me a ficar na ponta dos pés para evitar balançar.
— Quem são vocês? — pergunto a eles. As palavras
carregadas de medo. — Gracin enviou vocês?
Um dos homens levanta os olhos da conversa murmurada
com o outro cara de terno. Ele tem o tipo de rosto que induz
pesadelos e sei que nunca o esquecerei. Ele está vestido com um
terno como os outros e apenas pelo ajuste apertado e tecido caro,
posso dizer que é feito sob medida, talvez até mesmo desenhado
com exclusividade para ele. Seu cabelo cinza e branco está
estilizado de maneira imaculada, penteado para longe dos pontos
de calvície. Anéis grossos de ouro com diamantes cintilantes
decoram seus dedos. Ele teria uma aparência mediana se não fosse
pelos olhos mortos e vazios.
É o tipo de olhar que, quando pousa em você, faz o seu
interior estremecer de medo. É o que acontece comigo quando ele
volta sua atenção para mim no segundo em que digo a palavra
mágica: Gracin.
Ele ergue a mão para o sócio e se aproxima de mim,
parecendo que deveria pertencer a uma sala de reuniões em vez de
um lugar decadente como este. O meu palpite é que ele é quem
está no comando aqui.
— Então, você conhece Gracin, — ele diz depois de um
momento. — Gracin Kingsley. King? Teve contato com ele desde
que o ajudou a escapar?
Meu instinto me diz que eu não faria nenhum favor a mim
mesma se respondesse a essa pergunta, então fico quieta.
Ele chupa os dentes e suas bochechas estremecem.
— Muito bem, — ele murmura. — Cuide dela, Danny. — Ele
direciona isso para um recém-chegado, o cara arfa enquanto
empurra a porta.
Minha própria respiração fica presa na garganta quando
reconheço o cara das sobrancelhas, que me seguiu no restaurante e
no meu apartamento.
— Claro, Sal, — Danny diz com um olhar irritado na minha
direção. Quero dizer a ele que não deveria ficar zangado comigo.
Afinal, não fui eu quem o mandou tentar me raptar, por isso não foi
minha culpa ele ter apanhado, mas talvez isso não vá funcionar a
meu favor.
Sal sai com dois dos homens, deixando Danny e outro no
lugar comigo. Tento respirar lenta e profundamente para manter a
calma, mesmo que tudo dentro de mim quer entrar em pânico.
Pequenos tremores musculares escapam, mas consigo manter o
controle. Não demonstre medo.
O que mais me preocupa, mais do que os olhos mortos de
Sal e a dor potencial que estou prestes a enfrentar, é não saber o
motivo para tudo isso. Por que eu? Quem é de fato Gracin, e em
que merda me meti?
Eu sabia que ele era mau, mas estes caras… estão um nível
acima de aterrorizantes pra caramba.
Como ele conhecia estes homens? Como eles sabiam que
eu o conhecia antes mesmo de eu ter dito o nome dele há apenas
cinco minutos? O que querem com ele? Comigo?
Enquanto Danny e o outro homem, a quem ele chama de
Andrew, passam a me rodear, considero todas as coisas que, na
verdade, não sabia sobre Gracin. E eu o amaldiçoo por tudo o que
ele fez para me meter nesta situação. Juro que se eu o vir de novo,
um de nós não sairá vivo do confronto.
Eu os espero começar o interrogatório, mas eles me
surpreendem sentando-se à mesa para fumar e puxar uma garrafa
de licor escuro. Estão tentando me matar com a antecipação.
E está funcionando.
Não seria tão ruim se meus ombros já não estivessem
queimando de desconforto nessa posição não natural. Olho para
cima e descubro que minhas mãos já estão descoloridas. Tento
mexer os dedos, mas eles mal se movem. Os meus pulsos estão
ardendo. Minhas pernas doem e tremem enquanto tentam se
manter equilibradas.
Eles não tocam, falam ou sequer reconhecem a minha
presença durante toda a primeira noite. Tento chorar, implorar,
suplicar, gritar, mas eles podem muito bem ter me colocado no
modo silencioso por todo o bem que isso faz. Pensei já ter superado
os abusos que sofri de Vic, mas no momento em que me
amarraram, os mesmos medos e terror que
experimentei nas mãos dele voltaram. Cada vez que tento cochilar,
minhas pernas dobram, meus braços gritam de dor e eu acordo com
um grito, esperando golpes vindos de todos os lados.
Pela manhã, as lágrimas estão caindo pelas minhas
bochechas sem controle porque estou exausta, frustrada e
entorpecida de dor. Não consigo mais sentir meus braços, e há
muito desisti de tentar ficar de pé. Em vez disso, apenas balanço, a
circulação que se dane. Nem dói mais, pois não consigo sentir nada.
A luz está fluindo através das janelas que se alinham no topo
das paredes quando eles voltam a atenção para mim pela primeira
vez. Danny por vezes me encarava quando pensava que eu não
estava reparando, mas não consigo dar a mínima para o ego ferido
dele.
Danny se levanta, o rosto impassível, embora um pouco
cansado, com base nas manchas sob os olhos. Se eu pudesse me
mover, se meus músculos não estivessem congelados de exaustão,
eu me afastaria dele.
Espero que ele me bata, machuque, torture, mas esses
homens são sádicos demais para tornar isso tão fácil. Em vez disso,
Danny solta a corda da polia e me permite apoiar meus pés no chão
e os braços baixarem, moles e inúteis. Até acreditaria que havia
algo de errado com eles se não doessem tanto quando a sensação
começa a voltar.
Ele não diz uma palavra, apenas observa enquanto mudo o
peso entre os pés, tentando melhorar a circulação nos meus braços
e pernas. Quando o faço, quero gritar de dor. Ela é muito pior do
que eu pensava que seria. Como se milhares de formigas-de-fogo
estivessem afundando suas pinças em minha carne. Mordo a
bochecha para conter o som, e faço isso com tanta força a ponto de
tirar sangue. O gosto me deixa tão nauseada que vomito bile e
sangue aos meus pés.
Danny mostra alguma emoção pela primeira vez e dá um
passo para trás com uma expressão de nojo mal disfarçada. Isso
quase me dá vontade de sorrir. Se não fosse pelas ânsias de
vômito, é bem provável que teria. Não tive enjoos matinais desde
que descobri estar grávida, mas que hora para isso aparecer.
A mamãe acha que você tem senso de humor, digo ao bebê.
Sei que é loucura, mas passar as últimas horas pendurada, incapaz
de dormir e sobrevivendo à base de adrenalina, distorceu minha
mente de todas as maneiras. Falar com o bebê, por menor que ele
seja, me faz sentir um certo conforto.
Desconfiei da gravidez há duas semanas, quando pensei que
superaria tudo o que tinha acontecido. Eu estava tão preocupada
em conseguir um apartamento, um emprego e ficar fora do radar da
polícia e acabei não percebendo que minha menstruação não tinha
vindo.
No início, pensei ser devido ao estresse. Ela falhava algumas
vezes quando eu estava casada com Vic, então isso não era fora do
normal. Mas o meu corpo parecia diferente. Meus seios estavam
mais sensíveis, minhas emoções mais voláteis, minha energia
inexistente.
E embora tenha ficado assustada até o âmago… Eu apenas
sabia.
Também sabia que o bebê era de Gracin. Vic e eu não
fazíamos sexo desde antes de Gracin aparecer, então não havia
nenhuma chance de eu estar grávida dele. Quase fiquei grata por
isso. Se eu fosse forçada a escolher entre Vic e um criminoso
condenado, escolheria o criminoso todas as vezes.
Poupei parte do meu dinheiro para fazer um exame de
sangue no centro de saúde, que confirmou minhas suspeitas. Eu
estava, sem sombra de dúvida, grávida. Marcaram para mim uma
consulta com um obstetra e me deram um frasco de vitaminas pré-
natais, depois me mandaram seguir o meu caminho.
No início, eu não sabia o que fazer ou pensar. Melinda
começou a perguntar se eu era alérgica ao sol, pois estava muito
estranha. Levei um tempo para perceber que isso não precisava ser
uma coisa ruim. Talvez, era o que estava destinado a acontecer. Um
bebê, esse bebê, foi a primeira coisa boa e positiva que já
aconteceu comigo em muito tempo, e jurei que não deixaria essa
criança passar pelas coisas que passei.
Então, vou suportar o que fizerem comigo para nós dois
conseguirmos sair deste inferno vivos.
Quando a dor se vai, e posso mover meus membros
livremente, Danny me amarra de volta. Mas desta vez, ele e Andrew
puxam a corda um pouco mais apertado. Meus braços ficam
dormentes muito mais rápido na segunda vez, e estou apenas
semiconsciente por falta de comida e água. Sem falar na falta de
sono. Cada movimento do meu corpo me atira de volta à
consciência, e agora há náuseas e dores de fome em cima de tudo
o mais.
Isso continua por um período interminável. Só posso
perceber a passagem do tempo por causa da luz brilhando através
das janelas. Perco a conta de quantas vezes me soltam, permitem a
sensação retornar para os meus membros e depois me amarram de
volta. Danny e o outro cara são dispensados quando outro par de
homens, que não conheço, aparece. Várias horas depois, Danny e
seu amigo voltam, parecendo revigorados e bem alimentados.
Mal consigo manter os olhos abertos, mas sou capaz de
mostrar os dentes para eles, o que só os faz rir.
Se eu não estivesse pendurada como um animal para o
abate, teria enfiado balas em cada um deles. Incluindo Gracin, por
me meter nesta merda.
Na noite seguinte, ou, pelo menos, acho que é, trazem um
jarro de água. Minha boca não consegue sequer salivar com a
visão, mas algo primitivo dentro de mim dói ao ver o líquido.
Como se soubesse o que estou pensando, Danny coloca a
água na mesa na minha frente e se serve de um copo. O som só me
lembra da intensa pressão na minha bexiga. Desvio o olhar e o ergo
para as minhas mãos descoloridas, esperando que isso afaste
minha mente do meu corpo, mas não funciona.
Luto contra a necessidade de urinar, sabendo que esse é o
objetivo deles, a degradação e a humilhação, mas no final, a
natureza vence. O alívio é esmagador, mas, ao mesmo tempo,
poder me aliviar depois de tanto tempo dispara pontadas de dor
como se estivessem cravando facas por todo o centro do meu
corpo. O cheiro pungente de urina se espalha ao meu redor e o
calor encharca minha calça jeans, deixando-a pegajosa contra
minhas pernas.
É quando me dão goles da água morna da jarra. Mas estou
com tanta sede que nem me importo. Eles só permitem pequenos
goles, mas é o suficiente para molhar meus lábios secos.
Balanço na corda tentando alcançar o copo enquanto eles o
puxam para longe, e no balanço de retorno, eu me viro e encontro
um punho que me atinge direto no estômago.
As cólicas são imediatas e brutais.
— Não, — digo, mas o som é mais um grunhido. Não sei se
estou falando com os homens à minha volta ou com o fantasma de
Vic. À medida que a escuridão penetra a minha visão, a realidade se
divide e me vejo de volta sob seus punhos, lutando para
permanecer viva.
Mas não importa. Eles não me escutam. Outro golpe, desta
vez na cara, sem dúvida para me calar. O punho de Danny se
conecta logo abaixo do meu olho e meu corpo gira com força na
corda. Meus braços gritam em protesto e, em segundos, minha
cabeça sente como se eu tivesse a pior ressaca do planeta.
Combinado à falta de ar devido ao golpe no estômago, a dor é tanta
que meu cérebro não sabe em qual parte de mim se concentrar.
Alguém grita uma ordem, mas não a ouço por causa do
zumbido nos meus ouvidos.
Há uma enxurrada de movimento, então alguém agarra meus
quadris por trás.
Por um breve e aterrorizante segundo, acho que vão me
estuprar e luto de volta à consciência, debatendo-me contra eles o
máximo possível enquanto estou presa e indefesa. Então o cara na
minha frente, Danny, talvez, dá um tapa na minha outra bochecha e
percebo que o idiota segurando meus quadris só está fazendo isso
para me estabilizar e eu não me mover tanto.
Meu olho esquerdo já está parcialmente inchado e fechado, e
meu outro lacrimeja, porém, mesmo com minha visão embaçada,
posso ver a mesa cheia de apetrechos dignos de filmes de terror
que organizaram em algum momento.
Facas, ferramentas eléctricas, mais corda e armas.
Estremeço e vomito a água que havia conseguido engolir. Danny faz
uma careta e volta a me dar as costas. Desta vez, balanço ao
encontro do corpo do homem atrás de mim e isso só me faz ter
ânsia de vômito outra vez. A sensação das mãos de outro homem
sobre mim é nauseante.
Quando consigo voltar a enxergar, é para ver Danny com um
pequeno maçarico na mão. Atrás dele, um cabo de extensão segue
em direção à parede. O maçarico sibila para a vida e o calor brilha
na minha pele sensível, fazendo-me estremecer.
— Conte-nos o que sabe sobre Gracin Kingsley, — Danny
ordena, enquanto acena de modo casual a tocha na frente do meu
rosto.
Não devo lealdade a Gracin e, com certeza, diria o que eles
quisessem se significasse que eu sairia viva daqui, mas há duas
coisas erradas com este cenário: Primeiro, não faço ideia de onde
diabos ele está. Segundo, assim que eu der a estes homens o que
querem, estou morta, sei disso. Então, não digo nada.
Com a minha falta de resposta, a tocha acende e as mãos
nos meus quadris apertam até doer. Todo o meu está tremendo,
mas não há como controlar isso neste momento. Danny se agacha
ao meu lado, pega a minha perna no braço dele e a segura com
força. Mesmo se eu tivesse a força para lutar contra ele, eu ainda
não teria sido capaz de me libertar de seu aperto.
O maçarico não é grande, mas a chama que sai da ponta é
muito, muito real e, não tenho dúvidas, eficaz. Mas no momento,
nem me importo, pois as cólicas e espasmos no meu útero junto à
umidade fresca entre as minhas pernas só pode significar uma
coisa. E se é o que penso, não me importa quanto me torturem.
Sobreviverei, nem que seja para arrancar a garganta deles com as
minhas próprias mãos.
Danny ignora a urina encharcando minha calça jeans
enquanto ordena para um dos outros homens cortar o tecido a ponto
de não passarem de trapos pendurados em minhas pernas dos
joelhos para baixo. Ele os arranca e os joga fora antes de trazer a
chama para mais perto da minha pele. Ouço o chiado e cheiro de
carne queimada antes mesmo de sentir a dor. Jogo a cabeça para
trás e grito para as vigas. Em pouco tempo, perco a voz e só posso
grunhir os gritos estrangulados até ele enfim afastar o maçarico.
Quando volto a focar nele, a chama é escura e seu rosto é
duro e vazio. A morte encarnada.
— Onde ele está?
Não respondo. Já não estou nem aí para nada, eu me
desligo, meu corpo exausto descansando contra o que está atrás de
mim. Há outro chiado, então convulsiono, querendo me afastar da
dor, mas incapaz devido às mãos que ainda me seguram. Ele afasta
o maçarico e, no mesmo instante, meu corpo desaba para frente.
Pela primeira vez, estou grata pelas cordas. Eu seria incapaz de
ficar de pé se não fosse por elas.
Desta vez, Danny mal faz uma pausa e não repete a
pergunta. A chama sobe pela minha perna, aproximando-se da
carne sensível das minhas coxas. Suas mãos escorregam na minha
pele molhada, mas ele não percebe ou não se importa, e esqueço
de mencionar que o líquido é sangue e não urina, pois ele encosta a
chama na carne de novo. Desta vez, eu desmaio.
Quando acordo, o sol está alto no céu e sinto que sou uma
coluna de gelo queimando. Congelando e em chamas ao mesmo
tempo. Sinto náuseas com o cheiro que me rodeia, minha carne
queimada, e consigo vomitar longe de mim em vez de por todo o
meu peito. Não há nada além de bílis para vomitar de qualquer
maneira, e logo, volto a balançar.
Sinto cólicas em meu estômago e uma nova onda de sangue
reveste a parte interna das minhas coxas. Solto um gemido e as
lágrimas descem pelas minhas bochechas. Acho que desmaio de
novo porque a próxima coisa que sinto é um jato de água enchendo
meu nariz e boca, assustando-me. Eles o mantêm direto em minha
cara até eu aspirar o líquido. Então desligam a mangueira e eu
tusso e vomito água aos pés deles.
Ouço um deles xingando, depois a água me atinge no peito
enquanto me banham com uma mangueira como se eu fosse um
cachorro. Queima como fogo líquido quando atinge a carne
queimada das minhas pernas. Quero me afastar disso, chorar ou
gritar para pararem, mas não consigo. Estou completamente
impotente.
— De que porra ela está sangrando? — um deles murmura.
— Você não bateu nela com tanta força.
Posso sentir os olhos deles em mim, mas não posso abrir os
meus para ver. Além disso, já sei o que estão olhando. Que
conclusões formam em suas cabeças. Deixe-os ver o que fizeram.
Se tiverem coração suficiente para se importar, espero que a culpa
os devore vivos até eu ser capaz de arrancar o órgão de seu corpo.
A mangueira volta, desta vez para me dar um banho
improvisado. Quero dizer a eles que é inútil porque vai continuar
descendo. Eles ainda estão resmungando e tentando lavar o sangue
quando as ordens são vociferadas e as mãos estão de volta nos
meus quadris. A forma sombria de Danny e a luz cintilante do
maçarico são tudo o que posso ver.
Uso minha última explosão de energia para chutar o ferro de
sua mão, porém meu pé atinge sua canela em vez disso e ele
grunhe de dor. O barulho metálico do maçarico atingindo o piso de
concreto ecoa por todo o armazém. Danny cambaleia até ele e o
arranca do chão. Há uma explosão de calor e, em seguida, a dor
lancinante retorna, desta vez na perna oposta.
— Onde ele está? — Danny volta a perguntar.
— Vá se foder, — sussurro.
Desta vez, ele deixa a chama contra a minha pele por muito
mais tempo. A ponto de eu não sentir mais a dor, o que pode até
parecer algo bom, mas sei que não é. Lesões sem dor equivalem a
morte.
Mas que mal há nisso? Estou morta de qualquer maneira,
certo?
Ele remove a chama, apenas para trazê-la de volta para um
novo local, causando um novo foco de dor. Em algum momento,
preciso ir para outro lugar no meu cérebro. Um onde não há dor.
Onde não há morte. Onde o bebê que eu não tinha planejado não
está me deixando antes de eu o ter amado como merecia. O lugar
que cultivei nas mãos de um marido que não sabia o significado da
palavra misericórdia.
Sou puxada de volta à realidade com violência quando
trazem de volta a mangueira para me limpar outra vez. O homem
atrás de mim se foi, e eu não consigo mais manter a cabeça erguida
ou ficar de pé sobre as pernas, então estou pendurada para a
frente, meus olhos no concreto abaixo de mim. A água com sangue
viaja em rios pelo chão e para um dreno próximo.
Agonia não chega nem perto de descrever o que sinto
quando percebo que essa é a pequena vida que eu já tinha
imaginado como minha. Nesse momento, os soluços explodem de
mim. Coisas profundas, devastadoras e dolorosas. Sinto como se
uma parte de mim fosse arrancada do meu coração, como se isso
tivesse mudado até mesmo meu DNA. Sei que se conseguir sair
disto, nunca mais serei a mesma.
A água corta e os soluços voltam. Não consigo parar de
chorar, nem mesmo quando a chama volta. Então minhas lágrimas
se transformam em gritos e eu berro e choro com tudo o que tenho.
O som ecoa por todo o armazém, a chama se apaga e Danny me
bate de novo, seu punho colidindo com a minha mandíbula, fazendo
minha visão explodir em um caleidoscópio de estrelas.
— Se você não vai responder à pergunta, então mantenha a
boca fechada, — rosna, enquanto enfia uma tira de pano na minha
boca.
Mas não me importo.
Com minhas pernas queimadas demais para ser a sua tela
de tortura, ele levanta o meu pé e o maçarico clica de volta. No
momento em que a chama toca a pele sensível da minha sola, grito
contra a mordaça e me contorço contra o homem que me segura.
— Onde é que ele está, porra? — Danny pergunta. — Me
diga o que sabe e tudo isso acaba. A dor vai parar se você me
disser onde ele está.
Ele deixa o maçarico cair no chão e remove a mordaça para
eu poder falar, mas em vez de dizer algo, apenas reúno saliva
suficiente para cuspir em seu rosto. Seu olhar de ultraje absoluto me
faz rir, porém, o som é tingido de histeria.
— Ela está enlouquecendo, — Andrew diz. — Perdeu a
cabeça de vez.
Isso só me faz rir mais.
Há um barulho alto de metal arrastando vindo da porta do
armazém e estremeço por dentro, sabendo que deve ser Sal, seja lá
quem for ele, voltando para obter os resultados dos últimos dias ou
para me matar. Uma parte de mim quase quer que me enfiem logo
uma bala, mas a outra, aquela que está exausta e farta de ser
tratada como merda, quer uma chance, apenas uma, de fazê-los
pagar por tudo o que fizeram, tudo o que tomaram.
— Última chance, — Danny diz. — Onde ele está?
Então uma voz, que não pertence a Sal, diz:
— Bem, rapazes, se queriam me ver tanto assim, então tudo
o que tinham a fazer era ligar.
Eu gostaria de poder virar ou abrir os olhos o suficiente para
realmente vê-lo. Dessa forma, saberia que ele está aqui de verdade
e não é uma alucinação ou o meu choque me pregando peças. Por
enquanto, vou optar por acreditar que ele está, de fato, aqui e deixar
esse pensamento me iluminar. Puxo as amarras e o homem atrás
de mim aperta a mão.
Danny se endireita, seu corpo musculoso fica tenso enquanto
se vira para encarar um Gracin indiferente.
— King, — Danny diz, embora seja mais como se cuspisse a
palavra. — Estávamos procurando por você.
— Terrelli, — Gracin responde. — O que você tem aí?
Desmaio, sobrecarregada demais pela dor e descrença para
me manter consciente. Quando acordo, posso vê-lo enquanto acena
com um polegar por cima do ombro na minha direção.
— Essa vadia? Ela é apenas a puta burra que convenci a me
ajudar a escapar de Blackthorne. — Ele ri, inclinando-se para a
frente para dar um tapa no joelho. Danny rosna com a
condescendência flagrante de Gracin. — Cara, Sal deve estar
desesperado para mandar homens caçar mulheres, só para
conseguir o que quer. Diga-me, Terrelli, você é tão ruim no seu
trabalho que não consegue rastrear um alvo sem recorrer a
espancar mulheres?
— Diga-me, King, você é tão covarde que precisou correr
com o rabo entre as pernas?
Gracin estala a língua.
— Eu nunca corri. Ao contrário de você, sei fazer um trabalho
do jeito certo. Agora, vamos ficar aqui o dia todo, ou vai ligar para
Sal e contar que você é um completo fracasso?
O olhar dele não pousa em mim sequer uma única vez desde
que chegou aqui. Sei disso porque não consigo tirar os olhos dele, e
me odeio por isso. Ele não se parece em nada com o homem que
eu conhecia e, ainda assim, é tão familiar que faz todo o meu corpo
doer. Bem, ainda mais do que já estou doendo.
Danny atravessa o galpão até a mesa e os outros seguem
depois, deixando-me pendurada, ferida e sangrando. Não passo de
um pedaço de carne. Nem me surpreende quando Gracin não vem
até mim. Mas está tudo bem. Isso mantém meu cérebro ocupado e
longe da dor, enquanto observo Gracin estudando os homens.
Ele está vestindo um terno e parece ainda mais intimidante
em roupas sob medida e tecido caro do que no traje da prisão. A cor
escura em contraste com sua pele bronzeada o faz parecer
confiante, elegante e capaz. Um homem polido, refinado e
dominante. Ele mantém as mãos ao seu lado, soltas e prontas,
como um pistoleiro, ou um gladiador, preparado para lutar até a
morte.
Danny está conversando com alguém ao celular, e eu fecho
os olhos contra a dor que irradia através de mim. Quando consigo
voltar a abri-los, Gracin está perto.
Seu rosto não trai nenhuma emoção, mas ele olha para mim
uma vez, notando os hematomas no meu rosto, as queimaduras nas
minhas pernas e o sangue ao meu redor. Não diz nada e, depois de
ele me tratar de modo tão superficial, uma vez mais, lembro-me de
todas as razões pelas quais quero estar o mais longe possível dele.
Então, viro a cabeça para longe dele e espero para ver o que esses
cretinos têm reservado para mim.
No entanto, Gracin tem outros planos.
Enquanto Danny fala ao celular e os outros fazem uma
pausa para fumar, ele corta a minha corda e sustenta o meu peso,
porque o meu pé está tão queimado que eu não sou capaz de ficar
em cima dele.
— O que diabos está fazendo? — Danny pergunta com uma
mão sobre o telefone.
Gracin sequer olha para ele.
— Você tem a informação que queria. Eu estou aqui. Por
acaso quer continuar com ela? — Sua boca se contorce e ele olha
para cima. — Não sabia que você curtia esse tipo de merda. Deve
ser por isso que Sal se meteu em filmes caseiros de tortura, hem?
Pervertido.
Danny franze a testa e depois volta para a conversa. Gracin
começa a massagear meus ombros para aumentar o fluxo
sanguíneo para a área, mas me sacudo para afastar suas mãos e
dou um passo para longe. Bem, pelo menos tento. Minhas pernas
não querem sustentar o meu peso e a dor fresca que inflama em
meus membros me faz quase desabar de cara no concreto.
— Não, — ele diz com a voz áspera, enquanto me ajuda a
ficar de pé. — Você não pode andar, por isso não tente.
Forço a minha voz através da minha garganta em carne viva.
— Não me toque.
Ele me estuda e depois se afasta, as mãos erguidas
enquanto gesticula para eu continuar. Olho para ele e manco até a
mesa, onde ignoro as coisas em cima dela e me agacho para me
sentar em uma das cadeiras. Não seria capaz de esconder a dor
dominando minhas feições nem se tentasse, então não o faço.
Deixo todos no galpão saberem quão vulnerável estou.
— O chefe quer que a gente te leve até ele, — Danny diz,
enquanto desliga o celular e caminha até parar atrás de mim. Meus
ombros ficam tensos com a proximidade dele, mas fiz um
espetáculo tão grande ao me sentar que não conseguiria me mover
nem se minhas pernas tivessem força para me manter ereta.
— Isso não vai funcionar para mim, — Gracin responde.
— Receio que você não tenha escolha. — Danny e seus
homens formam uma linha entre a saída e nós dois.
Gracin suspira como se estivesse no supermercado e o
funcionário não soubesse informar onde fica a sua água com gás
favorita.
— Então acho que não temos nada para conversar, — ele diz
e saca uma arma.
Gracin dispara quatro vezes em rápida sucessão, tão veloz
que sequer tenho tempo para perceber o que ele está fazendo. Caio
da minha cadeira sem cerimônia e a dor do movimento é tão
insuportável que faz todo o meu corpo ficar entorpecido. Meus
braços se levantam para cobrir a cabeça e aperto os olhos. Quando
os tiros param, olho para cima e encontro os quatro homens
gemendo e deitados no chão.
Nem penso, só me ergo nos meus pés doloridos e me
arrasto para a porta. Passos estão logo atrás de mim, mas me movo
tão rápido quanto meu corpo maltratado me permite. A última coisa
que quero é ser apanhada, mas não adianta. Gracin está saudável,
descansado e ainda tão ágil quanto uma cobra. Ele chega à porta
diante de mim, barrando o meu caminho.
Com uma mão enrolada em volta do meu braço como uma
faixa de aço, ele me puxa em sua direção e depois me pega em
seus braços como se eu não pesasse quase nada. Mas não quero ir
a lugar nenhum com ele, então estou batendo e arranhando todas
as partes disponíveis dele que posso alcançar até chegarmos a um
carro e ele me jogar no banco de trás.
Quando me ergo, ainda gritando e batendo nele, Gracin
desvia meus braços e dá um golpe rápido na lateral da minha
cabeça. Num segundo, estou consciente, no outro, sou consumida
pela escuridão e pelas sombras.

Sinto tudo através de uma névoa. O movimento de um


veículo.
Os restos de dor indescritível.
A presença de outras pessoas ao meu redor.
O pânico ameaça me engolir, então me entrego à escuridão
mais uma vez.
A dormência e o transe continuam por tanto tempo a ponto
de eu começar a acreditar que estou morta. O que mais pode
explicar a paz completa e a sensação de calma? Então algo balança
meu corpo, trazendo a dor incapacitante de volta ao centro da minha
mente, e eu gostaria de estar morta outra vez. É apenas um minuto
de dor eterna antes que uma pequena picada no meu braço leve
minha mente à deriva…
Depois vem o sono. Profundo, feliz e ininterrupto.
É a conversa murmurada que me tira do estupor drogado
com um estalo. No mesmo instante, penso em Danny e no grupo de
bandidos. Preciso me proteger das coisas que planejam fazer
comigo a seguir. Levanto-me, os dentes à mostra num rosnado e
encontro mãos me pressionando na cama.
Luto contra elas e sons nada humanos saem da minha
garganta, até eu ouvir uma voz que não reconheço.
— Sra. Emerson, preciso que se acalme.
— Dê um sedativo para ela, — uma voz familiar diz.
Talvez eu esteja sonhando.
— Ela já recebeu sedativos demais, — responde a primeira
voz.
Nenhum dos dois soa como os homens que me espancaram
e torturaram, e isso desperta minha curiosidade o suficiente para eu
abrir os olhos, mesmo que apenas para me preparar para a minha
próxima versão do inferno. A visão que me cumprimenta é suficiente
para sufocar meus gritos e me encolho de volta nos cobertores.
Ao meu lado, está um médico, ou pelo menos acho que é
um, se considerar o estetoscópio enrolado em seu pescoço, e ele
parece preocupado e intimidado. Ele se endireita e lança um olhar
questionador para outra pessoa parada no canto.
Gracin.
Ele se empurra da cadeira em que está sentado, chega ao
pé da maca hospitalar e descansa as mãos na peseira.
— Bom dia, Tessa, — ele diz.
Quase solto uma risada. Bom dia? Bom dia? Como se ele
fosse um parente, e eu tivesse gripe ou algo assim. Fecho os olhos
e relaxo na suavidade em minhas costas, tentando lembrar o que
aconteceu ou onde posso estar.
As memórias do que fizeram comigo são demais para
processar, então coloco isso de volta nos recessos da minha mente
e me concentro no final. As lembranças estão turvas, efeitos
persistentes do sedativo, e manchadas pela dor. Primeiro, minha
mente se agarra a Gracin.
Ele apareceu no final, usando um terno. Gracin me chamou
de vadia e depois me soltou. Abro os olhos para confirmar a imagem
que me vem à mente. Ele se endireita e cruza os braços sobre o
peito. Reconheço a camisa como sendo a mesma que ele usava
quando estava no armazém, mas tirou a jaqueta, desabotoou o
botão superior e dobrou as mangas.
O médico pigarreia ao meu lado e eu olho para ele.
— Sra. Emerson. Eu sou… — Ele olha para Gracin para
confirmação, que acena com a cabeça. — Sou o Dr. Haversham.
Tenho cuidado da senhora nos últimos dois dias. A senhora sofreu
várias queimaduras de segundo e terceiro grau nas pernas.
Múltiplos ferimentos, contusões e uma concussão. — Ele faz uma
pausa, desta vez me pedindo permissão silenciosa para algo. Ele
quer falar da única coisa a qual venho tentado com todas as forças
não pensar.
Consigo ouvir a resposta do meu próprio corpo quanto a isso
nos monitores ao meu lado. Minha frequência cardíaca acelera e a
expressão dolorida do médico dispara de mim para Gracin, depois
volta.
— Pode me dizer, — afirmo, minha voz gutural.
— Você perdeu o bebê, — ele conta, parecendo relutante.
Pelo canto do olho, vejo as mãos de Gracin caírem para o
lado dele, mas a visão se desfaz com minhas lágrimas não
derramadas.
— Sinto muito, — o médico diz, mas não é preciso.
Eu sabia muito antes de Gracin aparecer que meu corpo não
carregava mais uma vida.
— Bebê? — Gracin pergunta.
Não respondo a Gracin, pois afinal, o que há para dizer? Ele
não merece a cortesia, e estou cansada demais para falar ou fazer
todas as coisas que quero, então fecho os olhos e finjo dormir até
ele me deixar em paz.
Levo algumas horas para descobrir que não estou num
hospital de verdade. Não, estou num quarto na casa de alguém. A
casa de Gracin. O médico e uma mulher, que presumo ser uma
enfermeira, seguem monitorando o meu estado nas próximas horas.
Na maioria das vezes é tranquilo, mas quando a noite cai, deixo as
lágrimas virem. Elas caem em um fluxo constante pelas minhas
bochechas. Tremo tanto a ponto de me sentir paralisada, mas deixo
as emoções tomarem conta. Pensei já ter chorado tudo o que podia
no armazém, mas estava errada.
O pranto parece durar para sempre, até eu gastar toda a
energia que me resta, em seguida, fico apenas fitando a parede,
sentindo-me vazia. Mais do que eu costumava me sentir nas vezes
em que Vic me fodia até a submissão e me ignorava em seguida,
como se eu sequer fosse uma pessoa. Essa pequena vida foi a
única coisa positiva em minha vida após três anos de sofrimento, e
agora se foi.
— Bebê? — Gracin pergunta, sua voz vindo da escuridão. Eu
a ouço, mas estou tão cansada, tão exausta que não consigo reunir
energia para me mover. Mas sei que ele diz a palavra como uma
pergunta e não como termo carinhoso. — Você estava grávida?
— É o que parece, — respondo em um tom monótono. —
Mas não importa. Não estou mais.
— Era meu. — Não é uma pergunta. Ele diz isso como uma
reivindicação. Como se fosse algo vital e real. E foi, mas não é mais,
e eu não quero falar com ele, ainda mais sobre isso.
— Provável, — digo, embora tenha certeza de que era dele.
— Era meu, — ele repete, sua voz mais insistente. Ouço a
cadeira ranger e meu corpo dolorido fica tenso, preparando-se para
o que quer que ele tenha planejado a seguir.
Ele não me toca como eu esperava. Ele apenas move a
cadeira para mais perto da minha cama.
— Como? — Não sei dizer se ele está apenas curioso ou
furioso. Ele quer saber como perdi o bebê, mas isso não é algo de
que eu possa falar agora… talvez nunca.
Minhas mãos dão um nó nos lençóis luxuosos da cama.
— Não quero falar sobre isso. — Faço uma pausa para
controlar o tremor na minha voz. — De qualquer forma, isso
importa?
Ele suspira e o som acaricia minha pele. Quase posso
imaginar que sinto a respiração dele ao longo do meu corpo.
— Acho que não.
Por alguma razão, suas palavras fazem meus olhos voltarem
a se encher de lágrimas. Mas não as deixo cair desta vez e pisco de
maneira furiosa para conter o fluxo.
As perguntas borbulham dentro de mim e quase me engasgo
com elas. As razões pelas quais Gracin fez tudo aquilo não
importam mais. Elas parecem muito infantis em comparação a todas
as coisas que aconteceram desde então. Um dia, vou exigir
respostas, mas não hoje.
Eu rolo para longe dele, sem vontade de dizer mais nada.
Felizmente, ele não questiona mais. Devo ter adormecido, pois na
próxima vez que abro os olhos, descubro que o sol nasceu e estou
sozinha. Observo a luz por um longo tempo antes de uma batida
soar e uma jovem entrar no quarto. Ela usa uniforme de hospital,
então presumo que, pelo menos, seja enfermeira. Mas não pergunto
sobre isso. Ou sobre como ela conhece Gracin, ou como veio parar
aqui neste quarto, cuidando de mim. Não quero saber.
— Olá, — ela diz com uma voz suave que é calorosa e
calmante. Quero me inclinar para o conforto. Quero alguém para me
abraçar mais do que qualquer coisa, mas em vez disso, balanço
minhas pernas sobre o lado da cama.
— Se importaria em me ajudar a ir ao banheiro? — pergunto
de maneira brusca.
Ela assente, as mãos eficientes e capazes enquanto me
ajuda a ajeitar os fios e tubos, depois sustenta meu peso enquanto
me guia até uma porta à esquerda. O banheiro é suntuoso, com
bancadas de granito e azulejos caros. Vejo um chuveiro embutido
na parede com uma dúzia de jatos e puxadores. Após me aliviar,
peço a ela para me ajudar a me despir.
— Quer que eu…
— Não precisa. — Suavizo minhas palavras ásperas com um
pequeno sorriso. — Mesmo assim, obrigada.
Há um banco no box do chuveiro e eu me sento nele com
uma pequena careta. Não há uma parte de mim que não doa. O Dr.
Haversham havia enfaixado minhas coxas e panturrilhas com gaze
respirável e algum tipo de filme plástico à prova d’água. Segundo a
enfermeira, trocaram os curativos recentemente e não teria
problema eu tomar banho, desde que não fosse muito longo. Eu
nem quero imaginar como as feridas estão.
Uma verificação superficial de mim mesma revela sangue,
que flui para baixo para se misturar com a água do chuveiro. Mas
não consigo reunir forças nem para sentir vergonha. Só há espaço
para a dor constante do luto.
Não sei por quanto tempo fico sentada no chuveiro, mas é o
suficiente para o fluxo de sangue diminuir, pelo menos por agora.
Apenas sei que demoro o bastante para embaçar as grossas
paredes de vidro de cima a baixo e minha pele ficar inchada e
enrugada. O suficiente para as ataduras em minhas pernas
precisarem ser trocadas. No entanto, não importa quanto eu
permaneça sentada debaixo do jato, sinto que nunca vou ficar limpa.
É Gracin quem me tira de lá quando eles consideram que o
meu banho já durou o tempo necessário. Não luto contra ele,
embora o seu toque faça minha pele arrepiar. Ele apenas aparece
do outro lado do vidro e estende a mão para desligar a água. Então
enfia o braço e me oferece uma toalha. Espero que ele espie
enquanto me enrolo e saio, mas Gracin não olha.
— Como está se sentindo?
Odeio que a voz dele não traia nenhuma emoção. O homem
que eu conhecia, que era calculista, desonesto e paquerador,
desapareceu. Isso só reforça a minha crença de tudo ter sido, de
fato, uma atuação. E como a idiota que eu era, caí no truque.
Acho que é uma coisa boa eu não ser mais uma idiota.
Apenas o encaro e ele diz:
— Justo. Há alguma coisa que eu possa fazer para deixá-la
mais confortável?
— Você pode me dizer quando posso dar o fora daqui. —
Não há razão para enrolações. Não passei dois meses fugindo
porque queria que ele me encontrasse. Depois do que ele fez, a
única coisa que quero é ficar o mais longe possível dele.
Talvez estejam aceitando novos voluntários na Estação
Espacial Internacional. Sim, talvez outro planeta possa ser longe o
suficiente.
Sua expressão não muda, mas, por um momento, sua boca
aperta.
— Não é seguro para você ir embora agora, — afirma.
Acomodo-me na cama com cautela e depois permito que ele
me cubra com os cobertores.
— O que quer dizer com isso?
Ele desvia os olhos e eu preciso engolir o desejo de forçá-lo
a voltar a olhar para mim.
— Quero dizer que você vai ficar aqui até que seja seguro.
— E onde é esse “aqui”?
— Minha casa.
Desabo contra os travesseiros, mais do que um pouco
atordoada. Gracin tem uma casa? Penso no banheiro que deve ter
custado uma pequena fortuna. Ele não condiz com o homem que
conheci em Blackthorne.
As perguntas me dão dor de cabeça, o que, sem dúvida,
devo deixar transparecer em meu rosto, pois ele fecha as cortinas e
diminui as luzes sem eu sequer pedir.
— Descanse um pouco. Podemos conversar sobre isso mais
tarde.
— Não quero ir jantar! — grito para a mulher que veio me
convidar para descer. — Quero ir embora. Agora! — Meu tom
imperioso faz pouco para intimidá-la, embora ela não passe de uma
coisinha de um metro e meio. Se muito, ela parece apenas absorver
minha grosseria e intensificar sua carranca feroz.
— O senhor Kingsley gostaria que você se juntasse a ele
para jantar. Às seis, em ponto.
A implicação de que o atraso é um pecado mortal está
implícita. Ela sai e eu me jogo de volta na cama, murmurando
obscenidades as quais não tenho coragem de dizer na cara do
tirano.
Três semanas se passaram, e eu não saí do quarto uma
única vez. No começo, eu estava muito apática, física e
emocionalmente esgotada para fazer mais do que o mínimo: dormir,
comer, tomar banho, repetir. Uma vez que o bom médico me deu
alta, uma semana depois de me trazerem para cá, pensei ter
chegado o momento para a conversa que Gracin e eu deveríamos
ter, ou para eu ir embora se quisesse.
Mas… como estava enganada.
Assim que o médico saiu, tomei banho, vesti as roupas
fornecidas para mim e fui até a porta para ir embora. Mas ela estava
trancada. E assim ficava até a mulher, a qual eu só conhecia como
Marie, vinha trazer minhas refeições. Ela nunca respondia a
nenhuma das minhas perguntas e só falava em ordens.
Tenho a sensação de que Gracin sabe como estou, mas não
voltou mais para me visitar, não que eu queira sua presença. Ele
pode ir para o inferno primeiro. É mais fácil ele morrer de fome do
que eu ir de bom grado jantar com ele.
Quatro da tarde vem e vai, depois as cinco. Então dá seis
horas. Minha apreensão cresce a cada tique-taque do ponteiro. A
televisão que ele deve ter instalado enquanto eu dormia só me
entretém até certo ponto, em seguida, volto a observar o relógio.
Dez minutos se passam, depois vinte.
Quando o relógio marca meia hora após as o horário
estipulado, a fechadura da minha porta gira. Espero ver Marie, mas
quem aparece é Gracin.
Ele se inclina contra a porta.
— Agora, a única razão pela qual acho que você recusaria o
jantar é por ainda estar dolorida demais para descer as escadas.
Queria que você tivesse dito isso antes. Eu teria subido mais cedo,
ratinha.
A lembrança da prisão, do que aconteceu entre nós, é quase
demais. Eu me levanto depressa.
— Não me chame assim. Estou bem. O médico disse que as
queimaduras cicatrizaram bem. Você não precisa mais me manter
trancada aqui.
Ele me estuda como se não me entendesse direito, mas
estivesse desesperado para conseguir. Não gosto disso. Na
verdade, quero que ele pare.
— Se eu for jantar, você me deixa ir embora?
— Se você vier jantar, vou considerar.
Nós dois sabemos que ele negocia acordos apenas para
negá-los após conseguir o que quer, mas não tenho outra escolha.
Olho ao redor do quarto, odiando essas quatro paredes e sabendo
que a consideração dele é tudo o que terei. Além disso, pelo menos
desta vez, vou descer em meus próprios termos, não nos dele.
Gracin acena com o braço, convidando-me a sair para o
corredor. Parte de mim tem medo do que vou encontrar. Passo
hesitante por ele e meu queixo quase cai. Há corredores elaborados
em ambas as direções, com dezenas de portas em ambos os lados.
Isso aqui não é uma casa, é uma maldita mansão.
O que diabos um homem que podia pagar um lugar como
esse fazia na prisão?
Um arrepio me percorre quando me lembro de Sal e decido
que talvez eu não queira saber.
Talvez eu só queira sair daqui e fugir para o mais longe
possível.
Quando ele põe a mão no meu braço, eu recuo. O toque de
outros não tem sido fácil para mim desde a noite com Danny e
companhia. Gracin deve perceber isso, porque ele não tenta outra
vez. Ele apenas diz “por aqui” toda vez que precisamos virar uma
esquina ou passar por uma porta.
Esfrego o ponto no meu braço que entrou em contato com a
mão dele e tento não me lembrar onde mais suas mãos me
tocaram. Ele me leva a uma sala de jantar íntima com vista para os
jardins, que estão repletos de cores. Um contraste gritante com os
tons frios e cinzentos de Michigan. É engraçado como você não faz
ideia de que sentirá falta de uma coisa até quando pensa que nunca
mais a verá, não que eu algum dia imaginei sentir falta da neve. Mas
neste momento, sinto.
Sem dizer nada, ele me oferece um assento à mesa e Marie
traz os pratos de comida enquanto lança um sorriso presunçoso na
minha direção.
— Algo mais, senhor Kingsley? — ela pergunta a Gracin.
— Isso é tudo, obrigado. Cuide para não sermos
perturbados.
Sirvo-me do bife e da salada enquanto ele observa. Depois
de semanas de comida branda semelhante à de um hospital, salivo
com a mera visão. Mantenho a boca cheia para não precisar falar
com ele, mas isso não o incomoda nem um pouco. Ele não come,
apenas observa, ainda com a expressão curiosa no rosto.
— Por que você não contou nada a eles? — ele pergunta,
quando o meu prato está quase limpo.
Enquanto tento formar uma resposta, considero o homem à
minha frente. As vestimentas podem ter mudado, mas o ar de
brutalidade certamente não. Ele é pura violência envolta em um belo
laço de fita. É perigo feito para brilhar. Só que, em vez do macacão
da prisão, sua etiqueta de aviso é um terno Armani e um Rolex.
Dinheiro é poder, mas nas mãos dele, também é letal.
— Eles só teriam me matado mais rápido, — respondo,
enquanto dou mais uma garfada.
— Algumas pessoas preferem uma morte mais rápida.
— Algumas pessoas também são covardes.
Ele ri, surpreendendo-me.
— Acho que nós dois sabemos que você está longe de ser
covarde.
— Você vai me contar quem são eles? Acho que me deve
pelo menos isso.
Ele se recosta na cadeira, as pernas abertas e as mãos
apoiadas nas coxas. Naquela pose, ele é dono de todas as sílabas
do seu apelido.
— Contar a você mais do que já sabe só vai colocá-la em
mais perigo.
A corda, o sangue e o meu filho assassinado diriam o
contrário.
— Prefiro saber no que estou envolvida do que ficar no
escuro. Além disso, já é hora de você tentar a sinceridade, para
variar.
— Sal, — Gracin começa, — o homem que contratou Terrelli
e os outros?
Coloco com cuidado o garfo no meu prato, deixando de lado
o restante da comida, e gesticulo para ele continuar. Mantenho as
mãos no colo para que ele não as veja tremer. Mesmo ouvir o nome
do homem causa um tumulto de emoções no meu peito.
— Você conheceu o filho dele. — Seus dedos apertam as
coxas, o primeiro sinal de emoção que vejo dele desde que acordei
em sua casa.
— Conheci?
Ele faz que sim com a cabeça e toma um gole do copo de
uísque.
— Sal… Salvatore, de Blackthorne.
Não posso dizer que estou chocada com a conexão.
Gracin continua, sem prestar atenção ao meu silêncio.
— Acho que se pode dizer que ele não aceitou muito bem o
que aconteceu. Ele nunca gostou muito do filho, mas a ofensa
cometida contra sua família… ao nome dele. Não é algo que um
homem como Sal deixa passar.
Ele se levanta e vai até a janela, deixando a comida
intocada.
— Eu disse que não era um homem bom, Tessa, e falei sério.
— Você falou mesmo. — Pego o copo de água e bebo vários
goles enquanto ele continua.
— Os homens que me contrataram para matar o filho de Sal
me plantaram em Blackthorne. Fiz o trabalho que fui contratado para
fazer e planejei sair tão logo a oportunidade se apresentasse.
— Você costuma fugir da prisão com frequência? — meu tom
é sarcástico, mas estou curiosa de verdade. Afinal, sei como foi
difícil tirá-lo de lá. Não consigo imaginar alguém sendo preso de
bom grado com apenas a possibilidade de escapar.
— Não de uma prisão, mas já tive que sair de situações
complicadas antes. Se você não tivesse me ajudado, eu teria
descoberto outra maneira. Os paramédicos que me levaram? Eles
eram meus.
Nem quero saber como ele orquestrou aquilo, então apenas
sigo em frente.
— Por que Sal não foi lá e matou você?
Ele sorri, e a curva de seus lábios é tão dolorosamente
familiar que me causa uma dor física.
— Eles tentaram, lembra? Mas sou muito difícil de matar.
Além disso, não conseguiram me encontrar.
Eu não tenho uma resposta. Quer dizer, o que posso dizer
quanto a algo assim? Então, sirvo-me apressada de um pedaço de
pão de ló que Marie colocou na mesa. Gracin continua a olhar pela
janela.
— Como eles sabiam que eu estava em Los Angeles?
Com isso, ele se vira e enfia as mãos nos bolsos.
— Se eu tivesse que adivinhar? — ele pergunta, olhando
para mim. Quando aceno que sim, ele diz: — Porque eu tinha sido
visto lá. O fato de você ainda estar viva deixou claro para eles que
você significava algo para mim. Eles são bons no que fazem, quase
tão bons quanto eu, então sabiam que se encontrassem você, eu
estaria logo atrás. Você não foi difícil de encontrar.
Estremeço, o pão de ló se transformando em cinzas na
minha língua. A reportagens não tinham sido gentis nas semanas
seguintes à fuga de Gracin e a morte de Vic. Eles elaboraram uma
história de um romance tórrido que me levou a tirar Gracin da prisão
e matar meu marido para que pudéssemos fugir juntos. Não teria
sido difícil para Sal tirar conclusões a partir daí, por mais
equivocadas que fossem.
— Mas como você me rastreou até a Califórnia? Não é como
se fosse perto de Michigan.
Ele se vira, as mãos enfiadas de uma maneira casual nos
bolsos.
— Se pensou que podia se esconder de mim, estava muito
enganada. Sou muito, muito bom no que faço, Tessa.
— O que, exatamente, você faz? — Estava com medo de
saber, mas também estou farta de me esconder dos meus medos.
— Eu mato pessoas por dinheiro, Tessa. Muito dinheiro.
— Então, Salvatore. Ele foi o quê? Um trabalho?
— Sim.
Assim que meu cérebro começa a girar, decido guardar essa
informação para analisar em outro momento.
— Mas como você me encontrou?
Com um suspiro, ele gesticula com uma mão.
— Quando voltei para a casa, eu sabia que você tinha ido
embora. Não há muitos comércios a partir de Michigan, e presumi
que você se ateria a uma cidade bem conhecida em que você
pensou que poderia se perder.
Engulo em seco, esperando.
Ele olha para a minha mão, onde minha aliança deveria
estar.
— Eu sabia que você precisaria de dinheiro, então verifiquei
todas as casas de penhores próximas de sua casa primeiro. Quando
isso não funcionou, comecei em Detroit. Demorou uns dias, mas
acabei descobrindo onde você vendeu seus anéis. A propósito,
passaram a perna em você.
Aquele filho da mãe.
— E eles apenas deram para você as minhas informações?
Do nada?
Ele arqueia uma sobrancelha.
— Qualquer um pode ser comprado. Basta encontrar o preço
certo. De lá, verifiquei os tipos de transporte mais próximos, que, é
claro, eram ônibus. Das cerca de cem opções possíveis, apenas
três se encaixavam: Nova York, Dallas e Los Angeles. Imaginei que
você escolheria ir tão longe quanto podia. E estava certo.
— E a polícia? Por que não estão procurando por você? Por
nós dois? Você também os comprou? — A essa altura, eu não
ficaria surpresa.
— Trabalho e faço negócios sob um nome falso. Gracin
Kingsley é o meu nome verdadeiro, um com uma história verificável
para aqueles que pensaram em verificar, mas esse nome não levará
nenhuma das autoridades a este lugar. Sou dono dessa propriedade
e de várias outras sob o nome que uso para fazer negócios.
A minha cabeça gira.
— E quanto a mim? Por que fez isso comigo?
Ele faz uma pausa, a primeira durante esse meu pequeno
interrogatório, e depois diz:
— Eu precisava de ajuda para sair.
— Fui apenas um dano colateral, é isso que você está
dizendo. — Aceno que sim com a cabeça, estou furiosa comigo
mesma por querer voltar a chorar só porque recebi uma confirmação
de algo que eu já sabia. — Acho que já sabia disso.
Ele não pede desculpa. Talvez ele já saiba quão inútil seria.
— Você pode ficar aqui até eu conseguir neutralizar a
situação com Sal. Tudo o que precisar será fornecido para você. O
que quiser.
— Quero ir embora.
Ele suspira.
— Essa é a única coisa que eu não posso deixar você fazer.
Eles ainda estão à minha procura e deixar você ir agora só te
colocaria de volta em perigo. Contudo, você está livre para explorar
a propriedade.
— O que importa se estou em perigo? — Ele apenas olha
para mim. Seus olhos verdes elétricos aquecem com quaisquer
palavras que ele se recusa a me falar. Quando tenho certeza de que
ele não vai responder, digo: — Então acho que terminamos aqui,
não é?
Gracin começa a ir embora e eu o chamo quando ele vira as
costas.
— Você não é melhor do que Vic era, me mantendo presa,
pensando saber o que é melhor para mim, enquanto controla as
minhas ações e me manipula. Você mesmo me disse que eu
merecia algo melhor. Pelo visto, na verdade você quis dizer é que
eu deveria trocar uma prisão por outra.
Ele sai da sala de jantar em vez de responder. Marie aparece
para me levar de volta ao meu quarto.

As portas são mantidas trancadas em todos os momentos.


Você pensaria que com uma casa deste tamanho, alguém se
esqueceria de fechar ao menos uma delas… ou, pelo menos,
deixaria uma janela entreaberta, ou algo assim, mas não. Gracin
deve tê-las selado bem, pois testei todas durante a semana
seguinte, procurando pontos de fraqueza, mas sem sucesso.
Quando me deixam sair para apanhar sol ou ar fresco, é
apenas para ir aos jardins dos fundos, que são murados e o único
portão está trancado. Escalá-los é impossível, a menos se eu quiser
arriscar ser feita em picadinhos por arame farpado. Isso me faz
lembrar um pouco de Blackthorne.
Até o fim daquela semana, creio já ter vasculhado todos os
terrenos e quartos que não estão trancados. Se nessa mansão há
um vestígio de quem Gracin é por trás de todas as máscaras que
ele usa, não encontro uma. Mas me deparo com as bibliotecas,
como em mais de uma, um jardim de inverno e uma piscina coberta.
Quase pareceria que eu estava de férias se não estivesse sendo
escoltada por um dos homens de Gracin noite e dia. Nas poucas
ocasiões nas quais não estou sendo observado por uma pessoa, sei
que há uma câmera gravando todos os meus movimentos. Às
vezes, mostro os dedos do meio para elas, pois sei que ele está
assistindo.
Cada dia começa com o café da manhã no jardim que fica no
lado sul da casa. Os pratos variam, mas a refeição é sempre servida
às sete. Café fumegante, frutas frescas e salsichas picantes ou
bacon crocante com ovos. Após comer, vou para o meu quarto e
visto um maiô, que apareceu no dia seguinte à minha descoberta da
piscina, e nado até os meus membros estarem dormentes e minha
mente ficar vazia de uma maneira confortável. Se eu não estivesse
tão incrivelmente acesa o tempo todo, teria gostado de explorar a
biblioteca, mas não consigo mais ficar parada, então, se estou me
sentindo bem, faço algumas sessões na academia ou fico
caminhando de um lado para o outro da mansão até a hora do
jantar.
Às vezes, Gracin se junta a mim, em outras não. Nossas
conversas nunca variam muito do assunto que abordamos naquele
dia, e nunca duram muito porque dou respostas grosseiras a todas
as suas perguntas. Ele tem sorte de eu não ter pegado um dos
talheres e o esfaqueado no pescoço. Talvez seja por isso que ele
come na extremidade mais distante da mesa em frente a mim.
Não quero questioná-lo sobre o motivo de ele ter me salvado
naquele dia. Receio que se o fizer, posso matá-lo em vez de apenas
ficar imaginando isso.
Não sei o que significaria se eu matasse alguém a sangue-
frio. Bem, isso é mentira. Significaria que não sou melhor do que
ele.
Estou explorando os quartos do terceiro andar no fim de
semana seguinte, quando me deparo com outra porta trancada.
Olho em volta, surpresa ao ver que a minha sombra do dia
desapareceu e não há nenhuma câmera apontada na minha
direção. Volto-me para a porta, curiosa. Esta é diferente das outras.
Não sei dizer o porquê. Talvez seja a falta de vigilância, como se
Gracin não quisesse nenhum registro de quem entra e sai deste
cômodo, ou talvez seja um instinto. Ainda assim, sei que este lugar
é especial. Sei que pertence a ele, assim como estou ciente de que
vou abri-la, não importando as consequências. É por pura sorte que
consigo destrancar a porta usando grampos do meu cabelo e dando
um empurrão forte com todo o meu peso.
Seu cheiro me atinge primeiro e eu quase cambaleio para
trás. É a única coisa contra a qual não posso lutar quando estou
perto dele, e isso só me faz odiá-lo mais. É irritante o fato de ele
ainda, depois de tudo, ter o poder de me fazer querê-lo sem sequer
levantar um dedo.
O quarto dele é enorme, talvez o dobro do reservado para
mim. A cama está situada na minha frente, tem uma mesinha de
cabeceira elegante de cada lado e, em cima de cada uma, há um
abajur de estilo contemporâneo. Uma longa cômoda fica à minha
esquerda com um espelho alto no topo. No lado oposto, há uma TV
de tela plana montada na parede.
Começo com as gavetas, afinal, é o lugar mais óbvio para ele
armazenar todos os seus segredos, e talvez seja por isso mesmo
que elas estão cheias de coisas inúteis: pedaços de papel, troco,
cartões de visita de empresas de paisagismo e afins. Fechando-as
com desgosto, vou até a cômoda e bisbilhoto cada gaveta, até
parando uma vez para trazer uma camiseta branca até o nariz.
Furiosa comigo mesma, eu a jogo de volta na gaveta e a fecho.
Minha próxima área de ataque é o seu closet, mas acabo
parando para admirar quando vejo as prateleiras alinhadas com
roupas organizadas de forma meticulosa. Minhas memórias dele
estão tão enraizadas em nosso tempo juntos em Blackthorne, então,
é chocante demais para mim assumir que essa imagem de
sofisticação é a realidade. As gavetas e prateleiras no closet não
guardam mais do que cintos, abotoaduras e sapatos. Enquanto
investigo o banheiro dele, começo a pensar que, afinal, não vou
encontrar nada. Abro uma gaveta após a outra até uma coisa
chamar a minha atenção. Quando a pego, perplexa, quase não
consigo acreditar no que estou vendo.
É o meu crachá de identificação de Blackthorne. Aquele que
ele leu quando nos conhecemos. Deve tê-lo guardado como troféu
quando fugiu, o cretino doente. Deixo o crachá onde o encontrei. O
lembrete do que fiz pode até excitá-lo, mas faz a bile subir na parte
de trás da minha garganta. Eu era uma garota tão estúpida, até
demais.
Coloco as coisas de volta no lugar e verifico outra vez para
ter certeza de tudo estar do mesmo modo como encontrei. Em geral,
eu me sentiria culpada por invadir a privacidade de outra pessoa,
mas, a meu ver, se Gracin não me quisesse bisbilhotando as coisas
dele, não deveria ter me trancado em sua casa.
— Encontrou o que procurava? — Gracin pergunta da porta
do quarto. Ele não parece chateado, mas com base na quantidade
significativa de controle que tem mostrado ao longo das últimas
semanas, eu não saberia dizer mesmo se estivesse. Não que eu me
importe.
— Não estava procurando nada específico, — digo.
— Não estava? — ele retruca.
Revirando os olhos, avanço para passar por ele, mas Gracin
bloqueia a porta. Meu coração dispara como um louco.
— O que está fazendo?
— Só quero conversar.
— Mas eu não quero. Acho que já conversamos o suficiente
no outro dia. Você já deixou muito clara a sua opinião.
Ele me encurrala, um braço envolvendo a minha barriga para
se colocar em minha frente.
— Não acho que deixei, — ele diz, empurrando-me para trás
para poder fechar a porta atrás dele. O som da fechadura ecoa nos
meus ouvidos.
— Me deixe sair.
— Não.
É isso? Apenas um não?
— Gracin, — eu começo, e ele fica quieto. Lembro-me do
que aconteceu da última vez que eu disse o seu nome. O que fez
comigo só porque gostou tanto quando o fiz. Mas isso não pode
mais acontecer. — Você não pode me manter aqui para sempre.
— Eu posso, — ele diz. — E irei.
— Por quê? — questiono, jogando minhas mãos para o alto.
— Você conseguiu o que queria. Já está fora da prisão. Você vai dar
um jeito em Sal e não precisa da minha ajuda para isso. Você não
ganha nada em me manter aqui.
O braço em volta da minha cintura aperta, e a próxima coisa
que percebo é que ele está sobre mim na cama, o corpo dele me
prendendo. Congelo, dominada por um tumulto de emoções e
memórias, nenhuma das quais é bem-vinda.
— Se você não quer levar uma joelhada nas bolas, precisa
me deixar levantar agora mesmo, — digo com uma calma forçada.
Com os braços apoiados em ambos os lados da minha
cabeça, sua boca próxima da minha garganta, posso sentir o
batimento cardíaco dele contra o meu e sua respiração suave em
meu pescoço. Enquanto ele se move contra mim, ficando
confortável, percebo que este é o primeiro contato humano que tive
desde… tudo. E mesmo o odiando, mesmo que Gracin seja a causa
de tudo isso, eu me derreto, minhas mãos ao redor dele.
E eu me odeio por isso.
Talvez até mais do que a ele.
O que está tão destruído dentro de mim a ponto de me fazer
procurar amor nos piores lugares? É algo com o qual já nasci
programada ou é um produto da negligência dos meus pais? Estou
tão fodida que aceito carinho não importa de onde, mesmo que seja
da pior fonte possível?
Ele cai para o lado e seus braços me rodeiam, puxando-me
para rolar com ele até eu estar engessada contra o lado do seu
corpo.
— Isso não significa que não quero matá-lo, — digo contra
seu pescoço.
— Eu sei, — ele diz de maneira solene. — Vou te deixar me
matar mais tarde, apenas me deixe abraçá-la.
Suas palavras me irritam, mas minha raiva não é forte o
suficiente para me fazer revidar. Meu corpo precisa de conforto mais
do que eu pensava. Meu coração dilacerado alcança voo enquanto
ele acaricia meu cabelo e desliza os dedos pelas minhas costas,
sua mão vindo descansar em meu quadril. Lágrimas ameaçam cair,
mas eu as ignoro e me aproximo do santuário que é o corpo dele.
— Me faça esquecer, — sussurro, minha língua se
estendendo para provar o sabor familiar da pele em seu pescoço. —
Se vai me manter aqui e quer me abraçar, então pode me ajudar a
apagar o resto.
Ele não fala, mas faz o que peço, sua boca indo até a minha
enquanto sua mão separa minhas pernas e alcança meu clitóris com
precisão infalível. Arqueio de encontro ao seu toque e, em poucos
minutos, estou agarrada aos braços dele, enquanto luto contra
minha reação feroz.
— Não resista, — ele diz contra os meus lábios. — Me deixe
dar isso a você.
Agarro seu antebraço para afastá-lo, incapaz de suportar o
prazer/dor por mais tempo, mas ele apenas pega meus pulsos,
segura-os contra a cama e desliza a mão sob minha cintura para
tocar minha pele com a sua. A proximidade é o que anseio, e um
movimento depois, gozo sem aviso, todos os meus músculos se
contraindo em conjunto.
Os músculos de Gracin tremem com a força de seu controle
enquanto ele apenas me puxa para mais perto.
— Assim mesmo, querida, — ele diz contra o meu cabelo.
Um tempo depois, ainda deitada em seus braços, permito-me
pensar na vida que perdi. O que a vida poderia ter sido se Gracin
fosse normal e eu não fosse tão fraca. Nós dois com um menininho
ou uma menininha. Tendo sexo fantástico e jantares com conversas
que não giram em torno de assassinato ou vingança.
— O que você está pensando? — ele pergunta, parecendo
sonolento.
— Por que coisas boas acontecem a algumas pessoas e não
a outras?
Sinto seus lábios na minha bochecha e suspiro. Este
momento com ele é apenas uma trégua. Amanhã, as coisas voltarão
ao normal e poderei desprezá-lo outra vez.
Acordo no meu quarto e não sei como me sentir sobre isso.
Então, apenas ignoro. Preciso sair daqui antes de acabar
desenvolvendo uma Síndrome de Estocolmo por Gracin, ou algo
assim. Sob o disfarce da minha rotina diária, esforço-me mais para
descobrir como escapar.
Não causar sérios danos físicos a Gracin quando eu estava
tão perto dele foi a última gota. Ele é magnético, e se eu não quiser
ser sugada de volta para o seu vórtice, preciso fazer tudo o que
puder para correr na direção oposta.
Eu me visto com uma roupa de ioga simples que encontro no
meu armário e escovo os dentes enquanto crio um plano. Minha
melhor aposta será uma das alas menos patrulhadas, isso elimina a
cozinha e as garagens, que ficam no lado sul. Posso quebrar uma
janela ou forçar a fechadura de uma porta e depois encontrar uma
maneira de contornar o muro.
Marie me cumprimenta na sala de jantar com uma bandeja
de café da manhã e, felizmente, sem conversa fiada.
Para permanecer fora do radar, sigo a minha rotina. Café da
manhã, natação, depois vou à biblioteca. Quando finalizo minhas as
atividades, já é uma da tarde. As bibliotecas são os únicos lugares
da casa que eu não explorei tão a fundo quanto quero, porque muito
tempo de silêncio só me deixa mais desanimada.
Escolho a maior das três e, se eu tivesse sido qualquer outra
pessoa, em qualquer outra situação, eu teria declarado que o lugar
era lindo. As prateleiras, tanto na esquerda quanto na direita, estão
cheias de livros de todas as formas e tamanhos. No meio, um tapete
enorme, cadeiras acolchoadas e um sofá macio convidam os
hóspedes a se sentar e relaxar com uma boa leitura. Ao longo da
parede no fundo, há janelas indo do chão ao teto e que dão para o
lado do jardim.
Ignoro os livros e vou direto para as janelas. Elas são mais
antigas do que as outras da casa. Talvez ainda não tenham sido
atualizadas com um sistema de segurança, embora a possibilidade
seja improvável. Estudo as dobradiças e percebo que algumas delas
estão enferrujadas. Talvez eu seja capaz de forçar uma a abrir.
— Tentando fugir tão cedo?
Eu me viro e encontro Gracin parado atrás de mim.
— O que diabos você está fazendo aqui? — gaguejo.
Ele ergue uma sobrancelha.
— Eu moro aqui.
— Pensei que não voltaria até o jantar.
— Tive um pressentimento depois do que aconteceu ontem
que você tentaria fugir.
Levanto o queixo, meus olhos estreitando.
— Eu deveria poder ir embora quando quisesse.
— Não enquanto Sal ainda está à sua procura. À minha
procura.
— Ele não sabe onde você mora? O que o impede de
aparecer agora e nos estripar como peixes?
— Ninguém sabe sobre este lugar.
— Ninguém?
— Minha casa não é algo que eu anuncie por aí, Tessa.
Sentindo-me vulnerável e sensível depois de deixá-lo chegar
tão perto de mim, tanto emocional quanto fisicamente, digo:
— Por que me trouxe aqui? Por que não deixar que ele
acabe logo com isso e me mate? Teria sido menos incômodo para
você e teria poupado a ele o trabalho.
Ele me estuda antes de dizer:
— O que te faz pensar que quero que você morra?
Minha risada é sem alegria, oca.
— Ah, não sei. Talvez porque te vi matar um homem, ou por
ter me obrigado a te ajudar a escapar da prisão e depois fez sexo
comigo enquanto o cadáver do meu marido estava na outra sala.
Não apenas isso, — continuo, enfurecida —, mas agora estou
trancada em sua casa e você não me deixa ir. — Faço uma pausa, o
peito arfando, e me pergunto se devo continuar, mas as palavras
não param. Elas transbordam de mim, inevitáveis e pesadas. —
Quando descobri estar grávida, pensei ser a melhor coisa que já
tinha acontecido comigo. Imaginei que era o lado bom da
tempestade de merda que é a minha vida. Não ligava para o fato de
o bebê ser seu, de que eu seria mãe solteira e criaria um filho
enquanto fugia. Pela primeira vez, eu tinha algo perfeito e puro, mas
aí ele foi tirado de mim! E eu culpo você. Queria que você tivesse
me deixado morrer. Eu não sei se posso perdoá-lo por tudo o que
aconteceu.
Ele encolhe os ombros e desvia o olhar.
— Não espero que me perdoe.
— O que você quer de mim?
— Quero ter certeza de que Sal está morto e que não haverá
nenhuma retaliação contra você. Quando eu não tiver mais dúvidas
quanto à sua segurança, vou deixá-la ir.
O pensamento deveria ter me enchido de uma alegria
indescritível, porém, em vez disso, estou mais em conflito do que
nunca.
— É isso que você faz todos os dias? Procura por ele?
Ele caminha até janela e apoia um antebraço contra ela.
— Sim, estou procurando por ele. Ele está se escondendo
porque sabe que estou à procura dele e, sem dúvida, está
planejando o próximo passo.
Gracin fica em silêncio depois, e isso me dá a oportunidade
de apenas olhar para ele enquanto considero suas palavras. Ele
está usando jeans hoje com uma camisa branca abotoada, as
mangas enroladas o suficiente para revelar as sombras de tinta que
se estendem em seu antebraço direito.
Sigo o padrão escuro sob o tecido quase transparente de sua
camisa e minha boca fica seca quando uma onda intensa de desejo
atravessa o meu corpo ao ver os contornos de anéis de metal
gêmeos em seus mamilos. Quando ele teve tempo para fazer isso?
Eu me viro, não querendo que ele veja quanto quero mandá-
lo tirar a camisa para eu poder vê-los. Meu corpo ainda o reconhece
em um nível primitivo, apesar de tudo o que sofreu. É primal,
instintivo, e tentar resistir a esse desejo por ele, é o mesmo que
tentar não mais respirar. Quando ele se tornou tão essencial para
mim quanto a própria vida? No entanto, reconciliar a minha
necessidade por Gracin com o que ele fez… não sei se é possível.
Seus pés aparecem em meu campo de visão, ergo o olhar e
o encontro parado na minha frente.
— Venha comigo, — diz, e franzo a testa quando ele sai da
biblioteca. Apresso-me para o acompanhar, não querendo ser
deixada para trás.
— Para onde estamos indo?
— Vou explicar quando chegarmos lá, — responde, enquanto
me leva a uma porta que estava trancada toda vez que eu tentava a
maçaneta. Ele a mantém aberta para mim, e percebo por que não
consegui abri-la antes. Fileiras de monitores alinham ambas as
paredes com bancadas largas na frente deles. Dois dos seus
homens estão sentados em cadeiras dobráveis e olham para cima
quando entramos. — Quer sair daqui? Então é melhor ficar atenta,
— avisa. — Preste bastante atenção. Você quer algo de mim? Eu
quero algo de você.
— O que diabos você quer de mim? — sibilo. — Você me
tem trancada aqui como se eu fosse seu animalzinho de estimação.
O que mais poderia querer?
— Me beije, Tessa. Um beijo, e você pode ir comigo para
rastrear aqueles homens que te machucaram.
— Você é ridículo! Nem pensar que vou fazer isso. Você já
não conseguiu o suficiente?
Ele acena para alguém atrás de mim e os guarda-costas, que
eu tinha esquecido de estarem lá, aproximam-se por trás de mim.
Um dos canalhas grandes e corpulentos me agarra pelos braços e
sei que não vou a lado nenhum. Quero gritar de frustração.
— Certo! Tudo bem! Um beijo. E falo sério, Gracin. Apenas
um beijo e nada mais ou juro por Deus que vou matá-lo e eles
nunca vão encontrar o corpo.
— Não me provoque, — diz, enquanto ergue o queixo para
os guarda-costas, que saem logo em seguida. Gracin atravessa a
sala enquanto eles fecham a porta atrás deles, deixando-nos
sozinhos no pequeno espaço.
— Bem, vamos acabar logo com isso, — digo.
— Tão ansiosa.
— Menos conversa, mais foco.
Ele ri e pega meu rosto nas mãos, seus dedos por baixo do
meu cabelo. Seus polegares acariciam minha mandíbula e eu me
ergo na ponta dos pés, encarando-o enquanto ele se aproxima.
— É mesmo tão ruim assim?
A verdade é que não. Não é. E é isso que me deixa tão
furiosa. Mas não tenho a chance de responder porque seus lábios
cobrem os meus e afugenta qualquer pensamento racional, como se
fossem penugens de dente-de-leão em meio a um tornado.
Meus dedos se agarram à bancada atrás de mim porque, se
não estivessem ocupados, já estariam alcançando uma parte dele
para tocar. Estariam deslizando ao longo de seus ombros se
entrelaçando no cabelo. Ele, no entanto, não tem tais escrúpulos
quanto a me tocar. Suas mãos caem nos meus ombros antes de
dançar sobre o decote da minha camisa e depois descer pelos meus
braços, deslizando e arrepiando todos os meus pelos em seu rastro.
No movimento ascendente, as mãos acariciam minha barriga, onde
traçam ao longo das minhas costelas e deslizam até logo abaixo do
meu sutiã.
Enquanto suas mãos mapeiam meu corpo, sua boca assola
as paredes que construí com tanto cuidado desde que me afastei
dele e do cadáver do meu marido. Quando não aguento mais, solto
meu aperto no balcão e o afasto.
— Certo, — digo, um pouco mais ofegante do que gostaria.
— É isso. Cumpri a minha parte do acordo. Agora, cumpra a sua.
Ele se afasta, os lábios rosados e brilhantes, e eu preciso
desviar o olhar para não os atrair de volta para os meus.
— Sim, você cumpriu, — diz, um pouco atordoado, antes de
tirar um chaveiro da fileira de ganchos pendurados ao lado de uma
porta. — Por aqui.
— Aonde vamos?
— De acordo com as informações que reuni, Danny e seus
amigos gostam de se encontrar em um bar a algumas cidades
daqui. Se tivermos sorte, estarão lá e poderemos segui-los até a
casa de Sal.
— Posso…
— Não.
— Você nem sequer me deixou terminar a frase.
— Isso é porque o caos te segue como uma sombra. Você
vai ficar quieta, permanecer atrás de mim e fazer exatamente o que
eu disser, entendeu?
Resmungo, mas não discuto. A possibilidade de encontrar
Danny me faz travar a boca.
— Sabe, se eu não te conhecesse, pensaria que está quase
animada, — Gracin brinca.
Ignoro o tom de provocação em sua voz e digo:
— Achei que você tinha matado eles. Quer dizer, naquele
dia, antes de partirmos.
— Infelizmente, não. — Ele me dá um olhar breve. — Eu
estava mais preocupado em tirá-la de lá.
Estou passada. Gracin admitiu estar preocupado comigo.
Guardo esse conhecimento para depois e caminho ao lado dele em
silêncio. O corredor curto, indo da sala de segurança até o lado de
fora, nos leva até uma garagem de seis carros, diferente da que
encontrei na semana passada. Estaria mentindo se dissesse que
não estou boquiaberta de tão surpresa. Mesmo vivendo todo esse
tempo em sua mansão, com seus empregados, cozinheiros,
assistentes e guarda-costas, o lembrete da riqueza dele é
impressionante. Cada uma das vagas tem um veículo estacionado
nela. Na primeira tem uma caminhonete preta, utilitária e, pelo visto,
bem veloz. Ao lado dela está um SUV de algum tipo, da mesma cor
e muito elegante, quase como se fosse um daqueles veículos
governamentais, do tipo que o Serviço Secreto usa. Não me atrevo
a perguntar a Gracin como conseguiu arranjar um carro desse. As
próximas três vagas estão ocupadas com carros esportivos de
ponta, em cores e marcas variadas.
— Jesus, — ofego.
Chaves balançam atrás de mim e, quando me viro, vejo
Gracin me observando. Ele aponta para o SUV.
— Vamos pegar este.
Preciso engolir para molhar a garganta seca.
— Certo.
Ele ri.
— Acho que nunca te vi tão sem palavras. O gato comeu sua
língua?
Forçando minhas pernas a se moverem, sento-me no banco
do passageiro enquanto Gracin embarca ao meu lado.
— Eu não estou sem palavras… apenas curiosa. Como você
tem recursos para tudo isso? Ou esse é um assunto fora dos
limites?
O carro ganha vida e ele o manobra para fora da garagem.
Espero enquanto ele dá marcha à ré e, em seguida, troca a marcha
do SUV.
— Não há muito que esteja fora dos limites para você, Tessa.
É só perguntar.
— Então me diga, como você tem recursos para uma
mansão e uma tonelada de carros? Você foi contratado por…
alguém para matar Salvatore, mas em que função? E por quê? —
Tenho me perguntado sobre Gracin desde quando o conheci, e
agora que ele está com um humor falante e temos tempo, quero
saber mais.
Enquanto ele reúne seus pensamentos, absorvo a vista e
abro a janela para levantar meu rosto para a brisa fresca da tarde.
Eu tinha permissão para ir aos jardins, mas há algo sobre estar
encarcerada que tira a sua beleza.
— Aceito contratos para várias organizações fantasmas, —
diz.
Eu volto minha atenção para ele, engolindo em seco.
— Contratos? — a palavra é apenas um sussurro.
Gracin assente com um movimento breve de cabeça. Mas
tinha colocado óculos de sol antes para eu não conseguir ler sua
expressão por trás das lentes escuras.
— Sim, Tessa, como eu disse antes.
Sua admissão rouba o meu fôlego direto dos meus pulmões,
mas gesticulo para ele continuar, sem querer fazê-lo se calar.
Ele sai para uma estrada e percebo que nem sei em qual
estado estamos. Eu estava tão fora de mim depois do armazém e
acabei não pensando em perguntar. O terreno me lembra o deserto
da Califórnia, mas estamos no meio do nada. Pelo que sei,
podemos estar em Nevada ou Arizona.
— Eu me envolvi com um grupo de pessoas ruins quando
era mais jovem e acabei adquirindo um pouco de reputação em ser
um solucionador de problemas.
— Você devia estar me contando isso?
— Posso dizer para você o que eu quiser. As pessoas para
quem trabalho me contratam porque sou o melhor no que faço.
Lambo os lábios antes de responder.
— Isso não soa como algo bom.
Ele encolhe os ombros enquanto entra na faixa mais à
esquerda do trânsito.
— Não é assim tão ruim. Eu tinha uma vida de merda em
casa e nada melhor para fazer. Eu possuía as habilidades que eles
precisavam e eles me treinaram por um longo tempo para torná-las
ainda mais mortais.
Tento imaginar Gracin como uma máquina de matar afiada e
fico impressionada quando a imagem não é tão distorcida quanto
penso. Afinal, ele conseguiu se encaixar na prisão como um bandido
de forma tão convincente que enganou a todos. Não fazia ideia de
que havia este homem à espreita debaixo da superfície. Claro,
sempre soube que ele escondia alguma coisa, mas nunca em um
milhão de anos eu teria adivinhado ser isso.
— Falei demais? — pergunta, enquanto observa a minha
expressão.
Pigarreio.
— Não, não é nada disso. Apenas estou percebendo que
não te conheço tão bem quanto pensava.
Ele inclina o meu queixo para cima com um dedo.
— Você me conhece melhor do que qualquer um, ratinha.
Essa declaração revela muito sobre Gracin, fosse sua
intenção ou não, e odeio o fato de me sentir mal por ele. Eu quase
não sei nada sobre ele, e se o conheço melhor do que ninguém,
então ele não deve ter quase ninguém em sua vida. Ele não precisa,
quer ou merece a minha pena, então apenas digo:
— Não sabia nada disso.
Ele dá de ombros.
— É apenas história.
— Sim, mas sinto que você sabe tudo sobre mim.
Ele me dá um sorriso, mas eu não devolvo.
— Tudo bem. Mas só se você responder a uma das minhas
perguntas em troca. Lembra?
Faço uma careta, e isso o faz rir.
— Tudo bem. O que você quer saber? Posso garantir que
não será tão emocionante quanto um passado secreto.
Ele me encara.
— Tudo sobre você me interessa, Tessa, mas vamos
começar com algo fácil. Por que decidiu ser enfermeira?
Respiro fundo e dou um pequeno sorriso.
— Acho que não queria me tornar como meus pais. Ambos
eram inúteis, vivendo apenas de salário mínimo e sem opções. A
enfermagem sempre pareceu um emprego estável com uma boa
renda. Algo respeitável.
— Por que a prisão?
Solto uma risada.
— Bem, não há muitas oportunidades de emprego naquela
parte de Michigan, ou você não percebeu? No início, era para ser
apenas temporário até eu poder juntar dinheiro suficiente para me
mudar para a cidade ou para algum lugar mais quente. Então
conheci Vic, e bem, você sabe o resto.
— Como eram os seus pais?
Com um gemido, pergunto:
— Quer mesmo saber sobre isso? Não é o que você
chamaria de uma história feliz.
— As verdadeiras quase nunca são. E sim, é o que quero
saber.
— Tudo bem, mas antes você precisa responder a uma das
minhas perguntas. — Ele concorda com a cabeça e eu continuo: —
Você mencionou que se meteu em muitos problemas quando era
mais jovem. Por quê?
— Você já sabe por quê. Meu pai era um filho da puta
abusivo e alcoólatra, e minha mãe estava mais interessada em sua
próxima dose do que criar um filho.
Minha mão se estende na direção dele por vontade própria,
precisando tocá-lo, acalmá-lo. Tendo crescido em uma casa
parecida, nem preciso imaginar como era, eu já sei.
Posso não ter a certeza do que diabos estamos fazendo, ou
a razão de não conseguir ficar longe, mas ele não havia mentido
quando me contou sobre os pais. Se eu tinha dúvidas antes, agora
não as possuía mais.
— Sinto muito.
Ele dá de ombros.
— É como as coisas são.
— Acho que tenho direito a outra pergunta porque você
emendou várias na sua vez.
— Justo.
— O que aconteceu com os seus pais? Ainda estão vivos?
— Quase prendo a respiração depois. Fazer Gracin falar, se abrir
assim, parece uma oportunidade frágil e não quero arruiná-la.
— Não, não estão.
Não devia, mas pergunto mesmo assim.
— O que aconteceu?
Ele olha para mim, tira os óculos e esfrega a mão no rosto.
— Tem certeza de que quer saber essas coisas?
Há uma pausa enquanto penso, mas é curta.
— Sim. Sendo sincera, depois do que aconteceu em
Michigan, eu não poderia pensar pior de você, por isso não é como
se você fosse arruinar a sua primeira impressão.
A princípio, pensei tê-lo insultado, mas depois ele sorri.
— Acho que você tem razão, mas não esqueça, foi você
quem perguntou.
Sua mão esquerda está no topo do volante, e ele descansa o
cotovelo direito no apoio de braço entre nós. Enquanto ele fala, olho
para seus braços, para as tatuagens e seguro minhas próprias mãos
entre as pernas para evitar tocá-lo ou puxá-lo para perto de mim.
— Meu pai gostava de ficar bêbado, como eu disse, e ele
tinha um gosto por jogos de cartas. Ele ficava bêbado e gastava
todo o dinheiro que tinha com ele, às vezes mais. Quando ele
ganhava, era muito e as coisas ficavam ótimas por um tempo.
Quando ele não gastava o que ganhou em mais bebidas e apostas
ruins, minha mãe o roubava para financiar o vício dela em
metanfetamina. Quando os dois ficavam duros, ela vendia o corpo
para conseguir o dinheiro para a próxima dose.
Não percebo que estou prendendo a respiração até as
manchas brancas dançarem na frente dos meus olhos. Aos poucos,
para Gracin não notar, solto o fôlego e respiro o ar fresco.
— Quando fiz dez anos, meu pai quase espancou minha
mãe até a morte, mas ela estava bem o suficiente para sair e ter
uma overdose.
Essa admissão me choca em um silêncio atordoado, e me
lembro da maneira como ele olhou para mim quando viu pela
primeira vez as contusões nos meus braços. Será que tinha visto a
mãe dele em mim? Foi por isso que ele me escolheu, entre todos lá,
para ajudá-lo a escapar?
Limpo a garganta.
— E o seu pai?
— Ele foi embora por um tempo e fui morar com a minha
avó, que não era muito melhor do que os dois. — Gracin olha para
mim, seus olhos brilhantes e cheios de travessuras agora. — Sua
vez. Me conte algo que ninguém saiba.
Dessa vez, preciso parar para pensar, e quando o faço,
começo a falar antes de acabar mudando de ideia.
— Vic me engravidou no ano passado. Ele não sabia, pois
tive medo de contar. Ele não queria filhos, ou, pelo menos, essa foi
a minha impressão, então eu estava esperando o momento certo
para contar a ele. — Uma lágrima escorre por minha bochecha e eu
a enxugo. — Mas não tive a oportunidade. Fiz algo… não me
lembro o que era, mas o irritou o suficiente para me bater. A
gravidez não estava tão adiantada, mas o bebê não sobreviveu.
Escondi isso dele porque Vic não merecia saber. No que me dizia
respeito, ele não merecia ser o pai daquela criança.
Quando olho para cima, descubro que o SUV não está mais
se movendo, Gracin puxa o veículo para o acostamento e nós
paramos.
— O que está fazendo? — pergunto, enquanto ele solta o
cinto e ergue o apoio de braço.
Ele solta o meu cinto de segurança e me puxa pelo console
central até eu estar em seu colo.
— O que eu deveria ter feito há muito tempo — responde,
envolvendo-me em seus braços. — Não foi sua culpa. Foi minha e
prometo fazer tudo o que puder para compensá-la.
Ele me abraça por muito tempo. Até as lágrimas secarem e
as minhas emoções se acalmarem.
— A única maneira de me compensar é garantir que eles
paguem pelo que fizeram.
O olhar dele procura o meu e ele assente.
— Eles vão pagar.
Uma hora depois, o bar onde paramos é como mil outros.
Parece mais um barraco do que um local de negócios de verdade,
mas a dúzia de carros no estacionamento e a música explodindo
das janelas abertas dizem que não vai fechar tão cedo. O álcool é
uma daquelas coisas que nunca vai sair de moda. Sempre haverá
alguém mergulhado na miséria e na necessidade de algo para
afogar suas tristezas.
Antes de abrir a porta do SUV, Gracin coloca a mão no meu
braço e diz:
— Espere um segundo, devemos conversar antes de entrar.
Eu lhe mostro um sorriso vacilante.
— Acho que já conversamos o suficiente por enquanto.
Ele balança a cabeça.
— Quero dizer sobre o que faremos quando entramos lá.
Ah. Isso faz sentido, então faço que sim com a cabeça e
espero Gracin me informar sobre o plano.
— Se tivermos sorte, nenhum dos amigos de Danny nos
reconhecerá.
— E se não estivermos?
Eu deveria estar aterrorizada com a perspectiva, mas não
posso negar o zumbido da antecipação logo abaixo da minha pele.
Não sei se estou animada com a ideia de vingança, emocionada por
sair da casa e fazer algo sobre o que aconteceu comigo, ou se
estou apenas embriagada na intensidade emanando de Gracin em
ondas. Mas não importa. Estou ansiosa para entrar lá.
Ele não responde à minha pergunta, mas não precisa, a
arma que ele coloca no coldre debaixo da camisa já diz o bastante.
Ele me entrega outra e eu a escondo na minha cintura.
— Apenas faça o que eu disser e ficaremos bem. —
Concordo com a cabeça outra vez e ele continua: — Eles não vão
saber quem sou aqui, então vou entrar no jogo de cartas e você vai
se sentar onde eu mandar e ficar quieta até eu falar com você,
entendeu?
Faço um movimento de zíper sobre os lábios.
— Como quiser.
Ele me considera por um segundo.
— Por que você não pode ser assim o tempo todo?
— E que graça isso teria? — digo, depois abro a porta e saio.
— Estou começando a pensar que esta foi uma má ideia, —
fala, enquanto caminhamos para a porta da frente.
A placa sobre a varanda diz apenas: Ray’s, e o interior é tão
despretensioso quanto o exterior. A única iluminação do lugar está
vindo de luzes embutidas atrás do balcão e algumas luminárias de
aparência antiga acima, que devem estar com o brilho baixo no
regulador de intensidade, por isso, o salão é tão escuro quanto o
interior de uma caverna. O cheiro não é muito melhor. O odor de
sujeira, poeira, homem e suor assaltam meu nariz, e preciso me
esforçar para não fazer uma careta de repulsa. Cascas de
amendoim se quebram sob os pés enquanto atravessamos o salão
até o bar, onde dois homens solitários estão sentados, sorvendo
suas respectivas bebidas. A música toca ao fundo a partir de uma
jukebox antiga escondida no canto.
Uma mulher, com uma regata curta e pele precisando
urgente de um hidratante, aproxima-se de nós e joga um pano.
— O que vão querer? — ela pergunta ao redor do cigarro
preso entre os lábios.
— Cerveja, o que você tiver na torneira, para mim, — Gracin
responde.
— O mesmo para mim, — digo, satisfeita por descobrir que
minha voz está firme, apesar do nervosismo.
Gracin desliza algumas notas de dólar amassadas pelo
balcão enquanto a mulher bate dois copos de bebida gelada na
nossa frente. Bebo um gole para manter minhas mãos ocupadas e
viro na minha cadeira giratória para estudar o resto do bar. Gracin
mantém as costas para um canto enquanto faz o mesmo.
Não há muitos clientes nesta hora do dia, e aqueles que
estão aqui parecem estar focados apenas em beber o máximo de
álcool possível. Não vejo ninguém com cara de estar envolvido com
Danny, mas o que eu sei?
Gracin se inclina para frente e agarra a minha cadeira. Ela
guincha contra o chão de azulejos arranhado enquanto ele a puxa
ao seu encontro, tão perto que posso sentir o calor vindo dele.
Arqueio a sobrancelha, questionando-o, e ele se inclina e diz
ao meu ouvido:
— Vai na minha. — Isso me faz tremer, então seus lábios
roçam a minha pele.
O braço dele vai para o encosto da minha cadeira e ele
descansa um pé no apoio de baixo. Sorvo alguns goles grandes da
minha cerveja antes de me encostar nele e olhar para cima. Estou
tão perto que posso ver as manchas douradas em seus olhos. Seus
olhos encontram os meus e, antes de eu poder reagir, ele se inclina
para me beijar.
Desta vez, não resisto. Não sei se é a cerveja, embora eu só
tenha tomado alguns goles, a conversa ou a proximidade dele.
Apenas sei é que não é fingimento. Cada toque e sabor é cem por
cento real.
Sua mão vem ao meu cabelo enquanto ele aprofunda o beijo
e inclina minha cabeça para cima, para eu receber tudo o que ele
tem para me dar. Minhas mãos se levantam para agarrar a camisa
dele e eu gemo contra sua boca.
— Eles acabaram de entrar, — diz contra os meus lábios. —
Não olhe e dê risada quando eu mandar.
Ele não me dá uma chance de responder, pois seus dedos
apertam o meu cabelo da mesma forma que fizeram naquela noite
no meu corredor. Fico perdida na luxúria da memória e quase não o
percebo sussurrar:
— Agora. — Depois ele se afasta.
Sentindo-me um pouco grogue, rio sobre a borda da minha
cerveja e tomo o resto para esfriar o calor crescendo dentro de mim.
Aceno para o barman e uso a oportunidade para olhar em volta.
Seria difícil não notar os homens com a quantidade de
barulho que estão fazendo. Há três deles vagando pelo bar até as
mesas de bilhar. Estão bem-vestidos demais para serem clientes
regulares, mas a maneira como os olhos dos outros deslizam sobre
os homens, como se não estivessem lá, me faz pensar que já
estiveram aqui antes e são um problema.
Gracin brinca distraído com o meu cabelo enquanto observa
de relance os três pegarem as bolas e as ajeitarem sobre a mesa.
Se eu não estivesse tão sintonizada com ele como estou, nunca
suspeitaria que não está focado em mim. Lembro-me de ter a
mesma impressão hiper focada quando percebi que ele não estava
atrás de mim apenas para tirar uma casquinha. É como se as
engrenagens em seu cérebro estivessem girando em velocidade
tripla.
Tomo outro gole de cerveja, pois ele pode até estar ligado
nos homens do outro lado do bar, mas eu não estou. Desde que tive
outro gosto dele, meu corpo tem clamado por mais e apenas
consigo pensar em obter mais uma dose. Ele nos ajeitou de modo
que minha cadeira está posicionada entre a abertura de suas
pernas. Uma de suas mãos descansa de um jeito casual no balcão,
e a outra está no encosto da minha cadeira, torcendo as pontas do
meu cabelo.
— Eu amo isso, — diz, enquanto passa os dedos pelo
comprimento.
— Mesmo? — pergunto de maneira brusca. — Nem tinha
notado.
— Uhmm. A primeira vez que te vi com ele preso, queria
soltá-lo só para vê-lo cair ao seu redor. Não conseguia parar de
pensar nisso.
— Por quê? — minha voz soa rouca aos meus ouvidos.
Ele faz um barulho com a garganta.
— Não tenho certeza. Talvez porque você parecia tão tensa.
Eu queria te soltar um pouco.
— Você tem uma maneira engraçada de fazer isso.
— Funcionou, não é?
Considero a minha situação atual. Meus membros estão
relaxados devido ao meu segundo copo de cerveja e meu cabelo
está espalhado sobre os meus ombros. Mesmo depois de tudo o
que aconteceu, estou fora de Michigan e livre, por assim dizer, da
relação que estava me matando aos poucos.
— Eu não queria matá-lo, — digo, percebendo que é
verdade.
— Não acho que o mundo está pior sem ele, — Gracin diz, a
mão pousando no meu pescoço, bem abaixo do meu cabelo.
— É por isso que você diz não ter arrependimentos do que
aconteceu?
— Em parte, — responde. Quem me dera ele olhasse para
mim. — Mas o principal é porque não posso lamentar o fato de você
estar viva. Nunca pensei em ser pai. E não tenho certeza se eu
seria um dos bons, — confessa com tristeza. — Só sei que não faço
ideia do que aconteceria comigo se você não tivesse sobrevivido
naquele dia.
Minha garganta se fecha e tomo outro gole de cerveja para
limpar a emoção pesando ali. Talvez os bêbados no balcão não
estejam tão errados assim. Sinto-me melhor do que há muito, muito
tempo. Ou talvez seja a sensação reconfortante das mãos de Gracin
acariciando ao longo das minhas costas.
— Está na hora, — diz e se levanta. Ele estende a mão para
mim e eu a tomo sem hesitar.
Os três homens estão terminando o jogo de bilhar quando
Gracin para ao lado deles. Nem preciso fingir estar bêbada, porque
depois de duas cervejas com o estômago meio vazio e tendo uma
baixa tolerância ao álcool, já estou tonta.
— E aí? — um dos homens diz. Suas sobrancelhas estão
apertadas em uma expressão desconfiada quando ele cruza os
braços sobre o peito, seu desconforto com a aparência dominante
de Gracin é bem evidente.
Gracin acena com o queixo.
— Qual é o inicial para o jogo dessa noite? — Ele começa a
procurar nos bolsos.
Aquele que deve ser o líderzinho deles diz:
— Jogo privado, desculpe.
Os olhos do primeiro saltam da cabeça quando Gracin extrai
um maço de dinheiro bem recheado do bolso.
— Tem certeza? — ele pergunta com um sorriso atrevido na
minha direção. — Minha senhora e eu queríamos nos divertir um
pouco esta noite. Ela nunca foi a um jogo de pôquer antes.
Os dois caras olham para o seu líder, ele tem uma cor de
pele e estrutura óssea muito parecida com a de Danny, e isso me
faz me perguntar se são parentes distantes. Apesar de ter cerca de
quinze quilos a mais que Danny e um rosto mais redondo, mas os
olhos são os mesmos. Nunca esquecerei aqueles olhos.
Gracin envolve um braço em volta do meu ombro e pressiona
os lábios no meu cabelo para sussurrar:
— Fique calma, ratinha. Não se preocupe. Cuidarei disso.
Eu poderia acabar com tudo aqui mesmo. Alcançar a arma
de Gracin e meter balas nos três. Matar o parente de Danny
mandaria uma mensagem e gosto de pensar que estou ficando boa
em ser tão implacável quanto o homem ao meu lado. Mas enviar
uma mensagem como essa pode levar Danny e Sal a se entocarem
ainda mais, então relaxo e dou a Gracin um sorriso ensolarado.
Soltando-me do aperto de Gracin, coloco as mãos na mesa
de bilhar para acentuar meu decote e olho para os homens.
— Então, o que me dizem, rapazes? Vamos nos divertir hoje
à noite ou o quê?
A tensão na sala é palpável, e os três caras, cujos nomes
descobri ser: Desmond, Cody e Jasper, estão suando tanto que a
pele deles reflete na luz amarela da luminária acima.
Cerca de uma hora atrás, a garçonete, cujo nome eu ainda
não consegui saber, levou os cinco de nós de volta a um quarto
escuro com uma pequena mesa de cartas e algumas cadeiras. A
mesa de feltro está desgastada a ponto de poder ver a madeira
prensada por baixo e nenhuma das cadeiras apoia direto no chão,
mas os três homens parecem não se importar. Após Gracin mostrar
seu dinheiro, os caras só tinham olhos para o bolso no qual ele o
escondeu.
Nas duas primeiras rodadas, Gracin se recostou em seu
assento e ouviu em silêncio os três falarem merda. Ele os deixou
vencê-lo até se sentirem confortáveis. Então, de repente, a atenção
dele ficou muito mais focada.
É a décima mão, e Gracin não tem sido gentil com as
carteiras deles. Dá para ver Desmond, o parecido com Danny,
morrendo de vontade de puxar briga, mas ele é inteligente o
suficiente para morder a língua. O que é surpreendente,
considerando quanto beberam. Enquanto os três tomavam uísque e
coca, Gracin sorvia pequenos goles de sua cerveja quente e os
estudava. Uma pantera esperando para atacar, com seus músculos
elegantes e olhos sombrios.
— Aposto, — Gracin diz e coloca as fichas no pote. — Então,
cavalheiros, vocês são daqui?
Quase me engasgo com minha terceira cerveja, a qual tenho
bebido muito mais devagar em comparação às duas primeiras, mas
consigo me conter. Ele os acalmou com uma falsa sensação de
segurança e arrancou informações deles com tanta sutileza, que eu
não acreditaria se não tivesse visto com meus próprios olhos.
Até agora, aprendemos sobre as visitas frequentes deles à
Califórnia e o México, além de todos eles terem família na área. Eu
queria tanto me animar quando revelaram aquela pequena
informação, mas forcei uma expressão entediada no meu rosto e
fingi preferir estar em qualquer outro lugar do mundo. Não foi difícil,
afinal, preferia estar com Danny, assistindo a vida se apagando dos
olhos dele.
— Sim, eles são da redondeza, — Desmond diz, olhando de
soslaio para mim. Ele é o único do grupo que não ficou encantado
com minha interpretação de uma garotinha de cabeça oca ou
seduzido pelos maços de dinheiro que Gracin continuava
empilhando nos ganhos no centro da mesa. — Por que está tão
interessado? — ele pergunta a Gracin.
— Só puxando conversa.
Quando os outros não estão olhando, Gracin me envia um
olhar sob seus cílios, e eu fico tensa, meu corpo ganhando vida.
Seja lá o que ele está planejando, vai acontecer em breve.
Mas Desmond não parece ter sido apaziguado. Se alguma
coisa, sua suspeita só aumentou.
— Então sugiro que você se concentre mais nas suas cartas
e menos na conversa fiada. — Ele coloca as cartas viradas para
cima na mesa. Os outros fazem o mesmo até Gracin virar por
último. Os ases de Desmond batem os reis de Gracin, que suspira.
— Desculpe, querida, — ele diz para mim. — Não era minha
intenção estragar a nossa noite.
Desmond envia a seus amigos uma ordem silenciosa e eles
se levantam da mesa, suas mãos tiram as facas de onde estavam
guardadas nos bolsos.
— Acha mesmo que não reconhecemos vocês dois logo de
cara? — Desmond diz. — Devem ser mais burros do que parecem.
— Essa é uma possibilidade, — Gracin diz com calma, sem
se preocupar em se levantar. Ele toma um gole de cerveja e coloca
o copo de volta para baixo em um gesto casual. — Pensam que vão
fazer algo com esses espetinhos?
— Vocês vão vir com a gente, — Desmond diz. — Tio Sal
está procurando por vocês.
— Acho que não consigo atender o pedido de vocês, —
Gracin diz e começa a enfiar as notas de volta nos bolsos. — No
entanto, vocês podem passar uma mensagem minha para ele.
Desmond zomba.
— Não vou passar merda nenhuma para ele. Mantenha as
mãos onde eu possa vê-las. A sua senhora também. — Ele aponta
o queixo para mim, os dois homens circundam a mesa e me
seguram em ambos os lados.
— Você vai querer deixá-la em paz, — Gracin diz com uma
calma forçada. — Ponha sequer uma mão nela e vou ter que
colocar as minhas em você, mas não serei tão bonzinho. Do mais,
apenas queria algumas respostas.
— Eu tenho uma, — Desmond diz. — Vá se foder.
Gracin suspira como se estivesse lidando com uma sala
cheia de crianças em vez de um grupo de homens adultos armados
com facas. Ele puxa a arma do coldre e aponta para o homem à
minha direita, que empalidece de maneira considerável.
— Afaste-se dela, — Gracin rosna.
— Não se atreva, — Desmond vocifera, enquanto pega um
celular. — Você pode até atirar em um de nós, mas não será capaz
de parar todos, e no segundo em que você tentar qualquer coisa,
um desses garotos vai ter uma faca pronta para a sua garota. Então,
não me provoque.
— Acha mesmo? — Gracin pergunta, e não me surpreendo
por ele estar tão calmo.
— Pode ter certeza de que sim, — Desmond diz.
Saco a arma que Gracin me deu e a miro no homem à minha
direita, então a faca guardada no bolso vai para a garganta do
homem à minha esquerda.
— Acredita de verdade? — digo e sorrio.
Enquanto Desmond me encara perplexo, Gracin ataca com
sua graça felina característica e golpeia a arma contra a cabeça de
Desmond. Os dois de cada lado de mim ficam confusos demais para
se mover por um segundo, então Gracin avança sobre Jasper, desta
vez batendo no homem com o punho. Gracin obtém o mesmo
resultado e o homem cai no chão ao lado do amigo. O terceiro se
move mais rápido do que Gracin espera e me prende em seus
braços, sua faca cortando a minha camisa e a carne do meu braço.
Solto um grito e Gracin urra, atordoando o terceiro cara o
suficiente para eu poder me jogar no chão e fora do alcance dele
sem me machucar. Quando me afasto e me levanto, Gracin o
prende em um mata-leão. O homem se debate, tentando se libertar,
mas seus esforços são quase risíveis. Um momento depois, ele se
junta aos seus amigos na terra dos sonhos.
— Merda, — Gracin diz, enquanto observa o corte superficial
no meu braço. Começo a protestar quando ele tira sua camisa de
cima para pressioná-la contra a minha ferida, mas sou interrompida.
— Porra, querida, me desculpa.
— Está tudo bem, estou bem.
— Eu não deveria ter deixado você vir.
— Gracin! — chamo de modo brusco. Quando ele olha para
mim, repreendo-o: — Estou bem. Vamos terminar o que viemos
fazer aqui, certo?
— Mantenha a pressão sobre a ferida, vou cuidar desses
caras e trazer o carro para a porta dos fundos. Não se mova. — Ele
se vira e dá dois passos antes de pensar melhor e voltar para o meu
lado. — Estou falando sério. Não saia deste lugar ou juro por
Deus…
Quando ele sai, desabo na cadeira atrás de mim, sentindo-
me tonta e bêbada. Os homens aos meus pés se contorcem, mas
não despertam. Mantenho a arma na mão só por precaução, mas
ninguém acorda.
Gracin entra pela porta dos fundos e me ajuda a atravessar o
corredor curto até a saída antes de me colocar no banco da frente
de seu SUV e desaparecer de volta para dentro. Sim, sou capaz de
andar com tranquilidade, mas mantenho minha boca fechada. Não
sei o que ele faz com dois dos caras, mas quando ele volta, está
arrastando Desmond.
Uma vez que o sósia de Danny está amarrado e escondido
na parte de trás do SUV, Gracin arranca do estacionamento e eu
agarro a alça do carro para evitar cair em seu colo.
— Estamos bem, — afirmo. — Conseguimos o que
queríamos.
Ele não me está me ouvindo, é claro. Em vez disso, está com
o celular pressionado contra o ouvido.
— Chame o Dr. Haversham. Não me importo se ele está de
plantão para o maldito Papa, eu o quero em casa em uma hora, ou
ele vai ter notícias minhas pessoalmente. — Ele bate o telefone no
porta-copos e eu tento não sorrir.
— Sabe que sou enfermeira, não é? — digo a ele. — Posso
muito bem cuidar disso sozinha. O corte não é tão profundo assim.
Precisa apenas de alguns pontos.
— Vamos deixar o médico avaliar, fim da discussão, —
retruca com um tom implacável.
— Tudo bem, mas quero notícias assim que você conseguir
alguma informação do garotão aqui. — Aponto com o dedo por cima
do ombro para Desmond, ainda inconsciente.
Gracin grunhe.
— Sério, Gracin. Estou bem.
— Vou acreditar nisso quando Haversham lhe der o sinal
verde.
Suas mãos estão segurando o volante com toda a força, e a
simpatia dissipa a minha frustração com a sua insistência em eu ver
um médico. Pressiono uma mão em seu braço, como eu queria
fazer quando estávamos a caminho mais cedo.
— Gracin, — digo de maneira hesitante. — Não… apenas
não.
Suspiro e me recosto no assento. Vai ser uma longa viagem
de volta.
Assim que paramos em sua garagem, dois homens
caminham até o SUV para lidar com Desmond e Gracin me leva até
o meu quarto, onde Haversham já está esperando.
— Falei a ele que não era grande coisa, — digo ao Dr.
Haversham.
O médico olha de Gracin para mim, e sei que ele não ficará
do meu lado no assunto.
— Vamos limpar essa ferida. Não deve ser mais do que
alguns pontos.
Lanço a Gracin um olhar que diz: eu te avisei, e ele fecha a
cara.
O médico limpa o corte no meu bíceps, que tem apenas
alguns centímetros de comprimento e não é muito profundo. Ele
aplica um anestésico local e começa a suturar com movimentos
eficientes. Morro de vontade de perguntar a Gracin o que ele fez
com Desmond, mas presumo ser melhor esperar até o doutor sair
para abordar o assunto.
Quinze minutos depois, Gracin aperta a mão do médico.
— Muito obrigado por vir em tão pouco tempo.
Dr. Haversham dá a Gracin um sorriso discreto.
— A qualquer hora, sr. Kingsley. No entanto, espero não te
ver por um tempo. — Com isso, o médico fecha a porta atrás dele,
deixando-me sozinha com Gracin.
— Você deveria descansar um pouco.
— Descansar? — Estou desapontada por ele não querer
ficar. — E quanto a Desmond?
A expressão suave no rosto dele endurece.
— Vou lidar com ele.
— O que eu devo fazer agora?
— Descanse, — repete e me guia de volta para a cama. —
Vou buscá-la se descobrir alguma coisa com Desmond.
Faço o que ele diz, apenas por que a ferida no meu braço
está latejando tanto que torna difícil me concentrar em qualquer
coisa além de ficar parada.
Na manhã seguinte, quando acordo, é ao som da voz de Vic.
De imediato, recuo para os travesseiros, sem perceber onde
estou ou o que está acontecendo. Só sei que o homem que abusou
de mim está perto, e preciso fazer todo o possível para fugir. Saio da
cama cambaleando e me agacho, sem me importar com a dor no
braço. Só tenho foco suficiente para o medo me atravessando.
O suor frio pontilha minha testa e leva segundos agonizantes
para eu perceber que Vic não está no quarto comigo. Limpo o rosto
com a mão e me esforço para ouvir o som outra vez.
O quarto e o corredor além da porta aberta estão escuros,
exceto por uma claridade bem fraca vindo do outro lado. Ouço a voz
de novo e meu coração para de bater ali mesmo no peito.
— Sra. Victor Emerson! Que tal isso, senhoras e senhores?
Não é linda? Me digam se ela não é a mulher mais bonita do
mundo. Vou te falar, sou um homem de sorte. — O fundo está
distorcido, mas eu reconheceria a voz em qualquer lugar.
Confusa, ainda vibrando de pânico e desorientada do sono,
tropeço pelo corredor e sigo o som da voz do meu falecido marido.
Pergunto-me se talvez esteja tendo algum tipo de sonho induzido
pela adrenalina de antes, porque não consigo sentir nada e o mundo
ao meu redor oscila.
A luz está vindo de debaixo da porta do outro lado do
corredor, da sala do monitor. A porta se abre com facilidade,
revelando um conjunto de escadas descendo para o que só posso
supor ser o porão. Desço o mais silenciosa possível e congelo no
último degrau, quando a voz soa outra vez.
— Vem cá, querida. Me deixe te exibir para todos!
Estou ofegando e suor escorre pelo meu rosto. Sangue vaza
da ferida no meu braço, mas não me importo. Viro o corredor e
cambaleio até parar. O porão está quase vazio, exceto por uma
pequena mesa com uma caixa colocada no topo. A caixa solta
zumbido e estalos e, em seguida, a luz acende e ilumina uma figura
amarrada a uma cadeira. Mas não é o homem amarrado de costas
para a parede que capta minha atenção. É o vídeo projetado na
parede branca atrás dele.
Vic, vestindo um smoking elegante, levanta a mão e a
multidão ao seu redor aplaude. Atordoada, meus olhos viajam para
a pessoa ao seu lado: eu. Este é o vídeo do meu casamento com
Vic. Não consigo desviar os olhos da imagem do rosto dele.
Enquanto observo nós dois nos movermos entre as pessoas na
pequena recepção, começo a tremer, meus dentes batendo uns nos
outros.
Eu estava tão diferente na época. Dava para ver isso no meu
sorriso despreocupado e nos meus olhares de adoração para Vic,
enquanto ele me exibe em seus braços pelo restaurante. Não sei
por quanto tempo assisto, em transe e incapaz de me afastar.
Assisto até o vídeo terminar e a tela fica preta, o que me assusta
para fora do meu estupor.
Quando o projetor recomeça o vídeo desde o início, sacudo a
cabeça para clareá-la. A voz de Vic enche meus ouvidos de novo e
tento bloqueá-la, concentrando-me no meu entorno. Dou alguns
passos hesitantes em direção à figura nas sombras. Ele está
amarrado a uma cadeira na frente do projetor, com um saco de seda
preto sobre a cabeça. Quando estou perto o suficiente para alcançá-
lo, estendo a mão e agarro o material com as pontas dos dedos,
uma parte de mim temendo encontrar o rosto de Vic por baixo. De
alguma forma, sinto que este é algum tipo de presente fodido
enquanto puxo o tecido para revelar o homem debaixo.
Quando seu rosto aparece, o capuz preto cai no chão e eu
dou vários passos rápidos para trás, minha boca aberta de horror.
Não é Vic por baixo, mas é outro homem que protagoniza os meus
pesadelos frequentes. Andrew, o braço direito de Danny, o cara do
armazém. Porém, não se parece em nada com o homem da minha
memória. Se ele tivesse enfiado o rosto no liquidificador, seria uma
melhoria. A pele de metade de sua cara cai em fitas
ensanguentadas e emaranhadas, e a outra parte está tão inchada
que seus lábios racharam com a tensão. Se eu não tivesse passado
as últimas semanas relembrando o que ele me fez no armazém, não
o teria reconhecido.
Recuo para chegar o mais longe que posso e bato contra
uma parede dura atrás de mim. Eu me viro, com as mãos para cima
e pronta para me defender enquanto as náuseas me atingem.
Quando vejo ser Gracin atrás de mim e não uma parede real,
apesar do que passamos juntos, o medo me afligindo desde o
instante que acordei com a voz de Vic se dissolve e eu relaxo.
— O que está acontecendo? — pergunto, mas ele não
responde. Apenas levanta o copo de uísque que está segurando e
toma um gole. — Como ele chegou aqui? Gracin?
Luto contra os tremores que tentam me consumir.
Novamente, ele leva o copo aos lábios, mas desta vez, o drena e
depois se move para se servir de mais. Afasto o cabelo do rosto e
tento juntar as peças do que está acontecendo. Pelo visto, Desmond
falou. Não quero pensar em como Gracin o fez revelar a localização
de Andrew, mas deve ter pegado Andrew e o trazido aqui enquanto
eu dormia.
— Que porra é essa? — Andrew diz, e eu dou meia-volta a
tempo de vê-lo abrir os olhos. Ele aperta os olhos contra as luzes
brilhantes, então a compreensão toma o seu rosto. — Puta merda,
— sussurra antes de lutar contra as restrições. Sua voz soa
distorcida pelo espancamento severo e seus lábios inchados tornam
difícil para ele falar. — Me solte.
Eu me viro, esperando que Gracin responda, mas ele apenas
mantém os olhos em mim, toma uma longa dose do copo de uísque
e se move apenas o suficiente para revelar a mesa ao lado dele. O
homem na cadeira deve perceber isso também, pois começa a se
debater com mais violência.
Estou de volta ao armazém. Meus braços queimam com dor
fantasma e picadas de agulha cruéis ardem no meu braço. As
minhas pernas queimam e o meu estômago se contorce em cólicas.
Há facas, um maçarico como o que usaram em mim,
martelos de borracha, chicotes, um taco de beisebol e até uma
arma. Está tudo alinhado de maneira organizada, esperando alguém
escolher o seu veneno preferido.
— O que é tudo isso? — pergunto a Gracin, tentando manter
a calma.
Ele permanece em silêncio enquanto se senta na cadeira no
canto da sala. Pego a faca, com a intenção de soltar o cara nem que
fosse para calá-lo até eu descobrir qual é o jogo de Gracin.
— Por favor, me deixe ir. Por favor! Nunca tivemos a intenção
de machucar você. Devíamos apenas te maltratar um pouco para
fazê-la falar. Só me solte e não direi nada ao Sal, prometo. Nem
uma palavra. Apenas me deixe ir.
Começo a me mover na direção de Andrew, de repente, o
vídeo do casamento para e reinicia, e o rosto de Vic pisca sobre a
parede. Duvido ser coincidência que a imagem do rosto de Vic
tenha se alinhado de modo perfeito com a do meu agressor. A faca
cai no chão e meu corpo fica frio. Memórias da noite em que me
espancaram e fantasmas da minha vida com Vic inundam meus
pensamentos de modo tão violento que preciso fechar os olhos para
evitar chorar em choque com o turbilhão de emoções.
— Merda, moça. Ficou louca de vez? Por favor, me solte. Só
chute a faca aqui antes que ele faça alguma loucura. Por favor.
Acima dos gritos de Andrew, ouço Vic dentro da minha
cabeça.
“Não quero que você se associe com aquele preso outra vez,
está me ouvindo? McNair e Summers não conseguiam parar de
sorrir para mim quando me encontraram. Você me humilhou.”
As lágrimas escorrem em minhas bochechas e eu levo as
mãos aos ouvidos para lutar contra o barulho, mas isso não abafa o
sussurro da voz de Vic dentro da minha cabeça. Se alguma coisa,
acaba ficando alta o suficiente para me fazer querer arranhar
minhas orelhas.
Por um momento, meus pensamentos vão para Gracin, mas
não duvido haver uma razão para ele ter feito isso, por mais fodida
que seja. No entanto, já parei de tentar entendê-lo. Só preciso tirar o
cara da cadeira daqui e depois posso ir embora. Afinal, não foi isso
o que Gracin prometeu? Quando tudo acabar, posso ir embora.
Com isso em mente, pego a faca e me endireito, bloqueando
o som de Vic vindo do projetor o melhor que posso. Um rápido olhar
mostra Gracin ainda descansando em sua cadeira, observando,
esperando. O quê? Nem faço ideia, mas também o ignoro. Com a
faca na mão, cruzo até o homem na cadeira e me ajoelho para
soltar seus pés.
Estou progredindo bem, desfaço os dois pés e depois olho
mais de perto para a cara dele. É quando tudo vai para o inferno.
Congelo ao lado dele com a faca na mão. Lembro-me de seu rosto
olhando para mim enquanto ele, Danny e os outros me
brutalizavam.
Devo demorar muito para lidar com a onda de ódio e fúria,
porque um segundo depois, ele grita:
— Me desamarre, sua puta de merda, ou vou te socar até
sangrar, tanto que vou precisar usar a mangueira para lavar o resto
pelo ralo como fiz com seu bebê de merda!
Eu perco a cabeça.
Com um grito animalesco, empurro a cadeira simples de
madeira e ela cai. O cara dá um grito rouco e balança contra o
concreto enquanto tenta se endireitar antes de eu chegar até ele.
Pouso a faca no chão, fora do alcance de Andrew, volto para a
mesa e pego o taco de beisebol. Ele faz um som como se estivesse
engasgando que é interrompido quando balanço o taco de beisebol
como se fosse um de golfe e o bato com toda força na barriga dele.
Agacho-me enquanto ele chia para recuperar o fôlego.
— E aí, gostou disso, seu puto de merda? É bom? Talvez
deva te manter aqui por alguns dias. Fazer você mijar nas calças só
para saber como é, hein? Talvez eu te bata até desmaiar e assista o
que restar de você ir pelo ralo, só para variar.
Já sem pensar, a cabeça cheia de gritos e horror, sangue e
morte, deixo cair o taco no chão ao lado da faca e fico de pé. Meus
olhos caem sobre o martelo de borracha. Quando volto para o lado
do homem, balanço minha mão para trás e começo a esmurrar a
parte superior do seu corpo, sem nem perceber os seus gritos e
súplicas. Eu vou para o lugar na minha cabeça onde eles me
espancaram, onde essas memórias foram bloqueadas desde o dia
que Gracin me resgatou. Vou para o lugar onde Vic me brutalizou
várias vezes, até não conseguir diferenciar mais um do outro.
— Por que me machucou assim, Vic?! — grito. — Por que
tirou o nosso bebê de mim?
Quando ele não está mais gritando e eu estou sem fôlego, o
martelo cai ao meu lado, e eu me prostro de joelhos. Fico ali por
alguns segundos, entorpecida e emocionalmente destruída, minha
cabeça baixa enquanto tento arrastar minha alma estilhaçada de
volta da beira do abismo. Respiro fundo, com a intenção de me
levantar, ir até Gracin e deixar o cretino sem nome para qualquer
destino que ele mereça. Mas o homem ao meu lado dá uma rasteira
rápida e me derruba. Minha cabeça quica no chão de concreto e,
enquanto estou desorientada, ele consegue pegar a faca e se
libertar das amarras restantes.
Eu me esquivo enquanto ele a desliza pelo ar e, por meros
centímetros, quase sou atingida por sua lâmina sibilante. Há um
arrastar de cadeira quando ouço Gracin se levantar, mas não tenho
tempo para me preocupar com o que ele está fazendo. Meus dedos
roçam o martelo e eu o pego, balançando-o na frente do meu rosto
sem pensar em seu destino. A ferramenta atinge carne e osso com
uma batida ecoante, e o homem cai no chão, silencioso e imóvel, e
eu desmorono no chão em um monte de desolação.
Quero chorar, mas o meu interior é oco. Quero gritar, mas já
não tenho voz. Quero me enfurecer e esbravejar contra o homem
que orquestrou minha morte, mas não há mais raiva voltada a ele.
Há apenas uma sensação de paz. Um exorcismo de demônios. O
projetor desliga, deixando-me na escuridão, então os braços de
Gracin estão ao meu redor, macios e duros, quentes e frios ao
mesmo tempo. De alguma forma, ele é tudo o que preciso, mesmo
isso sendo contraditório.
— Você quer isso? — Gracin pergunta. Quando ele disse
que lidaria com Desmond, nunca pensei que quisesse usá-lo para
começar a rastrear os homens que me machucaram. Pelo menos,
não com isso em mente.
— O quê? — pergunto. Um soluço explode dos meus lábios.
Por que em nome de Deus eu iria querer isso?
— Me diga. Você quer isso? — Ele afasta o cabelo do meu
rosto e o prende atrás das minhas orelhas. — A minha vida é assim,
Tessa. É brutal e sangrenta. Como eu. Sou um monstro disfarçado,
ratinha. É isso o que quer?
— Gracin, por favor, não posso.
Seus lábios tomam os meus em um beijo violento e eu me
inclino para ele, precisando de sua firmeza para acalmar as partes
devastadas de mim. Minhas mãos vão para os ombros dele
enquanto gemo contra o impulso brutal de sua língua.
— Você pode. Agora me responda.
— Sim! — grito. — Sim, quero você. Odeio você, mas eu te
amo. Não parei de pensar em você desde o dia em que nos
conhecemos. Você está nos meus sonhos. Eu te vejo por todo lado
quando não está por perto. Apesar de tudo que fez comigo,
maldição, ainda quero você. Isso te deixa feliz? Por que fez isso
comigo? Por que o trouxe aqui? Sabia que eu o machucaria?
— Eu te trouxe aqui porque você não pode estar com um
homem como eu e esperar vivermos feliz para sempre. Não há uma
parte da minha vida que não seja tão sombria e brutal como o que
aconteceu nesta sala. Mas a verdade é que não te obriguei a fazer
nada. A verdade é que você e eu não somos tão diferentes como
pensa. — Começo a protestar, mas ele me cala com um beijo. —
Isso não é uma coisa ruim, não importa o que você pense. Esse
homem aqui? Era um pedaço de merda. Estava abaixo do pior
homem que você já conheceu. Era pior que Vic. Ele mereceu tudo
que recebeu.
— Só quero esquecer tudo isso. Quero terminar tudo com
Sal e começar de novo, fingir que nada disso aconteceu. — Envolvo
meus braços com tanta força em torno de Gracin que meu bíceps
grita de dor, mas não me importo. — Mas primeiro, acho que preciso
dormir. Não estou fazendo julgamentos sobre nada, mas estou
exausta. Podemos ir para a cama? — Pauso por um segundo. —
Juntos? Só não quero dormir sozinha. Não essa noite.
Depois de uma breve conversa com um de seus guarda-
costas, instruindo-os a se livrar do corpo, Gracin me leva de volta ao
meu quarto. Diz muito sobre mim quando cadáveres não me
incomodam mais. Ele me leva direto para o chuveiro. Nenhum de
nós fala nada. Não tenho certeza se consigo encontrar as palavras
para articular o que aconteceu, então não tento.
Encosto-me no balcão enquanto Gracin liga o chuveiro e se
despe na minha frente. Ele se vira e me ajuda a tirar as minhas
roupas, mas não parece algo sexual. Parece mais como se, à sua
maneira distorcida, ele se preocupasse comigo. Nem me dou ao
trabalho de analisar isso porque não adianta tentar entendê-lo.
Ele me ajuda a entrar no chuveiro e me puxa contra o seu
peito. Não luto contra isso. Não posso. Na verdade, não sei se
conseguiria, mesmo se tivesse a presença de espírito ou a energia.
Enquanto relaxo contra o seu peito, ele lava o meu cabelo e esfrega
meu corpo antes de ficar de joelhos para inspecionar as cicatrizes
nas minhas pernas. A pele franzida não tem muita sensação, mas
estremeço de qualquer maneira quando Gracin pressiona os lábios
em cada uma das cicatrizes.
— Nunca mais ninguém vai te machucar assim. — Ergue os
olhos da posição agachada com um sorriso diabólico. — Exceto
talvez eu.
Arrepio-me apesar do jato de água quente.
— Você não vai me machucar, — respondo.
— Não? — pergunta, enquanto se levanta para enxaguar
meu cabelo.
— Não.
— O que te faz pensar assim?
— Você podia ter feito algo quando me encontrou em Los
Angeles. — Bocejo e me aconchego mais perto dele, enquanto suas
mãos esfregam as minhas costas. — Fiquei me perguntando por
que você não veio atrás de mim quando me encontrou.
— Eu tinha coisas para cuidar antes de ir atrás de você.
Precisava de uma casa e de um acordo com os meus
empregadores. Não pensei que eles a encontrariam tão rápido ou
teria vindo e te pegado mais cedo.
— E o vídeo? — pergunto, sonolenta. — Como você o
conseguiu?
Após me limpar, ele desliga a água e me guia para as tolhas.
Ele segue de perto e me envolve em uma para me secar. Enquanto
está me ajudando a me vestir, ele diz:
— Quando voltei para a casa e você não estava lá, levei o
vídeo para ter algo seu. Algo que me lembrasse de você. Não havia
muito, então precisei me contentar com isso. Eu não tinha certeza
se iria atrás de você, mas também não podia deixar aquela ser a
última vez que te visse.
— E A-Andrew?
— Desmond e eu tivemos uma conversa. Ele me informou
onde eu poderia encontrar Sal e Danny, bem como Andrew. — Ele
inclina o meu rosto para um beijo. — De maneira nenhuma eu
deixaria um homem escapar impune após fazer o que eles fizeram
com você.
— Mas por que usar o vídeo? Por que me obrigar a fazer
aquilo com ele?
— Pois assim você sabe que é capaz de revidar.
— Acho que você provou isso, — digo de maneira seca.
Ele me beija de novo, então caímos na cama sem outra
palavra e dormimos até pouco antes do amanhecer. Quando acordo,
encontro-o já vestido e afastando o cabelo do meu rosto. Nesse
momento, eu sei, sem dizer uma palavra sequer, que ficar com ele é
inevitável. Com um pedido de desculpas murmurado, deslizo para
fora das cobertas, vou ao banheiro, faço um trabalho rápido nele e
escovo os dentes. Volto para encontrar Gracin de pé, rondando o
quarto.
Gracin não havia entrado aqui desde que cheguei, mas ele o
observa agora, examinando as coisas que acumulei com uma
curiosidade flagrante. Os livros que tirei da biblioteca, mas nunca li,
as flores do jardim e um conjunto de pesos que peguei emprestado
da academia.
— Sempre me perguntei o que você fazia aqui quando eu
não estava em casa.
Eu o estudo enquanto ele pega uma flor seca e a rodopia
pelo caule.
— Por quê?
Ele olha para mim.
— Você me fascina. Desde aquele primeiro dia, você se
infiltrou em minha mente e não consigo me livrar de você.
— Quer se livrar?
— Não, — responde sem hesitar, movendo-se para ficar bem
na minha frente, seus olhos verdes tão tempestuosos e vibrantes
quanto uma manhã de verão. — Tessa, — diz com uma voz suave,
depois grunhe antes de pegar minha cabeça para dar um beijo
selvagem nos meus lábios.
Ele praticamente vibra ao meu redor enquanto meus dedos
envolvem seus pulsos. Gracin mal consegue se conter enquanto
sua boca devora a minha. Não há nada sedutor ou doce sobre o
momento. É puro controle, um cerco, e eu me rendo, permitindo que
ele me deite na cama com um suspiro.
Não me importo se é errado ou se Gracin é um homem mau,
ou se é todas as coisas das quais sei que deveria fugir. Só me
importo com a maneira como ele me faz sentir mais viva do que já
experienciei na minha vida. Com ele, sinto-me viva de verdade,
como se enfim pudesse respirar.
Não sei quando o perdoei pelo que me aconteceu, pelas
coisas que ele me obrigou a fazer, mas o perdoei. E agora a fome
de tê-lo, de tomá-lo, voltou com uma violência avassaladora.
— Você confia em mim? — Gracin me pergunta.
Concordo com a cabeça sob ele, esperando em silêncio,
ansiando por seu toque. Com a minha resposta, os olhos dele se
fecham. Tomando cuidado com o meu braço, ele me ajuda a tirar
minha camisa e seus olhos se deleitam com minha pele exposta.
Ele encontra meu olhar enquanto se abaixa para salpicar beijos
suaves e lentos em meu corpo. Agarro seu cabelo com uma das
minhas mãos e arqueio com seu toque.
— Quer que eu pare? — pergunta contra o meu pescoço. —
Quer que eu vá embora?
Abro a boca e ele a preenche com a língua em vez de me
permitir responder. Esqueço o que eu ia dizer e a chupo mais fundo.
Suas mãos encontram minha calça e ele solta o botão,
depois rasga o zíper. Dedos mergulham sob a minha cintura e me
provocam, arrancando um grito dos meus lábios e minha cabeça
desaba de volta nos travesseiros.
Deixando minha boca, ele segue até minha orelha e suga o
ponto sensível lá. Não consigo evitar minha reação a ele mais do
que posso impedir o nascer do sol. Meu suspiro de prazer enche o
quarto enquanto minha boceta pulsa de calor, meus seios ficam
pesados e meus mamilos se contraem em pontas duras. Gracin
rosna sua aprovação enquanto fico cada vez mais molhada entre as
minhas coxas. Ele permanece lá, seus dedos com uma eficiência
enlouquecedora enquanto brincam em volta do meu clitóris. Solto
um pequeno gemido enquanto ele flerta em torno da parte de mim
que mais deseja ser preenchida.
— Não pare, — digo, quando me lembro de como falar. —
Gracin, por favor. Por favor, fique.
Ao som de seu nome, ele retira a mão, e eu grito um protesto
e me sento depressa. Quando percebo que ele só se levanta para
se despir, fico quieta e me deito para aproveitar o show.
Deus, ele tem um corpo incrível. É surreal. E, por agora, é
todo meu. Enquanto ele desabotoa a camisa, observo cada detalhe,
meus olhos se banqueteando com cada centímetro de pele nua até
haver apenas uma lacuna no centro quando os botões terminam.
Ele então passa a desamarrar as botas e chutá-las. Elas pousam
em algum lugar debaixo da cama com pancadas pesadas.
Recusando-me a ser uma observadora casual por mais
tempo, ajoelho-me e vou em direção a ele, levantando as mãos e
descansando-as em seus ombros. Ele paralisa sob o meu toque,
como um leão permitindo que um humano o acaricie. Com meus
olhos colados à ação, tiro a camisa dos seus ombros e exponho seu
peitoral.
— Não consigo acreditar que você tem piercings, — digo,
incrédula. Incapaz de manter minhas mãos longe dele, levanto-as
para tocar os aros de metal gêmeos e depois repenso, espalmando-
as em seu abdômen. — Ainda doem?
— Já os tinha antes, — responde depressa. — Eu os
coloquei de volta depois de Blackthorne, e sim, ainda machucam.
Levará mais alguns meses antes que se curem por completo.
— Ah, — digo, minha resposta ofegante.
— Se isso te intimida, você vai ter uma verdadeira surpresa
em poucos minutos.
Não entendo o que ele quis dizer com isso, já que ele não
parece ter piercing em nenhum outro lugar…
Então engulo em seco, minha imaginação correndo solta
enquanto meus olhos caem para sua ereção crescente.
— Ah, — repito, sufocando minha antecipação e excitação.
Gracin puxa minhas mãos para sua calça, que ele
desabotoou em algum momento. Minha boca enche d’água
enquanto me movo até minhas pernas estarem penduradas na
cama, depois arrasto a calça jeans sobre os quadris e pelas coxas.
Ele me ajuda a tirá-la do resto do caminho, e me concentro no
comprimento grosso de seu pau debaixo da cueca boxer preta. Há
uma parte perto da ponta que é mais escura, e eu trago minha boca
para ele, precisando prová-lo, mesmo que seja através de uma
barreira de algodão. Ao traçar a linha de seu pau, olho para cima e
encontro aqueles olhos famintos ardendo de intensidade.
Ele não mentiu sobre a surpresa. Mesmo com uma camada
de algodão nos separando, posso sentir o nó duro no topo de seu
pau, que deve ser outro piercing. Com o cheiro dele, quente e
almiscarado, enchendo o meu nariz, levanto as mãos até os quadris
e arrasto as cuecas para baixo, revelando-o aos meus olhos pela
primeira vez.
A visão faz a minha boca salivar, e o pego para explorá-lo.
Nunca vi um pênis tão lindo em toda a minha vida. E não há outra
maneira de descrevê-lo. Ele é perfeito, grosso, comprido e
avermelhado. A cabeça brilha com uma gota de excitação e logo
atrás dela está o piercing. Está situado de modo vertical e inclinado
de leve para a frente. Há duas contas, uma maior na parte superior
e outra, um pouco menor, na inferior. Imagino como seria aquilo
dentro de mim e preciso apertar minhas coxas com força enquanto o
trago aos meus lábios para saborear.
Sem esperar por isso, as mãos dele voam para o meu
cabelo.
— Jesus Cristo. — É tudo o que ele consegue dizer antes da
minha língua deslizar sobre sua excitação.
Eu o levo para a minha boca e gemo enquanto seu sabor
banha minha língua. Precisando de mais, querendo levá-lo a um
estado tão irracional quanto ele me deixou ao longo de todas essas
semanas, eu o levo o mais fundo possível. Leva algum tempo para
me acostumar à barra de metal, mas logo encontro meu ritmo e me
concentro mais em como ele reage a tudo, em vez da sensação da
barra contra o céu da minha boca.
Suas mãos no meu cabelo me guiam até apertar meus fios e
me forçar a parar. Eu o solto, e ele me arrasta de pé para tomar
minha boca com a sua. O pau dele fica prensado entre nós, arqueio
o máximo possível, mas Gracin é alto demais para mim. Estou
ofegante quando ele abandona a minha boca.
— Deite-se, — ordena, enviando arrepios através de mim.
Faço o que diz, ele me ajuda a sair da minha calça jeans e
calcinha enquanto eu desabotoo meu sutiã e o jogo no chão. Seu
olhar vagueia sobre mim e seus dentes correm pelo lábio inferior.
— Abra as pernas, — diz, sua voz tão dominante que não
posso deixar de obedecer.
Eu as prendo na beira da cama e ele coloca as mãos nos
meus joelhos, enquanto os dele param na minha frente. Quando
sinto sua respiração contra as minhas dobras, jogo minha cabeça
para trás em total entrega. Suas mãos enormes agarram meus
quadris e ele me aproxima da borda antes de me inclinar ao
encontro de sua boca.
Se eu achava que ele era bom em beijar, ele é infinitamente
mais talentoso em lamber bocetas. Acho que grito, acredito que
gemo, mas não faço ideia, pois experimento tudo através de uma
névoa branca de sensação.
Ah, meu Deus!
Não sei se sou má pessoa por gostar disto. Mas com certeza
não posso ser uma boa pessoa. Moralidade e o que é certo e errado
parecem muito menos importantes enquanto ele me atormenta com
as longas carícias de sua língua.
O quarto se enche com os sons molhados e desleixados do
oral completo que ele me dá, e só quero mais, anseio por mais,
preciso de mais. Sua boca volta ao meu clitóris e eu balanço os
quadris contra cada movimento de sua língua. Sinto-me ousada,
sem vergonha e sem restrições. Não havia percebido quanto eu
precisava disso até o orgasmo pairar logo abaixo da superfície. À
medida que gritos suplicantes escapam da minha garganta, ele
aumenta a intensidade até eu ter certeza de que vou desmaiar com
a potência ou sucumbir a ela.
Chego a um ponto febril e é nesse momento que ele desliza
dois dedos dentro da fonte da minha umidade, e isso redefine por
completo o significado de sentir prazer. Ele passa uma mão em volta
da minha coxa para alcançar as dobras da minha boceta. Sem fazer
uma pausa, ele as separa e aperta os lábios sobre o meu clitóris
enquanto empurra os dedos para dentro e para fora. A combinação
de sua boca, seu toque e a promessa de seu pau, provam ser
demais, e eu o agarro com um grito silencioso.
Seus toques passam a ser suaves enquanto ele me permite
me acalmar dos tremores secundários. Era de se imaginar que um
orgasmo violento permitiria uma pausa, mas ele só aguça meu
apetite, e quando Gracin se levanta, volto para a cama enquanto ele
se agacha sobre mim de quatro.
— Você não sabe há quanto tempo eu queria fazer isso, —
ele diz. Sua boca pega a minha de uma maneira grosseira, sinto o
meu próprio gosto em seus lábios e isso me faz lembrar da nossa
primeira vez.
— Dentro de mim, — digo, quando consigo recuperar o
fôlego. — Preciso de você dentro de mim.
— Isso não foi suficiente para você?
— Nem um pouco.
— Gulosa. — Ele apoia seu peso nos joelhos entre as
minhas pernas e olha para mim. — Deixe-me olhar para você, —
pede. — Não quero ter pressa desta vez.
Minha cabeça bate contra o travesseiro.
— Depois, — digo, mas ele balança a cabeça.
— Não se preocupe, vou lhe dar o que precisa.
Sinto o ponto da barra de metal, ligeiramente mais fria,
primeiro, depois o volume longo e grosso de seu pau enquanto ele o
empurra ao longo de minhas dobras molhadas. Meus olhos reviram
para a parte de trás da minha cabeça e desisto de tentar suplicar a
ele. Gracin quer me torturar, e não tenho força de vontade dentro de
mim para resistir. Ele me castiga com prazer, o que é semelhante a
dor.
Tudo o que consigo fazer é focar no deslizamento frio da
conta do piercing enquanto ela coleta umidade do meu centro e
desliza sobre o botão ultrassensível do meu clitóris. Meus quadris
balançam cada vez que atingem o ápice de sua jornada, minhas
mãos torcem os lençóis com força. Ele agarra minhas coxas por
baixo dos meus joelhos e as espalha, levantando meus quadris para
atingir o ângulo certo para me atormentar. Seu pau continua
deslizando contra mim, provocando a nós dois enquanto pressiona
contra a minha abertura pelo menor dos segundos.
Estou frenética por ele. Meu cérebro é incapaz de pensar de
maneira racional. Estou impotente para mudar o ângulo, para
inclinar meus quadris e levá-lo para dentro de mim, pois seu aperto
é resoluto. Isso, como a maioria das coisas, será nos termos dele,
em seu ritmo, mas é tão bom que não posso reclamar além de
implorar por mais, mais, mais.
Então ele solta as minhas pernas e paira sobre mim. Ambos
os nossos olhares se concentram no que está acontecendo entre
nós enquanto seu pau se arrasta sobre mim pela última vez. A
cabeça pressiona contra a minha entrada, e ele grunhe enquanto
me contraio sem pensar em torno da ponta. A conta da barra de
metal para e Gracin se abaixa, apoiando-se nos antebraços, o corpo
tremendo de tensão.
— O que foi? — pergunto, quase sem fôlego.
— Camisinha, — diz com os dentes cerrados. — Mas não sei
se consigo me mexer agora.
Ele acentua sua declaração com uma flexão de quadris
enquanto se afasta um pouco antes de empurrar para frente, meu
corpo o aceitando até um pouco depois do ponto de seu piercing.
Ergo meu pescoço para ele em um gemido silencioso. Posso sentir
o metal dentro de mim, e a dor para tê-lo se movendo é tanta que
me deixa incapaz de falar.
Demora um bom tempo antes de eu poder recuperar o fôlego
o suficiente para dizer:
— Estou tomando a pílula. O médico me passou depois… de
tudo.
— Graças aos céus, — diz e joga a cabeça no meu ombro.
— Estou limpo. Como você já sabe, — acrescenta com uma risada.
— Bom, porque acho que não poderia deixá-lo se afastar
agora.
Ele volta a ficar de joelhos e leva as minhas pernas até seus
ombros. Abro a boca para pedir que volte a descer, mas ele flexiona
os quadris e a conta de seu piercing se arrasta ao longo de um
ponto dentro de mim que me faz ver estrelas. Agarro as mãos dele
nas minhas pernas, lutando para me segurar em algo, pois tenho
medo de que, quando eu ultrapassar o limite, acabe em queda livre.
Ele aperta minhas mãos com as dele onde segura minhas pernas,
depois disso, tudo o que posso fazer é segurar firme.
Seus golpes começam devagar e medidos, e a julgar pela
expressão em seu rosto, se ele se movesse mais rápido, isso não
duraria muito para nenhum dos dois. Para ser sincera, não dou a
mínima de qualquer maneira, porque cada estocada me ilumina e
me faz cair em mini orgasmos tão intensos que não sei onde um
termina e o próximo começa. Quando ele se inclina para me beijar,
agarro seus ombros, deixando todas as emoções que tenho retido
por meses me atravessarem. Elas são perseguidas por uma
explosão de prazer que me faz contrair de modo violento em torno
de seu pau, em torno de seu corpo.
Desperto de um estupor quando Gracin me vira como uma
boneca de pano e me posiciona, minha bunda para cima na frente
dele. Só tenho tempo para agarrar os lençóis antes de ele me
penetrar com força, empurrando-me de volta para outro orgasmo…
e depois outro, antes de enfim explodir dentro de mim.
Ele me desperta várias vezes durante a noite com duas
palavras:
— De novo. — E abro meus braços, minhas pernas e meu
coração para ele, pois o que temos é perigoso e volátil, mas
também é inevitável.
A cama está vazia. Há apenas um bilhete na mesa de
cabeceira que diz:

Volto mais tarde.


– G.

Depois um rabisco feito de maneira apressada embaixo,


como se ele soubesse o que eu estaria pensando e quisesse me
dissuadir:

Não venha atrás de mim.

Já vi o que ele pode fazer, mas isso não significa que pode
cuidar de tudo sozinho. Ainda mais depois do que aconteceu ontem
à noite. O filho da mãe devia ter pensado melhor.
Parte do sangue a ser derramado é meu pelo que roubaram
de mim, então me enfurece o fato de ele ter saído sem mim,
sabendo como me sinto sobre o assunto. Não que se importe.
Jogo os lençóis para o lado e me visto de maneira rápida e
silenciosa. A arma que Gracin me deu para o nosso passeio no bar
ainda está na gaveta da mesa de cabeceira, onde a deixei. Eu a
pego e guardo no cós do meu jeans. As sensações remanescentes
da nossa noite juntos latejam e doem, mas eu as ignoro enquanto
espreito pela porta do quarto. Agora que sei o caminho para a sala
de controle, pretendo me esgueirar por ela e agarrar um dos
conjuntos de chaves que vi pendurados na parede. Nem sonhando
ele vai fazer isso sem mim. Vou encontrá-lo, mesmo se for
necessário eu amarrar todos os funcionários dessa casa.
Sortuda como sou, Marie aparece antes de eu descer as
escadas.
— Aonde você pensa que vai? — ela questiona.
Por um momento, penso em mentir para ela, mas juro que a
mulher pode ler mentes.
— Vou encontrar Gracin, — respondo com naturalidade. —
Não me importo se você tem noventa anos, se tentar me impedir,
vou arrastar seu traseiro no chão.
Ela bufa e cruza os braços.
— É o seu funeral, — retruca.
Quando tenho uma confiança razoável de que ela não me
seguirá, aumento minha velocidade enquanto tento refazer meus
passos até a sala de controle que Gracin me mostrou. Se eu
conseguir chegar a um dos veículos e sair da casa, vou descobrir
uma maneira de localizá-lo. Deve haver algum tipo de GPS, se não
estiver conectado ao seu celular, então, com certeza, há um no
próprio carro. Não que eu tenha alguma ideia de como fazer algo
assim, mas não sou inútil. Consigo me virar.
Quando chego à sala de segurança, os mesmos dois guarda-
costas do dia anterior, olham para mim ao mesmo tempo.
— Onde ele está mantendo Desmond? — questiono sem
rodeios. — E não brinque comigo agora.
Os dois trocam um olhar.
— O sr. Kingsley nos instruiu…
— Não dou a mínima para o que o sr. Kingsley disse. Ou
vocês me dizem aonde ele foi, ou eu mesma vou encontrar uma
maneira de chegar até ele. — Tiro a arma da minha cintura e aponto
para o cara à esquerda. — Agora, ou um de vocês começa a falar,
ou eu começo a atirar nas coisas.
Dez minutos depois, levo a caminhonete para fora da vaga
de estacionamento. Eu deveria sentir algum remorso por ameaçá-
los, mas não sinto. Digito o endereço que os guardas forneceram e
considero as palavras de Gracin da noite anterior. Não sou
impotente. Posso cuidar de mim mesma. Matei um homem, feri
outros e fugi da polícia. Tenho certeza de que, segundo o governo
dos Estados Unidos, sou uma criminosa e fugitiva. Não muito
melhor do que considerei Gracin ser quando nos conhecemos.
Então me pergunto se alguma vez fui a mocinha nesta história.
Talvez eu não seja. Talvez seja a maldita vilã.
Sal, ao que parece, não está se escondendo muito longe. Ele
mantém uma casa na fronteira Califórnia-México para quando
precisa negociar com seus contatos mexicanos e o cartel para
embarques de drogas. De acordo com Gracin, os dois não faziam
negócios há muito tempo, então por isso ele demorou tanto para
localizá-lo. Não me importo, desde que o faça pagar pelo que tirou
de mim.
A casa, a cerca de quarenta e cinco minutos de distância, é
uma monstruosidade contemporânea. O tipo de lugar que grita
riqueza e privilégio. Bem, seria, se o gramado da frente não
parecesse um massacre de gangues. Há cadáveres por todo o lado.
A guarita que bloqueia a entrada está saindo fumaça, e o portão da
frente foi destruído.
Pode me chamar de louca, mas a visão faz o meu coração
disparar, e as minhas partes femininas se iluminarem como um céu
tomado por fogos de artifício. Ser a pessoa do outro lado da raiva
homicida de Gracin pode ser assustador, mas ser a razão pela qual
ele está buscando vingança faz as minhas partezinhas pervertidas
derreterem um pouco. Sigo pelo caminho da entrada com o veículo,
tomando cuidado para não atropelar nenhum dos corpos antes de
parar ao lado do SUV de Gracin.
Com minha arma nas mãos, agacho-me e examino a frente
da casa em busca de movimento. Não encontrando nenhum, deslizo
ao longo dos carros em direção à porta da frente. Não ouço nada lá
dentro e, por um momento, acho que cheguei aqui tarde demais,
então os gritos começam.
Ouço a voz de Gracin e uma que soa como a de Sal. Fúria
queima em minha barriga e dissolve qualquer medo que eu possa
ter tido. A porta da frente está escancarada e eu olho através dela,
permitindo que meus olhos se ajustem ao interior escuro.
Uma arma na minha têmpora me impede de dar um único
passo para dentro.
— Que diabos está fazendo aqui? — Gracin diz, enquanto
seu corpo se posiciona atrás de mim.
— Que porra você acha? — sibilo de volta, muito ciente de
sua arma pressionada no meu rim. — Você pode baixar a arma,
sabe.
— Não te disse para ficar em casa?
— Desde quando te escuto? — respondo com raiva. — Você
sabia que eu não queria ser deixada para trás outra vez!
Gracin abaixa a arma e me força a virar uma esquina até
uma alcova fora do corredor principal.
— Pensei que depois de ontem à noite você entenderia por
que não posso tê-la aqui.
— Não dou a mínima para o que você quer, Gracin. Achou
mesmo que o sexo mudaria isso?
Há um barulho de briga no fim do corredor, e nós dois
viramos ao mesmo tempo.
— Falaremos sobre isso mais tarde, — ele diz contra o meu
cabelo. — Está com sua arma? — Eu a ergo e lanço um olhar
mordaz para a coisa, o que o faz rir. Acho que não o disfarcei bem,
afinal. — Boa garota.
Apesar da minha irritação, sorrio de volta para ele.
— Fique atrás de mim, — diz ele, — e pelo amor de Deus,
não faça nada estúpido. Não trabalhei esse tempo todo para mantê-
la segura apenas para que você se matasse.
Estamos virando a esquina e voltando para o corredor vazio
quando a voz de Sal chama.
— É melhor acabar com isso logo, King. Não é do seu feitio
ficar de enrolação.
Gracin paralisa na minha frente antes de retomar nossa
caminhada pelo corredor. Quando ele não responde, Sal continua:
— Tudo bem, faça do seu jeito. Eu ia negociar com você,
mas como não quer ser razoável, precisaremos resolver as coisas
de outra maneira.
Duvido muito que os planos de Sal tenham algo a ver com
negociações. Se teve coragem de torturar uma mulher só para
chegar a Gracin, e assim poder retaliar a morte do filho, não haveria
nada que o impedisse de nos matar no momento em que nos visse.
A nossa única chance é chegarmos a ele primeiro. Então ninguém
estará atrás de Gracin e eu posso enfim deixar tudo isso para trás.
Superar Vic e o que me fizeram. Não sei se isso significa seguir em
frente com Gracin ou sem ele, mas acho que é algo que nós dois
teremos que descobrir quando nossas vidas não estiverem mais em
risco.
Viramos uma esquina que leva a uma sala de estar aberta.
Sal espera lá com dois outros homens, os mesmos dois sem nome
que estavam lá naquela noite com Danny. O próprio diabo também
está lá e, com base na expressão cruel em seu rosto, fico surpresa
de ele não rosnar no momento em que põe os olhos em nós.
Meu dedo se contrai na lateral do gatilho, mas me obrigo a
ficar calma quando encontro o olhar assassino de Danny.
— Sal, — Gracin diz enquanto se aproxima. Seu passo
casual e solto desmente a intensidade do seu foco em Sal.
— King. Sinto muito por precisarmos nos encontrar
novamente sob tais circunstâncias.
— Não sente não, — Gracin rebate.
Sal encolhe os ombros e sorri, sem o menor arrependimento,
depois volta sua atenção para mim.
— E essa moça adorável. Voltamos a nos encontrar. Preciso
te dizer, King. Essa aí é especial. Não é todos os dias que alguém
passa pelas mãos de Danny e vive para contar a história.
— O que quer, Sal? — Gracin pergunta, seu tom deixa
evidente que não está com paciência para os joguinhos dele.
— Quero você morto — Sal diz sem rodeios. Ele se vira e
encontra os meus olhos. — E estou disposto a oferecer à sua
namoradinha fofa a liberdade de começar de novo se ela fizer a
ação por mim.
Não deixo a minha expressão me trair em nada.
— Essa é uma boa oferta, — começo, — mas não cobre o
que quero de você.
Sal ergue uma sobrancelha e os lábios se contraem.
— E o que seria?
Danny congela e eu me viro para ele com um sorriso cruel no
rosto.
— Ele, — digo com um aceno de cabeça na direção dele. —
Morto.
Sal considera por um momento, mas Danny, que não perde
tempo, ganha vida com um rugido. Gracin salta na minha frente e a
próxima coisa que percebo é o som de um tiro ecoando na sala.
Assisto Gracin sacudir com a força da bala e depois cair no
chão, sem se mover.
Tudo para.
A minha respiração.
O meu batimento cardíaco.
O meu mundo… tudo.
Por favor, não esteja morto. Por favor, não esteja morto. Só
aguente por mais alguns minutos.
— Seu filho da puta! — vocifero entredentes, enquanto
minha arma se aproxima de Danny. A única célula cerebral entre
suas orelhas deve avisá-lo para ter medo, porque seu rosto
empalidece por completo.
— Você é bem esquentadinha, não é, cara mia? — Sal
murmura.
Não consigo dizer do meu ponto de vista se o sangue vindo
do corpo de Gracin é de um tiro fatal ou apenas um ferimento leve,
mas não me atrevo a tirar os olhos de Danny por medo de acabar
sendo a próxima.
— O que você quer?
Sal atravessa a sala enquanto Danny e os amigos mantêm
as armas apontadas para mim.
— O que eu quero? — ele diz, enquanto pega um
decantador de uísque e se serve de uma dose considerável. — Já
tenho o que quero. King, o rei, está morto, ou estará em breve. Ele
morreu sabendo que sua mulher estava nas minhas mãos, o seu
destino a ser determinado por mim. Morreu sabendo como me senti
quando ele matou o meu filho. As crianças são tudo para mim, para
a minha família. Os patrões de King sabiam disso. Ele deveria estar
fora dos limites. — O cuspe voa de sua boca. — King deveria saber
disso.
— Se ele não sabia na época, ele sabe agora, seu cretino! —
grito.
— Poupe-me do drama, — Sal diz com o aceno de uma mão.
Danny dá um passo à frente.
— Cuido dela para o senhor, chefe.
— Não se atreva, — digo a ele, o cuspe voando. Mas a
expressão agitada de Danny é um pouco ansiosa demais. Um
nervosismo muito à flor da pele.
— Espera. Ele não te contou, não foi?
Sal toma outro gole e coloca o copo no bar.
— Contar, o quê?
— Ela é louca, chefe, — Danny interrompe. — Delirante. Ela
teria que ser para ser a puta do King. Quem pode dormir com um
psicopata assim sem ser medicada?
Sal ergue a mão para o parar. Ele diz para mim:
— Contar, o quê?
Ergo o queixo.
— Eu estava grávida de oito semanas do bebê de King
quando os seus rapazes me apanharam. — Olho para Danny com
todo o ódio que consigo reunir. — Não estava mais grávida quando
eles acabaram comigo.
Minhas palavras caem como pedras no fundo de um lago, as
ondulações expandem e afetam tudo em seu rastro. A cabeça de
Danny cai e ele se vira para Sal com as mãos levantadas em
defesa.
— Eu não sabia, — diz em um tom derrotado.
A raiva de Sal paira sobre seu rosto, tornando-o um
vermelho-vivo.
— Seu idiota de merda, — diz. — Se você não fosse da
família, eu mesmo colocaria uma bala na sua cabeça. Nós não
matamos crianças.
— Deixe-me poupá-lo do trabalho, — Gracin grunhe do chão,
fazendo todos os olhos da sala se moverem para ele assim que um
segundo tiro troveja pelo ar ao nosso redor.
Um círculo vermelho brota sobre o olho esquerdo de Danny,
suas pernas se dobram sob seu peso morto e ele cai no chão,
aterrissando com um baque. Os próximos dois tiros derrubam os
bandidos de ambos os lados de Danny antes mesmo de eu
processar o primeiro.
Sal grita de fúria, e como eu tinha feito todos aqueles meses
atrás, reajo por instinto para proteger o único homem do qual não
consigo viver sem. A arma dispara com a menor pressão no gatilho,
Sal voa para trás e cai contra o sofá.
Depois de alguns segundos de silêncio atordoado, enquanto
ambos processamos o que acabou de acontecer, Gracin olha para
mim.
— Fui ferido de novo.
Surpreendo a nós dois ao disparar até ele e dar um soco em
sua mandíbula.
— Que merda estava pensando, seu psicótico, idiota
suicida? Achou que seria heroico ao saltar na frente de uma bala?
Pensou que eu ficaria grata por vê-lo morrer bem na frente dos
meus olhos?
Ele cai de volta no chão e cobre o rosto com o braço ileso.
— Se vai gritar, pode fazer isso um pouco mais baixo? A
minha cabeça está latejando pra caralho. Acho que caí de cara no
piso.
— É melhor ficar feliz por estar ferido. Se não estivesse, eu
arrancaria suas bolas com as minhas próprias mãos.
— Acho que fui uma má influência para você, — diz, sorrindo
mesmo estando branco como um fantasma sob seu bronzeado. —
Você está muito mais violenta agora do que quando nos
conhecemos.
— Eu me pergunto o porquê.
Antes de fazermos qualquer outra coisa, inspeciono a ferida
no ombro dele. Por sorte não é grave, então arranco uma tira da
minha camisa e a enrolo em volta do seu braço, deleitando-me com
seus grunhidos de dor enquanto amarro a tira.
— Você não deveria ter feito isso, — digo ao terminar, e
minha explosão de medo e raiva também esfria. — Pensei que você
ia morrer.
— Houve um tempo em que você teria ficado feliz com isso.
Deixo o comentário passar porque o entorpecimento da
adrenalina que me impulsionou o dia todo se transforma em choque.
Cheguei muito perto de perdê-lo.
Ele inclina o meu queixo para cima.
— Ei. Você não me perdeu. Estou aqui. Não vou a lugar
nenhum.
Ignorando os corpos no chão ao nosso redor, agacho-me
para ajudar a colocá-lo em uma posição sentada. Quando ele reúne
forças, ajudo a sustentar o seu peso para levantá-lo e depois
caminhar até a porta.
Em vez de descer pela toca do coelho que seria ter uma
conversa séria, troco de assunto.
— O que vamos fazer quanto a essa bagunça? Haverá mais
chefes de máfia e capangas atrás de nós pela manhã?
Gracin solta um suspiro enquanto voltamos para os veículos.
Não preciso o segurar para ele andar. O ferimento é no braço, não
nas pernas, mas, pelo visto, não consigo me afastar dele. Preciso
segurá-lo para conter os meus tremores.
— Eles provavelmente nunca vão parar. Não é como se eu
fizesse amigos no meu ramo de trabalho.
— Bom saber. Vamos levar o meu carro ou o seu? —
pergunto quando os alcançarmos.
Ele olha para mim com uma expressão que é uma mistura de
exasperação e confusão.
— Isso é tudo que você tem a dizer?
— Vamos lidar com isso amanhã, — digo, indiferente. —
Agora, qual carro?
Ele balança a cabeça.
— Não me importo. Vou pedir a alguns dos meus homens
para pegarem o outro quando voltarem para a limpeza.
— Você tem homens que… deixa para lá, — digo, acenando
com os braços. — Não quero saber.
A casa parece diferente quando estacionamos. Não que isso
me surpreenda. Nunca dirigi para a casa de Gracin por vontade
própria, e quando ele me trouxe aqui, era no meio da noite e eu
estava inconsciente.
Ofereci-me para dirigir porque ele está ferido, mas Gracin
não quis saber. O sangue ainda escorre da atadura, e suspiro
quando ele sai do carro com um grunhido.
Ele não se opõe quando eu o levo ao banheiro no primeiro
andar, que é onde imaginei ter suprimentos médicos estocados por
esse exato motivo.
— Sente-se, — ordeno, e ele se acomoda na tampa fechada
do vaso sanitário.
— Já está se tornando um hábito, — diz, encarando-me,
seus olhos cobertos de um pouco de dor e um toque de humor. Ele
disse algo semelhante quando precisei enfaixar suas feridas
enquanto estava em Blackthorne.
A ternura floresce dentro de mim como uma flor solitária que
se enraíza na superfície rachada do concreto negligenciado. Para
enfaixá-lo, abaixo o rosto para o ajudar a tirar a camisa, tendo o
cuidado de manobrá-la ao redor do ombro. A ferida não parece tão
ruim. Ele deveria se considerar sortudo pelo tiro não ter causado
mais danos.
Após reunir o material, passo as mãos pelo cabelo dele,
apenas porque preciso tocá-lo para me assegurar de que está bem,
e ele se inclina na minha palma.
— Alguém precisa cuidar de você, — digo finalmente.
— Está se oferecendo?
Não respondo porque não sei. Fico quieta enquanto termino
de aplicar o novo curativo e o silêncio se torna tão avassalador que
tenho medo de quebrá-lo.
Ele deve ver isso no meu rosto porque abre a boca para falar
e depois fecha quando pensa melhor. Sua mandíbula fica tensa e
pulsa com a indecisão e ele se sacode.
— Me procure quando descobrir, — ele diz, depois faz uma
pausa para beijar minha testa, o gesto mais afetuoso que já
expressou, e isso quase me parte em dois.
Suponho ser um progresso ele não me trancar direto no meu
quarto, então quase solto uma risada. Por um momento, preciso
lutar contra um sorriso. Como é possível que a ideia de ficar em
uma gaiola com Gracin seja atraente? Talvez porque dentro dessas
paredes, encontrei a liberdade, mesmo sendo nas mãos do meu
captor.
Limpo a bagunça e arrumo o material médico enquanto
minha mente trabalha com as minhas opções.
Gracin não é um homem bom. Ele seria o primeiro a me dizer
isso. Ele é implacável, sedento de sangue e não segue a lei. Não
vive pelas regras de mais ninguém além das suas e não se
desculpa por isso.
Consigo imaginar a minha vida sem ele. É uma muito bonita.
Eu teria uma nova identidade, uma sem um mandado de prisão, e
acabaria por me estabelecer com um homem, teria uma casa, um
cão e um par de filhos. Era a vida que eu queria quando conheci
Vic. A vida que pensei que teríamos juntos.
Agora… não consigo imaginar uma vida sem Gracin nela. Os
pontos negativos são bem ruins, mas os positivos, a excitação que
ele desperta cada vez que o vejo? Não tem comparação.
Eu me viro e o vejo parado lá, e quase corro direto para ele.
— Pensei que me daria espaço, — digo, atordoada.
Suas mãos cerram ao lado do corpo, o peito está manchado
de sangue e os hematomas do rosto já estão escurecendo.
— Mudei de ideia.
Meus dentes mordem a carne macia da minha bochecha.
— Mudou?
Ele dá um passo à frente.
— Sim.
— E o que decidiu?
Gracin se aproxima o suficiente para poder levantar meu
queixo com um dedo. Sua expressão é séria e, embora mal consiga
ficar com um olho aberto, seu olhar é solene.
— Decidi que estava certo quando te tranquei aqui para que
não pudesse fugir e se meter em problemas. — Uma irritação me
percorre, mas ele coloca um dedo sobre os meus lábios. — Eu a
queria aqui para me certificar de que estava segura. Vê-la no
armazém daquele jeito… nunca esquecerei aquilo. Percebi quando
você entrou na sala e Danny apontou uma arma em sua direção,
que não queria passar mais um dia sem você. Deixá-la sair daqui,
seria fazer exatamente isso, então vou acorrentar o seu rabo à
cama se for preciso para mantê-la na minha vida.
— E se eu dissesse que ainda quero ir embora, você não me
deixaria ir?
— Não, — diz, seu tom de uma finalidade cruel. — Não
deixaria você ir.
Ele faz uma pausa para tomar os meus lábios. Provo o gosto
metálico do sangue de seu lábio partido, mas por baixo… há o sabor
inebriante dele e eu suspiro, dando um passo à frente para
pressioná-lo mais contra mim.
— Eu não a deixaria ir, — diz contra os meus lábios, — mas
passaria todos os dias convencendo você a ficar.
— Como acha que conseguiria isso? — Minha respiração
está mais ofegante agora e meu coração, que continua vibrando
com a adrenalina da nossa fuga, pulsa com o dobro da velocidade.
— Que tal eu te mostrar?
Estremeço contra ele enquanto me puxa pelo corredor.
Gracin pressiona beijos na minha mandíbula e orelha, depois
pragueja baixinho e me coloca contra a parede na escada. Minhas
mãos vão até sua cintura para agarrar as alças do cinto e puxá-lo
contra mim.
— Está tentando me distrair? — ele pergunta, enquanto sua
língua passa na depressão da base do meu pescoço.
— Talvez. Está funcionando?
Ele empurra a ereção contra mim e eu respiro fundo.
— Você me diz, — ele responde.
Solto um gemido e o puxo pelo corredor.
— Acho que preciso de um pouco mais de convencimento,
— digo com um sorriso travesso. — Isto é, se não estiver muito
machucado.
Alcançamos sua porta e ele me pressiona por trás, a rigidez
de seu pau cutucando a fenda da minha bunda.
— Nunca. Eu estaria morrendo e ainda assim de pau duro
por você.
Ele abre a porta e nós entramos o suficiente para fechá-la.
Luto para me virar, mas ele mantém minhas costas pressionadas
em sua frente e coloca minhas mãos acima da minha cabeça.
— Fique com elas para cima, — rosna, e estou tão tensa que
não tenho força de vontade para discutir.
Atrás de mim, ouço o som dele tirando as roupas: o tilintar da
fivela do cinto se desfazendo, a batida dela contra o chão, o clique
do zíper, o sussurro das calças caindo no chão. Quando sinto o
calor dele nas minhas costas outra vez, estou tremendo.
Começo a abaixar as mãos e ele me dá uma mordidinha no
ombro em retaliação.
— Pensei que tinha dito para mantê-las para cima.
— Por favor, — sussurro. — Quero tocar você.
— Vai tocar. Paciência, ratinha. — Ele beija o local da
mordida e o acalma com a língua.
Faço como pede, mas só porque ele continua me tocando
sem parar. Minha cabeça cai para trás e eu gemo para o teto
enquanto suas mãos seguram meus seios, amassando o material
fino da camisa.
— Tire ela, — imploro, e ele faz, deslizando a camisa sobre a
minha cabeça e jogando-a longe. — Tire tudo.
Desta vez, ele me provoca em vez de obedecer, e isso me
faz trocar os pesos dos pés e jogar meu cabelo para trás. As palmas
de suas mãos cobrem os meus seios sobre o meu sutiã e depois ele
desenha círculos ao longo do algodão. Há enchimento suficiente
para não poder senti-lo, mas sei que o seu toque está a apenas uma
camada de distância, e isso me deixa louca.
Quando estou me contorcendo de modo automático contra
ele, Gracin puxa para baixo o bojo do sutiã e me desnuda para o
seu toque. Dedos habilidosos prestam reverência aos meus
mamilos, arrancando gemidos profundos de mim. Ele os torce,
apenas o suficiente para me causar dois focos de dor e prazer,
então solta o fecho e as mãos viajam até o cós do meu jeans.
Minha respiração prende em meu peito enquanto os dedos
dele dançam ao longo da borda.
— Por favor, — sussurro e, desta vez, ele me dá o que
quero, desabotoando as calças e mergulhando a mão por baixo.
Ele usa uma mão para virar minha cabeça e beijar meus
lábios e a outra para encontrar a umidade com a menor pincelada
de seus dedos.
— Tão pronta, — provoca. — Acho que você gosta da ideia
de ficar aqui comigo. A minha ratinha se transformou num gato?
Murmuro palavras ininteligíveis contra seus lábios e o sinto
sorrir. Meu coração estremece no meu peito, e sei que não serei
capaz de sobreviver a ele. Não há recuperação para o que ele faz
comigo. Não há como me afastar. Mesmo se essa fosse uma opção,
acho que não conseguiria.
Sua língua invade, saqueia, conquista e o encontro golpe por
golpe, arrancando um gemido do fundo de sua garganta. A mão na
minha garganta aperta e é inevitável não lembrar da primeira vez
que ele me colocou contra uma parede. A memória ganha vida e me
faz esfregar nele, os quadris procurando um alívio para furacão de
emoções fustigando-me por dentro.
Gracin só pressiona mais perto, então fico presa entre o
corpo dele e a porta. Estremeço com a necessidade de libertação, a
ânsia de tocá-lo e expressar todas as coisas que não posso com
palavras.
— Shh, apenas deixa comigo, — ele diz, enquanto os dedos
começam a se mover contra mim.
Sou apenas capaz de receber o que ele dá. Gracin mantém a
doce tortura até a porta vibrar com o resultado da tensão que cresce
dentro de mim. Bem quando penso que vai me levar a um clímax,
ele se afasta e permite que meus braços caiam ao meu lado.
Eu me viro e ele abraça, depois me guia até a cama. Com
muita ganância, eu o tomo em meus braços e aceito o seu peso em
cima de mim. Minhas pernas envolvem sua cintura e o puxam para
perto.
— Calma, — ele diz, com um tom brincalhão. — Não tão
rápido, sua diabinha.
— Não consigo mais esperar, — digo e me esfrego contra
ele. — Agora.
Ele puxa meu jeans com o pouco espaço que o permito ter,
então volta para cima do meu corpo.
— Vou levar o meu tempo, — avisa.
E ele o faz.
Parece uma espécie de autopenitencia por tudo o que ele fez
de errado comigo. As manipulações quando ele estava na prisão,
por ter me trancado, por ser responsável pela minha dor. Ele me
adora com os toques mais suaves, as carícias mais
enlouquecedoras até que eu esteja perto das lágrimas com a força
da minha necessidade. Ele nunca se desculpou pelo que fez e
percebo que isso é tão desnecessário quanto eu o agradecer por
me salvar.
Lágrimas vazam dos cantos dos meus olhos e ele as lambe
enquanto me penetra. Minha respiração fica presa na garganta
quando seu piercing atinge todos os pontos sensíveis dentro de mim
e os acaricia.
Seus impulsos são lentos, medidos, e quando abro os olhos,
encontro-o me observando.
— Fique comigo, — pede, logo antes de sua boca encontrar
a minha num beijo suave. — Me diga que ficará comigo. Não posso
perder você.
Ergo as mãos para o cabelo dele e olho no fundo de seus
olhos.
— Você não se livraria de mim nem se tentasse.
Minhas palavras fazem algo com ele e seus impulsos
aceleram. Seu controle se quebra ao meu redor e percebo que,
talvez, ele precise de mim para acalmar suas partes despedaçadas
tanto quanto necessito dele para me mostrar que há alguém
precisando de mim em troca.
Quando gozo, cercada por seus braços e ancorada por seu
peso, sei que de forma nenhuma abriria mão de mais um minuto
sequer sem ele ao meu lado. Se ele é um vício, acolho com prazer o
êxtase de usá-lo. Dê-me outra dose, e outra, e mais uma, até que
me mate ou me dê um gostinho do paraíso.
Perco-me no seu beijo, no seu toque, no seu amor tóxico.
— A promotoria chama Tessa Emerson para depor.
Em outra vida, enquanto eu caminhava para o banco dos
réus, o medo teria me segurado em suas garras, assim como meu
ex-marido tinha no tempo em que estávamos casados. Não sou
estranha ao seu abraço sombrio, mas agora enfrento meus medos
em vez de correr.
O oficial de justiça me leva ao estande e eu me acomodo de
frente para uma sala cheia de pessoas que já se sentaram durante
horas de depoimento de testemunhas. Havia alguns guardas que
testemunharam que Vic era um homem e marido íntegro, mas esses
testemunhos foram cancelados assim que chegou a vez de Annie.
Pelo visto, eu não tinha escondido nada dela e Annie contou sobre
cada hematoma e costela quebrada com a qual eu tinha aparecido
para trabalhar. Mas isso não foi tudo… Ela mostrou uma foto após a
outra de mim na minha mesa, eu me inclinando sobre os pacientes,
e eu abraçando minhas costelas… em cada uma delas, o júri podia
ver as marcas roxas sobre a minha pele em vários pontos.
— Jura solenemente que dirá a verdade, toda a verdade e
nada mais que a verdade, que Deus a ajude? — pergunta o oficial
de justiça com uma voz entediada.
— Juro, — respondo.
Gracin não está na sala, é claro, afinal, é procurado pelo
assassinato de Tino Salvatore e por sua fuga da prisão, mas ele
está por perto, observando, esperando. Tiro força desse
conhecimento enquanto a acusação me questiona sobre o meu
casamento com Vic. Respondo às suas perguntas da forma mais
honesta possível. Quando atirei nele, agi em legítima defesa, e eles
não têm provas para dizer o contrário.
— Quer dizer que você permaneceu numa relação abusiva
durante anos? Alguma vez tentou ir embora?
— Sim, em várias ocasiões.
— E o que aconteceu?
— Ele me espancou.
O advogado dá um sorrisinho malicioso e o público murmura.
— Você não pensou em ir à polícia denunciar o
comportamento dele?
— Fiz isso, uma vez.
— Uma vez? E o que aconteceu?
Volto minha atenção para o honorável juiz Edward Milton,
que se remexe em seu assento, e levanto as sobrancelhas em um
questionamento silencioso se ele quer mesmo que eu responda a
esta pergunta em um tribunal aberto. Ele chama por recesso, mas
não importa. Uma vez que Gracin e eu decidimos ser do meu
interesse limpar meu nome, eu sabia que era apenas uma questão
de tempo até eu precisar ficar em frente ao homem que me disse
que as mulheres deveriam obedecer aos seus maridos. A palidez
cinzenta clareando a sua queixada tripla me diz que ele também não
se esqueceu de mim.
Enquanto o tribunal se esvazia, o oficial de justiça me dá o
sinal para descer da tribuna. O promotor zomba de mim e eu dou
uma piscadela em troca. Ele não tem culpa por ter um emprego
ingrato, além disso, tenho coisas mais importantes para me
preocupar.
Espero no corredor até que esvazie por completo. Quase
todos os funcionários aproveitaram a calmaria para sair para
almoçar, então ninguém percebe quando caminho com cautela ao
redor da corda de veludo dividindo os setores público e privado do
tribunal. Ninguém me impede no meu caminho até os aposentos
privados do juiz. É uma cidade pequena, e embora todo mundo se
conheça, também são educados demais para me dizer que eu não
deveria estar lá.
Chego à porta do juiz Milton e entro sem bater. Ele não
parece muito surpreso ao me ver, considerando que seu foco está
todo na arma que Gracin tem contra sua têmpora. Fecho a porta
atrás de mim e me sento numa cadeira de couro confortável e
desgastada, situada em frente à mesa dele.
O juiz Milton abre a boca para falar, mas ela se fecha quando
Gracin o cutuca com a arma.
— Esta não é a parte de falar. É a de escutar.
— Vejo que se lembra de mim, — digo. — Bom, então deve
saber o motivo de eu estar aqui. Vou ser rápida porque não vale a
pena desperdiçar o meu tempo. Serei inocentada de todas as
suspeitas sobre a morte do meu marido e você garantirá que isso
aconteça. Se não o fizer… bem, acho que não precisamos ser
grosseiros. Você entende, não é?
Uma gota de suor escorre pela testa dele e cai em sua mesa
imaculada. Quando ele não responde, inclino-me para a frente.
— Esta é a parte de falar.

Algumas horas depois, saio do tribunal e entro no SUV


discreto que está me esperando no meio-fio. Gracin me puxa pelo
pescoço e me beija longa e duramente, alheio à fila de carros atrás
aguardando o nosso movimento.
— Você é uma mulher livre agora, — ele diz quando termina.
— O que vai fazer com o resto da sua vida?
— Essa é uma boa pergunta. Tem alguma ideia para sugerir?
Ele me envia um olhar que faz meu estômago contrair em
antecipação.
— Ah, tenho algumas.
— Tenho certeza de que sim, mas precisamos fazer uma
coisa primeiro.
Ele pega minha mão e a pressiona nos lábios enquanto
conduz pelo trânsito.
— É mesmo? O que seria?
— Que tal eu te mostrar? — digo quando chegamos a um
semáforo.
Gracin olha para mim e eu pego uma foto da minha bolsa e a
entrego a ele.
— O que temos aqui?
— Uma surpresa, — respondo. — Acho melhor encostar,
assim não vamos bloquear o trânsito.
— Gosto de surpresas. — Ele faz o que mando e sai da
estrada e entra num estacionamento vazio.
Se há memórias que me mantêm acordada à noite e me
fazem questionar por que fui colocada nesta Terra para suportar as
coisas que passei, então também há memórias que me lembram o
motivo de permanecer, de continuar lutando. Muitas delas são com
Gracin de alguma forma. Mas nenhuma dessas lembranças irá
superar esta.
— Tessa, o que é isso? — ele pergunta, embora ambos
saibamos a resposta.
— Gracin, não sei o que o futuro nos reserva, e não me
importo. Apenas sei que não consigo imaginar um sem você. Eu te
amo tanto. Não imaginei que teríamos essa chance outra vez, mas
agora a temos e estou tão feliz por ser com você.
Ele ergue o olhar da imagem de ultrassom e diz:
— Você está grávida?
Antes de eu poder responder, ele me toma nos braços e me
esmaga contra o peito.
— Não há palavras para descrever o que sinto por você, —
ele diz. — Mas se houvesse, elas nunca seriam suficientes.
— Então você está feliz? — pergunto, enquanto lágrimas de
felicidade enchem os meus olhos.
— Estou em êxtase, querida. — Ele me beija de novo e
depois diz: — Vamos para casa.
Obrigada por se juntar a mim neste passeio alucinante.
Espero que tenham gostado de ler sobre este casal louco tanto
quanto eu adorei escrever sobre eles.
Se gostou de Tóxico, por favor, considere deixar um
comentário no seu revendedor preferido.
Com muito amor,
Nicole
Para Melissa, que está sempre ao meu lado. Sério mesmo,
sempre. A pessoa que esperou com paciência (ou nem tanta) pela
história de Gracin. Quem me animou desde o primeiro dia quando
eu trouxe essa ideia maluca à tona. Que leu meticulosamente cada
capítulo enquanto eu os terminava e depois os destrinchava. Quem
ouviu cada ideia da história, lamentou o longo tempo que levei para
terminar e a amou tanto quanto eu (talvez até mais).
Não haveria um Tóxico sem você. Gracin teria ficado em
segundo plano, sacudindo os punhos e ameaçando me esfaquear
se não fosse por você.
Obrigada.
Agradeço a minha mãe, que respondeu a um milhão de
perguntas sobre a instituição correcional sem cansar. Se não fosse
por todos os seus anos de trabalho duro e dedicação, eu não estaria
onde estou hoje. Devo a você muito do que conquistei. Ao seu apoio
inabalável e paciência. O seu amor incondicional (além de suas
dicas sobre como talvez escapar da prisão). Eu te amo, mãe!
Para todos os meus leitores e, em especial, para o meu
grupo de leitores: os Knockouts. Nunca haverá palavras adequadas
o suficiente para a profundidade da minha gratidão. É quase como
se vocês soubessem quando eu mais preciso do seu
encorajamento, porque estão sempre lá com uma palavra gentil ou
de encorajamento bem quando eu mais preciso. Obrigada por estar
comigo nesta jornada! Não conseguiria fazer isso sem vocês.
Um agradecimento especial para Michell Hall Caspar e
Mandy Sawyer pelos seus olhos de águia!
Os autores estariam gritando no abismo sem fim se não
fosse pelos blogueiros que trabalham duro para promover nosso
trabalho com tanta paixão como se fosse deles.
Agradecimentos especiais: The Wonderings of One Person,
SJ ‘s Book Blog, EscapeNBooks, Books Over Boys, Crystal’ s Crazy
Book Ramblings, Kiki Reader Loves Books, A Cup and a Book,
Black Feather Blogger, I HAVE A BOOK OBSESSION, Exposure
Book Blog, e muitos outros. Se não o mencionei, não hesite em me
avisar. Posso sempre atualizar a lista e quero incluir todos! =)
A autora best-seller do New York Times e do USA Today,
Nicole Blanchard, mora no Mississippi com sua família e seus
animais. Ela escolhe cada dia perseguir seu próprio conto de fadas,
mesmo que eles tenham seu quinhão de dragões. Ela é casada com
seu melhor amigo e é dona do seu próprio negócio.
Nicole sobrevive com uma dieta de muitos livros e
quantidades substanciais de refrigerante e lanchinhos de queijo e
carne seca. Quando não está lendo, ela dedica sua atenção à
família ou maratonando The Walking Dead e The Big Bang Theory.

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