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Copyright © 2021 Jenniffer Alves

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Imagens usadas: pt.pngtree
Revisão: Carina Barreira
Diagramação: Jennif
fer Alves
Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e
acontecimentos descritos são produtos da imaginação da autora.
Qualquer semelhança com nomes, datas e acontecimentos reais é
mera coincidência.
São proibidos o armazenamento e/ou a reprodução de
qualquer parte desta obra através de qualquer meio — tangível ou
intangível — sem o consentimento escrito da autora.
A violação dos direitos autorais é crime estabelecido pela lei no
9.610/98 e punido pelo artigo 184 do Código Penal.
Todos os direitos reservados.
Edição Digital | Criado no Brasil.
Uma obra de Jenniffer Alves
Será que o AMOR é capaz de curar uma mente atormentada pela injustiça?
Duas almas quebradas se conectam com apenas um olhar. Ela do lado de
fora e ele do outro lado das grades. O que poderia ser impossível, se torna
possível, quando novos sentimentos pulsam de corações traumatizados.
Laura esconde muito mais do que deixa transparecer. Reclusa sem suportar
ser tocada, vive sua vida entre lutas e recaídas, com a esperança de que um dia
possa se tornar uma pessoa normal. Tudo muda quando é designada a fazer uma
entrevista com o criminoso mais perigoso da Ucrânia.
Nada daria errado, afinal, ele estaria do outro lado, sem poder tocá-la e com
um vidro separando dois mundos completamente diferentes. Mas ao encarar seus
olhos, algo dentro de si muda.
Ruslan Rotam, preso aos 18 anos por uma série de assassinatos carrega
consigo muitos segredos e após 14 anos surge a primeira oportunidade de fuga.
Só há uma única pessoa que ele acredita ser capaz de ajudá-lo.
Duas vidas marcadas pela maldade. Duas almas solitárias. Um amor capaz
de superar qualquer trauma é forte o bastante para suportar uma série de
assassinatos que tem como culpado a única pessoa que ultrapassou as barreiras
impostas por um coração dilacerado?
AVISO:Esse livro pode despertar gatilhos emocionais
Sinopse
Nota da Autora
Aviso
Capítulo 01
Capítulo 02
Capítulo 03
Capítulo 04
Capítulo 05
Capítulo 06
Capítulo 07
Capítulo 08
Capítulo 09
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Capítulo 38
Capítulo 39
Capítulo 40
Capítulo 41
Capítulo 42
Capítulo 43
Capítulo 44
Capítulo 45
Capítulo 46
Capítulo 47
Capítulo 48
Capítulo 49
Capítulo 50
Capítulo 51
Capítulo 52
Capítulo 53
Capítulo 54
Capítulo 55
Capítulo 56
Capítulo 57
Capítulo 58
Capítulo 59
Capítulo 60
Capítulo 61
Capítulo 62
Capítulo 63
Capítulo 64
Capítulo 65
Capítulo 66
Capítulo 67
Capítulo 68
Capítulo 69
Capítulo 70
Capítulo 71
Capítulo 72
Capítulo 73
Epílogo
Agradecimentos
Talvez você goste
Dedico esse livro a todas as mulheres que tiveram seu coração e alma
dilacerada, mas que assim como a Laura, floresceram como uma rosa,
superando o insuperável e buscando seu final feliz.
Intensa Paixão é uma história que despertará em você uma
dor no coração, onde encontraremos dois personagens
traumatizados por seu passado, ambos carregam as consequências
de abusos e agressões. Então esteja preparado para lágrimas,
indignação e raiva, mas além de tudo, esteja preparado para se
apaixonar e se emocionar pela forçade cada um, pela determinação
e paixão de ambos.
Intensa Paixão é um livro delicado, algumas cenas poderão
despertar gatilhos emocionais, principalmente em mulheres que
passou pelo que Laura passou, mas narrado de forma cautelosa e
cuidadosa.
Essa história se passará em Kharkiv cidade da Ucrânia.
Tentei trazer o máximo de representatividade, citando aspectos
culturais, e alguns detalhes para que você mergulhe nessa trama.
Outro ponto a destacar, é que você encontrará muito “estás”
“soa-te bem” “como dizes?”. E muitas outras por se tratar de uma
expressão linguística e por Laura e nós sermos brasileiros, quis dar
um pouco de sotaque para os ucranianos.
Espero que goste da leitura, se emocione e que no fim leve
com você uma grande lição.
Lembre-se, esse livro é uma obra ficção e abordará abuso
tanto sexual, quanto psicológico, se por ventura sentir incômodo
com alguns relatos – que por sinal são inspirados em muitos fatos
reais – pare a leitura ou pule as lembranças.
Quero salientar que por mais que seja lindo – que para mim foi
uma loucura - a atitude da Laura, não faça isso na vida real. Existe
maldade por todos os lados, inclusive poderá bater na sua porta e
não virá como Ruslan de olhos verdes penetrantes. Sua vida é mais
importante que qualquer fetiche literário.
Aprecie a leitura com moderação, okay?
Um beijo e boa leitura!
Acordo assustada e suada depois de mais um pesadelo, a
cada dia que passa, mais recorrentes eles se tornam. Olho para o
lado quando o despertador toca, são cinco da manhã, e está um frio
de -11ºC. Me aconchego debaixo das cobertas querendo
permanecer no meu pequeno apartamento, o que é impossível
quando tenho que trabalhar.
Solto um suspiro e me levanto, sentindo os pelos dos meus
braços eriçarem. Ando na escuridão até achar o receptor da luz e a
ligo. Engulo em seco antes de me virar e olhar pelo cômodo. Fecho
as mãos em punho quando meus batimentos aceleram enquanto
caminho pelo apartamento, certifico-me de que não há ninguém. Ao
me sentir segura, ligo a tv e vou me arrumar para o trabalho de logo
mais.
Todos os dias sigo a mesma rotina – acordo, ligo todas as
luzes, deixo a tv falando sozinha e vou me arrumar – às vezes me
sinto patética por fazer isso, mas enquanto não tenho a certeza de
que estou sozinha, não consigo fazer nada. São anos com os
mesmos tormentos, o medo parece aumentar de tamanho conforme
o tempo se passa e meus pesadelos me torturam de maneira
insuportável.
Apanho minha bolsa depois de estar pronta e olho para tv, o
jornal AS da manhã - o mesmo em que trabalho - está falando sobre
a crise econômica em que estamos passando. Por esse motivo,
Kharkiv sofre pelo crescimento da criminalidade por conta da
pobreza e falta de oportunidades. Pessoas cada vez mais jovens se
tornam bandidos e traficantes, o único jeito que encontram de
ganhar dinheiro.
Sobressalto de susto ao escutar um estrondo de porta
batendo, gritos vem logo em seguida, meu vizinho bêbado acabou
de chegar em casa depois de uma longa noite de bebedeira e não
foi muito bem recebido pela esposa. Paro de prestar atenção na
briga e volto para tv, que agora falasobre o presídioColony 100, um
lugar para criminosos de alta periculosidade e reincidentes.
Sem querer mais ver, troco de canal deixando no de desenhos
animados e saio de casa, trancando todas as janelas e a porta. A tv
permanece ligada, olho pelo corredor vazio e escuro, aqui vivem
pessoas de classe baixa, por isso é normal esbarrar com bêbados,
ladrões e até mesmo prostitutas. Infelizmente foi o único lugar que
encontrei onde meu salário de colunista consegue cobrir.
Coloco as mãos nos bolsos do casaco e saio do prédio, a
estrutura é muito antiga, dando um ar estranho devido à falta de
manutenção. O vento gelado bate em meu rosto, estremeço de frio.
O céu está nublado e garoa, deixando o ar úmido e nada atrativo.
Um carro estaciona rente à calçada, analiso com atenção,
achando estranho um veículo de luxo em um lugar tão pobre.
Balanço a cabeça quando a motorista desce e me olha com um
sorriso escancarado.
— Tu gostaste? — Pergunta, se aproximando.
— É seu? — Arqueio uma sobrancelha, Gana ergue as mãos e
gira, rindo.
— Eu ganhei! — Seus olhos astutos me encaram, brilhantes.
— Sério?
— Creio que sim... — Ela franze a testa, se divertindo com
minha incredulidade. Meus olhos descem por seu corpo curvilíneo,e
me pergunto como ela consegue usar essas “minis” roupas em um
frio insuportável.
— Me conte a história — peço, ela tira seus cabelos
avermelhados do rosto e coloca as mãos no peito.
— Sabes o quanto sou esforçada,certo? Pois bem, há mais ou
menos uns dois meses venho investindo em um cliente rico, ele
gostou dos meus serviços e começou a me presentear, até que
ontem apareceu com esse carro.
— Ele te deu? — Gana assente, cheia de entusiasmo.
— O que achas? — Analiso o Audi A3 de luxo prata.
— Bonito, mas... não é perigoso deixá-lo aqui? — Ela
comprime os lábios, olhando desanimada para seu carro. — Não
temos garagem e... se você vender, poderá encontrar um lugar
melhor para morar.
— Tu queres que eu venda o xoxo? — Seus olhos
esbugalham, dou de ombros, porque é uma opção a se pensar, pelo
menos eu faria isso.
— Creio que nomeou o carro de xoxo, então não pretende
vender?
— Não pensei nisto — diz um pouco decepcionada. — É meu
primeiro carro...
— Ele te deu os documentos? — Gana inclina a cabeça para o
lado, seus olhos claros se fixam nos meus.
— Não, achas que é necessário? — Faço uma careta, não sei
porque ainda me surpreendo com a ingenuidade de Gana, coloco
sempre a culpa na falta de estudos e da pobreza que a levou a se
prostituir.
— Como vai provar que o carro é seu?
— Acho que deixei esse detalhe passar.
— Se seu cliente te deu esse carro de verdade, ele deve te
entregar os documentos em seu nome, provando que é proprietária
do veículo, ou então quando menos esperar, ele irá tomar seu carro
e você não poderá fazer nada. — Ajeito minha boina, sentindo raiva
de ver Gana ser enganada outra vez.
— Oh, é muita informação,mas não te preocupes, Yevhen não
faria isso comigo.
— Tem certeza?
— Sim! — Gana sorri e estende a chave. — Passarei o dia
dormindo, não poderei vigiar o carro enquanto ficar aqui fora, por
isso quero que tu o leve contigo, assim poderei ficar tranquila. —
Ergo as sobrancelhas. — Confio-te, somos amigas.
— Okay! — Pego a chave com a mão enluvada, Gana solta
um pulinho animado, fazendo barulho com seu salto alto.
— Sei que xoxo estará protegido no estacionamento do jornal,
confio em ti também. — Assinto de leve. — Adeus Laura, bom
trabalho.
— Descansa — me despeço, assistindo-a andar em direção ao
nosso prédio, a polpa da sua bunda está exposta, já que seu short é
um cinto e não consegue cobrir.
Volto a olhar para o carro um pouco alegre por me livrar da
superlotação dos ônibus, é sempre exaustivo. Me acomodo no
banco, ligo o ar quentinho e suspiro.
Conheço Gana desde que me mudei, acho que sou a única
que conversou com ela sem a julgar. As moradoras daqui não
gostam nem um pouco dela, primeiro por ser muito linda, e segundo
por ser prostituta. Acreditam que Gana é um perigo para seus
maridos, apesar de ela nunca ter paquerado nenhum dos
moradores, receio fica impregnado cada vez que o nome dela é
citado.
Nossa amizade cresceu de forma natural, Gana respeitando
meu espaço, sabendo que nunca poderá chegar tão perto, e eu sua
escolha de vida. Cada uma de nós tem um passado que nos
assombra, deixando os outros verem apenas o que queremos. Por
esse motivo que acredito que houve essa ligação entre nós.
Estaciono o xoxo numa das vagas, inspiro fundo criando
coragem para enfrentar o frio e saio do carro, ando apressada em
direção ao prédio da AS jornalismo.
Dou bom dia ao segurança e entro no elevador, alguns dos
meus colegas de trabalho entram comigo, aceno com a cabeça de
leve por não ser muito íntima deles. Quando chego na minha
cabine, tiro meu casaco, luvas e a boina, ligo o computador e olho
em volta.
— Estás bem? — Encaro Aksinya, que acabou de chegar.
— Estou e você?
— Parece que não descansei nada, sinto-me esgotada. —
Reclama. — Você terminou seu artigo?
— Quase!
— Pareceste eu... — Murmura, se jogando na cadeira. —
Andry deveria nos dar um aumento, somos escravas deste lugar.
— Sabes que este é um pedido em vão. — Yaroslav se
intromete quando chega, seus olhos escuros se encontram com os
meus. — Andry prefere morrer do que nos dar aumento.
— Somos escravos... — Ela choraminga, ligando seu
computador, Yaroslav ri baixinho, indo para seu lugar de trabalho.
— Não posso reclamar, poderia estar pior. — Digo, borrifando
álcool na minha mesa.
— Ou estaríamos melhores. — Retruca Justik, meu colega de
cabine.
— Bom dia Justik, espero que tenhas aproveitado tua festa.—
Alfineta Aksinya, lançando um olhar nada amigável em sua direção.
— Festa? — Justik se faz de desentendido, ignorando-a.
Balanço a cabeça, esses dois ficam o tempo todo se cutucando, só
estão em paz quando a boca de ambos está grudada uma na outra.
— E lá vamos nós! — Resmunga Yaroslav, olho para ele e
reviro os olhos, ele retribui o gesto com diversão.
Me desligo total quando focoem terminar o artigo sobre a mais
nova marca de cosméticos que chegou na Ucrânia. Escrever é uma
das minhas paixões, a sensação de estar colocando as palavras no
papel é gratificante, me ajuda a esquecer do mundo lá fora e dos
meus tormentos.
— Laura? — Ergo meus olhos. — Pode ajudar-me? — Os
cabelos loiros de Aksinya estão presos em um coque bagunçado,
seu rosto está um pouco contorcido de frustração.
— Com o quê?
— Com meu artigo, você leria para dizer-me se está aceitável?
— Me envie, Aksinya! — Sorrindo, ela volta ao seu trabalho,
recebo seu e-mail e começo a analisar seu artigo, que por sinal está
maravilhoso ao relatar com perfeição a negligência que os asilos
estão sofrendo. Foram dias de árdua pesquisa, coletando
informações para chegar ao máximo de perfeição.
— Como estás? — Pergunta Justik, por cima da minha cabine.
— Ótimo como sempre. — Respondo, erguendo o polegar em
sinal de positivo para ela.
— Hum... — Murmura, voltando para seu lugar.
— Obrigada, Laura! — Ela agradece, olho para minha mesa e
encaro a foto da minha mãe, meu peito aperta de saudades, queria
poder estar ao seu lado agora, lhe abraçando.
Muitas vezes ao longo de todos os dias me pergunto o que eu
fiz de errado, ela deveria estar ao meu lado, afinal, sou sua filha,
mas não foi bem assim. Ela preferiu viver no inferno, se iludindo
com a mentira e colocando toda a culpa em mim. Eu queria apenas
que ela me defendesse, me protegesse, evitando que minha
inocência fosse arrancada de forma monstruosa.
Limpo a garganta, evitando que as emoções tomem conta de
mim, não sou mais aquela menininha de antes, agora sou uma
mulher e capaz de fazer minhas próprias escolhas, sejam as mais
duras. Sou dona de mim e nada me fará mal, a não ser ele...
— Laura? — Sobressalto ao ser arrancada do devaneio. —
Andry deseja vê-la. — Informa Ekaterina, secretária do meu chefe,
assinto já me levantando.
— Boa sorte! — Yaroslav deseja, nunca é bom ser chamado
por ele, pois quando não é bronca, é mais trabalho.
Ekaterina abre a porta para mim, entro no escritório um pouco
nervosa e me sento na cadeira à sua frente. Andrey, um homem
alto, pouco acima do peso e olhos escuros, me encara com cuidado,
avaliando-me com atenção. Ele coloca as mãos entrelaçadas em
cima da mesa de forma tranquila, deixando-me mais nervosa.
— Laura, precisarei de você. — Como disse, vir aqui é sair
sobrecarregado de mais trabalho. — Zhdana teve que se ausentar,
acabou deixando seu trabalho pela metade e como você é uma das
melhores colunistas website que tenho, escolhi você para substituí-
la.
— Posso recusar? — Ele fica me encarando sem dizer nada
por alguns segundos.
— Se quiser ser demitida, acredito que sim. — Aperto meus
lábios e assinto.
— Como será?
— Zhdana conseguiu uma entrevista exclusiva no Colony 100.
— Enrijeço. — Ela iria entrevistar Ruslan Rotam, parte do artigo
dela está pronto e assim você saberá o que deverá ser feito.
— Quem é Ruslan Rotam? Um dos guardas do presídio? —
Pergunto, nervosa.
Andry fica me olhando, começo a balançar minha perna
esquerda, seu olhar me diz que não é um guarda, que é um homem
muito além disso, meu medo se torna realidade quando meu chefe
revela a verdade.
— Ruslan Rotam é considerado um serial Killer, Laura. —
Choque espalha por meu corpo, não irei conseguir fazer essa
entrevista, não quando tenho medo de... — O que há de errado? —
Andry pergunta, mas não consigo me mexer. — Laura?
— É... — Limpo a garganta, tentando controlar meus nervos.
— Eu não posso...
— Não te preocupes, ao seu lado estará os guardas, ele não
lhe fará mal.
— Não é isso... — Umedeço os lábios, penteio meus cabelos
castanhos e desvio do olhar preocupado do meu chefe.
— A entrevista é amanhã, sei que é fora da sua zona de
conforto, mas será uma experiência nova. — Ele coloca um pen
drive em cima da mesa. — Aqui estão todas as informações que
necessitas, confio em ti.
— Certo! — Murmuro sem dizer mais nada, pego o maldito pen
drivecom as mãos trêmulas e saio. Preciso desse emprego e sei o
quanto Andry pode ser frio ao decidir que não quer mais alguém
trabalhando com ele.
Vou direto para o banheiro, jogo água em meu rosto me
acalmando... me controlando. Só de imaginar aqueles guardas me
olhando, aqueles detentos esfomeadospor carne nova... estremeço,
limpando minha mente dessas imagens sujas que me assombram.
Me encaro através do espelho, meus olhos azuis estão
espantados, estou pálida e apavorada, não sei se terei coragem de
enfrentar algo assim, sei que alguma coisa vai acontecer, não é de
hoje que tenho esse pressentimento. Algo ruim se aproxima, estou
com medo e sozinha, não sei se serei capaz de lidar com tudo mais
uma vez.
Fecho meus olhos, inspiro fundo acalmando as batidas
incontroladas do meu coração, tentando colocar meus sentimentos
em ordem. Preciso me preparar para o que vier, sei que serei capaz
de enfrentar mais esse obstáculo... Sou forte, independente do que
tenha passado, eu vou conseguir vencer mais esse desafio que
colocará à prova as muralhas que construí a minha volta.
Volto para minha cabine depois de meia hora tentando me
acalmar, meus batimentos continuam acelerados e minhas mãos
geladas. Pela forma que meus colegas estão me olhando, é
provável que eu esteja pálida também.
— Estás bem? — Pergunta Aksinya com a testa franzida.
— Sim. — Respondo me sentando e encarando o pen drive.
— Não é o que parece. — Olho para Justik. — Chefe lhe deu
mais trabalho?
— Andry me deu o artigo da Zhdana, disse que ela teve que se
ausentar.
— Creio que tenha sido demitida. — Yaroslav fala, enrugo
meus lábios.
— Mas qual será a reportagem que tu deves fazer?— Aksinya
cruza os braços, curiosa para saber.
— Entrevistar Ruslan Rotam. — Eles ficam mudos, assombro
transluz seus olhos, acho engraçado a reação deles.
— Sério? — Assinto para Justik, ele passa as mãos em seus
cabelos loiros.
— Pelo visto vocês sabem quem é.
— Sem dúvidas! — Murmura Akinya, rodando a caneta em
seus dedos.
— Me expliquem.
— Como já deve ter descoberto, Ruslan é considerado um
serial Killer, ele matou mais de 20 mulheres há 14 anos atrás. —
Justik conta, ele arrasta uma cadeira e se senta mais próximo,
evitando me tocar. — As motivações foram fúteis, nada que
justificasse assassinar uma pessoa, acredito que ele gostava de
perseguir e matar de forma violenta essas moças. Ele tinha um
padrão, mulheres lindas era um deles, sempre deixando os rostos
delas desfigurados. — Engulo em seco, digito seu nome no google e
sua foto estampa minha tela, fazendo meu coração saltar
.
— Então o condenaram? — Pergunto sem desgrudar meus
olhos do garoto à minha frente.
— Pena perpétua e foiconsiderado o homem mais perigoso da
Ucrânia. — Yaroslav diz.
— Terei que entrevistá-lo amanhã... — Murmuro para ninguém
em específico. — Estarei à frente de um assassino de mulheres...
— Não penses demasiado nisso. — Aksinya tenta me acalmar.
— Vai dar tudo certo!
— Ele estará com guardas, algemado e dentro de uma cela,
vão manter a distância porque Ruslan é perigoso. — Diz Yaroslav.
— Você já fez alguma entrevista assim? — Pergunto a ele por
ser o colunista mais antigo daqui.
— Quando entrei, trabalhei ao lado de uma jornalista criminal,
vi muitas cenas de crimes, fazer entrevista com criminosos é normal
na rotina de quem trabalha nessa área. — Ele me lança um sorriso
tranquilizador, voltando para sua cabine.
Inspiro fundo,plugo o pen driveno computador e começo a ler
o artigo incompleto feito por Zhadana. Nele estão todas as
informações referentes ao passado de Ruslan, sua idade, as
mulheres que assassinou, fotos das cenas do crime, sua famíliae
muito mais do que sou capaz de suportar.
Passo o dia pesquisando sobre ele, tentando entender o que o
levou a assassinar brutalmente essas mulheres que tinham famílias,
namorados e até filhos. Ruslan se declarou inocente de todas as
acusações, assisto o vídeodo seu julgamento, o desespero é visível
em sua expressão, ele era apenas um garoto cheio de vida.
Sinto meu peito apertar quando ele chora de angústia ao ser
sentenciado à pena máxima. De acordo com as leis Ucranianas, a
prisão perpétua é de fato “perpétua”, os prisioneiros nunca mais
saem, ficam trancafiados até morrer. A Ucrânia não revê esses
casos depois da sentença final, as chances de condicional é zero.
Fico encarando seus olhos, pesquiso mais sobre ele, mas nada
encontro, apenas fotografias de 14 anos atrás.
Estaciono o xoxo em frente à entrada do meu prédio,
reparando olhares de moradores suspeitos em minha direção. Gana
terá que tomar muito cuidado em relação a esse carro para não ser
roubada. Espero alguns minutos, olho para o lado quando ela bate
na janela.
— Estou contente por ter cuidado do xoxo. — Diz quando
desço e lhe entrego a chave.
— Peça os documentos, Gana.
— Pode deixar — fala entrando no carro.
Se ela estiver mesmo com o pensamento de deixar xoxo
comigo durante o dia, sendo que ela trabalha a noite toda, será uma
boa alternativa para evitar que fique estacionado aqui por muito
tempo.
Me despeço e entro, quando chego no meu apartamento, colo
os ouvidos na porta, prendo a respiração e aguço minha audição.
Ao fundo, com um som abafado ouço conversas, músicas e
barulhos, suspiro fundo e abro a porta, olhando direto para a tv
ligada, nela está passando o desenho de Tom e Jerry.
Tranco a porta e caminho pelo meu apartamento, olhando por
debaixo da cama, dentro do banheiro, em todos os lugares onde
uma pessoa possa se esconder. Meu estômago ronca de fome, tiro
o casaco, minhas botas e vou para cozinha preparar um sanduíche
sem conseguir tirar o dia de hoje da cabeça.
De todas as formas que tento me acalmar, fico ainda mais
nervosa. Entrevistar um criminoso é me colocar perto do meu
passado. Calafrio percorre meu corpo, sento-me no sofá e observo
Tom implicar com Jerry. Apesar deles se odiarem na maior parte do
episódio, no fundo existe uma paixão platônica entre eles.
Às vezes sinto falta de ter alguém ao meu lado, que possa me
entender, mas o fato de sempre estar sozinha é que não confio em
ninguém, sinto como se a qualquer momento irão me fazer mal. Eu
tento me aproximar ou deixar que se aproximem, entretanto, o medo
de ser ferida é maior que eu, por isso opto em permanecer sozinha.
Meu coração aquece quando o desenho Coragem, o cão
covarde começa a passar. É um dos meus preferidos. Em meio ao
medo e assombro das coisas bizarras que acontecem na sua vida,
Coragem luta com unhas e dentes para proteger sua dona.
Meu maior sonho é que um dia eu possa ser protegida assim
como Muriel é. Ela não fazideia da sorte que tem por ter alguém ao
seu lado que está disposto a morrer por você. Me imagino dentro do
desenho, agora sou a Muriel e não a Laura, porque só assim
consigo me sentir amada e cuidada por alguém que nunca irá existir.

Um dos motivos por eu ter acordado um pouco mais alegre


hoje, foi por saber que o inverno está chegando ao fim, mesmo que
no verão a temperatura máxima chegue aos 25ºC, não tão calor
como em algumas partes do Brasil, o sol é bem-vindo. As praças se
enchem de vida, as pessoas saem de suas casas e as flores
enfeitam cada canto da cidade. É muito comum você encontrar
mulheres carregando buquês de rosas nas ruas, é uma das culturas
mais lindas dos ucranianos.
Estaciono o xoxo e encosto a testa no volante sem coragem de
encarar o presídio à minha frente. A entrevista está marcada para às
dez horas da manhã, ou seja, daqui a trinta minutos. Queria poder
recusar, dar essa missão para outra colunista, mas quando se tem
contas a pagar e um salário baixo a receber, é impossível recusar.
Apanho minhas coisas e desço do carro, engulo em seco
quando finalmente encaro o Colony 100, um legado da união
Soviética que até hoje se ouve falar das histórias terríveis de
torturas e assassinatos. Meus olhos navegam pela arquitetura
pesada e sombria, há arames farpados em cima dos muros altos,
causando um impacto depressivo e apavorante.
Pelo que estudei, o Colony 100 é dividido em duas zonas. A
principal é para os reincidentes e a segunda é como uma prisão
dentro de outra prisão, onde fica a segurança máxima, e é lá que
estão detidos os piores criminosos da Ucrânia, incluindo o que irei
entrevistar.
Ando em direção aos portões enormes, um policial me olha
pela portaria, estendo meu crachá e logo em seguida os portões são
abertos para que eu possa entrar. Seguro com mais força a alça da
bolsa e entro.
— Laura do AS? — Olho para o lado, um homem alto e
fardado se aproxima, seus olhos me analisam.
— Sim.
— Prazer em conhecer-te. — Ele estende a mão, eu apenas a
fito, recuando um passo. — Andry avisou da substituição.
— Terei que ser revistada? — Pergunto receosa, o guarda
abaixa a mão e coloca os braços para trás, ficando ereto.
— São protocolos de segurança. — Assinto, inspirando fundo.
— Eu poderia fazer algumas perguntas em relação ao seu
trabalho? — Ele sorri.
— Claro... — Sigo-o em direção a ala de revista enquanto me
responde às perguntas.
Volodymyr conta que trabalha aqui há seis anos, já presenciou
muitas coisas, aplicou punições severas e até foi ameaçado por
detentos enfurecidos. Ele relata que no começo foi um pouco
apavorante ter que lidar com criminosos tão perigosos, mas acabou
se acostumando.
Fico ao seu lado ao cruzar todo o pátio principal para
conseguir chegar no setor de visitas. No meio do pátio consigo ver
todos os prédios do presídio. A ala de segurança máxima é uma
construção antiga, o silêncio é incômodo como se não existissem
pessoas trancafiadas aqui. À minha esquerda, ficam as salas
utilizadas pelos guardas e o prédio administrativo fica à minha
direita, a diretoria por sua vez é protegida atrás desses muros bem
altos.
Volodymyr abre a porta para mim, na sala há um detector de
metais e uma mesa onde coloco minha bolsa. Uma guarda me
orienta a passar por ele, que não apita para meu alívio.O melhor de
tudo é que não foi preciso me tocarem. Depois ele me leva a outra
sala, passo por portões e portas de grades até chegar ao meu
destino.
— Volto já! — Volodymyr me deixa sozinha na pequena sala
de visitas, analiso-a com cuidado. Há apenas uma cadeira em frente
à um vidro, do outro lado é um cubículo onde o prisioneiro ficará.
Não haverá contato, até porque o que nos separa é uma
massa de concreto e um vidro com furos no meio. Sento-me na
cadeira e pego o gravador, as perguntas estão decoradas em minha
mente, agora é só esperar por ele.
Minutos se passam, mas a impressão que tenho é que são
horas de espera. Meu coração martela sob meu peito, dou um gole
na minha água e tento parar de balançar as pernas. Fecho os olhos,
inspiro e expiro... escuto barulhos, fico ereta e abro os olhos a
tempo de vê-lo entrar com a cabeça baixa, algemado e com dois
guardas segurando seu braço. Eles o colocam sentado à minha
frente, Volodymyr acena de leve com a cabeça.
— Você tem uma hora. — Assinto, então ele nos deixa a sós.
Engulo o caroço que se formou na garganta, o homem que
está diante de mim é alto, muito mais alto do que imaginei, seus
ombros são largos e seus braços são um pouco fortes, seu peito
sobe e desce em uma respiração acelerada e seus cabelos lisos
caem sobre seu rosto abaixado.
Quero poder dizer alguma coisa, mas as palavras estão
engasgadas. Ele remexe as mãos como se estivesse incomodado
com as algemas, as roupas escuras estão moldando seu corpo
rígido. Prendo a respiração quando ele lentamente ergue a cabeça e
fixa seus olhos verdes nos meus. Olhos que carregam um passado
de crime.
Ruslan Rotam não é mais um garoto de 18 anos e muito
menos tem os olhos inocentes de um adolescente repleto de vida e
sonhos. O homem que está à minha frente é sombrio, triste e
intenso, pensei que estaria preparada para esse encontro, mas vejo
que não, porque o detento algemado do outro lado é o homem mais
lindo que já vi em toda minha vida.
Seus cabelos castanhos moldam seu rosto marcante, suas
olheiras escuras o deixa sem vida, apesar do semblante esgotado,
sua beleza é o que me impressiona.
Ruslan remexe na cadeira me assustando, inclina a cabeça
para o lado me analisando, esse movimento foi para me testar,
estou com medo dele, isso é fato, e ele sabe muito bem disso.
— Estou contente por ter vindo esta manhã. — Sua voz rouca,
forte e baixa navega por meu corpo e atinge meu coração de uma
maneira inexplicável. Fico sem reação e a única coisa que desejo é
fugir do que estou sentindo nesse exato instante.
Ruslan não sorri, seus olhos estão... mortos, mas ainda assim,
lá no fundo consigo enxergar que ainda sente vontade de viver. A
solidão é sua única companheira e sei o quanto ela é opressora.
— Estava... esperando por mim? — Pergunto com a voz
embargada, seu olhar intenso é a resposta. — Será que posso
gravar nossa conversa? — Ergo o gravador com as mãos trêmulas,
ele assente de leve.
— De onde és? — Congelo, ainda não estou acostumada a
escutar sua voz.
— Brasil — recosto na cadeira e passo as palmas das mãos
na calça, limpando o suor. — Ruslan, me chamo Laura e sou
colunista do jornal AS de Kharkiv, gostaria de te fazer algumas
perguntas, posso?
— Creio que sim — ele abaixa os olhos por alguns segundos
antes de voltar a se fixarem em mim.
— Quem era o Ruslan de 14 anos atrás? — Meus olhos são
atraídos para seu pescoço, sua garganta se movimenta quando ele
engole em seco.
— Um garoto simples que queria explorar o mundo — seu
olhar se perde. — Queria dar conforto à sua família, namorar,
estudar e aproveitar o que a vida tinha para lhe oferecer.
— E quem é o Ruslan de agora? — Ele me fita, sombrio.
— Um assassino — meus pelos se eriçam com sua
declaração, sinto o poder das suas palavras como um soco em meu
estômago.
— Por... — Limpo a garganta e remexo, me sentindo
incomodada com seu olhar. — Por que você matou todas aquelas
mulheres?
Ruslan não responde, apenas me encara. Noto que não se
sente confortável em me dizer, então tenho que mudar a pergunta
antes que me mande embora, só que... merda, esqueci as
perguntas. Me inclino para tirar o caderno onde estão as perg...
— Como está lá fora?— Congelo com as mãos trêmulas, olho
para ele ainda inclinada. — Em que estação estamos?
— Estamos entrando no verão — digo, abrindo meu caderno.
— Como você vive aqui? — Ruslan franze a testa e curva seus
lábios em um quase sorriso.
— Fico trancado dentro de uma cela de apenas 12 metros
quadrados há 14 anos, tenho permissão de passar 30 minutos no
pátio que é composto de celas de isolamento do tamanho de meia
garagem. — Responde dando de ombros. — Tenho uma pequena tv
onde vejo o mundo se transformar e trabalho com costura, é bom
para passar o tempo.
— Como você consegue suportar? — Ruslan fecha os olhos
por alguns segundos.
— Não consigo... — Confessa.
— Você se arrepende dos crimes que cometeu? — Minha
perna começa a balançar de novo. — Você matou mulheres que
eram amadas e tinham uma família,arrancou a vida delas sem
permissão, não acha que esse lugar é merecido pela maldade
cometida? — Ele me encara paralisado, fico assustada com a
mudança do seu semblante, olho para o lado pronta para fugir, se
acaso ele surtar.
— Eu nunca quis isso — diz entre dentes.
— Mas fez!
— Nunca quis isso... — Repete, perdendo o pouco brilho nos
olhos que tinha. — Eu estava caminhando, voltando para casa,
então vi, não consegui evitar... eu precisava... precisava fazer... e foi
quando tudo aconteceu, rápido demais... — Engulo em seco não
suportando as batidas do meu coração. — Sangue... Grito... Dor...
de repente estava aqui, dentro de uma cela, vivendo o verdadeiro
inferno!
— O que você sentiu matando-as? — Ruslan balança a
cabeça e volta a me olhar, franzido a testa. — O que você sentia
matando todas aquelas mulheres?
— Eu tenho raiva...
— Por isso que as matou? Por sentir raiva? — Ele nega com a
cabeça, se perdendo no seu pesadelo de novo.
— Só queria reencontrar...
— Quem? — Pergunto.
— A esperança...
Sinto a sala girar ao meu redor quando suas palavras
navegam por meus ouvidos. Ruslan está paralisado, o olhar fixo à
frente como se estivesse perdido dentro de si mesmo.
Um caroço se forma na minha garganta, de repente sinto
vontade de chorar, não por medo ou algo parecido, mas por ver
esse homem tão perdido assim como me sinto. Ele deseja
reencontrar a esperança trancafiado em um lugar onde nunca mais
poderá sair e eu a busco todos os dias quando abro meus olhos.
É ridículo estar sentindo isso, afinal, ele é um assassino em
série, mas por que eu me vejo nele? Por que a solidão impregnada
em seus olhos é tão parecida com a minha? Passei a vida toda
fugindo,querendo poder deitar minha cabeça no travesseiro sem ter
a sensação de que ele entrará em meu quarto a qualquer momento.
Sei perfeitamente o quanto os demônios do passado podem nos
assombrar, mas diferente de Ruslan, eu não fiz mal a ninguém.
— Você está aqui? — Seus olhos se movem até se prenderem
nos meus... Olhos vazios, desolados e solitários.
— Tens olhos lindos... — Murmura. — Azuis como o céu... —
Desvio meu olhar, aperto a borda do caderno tentando acalmar os
efeitos que ele está me causando.
— Como é a relação com a sua família depois que foi
condenado? — Mudo de assunto, Ruslan umedece os lábios e
abaixa a cabeça. — Você tem família, certo?
— Eles nunca vieram. — Revela, esfregandoseu rosto. — Não
os vejo há 14 anos.
— Você já tentou... entrar em contato com eles? — Ruslan
levanta a cabeça e comprime os lábios.
— Eles não querem ter contato com um assassino, não tiro a
razão deles, sou a vergonha da família.
— Ninguém te visita?
— Apenas o psicólogo do presídio. — Ruslan dá de ombros,
conformado.
— Essa visita aconteceu quando?
— 31 dias atrás — responde, balançando as correntes presas
em seus tornozelos.
— Você gosta de receber visitas?
— Sim! — Diz distraído, encarando as correntes.
— Se tivesse a oportunidade de sair daqui o que você faria? —
Ele fixa o olhar na pequena janela atrás de mim.
— Buscaria a verdade...
— Que verdade? — Franzo a testa, querendo saber mais do
que está trancafiado dentro de si. — Você mataria... de novo? —
Ruslan me olha, adquirindo uma expressão fria, arrepiando todo
meu corpo.
— Eu mataria uma única pessoa...
— Quem? — Ele não responde. — Por quê? Por que mataria
de novo?
— Porque não tenho mais nada a perder... — Revela se
levantando, assusto com seu movimento, meu coração salta
enquanto ele me encara. — Gostei muito de estar contigo. — Diz se
virando e indo até a porta que se abre.
— Ruslan? — Chamo, os guardas seguram seu braço. —
Quem você mataria? — Ele me olha por cima do ombro, seus olhos
me analisam com atenção, quero saber porque ele cometeria mais
um crime depois de tantos anos trancafiado.
É estupidez da minha parte querer saber tanto sobre um
assassino, mas sinto algo diferente, como se ele quisesse o mesmo
que eu.
— Quem você mataria? — Repito a pergunta.
— Quem me colocou aqui! — Imaginei qualquer resposta, mas
não essa. — Mataria quem me tirou tudo...
Os guardas o empurram, tirando-o da sala... Tirando-o de
perto de mim. Sento-me na cadeira quando minhas pernas
fraquejam, sinto lágrimas escorrerem por meu rosto enquanto
encaro fixamente a porta por onde Ruslan saiu, porque assim como
ele, também desejo matar quem me tirou tudo.
Minha perna direita balança sem parar enquanto espero
chegar a minha vez. Se passaram dois dias desde a entrevista que
tive com Ruslan, e desde então, não o tiro da cabeça.
Os pesadelos voltaram com mais força, a sensação ruim que
sinto está me sufocando e estou prestes a explodir. Esfrego as
mãos, sentindo-me trêmula, não de frio, mas de medo.
— Laura? — Olho para a porta do consultório, Olesya sorri
para mim. — Sua vez!
Entro na sala tensa, meus músculos doem de tanto que se
contraem, me sento no sofá, minha perna volta a balançar e um
desespero me invade quando Olesya se senta à minha frente.
— Soa-te bem? — Nego com a cabeça, porque não estou
bem. — O que houve, Laura?
— Eu... eu estou prestes a surtar. — Revelo com a voz
embargada e com os olhos cheios de lágrimas. — Eu não consigo
dormir há dois dias...
— Por quê?
— Os pesadelos... sua voz... suas mãos... — Olesya se
aproxima, assusto e me encolho.
— Não vou te tocar, só quero que se deite e relaxe. — Engulo
em seco e façoo que pede. — Agora fechaos olhos e inspira fundo,
depois solte a respiração lentamente. — Sua voz suave vai me
acalmando aos poucos. — Agora diga-me o que te aflige?
— Estou com medo de que me encontre. — Falo, mantendo a
respiração controlada.
— Ele não vai encontrar-te aqui! — Afirma. — O que você fez
de diferente?
— Eu... fui entrevistar um criminoso.
— Foi interessante? — Cruzo as mãos em cima da barriga e
fico com o olhar fixo no teto.
— Esquisito...
— Esquisito como? — Dou de ombros, lembrando da forma
que me olhava.
— Ruslan é perigoso, mas... senti algo diferente, como se...
como se eu conhecesse sua solidão e ele a minha. Isso faz algum
sentido? — Viro a cabeça, encarando os olhos esverdeados da
minha psiquiatra que me encara fixamente.
— É normal sentir empatia ao enxergar o sofrimento do outro.
— Ele é um assassino, acha que sofre por ter matado tantas
mulheres?
— Todo ser humano sofre por alguma causa, até mesmo os
psicopatas que não sentem amor e muito menos compaixão, é algo
complexo de entender.
— Ele não sai da minha cabeça...
— Por quê? — Engulo em seco, desvio meu olhar e encaro as
rosas dentro de um vaso em cima da sua mesa.
— Ruslan disse-me, que deseja matar quem lhe tirou tudo,
eu... eu desejo fazero mesmo. — Olesya ficaem silêncio por alguns
segundos, permitindo que minha mente navegue solitária.
— Há quantos dias você não sofre com as crises?
— Três meses, acho! — Respondo, fechando meus olhos.
— Laura, muitas vezes o medo está impregnado em nossa
mente, o mesmo nos impede de seguir nossos sonhos e realizar
nossos objetivos, é algo que deve ser moldado. — Olho para ela.
— Eu não consigo...
— Não consegue o quê?
— Não sentir medo... — Sussurro, apertando as mãos. —
Sabe, alguns dias atrás eu estava assistindo um desenho animado e
me fiz imaginar dentro dele.
— Por quê?
— Para não me sentir sozinha... para me sentir amada e
protegida... nunca ninguém me amou ao ponto de me tornar o
centro do seu mundo...
— Você já ligou para ela? — Nego com a cabeça, soltando um
soluço.
— Minha mãe não quer me ver... — O choro sai sem que eu
consiga segurá-lo. — Eu nunca a procurei...
— Por que você acha isso?
— Ela sempre ficou ao lado dele... quando eu disse... quando
falei o que ele fez, ela... ela... — Cubro meu rosto liberando o choro
preso dentro de mim, meu corpo estremece e Olesya apenas me
assiste, como todas às vezes que começo a ter crises.
— Você sente falta da sua mãe? — Assinto, me deitando
encolhida.
— Eu ainda consigo sentir seu perfume. Quando está frio, me
imagino em seus braços, mas faz tantos anos, que estou me
esquecendo da sensação que é estar ao seu lado. — Limpo meu
rosto. — Eu queria que tudo fosse diferente...
— Não podemos mudar o nosso passado, mas podemos
moldar nosso presente e fazer nosso futuro diferente.
— Como? — Pergunto para Olesya.
— Você é forte Laura, olha só tudo o que conquistou, isso é
vontade de viver, então continue caminhando. Tudo bem você
chorar, fraquejar e querer sumir, porque não podemos ser fortes o
tempo inteiro, mas você jamais deve desistir, mesmo marcada,
fragilizada e quebrada, você tem que continuar.
— E se eu perder... a vontade de viver? — Olesya chega mais
perto de mim, se sentando ao meu lado e tomando cuidado para
não me tocar.
— Nós a achamos de novo — ela sorri, seus olhos brilham e
assinto, confiando em suas palavras, porque mesmo querendo
desistir, algo ainda me segura, mostrando que tenho que continuar
para que enfim, eu possa superar.

Releio a última linha do artigo sobre Ruslan Rotam e solto um


suspiro quando finalmente termino. Andry vai criticar meu trabalho
por não ter feito muitas perguntas, não irei tirar sua razão, até
porque meio que a conversa se encaminhou para o lado pessoal.
Das perguntas que eu deveria ter feito, só duas foram feitas.
Inspiro fundo, borrifo álcool em minhas mãos e me levanto,
pronta para levar bronca do meu chefe. Meus colegas me lançam
olhares de apoio, li todo o artigo para eles que elogiaram, mas nós
sabemos como é Andry Rusol.
Ekaterina me olha quando paro em sua mesa, ela franze a
testa vendo meu nervosismo, só que ele é substituído por surpresa
ao escutar gritos abafados vindo de dentro da sala de Andry.
— O que está havendo?
— Posso ajudar-te? — Pergunta, se fazendo de desentendida.
— Estou com o artigo pronto do Ruslan, Andry disse que quer
hoje.
— Compreendo, mas ele está ocupado... — Ela se cala
quando a porta se abre abruptamente e Zhdana sai furiosa do
escritório.
— Laura, na minha sala agora. — Andry grita, me assustando.
— Boa sorte! — Ekaterina ergue o polegar para cima, inspiro
fundo e entro, deixando a porta aberta.
— Eu trouxe o artigo do Ruslan Rotam. — Falo lhe entregando
o pen drive. Andry o pluga em seu computador e com uma feição
séria começa a ler, me sento enquanto espero.
— Foram só essas perguntas? — Seus olhos enfurecidos se
prendem nos meus, seu rosto está um pouco avermelhado por
conta da briga anterior.
— Foi o que consegui...
— Você se esforçou, Laura? — Andry recosta na cadeira. —
Percebi uma certa relutância em fazer essa entrevista, pelo visto foi
um erro ter te escolhido.
— Eu fiz o possível, chegou um ponto da entrevista em que
Ruslan se levantou e saiu sem responder mais nada, só me
concederam uma hora! — Digo ao meu chefe que arqueia uma
sobrancelha me deixando irritada com sua atitude.
— Demorou três meses para a justiça me conceder a
preliminar de visita e depois mais um mês para Ruslan aceitar ser
entrevistado, entende agora porque estou desgostoso com esse
artigo? — Comprimo meus lábios, tentando me colocar em seu
lugar. — Vai demorar mais outros meses para conseguir outra
entrevista... — Ele inspira fundo, balançando a cabeça
negativamente.
— Essa não é minha área, não sou acostumada com esse tipo
de entrevista e você não pode exigir de uma colunista que fala sobre
cosméticos, uma entrevista perfeita com um assassino. — Andry
solta a respiração, ficando mais irritado.
— Você realmente se formou em jornalismo? — Abro a boca
para retrucar, mas me calo quando ele ergue a mão. — Não existe
isso de que não é sua área, aonde for mandada, você deve ir.
— Não tenho a experiência que você exige para que a
entrevista saia com perfeição, foi a minha primeiravez. Escolhi ser
colunista website porque me dou bem com as palavras e com o
computador, não com pessoas. — Ficamos encarando um ao outro,
minha respiração está um pouco acelerada, mas não irei ficar com
raiva por causa disso.
— Então é melhor se preparar, porque as coisas vão mudar.
— Como assim? — Andry desvia o olhar, fixando no artigo.
— Vou analisar com cuidado, estamos sem tempo, qualquer
coisa fazemos uma segunda parte e investigamos a vida dele mais
a fundo antes de qualquer outro jornal.
— Tudo bem!
— Diga aos seus colegas para ficarem preparados também.
— Por quê? — Andry arqueia uma sobrancelha, suspiro e saio
da sua sala sem dizer mais nada.
Vou até o refeitório esquentar minha comida no micro-ondas,
Yaroslav fica me olhando quando me sento à mesa junto a eles.
Estou com raiva e chateada, suei fazendo aquele artigo mesmo que
tenha ficado um pouco raso, mas poxa... deveria valorizar meu
esforço.
— O que há de errado? — Pergunta Justik, com as
sobrancelhas erguidas.
— Andry, óbvio! — Aksinya retruca, tirando as palavras da
minha boca. — Não se chateie...
— Vai passar, só que deu muito trabalho e...
— E ele te tirou da sua zona de conforto e bagunçou sua
cabeça. — Completa Yaroslav, assinto confirmando.
Foco na minha comida sem querer conversar, eles conhecem
um pouco sobre mim, até porque são três anos trabalhando juntos.
No começo foi difícilconviver com todos e me manter afastada,
piorou quando Justik me abraçou sem minha permissão, fiquei tão
mal que pensei que nunca mais voltaria ao normal depois de uma
das piores crises que já tive.
— Andry falou que as coisas vão mudar e que é para nós
ficarmos preparados. — Aksinya para de mastigar e esbugalha os
olhos.
— Isso não soa nada bem! — Justik resmunada, Aksinya
assente, engolindo a comida com dificuldade.
— Parece que Zhdana era amante dele. — Ela revela, mesmo
não sendo uma novidade, pelo menos não para mim. — Só que
terminaram e ele a demitiu.
— Certo, deixa-me entender — Yaroslav coloca seus braços
em cima da mesa com um olhar confuso. — Eles eram amantes e
Andry a demitiu, então aonde entramos nessa briga?
— Não entraremos na briga, mas um de nós irá ocupar o cargo
dela.
— Como dizes? — Justik balança a cabeça sem entender.
— Kharkiv está em crise, nunca que Andry irá contratar outra
jornalista. Manter funcionários é caro, por isso pegará um de nós e
colocará lá em cima. Cargo mais alto, salário mais gordo, bebê!
— Faz sentido — falo pensativa.
Depois de aproveitarmos nossa hora de almoço, todos
voltamos ao trabalho. Andry não falou mais nada em relação ao
artigo de Ruslan, nem perguntei também, simplesmente, foquei no
outro que estou trabalhando sobre a vaidade das mulheres
ucranianas.
Fico confortável com esses temas, como sou brasileira, meu
olhar é diferenciado em relação à cultura daqui. As Ucranianas por
exemplo, já nascem gostando de maquiagem, desde pequenas já
vemos algumas meninas usando, para as adolescentes e mulheres,
maquiagem é como se fosse uma peça do vestuário, indispensável,
mas o que chama a atenção são as senhoras de idade, as
vovozinhasque desfilam pelas ruas maquiadas.
A maioria dos estrangeiros se escandalizam, achei diferente
quando cheguei na Ucrânia, foi um choque cultural, apesar de ter
vivido anos na Rússia, aqui é bem diferente.Andar bem arrumada e
maquiada é uma demonstração de amor próprio, elas não deixam a
idade ou a opinião das pessoas ditarem regras em suas vidas.
Além da beleza que possuem, as mulheres daqui tem uma
personalidade forte. São destemidas, talentosas e são elas que
ditam as regras nos relacionamentos. Digo isso porque Aksinya é
uma delas, seu namoro com Justik não dá muito certo, justamente
por causa do seu temperamento. Porém, ao mesmo tempo, são
mulheres apaixonadas, cheias de amor e muito ciumentas.
Levanto meus olhos quando vejo Justik se inclinar na sua
cabine, em seu rosto há um sorriso de deboche. Olho para Yaroslav,
ele retribui o olhar sabendo que isso não vai dar certo.
— Idiota! — Aksinya diz furiosa, ela pega sua garrafinha de
água e joga o líquido no rosto de Justik, que fica surpreso com a
atitude dela, ao meu lado Yaroslav gargalha. — Juro por Deus que
te mato!
— Precisastedisso? — Ele pergunta a ela, voltando para sua
cabine, não façoideia do que Justik faloupara Aksinya, só sei que a
deixou enfurecida.
— Você não a deixa por um segundo, hein! — Digo, ele me
lança um sorriso sem graça.
— Não resisto! — Seus olhos se fixam nela, me fazendo
lembrar de Tom e Jerry.
Andry entra na sala e nos calamos de imediato. Ele nos encara
com seriedade e cruza os braços. Fico tensa com seu suspense,
prevendo algo que irá desafiar meus limites, minha intuição nunca
falha.
— Haverá algumas mudanças nesse setor. Acredito no
potencial de cada um e sei que podem ser muito mais produtivos
fora, do que presos aqui. — Franzo a testa com seu discurso, o que
ele pretende?
— O que queres dizer? — Yaroslav pergunta, confuso.
— Vocês agora são jornalistas investigativos, ou seja, irão
desvendar mistérios e fatos ocultos do conhecimento público,
especialmente crimes e casos de corrupção, que podem
eventualmente virar notícia. — A sala recai em silêncio, todos
tentam engolir essa novidade que nos pegou de surpresa.
— Como dizes? — Justik quebra a tensão.
— É isso o que ouviram, vocês não vão criar artigos do
cotidiano, faz tempo que estou querendo mudar, levar nosso setor
para outros ares, então hoje obtive a carta branca. — Andry lança
um olhar firme em nossa direção. — Quem não optar por essa
mudança, fique à vontade em recusar.
— Certo. Se eu recusar? — Pergunta Aksinya.
— Tenho certeza que tem muitos jornais precisando de
colunistas. — Ele responde, fazendo-a engolir em seco.
— Ótimo, não temos escolha a não ser aceitar, que coisa
hein!? — Yaroslav diz com sarcasmo.
— O salário de vocês terá um pequeno aumento, se
obtivermos sucesso, haverá remuneração. Chegou à chance de se
destacarem. — Andry fala me olhando. — Laura, você já tem uma
missão. Quero que compareça a uma cena de assassinato que
aconteceu de forma brutal há uma hora atrás, e obtenha o máximo
de informações que conseguir. Leve Yaroslav com você e os outros
quero que compareçam na delegacia, assim como ela, quero
informações e o suposto nome do assassino.
— É... agora iremos aproveitar a vida e deixar de ficar com a
cara o dia todo no computador. — Murmura Justik.
— Algo mais? — Andry pergunta, negamos com a cabeça,
sem conseguirmos digerir toda essa história. — Confio em vocês!
— Ele sai da sala, deixando todos atônitos.
Meu coração martela no peito sem acreditar que a partir de
hoje, trabalharei investigando, uma função que julgava ser incapaz
de fazer. Uma mudança que me abalará, mas também poderá dar
alguma emoção na vida sem graça que levo. E por incrível que
pareça, estou ansiosa por essa nova fase da minha vida.
Sempre fugi de aglomerações e cenas de violência, não me
sinto confortável perto de algo assim, prefiro me esconder e me
manter segura, mas agora devo superar esse receio por conta do
meu trabalho. Sair da minha zona de conforto é atiçar minha
ansiedade e minhas crises, porque o novo me assusta.
Meus olhos observam atentamente a movimentação à nossa
frente. Policiais bloqueiam jornalistas que tentam a todo custo
encontrar uma maneira perfeita de capturar os mínimos detalhes.
Os legistas estão atrás do muro de policiais refazendo a cena do
crime. Dou um passo para o lado, querendo ver o que estão fazendo
e como aconteceu.
— O que a gente faz agora? — Pergunta Yaroslav com a
expressão assustada.
— Não sei!
— Mas você é jornalista.
— Você também, Yaroslav! — Ele fazuma careta. — Tem sete
anos que me formei, e nunca trabalhei nessa área de investigação.
— Nem eu!
Inspiro fundo, segurando com mais força a câmera fotográfica.
Se eu me aproximar e tentar me enfiar dentro dessa aglomeração,
serei tocada e empurrada, isso me deixará apavorada e não saberei
como lidar com uma crise no meio de todos, então precisamos
arrumar outro jeito.
Olho em volta, os jornalistas estão focando apenas nessa
parte da frente, se formos por trás, talvez conseguiremos uma boa
visão da cena do crime. Meus olhos são atraídos para um prédio de
três andares e o patamar dará uma boa visão, mas chegar até lá,
resultará em ultrapassar dois policiais que estão em frenteà escada
de entrada do pequeno prédio.
— Se formos por trás, talvez conseguiremos uma boa visão e
tem aquele prédio Yaroslav, podemos ficar lá.
— Mas se todos verem? Os policiais não irão deixar. — Aperto
meus lábios e olho para ele.
— Não precisam nos ver, além do mais, todos estão focados
na frente e esqueceram daquele beco à esquerda, precisamos
chegar até lá, a sombra vai nos camuflar. — Ele assente de forma
insegura, inclino a cabeça para o lado, chamando-o para me seguir.
Com cautela contornamos todo o lugar demarcado como a
cena do crime, e entramos no beco pelo outro lado. Na nossa frente
estão os legistas e um corpo estendido no chão. Olho para trás me
certificandode que não há ninguém, nos aproximamos com cuidado
para não perceberem nossa presença.
Yaroslav anda com passos silenciosos, seus olhos astutos
navegam por todos os lados em busca de informações que nos
beneficie. Agacho atrás de um container de lixo, enrugo meu nariz
com o fedor forte e preparo a câmera. Encaro meu colega que
abaixa ao meu lado, distante o suficiente para não me tocar.
— Soa-te bem? — Pergunta, franzo a testa fitando seus olhos
atônitos.
— Você vai passar mal? Está ficandopálido! — Digo, ele nega
com a cabeça, umedece os lábios e engole em seco.
— Eu escolhi a website para não me envolver nisso, mas foi
inevitável.
— Temos que pagar nossas contas. — Yaroslav assente,
concordando. — Nosso salário vai aumentar, precisamos fazer isso.
— Andry me irrita às vezes. — Resmunga, pegando uma
caderneta para fazer anotações.
— Certo, vamos tentar nos esconder atrás daquele outro
container, creio que lá possamos escutar o que estão dizendo. —
Dou uma espiada e quando tenho certeza de que estão ocupados
demais para prestar atenção em qualquer movimentação, faço um
sinal para Yaroslav.
Corro até o outro container e me agacho o mais rápido que
posso e olho para trás, para meu colega que vem logo em seguida,
só que acaba escorregando e caindo de bunda. Reprimo um barulho
de surpresa, olho sobre o container para ver se os policiais não
perceberam nossa movimentação. Yaroslav se levanta rapidamente
e se agacha ao meu lado amaldiçoando o tombo que levou.
— Se machucou? — Pergunto, vendo-o esfregar seu pulso
que serviu de apoio.
— Estou bem — me tranquiliza, solto a respiração que
segurava e volto a prestar atenção nos legistas.
O corpo da vítima está coberto com um pano branco, eles
refazem o caminho que supostamente ela fez, analisam em volta e
tentam supor o que aconteceu. Pelo pouco que ouvi, se trata de
uma mulher na faixa de 25 anos que foi esfaqueada dez vezes no
estômago.
Ergo minha câmera e começo a fotografar , Yaroslav se
mantém em silêncio, anotando tudo o que vê e ouve. Meu coração
acelera e sinto minha respiração falhar quando eles retiram o pano
de cima do cadáver.
Fico congelada enquanto os olhos sem vida da mulher me
encaram, seu rosto está desfigurado, ao seu redor há uma poça de
sangue, por sua barriga, saem entranhas. Bile sobe por minha
garganta ao ver a forma brutal que essa moça foi assassinada.
— Céus... — Yaroslav murmura, olho para ele a tempo de o
ver vomitar, faço uma careta e começo a fotografar. — Por isso que
escolhi ficar em uma sala. — Sussurra, se controlando.
— Conseguiu pegar algumas informações? — Ele murmura
um sim.
Inspiro fundo,dando um zoom na câmera, posiciono meu dedo
e quando vou apertar para capturar a imagem, sobressalto de susto
quando um gato negro pula em cima do container.
— Oh, merda! — Meu colega solta um grito, os olhos amarelos
do gato se fixam em mim. — Hoje eu infarto, é certeza!
— É só um gato, Yaroslav. — Ergo a mão para acariciá-lo, ele
recua um pouco, recusando meu toque. Abaixo a mão respeitando
seu espaço.
— Você gosta de gatos? — Dou de ombros, observando o
felino se afastar
.
— Eles são mais humanos do que você imagina, os felinos
representam a pura energia positiva, atraem boa sorte, e nos
ajudam a superar os desafios da vida.
— É um bom sinal ele ter aparecido?
— Creio que sim! — Olho além do animal quando algo me
atrai, mas não consigo ver nada, apenas sombra. Inspiro fundo e
volto a prestar atenção no real motivo por eu estar aqui.
A noite começa a cair, e com ela vem o frio insuportável.
Depois de uma hora, mais ou menos, o IML recolhe o corpo da
moça para levá-lo ao necrotério. Desligo a câmera e assinalo para
Yaroslav irmos embora daqui. Ele assente aliviado, me levanto
sentindo os músculos das minhas pernas, rígidos por ter ficado
muito tempo agachada. Meus olhos são atraídos novamente na
direção em que o gato se foi. Solto um suspiro e sigo meu colega
em silêncio, com as fotos e informações da nossa primeira matéria
investigativa, obtidas com sucesso.

No dia seguinte, reunimos todos na sala de Andry que nos


encara com seriedade. Seu rosto estampa puro descontentamento,
nada do que ele imaginava aconteceu. Foi um desastre total.
— Expulsa? — Sibila entre dentes para Aksinya.
— A delegacia estava lotada de repórteres, então pensei que
talvez se entrasse pelos fundos e conversasse com alguém, eles
poderiam me fornecer o que procurava, mas quando encontrei o
detetive, ele simplesmente me expulsou dizendo que não aguentava
mais ver jornalistas — ela explica com nervosismo.
— E você, Justik?
— Eu? — Ele nos olha inquieto. — Tentei entrar no meio da
aglomeração de repórteres para acompanhar a entrevista, mas eles
não permitiram, então fui empurrado, acotovelado e pisoteado
quando seguiram o detetive para dentro da delegacia.
— Não descobriu nada?
— Nada! — Justik engole em seco, Andry inspira fundo.
— Nome do assassino?
— Não foi divulgado.
— Laura? — Olho para meu chefe batucando nas fotos que
tirei. — Se aproxime e me diga o que vê nessas fotografias.—
Passo as mãos sobre a calça para limpar o suor, e dou um passo à
frente, encarando cada uma das que tirei.
— Hum... ficou embaçadas, né? — Digo, enrugado meu rosto.
— E agora? — Andry ergue as sobrancelhas. — Você acha
que ficarão boas para a matéria, Yaroslav? — pergunta a ele que
sobressalta e se aproxima, olhando atentamente as fotos.
— Essas duas ficaram boas... — ele coloca o dedo na foto do
gato negro, a única que prestou. — Essa também — a seguinte tem
como perfeição o corpo da vítima coberto por um pano branco.
— Diga-me, o que descobriu?
— A vítima aparentemente tem 25 anos de idade, filha de um
políticoda Kharkiv, ela foiarrastada para o beco onde foimorta com
doze facadas, tendo seu rosto desfigurado.Ainda não se sabe quais
foram as motivações, mas suspeitam que o assassino não tem
ligação com ela. — Yaroslav recua um passo e sorri vitorioso para
Andry. — Foram as únicas informações que obtivemos.
— Céus... — Nosso chefeesfregaa testa. — Vocês foram um
desastre, mas tudo bem, vou relevar! — Seus olhos se prendem em
cada um de nós. — Quero que continuem investigando esse caso,
preparem a matéria com o pouco que tem, e descubram em primeira
mão o nome do assassino.
— Eu continuo indo para a delegacia? — Pergunta Aksinya,
Andry coloca seus óculos e a encara com descrença.
— Qual a parte do “descubram em primeiramão o nome do
assassino”você não entendeu?
— Okay, okay, entendi!
— Podem ir, quero essa matéria pronta no fim da tarde. —
Sem dizer mais nada, saímos do escritório e voltamos para nossa
sala, contrariados.
— O detetive avisou que se me visse lá outra vez ele me
colocaria por 24 horas em uma cela. — Aksinya revela com espanto.
— O que você fez para ele ficar com tanta raiva de você? —
Pergunto, borrifando álcool na minha mesa e em minhas mãos.
— Eu o chateei... vamos dizer que eu meio que me tornei um
carrapato insistente. — Ela morde seu lábio inferior, perdida e sem
saber o que fazer.
— Ela saiu gritando com dois policiais a arrastando para fora -
“Me soltem, me soltem, eu só quero o nome do assassino, vocês
não podem fazer isso comigo! É o meu trabalho. Me solteeeeem!” —
Justik conta de forma divertida tirando uma gargalhada de Yaroslav
e deixando Aksinya vermelha de raiva.
— Olha só quem fala, o bonitão que foi pisoteado pelos
jornalistas. — Ela retruca, apontando para os arranhados dele. — E
ainda ficava pedindo “Oi por favor, posso passar para escutar o
detetive?Com licença,você poderiame deixarpassar?” Logo para
os repórteres que estavam loucos para ter respostas, levou um
empurrão bem dado.
— Fui educado...
— E se fodeste! — Aksinya o fuzila com os olhos enquanto
Yaroslav ri sem parar, olho para ele.
— Por que fica rindo deles, Yaroslav? — Ele me encara,
comprimindo os lábios. — Você caiude bunda tentando se esconder
dos policiais, e ainda vomitou ao ver o cadáver da moça!
— Ele caiu? — Pergunta Justik.
— Sim, caiu! — Todos de repente começam a rir, se inclinam
ao sentirem dor na barriga, balanço a cabeça vendo-os
descontrolados.
— Somos os piores jornalistas da Ucrânia. — Aksinya diz entre
as risadas.
— Sim... — Murmuro, começando a escrever a matéria.
Durante algumas horas fico inerte montando a matéria com
base no que descobrimos com o nosso desastre de investigação.
Não demora muito para eu terminar, envio para meus colegas para
analisarmos com atenção.
— Eu acho que ficoubom. — Diz Justik. — Apesar das poucas
informações você conseguiu colocar um mistério nos
acontecimentos, com toda certeza irá deixar os leitores encucados.
— Aprovo! — Aksinya ergue os polegares em sinal de positivo.
— Se colocar a foto do gato, vai ficar melhor ainda. — Brinca
Yaroslav, reviro os olhos.
— A questão agora, é se Andry vai aprovar! — Resmungo,
todos respiramos fundo, calados e pensativos.
— Não posso perder esse emprego, sou a única que está
sustentando a casa e meus pais estão desempregados. — Aksinya
confessa, chateada.
— Não vamos, — Justik diz com a voz doce — essa foi a
nossa primeira vez, a segunda vai ser melhor, a terceira será mais
fácil, quando percebermos, estaremos sendo os melhores jornalistas
investigativos de Kharkiv. — Seus olhos brilham de esperança.
— Sonhaste alto agora... — Desdenha Yaroslav.
— É sonhando alto, que se conquista pelo menos, a metade
dos seus objetivos... É através dos sonhos, que criamos motivos
para lutar todos os dias. — Rebate Justik.
— Sonhos se tornam realidade quando se luta por eles. —
Aksinya fala, encarando Justik.
— Qual seu sonho, Laura? — Pergunta Yaroslav, abaixo meus
olhos e dou de ombros.
— Não tenho um sonho... — Sussurro, calando-os com minha
declaração.
Não me lembro de um dia sequer, que sonhei por algo. Desde
que ele apareceu em nossas vidas, comecei a lutar para sobreviver.
Tracei metas para me tirar do seu caminho, e desde então, eu fujo,
sobrevivo e vivo um dia de cada vez.
— Laura? — Olho para cima, Bogdana vem em minha direção,
ela é a recepcionista da AS. — Pediram para te entregar. — Ela
estende um botão de rosa vermelha, fico paralisada encarando-a.
— Para mim? — Ela assente. — Quem foi?
— Não sei boneca, só pediram para te entregar — estico a
mão e a pego, sentindo a textura de cada parte da rosa, das pétalas
que se parecem com seda, delicadas, frágeis e suaves.
— Uau... admirador secreto, Laura? — Aksinya se aproxima.
Não respondo porque estou fascinada demais com o fato de pela
primeira vez eu ter ganhado uma rosa.
— Tu sabes o significado das rosas vermelhas? — Bogdana
me olha divertida, assinto.
— Amor... — Balbucio. Mas afinal, quem é o responsável por
ter me enviado ela?
— A rosa vermelha é associada com a perfeição e a beleza,
são uma forma consagrada pelo tempo de dizer “eu te amo” —
Bodgana diz, olho para ela ao acordar do transe. É ridículo isso,
quem me daria uma rosa sendo que não tenho contato com
ninguém?
— Eu acho que foi um engano — digo, devolvendo a rosa. —
Justik, você comprou essa rosa para Aksinya? — Ele me olha e
nega com a cabeça.
— Não, e porque eu iria comprar uma rosa para ela?
— Eu nunca iria aceitar! — Ela rebate, aborrecida.
— Yaroslav?
— Sem chances... — Responde, sorrindo com minha
confusão.
— Aceite que tem alguém te bajulando — Bogdana arqueia
uma sobrancelha, seus olhos claros brilham de entusiasmo.
— Não faço ideia de quem possa ser.
— E eu não tenho a resposta, boneca. — Ela retruca, divertida.
— Bom, agora preciso ir. Não posso deixar a recepção vazia.
— Obrigada — Bogdana pisca um olho e acena para todos
nós.
— Beijos... — Se despende, saindo da sala.
Fico encarando a rosa sem conseguir dizer nada. Meu coração
está feliz por essa demonstração de carinho, mas ninguém vem à
minha mente. As únicas pessoas que tenho contato, são meus
colegas de trabalho e a Gana... talvez tenha sido ela, um gesto de
agradecimento por estar cuidando do seu carro.
No final do dia, entregamos a matéria para Andry que apenas
assente e nos dispensa em silêncio. Se gostou ou não, saberemos
somente amanhã quando liberar no jornal.
Estaciono o xoxo me sentindo exausta, querendo apenas
minha cama ou o meu sofá. Fico esperando Gana descer, olho para
rosa estendida no banco passageiro, tentando entender quem a fez
chegar até mim.
Me assusto quando Gana bate na janela, pego minhas coisas
e desço, lhe entregando sua chave. Seu rosto está triste,
despertando minha preocupação.
— O que houve? — Pergunto, encarando-a com atenção.
— Nada, hoje acordei indisposta. — Diz, rodando a chave. —
Não se preocupe, estou bem!
— Tem certeza?
— Por que não? — Balanço a cabeça vendo que há algo de
errado, só que ela não vai revelar.
— Obrigada.
— Pelo quê?
— Pela rosa — ela franze a testa, abre e fecha a boca
buscando alguma palavra, aperto meus lábios já sabendo que não
foi ela.
— Hum... não foi eu!
— Certo, pensei que talvez fosse você, por eu estar cuidando
do seu carro. — Gana eleva seu ombro direito, sem graça pelo mal
entendido.
— Isto aíé coisa de namorado, ou de alguém que está de olho
em você.
— Não conheço quem possa ter me dado.
— Por isso que são denominados admiradoressecretos, dona
Laura.
— É ridículo... — murmuro, não quero que se aproximem de
mim, não posso dar algo que nunca recebi...
— O que és ridículo? — Levanto o olhar, Gana cruza os
braços, me analisando. — Ridículo ser amada por alguém?
— Amada?
— Laura, eu até compreendo eu nunca ter conseguido formar
uma família,porque sou prostituta, mas você? — Ela me olha dos
pés à cabeça. — Olha só para você, Laura. És linda, inteligente,
estudada e trabalhadora! Você merece ser amada, mas para que
isso aconteça, deves permitir que ultrapassem a barreira que
construiu. Fugir não é o caminho, se fechar não és a solução, e se
trancafiar nunca será sua libertação!
Abaixo a cabeça, Gana tem toda razão, só que não consigo...
não posso permitir que isso aconteça. Sozinha no meu mundo
posso controlar a situação, e permitir que alguém entre, é... estar
exposta ao sofrimento, é viver o inferno que eu vivi. Não quero
passar por tudo o que passei de novo.
— Eu acho que... que prefiro deixar do jeito que está. — Gana
suspira, sorri e se aproxima com a intenção de colocar as mãos em
meus ombros, recuo três passos, impedindo que me toque, ela
paralisa surpresa.
— Preciso ir trabalhar, qualquer coisa é só me ligar. — Diz sem
graça, ela entra no carro e arranca para longe de mim, magoada
com a minha reação.
Olho para a rosa e depois para o lixo ao meu lado, faço
menção em jogá-la fora,mas desisto, prefiromantê-la comigo. Subo
até meu apartamento, coloco a mão na porta e encosto meu ouvido
nela, ouço conversas vindo da tv, mas não é de desenho animado.
Meu corpo entra em alerta imediatamente, minha pulsação
acelera, e se... e se ele tiver me encontrado? Engulo em seco,
seguro a maçaneta e giro, a porta não está trancada como a deixei
de manhã, será que a deixei destrancada?
Dúvida me invade, entro com passos receosos, meus olhos
navegam pela escuridão da minha casa, a sala está sendo
iluminada apenas pela televisão. Minhas mãos tremem, aperto com
mais força a rosa. Deixar a porta destrancada pode ter sido um
descuido meu, mas as luzes desligadas? Não... não, eu nunca as
deixo desligadas!
Olho para a tv, o presídio Colony 100 está sendo filmado, há
uma grande aglomeração de pessoas, policiais, bombeiros e
detentos ajoelhados no chão com as mãos na nuca, não consigo
escutar o que a repórter diz. Meu coração bate tão alto que ofusca
qualquer outro barulho.
Me aproximo e quando leio a causa da reportagem, fico tonta.
Houve uma rebelião 24 horas atrás resultando na fuga de três
detentos. Criminosos invadiram o presídio depois que um mafioso
foi preso, começando assim uma rebelião que ainda não chegou ao
fim.
Dou mais um passo à frente olhando fixamente para a
televisão, meu coração salta quando a fotode Ruslan é estampada,
eles pedem que qualquer pessoa que o tenha visto, entre em
contato com urgência, pedem também, que mantenhamos distância
por ele ser um criminoso perigoso e imprevisível...
A repórter continua falando, mas paro de prestar atenção ao
sentir algo atrás de mim. Fico paralisada, minhas mãos tremem e
minha respiração acelera sem coragem de olhar para trás. Minha
casa foi invadida, e quem quer que seja, está atrás de mim, e sabe
quem sou.
Me viro lentamente, estremeço quando seu corpo largo e alto
bloqueia a porta. Engulo em seco ao observá-lo fechar a porta,
pavor me invade. Estou trancada com um desconhecido... quero
gritar por ajuda, para que o tirem daqui, só que não consigo, há um
caroço na garganta impedindo que qualquer palavra seja dita.
Ele está usando um capuz sobre a cabeça impedindo que seu
rosto seja exposto. Ele se vira, ergue a cabeça e crava seus olhos
em mim, a tv ilumina sua feição fazendo meu coração falhar as
batidas. Prendo a respiração quando seus lábios se curvam em um
sorriso sutil. A rosa cai das minhas mãos enquanto encaro o rosto
de Ruslan Rotam, o assassino de mulheres.
— Te encontrei...
Não consigo me mover, meu coração bate tão acelerado que
temo um ataque. Preciso retomar o controle para que eu possa me
salvar, mas seus olhos... seus olhos me prendem de uma maneira
inexplicável, é como se ele tivesse poder sobre mim, e isso me
assusta... me apavora!
Ele dá um passo à frente, eu recuo um passo balançando a
cabeça. Ruslan matou mulheres por motivos fúteis, ele falou que
quando saísse mataria de novo, que não tinha mais nada a perder.
Estou em seu caminho, vulnerável e sozinha, não conseguirei
nenhuma ajuda, meus vizinhos se mantêm surdos e mudos, eles
não se importam com o que está acontecendo.
Lutei tanto para morrer aqui. Consegui que tirasse as mãos
sobre mim, fugi sem deixar rastros... agora me vejo outra vez
aprisionada por um assassino de olhos vazios e frios.
Minhas costas colidem com a parede, não tinha percebido que
andava para trás, tentando ao máximo colocar distância entre nós.
Fecho as mãos que tremem sem parar, Ruslan tira o capuz e
bagunça seus cabelos sem desprender os olhos de mim.
— O qu-e-e... — Engulo em seco. — O que faz aqui? — Ele
apenas inclina a cabeça para o lado sem dizer nada. — Você
invadiu minha casa, eu vou... eu vou chamar a polícia... — Ruslan
ergue as sobrancelhas, céus... o que se passa em sua mente?
ReajaLaura, reaja!Digo mentalmente e lembro que estou com
minha bolsa, posso estar sendo idiota, mas enfio a mão lá dentro e
apanho meu celular, preciso fazer... Solto um grito quando ele para
à minha frente, deixo a bolsa cair e uma lágrima escorre por meu
rosto, ele é muito alto e... grande!
— Dá-me isso que tens na mão — sua voz é firme, aperto o
celular, não posso lhe entregar a única coisa que pode salvar minha
vida.
— Você-ê invadiu minha casa... — sussurro com a voz
embargada. — Eu vou gritar se não for embora. — Me encolho
quando ele pega o celular da minha mão sem me tocar e sem ser
agressivo, ele se inclina para baixo, apanha minha bolsa e se
afasta.
— Tu és minha única alternativa. — Olho para ele que coloca
tanto a bolsa quanto o celular em cima da pequena mesa. Ruslan
vai até a porta, tranca e retira as chaves, colocando-a dentro do
bolso do moletom.
— Alternativa? — Pergunto confusa, tentando ganhar tempo
até pensar em uma possibilidade de fugir.
— Sim, Laura! — Ele me olha. Ruslan esfrega seus dedos um
no outro, reparo também que suas mãos estão trêmulas, suas
roupas estão desgastadas e sujas.
— Eu não tenho dinheiro... nem bens e... e... — Solto um
soluço, olhando para todos os lados menos para o assassino diante
de mim. — Vá embora, prometo não dizer nada à polícia, só não...
só não me machuca... — As últimas palavras saem sussurradas
como súplica, foi assim que eu disse quando... quando ele estava
com as mãos em mim, me tocando sem que eu permitisse, me
machucando e...
— Não irei machucar-te — Ruslan me olha com cuidado.
— Não? — Mordo meu lábio inferior. — Você mata mulheres...
— Solto um grito estridente quando sinto algo encostar em minhas
pernas, meu coração salta do peito, olho para baixo ao escutar um
miado. Olhos amarelos me encaram, ele ronrona esfregando em
mim, franzo a testa, já vi esse gato... ergo a cabeça e encaro
Ruslan.
— Rony é um bom garoto — ele diz, apontando para o gato
que ainda se esfrega em mim, mas meu pavor não é esse.
— Você... ele... vocês estavam lá... — Minha voz sai vacilante,
Ruslan passa a língua no seu lábio inferior, range os dentes e
desvia o olhar. — Foi você... você disse que mataria...
— Uma única pessoa. — Completa com a expressão irritada.
— Você estava lá... aquela moça foiassassinada e... você está
aqui... — Ruslan fica calado me encarando, calafrios percorrem
minha espinha e nuca, ele está me assustando, nada do que diz me
acalma, apenas me apavora.
— Eu estava... te seguindo — confessa, inspirando fundo.
— Me seguindo? — Encosto mais na parede desejando que
fosse uma porta.
— Sim...
— O que você quer de mim... Céus, como conseguiu fugir da
Colony 100? — Ruslan se senta no braço do sofá com as mãos
entrelaçadas, a luz da tv esculpe seu rosto perfeito e beleza
ofuscante.
— Não foi fácil...
— Como um detento na prisão de segurança máxima,
monitorado em tempo integral conseguiu fugir? — Pergunto pasma,
me encolhendo de medo até do pobre gato. — Volodymyr me falou
que é impossível haver uma fuga, o complexo todo é rodeado por
um muro com várias camadas de arame farpado, se algum preso
conseguisse passar por cima iria cair no meio do nada sem entrada
e nem saída. — Ruslan fica me olhando, inspiro fundo tentando me
acalmar. — E tem os guardas armados nas torres que vigiam esses
corredores, eles têm ordem de atirar se ver algum preso tentando
fugir, não há falha, como conseguiu?
— Tudo tem falhas, nada é perfeito...
— Tem os cães, como passou por eles? — Sinto meus olhos
arregalados. — Você vivia trancafiado em uma cela pequena, só
saia algemado e... não consigo achar um jeito que justifique sua
fuga.Sua ala é isolada. Então como fugiu?O que fazaqui? Por que
me seguiu? Por que... eu?
— Levei 14 anos planejando — fala de forma tranquila,
umedeço meus lábios secos e esfrego meu rosto. — Eu vi...
— Viu o quê? — Ruslan se levanta e se aproxima de mim,
prendo a respiração.
— Teus olhos... sua alma pedindo socorro. — Congelo com
sua declaração. — Olhos da cor do céu que gritam
desesperadamente por libertação, você não é diferente de mim,
Laura. Apesar de estar vivendo no mundo, sua alma está
trancafiada em uma prisão... Você está presa em uma jaula, assim
como eu vivi durante 14 anos.
Suas palavras me chocam de forma que não consigo reagir,
quero que ele vá embora, que me deixe sozinha, só que seus olhos
me encaram diferente, como se fossem capazes de ver através dos
muros que construí em volta de mim.
— Você é um assassino...
— Sim — concorda com uma respiração longa.
— Vai embora, você invadiu minha casa e... é perigoso. —
Ruslan entrelaça seus cabelos, assisto seu movimento me
perguntando como os guardas permitiram que ele ficasse com os
cabelos maiores do que é permitido nas regras.
— Preciso da sua ajuda — ele sussurra, olhando no fundo dos
meus olhos. — Tu és a única que me entende.
— Eu te entendo? — Ruslan assente, dando mais um passo à
frente.
— Tu conheces a dor da solidão, sabes o quanto a injustiça
nos corrói aos poucos até não sobrar mais nada.
— Como pode ter certeza disso?
— Seus olhos são tristes, perturbados e solitários, não existe
sorriso nesse rosto tão perfeito como o seu... o que aconteceste
com você, Laura? — Ele estica a mão para me tocar, mas me
encolho voltando a tremer. — Por que desejo conhecer-te mais?
— Isso é ridículo — sussurro dando um passo para o lado,
chutando o gato sem querer. — Eu... eu... vai embora... — Abraço
meu corpo, minha visão fica turva por causa das lágrimas.
— Por que razão não queres isto? — Olho para ele sem
entender, sua expressão está confusa.
— Você é um assassino condenado, invadiu minha casa e é
foragido da justiça. — Ruslan me encara, ele não se move, embora
esteja com o olhar fixo no meu, ele parece estar em um outro lugar.
Me assusto quando ele arfa, sua respiração acelera e suas
mãos fecham em punhos, medo me invade assistindo-o trancafiado
em algum pesadelo dentro de sua cabeça, digo isso porque... é
assim que fico quando minha crise me abate. Volto para o inferno,
revivendo tudo aquilo que ainda não superei.
— Ruslan? — Chamo ficando ainda mais assustada, suas
mãos estão tremendo mais que as minhas, seu peito sobe e desce
em uma respiração acelerada e seu rosto está pálido, meu Deus,
aonde ele está? — Ei...
Ruslan fecha os olhos, inspira fundo e quando volta a abri-los,
meu coração aperta ao ver sua dor através do brilho fosco de seu
olhar.
— Você está aqui? — Sussurro, ele assente ainda perdido. —
Você vai embora? — Minha pergunta sai como um pedido, uma
súplica para que se vá.
— Não — responde, inclinando a cabeça para o lado. — Vou
ficar!
— Aqui?
— Contigo — diz com convicção, balanço a cabeça
negativamente.
— Eu não...
— Não sou um homem ruim — suas palavras saem apertadas.
— Você assassinou mulheres e... você matou aquela moça de
ontem?
— Não!
— Então o que fazia lá?
— Te seguindo.
— Isso não faz sentido... — Balbucio, Ruslan comprime seus
lábios. — Não posso abrigar um assassino que poderá me matar a
qualquer momento...
— Para! — Ele me corta, fechando os olhos. — Não me chame
assim.
— Assim como?
— Assassino... — Ruslan me encara tão quebrado que minhas
pernas vacilam. — Não me chama assim... não você!
— Por que eu? Por que fala como se eu fosse algo importante
para você? — Ele engole em seco, desvia o olhar e olha para tv.
— Sua alma vazia é como a minha que grita
desesperadamente para ser preenchida. Você foi a única capaz de
olhar para dentro de mim, enxergar o que sou de verdade. Quando
consegui sair do Colony 100, sua imagem era a única na minha
mente, só precisei encontrar o jornal onde trabalha, te segui até
saber onde morava e aqui estou te implorando por ajuda.
— Eu não sei se posso te ajudar.
— Não tenho mais ninguém — engulo em seco, abaixo a
cabeça e aponto em direção ao meu quarto.
— Eu preciso tom... — Paro de falar quando Ruslan estende a
rosa que tinha deixado cair.
— Permita-me que eu fique. — Um nó se forma na garganta,
então foi ele... ele que me deu?
— Foi você? — Sussurro. — Você que mandou me entregar
essa rosa? — Prendo meus olhos nele, Ruslan assente e tira das
costas mais duas, só que cor-de-rosa.
— Por favor, acredite no que digo...
— Acreditar em você? — Balanço a cabeça. — Eu... eu...
preciso de ar! — Falo, ele assente me olhando fixamente, dou um
passo para o lado e quando vejo que não vai fazer nada, corro até
meu quarto, tranco a porta e deslizo até o chão, incapaz de me
manter em pé, estou apavorada.
Sinto lágrimas escorrerem por meu rosto. Faz quinze anos que
não me sinto tão encurralada, encarando o perigo dessa forma sem
conseguir me defender. Quinze anos fugindo do mal. Seco meu
rosto, ligo a luz do quarto, olho embaixo da cama e dentro do
guarda roupa com cuidado, quando me certifico de que estou
sozinha, tiro minhas roupas e vou para o chuveiro.
A água quente ao colidir na minha pele espalha um prazer em
meu corpo, relaxando a tensão dos meus músculos e me
acalmando mesmo tendo um assassino dentro de casa. Não estou
acreditando que estou ponderando em aceitar seu pedido, todas as
suas palavras podem ser mentira. Ruslan pode estar encenando,
me manipulando para que eu acredite no que diz..., mas em
nenhum momento negou ter assassinado todas aquelas mulheres,
ele se manteve calado e... por quê?
Desligo o chuveiro com dúvidas rondando minha mente,
perguntas querendo respostas e a curiosidade me tomando. Visto
meu moletom, olho para janela, se ela não tivesse grades tanto por
dentro quanto por fora, era por ela que eu fugiria.
Respiro fundo e saio do quarto, as luzes estão ligadas agora,
não há escuridão, suspiro aliviada. Meus olhos procuram por ele,
encosto na parede quando o vejo encarando alguns ingredientes em
cima do balcão, parece não saber o que fazer com eles.
— Por que não gosta do escuro? — Pergunta sem me olhar.
— A escuridão esconde muita maldade. — Ruslan levanta a
cabeça.
— Suas chaves estão do lado da sua bolsa e do seu celular. —
Assinto, indo até lá. Olho para ele e depois para as chaves.
— Se eu fugir?
— Eu te encontro.
— Se eu não quiser que você fique? — Ele pega a faca ainda
me encarando, meu coração acelera quando ele começa a picar o
tomate.
— Eu vou embora. — Declara, largando a facade formarude.
— Eu... vou embora agora! — Ele diz caminhando em direção à
porta. Ele gira a maçaneta e a abre, fico surpresa por estar aberta.
— Perdoe-me por ter te assustado. — Dizendo isso ele sai, batendo
a porta em seguida.
Solto a respiração estranhando o fato de ter sido tão fácil tirá-lo
daqui, mas por que me sinto mal por isso? Fico encarando as rosas
dentro de um copo com água, ele se preocupou em mantê-las bem,
me aproximo e acaricio as pétalas.
Ruslan disse que não tem ninguém, na entrevista confessou
que ninguém o visitava, e que sua famílianão queria contato com
um assassino. Ele foi preso quando completou 18 anos, viveu em
dois presídios antes de ser sentenciado a prisão perpétua, sendo
trancafiado no Colony 100 e declarado o homem mais perigoso da
Ucrânia.
Olho para porta, ele está sozinho, não tem dinheiro, não tem
amigos e muito menos comida. Está foragido e só tem a mim...
céus, por que estou pensando em ajudar um criminoso?
Seus olhos vazios me dizem coisas bem diferentes do que é
falado, tem alguma coisa de errado nessa história que está
despertando minha curiosidade.
Inspiro fundo e vou até a porta, nunca fiz nada de idiota.
Sempre fugi, tentei gritar para todos dizendo o que estava fazendo
comigo e muitos não acreditaram, me condenaram, me
apedrejaram, foram quinze anos vivendo sozinha sem permitir que
ninguém se aproximasse. Eis que farei a primeira burrice da minha
vida.
Abro a porta e paraliso ao vê-lo encostado na parede do outro
lado com os braços cruzados, seus olhos encaram seus tênis
surrados. Ele sabia que eu não o deixaria no frio passando fome,
seu olhar se encontra com o meu. Respiro fundotomando a decisão
que poderá me levar a morte, porém, preciso me arriscar, enfrentar
o desconhecido, permitir que entrem em minha vida, mesmo que
seja um criminoso.
— Eu te ajudo.
A solidão é a sensação mais angustiante que o ser humano
pode sentir, ela nos deixa vulneráveis, desamparados e acima de
tudo, sozinhos. Ela é opressora, te envolve em um casulo e te deixa
como um nada.
Hoje ela se tornou minha única companhia, junto a ela vi o
tempo passar por essas grades e pela pequena televisão. Através
da minúscula janela da minha cela, eu vi a neve, a chuva e os raios
solares, tudo sem poder tocar... sem poder sentir.
Luto a cada dia para não perder o único fio de esperança que
me mantém respirando, quero poder voltar ao mundo, sentir a brisa
em meu rosto, a chuva colidir na minha pele e o sol me acariciar
como lábios delicados.
Minha mente se perde facilmente,durante meus dias e minhas
noites eu só tenho meus pensamentos como amigo. Às vezes ele
se torna meu inimigo, sempre me leva para o infernoonde vivi, para
os momentos de humilhação, de dor e vergonha, de olhares vazios,
olhares maldosos... Às vezes, desejo que minha mente se cale, e eu
já tentei, inúmeras vezes tentei, mas algo sempre me impede de ir
em frente, me trazendo do abismo, me fazendo questionar se o que
vivi foi realmente o inferno ou se o inferno é ainda pior
.
Me acostumei com a raiva acumulada dentro de mim, minha
voz foicalada quando o martelo do juiz concluiu minha sentença. Eu
tinha acabado de fazer dezoito anos, um moleque que tinha fervor
em conquistar uma vida melhor, que tinha sonhos e planos, sua
paixão ia muito além de reclamar por causa da pobreza, ele queria
apenas... viver!
O garoto foi calado, condenado a viver o resto da vida
trancafiado no inferno. Perdeu sua juventude, inocência e seus
sonhos. Ele ainda grita desesperado, sentado em um canto escuro
com uma alma quebrada... dilacerada.
Seu choro está se tornando silencioso, sua voz não existe, e
seu coração? Ainda pulsa, tão frágilcomo uma pétala de rosa. Esse
garoto sorria mesmo diante de tantos problemas. Seus olhos
brilhavam quando presenteava sua mãe com coisas tão simples, ou
quando elogiava sua pequena irmã que crescia acelerada. Seu
irmão e melhor amigo sempre pegando em seu pé, mas tudo foi
silenciado, apagado, quebrado.
Seu sorriso foi substituído pelas lágrimas, as brincadeiras se
tornaram agressões. Esse garoto nunca imaginou como sua vida
mudaria para sempre, ele não estava preparado para viver nesse
mundo. Ele quer sair, gritar e mostrar que ainda tem voz, só precisa
que alguém lhe dê essa oportunidade, que acredite no que fala...
Se eu tenho esperança de sair daqui? Sim, acredito em
milagres, porque é isso que me mantém vivo e respirando, mesmo
querendo desaparecer definidamente.
Inspiro fundo e expiro conforme o ritmo dos meus exercícios
aceleram. Todos os dias, uso os únicos 30 minutos que tenho em
um pátio coberto por grades, maior que minha cela, para me
exercitar. Essa rotina ajudou a manter minha mente menos doente e
no final do dia me ajuda a dormir melhor, relaxa meus músculos e
me mantém forte, porque aqui você tem que estar preparado para
tudo.
São guardas filhos da puta te espancando, detentos sedentos
por sangue, situações tensas que podem te levar ao extremo. Se
não estiver preparado, você não suporta um terço do que realmente
acontece dentro dessa prisão ou de qualquer outra.
Eu entrei com uma alma pura, me tornei um lunático,
assassino e doente, sujei minhas mãos com sangue, fiz coisas que
nunca pensei que faria. Tentei tirar minha própria vida e passei dias
na “a casa”.
Todos nos referimos à solitária como “a casa”, são antigas
celas de isolamento nos porões do Colony 100, embora seja
proibido deixar um detento por mais de 14 dias trancafiado nela, já
me deixaram por vinte e cinco dias. Foram momentos perturbadores
que jamais pensei ser capaz de suportar tanta humilhação.
Guardas não estão preocupados com o nosso bem estar,
somos a escória da sociedade, o lixo que deve ser jogado fora.
Somos assassinos, estupradores e ladrões. Somos a falha de uma
sociedade egoísta onde o poder fala mais alto.
Ainda me lembro da chapa dura de metal que usava como
cama, do frio que sentia por não ter um pedaço de pano para me
cobrir e da comida feita com desprezo naqueles dias em que passei
lá. Tinha apenas uma pequena pia e uma privada. É isolamento
completo do mundo exterior, isso acaba com qualquer mente sadia.
Alongo meu corpo utilizando meus últimos meros minutos.
Olho para cima, a grade me impede de ver com perfeição o céu
azul... azul como os olhos de Laura.
Quando a vi pela primeira vez, meu coração acelerou. Havia
anos que não ficava em frente a uma mulher, e ver uma depois de
anos é... diferente. Só que o que senti não foi atração sexual, foi
algo mais forte, foi como se existisse uma conexão entre nós.
Olho para o guarda que bate na grade, ele pede que eu me
aproxime. Sou algemado e retirado da jaulapara ser devolvido à
minha cela... para a minha casa que é a melhor definição a ser
dada.
— Cabeça na parede, Ruslan. — Pede um deles, faço o que
ordena, enquanto outro segura meu braço, ele abre minha cela. Sou
colocado para dentro, quando uma das grades é trancada, coloco as
mãos na abertura para que tirem as algemas, segundos depois sou
trancafiado como um animal.
Meu quarto – me refiro sempre assim porque aqui não é uma
casa – ele tem apenas 12 metros quadrados, uma cama, máquina
de costurar, uma pequena tv grudada na parede e uma privada ao
lado de uma pequena pia. Há uma mesa e um pequeno armário
onde guardo meus utensílios de higiene que se resume apenas a
um desodorante e sabonete.
Retiro minhas roupas para eliminar o suor da pele, com uma
caneca, tomo meu banho pegando água da pequena pia. Nunca
reclamei do fato de ser tratado dessa forma, aqui estamos pagando
pelos crimes que cometemos, não morando em um resort.
O resto do meu dia eu costuro bolsas para o presídio, leio
livros que me disponibilizam, e assisto tv. Seria entediante se não
estivesse acostumado com isso.
Silêncio é o rei dessa ala, raramente escuto conversas e
quando há, são brigas entre colegas de cela. Sou deixado sozinho
desde o dia em que esfaqueei meu colega, três anos atrás, fui
considerado um perigo para qualquer um, desde então vivo só eu, a
solidão e o gato negro que vem todos os dias para minha cela pela
janela.
Fico observando-o sentado enquanto olha para fora, Rony não
se intimida, é um companheiro que eu estava precisando, mas
confesso que nunca entendi esse gato, dos anos que está comigo,
ainda é um mistério.
Encaro o teto lembrando dela, fiquei tão assustado ao ver
tamanha tristeza naqueles belos olhos, que era como se eu
estivesse vendo os meus próprios. O que fizeram com ela para que
roubassem seu brilho? Ela queria tão desesperadamente saber
quem eu mataria, que só reforçou minha certeza de que Laura foi
quebrada, se eu fosse solto... se tivesse uma oportunidade...
Assusto com o barulho de cadeados, me levanto rapidamente
e me viro de costas com as mãos para trás, ando quando um dos
guardas ordena que eu me aproxime. Ele me algema e me tira da
cela, me levando para a sala do psicólogo Kirill.
Depois de 31 dias sem visitas, recebi duas, um alívio para
quem fica dias ou até mesmo semanas sem conversar com
ninguém. Os dois guardas trocam minha algema por correntes que
vão até o meu tornozelo, desse modo posso ficar mais livre
enquanto converso com Kirill, ele é um cara bacana e costuma me
dizer tudo o que está acontecendo do lado de fora.
Sou colocado sentado em frente à sua mesa, estranho o fato
de ainda não ter chegado. Olho de relance para um dos meus
guardas encostado na parede me observando, eles sempre
direcionam olhares desconfiados em minha direção, não confiam
nem um pouco em mim.
Balanço a perna direita, Kirill não é de se atrasar, nunca
compareci a uma sessão sem ele na sala, o que reforça minha
teoria de que aconteceu alguma coisa, principalmente pela
movimentação que estou escutando.
Tento não olhar de novo para o guarda, ele pode desconfiarde
que estou planejando alguma coisa contra ele e... talvez eu esteja.
Meus olhos se prendem na janela, um helicóptero da polícia paira
sobre o ar. Franzo a testa sentindo uma tensão atrás de mim, os
dois guardas sussurram.
Escuto disparos, meu coração salta, olho para trás a tempo de
ver um dos guardas sair pela porta com o comunicador explodindo
com informações.O outro guarda retira sua arma e se posiciona em
direção à porta, de costas para mim.
Tudo o que escuto é o suficiente para aproveitar e tentar sair
daqui. Foram anos pensando em algo e minha única alternativa era
uma rebelião, o que nunca aconteceu, mas parece que minha sorte
chegou.
Seguro as correntes para não fazer barulho, me levanto
lentamente e vou até o guarda que esqueceu que dentro desse
consultório há um assassino imprevisível. Solto as correntes e
contorno em seu pescoço, pegando-o de surpresa.
O guarda se debate enquanto aperto a corrente em seu
pescoço, não irei matá-lo, só preciso que desmaie para ver a
situação do lado de fora. Alguns segundos depois ele começa a
perder seus sentidos, seu corpo pesa e eu o deito no chão já sem
consciência.
Procuro pelas chaves das correntes, encontro um bolo delas e
começo a testá-las uma por uma, depois de alguns minutos consigo
soltar meus tornozelos e meus pulsos, solto um suspiro longo.
Apanho sua pistola e me encosto na parede, seu companheiro
vai vir aqui e será a minha chance de sair por essas portas
trancadas. Os barulhos abafados me instigam a continuar, não
importa como, eu preciso sair daqui.
Engatilho a arma e inspiro quando a porta é destrancada,
conto até dois, me viro e aperto o gatilho, disparando duas balas
contra a perna do outro guarda. Ele urra de dor ao cair no chão,
seus olhos se prendem nos meus, surpresos.
— Perdoe-me, mas preciso sair daqui — digo a ele que geme
de dor.
— Estás sendo burro — retruca, apertando os dentes com a
dor.
Vou até ele, apanho seu cartão de identificação, seu
comunicador e um bolo de chaves. Pode ser burrice, mas é a minha
única chance. Olho para o guarda mais uma vez, desejando nunca
mais o ver.
Deixo-o no corredor sangrando e sigo em frente, meus olhos
se prendem nas câmeras de segurança, preciso primeiro desligá-
las. Foram anos andando por esses corredores, gravando cada
detalhe de quando era retirado da cela.
A ala de segurança máxima está tranquila, o que quer dizer
que a rebelião está acontecendo na ala de reincidentes ou na
aciaria[1] onde os detentos trabalham. Escuto passos, congelo no
meu lugar e olho através da parede do corredor, alguns policiais
vestidos de preto, segurando fuzis e com capuz passam
apressados, estão indo na direção que dá acesso aos fundos da
aciaria.
Encaro a pistola em minhas mãos, aprendi a manuseá-la com
um dos presos da unidade 69 antes de me enviarem para cá. Nikita
estava planejando uma fuga, conseguiu contrabandear armas para
dentro do presídio sem que os policiais soubessem.
Nikita me ensinou coisas que jamais aprenderia na vida normal
em que levava. Ele me protegeu de muitos, ainda era um garoto
quando o conheci, só que ele conseguiu fugir depois de uma
rebelião que ele organizou, nunca mais o vi.
Volto a olhar pelos corredores, sigo na mesma direção dos
policiais, ergo a arma e atiro em todas câmeras dos corredores da
ala onde estou, isso me dará tempo.
Espero um pouco, até que escuto passos, dois policiais da
unidade especial vão em direção à porta de saída alguns metros
adiante, me preparo, respiro fundo, engatilho a arma e me viro,
disparando contra eles, acertando suas pernas e pegando-os de
surpresa.
Os dois policiais soltam gritos de dor, vou até eles e afasto os
fuzis com meus pés. Tenho poucos minutos para executar meu
plano. Encaro um dos policiais baleados, um brilho de medo e pavor
transluz seus olhos.
— Não irei matá-los — digo, me inclino e soco seu rosto,
fazendo-o desmaiar de imediato, faço a mesma coisa com o outro
que está tonto pela perda de sangue.
Não perco nenhum segundo a mais, tiro minhas roupas e troco
pelas do policial, arrasto os corpos até um dos corredores onde sei
que não passará ninguém por agora. Com minhas roupas de
detento limpo o máximo de sangue que consigo, apanho um dos
fuzis, coloco a touca para esconder meu rosto e sigo em direção à
porta que levará a tão sonhada liberdade.
É tão irônico como a nossa vida pode se tornar uma montanha
russa, sempre fugi do perigo, mas hoje estou aqui de frente para
ele, pronta para permitir que ultrapasse a linha que jamais ninguém
ousou passar.
Seus olhos verdes são como as folhas do outono desenhando
um caminho pelo qual jamais trilhei, elas não caem por que querem,
e sim, porque chegou sua hora. Dou um passo para trás, abrindo
mais a porta que é praticamente meu coração, permitindo a sua
entrada.
— Tens certeza? — Ele pergunta se desencostando da
parede.
— Não — respondo com sinceridade. — Você sabia que eu
aceitaria você aqui? Por isso que estava esperando?
— Sou um enigma para você, — diz entrando em casa — mas
tem o Rony, não iria embora sem pegá-lo. — Olho para o gato em
cima do sofá, dormindo como se nada nesse mundo fosse digno de
sua atenção.
— Eu não tenho outro quarto — fecho a porta e me encosto
nela.
— Agradeço-te muito — Ruslan me encara, meus pelos
eriçam. — Não te farei mal! — Assegura, mas só o tempo dirá.
— Nunca fiz isso...
— Fez o quê? — Desvio do seu olhar e fito as rosas.
— Você deverá dormir no sofá, não sei se tenho cobertas o
suficiente, como pode ver, não vivo no luxo. — Volto a encará-lo.
— Não faço ideia do que é viver no luxo — rebate com uma
respiração funda.
— A políciaestá atrás de você — Ruslan comprime os lábios e
assente, tirando sua blusa de moletom e ficando apenas com uma
camisa cavada mostrando seus braços definidos, engulo em seco
analisando seu corpo. Como conseguiu se manter tão em forma
assim?
— Posso ser mais inteligente que ela — arqueio uma
sobrancelha, Ruslan curva seus lábios em um sorriso discreto. — Já
lidei com coisa pior...
— Como o quê? — Ele se senta no sofá, sustentando seus
braços nos joelhos enquanto assiste o desenho do Pernalonga.
— Quando se estás preso, tens que estar preparado para
qualquer ocasião. Estamos sempre dividindo cela com homens
ruins, sem escrúpulos e sem compaixão, eles fazemcoisas horríveis
com você se não se cuidar.
— Te machucaram? — Ruslan assente sem dizer nada, seu
olhar ainda está fixona tv. — Mas talvez seja merecido, não? — Ele
me olha com a testa franzida. — Você matou mulheres e... céus,
estou acolhendo um assassino!
— Não penses demasiado nisso — diz, esticando o braço para
acariciar o gato. — Apenas confie em mim.
— Confiar em você? — Pergunto. — Eu nem te conheço e
você é um...
— Estás arrependida? — Ele me olha com pesar, solto um
suspiro e nego com a cabeça.
— Não quero problemas.
— Não vai ter — assegura com confiança.— Tens namorado?
— Sua pergunta me pega de surpresa, ele me encara com
seriedade.
— Por quê?
— Seria um problema ele aparecer aqui e me encontrar. —
Mordo meu lábio, se eu dizer que tenho... — Não minta!
— Não vou mentir.
— Seu olhar está diferente, você ia mentir.
— Não, não ia!
— Sim, você ia! — fecho meus olhos por um segundo.
— Não tenho namorado. — Ruslan assente, suspirando
aliviado.
Ficamos em silêncio, eu absorvendo tudo o que está
acontecendo e ele assistindo desenho animado, só que com a
mente longe daqui. Meu estômago ronca de fome, lembrando-me
que apenas almocei.
— Você comeu algo? — Pergunto, Ruslan não responde, me
afastoda porta. — Se quiser algo para comer eu posso fazer. — Ele
não se move, meu coração volta a acelerar enquanto vou me
aproximando. — Ruslan?
Olho para ele que está encarando a tv imóvel, isso me
assusta, porque o que está presente aqui é apenas seu corpo.
Assusto quando seus olhos se movem, se prendendo nos meus,
leva um tempo para me recompor.
— Você está aqui?
— Sim — responde me fitando, passo as mãos na calça para
limpar o suor.
— Você comeu?
— Não — diz, voltando a encarar a tv, se perdendo outra vez.
Vou para a cozinha preparar um macarrão, mas me sentindo
estranha por ter alguém aqui comigo, um desconhecido que pode
me atacar a qualquer momento.
Mesmo com o coração martelando incansavelmente, tento me
manter no controle da situação, tento não pensar que tem um
assassino na minha sala, e que eu o deixei ficar. Onde eu estava
com a cabeça para aceitar algo assim? Encaro o molho indignada
comigo mesma, buscando uma explicação lógica e aceitável para
isso.
Me viro para pegar um prato e solto um grito dando um passo
para trás em direção à panela quente no fogo, mas Ruslan segura
meu pulso, impedindo que eu colida com ela, e me machuque.
Levanto a cabeça encarando seus olhos, ele estava o tempo
todo me observando sem que eu percebesse. Sinto sua mão firme
no meu pulso e algo estranho começa a me invadir. Tremor espalha
por meu corpo e de repente fico sem ar ao sentir sua mão em mim,
me tocando...
— Perdoe-me, não queria te assustar, o cheiro está muito bom.
— Ele me solta.
— Não volte a me tocar... — Aviso, me afastando dele o mais
rápido possível.Vou até o banheiro e me tranco, ergo as mangas do
moletom e coloco as mãos dentro da água corrente.
Meu corpo inteiro estremece e tenho medo de entrar em crise.
Pavor de que minha mente me leve para o inferno me consome, ela
não para de gritar ele me tocou... ele me tocou... ele me tocou...
Apanho uma esponja, encharco-a de sabão e começo a
esfregar minha pele, limpando seu toque, a sujeira impregnada em
mim, do nojo que sinto quando me tocam. Lágrimas involuntárias
escorrem por meu rosto, minha mente reproduz sem parar o
momento em que ele me tocou, em que Ruslan me segurou, do seu
aperto, da sua mão grande em volta do meu pulso...
Nojo... nojo... nojo... não dele, mas de mim. Sou uma pessoa
que desperta desprezo em outras pessoas quando me tocam. Sou
aquela que fazcom que as pessoas sintam repulsa de mim, por isso
não podem me tocar, não quero que sintam nojo de mim... Inspiro
fundo, fecho meus olhos e tento colocar minha cabeça no lugar, só
que é difícil, muito difícil...
Olho para minhas mãos e pulsos vermelhos de tanto esfregar,
já houve momentos em que esfolei minha pele, outras vezes
machuquei profundamente,Olesya disse que a sujeira que vejo está
em minha mente, tudo da minha cabeça, respiro fundo e desligo a
torneira.
Enxugo-as com a toalha e passo álcool, rangendo os dentes
quando sinto minha pele arder, eu me machuquei de novo. Sento na
tampa do vaso e fico pelo menos mais dez minutos me recompondo.
Quando sinto que estou no controle, saio do banheiro e
encontro Ruslan escorado na mesa com os braços cruzados, sua
expressão está ilegível. Ele levanta a cabeça e me observa, seus
olhos descem até minhas mãos, tento esconder a vermelhidão
puxando mais as mangas do moletom. Ruslan não diz nada, apenas
me olha.
Volto para cozinha para continuar a preparar minha comida,
ele desligou o fogo impedindo que queimasse. Olho para trás, seus
olhos se encontram com os meus por alguns segundos antes de eu
desviar e focar no macarrão que estou preparando. Em todo
momento sinto seus olhos cravados nas minhas costas, me
assistindo.
Ruslan deve estar pensando o quanto sou estranha, só espero
que não sinta nojo por ter me tocado. Ver esse sentimento nos olhos
das pessoas é devastador, dói muito. Agradeço aos céus por ter
evitado uma crise, porque não seria nada bonito surtar com um
assassino em casa.
Termino o molho e coloco em cima do macarrão que está
dentro do prato. Viro-me, Ruslan não se moveu por nenhum
segundo. Estendo o prato em sua direção, seus olhos claros fitam
os meus, é como se tivesse tantas perguntas e não pudesse fazê-
las.
— É seu — digo, ele descruza os braços, pega o prato e senta
à mesa.
— Encantado — murmura, batucando os dedos no vidro da
mesa.
— De nada — preparo meu prato e me sento no sofá, distante
dele. — Você não gosta de macarrão? — Ruslan me olha.
— Não lembro mais do sabor.
— O que você comia na prisão? — Pergunto curiosa,
observando-o rodar o garfo no macarrão.
— Ensopado, um pedaço de pão e peixe em conserva — faço
uma careta, imaginando a gororoba que os davam.
— Era gostoso? — Ruslan esboça um sorriso frio.
— Mantiveste-mevivo, isso que importa — ele leva o macarrão
à boca e fecha os olhos, prazer estampa seu rosto.
— Você comeu antes de me encontrar? — Ele abre os olhos e
assente.
— Um sanduícheque roubei de uma mesa de um bar qualquer
— revela, mastigando lentamente.
— Não sou boa em cozinhar.
— Está muito bom — elogia, me lançando um olhar
agradecido. — Tem 14 anos que não me alimento normalmente. —
Sua voz sai engasgada, meu coração se parte com sua confissão,
olho para meu prato pensando nas pessoas que nem um ensopado
horríveltem para comer, e a gente reclama tanto do pouco que tem,
sendo que muitos não tem nada.
— No fogão tem mais se quiser — Ruslan assente, olho para a
tv e solto um suspiro felizquando começa o desenho do Coragem, o
cão covarde, me perco no episódio e nosso jantar é tomado pela
voz dos personagens.
Fico tão inerte que nem percebo quando Ruslan se senta do
outro lado do sofá, seu gato está em seu colo, recebendo carícias.
Olho para seu rosto esculpido por uma beleza ofuscante.
— Você gosta muito de desenhos — sussurra sem me olhar,
aperto meus lábios e me aconchego no sofá. — Por quê?
— Porque eu fujo da realidade — digo, fitando minhas mãos
menos avermelhadas. — Nos desenhos há acontecimentos
impossíveis, como pessoas voando, aviões que falam, cães que
salvam o mundo...
— E você se imagina lá dentro?
— Sim.
— Por quê? — Olho para ele que me observa com atenção.
— Porque a realidade dói.
Um nó se instala na garganta, Ruslan me encara tão
intensamente que fico incomodada. Desço minhas pernas e pego
meu prato ao meu lado.
— Estou indo dormir, apesar do sofá ser um pouco pequeno,
ele é confortável.
— Eu me adapto bem. — Assinto, me afastando.
— Hum... boa noite — falo, encarando-o mais um pouco.
— Até logo — Ruslan desvia o olhar, voltando para a tv, vou
para meu quarto, tranco a porta e me sento na beira da cama, me
dando conta de que ele descobriu mais coisas sobre mim do que
qualquer um em todos esses anos.
Ruslan me instiga, quero entender o porquê me sinto
confortável com sua presença mesmo sentindo medo. Quero poder
conversar mais, tentar descobrir mais sobre ele. Solto um suspiro
longo, desejando que eu não tenha assinado minha sentença de
morte.
Quando empurro a porta que dá acesso ao lado de fora, arfo
ao sentir o vento sutil me beijar. Sou consumido por uma emoção
sem tamanho, mas me controlo, porque ainda estou no Colony 100,
eu apenas subi um degrau.
Há vários policiais da unidade especial em volta da aciaria,
eles distribuem ordens, não faço ideia do que está acontecendo, e
nem me importo, só preciso agir como tal.
Encaixo o fuzil em meu braço depois de observar como os
policiais seguram, agacho ao lado de um deles e espero minha
deixa. Minutos se passam, tiros são disparados, gritos soados, meu
coração bate acelerado querendo sair daqui.
A tensão paira sobre o ar do fim da tarde, não há nenhuma
evolução, enquanto os líderes negociam com os detentos
responsáveis pela rebelião. Nós aguardamos, só que não posso
mais esperar.
Me levanto quando uma vã se aproxima, vou até ela, paro
quando vários policiais descem, meus olhos encaram um deles,
temendo que me reconheça.
— Há quanto tempo está aqui? — Ele me pergunta, camuflo
meu medo e o respondo da maneira devida, da mesma forma em
que ouvi alguns deles responderem seus superiores.
— Aproximadamente três horas, senhor — minto com
confiança, ele assente e aponta para vã.
— Vá, ficaremos no seu lugar — assinto e entro na vã, assim
como os outros com quem eu estava.
O veículoentra em movimento, aperto o fuzilansioso, encaro a
traseira e vejo os portões do presídio ficar para trás. Falta pouco
para estar livre. A vã para e saímos da traseira, a noite está caindo
o que é um ponto positivo para mim.
— Bom trabalho, pessoal! — Diz um dos policiais, olho em
volta, estou do lado de fora do Colony, há ambulâncias, bombeiros,
jornalistas e mais policiais prontos para agirem conforme as ordens.
Aguardo mais um pouco, procurando um jeito de sair daqui
sem que desconfiem de mim. O bom é que, nenhum dos policiais
tiraram a touca, escuto os latidos dos cães, eles são os mais
perigosos, se perceberem que um detento fugiu,é a unidade canina
que virá atrás de mim.
Meus olhos são atraídos para os carros dos repórteres um
pouco distantes, como o Colony 100 fica praticamente no deserto,
fugir caminhando seria uma burrice, então me aproximo dos carros
com cautela, vou até o mais distante, me encosto em um deles
como se estivesse fazendo nada a não ser descansar.
Todos estão focados demais no que está acontecendo dentro
do presídio, tenho a vantagem e não posso desperdiçar. Olho para
dentro do carro, as chaves estão na ignição, abro a porta com
cuidado e entro. Minhas mãos enluvadas se fecham em volta do
volante, agradeço ao meu tio por ter me ensinado a dirigir antes de
eu ser preso, ele sempre dizia que dirigir é como andar de bicicleta,
a gente nunca esquece.
Rodo a chave, o motor liga, inspiro fundo para controlar meu
nervosismo e dou a ré, o carro morre, amaldiçoo e tento de novo
sem espaço para desistência. Olho para a aglomeração em frente
ao Colony, não me notaram ainda. Inspiro fundo e tento outra vez
sair com o carro, sorrio quando consigo.
Viro na direção contrária e piso no acelerador, me afastando
do lugar onde vivi anos trancafiado, agora estou livre, mesmo
sabendo que terei que lutar para me manter escondido e longe de
qualquer um.
Esperei 14 anos para ter pelo menos uma única oportunidade,
e quando a vi chegar, me agarrei com firmezasem me importar com
as consequências ou com o sangue que será derramado, meu
objetivo é fazer de tudo para encontrá-lo e provar minha inocência,
custe o que custar. Vou fazê-lo pagar por tudo o que me fez.
Passei a noite em claro, escutando a tv, os passos e o gato
miar, é estranho você ter um desconhecido tão perigoso em casa.
Como poderia pregar os olhos com esse fato tão existente em
minha vida?
O despertador apita, me levanto e ligo a luz, meu coração salta
quando olho pelo meu quarto, não há ninguém, assim como não
houve ontem e nem antes de ontem.
Abro a porta e saio do quarto, Ruslan anda pela cozinha de um
lado para o outro, parecendo ansioso e alterado. Ele congela
quando sente minha presença, se vira e me observa com os olhos
perturbados.
— Perdoe-me por ter te acordado — diz, inquieto.
— Está na hora de me arrumar para o trabalho — Ruslan
assente. — O que houve?
— Tentei preparar algo para comer e... perdi o controle — me
aproximo, o fogão está repleto de gordura e o ovo misturado com
pedaços de casca está completamente queimado.
— É normal errar a mão, — digo para acalmá-lo — afinal,você
não cozinhava na prisão, né? — Ruslan me encara, dá de ombros e
respira fundo. — Eu posso preparar algo se quiser.
— Sim, por favor — assinto, passando por ele.
Tento esquecer que está me observando e focona preparação
do ovo que tanto quer, mas antes disso limpo a sujeira que fez.
Depois de meia hora, entrego-lhe uma omelete com bacon e tomate.
— Espero que goste — me escoro na pia e ele no balcão.
— Agradeço-te por isso — ele me lança um olhar agradecido e
começa a comer, não rápido como se estivesse varado de fome,
mas com calma, saboreando cada pedaço da comida, temendo que
acabe.
— O que você vai fazer? — Pergunto, cruzando meus braços.
— Ainda não sei — murmura, engolindo o último pedaço.
— Vai ficar aqui trancafiado? — Ruslan me olha inexpressível.
— Tenho planos, — ele se aproxima, me afastoimediatamente
— preciso apenas organizá-los.
— Eu trabalho o dia todo e só estou de volta às seis da tarde,
— esclareço — tenho apenas uma chave.
— Ficarei com ela até você voltar — fala tranquilo enquanto
lava seu prato.
— Ruslan? — Ele me olha. — Como entrou?
— Tenho truques.
— Truques? — Ruslan assente. — Tu achas que aprendemos
o que na prisão? — Umedeço meus lábios.
— Hum... a não matar de novo? — Ele sorri pela primeira vez,
meu coração acelera ao ver o quanto ficou lindo.
— Estás enganada, pequena flor, — Ruslan seca as mãos —
dentro da prisão você aprende a se tornar o próprio demônio, tu
perdes seu coração e sua alma, poucos são aqueles que se
mantém intactos.
— O que acontece com esses? — Ele me lança um olhar
sombrio
— São comidos vivos — calafrio percorre meu corpo, há raiva
impregnada em sua voz, engulo em seco e vou para o banheiro
para me arrumar para o trabalho.
Saio de casa sem dizer nada a Ruslan que me acompanha
com os olhos até eu passar pela porta. Estremeço de frioesperando
por Gana, só que ela não aparece o que indica que terei que ir de
ônibus.
Ajeito minha touca, escondendo meus ouvidos para que o
vento frio não os faça doer e caminho até o ponto. Não demora
muito para meu ônibus passar, alívio toma conta de mim ao vê-lo
vazio. Entrego a passagem ao motorista e sento-me no banco mais
afastado, encarando o trânsito pela janela.
Em todo caminho até a AS penso em Ruslan, que está sem
dinheiro, sem documentos e sem roupas para acolhê-lo nesse frio,a
nossa sorte é que falta pouco para o inverno acabar.
Quando chego na redação, estranho a movimentação,
telefones tocando o tempo todo, e pessoas andando de um lado
para outro totalmente agitados. Entro na minha sala, a mais calma e
tranquila de todo o lugar.
— O que está acontecendo? — Pergunto a Yaroslav, tiro meu
casaco, luvas e touca.
— Tu não soubeste? — Nego com a cabeça, Justik entra com
a respiração ofegante.
— Céus, o que aconteceste? — Dou de ombro sem saber a
resposta, borrifoálcool nas minhas mãos e na minha mesa antes de
ligar o computador.
— Ruslan Rotam conseguiu fugir do Colony 100 — levanto a
cabeça quando Aksinya nos diz, ela coloca as mãos na cabeça.
— Por isso que estão todos agitados Laura e Justik, não vistes
no jornal? — Pergunta Yaroslav.
— Vi ontem — me sento, tentando demonstrar surpresa.
— E agora? — Justik nos olha assustado. — O cara
assassinou mais de vinte mulheres em um ano.
— A polícia é eficaz, vão pegá-lo — Afirma Aksinya. — Porém
o que me preocupa nem é isso.
— É o quê? — Pergunto, ficando curiosa.
— Nosso chefe...
— Andry quer que todos compareçam na sala dele com
urgência — Ekaterina nos interrompe, Aksinya nos olha com
descrença.
— Estamos lascados... — Resmunga, se levantando e indo até
a sala do nosso chefe, a seguimos em silêncio.
Andry está sentado com uma pilha de papéis em cima da sua
mesa, ele não nos olha, está focado demais no seu computador.
Ficamos em pé e calados por mais ou menos uns dez minutos
esperando sua boa vontade de nos atender.
— A matéria que fizeram já está no ar, só que com a fuga de
Ruslan, está rolando um boato de que pode ser ele o responsável
pelo assassinato.
Aperto as mãos contra minha perna, tensa com as palavras de
Andry. Ruslan disse que estava me seguindo e que não a matou,
mas... até que ponto ele falou a verdade? Será que devo acreditar
em sua palavra? Ele é um assassino de sangue frio, mata mulheres
indefesas por prazer e diversão, será que devo confiar?
— Então diante disso, quero que vocês investiguem a vida
passada dele, as vítimas e tudo que possam obter em relação a
Ruslan Rotam.
— Sério? — Yaroslav indaga surpreso, atraindo o olhar de
Andry em sua direção.
— Quero tudo sobre ele.
— Vai fazer um documentário? — Justik pergunta com a voz
vacilante.
— Exato, começando hoje.
— Outros farão o mesmo — murmura Aksinya, insegura. —
Por que temos que fazer isso?
— Porque estou mandando — Andry retruca. — Podem ir! —
Ele nos dispensa.
— Como iremos começar? — Pergunta Yaroslav, nosso chefe
nos olha com cara de poucos amigos.
— Pelo começo — retruca, respiro fundo e saio da sua sala,
ele não falará mais nada, fomos largados à sorte
— Como começar pelo começo, se não fazemosideia de onde
é o começo? — Resmunga Aksinya, sentamos nos nossos lugares
em silêncio, perdidos em um caminho que não somos acostumados
a andar.
No entanto, o que está martelando minha mente é que irei
investigar a vida do homem que está na minha casa, isso me deixa
perturbada. Posso estar entrando em um lugar, onde minha vida
poderá mudar para sempre, afinal, sou uma simples colunista, não
uma detetive, pelo amor de Deus!
— Vamos começar com a vida dele — Yaroslav interrompe
meus pensamentos. — Onde ele viveu? Com quem ele conviveu?
Qual escola estudou? Como ele era antes de ser sentenciado?
— Aonde vamos encontrar essas informações? — Justik
pergunta, inspiro fundo.
— Pegando as reportagens de 14 anos atrás, juntando as
informações que já temos e depois ir atrás de respostas. — Digo,
fitando a foto da minha mãe. — É o começo.
— Vamos coletar as informações das vítimas e fazer uma
entrevista com as famílias,vai ser interessante. — Aksinya fala com
entusiasmo.
— Então procuramos hoje e amanhã vamos para as ruas. —
Diz Yaroslav.
— Sim, vamos fazer — sussurro, todos concordamos e
começamos a coletar informações. Ao mesmo tempo em que estou
curiosa para saber da vida passada de Ruslan, me sinto tensa por
mexer com algo tão perigoso.
— Gente, como é que ele fugiu? — A pergunta de Justik paira
no ar, não faço ideia de como ele foi parar na minha casa, mas de
uma certeza eu tenho, Ruslan soube enganar perfeitamente as
autoridades.

Me deito no sofá de Olesya depois de sair mais cedo do


trabalho, decidi vir até ela porque preciso conversar com alguém,
tentar aliviar a pressão que está dentro do meu coração.
— Diga-me Laura, o que aconteceu? — Ela pergunta vendo
meu nervosismo, engulo em seco e olho para minhas mãos um
pouco irritadas da noite passada.
— Ontem uma pessoa me tocou, — confessoem um sussurro,
fitando o teto — eu me senti enojada.
— Da pessoa? — Nego, mordendo com força meu lábio.
— De mim — balbucio. — É uma sensação horrível,a voz dele
veio em minha mente, pensei que seria levada de volta para o
passado, mas não fui, só senti medo, desespero e... angústia.
— Por isso que suas mãos estão irritadas? — Assinto —
Quem te tocou, Laura?
— Um homem — fecho meus olhos, lembrando do momento
do seu toque. — Eu tinha me esquecido de como era ser tocada.
— Às vezes, precisamos de calor humano — olho para minha
terapeuta, ela me analisa com atenção, sempre tomando cuidado
com o que fala, às vezes sinto vontade de vê-la gritar comigo, tem
dias que preciso.
— Eu não quero calor humano, quero que fiquem distantes e
não me toquem, — falo com um pouco de raiva — não quero que
sintam nojo de... mim.
— Por que sentiriam nojo de você? — Dou de ombros. — Ele
falavaisso para te machucar, te ver ferida,Laura. O afeto,o toque e
a carícia nos ajudam a ter uma afetividade com o próximo, reforça
os laços mais íntimos.
— O mesmo toque que ele fazia em mim? — Estremeço ao
lembrar de suas mãos. — Eu não quero que me toquem, se me
tocar, vou sentir medo e vai ser da mesma forma que... ele fazia...
— Ei? — Olesya me interrompe, encaro seus olhos gentis. —
Afetividadenão é dessa forma,molestar uma criança não é carinho,
mexer com a cabeça de uma adolescente não é amor, não confunda
o que ele fez com você com sentimentos puros.
— Como eu vou saber que não estão me tocando com
maldade? — Ela inspira fundo, me olhando por alguns segundos.
— O toque de pessoas que te querem bem, é diferente, você
sente em seu coração.
— E se estiverem me enganando como da última vez?
— Você irá saber, nesse momento terá o poder de se afastar.
Lembre-se, você não está mais nas garras dele, estás livre para
fazersuas próprias escolhas, Laura. Sem ameaça e sem agressões.
Olho para minhas mãos, relutante em aceitar suas palavras.
— Laura? — Volto a encarar Olesya. — Você não acha que
está na hora de permitir que entrem em sua vida? — Engulo em
seco, porque já deixei que entrasse, só que ele é... um homem
perigoso.
— As flores sempre desabrocham... — Digo, com meus olhos
cheios de lágrimas.
— Estás na hora de você desabrochar, pequena flor — Olho
para ela surpresa pelo que me chamou.
— Você acha que uma alma quebrada pode ser consertada?
— Pergunto, me sentindo vulnerável.
Olho com atenção para Olesya, ela não é muito mais velha
que eu, seus olhos claros são gentis e refletem bondade de todas as
formas que me fitam, seus cabelos loiros a deixa ainda mais bonita.
Não a tinha reparado desde então, porque sempre que venho, estou
sobrecarregada dos meus problemas.
— O amor conserta tudo.
— Amor entre homem? — Ela nega com a cabeça.
— Amor de mãe, de irmão, de namorado, de filhos e de
amigos... não existe preliminares. Saiba apenas que o amor puro e
sincero é capaz de curar e salvar almas como a sua, que só
conhecem a maldade. Por isso que digo, permita se entregar para
que enfim, possa conhecer a verdadeira felicidade.
— Obrigada — sussurro, ela assente, sorrindo para mim. Sinto
inveja do seu sorriso e da luz que transluz dela, não faço ideia da
última vez que eu sorri, se sequer sorri algum dia.
Depois de sair da terapia com o coração abafado e mente
carregada de dúvidas e incertezas, vou direto a uma loja de roupas,
compro o necessário mesmo sem saber o seu tamanho e volto para
casa.
No caminho acabo ligando para Gana, eu não a vi hoje, o que
me preocupou, mas um alívio vem logo quando atendeu a ligação
com seu entusiasmo de sempre.
Chegando no meu apartamento, coloco o ouvido na porta para
escutar algum barulho, rodo a maçaneta e entro, prendendo a
respiração quando o vejo, meu coração salta e meu estômago se
contorce pela cena que estou presenciando.
Ruslan se encontra sem camisa no meio da sala fazendo
flexão, os músculos de seus braços estão definidos, suor escorre
por seu corpo e seus ombros largos o deixam ainda mais... lindo.
Engulo em seco, ele me olha sem parar o movimento, abro a boca
para dizer algo, mas nada sai, meu coração bate tão acelerado que
sinto dificuldade de respirar.
Desvio o olhar incapaz de continuar encarando-o dessa forma,
coloco as sacolas em cima da mesa e fecho os olhos, acalmando
esse sentimento que está me deixando confusa.
— Tu demoraste — solto um grito de susto quando sua voz
soa perto de mim, me viro dando de cara com ele. Ruslan está perto
demais, consigo sentir seu calor, sua respiração e o cheiro do seu
suor.
Ele é grande, ou eu que sou pequena? Olho para seus olhos
que queimam enquanto me encaram, limpo a garganta e me afasto,
apontando para as sacolas.
— Comprei algumas coisas para você — declaro, nervosa.
— Comprastes para mim? — Pergunta surpreso, assinto.
— Sim, comprei sabonetes, desodorante, creme de barbear...
— Abro a sacola quando ele não se move. — Comprei também
algumas roupas para você usar, não sabia o seu tamanho, então
arrisquei assim mesmo. Não é de qualidade porque não... tenho
muito dinheiro, usei minhas reservas e tem comida para Rony
também.
— Preocupastes comigo? — Olho para Ruslan que me encara
intensamente, dou de ombros como se isso não fosse nada.
— Você precisa de ajuda...
— Muito obrigado — aperto meus lábios e assinto, vendo seus
olhos brilharem, talvez de emoção?
Se é, eu não faço ideia, mas me sinto renovada por estar
deixando-o alegre, está na hora de tentar superar meus traumas e
meu passado, tenho que desabrochar como uma rosa, porque quero
ser feliz, pelo menos uma única vez quero poder sorrir.
É inexplicável a sensação de liberdade, de poder sentir o vento
no rosto, do cheiro da cidade, das pessoas indo e vindo... teve
tantas mudanças desde a última vez que vi essa cidade. Eu era um
garoto que vivia na parte mais pobre de Kharkiv, vendendo rosas
para ajudar com o sustento de casa, antes de ir preso.
Escondo mais meu rosto com o capuz, mesmo que esteja fora
do Colony, ainda sou um criminoso e posso ser facilmente
reconhecido. Não foi fácil chegar até Laura, a única pessoa que eu
tinha certeza que poderia me ajudar, foi uma jogada, poderia dar
certo ou errado, mas no final não teria nada a perder mesmo, só
voltaria para minha cela.
Só que seus olhos pediam socorro, não consegui por nenhum
segundo me esquecer dela, sabia que seria um risco... é um risco
estar com ela, mas... preciso de Laura, quero entender porque mexe
tanto comigo dessa maneira.
Ando em um beco escuro sendo engolido pela escuridão,
passei 24 horas fugindo da polícia, comendo sobras do lixo e até
mesmo roubando. O objetivo era encontrar a AS e quando achei,
meu peito pulou de alívio. Vê-la sem ser algemado foi um prazer
incomparável.
Olho para cima, para o muro que dá acesso ao telhado, não
perco tempo e escalo, me aconchego no telhado como um gato que
deseja passar a noite ao luar. Encosto a cabeça na chaminé, a
última vez que sentei no teto desse bar foi há 14 anos atrás quando
terminei meu primeiro e único namoro. Ela se chamava Veronika,
olhos âmbar, sorriso sonhador e coração puro, não terminamos
porque queríamos, ela estava indo embora e não havia condições
de mantermos um relacionamento à distância.
Encaro a casa simples diante de mim, as luzes estão ligadas,
há dois carros na garagem que não existiam antes. A casinha onde
eu morava, continha apenas dois cômodos, era desgastada, mas
havia amor ali, cuidávamos um do outro.
Perdi a conta de quantas vezes vi minha mãe chorar por não
ter condições de nos alimentar. Dormir com fome se tornou um
hábito na nossa rotina, por isso comecei a vender rosas com a ajuda
do meu tio, que também lutava para levar comida ao seu filho.
Era pouco, mas no final do dia sempre tínhamos algo para
comer. Ver o sorriso da minha mãe se tornou meu objetivo, até que
o vi se quebrar quando o martelo do juiz bateu, declarando minha
sentença. Okasana não chorou, ela apenas me encarou com
decepção, foi o pior olhar que já senti. Não tínhamos dinheiro para
advogados, nenhum quis pegar minha causa, então tive minha voz
silenciada, naquele dia pensei que seria para sempre.
Ela nunca me visitou, nem sequer me ligou, ninguém da minha
família.Fui largado sozinho em meio a estupradores, assassinos e
traficantes... não consigo esquecer de tudo o que passei.
Noto um movimento através da janela, meu coração salta
querendo apertar aquela campainha e dizer que voltei para casa,
mas eles não me querem, nessa altura, já devem saber que fugi.
Aqui deveria ser o primeiro lugar que pediria ajuda, mas será o
último, porque entre eles existe o mal.
A porta da frente se abre e um homem alto sai de dentro,
minha garganta se fecha ao ver o quanto meu irmão cresceu,
mesmo distante, sei o quanto lutou para dar uma vida melhor para
nossa mãe. A casa reformada, os carros na garagem... obra dele
com certeza.
Foi muito difícilpara nossa famíliaquando nosso pai faleceu
após um infarto, embora tenha sido uma fase complicada, não
deixamos de acreditar que tudo era possível. Meus irmãos se
afundaram nos estudos, minha mãe e eu sempre correndo atrás de
dinheiro para ao menos sustentar a internet que usávamos para
estudar.
Agora vendo-os, sei que conseguiram, mesmo sem mim, eles
conseguiram vencer e sinto uma tristeza tão grande em meu
coração que a vontade de desistir de tudo se torna maior do que
posso suportar. Levanto-me e desço do telhado, preciso me afastar
antes que me quebre ainda mais.
Ando pela madrugada vazia e escura assim como meu
coração, a única coisa que me conforta em todo o caminho é esse
casaco que Laura comprou para mim. Sinto-me tão confortável perto
dela e ao mesmo tempo tão agitado.
Depois de duas horas de caminhada, volto para o
apartamento, entrando em silêncio. Rony me recepciona, não ligo a
luz para não a acordar, mesmo que eu queira olhar mais uma vez
para seus olhos que me fazem sentir a liberdade dentro de mim.
Entretanto, Laura tem segredos, esconde uma dor dilacerante
em seu coração, que desperta em mim a vontade de desvendá-los.
Quando a segurei para evitar que colidisse com a panela quente, vi
seus olhos adquirirem um brilho de pavor. Me assustei com sua
mudança, e depois que voltou do banheiro com suas mãos
vermelhas, meu coração se partiu.
Ela é tão quebrada quanto eu, e isso... me deixa puto,
querendo acabar com quem fez isso com ela.
Me aconchego no sofácom Rony aninhado em minhas pernas,
esse gato se adaptou tão bem, que parece que já morava aqui há
muito tempo. A exaustão vai tomando conta de mim e quando fecho
meus olhos me vejo outra vez dentro do inferno em que vivi.
Se passaram meses desde que me colocaram aqui dentro
junto com homens sem escrúpulos. Não foifácil lidarcom eles, a
superlotaçãoda unidade69 é assustadora. Meu nome logocaiuna
boca de todos do presídio,eu era conhecidocomo o assassino de
sangue frio, para minha sorte, eles se mantiveram afastados.
Não faço ideiado que esperar, absolutamente nenhum dos
detentos chegam perto. É assustador sentir olhos me observando,
calculandoe planejandoalgo contra mim. Assassino, todos são,
mais como fuitituladocomo assassino de mulheres, acreditam
também que eu estuprava minhas vítimas...coisashorríveissobre
meu nome rolam pelas celas. Tenho que ficarem alerta, pois o
perigo se aproxima.
Um garoto de 18 anos, inocentee estuprador é tudo o que eles
maisanseiam.São sentimentosacumuladosdentro de cada homem
sombrio presente aqui. O estresse, a comidafeitade merda, e as
rixascom outros detentos pertencentes as gangues é extremamente
assustador, aqui você se encaixa ou se fode.
Abro meus olhos quando escuto passos, não sei quantas
horas são, mas é madrugada, hora em que os demônios se
levantame olhosse fecham.Meu coração acelera,ergo a cabeça e
lá estão eles em frente à minha cela.
Meus colegas não se mexem, fingem que nada está
acontecendo, como elesconseguiramas chaves da celaeu não sei,
mas o olhar de pura maldade me apavora.
— A bichinhaestava dormindo? — O líderdeles falacom um
sorriso maléfico,me levanto quando três deles entram e vem em
minhadireção,tento gritar, mas um delesacerta o punho em minha
boca tão forte que fico zonzo.
— É bom matar, não é? — Olhopara o líderque colocao dedo
na boca pedindo silêncio. — Quanto mais você relutar
, pior vai ficar
.
Eles me arrastam para fora da minha cela, tento lutar assim
mesmo, um deles me amordaça para que eu não grite. Vários
detentos se levantam e me olham através das grades das suas
celas. Joraslavé o líder , ninguém ousa ir contra sua palavra.
Traficantee assassino,sentenciadoà pena perpétua, mas issonão
o impede de fazer suas merdas, pagando suborno e botando o
terror. Joraslav construiu seu reinado aqui dentro.
Sei que ninguém vai me ajudar, fuideixado à própria sorte.
Nem todos os detentos novatos são bem vindos, não quando
chegam com títulode estuprador. Não façoideiade quem espalhou
esse boato, mas sei que ele quer o meu mal.
— Carne nova... hum... agrada-me muito — sou colocadode
joelhosno chão sujodo banheirocoletivo.— Vamos lá,o que sentia
quando matava? — Joroslavse agacha e segura meu queixocom
força.
— Vamos fazê-losentir prazer, chefe — um dos que está me
segurando fala, espalhando tremor por meu corpo.
Balanço a cabeça, quero dizer que não foieu que fizessas
coisas horríveiscom essas mulheres, que não matei ninguém.
Desespero me consome, e quando seus olhos insanos se
encontram com os meus, tenho certeza de que não importa o que
eu falar
, ele nunca irá acreditar
.
Joroslavagarra meus cabelos com força e me arrasta até a
privada cheia de mijoe merda, meu estômago revira quando ele
afunda minha cabeça, me debato quando o ar do meu pulmão
desaparece. Elevaime torturar até eu não aguentar mais,Joroslav
vai fazer pior a cada dia, serei seu novo brinquedinho.
Escuto risadas excitantes,ele retira minha cabeça de dentro
da privada,tirocom desespero a amordaça e arfo em busca de ar.
O fedor me dá ânsiae quando penso que acabou, elerepete várias
e várias vezes até eu achar que não consigo mais aguentar e
começo a engolira água suja,vomitandojuntoao sentiro sabor da
podridão.
Joraslavme afasta da privada e me jogano chão, começando
a agressão com chutes e socos. Choro em desespero, choro por
medo, choro por estar sozinho sem entender o porquê me
colocaramaqui.Eu não fiznada de errado, queriaapenas uma vida
melhor para minha família...
para mim, mas o destino tinha outros
planos.
Quando estou prestes a perder a consciência,tento chamar
por minha mãe, dizerque não foieu quem as matei... não sou um
assassino, sou apenas um vendedor de florescheio de sonhos.
Chamo por meu irmão, ele é mais forte do que eu, mais velho e
poderá me salvar, mas ninguém vem ao meu socorro... então me
pergunto o que fizde errado para merecer tudo o que está
acontecendo? Eu só quero acordar desse pesadelo.
Joraslavsegura meu rosto, seu sorriso me dá calafrios,sinto
dor por todo meu corpo e seique issoé apenas o começo, seu olhar
me diz tudo o que preciso saber
.
— Se prepara sua putinha,você acaba de entrar no verdadeiro
inferno...
Arfo ao ser arrancado do pesadelo, meu coração está
acelerado, meu corpo está coberto por suor, minhas mãos estão em
punhos e seus olhos estão arregalados enquanto me encara,
apavorada, distante de mim.
Laura sente medo, só que ao mesmo tempo me entende, sei
que me entende, ela vive no mesmo inferno que eu, só que de
mundos diferente. Leva um tempo para me recompor, pisco algumas
vezes e olho em volta para me certificar de que não estou naquele
banheiro.
— Ruslan? — Sua voz suave me chama, é um som tão lindo
que passaria a vida toda escutando-a sem enjoar, olho para ela
ainda atordoado. — Você está aqui?
— Sim — murmuro com a voz áspera.
— Você... você estava gritando e chamando por sua mãe —
Laura se aproxima com um copo de água, aceito grato e evito tocá-
la.
— Obrigado — agradeço tomando a água em um só gole, é
tão estranho e ao mesmo tempo prazeroso, ter alguém do seu lado
mesmo a conhecendo tão pouco.
— Onde você estava?
— No inferno... — Murmuro, ainda com as lembranças vivas
na mente.
— Eu te chamei.
— Me chamou? — Olho para ela surpreso, Laura assente.
— E você acordou — fico encarando-a, admirado não só com
sua beleza, mas com o fato de ser tão... delicada e gentil, mesmo
morrendo de medo. — Quer assistir desenho? — Ela aponta para a
tv desligada.
— Por quê?
— Quando acordo de um pesadelo, são a eles que recorro...
me ajudam a me acalmar. — Laura cruza os braços, assinto vendo-
a andar até o sofáe se sentar relutante. Ela pega o controle e liga a
tv, me ajeito e fico encarando-a enquanto assiste Tom e Jerry.
Tristeza é visível tanto em seus olhos quanto em sua alma.
Quero poder pular os muros que a cercam e a libertar da dor que a
reprime. Nesse momento, meu único desejo é vê-la desabrochar
como uma rosa, para iluminar quem quer que esteja em seu
caminho, e talvez eu lute... lute para trazer de volta a ela o sorriso
que lhe foi arrancado.
Gana estaciona rente à calçada, seu sorriso iluminado é como
o sol após uma tempestade, fico feliz por poder vê-la bem e alegre.
Ela se aproxima e me entrega um copo quente de café,dou um gole
e inspiro fundo sentindo o calor navegar por meu corpo.
— Sentisteminha falta? — Assinto, ela estremece quando um
vento gelado passa por nós.
— Como consegue ficar com essas minis roupas nesse frio?
— Pergunto, Gana dá de ombros, se encostando no carro.
— Sou acostumada — responde encarando seu café. —
Laura?
— Hum? — Ela respira fundo,relutante em me falaro que tem
a dizer.
— Estavas aqui pensando... o que achas de eu voltar a
estudar? — Ergo as sobrancelhas surpresa com sua pergunta. —
Tá, é ridículo esse pensament...
— Acho incrível — digo, cortando-a. — Se é o que quer, vai
em frente sem pensar demais, Gana. Você é uma mulher linda e
pode ser muito mais do que uma prostituta. — Ela fica me
encarando, seus olhos ficam cheios de lágrimas.
— Este é o único caminho que conheço.
— Você pode trilhar outro — falo com confiança. — É difícil,
mas você é dona do seu destino, então tem o poder de fazer
diferente do que lhe foi ensinado.
— Agradeço-te por ser minha amiga — balanço a cabeça de
leve, compartilhando os mesmos sentimentos. — Estou achando-te
muito diferente...
— Só... estou tentando mudar também — Gana esboça um
sorriso de canto.
— Esta mudança tem nome? — Nego com a cabeça.
— Me cansei de... sofrer, sabe! — Ela assente, entendendo do
que estou falando. — Vá em busca do que te faz bem, Gana!
— Sim senhora, dona Lauriana Silva! — Reviro os olhos
quando ela bate continência. Entro no carro depois de ter jogado o
copo no lixo e acelero em direção ao meu trabalho, hoje tenho
certeza que será agitado.
No estacionamento da AS, avisto uma viatura da polícia
parada quase ao lado da minha vaga. Meu corpo inteiro gela com o
pensamento de que descobriram que estou escondendo Ruslan,
mas talvez ela esteja apenas estacionada aqui sem um propósito
específico.
Entro no prédio receosa, diferente de ontem, toda a redação
está mais calma. Adentro na minha sala e congelo ao ver um
homem alto, forte e fardado de costas para mim conversando com
meus colegas.
— Ah, tu chegaste! — Aksinya diz se levantando, seu rosto
está sério.
Olho para o policial que se vira para mim, prendo a respiração
quando seus olhos verdes se encontram com os meus, seus
cabelos são de um loiro escuro, sua barba por fazer deixa seu rosto
marcante, a beleza... a beleza é intimidante.
Ele sorri para mim, mas sei que não é um sorriso verdadeiro, é
só um gesto de gentileza. Ele se aproxima de mim, dou um passo
para trás abalada com sua presença, minhas mãos começam a
tremer, não gosto de tantos homens em volta de mim sem nem ao
menos conhecê-los, ele congela vendo o pavor estampado em meu
rosto.
Não faço ideia do que se passa em sua mente ao me encarar
desconfiado, ele pode estar cogitando que eu sei de algo devido ao
meu comportamento, só que não é por causa do Ruslan. Ele estica
a mão para um cumprimento, eu não retribuo é claro, o que o deixa
ainda mais cismado.
— Prazer em conhecer-te, Laura, sou o policial Artem — ele se
apresenta, aperto minhas mãos em punho. — Podemos conversar
por um instante?
Olho para meus colegas que assistem toda a cena com os
semblantes preocupados, quero negar, pedir que vá embora, mas
não posso, seria um risco para Ruslan, então assinto.
— Sim.
— Pode ser no refeitório?— Assinto, ele comprime os lábios e
vai em direção ao local que sugeriu, meu coração está batendo
desesperado, inspiro fundo e o sigo.
Sento-me à sua frente, Artem fica me analisando atentamente,
seus olhos são tão familiares, eles se parecem tanto...
— Como você já deves ter descoberto, Ruslan Rotam fugiu da
cadeia, estou no caso e buscando pistas para trancafiá-lo
novamente por ser perigoso demais para a sociedade. — Não sei
explicar, mas não gostei de como se referiua Ruslan, nem da forma
fria que falou.
— E o que eu tenho haver com isso? — Artem cruza as mãos
e as coloca sobre a mesa, uma tatuagem de rosa vermelha nas
costas da sua mão esquerda atrai meu olhar.
— Você foi a última a ter contato com ele.
— Fui entrevistá-lo, ordens do meu chefe, não fui porque quis
— faloum pouco agressiva, esfregoas mãos enluvadas na calça. —
Não estou entendendo porque um policial quer falar comigo.
— Você alguma vez teve contato com Ruslan além da
entrevista? — Franzo a testa, do que ele está falando?
— Eu nunca o vi em toda minha vida antes do meu encontro
com ele, muito menos sabia da sua história. — Artem assente e
abaixa a cabeça.
— Você sabe o quanto ele é perigoso? — Encaro seus olhos.
— Ele é um Serial Killer, manipula as pessoas e faz com que elas
acreditem em suas histórias, principalmente que é inocente. — Ele
umedece os lábios e olha ao redor do refeitório. — Ruslan te falou
que é inocente?
— Não — respondo, porque realmente ele não falou com todas
as letras, meio que deixou a entender que não foi ele por declarar
que iria matar quem lhe tirou tudo.
— Nós o consideramos um sociopata.
— Sociopata? — Indago, chocada com sua declaração.
— Os sociopatas possuem uma condição mental caracterizada
pelo desprezo, ou desrespeito às pessoas e normas sociais. Eles
são socialmente irresponsáveis, são falsos e manipulam todos para
obter vantagens para si próprio, como dinheiro, sexo, reputação...
assim por diante, mas os sociopatas podem também querer dominar
o outro apenas pela sensação de poder e controle. — Artem se cala,
meu coração está tão acelerado que tenho dificuldade de digerir
toda essa informação.
— Por que está me dizendo isso? — Pergunto com a voz
embargada.
— Estou a dizer isso porque muitas das vezes um sociopata
pode apresentar comportamento agressivo e se irritam facilmente,
não sentem empatia e nem remorso das suas ações e conduta. —
Balanço a cabeça, estou confusa sem saber em que ponto ele quer
chegar. — Entretanto, além de tudo o que falei, eles tendem a ser
muito autoconfiantes, são charmosos, atraentes e espontâneos,
exercendo fascínio e encanto nas vítimas.
— Não estou entendendo — Artem esboça um sorriso frio,
encarando o fundo dos meus olhos.
— Ruslan é considerado um sociopata, ele sente desprezo por
mulheres, por isso que ele as mata de forma violenta. Ele sente
prazer no ato, é excitante o domínio que tem sobre as vítimas. Ele
não se preocupa com as consequências, o que nos leva a temer
que volte a cometer os assassinatos. Ruslan é um perigo para
sociedade, por isso precisamos encontrá-lo.
Contorço minhas mãos, é informação negativa demais sobre
Ruslan, ele não me parece ser tudo isso... certo, quem sou eu para
dizer qualquer coisa, sendo que nem o conheço? Talvez as palavras
de Artem estejam certas, estou abrigando um sociopata, mas..., mas
por que sinto que tudo o que está falandosobre ele é mentira? E se
Ruslan estiver realmente me enganando e me manipulando?
— Certo, quero entender por que devo escutar tudo isso? —
Artem arqueia uma sobrancelha, então é quando entendo, ele está
jogando comigo, me... manipulando para que eu conte que estou
com Ruslan.
— Tudo indica que ele pode ter ido atrás de você.
— Por que ele viria atrás de mim? — Pergunto, ficando irritada.
— Você é uma vítima fácil para ele cometer atrocidades...
— Olha Artem, eu entendo que quer encontrar um criminoso
de alta periculosidade, mas comigo não vai conseguir informações
além das que já lhe dei, não faço ideia de onde ele possa estar,
Ruslan não veio atrás de mim e eu só me encontrei com ele por
menos de uma hora. — Sustento seu olhar, fazendo com que
acredite em cada palavra minha.
— Laura, se ele fosse atrás de você... você o deixaria entrar?
— Escondo a surpresa da sua pergunta e tento me manter ilegível,
Artem é muito inteligente, sabe que escondo alguma coisa, além de
tudo, sabe onde tocar para obter suas respostas, e esse seu jeito
não me agrada, nem um pouco se quer saber. Artem é um homem
estranho e dele eu quero distância.
— Ruslan é um assassino, — digo me levantando — se me
der licença, preciso voltar ao trabalho.
— Por que estás alterada, Laura? — Ele se levanta também,
me assustando. — Se não esconde nada, por que temer? — Ranjo
os dentes de raiva, vejo prazer em seu olhar como se tivesse
descoberto algo interessante.
— Eu vivi anos com um psicopata, e esse mesmo me fez ter
aversão às pessoas, principalmente homens que nem você. Então,
se quiser me ver outra vez, policial Artem, que seja com ordens de
um juiz. — Seu sorriso desaparece quando me calo, ele estreita os
olhos e quando vai dizer algo, dou as costas, deixando-o sozinho.
Não gostei dele, do jeito que fala e do olhar que me direciona.
Artem é articuloso, inspiro fundo controlando meu nervosismo, bato
na porta da sala chamando atenção dos meus colegas.
— Yaroslav, pronto? — Ele se levanta, assente e vem em
minha direção.
Olho para trás uma última vez, Artem está encostado na
parede no fim do corredor com as mãos no bolso, calafrio percorre
minha espinha despertando uma dúvida em mim de quem é o mais
perigoso, ele ou Ruslan? De qualquer modo, tenho que ficar de
olhos abertos, se eu baixar a guarda, algo muito ruim pode vir a
acontecer e talvez eu não esteja preparada para isso.

Dirijo pelas ruas com meus pensamentos presos na conversa


que tive com Artem, algo nele me incomoda, pode ser o olhar astuto
ou o sorriso frio, mas tem alguma coisa por trás daqueles olhos
verdes. Entro em um bairro de classe baixa, onde há crianças
descalças brincando na rua, as casas estão desgastadas e velhas,
há mendigos deitados no chão e jovens em grupo conversando.
Mais adentro, viro em uma esquina que é menos pobre da que
estava passando, aqui as casas são melhoradas, há lojas de flores,
sacolão e até um mercadinho de esquina.
— É esse o bairro onde Ruslan morava? — Pergunto,
estacionando o carro um pouco distante de uma frutaria.
— Creio que sim... — Yaroslav diz olhando para o gps. — É
aqui!
Desço do carro e olho em volta, as pessoas nos encaram
desconfiadas, garotos param de conversar para nos observar, meus
olhos são atraídos para uma senhora que está borrifando água nas
frutas. Apanho minhas coisas e com Yaroslav ao meu lado, me
aproximo dela.
— Senhora Bohuslava? — Pergunto, ela nos olha com as
sobrancelhas franzidas e cara de poucos amigos.
— Sim, o que querem?
— Meu nome é Laura e esse é meu colega Yaroslav, somos
colunistas do jornal AS, gostaríamos de fazer algumas perguntas
relacionadas a Ruslan Rotam — a senhora diante de mim congela,
seu rosto adquire uma expressão assustada, despertando em mim
um alerta nada agradável.
— Senhora? —Yaroslav a tira do transe, Bohuslava fita seu
rosto e limpa a garganta, tentando esconder sua surpresa.
— Perdoem-me, mas não tenho nada a declarar — diz,
voltando a borrifar as frutas e desviando o olhar, reparo que suas
mãos ficam trêmulas, olho para meu colega que dá de ombros.
— Peço desculpas por nossa insistência senhora, mas
estamos documentando a vida de Ruslan...
— Como já disse, não tenho nada a falar.
— Soube que a senhora é muito amiga da mãe dele e que o
viu crescer — ela me olha com raiva. — Por favor, só queremos a
verdade! — Lanço lhe um olhar de súplica, porque preciso desse
emprego e claro, descobrir mais sobre o criminoso que está
abrigado em minha casa
— Ruslan... — Bohuslava suspira, encara as frutas e sorri de
leve perdida nas lembranças. — Eu o vi nascer, assim como seus
outros irmãos, mas ele era diferente...
— Diferente como? — Pergunta Yaroslav, pego meu gravador.
— A senhora se importa se eu... gravar? — Ela fica me
encarando receosa, sustento o olhar dando-lhe a confiança que
precisa, Bohuslava assente.
— Ruslan tinha uma alma livre antes do seu pai falecer. —
Bohuslava entra na frutaria,seguimos ela enquanto borrifaágua nas
outras frutas.
— Ele era um bom garoto? — Pergunta Yaroslav.
— Ruslan era o melhor garoto que já conheci, era sonhador,
trabalhador e muito, mas muito carinhoso. — Ela sorri para nós com
os olhos brilhando. — Uma vez, ele percebeu o quanto eu estava
triste, então veio até mim e sem dizer nada, me entregou um botão
de rosas vermelhas e disse-me que tudo iria passar. Pode ser algo
bobo, mas aquele garoto iluminou meu dia.
Bohuslava nos entrega uma maçã gentilmente, aceito evitando
que me toque, ela me encara e sorri.
— Ele gosta de... rosas? — Pergunto, a senhora assente.
— Ruslan era apaixonado por elas, desde que nasceu sempre
gostou de flores.
— Pelas informações que temos, — Yaroslav fala — Ruslan
vendia rosas para ajudar a família, correto?
— A família Rotam nunca teve muito dinheiro, sempre
passaram por dificuldades, mas Lemmar, seu pai, sempre conseguiu
sustentar a família,nunca deixou de colocar comida no prato, até...
falecer. —Sinto um aperto no coração da formatriste que Bohuslava
fala. — Okasana nunca tinha trabalhado na vida, a crise econômica
dificultou em arrumar um emprego decente, então ela fazia faxinas,
não ganhava muito, mas o pouco dava para alimentar seus filhos, só
que tinha dias em que ela não conseguia dinheiro. Infelizmente
muitas noites eles dormiam sem se alimentar, e mesmo assim,
Ruslan não tirava o sorriso do rosto. Foi nessa época, incapaz de
ver a família sofrer que começou a vender rosas.
— Ele conseguia ganhar muito? — Pergunta Yaroslav,
Bohuslava dá de ombros.
— Era o suficiente para levar comida para casa. — Ela respira
fundo. — Ruslan trabalhava dia e noite, fazia sol ou chuva, ele
estava lá na esquina, nos bares, restaurantes, parques, vendendo
suas flores. Fazia de tudo para ajudar seus irmãos.
— A senhora nunca percebeu algo diferente nele? —
Pergunto. — Ruslan escondia segredos? Era agressivo ou algo
parecido? — Bohuslava nega com a cabeça.
— Ele era um garoto abençoado — ela cruza os braços.
— Como foi sua reação ao descobrir que ele era um...
assassino? — Bohuslava abaixa a cabeça, ela aperta os lábios.
— Não acreditei que isso fosse possível, porque Ruslan era
incapaz de matar uma mosca, ainda mais tantas mulheres. — Ela
balança a cabeça, incrédula. — Era impossível naquela época, mas
as provas estavam lá, esfregando na minha cara que aquele garoto
que vendia flores com um sorriso lindo, era um perigo para qualquer
mulher.
— Como ficou a família? — aroslav
Y pergunta, curioso.
— Destruídos...
— A senhora acredita que ele pode ser inocente? — Ela me
encara. — Hum... que alguém armou para ele? — Yaroslav me olha
surpreso com minha pergunta.
— Eu não sei, é confuso... — Bohuslava diz, descruzando os
braços e se afastando. — Desculpe-me, mas não quero mais
responder suas perguntas, já falei demais.
— A senhora sabe que Ruslan fugiu da cadeia? — Ela
assente, ajeitando as frutas uma em cima da outra.
— Sim, eu vi na tv.
— O que achaste sobre o ocorrido? — Yaroslav insiste, ela
congela e nos olha.
— Eu acho que é uma ferida que não deve ser tocada e que
vocês devem ir embora. — Umedeço meus lábios, quero que fale
mais, porém, não quero irritá-la ao ponto de futuramente não querer
mais nos ver.
— Muito obrigada pelo tempo que dispôs a nos dar, senhora
Bohaslava, sinto por termos a incomodado. Tenha um ótimo dia! —
Ela assente, olho para Yaroslav e saio da frutaria.
Dentro do carro, encaro a maçã que me deu, pensando em
Ruslan no passado, como um garoto tão amado pôde se tornar um
assassino de sangue frio?
— “Eu acho que é uma feridaque não deve ser tocada” —
Yaroslav imita Bohuslava, me despertando do devaneio, olho para
ele que parece irritado. — Por que isso soou estranho? — Ele me
fita com a mesma desconfiança que eu.
— Porque algo está muito mal contado.
— Você acha? — Inspiro fundo, fitando a fruta em minha mão.
— Tenho certeza!
Estar do lado de fora das grades depois de anos é como
aprender tudo de novo, é andar por um caminho desconhecido que
você não está preparado para enfrentar.
Mesmo que eu tenha assistido tudo mudar através de uma tv,
nada é a mesma coisa que ao vivo. O cheiro de comida, o timbre da
voz das pessoas, as risadas de crianças... tudo muito diferente de
14 anos atrás.
Embora eu esteja vagando pelas ruas, ainda não estou livre,
posso ser preso a qualquer momento e sou uma presa fácil para
qualquer delator que esteja interessado na recompensa que
colocaram em minha cabeça.
Arranco o papel grudado na parede com minha foto e o jogo no
lixo com um pouco de raiva. Se eles tivessem ao menos me
ouvido... se tivessem investigado mais a fundo... não teriam
destruído minha vida e nem da minha família.
A raiva que sinto não é por causa da verdade não dita, mas
também da injustiça que fizeram com um garoto repleto de sonhos.
Engulo o nó que se formou na garganta ao vê-la sair da frutaria da
Bohuslava, a mulher que me olhava com fervor, com orgulho e
amor, tão mais velha que percebo o tanto que perdi.
Olho para o céu alaranjado, indício de que o verão vem vindo,
pisco para dissipar a dor que esmaga meu coração por não poder
ao menos, sentir o cheiro das pessoas que amo.
Sua voz navega por meu corpo... a voz que me fazia dormir,
que me incentivava a continuar... a voz que tanto amo. Espio
através do muro do beco onde estou escondido.
Seus cabelos estão grisalhos, seu rosto com marcas de uma
vida repleta de provações e tristezas, mas com muitas histórias a
contar e aprendizados a nos dar.
Ela está tão linda!
Quero tanto poder sair de onde estou escondido para correr ao
seu encontro e me aconchegar em seus braços, dizer o quanto me
doeu vê-la sofrer por minha causa, contar a ela tudo de ruim que
passei, e que em todos esses momentos chamei por seu nome, o
nome da minha mãe.
Mas nada disso posso fazer, apenas observá-la de longe, dizer
mesmo distante o quanto a amo e que entendo os motivos que a
impediu de visitar seu filho na prisão.
Exalo profundamente ao sentir meus batimentos acelerados,
minhas mãos tremem querendo tocá-la. Será que ela está bem?
Será que ela ainda se lembra de mim ou será que ela me
esqueceu? Ela está feliz?
Espero que esteja feliz.
Ajeito meu capuz e a máscara no rosto quando começa a
caminhar na direção de casa. Viro e adentro mais ao fundodo beco,
coloco as mãos no muro, sentindo a superfície gelada devido ao frio.
Dou um passo para trás e com impulso escalo o muro, aterrissando
do outro lado, em um outro beco.
É impressionante como muitas coisas se mantém iguais,
principalmente minhas lembranças de quando fugia das normas do
meu tio. Eu sabia perfeitamente por onde correr e como me
esconder.
Espero mais alguns segundos encostado na parede a espera
dela. De onde estou, consigo ter o vislumbre da minha casa
reformada, ela me olha com saudade, é como se estivesse feliz por
me ver. É apenas a casa onde passei os melhores dias da minha
vida, mesmo passando fome e necessidade, ali era o meu lar.
Fecho os olhos ao escutar seus passos lentos, pesados e
cautelosos, ela não mudou nada, sempre cuidadosa por onde vai.
Mamãe cantarola baixinho, uma mania que tem de se desligar de
tudo enquanto caminha pelas ruas.
Que saudade!
Inspiro fundo e quando ela vai passar por mim, saio do beco
com a cabeça baixa, esbarrando em seus ombros e fazendo-a
derrubar uma sacola.
— Oh, senhor! — diz se agachando para recolher as maçãs.
Sua voz penetra em meu coração, fico congelado vendo-a
pegar as frutas de forma calma, ela fala alguma coisa, mas não
consigo reagir. De todos esses anos, essa é a primeira vez que fico
perto da primeira mulher que já amei em toda minha vida.
— Eu compreendo que deves estar com pressa, mas tenha
cuidado — resmunga, me despertando.
— Perdoe-me meu descuido — digo, me agachando e
ajudando-a a apanhar as frutas, minhas mãos estão trêmulas e sinto
a emoção me consumir aos poucos, meu coração bate tão
acelerado que começa a doer.
— Assim está bem — fala pegando a sacola de minhas mãos,
então ela congela quando a toco sutilmente.
— Perdoe-me — sussurro, não por ter esbarrado nela, mas
pelo sofrimento que a causei.
Quando ela vai erguer a cabeça para me olhar, me levanto
apressado e volto para o beco, me misturando com as sombras.
Ouço um arfar, olho para trás, assistindo-a pegar uma rosa que
deixei no chão ao seu lado.
Ela sabe que era eu... toda mãe sabe quando está de frente
para o seu filho.
Escalo mais uma vez o muro e quando aterrisso do outro lado,
deixo me cair em um choro engasgado. Foi tão difícilme segurar
para não a abraçar, e dizer que estava de volta.
Me levanto segundos depois, recompondo-me da desolação
que estou sentindo, é como se nada fosse capaz de preencher o
buraco em meu coração. Não sei se um dia serei capaz de me
recuperar. Quem sabe quando eu o colocar no lugar em que sempre
pertenceu, provando minha inocência, assim poderei finalmente...
Escuto uma sirene sutil de polícia fazendo meu coração saltar
em desespero. Apresso meus passos, pulo alguns muros entre um
beco e outro tomando cuidado para não ser visto.
Fico escondido até a noite cair, sendo melhor para vagar entre
as ruas de Kharkiv sem que chame atenção. Estremeço com o
vento gelado, sempre olhando para todos os lados à procura de
qualquer perigo.
É fácil eu me perder, minha mente sempre me leva para os
lugares e momentos em que quero esquecer. Coloco as mãos
dentro do bolso da blusa de moletom, as poucas pessoas que
passam por mim não dão a mínima para um homem vestido de
preto, com capuz e uma máscara, para eles estou apenas me
escondendo do frio.
Paro em frente a um prédio em construção, há luzes
espalhadas por cada canto, máquinas estão ativas e escuto
comandos, conversas e ordens dos trabalhadores que
provavelmente irão passar a noite levantando esse prédio.
Olho para cima, avistando dois homens vestidos de amarelo
com capacete e de repente sou levado para lá, para o inferno em
que vivi por tanto tempo.
Seis meses se passaram... seis longos meses de tortura,
sofrimentoe... fecho meus olhos sem conseguir dizer a palavra,
envergonhado e enojado com toda essa situação.
Às vezes desejomorrer para que tudo issoacabe, poisa cada
dia que peço para que isso acabe, pior fica.Jaroslavnão tem
compaixão,então quando percebe que possivelmenteeu possa ter
me acostumado com certa tortura, na próxima ele pega mais
pesado, é mais violento e impiedoso.
Sou o brinquedo de um lunático,tornei sua vida menos
entediante,trazendo diversãopara seus diasde prisão.Meu choro,
minhasúplica,meu sofrimentoé tudo o que eledesejae a morte é
tudo o que eu peço.
Sem nenhuma visitaou respostas de um possívelerro, assisto
minha vidasendo destruída, meus sonhos desaparecendo e minha
esperança se esvaindo. Não entendo como uma pessoa poderia
fazerissocom um garoto inocente, eu viseus olhosqueimaremde
ódionaquelebeco, eu senticomo me olhavacom ódio,mas nada foi
dito.
Caminhopelocorredor depoisdas celasserem abertas para a
hora do banho de sol. A superlotação é assustadora, qualquer
movimento errado pode te colocar em perigo, aqui todos estão
prestes a explodir e você não pode fazer nada contra isso.
Estou há dois dias sem comer, Jaroslavfaz de tudo para que
eu impl ore até mesmo por um prato de comida. Nenhum detento
ousou desafiaro senhor do presídio,mesmo me lançandoolhares
de pena, muitosde indignação,elesnão seriamtão burros ao ponto
de ir contra Jaroslav
.
Estou inerte em meus pensamentos até que sinto um
empurrão nas costas, dou dois passos para frente batendo em um
muro de músculos.Olho para cimajá apavorado, Ararat sorri com
malícia, meu coração dispara ao lembrar dele atrás de mim, obtendo
seu prazer doentio enquanto os outros assistiam com diversão.
— Fugindo, hein?— Enguloem seco, apavorado, sou puxado
para longe de Ararat, seguro no corrimãoao sentir um aperto forte
na minha nuca.
— Tu precisasfazer uma coisinhapara o Senhor Joroslav—
reconheço a voz de Zelai,seu capanga fiel,
enguloem seco olhando
para baixo.
As celasda unidade69 ficamem váriosandares, a minhaé no
terceiro, podendo assim ter uma queda nada agradável daqui de
cima.
— Porém, antes precisamos fazer uma coisinha— solto um
grito de pavor ao sentir erguerem minhas pernas e as jogarem do
outro lado,em instantesme vejopendurado e agarrado ao corrimão,
o peso do meu corpo não ajuda, fazendo com que eu escorregue.
Tanto Ararat, quanto Zelai,caem na gargalhada vendo meu
desespero, sinto vontade de soltare deixar-me cair, só que algome
impede de tomar essa decisão que pode levar minha vida.
— O negócio é o seguinte, putinha — Zelaise inclin a no
corrimão.— Você receberá uma visitaíntima,pegará o que ela te
entregar e nos trará. — Seguro mais firmeao escorregar, minhas
mãos começam a soar, olho para baixo, vários detentos pararam
para observar, os guardas nem ligam para o que acontece aqui.
— Acho que não entendeu — soltoum gemidode dor sentindo
uma lâminaafiadarasgar minha pele. Ararat sempre carrega uma
com ele, e é a mesma que causou ferimentospor toda parte do meu
corpo.
— Tenho a sua resposta? — Zelaipergunta, quero poder
recusar por jásaber do que se trata e o que querem, mas... é pedir
para morrer.
— Sim... sim... — Murmuro, eles sorriem.
— Às 18:00 horas um guarda irá te buscar, bico calado e
quando nos entregar, pensamos em facilitaras coisas.— Zelaidiz
se afastando, Ararat se inclina,
rodando o caniveteem seus dedos,
me encarando de um jeito doentio e asqueroso.
— Depoisse prepara, te encontro na sua celadepoisda hora
de recolher — pavor dispara meu coração, de novo não... não...
não... Ele sorri de prazer vendo-me apavorado, me lançamais um
olhar e se afasta, me deixando pendurado.
Um choro se instalaem minha garganta, quero tanto poder
soltar esse corrimão e acabar com todo esse sofrimento.Penso,
olhopara baixoe penso se issovalea pena, sereiapenas maisum
criminoso morrendo, não farei falta, então realmente penso,
chegando à conclusão de que é a melhor coisa a se fazer
.
Fecho meus olhos, relembrando dos momentos que vivifora
daqui, onde era feliz
com o pouco que tinha. Deixo minhas mãos
escorregarem, porque é isso o que eu quero, desaparecer.
— Nada disso, moleque! — Mãos seguram meu pulso e me
impulsiona para cima,colocando-meno chão firmede volta.— Não
será hoje que fará isso.
Me levanto com ajuda de alguns detentos, não olho para
nenhum em especifico, apenas assinto e caminho em direção à
minha cela,quebrado e dilaceradodemais para contestar qualquer
decisão que fizeram por mim.
Sentado na cama eu espero, aguardo a hora que me falaram
com o olhar fixono meu novo machucado, faço com que minha
mente se desligue,a cada dia ficamais fácil
deixar com que ela
vague, esquecendo-me do que está acontecendo ou do que me
fazem todas as noites.
Quero lutar contra todos que me fazemmal,quero que parem
de me machucar, de me humilhare me usar como um brinquedo.
Quero me reerguer e mostrar que sou forte, mas... nada disso
acontece, porque sou fraco e sou a minoria e estou sozinho.
Esfrego meu rosto, as horas se passam e eu me mantenho
imóvel,encarando minhas mãos entrelaçadas. Sou despertado
quando um dos guardas bate na grade, me viro para ele.
— Visitaíntima,179 — diz, ando até ele, viro de costas
colocando as mãos na abertura da grade para que me algeme.
O guarda me tira da celae me levapor entre os corredores.
Jaroslavme lança um olhar mortal quando passo por sua cela,
deixando claro que se der algo de errado, pagarei caro por isso.
Ódioe nojome consomem ao encarar seus olhos,desviosegundos
depois sem coragem de desafiá-lo.
Ando com a cabeça baixa, sem prestar atenção por onde estão
me levando, me sinto amortecido, sozinho e dolorido, meus
machucados sempre inflama m e os homens de Jarosla v não são
gentis.
Um outro guarda me revista,me entrega uma toalha,forro de
cama limpose um pacote de preservativo, sou empurrado para
dentro de uma sala e trancado alidentro. Respiro fundo olhando
pelo cômodo até prender meu olhar em uma mulher com pouca
roupa, maquiagem forte e um salto agulha.
— Olhao que me trouxeram — eladiz,passando a línguanos
seus lábios vermelhos vibrantes. — Own... tão novinho!
Ela se aproxima,seu perfume forte impregna minhas narinas,
ela passa a mão por meu rosto, me analisando.Ela apanha o
preservativo o prende entre os dedos, sorrindo para mim.
— O que achas de aproveitarmos enquanto isso? — Ela
aguarda minha resposta, desço os olhos por seu corpo, peitos
fartos, cintura fina e pernas torneadas.
— Acho que não — recuso, porque não façoideiade quem ela
possa ser para Jaroslav
, porque se algoa maisacontecer, pode sair
muito caro para mim.
— Ele te avisou que não poderia me comer? — Pergunta,
começando a tirar suas roupas, sinto meu pau endurecer ao vê-la
completamente nua... porra, ela é atraente!
Engulo em seco, apertando a toalha e o forro que ainda
seguro. Sinto-me esquentar quando ela se vira de costas, sua
bunda empinada revira meu ser
, aflorando meu desejo.
— Não se preocupes com o que ele diz — ela fala,se
engatinhandoaté o meioda cama, prendo a respiraçãoao assisti-la
se apoiarnos cotovelose abriras pernas lentamentecom os olhos
presos em mim.
— Não posso arriscar— sussurro, sentindo meu pau pulsar
desesperado querendo afundar no seu interior
, e quem sabe, me dar
um alívio e prazer que talvez eu precise.
— Ninguém irá contar, será nosso segredo — prendo a
respiração, observando-a se masturbar... céus...
Dou um passo à frente, elajoga a cabeça para trás gemendo,
me enlouquecendo, só que de repente, congelo. Meus olhos
arregalam ao notar ela tirando váriospacotinhosde dentro da sua
buceta.
— Isso... isso...
— Cocaína, bebê — revela, gemendo mais um pouco
enquanto tira um por um, me surpreendendo. — Jaroslav não te
falou?
— Eu imaginava.
— Hum... — Murmura, se masturbando e tirandomaisdrágeas
de dentro dela. — Agora tira as roupas e venha fazer o resto do
trabalho.
Fico estagnado olhando para ela sem saber se devo fazer isso.
Meu pau pede desesperadamente por ela, encaro sua intimidade,
ela está tão excitada...
— Vamos, antes que eu fiq
ue irritada— diz com raiva, ao
mesmo tempo em que geme ao colocaros dedos dentro da sua
buceta.
Engulo em seco, mesmo receoso tiro minhas roupas. Seus
olhos percorrem meu corpo magro até se prender na minha ereção.
— Ótimo, nada mal para um garoto — ela se abre mais,
mordendo seus lábioscom sedução. — Chegue mais bebê, temos
mais para tirar de dentro daqui.
Me aproximodelasem jeito,paro no meiode suas pernas e a
vejo fechar os olhos e sorrir. Inspirofundo, sentindo o tesão ficar
insuportávelde aguentar, então com cuidadoe delicadeza,começo
a masturbá-la, assim como estava fazendo.
— Isso, bebê... — murmura com a voz embargada.
Ela se remexe ao meu toque querendo mais, então com dois
dedos afundo na sua boceta, sentindo-a pulsar. Sua pele maciae
quente me deixa ainda mais louco, até que sinto. Seguro firmee
retiro de dentro dela um dos pacotinhos,repito umas cinco ou sete
vezes, perdendo a conta devido ao desejo.
Quando não encontro mais, ela me lança um olhar fervente.
Quero transar com ela, só que... não sei se posso. Ela ergue a
camisinha,rasga a embalagem e com um sorriso safado estende
para mim.
— Agora venha, temos maisuma hora — pego de sua mão e
ajeito a camisinha no meu membro.
Se é para transar com ela eu não faço ideia,mas depois de
tantos meses aqui, fazer sexo será a primeiracoisaprazerosa que
terei, talvez a única, então paro de pensar nas consequências e
avanço em sua direção,me afundando nela com tanto desejo que
quase gozo de imediato.
Não é a minha primeiravez, mas também não é das muitas,
nunca fuium cara pegador, até porque nunca tivetempo para isso,
mal conseguia me alimentar , ainda mais transar com várias
mulheres todos os dias.
Fecho meus olhos escutando seus gemidos, ela me leva ao
ápicedo prazer, me fazendo esquecer por alguns minutos o que é
viveraqui.Quando meu pau pulsa,reprimoum ganidoao sentir-me
gozar, ela me acompanha com um grito suave.
Me afasto um pouco tonto, minharespiraçãoestá aceleradae
suor escorre por meu corpo. Elaesfregamaisuma vez sua buceta e
sorri com malícia, me olhando fixamente.
— Você é delicioso, bebê — ela apanha os pacotinhos de
drogas e volta a me olhar
. — Agora abra a boca.
— O quê-ê? — Elame olhacom impaciência,
se aproximando.
— Tu achas que essas drogas entraram como dentro da
cadeia? — Engulo em seco, assustado.
— Tu queres que eu... que eu engula?
— Ou engole, bebê, ou teremos que colocarno buraco atrás
de você — olho para trás, mas então entendo.
— No meu ânus?
— Abra a boca, não tenho mais tempo — dizcom uma certa
fúria.
Claroque não fuienviadoaquipara transar com uma prostituta
gostosa, talvez isso seja apenas um bônus do que terei que
enfrentar.
Elasegura meu queixoe curva minhacabeça para trás, abro a
boca.
— Esses pacotinhos estão muito bem embalados,
normalmente depois de engoli-los,você teria que tomar um
medicamento para diminuira velocidade de movimento de
substâncias pelo trato digestivo, até que os pacotes sejam
recuperados, só que não tenho esse remédio — esclarece,
afundando a droga por minha garganta, engulo com dificuldade.—
Se uma delasse romper, você poderá morrer de overdose, então ao
sair daqui não coma e não beba, evitemovimentobruscos até tirá-
las de dentro de você.
Assinto, caladoe aterrorizado,sem saber onde eu errei para
minha vidachegar a esse ponto. Depois de me fazer engolirtodos
os pacotinhos de cocaína, ela se afasta e sorri.
— Prontinho — ela se levanta e me ajuda. — Boa sorte, bebê!
Visto minhas roupas, minhas mãos tremem sem parar, meu
coração palpitatão desesperado que temo o pior. Estou assustado
com isso, Jaroslavme quer como sua mula,aqueleque levadrogas
para dentro da cadeia sem que os guardas percebam.
— Visit
a encerrada — um guarda gritado ladode fora, inspiro
fundo,olhomaisuma vez para a mulherque retribuicom um sorriso
antes de me virar e sair do quarto, pelo menos agradecido pelos
momentos de prazer.
Dois deles me seguram pelo braço me levando para outra sala,
uma vazia e gelada. Olho para eles sem entender o que estão
fazendo.Um dos guardas, esboça um pequeno sorriso...um sorriso
frio que revira meu estômago.
— Tira as roupas — não espero que repita a ordem e as tiro
rapidamente.— Agora vaiaté aquelaparede, coloqueas mãos nela
e abra as pernas um pouco curvado.
Engulo em seco e faço conforme ordenou. Fecho meus olhos
ao sentir dedos enluvados entrar no meu ânus à procura de algo
que eu esteja escondendo, mas as malditasdrogas estão no meu
estômago.
Fecho meus olhos diante de tamanha humilhação.O guarda
dizque estou limpo,se afasta, inspirofundo e de repente solto um
gritoquando jatosde água geladaatingemeu corpo, me lavandoe
tirando todo o vestígio de suor e sexo da pele.
Enguloo caroço que se formou na garganta, sintovontade de
chorar, de pedir para que me levem de volta para minha família
porque não sei se serei capaz de suportar tudo isso dia após dia.
Os guardas me lançamolharesdivertidosao me verem tremer
de frio, eles me entregam uma toalha para que possa me enxugar,
visto minhas roupas e sou levado de volta para minha cela.
Eles me deixam no meu lugar, retiram as algemas e vão
embora, eu apenas espero a hora certa de entregar tudo o que está
dentro de mim para o verdadeiro dono.
Duas horas depoissou maisuma vez levadoda minhacela,só
que pelos capangas de Jaroslav . Entro no banheiro fedorento, ele
está com os braços cruzados à espera.
— Coloquepara fora, garoto — elechuta um balde,assintoe
com um pouco de dificuldade para vomitar, consigo colocar tudo
para fora, pelo menos acho que tirei tudo.
Jaroslav sorri, encarando os pacotes que tireiatravés do
vômito. Meu coração dói devido as batidas descompassadas. Se
estiver sobrado um pacotinho dentro de mim, poderá ser meu fim.
Sobressalto quando ele segura meu pescoço com força, seu
olhar penetra no meu, ao invés de me sentir aliviado,
sinto muito
mais medo, porque ele não vai parar
.
— Bom garoto — fala,batendo com forçaem minhabochecha.
— Transaste com ela? — Engulo em seco, nego com a cabeça,
mentindo descaradamente. — Se não, foiburro em não aproveitar,
mas me trouxe o que eu precisava,issoque importa.— Jaroslavse
afasta, olhapara seus capangas e acena de levecom a cabeça. —
Cuidem dele, acho que ele precisa aliviar a tensão.
Congelo,arrepiode pavor espalhapor meu corpo, Jaroslavsai
do banheiro,me virodevagar e assistoo sorrisode vitóriados dois
homens parado à minhafrente.Quero poder gritar, ordenar que não
me toquem, mas é impossível.
Eles avançam, sedentos e me prensam contra a parede,
lágrimasescorrem por meu rosto e fechomeus olhos,fazendocom
que minha mente se desligue de todo esse inferno...
— Ei cara! — Uma voz grossa e firme me tira do passado,
encaro o homem diante de mim, me encarando com a testa
franzida, leva um tempo para me recuperar. — Estás bem? —
Pergunta.
Elevo meus olhos, observando mais homens me olhando com
curiosidade. Assinto, voltando para o homem à minha frente.
— Preciso de emprego — digo, ele aperta os lábios. — Não
tenho medo do pesado.
— Você parece perdido — fito seus olhos através dos seus
óculos.
— Sim, estou à procura de emprego, mas não encontro.
— Não pagamos muito.
— Não há problemas, só preciso de um emprego — ele
assente, franzindo a testa, olha para trás cogitando meu pedido.
— 150 grívnia[2]a diária — diz, voltando a me encarar.
— Okay! — Concordo, é pouco, mas é um dinheiro bem-vindo.
— Sou Egor, o responsável por essa construção — ele
informa, me guiando para dentro. — Ei Alexei! — grita, me
entregando um capacete alaranjado. — Temos um para substituir
Maxim.
Egor bate em meus ombros e aponta para o cara que se
referiu ao Maxim. Ele me diz o que devo fazer, assinto
obedientemente prestando atenção nas suas instruções.
Minutos depois começo a soldar, focandono serviço duro e me
esquecendo do que atormenta minha alma, e assim me desligo
tanto do passado quanto do presente.
Me encolhoquando escuto gritos do lado de fora, a voz da
minha mãe está alterada, furiosa.Fecho meus olhos querendo
dormir para que tudo isso acabe, mas sei que não vai acabar
, ela vai
se afundar na bebida, vai me deixar sozinha e tudo se repetirá.
Quero tanto fugir!
Depois de longos minutos, tudo ficasilencioso,não ouço
passos, nem vozes, apenas as batidasaceleradasdo meu coração.
Tateioa mesinha ao ladoda minhacama em busca do meu celular .
Desbloqueioa tela e entro no site de novo, pela milésima
vez só
hoje, esperando, ansiando por alguma resposta.
Eu vou conseguir!
Sobressalto quando uma porta bate, estremecendo as
paredes. Prendo a respiração, eu sei que é ele. Engulo com
dificuldade,
seguro o celularcom maisforça,olhandopelaescuridão
do meu quarto.
Ele não costuma ligaras luzes, e quando minha mãe está
fazendoprogramas, elesempre vem... foiassimdesde que eu tinha
sete anos, desde que minha mãe o trouxe para casa.
Escuto passos pesados, sinto cheiro de bebida, meus pelos
eriçam, minha mente grita para eu fugir
, gritar e pedir ajuda, mas
meu corpo não me obedece. As ameaças, a influência que tem na
nossa pequena cidade me impede de pedir ajuda...
Ele disse que se eu contar vaimatar minha mãe, e toda vez
que o desobedeço, ele a machuca, a agredindo furiosamente.Só
que estou cansada, tenho medo e meu corpo... meu corpo é
repugnante e... e...
Escuto minha porta ranger, meus olhos imediatament e se
enchem de lágrimas,aperto minhas pernas contra a outra, porque
dói, ele sempre me machuca.
Escuto-o se aproximando e parando ao meu lado na cama,
aperto o celularcontra o peito,reprimindoo choro. Minhascobertas
são tiradas de cimade mim, solto um gemido de angústia quando
sinto suas mãos subindo por minhas pernas, quero gritar e pedir
para que não me toque, mas issoresultariaem maisdor, seriamais
agressivo e... bateria na minha mãe até ela não conseguir mais
andar.
Quero tanto morrer.... Esse é o pensamento que tenho quando
elesobe na cama depoisde tirarmeu pijama,sintosua pelee jásei
que está sem suas calças, é sempre assim... fecho meus olhos,
meu estômago embrulha de novo.
— Viu o que você me fez? — Sua voz faz meu corpo inteiro
estremecer de medo. — Você é asquerosa, só sabe dar nojo nas
pessoas, por isso que faço isso, ninguém gosta de você, Lauriana.
Solto um gemido ao sentir suas mãos em volta do meu
pescoço, abro os olhos,encontrando seu olharinsano,perverso. Ele
está furioso comigo, mas por quê? O que eu fiz?
— É tudo culpasua — fala,o brilhode seus olhos é a única
coisaque consigo ver na penumbra. — Ninguém vai te amar, sua
mãe não te ama...
Lágrimas escorrem por meu rosto, suas mãos começam a
apertar meu pescoço com mais força, um choro silencioso
sai da
minha garganta.
— Eu vou te punirpor isso— soltoum gritoquando sintodor
entre minhaspernas, soltomeu celulare seguro seu pulso,tentando
fazer com que diminua o aperto que está me tirando o. ar
Só que não consigo, a dor é demais e hoje... hoje ele quer
apenas me machucar. Fecho meus olhos em um pedido silencioso
por ajuda, se eu tivesse apenas uma pessoa... se uma pessoa
pudesse me ajudar, eu... eu... fugiria desse inferno.
— Nunca te machuquei, mas veja como você me deixa —
fechomeus olhoscom maisforça,apertando seus pulsos.— Issoé
por você não me obedecer...
Solto outro grito quando me violentacom mais força, eu
sempre chamo por minha mãe, mas ela nunca vem, então se ela
não pode me salvar, quem poderá?
Abro os olhos e arfo ao despertar, meu corpo inteiro está
encharcado de suor, meu rosto molhado de lágrimas. Me levanto
apressada e ligo as luzes com as mãos tremendo, olho pelo quarto,
temendo vê-lo.
Solto um gemido, no meio das minhas pernas sinto dor.
Destranco a porta do quarto e vou direto para o banheiro, me dispo
e entro no chuveiro, começando a esfregar com força meu corpo na
tentativa de tirar a sensação do seu cheiro em mim.
Ninguém vai te amar
, sua mãe não te ama...
Começo a chorar ao mesmo tempo que sinto a dor da esponja
contra minha pele. Sua voz dentro da minha cabeça não sai, então
começo a bater minha mão contra ela, pedindo desesperadamente
que vá embora.
Você é asquerosa, só sabe dar nojonas pessoas, por issoque
faço isso, ninguém gosta de você, Lauriana.
Caio de joelhos, chorando com desespero para que ele pare
de me dizer isso. Digo a mim mesma que ele não está aqui, que não
pode mais me tocar, mas... o que adianta se ele está impregnado
em minha mente?
O que eu faço para me livrar dessa dor?
Abraço meus joelhos e descanso minha testa neles,
cantarolando, focando apenas no barulho da água saindo do
chuveiro e colidindo em minha pele.
Várias vezes pensei que a morte era a única solução, ou que
eu era culpada por tudo o que estava acontecendo comigo. Sempre
tentei compreender minha mãe, mesmo se prostituindo, ela nunca
me deixou faltar nada, mesmo sem viver no luxo, ela pagava uma
boa escola, cursinhos e sempre me dizia que os estudos é o que
nos leva a ser bem sucedidos.
Ela sempre teve cuidado comigo, mesmo bêbada muitas das
vezes tentou me dar o melhor, mamãe sempre se preocupou com
meu futuro, nem que para isso ela precisasse se prostituir dia e
noite.
Tudo mudou quando ela trouxe meu padrasto para dentro de
casa, eu tinha cinco anos, fiquei feliz por finalmente ter ganhado um
pai, embora ela nunca tenha parado seus programas, mamãe me
amava. Só que ela acabou colocando-o entre nós, seu amor por ele
chegou ao ponto de fazê-la fechar os olhos perante o que ele vinha
fazendo, perdoando-o pelas surras sem motivos, por chegar quase
todos os dias bêbado em casa, e por não trabalhar, ela o
sustentava.
Aos seus olhos ele era um bom pai, me dava amor e carinho.
Na sua presença ele era realmente um homem perfeito, tinha seus
defeitos, mas cuidava de mim e isso bastava para ela.
Mamãe não fazia ideia do que vinha acontecendo na
madrugada ou quando ela não estava em casa. As brincadeiras dele
se tornou incômodas, começou a me deixar desconfortável até que
ele ultrapassou os limites.
Eu era apenas uma criança quando tudo começou, tentei falar
para minha mãe que ele me machucava e que eu não gostava das
brincadeiras dele, mas como punição por tentar revelar a verdade,
meu padrasto a espancou e ameaçou matá-la.
Sofricalada, me senti a pior pessoa do mundo, me culpava por
tudo o que estava acontecendo, mas eu tinha que proteger minha
mãe. Quando meu corpo evoluiu, mostrando que eu não era mais
uma criança, mais obsessivo ele se tornou.
Inspiro fundo, não quero lembrar do meu passado, já se
passaram 15 anos, e mesmo assim ainda não consigo seguir em
frente. Levanto a cabeça e observo o estrago que fiz no meu corpo.
Esfreguei minha pele com a parte mais áspera da esponja em
mim, agora ela está vermelha e em algumas partes acabei me
machucando, fazia alguns meses que não me feria assim.
Depois de alguns minutos, me levanto, desligo o chuveiro ao
me sentir mais calma e olho para minhas roupas caídas no chão.
Me aproximo e com receio, ergo minha calcinha em busca de
sangue, não encontro. Solto um suspiro aliviado.
Ele não me tocou!
Visto um moletom quentinho e congelo, encarando a cama.
Meu coração volta a acelerar e olho para trás.
Ruslan!
Merda, eu me esqueci dele. E se ele tiver escutado tudo? Eu
chorei alto? Será que Ruslan... presenciou meu surto?
Saio do quarto e olho para a sala, a luz está ligada, assim
como a da cozinha. Escuto vozes na tv, mas não o encontro, Ruslan
não está aqui.
Rony dorme no sofá tão preguiçoso como é, me aproximo e
me aconchego junto a ele. Encaro a tv que está passando O Clube
das Winx. O gato ronrona perto do meu ouvido ao deitar no meu
pescoço, ele está cheiroso, parece que tomou banho.
— Ruslan te banhou? — Pergunto, acariciando seus pelos
macios e negros. — Acho que sim!
Me perco assistindo o desenho, não faço ideia de que horas
são, só sei que é de madrugada e quando tenho pesadelos,
dificilmente consigo voltar a dormir.
Começo a piscar pesado, a coberta em cima de mim, a que
está me esquentando do frio, tem o cheiro do Ruslan e meio que...
acho reconfortante, está me acalmando de algum jeito estranho.
Fecho meus olhos, a respiração de Rony toca com delicadeza
meus ouvidos, é tão gostoso... Sobressalto quando a porta é aberta,
olho em sua direção com o coração acelerado, minha respiração
está irregular e por um segundo penso que ele me achou, mas é
apenas Ruslan.
Ele fecha a porta com cuidado, suas roupas estão sujas, seus
coturnos têm barro. Ruslan se inclina e os tira, colocando em um
cantinho, então ele se vira e vai até o pequeno corredor que dá
acesso ao meu quarto e o banheiro, ele se senta no chão,
encarando a parede à sua frente sem nem ao menos notar minha
presença.
O que está acontecendo com ele?
— Ruslan? — Sussurro, afastandoa coberta e me levantando.
— Ei, onde você estava? — Pergunto, contorcendo minhas mãos,
ele não responde. — Você está aqui?
Ruslan exala forte, dou um passo para trás ao ver suas mãos
trêmulas, sua expressão é de dor, como se ele estivesse preso em
um outro mundo, talvez seja o dos seus pesadelos, porque apenas
seu corpo se faz presente diante de mim.
Meu coração aperta por vê-lo tão... destruído, mas acabo me
afastando e deixando-o no seu canto, até porque, não o conheço e
muito menos sei do que é capaz.
Volto para o sofá, Rony vai até ele e se aninha entre suas
pernas, um sinal de que Ruslan não está sozinho e que seu gato
está lá por ele. Me cubro com sua coberta e fico o encarando sem
dizer nada até amanhecer.
Antes de entrar no serviço, passo na confeitaria Musse
Confectionery que fica uma esquina abaixo da AS. Eles
desenvolveram um éclairintergaláctico, um doce com estampas
intergalácticas em tons de azul, roxo e rosa, com direito à “poeira de
estrelas”.
Peço os sabores de baunilha e chocolate, meus preferidos.
Enquanto aguardo, olho ao redor da confeitaria que está vazia por
conta do horário. Geralmente enche de clientes depois das oito da
manhã.
Escuto o sininho da porta e olho para trás, seus olhos se fixam
no meu, um sorriso esboça em seu rosto. Fecho as mãos em punho
quando Artem se aproxima de mim, ele está sem a farda policial.
Engulo meu nervosismo, sentindo sua presença. Ele parece ter
1,95 de altura, seus braços são musculosos e as roupas escuras o
deixa ainda mais lindo do que já é.
Ruslan tem quase sua altura, acredito que uns cinco
centímetros mais baixo, ele também é menos musculoso, mas lindo
tanto quanto Artem.
— Bom dia, Laura — saúda, colocando as mãos no bolso.
— Oi — respondo por educação, voltando a olhar para frente,
ignorando sua presença.
— Soa-te bem?
— Estou bem! — Digo sem olhar para ele, começo a balançar
minha perna.
Droga, onde está meu pedido?
— Frequentaste muito aqui? — Olho para ele por cima do meu
ombro, Artem está puxando conversa e eu não gosto disso.
— Não muito, de vez em quando. — Ele assente devagar, me
encarando.
— Aqui tem os melhores doces da cidade, acredito que da
Ucrânia inteira — fala, olhando para os outros doces em exposição.
— Minha mãe ama, sempre que possível levo para ela.
— Senhorita, seu pedido! — A moça me chama, entregando-
me a caixa dos meus doces intergalácticos.
— Gostaria de convidar-te para tomar alguma coisa, aceita? —
Estreito meus olhos, ele sustenta meu olhar desconfiado, sabendo
perfeitamente que estou desconfortável com sua aproximação.
— Não — digo, indo até o caixa.
— Por que não? — Assusto ao senti-loatrás de mim, o rapaz
do caixa me devolve o troco e franze a testa.
— Obrigada — digo, ele assente encarando Artem, me afasto
e saio apressada da confeitaria.
— Laura? — Artem me chama, viro em sua direção sabendo
que iria segurar meu braço para me parar, porque ele está curioso
em relação a mim, e isso está me deixando assustada.
— Olha, eu não te conheço e nem quero conhecer — falocom
raiva, ele esfregasua barba rala me lançando um olhar estranho. —
Aquele dia você estava trabalhando e entendo, mas não ultrapasse
essa linha.
— Ele pode estar atrás de você.
— Não, ele não está! — Minha respiração acelera, seguro
mais firme a caixa dos doces.
— Ontem... — Artem coloca as mãos na cintura e olha para os
lados. — Ontem uma mulher foi assassinada! — Congelo com sua
declaração, ele fica me encarando.
— O... quê?
— É isto o que estou a dizer, ontem foi encontrado um corpo
de uma jovem morta.
— Pessoas morrem todos os dias, assassinadas ou não, qual
a ligação? — Artem arqueia uma sobrancelha.
— A ligação está na semelhança de como ela foi assassinada
— esclarece com a expressão ilegível. — Como eu disse, Ruslan
começou de novo.
— Como pode ter certeza que foi ele?
— Por que o defendes? — Aperto meus lábios, tenho que
tomar cuidado. — A ocorrência aconteceu às três da manhã...
— Para de me contar essas coisas — falo,angustiada. — Não
tenho nada com seu criminoso, não sou a detetive e muito menos o
quero perto de mim.
— Você sabe onde ele está, estou apenas...
— Para Artem! — O repreendo, transtornada com essas
informações.— Não estou com ninguém e não afirmealgo que você
não sabe! — Minto, merda, as mentiras estão saindo tão fáceis por
minha boca.
— Eu só quero encontrá-lo! — Umedeço meus lábios, suas
palavras saíram tão pesadas que senti um soco no estômago.
— Por quê? — Artem não desvia do meu olhar curioso. — Por
que essa fascinação por ele?
— Ele é um criminoso...
— Não, não é só por isso. — Corto-o. — E por que eu? O que
eu tenho haver com isso? Sou apenas uma colunista, somente isso!
Artem respira fundo, olhando para a avenida que começa a
ficar movimentada. Ele abaixa a cabeça, mas não diz nada, tem
alguma coisa errada.
— Seus olhos... — murmura, voltando a me encarar. — Tem o
mesmo vazio que os dele...
Suas palavras me pegam desprevenida, não esperava nada
parecido, porém, mesmo assim não entendo, não compreendo.
— Eu não sei do que está falando — dou um passo para trás.
— Apenas não me procure mais!
Artem me encara, dou as costas e caminho apressada até o
meu trabalho, repassando tudo o que me falou, mas não encontro
respostas para isso.
Chegando na minha sala, distribuo os doces que comprei para
meus colegas que ficamfelizes por eu ter lembrado deles. Sento-me
no meu lugar depois de ter limpado minha mesa com álcool.
As palavras de Artem ainda batucam em minha mente, encaro
os dois que sobraram, lembrando de Ruslan. Ele chegou sujo, não
disse nada e... será que... que... não, não pode ser, ele não teria
matado de novo!
Mas porque ele não mataria? Ele é um assassino, certo? Foi
condenado por isso...
Céus Laura, o que está pensando?
Entrelaço os dedos entre meus cabelos com a mente muito
bagunçada. Quando saí de casa, deixei Ruslan do mesmo jeito que
chegou, ele não falou, não se moveu e nem comeu o lanche que
preparei, ele apenas ficou como se não existisse.
Pego um doce, e o levo à boca, sentindo seu sabor delicioso.
Inspiro fundoe guardo o que sobrou, para levar para... Ruslan, acho
que ele irá gostar.
— Gente! — Aksinya grita com a boca suja de doces e olhos
arregalados. — Vocês viram?
— Vimos o quê? — Justik pergunta se levantando e colocando
todo o resto do doce na boca.
— Mais um assassinato — ela revela, Yaroslav fica atrás dela,
olhando para a tela do computador enquanto come com
tranquilidade.
— E? — Yaroslav pergunta, lambendo os dedos.
— É que o jornal concorrente alegou que Ruslan pode ter sido
o culpado, eles estão ligando também o assassinato que você e
Laura foram investigar.
Paro de mastigar, encarando todos eles, um arrepio sobe por
minha espinha e vai até minha nuca, Ruslan também estava lá, no
mesmo local onde encontraram o corpo da mulher.
Seu gato estava lá, ele me assustou... será que... foi ele
mesmo?
— Laura, parece-te bem? — Olho para Aksinya. — Estás
pálida.
— Eu estou bem! — Digo, engolindo com dificuldade.
— Sabem o melhor de tudo? — Justik pergunta, negamos com
a cabeça. — Dou dez minutos para a resposta entrar por essas
portas.
— Cinco minutos — desafio, eles riem tensos com o que nos
aguarda.
Não demora nem cinco minutos para Andry entrar em nossa
sala. Sua respiração está acelerada e seu pescoço avermelhado,
escorrego na minha cadeira, querendo me esconder ou algo
parecido.
— Que merda! — Vocifera, nos encarando. — Quero que
investiguem esse novo assassinato, faça o que puderem para
descobrirem tudo. — Ele aponta para mim, ranjo meus dentes. —
Consegui uma entrevista com um dos jures que participou do
julgamento de Ruslan, Yaroslav vai com você enquanto os outros
vão atrás das outras pistas.
Andry sai da sala, nos impossibilitando de dizermos ou
contestarmos alguma coisa. Solto a respiração, irritada com seu
jeito de distribuir ordens.
— Acho que somos detetives agora — Justik resmunga. —
Andry acha que somos da polícia? Porque não tem condição!
— Saco... — resmunga Aksinya, juntando suas coisas para ir
atrás do que Andry ordenou.
Encaro a construção monumental do tribunal de Kharkiv. As
escadas de aproximadamente 10 metros dão um ar misterioso para
o lugar mais importante da região. De todos os anos morando na
cidade, essa é a primeira vez que venho aqui.
Seguimos rumo ao nosso encontro, Yaroslav comanda o
caminho, eu apenas o sigo admirada pelas altas paredes decoradas
com quadros. O teto se parece com uma igreja medieval e os pisos
são todos desenhados. Se eu gritar, tenho certeza que fará eco.
Encontramos poucas pessoas ao longo do caminho, subimos
escadas e pedimos informações até achar a sala do júri 417. Meus
olhos se prendem no homem mais velho vestido com um terno azul
marinho, seus cabelos e sua barba estão grisalhos, chutaria uns 50
e poucos anos de idade.
Ele se levanta quando nos vê, dispensando a mulher que está
ao seu lado.
— Boa tarde senhor Leonid, sou Yaroslav e esta é Laura,
somos do jornal AS Kharkiv.
— Estava à espera de vocês — diz, apertando a mão de
Jaroslav, eu apenas aceno com a cabeça.
— Perdoe-nos pelo atraso — meu colega se desculpa.
— Muito obrigada por nos conceder essa entrevista, senhor
Leonid, prometemos não tomar muito do seu tempo. — Falo, para
tranquilizá-lo
— Não se preocupem — ele aponta para nós sentarmos.
— Irei gravar, o senhor se importa? — Ele sorri para mim,
negando com a cabeça.
— Certo, então vamos começar. Sei que o senhor deves estar
muito ocupado. — Yaroslav diz, se acomodando na cadeira.
Leonid nos olha com atenção por alguns segundos, abaixa os
olhos e cruza as mãos, reparo que há um pouco de oscilação nos
seus gestos, talvez tristeza? Ele volta a me olhar, respira fundo e
começa a falar.
— Esse tribunal e essa sala foram minha casa por dez dias. Eu
me sentei na primeira fila, terceira cadeira à direita. Estar aqui me
traz muitas recordações.
— O senhor lembra do Ruslan Rotam?
— Vejo o seu rosto o tempo todo, nunca pude me esquecer de
Ruslan. — Ele bate de leve no braço da cadeira, apertando os
lábios. — Meu nome é Leonid Kuchama e fui o porta-voz do júri no
caso de Ruslan Rotam, em 2005. Não tinha como não se intimidar
pela gravidade das acusações contra ele. O assassinato mais
chocante foi de uma jovem de 18 anos, acredito que tenha usado
pelo menos cinco facas para realizar as mais de 20 perfurações. O
ataque foi tão violento que separou a lâmina do punhal de uma das
facas. Ele enfiou as facas tão profundamente que ficaram presas
nos ossos da vítima.
Leonid faz uma pausa, se perdendo no passado. Olho para
Yaroslav sentindo meus batimentos acelerarem, imaginando a dor e
o medo dessa garota.
— Cada vítima sofreu uma morte violenta, lenta, dolorosa e
brutal. — Volto a olhar para ele, sua voz sai trêmula. — Isso pesou
muito em meu coração, no que diz respeito a fazer a coisa certa.
— Como chegaram a essa decisão? — Pergunto.
— Se a pena de morte não tivesse sido abolida em 2000, essa
seria a melhor escolha diante dos fatos. — Leonid umedece os
lábios, esfregando os dedos sem nos encarar. — Foi preciso um
acordo unânime entre todos os jurados. E eu me lembro de levantar
da mesa e andar até a janela, tentando conter as lágrimas e dizendo
“Os doze precisam tomar a mesma decisão, onze já decidiram, e
eu?”
— Por que o senhor... teve dificuldade de condená-lo? — Ele
me olha com um olhar devastado e olhos marejados, engulo em
seco.
— Ruslan só tinha 18 anos na época, sem antecedentes
criminais e notas ótimas na escola. Algumas testemunhas relataram
que ele era um garoto gentil, não dava trabalho, ajudava no sustento
de casa. Quieto, mas sempre sorrindo. — Leonid abaixa o olhar. —
Ruslan foi a julgamento com um advogado cedido pelo estado, tão
incapaz, que foi como não tivesse um.
— A família dele não tinha condições — Yaroslav conta,
fazendo Leonid fechar os olhos um pouco abalado.
— Ruslan ficou meses na cadeia até o seu julgamento. Era
nítido a sua mudança desde que foi preso. — Ele inspira fundo e
balança a cabeça. — Seu olhar vazio se encontrou com o meu, ali,
diante de todos o acusando pelos assassinatos. Ele não pôde nem
ao menos se defender, eu vi uma alma inocente morrer naquele dia.
Abaixo a cabeça emocionada com suas palavras, porque dos
dias em que Ruslan está em casa, é como se estivesse apenas a
carcaça dele.
— O senhor acredita que ele possa ser inocente? — Pergunto,
Leonid me olha por alguns segundos.
— As provas que tínhamos não deixava espaço para dúvidas
— declara. — Mas...
— Mas?
— Não sei, senhorita Laura, algo me dizia que havia alguma
coisa errada, mas eu não era seu advogado e nem um promotor ou
o juiz, estava ali para julgá-lo. Tínhamos provas suficientes, até
mesmo para condená-lo a pena de morte. Não pude fazer nada! —
Afirma, fazendo uma pausa para recuperar o fôlego. — Em 29 de
outubro de 2005, o júri recomendou pena perpétua. — Diz, por fim.
Fico absorvendo cada palavra que ele disse, sinto um aperto
no meu peito como se sentisse a dor da injustiça, mas será que
realmente tem algo de errado, ou é porque se tratava de um simples
garoto?
— E depois? — Leonid me olha. — O que aconteceu depois
da sentença?
— Eles o levaram — me responde, dando de ombros. —
Ruslan passou por três presídios antes de parar no Colony 100.
— A família estava presente? — Pergunta Y
aroslav.
— Sim, nos dez dias de julgamento. — Responde, esfregando
as mãos.
— Como eles estavam? — Yaroslav se remexe na cadeira. —
Diga-me, como eles reagiram?
— Foram frios o julgamento inteiro — conta, se inclinando e
sustentando os braços nos joelhos. — Cheguei a acreditar que não
se importavam com o garoto, não se abalaram quando as provas
foram mostradas. Mas quando o juiz deu a condenação e o retirou
do tribunal, a família se desestruturou, então percebi que eles
estavam se fazendo de fortes por ele, para que aquele garoto
suportasse o que viria à frente.
— E as testemunhas? Quem testemunhou contra ele?
— Tiveram suas identidades protegidas — declara.
— Por que não ouviram ele, Leonid?
— Ruslan apenas se declarou inocente, e mais nada foi dito.
— Assinto, achando estranho demais.
— Tu achas que podem ter cometido um erro com Ruslan? —
Ele olha para Yaroslav, encolhendo os ombros.
— Quem sabe... — Leonid tira seu celular do bolso.
— O senhor sabe que Ruslan está foragido? — Ele ergue os
olhos e os prendem nos meus.
— Sim — Leonid umedece os lábios e suspira. — Sabes o que
temo? — Nego com a cabeça. — Tenho medo de que o estado
tenha sido injusto com um garoto inocente, e que ele busque
vingança.
— Então estás a nos dizer que Ruslan pode ir atrás de cada
um que o colocou na cadeia? — Yaroslav pergunta, assustado.
— Exatamente isso! — Confirma.
— Mas e se ele forinocente de todas as acusações? — Leonid
estica seus lábios em um sorriso frio, negando com a cabeça.
— O mundo em que Ruslan viveu todos esses anos pode ter o
transformado em um verdadeiro monstro, porque atrás das grades,
vivendo com pessoas da pior espécie, você só tem uma alternativa,
se tornar um deles. — Seus olhos se fixam nos meus com
intensidade. — Ruslan não é mais um garoto de 18 anos e muito
menos uma alma inocente. Ele foi capaz de fugir da prisão mais
segura da Ucrânia, enganou cada policial sutilmente, se manteve
centrado esperando o momento certo, agora está solto pelas ruas.
— Às vezes ele só quer ser livre... — Me calo quando Leonid
balança a cabeça.
— Ruslan quer vingança por tudo o que fizeram — ele se
levanta, ainda me encarando.
— Isso seria justo, não? — Digo.
— Talvez, mas até que ponto é justo para você?
— E se ele não for o assassino? — Leonid passa a língua nos
lábios, olhando além de mim.
— Ruslan pode ter entrado não como um assassino, mas ele
pode ter se tornado um. — Choque espalha por meu corpo. —
Preciso ir agora.
— Obrigado por esta entrevista, senhor — Yaroslav se levanta,
apertando a mão de Leonid.
— Estarei à disposição — ele me olha, só que minha cabeça
está rodando com todas essas informações.
Ruslan não é mais inocente, então até que ponto posso confiar
nele?
— Laura? — Levanto o olhar, ele sorri para mim. — Não
penses demasiado nisso. Para algumas perguntas não existem
respostas, pois dentro de cada um de nós há um monstro
adormecido esperando ser acordado. Se Ruslan se tornou um
perigo para sociedade, a culpa não foi dele, e sim nossa. — Leonid
me olha por mais alguns segundos antes de ir embora, nos
deixando abalados com tantas informações incompletas.
— A cada dia que investigamos a vida de Ruslan, com mais
dúvida eu fico em relação aos crimes supostamente cometidos por
ele. — Yaroslav declara, arrumando as coisas para gente ir. — E
agora, o que a gente faz? — Olho para meu colega, precisamos de
mais do que temos, precisamos ir mais a fundo...
— Vamos entrevistar a família dele.

Rodo a caneta em cima da mesa de Olesya enquanto aguardo.


Sua secretária pediu que eu esperasse aqui em seu consultório até
ela chegar, dizendo que Olesya teve um imprevisto que ocasionou
seu atraso.
Olho para os ponteiros do relógio, passaram dez minutos
desde que cheguei, minutos que parecem horas quando se tem
tantas coisas perturbando sua mente.
Inspiro fundo e analiso o consultório com atenção que nunca
dei. Suas paredes e móveis brancos me dão a sensação de estar
presa dentro de um cubo. O que deixa o ar um pouco mais alegre
são as cores amarelas, distribuídas em quadros e almofadas em
cima do sofá, rosas vermelhas e azuis nos vasos distribuídos pelo
lugar.
Levanto-me e vou até a estante de livros da Olesya, há vários
tipos de leituras, desde ficção a psicologia e estudo de
comportamentos, têm até um especialista em serial Killer. Quando
vou tirá-lo da estante a porta se abre, me assustando.
— Perdoe-me pelo atraso, Laura — Olesya se desculpa,
fechando a porta e tirando seu casaco.
— Tudo bem — respondo, encostando-me na estante e
assistindo-a guardando suas coisas.
— Houve um imprevisto que tive que voltar para casa, mas
agora sou toda sua. — Ela fala, se virando para mim e se sentando
à sua mesa.
Fico encarando seu rosto delicado, hoje ela não parece tão
bem como nos outros dias, há olheiras em seus olhos deixando-a
com um semblante de cansada.
— Você está bem? — Pergunto, Olesya franze a testa.
— Creio que sim — ela aponta para cadeira à sua frente. —
Venha, conte-me o que a aflige.
— Posso ser sua terapeuta se quiser — vou até ela e me
sento. — Acho que posso ser boa com isso.
— Por quê? — Dou de ombros, voltando a rodar a caneta.
— Vai ser interessante escutar os problemas de outras
pessoas além dos meus. — Olho para ela que me fita com atenção.
— Estou a passar por conflitos familiares. — Revela, se
recostando. — É algo difícil de lidar
.
— Entendi...
— Diga-me, Laura — umedeço meus lábios e olho para a
caneta.
— Como é... ter um namorado? — Engulo em seco,
envergonhada com essa pergunta. — Digo, como é... fazer sexo
sem... sabe... sem... — Me calo, não conseguindo organizar minhas
palavras.
— Como é fazer sexo sem ser estuprada? — Levanto os
olhos, suas palavras me atingem, mesmo que tenha sido gentil, no
modo que falou, essa frase continua sendo pesada demais, é
vergonhoso.
— É...
— Laura, não tenha vergonha do que fizeram com você,
lembre-se, você foi a vítima, pequena flor
.
— Por que me chama de pequena flor? — Olesya sorri para
mim e dá de ombros.
— Meu irmão me chamava assim, é uma forma de nunca o
esquecer.
Irmão? Fico paralisada, será que... pode ser apenas uma
coincidência, mas... e se não for?
— Você nunca mencionou que tinha um irmão.
— Tu nunca perguntaste — aperto meus lábios, concordando
com ela.
— Hum... — Inspiro fundo. — Hoje em meus sonhos eu revivi
tudo de novo...
— E se machucou? — Assinto, esticando as mangas do meu
casaco.
— Eu senti tanto medo... estava sozinha... foi tão real. —
Minha voz sai trêmula, inspiro fundo. — Tenho medo de que isso se
repita, que os pesadelos passam a ser reais.
— Não vai acontecer, mas você precisa lutar contra sua dor,
tem que deixar com que os muros que levantou se abaixem para
que possa sentir a verdadeira felicidade.
— E... se me machucarem de novo? — Olesya se inclina sobre
a mesa, olhando no fundo dos meus olhos.
— Não vou te dizer que não irão te machucar, porque tem
inúmeras maneiras de um ser humano nos ferir, porém, se não
permitir que isso aconteça, como irá encontrar a pessoa certa? —
Ela se levanta, arrasta a cadeira que está ao meu lado e se senta.
— A vida é cheia de erros e acertos, você erra para poder acertar.
— Eu tenho medo...
— Me dê sua mão, Laura! — Diz, esticando sua mão direita
em minha direção, colo minhas costas no encosto temendo que me
toque. — Qual foi a última vez em que você tocou em alguém? Não
digo por acidente ou um esbarrão, falo de verdade, porque tu
quiseste, quando?
Aperto minhas mãos em punho, balanço a cabeça sem saber
ao certo, só sei que faz muitos anos, acho que desde que fugi de
casa.
— Sei que é difícil,mas tente, toque-me — engulo em seco,
me sentindo nervosa.
— Eu não quero... eu... você... — Falo com a voz embargada,
sem a certeza de que devo fazer isso.
— Tu tens quantos anos? — Olho para ela, surpresa com sua
pergunta.
— Trinta e três — falo, Olesya sorri.
— Tenho 28 anos — revela se aproximando de mim. — Tenho
dois irmãos e uma mãe, meu pai morreu quando ainda era muito
nova, não me lembro do seu rosto.
— Por que está me dizendo isso?
— Nunca fomos ricos, sempre passamos dificuldades, às
vezes passávamos fome por não ter dinheiro para comida, meu
irmão do meio se sacrificou para ajudar mamãe nas despesas e
disse para nos dedicarmos aos estudos tanto eu quanto meu irmão
mais velho, e foi o que fizemos. — Seu olhar se perde, sua mão
está tão perto de mim que um pequeno movimento, posso fazê-la
me tocar.
— Olesya? — Ela levanta a cabeça e me olha com os olhos
marejados, isso me desarma.
— Eu errei muito, Laura, fiquei cega de raiva, me exclui do
mundo. Mas decidi que iria de algum jeito consertar o que tinha feito
de errado, decidi ajudar pessoas que assim como você, precisam de
alguém que as compreendam. Estás confusa? — Assinto, com o
coração martelando contra meu peito.
— Muito...
— Estou lhe contando tudo isso para que possamos criar um
laço, um vínculo, assim você poderá confiar em mim. Consegue
compreender? — Umedeço meus lábios, ainda nervosa. — Toque
em mim Laura!
— Mas... e se...
— Não irei sentir nojo de você, essas palavras que foramditas
contra você, não são reais. — Olesya inclina de leve a cabeça para
o lado. — Você é linda, o que fizeram com você foi uma injustiça.
Nenhuma mulher merece ser tratada dessa forma, pequena flor,
todas devem ser amadas e respeitadas.
— Eu fiz coisas ruins... — sussurro, sentindo lágrimas
escorrerem por meu rosto.
— Não querida, você nunca fez nada de ruim. — Ela se
aproxima mais um pouco, dessa vez eu não afasto. — Você era
uma criança inocente, cresceu sendo ameaçada e quando teve a
única oportunidade de fugir, você fez sem nem pensar. — Olesya
sorri para mim, sinto como se sentisse orgulho do que fiz. — Tu
foste corajosa, conseguiu entrar em um país onde não conheceste
ninguém, estudou e se formou. Se não fosse guerreira, não estaria
aqui na minha frente...Tu fizesteo que muitas não têm coragem, ou
o que muitas morreram tentando. Tu foste contra o mundo apenas
pensando em você!
Solto um soluço, seus olhos brilham por causa das lágrimas
não derramadas. Olesya sabe de toda minha trajetória e hoje é a
primeira vez que ela chega tão perto de derrubar minhas barreiras.
— Não supere seus traumas por causa de uma pessoa, Laura,
supere por você — ela estende as duas mãos, quero tanto tocá-la,
sentir sua pele e calor, faz tanto tempo que acredito que esqueci o
que é sentir outra pessoa.
— Tenho medo...
— De quê? — Engulo em seco.
— De sofrer... — Aperto meus lábios trêmulos. — Mas quero
tanto ser feliz... pelo menos uma única vez.
— Você vai, mas tudo tem que ter um começo... — Olho para
suas mãos, sinto as minhas transpirarem, inspiro fundoe as levo até
as de Olesya, pousando-as em cima das suas.
Ela aguarda com paciência, sinto seu calor e mesmo
sutilmente, consigo sentir sua pele contra a minha.
— Toda dor tem que chegar ao fim, todo trauma pode ser
superado e todo rosto poderá sorrir de novo — Sobressalto quando
ela fecha as mãos em volta das minhas, acariciando-as com seus
dedos. — O novo pode ser apavorante, mas quando se tem forçade
vontade, nada nesse mundo é capaz de te impedir. Então Laura,
lute como sempre lutou, mas agora não fuja, não se esconda,
permita-se ser abraçada e amada da maneira que merece. Com um
passo de cada vez.
Meu choro intensifica enquanto sinto-a me segurar, não da
forma brusca que ele me segurava. Diferente das dele, suas mãos
são delicadas, macias e carinhosas, embora eu queira quebrar esse
contanto, eu me mantenho firme, porque Olesya não vai me
machucar.
E pela primeira vez em muitos anos, sinto a esperança voltar,
me dizendo com todas as letras que eu posso ser feliz, que posso
ser normal e que eu posso, sobretudo, amar e ser amada outra vez.
Encaro a prateleira da papelaria inerte em meus pensamentos,
hoje o dia passou arrastado, não houve nada de interessante.
Passei o dia trabalhando na matéria sobre Ruslan. Aksinya e Justik
continuam em busca de informações sobre os dois assassinatos
que ocorreram essa semana, mas não encontraram nenhuma
informação. Andry está furioso por causa do nosso desastre em
levar algo concreto a ele.
Apanho duas canetas cor-de-rosa, elas fazem lembrar-me de
quando ainda estudava. Minha mãe costumava comprar meus
materiais tudo combinando, era um toque que tinha ou pelo simples
fato de tentar me dar o melhor.
Me afasto da prateleira e olho para Gana que tenta escolher
um caderno em meio a tantos outros. Apanho um caderno da Hello
Kitty, folheio as páginas achando tão lindo que se fosse eu, teria o
escolhido.
— Gostaste desse? — Pergunta, tirando-o das minhas mãos.
— É lindo — Gana franze a testa e me lança um olhar
estranho. — O que foi?
— Tu conheces a história dela? — Nego com a cabeça,
pegando outro caderno um pouco diferente do anterior.
— Qual história?
— Dizem que a personagem Hello Kitty não é uma gata ou
uma garota, mas sim um pacto do demônio com uma mãe. — Gana
me olha com os olhos um pouco arregalados.
— Sério?
— De certo que sim — ela ajeita sua touca e olha para os
lados antes de me encarar. — Há uma lenda que circula pelo mundo
inteiro que relata como tudo possivelmente aconteceu.
— Não conheço essa lenda — Gana revira os olhos, escoro na
prateleira e cruzo os braços.
— Em 1970 a boneca foi criada por uma senhora chinesa.
Nessa época, sua filha de 14 anos foi diagnosticada com câncer na
boca e, conforme o avanço da doença, os médicos da jovem
informaram à mãe da menina que não podiam fazer muita coisa,
pois o caso era grave e isso ocasionaria a morte precoce da sua
filha.
— E aí a mãe fez o pacto? — Gana devolve o caderno e pega
outro da cor vermelha.
— Ainda não cheguei lá! — Diz, rindo de mim. — A mãe da
garota ficoudesesperada com a possibilidade de perder sua filhade
maneira tão trágica e, recorreu às orações em igrejas, fazendo
promessas para alcançar a cura da sua jovem filha. Mas nada deu
certo, tudo o que vinha fazendo não estava surtindo efeito e, por
isso, acabou seguindo alguns rituais satânicos que prometiam salvar
sua filha se ela fizesse um pacto com o demônio.
Ela fazuma pausa dramática, olho para a senhora maquiada e
com roupas coloridas escolhendo algumas canetas e pastas para a
menininha que a acompanha, reparando no olhar de reprovação
direcionado a Gana e suas roupas muito curtas.
— E o que aconteceu depois? — Pergunto curiosa, ignorando
a senhora e fazendo com que Gana foque em mim.
— O que a mãe não esperava é que teria que dar algo em
troca. — Ela dá de ombros. — Tudo nessa vida tem um preço, e o
diabo pediu o dele. Se ela quisesse que sua filha fosse curada, ela
teria que inventar uma personagem que se tornaria famosa no
mundo todo, atraindo milhões de seguidores e fãs,e a compra deste
brinquedo funcionaria como uma oferta involuntária ao demônio. —
Gana devolve o caderno à prateleira.
— E então a Hello Kitty nasceu? — Ela assente, pegando
agora um cor-de-rosa.
— Exato, depois que o pacto foi feito, sua filha apresentou
melhora e a mãe passou a cumprir sua terrível promessa. A sua
escolha em relação à aparência da personagem não foi um acaso,
pois os gatos são animais que há séculos estão associados às
práticas de magia negra e feitiços maléficos. Como sua filha teve
câncer na boca, a mulher decidiu então fazer um brinquedo sem
boca.
— E ficou linda — elogio, Gana arqueia uma sobrancelha.
— Ai credo, Laura! — Repudia com diversão. — As orelhas
pontiagudas dela simulam os chifres de Lúcifer, a palavra “Hello”
significa “Olá” e o “Kitty”, de origem chinesa, quer dizer demônio.
— “Hello Kitty” quer dizer “Olá demônio”?
— És assustador, não é? — Gana estremece, rindo e
folheando o caderno.
— Se for verdade...
— Dizem também que a boneca pode estar agregada ao
assassinato brutal de uma mulher em Hong Kong, que ocorreu no
ano de 1999. Parece que três pessoas violaram um ritual, porque a
boneca é um símbolo secreto de satanistas e, com isso, precisaram
matar e decapitar a cabeça dessa mulher, armazenando o membro
do corpo de uma Hello Kitty. — Sinto um arrepio sútil por meu corpo,
mesmo sendo apenas uma lenda, não deixa de ser assustador.
— Tem provas de que é verdade tudo o que me contou?
— Logicamente que não, são apenas boatos, pode ser
facilmente aumentado, mas sabe-se lá até que ponto é verdade ou
não. Enquanto isso, prefiro não arriscar e não ter nada da Hello
Kitty.
— Com toda certeza essa lenda foi criada para assustar fãs e
denegrir imagem da empresa que a criou. — Gana comprime seus
lábios e assente de leve.
— Ainda assim...
— Vamos levar esse — digo, pegando o caderno cor-de-rosa
cheio de glitter da Hello Kitty que está sentada com uma câmera
fotográfica nas mãos e um laço em uma das orelhinhas.
— Tu endoidaste?
— É lindo — Gana puxa o caderno da minha mão.
— Não, nem penses nisso, eu que não irei levar essa coisa
demoníaca para dentro de casa. — Puxo o caderno de volta.
— É apenas lenda, Gana, não é possível que você acredite.
— É óbvio que sim, quando há boatos, sempre há uma
verdade.
— Que tenho certeza que não é essa — Gana fica me
encarando com o cenho franzido,é divertido ver o medo estampado
em seus olhos.
— Estás a falar sério? — Assinto, ela deixa seus ombros
caírem. — Tu és minha amiga?
— Esse caderno é lindo e eu assisto esse desenho. — Sua
boca se abre, segundos depois se fecha, ela ergue as mãos e dá
um passo para trás.
— Tu me assustaste agora, por isso que escuto sussurros
quando estou com você! — Ela esbugalha os olhos. — Tu és aliada
do demônio?
— Ah, para de besteira, Gana! — Sua gargalhada vem logo
em seguida, balanço a cabeça negativamente. — Besta!
— Vai levar mesmo?
— Claro, vai te dar sorte nas aulas — ela faz uma careta,
pegando o caderno das minhas mãos e estreitando os olhos.
— Se eu começar a ser perseguida, tu será a culpada.
— Eu te ajudo a expulsar o demônio.
— Ah, agradeço-te muito por isso. — Fala se virando e
andando para o caixa, eu apenas balanço a cabeça.
Depois dela pagar suas compras, Gana me leva para uma loja
de roupas onde pudesse escolher uma que não mostrasse tanto o
corpo. Dei minha opinião, ela acatou todas as dicas que eu dei e
comprou algumas que a deixaram ainda mais linda do que já é.
Passar um tempo com ela me deixa um pouco aliviada. Gana é
divertida e descontraída, me conta tudo o que se passa em sua
vida, e todo mês tiramos um tempinho para fazermos alguma coisa.
Ela só tem a mim, sei disso pela formaque me trata, em seu mundo
de prostituição, boates e programas, existe mais concorrência do
que se possa imaginar.
Gana de uma forma lembra a minha mãe, que assim como ela,
também era uma prostituta, não por escolha, mas por necessidade.
Sinto saudades de poder abraçá-la, de escutar sua voz e sentir seu
cheiro, daria tudo para vê-la mais uma única vez.
Será que ela está bem? Será que ela está feliz ou está
sofrendo? Ela sente saudades de mim?
Engulo o caroço que formou na garganta, abaixo a cabeça e
encaro meu sanduíche, sentindo minhas mãos tremerem. Preciso ir
embora, não estou bem...
— Sabe qual é meu sonho hoje? — Levanto o olhar,
encontrando com o de Gana.
— Não, qual é? — Ela comprime os lábios, mastigando a
batata frita que acabou de colocar na boca.
— Poderia pedir muitas coisas, até porque minha vida não é
das melhores. — Gana suspira e me encara. — Tu foste a única
pessoa que me olhou além do que eu era, não me julgou em
momento algum.
— Quem sou eu para julgar alguém?
— Você tem um coração tão puro, mas tão quebrado pela
maldade humana... — Fico olhando-a estagnada no lugar. — Nunca
imaginei que um sorriso, valeria muito mais que qualquer coisa
desse mundo.
— Às vezes a única coisa que temos pode ser arrancada por
quem menos esperamos. — Sussurro, abaixando os olhos.
— E pode ser devolvido por quem menos esperamos. —
Retruca. — E o meu sonho é te ver sorrir pela primeira vez, Laura, e
quando isso acontecer, espero poder sorrir com você.
Gana aperta seus lábios trêmulos, isso faz com que minhas
defesasenfraqueçam. Ela limpa seu rosto molhado pelas lágrimas e
sorri para mim, amenizando o clima melancólico.
— Estou de TPM hoje — declara, divertida. — Eu fico um
pouco emotiva.
— Quer um chocolate? — Pergunto, tirando um do meu bolso
do casaco. — Ajuda na TPM. — Ela solta uma risada, balançando a
cabeça de um lado para o outro.
— Jamais recusaria um doce.
— Nem eu!
Gana me deixa na porta de casa antes de ir para seu trabalho,
olho para meu prédio desgastado pelo tempo e inspiro fundo
lembrando-me de Ruslan. Quando sai cedo de casa ele não estava,
o que quer dizer que passou a noite fora.
Mil e uma coisas me vêm em minha mente em relação ao seu
sumiço, só que nem o conheço direito para exigir alguma resposta.
Céus, como posso ter abrigado um desconhecido em casa
debaixo do mesmo teto que eu? E se ele tiver voltado a matar? E se
ele me mata...
— Estás pensando besteiras! — sobressalto de susto,
reprimindo um grito surpreso. A voz de Ruslan veio do pequeno
beco entre meu prédio e outro, ele está coberto pelas sombras da
noite.
— Ruslan, você me assustou — murmuro, dando um passo
para o lado, tentando vê-lo melhor. — O que faz aqui fora? —
Pergunto quando não me responde.
— Esperando por você! — Diz, acendendo um cigarro, a
chama que sai do isqueiro ilumina sutilmente seu rosto coberto pelo
capuz, dando-lhe um ar de mistério e perigo.
— Você está fumando?
— Sim!
— Por quê?
— Isso importa? — Sinto seus olhos em mim, meu estômago
revira.
— Isso pode te matar...
— Mais do que já estou? — Ruslan traga, a ponta alaranjada
do cigarro é a única coisa que ilumina a escuridão.
— Você quer... caminhar?
— Tu queres caminhar comigo? — Dou um passo para trás
com o coração acelerado quando ele sai do beco, sua altura é
intimidante e seus olhos penetram minha alma.
— Bom... — Limpo a garganta, contorcendo as mãos e
desviando do seu olhar. — Que mal tem?
— Existe muita maldade dentro de mim, Laura, uma delas está
ficando difícil de conter
. — Engulo em seco, voltando a encará-lo.
Ruslan leva o cigarro à boca, me fitandocom intensidade. Sua
beleza é tão hipnotizante que poderia passar o dia olhando-o sem
piscar. Ele ganhou peso desde que chegou e também ficou mais
forte.
— Pretende me machucar? — Ele sorri, jogando o cigarro no
chão e pisando até apagá-lo.
— Não estou a falar desse tipo de maldade — murmura,
colocando as mãos no bolso e começando a andar pela calçada.
— O que fica fazendo durante o dia? — Pergunto, mantendo
uma distância segura enquanto o acompanho.
— Algumas coisas.
— Que coisas? — Ruslan me olha por alguns segundos.
— Matando não é uma delas! — Solto um suspiro longo,
encarando a rua sem dizer mais nada.
— Você já sabe o que vai fazer enquanto está fugindo da
polícia? — Ele não me responde, apenas caminha calado,
concentrado nos seus passos.
Não vou mentir, estou curiosa para saber o que ele fazquando
não estou em casa ou o que faz quando sai de madrugada e só
volta no outro dia de manhã.
— Como conseguiu o cigarro e o isqueiro?
— Vai por mim, é a coisa mais fácil de conseguir.
— Hum... você roubou? — Ruslan estala a língua.
— Se tu tens diálogo, boa conversa e uma boa história para
contar, — ele me lança um olhar pretensioso — tu consegues sentar
em uma mesa sem pagar absolutamente nada.
— Você é esperto...
— Temos que estar sempre à frente.— Comprimo meus lábios
e observo a barraquinha de cachorro quente na pequena praça do
meu bairro.
— Vou comprar um negócio — Ruslan me encara com o cenho
franzido.
— Negócio?
— Sim, vou te trazer um negócio, espera aqui e descobrirá o
que é! — Ele assente.
Fico olhando para ele por mais alguns segundos antes de virar
e ir em direção à barraquinha. Não costumo andar por meu bairro à
noite, pois é nessas horas que caras perigosos zanzam por todos os
lados, vendendo e usando drogas.
Essas é uma das poucas vezes em que vim até essa praça,
posso contar nos dedos dos anos que vivo aqui. Mas de vez em
quando eu e Gana gostamos de comprar o cachorro quente do
Vyacheslav, embora nunca tenha trocado uma palavra com ele, sei
perfeitamente que seu tempero é um dos melhores que já saboreei.
— Boa... noite — me aproximo um pouco cautelosa, ele sorri
para mim.
— Boa noite, aposto que vieste por causa do meu cachorro
quente.
— Dois por favor! — Vyacheslav assente, olho para trás
enquanto ele prepara meu pedido, Ruslan está parado na esquina
me observando.
Sinto um tremor vendo-o assim tão distante e ao mesmo
tempo tão perto, mas até que ponto posso permitir que ele adentre
em minha vida? Será que estou fazendoa coisa certa? Quem em sã
consciência iria abrigar um assassino dentro de casa?
— Aqui está! — Sou arrancada do devaneio, Vyacheslav
coloca os dois cachorros quentes em cima de uma das mesas, lhe
entrego o dinheiro e volto com eles em mãos.
Noto na esquina de baixo um grupo de rapazes me encarando
de forma estranha, eles estão fumando e reconheço um deles por
morar no mesmo prédio que eu.
Uma alerta dispara meu coração, ter convidado Ruslan para
caminhar não foi uma ideia sábia em vista do quanto aqui é
perigoso.
— Eu trouxe... — Me calo quando o encontro encarando o
outro lado da rua, seu corpo está tenso, seu olhar sem nenhum
brilho.
— Laura!
— Sim? — Aperto os cachorros quentes, minhas mãos tremem
de medo do que está por vir.
— Vire-se e ande de volta para casa...
— Hum?
— Vá, pequena flor— diz com a voz rouca e baixa, seus olhos
se prendem nos meus. — Ande!
Pisco algumas vezes antes de girar e caminhar na direção de
casa. Escuto seus passos atrás de mim, me seguindo. Não sei o
que está acontecendo, na verdade, nem quero saber, porque Ruslan
chegou na minha vida pacata, tirando-me do sossego que tanto lutei
para conseguir.
Certo que eu vivo com medo dele voltar, de cumprir com sua
promessa, por isso que deveria ter tomado mais cuidado ao deixar
que um criminoso entrasse assim na minha vida.
Subo os degraus que levam ao meu andar, mas paro por um
instante e olho por cima do meu ombro querendo encontrá-lo, mas
Ruslan não está parado na entrada, ele seguiu adiante sem me
dizer nada, e mais um dia, ele passará a noite fora.
Isso não deveria me incomodar tanto assim, eu deveria ficar
alegre por ele se manter afastado de mim a maior parte do tempo,
mas é que... quanto mais fico perto de Ruslan, seja por apenas
alguns minutos, mais me sinto instigada a desvendar os segredos
trancafiados dentro de sua alma quebrada.
Olho para os cachorros quentes em minhas mãos, desejando
que estivesse aqui e não pela noite que esconde tantos perigos e
tantos traumas.
Uma das coisas que aprendi estando na cadeia, é que você
deve fazer aliados, mostrar do que você é capaz e ter olhos
espalhados para todos os lados, sem jamais demonstrar sua
fraqueza.
Quando os olhos se fecham à noite, demônios se levantam
dominando a escuridão de vidas fragilizadassem nenhuma piedade,
eles invadem sua mente, destroem seu coração e dilaceram sua
alma.
Olho para o outro lado da rua, os garotos me acompanham,
enquanto caminho, um deles me olha e me lança um aceno sutil, me
dando a confirmação de que ele está aqui.
Eu tinha certeza de que ele viria atrás de mim, era questão de
tempo até me encontrar. Viro em um outro beco e me encosto na
parede e espero. Os garotos se mantêm na guarda, se acontecer
alguma coisa, eles agirão em minha defesa. Foi fácil persuadi-los,
uma boa história e um pedido de cumplicidade trouxe-os para o meu
lado. São jovens curiosos que apesar de se acharem perigosos, não
passam de meras crianças em busca de um propósito em um
caminho errado.
Escuto passos, meu coração acelera e arrepios percorrem
meu corpo com as lembranças que pipocam em minha mente.
Inspiro fundo e olho para frente, vendo-o parar a alguns metros de
distância de mim, olhos dos quais eu confiei cegamente, apenas
para ser enganado e traído.
— Estou contente em saber que está livre — meu coração
dispara ao escutar sua voz, desencosto da parede e fico à sua
frente, há cinco homens atrás dele.
— Pensei que não lembrastemais de mim — digo, notando o
quanto envelheceu desde a última vez em que o vi.
— Como poderei esquecer meu garoto — Ele sorri friamente.
— Ruslan Rotam... você me deve!
— O que te devo, Nikita?
— Uma vida...
...
“Ainda que eu andasse pelo vale da sombra da morte, não
temerei mal algum, porque tu estás comigo” recito essas palavras
váriasvezes durante meu dia,tentando encontrar algumsignificado
para continuar vivendo.
Passaram-se um ano desde que fuicondenado, desde que
vireium saco de pancadas de Jaroslav , a “putinha” que todos
comem, o garoto que engole drogas para contrabandeá-las para
dentro da cadeia, o menino que perdeu o significado de viver
.
Passareiminhavidaaquidentro, sem poder nunca maisver o
mundo, namorar, realizarmeus sonhos... tudo foitiradode mimsem
nenhuma explicação, me tornei um assassino em série.
Enguloas lágrimas,hojefoimaisuma tentativafracassadade
entrar em contato com a minha família,mamãe não atende as
ligaçõese meus irmãosnão me escrevem de volta.Todas às vezes
que me dizem que tenho uma visita,meu coração grita de
esperança, mas sempre é uma prostituta ou alguém ligadoa
Jaroslav.
Minha família não quer saber de mim e eu entendo, juro que
entendo, mas dói... como dói estar sozinhosem ninguém para me
dizer que todo esse inferno passará.
Solto um gemido de dor quando Ararat puxa meus cabelos,
Zelaime olha sorrindo enquanto sirvo de brinquedo sexual para
Fedir, dor... é a única coisa que sinto, dor e humilhação.
— Era assim que estuprava suas vítimas?— Jaroslavdiz,
encostado na parede. — Estás sentindo prazer?
Fecho os olhos, quero morrer, mas nada do que faço tenho
sucesso. Sintogosto de sangue na minhaboca, antes de estar aqui,
eles me bateram, me machucaram e ganharam grana como se eu
fosse seu garoto de programa para satisfazeros desejos doentios
dos detentos que não se importam em estuprar qualquer um em
busca de sexo violento e sangrento.
— Amanhã Odarka te encontrará novamente, te dará as
drogas e dessa vez tu terás que ser mais audacioso, pois os
guardas estão desconfiandoda movimentação. — Ranjo meus
dentes quando o detento sai de dentro de mim, soltando um uivo
asqueroso por ter aliviado seu desejo.
Fecho meus olhosmaisuma vez, Ararat prensa minhacabeça
contra a pedra da pia do banheiro, permitindoque outro comece.
Estou cansado, dolorido e fraco, querendo apenas desaparecer
.
Choramingo, o que estão fazendo comigoé doentio, Jaroslav
faz de tudo para tirar todos os poucos benefícios
que tenho. Estou
sem comer há dois dias, mas ao meu lado um pouco distante está
uma marmita de comida.
— Se tu comportaste como sempre, posso maneirar nas
punições— diz,erguendo o dinheiroque outro detento deu para ser
o próximo a obter seu desejo.
Fecho meus olhos,levandominhamente para outro lugar, me
esquecendo da dor de ser preenchido com brutalidade, sem a minha
permissãoe em minhaimaginaçãoonde não sintonenhuma dor ou
humilhação, eu encontro minha família.
Ali,em um campo verde e cheiode rosas, sinto o quanto me
amam, eles fariamqualquer coisapor mim, morreriam por mim se
fosse preciso, mas logo desaparecem, seus rostos felizesse
transformam em expressões furiosas.
Assassino... Assassino... Assassino... gritam, dou um passo
para trás, balançando a cabeça e dizendoque não, que não fuieu,
mas eles continuam me afastando... fazendo-me voltar para esse
inferno onde estou.
A famíli
a é o alicercede nossas vidas,a forçaque nos guiae a
mão que nos segura, estão ali,para passarem por momentos
difíceisjuntos, mas comigo foio contrário. As pessoas que mais
deveriam estar ao meu lado, foram as primeirasa me virar as
costas.
Ararat ergue minha cabeça e me joga no chão quando tudo
acaba, estou sem forças para reagir, meus braços estão magros
demais e minhas costelas aparentes, estou desidratado e
desnutrido, esperando apenas pela morte.
— Estás a sofrer, putinha? — Jaroslavdiz, segurando meu
queixo e fazendo-me encará-lo. — Isto é culpa sua, você que
causou tudo isso, é o mínimo que deves sofrer por tantas famílias
que você destruiu.
Ele apanha a marmita e joga toda comida em cima de mim,
solto um soluço doloroso, escutando risadas antes de o silêncio
reinar quando eles me deixam no chão sujo.
Encaro um pedaço de carne, meu estômago ronca de tanta
fome que me inclinoe a pego com as mãos trêmulas, colocando-a
na boca e mastigando enquanto choro ao sentir seu sabor
.
Dar valoras pequenas coisas,agradecer por tudo o que tem,
sorrir mesmo diante de tamanha tempestade, foram ensinamentos
do meu paiantes de falecer. Fizde tudo para me tornar o exemplo
para minha família,me sacrifiqueipara que meus irmãos
estudassem, dormiatarde e acordava de madrugada com o objetivo
de trazer comida para casa, mas... o que adiantou?
Por que estão fazendo isso comigo? Por que me humilham
dessa maneira?Por que devo sofrertanto por algoque não cometi?
Por que ninguém me ajuda? Por que... por que... por que...
Tento me levantar, só que minhas pernas estão fracasdemais,
então me deito no chão, pegando mais um pedaço de carne e
mastigando-a em busca de aliviar minha fome.
Minutos se passam, a dor permanece, a fome se torna algo
insignificante e meus pensamentos... esses buscam
incansavelmente uma maneira de tudo isso acabar
.
De repente algochama minha atenção, ao ladoda privada há
algoque me instigaa me arrastar para descobriro que é. O fedorda
sujeiranão me afeta mais, fecho a mão em volta do pequeno
pedaço de espelho e me sento encostado na parede.
Abro a mão e o ergo, me assustando ao ver meu rosto, estou
completamente destruído, mais magro do que imagineie meus
olhos verdes... eles... eles... estão mortos. Tento sorrir, mas o que
sai é um choro dolorido.
Tudo isso tem que acabar!
Abaixoo espelho, inspirofundo e aperto-o contra minha pele.
Se eu morrer agora, não terei nada a perder, já fuiabandonado
pelas pessoas que amo, então por que continuar respirando?
Prenso o ladoafiadodo espelhono meu pulso,ranjoos dentes
quando a dor me consome, sangue escorre... só que sinto prazer
em fazer isso, então começo a me arranhar e perfurar meu braço
esquerdo.
Sorrioao sentiro calordo sangue, a dor que estou sentidonão
é causado peloscaras que me abusam, ou que me espantam, mas
sim por mim, isso me deixa aliviado e me sinto extasiado.
Solto uma gargalhada fraca quando minhas vistas ficam
turvas, perco o movimentodo meu corpo, meus braços estão todos
perfurados, meu coração começa a bater lentamente, zumbidos
preenchem meus ouvidose me sintofeliz...feliz
por esse sofrimento
finalmente ter chegado ao fim.
Ouço passos, mas não me importo, quem quer que seja vai
terminar com o resto do meu sofrimento.Levanto meus olhos e
encaro o homem agachado à minha frente, ele não diz nada de
imediato, apenas me observa com uma expressão fechada.
— Garoto fraco... — murmura, estalando a língua.— O que
fizeste?
Esboço um sorriso,fiza melhor coisa,estou acabando com a
minha vida por não aguentar mais, se é o certo eu não sei, mas
nesse momento é tudo o que mais quero.
— Achas que se matando vairesolverseus problemas?— Ele
diz,tirandoo espelhoda minhamão. — Essa escolhasó me dizque
tu és fraco...
— Não foieu... — Murmuro, fechandomeus olhos.— Eu não
matei ninguém...
— Não permiti reique morra — dizse aproximando.— Vamos
lá, se torne o que todos temem... se torne o assassino que todos
acham que tu és, e faça todos pagarem pelo que fizeste contigo.
— Sou fraco...
— Se torne forte, porque só assim conseguirá viver nesse
inferno.
Encarando seus olhos escuros, sinto ódio invadir meu
coração... ódiopor tudo o que estão fazendo,então a partirde hoje,
farei de tudo para fazê-los pagar
, afinal, não tenho nada a perder
.
...
Fico encarando-o, uma hora ele iria cobrar e eu sabia disso,
me preparei para isso, embora tenha que agradecê-lo por ter salvo
minha vida, aqui fora somos apenas inimigos com uma conta a ser
quitada.
— Pensei que tínhamos resolvido — falo, tentando ler suas
intenções.
— Pensaste errado — retruca, tirando um cigarro do bolso. —
Muitas coisas não podem ser apagadas, sabes perfeitamente disso.
— Tu me ensinaste muitas coisas, uma delas é nunca confiar
em ninguém, muito menos na pessoa que te tirou do buraco. — Ele
me olha com pesar, balança a cabeça e estica a mão, oferecendo-
me o cigarro.
— Como fugiu?
— Me agarrei à minha única oportunidade — pego o cigarro
que oferece, Nikita assente, acendendo o seu próprio.
— A vida sempre nos surpreende — fala, tragando e soltando
a fumaça na escuridão da noite, encarando o céu estrelado de um
sábado frio e úmido.
— Não quero te fazer mal — revelo, escorando meu ombro
direito na parede e fitando o cigarro. — Poderia ter feito isso anos
atrás.
— E por quê?
— Te considero, porque seus ensinamentos me fizeram estar
aqui hoje — Nikita inspira fundo.
— Você não deveria ter feito aquilo...
— Ele que não deveria ter feito aquilo — corto-o com certa
raiva.
— Um garoto... porra, tu eras um garoto!
— Não, eu não era mais — Nikita me olha, vejo um brilho de
dor transluzir seus olhos escuros, tão sutil que logo desaparece. Ele
não é um cara ruim, é apenas uma vítima da pobreza e do descaso
da sociedade.
— Você sempre será meu garoto — abaixo a cabeça, é difícil
olhar para uma pessoa que você tanto confiava e acreditava.
— Você me traiu — confesso, soltando uma risada fria. —
Porra...
— Foi necessário — olho para ele. — Têm coisas na vida que
não temos o controle da situação, eu tive que fazer.
— Até porque, eu viveria o resto da minha vida na cadeia,
certo?
— Você nunca iria ser solto de qualquer forma — retruca,
balanço a cabeça com incredulidade.
— Eu tenho apenas uma coisa para fazer, então poderíamos
deixar nossa dívidapara depois? — Levo o cigarro à boca, mas não
acendo.
— E se tu morreres? — Dou de ombros.
— Nossa dívida será paga — Nikita ri, jogando o cigarro no
chão.
— Não irei me intrometer nos seus negócios, tu lutastepor isso
a vida toda — Ele se aproxima e segura meu ombro. — Estarei no
seu encalço.
Nikita me encara antes de se virar e voltar pelo mesmo
caminho por onde veio. Ele pode parecer um cara legal, mas isso é
apenas manipulação, se você lhe entregar toda confiança, não te
restará mais nada, ele sugará até a última gota da bondade que lhe
sobrou.
Esse mundo onde fui jogado destrói qualquer alma bondosa.
Olho para trás, os garotos ainda permanecem à espera, dou um
sinal e eles se vão, me deixando sozinho, até o momento tudo está
sob controle.
Paro em frente à porta de Laura, seus olhos azuis são tão
fascinantes que poderia mergulhar no mar cristalino que tanto
desejo. Tentei me manter afastado, até para não trazer mais
complicações para sua vida, só que o seu cheiro... sua voz... é tudo
o que desejo.
Algo me puxa para ela, a tristeza impregnada em seus olhos
fazcada parte do meu corpo vibrar desesperado para tirar isso dela.
É estranho, visto que a conheço tão pouco tempo, mas foi o
suficiente para ficar encantado.
Abro a porta e entro, encontrando-a sentada na mesa
encarando os dois cachorros quentes que comprou. Laura levanta a
cabeça e me olha surpresa.
— Pensei que não iria mais voltar. — Diz, se remexendo na
cadeira, Rony mia se deitando em meus pés, me abaixo e o pego
em meu colo.
— O que queres tomar? — Pergunto, indo até a geladeira.
— Ruslan? — Olho para trás, meu nome saindo por sua boca
desperta algo desconhecido dentro de mim, ainda não me
acostumei com esse efeito.
— Sim?
— Comprei dois cachorros quentes e... quer comer? —
Umedeço meus lábios, acariciando o gato em meus braços.
— Por que não? — Laura balança a cabeça e arrasta a comida
até o outro lado da mesa, ela não gosta que eu fique muito perto
dela, muito menos que a toque, vejo o medo impregnado em seus
olhos.
— Certo, suco seria bom. — Sorrio de leve, porque é só o que
temos, suco e água.
Coloco o Rony no chão, apanho a garrafa de suco, dois copos
e levo até ela. Ao sentir minha aproximação, Laura se encolhe, me
deixando paralisado. Ela esconde suas mãos debaixo da mesa,
coloco o copo com o suco à sua frente sem me preocupar com a
demora, tentando desvendar o porquê de ela ser assim.
— Estás bem? — Pergunto ao me sentar do outro lado, ela
assente e dá um gole no seu suco sem me direcionar um olhar.
— Estou bem — Laura roda o copo, fitando minhas mãos que
segura o cachorro quente. — O que aconteceu que você ficoutenso
e me mandou voltar?
Ela dá uma mordida no seu lanche, gosto do fato dela me
perguntar as coisas, por se interessar pelas coisas que acontecem
em minha vida, é uma certeza de que Laura me quer por perto.
— Um assunto pendente — ela me olha, arqueando uma
sobrancelha, inclino a cabeça para o lado, observando seu rosto
delicado, lábios carnudos e bem delineados, sua pele mais morena
a deixa atraente ao ponto de me despertar.
— Seus olhos são lindos — elogio, Laura congela. — Teus
olhosazuiscor de anil,da cor do mar, faz-meamar... São duas joias
preciosas, dois diamantes irradiando. Luz, meiguice,doçura e
sensibilidade
de uma Mulher-meninaque me fascina...Quando olho
para os olhos teus, reluza paz que tanto necessito...— Finalizo a
citação de Elias Akhenaton notando sua surpresa, Laura não é
acostumada com elogios e nem imagina o quanto é linda.
— O que foi isso? — Pergunta, limpando a garganta e
tentando se recuperar.
— Sou um romântico de nascença — respondo divertido.
— Você deveria comer seu cachorro quente — assinto,
concordando.
— Deveria! — Murmuro, levando a comida à boca e mordendo,
o sabor me invade com uma intensidade que me deixa emocionado.
— Está bom?
— Sim, ainda não me acostumei a comer essas comidas.
— O que você sente? — Olho para ela, devorando meu
lanche.
— Emoção...
— Por quê? — Comprimo meus lábios, engolindo o último
pedaço.
— Laura? — Ela se inclina sobre a mesa. — Queres mesmo
saber?
— É ruim? — Assinto, ela abaixa a cabeça.
— A cada dor e humilhação um garoto morria e um monstro
nascia. — Fecho meus olhos com um ranger de dentes. — Cada dia
que eu passava naquele inferno, mais minha alma se perdia...
— Mas você pode reencontrá-la... — Sussurra.
— Eu não desejo encontrá-la.
— Por quê? — Laura me olha com surpresa, solto o ar pela
boca e balanço a cabeça, sentindo o ódio me consumir.
— Porque quando se tem uma alma, você perde a coragem de
matar — Digo, encarando-a com intensidade.
Laura engole em seco, desviando do meu olhar furioso, é
visível seu desconforto diante do que eu disse, ela sente medo de
mim e eu apenas fiz com que esse medo aumentasse de tamanho.
— Um dia, me disseram que nunca iria me machucar, e eu
acreditei, mas essa mesma pessoa que usou essas palavras foi a
que me feriu. — Confessa, fazendo meu coração disparar. — Você
diz que não tem alma, que deseja matar, não mente, não esconde
seu verdadeiro eu, apesar de saber que do outro lado de seus
olhos, ainda existe um garoto esperando ser liberto, eu não acredito
em você.
— Não é questão de acreditar...
— A questão aqui é: se permitiremos que a dor nos consuma
dia após dia, ou superamos ela com o pouco de força que temos,
essa é uma escolha que somente nós podemos fazer.
— Tu superaste, Laura? — Pergunto, sua respiração está
acelerada e vejo sombras em seus olhos.
— Eu... nunca consegui — confessa em um sussurro, meu
coração aperta querendo iluminar a escuridão que a reprime.
— Eu também não!
Ficamos encarando um ao outro por longos segundos, quero
poder deixá-la entrar, lhe entregar as chaves, mas isso resultaria em
sofrimento,dor e desilusão, posso ter sido um bom garoto, mas isso
se perdeu. Tenho sangue derramado em minhas mãos, não quero
fazê-la sofrer mais do que já sofre, mas ao mesmo tempo, quero
que me ajude a arrancar a aflição da minha mente atormentada.
Laura luta contra seus demônios e eu contra os meus, mas e
se decidirmos lutar juntos, será que conseguiríamos recomeçar?
Será que ela me aceitaria do jeito que sou?
— Você irá sorrir outra vez — declaro com confiança. — Nem
que para isso eu tenha que lhe trazer a lua.
— Ela é muito grande — diz, com a voz embargada.
— Não quando temos um sonho a alcançar — Laura assente,
se levantando e caminhando em direção ao seu quarto.
— Ruslan? — Sua voz suave me chama, mas eu não a olho.
— Qual seria seu sonho?
— Existem dois — me levanto e a encaro, Laura recua um
passo quando me aproximo dela. — O primeiro é poder te tocar e o
segundo... te fazer sorrir. — Ela me olha em choque.
— Mas... você não sonha em encontrar quem fez isso com
você? — Nego com a cabeça.
— Isso é meu objetivo, meu sonho nesse momento é você. —
Digo, me virando e indo até a porta.
— Esse seria seu terceiro sonho... — Ela sussurra, sorrio
fechando a porta atrás de mim.
— Não é o terceiro, mas sim, um conjunto de sonhos —
sussurro enquanto mergulho pela noite, me perdendo nas
lembranças do seu olhar.
Levanto da cama depois de ter passado mais uma noite em
claro, as palavras de Ruslan não saem da minha mente. Será que
ele estava flertando comigo? Congelo com a pantufa nas mãos.
Será que ele estava dando em cima de mim?
Franzo a testa, relembrando da nossa conversa que tanto
mexeu comigo, e ao mesmo tempo me deixou confusa, sem saber
como reagir ou o que pensar.
Vou para o banheiro, enquanto escovo os dentes, fico me
encarando pelo espelho “Teus olhos azuis cor de anil,da cor do
mar, faz-me amar... São duas joiaspreciosas, dois diamantes
irradiando...”Quando ele recitou meu coração deu um estalo, achei
tão lindo e ao mesmo tempo tão perturbador.
Escuto uma porta se abrir, saio do banheiro apressada e o vejo
se inclinando e tirando seus coturnos sujos. O que Ruslan está
aprontando? Seus olhos se prendem nos meus, um sorriso de canto
estampa seu rosto cansado.
— Estás acordada... — Seus olhos descem por meu corpo e
seu sorriso aumenta.
Olho para mim, estou realmente engraçada com um pijama
rosa, pantufasdo Coragem, um coque bagunçado caídopara o lado
e com a escova de dente na boca...
— Estás muito bonita esta manhã — volto a olhar para ele que
tira sua blusa me fazendo paralisar.
Ruslan está tão à vontade que acho que perdeu a noção de
que estou em sua presença. Ele se inclina e... céus... tira a calça,
arregalo os olhos vendo-o apenas de cueca. Engasgo com a pasta
de dente, Ruslan nem me olha quando passa por mim, entrando no
banheiro.
— Preciso tirar a sujeira do corpo, vai levar apenas alguns
segundos — não me mexo, chocada demais com o que acabou de
acontecer. — Deixarei a porta aberta se quiser entrar... — Viro-me
para ele, que tem um sorriso prepotente nos lábios.
Tiro a escova de dentro da boca e aponto em sua direção,
meus olhos descem por seu corpo involuntariamente, meu coração
acelera e minhas mãos tremem, dou um passo à frente, estico a
mão e fecho a porta, soltando a respiração.
Estou tão espantada que me mantenho no lugar sem
conseguir me mover. Por que ele fez isso? Vou até a pia da cozinha
e enxáguo minha boca com sua imagem pipocando minha mente.
Vou para meu quarto com meu coração acelerado e me jogo
na cama, encarando o teto. Escuto uma batida sutil na porta minutos
depois, me ergo um pouco e encaro Ruslan, vestido com roupas
escuras.
— Você foi pretensioso — digo, ele me olha divertido.
— Gostariasde tomar café comigo? — Pergunta, aperto meus
lábios e assinto.
— Você vai fazer?
— Não, mas você vai.
Me levanto e vou preparar o café da manhã que resume
apenas em ovos mexidos, café e pão. Enquanto isso, Ruslan se
senta no sofá com Rony, acariciando-o e murmurando algo que não
entendo. Fico tão inerte nos dois que quase queimo a comida.
Ruslan senta à mesa, pego meu celular e me encosto na
geladeira lendo as mensagens do grupo do trabalho.
Aksinya: Eu estarei incomunicável hoje.
Yaroslav: Pq?
Justik: Bom dia pra quem ainda não acordou!
Aksinya: Por quê???? Para Andry não me atormentar
Justik: Hoje é nossa folga...
Aksinya: Ele se importa?
Eu: Ñ, ele não se importa
Yaroslav: Anein... irei desligar tbm!
Justik: Voltando a dormir, meu celularestá sem rede, não sei
pq!
Yaroslav: kkkkkkk
Eu: O meu descarregou e ñ tenho carregador!
Aksinya: Eu desliguei mesmo! Até logo, Fui...
Justik: Foda-se, é minha folga!
Congelo quando Ruslan para na minha frente, minha
respiração acelera, fiquei com a guarda tão baixa que não percebi
sua aproximação. Aperto o celular e levanto o olhar, me
encontrando com seus olhos fascinantes. É a primeira vez que fico
tão perto dele a ponto de dar um passo à frente e me colidir no seu
peito.
— Tu escutaste? — Pergunta, nego com a cabeça. — Eu
necessito de água. — Engulo em seco, fico confusa por alguns
segundos antes de perceber que estou encostada na porta da
geladeira.
— Ah... — Dou um passo para o lado, seus olhos continuam
fixos nos meus, desvio do seu olhar e vou até o sofá, sentindo um
pouco de falta de ar devido às batidas incontroláveis do meu
coração.
— Você não trabalha hoje? — Ruslan abre a garrafinha de
água, nego com a cabeça.
— Hoje é domingo — digo, desligando o celular.
— O que faz no seu dia livre? — Pergunta, lavando os pratos
sujos.
— Leio, assisto desenho, mais desenho, leio de novo e durmo
um pouquinho, também como pipoca, e às vezes faço muitas
comidas nada saudáveis. — Ruslan enxuga suas mãos, me
observando.
— Então passarei o dia com você.
— Comigo? — Minha voz sai mais alta do que o normal, ele
assente. — Você não tem nada para fazer? Você sempre está
saindo...
— Tu não queres que eu fique aqui? — Mordo o interior das
minhas bochechas.
Ruslan passará o dia comigo, na mesma casa, dividindo o
mesmo sofá,embora ele esteja morando aqui já há alguns dias, nós
nunca ficamostanto tempo juntos. Isso me deixa mais assustada do
que já estou.
— Laura? — Olho para ele.
— É que vou na feira daqui a pouco... — Umedeço meus
lábios, aperto os dentes e abaixo a cabeça. — Você quer ir?
— Adoraria — responde sem nem pensar, assinto me
aconchegando no sofá quando o desenho do Coragem começa,
mas não presto atenção, a presença de Ruslan não permite que
isso aconteça, só espero que esse dia transcorra sem nenhuma
surpresa.
Ajeito minha touca e luvas quando saio de casa, olho para
cima, o céu está limpo, o sol... ah como é bom sentir o sol
novamente. O frio continua, mas hoje é sinal de que está quase
acabando.
— O verão chegou, Ruslan — me viro para ele que está me
encarando.
— Sim — diz, desviando o olhar e esticando a mão para sentir
o calor dos raios do sol em sua pele. — Ele chegou!
— Vamos? — Pergunto, Ruslan assente e ajeita o capuz,
escondendo seu rosto para que ninguém possa reconhecê-lo.
Caminhamos em silêncio por uns quinze minutos até
chegarmos ao nosso destino. Aqui compramos muito mais nas
feiras do que nos supermercados, geralmente elas são muito
maiores e englobam muitas lojas e tendas.
Meus olhos varrem o espaço lotado com tendas coloridas, aqui
é possível encontrar muito além de frutas, verduras ou legumes,
mas também roupas, calçados, livros, flores, louças e por aí vai.
São tão atraentes que é a alegria não somente dos moradores,
mas também dos turistas que podem comprar roupas típicas,
artesanatos e bordados ucranianos. Quando vim pela primeira vez,
fiquei fascinada pela riqueza que é, pelas cores e peças
extremamente ricas em detalhes e significados.
Olho para alguns homens e mulheres vestidos com roupas
bordadas, uma tradição repleta de cor e elegância. Ruslan parece
fascinado enquanto caminhamos por entre as tendas e barracas,
parecendo ser sua primeira vez.
Sinto dentro do meu coração uma queimação que diria ser
felicidade por vê-lo redescobrindo o mundo onde foi privado de
viver. Emoção também se mistura com a indignação da injustiça que
destruiu sonhos de um garoto simples e inocente.
Mas espera... será que realmente ele é inocente para eu estar
falando assim? Respiro fundo, desvio meu olhar fixo nele e volto a
prestar atenção na feira que ainda está vazia, uma das vantagens
de vir nas primeiras horas de abertura, e outra vantagem é o preço,
que é mais em conta do que nos supermercados, é possível
comprar muitos produtos frescos e produzidos artesanalmente.
Paro em frente a uma tenda de livros, todas às vezes que
venho, sempre volto com uns dois ou três livros novos, mas que
infelizmente não fico muito tempo com eles. Meu apartamento é
pequeno demais para ter uma coleção. Então sempre estou doando
aqueles que sei que não irei reler.
— Esse livro é muito bom — mostro para Ruslan quando para
ao meu lado. — Você gosta de romance? Ontem disse que é um
romântico, então deve ser do seu gosto.
— Seduzida por um Guerreiro Escocês? — Assinto, quando
ele lê o título do livro.
— A escrita da Maya Banks é muito gostosa e essa história se
passa naqueles tempos medievais, a protagonista é surda e muda,
e se casa com um homem depois de um tratado de paz. Vale a
pena, quer que eu leve para você? — Ruslan fica me olhando
estranho, pigarreio e desvio do seu olhar, pegando o segundo e o
terceiro volume.
— Ficarei contente — responde por fim.
— “Graeme a fascinava.Não era como se pudesse ouvirsuas
palavras, mas a voz dele soava como um zumbido grave e
prazeroso em seus ouvidos.Um raiode luzem seu sombriomundo
de silêncio”— termino de recitar um trecho do livro, uns dos meus
preferidos na verdade.
— Troque Graeme por Ruslan — ele diz, com um sorriso nos
lábios pegando a sacola dos livros que a senhora nos dá.
— Você não é Graeme.
— Mas sou Ruslan — Olho para ele e reviro os olhos, voltando
a andar.
Paro na banca de frutas e escolho as minhas preferidas, peço
para que Ruslan escolha também, é fascinante observá-lo pegar as
frutas, sentindo seu cheiro... é como ver uma criança descobrindo
algo novo.
Despois das frutas escolhidas, voltamos a caminhar por entre
as pessoas, tento a todo custo não ser tocada por elas, sempre
escolhendo corredores mais vazios para andar.
Uma das coisas que nunca irei me acostumar nas feiras é a
formaem que vendem as carnes, elas ficamexpostas em mesas ou
em freezers. Então sempre compro carne em supermercados.
— Tu queres? — Me viro para Ruslan, ele aponta para a
senhora com roupas coloridas que sorri para gente.
— Sim — confirmo,Ruslan fazo pedido e a senhora começa a
preparar um pão recheado, nos entregando minutos depois. —
Onde arrumou dinheiro? — Pergunto depois de ele efetuar o
pagamento e voltarmos a andar.
— Acredite, foi de forma justa — ele pisca um dos olhos, sorri
e morde seu pão.
— Okay! — Murmuro sem pedir por mais detalhes.
Meus olhos se prendem nas senhoras de idade vendendo
verduras e flores, uma está sentada vendendo carne de frango
exposta em cima de um plástico, pode ser até normal aqui no país
essa forma de comercialização, mas não para mim. Faço uma
careta para essa peculiaridade, isso se aplica também aos peixes,
eles amam comer peixes desidratados, eu particularmente não
gosto.
As senhoras que trabalham nas feiras têm uma idade bem
avançada, são chamadas de “babushkas”, ou seja, “vovozinhas”.
Isso me deixa um pouco triste, porque reflete a dura realidade de
muitos que enfrentam neste país, onde o salário e as
aposentadorias são baixos.
Paro de uma vez, olho para os lados e não vejo Ruslan, a feira
começou a encher. Meu coração começa a bater acelerado, será
que ele me deixou aqui?
— Laura? — Viro-me assustada ao reconhecer sua voz, ele
está parado segurando uma rosa.
— Fiquei assustada — Digo, colocando a mão no coração.
— Por quê?
— Você sumiu — Ruslan sorri, o sol reflete seus olhos
deixando-os com uma cor verde cristalino, tão vibrantes que meu
estômago se contorce.
— As babushkas insistiram que eu deveria lhe dar uma rosa.
— Olho para as vovozinhas da banca de flores, elas acenam para
mim, sorrindo, retribuo o aceno e volto a encarar Ruslan.
— Elas são fofas,não são? — Digo, pegando a rosa vermelha
de sua mão.
— Senti falta delas.
— Você vendia rosas, certo?
— Sim — confirma, andando ao meu lado. — Vendi muitas
rosas nessas feirasaos domingos, sempre ficavaao lado delas, são
muito simpáticas.
— Você ganhava muito?
— Suficientepara ajudar em casa — responde, balançando as
sacolas.
— Por que rosas, Ruslan?
— Pegue as sacolas, Laura — olho para ele assustada com o
tom da sua voz.
— O que foi? — Pergunto, pegando-as.
— Volte para casa, okay? — Ele me olha sério, balanço a
cabeça confirmando sem entender o que ocasionou essa mudança
de comportamento tão repentina. — Cuide-se, estarei por perto!
— Ruslan? — Chamo quando ele sai andando apressado sem
explicação, fico desapontada, mas logo entendo o que aconteceu
para ele ficar assim.
Prendo a respiração ao perceber quatro policiais rodando a
feira, só que eles estavam de olho em nós, dois deles começam a
seguir Ruslan que se mistura entre as pessoas.
— Droga... — resmungo, chateada e com medo de que o
peguem de novo.
Olho para os lados perdida sem saber o que fazer, queria
poder ajudá-lo, mas neste momento sou inútil. Encaro um policial
que me observa à distância, choque percorre meu corpo ao
perceber que ele pode estar desconfiando de mim.
Vou até uma tenda de roupas, escolho duas blusas bordadas
para mim na tentativa de dissipar sua atenção e vou embora
sutilmente minutos depois. Durante todo o caminho, fico olhando
para trás para ver se estou sendo seguida.
Será que eles descobriram que era Ruslan ao meu lado?
Aperto com mais força as sacolas em minhas mãos, era
questão de tempo até a polícia chegar nessa região, um lugar onde
é possível um assassino em série se esconder.
Solto um suspiro longo e preocupado, espero que ele fique
bem... congelo quando viro a esquina e ergo a cabeça, meu coração
bate tão acelerado que se ele não estivesse me encarando, eu teria
saído correndo.
— Bom dia, Laura — Artem saúda com um sorriso no rosto,
ele está com os braços cruzados, e escorado em um carro
esportivo.
Pela forma divertida e ao mesmo tempo furiosa que me olha,
tenho a leve impressão de que ele sabe que Ruslan está aqui, não
sei até onde posso omitir essa informação, mas sei que da minha
boca ele nunca saberá a verdade.
Custe o que custar, protegerei Ruslan mesmo que isso me
torne uma mulher louca por essa escolha. Ele só tem a mim, nesse
mundo onde todos acreditam que ele é um assassino, se ele é eu
não tenho certeza, mas farei de tudo para descobrir o que está
acontecendo e porque essas pessoas agem tão estranho quando
seu nome é citado.
Estou permitindo que Ruslan entre em minha vida, porque o
reflexo dos seus olhos é como estar me olhando do outro lado do
espelho, a solidão e a tristeza que o reprime é como as minhas, só
que ele sorri mesmo diante de tanta dor, e eu... eu quero apenas
desvendar todos os seus segredos.
É um risco, estou entregando minha confiança a um homem
com um passado sombrio, que poderá me machucar, mas eu quero
que ele fique, ao meu lado, porque em todos os anos, Ruslan é o
único capaz de enxergar meu coração.
Fico o encarando sem dizer nada, um vento frio beija minha
pele, o silêncio que nos envolve é perturbador, sinto como se
houvesse uma disputa entre mim e Artem, e talvez tenha, porque
enquanto ele quer a resposta, eu escondo a verdade.
— O que faz aqui? — Pergunto, segurando com mais força as
sacolas.
— Onde está seu acompanhante? — Artem passa a língua no
seu lábio inferior, mudando o peso do seu corpo para a outra perna.
— Que acompanhante? — Ele solta uma risadinha, abaixando
a cabeça como se eu tivesse lhe contado uma piada sem graça.
— Tu não me enganas! — engulo em seco.
— Está me seguindo? Como sabe onde moro? — Artem me
olha fixamente, meu estômago revira com a intensidade do seu
olhar.
— Sou um policial, sei de muitas coisas — declara,
desencostando do carro.
— Eu não quero você aqui! — Ajeito as sacolas sentindo dor
nos nós dos meus dedos por conta do peso.
— Tu escondes segredos, pequena, segredos que me deixam
encucado e curioso ao mesmo tempo. — Meu coração acelera com
as suas palavras, ele coloca as mãos no bolso da calça, ainda me
encarando como se eu fosse a única coisa existente para olhar.
— Você está me assustando — digo, engolindo meu
nervosismo.
— Tu nunca paraste para imaginar que pode ser presa se eu
descobrir que escondes um assassino na sua casa? — Fala com a
expressão dura. —Tu serás uma cúmplice, a responsável por
permitir que ele volte a cometer atrocidades.
— Eu não... — Me calo quando ele solta uma risada, olhando
para os lados.
— Tu és linda, uma mulher que atrai qualquer olhar, mas...
além da beleza ofuscante, és uma bela mentirosa — diz com raiva.
— Tão mentirosa que mente para si mesma, uma pena!
Ranjo os dentes com fúria diante das suas ofensas, quem ele
pensa que é? O último biscoito do pacote? Sim, estou escondendo
uma droga de um criminoso, estou mentindo, mas isso não lhe dá o
direito de me insultar dessa maneira.
— Vou te pedir só mais uma vez. — Me aproximo, olhando no
fundo dos seus olhos. — Não o quero mais perto de mim, suas
desconfianças não lhe dão o direito de me ofender dessa maneira
quando você nem ao menos me conhece. Então não me deixa ficar
com ódio da sua cara, tenho certeza que não vai me querer como
inimiga, certo?
Artem sustenta meu olhar, seus lábios se curvam em um
sorriso cético, sou um enigma que desperta sua curiosidade. Minha
aversão ao toque, meus traumas e minhas lembranças dolorosas
me fizeram uma pessoa firme, mesmo diante a tantas provações, e
eu jurei que nunca mais iria ser tocada ou maltratada por um
homem novamente.
Eu tenho voz, devo ser ouvida, respeitada e acima de tudo
valorizada, não por ser uma mulher, mas por ser uma pessoa que
não é mais e nem menos que ninguém, sou igual a qualquer um,
com meus erros e defeitos.
— Espero que nunca se arrependa. — Diz, quebrando a
tensão que nos rodeia.
— Talvez eu me arrependa, porque cometo muitos erros —
retruco, Artem balança a cabeça.
— Estou de olho em você, pequena flor. — Diz, se virando e
entrando em seu carro.
Espero ele virar a esquina para soltar a respiração que estou
perdendo tempo demais. Sinto-me um pouco zonza com o que
acabou de acontecer. Medo consome meu coração e espero que
Ruslan tenha conseguido despistar os policiais.
Olho para os lados, estagnada no lugar e tentando me
recuperar. Ruslan não irá voltar hoje para casa, não quando tem
pessoas me rondando. Meus olhos se prendem em dois garotos do
outro lado da rua que me observam com atenção, franzo a testa
estranhando quando um deles me oferece um pequeno aceno.
— Laura? — Olho para frente ao escutar a voz de Gana. — O
que faz parada aí?
— Acabei de chegar da feira. — Falo, olhando-a ativar o
alarme do seu carro e se aproximar de mim. — Está tudo bem?
— O que achas de passar o dia comigo? Podemos assistir
filmes... ah, quero muito assistir Timão e Pumba, sei que tu amas.
Então topa?
— Claro — aceito de imediato, Gana fica me encarando,
paralisada. — O quê?
— Mesmo?
— Sim!
— Tu não vaisrecusar como todas as outras vezes? — Nego
com a cabeça, ela desvia o olhar incrédulo. — Céus, eu vivi para ver
isso...
— Como?
— Nada! — Gana volta a me olhar, sorrindo. — Vamos?
Acredito que queirasguardar suas compras primeiro.
— É questão de minutos — ela assente, subindo comigo até
meu apartamento, Gana espera do lado de fora enquanto isso. —
Vamos? — Pergunto, trancando a porta.
— Vamos!
Entro em seu apartamento, observando o quanto é colorido e
divertido, há plantas em cada cantinho da sala e vasos de flores na
janela, deixando sua casa mais aconchegante.
Gana deixa as chaves em cima da mesa, tira seus sapatos e
vai para a cozinha, separada apenas por um balcão da sala. Ela
ama cores, faz de tudo para deixar seu lar o mais alegre possível,
uma das qualidades que me faz gostar dela.
— Preparei algumas coisas para gente.
— Você sabia que eu aceitaria? — Pergunto, me inclinando no
balcão.
— Não, se tu não aceitaste, eu passaria o dia sozinha — ela
levanta a cabeça, me olha e sorri. — Por isso foi uma grande
surpresa quando tu aceitaste.
— Estou... deixando as pessoas entrarem — sussurro, Gana
aperta os lábios, limpa a garganta e começa a preparar algumas
comidas, como sanduíches, pizzas e pipoca.
— Estou muito interessada em engordar hoje — diz, meus
olhos descem por seu corpo curvilíneo, ela se mata na academia e
segue uma alimentação rigorosa, até porque seu corpo é sua fonte
de renda.
— Depois a gente perde — Gana estreita seus olhos, divertida.
Minutos se passam enquanto ela prepara tudo para nossa
sessão de cinema em casa. Gana me conta várias coisas de sua
vida, detalhes do seu trabalho, de como queria fazer outra coisa
além de se prostituir e do quanto está feliz por estar estudando, ela
diz que nunca pensou ser capaz de mudar de vida e quem sabe ter
uma profissão decente.
Depois de aproximadamente duas horas conversando sem
parar, ela coloca as comidas que já tinha preparado na mesa de
centro, pega o controle de sua tv e me olha.
— Seguinte — Gana me encara, fico agoniada com seu
suspense.
— O quê?
— Tu já fosteem um karaokê?
— Não! — Respondo, me sentando no sofá cheio de
almofadas.
— Certo, espere aqui! — Ela sai correndo em direção ao seu
quarto e volta, segundos depois com dois pares de pantufas e
pijamas.
— O que pretende fazer?
— Estamos fazendo um dia de pijama com muita comida,
karaokê e filmes — diz, me entregando uma pantufa do timão e um
pijama com a mesma estampa.
— Não sabia que você gostava tanto assim desse desenho. —
Falo, tirando a roupa e colocando o pijama assim como Gana está
fazendo.
— Eu não gostava, até assistir uma vez com você. — Ela
estala a língua de forma divertida chamando minha atenção. Gana
ergue as mãos e gira para mostrar seu pijama com estampa do
Pumba e pantufas, ela está muito engraçada. — O queachaste?
— Bonita — me levanto, olhando para o meu. — E eu?
— Como sempre, fascinante — diz rindo, pega o controle
novamente e liga a tv. — Estás pronta?
— Sim! — Apanho uma garrafinha de água que estava em
cima da mesa de centro, Gana me olha.
— Eu sou o timão e você o pumba, Simba continua o mesmo
— assinto.
Gana estremece de entusiasmo, afasta a mesa de centro para
nos dar mais espaço e sorri como uma criança que acabou de
ganhar um pirulito. Seus cabelos em coque bagunçados a deixa tão
linda que sinto um calor em meu coração por tê-la como amiga.
A música do desenho começa a tocar, ela se movimenta
conforme a canção, acenando para que eu, assim como ela, entre
no papel do personagem, o que não é muito difícil de acontecer
.
— Hakuna Matata — Gana começa a dublar se movimentando
que nem o timão — é lindo dizer... — Ela aponta para mim.
— Hakuna Matata — digo ao mesmo tempo em que o Pumba,
fazendo Gana rir. — Sim, você vai entender...
— Os seus problemas você deve esquecer — Gana canta
enquanto dança. — Isso é viveeeeeer, é aprender, Hakuna
Matataaaaaaa.... — Ela solta uma gargalhada.
— Hakuna Matata? — A voz do Simba sai pela tv, Gana faz
uma careta como se o que ele perguntou fosse um absurdo.
— É... é o nosso lema — dublo a fala de Pumba.
— Lema? O que é isso?— Simba pergunta.
— Nada, não confunda com lesma! hahaha! — Gana imita a
risada de Timão.
— Sabe garoto... — Digo, olhando para o filhote de leão na tv
— Essas duas palavras resolvem todos os seus problemas
— Tem razão, veja o Pumba, por exemplo... — Gana aponta
para mim, imitando o personagem Timão — Ouça, quando ele era
um filhoooooote...
— Quando eu era um filhóóóóóte — falo de forma divertida.
— É... foi bom isso, hein? — Diz, enrugando os lábios.
— Obrigado — inclino, agradecida como Pumba faz.
— Sentiu seu cheiro era de um porcalhão, esvaziava a savana
depois da refeiçãoooooo... — Gana diz.
— Era só eu chegar, e era um tormentooooo. — Falo, pegando
um pouco de pipoca — Quando via todo mundo sentar contra o
veeeento. Ai que vexame!! — Coloco a pipoca na boca.
— Era um vexaaaame! — Gana dubla rindo.
— Quis mudar meu nomeeeee!!! — Engulo em seco quando
dublo essa parte, fazendo-me lembrar do meu passado.
— Ah, quê que tem o nome?
— Me sentia tãooo triste!! — Abaixo o olhar, ela estala a
língua.
— Se sentia triste... — Ela faz uma cara tristonha.
— Cada vez que eu... — Fecho meus olhos com força.
— Ei Pumba, na frente das crianças não... — Gana grita, abro
os olhos e a encaro, vejo em seu olhar o entendimento que isso me
trouxe recordações que me machucaram.
— Ah, desculpa — ela assente, sorrindo.
— Hakuna Matata, é lindo dizeeeer... — Fala com os olhos
fixos em mim.
— Hakuna Matata, sim você vai entedeeer...
— Os seus problemas, você deve esqueceeer... — Simba
canta.
— É isso aí garoto! — Gana imita, encarando a tv.
— Isso é viver!!!
— É aprendeeeer...
— Hakuna Matata — Ela para e abre os braços como se
estivesse mostrando um lugar novo.
— Bem-vindo ao nosso humilde lar... — Diz para Simba.
— Vocês moram aqui?— Ele pergunta.
— Moramos onde queremos — Gana fala, fazendo uma
careta.
— É... lá é onde o bumbum descansa — digo, remexendo a
minha e fazendo-o gargalhar.
— É bonitooooo...— Ele diz.
Abro a boca e finjo arrotar.
— Que fome! — Digo Gana faz outra careta.
— Eu seria capaz de comer uma zebra inteira.— Simba
declara.
Gana paralisa e me olha com olhos arregalados e mãos no
coração. Ela faz a mesma risada do Timão — Aqui não tem zebra...
— Um antílope?— Ele pergunta, Gana balança a cabeça
negativamente, se fazendo de chocada.
— Não!
— Coelho? —Ela solta uma respiração pesada.
— Não... ouça, aqui vivendo com a gente, vai comer como a
gente... — Gana se aproxima das comidas. — Olhe! Aqui é um bom
lugar para descolar algum “grude” ...
— Hã... o que é isso!?— Simba pergunta, curioso.
— Comida! O que parece? — Gana diz, aproximando um
pedaço de pizza em direção à tv.
— Argh! Que nojo!
— Hum... hm.. hm... gosto de galinha... — Ela imita,
mastigando a pizza.
— Viscoso, mas gostoso — digo a fala de Pumba, pegando
também uma pizza e comendo.
— Isso são guloseimas raraas... — Gana morde um pedaço do
sanduíche. — Uma noz, muito gostosa e crocanteee...
— Vai aprender a gostar — falo, olhando para Simba na tv.
— É o que eu digo, garoto, esta que é a boa vida, sem regras,
sem responsabilidades — Gana se joga no sofá com três
sanduíches na mão e uma pizza na outra. — Hm... é do tipo
cremosooo — ela lambe o queijo. — E acima de tudo sem
problemas! E então?
—Tudo bem... Hakuna Matata... — Simba concorda, olho para
ele que engole um inseto com dificuldade. — Viscoso... mas
gostoso!
— É isso ai! — Gana se levanta animada e começa a dançar
no ritmo da melodia, gesticulando para que eu a acompanhe.
— Hakuna Matata, Hakuna Matata, Hakuna Matata, Hakuna...
— cantamos em uníssono, andando em círculo como se
estivéssemos na selva como eles estão no desenho.
— Os seus problemas, você deve esqueceeer... — Simba
canta.
— Isso é viver, é aprender... — Acompanho, me movimentando
conforme a música.
— Hakuna Matataaaaaaaaa
— Hakuna Matataaaaaa
— Hakuuuuuuuuuna matata... Hakuna Matataaaa iiiiiiiiiié.... —
Gana sai andando cantarolando até que a música acaba.
Nossa respiração está acelerada, Gana começa a rir feliz por
esse momento, ela me olha e aponta um sanduíche em minha
direção.
— Laura, seus problemas você deve esqueceeer... —
Comprimo meus lábios.
— Isso é viver, é aprender...
— Nunca se esqueça, — ela se aproxima, me olhando nos
fundos dos meus olhos — quando a tristeza te abater e a dor
permanecer, Hakuna Matata...
Fico olhando para ela sentindo meus olhos queimarem,
mesmo que esteja fazendo de tudo para me ver sorrir ou me fazer
feliz, ainda sinto a tristeza de tudo o que me aconteceu, me abater
dia após dia.
Estou tão quebrada que tenho medo de nunca ser capaz de
me consertar. Ninguém imagina, como é sentir que tudo foitirado de
você, sua inocência, sua pureza, sua juventude e sua alma... a cada
dia uma parte de mim morria. A cada segundo que eu o sentia me
maltratando, perdia um pedaço de mim. Hoje tento encontrar meus
cacos nas pequenas coisas da vida, a cada sorriso direcionado a
mim e a cada tentativa de me fazer feliz, porque é isso que me faz
continuar, mesmo que seja a passos pequenos, isso me motiva a
superar qualquer que seja a dor impregnada em meu coração.
— Obrigada — sussurro com um caroço na garganta.
— Eu que agradeço por... me aceitar do jeito que sou — ela
diz, limpando as lágrimas.
— Quer repetir? — Aponto para a tv, Gana balança a cabeça.
— O que achas de dublarmos a Barbie?
— Sim!
Ela sorri animada mudando de canção, e passamos o dia
comendo, cantando e assistindo filmes sem pensar em nossas
vidas, fugindoda realidade e adentrando em um mundo onde tudo é
possível.
Encaro a boca de Andry que se movimenta enquanto jorra
bronca por termos desligado os telefones, mesmo que seja nossa
folga, isso nunca deve acontecer.
Eu deveria estar prestando atenção no que ele está falando,
me sentir realmente culpada por ter negligenciado meu trabalho que
tem uma carga horária pesada, deixando-me apenas com o
domingo livre... aliás, às vezes livre, porque até isso Andry costuma
nos tirar.
Troco o peso do meu corpo para outra perna, sua voz é como
um zumbido de uma mosca voando em meu ouvido. Seria errado eu
chamá-lo de mosca? Sim, eu acho que sim! Então Andry não é uma
mosca, apenas um patrão exigente!
Respiro fundo, querendo que essa reunião de broncas acabe,
mas o motivo de eu estar tão dispersa tem um nome... nome do qual
faz meu interior vibrar e meu coração saltar.
Ruslan não voltou para casa, já tem mais de 24 horas que não
escuto nem ao menos uma notíciasua, isso está me perturbando de
forma que me sinto desesperada e... com medo de que algo ruim
lhe tenha acontecido.
— Laura?
Ontem eu e Rony o esperamos até tarde, acabei pegando no
sono no sofá com suas cobertas irradiando seu cheiro. Estou
parecendo uma louca e obcecada, certo? Como posso me sentir
assim com um homem que mal conheço?
— Laura?
Inspiro fundo, apertando meus lábios descontente com tudo o
que vem acontecendo. Nunca me senti assim com homem algum,
até porque sempre fiz de tudo para me manter longe, sempre me
excluindo, me afastando e escondendo, mas desde que permiti que
Ruslan entrasse conforme Olesya me orientou, algo estranho vem
acontecendo dentro de mim...
— Laura? — Sobressalto quando uma bola de papel acerta
meu rosto, pisco várias vezes voltando a real para encontrar com a
feição furiosa do meu chefe. — uTestás me ouvindo?
— Hum... sim! — Andry arqueia uma sobrancelha e me lança
um olhar de desafio.
— O que eu acabei de dizer? — Olho para os lados, meus
colegas abaixam a cabeça, Yaroslav pigarreia.
— Não sei! — Afirmo, voltando a encará-lo, Andry suspira e
deixa seus ombros caírem em derrota.
— Céus... — Murmura, esfregando o rosto. — Vão... vão fazer
o que deve ser feito! — Ele nos dispensa, gesticulando com a mão.
Aperto meus lábios me sentindo mais uma vez culpada. Borrifo
álcool na minha mesa e em minhas mãos encarando a tela do meu
celular, querendo pelo menos receber uma mensagem sua. Porém,
Ruslan não tem telefone e muito menos sabe meu número, portanto,
ele não entrará em contato.
— Soa-te bem, Laura? — Ergo a cabeça, Justik se inclina na
minha cabine e se estica para pegar o chocolate que Aksinya me
deu de manhã.
Borrifo álcool em sua mão e apanho meu doce, fazendo cara
feia para ele que me olha divertido.
— Eu nem queria! — Resmunga, enrugando o nariz de forma
descontraída. — Ela não me deu...
— Chocolate? — Justik assente.
— Aksinya não está conversando comigo. — Um brilho de
tristeza percorre seus olhos, sei que mesmo que discutam, há um
amor entre eles que não é explicado, apenas sentido.
— Você deveria parar de encher o saco dela. — Ele suspira,
olhando para a foto da minha mãe.
— Ontem... vi ela com outro, mas até que entendo, somos
complicados como deves perceber, mas doeu, não vou mentir. —
Seguro o encosto da cadeira, observando-o perdido na dor que o
atormenta, me fazendo lembrar do episódio BlueCat Bluesde Tom
e Jerry.
O episódio começa com Tom sentado nos trilhos do trem
deprimido. Jerry o observa da ponte sobre os trilhos, começando a
narrar como Tom acabou assim.
O engraçado é que o episódio mostra Tom e Jerry como
amigos muito próximos até que Tom é hipnotizado por uma gata
branca. A gata retorna o amor de Tom e acabam em um
relacionamento amoroso. Mas como sempre, entra um vilão. O vilão
é o Sr. Butch, o gato rico que mora ao lado da gata branca. Ele a
atrai com sua riqueza, como uma oportunista que é, a gata não
perde nenhum milésimo de segundo e deixa Tom.
Embora Tom tenha percebido o quão pilantra era a gata, ele
não parou de correr atrás do seu suposto amor, usando todas as
suas finanças, indo contra o conselho de Jerry, na tentativa de
reconquistá-la.
Não importava o quanto Tom tentasse, Butch sempre estava a
um passo à sua frente,ostentando sua riqueza. Para o triste destino
de Tom, Butch e a gata branca se casam, deixando-o sem dinheiro,
sem herança e em uma imensa depressão.
Foi um dos episódios que eu mais senti a dor da traição, ainda
mais quando Jerry, pensado em sua namorada Toots, que foi fiel a
ele todo esse tempo o deixa, indo embora com outro rato, se
casando assim como a gata branca.
Jerry, de coração partido, junta-se a Tom nos trilhos,
mostrando o quanto uma traição pode destruir um coração que só
queria ser amado. O desenho acaba com apito do trem, dando a
entender que ambos cometeram suicídio.
Para uma criança esse episódio é só mais um de muitos que
não faz sentido, apenas diversão, mas para nós que entendemos o
que se passa, o impacto é maior, porque captamos a mensagem
transmitida por apenas um desenho.
Todas às vezes que reflito sobre esse episódio, algo dentro de
mim diz que é impossível terem cometido suicídio, pois eles
sobreviveram a coisas piores como martelos, tiros, explosões... Mas
se parar para pensar e analisar, o amor pode ferir muito mais que
qualquer outra coisa, e sei como a depressão é opressora, o quanto
nos esmaga dia após dia. Só que cada um luta com as armas que
têm, porém... um dia cansa, toda essa dor, esse sofrimento e esse
vazio cansa...
Olho para Justik que borrifa meu álcool em suas mãos, imerso
em seu próprio pensamento. Sempre os comparei com Tom e Jerry,
devido às disputas, as brigas e as discussões, mas que sempre
permaneceu o respeito e o amor.
— Justik? — Ele levanta o olhar, prestando atenção em mim.
— Você a ama?
— Será que amar é o suficiente? — Justik fecha os olhos por
alguns segundos. — Sabe Laura, todos que nos vê aqui no trabalho,
ou que acompanhou nosso relacionamento acontecer e terminar,
acham que fui o responsável por tudo, talvez eu tenha mesmo
culpa, mas...
— Ela não é fácil de lidar — completo, fazendo-o rir de leve.
— Sinto-me cansado...
— Eu não entendo nada sobre relacionamento, mas sei que
quando a gente ama, corremos atrás para termos a pessoa que
queremos ao nosso lado, porém, amar também significa deixar ir. Se
acredita que não dará certo ou que nunca será feliz, deixe-a ir. —
Justik movimenta seus lábios, evitando me olhar. — Sei que pode
ser difícil,afinal, quem quer permitir que a pessoa que a gente ama
vá embora? Só que uma decisão assim é necessária, porque nós
também precisamos ser livres e quem sabe, permitir que a pessoa
certa entre em nossa vida. Não se prenda a um amor que talvez só
vá te machucar, seja forte, Justik, e a deixe ir para que você possa
ser feliz.
Uma lágrima solitária cai de seu olho, ele funga e a limpa,
erguendo o rosto segundos depois. Justik está sofrendo, mais que
qualquer outro dia.
Sinto um aperto no peito por vê-lo assim, ele é um bom amigo,
engraçado e atrapalhado, chato na maior parte do tempo, mas quem
não é, não é verdade?
— Tu és especial, Laura, sorte daquele que um dia conquistar
seu coração. — Justik inspira fundo, tentando se recuperar.
— Fica bem, okay? — Ele assente e se afasta quando
Yaroslav e Aksinya entram.
Aksinya finge que nem o vê ao passar por sua cabine, me
fazendo questionar qual dos dois está errando com o outro. Yaroslav
estende um copo de cafée aponta para a porta, franzoo cenho sem
entender seu gesto.
— Vamos?
— Aonde? — Pergunto, confusa.
— Tu não escutaste nada, não é? — Enrugo meus lábios e
beberico meu café, sentindo uma leve queimação na língua por
conta da temperatura.
— Nada!
— Onde estás com a cabeça? — Suspiro, dando de ombros,
não irei revelar que ela está em certo alguém. — Estamos indo
entrevistar a mãe de Ruslan. — Engasgo com o café assim que
suas palavras atingem meus ouvidos.
— Sério? — Pergunto, controlando a tosse e tomando fôlego.
— Sim, Andry conseguiu.
— Por que agora ela quer falar?— Pergunto, juntando minhas
coisas e o seguindo. — Foram 14 anos de silêncio.
— Talvez seja pela sua fuga,e está com medo, ou algo assim.
— Destravo o xoxo e nos acomodamos antes de partirmos em
direção à antiga casa de Ruslan.
Fico em silêncio por todo caminho, Yaroslav questiona o
porquê de eu estar tão aérea hoje, respondo apenas que estou
pensando no que irei questioná-la.
Viro a esquina e paro em frente à antiga casa de Ruslan. Abro
a pasta que contém todas as informações do caso e pego uma foto
antiga, onde a mesma casa bonita, com jardim na frente e uma
cerca branca circundando era apenas um barracão de três cômodos
desgastado e sem vida.
— Eles acabaram vencendo na vida, não? — Yaroslav diz,
saindo do carro.
— Eu acredito que seja por merecimento, eles sofreram muito
pelo que pesquisei.
— Estou muito nervoso! — Inspiro fundo e lanço um olhar de
compreensão, porque sinto o mesmo.
Abro o pequeno portão da cerca e caminhamos em direção à
porta da frente. O sol transluz o verde da grama, nas plantas e nos
pés de rosa que esperam ansiosamente pela primavera para florir e
trazer ainda mais beleza para esse lugar.
Um movimento chama a minha atenção, a cortina de uma das
janelas se movimenta, um latido de um cachorro me assusta por
parecer ser grande e bravo.
— A gente entrou sem certificar se tem cachorro e se está
solto. — Resmungo, subindo o pequeno lance de escada, Yaroslav
me olha um tanto assustado, notando o erro que cometemos.
— Já foi — declara batendo na porta, ele dá um passo para
trás na espera de ser atendido. — Será que el... — Yaroslav se cala
quando a porta é aberta.
Um homem alto e magro nos recepciona, seu olhar se fixa em
nós, nos avaliando de formanada discreta. Ele está vestindo roupas
escuras, sua pele é um pouco pálida e há olheiras escuras debaixo
dos olhos, e ainda assim, é um homem bonito, não tanto quanto
Ruslan e Artem, mas bonito de uma forma comum.
— Boa tarde, somos os jornalistas da AS. — Yaroslav diz com
a voz travando pela forma que o homem nos encara.
Recuo um passo quando seus olhos se prendem nos meus,
não faço ideia de quem ele é ou porque desperta em mim um medo
que a muito tempo não sentia.
— Sei quem são. — Fala, ainda me olhando.
— É... bom... — Yaroslav pigarreia, sem graça. — Temos um
encontro com a... — Ele pega seu bloco de nota, um pouco
atrapalhado tentando lembrar e busca pelo nome da mãe de Ruslan.
— Okasana — digo. — Ela está nos esperando. — O homem
inclina a cabeça um pouco para o lado, seu olhar me deixa tentada
a me encolher.
— Uma entrevista? — Pergunta com a expressão ilegível.
— Sim, sim... é... ela está nos esperando? — Yaroslav olha
para mim, inquieto.
— Creio que sim. — O homem empurra a porta,
escancarando-a, dando apenas um passo para o lado para que
possamos entrar.
Aperto com mais força a pasta, não quero entrar nessa casa,
não com ele me olhando dessa maneira perturbadora, isso não é
normal.
Quem é ele?
Yaroslav entra, mas sei que assim como eu, ele quer dar meia
volta e entrar no carro para nunca mais voltar. Meu colega se vira
para mim, acenando para que eu entre, o homem não desgruda os
olhos de mim... céus, estou com medo!
— Não vai entrar? — Pergunta de formafria,assinto forçando-
me a entrar.
Estremeço ao passar ao seu lado, sinto seu perfume e um
tremor nas minhas mãos. Sobressalto quando a porta se fecha, o ar
dos meus pulmões some ao me ver presa dentro de uma casa
desconhecida com um homem totalmente estranho.
— Ela está na cozinha, só ir reto por aquele corredor. — Nos
orienta, encostado na porta com os braços cruzados.
— Vamos Laura — Yaroslav sussurra, chamando minha
atenção, assinto e sigo-o pelo corredor, segundos depois olho para
trás, para onde o homem estava, só que ele não está mais lá.
— Céus, que cara sinistro. — Assinto em concordância.
— Essa casa é bem grande, não?
— Não é, Laura, nós que estamos andando à passos lentos —
Yaroslav diz rindo.
— Certo! — Fico ereta e aperto o passo. — Okasana? —
Chamo da porta da cozinha decorada com armários inox e vários
enfeites e decorações de crochê e mais uma vez, repleta de rosas.
— Estou aqui! — Sua voz delicada me faz entrar na cozinha,
uma mulher de idade está em frente ao fogão, misturando algo na
panela com um avental estampado com pequenas galinhas.
— Somos da AS.
— Sim, estava esperando por vocês. — Ela se vira para nós,
nos observando com seus olhos verdes fascinantes, mesmo que
tenha passado por tantas coisas e que as linhas de expressões em
seu rosto entregue sua idade, Okasana continua linda.
— Sou a Laura e este é Yaroslav — Ela sorri sem parar de
mexer a colher dentro da panela. — Muito obrigada por nos receber.
— Imagina — diz, apontando para a mesa. — Fiz algumas
coisas para comermos, faz tempo que não recebo visitas.
— Olha senhora, não vou recusar não, porque esse cheiro fez
meu estômago contorcer. — Yaroslav fala, pegando um pedaço de
bolo e levando-o a boca. — Meu Deus, está divino!
— Gratidão, querido. — Ela sorri sem graça, desligando o
fogão.
— Tudo bem para senhora... conversar sobre seu filho? —
Okasana suspira e assente, mas não diz nada, apenas arrasta uma
das cadeiras e se senta.
— Sente-se querida, vamos começar antes que eu perca a
coragem. — Me aproximo e sento à sua frente, suas mãos se
contorcem no colo.
— Primeiramente sinto muito por tudo o que a senhora passou
e continua a passar. — Ela umedece os lábios, olhando Yaroslav
comer seus biscoitos.
— Uma pena não termos o controle do destino — ela volta a
me olhar com uma expressão devastada.
— Posso gravar nossa conversa? — Okasana assente, coloco
o gravador em cima da mesa e me ajeito. — Darei a palavra à
senhora.
— Obrigada... — Ela sussurra, fechando os olhos por alguns
segundos antes de começar. — Quando nós nos tornamos mãe, a
única coisa que desejamos é proteger nossos filhos do mundo, da
maldade e da pobreza. Perdi meu esposo quando meus meninos
ainda eram crianças, eles tiveram que crescer mais rápido do que o
normal, às vezes me sinto culpada por não ter lhes dado uma
infância feliz.
— A senhora não teve culpa — Yaroslav tenta acalmá-la.
— Sim, eu tive uma parcela de culpa. Não deveria ter tido
filhos quando eu mal conseguia me sustentar, não que me
arrependa, jamais. Porém, quando se vive na pobreza, o que nos
resta é um ao outro. Eu tinha meu esposo e queria filhos, fui
egoísta, porque em vários momentos, fiz com que eles dormissem
sem comer. Se eu não tivesse tão cega e parado para analisar
nossa situação, teria evitado ter filhos.
— Mas a senhora teve 3 filhos e acredito que eles forame são
seu pilar. — Digo, vendo-a enxugar suas lágrimas. — Acredito que
apesar de tudo, eles foram sua fortaleza.
— Eu falhei, menina. — Okasana balança a cabeça. — Eu
falhei com meu menino.
— A senhora estás a falar de Ruslan? — Yaroslav pergunta,
ela não responde, apenas encara suas mãos em cima do colo.
— Como era Ruslan antes de tudo acontecer?
— Ah... — Okasana levanta a cabeça e sorri, com um olhar
perdido, preso nas lembranças. — Ruslan era o mais
compreensível, educado e sonhador entre seus irmãos, às vezes
até bobo demais por sempre encobrir as artes feitas por Artem e
Olesya. — Meu coração salta ao escutar seus nomes, eu estava
desconfiada,mas saber da comprovação de que eles realmente são
irmãos, faz o impacto ser maior.
Tenho Olesya como terapeuta há três anos, sempre atenciosa
e muito carinhosa, vem me ajudando a superar meus traumas e
meus medos de me socializar. Ela sabia que eu tinha visitado
Ruslan na cadeia, me abri em relação ao sentimento estranho que
senti por ele. Olesya não demonstrou surpresa ao estar falando do
seu irmão.
Artem soube no momento em que coloquei meus olhos sobre
ele por se parecerem muito um com o outro. Só que, através do seu
olhar furioso ao citar o nome de Ruslan, notei que há um assunto
mal resolvido entre eles.
Ruslan foi abandonado por sua família,por quê? Por que eles
não quiseram saber mais dele? Por que não lutaram para provar
sua inocência? Quem é o culpado no final das contas?
— Não tenho nada de ruim a dizer do meu menino, até porque
ele era a luz dos nossos dias, aquele que não nos deixava abater
pela tristeza. Ruslan se sacrificou para que seus irmãos
estudassem, vendendo rosas sem nunca cansar, acordando de
madrugada e indo dormir tarde. Uma vez o vi tão cansado que achei
que ele não iria aguentar de exaustão, mas Ruslan continuou... —
Okasana inspira fundo, ela se vira e coloca chocolate quente em
duas canecas, entregando uma para mim e outra para Yaroslav.
— Como foidescobrir que ele é um assassino? — Ela congela
por um momento antes de voltar a cortar uma fatia de bolo.
— Ele não é um assassino, mesmo que insistam, que o
condenem... Ruslan não é culpado!
— Mas as provas dizem o contrário.
— Meu coração é prova suficiente de que ele é inocente! —
Fala com os olhos cravados nos meus.
— Por que não fizeram nada? — Pergunto, deixando
transparecer uma raiva desconhecida. — Por que alega que Ruslan
é inocente sem nunca o ter visitado? A senhora se manteve em
silêncio por quatorze anos, olha para vocês agora, poderiam ter
conseguido um advogado, mas não, se mantiveram em silêncio....
— Balanço a cabeça, incrédula. — Sentir que ele é inocente não é o
suficiente, deveriam tê-lo tirado de lá, daquele inferno...
— Você não faz ideia...
— Não, eu não faço, mas são vocês que não fazem ideia do
que ele viveu lá dentro. — De repente minha respiração e meus
batimentos ficam acelerados. — Todos que entrevistei falaram a
mesma coisa, que ele era um garoto bom e que não faria mal a
ninguém, mas que foi trancafiado durante quatorze anos por uma
série de assassinatos. Se acreditassem realmente que ele era
inocente, por que não foramvisitá-lo? Por que não escreveram? Por
que o abandonaram?
Okasana me encara com olhos marejados e com raiva,
ultrapassei um limite do qual não deveria, mas essa de que ele é
inocente não é o suficiente, tem que ter alguma coisa a mais, tem
que ter uma explicação lógica que explique esse descaso.
— Ruslan era um garoto quando foi preso. — Completo com a
voz embargada.
— Um garoto que matou mais de vinte mulheres. —
Sobressalto ao escutar sua voz, olho para trás, encontrando com o
homem de antes, escorado na parede com os braços cruzados. —
Okasana é mãe, nunca irá acreditar que seu filho não passa de um
doente.
— Quem é você? — Pergunto a ele, fechandoa mão em torno
da caneca.
— Mirom, primo dos Rotam — revela tão frio que calafrios
percorrem meu corpo. — Fui criado com esta família,fui melhor
amigo de Ruslan e posso afirmar o quanto ele é cruel.
Meu coração salta quando ele se aproxima, seu olhar
penetrante me apavora tanto que quero me encolher, e desaparecer
igual antes. É estranho, mas... não sinto uma vibração boa vindo
dele.
— Ruslan é manipulador e frio, engana cada pessoa que está
ao seu lado, fazendo acreditar que ele é bom, mas não passa de um
maníacodoente. — Mirom para atrás de Okasana, repousando suas
mãos em seus ombros.
— O que me diz a respeito de sua fuga? — Pergunto com
desconforto, ele sorri de lado, acariciando o pescoço de Okasana
enquanto ela encara suas mãos.
— Que ele vai continuar cometendo assassinatos, destruindo
famílias e fingindo ser inocente. Não acredite em suas palavras!
— Ele nunca falou que era inocente — ficoencarando os olhos
escuros de Mirom, que retribuiu com mais intensidade.
— Tu fizesteentrevista com Ruslan...
— E em nenhum momento ele alegou ser inocente. — Mirom
umedece os lábios e se inclina um pouco para frente.
— Acho que está na hora de encerrar a entrevista, o que acha,
mamãe? — Fico encarando-os, preciso de mais informações.
Olho para Yaroslav que observa Mirom com a testa franzida.
Tomo um gole do chocolate quente, pensando em como estender
mais a conversa. Minha perna começa a balançar e meu coração a
palpitar.
— Vocês disseram que Ruslan começou a vender rosas por
incentivo do tio, onde ele está agora? — Mirom levanta a cabeça
lentamente, fixando os olhos em mim, só que mais furiosos e mais
frios.
— Infelizmente ele faleceu anos depois de Ruslan ser
condenado. — Responde Okasana, fungando e dando batidinhas
nas mãos de Mirom.
— Ele era meu pai. — Ele declara, passando a língua nos
lábios.
— Meus pêsames. — Digo, Mirom agradece com um aceno de
leve com a cabeça. — Como era a relação entre ele e Ruslan?
— Unha e carne. — Okasana sorri ao se lembrar. — Tu não
fazes ideia de como eles se amavam. Eram como pai e filho,
Kostyantyn era louco por meu filho.
— De certo que foi difícillidar com o fato de o sobrinho ser um
assassino. — Yaroslav fala, receoso.
— Kostyantyn ficou arrasado. — Okasana murmura, olho para
Mirom.
— Como você reagiu? — Ele comprime os lábios, estreito
meus olhos ao reparar que há um esforçopara fazeruma expressão
triste.
— Não muito surpreso — declara, abaixando a cabeça. —
Como já disse, sabia com quem estava lidando.
— Por que Kostyantyn não depôs a favorde Ruslan? — Mirom
solta uma risada rouca.
— Tu não estás compreendendo. — O canto do seu lábio
superior se eleva levemente. — Ruslan é um assassino, foi
comprovado, investigado, não havia o que fazer. Aceite, querida,
Ruslan Rotam é doente.
Mordo o interior da bochecha com vontade de questioná-lo,
buscar mais a fundo o que estão escondendo, mentindo. Okasana
se levanta e eu a acompanho, colocando a caneca em cima da
mesa.
— Acredito que já disse o suficiente. — Ela se afasta e em
seguida volta com duas vasilhas. — Levem com vocês esses
Pyrizhky
, eram os preferidos de Ruslan. — Okasana me estende
um.
— Obrigada. — Ela sorri de leve, me olhando enquanto mordo
o bolinho cozido e recheado com carne. Sinto a massa mole
amanteigada se dissolver enquanto mastigo. Entendo o porquê de
Ruslan amar tanto esses bolinhos. — Uma delícia. — Elogio,
fazendo seus olhos brilharem.
— Sei que é! — Diz, entregando uma vasilha para mim e outra
para Yaroslav, que sorri feito um bobo.
— Muito obrigado pela gentileza, senhora. — Ele diz, enquanto
arrumo minhas coisas.
Okasana nos acompanha até a porta ao lado de Mirom. Sinto
sua presença por todo caminho, como se seus olhos fossem
incapazes de desgrudar de mim.
— Mais uma vez, obrigada por nos receber.
— Sinto por ter sido breve. — Okasana me lança um sorriso
sem brilho.
— Adeus, senhora. — Yaroslav se despede, olho mais uma
vez para Mirom antes de passar pela porta com meus pelos
eriçados.
— Cuide-se, Laura. — Viro-me para ele, que sorri com uma
expressão e olhar esquisito, dou dois passos para trás como se
estivesse sido atingida por algo desconhecido.
Mirom não desprende o olhar de mim, meu coração bate
alarmado. Assinto por educação e desço as escadas rumo ao carro,
louca para ir embora. Sobressalto de susto com uma batida brusca
da porta, olho para trás mais uma vez, não há ninguém.
— Ué! — A voz alarmada de Yaroslav me chama atenção.
— O quê?
— Veja, o portão está trancado. — Desço meus olhos e franzo
o cenho, há realmente um cadeado na tranca.
— Estranho, por que iriam nos trancar?
— Não faço ideia. — Ele resmunga, soltando a respiração. —
Vou voltar e pedir para que abram. — Assinto, sem a intenção de
acompanhá-lo.
— Okay, te espero aqui! — Yaroslav se afasta, seguro o
cadeado me perguntando se isso foi de propósito.
— Laura?
— Sim? — Olho para ele parado no meio do caminho, imóvel.
— O que foi... — Me calo quando vejo além dele um Rottweiler com
a boca espumando de ódio, seu rosnado estremece meu corpo
inteiro.
— Laura...
— Estou vendo! — Digo, apavorada e sem saber o que fazer,
porque se eu correr o cachorro vai atrás e se eu ficar... ele nos
atacará.
Yaroslav recua um passo, encarando o cachorro que dá um
passo à frente com seus enormes dentes aparentes, deixando claro
que não somos bem-vindos.
Desespero me consome, se ele nos pegar, não irá sobrar
nada. Olho para casa, quero gritar, mas se eu fizer isso, farei com
que o Rottweiler nos ataque muito mais rápido.
Merda, quem trancou o portão?
— Laura, ele está vindo! — Yaroslav diz, meu coração salta
quando o cachorro começa a andar em nossa direção, meu colega
me olha apavorado e a única coisa que falaantes de tudo acontecer
é: — CORRE!!!!!!!!
Solto o cadeado e corro atrás de Yaroslav com o cachorro em
nosso encalço. Viramos a lateral da casa sem saber ao certo para
onde ir. Escuto o latido e o rosnado cada vez mais perto, já
imaginando seus dentes perfurando minha pele e rasgando-a.
— Laura? — Olho para Yaroslav que corre em direção à
casinha do cachorro que é alta o suficiente para que o animal não
suba.
Olho para trás, uma burrice, porque isso me faz perder
preciosos segundos. Apresso meus passos, tento subir no teto da
casinha, desesperada, querendo fugir do animal enfurecido.
— Deixe-me te ajudar! — Yaroslav se inclina, mas recuso.
— Não! — Olho para trás, céus... o cachorro vem em
disparada.
— Foda-se! — Sinto mãos se fecharem em volta dos meus
braços, meus olhos se prendem no rosto suado e vermelho de
Yaroslav com o único pensamento de que ele me tocou!
— Você... me...
— Ande Laura, ajude-me. — Pede em desespero me puxando
para cima. Me impulsiono, mas então solto um grito estridente de
dor quando sinto os dentes do cachorro perfurarem meu tornozelo.
Solto um gemido, lágrimas escorrem por meu rosto, escuto
Yaroslav amaldiçoar. Outro grito sai por minha garganta ao sentir a
minha pele ser rasgada, uma dor insuportável percorre toda minha
perna.
Me debato na tentativa de fazê-lo me soltar, Yaroslav me puxa
para cima, até que me solta e começa a chutar a cabeça do
cachorro que não tem a intenção de largar seu brinquedo de
diversão.
— AXEL!!!!! — A voz de Okasana corta os rosnados do
cachorro.
— AXEL, PARA!!! — Mirom grita, trinco meus dentes de dor,
Yaroslav volta a me puxar até que o cachorro me solta quando seu
dono se aproxima.
— Laura? — Yaroslav me chama quando me sento, meu
tornozelo está latejando de dor. — Oh, merda! — Xinga, coloco as
mãos trêmulas no rosto, controlando meus pensamentos.
— Quero ir embora! — Digo, me erguendo.
— Céus, ele te machucou! — Olho para meu tornozelo
ensanguentado, me inclino e subo a barra da calça, soltando um
barulho de angústia.
— Você me tocou, Yaroslav — Murmuro, olhando para seu
rosto pálido e respiração acelerada. — Você me tocou!
— Eu tinha que fazerisso ou tu virarias comida de cachorro! —
Balanço a cabeça.
— Você não deveria ter me tocado! — Trinco os dentes.
— Perdoe-me... — Sussurra com os olhos marejados. — Eu só
estava... te protegendo! — Um soluço escapa de mim.
— Querida, está tudo bem? — Olho para baixo, Okasana tem
as mãos no coração e Mirom está segurando o cachorro sem
expressar nenhuma emoção. Encarando seus olhos é que percebo
que isso foi de propósito... esse ataque foi de propósito!
Me arrasto para frente, Yaroslav faz um movimento de me
ajudar, mas para quando lhe lanço um olhar de alerta. Ele me
tocou... ele me tocou... minha mente grita desesperada.
Você dá nojo nas pessoas quando elas te tocam...
Prendo a respiração antes de saltar da casinha, caio de
joelhos no chão com um gemido de dor. Fecho meus olhos com
força, acalmando a dor, meus pensamentos e minha respiração,
preciso chegar em casa.
— Laura?
— Não me toca! — Digo quando se aproximam de mim. —
Não me toca! — Peço, aflita e me levanto.
— Meu Senhor, me perdoa por isso! — Okasana diz, tão
assustada quanto eu.
— O portão estava trancado! — Revelo, me equilibrando.
— O quê? — Balbucia confusa.
É tudo sua culpa, Lauriana!
Fecho meus olhos ao escutar sua voz, pavor me consome
mais do que a dor em meu tornozelo. Ele está invadindo minha vida
novamente, como sempre fez... como sempre faz...
Preciso ir embora!
Abro meus olhos e começo a andar, tentando a todo custo não
colocar muito peso sobre minha perna esquerda. Olho para o
cachorro sentado aos pés de Mirom, tão diferente do ataque... tão
mais calmo! Ergo o olhar e prendo no rosto do homem que sustenta
meu olhar como se sentisse satisfação pelo que acabou de
acontecer.
Eu entrei em seu caminho... um caminho que não deveria ter
cruzado. Mirom tem o mesmo olhar que meu padrasto... um olhar
insano, perturbador e apavorante.
Me inclino para pegar minhas coisas que joguei no meio do
quintal quando saí correndo sem nem perceber. Fecho meus olhos
reprimindo a dor, inspiro fundo e volto a caminhar mancando.
— Tu estás enganada — a voz de Mirom me estremece. — O
portão não estava trancado. — Não viro para olhá-lo, continuo a
passos lentos.
— Como assim? — Yaroslav sussurra ao meu lado.
— Ignore! — Falo, me aproximando do portão que não há mais
cadeado, tiro a chave do carro do bolso.
— Laura, tu estás bem? — Abro a porta e me sento, ofegante.
— Eu vou ficar... sempre fico! — Encaro meu machucado,
vasculho minha bolsa até encontrar um lenço. — Eu vou ficar bem!
— Repito, estancando o sangramento.
Trinco os dentes quando dou um nó no lenço em volta do meu
tornozelo. Minha perna pulsa de dor. Ajeito-me no banco, recosto a
cabeça no banco controlando a respiração antes de ligar o carro.
— Você vai conseguir? — Yaroslav pergunta, sua voz está tão
distante que é como se ele estivesse desaparecendo como uma
névoa.
— Eu consigo! — Sussurro, aperto o volante com as mãos
trêmulas.
Suor escorre por meu corpo enquanto dirijo pelas ruas, minha
visão começa a ficar turva, minha pele febril e meu tornozelo lateja.
Só que o que estou sentindo não é por causa da mordida em si,
mas sim porque ele está perto de atormentar minha mente de
novo... sua voz fica cada vez mais grave... mais perto... Me vejo em
meio a uma mata fria e úmida, sozinha e perdida enquanto sou
perseguida sem pressa, uma diversão antes do tormento, da tortura
e da dor.
Freio bruscamente, encosto a testa no volante, controlando a
respiração.... controlando meu coração... “Você é asquerosa, só dá
nojo nas pessoas, por isso que faço isso com você, Lauriana...”
Solto um soluço, buzinas soam atrás de mim por estar parada no
meio da avenida.
— Estás acontecendo de novo? — Yaroslav pergunta com a
voz baixa.
— Preciso que vá! — Peço, minhas mãos estão tão trêmulas
que mal consigo controlá-las.
— Okay... — Diz sem contestar e sai do carro. Não é a
primeira vez que me vê entrando em crise, porém, dessa vez,
parece ser pior... muito pior...
Caminho por entre as ruas do meu bairro, escondendo meu
rosto do vento. Uma frente friachegou de uma vez no estado de
Goiás, bagunçando minha imunidade.Ontem estava um calor de
rachar e hoje um frio de lascar... Sorrio de leve mesmo em
pensamentos por ter rimado essas duas palavras.
Olho para frente, a neblina toma todo o bairro. É até engraçado
que meio-diaestá parecendo cinco da manhã. Fecho mais meu
agasalho e solto um suspiro ao escutar risadas e conversas.
Queria poder fazer parte de um grupo de amigos, sorrir e
brincarcom eles, conversar sobre garotos, novelase até falarmal
das meninaspopularesda minhaescola,mas sou impedidade criar
esse vínculo.
Uns dos garotos do outro ladoda rua me olha.Sou a estranha
da escola, aquela que ficareclusa em um canto com fones de
ouvido,que não conversa, que se isoladas pessoas e do mundo,
que não ligapor sofrer bullying,
porque nada disso se compara ao
que passo em casa.
Quero tanto poder contar para alguémo que meu padrasto faz
comigo,mas tenho vergonha. O que irãopensar de mim?Será que
vão acreditar?Filhade prostitutanão tem nenhum privilégio,
minha
mãe sofre com os preconceitos e com os olhares tortos das
mulheresdo bairro,sereiapenas maisuma que provocou o próprio
padrasto.
Serei a culpada!
Sinto um nó na garganta. Por que é tão difícil
pedir socorro?
Por que as pessoas não veem que tem alguma coisa de errado
comigo? Por que elas sempre apontam o dedo para mim e falam
mal, em vez de me ajudar?
O ser humano é egoísta, prefere fecharos olhosdo que tentar
ao menos entender aquilo que julga.
Desvio o olhar dos garotos que começam a fazer piadi
nhas,
ignorando tudo o que falam.Se eu contar para a polícia,
eles irão
me ajudar?
Viro à direita,direção contrária à minha casa. Eu preciso
tentar... ao menos tentar... Apresso os passos, olho no relógioe
meu coração dispara. Ele sempre está lá quando chego, o que o
deixará irritado comigo por não estar lá na hora estabelecida por ele.
Preciso tentar!
Depois de vários minutos caminhando, paro em frente à
delegaciada minharegião.Será que vão acreditarem mim?Sento-
me no meio-fio,encarando a delegacia.Abraço meus joelhose
colocoo queixo em cima, balançando meu corpo levemente para
frente e para trás.
Hoje é meu aniversáriode dezesseis anos, estou quase
chegando aos dezoitoe quando isso acontecer, poderei fugir
. E se
ele me trancafiar como fez todas as outras vezes?
O pior de tudo é que minha mãe nunca desconfiou,pelo
menos é nisso que acredito, porque seria o fimpara mim se ela
souber de tudo e não estar fazendo nada para me ajudar
.
Ela me ama... ela me ama... ela me ama...
Repitoessas palavrasem minhamente todos os diase todas
as horas, só que depoisque elase afundouna bebidae nas drogas,
mamãe não é a mesma. Continuame dando o que preciso,roupas,
sapatos, produtos de belezae materiaisde qualidade...tudo o que
ela consegue me dar.
Mesmo se drogando e bebendo, ela ainda faz qualquer coisa
para que eu tenha um pouco de luxo. Mal sabe ela que sua
princesinhaé estuprada quase todos os dias,obrigadaa se manter
calada para proteger a única pessoa que ama, sua mãe.
As brigas entre elesaumentaram e eledesconta em mimsuas
frustrações. Fecho meus olhos, estou sozinha, sem amigos, sem
ninguém que possa me dar forças além de mim.
Quero tanto gritar!
Pego meu celulare olho novamente para o site onde me
inscrevipara o intercâmbio.Apesar de ter apenas dezesseis anos,
esse é o meu últimoano na escola. Mamãe sempre falouque os
estudos é a porta da nossa liberdade,por isso,me matriculoucedo
para que eu começasse logo.
Acateiseu ensinamento e meti a cara nos estudos. Pedi que
me matriculassenas aulasde Russo. Elaestranhou, mas rendeu-se
ao meu pedido, e escondido do meu padrasto comeceia estudar,
porque para ele isso é uma perca de tempo.
Por que o Russo? Bom, a Rússia é um país fechado, longe
daqui...quase impossível de o meu padrasto iratrás de mimquando
eu for embora... só preciso conseguir a bolsa de estudos que me
inscrevi mês passado.
Essa será a oportunidade de fugir
, porque não importa aonde
me esconder aqui no brasil, ele sempre me encontrará.
Guardo o celular, me levanto, tiro o capuz e inspirofundo,
tomando a coragem de contar o que está acontecendo, do que ele
está fazendo. Cada passo que dou em direção à delegacia, mais
sinto a liberdade me consumir
.
Eles precisam acreditar em mim!
Quando colocoo pé na calçada da delegacia,alguém agarra
meus cabelos e me puxa para trás. Solto um grito assustado e
seguro seus pulsos.
— Onde pensa que vai? — Sua voz enfurecidae baixa,
estremece meu corpo. — Sabia que iria aprontar!
Ele me arrasta pelas ruas, agarrado em meus cabelos e me
joga dentro do carro. Lágrimas escorrem por meu rosto quando seus
olhos se prendem aos meus no retrovisor. James tem o canto de
seu lábio elevado, enojado.
— Estou decepcionadocom você, Lauriana.— Diz,estalando
a lín
gua e arrancando com o carro. — Estava pensando em fazero
quê? Acha que eles iriamacreditar em você? — Ele solta uma
risada forçada. — Ninguém acredita em você. Já se olhou no
espelho? Você é asquerosa, desperta nojo nas pessoas, por isso
ninguém gosta de você, Lauriana.
Solto um soluço, preciso sair, fugirdele. Vou até a porta do
carro, congeloquando escuto o clique.Eleas trancou. Minhasmãos
tremem, perco o ar só de imaginá-lo me machucando.
— Você sabe que façoissopara te punir, não é? — Olhopara
ele através das lágrimas. — Sou o único que pode fazer isso!
James estaciona o carro na garagem, me tirando à força
somente quando os portões de casa se fecham.As pessoas jamais
saberão o que realmente acontece dentro dessa casa... dentro
desse inferno.
— Me perdoa... — Imploroentre o choro, ele me arrasta
agarrado em meus cabelos. — Eu não ia fazer nada!
— Mentirosa!— Eleabre a porta e me jogano chão, caioum
pouco desajeit ada, sentindo dor no meu pulso e na boca que foi
contra o piso. — Suas mentiras não me convencem.
Tento me levantar, mas paro ao sentir suas mãos em mim.
Ranjoos dentes quando elelevantaminhacabeça peloscabelose
sussurra em meus ouvidos:
— Estou furiosocom você, sua mãe... — James estala a
língua,fecho os olhos ao sentir seu nariz em meu pescoço. — O
que você fará se ela morrer? Quer que eu a mate, Lauriana?Quer
ver sua mãe apanhar até morrer? — Fecho meus olhos, negando
com a cabeça.
— Me solta! — Grito, me virando e batendo em seu rosto.
James solta um grunhido de dor, não ireimais deixá-lofazer
isso...não vou... não vou... eleme soltabruscamente, fazendocom
que eu bata a testa no chão. Choramingo de dor.
— Ótimo, então vamos fazer do jeitoque gosto. — Olho para
ele com a visão turva.
James desafivelaseu cinto, me encarando com um olhar
insano, profanado, que sempre me causa medo. Começo a me
arrastar para longe dele, preciso reagir... preciso lutar contra isso.
Me levanto a tempo de fugir da sua investida.
Se eu gritarninguémvaime ouvir, eu fizissouma vez e ele...
elefezcom que eu não conseguisseandar no outro dia.Os vizinhos
nem ligam,fecham os olhos e tapam os ouvidos, deixando-me a
mercê da minha própria sorte.
Estou sozinha!
Me encosto na parede com a respiração acelerada, lágrimas
escorrem por meu rosto ao encarar o seu rosto cheiode diversão.
Essa minha recusa o deixa mais excitado, faz com que ele seja mais
agressivo nas suas investidas.
Sou sua diversão e estou tão cansada...
James avança em minha direção, saio correndo, mas ele
consegue pegar meu braço e me puxar, rodeando seus braços em
voltade mim, murmurando palavrasobscenas. Solto um grito, mas
ele tampa minha boca com sua mão, me levando para o quarto.
Me debato desesperada através dos choros e dos pedidosde
socorro abafados por sua mão. James me joga no chão, escuto o
trincoda porta e olhopara ele,parado aos meus pés, sorrindocomo
se tivesse ganhado na loteria.
— Eu tenho nojode você. — Diz,segurando meus tornozelos
e me arrastando para perto dele. — Você dá nojo nas pessoas. —
Eleme prende ao colocaro joelhoem minhascostas. — Ninguémte
suporta... ninguém suporta tocar em você.
— Socorro... — Tento gritar, mas eleé abafado pelochoro de
desespero.
— Grite... grite mais... — Ele rasga minhas roupas, rindo de
mim. — Grite que ninguém te ouvirá, porque ninguém se importa
com você, apenas eu! — Sinto o corpo de James sobre mim, sua
mão entrelaça entre meus cabelos, puxando minha cabeça para
trás, com tanta forçaque sinto dor no pescoço. — Issoé sua culpa...
faço isso por sua culpa...
Solto um grito quando me morde e gemo de dor ao jogar
minhatesta contra o chão. Ele me levantade uma vez e me deitana
cama de costas para ele.Me debato, gritomesmo que sejabaixo,o
arranho, mas é tudo em vão...
Elesempre consegue o que quer, reprimoa dor, a humilhação
e o nojo que sinto. Quero fugir
, matá-lo... morrer, mas não consigo
fazer nada, todas as minhas tentativas foram em vão.
Olho para a foto da minha mãe através das lágrimas.Ela
deveria estar me protegendo... deveria ter prestado atenção na
minhamudança quando o infernocomeçou... deveriater se mantido
solteira,do que trazidoum desconhecido,tendo dentro de casa uma
filha.
Eu a culpo por isso, por tudo o que vem acontecendo, eu a
culpo.Minhainocênciafoiarrancada de mimda forma maisbrutale
violenta.Eu era uma criança... Eu tinha faladopara ela que ele
estava me machucando, não com palavras, mas através de
desenhos, me isolandode todo mundo, demonstrando o medo que
sentia de todos que se aproximavam,principalmente dos homens,
de quando falavaaltoou quando chorava por coisaatoa. Eu despia
as bonecas, rasgava suas partes íntimasdizendoque aquiloestava
acontecendo comigo,mas elanão me ouviu...mamãe não me ouviu
e nem viu meus sinais.
Sei que para ela deve estar sendo difícil,
mamãe se afundou
nos vícios,fechou os olhos para mim e me deixou do lado. Não
adiantatentar me dar coisasboas, me proporcionandoum pouco de
luxo se tudo o que mais preciso é ser ouvida.
Fecho meus olhos, não quero odiá-la,porque sei que está
sofrendo, mas e eu? Como vou viverdaqui para frente? Será que
viverei nesse inferno para sempre?
Quero tanto morrer para que issotudo acabe... James me joga
no chão, me arrasto até um canto e me encolho, envergonhada,
destruída, devastada...
Elenão diznada, apenas me deixasozinhano quarto. Libero o
choro, preciso de ajuda, preciso fugir. Escuto o barulho de
notificação
do meu celular
, meu coração salta,olhopeloquarto, mas
ele caiu na sala.
Me levanto apressada, James não pode ver, se ele desco...
Sobressalto quando ele abre a porta bruscamente, meus olhos
encaram sua mão que segura meu celular
, James está furioso.
— Japão? — Pergunta com a voz tão friaque me encolho. —
Então é para lá que quer fugir?
Nego com a cabeça, tirandoum sorrisocínicode seus lábios.
Eu também me inscrevipara uma bolsa no Japão, só precisava
saber inglês.Mas não é para láque irei,poisseique sereiaceitana
Rússia, e ele nunca me encontrará, só preciso aguentar mais um
pouco... só mais um pouco...
Sua mão colideno meu rosto tão forte que cambaleiopara o
lado. Sinto gosto de sangue e quando olho para ele, James me
acerta outra vez. Elenão para de me bater, dizendoque nunca me
livrareidele e que não importa para onde eu for, ele irá me
encontrar, nem que seja no inferno...
Destranco a porta com dificuldade e ao abri-la, desequilibro e
caio no chão. Um grito rouco e abafado sai da minha garganta,
lembrando de suas mãos em mim, da sua voz e dos absurdos que
fazia contra mim.
Desejei tanto morrer que perdi as contas, mas a esperança
que eu tinha me fazia acreditar no impossível e que tudo um dia iria
acabar. Balanço a cabeça, afastando as lembranças dolorosas, sua
voz em meus ouvidos e da sensação dele em cima de mim.
Quero tanto poder esquecer para viver uma vida normal onde
posso abraçar as pessoas, um ato que não faço ideia de como é.
Qual é a sensação de ser abraçada e de ser amada? Como é poder
ser acariciada por uma pessoa?
Solto um gemido, me levanto e ando cambaleando até meu
quarto. Ele está atrás de mim, sempre estará em meus pesadelos...
pesadelos do qual nunca passa, nunca vai embora... ele me
quebrou... me destruiu e me tirou a capacidade de ser uma pessoa
normal.
Isso me deixa tão furiosa que começo a me arranhar. Eu
deveria ter sido corajosa, tentado dizer a todos o que ele fazia
comigo, mas fui covarde, fugindo sem ter feito com que James
pagasse por toda tortura que me fez passar.
Arranho meu pescoço entre o choro doloroso, querendo que
tudo acabe, que tudo tenha um fim. Quando é que vou conseguir
superar tudo o que ele me fez passar? Será que é só morrendo que
deixarei de sofrer?
Quero tanto poder sorrir...
James me tirou tudo e agora, nesse momento, está me tirando
o pouco que me resta. Me encosto na parede, puxando meus
cabelos querendo sentir dor, me punir por não ter aberto a boca, por
não ter contado à minha mãe... foi tudo minha culpa, eu sou a
culpada...
Se eu tivesse o desobedecido, se tivesse contado à minha
mãe na primeira vez que aconteceu, se tivesse sido corajosa, e se...
e se tivesse colocado um fim nisso... nesse momento o único
sentimento presente é a vontade de morrer, porque só assim, tudo
se calará, a sua voz, meu tormento e... a minha dor.
Estou sozinha...
Quero minha mãe...
Fecho meus olhos e pela primeira vez em todos esses anos,
desejo que alguém me segure, que me puxe da escuridão e que me
cure com todo coração.
Na vida devemos enfrentar nossos demônios ou eles nos
consomem de forma lenta, dia após dia, tirando tudo de bom dentro
de nós, destruindo o pouco que nos resta. Passei anos lutando
contra eles, e mesmo aqui fora sentindo esses demônios se
aproximando, não permitirei que me dominem outra vez, estou vivo
e lutarei até cumprir meu objetivo.
Ainda tenho um pouco de esperança, é por ela que continuo
permitindo que a escuridão me tome para que eu possa de forma
fria, enfrentá-los.
Olho por entre o muro do beco onde estou escondido. Ele não
saiu da delegacia, estou vigiando-o a horas, acompanhando seus
movimentos. Ele precisará passar por aqui para chegar ao seu
carro, um risco que insisto em correr, mas que é necessário,
principalmente quando coloca contra a parede a mulher que nesse
momento é mais importante que qualquer outra coisa.
Dou um passo para trás, sendo encoberto pelas sombras e
abraçado pelo vento. Seus olhos assustados quando fugi dos
policiais foi como se estivessem perfurando minha pele com uma
lâmina afiada. Aquele momento ao seu lado, pude enfim me sentir
normal outra vez, esquecer de tudo o que passei.
Laura me iluminou, aqueceu meu coração adormecido, antes
reprimido pelo isolamento. Me fez sentir homem novamente, e não
uma carcaça vazia e sem sentimentos.
Só de imaginá-la em meus braços, um arrepio percorre meu
corpo, despertando um desejo incontrolável por ela. Seus olhos...
seus lábios... tudo o que mais quero sentir.
Inspiro fundo, afastando a luxúria que sinto todas às vezes em
que minha mente se prende a ela. Mais de 24 horas sem vê-la...
estou ficando louco, querendo escutar sua voz e sentir seu cheiro.
Quero poder ficar ao seu lado sem que nada nesse mundo
atrapalhe, quero poder levar luz ao seu coração, iluminar sua alma e
assistir pela primeira vez um sorriso brotar em seu rosto esculpido
por uma beleza ofuscante.
Engulo o nó que se formou na garganta. Posso ter
permanecido preso durante 14 anos, mas ainda sei da intensidade
da paixão, do fogo do amor, e da vontade de querer apenas uma
única pessoa, nem que seja apenas por uma noite.
Volto a espiar a entrada da delegacia, ele precisa sair... eu
preciso me reencontrar com ele, mesmo sentindo ódio, raiva e
rancor por tudo o que fez.
Fico em alerta com o coração acelerado ao ver sua figura alta
e forte passar pelas portas, descer as escadas e caminhar em
minha direção. Eu ensaiei durante anos da minha vida o momento
em que finalmente ficaria na sua frente. Desejei poder dizer a
verdade para todos ouvirem, entretanto, as suas palavras me
feriram mais do que qualquer outra coisa foi capaz de ferir
.
Palavras feremmais que uma facada....Palavras matam muito
mais que uma bala... As palavras nos destroem de dentro para fora,
e foram por elas, saídas de sua boca, que me tornei um verdadeiro
assassino.
Ele passa por mim, distraído com seu celular, sem perceber
que está sendo seguido. Contorno seu carro e me encosto em um
outro estacionado ao lado do seu, observando-o, sorrio de lado ao
perceber o quanto é inútil. Se fosse qualquer outro, já o teria
matado, mas não é isso que quero, não ainda... não agora... porque
ainda tenho mais um para me reencontrar.
— Tu deverias ser mais zeloso, irmão. — Minha voz sai
áspera, fazendo-o congelar, ele vira o rosto em minha direção,
pálido, assustado e apavorado por eu finalmente estar aqui, assim
como ansiou desde o momento em que fugi da cadeia.
— Ruslan? — Artem sussurra, estagnado, me fazendolembrar
de quando me levou ao abismo... de quando fez tudo explodir dentro
de mim, me fazendo libertar o monstro trancafiado dentro de mim...
por causa dele, do meu irmão, perdi minha alma para a escuridão...
Encaro meus braços arranhados e machucados causados por
mim.Alisomeu corpo, sentindoos outros ferimentosfeitospor uma
escova de dente em busca de alívio e autocontrole.
Quatro anos se passaram e ainda continuo nas garras de
Jaroslave de seus capangas. Nikitasempre está lá quando estou
largadono chão depoisde ter sidoespancado e humilhado,dizendo
que nunca permitiráque eu morra. Mas ficoconfuso, por que não
me ajuda? Por que sempre está na espreita e não faz nada?
Encaro seus olhos do outro lado do pátio da prisão, tentando
entender suas intenções. Ele é como um gato, se esgueira
lentamentena escuridão,de mansinhosem ser notado. Para todos
ele é apenas mais um detento, para mim ele é o assassino mais
perigoso de dentro da unidade 69.
Abaixo a cabeça, encarando meus braços finos devido à
magreza excessiva. Aqui sou a puta, a mula e o escravo, sem
contestar absolutamentenada. Embora eu queiralutarcontra todos,
seique não vou conseguir, são muitomaisfortes do que eu, e não
tenho nenhum aliado.
Sintoa raivaborbulharem minhasveias,encaro cada um dos
detentos que me tocaram. Tenho vinte e dois anos hoje, não sou
mais um garoto, preciso provar isso. Preciso me reerguer já que
estarei trancafiado aqui para sempre.
Ranjo meus dentes, fecho meus olhos e inspiro fundo...
expirando segundos depois, acalmando a bagunça dentro do meu
coração. Estou ficandode saco cheio desse lugar, de todos da
prisão,das risadinhas,das humilhaçõese por não me respeitarem,
estou a um passo de explodir
.
Abro os olhos, cravando-os em Jaroslav que negocia as
drogas que eu maisuma vez trouxe para dentro da prisão.Um ano
atrás quase morri de overdose, um dos saquinhos que engolide
cocaína se rompeu no meu estômago. Foram dois meses no
hospital,sem nenhuma visita, isolamentoabsoluto, tendo contato
apenas com os médicos e enfermeiros.
Nesse meiotempo tivetanto a pensar, estava ficandolouco e
pedindo desesperadamente para que me dopassem, pois assim
minhamente desligava.É possíveluma pessoa ficarloucacom uma
mente sadia?
Acho que estou me perdendo, aos poucos...
Me levanto do banco quando os policiais
nos informamque
nossa diversão acabou. Todos nós começamos a voltar e alguns
esbarram com força em meus ombros.
Ararat para ao meu ladoe diz:— Maistarde temos assuntos a
resolver. — Trincoos dentes, sabendo perfeitamentequal assunto
se refere.
— Detento 2157? — Olho para o guarda, ele gesticulapara
que eu vá até ele.
— Sim, senhor? — Pergunto, abaixando a cabeça com as
mãos para trás.
— Tu tens uma visita.— Diz me contornando e algemando
meus pulsos, franzo a testa.
— Íntima? — Eleme lançaum olharinexpressivo,segura meu
braço e me guia por entre os corredores sem me responder, até
uma pequena sala.
— Aguarde aqui!— Sento-me na cadeiraem frentea um vidro
com três furos no meio, do outro lado há outra cadeirapara quem
quer que seja a visita.
Balançoa perna com impaciênciadepois de se passar cinco
minutos. Eu contei cada segundo, uma mania que adquiripara
manter minha mente focada em alguma coisa.
Me remexo com desconforto, sentido câimbras em meus
braços por estarem atrás das costas com os pulsos algemados.
Congelo ao escutar passos, o arrastar da cadeira e o arfar, não
quero levantar a cabeça... não quero ver quem está à minha frente.
— Estás irreconhecível.— Artem diz,espalhando choque de
surpresa por meu corpo, levanto a cabeça e encaro seus olhos.
— Artem? — Sussurro, observando meu irmão do outro lado,
tão diferente da última vez que o vi.
— Espero que estejase divertindo.— Sua voz cortante destrói
tudo de bom que sinto por ele, a saudade vai embora no mesmo
instante em que encaro seu rosto enojado.
— Tu não imaginas o quanto. — Retruco entredentes, as
lembranças são tão vagas, é como um borrão de incertezas. —
Como mamãe está? — Pergunto ao me lembrar dela, mas tão
magoado que mal sinto vontade de chorar
.
— Está bem. — Artem olhapara suas mãos e sorride lado.—
Estamos na faculdadeagora, pelo menos isso eu tenho que lhe
agradecer.
— Bom... — Murmuro, controlandoa raivaque sinto.— Sabes
que não fuieu, certo? — Artem ri, como se eu lhe tivesse contado
uma piada.
— Tu deverias parar de mentir, chega! — Seus olhos se
prendem em mim. — 2157... — Balbuciao número preso no meu
uniformede detento. — Esse número indicao quê? Que já se
passaram 2.157 detentos aqui?
— De certo que sim.
— Estão te comendo que nem uma putinha?— Suas palavras
me acertam como socos. — Tu merecias tratamento pior
.
— Eu vi... — Artem estreita os olhos.
— Viu o quê?
— Ele... naquela noite, eu vi o assassino. — Meu irmão me
olha sério.
— Você é o assassino! — Diz, se inclinando para frente. — Um
doente de merda que mata à sangue friosem se importar. Um
mentiroso de merda... tão mentiroso que acredita na própria mentira.
Tenho pena de você, Ruslan.
— Tu deveriasestar ao meu lado, sou teu irmão. — Artem ri,
recostando na cadeira.
— Irmão? — Debocha, entortando seus lábios.— O irmãoque
eu tinha era um simplesvendedor de rosas, uma mera ilusão,
porque ele aproveitava para matar mulheres indefesas. — Ele
balança a cabeça de um lado para o outro. — Você não é meu
irmão, tu és um monstro que mereces a morte.
Ficoencarando-o, vendo o ódioestampado em seu rosto. Não
adiantará eu contestar o que diz, porque tudo aponta para mim.
Será que eu realmente assassineiaquelas mulheres? Mas... será
que perco a memória todas às vezes em que mato?
— Por que vieste? — Pergunto, segundos depois.
— Para assistirsua derrota. — Responde de forma fria,sem
nenhuma emoção. — Tu não és mais um Rotam, temos vergonha
de dizerque és da família. Ruslanmorreu na noiteem que tu foste
preso... aliás, Ruslan nunca existiu, é fruto da sua imaginação.
— Temos o mesmo sangue, esse laço nunca poderá ser
desfeito.— Artem solta uma gargalhada, se levanta e coloca as
mãos sobre o vidro.
— Tu és a escóriada famíli
a, aquele que nunca deveriaster
nascido. O amor que sentíamos por nosso irmão, desapareceu,
como pó. — Aperto os dentes, reprimindoa dor da rejeição.—
Nossa mãe nunca deverias ter te colocado no mundo. Tu és um
erro! — Artem estala a língua, me lançandoum sorriso frioe sem
emoção. — Nunca mais escreva, muito menos ligue,nossa mãe
está destruída por sua culpa.
— Não foieu... — Sussurro, Artem fecha os olhos e soca o
vidro, me assustando.
— Queriapoder entrar aí e te quebrar a cara, mas aindabem
que essa droga de vidronos separa, porque não sobraria nada de
você.
— Artem...
— Eu te odeio. — Fecho os olhos, incapazde suportar todas
essas palavras. — Odeioque sejameu irmão,aqueleque destruiue
manchou nossa família, quero que você morra nesse inferno.—
Abro os olhos, sinto uma lágrima escorrer por meu rosto.
— Tu irás se arrepender... — Ele soca mais uma vez o vidro.
— Arrependo-me de ser seu irmão. Por isso, Ruslan, que
estou aqui para te dizer que ninguém quer saber de você, todos
desejam sua morte e que tenha anos de sofrimento.uTme dás nojo!
Artem dá um passo para trás, me encara por mais alguns
segundos antes de se virare sair, me deixandosozinhocom suas
palavras batucando incansavelmente minha mente.
Ficoolhando a porta por onde saiu, sentindo algo dentro de
mim se estilhaçar como vidro. Quero gritar e dizer que não foieu
que assassinei aquelas mulheres, que se me derem uma
oportunidade, poderei lembrar do seu rosto.
O guarda entra e me tira da sala, eu o sigo atônito,
relembrando as palavras de Artem. Encosto a testa na parede no
canto da minhacela,encarando minhasmãos, querendo que minha
mente se cale.
“Você é o assassino... Tu és a escóriada família,
aquele que
nunca deverias ter nascido... Eu te odeio...”
— Eu te odeio... — Repito suas palavras, perco a noção do
tempo em que ficonessa posição,desperto somente quando Ararat
me chama.
Trincoos dentes e caladoo sigoaté o banheiro.Ódioborbulha
nas minhas veiasao encarar todos presentes para mais uma noite
de tortura.
Jaroslavme encara com um sorrisode ladoe dinheirona mão,
pronto para fazer o seu melhor, me vender como uma prostituta.
Fecho minhas mãos em punho.
— Por que me olhasassim?— Jaroslavse aproxima.— Eu já
dissepara sempre abaixara cabeça diantede mim!— Elebate em
meu rosto, sintomeus lábiosse rasgarem, mas continuoencarando-
o.
— E se eu continuarte olhando? — Levanto meu queixoem
desafio, estou de saco cheio dessa merda.
— Ah, garoto... — Eleolhaseus capangas que gargalham.—
É isso que tu queres? — Sua mão voa no meu pescoço, apertando
e me sufocando.
— Quero pior... — Sussurro, deixandoas trevas de dentro de
mim saírem, não tenho nada mais a perder e se eu morrer... bom,
pelo menos não viverei mais nesse inferno.
Levo as mãos até as costas e tiro de lá uma faca que roubei
quando estava trabalhandona cozinha,sem perder tempo afundo-a
no pescoço de Jaroslav
.
Seus olhos se arregalam, rodo a faca sentindo sangue
escorrer por minha mão e espirrar em meu rosto. Ele solta meu
pescoço e se afasta, se sufocando com seu próprio sangue e
arquejando de agonia.
Sorrio sentindo prazer, tirando a faca da sua pele e o
empurrando, seu corpo cai em um baque ensurdecedor
.
— Era issoque tu querias?— Pergunto desviandomeu olhare
me virando para encarar os olhosdos capangas que terão o mesmo
fim. Aperto o cabo da faca que pinga sangue ao lado do meu corpo.
Acabou... aquele menino inocentefoiembora, minha alma foi
arrancada de mim e me tiraram a bondade que ainda existia.
Em toda minha vidame perguntei como era morrer, parar de
respirar e me questionava se existiacéu e inferno,mas nunca
imaginei que havia como morrer mesmo permanecendo vivo.
Nesse exato momento acabo de morrer, tudo de bom dentro
de mim se esvaiu, sujeiminhas mãos de sangue e nada nesse
mundo me fará recuar.
Me sentenciaram e me chamaram de monstro sem que eu
fosse. A partir de agora, eles terão motivos, porque acabo de me
tornar um verdadeiro assassino...
Ficamos em silêncio, Artem parece não acreditar que estou à
sua frente, livre. Ele balança a cabeça de um lado para o outro,
tentando recobrar o controle.
— É muita audácia sua aparecer na minha frente. — Diz,
guardando o celular no bolso. — Posso te prender agora mesmo.
— Você não vai! — Desencosto e sustento meus braços no
teto do seu carro, ficando mais perto de Artem mesmo do outro lado.
— Como tens tanta certeza? — Batuco meus dedos na lataria
com meu olhar preso nos seus.
— Tu já terias feito isso. — Artem engole em seco e esfrega
seu rosto, se recuperando.
— Tu estás cheio de si, não?
— Talvez... — Sorrio, desviando o olhar. — Estou livre agora.
— Estou vendo. — Retruca, me analisando minuciosamente.
— Dez anos se passaram desde a última vez em que te vi.
Lembro-me até hoje das suas palavras, aquelas que me arrancaram
a alma. — Encaro-o com raiva. — Tu dormiste bem depois do que
fizeste
?
Artem fica calado, sem reação, aqui fora sou um perigo para
ele. Umedeço meus lábios, achando divertido o efeito que causo
nele, quero que sinta muito mais que isso, quero que se arrependa.
— Então é isso? — Ele ergue as mãos de forma dramática. —
Estás aqui para se vingar? — Contorço meus lábios e aliso com os
dedos o carro, aguardando alguns segundos para responder.
— Estou aqui não para me vingar, mas sim, fazer justiça nem
que seja com minhas próprias mãos. — Artem ri sem desviar o olhar
de mim.
— Justiça? Pelo quê? Pelas mulheres que assassinou? Pelas
famíliasque destruíste? — Ele balança a cabeça, indignado. —
Uma merda de desculpa para sua vingança.
— Quem sabe... — Artem arqueia uma sobrancelha.
— Vai se vingar de sua família?
— Família? — Me afasto do carro, rindo dele. — Que família?
Aquela que me abandonou na prisão? A que não quis lutar por
mim? Que famíliaé essa que abandona no momento mais difícilda
vida? É hipocrisia tua abriresa boca para dizer isso. — Ajeito meu
capuz, dando um passo para trás. — Eu não tenho família.
— Tu não conseguirás fugir por muito tempo!
— Só preciso de alguns dias.
— Dias? — Olho para ele e sorrio abertamente.
— Sim, preciso apenas de alguns para te colocar na cadeia. —
Artem congela. — E quando tu estivereslá, vai se arrepender por
todas as palavras que me disseste. Tu estará lá dentro, comigo,
vivendo no inferno.
— O que dizes?
— Aguarde, irmão... — Dou as costas e começo a andar, me
afastando dele.
— Parado, Ruslan! — Inspiro fundo e giro lentamente, dando
de cara com sua arma apontada em mim. Percebo que está um
pouco trêmulo. — Tu estás preso seu merda!
— Preso? — Caçoo, me aproximando. — Quem vai me
prender? Tu? — Artem range os dentes quando encosto meu peito
na sua arma, se ele apertar o gatilho, morrerei na hora.
— O que você quer?
— Que todos saibam a verdade. — Respondo, fechando
minha mão em torno da pistola sem desgrudar meus olhos dos
seus. — Fazer com que paguem por tudo o que me fizeram.
— Estás blefando, assassino de merda! — Solto uma risada,
prensando mais a arma contra mim.
— Atira! — Sussurro, controlando meu ódio. — Atira, Artem!
— Vou te levar... — Ele se cala ao me ver balançar a cabeça.
— Só voltarei quando todos estiverem no seu devido lugar. —
Digo com a voz firme.
— Tu me enojas... — E eu acredito, mesmo que meu coração
doa por ver esse sentimento estampado em seu rosto, sei que todas
as suas palavras são verdadeiras.
— Se prepare, Artem, porque o assassino que tu criasteestá
solto, sedento por justiça e fará de tudo para que isso aconteça.
Custe o que custar, ele fará todos pagar. — Solto a arma, me
afastando a passos lentos.
— Eu sei onde te encontrar. — Paro de andar, meu coração
acelera. — Achas que aquela jornalista te esconderá para sempre?
— Jornalista? — Olho para trás.
— Só não te mato aqui, porque sua prisão poderá me render
um cargo maior.
— Tens certeza?
— Laura é inocente demais para permanecer calada por muito
tempo. — Diz com a arma ainda apontada para mim. — Linda
demais para proteger um assassino.
— Certo, muitas afirmações, mas quem é Laura? — Artem me
olha um pouco confuso.
— Não minta! — Fico encarando-o fixamente, querendo falar
tudo o que está engasgado na garganta, mas agora tenho que me
manter calmo e com a cabeça no lugar e agir com muito cuidado.
— Nos vemos em breve. — Me viro e saio andando sem dizer
mais nada, meu coração acelera com a possibilidade de que ele
aperte o gatilho. Só volto a respirar mais aliviado ao entrar em um
beco, longe o suficiente para enfim, me acalmar .
Coloco as mãos no bolso, caminhando de volta para casa com
a mente cheia, tentando assimilar qual será meu primeiro passo
para fazer todos pagarem pelo que fizeram.
Tenho que ser cauteloso, mais esperto que qualquer pessoa,
sempre mantendo um passo à frente. Rever Artem doeu, meu
próprio irmão me odeia, aquele que lutei para que tivesse um futuro
melhor e que no final me virou as costas.
O mais irônico de tudo é que a pior das traições é cometida por
pessoas que você jamais imaginaria. Eu era capaz de entrar na
frentede uma bala por meu irmão, não me importava em morrer por
ele, daria minha vida por sua felicidade. Mas o que ele fez? O que
minha família fez?
Inspiro fundo e levanto a cabeça para olhar para o céu
estrelado. Será que a dor que sinto um dia irá passar? Acredito que
não, porque tudo o que vivi jamais será apagado, entretanto, a
vontade de viver acaba sendo mais forte que qualquer outro
sentimento, por isso continuo mesmo sendo difícil... eu apenas
continuo.
Não sei para onde vou, onde me encaixo ou qual é meu futuro,
só preciso caminhar, buscar meu destino. Depois de quarenta
minutos andando pela noite, sentindo o vento gelado beijar meu
rosto, avisto o prédio onde está a mulher com os olhos mais lindos
que já vi.
Me aproximo do grupo de rapazes sentados na calçada, todos
estão fumando, perdidos em uma vida sem oportunidade.
— Tudo certo? — Pergunto a Kliment, líder da gangue do
bairro. Ele traga um cigarro de maconha tranquilamente.
— Até o momento, nada alarmante. — Kliment estende o
cigarro, aceito, mas não trago, apenas encaro. — O que passas,
parceiro?
— Problemas — respondo, lhe devolvendo o cigarro. — Fique
atento a qualquer movimentação estranha, preciso de seus olhos. —
Ele levanta a cabeça e me encara.
— Fique tranquilo. — Assinto, me afastando e atravessando a
rua em direção ao apartamento de Laura.
Subo as escadas distraído com a cabeça baixa, coberta pelo
capuz para que os vizinhos não consigam ver meu rosto. Ao chegar
no corredor, reparo em uma movimentação estranha. Há alguns
vizinhos na porta de seus apartamentos, ouço gritos e meu coração
dispara.
Laura...
Apresso meus passos, sua porta está entreaberta, a empurro
com cuidado, escutando murmúrios e ignoro tudo à minha volta. O
choro agonizante vem logo em seguida dos gritos, entro com
cuidado vendo suas coisas jogadas no chão.
— Laura, olha para mim... — Uma voz suave me faz congelar.
— Lembre-se, não é real... não é real... — Ando com passos
cautelosos em direção ao seu quarto. — Laura, agarre-se em minha
voz...
Fecho meus olhos por alguns segundos antes de olhar para
dentro do quarto, e a visão que tenho me faz recuar um passo,
chocado demais para raciocinar direito.
Laura está se arranhando sem parar, seus braços e pescoço
estão vermelhos e há sangue em algumas partes do seu corpo.
Desço meus olhos vendo seu tornozelo rasgado e ensanguentado.
Desespero acumula dentro do meu peito, me sufocando com uma
intensidade insuportável.
Laura, o que aconteceste?
Ela começa a bater as costas na parede, chorando e
murmurando palavras que não consigo entender, sua expressão é
de pura dor e angústia, preciso tirá-la desse abismo que a cada dia
a leva para mais longe.
— Não é real, Laura, ouça minha voz... — A mulher agachada
à sua frente e de costas para mim tenta a todo custo chamá-la de
volta sem tocá-la, porque quando tenta se aproximar, Laura grita
mais.
— Ele nunca vai me deixar, ele sempre irá me machucar... eu
não consigo... eu não consigo... — Levo as mãos à cabeça, quem
foi o canalha que fez isso com ela?
— Laura...
— Deixe-me ajudar. — Digo apressado, entrando no quarto já
não mais aguentando vê-la nesse estado, preciso tirá-la desse
inferno.
A mulher se vira para mim, cravando seus olhos verdes nos
meus, eles se arregalam e seu rosto fica pálido quando me
reconhece. Choque espalha por meu corpo se misturando com
saudade reprimida e a emoção de vê-la tão... mulher.
— Ruslan? — Olesya sussurra com os olhos cheios de
lágrimas, seguro-me para não ir até ela, nesse momento preciso
salvar Laura.
— Ela vai me ouvir. — Falo com a voz embargada e me
aproximando, mas Olesya para à minha frente, impedindo-me de
chegar perto da Laura.
— O que fazesaqui? — Pergunta, incrédula.
Ela está tão linda!
— Moro aqui! — Respondo, fazendo-a ficar ainda mais
perplexa.
— O que dizes?
— Não há tempo, Laura precisa de mim. — Dou um passo
para o lado, mas ela me impede novamente, ranjo os dentes de
raiva.
— Não a toque, você não faz ideia do quanto isso pode
destruir o estado dela. — Me repreende, umedeço meus lábios,
sentindo minhas mãos trêmulas.
— Ela vai me ouvir...
— Não, Ruslan! — Olho com raiva para Olesya.
— Ninguém é capaz de fazê-la voltar, não presa no pesadelo
em que está revivendo. — Laura solta um gemido, meus olhos se
prendem na mulher encolhida no chão que começa a puxar seus
cabelos.
— Como tu sabes? — Encaro Olesya, abrindo e fechando
minhas mãos.
— Porque passei pelo mesmo. — Minhas palavras a paralisa.
— Ela confia em mim.
— Em um assassino? — Aperto os dentes com impaciência,
dando mais um passo à frente e a encarando em desafio.
— Um assassino que a enxergou como mais ninguém. —
Olesya vacila, fico encarando-a.
— Ruslan nã...
— Saia da minha frente. — Minha voz soa como uma ordem
calma e determinada, Olesya se encolhe quando passo por ela,
esbarrando de leve em seu ombro.
Laura chora desesperada, abraçada em seus joelhos
encolhidos, balançando para frente e para trás enquanto seus olhos
estão fixos à frente, sem foco.
Ela não está aqui!
Me aproximo mais um pouco, deixando meus olhos navegarem
por seu corpo.
— O que aconteceu? — Pergunto, analisando-a. — Quem te
ligaste?
— Quando Laura sente que entrará em crise, ela sempre entra
em contato comigo. Meu número é seu contato de emergência. —
Meneio a cabeça.
— O que aconteceu? — Repito a pergunta, olho para trás,
vendo-a andar de um lado para o outro.
— Ela não me disse, quando cheguei ela estava assim. Já
aconteceu outras vezes, mas hoje... está pior. — Olesya passa as
mãos no rosto, desvio meu olhar focando minha atenção em Laura,
lembrando-me de quando surtei na prisão, fazendo o mesmo que
ela.
— Ei, minha pequena flor... — Sussurro, mantendo a voz
serena para que ela não se assuste. — Lembra do seu desenho
preferido?
Coloco a mão na boca, controlando minhas emoções. Vê-la
desse jeito me parte em mil pedaços. Fecho meus olhos, seu choro
é um pedido de socorro saído de uma alma quebrada e dilacerada.
Quem fez isso com ela, merece queimar no inferno.
— Lembra do Coragem? — Volto a conversar com ela,
soltando o ar pela boca e fechando as mãos. — Quem diria que
aquele cãozinho tão medroso fosse tão corajoso, não?
— Ruslan? — Olesya me chama, ignoro ao me aproximar mais
de Laura abraçada em seus joelhos, seu rosto também está
arranhado.
— Coragem morre de medo, mas mesmo assustado ele luta
contra monstros, enfrenta bandidos perigosos e cruéis, corre contra
o tempo e constrói armadilhas, quase enlouquece... — sorrio ao
lembrar dela sentada no sofá assistindo esse desenho como se
nada no mundo fosse capaz de tirá-la da frente da tv. — Além de
tudo, Coragem ainda tem que carregar dois velhinhos, e protegê-los
a todo custo. — Sento-me no chão diante dela, encarando seus
olhos vidrados em um passado doloroso, onde arrancaram sua alma
impiedosamente. Fúria percorre minhas veias, sinto vontade de
quebrar algo para me proporcionar alívio.Umedeço meus lábios, me
impedindo de trazê-la para meus braços.
— Lembre-se que por maior que seja seu medo, sua
insegurança ou por mais gigante que seja sua vontade de...
desaparecer, a vida precisa de heróis assim como o Coragem. —
Me aproximo de Laura quando para de chorar. — Busque o
Coragem que está dentro de você, nesse momento você precisa
dele, lute por você, pequena flor, enfrente seu medo e... volte para
mim. — Ela solta um soluço, seu corpo inteiro treme.
— Eu não consigo... — Balbucia, voltando a chorar e se
arranhar. — Dói... dói tanto estar sozinha....
— Tu não estás mais sozinha. — Ela balança a cabeça. —
Estou aqui. — Laura coloca as mãos nos ouvidos, inspiro fundosem
saber o que fazer.
— Preciso sedá-la, será o único jeito de fazê-la se acalmar. —
Mordo meu lábio, não sei se sedação seria a melhor solução,
quando isso me aconteceu, continuei preso num infernosem fim,no
mesmo ciclo, um pesadelo doloroso demais para suportar.
— Foda-se — me levanto e ando de um lado para o outro. —
Ela precisa ser acordada antes.
— O que estás pensando? — Olho para Olesya por um
momento.
Sem dizer mais nada, vou até Laura que se encolhe com
minha aproximação, então a pego no meu colo em meio a protestos
e gritos.
— Endoidaste, Ruslan? — Olesya grita, me seguindo até o
banheiro.
— Foda-se, Olesya. — Coloco-a no chão e ligo o chuveiro,
deixando que a água caia sobre sua cabeça.
Me agacho na sua frente,devastado. Laura se encolhe com os
olhos fechados, reprimindo o choro e a repulsa ao sentir minhas
mãos, acredito que esteja também sentindo ardência nos seus
machucados.
— Ruslan, deixe que eu...
— Vá, quero ficar sozinho.
— O quê? — Balanço a cabeça, desesperado para que Laura
volte. — Tu estás doido?
— Olesya, nos deixe sozinhos.
— Jamais! — Olho sério para ela, mostrando que não estou
brincando.
— Não me faça perder a paciência. — Olesya trinca os dentes,
lutando contra minha ordem. — Saia!
— Tu estás cometendo erros, Ruslan.
— Cuidarei da Laura, espero que mantenha segredo. — Falo,
ignorando-a.
— Okay! — Murmura, saindo e fechando a porta com cuidado.
Junto minhas mãos e as encosto na boca, fecho os olhos e
tento me acalmar antes de voltar a observá-la. Laura continua
murmurando palavras que não entendo, ela encolhe suas pernas e
as abraça, encostando a testa nos joelhos enquanto o jato de água
cai nas suas costas.
— Laura, pequena flor, lute contra seus demônios e volte para
mim. — Murmuro, angustiado e ao mesmo tempo sentindo um
desespero sem fim dentro do meu peito, como se o chão estivesse
prestes a ceder, me levando para um abismo.
Me aproximo dela, inspiro fundo e tiro sua blusa. Laura está
devastada demais para protestar. Apanho uma bucha e sabão, ela
se encolhe enquanto com cuidado, vou limpando-a, tirando todo o
sangue dos machucados do seu braço.
— Preciso que se levante, Laura. — Digo, mas ela não
responde, então a pego novamente e a sento na tampa do vaso e
cuidadosamente tiro sua calça. — Não te farei mal.
Laura volta a chorar, tento tocá-la o mínimo possível, porque é
necessário que eu faça isso. Ela solta um gemido quando passo a
calça por seu tornozelo, analiso a gravidade do ferimento.
— Caralho, Laura! — Xingo ao notar que parece uma mordida
de cachorro, inspiro fundo e lavo com cuidado.
— Eu não fiz nada para merecer isso... — Olho para cima,
Laura me encara com um olhar sem vida. — Eu era apenas uma
criança, nada do que fazia adiantava, até que percebi que sou
culpada...
— Ei...
— Tento buscar por respostas, encontrar motivos para merecer
o que me fez, mas não encontro nada. — Lágrimas escorrem por
seu rosto. — Se eu... morrer, será que tudo vai parar? — Pergunta,
partindo de vez meu coração.
— Em muitos momentos da minha vida trancafiado,eu achava
que a melhor solução era realmente a morte, mas... algo dentro de
mim me dizia para continuar.
— Dói tanto... — Sussurra através do choro. — Estou tão
cansada. — Revela, fechando os olhos.
— “Disse Jesus – Vindeem mimtodos os que estaiscansados
e sobrecarregados e eu vos aliviarei”— Laura me encara. — Eu
sempre recitava quando me sentia cansado.
— Por quê? — Pergunta em um murmuro. Abaixo a cabeça,
sentindo meus olhos queimarem.
— Porque era o único jeito de não me sentir sozinho. Era como
se alguém, mesmo sem poder ver, estivesse ao meu lado, me
fortalecendo, então eu recitava.
— Não quero mais ficar sozinha... — Confessa, encaro-a
surpreso.
— Agora eu compreendo. — Laura me olha. — O que sinto... a
pouca esperança que me impedia de desistir tem um propósito.
— Qual seria? — Me aproximo, ela recua, mas não o suficiente
para me impedir de segurar seu rosto, suas mãos trêmulas se
fecham em meus pulsos, medo transluz por seus olhos.
— Salvá-la da escuridão que a corrói...
— Ruslan...
— Permita-me entrar, Laura. — Peço, encostando minha testa
na sua. — Deixa-me te tirar do abismo e... curá-la de toda dor.
— Eu não...
— Estarei aqui, pequena flor, segurando sua mão e a puxando
da escuridão. — Seus olhos se prendem nos meus. — Seja o
Coragem e encontre dentro de ti a arma que precisas para enfrentar
todos seus traumas, porque somente assim, tu poderás ser feliz.
Laura fecha os olhos, permitindo que mais lágrimas caiam de
seus olhos. Puxo-a para meu peito, acariciando seus cabelos
enquanto ela libera um choro doloroso, se livrando de tudo que a
machuca na esperança de que toda essa dor passe.
Ela não está mais sozinha, estou aqui para segurá-la quando
cair, puxando-a da escuridão e libertando sua alma aprisionada.
Farei de tudo para ficar ao seu lado, e o meu primeiro passo é
encontrar a verdade oculta pelas mentiras.
Coloco Laura na cama, afastando os cabelos do seu rosto,
encarando-a enquanto dorme. Ela pegou no sono depois de meia
hora chorando. Inspiro fundo e olho para a porta, Olesya está
parada nos observando com os braços cruzados.
— Tu conseguisteacalmá-la.
— Sim — murmuro, sentando-me na beira da cama. — Ela
precisa de curativos.
— Eu cuido disso. — Olesya se aproxima com uma pequena
mala.
— Laura se arranha todas as vezes que entra em crise? —
Pergunto me inclinando e sustentando meus braços nos joelhos
com as mãos cruzadas enquanto observo Olesya cuidar dos seus
ferimentos.
— Sempre quando alguém a toca. — Responde, concentrada.
— Só que hoje foi a primeira vez que a vi nesse estado.
— E o que você é dela? — Olesya me olha.
— Sua psiquiatra. — Responde, se levantando e indo até seu
tornozelo. — Foi uma mordida de cachorro. — Diz.
— Tu se tornaste médica... — Orgulho transborda do meu
coração, ela dá de ombros como se isso não fosse novidade.
— Consegui uma bolsa... graças a você. — Olesya enfaixa o
tornozelo de Laura e vai até seu guarda-roupa.
— Pegue o pijama do Tom e Jerry. — Ela me olha com a testa
franzida. — É o preferido dela.
— Okay.... — Olesya me encara. — Preciso que saia para
trocá-la, tenho que tirar... — Ela aponta para Laura que está vestida
apenas com sutiã e calcinha, assinto.
— Farei um café para gente. — Saio do quarto, deixando-as
sozinhas e começo a preparar o café, perdido nos pensamentos e
nos últimos acontecimentos.
Escuto passos, mas não olho para trás. Olesya suspira.
— Laura irá dormir até amanhã, deixarei alguns remédios para
ela tomar, incluindo o de dor. — Balanço a cabeça. — Amanhã
talvez ela não se lembre do que aconteceu.
— O quê? — Olho para trás, Olesya comprime os lábios.
— Tem certos acontecimentos que apaga da sua memória,
isso é devido aos seus traumas.
— O que ela geralmente esquece? — Pergunto, lhe
entregando a caneca de café.
— Hum... — Ela dá um pequeno gole e se encosta na
geladeira. — Conversas, alguns acontecimentos...
— E as lembranças do passado? — Olesya balança a cabeça.
— Essas permanecem. — Diz, soprando a bebida fumegante.
— Pode ser que ela esqueça a conversa que tiveram, e se
permanecer, talvez ela pensará que foi um sonho.
— O trauma dela é muito... grave? — Ela inspira fundo,
soltando o ar logo em seguida.
— Laura foi muito machucada, Ruslan, prefiro que a própria
lhe conte sua história.
Encosto na bancada, encarando Olesya que fita seu café.
Seus cabelos longos moldam seu rosto delicado, assim como seus
olhos verdes a deixam mais fascinante. Sempre fui apaixonado por
minha irmã, queria sempre a ver feliz e quando lhe entregava uma
rosa, o brilho do seu sorriso me iluminava.
— Sente-se bem? — Pergunto, ela fecha os olhos.
— Sim, estou bem, apenas confusa. — Diz, esticando os
braços e me mostrando a caneca vazia.
— Continua amando café?
— Sem dúvida. — Sorri enquanto encho sua caneca. — É
estranho ver você... aqui na minha frente depois de todos esses
anos.
— Estou tendo sorte.
— Como conseguiste fugir? — Dou de ombros, cruzando os
braços.
— Quando se tem uma oportunidade, tu agarras sem pensar
duas vezes. — Respondo, Olesya morde seu lábio inferior. — Estás
morando com a mamãe?
— Não — ela roda a caneca. — Sai de casa quando consegui
me sustentar sozinha, trabalhei e montei meu consultório.
— Nunca duvidei de você. — Ela me olha e sorri de leve.
— Mirom e Artem ainda moram com ela. — Fala, ficandoséria.
— E por que dessa cara?
— Não me dou bem com eles, você sabe, então me mantenho
afastada.— Olesya abaixa a cabeça. — Visito mamãe sempre, mas
sem muita intimidade com eles.
— Por quê? — Ela aperta os lábios. — O que aconteceu?
— Nada, não quero falar sobre eles. — Olesya anda até a pia
e começa a lavar sua caneca.
— Me encontrei com Artem. — Ela se vira para mim.
— E ele... te deixou ir? — Sorrio, esfregando minhas mãos.
— O que ele poderia fazer?Me matar? — Olesya enxuga suas
mãos, me olhando com curiosidade.
— Ele nunca te mataria...
— Tem outras formas de matar uma pessoa, pequena flor. —
Ela arfa, levanto a cabeça, fitando seus olhos que se enchem de
lágrimas.
— Senti tanto sua falta.— Sussurra, um nó se formana minha
garganta.
— Eu mais ainda. — Ficamos encarando um ao outro por
longos segundos, até eu abrir meus braços.
Olesya reluta, seu queixo treme por causa do choro reprimido.
Dou um passo em sua direção, querendo-a em meus braços, assim
quando a tinha antes de ir para prisão.
— Tu cresceste tanto, minha pequena. — Ela coloca as mãos
na boca sem conseguir mais segurar as lágrimas.
— Não faz sentido...
— Eu estar aqui? — Olesya assente, sorrio estendendo minha
mão. — Tem coisas na vida que não faz sentido, por isso que
existimos na vida um do outro para que tudo...
— Faça sentido. — Completa.
Quando éramos pequenos, sempre repetíamos essa frase,
completando a fala do outro. Olesya segura minha mão, puxo-a de
uma vez, a trazendo para meus braços, abraçando-a depois de 14
anos sem ver a segunda mulher que mais amo nessa vida.
— Oh, meu irmão... — Sussurra, contornando seus braços em
volta do meu pescoço. — Eu sinto tanto...
— Tu não tens culpa, pequena. — Olesya chora, fecho meus
olhos sentindo seu calor, aproveitando cada segundo que tenho.
Sei que nunca terei minha antiga vida de volta, pois tem feridas
que jamais irão se curar, mas sei que posso recomeçar do zero.
Reviver o homem que morreu ao sofrer pela injustiça de um destino
incerto.
Fico encarando minhas mãos espalmadas na bancada com os
pensamentos longe, preso no passado, lembrando de tudo o que
passei até estar aqui hoje.
Muitas vezes sinto tanta raiva que minha vontade é de
explodir, deixar com que os demônios me consumam por inteiro,
permitindo fazer o que eles tanto querem, destruir qualquer um.
Inspiro fundo e fecho meus olhos, controlando os tremores do
meu corpo e buscando no fundo da minha alma o autocontrole que
tanto necessito diariamente.
Não posso me perder... não de novo... não agora...
Abro os olhos ao escutar um gemido vindo do quarto, sei que é
Laura, ela ainda não se recuperou por completo. Ela não passou
bem a noite, várias vezes acordou chorando e reclamando de dor,
mas sempre se acalmava quando escutava minha voz.
O fato dela ficar bem comigo ao seu lado, aquece meu coração
coberto por gelo, desamarrando os arames farpados que tanto o
machucam.
Aperto meus lábios e apanho uma maçã, vou até a porta do
seu quarto e me escoro no batente, encarando-a enquanto dorme
um sono agitado.
Quero tanto poder tocá-la...
— Por que ela? — Olesya pergunta, ela passou a noite aqui
me ajudando com Laura.
— Seus olhos... — Murmuro em resposta. — Eles têm uma
tristeza profunda que desperta em mim uma vontade de tirar esse
sentimento deles... é como se sua alma tocasse a minha... — Sorrio
e olho para Olesya atrás de mim. — Não sei explicar!
— Eu diria que é paixão. — Diz, se encostando do outro lado
da porta com os olhos presos em Laura.
— Quem sabe... — Rodo a maçã na minha mão e a levo a
boca, dando uma mordida.
— Tu tens que tomar cuidado, Ruslan. — Avisa soltando a
respiração pela boca. — Laura não suportaria mais sofrimento.
— Eu nunca a machucaria.
— Às vezes machucamos uma pessoa sem que queiramos.
Uma palavra errada pode destruir o pouco que lhe resta. — Seus
olhos se prendem nos meus. — Você é um assassino condenado,
que futuro daria a ela?
Suas palavras duras me acertam em cheio, meu coração parte
no mesmo instante em que a realidade toma conta. Minha irmã está
certa, que futuro daria a Laura se eu não provar que sou inocente?
Se é que sou inocente!
Abaixo a cabeça, um nó se forma na garganta, porque é tão
difícillidar com o fato de que tudo está contra mim, tantas coisas
foram tiradas de mim abruptamente que sinto uma revolta enorme
acumular em meu peito.
— Eu mereço... — Sussurro com a voz embargada encarando
a maçã. — Laura também merece...
— Merecem o quê? — Levanto o olhar, fitando seu rosto.
— Sermos felizes. — Respondo, recostando a cabeça na
parede e encarando o teto. — Nossa pureza, juventude e felicidade
foram arrancados de forma brutal.
— Tem coisas na vida que não podemos mudar...
— Mas podemos evitar — retruco com raiva. — Se tivessem
investigado mais a fundo, teriam provado minha inocência...
caralho... eu só tinha dezoito anos, Olesya... dezoito anos! —
Fecho meus olhos com força, não posso sucumbir a dor, porque
perderei o controle e se isso acontecer... eu... não sei se voltarei.
— Sinto tanto por ti... — Sua voz embargada me acalma um
pouco. — Por que tu não escreveste, Ruslan? — Franzo a testa e a
encaro.
— Todos os meses enviei uma carta a vocês, mas nunca me
responderam. — Ela me lança um olhar confuso.
— Nunca recebi uma carta sequer. — Olesya esfrega seu
rosto. — Tentei visitá-lo várias vezes, mas nunca me permitiram,
outras vezes diziam que tu não querias me ver, até que parei de
insistir.
Fico paralisado com sua declaração, passei anos pensando
que todos, inclusive ela, tinham me abandonado. Deixei que o ódio
me dominasse, mas Olesya nunca esteve no meu campo de
vingança. Balanço a cabeça, indignado e frustrado.
Claro que nunca iriam deixá-la se aproximar...
— Te enviei uma carta semanas atrás antes de fugir, tu
recebeste? — Olesya nega com a cabeça, sorrio friamente. — Ele
nunca iria permitir que tu se aproximasses de mim.
— Quem? — Umedeço meus lábios e nego com a cabeça.
— Ninguém!
— Ruslan, o que tu escondes? — Mordo a maçã com meus
olhos presos nos dela. Escondo muitas coisas, segredos obscuros,
mas não poderei revelar a verdade, não por agora.
— Nada, pequena flor. — Olesya suspira e abaixa os ombros,
derrotada, sabendo que não falarei mais nada.
— Vou preparar uma sopa para Laura, tu precisas fazê-la
comer. — Assinto em concordância, ela me olha por mais alguns
segundos antes de seguir até a cozinha.
— Laura é apenas sua paciente ou... algo mais? — Pergunto,
curioso.
— As duas coisas. — Responde, fico observando minha irmã
preparar a sopa. — Não sei explicar, mas... ela é especial, entende?
— Balanço a cabeça. — Laura é a paciente mais complexa que
tenho, são três anos sem nenhuma evolução de seus traumas. É um
quebra cabeça difícilde montar, e tudo o que mais quero, é que ela
melhore, que consiga recuperar um pouco da sua vida normal,
porque o que ele fez com ela, nunca será apagado e nem
esquecido.
Volto a olhar para Laura, a luz de uma manhã fria ilumina o
quarto, transluzindo sua pele machucada e arranhada. Rony se
aninha em seu pescoço com a necessidade de acalmá-la, ou de lhe
dar conforto de um carinho através de um toque que nenhum ser
humano é capaz de fazer.
Quero tanto poder prendê-la em meus braços, protegê-la dos
pesadelos, da solidão e da dor que dilacera seu coração. Quero
tanto poder sentir seu calor no meu corpo, sua pele roçando na
minha e seus lábios nos meus... Medo começa a sufocar meu peito
com a possibilidade de que isso nunca venha a acontecer, sei que
não a mereço e que ela não me merece, mas isso é besteira diante
ao sentimento de proteção e posse que cresce dentro de mim.
Laura é perfeita para mim e eu a mereço.
— Ruslan? — Olho para Olesya. — Está pronto, dê a ela
quando despertar, preciso ir para o consultório, tenho três pacientes.
— Cuidarei dela. — Minha irmã fica me encarando fixamente.
— Ruslan, não se apegue...
— Eu sei... — Sussurro, ela abaixa a cabeça.
— Não a toque, okay? — Meneio a cabeça. — Volto mais
tarde, tudo bem?
— Nos vemos. — Olesya sorri para mim antes de sair pela
porta afora. Inspiro fundo e volto minha atenção a Laura.
— Como não me apegar quando tudo o que mais quero é tu,
pequena flor? — Sussurro, me aproximando.
Deixo o resto da maçã em cima da cômoda e me sento no
chão, ao lado da cama. Sua respiração está suave, meus olhos
percorrem seus braços e pescoço vermelhos causados por suas
unhas. Aperto meus lábios, reprimindo a vontade de desabar ao vê-
la tão... quebrada.
Rony ronrona, encaixando sua cabeça entre o pescoço de
Laura, sem a intensão de deixá-la. Levo minha mão até ela e afasto
com delicadeza seus cabelos do rosto, querendo explorá-la mais
que um simples toque cauteloso.
Afasto a mão quando ela remexe, seus olhos se abrem
lentamente e se fixamem mim, leva alguns segundos para perceber
que não está sozinha. Pânico toma conta do seu rosto, ela
sobressalta e solta um gemido de dor.
— Shh... sou eu, Ruslan, se acalma! — Digo com a voz suave,
Laura me fita com o corpo tenso. — Estou aqui, pequena. — Ela
finalmente relaxa com uma respiração funda.
— Está doendo... — Murmura com a voz rouca, Rony volta a
se aninhar em seus braços.
— Fique calma, okay? — Ela assente, me inclino para frente e
apanho o copo de água e um comprimido em cima do criado mudo.
— Tu precisasdisso, consegue?
— Sim... — Balbucia fazendo uma careta enquanto tenta se
erguer com a ajuda das mãos. Lhe entrego o copo e coloco o
comprimido na palma de sua mão, ela toma, me devolve o copo
vazio e volta a se deitar.
— Tem uma sopa te esperando... — Me calo ao ver Laura
fechar os olhos, uma lágrima solitária cai do seu olho, ela não diz
nada e minutos depois volta a dormir.
Não sei o que fazer, então deixo que durma mais uma vez,
talvez assim ela esqueça por algumas horas o que lhe aconteceu.
Mas me dói tanto... uma dor tão intensa que chega a me sufocar, me
sinto impotente diante de tamanha dor.
Devolvo o copo para o criado mudo e me sento de frente à
janela, encarando o lado de fora,me sentindo acuado e aprisionado
por um pesadelo que nunca chega ao fim.
Durante horas me perco nos pensamentos, escutando a
respiração de Laura, não a deixarei por nenhum segundo, porque
ela nunca mais estará sozinha.
Ajeito o capuz enquanto encaro a boate lotada do outro lado
da rua. Luzes coloridas dão vida ao lugar luxuoso, onde percebes
que somente pessoas de classe alta frequentam.
Tiro a credencial do bolso e encaro o cartão dourado em
minhas mãos. Kliment me entregou assim que sai ao anoitecer,
depois que Olesya voltou se dispondo a passar a noite com Laura
que dormiu o dia todo.
Quando sai ela não me questionou para onde eu ia, apenas
me deixou sem fazer perguntas, lhe agradeço por isso. Eu deveria
estar na construção, ajudando Egor e Maxim, mas hoje eu os
deixaria na mão, tenho outro assunto a resolver.
Atravesso a rua e vou em direção à boate “Nichnyyklub[3]”.
Paro em frente a um dos seguranças corpulento de
aproximadamente 2 metros e lhe entrego o cartão. Seus olhos se
prendem em mim em busca de algo errado, ele me devolve e pede
para que eu o siga.
A música alta invade meus ouvidos e as batidas estremecem
meu interior. Fico fascinado pela riqueza de cores que transluz
através dos globos e luzes de LED. Pessoas dançam em uma pista,
há um palco com Dj e atrás um telão que passa várias imagens em
cores néon. Fumaça preenche a pista tirando gritos animados e
pulos conforme o ritmo da música eletrônica.
Na lateral da boate há um bar com prateleiras lotadas de
bebidas, algumas mesas e bancos com pessoas bebendo e
conversando em roda de amigos.
O segurança me desperta ao segurar meu ombro, ele aponta
para um corredor logo à frente na lateral com uma placa sinalizando
“Lugar restrito”. Sigo-o, a música se torna abafadaconformeadentro
no lugar. O homem me olha e sorri ao abrir uma porta, e mais uma
vez sou surpreendido por algo novo.
Meus olhos navegam pelo lugar repleto de luz, mas diferente
da anterior, aqui a música é sexy, há mulheres nuas dançando em
um palco onde homens jogam dinheiro, enlouquecidos. Outras semi
nuas dançam pole dance. É fascinante vê-las se movimentando de
forma sensual. Duas mulheres passam por mim, me lançando
olhares, vestidas com pequenos pedaços de pano e é inevitável não
ser atraído a perdição desse lugar.
Uma boate camuflando a outra com segredos escondidos por
luzes de LED.
— Siga-me — o segurança me chama, assinto e volto a segui-
lo, subimos por uma escada até chegarmos à uma porta, ele bate e
segundos depois a abre, permitindo minha entrada.
Aceno em agradecimento, quando entro a porta é fechada,
abafando totalmente os barulhos do lado de fora. Olho para os
homens que me encaram, um em especial sorri e se levanta, vindo
em minha direção.
— Estava a sua espera, garoto. — Nikita me cumprimenta,
batendo em minha bochecha com um sorriso escancarado. — O
que achaste do meu lugar?
— Interessante — respondo.
— Esses são meus companheiros — diz, me apresentando
aos cinco homens que bebem tranquilamente. — E esse é meu
garoto, apesar de estar me devendo, ainda é meu garoto. — Retiro
o capuz e aceito o copo de bebida que me oferece.
— O que tu queres? — Vou direto ao ponto, é estranho vê-lo
me tratando dessa forma depois de tudo o que aconteceu.
Nikita me encara por alguns segundos, sorri e pede para que
todos se retirem. Eles obedecem, é claro, nos deixando sozinhos.
Coloco o copo na mesa e o encaro.
— Passamos por muitas coisas juntos, embora aquilo tenha
acontecido, estou disposto a esquecer e... seguir em frente.
— A que custo? — Nikita pega uma garrafade uísquee enche
seu copo, dando um gole e aponta o dedo em meu peito.
— Nenhum, não sou um monstro, tu sabes disso. — Fala, se
sentando à mesa. — Eu te vi crescer dentro de um inferno, não
quero vê-lo voltar para lá.
— Não? — Franzo a testa totalmente confuso.
— Preste atenção no que irei te dizer, porque como tu sabes
odeio repetir a mesma coisa. — Ele vem até mim e segura meu
ombro. — Tu estás em meu coração, garoto, é estranho dizer isso,
mas sinto como se tu fosses minha responsabilidade, é algo maior
do que posso lidar.
— Eu matei Nazariy... — Sussurro entredentes, lembrando de
quando passei a faca no pescoço do seu irmão depois de ter me
traído e armado um atentado contra mim que levou dois dos meus
companheiros da unidade 69.
— Sim, tu mataste aquele filho da puta. — Nikita se afasta de
mim. — Nazariy não deveria ter feito aquilo, mas a inveja que tinha
de você era maior do que seus princípios. — Ele me olha. — Estou
disposto a esquecer o passado, mas mesmo assim, tu me deves
uma vida e irei cobrar. Compreende?
Umedeço meus lábios incomodado com sua declaração, não
faço ideia se está mentindo ou falando a verdade, é difícildecifrá-lo.
Encaro-o mais uma vez, tentando achar algo a mais no seu olhar
astuto, sem confiar plenamente nele, porque eu matei seu irmão...
caralho!
Passo as mãos em meus cabelos, lembrando desse dia que
tudo ruiu, Nikita tentou me matar várias vezes depois de ter Nazariy
morto em seus braços, nunca o vi tão acabado como naquele dia.
Lutei contra ele, mal conseguia pregar o olho de medo dele
fazero mesmo comigo, até que uma rebelião aconteceu, Nikita tinha
a faca na minha garganta, mas por algum motivo ele não a rasgou,
apenas me deixou e fugiu, deixando para trás seus ensinamentos.
Eu o amei como irmão, mas o destruí como um traidor.
— Tu escondes alguma coisa em relação a Nazariy. — Digo,
Nikita sorri de lado, mas não diz nada. — Vou tentar deixar no
passado, mesmo não confiando nas suas boas intenções.
— Nazariy te perseguia, tentaste te nocautear inúmeras vezes,
tu o mataste para se proteger... — Nego com a cabeça, calando-o.
— Não o matei para me proteger, mas por vingança. — Nikita
me encara com a expressão séria. — Ele matou meus amigos por
motivos toscos, estava farto e não permitiria que mais ninguém
dentro daquele lugar pisasse em mim, então lhe retribui o favor. —
Raiva borbulha por minhas veias, sinto minhas mãos trêmulas e as
fecho em punho.
— Isto é passado — Nikita fala, segundos depois. — Vamos
seguir em frentee viver o agora, pensando no amanhã e planejando
o futuro.
— Perdão — ele volta a me olhar. — Sei que não vai o trazer
de volta, e nunca direi que foi um erro, mas te devo pelo menos um
pedido de perdão.
Nikita abaixa a cabeça, encarando o uísqueno copo sem dizer
nada. Segundos se passam, ele inspira fundo,bebe toda sua bebida
e encara a pista de dança através do vidro da janela. Seus ombros
largos estão tensos, sei que há uma luta interior do que é certo ou
errado, entretanto, Nikita nunca faz o certo, o errado é sempre mais
atrativo para ele.
— Tu já encontraste uma solução para provar sua inocência?
— Pergunta, mudando o foco da conversa.
— Estou em busca...
— Pois bem, tenho o que precisa. — Ele retira seu celular do
bolso e o leva ao ouvido. — Pode me trazer. — Nikita finaliza a
ligação e sorri para mim.
Minutos depois um dos seus homens entra e coloca uma caixa
em cima da mesa, deixando-nos sozinhos outra vez. Nikita pede
para me aproximar e abre a caixa.
— Sou um homem de contatos, por isso adiantei alguns
detalhes sobre sua vida, e por isso te chamei aqui. — Ele retira
algumas pastas e as colocam sobre a mesa.
— O que isso significa?
— São as cópias dos seus assassinatos, contendo todas as
informações que necessita. — Choque de surpresa me atinge,
deixando-me paralisado.
— Sério?
— Veja — me aproximo e começo a abrir cada pasta,
balançando a cabeça de um lado para o outro, indignado com a
brutalidade de cada morte.
Organizo cada pasta por data de acontecimentos, todas as
mulheres tinham cabelos escuros na faixa de 20 a 30 anos de idade,
todas mortas da mesma forma, esfaqueadas de forma violenta.
Me inclino, sustentando meus cotovelos sobre a mesa e
encosto as mãos na boca, fitando os olhos da última vítima,
responsável pela minha prisão. Lembranças daquela noite pipocam
minha mente, vozes gritam por meus ouvidos, o som de passos, o
rangido da lâmina cortando sua pele, das minhas mãos
ensanguentadas e do barulho da chuva.
Fecho meus olhos com o coração acelerado.
— Ruslan? — Nikita me chama. — Tu sabes quem foi o
responsável, certo? — Enterro meu rosto entre as mãos antes de
endireitar-me e solta um suspiro longo.
— Sim, mas...
— Mas? — Nikita se aproxima com a sobrancelha arqueada.
— Não tenho certeza! — Confesso.— Preciso não só provar a
justiça que sou inocente como a mim mesmo, entende?
— Não, eu não entendo. — Nikita me olha sério. — Se você
sabe quem é, pelo menos desconfia,por que tem que provar para si
mesmo?
Esfrego meus lábios e caminho até a janela, observando as
mulheres dançarem sedutoramente para a plateia de homens em
busca de mais dinheiro.
— Quando a raiva me domina... quando permito que isso
aconteça... — Fecho meus olhos com força. — Eu perco a
consciência e sofro de apagão.
— Como dizes? — Sua voz sai espantada.
— Não me lembro de ter matado Nazariy ou os outros que
entraram em meu caminho. Sou consumido pelo fogo e tudo
evapora como pó, deixando apenas vestígios, flashs e pequenos
episódios.
— Desde sempre?
— Acho, Nikita... — Murmuro, abrindo os olhos e olhando para
ele.
— Então tu podes ser mesmo o Serial Killer de Kharkiv? —
Assinto com pesar. — Cacete, Ruslan! — Nikita dá um gole no
uísque pelo bico da garrafa, é engraçado vê-lo tão alterado pela
suposição de que talvez eu seja o culpado sendo que o próprio é um
criminoso. — Tu alegavas com tanto fervor que é inocente, agora
me vem com essa?
— Só que... tem alguma coisa estranha. — Digo, voltando para
mesa e apontando para as vinte duas vítimas. — Cada uma dessas
mulheres morreu no prazo de um mês. Só que a primeira foi Halyna
em 2004 e a última em 2005 quando fui preso.
— Isso quer dizer que tens um padrão.
— Sim, mas não é isso... — Esfrego meu rosto em confusão.
— Eu esqueço do que faço quando fico com raiva, mas quando
esses assassinatos aconteceram... eu não tinha motivos para matar
ninguém, cara!
— Tem gente que mata por prazer — retruca se sentando e
recostando na cadeira de forma relaxada.
— Em 2004 eu tinha 17 anos de idade, era um moleque.
— Moleques matam, um exemplo é o caso de Jordan Brown,
de 11 anos, que matou a madrasta grávida em 2009, na Pensilvânia.
— Fico o encarando, tentando lembrar do meu passado, dos dias
em que sucederam os assassinatos, mas mesmo assim não faz
sentido, não há uma lógica.
— Eu o vi... — murmuro, encarando o rosto da Ordak, uma das
vítimas, através da foto. — Eu escutei gritos, era uma noite chuvosa,
estava voltando depois de um dia vendendo rosas, entrei em
desespero e fui na direção dos gritos. Havia um homem de capuz,
esfaqueando-a violentamente, corri até Ordak e tudo aconteceu em
um borrão. De repente, eu estava sobre seu corpo, com a faca nas
mãos ensanguentadas, havia arranhões em meus braços que foi
comprovado que eram dela, seu rosto estava desfigurado e ela
segurava uma rosa... a mesma que eu vendia... estava confuso,
desorientado e então a polícia me pegou. — Pisco várias vezes, me
desprendendo desse dia.
— Tu já imaginasteque talvez esse cara de capuz foi fruto da
sua mente para dizer que não és o culpado? — Umedeço os lábios
e assinto.
— Sim, mas... lembro dos seus olhos e de reconhecê-lo, só
que com o tempo fui desprendendo a lembrança do seu rosto.
— E quem tu achas que és?
Procuro pela pasta dos arquivos da minha família,dentro dela
retiro três fotos e as coloco na mesa. Posiciono minha foto no meio,
a de Artem ao lado direito e de Mirom no lado esquerdo, encaro-os
por alguns segundos antes de levantar o olhar e os prender em
Nikita.
— Um de nós três — confesso, porque uma certeza eu tenho;
um de nós é o verdadeiro assassino.
Contorço minhas mãos com nervosismo, vou até a porta do
meu quarto e a abro um pouco, vendo minhamãe sentada na mesa.
Será que ela vai acreditar em mim?
Seus cabelos castanhos e longos caem como cascata por
suas costas, seu corpo cheio de curvas é o que mais chama a
atenção dos seus clientes,mas o que mais acho lindona mamãe
são seus olhosazuis,herdados do seu pai.Os meus são iguaisao
dela.
Inspirofundo sentindo meu coração palpitando,tenho que
aproveitar essa oportunidade, e contar a ela, o que James está
fazendo comigo, que está me machucando mesmo eu sendo
boazinha.
Engulo em seco e me sento na beira da cama, encarando
minhas bonecas sem a roupa de baixo. É tão ruim me sentir
sozinha,sem poder contar para ninguém.E se eu contar, James vai
bater na mamãe e em mim.
Inspirofundo, sentindo tanta vergonha que tenho vontade de
me esconder, mas preciso dizer a ela o que está acontecendo.
Tomo ar, me levanto e com passos lentossaiodo quarto e paro ao
seu lado. Mamãe está inclinada
um pouco para frente na mesa,
bebendo mais uma vez.
Meu coração bate tão aceleradoque dói,quero recuar e deixar
isso para lá, me calar diante tamanha dor, mas não aguento ficar
calada.
— Mamãe? — Elavirao rosto, suas bochechas estão coradas
por causa do álcool.
— Fala— contorço minhasmãos, encarando meus pés. — Vai
ficarcalada?— Nego com a cabeça com meus olhospinicandopor
causa das lágrimas que seguro.
— A senhora me ama? — Pergunto, levantando a cabeça e
encarando seus olhos, ela sorri de lado, enche seu copo de mais
bebida e dá um gole, fazendo careta.
— Você é tudo o que mais amo nessa vida. — Nego com a
cabeça, se elame amasse tanto quanto diz,não deixariaJames me
machucar e não ficaria bêbada todos os dias.
— Não ama, não! — Retruco com raiva,mamãe franzea testa.
— Como?
— Se a senhora me amasse não beberia todo dia e... não
deixava James me machucar. — Revelo por fim,ela arrasta a
cadeira para trás abruptamente, me assustando.
— Não estou te entendendo, Lauriana!— Mamãe se inclina
para frente, ficando mais perto de mim, com olhos fixos nos meus.
— Mamãe, James me machuca... — Digo, engasgando com
minhas lágrimas. — Ele é mal, mamãe.
— Onde você aprendeu a mentir?— Olhopara elaatravés das
lágrimas.— Bem que ele me falouque você estava se tornando
mentirosa, mas não acreditei e brigamos.
— Não estou mentindo, mamãe, ele falaque se eu contar vai
te machucar e... e dói muito.
— Chega! — Ela me dispensa e volta a beber com a
expressão furiosa, solto um soluço.
— Mamãe, James...
— CHEGA! — Sobressalto, ela se levanta abruptamente,
deixando a cadeira cair para trás. — Estou farta dessa vida de
merda que levo,estou cansada, Lauriana.É tudo eu nessa porra de
casa! Eu tento te dar tudo, não deixo faltarnada apenas para se
tornar uma mentirosa?
— Não, mamãe! — Balançoa cabeça, chorando por ela não
acreditar em mim.
— James me falouque você está fazendo de tudo para
chamar atenção, está com ciúmes, não é? — Nego com a cabeça.
— Deveria sentir vergonha, Lauriana.
— Mas...
— Calaboca! — Colocoas mãos na boca, abafando o gemido
causado pelochoro. — Vaipara seu quarto e a próximavez que eu
te pegar mentindoe inventando histórias,vou te dar uma surra. Me
ouviu? — Assinto, recuando alguns passos.
— Tá, mamãe... — Sussurro e corro até meu quarto, fecho a
porta e me sento encolhidano chão ao lado da cômoda, liberando
um choro doloroso.
Mamãe deveria acreditar em mim, pelo menos me escutar,
porque ela é a única pessoa que tenho nesse mundo. Bonecas,
roupas e dinheironão substituio amor, não cura o que sintono meu
coração.
Abraço meus joelhose encosto minha testa neles, chorando
de medo, porque quando elafalarpara James que eu disseque ele
me machuca, vou ser punida, e mais uma vez, sofrerei sozinha.
Ninguém vai acreditar em mim, não em uma criançamentirosa e
enciumada, como mamãe disse.
Escuto uma porta bater com força,assusto ao escutar uma voz
masculina,olho ao redor do meu quarto em busca de algum
esconderijo,mas não há tempo, poisa porta do meu quarto é aberta
e os olhos de James se prendem em mim.
Pavor me consome e seique maisuma vez sofrereinas mãos
de um monstro...
Abro os olhos assustada, meu rosto está encharcado de
lágrimas e meu coração dói. Se passaram tantos anos e ele ainda
continua na minha mente, me atormentando dia após dia.
Será que isso nunca terá fim?
Aperto meus olhos com as palmas das mãos, tentando
acalmar as lágrimas e o choro que insistem em cair, minha alma
está tão dilacerada que estou perdendo a esperança de que um dia
isso acabe.
Escuto barulho de panelas, afasto as cobertas e me levanto
com dificuldade, meu tornozelo grita de dor ao me colocar de pé.
Estou trêmula com um nó na garganta, querendo me livrar dessa
angústia que me sufoca.
Me equilibro com a ajuda da parede, meus olhos se fixam no
homem alto que anda de um lado para o outro pela cozinha. Ruslan
está vestindo uma blusa de manga fina preta, o tecido abraça
perfeitamente cada músculo dos seus braços e de seus ombros
largos.
Encosto a cabeça na parede, observando-o, poderia ficar
assim a vida toda. Seus cabelos estão mais curtos, parece tê-los
cortado, sua barba por fazer o deixa fascinante, despertando em
mim uma vontade de tocá-la.
Nunca toquei em uma barba antes, ou em um rosto masculino.
Como será beijar um homem? Sentir sua pele contra a minha ou
sentir suas mãos navegando por meu corpo?
Estremeço de repulsa só de imaginar. Aperto meus lábios,
segurando mais uma vez o choro de indignação, eu tinha tanto para
viver...
— Ruslan? — Chamo em um sussurro, ele congela ao escutar
minha voz e lentamente ergue o rosto, fixando seus olhos verdes
em mim.
— Finalmente levantaste— ele solta a facaque cortava alguns
legumes.
Seu olhar suave se torna preocupado quando lágrimas
escorrem por meu rosto, queria tanto poder ser normal...
— Ele me tirou tudo, Ruslan — falo entre os soluços. — Eu
era apenas uma criança, mamãe não acreditou em mim e... eu me
sinto um lixo por isso...
— Ei... — Ruslan se aproxima, mas para, quando me assusto
com sua investida, dando um passo para trás. Faço uma careta
quando choque de dor espalha por minha perna esquerda.
— Às vezes eu me pergunto por que eu? — Volto a encostar a
cabeça na parede. — O que fiz de errado? Sempre fui obediente e
entedia que minha mãe precisava se prostituir para nos dar uma
vida melhor, era a única saída vindo de uma mulher sem estudos.
Mas ela o levou para casa, preferiu o James a mim, Ruslan... Ela
escolheu acreditar no meu padrasto do que na sua filha... por quê?
Por que eu tenho que passar por isso? O que eu fiz de tão errado
para merecer tamanha dor? Eu estou tão cansada... tão casada,
Ruslan...
Limpo meu rosto e aliso meus braços arranhados. Me
machuquei de novo e já não sei mais o que fazerpara que tudo isso
acabe. James me destruiu de uma maneira que nunca poderei mais
ser consertada, estou a um passo de desistir de tudo, quero poder
fechar meus olhos e esquecer que um dia existi.
— Uma vez, depois de ter sido torturado pelos detentos,
encontrei um pedaço de espelho e com ele comecei a me cortar —
Ruslan revela, se encostando na parede de frente para mim. —
Nunca senti tanto alívio ao sentir dor, porque o ato em si era
cometido por mim, eu tinha o controle. Cada rasgo era um peso que
caia dos meus ombros, ninguém acreditou na minha verdade,
viraram as costas para mim... me jogaram em um inferno e eu ia
tirar minha própria vida.
— Mas você não tirou... — Ruslan abaixa a cabeça,
comprimindo os lábios.
— Porque Nikita não deixou. — Diz, voltando a me encarar. —
Não entendo o propósito da vida, Laura, muito menos porquê
devemos arcar com a maldade de uma pessoa. mas acredite, não
temos culpa do que fizeram com a gente.
— Eu nunca poderei ser normal, Ruslan. Ele me tirou tudo... —
Ruslan se aproxima, só que dessa vez não me afasto.
— Nem tudo, pequena flor. — Murmura com a voz suave,
espalhando arrepio por meu corpo. — Ele não tirou sua vontade de
viver, porque se tivesse tirado, tu não estarias mais aqui, lutando
contra seus demônios. — Fico encarando seus olhos.
Ele é tão lindo!
— Mas ele continua aqui — aponto para minha cabeça — na
minha mente.
— Temos que lidar com nossos fantasmas, enfrentar nossos
demônios e lutar para não ficarmos presos em um passado de
tormentos. A coragem dentro de nós nos faz encontrar o caminho de
volta. — Inspiro fundo, absorvendo suas palavras.
— Mas eu não encontrei meu caminho, Ruslan... — Ele sorri,
inclinando a cabeça para o lado.
— Tu já encontraste, pequena flor. — Ficamos encarando um
ao outro por longos segundos, nenhuma palavra foi dita nesse meio
tempo e a única coisa que consegui pensar, foi no quanto Ruslan
me faz bem. — Venha, você precisa comer. — Diz, se afastando.
— Okay... — Limpo meu rosto mais uma vez e vou até a mesa,
fazendo o impossível para não colocar o peso do meu corpo na
perna esquerda.
Ruslan coloca um prato de sopa à minha frente, fico
observando-o preparar a comida de Rony, que mia desesperado de
fome.
— Rony é como você — falo, chamando sua atenção.
— Por quê? — Ruslan se senta do outro lado da mesa, dou de
ombros.
— Você se esgueira pela noite, livre e misterioso, esconde por
trás da alma um passado conturbado, mas quando menos espera,
você está de volta. — Remexo minha sopa. — É esquisito...
— Nós?
— Sim, os dois. — Aponto a colher na direção do gato. —
Rony ficamais sumido do que presente, você também. — Olho para
Ruslan. — Ele te segue?
— Às vezes — ele sorri de leve. — Rony sempre está atrás de
mim.
— Ah... por isso que quase não o vejo quando você não está.
— Volto a remexer na sopa, perdida nos pensamentos e sentindo
seu olhar em mim.
— Tu não estás comendo — me repreende, assinto e me forço
a comer.
— Você quem fez? — Pergunto, achando a sopa deliciosa.
— De certo que sim — levanto meu olhar e encaro seu rosto,
Ruslan está me encarando fixamente como se só eu existisse na
sua frente.
De repente, sinto um formigamento subir pelo meu pescoço e
se instala no meu rosto, me remexo na cadeira e desvio do seu
olhar, envergonhada pela forma que me encara.
— Você aprendeu rápido... — Murmuro, pigarreando.
— Quando estava na unidade 69, trabalhei na cozinha por
alguns anos. Apesar de fazer apenas o mesmo tipo de comida,
aprendi um pouco de cada coisa. — Levo a colher cheia à boca,
assentindo de leve.
— Mas quando você chegou aqui, mal sabia fritar um ovo.
— Havia anos que estava trancafiado no Colony 100, apenas
eu e as paredes na ala de segurança máxima. — Franzo a testa,
curiosa.
— O que você fez para ir para o presídio Colony 100 e ser
considerado uns dos criminosos mais perigosos da Ucrânia? —
Ruslan umedece seus lábios e inclina a cabeça para o lado, apesar
dos seus olhos estarem fixos em mim, tenho certeza que seu
pensamento está no passado, revivendo o que viveu.
Suas mãos começam a tremer, aperto a colher quando vejo
seu rosto ficar pálido, Ruslan trinca a mandíbula de raiva. Prendo a
respiração um pouco assustada com seu comportamento repentino.
O que se passa em sua mente nesse momento?
— Ruslan? — Chamo, me encolhendo. — Você está aqui? Ei?
— O passado às vezes vem de uma vez. — Fala, fechando os
olhos. — É difícil suportar
. — Engulo em seco.
— Você está... bem? — Pergunto, soltando o ar e relaxando o
corpo.
— Sim — assegura, abrindo os olhos e se levantando. —
Assim que terminar de comer, se arrume, temos um lugar para ir.
— Hum? — Ruslan pega uma chave em cima do balcão e vai
em direção à porta.
— Preciso de um pouco de ar, te espero no carro. — Antes de
eu questionar qualquer coisa, ele sai pela porta, me deixando
sozinha cheia de perguntas, e com um gato se esfregando em
minhas pernas.
— Seu dono é estranho, Rony. — Sussurro para ele que me
fita com grandes olhos amarelos, sentado, na esperança de ganhar
algum agrado. — E o que eu posso falar se também sou estranha...
— Inspiro fundoe pego um pedaço de cenoura e lhe dou, deixando-
o feliz.
Depois de finalizara sopa, me arrumo e tomo um remédio para
dor, vou atrás de Ruslan que me espera encostado em um carro
escuro com capuz escondendo seu rosto.
Paro na escada sem que perceba que estou aqui, apenas para
olhá-lo um pouco mais, o que vem acontecendo com muita
frequência ultimamente. Sinto a necessidade de decifrá-lo, entender
o que se passa em sua mente. Ruslan está atraindo minha atenção
mais do que posso permitir, e isso de certa forma me assusta.
Ele levanta a cabeça ao notar minha presença e me encara,
aqui fora, com os raios de luz, o verde de seus olhos fica de uma cor
mais cristalina... é fascinante. Ruslan desencosta do carro e abre a
porta do passageiro com um sorriso discreto nos lábios
perfeitamente delineados.
Franzo o cenho, é estranho estar reparando em cada detalhe
dele, só que é inevitável não ser fisgadapor ele e um friona barriga
toma conta de mim. Sensações estranhas que jamais tinha sentido.
Inspiro fundo e me aproximo com um pouco de dificuldade devido
ao meu machucado.
— Precisasde ajuda? — Nego com a cabeça.
— Não! — Me sento no banco fazendo uma careta, Ruslan
fecha a porta e contorna o carro, aproveito e afivelo o sinto. — Está
tudo bem... — Murmuro para mim mesma, ansiosa e nervosa com a
fato de estar dentro de um carro com um homem.
— Tens certeza? — Pergunta ao se acomodar em seu lugar,
assinto encarando o lado de fora.
Não demora muito para ele se afastar de casa. Ficamos em
silêncio por alguns segundos, aliso a palma das minhas mãos sobre
a calça para enxugar o suor.
— De quem é esse carro? — Pergunto, quebrando a tensão
que criei.
— Olesya me emprestou — revela, sem desviar o olhar da
estrada. — Tu sabes que ela é minha irmã, correto?
— Sim — Ruslan meneia a cabeça.
— Desde quando? — Encolho meus ombros e ajeito meu
casaco.
— Uma vez, em uma sessão, ela contou um pouco de sua
vida, algo que nunca tinha me dito. — Falo, encarando minhas
mãos. — Mas comecei a desconfiar quando ela me chamou de
“pequena flor”, da mesma forma que você me chama. O resto foi se
encaixando, tive a confirmação mesmo quando entrevistei sua mãe.
— Sinto seus olhos sobre mim.
— Minha mãe?
— É... — Balbucio — Estou investigando sua vida, Ruslan, não
porque eu quero. — Olho para ele, seu cotovelo está encostado na
porta do carro enquanto esfrega seus lábios, pensativo.
— O que mais descobriu?
— Nada, apenas que você era um adolescente carinhoso,
gentil e trabalhador... — Passo a língua no meu lábio inferior. —
Sabe, Ruslan, acho tudo isso muito estranho.
— O fato de eu ser um assassino em série?
— Exatamente, tem alguma coisa que não se encaixa. — Digo,
com o pensamento preso em todos os arquivos em que juntei.
— E... como mamãe estava? — Olho para ele.
— Dona Okasana te ama, ela falou de você com carinho e
tristeza. — Ruslan balança a cabeça.
— Não sei se posso levar isso em conta.
— Como assim?
— Minha famíliame abandonou, pequena flor, incluindo minha
mãe. — Fico calada com a mágoa estampada no tom da sua voz.
Me acomodo de forma confortável no banco, encarando a
paisagem do lado de fora. Queria poder dizer algo reconfortante,
mas não consigo, não quando deixei minha mãe para trás sem me
despedir.
Como será que ela está agora? Será que ela ainda se lembra
de mim?
Fecho meus olhos quando um nó se instala na garganta.
Lembrar dela é como ser arrastada novamente para o pesadelo que
tanto tento me manter longe, só que às vezes a saudade é maior.
— Ela era uma mãe boa... — murmuro, lembrando do seu
rosto. — Eu puxei seus olhos e seus cabelos.
— Creio que a beleza também. — Ruslan diz, acelerando mais
o carro.
— Sim — abro os olhos e suspiro, afastando as lembranças.
— Me diga, onde está me levando?
— Aguarde. — Responde me lançando um olhar misterioso,
aperto meus lábios.
Minutos se passam, começo a balançar a perna direita ansiosa
e ao mesmo tempo nervosa, com mil e uma coisas passando por
minha mente, uma delas é a possibilidade dele me machucar.
— Ruslan? — Chamo com a voz embargada, isso não está
certo, não deveria ter entrado nesse carro, ainda mais sem fazer a
mínima ideia de suas intenções...
Ele entra em uma estrada de chão onde há apenas vegetação,
árvores nos abraçam como se estivéssemos entrando em uma
floresta fechada. Engulo em seco, balançando a cabeça de um lado
para o outro com as mãos trêmulas.
Não... não... não...
Minha mente começa a gritar, temer o pior, porque é isso o que
penso, sozinha dentro de um carro com um suposto assassino de
mulheres...
— Rusl... — me calo quando ele freia o carro, meu coração
salta ao olhar para ele que encara a estrada fixamente. — Por...
quê? — Gaguejo, olhando para os lados.
— Necessito que faç... — Ruslan congela ao notar a minha
inquietação, suor escorre por entre meus seios e a única coisa que
ouço são as batidas do meu coração.
— Você... você me trouxe para isso? — Digo, virando e
tentando abrir a porta, mas o clique da trava me congela. — Abre a
porta, Ruslan!
— Laura...
— Abra a porta... — Suplico, sentindo-me sufocada. — Não
vou deixar você me machucar, eu não... você não... — Lágrimas
escorrem por meu rosto quando forço a porta.
— Se acalma, Laura, não farei nada...
— Abra a porta... por favor... — Peço, encostando a testa no
vidro e controlando a respiração acelerada. — Por favor... preciso de
ar... não... não estou bem!
Escuto a trava e saio do carro, soltando um grito de dor ao
forçar meu tornozelo machucado no chão. Inspiro o ar da
vegetação, sentindo o vento fresco beijar meu rosto ao mesmo
tempo em que me acalma. Encosto no carro, inspiro e expiro...
— Ei... — Ruslan se aproxima, me assusto ao olhar para ele
tão perto de mim.
— Desculpa, eu...
— Pensaste que eu iria te machucar? — Pergunta, com um
olhar magoado.
— Sim — respondo com sinceridade. — É que...
— Por que razão faria isso com você? — Ele penteia seus
cabelos para trás, esfregando seu rosto logo em seguida. — Nunca
tocaria em você sem que permitisse, só preciso que aprenda a
confiar em mim. — Abaixo a cabeça, mais calma.
— Não é tão fácil como parece. — Falo com raiva.
— Eu sei... — Ruslan solta a respiração. — Dá-me um voto de
confiança, pequena, tu nunca irás se arrepender. — Olho para ele
por alguns segundos.
— Dói muito não ser normal...
— E me dói ainda mais ver o brilho de pavor ao me encarar,
como se eu fosse um monstro.
— Você de certa forma é! — Digo, vendo-o arquear a
sobrancelha.
— Sou?!
— Sim! — Ruslan balança a cabeça de leve e umedece os
lábios.
— Entre no carro, temos um destino a chegar. — Ele não
espera por minha resposta, apenas contorna e entra dentro do
carro.
Inspiro mais uma vez e volto para meu lugar, fechandoa porta.
Ficamos em silêncio por alguns segundos. Abro a boca para pedir
desculpas por ter reagido dessa forma, mas congelo quando ele
estende uma venda e se vira para mim.
— Preciso que confie verdadeiramente em mim, Laura. —
Seus olhos se fixam nos meus de uma forma que não consigo me
mexer.
— Não é uma boa ideia.
— É a melhor ideia de todas. — Diz, se inclinando em minha
direção, chego para trás até encostar na porta. — Primeiro, porque
tu me darás o que quero, sua confiança.
— E segundo? — Pergunto, umedecendo os lábios quando
meus batimentos se tornam intensos, seu olhar recai em minha
boca e permanece nela por alguns segundos antes de voltar encarar
meus olhos.
— Vou te revelar quando chegar a hora. — Engulo em seco. —
Não te tocarei, a não ser que queira. — Assinto, apreensiva.
— Me diga para onde irá me levar. — Ruslan sorri, negando
com a cabeça.
— Chegue mais perto, deixe-me fazer isso. — Fecho minhas
mãos em volta do cinto que puxei sem nem perceber. — Te
prometo!
Seu olhar firme me dá a coragem que necessito para chegar
mais perto dele. Meu coração bate tão forteque o sinto na garganta.
A respiração de Ruslan se mistura com a minha, seu cheiro me
invade, espalhando uma sensação desconhecida de prazer.
— Estamos perto do local, tu não ficarás com a venda por
muito tempo. — Assinto, ele me encara mais uma vez antes de
erguer as mãos, e com cuidado coloca a venda sobre meus olhos,
dando um nó atrás da cabeça. — Consegue enxergar alguma
coisa? — Pergunta tão perto do meu rosto que meus pelos eriçam,
nego com a cabeça.
— Não...
— Ótimo — diz se afastando, ele liga o carro e arranca,
recosto a cabeça no encosto do banco com o coração palpitando.
Ruslan cruzou uma barreira que mais ninguém foi capaz de
cruzar, lapidando meu medo e minhas inseguranças, travando uma
luta contra meus demônios nesse caminho incerto da vida.
Será que devo me preocupar?
Inspiro fundo e me deixo levar pela sensação de voltar a
confiar em alguém. Só que esse alguém é considerado um
assassino, e nunca imaginei que um dia, um homem sombrio fosse
trazer tanta luz à minha escuridão.
— Estás tudo bem? — Ele pergunta, travo uma batalha interna
contra meus instintos de jogar tudo para o alto, arrancar essa venda
e fugir, mas não quero viver assim para sempre, quero me sentir
viva, humana, livre de todo tormento.
Então assinto com coragem e com a decisão tomada de que,
não importa o medo que eu sentir, irei enfrentar todos os desafios
que me cercam.
— Sim, estou bem — confirmo, preparada para o que me
espera.
Minutos se passam, tento relaxar e de vez em quando consigo
sentir seu olhar sobre mim. Contorço as mãos que estão em meu
colo, agoniada pela demora.
Noto o carro fazer uma curva e parar, Ruslan abre a porta e
sai, escuto passos estalando no que parece ser cascalho ficarem
distantes. Prendo a respiração, aguçando minha audição, me
seguro para não tirar a venda por causa da curiosidade.
— Feito — Ruslan diz ao retornar para o carro. — Pronta?
— Sim — respondo, mordendo meu lábio inferior.
Depois de dirigir mais um pouco, ele para o carro e fica em
silêncio, deixando-me ainda mais nervosa.
— Essa é a segunda parte da ideia. — Ruslan diz, se mexendo
no banco.
— Será porquê não gostei disso? — Ele solta uma risada
baixa, aquecendo meu coração.
— A vida é cheia de desafios, mas só vencem aqueles que
estão dispostos a arriscar. — Fala, me encolho quando o sinto mais
próximo de mim. — E não existe coragem sem medo...
Mordo o interior das bochechas sem fazerideia de qual é essa
segunda parte de sua ideia, só sei que não gosto de todo esse
mistério.
— Diga — peço, controlando minha respiração.
— O caminho que iremos percorrer é um pouco distante e
você não está enxergando. — Viro meu rosto na sua direção, sua
respiração colide em meus lábios.
— Você está muito perto — murmuro, trêmula.
— Isso te incomoda?
— Hum... de certa forma sim.
— Preste atenção, Laura, nada disso é para seu mal, tu
precisas florescer e lutar contra sua mente. — Assinto,
concordando. — Tu precisarás segurar minha mão. — Leva um
tempo para digerir suas palavras.
— O-o quê?
— É um dos muitos passos que tu terás que fazer, requer
autocontrole e confiança.
— Ruslan... acho que não estou preparada... — Sussurro,
apavorada com a possibilidade dele me tocar.
— Nem sempre estamos preparados, apenas chega um
momento em que precisamos tomar uma decisão e essa é a sua. —
Engulo meu nervosismo e fecho minhas mãos em punhos. — Tu
irás lutar ou recuar?
Recuar, é o que minha mente grita desesperadamente, mas...
eu quero lutar, quero sentir seu calor e sua pele sem ter medo de
sentir nojo de mim.
Você é asquerosa, só sabe dar nojo nas pessoas... É tudo
culpa sua...
Balanço a cabeça afastando sua voz e as lembranças do
passado. Quero poder viver, sentir e... amar como nunca fiz. Uma
determinação nasce dentro de mim, e de repente me vejo
assentindo.
Fecho meus olhos, me viro e tateio até abrir a porta quando
Ruslan desce do carro. Espero por ele com o coração tão acelerado
que temo um ataque.
— Estou diante de ti — ele diz, percebo uma leve ansiedade
no timbre de sua voz. — Apenas alguns centímetros.
Engulo em seco, inspiro fundo e lentamente levanto minha
mão trêmula. A vontade de poder senti-lo é maior do que o receio de
tocá-lo.
Choque espalha por meu corpo quando as pontas dos meus
dedos tocam os seus. Uma emoção se instala em meu peito, porque
dessa vez eu estou no comando, é com minha permissão que
Ruslan irá me tocar.
Começo a explorar com calma a palma da sua mão, sentindo
seu calor e os pequenos calos que sobressaltam dela, não sei
explicar o que passa em meu coração.
Ontem entrei em crise por terem me tocado e hoje... hoje estou
tocando em uma pessoa, sentindo o que há anos não sinto. Fecho
minha mão em torno da sua e ele envolve a minha. Grande, firme e
protetora. Coloco minhas pernas do lado de fora e com um leve
impulso, Ruslan me puxa para cima, me ajudando a ficar de pé.
— Agora, tu seguirásmeus comandos, tudo bem? — Assinto,
inebriada pelo seu toque e pela firmeza em que me segura.
Ruslan fecha a porta do carro e começa a me guiar,
conduzindo-me por um caminho desconhecido, instruindo-me onde
devo pisar, desviar e caminhar.
Sua voz fica um pouco distante quando foco na sensação de
estar segurando sua mão. Calor percorre meu corpo, desejando que
essa não seja a última vez em que me toca. Porém, mesmo
aceitando, dentro de mim há uma luta incansável contra o passado
que me atormenta.
— Chegamos — Ruslan diz, acariciando minha mão com o
polegar, deixando minha pele formigando. — Vou retirar a venda, e
no três, abra os olhos.
— Estou nervosa — confesso com um pouco de dor no meu
tornozelo.
— Sim, imagino! — Sua mão começa a escorregar da minha,
até não estarmos mais conectados. Um vazio toma conta de mim ao
mesmo tempo em que meu interior agita com a sua falta.
Um arrepio percorre minha espinha quando para atrás de mim.
Inspiro fundo, controlando minha mente, dizendo-a que estou no
controle e que tudo o que está acontecendo é com minha
permissão.
Fecho as mãos em punhos, a venda fica frouxa e me encolho
ao sentir a respiração de Ruslan próximo ao meu pescoço, meu
coração sobressalta.
— 1... 2... — sussurra com a voz suave, tão sedutora que uma
cor rente quente navega por meu corpo, fazendo meu
sangue pulsar. — 3... — Ele retira a venda. — Abra os olhos,
pequena flor.
Faço o que diz, e lentamente abro meus olhos. O que está à
minha frente me faz perder o fôlego, a beleza e delicadeza se
espalha em um mar de plantação de rosas vermelhas. O vento toca
cada uma delas com graciosidade, espalhando por todo o lugar o
perfume adocicado de cada pétala.
Enquanto admiro o mar de rosas, uma emoção se aloja e
aperta meu peito. Vivi tantos anos na escuridão que estar aqui é
como se as janelas se abrissem, me libertando, permitindo que
reviva, reconstrua aquilo que foi quebrado.
— Gostaste? — Ruslan pergunta, parando diante de mim,
chamando minha atenção para ele.
Ele fixa o olhar em mim, como se estivesse contemplando
algo. Ignoro o frio na barriga, achando estranho não ficar
incomodada com ele tão perto.
Meus olhos o analisam, enxergando melhor cada traço do seu
rosto.
— Laura? — Ele me chama, despertando-me do torpor em que
me colocou.
— Hum? — Ruslan sorri de lado, passando a língua nos
lábios, atraindo meus olhos para sua boca.
— Estás bem? — Assinto, encontrando seu olhar de novo.
— Err... estou bem! — Pigarreio, desviando e forçando-me a
encarar as rosas e não ele.
— Certo — diz, se abaixando e pegando uma cesta que não
tinha visto.
— O que é isso? — Pergunto, curiosa.
— Iremos fazer um piquenique — responde, estendendo a
mão para mim. — Esse dia é nosso. — Fico o encarando, sem
acreditar no que ele pretende, engulo em seco e olho para sua mão.
— De novo? — Pergunto, alisando as palmas da minha sobre
a calça, enxugando o suor.
— Até descer essas escadas, depois tu não precisarás mais
segurar minha mão... só se quiser! — Assegura, respiro fundo e
seguro sua mão mais uma vez, Ruslan sorri e me ajuda a descer as
escadas que dá acesso à plantação.
Ele me solta assim que desço o último degrau, seguro o
impulso de limpá-las, mas a verdade é que eu queria que
continuasse me segurando.
Andamos um do lado do outro pelo corredor de rosas. Inalo o
perfume das pétalas, parando para acariciar as folhas verdes e
apreciando a sensação que me transmitem.
— Quando era mais novo, antes de tudo acontecer, aqui era
meu lugar preferido.— Revela com a voz um pouco fraca,olho para
ele que tem uma rosa na mão.
— Você as adquiria aqui? — Ele assente.
— Não só comprava para revender, mas para trabalhar nos
fins de semana. — Ruslan estende a rosa para mim, apanho e a
levo ao meu nariz, inspirando seu cheiro. — O proprietário era muito
amigo do meu tio.
— Por que essa fascinação pelas rosas? — Ruslan comprime
os lábios, me olhando.
— As rosas sempre esteve presentes na minha vida, elas
simbolizam a perfeição, o amor, o coração, a paixão... — diz,
parando e cortando mais duas com uma tesoura de jardinagem que
tirou de dentro do cesto, ele me entrega. — É a representação de
tudo de bom no mundo, da pureza e beleza.
— E os espinhos?
— Eles fazem parte dela. — Ruslan me entrega mais quatro.
— É fácil amar uma rosa, mas é preciso um grande coração para
aceitar seus espinhos. — Ruslan para e me encara.
— Ninguém quer a parte feia, não é? — Fixo meus olhos nos
dele.
— Quem ama a rosa, suporta os espinhos. — Ele fica me
encarando. — A rosa é que nem você, Laura, para te amar, terá que
aceitar seus espinhos.
De repente sinto minhas bochechas queimarem e rola uma
tensão no ar, acelerando meu coração. Ruslan me encara como se
eu fosse o centro do mundo, passo a línguanos meus lábios e seus
olhos acompanham o movimento.
— Dentro de cada um de nós existe uma rosa que, para
fortalecer e desabrochar, precisa ser regada com amor. — Diz,
inclinando a cabeça para o lado ainda me encarando. — Nossa rosa
interior é a alma perfumada com aroma da liberdade que precisa
desabrochar para que revele toda sua beleza em puro amor.
— Que profundo... — Ruslan solta uma risada, desviando o
olhar de mim, quebrando a tensão.
— Conquistei muitas garotas assim quando era um pirralho. —
Revela, voltando a caminhar.
— Percebi que tem muito talento.
— Perdi a prática, — ele me olha — pois tu não caíste na
minha lábia.
— Sou difícil— jogo uma piscadela em sua direção, seus
olhos brilham com diversão. — Você era... como vou dizer...
galanteador?
— Ah sim! — Ruslan dá de ombros. — Eu era muito
mulherengo, gostava de seduzir. — Ele me entrega mais duas
rosas. — Era um meio de ganhar mais dinheiro com a venda das
rosas, tinha que saber como induzir um cliente a comprá-las, e em
algumas vezes conseguia uma mulher como brinde.
— Você era um garoto...
— Que era ativo — rebate, me olhando com um sorriso bonito
no rosto. — Meus olhos verdes era um atrativo para elas.
— Sente falta? — Seu sorriso desaparece lentamente,
substituindo uma expressão fria.
— Arrancaram minha vida, pequena flor. — Responde, ficando
em silêncio, o clima fica pesado entre nós.
Me condeno por ter feito essa pergunta sem sentido. Sente
falta?Claro que ele sente! Repreendo-me mentalmente.
— Tu conheces a tradição Vinok? — Pergunta, me entregando
a cesta e pegando duas rosas da minha mão.
Nego com a cabeça, não por não saber, mas porque quero que
ele explique, que continue conversando.
— A famosa coroa de flores Ucraniana é originalmente
chamada de Vinok, possui um significado por trás de sua beleza.
Sabe qual é?
Balanço a cabeça negativamente, olhando para suas mãos
trabalhando na construção de uma coroa com as rosas que colheu.
Ruslan levanta o olhar por alguns segundos se encontrando com o
meu antes de voltar para as rosas.
— Elas eram usadas por mulheres que estavam prontas para
um relacionamento. Durante o verão, usava-se flores recém
colhidas, já no inverno, podiam ser feitas de papel ou tecido. — Ele
pega mais duas rosas do buquê que seguro. — Quando se
casavam, não podiam mais fazer uso da coroa. Ela estava
associada a virgindade, matrimônio e feminilidade;passava a ideia
de pureza.
Ruslan aponta para frente onde há um espaço forrado por
grama, pétalas espalhas pelo chão como se alguém tivesse feito de
propósito, mas acredito que seja apenas a mãe natureza fazendo
sua mágica.
— A tradição surgiu no dia de Ivana Kupala, na qual jovens
meninas colocavam arranjos na água e acendiam uma vela,
esperando que seu futuro romântico fosse assim revelado a partir de
como suas flores flutuassem.
Coloco a cesta no chão e lhe entrego o resto das rosas. A
coroa se forma. Ruslan trabalha com precisão e delicadeza, mesmo
com espinhos.
— Se o arranjo parasse em algum ponto e não flutuasse pelas
águas, a garota não se casaria; caso o arranjo afundasse, ela
morreria; e se a vela apagasse, significava azar. — Ruslan apanha
as últimas rosas. — Os homens, então, deveriam mergulhar e pegar
o Vinok de sua mulher amada. — Ele sorri. — A coroa também
simboliza proteção. No século 20, essa tradição se ressignificou.
Com a chegada do comunismo, fazer uso de vestidos bordados e
coroas de flores, eram símbolos de protesto.
— Então o adereço se tornou moda? — Ele assente.
— Sim. Além disso, adquirir um Vinok havia se tornado fácil e
barato em cidades como Kiev.
— E hoje vemos as coroas espalhadas pelo mundo todo,
certo? — Ruslan assente, finalizando seu trabalho. — Qual foi a
última vez que fez uma coroa floral?
— 14 anos atrás. — Ele sorri, sem se abalar.
— Ainda se lembra de cada detalhe?
— Tem coisas que nunca esquecemos. — Ruslan me olha,
satisfeito. — O queachas?
— Linda!
— Assim como você.
Ergo a cabeça para olhá-lo quando suas poucas palavras me
atingem, me assustando com o quanto está perto, nossos olhos se
fixam.
Ruslan levanta a coroa de flores e a pousa em minha cabeça.
Meu coração acelera ao mesmo tempo que uma força magnética
intensa me puxa para ele. Seus dedos alisam meus cabelos, estou
congelada com o poder que irradia do seu olhar, fazendo-me querer
me afundar na profundeza dos seus olhos.
— Eu mergulharia por você — diz com a voz rouca.
— Por mim?
— Sim — Ruslan recua um passo e quebra o contato visual.
Fecho meus olhos por alguns segundos, soltando a respiração
presa. Passo as mãos trêmulas pelo rosto antes de observá-lo
estender um forro no chão.
— Venha, sente-se, deves estar cansada. — Vou até ele,
contorço meu rosto ao me agachar para sentar.
— Sinto apenas um pouco de dor no tornozelo — digo, me
acomodando.
Ruslan deita de costas ao meu lado enquanto olha para o céu.
Fico encarando seus olhos e observando eles se perderem. Recolho
meus joelhos, abraço e encosto a bochecha neles, ainda olhando
para Ruslan perdido no que parece ser suas lembranças.
Dizem que o tempo sempre cura, mas, no nosso caso, o tempo
só torna mais pesado. Nada poderá ser dito para fazer nossos
corações baterem melhores ou de fazer parar a dor que nos corrói
dia após dia.
A maneira como a nossa mente nos fazsentir o que vivemos é
insuportável, às vezes acredito que a única cura é a morte.
Olho para cima assim que sinto os raios do sol beijar minha
pele, a nuvem lentamente se afasta, revelando uma grande estrela
que ilumina não só todo o lugar, mas meu coração, fazendo
acreditar que tudo pode ser possível.
Volto para Ruslan, ele me olha nos olhos parecendo
memorizar meu rosto, sem dizer nenhuma palavra, um encarando o
outro. Sinto em meu coração uma felicidade que achei que nunca
mais vivenciaria.
A última vez em que me lembro de sorrir, foi antes de James
chegar em casa. Minha mãe me levou em um parque de diversão e
depois para um rodízio de pizza. Naquele dia, ela tinha se dedicado
apenas a nós duas, só para revelar que James chegaria.
Fiquei tão feliz por ganhar um pai, só que tudo de bom dentro
de mim foi destruído quando ele colocou as mãos em mim. Assim
como o meu sorriso desapareceu, o da minha mãe também.
Ela não era feliz... nós não éramos felizes...
— Venha — Ruslan me desperta. — Deite-se ao meu lado.
— O verão chegou — murmuro, me deitando ao seu lado e
pousando as mãos sobre a barriga. — Sua estação preferida. —
Digo, virando meu rosto para encará-lo.
— Como sabes?
— Foi uma das perguntas que me fez quando te visitei na
prisão. — Ele sorri, assentindo.
— Sim! — Responde, erguendo uma das mãos em direção ao
sol. — Senti falta do sol, do calor que se espalha e aquece a pele,
das cores que transluz por onde toca, trazendo vida a mundos e
lugares sombrios. — Ruslan solta uma risada. — Sou um verdadeiro
romântico.
— Apaixonante — completo com um tom divertido, e assim
como ele, ergo minha mão, deixando-a próxima à sua. — Você está
apenas reencontrando aquele garoto que ainda corre por entre
esses corredores, colhendo rosas.
— Esse garoto está morto, Laura. — Olho para ele, que encara
suas mãos com seriedade.
— Nem tudo está perdido.
— Sim, concordo, mas tem coisas que não há conserto. —
Ruslan vira o rosto em minha direção. — Esse garoto inocente,
cheio de vida e romântico foi jogado nas sombras, se tornando a
própria escuridão.
Engulo em seco quando calafrios espalham por meu corpo.
— Eu estou conseguindo enxergá-lo... — Murmuro, ele apenas
balança a cabeça negativamente.
— Tenho muitas coisas para fazer enquanto estiver aqui fora.
— Quais seriam essas coisas? — Ruslan umedece os lábios.
— Uma delas é te tirar da escuridão em que te colocaram. —
Um sorriso estica por seus lábios.
— E a outra?
— Acabar com aquele que me destruiu. — Sua voz sai tão fria
que me espanto com a sua determinação. — Sou um assassino,
pequena.
— Mas...
— Não há “mas”, essa é minha realidade. — Desvio meu olhar,
incapaz de continuar vendo tanto ódio em seu rosto.
— Você vai voltar, não é?
— Meu tempo é curto. — Revela, voltando a erguer a mão e
posicioná-la ao lado da minha que ainda não a abaixei.
— Como você vai me tirar da escuridão, Ruslan? — Ele não
responde de imediato.
— Tu já estás saindo. — Sua mão toca a minha e nela há uma
rosa. — Permita-se florescer mesmo repleta de espinhos, mas
nunca façaisso por uma pessoa. — Olho para ele, então de repente
sinto sua mão entrelaçar na minha sob a rosa. — Faça isso por
você. Supere por você. Pois nada nesse mundo será capaz de te
salvar além de você mesma.
— Você vai embora? — Murmuro, com a voz trêmula.
Ruslan fecha os olhos por alguns segundos antes de fixá-los
novamente em mim. Ele abaixa nossas mãos entrelaçadas e a leva
aos seus lábios, acariciando minha pele em um beijo delicado.
Mesmo querendo reprimir o que está fazendo, permito-me
sentir, aproveitar a oportunidade que me foi dada, nem que seja por
um curto período.
— Sim — sussurra, abrindo os olhos.
— Mas e se provar sua inocência?
— Isso não tira o fato de ser quem sou, Laura. — Uma dor
aperta meu peito. — Provar a injustiça que fizeram comigo não
anula o que fiz dentro da cadeia. Eu me tornei um assassino, e é
isso o que sou!
— Como puderam fazer isso com você?
— A maldade não tem explicação.
— Por que não foge para longe? Reconstrua su... — Me calo
quando ele nega com a cabeça.
— Não posso me rebaixar, é um jogo de gato e rato, e não há
um vencedor.
— Ambos perdem? — Ele assente, solto um suspiro doloroso
desejando poder mudar o destino.
— Não penses demasiado nisso, não foi para isso que a trouxe
aqui.
— Me trouxe por quais motivos? — Ruslan solta minha mão,
estendendo a rosa.
— Para reconstruir um pedaço do que lhe foi quebrado. — Diz
com um sorriso. — Apenas sinta, não penses no passado e nem no
futuro, o agora é o que importa.
Respiro fundo o perfume da rosa, convicta do efeito que me
causa, abraçando a sensação que inunda meu coração. Olho para
ele, querendo mais do que pode me proporcionar... querendo me
misturar na escuridão em que o envolve.
Ruslan sorri para mim, gravo em minha mente cada traço seu,
pois quando tudo vier a ruir, seu sorriso será o único que poderá me
puxar para a superfície e me tirar das sombras.
Ele ultrapassou outra barreira imposta por mim, e dessa vez,
não quero impedi-lo de chegar mais perto.
Estaciono o carro em frente ao prédio depois de ter passado o
dia inteiro ao lado de Laura, conversando e nos conhecendo. Uma
felicidade pulsa dentro do peito por ter conseguido chegar tão perto
dela, segurado sua mão e sentir seu calor, mesmo por tão pouco
tempo.
Deito a cabeça no encosto do banco e olho para ela,
segurando a coroa de rosas que fiz. De vez em quando, percebi em
seus olhos sua luta para não sucumbir à crise e às lembranças
dolorosas, então fazia com que se distraísse.
— Espero que tenha gostado do dia de hoje. — Laura vira o
rosto e assente, ainda retraída.
— Foi o dia mais feliz que tive em todos esses anos. — Diz,
emocionada.
— Estou contente por ter aceito meu convite. — Ela assente,
focada nas rosas em sua mão.
— Eu também...
— Gostarias de ir jantar um dia destes? — Laura levanta a
cabeça e crava os olhos nos meus, tão surpresa quanto eu pela sua
reação.
— Um encontro? — Pergunta, reprimo meu sorriso.
— Tu já tivesteum encontro? — Ela nega. — Sim, considere
um encontro.
— Hum... — Laura franze a testa, pensativa. — Posso negar?
— Fique à vontade, não podemos ceder tão facilmente. — Ela
estreita os olhos. — Tu aceitas?
— Sem dúvida. — Umedecendo os lábios ao sentir meu
coração bater mais acelerado.
— Quando chegar o dia, te avisarei.
— Certo! — Laura abre a porta. — Você não vai entrar? —
Nego com a cabeça, vendo-a suspirar.
— Preciso resolver algumas coisas e... quanto menos tempo
passar com você, menos provável me encontrarem. — Ela assente
sutilmente.
— Você é um foragido... às vezes esqueço.
— Não se preocupes, estarei aqui antes de tu ires trabalhar
amanhã.
— Boa noite, então! — Laura fica me encarando por longos
segundos, sustento seu olhar, mergulhando na superfíciedo mar de
seus olhos.
— Nos vemos, pequena flor.
— Fica bem! — Diz, saindo do carro.
Espero até que adentre no prédio para seguir meu caminho até
Nichnny Klub , grato por Olesya ter deixado seu carro comigo com o
intuito de não me expor.
— Eu não deveriaestar fazendo isso, Ruslan, mas tu és meu
irmão e eu morreria por ti. — Disse ela, na noite passada. — Por
issodeixareimeu carro contigo, assimtu evitasde vagar pelasruas,
e é mais fácil caso ocorra uma fuga.
— Tu estás ajudando um criminoso.
— Não. Estou ajudando meu irmão....
Respiro fundo lembrando de seus olhos marejados, notando
remorso transluzir através deles ao me encarar. Olesya não tem
culpa do que me aconteceu, e de toda minha família,ela é a única
que não sinto mágoa.
Estaciono o carro quase em frente à boate. Tudo o que falei
para Laura é verdade, quanto mais tempo demorar para descobrir a
verdade, mais meu prazo diminui. Eles irão me encontrar, mais cedo
ou mais tarde, me trancafiando novamente dentro de uma cela, e
quando isso acontecer, nunca mais poderei sair.
Sigo para dentro da boate vazia, dessa vez não sou guiado por
um guarda. Entro na sala de Nikita e me surpreendo ao encará-lo
lotado de papéis.
— O que houve aqui? — Pergunto, ele ergue a cabeça um
pouco desorientado.
— Ah... chegaste — Nikita suspira e recosta na cadeira. —
Estou trabalhando. — Diz, segurando a ponte do nariz com
frustração.
— Ser empresário não é fácil, certo?
— Não é com isso que estou focado, até porque tenho
funcionários. — Franzo o cenho, me aproximando.
— Então o que é tudo isso?
— Seu caso, o que mais seria? — Arrasto uma cadeira e me
sento à sua frente, assimilando sua declaração.
Por que ele está tão determinado em encontrar o culpado?
— E...?
— E que tem coisas que não batem, Ruslan. — Nikita se
inclina. — Tu não és culpado!
— Como tens tanta certeza? — Ele se levanta e gesticula para
que o siga.
Encaro a pirâmide no quadro em que montamos com todas as
vítimas, os horários das mortes e os lugares onde ocorreram. Cruzo
meus braços, esperando que ele me explique sua linha de
raciocínio.
— Tu dissesteque na sua mente há falhas, correto?
— Exato!
— Todos os lugares onde ocorreram esses assassinatos foram
próximos de onde tu estavas trabalhando naquela época, mas não
quer dizer que tu tenhas perdido a memória. — Nikita me olha. —
Acredito eu que essa confusão tenha ocorrido no dia em que te
pegaram, conforme me informou sobre os fragmentos presente em
sua mente.
— Onde tu queres chegar?
— Preste atenção, garoto! — Nikita aponta para o quadro. —
Cada vítima tem um padrão de idade e aparência, mas além disso,
todas, sem exceção, pertenciam à famílias ricas.
— Como descobriste? — Pergunto, desconfiado e esfregando
meus lábios com o polegar.
— Assim tu me ofendes — murmura, batendo em meu ombro.
— Venha aqui, tenho algo interessante. — Sigo-o de volta para sua
mesa, ele apanha duas pastas e estende para mim.
— O que é isto?
— Não adianta investigar os acontecimentos se não
descobrirmos tudo sobre os suspeitos. — Abro a pasta, dando de
cara com a foto de Artem. — Seu irmão é bem sujo, não?
— Ele sempre foi ambicioso. — Balbucio, folheando seus
arquivos e analisando as fotos tiradas dele em locais diferentes. —
E o que encontrou sobre ele?
— Oficial Artem é um filho da puta... — Lanço um olhar
repreensor em sua direção, Nikita pigarreia. — Sua mãe não tem
culpa. — Diz, amenizando sua raiva. — O que quero dizer é que
Artem cobra propina de traficantes de drogas, ele libera o acesso e
limpa as sujeiras de muitos criminosos. Tirando o fato de que há
dois anos atrás, recebeu uma acusação de corrupção dentro do
departamento onde trabalha, mas foi arquivado por falta de provas.
— Se mamãe souber... — Balanço a cabeça, indignado com o
que meu irmão se tornou. — Uma decepção! — Falo com raiva,
fechando a pasta e abrindo a outra.
Sinto a fúria borbulhar minhas veias ao encarar os olhos de
Mirom. Laura me contou que foi seu cachorro que a atacou, que a
tratou de forma estranha.
Entre ele e Artem, Mirom é o mais perigoso.
— Ruslan — levanto o olhar, Nikita me encara preocupado. —
Não encontrei nada que comprometa Mirom. — Ele bate o dedo nos
arquivos. — Seu primo pertence a SBU.
— SBU?![4] — Trinco meus dentes, controlando minha
respiração, Nikita assente. — Cacete! — Jogo a pasta na mesa e
levo as mãos aos cabelos.
— Mirom trabalha para o governo no departamento contra
espionagem do aparato do Serviço de Segurança da Ucrânia, por
isso que não encontrei nada dele. O cara combate crimes,
corrupção, terrorismo e... porra, é um desgraçado perigoso que
tenho certeza que está no teu rastro, tão perto que nem nos
atentamos a isso.
Me afasto e vou até a janela, encarando a pista de dança
vazia, alarmado com essa descoberta. Deixei minha guarda tão
baixa por pensar que ele era o mais inútil de nós três, que agora
nada me tira da cabeça que ele sabe onde estou e de tudo o que
faço. Mirom só está esperando o momento certo de agir.
Droga...
Coloco as mãos no bolso. Mirom se deu bem no final das
contas, podendo fazer qualquer merda sem se manchar. Ele teve
treinamento, sabe ocultar crimes, mas... meu primo não era nada
antes de eu ser preso.
Quem é o culpado?
— Ei, garoto? — Olho para trás, Nikita balança um bloco de
dinheiro. — Isto é para você, tu precisas de dinheiro e trabalhar
naquela construção poderá te colocar em risco. — Diz, se
aproximando.
— Não posso aceitar! — Recuso, atônito.
— Sim, tu vais! — Nikita fica me encarando. — Tem outra
coisa.
— Que outra coisa? — Ele abaixa a cabeça, esfregando o
pescoço. — Eu marquei um Neurologista para você, é um amigo
que me deve um favor.
Seus olhos se prendem nos meus, estou estagnado e chocado
com o que acabou de dizer. Fecho meus olhos e volto a encarar a
pista de dança, agora ocupada por algumas mulheres seminuas,
ensaiando para logo mais.
— Tu relatastesobre perda de memória, precisamos descobrir
por que e quando isso se iniciou, poderá ser uma pista. — Aperto
meus lábios, assentindo em concordância.
Não vou negar o medo que estou sentindo nesse exato
momento. Ir ao Neurologista poderá ser comprometedor, não em
relação a ser pego, mas sim, em encontrar algo em meu cérebro.
Passei por tantas coisas durante anos, lembranças que se tornaram
fragmentos, outras que foram simplesmente apagadas, mas
nenhuma feliz, todas têm rastros de sangue.
Após fugir do Colony 100, muitas delas começaram a vir à tona
e de repente estou preso em uma determinada lembrança, me
fazendo reviver tudo de novo. É como assistir um filme de terror sem
conseguir passar a cena para frente.
Inspiro fundo, é perturbador saber que a qualquer momento
posso ser sucumbido por elas e não ser capaz de retornar.
— Quando?
— Daqui a dois dias.
— Certo! — Concordo, soltando a respiração pela boca.
Tenho que encarar os fatos, minha mente não está sadia. Me
viro para Nikita, congelando ao vê-lo estender uma pistola.
— Chega de correr risco, tu és considerado uns dos
assassinos mais perigosos da Ucrânia, mas acredite, existem
pessoas mais perigosas que você, garoto. — Passo a mão por meu
rosto. — Estamos entrando em uma guerra, não existe piedade
quando se tem tanto a perder. Não me refiro a você, mas ao culpado
por toda essa merda.
Encaro a arma na sua mão antes de pegá-la e escondê-la
atrás das costas. Nikita sorri com um olhar determinado, frio e
calculista, me dizendo que não importa por quais meios eu decida
escolher, ele estará ao meu lado.
— E agora? — Pergunta, cruzando os braços, ansioso para
começarmos a agir.
— Preciso que tu mandes um recado. — Nikita arqueia uma
sobrancelha, sorrio quando um brilho de entendimento passa por
seus olhos. — Chegou a hora de me encontrar com Mirom.
Vasculho dentro da minha bolsa pelo gravador que contém a
entrevista com a mãe de Ruslan. Coloco a mão na testa, estou
gelada e com o coração acelerado em desespero.
Vou na sala, depois na cozinha e volto para meu quarto,
olhando cada parte da minha casa, mas nada... não encontro o
gravador!
Levo a mão à boca e mordo com um pouco de força minha
pele, relembrando do que aconteceu dias atrás. Após ser mordida
pelo cachorro, entrado em crise com o toque de Yaroslav e ter
chegado em casa, a única coisa que me lembro depois disso é...
nada!
— Bosta, Andry vai me matar! — Choramingo, já imaginando
os gritos, as reclamações e a raiva dele.
Vou até o criado mudo e pego meu celular, ligando-o depois de
ter passado esses dias desligado. Mais um motivo para os gritos de
Andry. Mordo meu lábio inferiorao deslizar o dedo na tela, vendo as
notificações de mensagens e ligações perdidas.
— Arch, estou ferrada!
Guardo o celular na bolsa sem abrir as mensagens, na
verdade estou me borrando de medo do que vai acontecer quando
chegar na AS, porque uma jornalistanão pode em hipótese algum
ficar incomunicável
, Andry sempre diz.
Sigo até a cozinha e preparo um café e ovos mexidos,
deixando um pouco para Ruslan que ainda não chegou.
Me encosto no balcão, soprando o café fumegante na caneca,
tentando lembrar onde coloquei o gravador... no caso se tiver
colocado em algum lugar.
Só que... acho que o perdi!
Fecho meus olhos, contraindo meu rosto. Só de pensar nas
consequências... me dá um frio na barriga, embora eu queira correr
e me esconder, tenho que enfrentar a fera.
Escuto a porta ser aberta e abro os olhos, Ruslan entra em
silêncio com a cabeça baixa escondida no capuz do moletom. Ele
fecha a porta devagar e se vira para mim.
— Bom dia! — Deseja, colocando a chave sobre a mesa e
vindo em minha direção.
— Bom dia — retribuo, me virando e pegando a caneca que
deixei preparada para ele.
— Dormiste bem? — Assinto estendendo-a, ele pega e
agradece com um murmúrio, se encostando na pia à minha frente.
— Sim — respondo, encarando-o tomar seu café.
Ruslan abaixa o capuz, seus olhos descem por meu corpo, me
estudando. Ele esboça um sorriso, fitando a estampa do desenho da
Margarida no meu moletom.
— Estás linda como sempre. — Elogia, abaixo a cabeça
envergonhada, fitando meuall star
.
— Obrigada... — Sussurro, dando um gole no meu café.
— Como estás o tornozelo? — Ergo a barra da calça,
analisando o curativo que fiz quando acordei.
— Acredito que vou ficar com uma cicatriz — digo, pisando
mais firme com o pé esquerdo. — Ainda dói um pouco, não quanto
nos primeiros dias, mas dá para sobreviver.
— Creio que sim. — Concorda, divertido.
— Agora preciso ir. — Coloco a caneca no balcão e aponto
para o fogão. — Deixei preparado ovos mexidos, do jeito que gosta.
— Olho para Ruslan que inclina a cabeça para o lado, me fitando
contente, pigarreio. — Chego às seis.
— Sentirei sua falta! — Declara, fazendo meu estômago revirar
como se estivesse cheio de borboletas.
— Hum... — mordo meu lábio inferior. — Eu também! —
Confesso, saindo apressada da cozinha.
— Nos vemos — olho para ele e meneio a cabeça.
— Até logo! — Apanho minha bolsa e saio de casa, trancando
a porta enquanto controlo as batidas do meu coração.
Com ajuda da parede, me sustento ao descer as escadas
devido ao meu tornozelo. Faço uma careta de dor e inspiro fundo,
procurando por Gana.
— Foda-se, Laura! — Assusto com a voz dela, meus olhos
procuram por Gana que está a alguns metros à frente, com os
braços cruzados e cara de poucos amigos. — Tu sabes o que
fizeste comigo?
Me aproximo apreensiva e culpada. Gana franze a testa,
descendo os olhos por meu corpo, procurando o que há de errado.
— Perdoa-me, tive alguns problemas.
— O que aconteceu? — Pergunta preocupada, se
aproximando um pouco e descruzando os braços.
— Uma longa história. — Digo. — Quer almoçar comigo hoje?
— Tu não mereces minha amizade — fala rancorosa. — Eu
liguei, mas seu telefone estava desligado. Bati à sua porta, só que
ninguém atendeu. Juro por Deus que estava quase chamando a
polícia, pensei que tu estavas morta... merda, se tu tiveste morrido,
eu também teria. O que me impediu foio Kliment, que me disse que
viu tu sair com alguém. — Gana para, toma ar e arqueia a
sobrancelha direita. — Quem é esse alguém?
— Se você aceitar, posso te contar... — Ela faz um bico
ultrajado.
— Foda-se de novo, eu aceito. — Ela estende a chave do
carro. — Tu terás que rebolar para me reconquistar. — Gana passa
por mim, mas para e se vira, me fintando mais atentamente. — A
propósito, tu estás muito linda hoje, não sei porque... sua áurea está
mais brilhante, consegue me entender?
— Não! — Gana ri, gesticula com a mão, um deixa para lá e
entra no prédio.
Solto um suspiro quando me acomodo no carro e sigo meu
caminho, me preparando durante todo o trajeto. Não só Andry ficará
furioso, como também Yaroslav por não ter dado notícias e,
principalmente, por ter perdido a gravação.
Encosto a testa no volante quando estaciono na AS, me
condenando por ter sido tão desatenta. Apanho minhas coisas e
saio do carro com o coração aflito.
— Laura?! — Congelo ainda em frente ao xoxo quando sua
voz entoa pelo estacionamento, me gelando inteira.
O que Mirom faz aqui?
Engulo a aflição misturada com o medo e giro em sua direção.
Surpresa me atinge quando meu olhar recai no homem alto,
inclinado no capô de um jipe amarelo, vestido com uma farda escura
e... meu Deus, ele está armado!?
Ele sorri.
Eu recuo.
Mirom prende seus olhos nos meus, espalhando calafrios por
cada parte do meu corpo.
— Venha, preciso trocar uma palavra contigo. — Seus dedos
batucam a lataria do jipe, não há mais sorriso em seu belo rosto,
agora a única coisa que consigo ver é uma máscara impenetrável
ocultando seu verdadeiro eu.
— Acredito que não seja o melhor momento. — Retruco,
recuando mais um passo. — Estou atrasada. — Viro na direção da
entrada da AS sem a intenção de chegar perto dele.
Mirom me desperta medo.
— Lauriana Silva da Souza — paro de uma vez ao escutá-lo,
choque me faz virar e encarar seu sorriso de vitória. — Creio que
esse seja o seu nome verdadeiro, não?
— O... o quê? — Mirom estala a língua e me chama com a
mão.
— Venha aqui querida, porque não estou por conta própria,
mas em nome do governo.
Governo?
Aliso minhas mãos trêmulas na calça antes de me aproximar
com cautela, sem desgrudar meus olhos dos dele. Fico do outro
lado do jipe, uma distância capaz de me dar tempo de fugirou gritar
caso faça alguma coisa errada.
No seu peito direito há a sigla SBU bordada na farda,
respondendo a minha pergunta.
— Sabia que tu escondias segredos, seus olhos azuis
fascinantes são transparentes demais. — Diz, me chamando a
atenção para ele.
— O que você quer? — Mirom sorri.
— Eu quero muitas coisas! — Sua língua passa por seu lábio
inferior, me lançando um olhar ardiloso. — Tu és uma delas.
Fecho minhas mãos em punhos, Mirom sorri arrastando uma
foto em minha direção.
— Lívia é tão linda quanto você! — Meus olhos encaram o
rosto da minha mãe.
Prendo a respiração, havia tantos anos que não a via. Será
que é recente essa foto?
Meus olhos começam a pinicar por causa das lágrimas, trinco
a mandíbula quando Mirom coloca por cima a foto de James.
Um ódio tão fortecomeça a me invadir, viro o rosto incapaz de
esconder a repulsa que sinto por ele.
— Essa é sua família,não é? — Encaro Mirom, furiosa pelo
que está fazendo.
— Por que está fazendo isso?
— Porque tu entrastes no meu caminho. — Ele range os
dentes. — Uma jornalista vasculhando o que não deve ser
desenterrado me deixa descontente.
— O que teme? — Ergo meu queixo em desafio. — Se você é
tão limpo, por que está com tanto medo de que eu vasculheessa
história?
— Eu com medo? — Mirom ri, deixando-me mais irritada. —
Quem deve estar com medo é você que está xeretando onde não
deve.
— Não estou fazendo isso por que quero.
— Mas está curiosa para descobrir, já que escondes um
assassino. — Ele sorri friamente, vendo meu espanto. — Não tente
me fazer de idiota.
— Não faço ideia do que está falando.
— Lauriana , vou falar a sua realidade, mesmo que seja crua.
— Mirom se inclina um pouco mais no capô a fim de chegar mais
perto de mim. — Tu podes ter o visto permanente, mas ainda é uma
brasileira que pode ser deportada a qualquer momento. Tenho o
poder de te mandar para longe ou te colocar na cadeia. Nesse caso
tu escolhesqual a melhor opção. O que quero dizer é que, saia do
meu caminho. Não meta o dedo onde não faza mínimaideia do que
te cerca. É um aviso, não de um amigo, mas de um soldado
disposto a acabar com qualquer ameaça.
Seu olhar está tão sombrio que só consigo perceber a maldade
em seu rosto. Suas palavras foram como tapas, óleo quente sendo
derramado lentamente na minha pele, queimando de forma
insuportável.
Sinto que sua ameaça é verdadeira, Mirom é capaz de fazer
qualquer coisa. Dou um passo para trás, ele é escrupuloso. Sua
beleza ofuscante é uma armadilha.
— Uma ameaça? — Ele não responde, apenas sorri de leve,
me encarando fixamente. — Okay!
Fito seu rosto uma última vez e caminho em direção à AS.
— Laura, não quer saber dos seus pais? — Olho para Mirom
por cima do ombro.
— Não quero saber de nada do que sai da sua boca. — Digo,
voltando para perto do jipe e pegando a foto da minha mãe. —
Apenas essa foto me interessa, o resto quero que desapareça assim
como você.
— Não vou condenar por estar acolhendo Ruslan. Quando se
tem um coração inocente, é mais fácil de ser enganado. — Diz,
recolhendo a foto de James.
Fico calada, fitando seu rosto.
— Perdoe-me pela Axel. — Ele me olha.
— Sua cachorra me rasgou...
— Ela deveria estar presa.
— Você a soltou! — Mirom nega com a cabeça, mas não
retruca.
— Acredito que isso te pertença. — Ele coloca em cima do
capô um gravador. — É teu?
— Sim! — Me inclino e pego meu gravador, cravando meus
olhos nos seus. — Qual a chance de ter apagado tudo o que está
aqui?
— Nenhuma — fala com um sorriso prepotente.
Balanço a cabeça, incapaz de acreditar em suas palavras. Giro
os calcanhares e caminho apressada para longe de Mirom.
Droga... não só tinha as gravações da sua mãe como as
outras. A minha sorte é que fiz copias e as entreguei a Yaroslav.
Cumprimento o guarda da AS ao entrar no elevador. Quando
as portas se fecham, permito-me respirar aliviada, mas não dura
muito tempo quando encaro a foto da minha mãe.
Uma lágrima escorre por meu rosto enquanto contorno os
traços do seu rosto. Mamãe está mais velha, embora o tempo tenha
passado, não ofuscou sua beleza.
— Que saudade...
Ela está sentada em uma mesa com outras mulheres. São 15
anos sem sentir seu abraço e seu calor. Às vezes me sinto tão
culpada por tê-la abandonado, mas quando lembro que não
acreditou em mim, se fechando para a realidade, tenho a certeza
que fiz a coisa certa.
Limpo meu rosto e guardo dentro da bolsa tanto o gravador
quanto a foto. Inspiro e expiro antes de sair do elevador e caminhar
na direção do meu setor.
Paro em frente à porta da minha sala e vejo meus colegas
conversando distraídos.
— Senti falta de vocês — digo, assustando-os.
— Não acredito! — Aksinya coloca as mãos na boca, seus
olhos se enchem de lágrimas.
— Meu Deus, Laura? — Justik me olha pálido.
— Graças aos céus ela está de volta! — Yaroslav se deixa cair
na cadeira como se tivesse caído um peso do corpo.
— Eu não morri!
— Não foi o que passava em minha mente. — Aksinya retruca
sobressaltada. — Tu não atendeste nossas ligações, nós três fomos
na sua casa ontem e nada.
— Nosso alívio foi que nenhuma notícia ruim chegou. —
Indaga Justik.
— Peço desculpas, foram dias difíceis.
Meus colegas me lançam olhares de compreensão.
— Bem, trouxe algo para você. — Yaroslav diz, se
aproximando com cuidado e estende uma pequena caixa. — Não
sabia se tu iriasvir, mas comprei assim mesmo. — Ele sorri.
— Obrigada! — Pego-a, ponho minha bolsa na minha mesa e
abro a caixa. — éclair intergaláctico
!?
— Com “poeira de estrelas” — diz, sorrindo. — Sabor
chocolate, como tu gostas.
Sento-me na cadeira e depois de borrifarálcool na mesa e nas
minhas mãos, pego o doce de pequenas galáxias reluzentes e levo
à boca, saboreando seu sabor delicioso.
— Vou desaparecer mais vezes. — Murmuro ao engolir o
pedaço, eles caem na risada, um nó se aloja na garganta e meus
olhos ardem.
Abaixo a cabeça para esconder a emoção que sinto, talvez
felicidade por estar com eles de novo? Volto a encarar cada um,
gravando seus traços, sorrisos e brilho no olhar, me dando conta
que os adoro de uma forma tão simples que nunca imaginei.
— LAURA!? — O grito de Andry faz com que eu engasgue.
Começo a tossir, meu rosto queima enquanto tento me
controlar. Justik estende uma água, agradeço em silêncio e dou um
gole.
Olho para meu chefe, furioso parado na porta, pronto para me
esganar.
— Na minha sala agora! — Andry sai, deixando o ar tenso.
— Que merda! — Yaroslav resmunga, eles me lançam um
olhar de piedade que sai de forma engraçada.
— Vou encomendar seu caixão. — Diz Aksinya.
— E eu as coroas de flores. — Justik senta à sua mesa, se
recolhendo em seu cubículo.
— A pior parte fica para mim? — Yaroslav contesta.
— Claro, precisa preparar a cova e comunicar a todos do fim
trágico de Laura. — Aksinya fala com os olhos esbugalhados.
— Eu ainda estou viva! — Comunico guardando meu doce e
me levantando.
— Por pouco tempo. — Ela retruca com um suspiro,
balançando a cabeça.
Respiro fundo e caminho pelos corredores apreensiva. Não
deveria sentir tanto medo assim do meu chefe, mas só quem
trabalha com ele sabe como Andry é.
Sinto mais medo dele do que de qualquer outra pessoa.
É estranho?
Sim, eu sei, posso estar exagerando, mas... Arch, no mínimo
irei ganhar uma advertência, senão um corte no salário. É a cara de
Andry fazer isso.
Paro em frente à porta, enxugo minhas mãos na calça e inspiro
fundo, tomando coragem de enfrentá-lo. Só espero que meus
colegas não precisem preparar meu velório depois dessa reunião.
Remexo o bolo no meu prato lembrando da conversa com
Mirom e dos gritos ensurdecedores de Andry, que como imaginado
me aplicou uma advertência.
Não contestei e muito menos quis lhe falar dos motivos que me
levaram a faltar no emprego. Ele sabe que quando isso acontece –
porque já aconteceu outras vezes – eu desapareço. Só que para
Andry tenho que ser clara, dizer o que não conto a ninguém.
Solto um suspiro quando os olhos de Mirom reaparecem em
minha mente, me deixando inquieta. Tem alguma coisa nele que me
incomoda. Será que ele desperta esse medo em mim por que acha
divertido, ou ele é realmente um lunático?
— Estou escutando suas engrenagens rangerem. — Levanto a
cabeça e encaro os olhos curiosos de Gana do outro lado da mesa
no restaurante.
Ela leva um pedaço de bolo à boca, se inclinando um pouco
em minha direção.
— Ainda pensando no... qual o nome dele mesmo?
— Mirom.
— Isso, no Mirom! — Expiro pela boca, olhando para meu bolo
de chocolate.
— Ele é estranho, Gana... muito estranho.
Fito seu rosto delicado, ela comprime seus lábios entendendo
minha preocupação depois de eu ter contado tudo sobre essa
reportagem, tirando a parte em que estou escondendo Ruslan.
— Tu és apenas uma jornalista, não tem poder de ir contra
qualquer coisa que ele faça, então meu conselho é que tu fiques
longe dessa família. — Dou um gole no meu leite. — Sei que é teu
trabalho, mas... Laura, Mirom te ameaçou!
— Eu sei...
— Mas isso desperta mais seu interesse, não é? — Assinto de
leve, Gana suspira. — Por isso que nos filmes de terror as pessoas
sempre se fodem. — Resmunga, enchendo a boca de bolo. — Em
vez de irem embora, não, continuam lá, xeretando e no final,
morrem!
— Minha vida não é um filme!
— Ah, será? — Ela arqueia uma sobrancelha. — Por trás de
um roteiro bem trabalhado sempre há um fato real, seja qualquer
coisa.
— Você sabe que não assisto filme de terror, certo? — Gana
sorri, dando de ombros.
— Seu passado foi um filme de terror, Laura, mesmo não
sabendo dos fatos. — Mordo meu lábio inferior, concordando com
ela.
— Existe coisas que não temos o controle, elas simplesmente
entram em nossas vidas.
— Mas tu tens o poder de recusar e caminhar por um caminho
diferente. — Ela ergue a colher e aponta para mim. — Com esses
Rotam não se brinca, Laura, afaste-se!
— Okay! — Gana fica me encarando por alguns segundos,
sem acreditar em minhas palavras, porque estou muito mais
envolvida do que ela imagina.
— Vai, me diga, quem é o boy que tu estás saindo?
— Não existe esse boy. — Gana faz uma careta.
— Kliment falou uma coisa diferente...
— Um fofoqueirosempre inventa histórias. — Retruco sem
encará-la.
— Sério?
— Sim!
— Então quem é que tu saíste?
— Yaroslav, e foi a trabalho. — Minto descaradamente.
Estou ficando boa na mentira!
Sobressalto quando bate na mesa, olho para ela vendo uma
Gana em completa frustração.
— Pensei que tu tinhas permitido que alguém chegasse perto
de ti. Fiquei até com ciúmes por essa pessoa não ser eu! — Franzo
a testa. — Um namorado poderá resolver seus traumas, se sentir
amada e adorada por um homem é a coisa mais mágica do mundo.
— Gana!
— Estou furiosa, porque quero que tu melhores, que encontre
o amor e não sinta repulsa quando as pessoas te tocam. Foda-se,
queria tanto um abraço da minha melhor amiga. — Gana desvia o
rosto quando seus olhos lacrimejam.
— Sinto por te decepcionar...
— Não, querida — ela volta a me olhar. — Tu não me
decepcionaste, mas sim esses homens frouxosque não conseguem
enxergar o quanto tu és incrível.
— As pessoas não querem problemas, Gana.
— Há exceções, e quando ele chegar, vai ultrapassar todos
seus espinhos, moldando sua tristeza e iluminando sua alma. — Ela
suspira. — Eu rezo todos os dias por isso. — Lanço um olhar
agradecido, Gana sorri e volta a comer seu bolo.
— E como vai Yevhen?
— Não estamos mais tão próximos. — Revela com tristeza na
voz.
— O que houve?
— Ah, Laura! — Gana solta a colher e se recosta na cadeira,
olhando em volta no restaurante pouco lotado. — Sou uma
prostituta, que futuro eu tenho?
— E daí? Você é igual a todos nós. — Ela solta uma risada
sem humor.
— Estás vendo aquelas mulheres? — Gana aponta para uma
mesa perto da janela à nossa direita. — Desde que pisamos dentro
desse restaurante, elas não pararam de me olhar e cochichar. —
Volto minha atenção para Gana. — Ando com roupas curtas,
mostrando a maior parte do meu corpo, porque sou dona de mim e
eu gosto. Mas esses panos não definem o que está dentro de mim,
Laura. Sou julgada diariamente por meu estilo e profissão, todos
acham que sou uma ladra de maridos, talvez eu seja por transar
com quem paga, mas... essa é minha realidade.
— Eu imagino como se sente. — Comprimo meus lábios,
deixando de lado o pequeno pedaço do bolo que sobrou por ter
perdido a fome. — Minha mãe era uma prostituta também. —
Revelo, pela primeira vez em todos esses anos em que nos
conhecemos.
Gana me encara estagnada, assombro e surpresa passam por
seu rosto.
— Como dizes?
— Você sabe que fui abusada, tocada sem minha permissão,
mas não sabe de toda a história ou dos detalhes sobre ela.
— Tu nunca quisesteme contar.
— Está na hora — engulo em seco — de contar minha história.
Então começo a narrar desde o início tudo o que me
aconteceu. Dos abusos, das surras, da omissão e da culpa.
Enquanto vou contando, lágrimas escorrem por seu rosto, assim
como no meu.
Não é fácil revelar a sujeira da minha vida. Cada palavra que
sai da minha boca é como farpas que me arranham dolorosamente.
Meu peito aperta, minhas mãos estremecem e tudo o que mais
desejo é que no lugar de Gana fosseminha mãe. Contar tudo o que
ela não quis enxergar.
A única pessoa que sabe além de Gana, é Olesya que sempre
me diz que quando a gente compartilha fica mais fácil.
Não sou a única que passou por isso, o mundo está cheio de
mulheres que assim como eu sofrem desse mal, que estão
trancafiadas dentro de si, reféns da dor
.
Quando me calo, sinto mais um peso se esvair de dentro de
mim. Gana está vermelha e chocada, sem reação. Noto em seu
olhar a busca pelas palavras certas, mas elas não existem. Nada
nesse mundo pode mudar o que me foi feito, está marcado na
minha alma.
— Sinto muito... — Ela sussurra entre meio ao choro.
— Já passou...
— Não, não passou! — Gana se inclina sobre a mesa e arrasta
a mão em minha direção. — Você ainda vive esse pesadelo, Laura,
você sofreu calada por tantos anos... — Seus olhos inundam de
lágrimas. — Meu Deus, não consigo imaginar o quanto tu tiveste
que aguentar sozinha...
— O que não nos mata, nos fortalece. — Recito, encarando
sua mão. — Estou bem, tenho recaídas, mas estou bem! — Arrasto
minha mão e seguro a sua, sentindo seu calor.
Um arquejo sai de sua garganta ao me sentir tocá-la.
Eu tive a coragem e iniciativa, estou lutando contra todo o
tormento de dentro de mim, não quero ser a mesma mulher reclusa.
Quero mudar, sentir e amar como todo mundo e isso só depende de
mim.
— Não estou acreditando! — Gana entrelaça nossas mãos
sorrindo e chorando ao mesmo tempo. — Tu estás me tocando!?
— Devagar... lentamente... estou passando por cima de tudo
que me puxa para baixo. — Falo.
Sua mão é fina, macia e delicada. Suas unhas grandes,
perfeitamentefeitasa deixam ainda mais linda. Olho para Gana que
me encara com fascinação.
— De fato, esse é o melhor dia da minha vida. — Revela,
sorrindo.
— Por quê?
— Porque estou vendo a pessoa mais especial desse mundo
superando toda sua dor. Tu estás florescendo e faço parte dessa
mágica. — Gana leva a outra mão à boca, abafando o choro. — Eu
te amo tanto, Laura.
— Eu também te amo.
— Como irmãs? — Assinto com a cabeça.
— Como irmãs!
Quando minhas palavras a atinge, Gana não consegue mais
segurar o choro, então em meio a um restaurante cheio de pessoas,
ela começa a chorar que nem uma criança.
Sinto olhares questionadores, mas ignoro, porque nada me tira
a felicidade que sinto ao vê-la chorar por mim, por lhe ter tocado
pela primeira vez e por ter compartilhado meu passado sombrio.
Gana é a luz que não se apaga. Por ter uma vida difícil,ela
luta dia após dia para sair do buraco que se encontra. É julgada,
condenada e excluída por uma sociedade cega por conceitos
errados, que preferem apontar o dedo e virar as costas do que
entender e ajudar o próximo.
E mesmo assim continua...
Lutando, sofrendo, sorrindo e agradecendo, porque todos
sabemos que depois de um dia difícil, sempre há calmaria no
coração de quem amamos.
Inspiro fundo sentindo pela primeira vez uma paz que nada no
mundo é capaz de estragar.
Um passo de cada vez...
Uma ferida curada de cada vez....
E assim vou me reerguendo, colando cada caco do meu
coração até estar completo. Ainda irá conter fraturas, sendo possível
de ser destroçado de novo, e se vier acontecer, juntarei de novo e
farei a mesma coisa, me reerguerei.
Coloco a mão contra a porta e encosto meu ouvido nela,
escutando vozes de desenhos animados abafados pelas paredes.
Suspiro, destranco-a e sou recepcionada por Rony, que vem em
minha direção miando desesperado, se esgueirando em minhas
pernas.
— Ei garoto, que recepção é essa? — Ponho minhas coisas
em cima da mesa e agacho para fazer cafuné no gato cheio de
mistérios. — Ruslan te deixou para trás, foi?
Seus olhos amarelos se cruzam com os meus por alguns
segundos antes de desviar sua atenção para a caixa que tenho ao
meu lado.
— Eu te trouxe um presente.
Rony se senta, balançando o rabo de um lado para o outro, me
observando tirar o brinquedo arranhador para gatos com andar
suspenso, comprei antes de vir embora com a intensão de fazê-lo
se entreter.
Coloco seu brinquedo em um canto na sala, Rony vai até ele,
cheirando e analisando cuidadosamente até começar a arranhar e a
subir na parte elevada.
— Certo, acho que agora uma comida te faria bem, não?
Deixo Rony distraído e vou tomar um banho quente para lavar
toda a sujeira de hoje. Apesar de ter levado uma bronca do meu
chefe, o dia se arrastou normalmente. Fiquei tão focada na
construção da reportagem de Ruslan que nem vi o tempo passar, e
quando dei por mim, meu expediente já tinha terminado.
Visto meu pijama, confiro meu celular e vou preparar meu
jantar antes de voltar a trabalhar. Apanho o controle, colocando no
desenho Kim Possible no canal da Disney.
Deixo com que as vozes dos personagens me façam
companhia enquanto arrumo minha comida e a do Ronny. Fico tão
absorta no que estou fazendo que esqueço por um momento a
conversa que tive com Mirom que me perturbou o dia todo.
Sento-me à mesa depois de uma hora, ligo meu notebook e
começo a revisar meu trabalho. Solto um suspiro e recosto na
cadeira, relendo tudo o que escrevi sobre os Rotam. Olho para o
gravador pensando em Mirom de novo.
“— Não meta o dedo onde não faz a mínimaideiado que te
cerca. É um aviso,não de um amigo,mas de um soldadodispostoa
acabar com qualquer ameaça.”
Calafrios percorrem minha espinha pelo pavor que ele me
provoca. Coloco os cotovelos sobre a mesa e me inclino, pegando o
gravador. Uma parte de mim quer jogar tudo para o alto, esquecer
dessa história, mas a outra... a outra grita desesperada para que eu
continue, descubra o que há de errado mesmo com os poucos
recursos que tenho.
“— Não vou te condenar por estar acolhendoRuslan, quando
se tem um coração inocente, é mais fácil de ser enganado...”
Se Mirom e Artem sabem que Ruslan está comigo, por que
eles não vieram prendê-lo? O que eles estão esperando? Respiro
fundo,alarmada com o fatode que ambos estão planejando alguma
coisa, porque não há lógica em saber que o criminoso que procuram
está aqui e não fazerem nada.
Frustrada, aperto o botão do player para escutar de novo a
entrevista da mãe de Ruslan e vou preparar um café. Sua voz soa
pelo gravador, dou um gole na minha bebida, fechando os olhos ao
sentir a cafeína navegar por minhas veias.
— Não... por favor... — Olho para trás de uma vez quando a
voz de Okasana é substituída por uma completamente diferente e
em total pavor, fazendo meu coração saltar pela boca. —
NÃOOOOO... — Sobressalto ao escutar gemidos de dor, pancadas
e grunhido.
O que está acontecendo?
Aperto minha caneca, estagnada no lugar enquanto continuo
escutando a mulher gritar por socorro.
— Eu... eu tenho uma fi-i-ilh-a...
n-não-o me mate-e... — Ela
implora em desespero, dou um passo à frente com a respiração
acelerada e aterrorizada.
— Toda rosa estragada deve ser eliminada...— A caneca
escorrega da minha mão se estilhaçando no chão ao escutar a voz
mecânica do que parece ser o responsável.
— Não... — A moça choraminga. — Não, eu juro que não
falarei a ninguém, mas deixe-me ir embora...
— Toda rosa estragada deve ser arrancada...
Sobressalto, levando a mão à boca quando a moça grita em
pânico que logo é substituído por uma voz de dor e angústia. Sons
de algo cortando no que assemelha ser a própria pele, me faz
perder o equilíbrio.
Encosto no balcão para não cair com minha mente sendo
preenchida pelos barulhos de engasgo, pancadas, murmúrios e de
repente, silêncio.
Minha respiração acelerada preenche o silêncio, engulo em
seco e me assusto quando passos são soados na gravação. Forço-
me a ir até a mesa, pego o gravador com as mãos tremendo.
— Toda rosa estragada deve ser eliminada...— Salto para
trás, deixando cair o gravador que faz um click quando a gravação
termina.
Silêncio preenche minha casa. Levo as mãos à cabeça sem
acreditar no que acabou de acontecer.
Um assassinato...
É a gravação de um assassinato!
Deixo-me cair na cadeira mais próxima e sem saber como
reagir, fico paralisada e assustada sem conseguir me mover, apenas
relembrando e associando os últimos minutos.
Mirom...
Ele me devolveu o gravador, então quer dizer que... foi ele?
Mirom quem colocou essa gravação?
“— ... É um aviso, não de um amigo, mas de um soldado
disposto a acabar com qualquer ameaça.”
Me levanto, pego o gravador e aperto o replay, escutando tudo
de novo. Sinto que esse assassinato tem alguma relação com o
Ruslan, mas... por que Mirom faria isso? Por que vejo em seus
olhos suspeitas?
Eu entrei em algo que não deveria, não por minha culpa, posso
sair e ir contra as ordens de Andry, porém, a cada dia mais curiosa e
mais envolvida eu fico.
Quero apenas a verdade e sei que a verdade está mais
próxima a cada dia. Preciso apenas encontrar uma brecha, uma
falha que me leve ao real culpado por toda essa atrocidade.
Ando de um lado para o outro, ansioso para a chegada de
mais tarde e tentando encontrar um caminho que me leve a
descobrir a maldita verdade.
Minha mente grita em desespero com lembranças que insistem
em reaparecer. Vou até a mesa cheia de papéis, pego um caderno,
caneta e começo a rabiscar, desenhando a imagem que apareceu
como flash.
Os traços desordenados começam a ganhar forma, minha
visão pisca freneticamente como se tivessem ligado uma luz e
sobrasse apenas pouco tempo para visualizar o que está à minha
frente.
— Ruslan? — Nikita me chama, fazendo com que a imagem
na minha mente desapareça.
Fecho os olhos e inspiro fundo, largando a caneta sobre a
mesa. Ele se aproxima com cautela.
— O que é isso? — Abro os olhos, encarando o desenho de
uma silhueta com capa e capuz em um beco escuro enquanto gotas
de chuvas caem sobre o corpo caído à sua frente, escorrendo
sangue pelos paralelepípedos.
— Toda rosa estragada deve ser eliminada ... — Balbucio,
encarando o rosto do assassino coberto pelas sombras.
— Não compreendo... — Olho para Nikita.
— Naquela noite foi isso que vi. — Digo, recordando-me
vagamente do que aconteceu. — Lembro-me dele recitar essa frase
depois de ter atacado a moça... essa é a imagem de quando tudo
aconteceu.
— Tu não lembrasdo rosto?
— Não! — Bato na mesa e me afasto.
— Fique tranquilo. — Nikita tenta me acalmar, mas é em vão.
— Preciso de ti equilibrado para o encontro com Mirom.
— Estou bem! — Asseguro, encarando o quadro. —
Precisamos encontrar pistas...
— Vamos com calma...
— Eu não tenho mais tempo. — Encaro os olhos de Nikita. —
Quando me encontrar com Mirom, tudo irá explodir.
— Como assim? — Ele franze a testa.
— Artem e Mirom sabem onde estou, eles estão me cercando,
mandando pessoas vigiar o bairro onde estou.
— E como sabes disso?
— Tenho olhos por lá. — Afirmo, cruzando os braços. — Eles
estão esperando o momento certo.
— Então eles querem que tu os encontres? — Dou de ombros
sem saber de suas intenções, é uma hipótese.
— Houve relatos de assassinatos como esses nesses 14
anos?
— Nada, apenas aquele quando tu fugiste . — Olho para a
reportagem da AS que Laura escreveu, eu estava seguindo-a e vi o
corpo da mulher estirado no chão.
— Isso tem quase um mês... — Meu corpo fica em alerta
quando algo vem à tona. — Precisamos encontrar os corpos...
— Como dizes?
Fecho meus olhos ao segurar meu nariz, analisando o que me
veio à mente. Foram vinte mulheres assassinadas, com intervalo de
um mês entre cada morte. Fui preso e tudo voltou ao normal, mas
quem quer que seja o culpado por tirar tantas vidas não pararia de
cometer atrocidades por tantos anos e voltar só agora que estou
livre. Isso quer dizer que...
— Necessito que consigas os dados de mulheres
desaparecidas durante esses 14 anos.
— Posso conseguir, mas por quê? — Me volto para Nikita.
— Acredito que ele não tenha parado de matar, o que me diz
que todas as suas vítimas estão em algum lugar onde ninguém
possa encontrar.
— Oh... — Ele me olha chocado. — Um Serial Killer nunca
para de matar...
— Eles sentem prazer no ato em si. — Umedeço os lábios. —
Quatorze anos é tempo demais para viver sem sentir um único
prazer.
— E a que morreu recentemente?
— Ele vai colocar a culpa em mim a todo custo, porque sou
uma pedra em seu caminho.
— Artem ou Mirom?
— Ambos sabem camuflar e esconder corpos, são altamente
treinados. — Toco na foto deles, encontrando a linha que pode me
levar a uma pista.
— Quando tudo aconteceu, vocês eram apenas pirralhos, por
isso que havia muitas pistas, agora ambos trabalham para o
governo, tem influências lá dentro... cacete! — Observo o rosto de
Nikita adquirir um tom pálido. — Tu tens toda razão, garoto!
— O que indica que...
— O quê? — Balanço a cabeça, fazendo as contas e
deduzindo o improvável.
— Que ele irá procurar sua próxima vítima...
— Vai fazer um mês que tusaíste... puta merda!
— Essa será a nossa chance de encontrá-lo. — Solto uma
respiração forte, encarando cada uma das mulheres que morreram
injustamente.
— Como faremos? — Comprimo meus lábios, sem fazer a
mínima ideia.
— Não sei, mas iremos descobrir. — Falo convicto de que
antes de voltar para a cadeia, encontrarei o culpado e farei pagar
por tudo o que fizeste
.
Tudo na vida há consequências e uma hora ou outra tu terás
que pagar. Vidas foram tiradas, sonhos destruídos e famílias
quebradas.
O garoto inocente que fui pagou por algo que não cometeu, e é
esse mesmo inocente que foi trancafiado e calado quem revelará a
verdade, nem que seja a última coisa que ele faça, a verdade virá à
tona!
Aperto o volante enquanto encaro a estrada escura e solitária
no meio de uma vegetação. Nikita e seus homens estão
camuflados, prontos para agir se algo sair errado.
Eu preferia ter vindo sozinho, mas Nikita negou. Às vezes sinto
que ele esconde alguma coisa de mim, como se quisesse falar o
que está preso em sua garganta, mas sem coragem de revelar a
verdade.
Encosto o cotovelo na porta e esfrego meus lábios vendo um
farol distante vindo em minha direção. Embora Mirom nunca tenha
me visitado na prisão, ele me enviou muitos recados que me
perturbaram durante anos.
Fecho meus olhos afastando as lembranças de suas palavras,
das ameaças e de tudo o que acredita que eu tenha feito. Não é
necessário estar à sua frente para sentir seu ódio por mim. Balanço
a cabeça, ele mandou detentos me darem uma lição dentro da
cadeia... cacete!
Abro os olhos quando o jipe para e abaixa o farol. Mirom
desce, parando em frente dele, sendo iluminado pela luz fraca de
LED do carro. Engulo em seco ao vê-lo depois de tantos anos, seu
corpo repleto de músculos, farda e maxilar marcado faz jus ao
homem perigoso e manipulador que é.
Respiro fundo e saio do carro, batendo a porta ao encarar seus
olhos frios. Me aproximo, mantendo uma certa distância. Sei
perfeitamente que não posso de jeito nenhum subestimá-lo.
Mirom me analisa minuciosamente, fechando e abrindo as
mãos em punhos, se segurando para não me atacar, porque sabe
que se isso acontecer, capangas irão contra-atacar.
Ele sabe que não estou sozinho.
— Estás com tanto medo que tiveste que trazer seus
cachorrinhos? — Sua voz gélida me dá calafrios.
— Bom te ver, Mirom! — Ele estala a língua, se remexendo e
olhando para os lados, vendo Nikita encostado em uma árvore
distante.
— Queria poder dizer o mesmo. — Retruca, colocando as
mãos no bolso e voltando a me encarar. — Poderia ter mandado um
esquadrão para te pegar.
— Mas não mandaste.
— Sim, não mandei! — Murmura me encarando com um olhar
frio. — Queria ver até onde tu irias.
— Precisava olhar nos olhos do meu ex melhor amigoantes de
fazê-lopagar. — Mirom solta uma gargalhada, encarando o chão de
cascalho.
— Tu és muito... — Ele balança a cabeça.
— Estúpido? — Completo.
— Sim, mas o pior é se fazer de inocente. — Mirom passa as
mãos em seu rosto. — Caralho, tu se vitimizas, não?
— Eu recebi seus recados.
— Ótimo... pelo visto se saiu bem! — Afirma com sarcasmo.
Umedeço meus lábios, controlando minha raiva.
— Por que fizesteisso? — Mirom me encara por alguns
segundos sem dizer nada, então dá dois passos em minha direção
com um olhar duro. Não me movo um centímetro.
— Sinto nojode ti. Sempre foi o bonzinho, se sacrificando por
sua família, sempre sorrindo... — Revela com os dentes cerrados.
— Tu podias voltar depois de um dia sem ganhar nada com as
vendas do caralho das rosas, mas sempre estavas com um sorriso
na droga do rosto, olhar agradecido... porra, eu mereciasser assim
que nem você e só recebia surras do meu pai. — Mirom bate em
meu ombro, me empurrando. — O que tu tinhas que eu não
merecia?
— Eu sempre tive você ao meu lado, quando tu caíste eu
estava lá para te puxar. — Ele solta uma risada gélida.
— Não eras suficientepara tirar o que sentia por ti! Meu pai lhe
amava, apenas você, e eu? Hum? Me diga! Como eu ficava vendo
meu pai te tratando como filho? Por que eu ficavacom a pior versão
daquele homem?
— Por isso me mandaste para a cadeia? — Mirom arqueia
uma sobrancelha e gargalha baixinho.
— Tu foste porque és um assassino, um psicopata que
acredita ser inocente. — Ele inspira fundo, se afastando de mim. —
Mas uma coisa não vou negar. — Mirom recosta no jipe, penteando
seus cabelos para trás. — Foi delicioso ver meu pai sucumbindo à
doença que o levou à morte.
— Kostyantyn era seu pai, não falesdessa forma.
— Ele era muito mais seu pai, do que o meu. Ele nunca me
tratou como um filho, mas sim como um peso em seus ombros. —
Esfrego meu rosto, afastando o ódio que sinto dele.
— O que eu te fiz no final das contas? — Pergunto,
exasperado e cansado.
Mirom sorri mais uma vez, sempre com um sorriso frio e olhos
cruéis capazes de cometer qualquer monstruosidade.
— Tu exististe ! — Tensão aumenta entre nós. — Eu só estava
esperando tu me encontrar e acertarmos nossas pendências,
porque a partir de agora começarei uma caçada para te pôr de volta
onde nunca deveriaster saído.
— Estou preparado. — Desafio,Mirom volta a se aproximar de
mim.
— É bom que esteja, porque farei da sua vida um inferno... —
Dessa vez sou eu que sorrio.
— O inferno não me assusta mais, estou lá há muitos anos
vivendo o que tu não suportariaspassar por um segundo. — Seguro
seu ombro esquerdo. — E quando eu fizercada um de vocês pagar,
poderei saborear minha vitória. — Mirom tira minha mão do seu
ombro de forma brusca.
— Tu não sabes com quem está lidando...
— Sei perfeitamente quem tu és. — Me afasto, andando de
costa em direção ao carro. — Sua ficha pode estar limpa, mas não
quer dizer que não encontrarei nada. Irei espalhar cada merda sua e
encontrar o culpado que me colocou naquele lugar.
— Tu és uma pedra em meu caminho, sempre foi...
— Cuidado, Mirom! — Sorrio e abro a porta. — Essa pedra
pode ser a mesma que te fará cair.
— Tu se achas, não é? — Pergunta alterado. — Só porque
conseguiste fugir da cadeiaachas que é um herói.
— Um herói? — Olho para ele com ironia. — Não existe heróis
na minha história.
— Odeio sua confiança. — Ele range os dentes com fúria. —
Não és porque tu estás andando com um bando de gangsters que tu
serás melhor, lembre-se, tu és um assassino fracassado...
— Certo! — Solto uma risada calma. — Um fracassado que te
coloca medo? Cuidado para não cair sozinho, irmão! — Mirom
rosna.
— Eu sei onde te encontrar, por ondes andas e com quem
estás metido, posso fazer todos caírem antes de ti. — Assinto,
acreditando nele, mas sem me importar porque assim consigo
desestruturá-lo. — Se tu queres guerra, é o que terás!
— Quero a verdade. — Fito mais uma vez seus olhos
perturbados. — E se para isso terei que enfrentar uma guerra, bom,
vamos lá, porque tu não enfrentarás aquele garoto que tu sentias
inveja. Posso ser ruim, Mirom, mas posso ser muito pior se assim
desejas.
Pisco um olho de modo sarcástico, entrando no carro já que o
deixei sem palavras, ou melhor, furioso.
— Sei do seu ponto fraco. — Congelo, segurando a porta com
força. — Oh, como ela é linda! Olhos azuis, lábios carnudos... ah,
que corpo aquela cadela tem! — Fecho meus olhos, controlando a
fúria que me estremece.
— Não faço ideia de quem seja... — Me calo quando Mirom
gargalha alto.
— O que farás se eu a tomar para mim? — Viro meu rosto em
sua direção, encarando-o mortalmente.
— Não ouse se aproximar dela. — Aviso, me segurando.
Mirom sorri em vitória ao ver que conseguiu me abalar.
— Eu investiguei a vida dela... uma pena, não? — Me afasto
do carro e ando a passos lentos em sua direção. — Encontrei uma
ficha de desaparecimento, parece que seus pais a deram como
desaparecida... oh, não está, certo? Já que escondes um assassino
em sua casa!
— Não se meta com ela, porque se tu tocares um dedo
naquela mulher, eu te farei sentir a pior dor que um ser humano
podes sentir.
— Tu achas que ela se apaixonará por um bosta como você?
— Ele se aproxima, quase encostando o rosto no meu. — Eu sou
melhor que tu, Laura nunca ficará com você e sim comigo. — Ranjo
os dentes. — Vamos lá, seja realista.
— Estou sendo, Mirom, tão realista que poderia acabar contigo
nesse exato momento, mas não fareiisso, porque seria fácil demais.
— Recuo um passo. — Fique longe dela! — Viro de costas,
voltando para o carro.
— James... — Paro de uma vez. — O que ele fará ao descobrir
que sua enteada está vivendo tranquilamente enquanto acham que
ela está... — Ele se cala quando giro de uma vez, sacando uma
pistola das costas e apontando em sua cabeça.
Seu sorriso desaparece.
A fúria dentro de mim explode.
— O que tu disseste? — Mirom me encara nos olhos, estou
prestes a perder a calma.
— James é o pai dela, merece saber que sua filhinha está
viva... — Me aproximo, encostando a arma na sua testa, ele ergue
as mãos em rendição.
— Vou acreditar que seja apenas um blefeseu. — Mirom solta
uma gargalhada.
— Estás com medo de perder sua cadela? — Ranjo os dentes.
— Eu o trouxe!
— O quê? — Mirom comprime os lábios e dá de ombros.
— É isso que tu acabaste de ouvir.
A pistola na minha mão estremece ao mesmo tempo que
minha mente explode de raiva. Empurro-o e acerto sua testa com
uma coronhada, Mirom grunhe de dor e surpresa, dando vários
passos para trás. Quando levanta a cabeça, acerto meu punho em
seu maxilar, derrubando-o no chão.
— Tu mereces a pior de todas as torturas. — Rosno,
colocando a ponta da arma em sua boca e prensando meu joelho
em seu peito. — Um dos teus erros foi me subestimar, achar que
sou aquele garoto que tu mandaste torturar da pior forma,mas sabe
o que aconteceu com Joraslov, aquele que tu pagaste? — Empurro
a pistola contra seus dentes, seu olhar se prende ao meu, uma
mistura de ódio e surpresa. — Cortei sua garganta, assim como
todos que tu mandaste ir atrás de mim com o dinheiro do seguro do
seu pai.
Me levanto, puxando-o para cima pelo colarinho. Mirom
apenas me encara com assombro. Sangue escorre por sua testa
devido ao rasgo que causei. Sua respiração acelerada me diz que
está se segurando.
Ele quer que eu faça isso.
Mirom quer que eu o ataque.
— Sabia... — Murmura quando encosto a arma em baixo do
seu queixo, calando-o e fazendo-o inclinar a cabeça para trás.
Fecho minha mão em torno do seu pescoço, no ponto ideal de
fazê-lo sucumbir a escuridão.
— Não mecha com um monstro quando tu não aguentas as
consequências.
— Aperta o gatilho. — Rosna. — Vai, o que tu estás
esperando?
— Te matar com uma bala seria fácil demais.
— Mas tu mataste várias mulheres e não tens coragem de
apertar o gatilho? — Ele sorri.
— Fique longe de Laura, se eu ver tu se esgueirando perto
dela, não irei me segurar, vou contra tudo o que acredito e dos meus
princípios para fazê-lo sofrer
.
— Princípios? — Mirom ri, se engasgando quando empurro
mais a arma e aperto sua garganta. — Vou te mandar para o
inferno, seu merda!
— O inferno faz parte de mim, é o meu mundo. — Digo,
descendo a arma e prensando-a em seu peito, louco... sedento por
sangue.
— Vou tirar tudo o que lhe resta! — Cospe as palavras com
fúria, mas nada me abala. — Cuidado, Ruslan, sua pequena flor
poderá ser deportada a qualquer momento, tenho poder para isso. A
enviarei de volta para casa... para James...
Coloco a arma em seu ombro, ficandocego com suas palavras
que usa para me atacar. Nunca permitirei que aquele desgraçado a
tenha de volta, não vivo. Minha mão estremece só de imaginá-lo a
tocan...
Cacete!
Fecho meus olhos para me controlar e não fazer besteira.
— Se despeça de seus olhos azuis... — Abro os olhos,
notando o brilho de satisfação, se ele está falando a verdade ou
não, não faço ideia. — James estás chegando, paguei sua
passagem...
— O que você fez?
— Apenas o certo... — Aperto o gatilho, Mirom solta um grito
ensurdecedor de dor quando a bala ultrapassa sua pele, espirrando
sangue no meu rosto. — Seu desgraçado...
Ele grunhe, se contorcendo de dor. Seguro seu pescoço com
mais força, seus olhos se prendem nos meus. Afastoa arma suja de
sangue do seu ombro e a coloco em sua boca.
— Não tenho nada a perder se eu impregnar uma bala no seu
cérebro. — Rosno baixinho. — Tu és um fracote que só tem lábia,
eu sou o demônio que buscará sua alma de forma calma e
calculada. — Me inclino, chegando perto do seu ouvido. — Fique
longe da Laura!
Limpo o cano da pistola em sua farda, sustentando seu olhar.
Me afasto, deixando-o cair no chão. Mirom rosna de dor, levando a
outra mão ao seu ombro que jorra sangue. Guardo a pistola nas
costas.
— Recomendo que tu vás ao hospital, porque essa bala irá
fazê-lo sangrar até morrer. — Aviso, voltando para o carro com um
gostinho de satisfação.
Mirom não é nada do que imaginei, mas não deixarei com que
isso me deixe baixar a guarda, porque mais uma vez, ele pode estar
jogando comigo, fazendo-me acreditar que ele é um fraco.
Ele não revidou.
Apenas me provocou até eu perder a cabeça...
Mirom estava apenas me estudando, vendo até onde sou
capaz de ir.
Uma guerra começou... e não há vencedor.
Arranco com o carro e me perco nos pensamentos em todo o
caminho em direção à casa de Laura. Preciso descobrir se Mirom
estava falando a verdade em relação ao James.
E se fora verdade, Laura estará em perigo e eu sou o culpado.
Não posso suportar vê-la destruída novamente. Preciso protegê-la
nem que seja com a minha própria vida.
Ao chegar no apartamento, paro em frente à porta e coloco a
mão sobre ela, controlando a respiração. Limpo meu rosto com o
casaco e inspiro fundo antes de abrir a porta e entrar.
Procuro por ela. Laura ergue a cabeça e um pouco atrapalha
pega o gravador e o desliga. Seus olhos assustados me deixam em
alerta, analiso-a louco para pegá-la nos meus braços e sentir seu
calor em um conforto que tanto almejo.
Fecho a porta atrás de mim, trancando-a com cuidado. Laura
continua me olhando, fazendo meu corpo reagir à sua presença.
Retiro meus coturnos e caminho ao banheiro sem trocar nenhuma
palavra.
Estou excitado... mordo meu lábio inferior, retiro minhas roupas
e me enfio debaixo da água fervente. Coloco as mãos na parede e
abaixo a cabeça, controlando minha mente e o desejo ardente que
me queima por dentro.
Estou a ponto de explodir!
Ergo a cabeça, inclinando para trás, deixando a pressão da
água lavar o sangue, meus medos e o ódio que sinto.
— Cacete! — Murmuro, encostando a testa na parede,
buscando algo que possa fazer para aliviar a pressão que sinto
dentro do meu ser.
Desligo o chuveiro e passo a mão pelo espelho, tirando vapor
que impregna e se espalha como névoa pelo banheiro. Encaro
meus olhos, recordando de cada palavra de Mirom, da ameaça
direcionada a Laura.
Ele está certo... ela é meu ponto fraco, se tornou o centro do
meu mundo, aquela que ultrapassou minha frieza e me deu motivos
para lutar.
Quero arrancar toda dor de dentro dela, trazer de volta seu
sorriso e mostrar-lhe como é ser amada por um homem.
Fecho meus olhos, não conseguindo mais aguentar. O
desejo... é maior do que posso segurar.
Visto um short e uma camisa que já se encontrava aqui e saio
do banheiro. Rony me encara em cima do seu brinquedo, sorrio
para ele que tem uma expressão feliz no rosto. Procuro por Laura e
a encontro na pia, lavando um copo distraída.
Me aproximo lentamente.
Ela enrijece quando sente minha presença atrás dela. Não
posso perdê-la... quero essa mulher como nunca quis qualquer
outra, mas não sei se o que farei em seguida será o certo. Só que
meus instintos... Inspiro fundo quando meus olhos percorrerem seu
corpo coberto pelo pijama do Coragem.
— Como foste seu dia? — Minha voz sai rouca, reparo no
estremecer do seu corpo.
— Foi tranquilo. — Responde, desligando a torneira e
sustentando as mãos na pia. — E o seu?
— Não foi agradável... — Murmuro segurando sua cintura, ela
sobressalta de leve ao sentir meu toque. Escorrego minhas mãos
até sua barriga e a trago para mais perto. — Tu já foste tocada por
um homem atraído por você, Laura?
Afastoos cabelos do seu ombro. Fecho meus olhos inspirando
seu cheiro, roçando meu nariz em seu pescoço. Ela está imóvel com
a respiração acelerada e cortante.
— Tu és tudo o que preciso nesse momento...
— Ruslan... — Sussurra com a voz falha, Laura prende a
respiração ao sentir meus lábios contra sua pele.
— Eu estou sendo imprudente, ultrapassando o que tu
construíste, mas quero quebrar todas as paredes que me afasta de
ti. — Espalmo minha mão em sua barriga e com a outra subo até
segurar seu rosto. — Te quero, Laura... — Murmuro em seu ouvido,
ela encolhe seus ombros.
Seguro sua cintura fina de novo e a giro, virando-a para mim.
Suas bochechas estão coradas e seus olhos espantados, não de
uma maneira ruim, mas de luxúria... de algo que jamais sentiu
antes.
Entrelaço meus dedos nos cabelos da sua nuca. Laura inspira
fundo sem conseguir dizer nada. Puxo de leve seus cabelos,
inclinando sua cabeça para trás e colando seu corpo no meu,
fazendo-a sentir o calor que sai de mim que irradia por ela.
— Feche os olhos, pequena flor... — Ela abre a boca para
contestar, mas se cala quando roço meus lábios nos seus.
— O... que-e... está fazendo? — Cochicha, fechando os olhos
sem conseguir mantê-los abertos, sentindo-me acariciar seu rosto
com meus lábios e nariz.
— Permita-se experimentar...
— Experimentar... o quê? — Sorrio, encostando minha testa na
sua, posso sentir sua respiração se misturando com a minha.
— Isso... — Digo, capturando seus lábios, Laura fica
paralisada.
Espero um momento para que perceba o que está
acontecendo e aprofundo o beijo ao senti-la suspirar, relaxar e
permitir sentir a sensação inebriante de uma paixão que espalha por
cada toque meu.
Sinto algo estourar dentro de mim, uma emoção que jamais
vivi. Já beijei e transei com algumas mulheres na prisão, mas todas
elas tinham a intensão de levar drogas para dentro, fazer sexo era
um bônus... uma distração sem sentimentos.
Então posso afirmar que nunca beijei uma mulher que
adorasse.
Solto um gemido, me controlando para não a devorar de forma
brusca, evitando assustá-la com meu jeito possessivo. Desço
minhas mãos por seu pescoço, mordendo seu lábio sem desfazer o
beijo ardente.
Ergo seus braços e os contorno em volta do meu pescoço.
Desço minhas mãos lentamente por seu corpo, agarro sua cintura e
a sento na pia.
Seus braços ficam mais firmes e me encaixo entre suas
pernas, saboreando seus lábios, conhecendo seu sabor e sentindo
sua pele, seu calor e perfume que a cada segundo me deixa mais
louco.
Envolvo seu rosto nas mãos, impedindo-me de tocar meu
membro nela. Mordo seu lábio, o puxando com meus dentes e
quebrando o beijo. Laura continua com os olhos fechados e com
uma respiração acelerada, assimilando o que acabou de acontecer.
Suas mãos entrelaçam meus cabelos, sua língua passa por
seus lábios fazendo meu membro pulsar.
— Estás bem? — Sussurro, Laura abre os olhos e me encara.
— Eu... eu... — Ela engole seco, desviando o olhar, seguro seu
queixo e volto a morder seus lábios.
— Não tema, pequena flor. — Falo, beijando seu pescoço e
me encostando nela lentamente.
— Ruslan... acho que... acho que... — Ela me empurra,
pulando da pia e se afastando apavorada, arrumando seus cabelos
desgrenhados. — Vamos assistir a um desenho comigo?
Sorrio ao ver que mesmo que esteja assustada com o novo,
ela me quer por perto.
— Claro... — Quando Laura se vira, agarro-a pelo braço, a
empurrando contra mim e capturando seus lábios com um beijo
feroz e intenso.
Laura retribui me deixando alucinado de desejo. Encosto-a na
parede, prensando meu corpo no seu, segurando sua nuca e com a
outra seguro mais firme sua cintura.
Meus batimentos aceleram a ponto de não conseguir mais
respirar. Quero-a mais do que tudo o que já desejei. Quero Laura na
cama, sem roupa... cacete!
Me afasto, arfando.
Estou a assustando...
Levanto meu olhar me prendendo no dela que está brilhante e
surpreso. Seus lábios inchados e bochechas coradas me deixam
maluco. Não faço ideia do que se passa em sua mente, mas eu a
queria... ah como eu a queria agora!
Só que não posso...
— Perdoe-me por querer tomá-la dessa forma... eu... eu...
preciso respirar!
Me afasto bruscamente, escondendo minha ereção que pulsa
excitado. Engulo em seco e caminho até a porta.
— Ruslan? — Laura me chama, fecho meus olhos com força,
querendo gritar um “foda-se” e voltar para ela... transar com ela...
amá-la a noite inteira... senti-la em meu ser.
— Prepare algo para comermos, preciso apenas... tomar um
ar.
Saio apressado, fechando a porta atrás de mim e a deixando
sozinha. Eu sei que é errado abandoná-la dessa forma, confusa e
sem compreender o que aconteceu, mas... não consigo ficar diante
dela se eu não me acalmar.
Encosto na parede do beco mais próximo e me agacho,
enterrando meu rosto entre as mãos sem conseguir esquecer a
sensação dos seus lábios no meu, do seu corpo colado ao meu...
De repente, começo a gargalhar por me sentir vivo de novo.
Meu coração pulsa com intensidade me dizendo que sou capaz de
amar, que não estou completamente estragado... que não estou
morto.
Estou vivo!!!
Escuto passos e olho para o lado, alarmado. Kliment para um
pouco distante com uma expressão ilegível. Me levanto e inspiro
fundo.
— O que manda, patrão? — Pergunta, colocando as mãos no
bolso.
— Tu sabes o que deves fazer. — Repasso as informações,
ele assente. — Hora de ver Artem cair no seu próprio mundo. —
Kliment retribui um sorriso de satisfação e vai embora, misturando-
se com o breu do beco.
Passo a mão pelo rosto, inspiro fundo mais uma vez antes de
voltar para dentro me sentindo mais calmo. Só espero conseguir me
segurar e não a pegar nos meus braços outra vez.
Paralisada contra a parede, encaro a porta sem conseguir
assimilar o que acabou de acontecer. Meus lábios formigam por ter
sido beijada pela primeira vez por um homem.
Minha mente grita desesperada, uma luta com meus demônios
que insistem em permanecer. A sensação de suas mãos ainda está
presente por cada parte do meu corpo onde foi tocado. O carinho
misturado com desejo me fez sentir... viva!
Levo meus dedos aos lábios recordando da forma penetrante
em que me olhava, da sua respiração se misturando com a minha e
do seu cheiro que me deixou inebriada e sem reação.
Nunca pensei que seria capaz de permitir que alguém
ultrapassasse esse limite que coloquei. Acreditei que nunca
aconteceria comigo pelo fatode ser tão quebrada a ponto de afastar
qualquer homem que queira um relacionamento, porque eles
desejam mulheres completas e não aquelas que faltam pedaços.
Só que Ruslan é diferente, ele nada contra a maré em um
desafio que o deixa com sede de vitória. Quanto mais ele nada,
mais consegue ter acesso ao meu coração.
Lágrimas escorrem por meu rosto quando a emoção me abate.
Pensei que vivenciaria esse momento apenas em filmes ou em
livros. Pressupus que jamais seria adorada com tamanho carinho,
que nunca despertaria o amor de alguém ao ponto de fazê-lo lutar
por mim.
Mas tudo é demais dentro de mim, não sei se é certo Ruslan
ter me beijado ou é errado eu ter gostado. Minhas mãos começam a
tremer e tudo de bom vai desaparecendo quando sua voz volta a me
atormentar.
“Ninguém vai te amar... você é asquerosa, só sabe dar nojo
nas pessoas...”
Será que Ruslan sentiu nojo de... mim?
Arfo, balançando a cabeça de um lado para o outro. Será que
James tem razão? Será que sou tão asquerosa a ponto de nunca
ser amada?
— Ninguém vai me amar... — Murmuro, me abraçando e
contendo o choro e a vontade de me arranhar. — Sou asquerosa,
por isso que Ruslan saiu... ele... ele sentiu nojo!
Olho para meus braços, querendo me cortar, me lavar e me
rasgar por ser a culpada por tudo isso.
“É tudo culpa sua... por isso que faço isso, para te punir
...”
— Sai da minha cabeça! — Falo, batendo a palma da mão na
têmpora, fazendo com que a voz de James saia e se cale para
sempre.
Estou cansada... tão cansada...
Não quero viver assim para sempre, quero ser feliz como uma
pessoa normal, mas por que meu passado não me deixa? O que eu
fiz de errado para merecer tudo isso?
Solto um soluço prestes a mergulhar na escuridão. Vou até a
mesa, apanho meu celular, disco seu número e me tranco no
banheiro.
— Laura? — A voz de Olesya é a partida para a liberação do
meu choro. — Estou aqui. Estou te ouvindo!
— Olesya... — Sento-me no chão em prantos. — Eu... eu
quero tanto ser feliz. — Conto entre soluços e lágrimas. — Quando
acho que finalmenteconsegui, tudo despenca de novo. O que eu fiz,
Olesya? O que eu fiz para merecer tudo o que aconteceu comigo?
Por que não posso ser feliz? Por que James fez isso comigo? Por
que...
Encolho minhas pernas, chorando com tanta intensidade que o
ar é sugado dos meus pulmões. Começo a tossir sem parar em uma
busca para respirar.
Morrer talvez seria a melhor solução?
— Não tenho todas as respostas que tu necessitas,porque às
vezes, precisamos passar por uma longa tempestade para encontrar
o significado
da vida.— Diz, com a voz tão calma e doce que meu
coração começa a se acalmar. — Acreditoque tudo na vidatem um
propósito da qual não sabemos até a hora certa.
— Estou tão cansada... — sussurro, encostando a testa nos
joelhos. — Cansada de me sentir sozinha, de não poder ser tocada
sem entrar em crise, de James na minha mente... eu às vezes sinto
que foi culpa minha, eu deveria ter feito algo antes...
— Tu fizes
te, olha só aonde tu estás! — Fala com confiança.
— Tu és a mulher mais forte que eu conheço. Uma guerreira que
lutauma guerra interiormaisdifícil
que um ser humano é capaz de
suportar.
— Estou me perdendo...
— Não, pequena flor , tu estás vencendo. — Fecho os olhos
com força, permitindo que lágrimas de dor escorram por meu rosto.
— Olesya?
— Sim?
— Ruslan me beijou e... eu deixei. — Ouço ela arfar e por
longos segundos, Olesya não diz nada.
— Ele te beijou!?
— Pergunta com incredulidade.
— Não sei o que pensar... foibom... bom não, maravilhoso. Foi
como estar flutuandonas nuvens... como se tudo fizessesentido, se
encaixando da melhor forma possível. — Umedeço meus lábios. —
Ruslan me tocou... ele me segurou... suas mãos em mim... não sei
se está certo, estou confusa.
— Estou surpresa. — Revela, posso até imaginá-la com olhos
arregalados. — Tu retribuíste o beijo?
— Exato! — Confirmo. — Eu toquei em seu pescoço, foi... foi
surreal! — Digo, deslumbrada com a sensação que estou sentindo.
— O beijoé mágico, une dois mundos e duas vidas se
tornando uma só. — Olesya suspira do outro lado da linha. — Estou
admirada, Laura. Admirada não, estou emocionada!
— Por quê? — Pergunto confusa, levantando a cabeça.
— Por tu estar permitindosuperar. Vocês doissão as pessoas
que mais merecem ser felizesnesse mundo. Duas almas
injustiçadas,quebradas, lapidadas ao sofrimento, mas que
encontraram um no outro motivos para vencer. — Inspiro,
segurando o choro. — Mas o que me deixamais emocionadaé o
fato de um estar fazendoo outro acordar de um sono interminável.
Não digo por causa do que sentem, mas sim, porque juntos estão
ultrapassando barreiras, explorando o limite e se permitindo reviver
.
Estico minhas pernas, uma pequena fisgada de dor me faz
lembrar que meu tornozelo ainda está debilitado.
— Ruslan saiu apressado sem dizer nada. — Revelo com a
mente bagunçada. — Será que ele sentiu nojo de mim? Nojo de ter
me tocado?
— Jamais!— Olesya diz com confiança. — É tudo novo para
vocês. O sentimentoque cresce dentro de seus corações depoisde
tanto sofrimentoé algo intenso que vira desconforto e confusão.
Ruslané tão quebrado quanto você, Laura, é tudo muitonovo para
ambos.
— Então ele não...
— Ruslan te adora, vejo isso na forma que ele te olha. —
Conta, me fazendo imaginá-la sorrindo. — Só não posso te
prometer que nunca irá sofrer. — Meu peito aperta com sua
declaração.
— Não quero mais sofrer, Olesya!
— Quando entregamos nosso coração à outra pessoa,
estamos fadados ao sofrimento. Se apaixonar e amar não é fácil,
mas podemos lidar , é como um quebra cabeça infinito
que requer
muita dedicação. Alguns amores duram para sempre, outros são
passageiros e muitos acabam.
— O que eu faço? — Olesya fica calada até eu pensar que
talvez a ligação tenha caído.
— Permita-se ser amada pela primeiravez. Adorada por um
homem da maneira certa. Explorada com carinho e admiração.
Permita-sesofrer por amor, sinta a intensidadeda paixão navegar
por suas veias.Porque só assimtu saberás se valea pena ou não.
E se não der certo? Bom, a gente começa de novo. — Respiro
fundo, absorvendo todas as suas palavras.
— Obrigada...
— Sou sua terapeuta, mas além de tudo, sou a pessoa que
mais torce para te ver feliz.
— Uma amiga? — Olesya ri de leve.
— Amiga e terapeuta!
— Laura? — Sobressalto quando Ruslan bate na porta, prendo
a respiração quando meu coração dispara.
— Permita-se florescer, pequena flor . — Olesya diz. —
Qualquer coisa me liga, estou à sua disposição
.
— Gratidão por tudo!
— Tchau, Laura. — Se despede antes de finalizar a ligação.
— Laura, estás tudo bem? — Ruslan volta a perguntar com um
tom preocupado.
— Sim, estou bem! Já estou saindo.
— Certo, te espero na cozinha.
Levanto-me e ligo a torneira, lavando meu rosto encharcado de
lágrimas. Com uma toalha úmida, tento amenizar a vermelhidão que
meu rosto adquiriu por causa do choro. Dez minutos depois, saio do
banheiro. Um frio no pé da barriga faz-me encolher .
Ruslan está de costas para mim enquanto lava alguns
legumes, fazendo-melembrar de quando contornou seus braços por
minha cintura, acariciando meu pescoço com seus lábios.
— Farei Borsch[5] para nós. — Diz ao me aproximar. — Tu
gostas?
— Sim. — Olho para a tela do meu tablet onde está exposto a
receita. — Você gosta de cozinhar, né?
— Um dos prazeres da vida. — Responde, começando a
cortar em cubos o bacon. — Sinto-me relaxado.
— Eu também gosto, mas prefiro comer. — Ruslan me olha
por cima do ombro, sorrindo.
Ele deixa de lado a carne e vai até o liquidificador, colocando
uma bebida vermelha em um copo e estendendo para mim.
— Preparei um Kompot[6] para ti, espero que goste. —
Agradeço e dou um gole, sentindo o sabor de várias frutas
misturadas como maçã, damasco e pera, com um leve toque de mel
e canela.
— Você está pronto para se tornar um chefe. — Ruslan sorri
com os olhos brilhando.
Abaixo a cabeça um pouco envergonhada pela forma que me
olha. A cor dos seus olhos me instiga a ficar encarando-os sem
desviar, como se algo me puxasse para eles, como imã.
— Só se for para ti — diz, um arrepio percorre meu corpo. —
Se tu quiseresposso cozinhar apenas para ti. — Levanto a cabeça,
notando de repente que está muito mais perto de mim.
Prendo a respiração ao reparar seus olhos caírem em meus
lábios, meu coração acelera com a possibilidade dele me beijar
novamente. Sinto uma força me puxar em sua direção, querendo
que avance ao mesmo tempo que minha teimosia diz que é melhor
ele não se aproximar demais.
Na verdade, eu preciso fazer isso, me desafiar e permitir que
minha história mude e molde meu futuro sem dor e traumas, mas
além de tudo, quero sentir a sensação de ser beijada. Mas a única
coisa que faço é abaixar a cabeça, porque eu não consigo me
mexer, estou em um conflito absurdo do que devo ou não devo
fazer.
Eu queria tanto...
Sobressalto ao sentir Ruslan virar meu rosto em sua direção e
o erguer para que eu possa encarar seus olhos que me fitam com
admiração e muitos outros sentimentos que não faço ideia do que
sejam.
Ele se aproxima lentamente, aperto o copo que ainda seguro e
fecho meus olhos tentando me manter no controle, tentando
controlar as batidas do meu coração.
Ruslan roça seus lábios nos meus em uma carícia que faz
minha pele formigar. Meu estômago parece ter um monte de
borboletas batendo asas, e quando ele aprofundao beijo ao permitir
que avance, eu simplesmente perco a capacidade de me controlar.
O copo escorrega das minhas mãos fazendo um baque ao
colidir no chão, mas não me importo. Contorno meus braços em
torno do seu pescoço, inebriada pelo gosto de frutas que ele tem.
Suas mãos apertam minha cintura me levando para mais perto dele,
que tende a eliminar qualquer espaço que nos separa.
Ele quer mais de mim e eu... dele.
Sinto algo querer me levar para as profundezas, da voz
daquele que um dia fez com que eu acreditasse que nunca seria
amada, dizendo que eu despertava o nojo nas pessoas. Quantas
vezes acreditei em suas palavras... quantas vezes me condenei por
terem me tocado...
Lágrimas escorrem por meu rosto fazendo Ruslan parar de
uma vez. Sinto seus ombros ficarem tensos, ele se afasta, olhando
para dentro de meus olhos como se fosse capaz de enxergar minha
alma.
Eu não sou uma pessoa limpa e ele precisa saber disso.
— Perdoe-me... — Fala angustiado, segurando meu rosto.
Balanço a cabeça, ele não tem culpa.
— É que... — Mordo meu lábio. — Ruslan, não sou uma
mulher pura, eu... eu... sou suja! — Digo aflita.
— Ei, o que é isso? — Pergunta com um tom indignado. —
Como podes dizer uma coisa dessas?
Abaixo a cabeça, encarando o copo que por incrível que
pareça se manteve intacto com a queda brusca.
— Eu tinha sete anos quando tudo começou... — As palavras
saem por minha boca, afasto suas mãos de mim e me abaixo,
sentando-me no chão. Ruslan faz a mesma coisa, só que se senta
do outro lado, de frente para mim. — Eu costumava ser uma
garotinha reclusa, minha mãe sempre dizia que eu era um bichodo
mato, e era verdade, de uma certa forma as pessoas me
assustavam, principalmente pelo tamanho. Sempre fui baixa, um
“cotoco de gente” como minha mãe se referia.
Pego o copo, segurando-o para me dar a coragem que
necessito para jogar tudo para fora, para que Ruslan entenda que
se me quiser, terá que conhecer meu passado manchado.
— Mamãe sempre cuidou muito bem de mim, dava tudo o que
uma criança poderia querer, até mesmo um pai que não tinha. —
Um nó se aloja na minha garganta. — No primeiro ano James foi
tudo o que eu mais queria. Atencioso, brincalhão e carinhoso,
fazíamospraticamente tudo o que pai e filha fazem. Acreditei em
cada palavra quando dizia que iria cuidar de mim para o resto da
vida. Ele sempre me exaltava, elogiava minha beleza e me dava
muita atenção. Eu sempre atraí olhares por causa dos meus olhos
azuis. Muitos diziam que eu parecia uma boneca, até que isso
começou a incomodar o James.
Ruslan se levanta e pega o copo do liquidificador, colocando
mais Kompot no meu copo sem dizer nada. Dou um gole e suspiro.
— Ele não queria que eu saísse mais com a desculpa de que
eu despertava o interesse nas pessoas, poderia ser perigoso para
mim. Até aí tudo bem, Ruslan, um pai ciumento que presa por sua
filha. Mas por trás desse cuidado havia um homem sujo.
Sinto meus olhos queimarem, dou mais um gole na bebida,
tomando fôlego para continuar.
— James começou fazer pedidos inusitados que até então
acreditei serem normais. Ele queria que eu sentasse em seu colo,
sempre que possível me acariciava de um modo diferente do
habitual, pedia para dormir ao seu lado quando mamãe saia para
trabalhar e a cada dia, mais em casa ele ficava. — Engulo em seco
quando meu peito aperta. — James queria me dar banho, dizendo
que não estava me banhando direito. Uma desculpa para me...
tocar.
Fecho os olhos com força, repousando a cabeça contra o
balcão, sentindo uma angústia no peito com a lembrança
repugnante.
— Todos os dias era um avanço, a carícia ficava mais ousada
e ele sempre pedia que não contasse à minha mãe, que era um
segredo nosso. — Ranjo meus dentes. — O pior é que eu... gostava
Ruslan! Céus eu gostava... — Comprimo um gemido.
Aguardo um momento para retomar as forças. Ruslan não fala
nada, apenas me escuta com atenção, nunca pensei que fosse tão
reconfortante tê-lo aqui comigo.
— Mas com o tempo isso começou a me incomodar. — Volto a
relatar meu passado. — Não queria mais que ele me desse banho
ou sentar em seu colo, porque sempre que sentava sentia algo entre
suas pernas se movimentar. Era esquisito, ficava assustada. Sabia
que o que estava fazendo não era certo. Algo dentro de mim tinha
certeza que era errado.
Abro os olhos e encaro o pouco de Kompot dentro do copo. O
vermelho me fez reviver os momentos que iniciaram meu pesadelo,
que me levaram a viver em um inferno.
— Então, um dia perguntei para minha mãe se homens podiam
tocar em mulheres. Seu olhar tinha um brilho estranho, até porque
eu era uma, e um pouco desconfortável, mamãe explicou que isso
pode acontecer, mas detalhou as formas certas. Foi naquele
momento que tive a certeza que o que James estava fazendo era
errado. Eu iria contar à minha mãe no instante daquela explicação,
mas James nos interrompeu. Ele escutou toda a nossa conversa.
Seu olhar... seu olhar me apavorou. Nunca o conheci, aquele James
que eu amava, era tudo mentira.
Tomo todo o resto da bebida e rodo o copo na minha mão,
perdida nas lembranças.
— Eu tinha dez anos, três anos depois dele ter entrado em
nossas vidas e feito acreditar que me amava como pai que tudo
ruiu. Eu não o permitia mais me tocar e nem me dar banhos. Mesmo
criança percebi que o tinha que evitar, que não era certo o que vinha
fazendo.
Encolho minhas pernas e faço o copo rolar em direção a
Ruslan, que o pega.
— O evitei o máximo que pude, só que foi o ponto crucial para
despertar o monstro pedófilo dentro dele. — Engulo a bile, sentindo
repulsa, me encolho com a recordação. — James ficou irritado,
então em uma noite ele entrou bêbado em meu quarto e... —
Comprimo meu corpo, lembrando nitidamente de tudo o que me fez.
— Ruslan... doeu tanto, mais tanto que pensei que não fosse
suportar. Ainda sinto suas mãos pressionando minha cabeça contra
o colchão enquanto cometia o ato. Quanto mais eu gritava, com
mais força ele fazia. Quanto mais eu chorava, mais prazer ele
sentia.
Solto um gemido enojado, passando as unhas no meu braço
enquanto mantenho meus olhos fechados, preso nesse dia.
— Acreditei que nunca iria parar. Parecia que estava me
rasgando, sentia tanto ódio de mim por não ter conseguido sair de
suas mãos ao mesmo tempo que desejava morrer...
Assusto quando as mãos de Ruslan me tocam. Abro os olhos,
encarando os seus cheios de aflição e dor. Encaro meus braços
com os arranhões das minhas unhas.
— Quando ele terminou, disse-me que mataria minha mãe se
eu contasse. Fiquei um tempo imóvel sem conseguir me mover. A
dor era intensa e quando fui me lavar... eu não parava de sangrar...
— Minha voz falha, balanço a cabeça segurando o choro de dor e
humilhação. — Minha mãe tinha viajado nesse dia para visitar um
cliente muito rico, porque além de ser uma prostituta e deixar claro
isso para mim, ela também era acompanhante de luxo. Eu não tinha
ninguém... estava sozinha dentro de casa com um monstro.
Levo as mãos ao meu rosto, limpando as lágrimas e sentindo
raiva.
— No outro dia James me pediu desculpas, mas nada poderia
apagar o que ele me fez, fui marcada para sempre. Eu tinha medo
dele, esse sentimento o excitava, o atraía de uma forma... doentia.
— Encaro os olhos de Ruslan, revoltada. — O que foi uma vez se
tornou duas, três, quatro... não parou mais. Eu tinha medo de
dormir, sabia que quando minha mãe fosse trabalhar, ele faria de
novo e de novo e de novo... — Engulo as lágrimas, fitando as mãos
de Ruslan.
— Tu nunca contaste à sua mãe? — Ele pergunta com a voz
embargada.
— James me ameaçava, eu tinha medo. — Umedeço meus
lábios. — Mas um dia, tomei coragem e disse que ele me
machucava, só que James sabia manipular as pessoas, minha mãe
não acreditou em mim. Eu senti tanta raiva, Ruslan... ela podia me
dar de tudo, mas o mais importante, ela me privou, que foi seu
carinho e atenção. Mamãe se afundou na bebida e começou a usar
drogas, estava difícilpara ela também. Ela sofria muito, mas eu era
sua filha, tinha que ser seu motivo de viver.
Balanço a cabeça sem acreditar que ela deixou que James
fizesse isso comigo. Se mamãe tivesse me ouvido naquela época...
— James sempre falava que eu despertava nojo nas pessoas,
começou a me afastar delas por medo de eu revelar alguma coisa.
Não podia ter amigos ou brincar com outras crianças, ele era
rigoroso e conformefuicrescendo, mais obsessivo James se tornou.
— E como parou aqui, na Ucrânia?
— Mamãe sempre prezou pelos meus estudos, dizendo que se
eu quisesse vencer na vida, seria através deles. Então me dedicava
com a esperança de encontrar uma saída.
Passo meus dedos na palma de sua mão, sentindo sua pele
que tanto reconforta.
— Quando completei quinze anos, decidi que mudaria para
outro país, o mais longe possível, um lugar que James não me
encontraria. Pesquisei vários e me apaixonei pela Rússia e Japão,
dois lugares rigorosos com pedófilos e que tinha pena perpétua e
pena de morte, se ele viesse atrás de mim, seria julgado
rigorosamente. Só que precisava aprender a língua. Quando pedi
para minha mãe, ela não hesitou em pagar meus estudos, desde
que isso não me prejudicasse na escola e não contasse ao James
por ele falar que é desnecessário, ela pagaria nem que para isso
tivesse que aumentar seus clientes.
Faço uma pausa e seguro seu dedo recordando do sorriso e
esforço da minha mãe. Ela fazia de tudo por mim, fui egoísta com
ela. Inspiro fundo sentindo meu coração em frangalhos.
— Estudei escondido o russo e o inglês, pensei que nunca
aprenderia por ser muito difícil.Eu chorava de desespero, mas
continuava, porque eu sabia que essa era minha única
oportunidade. Quase completando dezoito anos, tomei uma atitude
que poderia mudar a minha vida para sempre. Decidi denunciar
James, porque não aguentava mais. — Mordo meu lábio inferior,
sacudindo a cabeça. — Na primeira vez que compareci à delegacia,
fui tratada como um lixo, Ruslan. Eu disse que estava sofrendo
abuso dentro de casa, mas fui tratada com tanto descaso que
desisti, levantei e fui embora sem levar à frente a denúncia. Como
pessoas que trabalham nesse ramo podem ser tão frias? Como
podem tratar uma pessoa mal, quando o que mais precisa, é ser
ouvida? Para que denunciar, se desconfiamda gente? — Balanço a
cabeça de um lado para o outro, olhando-o com indignação.
Solto o ar abruptamente, sentindo ódio por essas pessoas que
fecharamas portas quando mais precisei, permitindo-me continuar a
sofrer por aquilo que não merecia.
— Apesar do que aconteceu, eu tentei voltar, fuium dia depois
da escola, porém no meio do caminho James me impediu. Seu olhar
insano foi a resposta de que pegaria muito mais pesado do que
vinha fazendo. Quando chegamos em casa, James me espancou,
só que ele era capaz de me machucar e não deixar marcas. Como
iria provar que me batia? Não tinha como! — Solto uma lufadade ar,
exausta. — Nesse dia ele acabou descobrindo que eu pretendia
fugir para o Japão depois de ter visto uma mensagem dizendo que
fui selecionada para o intercâmbio que me candidatei. James ficou
furioso a ponto de... — Fecho meus olhos sem conseguir dizer. —
Ele me torturou o dia inteiro como formade punição e me trancafiou
dentro de casa. Na frenteda minha mãe ele fingiaser o marido e pai
maravilhoso mesmo sendo sustentado por ela, fazendo com que eu
mentisse. Ela nunca desconfiou.
— Mas você conseguiu? — Ruslan aperta minha mão, me
dando a força que preciso.
— Além de me inscrever para ir para o Japão, eu também me
inscrevi em uma faculdade da Rússia para jornalismo, eu precisava
fazer uma prova, tinha que tirar uma nota acima do que seria capaz
de tirar. Só que eu precisava, era minha única chance de ganhar
essa bolsa integral. Então, fiz a prova escondido e sem pensar em
como viveria em um outro país sem dinheiro. No dia do meu
aniversário, recebi a carta de aceitação e que tinha passado em
terceiro lugar.
Inspiro fundo e expiro, lembrando do alívio que senti por ter
encontrado a carta antes de James.
— Como já tinha idade para tomar minhas próprias decisões,
consegui arrumar todos meus documentos, escondida de James.
Minha mãe também não fazia ideia, o dinheiro que me dava era
para os cursos pré-vestibular que eu dizia fazer. Ela estava radiante
por eu querer ir para a faculdade, mas mal sabia que um mês
depois eu a abandonaria sem nem olhar para trás, levando comigo
todo o dinheiro que juntou durante anos. Espero que um dia ela me
perdoe por isso.
Comprimo meus lábios, deixando mais lágrimas escorrerem.
Não faço ideia de como reagiu, eu era sua garotinha, mas James e
a bebida era mais importante para ela.
— Foram anos difíceis,ninguém entendia a minha repulsa de
ser tocada, de me excluir e não conversar com ninguém. Consegui
um trabalho em uma biblioteca onde eu me mantinha afastada das
pessoas. Em trabalhos de grupo da faculdade, eu fazia o essencial
sem me envolver com ninguém. Eu era um fantasmanos corredores
da faculdade, quebrada e sozinha, mas agradecida por ter
conseguido fugir. James continuou dentro da minha cabeça, mas
não podia mais me tocar e quando consegui um trabalho aqui na
Ucrânia, decidi que iria em busca de ajuda, não podia mais sofrer
sozinha com tudo o que me aconteceu, de algum jeito eu precisava
me curar de toda essa merda, e assim Olesya entrou em minha
vida. — Prendo a respiração por alguns segundos e fito os olhos de
Ruslan. — E aqui estou!
Ruslan ficame encarando, absorvendo tudo o que contei. Dois
mundos completamente diferente se colidindo como o Big Bang,
unindo duas almas solitárias.
— Tu já percebeste o quanto és uma mulher forte? — Diz,
quebrando o silêncio. — Olha só para tudo o que viveu e lutou
sozinha... olha tudo o que suportaste.
— Não sei se sou tão forte...
— Na vida, sempre teremos dias bons e dias ruins. Dias que
queremos apenas desaparecer, mas outros em que levantamos
prontos para lutar. Um dia ruim não a deixa mais fraca, e sim, mais
humana. — A convicção em sua voz penetra meu coração.
— Estou lhe dizendo isso, Ruslan, porque serei para sempre
marcada. Tem coisas que não se apagam... não se esquece...
— Quem ama a rosa suporta os espinhos, lembra? — Assinto,
Ruslan se aproxima mais de mim.
— Eu não sou completa... — murmuro, encarando-o através
das lágrimas.
— Eu te completo! — Fala, segurando meu rosto. — Se tu
estás quebrada, eu conserto. Se tu caíres, eu te levanto. — Ruslan
encosta a testa na minha. — Mas permita-se ser amada por mim, da
forma que merece...
Fecho meus olhos inebriada com seu cheiro, sentindo sua
respiração acariciar meus lábios. Quero poder ficarassim pelo resto
da vida, pois em seus braços tudo se cala... tudo se silencia como
se nada fossecapaz de me machucar enquanto estiver ao seu lado.
Envolvo meus braços em torno do seu pescoço, sinto-o
suspirar antes de me envolver em um abraço que jamais pensei
sentir.
Inspiro seu cheiro, sentindo seu coração batendo contra o
meu. Suas mãos em minhas costas, firmes e grandes, me dão a
certeza de que posso superar e deixar tudo no passado.
Eu já dei o primeiro passo e o segundo...
Permiti que ele me beijasse e chegasse em meu coração...
Deixei com que me abraçasse pela primeira vez...
— Tu queres o Borsch ainda? — Aperto meus lábios e assinto
sem querer me desgrudar dele.
— Sim, chefe!— Confirmocom diversão, seu corpo estremece
com sua risada. Ruslan me afasta para que eu possa o encarar.
— Muitas coisas que vivemos não pode ser apagado. Será
sempre um fantasma, mas cabe a você deixá-los aprisionados ou
libertos para te atormentar a vida toda. Tu vivesteno inferno, saíste
de lá sozinha... Tu tens o poder de escolher seu caminho, basta
querer sair da escuridão. — Ruslan enxuga minhas lágrimas com o
polegar. — A vida não acabou, Laura, ela ainda permanece, e ela
quer te acordar para lhe mostrar a beleza da felicidade, não se
esqueça disso.
— Não vou! — Cochicho, ele sorri, entrelaçando os dedos em
meus cabelos.
— Obrigado...
— Pelo quê? — Seus olhos brilham de uma forma diferente,
Ruslan umedece os lábios e inspira fundo.
— Por ter ido na prisão... — Fala me puxando em direção aos
seus lábios.
Abro os olhos de uma vez, assustada por ter sido arrancada
bruscamente de um pesadelo onde era perseguida por alguém que
se misturava com as sombras. Sua imagem parada, bloqueando a
única saída do beco, pisca em minha mente.
Inspiro fundo lembrando da faca em uma das mãos e uma rosa
na outra. “Toda rosa estragada deve ser eliminada...” Sua voz
ressoava através da chuva e do trovão, como sussurro beijando
meus ouvidos.
Sobressalto com o toque do celular que me arranca do torpor
do pesadelo. Viro de lado e me estico em direção ao criado mudo.
Tateio a mão trêmula até sentir a textura do celular, com os olhos
semicerrados pela forte luz que irradia da sua tela, leio o nome de
Andry no identificador.
Deixo meu corpo cair para trás, suspiro antes de atender.
— Alô? — Minha voz arranha a garganta.
Fecho os olhos com sono.
— Laura, necessitoque se arrume. — Informa Andry, agitado.
— O motorista que te envieiestás chegando na sua casa em
poucos minutos.
Abro os olhos, franzindo o cenho. Afasto o celular da orelha e
olho no relógio que marca 04:00 horas da manhã.
— Meu horário é às oito, Andry! — Questiono.
— Yaroslav já está a caminho. — Ele ignora meu
questionamento. — Quero que tu registres tudo, antes das oito
quero a reportagem pronta.
— Certo... hum... pode me explicar? — Impulsiono meu corpo
para frente, me sentando.
— Uma mulherfoiassassinadaesta noite,tudo indicaser mais
uma vítimade Ruslan Rotam. — Prendo a respiração quando
calafrios me percorrem e aloja em meu peito.
— Como?
— Tu não tens tempo. Se essa reportagem não estiverpronta
no tempo que lhe foiestipulado, Laura, não precisarásvoltarpara
AS. — Abro a boca para contestar, mas a linha fica muda.
— Babaca... — resmungo, não costumo xingar... aliás, nunca
uso palavras desse tipo, mas com Andry... quero colecionar
palavrões.
É impossívelRuslan ter matado essa mulher por ter passado o
tempo inteiro comigo.
Me levanto com cuidado para não forçar muito meu tornozelo.
Caminho em direção ao receptor, mas não acendo a luz, apenas
abro a porta com cuidado, sentindo sob meus pés descalço o friodo
piso de madeira.
Coloco as mãos na parede e espio Ruslan deitado com um
livro aberto repousado no seu peito nu. Rony está aninhado em seu
pescoço enquanto ambos dormem sob a luz da televisão e
sussurros do desenho animado em um sono profundo e tranquilo.
Suspiro. É a primeira vez que o vejo dormir tão em paz. Ando
até o banheiro e me arrumo sem fazer barulho. Trinta minutos
depois, junto minhas coisas e saio do apartamento sem que ele
acorde.
Como Andry informou, o motorista já estava me esperando ao
sair do prédio. Ao longo do caminho repasso todo o momento em
que me abri para Ruslan, sentindo um alíviotão grande que nem sei
explicar.
Mais um peso caindo sob meus pés.
Verifico minha câmera antes de descer do carro. Agradeço ao
motorista e encaro o aglomerado de policiais, paramédicos e a
perícia em volta da calçada. Uma faixa amarela circunda o lugar,
afastando os curiosos que perambulam pela madrugada.
Avisto Yaroslav vindo em minha direção com o rosto pálido.
— Uma merda tudo isso! — Afirma, assustado.
— Faz muito tempo que você chegou?
— Tens uns cinco minutos, mas não consegui me aproximar.
— Lhe entrego a câmera e aponto com o queixo para irmos.
— Precisamos de uma boa reportagem, ou então estou forada
AS.
— Andry te ameaçou também? — Ranjo os dentes de raiva.
— Ele soou sério.
— Fodido seja Andry! — Rosna com raiva. — Precisamos de
uma boa visão.
— Vamos nos esgueirar. — Digo, Yaroslav me fitapreocupado.
— Mas tu não...
— Não temos escolha, ou temos? — Olho de soslaio para ele
que nega com a cabeça.
— Não temos — resmunga, andando ao meu lado.
Paro em frente à uma parede de corpos, há alguns repórteres
querendo uma visão tão boa quanto a gente. Fico na ponta dos pés
em busca de um caminho que me leve para mais perto da cena do
crime.
— Laura!? — Congelo. — Estava esperando por ti! — Viro
para trás, encontrando com os olhos perspicazes de Artem.
Um sorriso estica em seus lábios moldados por uma beleza
que julgo ser injusta para uma pessoa de caráter vil.
— Oh meeeeerda.... — Yaroslav grunhe, olho para ele em
advertência.
— Você não costuma xingar tanto — ele enruga o nariz sem
contestar.
Volto minha atenção para Artem que vem ao nosso encontro
com sua farda policial, e com um sorriso largo, que me desperta
vontade de arrancá-lo jogando a câmera que Yaroslav segura em
sua cara.
— Acredito que foi arrancada de sua cama para estar aqui.
— É o meu trabalho.
— Um trabalho que requer cuidados, não? — Artem passa a
mão por sua barba por fazer. — Ainda mais quando bisbilhota a vida
alheia. — Ele me lança um olhar sombrio, troco o peso do meu
corpo para outra perna sem me abalar.
— Assim como você tem que lidar com suas merdas, eu tenho
que lidar com as que me resignam. — Artem sorri, desviando o
olhar.
— Me sigam, quero lhes mostrar algo interessante. — Seus
olhos se prendem em Yaroslav, tão indiferente que meu estômago
revira.
Artem passa por nós, outros policiais abrem caminho para ele
como se o próprio fosse um rei. Olho para meu colega que retribui
com um olhar aflito.
— Registre tudo — peço, ele assente.
Sigo-o sentindo olhares curiosos e cheios de perguntas dos
outros profissionais. Um policial ergue a faixa amarela, permitindo
nossa passagem.
Meus passos diminuem conforme me aproximo do corpo
estirado no chão, ensanguentado, perfurado e destroçado. Quem
quer que tenha feito isso, depositou toda sua raiva atacando-a
brutalmente.
Yaroslav resmunga ao meu lado sem conseguir tirar minha
atenção do que antes foi uma moça cheia de vida e sonhos.
Seu rosto tem uma expressão de horror, olhos arregalados,
apavorados. Sua garganta, peito e barriga foram perfurados no que
parecem ser mais de dez golpes de faca. Sob a poça de sangue se
encontra uma rosa vermelha.
Volto a encarar Artem que me observa fixamente.Um brilho de
decepção ultrapassa seus olhos como se quisesse me abalar com
esse fato.
Mas mal sabe ele que a única coisa que me assusta é ser
tocada, o resto... é apenas... nada!
— Onde você quer chegar com isso? — Pergunto, Artem
range os dentes e desvia o olhar para o cadáver.
Olho de esguelha para Yaroslav, uma ordem silenciosa para
que comece a coletar as informações que precisamos.
— Queria te mostrar o estrago que Ruslan fez. Aquele que tu
tanto defendes. — Sinto o olhar de Yaroslav recair em mim, mas
não desvio o meu de Artem.
— Não foi ele — seu rosto gira em minha direção.
— Como podes ter tanta certeza?
— Você sabe que não foi. Nunca foi ele. — Artem me fuzila
com um olhar sombrio.
— Tu deveriastomar mais cuidado em quem acredita para não
sofrer depois. — Ficamos encarando um ao outro por um longo
momento, Yaroslav pigarreia.
— Alguma câmera pegou o momento do ataque? — Meu
colega pergunta, tentando quebrar o clima pesado entre mim e
Artem.
Me agacho ao lado do corpo.
— Tu és muito corajosa, diria fria por ficar tão tranquila com
essa exposição — Artem fala, ignorando por completo a pergunta de
Yaroslav, apenas apontando em sua direção. — Diferente do seu
colega que está quase colocando as entranhas para fora.
— Isso não me assusta, mas sim quem fez. — Consto, fitando
a rosa encharcada de sangue.
“Toda rosa estragada deve ser eliminada
” Balanço a cabeça,
recordando da gravação que Mirom me entregou, da voz do
assassino e dos gritos apavorados.
— Tu sabes quem foi.
— Não foi ele! — Afirmo de novo, me levantando.
— Laura?
— Por que não foi até hoje na minha casa em busca dele? —
Indago ficando estressada com seu jeito, Artem respira fundo. — É
tão simples. O que você e seu primo estão esperando?
Artem desvia o olhar, dando permissão para que os peritos
voltem ao trabalho. Me afasto, fitando-o.
— Você deveria acreditar nele — murmuro, Artem abaixa a
cabeça.
— Em um assassino?
— Tem certeza que ele é realmente o assassino?
— As provas são concretas.
— Provas podem ser facilmente forjadas. — Artem esfrega o
rosto, sem dizer nada. — Ele é seu irmão.
— Dispenso — Artem age tão friamente, que prefiro deixar o
assunto morrer.
— Você não respondeu à pergunta de Yaroslav — ele meneia
a cabeça, encarando sobre o ombro os peritos cobrir o corpo da
moça com um pano branco.
— Estamos coletando as informações. — Responde, fitando
Yaroslav parado ao meu lado.
— Que informações tu tens nesse momento? — Ele pergunta,
retribuindo o olhar descrente do policial.
— Nada — Artem contorce os lábios. — Apenas uma moça na
faixa de 20 anos, família muito rica... apenas o básico. — Ele
balança a cabeça de leve.
— Policial Artem Rotam? — Olho para o lado quando uma voz
rouca e forte corta nossa conversa.
O homem com um terno perfeitamente alinhado para a poucos
centímetros da gente, com dois policiais em seu encalço. Artem
enrijece.
— Sim, no que posso lhe ajudar, promotor Alexey.
— Pelo visto me conhece. — Alexey sorri de lado, seus olhos
se prendem nos meus por alguns segundos antes de voltar para
Artem.
Com meu cotovelo, cutuco Yaroslav, chamando sua atenção.
Olho para ele de relance, achando engraçado a forma que me
encara. Inclino a cabeça em direção ao que está acontecendo. Um
aceno seu é a confirmação de que ele entendeu o que quero dizer.
— Estou aqui com um mandado de prisão contra ti, Artem.
— Como dizes?
— Necessito que me entregues seu distintivo, sua arma e
estenda seus pulsos. Vamos pular a etapa padrão que diz “Você tem
o direito de permanecer calado e blá-blá-blá...” é demasiado
cansativo esses protocolos. — Alexey faz um sinal com dois dedos
e os policiais avançam em Artem que está tão surpreso que não
reage.
— Mas que porra é essa? — Vocifera ao ser algemado.
— Vamos conversar, tenho algumas coisas a discutir contigo.
— Alexey responde com calma, ordenando com apenas um olhar
que os policiais o levem.
Artem me olha de relance com uma máscara inabalável antes
de ser arrastado, demonstra estar tranquilo, dando a entender que é
apenas um mal entendido. Alexey estala a língua, fito seu rosto
marcado, maxilar quadrado e olhos tão azuis que chegam a ser
transparentes.
— Uma lástima! — Sussurra, olhando para mim e lançando um
sorriso triunfante antes de girar e seguir para o jipe escuro com a
sigla SBU que o espera.
— O que acabaste de acontecer aqui? — Exclama Yaroslav,
fico encarando as costas largas de Alexey sem ter a resposta.
— Você gravou?
— Sim, as fotos ficaram perfeitas. — Mordo meu lábio inferior,
encontrando com o olhar do meu colega, tão satisfeito quanto eu.
— Agora temos uma matéria completa e digna de capa. —
Yaroslav sorri com os olhos brilhando que nem uma estrela.
Tiro meu celular da bolsa e deslizo o dedo na tela até
encontrar o número de Aksinya. Levo ao ouvido. Aponto para os
peritos, Yaroslav assente e vai até eles.
— Eu — sua voz ressoa animada.
— Aksinya, preste atenção, preciso que seja esperta.
— Eu sou esperta. — Fala baixinho.
— Artem acabou de ser levado pela SBU. Pelo que entendi,
ele tem uma ordem de prisão. Quero que descubra tudo, porque
talvez ele será capa da AS nesta manhã.
— Informações exclusivas?
— Pergunta.
— Creio que sim — olho para os outros repórteres, que tiram
fotos sem parar do jipe. — Eles estão saindo daqui o promotor
responsável se chama Alexey.
— Alexsei... — zomba do nome, rindo do outro lado da linha.
— Esse promotor é um babaca.
— Você o conhece?
— Por fofoca— responde, suspirando. — Estou indo para a
sede da SBU. Te ligo assim que souber de alguma coisa.
— Obrigada.
— Tudo bem, mas Alex sabe— caçoa, rindo de novo.
— Aksinya! — Sibilo, reprovando sua brincadeira.
— Certo, parei!
— Fico no aguardo — finalizo a ligação.
Respiro fundoe encaro Yaroslav, sentindo as pontas dos meus
dedos loucos para encontrarem o teclado do meu computador.
— Vamos para sua casa. — Declaro, fazendo-o me olhar
estranho. — Tenho algo muito sigiloso a te contar.
— Acredito que seja devido essa conversa que tu e Artem
tiveram, não é? — Assinto, Yaroslav suspira. — Estou tenso.
— Vai ficar mais ainda quando te contar, podemos? — Ele
arqueia uma sobrancelha.
— Okaaaay! — Aquiesceu ao meu pedido.
Só espero que eu esteja fazendo a escolha certa envolvendo-o
nessa teia de mentiras.
Aperto o enter, enviando toda a matéria para que Andry
verifique antes de ser publicada. Recosto na cadeira, encarando a
tela do notebook.
— Está faltando quantos minutos? — Olho para Yaroslav
sentado do outro lado da mesa, comendo pão e tomando leite.
— Cinco para às oito. — Ele sorri, mastigando casualmente.
— Não seremos demitidos.
— Não dessa vez. — Suspiro, olhando o pequeno apartamento
de Yaroslav.
As paredes brancas reluzem com as cores amarela, azul
marinho e vermelha das almofadas do sofá em formato de L da cor
bege. Samambaias dão vida à cada cantinho onde estão.
— Como está seu namorado? — Pergunto, ele dá de ombros,
encarando o copo de leite.
— Estás bem... eu acho!
— Como assim “eu acho”?
Yaroslav suspira, dando um gole no leite.
— Não estamos em um momento muito legal. — Confessa,
tristonho. — Creio que terminamos.
— Sinto muito — ele me lança um sorriso fracoque não chega
aos seus olhos claros.
— Acontece o tempo todo. Tu acreditasem amor eterno?
— Não!
— Pois bem, eu também não. — Yaroslav se espreguiça,
cravando os olhos em mim. — Agora diga-me, o que tanto rodeia e
não me dizesnada?
Aperto meus lábios em dúvida. Prendo meus cabelos, inclino
para tirar de dentro da minha bolsa o gravador e coloco na sua
frente. Ele arqueia uma sobrancelha.
Espero por um momento antes de apertar o play. Quando faço
isso, assisto o rosto de Yaroslav empalidecer enquanto escuta a voz
do assassino e da vítima.
Ele fica me encarando pasmo depois da gravação parar,
estagnado demais para formular as palavras.
Meu colega pega o copo e bebe todo o leite em um gole, mãos
trêmulas e olhos espantados.
— Puta merda — chia, incrédulo. — Sei que tu não gostas de
xingamentos, mas... que merda é essa?
— Lembra de quando o cachorro de Mirom me atacou? —
Yaroslav assente. — Em algum momento eu perdi minhas coisas, só
dei falta do gravador dias depois.
— E tu encontraste?
— Não — coloco meus braços em cima da mesa. — Mirom
achou. — Yaroslav ergue as sobrancelhas, umedecendo os lábios.
— Certo... espera... — Ele franze o cenho. — Então foste ele
quem lhe entregou essa gravação? — Assinto. — Se Mirom tem
isso aí gravado, indica que...
— Talvez ele saiba quem é o assassino.
— Mas pode ser Ruslan.
— Não é ele, Yaroslav.
— Por que tu defendes tanto ele? — Coço minha cabeça,
contraindo meu rosto. — Por que tu disseste com tanta confiança
que não foi ele quem matou a moça de hoje? O que escondes,
Laura?
— Ele — revelo, me levantando. — Eu escondo Ruslan Rotam
em minha casa desde que fugiu da prisão. — Yaroslav me encara
boquiaberto. Seus olhos esbugalham de um tanto que penso que irá
escapulir.
— Lauraaaaa.... — Sibila, em choque.
— Não sei o que aconteceu, mas desde o momento em que
cravei meus olhos nos dele, senti algo dentro de mim... mudar. É
como se eu me visse nele. Como se nossas almas se conectassem
e se tornassem uma só. A sua dor, era a minha quando o
entrevistava, ou quando invadiu minha casa, ou... ou quando me
pediu ajuda.
Esfregomeu rosto, arfandoe andando de um lado para o outro
na sala.
— Ele... ele me beijou.
— O QUÊ? — Yaroslav grita tão alto que sobressalto, olho
para ele que está prestes a cair morto no chão.
— Ruslan ultrapassou um limite que nunca ninguém foi capaz.
— Ele pode ser um assassino, Laura. — Suspiro, assentindo.
Sim, ele pode ser, mas não é!
— Eu sei...
— Céus, colega. — Yaroslav se levanta. — Não faço ideia do
que tu passaste, sei do seu problema de não poder ser tocada.
Imagino até o que lhe tenha acontecido. Mas ao mesmo tempo, o
fato dele ter chegado tão perto de ti me alegra, também me apavora,
porque... Ruslan é uma alma condenada a viver trancafiada. Não
tem futuro.
Mordo meu lábio inferior e fecho meus olhos ao sentir suas
palavras como um soco em meu estômago, escutando-o concluir.
— Se provarmos que ele não é o Serial Killer que todos julgam
ser, não anula os crimes que ele cometeu dentro da cadeia.
Sabemos disso. Ruslan se tornou um mercenário, Laura, por isso
que o isolaram.
— Ele não teve culpa do que fizeram...
— Sim, mas... — Abro os olhos, Yaroslav me encara com dor.
— Ninguém sabe o que ele teve que viver lá dentro. O que teve que
suportar sozinho.
— Assassinar alguém é um erro! — Ele diz. — Quando as
mãos são cobertas por sangue, nada pode limpá-las, estarão
manchadas para o resto da vida.
Fico encarando meu colega, balanço a cabeça e me sento no
sofá, deitando a cabeça no encosto. Encaro o teto.
— É tarde para isso — respondo baixinho.
— Por isso aquela conversa estranha com Artem?
— Eles têm certeza que estou escondendo Ruslan, só que não
fazem nada para provarem isso.
— Por quê? — Dou de ombros.
— É o que quero descobrir.
— A gravação, você acha que... — Yaroslav se cala,
compreendendo tudo. — Um aviso... Mirom te deu um aviso!
— De que se eu não parar as investigações, ou continuar a
bisbilhotar suas vidas, poderei ser a próxima vítima.
— Agora pronto! — Resmunga, exasperado. — Andry nunca
disse que nossa missão viria com ameaças.
— Quero descobrir a verdade. Os motivos do porquê fizeram
isso com Ruslan. — O sofá afunda quando Yaroslav se senta ao
meu lado.
— Tu estás apaixonada... — Ele murmura. — Tinha que ser
logo com um cara todo enrolado? E depois? O que faráquando tudo
acabar?
Levo as mãos ao rosto, aperto meus olhos soltando a
respiração bruscamente com uma dor enorme no peito.
— O deixarei ir.
— Tu vaissofrer...
— Me acostumei com o sofrimento, Yaroslav, posso suportar
mais um.
— O sofrimento do amor é diferente. — Viro o rosto,
encontrando com seu olhar. — A dor é mais intensa, a saudade
machuca e é como se estivesse sendo sufocado a todo instante. A
angústia de nunca saber que aquela pessoa estará ao seu lado é...
perturbadora.
— Não tenho escolha.
— Tem, a de não se envolver. — Inspiro fundo,desviando meu
olhar e encarando a luz que irradia do lustre.
— Já me envolvi, não há mais volta... quero mais, aproveitar o
pouco tempo que me foi dado... quero me sentir viva e amada. —
Yaroslav solta um suspiro. — Quero que o amor me cure de toda
essa dor que sinto por tantos anos. Quero... reviver.
— Tu mereces...
— Nós merecemos ser felizes, Yaroslav. — Volto a encará-lo.
— Você pode encontrar o amor de novo, se não der certo. Mas
eu... essa será a minha única chance, porque quando Ruslan se for,
tudo se fechará de novo.
— Tu podes tentar com outra pessoa. — Nego com a cabeça,
olhos pinicando e nariz ardendo por causa do choro que estou
reprimindo.
— Pessoas quebradas como eu, só tem uma chance para
amar. — Inspiro fundo, apertando os lábios.
— Vai dar tudo certo...
— E se não der? — Fecho os olhos, lágrimas escorrem
involuntariamente.
— A gente faz dar certo. — Levanto minha mão e a levo para
Yaroslav.
Olho para ele através das lágrimas, notando-o congelar ao
perceber que estou pedindo por sua mão. Tantos anos ao meu lado,
compartilhando momentos, dividindo tarefas e compreendendo que
ambos têm segredos. Mas nunca deixamos um ao outro, sempre
respeitando o silêncio do outro.
Sua mão entrelaça na minha, seus olhos se enchem de
lágrimas. Afasto a sensação de repulsa. Yaroslav deita a cabeça em
meu ombro como se fosseuma criança depois de ter sido magoada.
— O que aconteceu com você? — Sussurro, encostando a
bochecha em seus cabelos lisos. — Sou tão egoísta.
— Por que dizesisso?
— Porque acreditei que eu era a única que sofria. — Yaroslav
acaricia minha pele com o polegar.
— Todos os dias vestimos nossa armadura a fim de esconder
aquilo que dói. Meu sorriso é um deles. — Fecho meus olhos,
inspirando seu cheiro e permitindo ser aconchegada por seu calor.
Ficamos em silêncio por longos minutos. Aproveito a sensação
de paz que se alojou dentro de mim. Mesmo que as palavras de
James entoem em minha mente em um sussurro abafado, a
sensação de repulsa e a linha que tende a me puxar para o escuro,
eu resisto a todos eles.
— Mirom sabe do meu passado. — Confesso.
— Ele sabe de alguma coisa desse caso. — Yaroslav consta
incerto.
— Artem e Mirom...
— O que faremos? — Ele se afasta para me olhar
.
— Eu tenho uma ideia que pode ser idiota.
— Conte-me! — Umedeço meus lábios e me levanto.
— Artem e Mirom ainda moram com Okasana, pelo menos é o
que acho. — Mordo meu lábio. — Ela é o nosso caminho.
— Não compreendi.
— Se nos aproximarmos dela, Okasana será mais aberta em
relação aos seus filhos, o que indica que teremos mais espaço para
investigar.
— Tu estás pensando em...
— Aquela casa pode esconder o que estamos procurando. —
Declaro, fitando o rosto de Yaroslav.
Olho para trás quando meu celular apita. Vou até ele, deslizo o
dedo para ler a notificação.
— Estamos nas manchetes — Entro no site da AS e leio um
pedaço do que foiescrito — Oficial Artem foipreso nesta manhã por
corrupção, no mesmo dia em que mais uma suposta vítimade
RuslanRotam foiencontrada... — Olho para Yaroslav. — A carreira
de Artem está escorrendo pelo ralo.
— Será? Corruptos sempre se safam. — Comprimo meus
lábios.
— Então vamos encontrar mais sujeira dele. — Lanço um olhar
determinado em direção a Yaroslav.
— Somos jornalistas investigativos agora...
— Responsáveis por expor a verdade, doa a quem doer. —
Yaroslav estica os lábios em um sorriso triunfante.
— Vamos fazer nosso nome cair na boca de todo mundo.
Vamos encontrar o verdadeiro culpado, Yaroslav.
— E livrar Ruslan das acusações. — Assinto.
— Também, mas além de tudo, vamos fazer justiça a todas as
mulheres que sofreram nas mãos desse infeliz de merda.
— Custe o que custar.
— Sim, custe o que custar... — Confirmo com uma
determinação que jamais senti.
Ruslan é inocente e farei todos engolir suas acusações,
mesmo que ele volte para a cadeia, que morra dentro dela, eu
revelarei a verdade para que possa pelo menos, voltar com a
cabeça erguida.

Desço do ônibus depois de um dia tumultuado. Após deixar a


casa de Yaroslav, fomos para a AS que fervilhava por causa da
notícia de Artem.
Andry ficou satisfeito, mas não demonstrou muita emoção.
Apenas resmungou um bom trabalhoe se trancou em seu escritório.
Ajeito a bolsa no meu ombro e cruzo os braços a fimde me proteger
do vento gelado.
Ando apressada querendo chegar logo em casa. Por ser um
bairro perigoso, pouco iluminado, o risco de ser assaltada é muito
maior do que durante o dia.
Suspiro de tão cansada, Andry suga todas as nossas energias.
Inspiro fundo, viro a esquina de casa com um alívio se
alojando em minhas entranhas e paro de uma vez. Carros cercam
meu prédio. Homens encapuzados, fardados e armados fazem a
guarda.
O que está acontecendo?
Mirom e Artem são policiais... droga, Ruslan...
Meu coração bate desesperado, eles demoraram a ir atrás de
Ruslan, mas essa demora acabou e aqui estão eles.
Forço-me a caminhar. As luzes das ambulâncias e das
viaturas iluminam todo o lugar. Os paramédicos correm para dentro
do prédio com duas macas. Engulo em seco.
Passo por um dos policiais, ele apenas me encara. Os
murmúrios me deixam assustada, há três vizinhas minhas chorando
em desespero, as ignoro e olho para cima.
A janela do apartamento acima do meu tem um buraco. Desço
meus olhos como se estivesse vendo uma pessoa caindo por ela.
Um corpo está estendido no chão com um pano branco ensopado
de sangue.
Calafrio me faz estremecer
. Olho para os policiais sabendo que
nenhum deles me contará o que está acontecendo. Resolvo entrar.
— Senhora, tu não podes entrar — um policial intervém, olho
para ele.
— Minha casa é no andar de baixo — ele me avalia. — É a
minha casa.
— Tudo bem. — Ele diz, me dispensando sem parar de me
encarar.
Um jipe me chama atenção, prendo a respiração por alguns
segundos antes de entrar no verdadeiro caos.
Choro inconformado e gritos de dor estremecem as paredes
velhas e descascadas. Parece que estou entrando no inferno, na
devastação de vidas humanas.
Engulo em seco, chegando no meu andar, mas tentada a subir
mais um hall de escadas para espiar o que houve. Encosto na
parede ao avistar um paramédico correndo na frente, então mais
dois aparecem carregando uma maca com um corpo
ensanguentado em cima.
Eles passam por mim apressados, não consigo identificar a
vítima por estar coberta, mas levando em conta a quantidade de
sangue... quem quer que seja não está no seu melhor momento.
Um grito horrível soa do andar de cima. Como se estivessem
arrancando sua alma dolorosamente. Meus pelos eriçam e decido ir
para casa.
Sou uma jornalista cagona, não irei me meter nesse assunto.
Engulo o caroço alojado na garganta e me encaminho até meu
apartamento. Com as mãos trêmulas, empurro a porta entreaberta.
Alguém está aqui e não é Ruslan.
Meu coração entoa desesperado contra meu peito.
Mais gritos, choro e gemidos.
Paro e encaro a figura vestida de preto curvada no balcão da
cozinha enquanto roda um copo que parece ser de água.
Como ele entrou aqui?
Mirom ergue a cabeça lentamente, me atingindo com o poder
que irradia por ele. Olhos verdes cravados nos meus, frios e
implacáveis, tão sombrios que não duvido que já tenha visto o
inferno.
Ele sorri para mim como se estivesse acabado de capturar sua
presa.
— Boa noite, Lauriana.
Meu sangue lateja por todo meu corpo enquanto estagnada o
encaro. Mirom dá um aceno curto, me lançando um olhar cético. Ele
levanta uma sobrancelha, parecendo impaciente e mais frio do que
das outras vezes que o encontrei.
— Bem, estás a planejar ficar aí empacada? — Ousado e
perigoso, são exatamente essas atitudes que o deixa atraente no
final de tudo.
Engulo em seco e fechoa porta atrás de mim, reparando-o me
estudar com um olhar intimidante.
— O que faz aqui? — Encosto na porta, pronta para fugir. —
Como entrou aqui?
Mirom sorri.
— Não és assim que tu recebes um convidado.
— Convidado? — Ele é muito cínico... — Você invadiu minha
casa.
— Tu sabes o que aconteceste no andar de cima? — Mirom se
afasta do balcão e abre a porta da minha geladeira.
— Quero que vá embora!
— Uma chacina. — Me ignora, procurando algo lá dentro. —
Um esposo ciumento, um amante que acha ser blindado. Um filho
enfurecido e uma esposa louca. — Ele retira de dentro da geladeira
duas bandejas, uma de presunto e outra de queijo, e acrescenta: —
Sabes o que acontece quando tudo isso se junta?
— Uma chacina. — Mirom sorri, sem me olhar.
— Garota esperta.
Ele pega um tomate. Meus batimentos aceleram ao vê-lo
empunhar uma faca. Seu olhar se encontra com o meu. Um brilho
de satisfação estampa seu rosto, fazendo-me acreditar que seus
pensamentos assassinos estão muito mais aguçados agora.
Prenso as costas na porta.
— Só que tens coisas que não temos o controle. Matar nunca
é um erro, porque erros tu consertas. Quando tu apontas uma arma
na cabeça do seu adversário, é um caminho sem volta. Neste
momento não há falha, ouapertas o gatilho ou morre.
— Por que está me contando isso? — Mirom abaixa a cabeça
e começa a picar o tomate.
— Estou a explicar o que aconteceste enquanto estavas fora.
Ele abre meu armário e apanha um saco de pão, concentrado
em montar dois sanduíches.
— Tu já mataste alguém, pequena? — Comprimo meus lábios.
— Onde você quer chegar com isso, Mirom?
— Quando se mata pela primeira vez, tu sentes como se
estivesse sendo sugado para dentro do inferno. — Ignorada de
novo, Mirom continua a montar os sanduíches. — Tu sentes dentro
de si algo morrer, desaparecer. Parte da nossa alma é arrancada,
como uma dívida sendo cobrada pelo demônio. E a cada morte,
mas tu perdes sua alma até não sobrar mais nada dela, apenas pó...
ou o rastro do que um dia existiu.
Fico observando-o pegar dois pratos. Mirom coloca os
sanduíches um do lado do outro em cima do balcão, espalma as
mãos no mármore e me encara através dos cílios longos e
marcantes que realça a cor ofuscante de seus olhos
— Escolha um — diz, com um sorriso prepotente. — Mas seja
esperta, um deles poderá te matar.
O ar dos meus pulmões é sugado ao mesmo tempo que uma
névoa gelada ultrapassa cada parte do meu corpo.
Mirom só pode estar brincando... eu o observei o tempo inteiro,
desde o momento em que começou a montar os sanduíches. Ele
não colocou nada neles... a não ser antes de eu chegar.
— Te parabenizo pela reportagem de hoje sobre Artem.
— É o meu trabalho, apenas. — Murmuro.
— Lauriana — ele umedece os lábios, — sabes quantos
jornalistas desaparecem durante o ano na Ucrânia? Ou foram
mortos nesse tempo?
— Muitas pessoas são assassinadas diariamente...
— Não estou a falar de pessoas, mas de jornalistas. — Me
corta com frieza. — Ninguém gosta de ratos bisbilhotando a vida
alheia, muito menos expondo segredos para o país inteiro ver.
— Onde você quer chegar, Mirom? — Repito a pergunta,
rangendo os dentes.
— Foram quatro jornalistas mortos só na metade deste ano...
— Policiais morrem muito mais do que jornalistas. — Retruco,
escondendo as mãos trêmulas atrás das costas.
— Sim, mas jornalistas não sustentam uma arma, ou vão para
guerra de facções... Jornalistas são pagos por fofocarem e
xeretarem o que não lhes dizem respeito. — Ele morde o lábio
inferior, enrugando o nariz de raiva. — Jornalistas são como
baratas. E sabes o que fazemos com baratas, Laurinha ? — Engulo
em seco outra vez. — Exterminamos.
— Você está me ameaçando dentro da minha casa? — Mirom
gargalha, apontando para os pratos.
— Escolha um, e vamos ver quantas vidas tu tens, gatinha! —
Olho em volta. Ruslan não está aqui, obvio, mas e...
— Onde está meu gato?
— Que gato? — Pergunta, franzindo o cenho.
— Meu gatinho, você o assustou. — Afasto da porta, deslizo a
bolsa por meu braço e a coloco na mesa.
— Talvez esteja morto a essa altura. — Congelo, ele não...
— Você não matou meu gato, matou? — Mirom fica me
encarando com um sorriso tão... tão... nojento que me seguro para
não avançar em sua direção.
Fecho as mãos em punho.
— Uma pena... — Comprimo meus lábios e seguro minha
língua. — O bom é que tupodes adquirir outro animal...
— Animal não é um objeto! — Mirom sorri. — Amor não se
substitui...
— Pouco me importo. — Desdenha, batendo o anel em seu
dedo anelar no vidro do prato. — Pena que as sete vidas dele foi
apenas ilusão.
— Você é desprezível... — Digo, enojada.
— Não és a primeira a me dizer isto.
— Onde está Rony?
— Rony... um belo nome para um gato pulguento. — Aperto
minhas mãos com mais força. — Debaixo da roda do meu jipe, foi
delicioso vê-lo agonizando até dar seu último suspiro.
Lágrimas escorrem por meu rosto, não de tristeza ou medo,
mas de raiva... lágrimas de ódio. Porque na minha frente vejo um
homem como James... sem nenhum escrúpulo.
— O que você quer?
— Venha, se aproxime, Lauriana. — Mirom se inclina para
baixo e de repente coloca um aquário redondo com três peixinhos
amarelos nadando em círculo.
— Quero que saia da minha casa.
— Ou? — Ecoa com a atenção focada nos peixes. — Lindos,
não é?
— Vou chamar a polícia... — Mirom solta uma risada que faz
calafrios percorrerem minha espinha.
— Tu sabes quem eu sou?! — Ele me olha. — Estou acima de
qualquer polícia local... uma palavra, Laurinha
, apenas uma ordem,
e tu estás em meu poder.
— Ruslan não está aqui, pelo que pode ver.
— Tem roupas de homens, pena que se foi antes de eu
chegar. — Umedeço meus lábios, desviando do seu olhar cruel.
— Alguém já lhe disse que é feio mentir? — Cantarola,
comprimo meus lábios. — Eu estou a par do seu passado, uma boa
mentirosa sempre és uma mentirosa.
— Não me ofenda, Mirom.
— Será que não foi realmente por tua culpa? Olha para ti! —
Seus olhos descem por meu corpo com malícia. — És capaz de
despertar o desejo de qualquer homem... O que ele fezcontigo foste
culpa sua, não? — Minha boca se abre em choque.
O que ele está falando?
— Vamos lá, tu mereceste o que aconteceu contigo. — Meu
peito aperta com sua declaração doente... esse cara é...
— Você não sabe o que diz.
— Sei perfeitamente! — Rebate, encarando os peixes. —
Mulheres só servem para destruir nossas vidas, então sim, tu
mereceste.
Balanço a cabeça, incrédula com suas palavras. Em segundos
paro há pouco centímetros dele, encarando o fundo de seus olhos
com raiva borbulhando em minhas veias.
— Estuprar uma criança é certo? — Um brilho ultrapassa seus
olhos, uma máscara impenetrável. — Não seja estúpido ao ponto de
proferirpalavras tão baixas como essas. Você nunca esteve na pele
de uma mulher que foiestuprada desde a infância,violada e privada
de qualquer tipo de felicidade. Cale-se quando você não está na
pele de uma mulher que é espancada pelo marido e silenciada. Cale
a porra da boca quando não faz ideia do que é viver em um
relacionamento abusivo. Você é um monstro psicopata de merda.
Mirom sustenta meu olhar. Não consigo interpretar sua
expressão dura como rocha.
— Tome muito cuidado, Mirom, porque você não sabe o que é
viver no inferno dentro de sua mente.
— Apenas escolha um dos sanduíches. — Exige com a voz
fria e sem um pingo de emoção.
Trinco os dentes, olho para os sanduíches sem acreditar que
acatarei sua ordem. Com a respiração acelerada, pego o sanduíche
do lado direito e o levo à boca, mordendo com cuidado.
Volto a encarar seus olhos em desafio, ele me analisa em
silêncio enquanto mastigo devagar. O canto de seu lábio se curva
em um sorriso pequeno. Tento respirar pausadamente para controlar
a sensação de pavor.
— Ótima escolha. — Consta, pegando o outro sanduiche e
esfarelando o pão dentro do aquário.
Os peixes começam a comer desesperados e segundos
depois eles começam a boiar... mortos.
Paro de mastigar com os olhos arregalados.
Meu coração bate tão rápido que me sinto ofegante.
De fato, ele envenenou o sanduíche e... eu escolhi o certo.
Mirom se vira para mim, sério.
— Esse é o último aviso que lhe dou. — Ele se inclina, ficando
tão perto do meu rosto que sinto sua respiração se misturar com a
minha. — Se continuar a xeretar minhavida, Lauriana, seu fim será
igual daqueles peixes.
Mirom passa por mim, esbarrando em meus ombros. Aperto o
sanduíche contra minha mão. Suas palavras me atingem como um
soco no meu estômago, cheia de promessas.
Ele abre a porta e encaro-o, engolindo o pedaço que desce
rasgando a garganta.
— Como... — pigarreio. — Como sabia que eu escolheria o
certo? — Mirom me olha e sorri mais uma vez.
— Eu não sabia — falando isso ele sai porta a fora me
deixando completamente desorientada.
Enterro meu rosto molhado entre as mãos trêmulas. A náusea
pressiona meu estômago enquanto tento me acalmar. Não consigo
acreditar que Mirom tentou me envenenar e que... e que matou
Rony.
Afasto minhas mãos e volto a enchê-las, jogando água em
meu rosto, evitando ser puxada para a escuridão de novo. Para o
pesadelo que acreditei ser possível esquecer.
Mirom não é James... então por que sinto tanta semelhança?
Olho-me no espelho, vermelha de raiva e por causa do choro.
Quero poder arrancar sua cabeça e jogar aos porcos.
Inspiro fundo... mais fundo e mais fundo... tentando encontrar
meu autocontrole, a força para não sucumbir à crise e a vontade de
me arranhar. Não deixarei que esse psicopata me desestruture
dessa forma.
— Rony... — Chamo com a voz dolorosa, lágrimas voltam a
escorrer por meu rosto. — Droga... — Apanho uma toalha e enxugo
meu rosto e volto para sala. Ainda consigo escutar a movimentação
dos policiais do lado de fora, apesar dos choros e gritos terem
cessados.
Estou sozinha e pela primeira vez depois de tantos anos em
que moro nesse apartamento, sinto medo.
Medo de quem possa entrar... medo de estar sozinha.
Encaro o arranhador de Rony e uma dor dilacerante aperta
meu coração com a certeza de que nunca mais o verei.
Ruslan ficará arrasado, ele era apaixonado pelo gato.
Como pode existir uma pessoa tão baixa a ponto de descontar
seu ódio em um pobre animal?
Engulo o nó que se forma na garganta e fito o aquário com os
peixes boiando sem vida. E se eu tivesse escolhido aquele
sanduíche? Eu estaria morta nesse momento?
— De certo que sim... — murmuro, suspirando sem saber o
que fazer.
Meu celular apita fazendo-me saltar de susto. Vou até ele,
desbloqueio e fico congelada olhando para a tela. Um número
desconhecido acaba de me enviar uma mensagem. Parte de mim
não quer saber do conteúdo.
E se for Mirom?
Balanço a cabeça tomando coragem e abro a mensagem que
está escrito:Estou no quarteirão abaixo esperando por ti. Franzo a testa
sem fazer a mínima ideia de quem possa ser a essa hora da noite.
Não que nove horas seja tarde, mas...
Uma outra mensagem chega com apenas “Pequena flor” escrito.
Meu coração acelera, deixo o celular no balcão e saio em disparada.
Diminuo meus passos ao chegar do lado de forapara disfarçar
e não despertar a curiosidade nos policiais que ainda fazem a vigia
do prédio.
Meus olhos são direcionados para onde o jipe estava
estacionado mais cedo. Vou até lá relutante, só que não encontro
nada que indique que Rony foi atropelado.
Ando em volta, procurando seu pequeno corpo, tão frágil.
Estremeço só de imaginar aquele monte de metal esmagando-o.
Fecho meus olhos, incapaz de suportar essa dor e vou de encontro
a Ruslan.
Olho por cima do ombro para ver se alguém me seguiu. Os
policiais permanecem focados no que estão fazendo. Viro para
frente prestando atenção no caminho e ajeito meu casaco.
De súbito levo a mão à boca, abafando um grito assustado ao
ver uma figura se movimentar na escuridão do beco há poucos
metros de mim.
Ruslan sai do breu, parando diante de mim, me analisando
minuciosamente. Embora esteja com uma expressão fria, seus
olhos tem um brilho desolado.
— Ele machucou-te? — Sua voz sai baixa, ele se aproxima e
segura meu braço, me levando para dentro do beco. — Diga-me,
aquele desgraçado te machucou?
Nego com a cabeça quando me encosta no muro, se
inclinando para encarar o fundo dos meus olhos. Seu aperto se
intensifica e sinto suas mãos tremerem.
— Estou bem — asseguro.
Ruslan inspira fundo,fechaos olhos e gira, acertando o punho
no outro muro. Seu corpo inteiro se retesa ao ponto de tremer.
— Ruslan... eu estou bem...
— Bem? — Ele me olha por sobre o ombro. — Mirom fodeu
com sua cabeça, deixando-a apavorada. Filhoda puta desgraçado!
— Ele afasta do muro, andando de um lado para o outro.
— Você sabia que ele estava lá?
— Desapareci quando a merda toda começou no andar de
cima. — Ele para de andar e tira o capuz. — Começou com uma
briga que evoluiu para algo pior. Por isso saí, mas fiquei na espreita
te esperando. O cara foi jogado pela janela... — Ruslan faz uma
pausa. — Minutos depois a polícia chegou e junto com eles, Mirom.
— Isso durou quanto tempo?
— Uma hora e meia até a polícia chegar. Mirom entrou e não
saiu mais. Naquele instante entendi suas intenções. Ele sabia que
eu estaria vigiando...
— Não pense muito nisso, eu estou bem! — Garanto a ele,
desencostando do muro e ocultando a parte do veneno.
— O que ele disse a ti? — Passo a língua nos dentes,
escolhendo as palavras certas.
— Um monte de merda. — Ruslan me olha e sorri segundos
depois. — E agora?
— Não vou poder mais ficar aqui... contigo. — Nosso olhar se
prende um no outro, meu coração parece se partir em pequenos
pedaços.
Eu não quero que ele vá.
Abaixo a cabeça quando meus olhos ardem.
— É demasiado perigoso agora. — Assinto, evitando encará-
lo.
— O Rony... o Mirom... — Engulo as lágrimas, mas não volto a
falar, por não conseguir proferir as palavras que dói.
— Tu se apegaste demais... — Ele diz, ergo a cabeça quando
para à minha frente.
— Eu sabia que isso iria acontecer, mas... não tão cedo. —
Ruslan respira fundo e segura meu rosto. Inclino para o lado,
apreciando o calor da sua mão.
— Tu não me contaste tudo sobre Mirom. — Fecho meus
olhos, incapaz de segurar minhas emoções.
— Não quero que você vá... — Confesso, sendo beijada pela
delicadeza do vento de verão.
— Laura? — Abro os olhos, surpreendendo-me com sua
aproximação.
Ruslan não diz nada, apenas fita meu rosto antes de enlaçar
seus lábios nos meus. Ele desliza as mãos até minha cintura e me
empurra até o muro, prensando meu corpo com o seu, me
enjaulando.
Sua língua se encontra com a minha em uma dança em meio
às sombras. Deslizo as mãos por seus braços, sentindo seus
músculos se contraírem com meu toque. Sua respiração acelera e
entrelaço seus cabelos, querendo-o mais perto de mim... querendo
que fique comigo.
A maneira que Ruslan me faz sentir é como se velas fossem
acesas, não de uma vez, mas aos poucos. Uma por uma. Será que
há algo que eu possa fazer para mantê-lo ao meu lado?
Será que existe a possibilidade de ele permanecer sempre
aqui? Curando-me todos os dias?
Sinto-me afogando em seu calor. Seus braços me levando
para mais perto de si... me embebedando pelo sabor de sua boca e
permito-me ser banhada por essa sensação inebriante.
Ruslan desfazo beijo, mordendo meu lábio inferiore desce por
meu pescoço, mordiscando e roçando sua barba por fazer em
minha pele, me irrompendo em arrepios.
— Tu não podes — sussurra em meu ouvido, encolho-me
quando mordisca o lóbulo da minha orelha — beijar-me tão
deliciosamente desta forma, Laura. — Diz, passando a língua em
meus lábios. — Tu estás me enlouquecendo!
Assinto e abro a boca para respondê-lo, mas nada sai. Estou
tão consumida por Ruslan que fico sem palavras, sua mão segura
minha nuca.
— Abra os olhos, pequena flor — pede, obedeço. — Tomes
cuidado, okay? Procure um novo lugar para morar, aqui não é
seguro para ti. Até lá pedirei para que Kliment fique de olho.
— Não preciso... — Ele me cala com um balançar de cabeça.
— Mirom e Artem podem usá-la para me atingir. — Ruslan
aperta os dentes. — Não sei se ter vindo de encontro a ti foi uma
boa ideia.
— Você me tirou do abismo. — Seus olhos estremecem.
— Tu me tirastede lá também. — Ele beija minha testa. — Vou
estar por perto, quando menos esperar, estarei com minha boca
colada na sua.
— Promete? — Ruslan ficame encarando, vejo em seus olhos
uma bagunça de sentimentos.
— Vou tentar, pequena flor.
— Cuidado, por favor. — Ele assente, colando seus lábios nos
meus por longos segundos antes de se afastar.
— Rony?! — Ruslan chama e um gato negro de olhos
amarelos como o sol sai da escuridão miando. — Cuide bem da
nossa flor, pequeno.
Aperto meus lábios quando eles começam a tremer. Meu peito
aperta de alívio por ele não estar morto.
— Eu pensei... pensei que Rony... — Engasgo com as
palavras, agacho-me e pego-o no colo.
— Sai com ele em meus braços. — Ruslan revela.
Assinto de leve, acariciando e estudando o rostinho delicado
de Rony que ronrona. Mirom mentiu, jogou sujo comigo. Trinco os
dentes para evitar xingá-lo mais do que estou fazendomentalmente.
— Vou cuidar bem dele. — Asseguro, levantando a cabeça.
Ruslan assente e coloca o capuz me lançando um olhar de
despedida que parte mais ainda meu coração.
— Eu voltarei... — Ele sussurra antes de sair andando.
Ruslan se esgueira pela noite de modo imperceptível, como
uma brisa, escondendo por trás da alma um passado conturbado.
Aperto Rony em meus braços antes de encontrar com seus
olhos cheios de vida e segredos.
— Vamos para casa, garoto.
— Tu tens que se acalmar, garoto! — Olho para Nikita por
alguns segundos, sua tranquilidade me deixa ainda mais nervoso.
Volto a andar de um lado para o outro, querendo quebrar
qualquer coisa que possa obter alívio. Preciso encontrar um
caminho que me leve ao verdadeiro culpado. Ele agiu antes do
tempo previsto.
— Precisamos ir ao médico...
— Não vou — corto-o, enchendo um copo de vodca e
entornando todo o líquido. Faço uma careta por causa do álcool.
— Precisamos cuidar da sua mente fodida.
— Precisamos encontrar o culpado. — Enfatizo, enchendo o
copo mais uma vez. — O que adiantou entregarmos aquela
papelada para o promotor que tu alegaste ser bom se Artem
conseguiu se safar? — Nikita cruza os braços.
— Temos que ir com calma, não é assim tão rápido.
— Catorze anos, Nikita... Catorze longos anos trancafiado por
crimes que não cometi! — Resmungo, virando todo o conteúdo do
copo na garganta, ranjo os dentes. — Não tenho mais tempo.
— Mirom está limpo...
— Não — o interrompo, voltando a encher o copo — ele está
sujo, só que sabe muito bem como esconder.
— O que faremos agora?
— Precisarei ficar aqui contigo — declaro, jogando a vodca
garganta adentro, esperando um segundo para continuar. — Não
posso permanecer com Laura, não quando Mirom a está usando
para atingir-me.
— Ah... — Entoa com um sorriso sagaz. — Então sua aflição
tem nome e endereço?
Umedeço meus lábios, afasto da mesa, ignorando-o e
aproximo dos arquivos presos na parede. Encaro o rosto de cada
vítima, inclusive a de ontem. Fecho meus olhos, balançando a
cabeça.
Preciso de respostas... preciso me acalmar acima de tudo.
— Estou apaixonado por aquela mulher, fato. — Esfrego meus
olhos, frustrado. — Cacete... ela é meu ponto fraco, tanto Artem
quanto Mirom sabem disso.
— Desde quando? — Nikita para ao meu lado.
— Desde o dia em que encarei seus olhos vazios. — Sorrio de
lado, lembrando de como estava apavorada naquele dia.
Recordando do nosso primeiro beijo e da capacidade de despertar o
homem cheio de vida dentro de mim.
— Tu sabes, não sabe?
— Sim — confirmo, abaixando a cabeça. — Quero apenas
provar minha inocência. Mostrar que aquele garoto inocente, foi
injustiçado... eu quero apenas... descansar.
— Descansar em que sentido? — Inspiro fundo.
— Serei pego em questão de dias, o plano que tenho será meu
último passo.
— Tu ainda me deves uma vida, não se esqueças disso!
Olho para Nikita, sei que terei que pagar o que devo a
qualquer momento. Embora seja um bom amigo, amizade e
negócios jamais devem ser misturados.
— Quando toda essa merda acabar, prometes protegê-la? —
Seus olhos brilham com meu pedido, Nikita segura meu ombro,
apertando-o firme.
— Com minha própria vida se necessário for. — Assinto, suas
promessas são como pactos de sangue. Quando estávamos juntos
na unidade 69, tive muitos anos para provar isso. Nesse ponto eu
confio cegamente em Nikita e sei que cumprirá com sua palavra.
Meu tempo está se esgotando. Meu desejo maior nesse
instante é conseguir pelo menos, aproveitar mais tempo com
Laura... minha pequena flor. E ter a confirmação de que ela está fora
do abismo que a engolia, podendo assim, seguir em frente sem que
seus demônios interfiram em sua felicidade. Depois disso poderei ir
embora... só que dessa vez será para sempre.
— Qual o teu plano? — Passo a língua em meus lábios,
prendendo meus olhos na foto da primeira mulher que já amei em
toda minha vida.
— Começar pelo começo.
— Como assim? — Solto um suspiro exasperado e olho para
Nikita.
— Tudo tem um começo, meio e fim. Se tu se perdes, a única
solução é voltar ao início para retomar o caminho certo. Meu
começo vem dela, — aponto para a foto que encaro — da minha
mãe.
— Então...
— Chegou a hora de vê-la.
Esfrego meus lábios com os dedos enluvados enquanto olho
para a casa onde cresci. Esse lugar abriga e esconde segredos,
momentos, choros e muitos sorrisos.
Não foi uma fase boa quando meu pai faleceu, sua morte
desestruturou nossa família,quebrando o vínculo que tínhamos,
destruindo a ligação que nos tornavam unidos.
Mamãe ficou devastada, principalmente, quando não
conseguia emprego. Recordo-me de várias vezes a encontrar
chorando pelos cantos, ou trancada em seu quarto. Eu era o único
que fazia de tudo para manter a famíliacomo era antes, mas eu não
consegui!
Foi insuficiente tudo o que fiz...
Eu falhei com todos... eu falheicomigo.
Tamborilo os dedos no volante no ritmo da música que toca
baixinho. Artem foi liberado das acusações, como esperado.
Continuará trabalhando como policial, o que é pior ainda.
Certamente está rindo da minha cara nesse exato momento
sentado em uma mesa de bar com seus amigos da mesma laia que
a dele.
Inspiro fundo, controlando-me para não contornar o carro e ir
até lá e quebrar sua cara fodida. Cacete... Soco de leve o volante,
aborrecido.
O barulho da notificação do celular afasta Artem da mente.
Apanho o aparelho e encaro a mensagem “Mirom e Artem estão fora.
Caminho limpo.” Jogo o celular no banco do passageiro e desço do
carro.
Meu coração bate acelerado conforme me aproximo da minha
antiga casa... O lar que não pertenço... O lugar onde não sou mais
bem vindo.
Fito o cadeado do pequeno portão, depois analiso em volta. Do
outro lado o jardim está repleto de rosas espalhado por todo o
quintal, o perfumedas floresinvade minhas narinas despertando-me
uma sensação de conforto.
Olho para trás, a neblina de uma noite úmida cobre cada canto
da rua. As luzes dos postes deixam tudo mais sombrio, escondendo
os perigos do entorno desse lugar.
Impulsiono meu corpo para cima ao segurar no pequeno muro,
passo minhas pernas e aterrisso silenciosamente dentro da
propriedade. Respiro de forma lenta, mesmo que seja difícil devido a
adrenalina que corre por minhas veias.
Espero mais alguns segundos, aguçando minha audição. O
único barulho é do vento que toca as folhas balançando-as com
delicadeza, uma dança suave.
Meus olhos se prendem na janela coberta por uma cortina.
Uma luz branca reluz pela brecha. Encaminho-me em direção à
porta, tocando as pétalas pelo caminho. Subo o pequeno degrau
com passos silenciosos e paro diante dela, encarando-a como se a
própria fosse capaz de me dar coragem.
Fecho os olhos. Comece pelo começo... e o começo é a partir
daqui.
Ergo minha mão em punho e bato à porta. Recuo um passo,
encarando com ansiedade meus pés. Escuto passos, a chave
destrancando e o ranger da porta sendo aberta.
Engulo em seco, uma mistura de vergonha e saudade se
bagunçando em meu coração.
Catorze anos sem vê-la e tocá-la... conto de um até três antes
de levantar a cabeça lentamente e prender meus olhos nos seus.
Mamãe franzea testa. Afastoo capuz para mostrar meu rosto.
Ela abre a boca para falar, mas a fecha novamente. Seus olhos
começam a encher de lágrimas me reconhecendo... reconhecendo
seu filho.
Aperto meus lábios sem conseguir quebrar a tensão entre nós.
É como se o mundo estivesse desaparecido. Mamãe afasta as
mãos da porta e as levam à boca, abafando um gemido surpreso.
— Rus... Ruslan? — Sussurra com a voz trêmula.
Fito com mais atenção seu rosto envelhecido pelo tempo, que
mesmo assim não ofuscou sua beleza.
— Oi... mãe.
Em instantes ela corre até mim. Prendo-a em meus braços,
afundando meu rosto na curva de seu pescoço, sentindo-a
estremecer por causa do choro. Seguro minhas próprias lágrimas,
apertando-a, matando a saudade que me corrói todos os dias.
Agora não existe mágoa dentro de mim, apenas a necessidade
de ser abraçado por minha mãe. Àquela que tanto chamei... que
tanto gritei por ajuda, desesperado e sozinho. Um garoto inocente
jogado no ninho de demônios. Uma alma pura e cheia de vida, e
agora só resta um homem morto... sem esperanças de um futuro.
Fui privado da felicidade, de crescer ao lado das pessoas que
amo, de realizar meus sonhos e, acima de tudo, privado de criar
minha própria família.
O que me resta?
Aperto mais seu corpo, fechando os olhos e sendo consumido
por seu cheiro natural que nunca esqueci.
Ah... como eu esperei que ela me tirasse daquele inferno... que
me dissesse que tudo iria passar, que iria me proteger do mal, mas
fui deixado sozinho.
Mamãe chora em meus braços, um nó na garganta diz que
estou prestes a me entregar também ao choro. Ela se afasta e
segura meu rosto, encarando-me com fascinação. Seus olhos me
analisam com cuidado.
— Meu pequeno... — Murmura com a voz embargada. — Meu
pequenino...
— Por quê? — Pergunto, segurando seus pulsos. — Por que
não me buscaste? — Mamãe aperta os lábios trêmulos. — Por que
me deixastenaquele inferno,Mamis?
— Sinto muito... — Seus olhos devastados transbordam
lágrimas.
— Eu errei contigo, pequeno... errei tanto...
— Tu não acreditasem mim? — Mamãe limpa as lágrimas que
escorrem no meu rosto, meu choro silencioso é a deixa para trazer
de volta aquele garoto encolhido em um canto coberto pela
escuridão.
— Eu acredito em ti...
— Fiz de tudo, Mamis... de tudo para manter nossa família...
eu... eu trabalhei tanto para não te ver chorando, trouxe comida para
casa quando estávamos passando fome...lutei tanto para... para ser
jogado daquela forma... estou destruído... eu... eu só quero...
descansar.
Confesso, sentindo de repente um peso tão grande que mal
consigo me manter de pé. Estou cansado, exausto de tanto
sofrimento. Cansado de não saber da verdade.
— Venha, entre meu pequeno. — Diz com a voz doce, me
fazendo encolher como uma criança querendo consolo e colo.
Mamãe me puxa para dentro, limpa seu rosto com as mãos e
fecha a porta atrás de mim assim que entro. Meus olhos navegam
pela sala, analisando cada mínimo detalhe.
Meu peito aperta quando a mágoa volta. Tiraram de mim a
possibilidade de ter um lar, de escolher cada móvel e decoração da
minha própria casa. Tudo é uma grande merda em vista de tudo o
que passei dentro daquele inferno.
Enquanto eles sorriam, eu chorava. Enquanto eles
conquistavam seu lugar, eu me afundava na depressão, na
desolação. Enquanto eles viviam, eu... morria, dia após dia.
Fecho meus olhos, impedindo que essa dor quebre o momento
que tenho com minha mãe, de tentar encontrar uma explicação para
tudo o que fizeram comigo.
— Eu escrevi cartas... — Falo, voltando minha atenção para a
senhora diante de mim. — Todo mês eu mandava cartas para ti,
Mamis. Por que não me respondeste? — Ela abaixa a cabeça,
balançando-a de um lado para o outro, abalada demais para dizer
alguma coisa.
— Tu não fostes me visitar... por catorze anos eu esperei por ti.
— Me perdoa... — Lamenta.
Respiro fundo, me aproximando dela e segurando seus
ombros enquanto volta a chorar compulsivamente. Levo-a até o
sofá, fazendo com que se sente para se acalmar
.
Ajoelho-me à sua frente e levanto seu rosto, fazendo com que
me olhe nos olhos.
— Não chores, Mamis... — Peço com carinho, ela sorri,
encostando a testa na minha, fecho meus olhos. —Amo-te...
— Eu queria ter ido, pequeno, mas... tantas coisas
aconteceram. Tu és um assassino... — Prendo a respiração,
permanecendo calado. — Não sei o que fiz de errado para que
tomastes esse caminho, mesmo sentindo dentro de mim que tu não
és culpado. Eu errei tanto contigo...
— Não se culpe por isso. — Tranquilizo-a, beijando seu rosto.
— Não tenho muito tempo, Artem deves estar chegando daqui a
pouco.
— Que saudades do meu pequeno. — Mamãe sorri enquanto
percorre os dedos delicados por meu rosto. — Tu cresceste tanto...
estás um homem tão lindo.
— Tive a quem puxar. — Ela ri.
— Estás a cara do teu pai.
— Acho que estou mais parecido contigo do que com ele,
Mamis! — Protesto de forma divertida, tirando mais um sorriso de
seu rosto perfeito, vendo um brilho de felicidade em seus olhos.
— Estás tão lindo...
— Tu que estás perfeita, como uma rosa vermelha em meio a
tantas outras que são ofuscadas por sua beleza.
— Oh, meu pequeno poeta ainda vive aí dentro? — Pergunta,
colocando a mão em meu peito, no rumo do meu coração. —
Apesar de tudo?
— A única coisa que restou foi o rastro do que fui um dia. —
Mamãe me olha com tristeza, umedeço meus lábios e deito a
cabeça em seu colo, da forma que sonhei durante tantos anos.
— Existe coisas que nunca são destruídas,mesmo que tentem
tirar isso da gente, nossa essência sempre continuará dentro de
nós.
— Posso descansar um pouco em seu colo, Mamis? — Peço,
fechando meus olhos e me segurando para não desabar.
— Chore meu pequeno... chore que tua Mamis estás contigo
agora...
Suas palavras penetram meu coração me impedindo de
aguentar tanta dor. Então, depois de tanto tempo, liberto o choro
reprimido por anos.
Um choro de dor, saudade e injustiça... Um choro tão doloroso
que não sei se serei capaz de um dia parar.
É como estar sendo liberto após tantos anos trancafiado em
uma jaula. Suas mãos em meus cabelos, o carinho de seu toque é
tudo o que mais preciso.
Afundo meu rosto em seu colo, meu corpo treme conforme o
choro intensifica. Não sou um homem agora, mas um menino...
aquele garoto que viu sua vida ruir sem poder fazer nada.
Fecho as mãos em torno do seu vestido de seda. Dentro de
mim há um redemoinho de sentimentos que não consigo lidar.
Existem certos momentos em que ficamos impotentes, fracos, nessa
hora o que devemos fazer é apenas se recolher, libertar tudo o que
há dentro do coração.
Tudo passa... sempre dizem isso e de fato, tudo passa. Mas o
que permanece é a dor de ter sido destruído, essa dor é constante,
é para sempre, mesmo que lute para evitar, essa dor nunca vai
embora.
Sinto minha alma rachar, assim como senti por tantos anos. As
lembranças sempre serão fantasmas, mesmo sem conseguir te
dominar, tu sabes que ela está lá, no fundo, esperando uma brecha
para te dominar e te levar de volta para o abismo.
Eu não quero me perder... ou me entregar a essa dor que me
leva para o fundo a cada dia, meu desejo é apenas descansar e...
ser feliz pelo menos uma única vez em toda minha vida.
Fico observando-a andar pela cozinha. A saia do seu vestido
flutuando com delicadeza, seus cabelos grisalhos, tão perfeitos,
resplandece sob a luz da lâmpada florescente.
Seus olhos, aqueles que são quase idênticos aos meus, se
predem em mim, transluzindo sentimentos que não consigo ler,
talvez seja saudade, culpa ou arrependimento, ou todos eles em
uma mistura insuportável de emoção.
[7]
Mamãe coloca uma travessa de Vareniki sobre a mesa,
diante de mim e sorri.
— Esses eram seus preferidos.— Franzo a testa, sustentando
seu olhar.
— Na verdade, meus preferidossão os Pyrizhkyrecheado com
carne e cogumelo. — Seu rosto adquire uma expressão triste. —
Mas gosto desses da mesma forma. — Sorrio, pegando um dos
bolinhos.
Levo à boca, sentindo o sabor da massa e o recheio de carne.
Mamãe despeja suco no meu copo e me entrega, agradeço,
tomando um gole. Ela se senta, colocando os braços na mesa, me
observando atentamente enquanto devoro seus bolinhos, os quais
eu detesto.
— Tu estás foragido... a polícia está atrás de ti! — Paro de
mastigar, encarando seus olhos e estranhando seu tom de
advertência.
— Sim, eu sei... — Ela balança a cabeça, gesticulando para
que eu volte a comer.
— Onde tu estás ficando? — Dou de ombros.
— Fico vagando pela cidade, sem um lugar específico.—
Minto, engolindo a carne que praticamente inchou na minha boca.
Franzo as sobrancelhas, encarando o Vereniki.
— Estás limpo e não parece abatido, estás forte... — Elevo
meus olhos, mamãe me estuda. — Como estás conseguindo
dinheiro? Não me diga...
— Eu tenho amigos — corto-a, afastando os bolinhos de mim.
— Estou recebendo ajuda.
— De criminosos, presumo. — Resmunga, me lançando um
olhar decepcionado.
— Infelizmente, é o que sou, Mamis. — Recosto na cadeira,
ela inspira fundo e fita suas mãos. — Tu não me respondeste à
pergunta que fiz.
— Que pergunta?
— Sobre as cartas que enviei.
Dona Okasana ficame olhando por tempo demais para que eu
cogite que talvez esteja buscando alguma desculpa que justifique
sua ausência, no entanto, qualquer coisa que disser, vai ser a prova
de que ela está escondendo algo de mim em relação à toda essa
história.
— Não minta, Mamis — peço com a voz fraca, ela não
responde. — Foi o Artem? Ele que a proibiu de me ver? — Ela se
levanta, pegando a travessa de forma brusca e a levando até à pia.
— Quando o impacto da sua prisão chegou em todos, a única
coisa que senti era vergonha, ainda sinto, até hoje. — Encaro suas
costas, aperto os dentes com tanta forçaque sinto um pouco de dor.
— Não tínhamos dinheiro para um advogado. Quando tu foste
condenado... — Sua voz some, levanto-me e vou até ela, parando
ao seu lado para olhar seu rosto encharcado por lágrimas. —
Passamos meses difíceis,Ruslan. Artem tinha que trabalhar e sabe
como ele era acomodado. A crise econômica apertou e novamente
passamos fome... Quase fomos despejados dessa casa.
— Mas conseguiram, não é? — Mamãe assente, guardando o
restante dos bolinhos em um pote.
— Sim, pequeno, conseguimos graças a Mirom. — Fecho
meus olhos ao escutar seu nome. — Ele conseguiu se alistar no
exército e nos tirou do abismo. Desde então ele cuida da nossa
família.Estamos bem agora. Olesya e Artem tem um bom emprego,
é o que importa.
— Parabéns para vocês! — Digo, amargurado, me afastando.
— Tu tens que entender, Ruslan Rotam. — Mordo meu lábio,
meu nome completo sendo soado por ela é uma alerta da bronca
que levarei.
— Entender o quê? — Me viro, encarando seu olhar
autoritário. — Aceitar de cabeça baixa que fui abandonado por
minha família?Aceitar a humilhação que sofritanto de vocês quanto
dentro daquele inferno?Eu escrevi para vocês, pedi ajuda... Artem e
Mirom... — Fecho os olhos e fito o fogão. — Não existe uma
explicação para isso.
— E o fato de tu matar mulheres indefesas? — Olho para
mamãe com o coração acelerado. — Existe uma desculpa para o
que fizeste
?
— Eu não as matei!
— Prove, então! — Me desafia, jogando um pano de prato em
mim. — Se passaram catorze anos e tu diz a mesma coisa, que
nunca matou nenhuma daquelas mulheres, mas são palavras, cadê
a prova da sua inocência? De que é inocente. Até o momento, nada
disso tem! Enquanto tu não provares, continuarás sendo um
assassino, o Serial Killer de Kharkiv... a vergonha da família!
Ficamos um encarando o outro. A dor que sinto por assistir sua
decepção rasga meu coração. Apesar de estar com muita raiva de
sua declaração, no fundo ela está certa. Enquanto não tiver provas,
continuarei sendo o que todos julgam.
Abro a boca para falar, mas uma batida de porta de carro me
desperta. Olho para trás, escutando vozes que logo reconheço ser
de Artem e Mirom.
— Preciso ir — digo, me encaminho até a porta dos fundos.
Mamãe não diz nada, mas sinto seus olhos cravados nas
minhas costas. Seguro a maçaneta e a encaro por sobre o ombro.
— Nem que seja a última coisa que eu faça na minha vida, —
seus olhos estremecem — irei descobrir a verdade. — Saio pela
porta apressado. Avisto uma casinha de cachorro e olhos brilhantes
me encaram lá de dentro. Tensão ultrapassa meu corpo, mas não
paro, continuo atravessando o quintal repleto de rosas.
Chego no muro, e antes de pular, olho para trás a tempo de
ver pela janela Artem abraçar mamãe e Mirom sorrir, falando alguma
coisa que não compreendo.
Talvez seja inveja que esteja se alojando dentro de mim nesse
instante. Eu tinha sonhos, planos e objetivos, por vezes desejei uma
vida melhor, um emprego decente... estudo... porra, eu queria ser
um agrônomo...
Abaixo a cabeça, balançando-a de um lado para o outro,
inconformado com o rumo que minha vida se encaminhou. Tantos
sonhos destruídos... Pulo o muro, querendo esquecer de tudo, quem
sabe assim essa dor insuportável se torne mais suportável.
Entro no carro e soco o volante com tanta raiva que penso que
quebrei minha mão. Encosto a testa no volante, controlando a
respiração acelerada.
Voltarei para prisão e cumprirei pena perpétua, eles vão
intensificar a vigia, me isolar do mundo novamente e dessa vez só
sairei de lá, morto.
Ergo a cabeça, apertando o volante, uma luz azul e vermelha
invade o interior do carro. Antes de me afastar dos policiais que se
aproximam, fitominha antiga casa com a promessa de que isso não
ficará assim.
Sou o único que poderá expor a verdade... o único a me salvar
dessa escuridão. Farei isso não somente para esfregar o que
fizeram comigo, mas, sobretudo, ao chegar à noite, terei a certeza
de que não sou o assassino que todos acreditam que eu seja.
Depois de uma noite conturbada cheia de pesadelos, me
levanto sentindo dor por todo meu corpo causada pela tensão. Se
passaram dois dias desde que Ruslan me encontrou... dois dias
desde que Mirom invadiu minha casa.
— Bom dia, garoto — me agacho para acariciar Rony, que se
esgueira em minhas pernas, miando.
Desde ontem estou a observá-lo, sua agitação está me
deixando em alerta. Ontem esse gato mal comeu. Inspiro fundo,
preocupada não só com ele, mas com Ruslan também.
Vou até a Tv e coloco no desenho Pegue o pombo que mostra
as aventuras de Dirck Vigarista e sua Esquadrilha Abutre, caçando
freneticamente o pombo-correio Doodle, que leva mensagens
secretas para aliados durante a 1º Guerra Mundial.
Além dele ser uns dos desenhos que mais amo, era o preferido
da minha mãe. Juntas passávamos horas rindo e dublando “Vamos,
rapazes, não fiquemaí parados. É só um pombo e precisamos
pegá-lo...”
Deixo o controle na mesinha de centro, com uma inspiração
profunda. Começo a me arrumar, escutando as vozes de Dirck,
Muttley, Klunk e Zilly.
Depois de pronta, vou até a cozinha preparar o café,repetindo
tudo o que eles dizem, de cor e salteado.
Me inclino no balcão, encarando a TV. O bom desse desenho,
é que todos morrem na queda de avião e no episódio seguinte
ressuscitam, além de ter várias cenas pesadas para quem
realmente entende.
Em um dos episódios, Muttley passa por cima do pombo com o
avião. O pombo morre com as tripas para fora, a hélice do avião o
parte ao meio. Balanço a cabeça, porque morte não existe, apenas
suposições e a certeza de que ele ressuscitará.
Viva as impossibilidades dos desenhos animados.
Deixo a caneca na pia, repetindo suas palavras como se fosse
eu ali dentro, em um mundo onde tudo é possível.
— Prendam, segurem, agarrem, capturem. Peguem o pombo
agora... — De volta à frente da TV, me vejo fascinada por eles
estarem voando em aviões que se despedaçam conforme eles se
atrapalham. Olho para o lado quando Rony faz um barulho estranho.
Desligo a TV e vou até ele e estaco no lugar. Rony está
vomitando sem parar. Meu estômago revira e aperta. Ele não está
bem!
— Ei garoto, o que está acontecendo? — Rony levanta a
cabeça e me encara ao deitar no chão, fraco e com a respiração
cortante.
Seu olhar... o olhar que me direciona é de pura dor. Não estão
brilhantes como de costume. Vou até meu quarto e apanho uma
manta, o enrolo e pego-o no colo, caçando minhas coisas e meu
cartão de crédito que uso apenas em caso de emergência.
— Vai ficar tudo bem, okay? — Digo, tentando não me
apavorar.
Saio de casa apressada, Rony fecha os olhos. O tempo que
está comigo nunca o vi tão mal assim. Um nó se aloja na garganta,
e se... e se... Afasto essa ideia da mente.
— Ei, Gana!!! — Chamo assim que ela desce do carro.
— Laura, o que foi?
— Preciso de ajuda, meu gato está passando mal e... — Faço
uma pausa, acalmando meu desespero.
— Desde quando tu tens um gato? — Gana pergunta, se
inclinando no teto do carro, seu olhar cansado me avalia.
— Poucos dias. O que eu faço?
— Leve em um veterinário. — Ela diz, entrando de novo no
carro. — Vamos! — Me ajeito no banco com Rony aninhado em
meus braços.
Gana dirige em silêncio vendo minha preocupação. Depois de
longos minutos, ela para em frente a uma clínica veterinária 24
horas, me dizendo para entrarmos.
Desço e entro apressada. A recepcionista me olha alarmada,
depois vê Rony em meus braços, que geme de dor.
— Ele está passando muito mal. — Digo, apavorada.
— Preciso que esperes apenas alguns minutos — ela se
afasta e entra por uma porta.
Olho para Gana.
— Ele vai ficarbem? — Pergunto a ela, que acaricia com suas
unhas grandes e perfeitas a cabecinha de Rony.
— Creio que sim. Ele receberá o melhor dos atendimentos. —
Consta, tentando me tranquilizar de alguma forma. — Tu pareces
uma mãe desesperada. — Sorri para mim, comprimo meus lábios,
me virando quando a recepcionista retorna com uma mulher alta e
negra vestida com um macacão verde por baixo de um jaleco.
— Bom dia, sou a Doutora Darya — seus olhos se prendem
em Rony que está respirando com a boca aberta. — Me permite? —
Pergunta, apontando para ele.
— Sim, claro! — Darya se aproxima, coloca as mãos em Rony,
estudando-o com cuidado.
— Vamos para minha sala, necessito examiná-lo. — Olho para
Gana que assente. Sigo a doutora para dentro de sua sala. Coloco
Rony em cima da mesa de exames, tiro a manta enrolada em seu
corpo e me afasto para que Darya o examine.
Depois de alguns minutos, ela me olha.
— Me conte...
— Laura.
— Certo. — Diz, apalpando a barriga de Rony. — Conte-me o
que aconteceu com ele, Laura.
— Ontem percebi que Rony estava muito agitado, não comeu
muita coisa.
— O que esse garotão costuma comer? — Umedeço os lábios.
— Costumo lhe dar comida própria para gatos.
— Tu o criastedesde pequenino?
— Não, Rony está aos meus cuidados a pouco tempo. —
Darya me encara.
— Então tu não sabes se ele é vacinado, vermifugado... —
Nego com a cabeça, ela inspira fundoe acena. — Tudo bem, vamos
cuidar disso. — Diz. — Acredito que o melhor para ele é ficar
internado por agora para que eu possa fazer alguns exames e
descobrir o que ele tem. Vendo-o assim, indica início de anemia,
pode ser até mesmo problemas renais.
— Mas ele vai ficar bem?
— Vou fazer o possível para que sim, por isso necessito que o
deixe para que possa iniciar o tratamento. — Aperto meus lábios. —
Faz assim, Laura. Deixe-o aqui comigo, no final da tarde tu voltas.
Se ele estiver melhor, tu podes levá-lo para casa, se não estiver... tu
terás que deixá-lo internado. Pode ser?
— Sim — confirmo.
— Vou levá-lo para dentro, deixarei Rony no soro. Fica
tranquila, vai dar tudo certo! — Afirma,pegando o gato, acaricio sua
cabecinha em despedida antes dela levá-lo.
Deixo-me cair na cadeira com as pernas bambas. Apanho meu
celular dentro da bolsa, destravo e deslizo meu dedo na tela,
procurando o número em que Ruslan me mandou mensagem dois
dias atrás.
Fico encarando o celular, como se esperasse que me ligasse.
Fecho os olhos, levo o celular até o ouvido depois de selecionar a
opção ligar, a única voz que escuto é da secretária eletrônica.
Suspiro, devolvendo o celular à bolsa.
— Prontinho, Laura. — Darya volta, se sentando no outro lado
da mesa e começando a digitar no computador. — Não se
preocupes, cuidarei bem do seu garoto, só preciso observá-lo por
mais tempo por estar fraco. — Ela me olha com carinho, meu peito
aperta em ter que deixá-lo nas mãos de outras pessoas, mas é
necessário.
— Obrigada.
— Qualquer coisa, entro em contato contigo. Preciso apenas
que dê os seus dados e de Rony para Svitlana.
— Claro — confirmo, me levantando e saindo da sua sala.

Escoro a cabeça no banco depois de ter deixado Rony no


veterinário, me sentindo de repente, exausta. A tensão se esvaindo
de meus músculos me deixa impotente.
— Não fique muito preocupada, vai dar tudo certo. —
Tranquiliza Gana, me entregando um copo de café que acabou de
comprar. Agradeço, tomando um gole.
— E se não der?
— Laura, do que adiantará ficar com pensamentos negativos?
Ele está em boas mãos.
— Rony não é meu... — Murmuro, rodando o copo. — Está
apenas em meus cuidados.
— De quem ele é?
— De uma pessoa especial... — Fito seu rosto, Gana arqueia
uma sobrancelha, mas não diz nada. — Você parece cansada.
— Estou... — Confirma, recostando-se no banco e encarando
o prédio da AS. — Cansada de tudo, sabe?
— Não, não sei. — Ela suspira, dando um gole no café.
— Não tive uma noite muito boa...
— Você nunca me conta seus problemas.
— Meu mundo é... só existe sexo e dinheiro nele, Laura, só
que nunca sairei dessa vida, entende? — Gana me olha com o
semblante triste.
— Você já está saindo. Está estudando para encontrar outra
saída.
— Sim... — Ela limpa a garganta e me olha. — Eu venho
buscar-te para almoçarmos juntas e depois para buscar Rony, okay?
— Okay! — Abro a porta, mas não antes de fitar seu rosto
cansado. — Obrigada de novo.
— Estarei aqui sempre — assinto, descendo do carro.
Aceno em despedida e caminho para dentro da AS. Tomo o
último gole de café e travo na porta da minha sala. Meus colegas
não estão aqui, somente a Bogdana, sentada em uma cadeira
lixando suas unhas pintadas de rosa choque.
— Chegaste atrasada, Laurita! — Ela levanta os olhos sem
parar de lixar as unhas.
— Imprevistos acontecem. — Bogdana enruga os lábios e
aponta com a lixa na direção do escritório de Andry.
— Com seu atraso vem as consequências. Estás preparada?
— Não!
— É melhor que esteja, Andry está pistola hoje. — Deixo
minhas coisas sobre a mesa, suspirando.
— Estou indo.
— E eu voltando para recepção. — Declara, se levantando. —
Boa sorte com Andry, porque hoje já levei o sermão do mês inteiro.
— O que você fez? — Ela dá de ombros, passando por mim.
— Nada, esse é o problema!
Duvido muito que ela não tenha feito nada.
Fico encarando-a rebolar até sumir no corredor. Sigo meu
caminho, empurro a porta entreaberta do escritório de Andry e entro,
atraindo seu olhar enraivecido.
É ridículo, mas me sinto uma adolescente entrando na sala do
diretor depois de ter feito merda. Paro ao lado de Yaroslav, ele me
olha de esgueira, balançando a cabeça com sutileza e franzindo a
testa de tédio.
Aksinya e Justik estão com a mesma expressão que a de
Yaroslav, prestes a serem comidos vivos. Andry chama minha
atenção ao pigarrear. Ele me fita por cima dos óculos.
— Nove e meia da manhã... que eu saiba o seu horário é às
oito.
— Eu tive u...
— Não me importo — ele me corta sem nenhuma educação.
— Vamos às atualizações. Artem foi solto como Aksinya relatou na
coluna um dia depois dele ser preso, que foi uma das melhores
reportagens feitas por vocês. Tudo indica que o caso morreu, mas
como jornalistas, nosso dever é sempre relatar a verdade. Quero ele
estampado novamente na capa do jornal. Um policial na área de
homicídios deve ser mais sujo que chiqueiro.
— Só que não é tão fácil assim — Aksinya comenta, com a
voz cuidadosa. — Somos jornalistas Senhor Andry, não detetives.
Acho que estás a confundir as funções.
— Quem és tu para me dizer isto? — Aksinya abre a boca para
retrucar, mas se cala com um olhar severo do nosso chefe.
— E o andamento do documentário de Ruslan Rotam? —
Pergunta, se dirigindo a mim e Yaroslav. — O que mais descobriram
sobre a nova vítima desse maníaco? — Ranjo os dentes
escondendo meu incômodo pela forma que se referiu a ele. Yaroslav
prende a respiração, roçando o braço no meu.
— Não obtivemos muito sucesso, nenhum avanço. As pessoas
que têm alguma informação, foram todas entrevistadas. — Informo
com meu coração palpitando.
— E ficará por isso mesmo?
— Estamos indo atrás de informações, senhor. — Yaroslav se
pronuncia. — Só que...
— Não somos detetives! — Debocha Andry, suspirando e
recostando na cadeira.
— Temos um plano. — Yaroslav se adianta.
— Um plano? — Os olhos de Andry percorrem cada um de
nós.
— Sim. — Confirma Justik.
— Hum... vou ter que esperar até quando para
desembucharem? — Engulo em seco.
Nos entreolhamos, Justik tem os olhos arregalados. Aksinya
parece ter visto um fantasma. Yaroslav olha para todos os lados,
menos para Andry. Suspiro, entediada.
— Acredito que se nos aproximarmos de Okasana, — conto,
depois de tomar fôlego — poderemos descobrir alguma coisa em
relação à família.Artem mora com ela ainda e... talvez ela se abra e
nos conte mais sobre Ruslan e seus filhos. — Andry fica me
encarando, vejo em seus olhos dúvidas, ele está se questionando
se isso valerá a pena.
— Estávamos pensando em talvez... seguir Artem, algo do
tipo. — Justik fala, fazendo Andry desviar o olhar de mim e encará-
lo.
— Nem pensar.
— Como dizes? — Justik ergue as sobrancelhas, surpreso
com a recusa do nosso chefe.
— Vocês são uma péssima equipe de jornalistas investigativos.
Achaste que eu iria permitir que seguissem um policial corrupto? —
Justik engole em seco. — Temos que ter um limite, e esse é
ultrapassar o bom senso. — Andry me olha. — Gostei da tua ideia,
faça acontecer. Enquanto isso, continuem com as outras
reportagens. Hoje de manhã recebi uma informação sobre um caso
de feminicídio, quero que façam uma reportagem impactante
usando esse tema...
Enquanto Andry jorra informações e ordens, permito que
minha mente se desligue do meu chefe. O engraçado, apesar de
tudo, sempre quem estão nas manchetes são os assassinos,
estupradores, agressores, nunca uma mãe de famíliaque trabalha
para sustentar seus filhos sem ajuda de um marido. Ou as
Babushkas que trabalham nas feirascom idades tão avançadas que
deveriam estar descansando depois de tanto se doarem, ou das
crianças que estão jogadas nas ruas, roubando para conseguir um
pouco de dinheiro, passando fome e frio.
Isso sim faria diferença, conscientizaríamos toda a população
de que devemos abrir os olhos para essa situação, não dar ibope a
criminosos. Porém, a AS reporta o que vende, o que desperta o
interesse nas pessoas e a conscientização não é uma delas.
Escorrego na cadeira, rodando-a com o pé de um lado para o
outro, fitando o teto e escutando Aksinya digitar freneticamente.
— Saudade da época em que eu escrevia sobre literatura. —
Lamenta Justik, comendo éclairintergaláctico,
as ponta dos seus
dedos estão azuis, assim como seus lábios.
Parece uma criança se lambuzando com doce.
— Andry é que nem o Dick Vigarista do desenho pegue o
pombo. — Revelo, chamando a atenção deles.
Não desvio o olhar do teto, esperando que continuem a linha
do meu raciocínio.
— Rabugento e vive reclamando dos outros e nos xingando. —
Yaroslav diz, estalando a língua. — Só falta nos chamar de
palermas, tirando o fato de suas ordens darem sempre errado.
— "Raios!RaiosDuplos!RaiosTriplos!"— Imito a voz de Dick
quando algo dá errado. Todos riem da minha atuação.
— A Bogdana é o Mutley. — Declara Aksinya, entrando na
brincadeira. — Sempre em busca de medalha, ou melhor, de
promoção.
— "Medalha, medalha, medalha" — Imito a voz do cachorro
Mutley, dando sua risadinha no final.
Todos gargalham novamente, se divertindo com nossa
comparação.
— Zilly é o Justik. — Aponto para ele, seus olhos se
arregalam. — Na verdade, Tanto Justik quanto Yaroslav são o Zilly!
— Nós? — Justik sibila, engolindo o último pedaço do seu
doce, Yaroslav apenas ri.
— Claro, cagões do jeito que são! — Retruca Aksinya.
— Vocês são tímidos e medrosos. Yaroslav não pode ver um
cadáver que está colocando as tripas para fora.
— Justik é mijão. — Rebate Aksinya, rindo de Justik que lhe
joga uma bola de papel, ela desvia.
— São os menos preocupados em capturar o pombo. Quando
sentem medo escondem-se em seu uniforme de aviador ou fogem
no momento de embarcar no avião, deixando a roupa e sumindo por
debaixo da terra.
— Como eu disse, são cagões! — Assinto para ela, que ri mais
ainda, sem parar de digitar.
— E tu és o Klunk. — Justik diz, me olhando com expectativa.
— Eu?!
— Sim, tu! — Viro para Yaroslav. — Klunk é inteligente, o
mesmo que projeta e constrói as absurdas e incríveis máquinasque
são utilizadas para capturar o pombo. Ele é calmo, possui sotaque,
tu tens sotaque, se falarportuguês ninguém aqui vai entender. Klunk
é legal também.
— Concordo — anuncia Aksinya.
— Eu também! — Confirma Justik, dou de ombros.
— A Aksinya é o General. — Me endireito na cadeira, ela para
de digitar para me olhar por cima da sua cabine. — É um dos
personagens mais misteriosos, nunca foi visto, aparece apenas
depois dos fracassos do grupo por meio de telefonemas com uma
voz gritalhona. Mas a questão não é por ser misteriosa, mas sim
autoritária, mandona e um pouco... estressada demais. — Aksinya
estreita os olhos, me fuzilando de forma brincalhona.
— Não sou assim...
— É sim! — Justik a interrompe, ela rosna para ele. — Vivi
anos contigo, meus ouvidos sofreram com suas ligações que eram
só gritos. — Resmunga, se sentando aborrecido.
— Muito mimimi... — Desdenha, voltando a digitar e segurando
o riso.
Yaroslav não consegue segurar e muito menos Justik, em
segundos os três estão gargalhando. A vibração de suas risadas
preenche meu coração. Queria poder sorrir e gargalhar como eles
estão fazendo agora.
É tão bonito...
— E quem é o pombo? — Pergunta Aksinya.
— Ruslan Rotam, óbvio! — Afirma Yaroslav.
— A Patrulha Abutre em ação... — Justik fala com uma voz
arrastada.
— Vamos, rapazes, não fiquem aí parados. — Cantarolo,
desligando meu computador e juntando minhas coisas. — É só um
pombo e precisamos pegá-lo...
— Ou senão Andry arrancará nosso salário. — Aksinya canta,
saindo do roteiro.
— Nossas cabeças ele irá arrancar! — Justik estremece, rindo.
— Então pegue o pombo. Pegue o pombo... — Canto, eles
riem, acenando para mim e para Yaroslav.
— Até logo, Klunk. — Aksinya se despede com um aceno,
retribuo.
— Adeus, Patrulha de Abutre. — Justik sai em disparada atrás
dela, que nem um cachorrinho.
Suspiro, balançando a cabeça e pegando meu celular.
Na hora do almoço acabei ligando para Darya, querendo saber
como estava Rony. A notícia não foi muito boa, ele voltou a vomitar
e precisará passar a noite lá, podendo receber visita somente de
manhã, só poderei vê-lo amanhã. Desde então não recebi mais
nenhuma notícia dele, nem de Ruslan.
— Laura? — Olho para Yaroslav, tinha me esquecido de que
ele ainda estava aqui.
— Pensei que você tinha ido embora.
— Tu estavas inerte demais. — Comprimo meus lábios. — Ele
não te deu notícias, não é? — Assinto, Yaroslav inspira fundo, se
aproximando.
— Estou mais preocupada com Rony. — Confesso, Yaroslav
sorri. — Rony precisa de mim, Ruslan sabe se cuidar.
— Entendo. Entendo também que esse gato é tudo que Ruslan
tem, por isso que está tão dispersa. — Abaixo a cabeça.
É horrível quando alguém te conhece tão bem.
— É...
— Mudando de assunto... — Ele olha para os lados antes de
se aproximar da minha cabine. — Precisamos dos arquivos de todas
as vítimas de Ruslan, sabe como é? Tipo nos seriados e filmes de
detetives. — Yaroslav arregala os olhos, como se estivesse fazendo
suspense.
— Mas as informações que temos são somente pelos jornais,
são redundantes!
— Sim, eu sei! — Ele passa a língua nos lábios, voltando a
olhar para os lados e abaixa a voz ao falar. — Tenho um amigo, que
tem um amigo e esse amigo tem um conhecido dentro da polícia.
— Muita gente até chegar no específico...— Yaroslav revira os
olhos.
— O que eu quero dizer, é que podemos conseguir o contato
dessa pessoa. Então obtemos a cópia dos arquivos.
— E quanto isso vai nos custar? — Arqueio a sobrancelha,
porque sempre há um preço.
— Não é barato...
— Eu não tenho dinheiro!
— Nem eu! — Yaroslav se afasta, aborrecido. — Mas Andry
tem. — Enrugo meus lábios.
— Será?
— Temos que tentar, não? — Suspiro, abaixando os ombros e
concordando. Pego minhas coisas, levanto e aponto para a saída,
para irmos embora e lavar todo esse dia exaustivo.
Yaroslav conversa por todo caminho, coisas aleatórias como
notícias de fofocas que viu na internet, mostrando vídeos
engraçados do TikTok. Franzo a testa quando ele gargalha até
chorar de um vídeo totalmente sem noção e sem graça.
— Certo... — Murmuro, fazendo-o rir mais ainda, me inclino em
sua direção e passo o vídeo com meu dedo na tela do seu celular.
— Besta!
Ele revira os olhos, segundos depois volta a gargalhar de outro
vídeo, fico apenas o encarando, tentando entender onde tem graça.
Quando mais olha para mim, mais ri.
— Eu vou mijar na roupa! — Declara, se contorcendo, apenas
balanço a cabeça, saindo do elevador e fingido não fazer ideia de
quem possa ser essa hiena.
Estaco de uma vez ao olhar para frente. Yaroslav esbarra em
mim, percebendo quem está parada na portaria. Engulo em seco,
me aproximando de Okasana.
— Senhora Okasana? — Ela se vira, prendendo os olhos na
gente.
— Olá, Laura e Yaroslav. — Cumprimenta, sorrindo.
— A senhora está esperando alguém? — Yaroslav pergunta,
me olhando por alguns segundos.
— Ah, sim, estava aguardando vocês.
— Nós? — Ela assente, abraçando sua bolsa.
— É que passei por essa redondeza e lembrei-me de vocês,
de como são simpáticos. Então gostaria de chamá-los para jantar
comigo hoje. — Surpresa me percorre, não estava esperando por
isso.
— Oh... — Yaroslav me fita, assustado. — Eu acho que n... —
Ele se cala quando lhe dou uma cotovelada sutil.
— Gostaríamos muito de acompanhá-la essa noite, senhora
Okasana, mas marquei com uma amiga de jantar com ela...
— Não, não se preocupes. — Me corta, sorrindo de novo. —
Leve-a contigo, há muito tempo não recebo visitas.
Eu e Yaroslav nos entreolhamos. Uma aproximação era nosso
plano, mas... não estávamos preparados para ser tão rápido assim.
Volto a encarar os olhos cheios de expectativas de Okasana,
ao mesmo tempo que vejo também uma tristeza dentro deles.
Mordo meu lábio inferior, assentindo.
Se é para arquitetar uma aproximação, que seja agora, nesse
exato momento.
Okasana sorri com um brilho no olhar. Yaroslav se remexe ao
meu lado. Apesar de termos esse plano, nenhum dos dois quer essa
aproximação, no finaldas contas. Ele me olha apavorado sem poder
recusar.
— Vamos? — Pergunto, apontando para o estacionamento.
— Claro, estou pensando em que comida prepararei para
vocês.
— Acredito que qualquer comida que a senhora fizer, será
divina. — Diz Yaroslav, a enaltecendo.
— Não pense demasiado nisso, eu erro a mão, garoto. — Ele
ri, abaixando a cabeça um pouco envergonhado.
Logo à frente avisto Gana escorada no xoxo mexendo no
celular. Ela está vestida com um mini short, uma blusa de manga
que deixa sua barriga zero gordura de fora, com um piercing no
umbigo. A bota de salto e cano curto deixa suas pernas torneadas
alongadas, uma verdadeira modelo de tirar o fôlego.
— Gana? — Ela levanta a cabeça, olhando para nós três antes
de sorrir.
— Oiiii, temos companhia hoje? — Gana desencosta do carro
e guarda o celular no bolso de trás do short, se aproximando.
— Gana, essa é Okasana Rotam, ela nos convidou para
jantarmos com ela hoje. — Seu sorriso vacila por um instante,
lembrando de tudo o que lhe disse.
— Comida caseira, senhora Okasana? — Olho para a senhora
ao meu lado que fita Gana dos pés à cabeça.
Yaroslav encontra com meu olhar, esperando que a julgue por
seu estilo de vestir.
— Tu não sentes frio, querida? — Okasana pergunta, com a
testa franzida.
Gana me olha de soslaio, seu sorriso querendo desaparecer,
mas ela o mantém, mesmo com suas bochechas avermelhadas.
— Me acostumei....
— Tu trabalhas de quê? — A senhora pergunta, cheia de
incertezas.
— Sou... professora de dança. — Gana mente, limpando a
garganta e fazendo de tudo para não deixar o sorriso morrer de
constrangimento.
— Então és dançarina?
— Sim, sou sim!
— Hum... — Okasana me olha inexpressiva, meu coração
aperta. — Ganha muito bem? — Ela volta a encarar Gana que abre
a boca, surpresa.
— Sim, ganho super bem! — Apressa em dizer.
— Estás convidada, já que és amiga de Laura e Yaroslav. —
Okasana fala de forma fria, franzo o cenho.
— Ah... não te preocupes com isto, não quero incomodar de
forma alguma.
— Tu estás convidada, meu desejo é que vás — Okasana
insiste, firme.
Gana nos olha de novo, engolindo em seco e assente.
— Certo, então podemos ir? — Pergunta, tirando a chave do
carro do bolso e desativando o alarme.
— Esse carro é seu? — A voz de Okasana sai surpresa, Gana
assente devagar, encarando a expressão impassível da senhora.
— Sim...
— Pensei que era de Laura.
— Ah... — Me adianto a esclarecer o mal entendido. — Não
tenho carro, temos apenas um acordo, eu fico durante o dia. Gana
trabalha à noite.
Okasana assente de leve, segundos depois sorri. Um sorriso
largo e alegre.
— Parabéns Gana, tu és muito linda. — Okasana elogia, se
sentando no banco de trás com ajuda de Yaroslav.
Ele fecha a porta e nos olha com o rosto enrugado e
constrangido. Gana o abraça antes de assumir o banco do
motorista, sem me olhar.
Inspiro fundo, entrando logo em seguida, me arrependendo no
mesmo instante por ter aceito o convite.
— Só me informar o caminho... — Gana pede, saindo do
estacionamento.
Okasana a instrui por qual caminho deve seguir. Yaroslav de
alguma forma quebra a tensão entre nós com seu jeito
descontraído. Gana começa a relaxar, mesmo me lançando olhares
cheios de perguntas.
Ela para rente à calçada da casa de Okasana.
— Chegamos, majestades — diz, desafivelando o cinto.
Yaroslav e Okasana saem primeiro, se dirigindo ao portão.
Olho para Gana que balança a perna sem parar.
— Tu viste a forma que ela me analisou? — Aperto meus
lábios, vendo-a batucar as unhas contra o volante. — Okasana não
gostou de mim, fato!
— Não pense assim, foi apenas um impacto, ela é uma
senhora sistemática. Sabe como são essas pessoas antigas. —
Gana abaixa o olhar, assentindo.
— Já p... — Ela solta um grito assustado ao escutar Yaroslav
batucar a janela, nos chamando para entrar.
Gana respira fundoe sai do carro, dando o seu melhor sorriso,
o mesmo que deixa qualquer um fascinado por ela. Os acompanho,
sentindo meu coração acelerado, temendo outro ataque de Axel, a
rottweiler de Mirom.
Okasana fecha a porta quando entramos na sala, coloca a
bolsa no sofá e nos encara, sorrindo.
— Sejam bem-vindos!
— É muito bom estar aqui novamente, senhora...
— Pare de me chamar assim, garoto! — Ela adverte Yaroslav,
batendo de leve em seu ombro, tirando uma risada dele. — Sei que
sou velha, mas não necessitasde me lembrar a todo instante.
— Perdoe-me, Okasana — ela assente, satisfeita, olhando
para Gana.
— Fique à vontade, querida, minha casa és tua casa. — Ela
assente. — Venham, vamos para a cozinha. Tenho certeza que
estão famintos depois de um longo dia de trabalho.
— Não vou mentir, senhora... — Okasana lança um olhar
bravo em direção a Yaroslav que ergue as mãos em rendição. —
Estou com muita fome, Okasana, não vou mentir. — Conserta,
fazendo-a rir.
Observo-a colocar o avental enquanto interage com Yaroslav,
puxando Gana para conversar. Escoro na parede com os braços
cruzados, lembrando da mamãe. Amanhã é seu aniversário e... que
saudade...
Meus olhos navegam pela cozinha, parando em uma foto
antiga onde Okasana está sentada com três meninos à sua volta e
um bebê em seu colo. Acredito que eles sejam Mirom, Artem e
Ruslan, o bebê a Olesya.
— A senhora foiquem criou Mirom? — Pergunto, Okasana me
olha por sobre o ombro.
— Ele não tinha uma relação muito boa com a mãe e nem com
o pai. — Revela, picando em cubos a carne. — Então sempre
estavas aqui com a gente, sou como uma mãe para ele, mais do
que aquela que o colocou no mundo.
Sinto sua raiva pelo tom de voz. Gana fica me olhando,
percebendo aos poucos os motivos de eu estar aqui. Ela apenas
balança a cabeça, voltando a lavar os legumes.
— Eu vi que tu que fizestea reportagem de Artem — conta,
impassível, sem me olhar.
Fico tensa, desencosto da parede e arrasto uma cadeira para
me sentar.
— É o meu trabalho, estava presente quando tudo aconteceu.
— Sim, eu entendo! — Okasana fala, soltando a faca. — Só
não compreendo — ela faz uma pausa ao colocar a panela no fogo
— onde errei na criação dos meus filhos. — Conclui com decepção
visível em sua expressão.
— Não se condenes por isso. — Yaroslav fala. — Tu fizesteo
que podias, eles são adultos, sabem o que fazem, Okasana.
— Não foi o suficiente, filho. — Ela olha para Gana, que lava
os legumes com ombros tensos. — Tu tens mãe, pequena?
— Eu? — Gana a encara, confusa.— Tinha! — A senhora fica
em silêncio por alguns segundos.
— Sinto muitíssimo.
— Faz muito tempo — Ela tranquiliza Okasana com um sorriso
que não chega aos olhos.
— E tu, Laura? — Os olhos de todos se prendem em mim,
meu coração salta acelerado.
— Ela está no Brasil. — Revelo, rodando a maçã que peguei
no cesto em cima da mesa.
— Tens contato com ela? — Olho para Gana que me encara.
— Laura é apaixonada pela mãe, dona Okasana, precisa ver o
quanto elas são idênticas. — Assinto, agradecida por Gana ter
tomado a frente.
— Sério? — Okasana pergunta, me olhando.
— Sim — confirmo, buscando uma forma de mudar de
assunto.
— Okasana? — Yaroslav a chama. — Eu acho que tu deverias
abrir um restaurante para sempre nos alimentarmos. — Ela ri,
batendo nele com um guardanapo.
— Quero descansar, querido, esses meninos me dão muito
trabalho.
— Meninos não, homens, né? — Yaroslav a lembra, fazendo-
a dar de ombros. Para uma mãe seus filhos serão sempre meninos.
Minutos se passam entre conversas e risadas. Fico
observando cada um deles, calada e admirada por Okasana deixar
tudo mais leve.
Sinto meu peito apertar ao lembrar de seus olhos verdes e
perturbados me encarando como se eu fosse a única a existir no
mundo.
Suspiro, finalmente mordendo a maçã.
Quando é que ele me ligará? Quando me reencontrará de
novo?
Pequena flor
... que saudades de ouvir sua voz e de... seu
toque. Desde meus dezoito anos moro sozinha, então nunca tive a
sensação de minha casa estar tão grande e solitária como agora.
— Laura!? — Levanto a cabeça, piscando ao escutar Okasana
me chamar.
— Sim?
— Tu és calada e quietinha — diz, me estudando
minuciosamente.
— Laura é reservada, dona Okasana — Yaroslav informa,
sempre me poupando de responder.
— Observa mais do que fala — acrescenta Gana.
— Por quê? — Okasana indaga, me avaliando.
— É... — Pigarreio. — Creio que sou assim desde que me
lembro.
— Eu sou risonho desde que nasci, dona Okasana. — Ela
olha para meu colega, amassando as batatas cozidas. — Tu
precisasver minhas fotos de infância, sempre com um sorriso nos
lábios. Gargalhando até ver a garganta.
— Eu já vi as fotos desse garoto, e posso afirmar que é
verdade. — Gana conta, divertida, concordo com ela em relação as
fotos.
Okasana volta a me olhar, notando o desespero deles de tirar
o foco de mim. Ao ver seus olhos repleto de perguntas, depois de
tomar ar para falar, me levanto apressada e me adianto ao dizer:
— Preciso ir ao banheiro. — Ela faz uma pausa, piscando.
— Ah, sim, querida! — Okasana aponta para o corredor atrás
de mim. — É só virar à direita no corredor, é a quarta porta à
esquerda.
— Obrigada, será rápido.
— Tempo de prepararmos a mesa. — Assinto antes de seguir
pelo corredor.
Meu coração entoa em meus ouvidos com a tensão correndo
por meu corpo. Não tenho intenção de ir necessariamente ao
banheiro, mas sim... investigar o real intuito de estar aqui.
Paro no corredor escuro, sombrio. Calafrio sobe por minha
espinha enquanto em passos lentos adentro no espaço que parece
se fechar a qualquer momento.
Encaro a primeira porta à minha esquerda. Coloco a mão na
madeira e deslizo até a maçaneta, fechando meus dedos em torno
dela. Prendo a respiração. Esse quarto é de um dos três moradores
daqui.
Giro com cuidado, forço a porta para frente, nada acontece,
está trancada. Solto a respiração, mordendo o interior do meu lábio
e me dirijo à próxima porta.
Meu coração bombeia em meus ouvidos. A adrenalina corre
por minhas veias ao abrir a segunda porta. Engulo em seco,
escancarando-a. Dou um passo à frente, entrado no quarto que
parece ser de... Okasana.
O perfume de rosas invade minhas narinas. Olho para o fimdo
corredor, me certificando de que não há ninguém e fecho a porta
atrás de mim.
— O que faço agora? — Sussurro, percorrendo meus olhos
pelo quarto decorado com as cores branco e vermelho.
A colcha e almofadas vermelhas fazem uma combinação
perfeita com os móveis e as paredes branco gelo. Em cima dos
criados mudos há vasos de rosas de várias cores, todas, suponho
eu, são do seu jardim.
Afasto a cortina da janela, a luz do luar ilumina todo o jardim,
os botões de rosas estão prestes a abrirem, todas elas balançam
suavemente conforme o vento as tocam em uma dança delicada.
Me afasto, contornando o quarto em busca de alguma coisa.
Abro as portas do armário e as gavetas, apalpando para encontrar
algo escondido.
Depois de alguns segundos e de ter olhado em baixo da cama
de casal, decreto minha procura um fracasso total. Não há nada de
comprometedor.
Giro meus calcanhares, fincando meus pés no lugar quando
meus olhos se prendem na foto de Ruslan em cima da cômoda. Ele
está sorrindo com um cesto cheio de rosas nos braços, um sorriso
tão... vivo que aperta meu coração.
Ele sorri para mim, mas não dessa formatão cheio de vida. Me
aproximo da fotografiae contorno meus dedos por seu rosto. Ruslan
tinha quantos anos aqui? Dezesseis?
Queria poder rever esse brilho nos seus olhos de novo, o qual
se perdeu quando tudo aconteceu.
Me apresso para sair do quarto de Okasana. Fecho a porta
com cuidado e aguardo alguns segundos antes de partir para o
próximo.
Será o de Artem ou de Mirom?
Giro a maçaneta e congelo, ponderando os prós e contras
dessa burrice. Afasto a sensação de alerta que grita para que eu
esqueça essa ideia ao escancarar a porta. Fecho as mãos em
punho, dando dois passos à frente, adentrando no quarto que
parece ser de... Mirom.
Meu coração acelera, desejando ter sido o de Artem e não
desse louco lunático. Entretanto, já que estou na chuva, irei me
molhar.
Fecho a porta atrás de mim, encostando-me nela e estudando
o lugar. Nas paredes brancas estão penduradas fotosde quando ele
era pequeno, adolescente e de quando se alistou no exército. Uma
das fotos parece ser do dia em que conseguiu entrar na SBU.
Em quase todas estão Artem e Okasana, sorrindo com a vitória
dele. Raiva perdura em meu coração. Os sorrisos, as conquistas...
Ruslan foi privado de tudo isso.
Desencosto da porta e paro diante de uma foto onde ele está
abraçado com uma jovem sorridente, sentados no capô de uma
BMW esportiva. Parecem tão apaixonados... a única foto com
mulher entre tantas outras em torno do seu quarto.
Apresso-me a vasculhar suas coisas. Em cima do criado mudo
há pulseiras de relógios, balas de menta e uma cartela de cigarro.
Vou até seu armário e abro as portas de correr, vasculhando por
entre suas roupas, fardas e gavetas.
Congelo ao abrir a outra porta do guarda-roupa, amaldiçoando
todos os demônios.
— Oh, merda!
Meus olhos se prendem em cada arma pendurada na parede
do armário. Armas de fogo que não faço ideia de como se chamam.
Talvez fuzil... metralhadora?
Contorço meus lábios sabendo perfeitamente o quanto são
perigosas, letais. Todas escuras, brilhantes e tentadoras.
Reconheço as pistolas, Gana tem uma escondida na gaveta de
calcinhas.
Quando a levou, disse-me que era para se proteger por morar
em um prédio onde noventa por cento eram criminosos e bêbados
de merda. Palavras dela.
Não disse nada em relação a ela ter uma arma em casa, não
sou ignorante ao ponto de discutir sobre segurança. Ainda mais ela
que... se envolve com qualquer tipo de homem, que paga qualquer
valor para tê-la na cama.
Fecho as portas com cuidado. Solto a respiração que prendia e
me aproximo da cama de solteiro perfeitamente arrumada e
impecável. Coloco meus cabelos de lado e me agacho, afastando a
colcha que arrasta no chão para olhar por debaixo da cama.
Estico minha mão, puxando uma caixa preta em minha
direção. Meu sangue pulsa em meus ouvidos, encaro a caixa e olho
para trás antes de tirar a tampa.
Engulo com dificuldade ao ver o conteúdo. Há fotos de
mulheres... várias mulheres, todas jovens. Há envelopes que
aparentam ser de cartas.
A pergunta que não quer calar é: por que Mirom tem fotos de
mulheres em uma caixa debaixo da cama?
Franzo a testa, encarando uma foto. A mulher está sorrindo em
frente a uma mansão de luxo. Afasto as fotos e paraliso ao ler o
destinatário de uma das cartas.
Para:Mirom Mandichevsky
De:Ruslan Rotam
Logo abaixo revela a data... meses atrás. Apressada por
perceber que demorei demais aqui no quarto de Mirom, seguro a
carta e fechoa caixa, me levantando a tempo de escutar a porta ser
aberta.
Meu coração acelera, chuto a caixa para debaixo da cama e
escondo a carta na minha barriga, tampando com minha blusa.
Aperto meus dentes ao sentir seu perfume, não preciso me
virar para saber que Mirom está parado atrás de mim. Sua presença
é notada pelo simples impacto que tem sobre as pessoas.
— Por que não me surpreendo em vê-la aqui? — Sua voz me
estremece, umedeço meus lábios e me viro, encontrando seus olhos
fumegantes de ódio.
— Eu... eu... — Limpo a garganta sem conseguir me explicar,
ou melhor, esclarecer uma mentira.
Mirom arqueia uma sobrancelha.
— Confundistecom o banheiro, certo? — Assinto devagar, ele
entra, fechando a porta atrás de si. — Entãoencontraste meu quarto
e... achou atraente?
— Suas fotos... — Aponto com o queixo. — Elas me atraíram.
— Mirom sorri de lado, sem acreditar em minha desculpa.
— Gosto de registrar momentos — revela, desabotoando os
primeiros botões da sua fardaescura. — Me ajuda a lembrar do que
conquistei.
— Muitas coisas, pelo visto.
Seus olhos se encontram com os meus, frios como um cubo
de gelo. Mirom se inclina e desafivela o coldre preso em sua coxa,
depois duas pequenas facas presas no tornozelo, colocando-as em
cima da cômoda com um baque.
Sobressalto, sem desprender do seu olhar inexpressivo.
— Hoje foi um dia cansativo — conta, tirando também o colete
que usa. Mirom está tirando sua armadura. — Tivemos uma
operação contra terroristas rebeldes de merda. Acertei três na
cabeça. — Mirom começa a desmontar uma pistola que tirou atrás
das costas. — Era eu ou eles. Matar às vezes é a única solução
diante de um desafio que te coloca em risco. Somos selvagens,
dentro de cada um há um instinto assassino.
— Por que está me contando isso? — Mirom sorri, friamente,
se recostando na cômoda e cruzando os braços, me avaliando.
— Um jornalista foi baleado no tiroteio. — Ele estala a língua.
— Qual o sentido de colocar a vida em risco por uma matéria de
merda?
— É o nosso trabalho... — me calo quando ele solta uma
gargalhada.
— São obrigados? — Abro a boca para retrucar, mas me calo,
recuando um passo quando ele se aproxima como um predador.
Medo me faz encolher, entro em alerta.
— Todos nós temos escolha, ninguém é dono de ninguém,
Lauriana.
— Não me chama assim! — Peço.
Os olhos de Mirom brilham ao notar meu medo. Sou uma
diversão para seu tédio.
— Como está seu gato? — Pergunta com ruindade cravado no
olhar.
Não respondo, apenas sustento seu olhar.
— O banheiro é no fimdo corredor — diz, passando por mim e
abrindo a porta do guarda-roupa, onde estão suas armas.
Engulo em seco e me seguro para não sair correndo. Controlo-
me ao abrir a porta e sem o encarar, saio do quarto indo direto ao
banheiro, me trancando e permitindo respirar novamente.
— Merda! — Xingo em voz alta, tirando a carta escondida na
barriga e a encarando.
Dentro daquela caixa há informações das quais talvez eu
esteja procurando. Fecho meus olhos, me acalmando antes de
voltar.
Escondo a carta e depois de longos minutos saio em direção à
cozinha, fingindo que nada aconteceu. Sinto-me tensa e nervosa,
apavorada com a certeza de que Mirom está aqui e sabe
perfeitamente que mexi em suas coisas.
Meus olhos encontram Gana de imediato ao chegar na
cozinha. Ela está encostada na pia, pálida como se tivesse visto um
fantasma, assim como Yaroslav. A tensão irradia por cada poro dos
seus corpos.
Mirom está sentado à mesa, ainda fardado, implacavelmente
relaxado na cadeira enquanto conversa com Okasana sobre seu
dia.
Seus olhos se voltam para mim e um sorriso cínico estica em
seus lábios, contorcendo meu estômago e despertando em mim a
vontade louca de ir embora.
Ele é apavorante!
— Estávamos esperando por tu, Laura. — Okasana diz,
afastando uma cadeira e indicando para que me sente. — Tu
demoraste, estás tudo bem?
— Sim...
— Só curiosidade, mamãe. — Mirom falacom a voz arrastada,
me acompanhando com o olhar até eu me sentar à mesa. — Tu tens
belos amigos. — Ele aponta com o queixo em direção a Yaroslav e
Gana. Vejo maldade em seu olhar. — Conheço o jornalistinha
, agora
a prostitut...
— Gana, o nome dela é Gana. — Corto-o, ele solta uma risada
rouca.
— Bom te rever, Mirom — Yaroslav o cumprimenta, se
sentando ao meu lado esquerdo.
— Gostaria de dizer o mesmo.
— Não seja desagradável, Mirom! — Okasana o adverte.
Me viro quando Gana se senta ao meu lado direito, tensa com
a presença de Mirom. Volto a encará-lo, ele inclina a cabeça,
estudando-a com cuidado, sem nenhuma emoção.
— Acho que tu foste enganada. — Fala para Gana, que o
encara confusa.
— O quê?
— Eles esqueceram de te vender o resto da tua roupa. —
Gana enrijece, seu pescoço adquire um tom avermelhado. O
silêncio é substituído pela risada sarcástica de Mirom.
— Talvez eu tenha deixado o restante da roupa na loja,
preferindo apenas esses pedaços de pano. — Retruca ela, fazendo
o sorriso de Mirom se alargar ainda mais.
— Quanto uma prostituta ganha? — Pergunta, se ajeitando na
cadeira e se inclinando sobre a mesa. — Quantos homens tu comes
em uma noite? Três? Quatro? Ou vários?
Gana fica congelada, assim como eu e Yaroslav. Os olhos de
Mirom nos percorrem, apesar do sorriso, não há nenhuma diversão.
— Sou uma dançarina...
— De pau! — Ele completa.
Gana se remexe em desconforto, seguro sua perna por baixo
da mesa, a tranquilizando. Ela apenas balança a cabeça. Olho para
Okasana que apenas nos observa.
— Mirom, pelo amor de Deus, não seja desagradável. — Ele
se recosta na cadeira, batendo as mãos na mesa, fazendo um
baque, nos assustando.
— Tive um dia estressante. — Fala para Okasana,
comprimindo os lábios. — Como estava dizendo a Laura ao
encontrá-la dentro do meu quarto, hoje aniquilei três homens em um
tiroteio e um jornalista foi baleado. Como disse, foi estressante. —
Abaixo a cabeça e passo a mão sobre a sobrancelha, rangendo os
dentes.
— Ela estava em seu quarto? — Pergunta Okasana.
— Eu a encontrei lá. — Olho para ele.
— Ah, deve ter errado a porta do banheiro.
— Foi o que me disse. — Ele sustenta meu olhar por alguns
segundos antes de se prenderem em Okasana.
Sinto o olhar de Yaroslav em mim, minha perna começa a
balançar.
— Certo, vamos jantar, todos devem estar famintos. —
Okasana sorri, tentando amenizar o clima pesado na mesa. —
Querida? — Ela chama por Gana. — Não ligue para o que Mirom
diz, ele é muito... antipático.
— Tudo bem! — Gana a tranquiliza, pegando o prato que
Okasana estende.
— Yaroslav, quero ver tu raspar todo o prato.
— Pode deixar que isso eu dou conta — ele responde,
sorrindo.
Finalmente permito-me olhar pela mesa, encontrando
travessas de Vareniki
, Borsch repleto de legumes, arroz e macarrão
com carne e milho. Parece estar delicioso, minha boca saliva.
— O que mais tu consegues fazer? — Mirom pergunta a
Yaroslav, encarando-o. — Comer macho?
— Céus Mirom! — Okasana grita, jogando em seu rosto o
pano de prato. — Eles são minhas visitas, não permitirei que tu os
trates desta forma repugnante. Não se esqueça que independente
de ser um homem feito,ainda posso lhe dar uma surra. — Ele ergue
as mãos em rendição, nos encarando com desgosto sem dizer mais
nada.
Yaroslav fica sem graça com o comentário de Mirom, mas
mesmo assim mantém a compostura. Mexo minha comida sem um
pingo de vontade de comer, sentindo o olhar de Mirom em mim,
reparo também que encara Gana com intensidade. Ela se remexe
com desconforto.
— O que estão achando da comida?
— Deliciosa, dona Okasana. — Gana diz, sorrindo com
doçura.
— E tu, Laura? — Olho para ela, assentindo.
— Maravilhosa — confirmo, Okasana sorri satisfeita.
— Tu tens namorado, Laura? — Ela pergunta, me
surpreendendo. — Uma moça tão linda como tu deves ter
pretendentes caindo aos seus pés.
— Sou solteira — respondo, pigarreando.
— Por quê? — Abro a boca para responder, mas sou
interrompida por Mirom.
— Devido a um passado conturbado, não é Laura? — Ele
enfatiza meu nome.
— Como assim? — Olho para Okasana, Yaroslav e eu nos
entreolhamos.
— Só não encontrei o homem certo — falo, voltando minha
atenção para minha comida.
— Tem certeza? — Mirom pergunta, inspiro fundo, ignorando-
o.
— Depois irei convidá-la para ir em minha casa, dona
Okasana. — Yaroslav diz, tentando mudar o foco da conversa,
Mirom trinca os dentes. — É um apartamento pequeno, mas tenho
certeza que tu vais amar. É bem colorido, minha mãe tem essa
mania de cor.
— Vou adorar, é só marcar. — Okasana confirma, arrancando
um pedaço de pão e comendo junto com a sopa.
— Recebi uma pessoa em minha casa que tem uma conexão
contigo, Laura. — Mirom fala distraído, dando um gole no seu suco.
— Tu não moras aqui? — Pergunta Yaroslav.
— Sim e não. — Mirom responde. — Tenho outra residência.
— Ignorando-o, levo à boca a colher cheia de sopa e carne.
— James... acho que tu o conheces. — Congelo com colher no
meio do caminho. — Ele tem uma cicatriz cruzando todo o rosto...
recorda-se?
Meu olhar se encontra com o seu, meu coração acelerado me
fazperder o ar. A pressão contra meu peito é insuportável e começo
a tremer com sua declaração, encarando-o com indignação.
Não posso acreditar que ele trouxe James... ele está mentindo
assim como mentiu em relação a Rony... não fiznada para que sinta
tanto ódio assim de mim, a não ser que esteja fazendo isso por
causa de Ruslan e... certo, estou bisbilhotando sua vida também.
— Quem é James? — Okasana pergunta.
— O padrasto de Laura. — Responde. — Queria ajudá-la a
rever sua família. — Deixo a colher cair, espirrando sopa para todos
os lados, ao notar em seus olhos que é possível que esteja falando
a verdade.
— Você não fez...
— Ele é simpático, tu fostea culpada por tudo.
— Culpada? — Okasana indaga sem entender nada.
— Mulheres só servem para destruir vidas, abrir as pernas por
dinheiro, prostitutas são sujas. — Seu olhar se prende em Gana que
se levanta de uma vez.
— Chega! — Diz, agarrando meu braço e me levantando. —
Não ficarei aqui de cabeça baixa enquanto esse escroto de merda
nos ofendes dessa forma. — Ela me afasta da mesa. — Obrigada
pela janta e pela gentileza, dona Okasana, mas acredito que não
somos bem-vindos aqui.
— Saia do meu caminho, Laura. — Mirom diz, sem se abalar,
com frieza o comandando. — Não avisarei novamente.
Fico encarando-o, paralisada e sem reação enquanto sou
arrastada por Gana para fora. Por todo o caminho escuto-a
xingando, blasfemando.
— Desgraçado... — Diz ao sair da casa, ela me solta e segura
meu rosto. — Acorda, Laura.
— Ele o trouxe... — Sussurro com o medo me invadindo em
um baque. — Ele... ele me encontrou...
“— Não importa para onde você for , eu irei te encontrar
.” — Ele
disse, naquela noite. — “Nem que seja no inferno,eu vou te
encontrar e te destruir... você é minha, Lauriana...”
Estremeço, sentindo lágrimas escorrerem pelo meu rosto. Os
lábios de Gana se movimentam, não a ouço, o zumbido em meus
ouvidos ofusca qualquer som.
— Ela vai surtar... — Yaroslav diz ao fundo.
— Cacete... — Gana resmunga, me levando para longe.
Antes de me colocarem dentro do carro, olho para casa uma
última vez, encontrando com Mirom parado em frente à porta com
os braços cruzados, me encarando sem nenhuma expressão no
rosto.
Se ele queria me destruir de alguma forma, ele acabou de
conseguir.
Começo a respirar pesado, sentindo o ar sumir dos meus
pulmões. Gana freia bruscamente no acostamento e me olha
preocupada. Não é preciso dizer nada para que saiba que estou
prestes a sucumbir à escuridão. A voz de James entoa em minha
cabeça, seu toque... estremeço, travando a garganta quando meu
estômago revira.
— Tu precisasde ar — fala,saindo do carro, fechomeus olhos
por alguns segundos até ela abrir a porta e me tirar de dentro,
fazendo-me sentar no meio fio, o vento frio beija minha pele
exposta. — Vamos lá, respira e inspira, estamos aqui contigo, Laura.
Sustento os cotovelos no joelho e enterro meu rosto entre as
mãos, controlando o turbilhão de sentimentos dentro de mim. Do
medo de ter que reviver todo aquele inferno, da repulsa que estou
sentindo por Gana ter me tocado e da vontade de me arranhar por
tê-los deixado me tocar.
— Aqui, colega — Yaroslav estende uma garrafinha de água.
Onde ele encontrou não faço ideia, mas aceito, dando um gole com
as mãos trêmulas e geladas. — Inspire e expire mais um pouco.
— Eu vou ficar bem! — Afirmo, respirando pausadamente.
— Arch, que ódio por não ter metido a mão na cara daquele
escroto. — Gana rosna, se afastando e chutando o pneu de trás do
xoxo.
— Mirom é esquisito, me dá arrepios aquele olhar. — Declara
Yaroslav, assinto, concordando.
— Laura? — Levanto a cabeça, Gana franze a testa. — Eu
avisei para tu ficareslonge dos Rotam... — Murmura, esfregando o
rosto.
— Precisamos de respostas.
— Que respostas? — Pergunta, colocando as mãos na
cintura. — Mais uma vez aquele filho... do demôniote ameaçou, eu
vi, Laura, em seus olhos. Foi real, Mirom estás a falar a verdade.
Desvio meu olhar do dela, encontrando com os de Yaroslav,
que concorda com um aceno leve de cabeça.
— E se Mirom for o culpado? — Ele murmura, me fitando
desconfiado.
— Eu encontrei uma caixa em seu quarto, dentro dela havia
fotosde mulheres e... cartas, entre elas uma do Ruslan. — Encaro a
garrafinha de água, tirando o rótulo enquanto sinto o olhar deles
presos em mim.
— Tu entrastes... — Gana começa, mas faz uma pausa,
indignada. — Como diz o ditado que tu sempre falaslá do seu país?
— Não cutucar a onça com vara curta! — Digo, olhando para
ela.
— Isso, esse mesmo. Só que tu estás cutucando a onça com
vara curta. — Ela passa a língua em seus lábios. — Esses Rotam
são psicopatas, começando por Ruslan que é considerado um Serial
Killer, e mesmo que não tenha matado essas mulheres, que duvido
muito, ele matou dentro da cadeia. Mirom és um doente lunático,
tenho certeza que nem coração ele deve ter. Aquele policial... qual o
nome dele?
— Artem — responde Yaroslav.
— Um merda de um corrupto, e a mãe... arch viu a forma como
me olhavas? Ou da forma que me trataste? Certo, sou uma
prostituta, transo por dinheiro, mas não mereço ser tratada daquela
forma não!
Gana cruza os braços, se recostando no carro com o rosto
emburrado e com raiva. Não tiro sua razão, até porque a coagi de
ficar enquanto era tratada com desrespeito.
— Vocês deveriam parar com isso. — Ela diz, baixinho.
— Andry nos esfola. — Yaroslav solta um suspiro longo. —
Mas eu concordo, acho que a gente foi longe demais. — Fala
derrotado.
— Eu não quero parar — digo, balançando a cabeça. — Mirom
esconde alguma coisa, ele está com medo de que eu descubra, por
isso está dessa forma. Acredito que não tenha relação com Ruslan,
mas com ele mesmo. Entende? — Indago, olhando para ambos.
— Amanhã tu vaisno teu chefe — começa Gana, me olhando
com frieza — e irá dizer que tu estás fora dessa investigação.
Escreva, monte o que já tem, mas chega! Não vou perder minha
única amiga. — Meus olhos vão até Yaroslav, agachado diante de
mim. Seu rosto pálido pelo que aconteceu é a certeza de que
realmente devemos parar.
— Acho que é tarde. — Embora eu saiba dos riscos, quero
provar que Ruslan não é o culpado.
— Nunca é tarde...
— Para uma pessoa que está envolvida demais, é tarde,
Gana. — Murmuro com a voz falhando, sem coragem de encará-la.
— Envolvida demais ? O que tu não estás me contando, Laura?
— Engulo em seco, ela precisa saber...
— Laura estás escondendo Ruslan e... — Yaroslav começa,
mas para quando Gana arfa.
— O... Quê!? — Sobressalto com seu grito, seus olhos
arregalados me encaram. — Tu estavas o escondendo... espera! —
Ela ergue a mão e fica me olhando por alguns segundos. — Foda-
se, tu se apaixonastepor ele? — Não respondo, mas ela lê em meu
rosto a verdade. — Cacete... eu falei para tu arrumar um homem,
mas não um criminoso , Laura. Então Ruslan estava no nosso prédio
o tempo todo? Na sua casa? É inacreditável!
Gana vira as costas com as mãos na cabeça, seus ombros
tensos é a prova de que não gostou de saber o quanto estou
envolvida.
— Merda! — Xinga, chutando outra vez o pneu.
Yaroslav comprime os lábios se afastando de mim e indo até
ela para tentar acalmá-la. Seus ombros estremecem, fazendo meu
coração apertar.
Eu a fiz chorar!
Aperto a garrafinha, perdida na minha própria dor.
— Não estou acreditando... — Ela sussurra com a voz
embargada.
Engulo o caroço que se formou na garganta e pego meu
celular do bolso quando ele vibra. Leio a mensagem de Olesya que
diz que voltou do congresso e que amanhã é nossa sessão.
Inspiro fundo, deslizando o dedo na tela até encontrar o seu
número. Me levanto e afasto, levando o celular a orelha. A voz da
secretária faz meu coração acelerar, aguardo até o bipe para deixar
recado.
Limpo a garganta e tomo ar antes de começar a falar: —
Hum... Oi... — Faço uma pausa afastando a ardência dos meus
olhos. — Sei que deve estar se escondendo, porque Artem está
atrás de você... queria só te dizer que Rony está internado, a Darya,
sua veterinária, disse que ele está com problemas renais, mas está
melhorando. — Olho para baixo, esfregando meu pé nas ervas
daninhas. — Rony é forte que nem você, então tenho certeza que
ficará bom. A veterinária ainda não sabe o dia em que ele receberá
alta... e... eu sinto sua falta... — Aperto meus lábios, piscando para
dissipar as lágrimas. — Queria saber se está bem... Tchau!
Finalizo a ligação e encaro o celular.
— Laura? — A voz de Gana, tão doce e calma, acaba me
desestruturando.
— Será... será que nunca serei feliz? — Pergunto, permitindo
que as lágrimas escorram. — Será... que sempre serei essa pessoa
morta por dentro? — Olho para cima, tentando conter as lágrimas.
— Ei... — Yaroslav roça sua mão na minha, olho para ele. —
Tu serás muito feliz, tenho certeza disso.
— Perdoe-me — Gana para diante de mim, pegando uma
mecha do meu cabelo. — Só estou preocupada e com medo por
você, Laura. É que... amo-te demais para cogitar lhe perder. Eu não
suportaria, entende? — Assinto, apertando a mão de Yaroslav.
— Vamos comer alguma coisa? — Ele pergunta depois de um
tempo, quebrando o clima melancólico.
— Tu não encheste o bucho não? — Gana entoa, chocada.
— É que... — Yaroslav enruga o rosto. — Será que foi só eu
que achei que a comida estava... estranha? Ruim? — Fico
encarando-o.
— Mas você estava elogiando. — Recordo, ele morde o lábio.
— Estavas sendo educado — Gana solta uma risada.
— Foda-se, estava péssima. — Concorda com Yaroslav. —
Não só a comida é estranha, mas a Okasana, Mirom... Afe,a família
inteira.
— Eu também achei ruim. — Revelo, fazendo-os rirem.
— Um sanduíche com batatas fritas e Coca-Cola? — Yaroslav
sugere, olhando para Gana com expectativa.
Ela inspira fundo, derrotada.
— Olha, apenas hoje irei fugir da dieta, só porque Laura estás
triste, okay? Mas não se acostumem!
Yaroslav estremece de entusiasmo, puxando minha mão para
que eu aceite. Assinto, me sentindo melhor por estar com eles e
dividindo essa angústia e medo. Ao lado de Gana e Yaroslav tudo
fica mais leve... menos insuportável.
Encosto na parede do beco mais escuro que encontrei, a falta
de fôlego está afetando meus pulmões. Passo a barra do moletom
pela testa, enxugando o suor e o sangramento do meu lábio cortado
enquanto aguardo.
Correr durante vários minutos de policiais altamente treinados
pela avenida movimentada e entrar em luta corporal com eles, não é
uma missão muito fácil diante do meu despreparo.
Prendo a respiração, colando as costas no muro ao escutar
passos cautelosos se aproximando. O pior é que sempre estão com
uma pistola na mão, seja ela de fogo ou de choque, não importa,
qualquer uma será letal para mim.
Escuto sussurros e arrisco olhar por cima do muro. Artem, com
uma pistola na mão e um rádio na outra, parece jorrar ordens ou
está pedindo por reforços... não faço ideia, mas pelo timbre da voz
autoritária, julgo ser uma dessas duas coisas.
Olho em volta em busca de uma saída. Há algumas casas
cercadas por apenas cercas e árvores, aqui é o melhor lugar para
me esconder. Escoro a cabeça contra o muro, fechando e abrindo a
mão dolorida, me controlando para não empunhar a arma que estás
nas minhas costas, que pulsa para ser usada com quem quer que
seja.
Se eu a usar contra eles, será muito pior...
Preciso só de mais alguns minutos... preciso distraí-los por
mais algum tempo.
Ajeito meu capuz escondendo meu rosto e saio do beco com
passos rápidos em direção à rua. Ouço murmúrios e olho por sobre
o ombro, os policiais estão me olhando, inclusive aqueles que deixei
um estrago no rosto. Artem se vira e rosna.
— Peguem-no, seus idiotas! — Ordena, sorrio de lado ao
perceber sua frustração, ele sabe que estou lhe fazendo de bobo.
Os policiais vêm em minha direção, começo a correr nas
calçadas, passando por entre os carros, pulando cercas e invadindo
os quintais apenas para ganhar a droga do tempo.
Sirenes entoam por entre a noite calma de um bairro
silencioso, a luz do luar me guia pelo caminho até entrar em uma
esquina. Paro de uma vez ao avistar carros de políciabloqueando a
rua. Olho para trás e lá estão mais policiais me cercando.
— Ruslan, aqui é a polícia,mãos para cima onde podemos vê-
las! — Artem grita, apontando uma arma em minha direção. Há um
sorriso em seus lábios, seus olhos mesmo distantes, brilham de
vitória.
Começo a levantá-las, encarando-o e recordando do momento
em que invadiu a boate Nichnny Klubseguindo perfeitamente nosso
plano.
Artem, com cuidado se aproxima e pega uma algema. Ele para
diante de mim com os outros policiais a poucos metros. Seu sorriso
desperta a raiva que estava oprimindo.
— Te peguei! — Diz, com a arma ainda apontada para mim. —
Achastes que conseguiria fugir por muito mais tempo? — Fico
calado, contando os minutos, fitando seu rosto contorcido por ódio.
— Tu voltaráspara o inferno...
— Que tu me colocaste? — Completo, inclinando a cabeça
para o lado, o estudando.
— Duas mulheres foram mortas desde que tu saíste do
Colony, quantas mais pretendes assassinar? — Trinco os dentes.
— “Pior cego é aquele que não quer ver” — sussurro, fazendo-
o franzir a testa.
— Como dizes?
Ficamos encarando um ao outro por alguns segundos, quando
Artem faz um movimento, eu entro em ação. Com agilidade acerto
seu nariz com meu punho ao mesmo tempo em que o desarmo. Em
instantes a pistola está encostada em sua testa.
Sorrio mais uma vez com meus olhos cravados nos seus e em
alerta aos movimentos dos outros policiais que aguardam ansiosos
por uma ordem. Artem geme de dor e ergue as mãos em rendição
ao escutar o engatilhar da arma. Seu nariz escorre sangue.
— Tu, com calma, pedirásaos teus homens para abaixarem as
armas. — Ordeno, pausadamente. — Depois tu virarás de costas
para mim, como um bom garoto. — Artem rosna.
Vendo a determinação em meus olhos, meu irmão, com
cautela, abaixa a mão em direção ao rádio preso em seu cinto, o
leva à boca e trinca os dentes.
— Abaixem as armas... — Manda, empurro com força sua
testa com a arma. — Agora!!
De soslaio consigo perceber todos acatando suas ordens com
ódio no olhar. Ergo as sobrancelhas, Artem gira, ficando de costas
para mim. Passo meu braço por seu pescoço e posiciono a arma em
sua têmpora, usando-o como escudo.
Observo os policiais ficarem mais tensos com expressões
assustadas ao verem um dos seus líderes como refém. Não vão
fazer qualquer movimento, não até terem certeza de que Artem
estará em segurança. Uma das minhas vantagens.
Começo arrastá-lo para o beco à minha direita, suas mãos
continuam erguidas e minha arma pressionando sua pele. Artem
chia de raiva, meus olhos percorrem cada policial.
— O que tu estás pensando? — Ele pergunta.
— Já pensei, estou apenas executando — respondo com
frieza, mergulhando na escuridão e escutando as vozes alarmadas
dos policiais.
— Isto o que estás fazendo, te levará para o abismo...
— Cale-se, Artem! — Ordeno, intensificando meu braço em
seu pescoço, ele arfa.
— Eu te pegarei...
— Tu és fraco — retruco. — Um banana, por isso que tenho
certeza que tu não és o culpado. — Artem gargalha, paro de andar,
olhando para dois policiais com armas apontadas em minha direção
na entrada do beco.
— O que quer?
— A verdade... quem tu estás acobertando? — Ele enrijece,
aperto a arma, rangendo o dente para não apertar o gatilho. — Sei
que tu sabes de quem estou a falar.
— Tu és o assassino, quem mais eu encobertaria?
— Mirom? É ele? — Artem ri, mas não diz nada.
— Eu poderia dar uma ordem de execução, poderia morrer,
mas tu iriascomigo. — Olho para trás, ansioso.
— Faça e vamos viver juntos no inferno, porque para mim não
fará diferença alguma.
— Tu se achas, não é? Sempre foste assim desde pequeno.
Sempre inflando o peito...
— Eu trabalhei para que tu e Olesya estudassem, para que
tivessem um futuro. — Relembro a ele a sua ingratidão. — Eu
passava a noite vendendo rosas para que não passássemos fome,
e tu? O que tu fazias? Reclamava e ficava em casa, deitado... sem
fazernada, vivendo às custas da nossa mãe.
— Tu não és e nunca serás o preferido dela...
— E tu és? — Pergunto. — Um corrupto de merda... te dá o
título de preferido?
— Sou melhor que tu, não foi eu que me tornei um assassino.
— Eu fiz de tudo por vocês, deixei de seguir meu sonho para
alimentá-los, apoiá-los nos estudos para que fossem alguém no
futuro... para que na primeira oportunidade virassem as costas para
mim.
— Tu és um bosta! — Alega com tanto ódio que estremeço.
Escuto uma freada brusca atrás de mim, olho para trás a
tempo de ver Nikita abrir a porta do passageiro por dentro, seus
olhos se encontram com os meus e um aceno me diz que é hora de
ir.
— Vou lhe dar um aviso — sussurro em seu ouvido. — Te
colocarei na cadeia junto com aquele que tu estás protegendo. Não
terei minha vida de volta, mas assim como eu, vocês irão apodrecer
no mesmo inferno em que vivo. — Retiro meu braço em torno do
seu pescoço.
— Se ajoelhe, Artem — ele fica imóvel, respiro fundo e chuto
as juntas dos seus joelhos, obrigando-o a me obedecer. — Te vejo
em breve, se tu fizeresqualquer movimento, apertarei o gatilho. —
Aviso, olhando para os policiais logo à frente.
Desencosto a pistola da sua têmpora e começo a recuar até
estar perto do carro. Giro com rapidez e entro, Nikita não espera por
mais nenhum segundo e arranca.
Escuto sirenes, olho pelo retrovisor. Duas viaturas começam a
nos seguir. Nikita pisa fundo no acelerador, cortando os carros,
entrando na contramão e furando os sinais.
Recarrego a pistola e a deixo engatilhada, pronto para disparar
se assim for preciso. Passo a língua em meus lábios, prestando
atenção ao nosso redor. As luzes são apenas um borrão enquanto
Nikita ganha mais velocidade, ele vira à direita e depois por uma
ruela, e entras na rodovia, cantando pneu.
Volto a olhar pelo retrovisor, a luz azul e vermelha da viatura se
torna apenas um ponto, tão distante que não há como nos alcançar.
Encosto no banco, soltando a respiração e finalmente relaxo.
— Foi fácil, não? — Olho de esgueira para Nikita, rindo.
— Para ti que só precisou invadir uma casa! — Retruco,
olhando pela janela. — Encontraste alguma coisa?
Nikita fica em silêncio por alguns segundos, volto a olhá-lo, sua
expressão ilegível agita meu coração.
— Invadi a casa de sua mãe, mas...
— Não tinha nada no quarto dele? — Nikita confirma com um
aceno.
— Ruslan, Laura estavas lá.
— Como dizes? — Pergunto, me endireitando.
— Eu esperei até sua mãe sair, de fato, ela passou boa parte
fora, mas foi Mirom quem enrolou para deixar o caminho livre.
Quando ele se foi, consegui entrar e invadi o quarto de Artem, não
encontrei nada comprometedor, iria ao quarto de Mirom se tua mãe
não tivesse chegado antes do previsto acompanhada de Laura e de
mais duas outras pessoas, soube naquele momento que teria que
sair.
— O que ela estava fazendo lá? — Nikita balança a cabeça.
— Não faço ideia...
— E depois? Encontrou algo na casa dele? — Ele me olha por
alguns instantes.
— Afinal, se eles moram com tua mãe, por que diabos tens
outra casa? — Questiona com a atenção voltada para a estrada.
— Eles são homens feitos, apesar de mamis mantê-los
debaixo de suas asas, os idiotas precisam de privacidade para fazer
suas merdas. — Respondo com amargura. — Encontrou algo?
— Acho que sim!
— Acha que sim? — Nikita batuca os dedos contra o volante.
— Foi uma jogada de manipulação tu dizeres a ele que
escondes o verdadeiro criminoso ou tu desconfiavasmesmo disso?
— Esfrego meus lábios, pensativo.
— As duas coisas. — Respondo, por fim.
— Bom, talvez tu tenhas acertado. — Olho para ele, pedindo
com o olhar para que desembuche, Nikita respira fundo. —
Encontrei gravações, alguns arquivos, provas do qual nunca
chegaram nas mãos dos investigadores.
— Então... ele sabe?
— De certo que sim! — Confirma, fico olhando-o por um longo
momento, Nikita comprime os lábios. — Essa será a nossa chance
de descobrir a verdade... Melhor se despedir, Ruslan, porque
realmente seu tempo está curto.
— Onde estão as evidências?
— Na boate, achei mais prudente enviá-las direto.
— Tu conferiste
? — Nikita assente.
— Prefiro que tu vejas depois que colocar um ponto final na
tua história com a Laura.
— Por que tu estás a me dizer isto? — Ele ficacalado, isso me
incomoda e faz meu coração acelerar ao mesmo tempo em que
arrepios irrompem pelo meu corpo.
— Tu confiasem mim? — Pergunta, me olhando fixamente.
— Claro!
— Então faça o que eu digo. — Nikita acelera mais o carro. —
Sorria mais uma vez... antes de tudo explodir.
Tem dias que eu desejo nunca abrir os olhos... ou apenas
dormir até que tudo desapareça, que o mundo se exploda. Às vezes
é um sentimento que não consigo compreender. A dor, a solidão, a
desolação me destroem aos poucos, fazendo-me perder o sentido
da vida.
Meus olhos se nublam de lágrimas quando meu despertador
grita desesperado, me dizendo que é hora de levantar. O problema
é que não quero sair da cama, quero ficar aqui até sucumbir... até
parar de existir.
Coloco meus antebraços nos olhos, ignorando por completo o
despertador, sem me incomodar com seu barulho insuportável, sem
forças para levantar, sem vontade de viver.
Rony não está aqui e Ruslan não chegará, como fazia toda
manhã. Estou sozinha como antes... como sempre foi minha vida,
eu estava acostumada a viver assim, até eles chegarem e bagunçar
tudo.
Sem mais suportar o barulho estridente do despertador, viro e
bato minha mão nele com força, calando-o. Afasto as cobertas,
coloco as pernas para fora da cama e encaro meu tornozelo.
A mordida de Axel ainda está nítida em minha pele, deixará
uma cicatriz enorme. Respiro fundo e forço-me a levantar, me
encaminhando até a sala, onde apanho o controle e ligo a Tv que
passa o desenho Os Flintstones
.
Fico assistindo em pé por alguns minutos, sentindo inveja por
eles terem uma famíliae eu não. Deixando de lado o controle, vou
até a cozinha, pego o doce éclairintergaláctico cor-de-rosa e enfio
um enorme pedaço na boca antes de começar a me arrumar.
Depois de levar mais tempo que o costume, apanho minha
bolsa, aumento o volume da Tv e abro a porta. Ao sair, acabo
tropeçando em uma caixa preta, franzo a testa.
— Mas que... — Calo-me antes que qualquer xingamento saia,
agacho-me e com cautela abro a caixa, prendendo a respiração logo
em seguida.
Dentro há duas rosas vermelhas, murchas. Um pressentimento
ruim percorre meu corpo, estou petrificada no lugar, sentindo meu
sangue pulsar. Olho para os lados em busca de respostas, mas a
única coisa que vejo é um corredor vazio e silencioso.
Talvez não seja para mim... Talvez alguém deixou aqui essa
noite depois de uma discussão ou estão querendo me pôr medo,
afinal,houve uma chacina no andar de cima, os moleques do prédio
querem nos amedrontar....
Quem estou querendo enganar?
É claro que quem deixou essa rosa aqui não tinha boas
intenções e tinha um único objetivo, me assustar. Engulo em seco
com o pensamento fixo em duas pessoas, que tem motivos de sobra
para fazer isso... não, duas não, três.
Artem, Mirom e... Fecho meus olhos ao sentir calafrios
percorrer minha espinha. Eu preciso parar, mas por quê parte de
mim pede para eu continuar?
Estou na mira de um assassino, fuiameaçada várias vezes e...
Droga, ainda assim quero continuar. Coloco a tampa novamente, e
jogo no lixo a caixa junto com as rosas assim que avisto xoxo
estacionado.
Por todo o caminho até o consultório, tento bloquear a
sensação ruim em relação às rosas. Olho para a secretária, ela sorri
para mim.
— Bom dia, Laura. — Cumprimenta, educada como sempre.
— Oi, bom dia. Olesya chegou?
— Estás à sua espera. — Assinto.
— Obrigada.
Respiro fundo e entro no consultório. Olesya está sentada à
sua mesa, lendo um livro que não consigo identificar. Ela levanta a
cabeça e sorri... um sorriso tão parecido com o de Ruslan que
aperta meu coração, espalhando choque por meu corpo.
— Parece-te bem, Laura — diz, fechando o livro e se
levantando.
Ela está vestida com uma blusa de seda vermelha combinando
com uma saia de couro que bate até os joelhos, modelando seu
corpo curvilíneo. Seus cabelos estão presos em uma trança raiz e a
maquiagem natural a deixa com um ar mais leve.
— Está muito linda hoje — elogio, me acomodando no sofá.
— Muito obrigada. — Ela se senta na cadeira à minha frente.
— Como foi o congresso?
— Enriquecedor. — Responde, sinto seus olhos me
analisando, enquanto batuco meus dedos uns nos outros,
encarando o teto depois de me deitar.
— Me conte, Laura, o que estás te incomodando? O porquê de
estares agitada e com o olhar distante?
Aguardo um longo momento, dou de ombros e engulo em
seco, sentindo as lágrimas vindo. Umedeço meus lábios, balanço os
pés cruzados no tornozelo.
— Laura?
— Eu... — Engulo as lágrimas. — Hoje... eu não queria ter
aberto os olhos. Uma dor... uma solidão tão grande dentro do meu
peito está me sufocando, tirando todo meu ar a ponto de... não
querer existir.
Lágrimas escorrem por meu rosto mesmo eu tentando
controlá-las.
— Por quê?
— Eu me sinto... sozinha. — Confesso.
— Sei que não é só isso.
— Eu me sinto... vazia.
— E...? — Fecho meus olhos.
— Hoje é seu aniversário... o dia em que fui embora... —
Seguro o choro, apertando os olhos com as mãos. — Eu a deixei
com aquele maldito, sozinha. Eu a abandonei, não dei notícias... 15
anos... quinze anos que deixei de ser Lauriana, mas Lauriananunca
deixou de ser eu. Não consigo ser feliz... eu quero tantosorrir!
Não consigo segurar o choro que vem com intensidade.
Encolho-me, dolorosamente. Olesya aguarda ao meu lado, sempre
transmitindo tranquilidade mesmo em tempos agitados. Ela é como
o sopro de um vento.
— Ligue para ela... — murmura, depois de vários minutos.
Olho para ela através das lágrimas, negando com a cabeça.
— Eu não posso...
— Ano passado tu não conseguiste contato com ela, assim
como anos anteriores. — Olesya estende seu celular. — Talvez
agora tu consigas.
— Mas...
— Ligue — insiste, engulo com dificuldade, esticando minha
mão trêmula.
— Ela nunca mudou o número... — Balbucio. — Será que ela
vai atender? — Pergunto, encarando o celular. — Ela odeia que lhes
deem parabéns, ela nunca atendia nenhuma ligação...
— Tu só saberás quando tentar. — Incentiva, destravo o
celular e encaro o número que Olesya salvou.
— Certo...
Respiro fundo, seleciono a opção de ligar. Meu coração bate
tão acelerado que fico com dificuldade de respirar, até mesmo de
ouvir.
O primeiro toque entoa, atingindo em cheio meu coração.
Segundo toque... terceiro... quarto... e quando decido desligar ao
perder a coragem, uma voz me congela.
— Alô?— Sua voz é firme ao mesmo tempo delicada. — Alô,
quem fala?
Português, ela está falando em português... Havia anos que
não ouvia alguém falar minha língua, apenas em desenhos. O
sotaque puxado...
— Quem está falando?Alô? — Repete com impaciência, a
única coisa que consigo emitir é um soluço.
Estou paralisada, sem reação diante a saudade de ouvi-la, sei
que irá desligar em instantes, mas o fatode eu ter escutado sua voz
depois de tantos anos e por ela nunca ter trocado de telefone, me
desestrutura de uma maneira impossível de consertar.
Mamãe permanece na linha, esperando... por que ela não
desliga?
— La... Lauriana?— Sussurra com a voz tão trêmula que me
atinge como soco... ela sabe que sou eu que estou ligando? —
Lauriana, é você que está aí?
Nego com a cabeça, apertando meus lábios com força,
tentando não fazer nenhum ruído. Sonhei por tantos anos o dia em
que escutaria meu nome ser emitido por sua voz de novo... só que...
afasto o celular e finalizo a ligação.
Por longos minutos fico parada, encarando o aparelho, sem
me mover, sem nem ao menos respirar. É como se eu apenas
existisse, mas nada. Como um cacto no meio do deserto, solitário.
— Laura?
— Eu... — Meus lábios tremem e em instantes volto a chorar
descontroladamente.
Olesya faz o impensável, puxa-me para um abraço. Fecho
meus olhos e retribuo, me sentindo destruída. Nesse momento a
única coisa que eu quero, é desaparecer... ou melhor, me afogar nas
lágrimas.
Minha mãe atendeu a ligação, eu escutei sua voz, mas isso só
mostra o quanto estava na beira do abismo, agora me sinto caindo...
caindo e caindo... no entanto, assim como das outras vezes,
conseguirei me manter em pé, machucada, destroçada, mas
continuando assim como fiz todos esses anos.
A vontade de desaparecer é grande, mas a de viver e de ser
feliz ultrapassa qualquer dor que sinto dentro da minha alma
despedaçada.

Meus olhos navegam pela vitrine de doces e salgados da


Confeitaria Musse Confectinery, escolhendo o que irei pedir antes
de chegar a minha vez de ser atendida.
Havia muito tempo que não vinha aqui, desde que encontrei
Artem nesse mesmo lugar. Meus olhos se prendem no Bolo Kievski
com camadas não só de pão de ló, mas de merengue de nozes que
deixa a textura do bolo crocante e arejada.
O sininho da porta toca. Solto um suspiro longo e nem olho
para saber quem acabou de entrar. Eu vi sua viatura parada do
outro lado da rua.
— Será porque não é uma coincidência vê-lo aqui? —
Resmungo assim que sinto-o parar atrás de mim.
— Bom dia para ti também — fala com sarcasmo. — Eu
frequento muito aqui.
— Ótimo! — Dou um passo à frente quando a fila anda.
Cruzo meus braços, batucando os dedos contra o tecido macio
da minha camisa.
— Fiquei sabendo que tu fostejantar com minha mãe.
— Ela nos convidou.
— Hum... Mamãe estavas furiosa com Mirom. — Mordo meu
lábio inferior, me impedindo de falar. — Pena que não pude estar
presente, estavas perseguindo Ruslan.
Prendo a respiração, tentada a me virar e olhar em seus olhos,
exigindo mais detalhes. Aperto meu braço.
— Pelo visto fracassou! — Dou outro passo à frente.
— Ele fez um estrago em alguns dos meus homens. — Sem
conseguir aguentar, viro-me em sua direção, estudando-o.
Seu rosto esculpido está intacto, sinto um pouco de raiva.
— Infelizmente você saiu ileso, não é? Que pena! — Volto para
frente, instruindo a atendente a pegar meu bolo.
— Estamos em seu encalço... — O ignoro ao pegar meu bolo.
Olho para o fundo de seus olhos, Artem retribui o olhar.
— Qualquer coisa que você disser, não fará nenhuma
diferença para mim, eu não me importo.
— Tem certeza? — Ele arqueia a sobrancelha.
— Absoluta! — Confirmo, Artem sorri de lado, colocando as
mãos no bolso da farda.— Me deixe em paz. — Digo, indo até uma
pequena mesa no fundo da confeitaria.
Me ajeito, coloco o notebook na mesa ao lado da minha bolsa
e ergo a cabeça, encontrando com o olhar de Artem. Sustento até
ele desviar e sair porta afora sem fazer seu pedido. Mais uma vez,
estava aqui apenas por minha causa.
Inspiro fundo, afastando-o da minha mente e foco no meu
trabalho, em montar a matéria que Andry solicitou ontem. Só falta o
texto. E durante uma hora mergulho nas palavras até me assustar
com o barulho de notificação do meu celular.
Olho para ele com o coração acelerado e seleciono a
mensagem, ficando congelada mais uma vez, a mensagem diz:
Estou a esperar-te no Derzhprom
Prendo a respiração, olho para os lados e encaro o celular de
novo ao chegar outra notificação, a mensagem completa a anterior.
Pequena flor!
Solto a respiração começando a juntar minhas coisas. Sinto
meu coração acelerar não de susto, ou de medo, ou... sei lá, agora
ele bate desesperado com a possibilidade de revê-lo... de poder
rever Ruslan Rotam, o homem que todos dizem para me afastar,
mas que a cada dia, mais perto dele quero ficar.
Ao sair do carro, depois de muito custo para achar uma vaga,
encaro maravilhada o Derzhprom, a casa Industrial do Estado. É um
grande edifício governamental no centro de Kharkiv.
Ativo o alarme do xoxo, tendo comigo apenas meu celular.
Com o olhar estreito devido ao sol, estudo o Derzhprom que ocupa
o centro da vasta praça circular nomeada Praça da Liberdade . Ele
tem três grupos de torres de concreto e vidro, cuja altura varia de
cinco a dez andares.
Paro de andar para admirar as impressionantes superfícies,
um horizonte instantâneo de mini arranha-céus, mas o que
realmente torna Derzhprom é a série de pontes suspensas
interconectadas entre cada aglomerado, atingindo até oito andares.
Maravilhada com suas torres com profusão de superfíciesde
vidro, escadarias envidraçadas de dez andares de altura total e
longas passarelas forradas com janelas, paro debaixo da profunda
superfície e olho para cima, tão alto que fico tonta.
Olho para frente quando gritos de crianças me assustam. Elas
correm pela praça segurando balões de desenhos animados e
outras brincam com armas de água. Há alguns carrinhos de sorvete
espalhados pelo lugar e também algumas mulheres que estão
deitadas na grama aproveitando o sol de verão.
Sinto mãos deslizarem gentilmente por minha cintura e antes
de eu ter qualquer reação, o responsável me gira tão rápido que a
única coisa que sinto são seus lábios grudados nos meus.
Meu corpo rígido relaxa ao reconhecer Ruslan. Sua mão
aperta minha cintura, me levando contra seu corpo. Permito que
aprofunde o beijo, sentindo alívio por finalmente tê-lo aqui comigo.
Contorno meus braços em torno do seu pescoço e ele me tira
do chão. Sinto seu sorriso entre meus lábios. Ele afasta assim que
me devolve ao chão.
— Você me assustou. — Murmuro, encarando seus
fascinantes olhos verdes.
— Queria fazer-te uma surpresa — responde, colocando meu
cabelo atrás da orelha e acariciando minha bochecha. — Tu estás
linda, pequena flor.
Um frio se aloja no pé da barriga com seu elogio.
— Como você está? — Seus olhos nublam. — Eu fiquei
sabendo que você estava fugindo de Artem.
— Como soube?
— Ele me contou. — Sua expressão fica sombria. — Ele
queria só se vangloriar.
— Um babaca... — Rosna, seguro sua mão.
— Ruslan? — Umedeço os lábios. — Eu tentei falarcom você,
mas não consegui. Você sempre está com um número diferente...
— Assim eles não me rastreiam.
— Entendo... — Inspiro fundo. — Rony está internado, sei o
quanto aquele gatinho é importante para você. A veterinária que
está cuidando dele disse que são problemas renais e... bom,
acredito que o deixou ainda mais debilitado por sentir sua falta.
Entrelaço minha mão na sua, quando ele não diz nada.
Levanto a cabeça e encaro seus olhos que transmitem dor. Por
anos, Rony foi sua única família, seu melhor amigo e companheiro.
— Ele vai ficar bem — asseguro, Ruslan assente, desviando o
olhar.
— Rony tem sete anos... sete anos em que apareceu na janela
da minha cela, desde lá nunca mais nos desgrudamos.
— Ele está melhor, é um gatinho forte. — Comprimo meus
lábios quando seu olhar se fixa no meu, aquecendo cada parte do
meu corpo.
— Estavas com saudades — diz, se aproximando, inclino a
cabeça para trás para fitar seus lindos olhos. — Saudades de
escutar tua voz, de sentir teu cheiro e, além de tudo, sentir seus
lábios nos meus. — Ele roça sua boca na minha, me arrepiando.
— Estamos na rua...
— Não me importo... — murmura, mordendo meu lábio inferior,
inspiro seu cheiro, inebriada pela forma que me faz sentir
.
— Quero sorvete. — Peço, uma forma de mudar o rumo de
onde estamos indo.
Ruslan sorri.
— Certo, vamos tomar sorvete. — Ele se afasta de mim e
permito-me analisá-lo.
Seus cabelos estão perfeitamente arrumados em desordem,
sua barba por fazer marca seu maxilar e suas roupas pretas o
deixam com um ar de mistério. Ruslan inclina a cabeça, esperando
que eu termine de estudá-lo, minhas bochechas queimam.
— Você não está com capuz.
— Não.
— Podem te reconhecer.
— Quero passar o dia contigo. Sem me esconder. — Na
mesma forma que suas palavras me deixam feliz, sinto um aperto
no peito.
Jogo esse sentimento para o fundo, não quero pensar nisso
agora.
— Tu tens cara de amar sorvete de morango. — Consta, me
puxando em direção à praça.
— E você de limão. — Ruslan balança a cabeça.
— Não me lembro do sabor de um sorvete. — Revela, me
olhando.
— Vamos resolver esse problema agora! — Apresso o passo
em direção ao carrinho de sorvete e peço dois de casquinha sabor
limão com cobertura de morango e confetes.
Entrego para Ruslan que o analisa minuciosamente. Fico
ansiosa, quero ver sua expressão. Ele me fita antes de levar o
sorvete à boca. Consigo ver em seu rosto o prazer quando o sabor
invade seus sentidos.
— Isso é bom... — Sussurra, tomando mais.
— Sim, muito! — Confirmo.
Depois de dez minutos, Ruslan pede mais outro sorvete, só
que de morango. Enquanto caminhamos entre conversas sobre os
sabores, noto o quanto está distante de alguma forma. No entanto,
se eu perguntar, ele não irá falar.
— Eu vendia rosas aqui — revela, assim que termina seu
sorvete. — A época mais difícilera no inverno, ninguém gosta de
sair de casa no frio e nem na neve.
— Mas você sim — completo.
— Ou dormiríamoscom fome. — Conta. — Já enfrenteichuva,
neve, sol... tudo para colocar comida na mesa.
— Não entendo porque fizeram isso com você. — Ruslan leva
minha mão aos seus lábios, dando um leve beijo no dorso.
— Maldade não se explica. — Ele me olha. — Agora diga-me,
por que tu estás triste? — Abro a boca pronta para mentir, mas me
calo.
— Sinto sua falta. — Confesso, dando de ombros e olhando
para o chão. — Hoje é o aniversário da... minha mãe.
Paramos em um banco, sentamos e Ruslan me leva para seu
peito, contornando o braço em volta do meu ombro enquanto sua
outra mão acaricia minhas unhas pintadas de rosa bebê.
— E...?
— Preciso falar sobre isso? — Ruslan se inclina e me beija.
— Não, só se tu quiseres.
— Eu não consegui falar quando liguei... foi como se tudo
tivesse parado no tempo. A minha voz não saiu. Junto com a
saudade e a surpresa de ouvi-la, veio a raiva de tudo o que ela
poderia ter evitado.
Ruslan percorre seus dedos por meu braço sem dizer nada.
— Por que você não fala muito da sua mãe? — Finalmente
pergunto, tentando matar minha curiosidade, ele respira fundo e
olha para duas crianças brincando com bolhas de sabão.
— Assim como tu, tenho mágoas das quais dói mais do que
qualquer coisa nesse mundo.
— Eu entrevistei sua mãe... como sabe, estou fazendo um
documentário sobre você e... dona Okasana acredita na sua
inocência.
— Dizer não significa que seja verdade. — Olho para Ruslan,
sua testa está franzida. — Pessoas mentem o tempo todo, Laura...
— Ruslan...
— Fique aqui. — Ele se afasta rapidamente.
— O que foi? — Me levanto alarmada, Ruslan agacha na
frente de uma garotinha com uma cesta de rosas.
O vento balança seus cabelos, ela ri para Ruslan antes de virar
e sair correndo. Me aproximo dele que se levanta e gira, estendendo
uma rosa amarela.
— Assim como as rosas vermelhas representam a paixão, as
amarelas representam amor, respeito, alegria, amizade e desejo.
— É linda...
— Tudo o que sinto por você, minha pequena flor.
De repente, três crianças me circundam com pistolas de água.
Elas me encaram com malícia e antes de repreendê-las, elas
apertam o gatilho, me molhando enquanto gritam e gargalham de
alegria.
Protejo com as mãos meu rosto, soltando um grito de
surpresa. Olho para Ruslan em busca de ajuda, sentindo um pouco
de raiva e ao mesmo tempo divertimento por esses pirralhos serem
tão abusados. Porém, em vez de me ajudar, Ruslan fica rindo,
afastado, me olhando com duas pistolas na mão.
Então...
— Ei! — Grito quando acertam água dentro dos meus olhos.
— Eu vou pegar vocês! — Aviso indo atrás deles que soltam um
grito e começam a correr.
— Tu estás presa! — Um deles grita, seus olhos azuis me
olham com astúcia.
— Não antes de pegá-lo! — Falo, avançando em sua direção,
ele grita quando consigo pegá-lo.
— Tio, ajude-me! — Grita para Ruslan, seus amigos investem
em mim, me encharcando de água.
— Ei, pequena? — Olho para Ruslan. — Pegue! — Ele me
joga uma pistola carregada, consigo pegá-la e olho para cada um
deles.
— Agora vou pegá-los! — Alerto com a voz firme, eles
arregalam os olhos e começam a correr em círculos.
Uma guerra de água se inicia, Ruslan entra na brincadeira.
Não faço ideia de como ele encontrou essas crianças, mas elas
estão nos proporcionando uma felicidade que a muito tempo não
sentíamos.
A inocência de cada um é contagiante, e por alguns minutos
brincamos até ficarmos sem munição, ou melhor, água.
Com a respiração ofegante e acelerada, olho para Ruslan.
Gotículas de água estão por todo seu rosto, beijando-o com
delicadeza. Seus cabelos estão molhados e pingando, um sorriso
lindo está estampado em seu rosto.
Fico presa em seu olhar por longos segundos sem entender os
motivos de estar paralisado, me encarando como se nada existisse
no mundo.
— Tu... — Começa, ofegante. — Tu estás sorrindo...
Suas palavras me atingem em cheio, choque percorre meu
corpo e tudo ao meu redor parece congelar. Levo minha mão aos
meus lábios, e de fato,eles estão esticados e... uma lágrima cai dos
meus olhos, porque depois de tantos anos, estou sorrindo de novo.
Meu coração pulsa contra meu peito, a manifestação dos meus
lábios, da alegria que sinto... é mágica... e quando meu olhar se fixa
em Ruslan, tudo o que tenho é a certeza de que minha alma acaba
de encontrar o que sempre procurou.
Não o Ruslan... ou o amor que sinto por ele, mas a felicidade,
o momento perfeito... a cura através de um sorriso... a cura de uma
vida regada pela dor. Essa é a melhor sensação do mundo... a
sensação de poder ser capaz de sorrir.
Seu sorriso era tudo o que eu mais desejava ver, mas nunca
imaginei que teria o poder de apagar toda e qualquer tristeza
impregnada em meu ser.
Laura acaba de preencher o vazio existente dentro de mim,
com o poder de me alegrar, de me devolver a esperança e a
vontade de sonhar.
Ela é tudo o que minha alma ansiava...
Uma dor em meu coração me faz lembrar da minha realidade.
Não posso ficar com ela ao meu lado... sou um homem condenado,
privado de qualquer liberdade.
Eles me destruíram, me tiraram tudo...
Laura leva as mãos aos lábios sem acreditar que está sorrindo,
por um momento seu olhar se perde. Dou um passo à frente,
determinado a tirar toda a dor dentro de si... doar-me com o pouco
que tenho, apenas para que seu sorriso nunca desapareça de seu
rosto.
Quero que sempre se lembre do poder de um sorriso, de que
meu coração foi lhe entregue por inteiro mesmo destroçado. Quero
que saiba que mesmo que eu esteja longe, ela sempre estará
comigo, marcada na minha pele... na minha alma e em meu
coração.
Seus olhos voltam a focarem mim, e é tudo o que preciso para
avançar em sua direção. Laura não se move quando entrelaço
minha mão em sua nuca e a trago para mim, beijando-a forte e
exigente.
O toque de suas mãos em meu rosto desperta o homem
adormecido dentro de mim. Sua língua se encontra com a minha
cedendo ao desejo fervente que espalha por cada poro de nossos
corpos.
Estou ciente de que estamos em um lugar público, não quero
parar... nem me afastar, quero mais que antes... mais que agora...
eu a quero em meus braços sem preliminares, sem limites para
amar.
Quero Laura de todas as formas, em minha cama, em meus
braços e em baixo de mim. Suas mãos em meu peito me empurram
para trás, fazendo-me desprender de seus lábios deliciosos.
Encosto a testa na sua com a respiração tão rápida que me
ouço respirar.
— Perdoe-me... — Murmuro, mordendo seus lábios. — Mas
está ficando difícil...
— O que está ficando difícil?— Levanto a cabeça assim que
escuto uma movimentação estranha, olho por cima de seu ombro,
ranjo os dentes ao avistar policiais vindo em minha direção.
— Vá para casa — falo, voltando a encará-la.
— Por quê? — Impeço de olhar para trás ao segurar seu rosto.
— Obedeça-me — peço, ela passa a língua nos lábios, um
movimento inocente que se torna atrevido em minha mente. — Vá
para casa e espere por mim.
— Ruslan? — Colo meus lábios nos dela antes de virar de
costas e sair correndo.
Escuto gritos de ordens logo em seguida. Esbarro em algumas
pessoas, indo em direção à movimentação para que seja mais fácil
dissipar os policiais.
Meu coração acelera ao notar que tem mais policiais que o
normal espalhado por toda a praça. Ao longe consigo reconhecer
Artem.
— Cacete! — Olho para os lados em busca de uma saída.
Decido entrar no Derzhprom, assim como pode ser minha
chance de me livrar deles, poderá ser uma armadilha e se eu for
pego, tudo o que fiz até hoje será perdido.
Tentando disfarçar a pressa, entro no edifício,subo alguns
lances de escadas, olho para trás apenas para ver mais de dez
policiais me seguindo.
Entro no corredor longo tendo a certeza de que o único jeito
será lutar contra eles igual da última vez. Viro em outro corredor à
minha esquerda, passando por duas senhoras andando
normalmente. Fecho e abro as mãos, me preparando para o que me
espera.
Paro de uma vez ao avistar Artem no fimdo corredor com mais
dois policiais. Me viro, deparando com mais dois. Respiro fundo e
relaxo meus músculos.
Minha sorte é que não estão empunhando uma arma, não
onde poderão ferir inocentes acidentalmente.
— Polícia, parado! — Artem grita, fecho meus olhos com
impaciência. — Tu não tens saída a não ser se entregar, Ruslan
Rotam. — Sorrio, friamente.
Umedeço meus lábios, voltando a abrir meus olhos a tempo de
escutar dois dos policiais se aproximando. Espero mais alguns
segundos, para que estejam mais perto, antes que eu possa agir.
Quando o momento exato chega, ataco os dois de uma vez.
Acerto o punho no nariz do policial à minha esquerda, puxo seu
colarinho, fazendo-o colidir contra o outro, ambos caem no chão.
Mãos me agarram por trás. Sem pensar, projeto meu cotovelo
para trás, acertando em cheio seu olho direito. Esquivo do ataque
do outro policial, acertando um soco em seu estômago, ele dá dois
passos para trás.
Giro de uma vez, segurando a garganta de um deles, jogo-o
contra a parede e dou um golpe na garganta do policial à minha
direita, ambos caem desacordados com a intensidade do ataque.
Analiso os quatro policiais deitados no chão, levou segundos
até que tivesse todos fora do meu caminho. Estalo meu pescoço e
levanto o olhar, fixando em Artem que me encara com espanto.
— Tu sabes como me chamavam dentro da cadeia? — Sorrio,
dando um passo à frente. — Demônio da Rosa. — Falo, lançando
lhe um olhar mortal.
— Tu? — Debocha com um sorriso de lado.
— Tens coisas das quais tu não sabes. — Estalo a língua.— E
ainda que eu te odeie, tu continuas sendo meu irmão. — Falo ao
chegar perto, tão perto que nossa respiração se mistura. — Em
respeito o que sinto por ti, pela mamis... mesmo que eu me deteste
por isso, não tocarei em teu rosto, porque tem outras formas de
destruí-lo.
Artem range os dentes, sem nem se mover, apenas me encara
sem expressão alguma.
— O que tu escondes, irei descobrir — falo, passando por ele
e esbarrando em seu ombro.
— Tu não se cansas? — Paro ao escutar sua voz fria.
— Sim, estou exausto — confesso.
— Se entregue. — Sorrio, esfregando meu rosto.
— O que tu estás a esconder, está lhe corroendo aos poucos.
Vejo em seus olhos um brilho de arrependimento encoberto por uma
raiva que tu criaste. — Olho para ele por sobre o ombro, suas
costas estão rígidas e suas mãos em punho, esbranquiçadas de
tanto apertar. — Tu estás atrás de mim porque é seu trabalho. —
Completo.
— Tu nunca deveriaster fugido...
— Sim — concordo.
Ficamos calados por um tempo, escutando os gemidos dos
homens nocauteados.
— Te darei 24 horas antes de mandar a cidade inteira atrás de
ti. — Fala, por fim.
Não digo mais nada, apenas me afasto. Artem não vem atrás
de mim. O que quer que esteja escondendo é muito maior do que
imaginei e esse segredo está o corroendo, destruindo-o toda vez em
que me olha.
Seja lá o que for, sinto dentro de mim que não irei gostar do
que tem a me dizer. Respiro fundo, entrando em uma sala vazia
quando mais policiais aparecem.
No entanto, não pensarei nisso agora, descobrirei daqui a
pouco quando investigar o que Nikita tem para mim. Nesse instante
meu desejo é apenas conseguir sair daqui e ir direto para ela... para
a única mulher que foi capaz de iluminar minha vida novamente,
depois de muitos anos.
Fico me encarando através do espelho do banheiro, sem
acreditar que fui capaz de sorrir... que senti dentro de mim que algo
foi consertado. É uma sensação tão... incrível, a sensação de ser
liberta de um pesadelo sem fim.
Fecho meus olhos, esticando meus lábios em um sorriso de
libertação, que aos poucos se transforma em uma gargalhada
misturada com choro.
Encosto na parede e escorrego até o chão, encolhendo as
pernas e lembrando-me de tudo o que vivi, dos momentos em que
mataram meu sorriso, em que destruíram minhas chances de ser
feliz.
Sei que nunca serei normal, que não suportarei ser tocada por
outra pessoa, ou por outro homem. Estou ciente de que Ruslan vai
embora e me deixará.
Dói... essa realidade me dói mais do que posso suportar.
Quero que ele fique ao meu lado, que me veja sorrir todos os dias.
Ele foi o responsável por toda a minha evolução, por causa dele
pude permitir ser tocada... Ruslan mudou minha vida.
Ele veio apenas para isso? Para me tirar do abismo?
Recosto a cabeça na parede, lágrimas escorrem em
abundância. Como pude deixá-lo entrar em minha vida desprovida
de felicidade, sabendo que nosso tempo tem prazo de validade?
Como ficarei depois disso?
Solto um suspiro, não quero que tudo o que vivi ao seu lado
nesses meses desapareça. Senti hoje que James não pode mais
me ferir, que não pode mais tirar tudo de bom dentro de mim. Eu
mereço ser amada... mereço ser feliz.
— Babaca... — Xingo-o com toda raiva que tenho, mas ao
mesmo tempo, me livrando dessa dor que me atormenta.
Sobressalto de susto quando um trovão ensurdecedor entoa
tão forte que meu coração salta. Olho pela pequena janela que dá
para o lado de fora. Uma chuva forte começa a cair. Levanto-me e
limpo meu rosto, vendo a luz vacilar devido ao vento forte e aos
raios que iluminam o banheiro.
Paro em frente ao espelho do meu quarto, esticando meus
lábios, tentando sorrir, incrédula demais para acreditar nesse fato.
Aliso a seda do vestido, depois meus cabelos... meus olhos... nunca
parei para analisá-los... nunca parei para me analisar.
Todas as vezes que tentei fazer isso, a voz de James
preenchia minha mente “Ninguém nunca irá te amar... você é
asquerosa, só desperta nojonas pessoas...” Só que ele está errado,
não sou asquerosa, não desperto nojo nas pessoas e... eu sou
amada... amada pelos meus amigos, por mim e por... Ruslan.
— Você não tem mais poder sobre mim, James — murmuro,
vendo sua imagem através do espelho. — Eu vou ser feliz... e você
nunca mais me fará chorar...
Mesmo com meu corpo trêmulo, não recuo, sustento seu olhar
repugnante, jamais esquecerei tudo o que me fizeste, mas diferente
de antes, eu vou superar, ultrapassar todas as barreiras... consertar
aquilo que ele destruiu.
— Você não tem mais poder sobre mim — repito, uma lágrima
cai do meu olho. — Nunca mais... James... nunca mais você irá me
fazer...
Me calo assim que escuto minha porta ser esmurrada. Tensão
me faz congelar, as batidas parecem ser exigentes. Forço-me a
andar e coloco as mãos tremendo sobre ela. Salto para trás no
momento em que ela é esmurrada novamente. Estou com medo... a
não ser que seja... ele falou que viria, disse para eu o esperar em
casa...
Sem perder mais tempo, abro a porta de uma vez. Ruslan está
parado com a cabeça baixa e as mãos no batente da porta. Ele está
encharcado, sua respiração acelerada me faz engolir em seco.
— Ruslan?
Ele sorri, balançando a cabeça antes de erguê-la e se fixarem
mim. Seus olhos têm um brilho diferente... Ruslan está diferente,
tanto, que faz meu inteiro vibrar pela intensidade do seu olhar.
— Tu sorriste— sussurra.
Sua língua percorre seus lábios, acompanho o percurso com
um frio na barriga, descendo meu olhar por seu corpo. O tecido da
sua blusa está colado em sua pele, realçando seus músculos, o
peito rígido.
Minha boca seca e meu coração acelera.
— Laura? — Ergo o olhar. — Não consigo...
— O que você não consegue? — Pergunto com a voz fraca,
Ruslan me fita, no segundo seguinte, ele avança em minha direção
e captura meus lábios.
Escuto a porta ser fechada em um baque. Ruslan me gira e me
prensa contra ela, entrelaçando a mão em meus cabelos. Percorro
seus braços com minhas mãos, sentindo seus músculos se
contraírem a cada toque meu, seu beijo a cada segundo fica mais
intenso... mais quente.
Tudo dentro de mim irrompe em arrepios, permitindo-me
afundarnessa sensação sem a capacidade de me controlar. Seguro
firmeseus cabelos, querendo mais de Ruslan... querendo tudo dele.
Sei que ele me quer, mais do que eu o quero. Seu beijo se
torna sedutor demais para pensar o contrário. Seu corpo cola mais
no meu, ele não interrompe o beijo, nem eu quero. Mesmo que eu
precise respirar, quero me afogar no seu desejo.
No entanto, uma sensação estranha me acomete, não sou
completa... nunca me deitei com um homem... muito menos beijei
um, antes de Ruslan. Tudo o que experimentei foi... repugnante,
doloroso e... asqueroso.
Será que irá me querer mesmo sabendo o que vivi?
Só que eu quero isso, quero continuar sentindo essa
sensação, o desejo dele por mim...
De repente, Ruslan interrompe o beijo, afastaas mãos do meu
corpo e as sustenta na porta ao meu lado, me enjaulando enquanto
olha para baixo.
Nossa respiração acelerada e ofegante se mistura, sinto medo
de que me diga que não me quer, ou que... não sou o que necessita.
Minha mente começa a se tornar uma bagunça, a rejeição
sobressaltando.
— Me peça para ir embora, Laura — diz com a voz baixa e
rouca. — Peça-me... para deixá-la. — Franzo a testa sem
compreender seu pedido. Ruslan ergue a cabeça, seus olhos estão
nublados por algo que não consigo detectar.
— Eu não quero machucar você... porque não está certo...
está tudo errado.
— O que na nossa vida é certo, Ruslan? — Seus olhos
estremecem. — Tiraram tudo da gente...
— O que eu posso fazer? — Fico calada, encarando-o. —
Diga-me, eu faço.
— Eu quero... isso.
— Isso o quê? — Pergunta, umedecendo os lábios.
— Tudo... — Confesso. — Eu quero tudo...
— Sua dor me dominou no momento em que coloquei meus
olhos em ti... Quero me afundar, Laura... afundar na sensação que
tu me transmites.
— Eu também... — Balbucio, fervendo de desejo.
— Tu sabes que... não ficarei — assinto, perfeitamente ciente.
— Então me marque... — Me aproximo dele. — Marque a
ponto de nunca mais poder te esquecer... faça-me sentir amada pela
primeira vez... me faça sua, Ruslan, mesmo que apenas por uma
noite.
Ele me encara, sustento seu olhar com determinação, com a
certeza de que eu quero isso... que necessito desesperadamente
sentir sua entrega, para me entregar de corpo e alma pela primeira
vez, mesmo que nosso tempo seja limitado.
Sinto suas mãos na minha cintura, apertando-a. Ele está
dividido entre o medo e a excitação, ele morde seu lábio inferior.
Cada minuto leva uma eternidade, há um conflito em seus olhos...
— Faça — peço, e era tudo o que Ruslan precisava para
avançar.
Sua línguaquente invade minha boca, desesperada e ansiosa.
Percorro minhas mãos por seu peito, sentindo seu coração bater
acelerado. Nosso beijo se aprofunda, me fazendo perder todos os
meus sentidos, sendo transportada para um mundo onde não existe
dor, medo e traumas.
Afasto o aperto no coração que me diz que amanhã ele não
estará mais aqui. Essa realidade dá um nó em meus sentimentos,
então me agarro mais a ele, e aprofundo mais o beijo.
Não quero que vá...
Ruslan me levanta, cruzo as pernas em volta da sua cintura.
Ele me leva até a mesa, me colocando em cima e se encaixando
entre minhas pernas sem interromper os beijos apaixonados, fortes
e exigentes.
Inclino para trás, sua mão nas minhas costas me empurra para
colar mais ainda em seu corpo. Sua outra mão começa a percorrer a
pele exposta da minha perna, subindo devagar, lenta, sem pressa.
Ruslan geme contra meus lábios. Sua língua se movimenta
como uma dança sexy, minhas mãos empurram sua camisa para
cima, tirando-a e sentindo o calor de sua pele, explorando seu
abdome definido.
Seus lábios desgrudam dos meus, começando a depositar
beijos suaves ao longo do meu pescoço, clavícula, na linha do meu
maxilar e mordiscando o lóbulo da minha orelha, arrepiando-me por
inteira.
— Tu... — Seus olhos se prendem nos meus, brilhando com
desejo. — Estás me deixando louco...
Sorrio de leve, seus olhos se prendem nos meus lábios.
— Não sorria...
— Ou então? — Pergunto, puxando-o para mim.
— Não me responsabilizarei pelo que farei. — Ruslan volta a
me encarar, sorrio de novo e é a deixa para que tudo exploda, que o
desejo ardente sobressalte e nos faça perder a cabeça.
Ruslan mergulha em minha boca, desesperado, querendo
mais e mais. Suas mãos apertam minha coxa, entrando por debaixo
do meu vestido, estremeço de excitação. Ele me puxa para frente,
fazendo-me sentir seu membro rijo entre minhas pernas.
Sinto meu interior pulsar de desejo, suas mãos apertam
minhas nádegas com uma intensidade tão sedutora que arfo,
apertando as pernas ao seu redor.
Ouço um ronronar sair de sua garganta ao sentir seus dedos
em volta da borda da minha calcinha. Seus ombros tencionam, ele
espera um momento, afastando os lábios dos meus e volta a beijar
meu pescoço, suas mãos navegam por minha pele, calejadas,
quentes e fortes.
Seu toque... seus beijos despertam minhas emoções, mesmo
que o tempo corra, que os anos passem, esse contato... esse
momento nunca se apagará da minha memória.
Percorro as mãos por suas costas. Ruslan arfa contra meus
lábios, subindo cada vez mais meu vestido até poder arrancá-lo. Os
movimentos dos seus lábios... da sua língua me fazem estremecer .
Ruslan contorna minha cintura e me ergue, me levando para o
quarto, beijando meu pescoço, minha boca e apertando meus
cabelos.
Ele me deita na cama com cuidado, encostando seu corpo no
meu, sentindo meu calor. Ruslan afasta os cabelos do meu rosto
com os olhos fixosnos meus. Com os dedos, começa a navegar por
minha pele, contornando meus seios, barriga e em torno da
calcinha... Seu toque é como faíscasprestes a acender o fogo
dentro de mim.
Seu peito sobe e desce em um ritmo acelerado. Ergo as mãos,
acaricio seu rosto, pescoço e ombros, conhecendo-o, sentido sua
pele, seu calor e inspirando seu cheiro antes de puxá-lo em direção
aos meus lábios.
Ruslan pressiona seu corpo contra o meu ao segurar minha
coxa direita e se encaixar entre minhas pernas, como se seu lugar
perfeito fosse aqui comigo. Seu toque se torna mais cuidadoso,
cauteloso, como se estivesse com medo de... me quebrar ou de
avançar.
Desfaço o beijo, Ruslan se afasta.
— Não tenha receio — digo, agarrando seus cabelos. — Eu
quero você. — Um sorriso travesso estica em seus lábios e seus
olhos brilham.
— Não vou ter pressa — fala, acariciando minha bochecha
com seu nariz, sua mão se afundandona carne da minha cintura. —
Mas ao mesmo tempo... estou desesperado por ti...
Abro a boca para falar, mas sou silenciada quando sua língua
me invade. Minha mente memoriza cada segundo de nossa entrega,
não há nenhuma palavra que explique o que estou sentindo.
A maneira que me toca, que me beija... faz-me sentir a mulher
mais amada do mundo. Algo dentro de mim completa, como se o
quebra cabeça tivesse acabado de encontrar a peça que estava
faltando.
Arqueio as costas quando começa a depositar beijos ao longo
do meu corpo, sua língua navega por minha pele, me arrepiando de
uma forma mágica. Com cuidado, Ruslan desliza suas mãos por
minhas costas, tirando meu sutiã, prendo a respiração. Seus lábios
contornam meus mamilos, mordiscando de leve e contornando todo
meu seio.
Fecho os olhos, sua mão desce por minha barriga até
encontrar minha intimidade. Arfo ao sentir seus dedos, sua boca
captura a minha. Um turbilhão de sensações me faz contorcer de
desejo. Ruslan se afasta e volta a beijar meu corpo.
Minhas veias pulsam com os batimentos acelerados do meu
coração. Agarro com força a colcha da cama ao sentir minha
calcinha sendo deslizada por minhas pernas, lentamente. Ruslan
deposita beijos em meu tornozelo quase cicatrizado, subindo por
toda minha perna, espalhando arrepios ao longo do caminho.
Arqueio as costas mais uma vez e prendo a respiração quando
seus lábios e língua acariciam minha intimidade, fazendo-me
contorcer conforme seus movimentos se tornam sedutores demais
para suportar tudo o que sinto.
Quando penso que não irei mais aguentar, Ruslan se afasta,
seus olhos se encontram com os meus, fervendo de luxúria. Ele tira
sua calça, a única peça que nos impedia de nos conectar.
Meus olhos descem por seu corpo, analisando-o, meu coração
acelera e, de repente, o medo começa a crescer dentro de mim. A
sensação de ser tocada daquela forma... de... minhas mãos
começam a tremer, meu corpo fica tenso e me ergo, chegando para
trás, meus olhos nublam.
— Ei... — Sua voz suave me tira do caminho nebuloso em que
se abria. Olho para Ruslan, lutando contra a escuridão dentro de
mim, só que não permitirei que isso aconteça. — Ei... — Suas mãos
seguram meu rosto, leva um tempo para conseguir focar nele, sua
expressão é de preocupação e medo.
— Eu não quero... — Ruslan assente.
— Claro... — Nego com a cabeça, ele me olha confuso.
— Eu não quero que meu passado nos atrapalhe. — Revelo
com a voz falhando. — Por favor... faça-me esquecer... — Peço,
seus olhos brilham.
— Quando tudo parecer difícil...— começa a dizer, roçando
seus lábios nos meus. — Sorria.
Um nó se aloja na minha garganta. Ruslan aos poucos vai se
encaixando entre minhas pernas e vou relaxando, me entregando a
ele. Seguro seus ombros ao sentir seu membro na minha entrada.
— Quando tu só enxergar neblina... — Ele morde meu lábio
inferior, apertando minha coxa. — Sorria.
— E se tudo ruir? — Pergunto, arfando.
Minha respiração acelera mais ainda, mordo seu lábio,
fazendo-o soltar um gemido, Ruslan está se controlando, mas não
quero que ele se controle, porque ele é o único a me tirar do
abismo.
— Sorria... — Murmura. — Quando se lembrar de mim...
— Sorrirei — ele assente.
— Lembre-se dessas palavras que irei dizer... — Ruslan afasta
a cabeça um pouco para olhar no fundodos meus olhos. — Quando
se sentiresperdida, ao ponto de se entregar à escuridão, lembre-se
dessas palavras...
Aperto meus lábios, Ruslan inspira fundo, contemplando esse
momento único de nossas vidas. Quero tanto pedir para que fique...
— Amo-te... — Suas palavras me invadem, congelando-me. —
Amo-te mais do que posso suportar... Amo-te de alma e coração...
Lágrimas escorrem por meu rosto, Ruslan sorri, limpando-as
com o polegar.
— Sorria — balbucia e fecho meus olhos quando aos poucos
suas palavras começam a penetrar em meu coração. — Sorria,
Laura, porque tu és amada...
Seus lábios voltam a se encontrar com os meus, agarro seus
cabelos, soltando um gemido de prazer quando, por fim, Ruslan se
funde, nos tornando apenas um, eliminando qualquer espaço que
tende a nos separar.
Minha alma se completa ao seu ritmo sedutor, paciente e
calmo. Seus ombros estremecem ao sentir minhas unhas fincarem
em suas costas. Sinto-o pulsar dentro de mim, se tornando mais
exigente, indo mais fundo, beijando-me como se eu fosse tudo o
que necessita para respirar.
A chuva que cai do lado de fora, tão forte e escandalosa, se
torna uma canção que invade cada parte do meu ser. Minha alma
grita ao ser liberta da dor, que achei ser incurável.
Cada cadeado é destrancado e caem sob meus pés, abrindo-
me as portas, mostrando-me que eu posso ser feliz. Que nada
nesse mundo será capaz de apagar esse momento.
Ruslan se afasta para me olhar, me perco em seus olhos,
perguntando-me se tivesse recusado a fazer a entrevista, de vê-lo
na prisão, ou se nossos caminhos não tivessem se cruzado, será
que eu estaria vivendo o momento mais lindo e inesquecível da
minha vida?
Ele me salvou, mostrou que mereço ser amada. Ruslan tinha
as chaves do meu coração e nem sabia, dominou meu corpo e
minha alma, fez-me esquecer das horas, da dor e fez o tempo se
tornar incerto, essas são as minhas últimas horas com o único
homem que já amei.
Mesmo que os anos passem, que tudo se cale, eu sempre
serei sua rosa, e ele minha fragrância, a canção da chuva de uma
madrugada, o vento que me acaricia. Ruslan Rotam sempre será
minha eterna e intensa paixão...
Com as mãos no bolso e o capuz escondendo meu rosto,
caminho pela rua, perdido na dor de tê-la deixado... sem ter tido
coragem de me despedir.
Uma lágrima dolorosa cai de meus olhos, quero poder destruir
quem me privou de ser feliz, porque nesse momento eu estaria com
a mulher que amo em meus braços, assistindo todos os dias seu
sorriso brotar como uma rosa em seus lábios.
Ranjo os dentes, girando meu corpo e metendo o punho contra
o muro de um prédio, um grito de indignação se aloja na garganta.
Estou engasgado, tudo está pesado, concretos caem em
abundância em meus ombros.
Fecho os olhos ao encostar a testa contra o muro úmido e
gelado, a rua solitária de uma madrugada fria me faz companhia. É
assim que me sinto, sozinho, sem rumo e perdido na dor que me
dilacera.
Quero tanto poder ficar ao seu lado...
Solto a respiração, me sentindo um fracassado... derrotado.
Inspiro fundo, acalmando-me aos poucos enquanto minha mente me
leva de volta para o momento mais feliz de toda minha existência.
Seu corpo quente e macio gritando por meu toque. Os
movimentos dos seus lábios... de suas mãos me enlouquecendo...
Laura se tornou minha, eu pude ver em seus olhos que eu a tirei do
abismo. Esse era meu objetivo, fazê-la sorrir outra vez. Estava
consciente de que meu tempo estava acabando, mas... cacete, não
consigo aceitar...
O toque do meu celular me desperta, tiro-o do bolso e atendo
sem me mover. Estou petrificado na indignação do que se tornou a
minha vida.
— Foda-se, Ruslan! — Nikita grita do outro lado da linha. —
Onde tu estás? Estou te procurando por dois dias, garoto.
Dois dias...
Dois dias perambulando pelas ruas sem um destino, me
destruindo com as drogas que encontrei ao longo do caminho,
fugindo de Artem...
Dois dias inconformado por tê-la deixado....
— Ruslan? — Inspiro fundo. — Cacete garoto!
— Estou bem! — Respondo com a voz arranhando a garganta.
— Apenas alterado.
— Tu usaste drogas? — Passo a língua por meus lábios
secos.
— Precisava de uma... fuga.
— Adiantaste? — Desencosto da parede, olho para o lado,
esperando-a.
— Como pode um homem viver se por dentro estás morto? —
Pergunto, me afastando de onde estou.
— Tu já sabes o teu caminho, precisamos terminar essa
merda.
— Preciso resolver um assunto antes. — Nikita fica em
silêncio sabendo do que se trata.
— Te espero aq... — Finalizo a ligação sem esperar que
termine.
Devolvo o celular ao bolso, encarando o farol distante de um
carro que se aproxima. Paro no meio da rua e ergo a cabeça, a
motorista freia e abaixa os faróis. Leva alguns segundos para que
desça.
— Ruslan?! — Olesya se aproxima com cautela ao me
reconhecer.
Levou dois dias para descobrir onde ela mora, sabia que hoje
ela voltaria de madrugada depois de uma confraternização da
empresa de seu namorado, um executivo muito rico.
Olesya me olha espantada, seu rosto está pálido e seus olhos
conflitantes percebem que estou alterado.
Ela é a única que pode me ajudar.
— Preciso que tu tragas uma pessoa. — Vou direto ao
assunto.
— O quê!? Quem? — Sua expressão confusa me mantém
firme.
— Dentro do seu correio está tudo o que necessita.
— O que estás acontecendo, Ruslan? — Sua voz sai trêmula,
me aproximo dela e seguro seu rosto, depositando um beijo em sua
testa.
— Tu me enches de orgulho. — Olesya arfa, me encarando
através das lágrimas. — Sei que tu lutaste por mim em segredo,
pagando advogados caros, mas... chega!
— Como... como descobriste? — Enxugo seu rosto quando
lágrimas escorrem.
— Tenho meus meios. — Respondo vagamente. — Não se
preocupes comigo, viva por mim, tudo bem? — Ela balança a
cabeça, segurando meu pulso com as mãos tremendo.
— Não me deixe... tu tens a Laura...
— Acabou, minha pequena... meu tempo acabou. — Seguro
firme sua cabeça quando ela faz um movimento de negação.
— Ela sorriu... — Revelo, finalmente permitindo-me fraquejar
.
— Como dizes?
— Laura sorriu, pequena... eu a fiz... sorrir. — Olesya me olha
com surpresa. — Meu tempo acabou, por isso preciso que faça isso
para mim.
— Rusl...
— Tu fazes? — Minha irmã fecha os olhos e assente.
— Quem que tu queres que eu traga? — Encaro-a com
firmeza.
— Lívia Silva... — seus olhos arregalam. — Quero que traga a
mãe de Laura.
Sentada à mesa coberta por documentos e fotos, encaro as
cinco rosas já murchas que Ruslan deixou antes de ir embora sem
se despedir.
Quando abri meus olhos, ele não estava mais deitado me
olhando como fez até eu pegar no sono depois de uma noite
inesquecível. Tinha apenas as rosas, não pude me segurar, chorei
por horas, porque ele fez o certo, eu não suportaria dizer adeus.
Acordei de um sonho, é tudo o que sinto agora.
Desvio os olhos nublados das rosas, focando nas fotos das
vítimas do demônioda rosa. Yaroslav descobriu que era assim que
Ruslan era chamado na prisão por causa dos assassinatos das
mulheres, então Andry decidiu dar esse título ao documentário.
Por incrível que pareça, meu chefe aceitou dar a quantia para
obter todas as cópias dos arquivos e documentos de Ruslan, assim
como estão as informações de sua família, uma ficha completa.
Coloco o cotovelo sobre a mesa e sustento o queixo na palma
da mão, soltando um suspiro longo, encarando o rosto de Ruslan
através da única foto dele.
As provas estão tão concretas, há alguns vídeos de câmeras
de segurança que capturaram ele em alguns becos, mas mesmo
assim... tem alguma coisa errada. Em todos os vídeos ele estava
normal, como se nada tivesse acontecido. Mesmo que isso seja
uma prova, não acredito, tem algo mal explicado.
Preciso encontrar a verdade, mas como?
Sobressalto de susto quando meu celular vibra. Levo a mão ao
coração acelerado, desejando que seja Ruslan me ligando... que...
que de alguma forma seja ele dizendo que irá voltar.
Rony pula em cima da mesa, se deitando sobre os papéis
como fez várias vezes ao longo da madrugada. Em todas às vezes
tive que tirá-lo. Olho para ele tão aliviada por ter melhorado que
acabo permitindo que fique.
— Gato abusado! — Murmuro, atendendo a ligação. — Sim?
— O que está fazendo? — Andry pergunta, evito soltar uma
lufada de ar.
— Estou terminando o material sobre o Ruslan, assim como
me foi ordenado. — Ele estala a língua.
— A repórter Lybochka aceitou apresentar o documentário,
acabaste de assinaro contrato. — Contorço meus lábios, Ly é uma
mulher linda, famosa e uma profissional integra.
— Uma boa escolha.
— Preciso que esteja tudo pronto essa semana, tu consegues?
— Acho que sim — respondo.
— Não penses demasiado nisso. Tu me entregas tudo pronto
essa semana. — Respiro fundo e murmuro um sim.
Sem se despedir, Andry desliga. Aperto os dentes diante da
sua falta de educação e reviro os olhos para Rony, que balança o
rabo.
— Você está amassando meus papéis, está ciente disso? —
Ele me ignora, levanto-me e vou preparar sua comida.
Enquanto separo seus remédios, minha mente volta para
Ruslan ao mesmo tempo em que meu coração aperta de saudades.
Sem que Rony veja - porque se ele ver, o filhoda mãe joga os
remédios fora - coloco dentro de bolinhas de patê os comprimidos e
me viro para lhe entregar.
Ele come facilmente, meu celular volta a tocar e antes de
atender, coloco seu café da manhã em seu pote de comida. Franzo
a testa ao ver o nome de Andry.
Por que está me ligando de novo?
— O que foi?
— Mais uma vítima...
— Revela afobado, meu coração acelera.
— Como?
— Acabei de saber que foiencontrada mais uma mulher
assassinada, estão dizendo que foiRuslan. Yaroslav e Aksinya
estão indo para o local.
— Não foi ele...
— Tudo indicaque sim,Laura, assimcomo o corpo perfurado,
uma rosa foi deixada.em
T alguma dúvida que não seja ele?
Meus olhos navegam por entre as fotos e minhas anotações
que tem o cronograma do tempo entre cada morte.
— Não fazsentido... — Seleciono o viva-voz, coloco meu dedo
indicador sobre as datas que anotei e vou descendo até a última.
— O que não faz sentido?
— Desde que os assassinatos começaram, o demônio tinha
um padrão, mulheres jovens e ricas, mas todas elas mortas no
intervalo de um mês.
— Certo, e qual a novidade?
— Quando Ruslan foi preso, resolveu o problema. Não houve
relatos de assassinatos...
— Mas elecontinuoumatando dentro da cadeia.— Desdenha
me interrompendo.
— Aí que se engana. — Prossigo, procurando os arquivos do
Colony 100. — Ruslan matou um dos detentos anos depois. Certo
que ele se tornou um assassino em série lá dentro, mas mesmo
assim, não se encaixa no padrão do demônio da rosa.
— Não consigo compreender-te.
— Depois que ele fugiu, voltou os assassinatos, porém, posso
afirmar que não foi ele.
— Tens provas? — Fecho meus olhos com uma respiração
funda.
— Olha Andry, acho que nós, como jornalistas, necessitamos
encontrar a verdade. — Coloco as fotos da famíliade Ruslan uma
ao lado da outra. — Não tem nem um mês que o demônio
assassinou uma mulher, e se ele não for de fato Ruslan, mas
alguém próximo a ele? Que sabia dos seus horários, do local onde
ia, das câmeras que o pegaria...
— Hum...
— Ele aproveitou essas informações para cometer os
assassinatos, para que se a casa caísse, ele teria a quem culpar.
Ruslan passou fome, assim como a família,mas era um garoto
cheio de sonhos que se sacrificou para colocar comida na mesa,
poderia muito bem despertar inveja.
— Quem teriainvejade um moleque? — Pergunta Andry, uma
buzina invade meus ouvidos, deve estar no trânsito.
— Artem ou Mirom?
— Eles são irmãos, não faz sentido...
— Andry — o interrompo. — Toda a maldade, noventa por
cento vêm de pessoas próximas, daqueles que nunca imaginamos
serem capazes.... eu sou a prova disso. — Ele fica em silêncio,
consigo apenas ouvir o movimento do trânsito.
— Prossiga— pede, inspiro fundo.
— Isso me faz pensar que ele não parou de assassinar,
apenas mudou sua estratégia de esconder seus crimes. — Prendo
meus cabelos em um coque bagunçado. — Andry?
— Sim?
— E se... — Paro de falar indo para meu computador.
— E se...? O que, Laura? — Indaga impaciente.
— Só um momento, chefe! — Ele rosna, meus dedos voam no
teclado, o banco de desaparecidos me dá o que preciso. — Todo
ano em Kharkiv muitas pessoas desaparecem, entre elas mulheres,
homens e crianças, mas diante do que estamos procurando,
acredito que as vítimas do demônio estejam nesses dados. São 14
anos, Andry, um psicopata não iria ficar esse tempo todo sem
cometer uma barbaridade que lhe proporciona prazer.
— Mas não há vestígios.
— A pessoa por trás de tudo, sabe esconder suas evidências.
Irei agora ao departamento de desaparecidos buscar essas vítimas.
Vou descobrir quem é o culpado.
— Laura? — Olho para o celular. — Tu és uma jornalista.
— Você nos colocou nessa Andry, vou até o fim para provar
que Ruslan é inocente.
— Por que tu tens tanta afeiçãopor esse louco?— Umedeço
meus lábios, evitando não me alterar.
— Preciso me apressar. — Desligo antes de falar qualquer
outra coisa.
Esfrego meu rosto e me levanto pronta para me arrumar
quando uma batida na porta me fazparar. Vou até ela e abro já com
a palavra na ponta da língua pensando ser Gana, mas quem está à
minha frente é Okasana.
— Bom dia, Laura — seu sorriso me surpreende.
— Okasana!? — Olho para trás, minha mesa está uma
bagunça, não posso deixar que veja. — Não estava esperando por
você.
— Eu precisava passar aqui.
— Entre — abro mais a porta, mas ela nega com a cabeça.
— Perdoe-me por recusar seu pedido, mas é breve, Artem me
passou seu endereço. — Balanço a cabeça, permitindo que
continue. — Quero pedir desculpas pelo que aconteceu naquele
jantar. Só agora tive coragem para vir falar contigo, Mirom foi...
indelicado.
Um escroto, retruco mentalmente.
— Tudo bem... — Okasana olha por cima do meu ombro,
como se estivesse procurando alguém. — Ele não está aqui! —
Digo.
Seus olhos se voltam para mim, nublados com lágrimas. Ela
aperta os lábios e arranha a tampa da vasilha que segura com as
unhas.
— Tu sabes... onde ele possa estar? — Leva um segundo para
eu responder captando suas intenções.
— Ele se foi — respondo com a voz fraca, Okasana assente,
vagamente.
— Eu trouxe uns Varenikide carne e uns de morango também.
— Ela estende a vasilha, eu aceito. — Uma forma de ressarcir o
ocorrido.
— Não se preocupe, dona Okasana.
— Bom... preciso voltar, tenho um compromisso. — Assinto,
olhando-a com mais atenção, em seu pescoço há um colar com um
pingente de um botão de rosa.
Okasana o envolve com a mão, um pouco agitada.
— Está tudo bem? Tem certeza que não quer entrar, dona
Okasana? — Ela me lança um olhar perdido.
— Não querida, só...
— Queria vê-lo?
— Sim — responde em um murmuro.
— Não sei onde ele possa estar. Me desculpe... — Okasana
assente, sorri para mim e sai pelo corredor, deixando uma sensação
estranha se agitar dentro de mim. Respiro fundo e fecho a porta a
tempo de ouvir meu celular tocar.
— Andry de novo, certeza! — Me aproximo colocando a
vasilha em cima da mesa e atendo sem ver quem é. — O que é?
— Senhorita Lauriana Silva?— A voz masculina espalha
calafrios por meu corpo.
— Sim, é ela.
— Aqui é o policialNazariydo departamento de homicídios.
Estou entrando em contato para que compareça na 13º delegacia
para esclarecimento.
— Minhas mãos começam a tremer.
— O... quê?
— Precisamos de apenas algumas respostas, se por acaso
não comparecer até à uma da tarde, teremos que ir buscá-lacom
uma ordem judicial.
— Como assim? Do que se trata?
— Senhorita, não posso lhe passar informaçõespor telefon
e,
ficarei lhe aguardando. — Nazariy desliga, deixando-me
transtornada.
Estou encrencada...
Olho para os lados, Rony me encara percebendo que há algo
de errado. Sem pensar em mais nada, saio do meu apartamento,
apressada. Subo algumas escadas que me levam ao andar de cima
e paro em frente à sua porta, batendo com desespero.
Gana abre segundos depois, suada e arfando, interrompi seus
exercícios matinais. Ela franze a testa ao me ver agitada.
— O que aconteceste, Laura?
— Preciso de sua ajuda. — Gana estreita os olhos, confusa.
— Claro, o que precisasque eu faça?— Engulo em seco, meu
coração bate acelerado.
— Eu acabei de receber uma ligação de um policial e... — Me
calo, engolindo o nervosismo.
— E?
— Preciso que vá comigo à delegacia, não vou ter coragem de
ir lá sozinha. — Falo, atropelando as palavras. — Se eu não for,
posso ser presa.
— Mas por quê? — Não respondo, Gana começa a
compreender. — Merda, Laura.
— Estou ferrada!

Gana caminha ao meu lado conforme adentramos na


delegacia, vários policiais nos olham. Fecho e abro minhas mãos,
nervosa demais para ao menos tentar me acalmar.
Paramos em frentea uma recepcionista, ela encara Gana com
certo desdém, descendo seus olhos por seu corpo.
— O que querem? — Pergunta depois de me olhar.
Gana abre a boca para falar, mas é interrompida por outro
policial.
— Laura? — Ele fica me encarando, aceno um sim com a
cabeça. — Sou Nazariy, me acompanhe, por favor. — Sem esperar,
ele se vira e sai andando por um logo corredor.
Olho para Gana, ela inclina o queixo na direção em que o
policial se foi. Respiro fundo e sigo-o com minha amiga ao meu
lado, tentando se manter calma, assim como eu.
Nazariy para em frente a um homem alto com uma farda
escura, meu coração sobressalta quando seus olhos frios se fixam
em mim e depois em Gana.
— Merda... — Ela sussurra.
Mirom cruza os braços, encosta na parede em frente à porta e
não diz nada, apenas nos encara de forma intensa.
— Senhorita Laura, por favor, entre. — Nazariy me orienta,
inspiro fundo e assinto, andando a passos lentos. — Tu não podes
entrar.
Ele barra Gana, olho para ela e nego com a cabeça.
— Sou advogada dela. — Mirom solta uma risada seca, Gana
olha para ele e retira do seu bolso uma identificação alegando ser
advogada, claro que é falsa, e Mirom sabe disso.
Nazariy pega quando ela estende, analisando.
— Minha cliente só falará se eu estiver ao seu lado. — Os
olhos do policial percorrem seu corpo.
— Advogada é? — Diz, com um sorriso de malícia.
— Deixe-a entrar — Mirom ordena, percebo o policial
estremecer ao escutar sua voz autoritária, Gana fica encarando
Mirom por alguns segundos.
— Obrigada — diz, entrando junto comigo em uma sala vazia
com apenas uma mesa e três cadeiras. — Foda-se, parece filme
investigativo.
— Eles poderiam te prender, sua louca. — Murmuro, ela dá de
ombros, sem se importar.
Sobressaltamos de susto quando uma pasta é jogada em cima
da mesa ao sentarmos. Meus olhos se prendem em Artem.
— Aonde ele está? — Fico encarando-o, Mirom se encosta na
porta e cruza os braços sem se envolver.
— Quem? — Pergunto.
— Não minta, eu sei que tu estavas na Praça da Liberdade
com Ruslan Rotam. — Declara.
Olho para cada um deles. Estou presa com dois homens que
podem de alguma forma ser o demônioda rosa, os que colocaram
Ruslan na cadeia, irmãos de sangue, mas não de coração.
Gana coloca a mão em meu joelho em baixo da mesa. Artem a
encara.
— O que uma prostituta faz aqui? — Pergunta quase gritando,
abro a boca para retrucar, mas Gana se inclina, sorrindo de lado.
— Acho bom você abaixar a bola, ainda mais vindo de um
policial corrupto. — Ele estreita os olhos, sorrindo como se ela
tivesse contado uma piada. — Sou advogada de L...
Artem a interrompe com uma gargalhada, Gana fica vermelha.
Mirom parece uma estátua, não se move um centímetro, fica com
rosto inexpressivo, não faço ideia do que se passa em sua mente.
Seu olhar permanece fixo em mim.
— Você acha que sairá ilesa? — Artem se vira para mim, se
inclinando sobre a mesa. — Se eu descobrir que tu ajudasteRuslan
a sair do país, irei te trancafiar em um presídio, é isso que tu
queres?
— Tu não podes ameaçar minha...
— Cale a boca! — Ele ordena para Grana, erguendo um dedo
indicador sem parar de me olhar.
Olho para ela e balanço a cabeça, dizendo em silêncio que
essa briga é minha, e que não irei recuar.
— Assim como você fez com Ruslan? Trancafiando um
inocente dentro de um inferno?
— Um assassino de merda, não um inocente.
— Tem certeza disso, Artem? Você faz ideia do erro que
cometeu e que continua cometendo? — Retruco, fuzilando-o com o
olhar.
— Tu achas que sou um palhaço? — Ele bate a mão na mesa,
assustando Gana, mas não eu. — Onde está aquele filhoDA PUTA,
Laura! — Seu grito me faz levantar, meu movimento acaba
derrubando a cadeira atrás de mim.
— Você pode ser um babaca de merda, mas não tem direito de
gritar comigo, aliás, nenhum homem grita comigo dessa forma.
Então encontre o seu lugar, Artem, porque você não me assusta. Da
próxima vez que nos desrespeitar, sofrerá consequências das quais
irá se arrepender. — Ele sustenta meu olhar.
— Quero respostas. — Fala com um certo desespero.
— Seu desespero está te deixando irracional. Conheço meus
direitos. Da próxima vez que você exigir minha presença, terá que
ser com uma ordem judicial e com outro policial. Um mais integro,
que saiba tratar uma mulher com respeito. Então, se não quer que
sua cara esteja estampada em todos os jornais amanhã e com um
processo de difamação, saia do meu caminho e nunca mais me
procure. — Me viro para Gana, gesticulando para irmos.
— Laura...
— Não faço ideia de onde Ruslan possa estar. — Meus olhos
se prendem em Mirom. — As últimas palavras dele foram “meu
tempo acabou” — Volto para Artem. — Ele se foi... foi embora da
minha vida.
Contorno a mesa, parando em frente à Mirom. Ele abaixa a
cabeça e abre a porta para sairmos sem dizer nenhuma palavra, só
que antes de passar, me viro para Artem.
— Quando tentar me assustar, por favor, pense em algo
realmente perturbador. Uma delegacia, uma sala com uma mesa no
centro e dois sociopatas como vocês, jamais me assustará.
Passo por Mirom e até que estejamos seguras dentro do carro,
nenhuma palavra é dita. Raiva borbulha em minhas veias ao ponto
de querer voltar e meter a mão na cara daqueles dois idiotas.
Fico encarando a delegacia, furiosa, mas ao mesmo tempo
encucada com a forma alterada de Artem.
— Gana?
— Sim? — Balanço a cabeça.
— Artem sabe...
— É um babaca, Laura.
— Não Gana! — Olho para ela que franze a testa. — Ele está
desesperado, Ruslan sumiu do seu rastro, o que quer dizer que está
esperando o momento certo para expor a verdade.
— Que verdade, Laura? — Gana fica me olhando, confusa.
— Artem sabe quem é o culpado... ele sabe quem é o demônio
da rosa, Gana. Ele sabe!
— Como podes dizer isso sem provas, baseada apenas em
suposições? E se ele for realmente o assassino que procura, o que
irá fazer? — Recosto no banco, esfregando meus lábios.
— Não sei, mas vou provar, nem que seja a última coisa que
eu faça, Gana. Eu vou descobrir e expor a verdade!
Jogo as chaves em cima da mesa sentindo meu corpo
fraquejar depois dessa lufada de emoções. Estou exausta. Durante
todo o percurso de volta para casa, Gana me fezalgumas perguntas
e respondi, sendo verdadeira com ela, sem esconder nenhum
segredo.
Foi bom compartilhar o que está passando dentro de mim.
Yaroslav me enviou informações sobre a suposta vítima de Ruslan,
que de fato se encaixa no padrão.
Olho para o sofá onde a coberta que ele usava está dobrada.
Um nó se aloja na minha garganta. Retiro minhas sandálias e me
deito no sofá, me cobrindo com ela e me encolhendo enquanto
assisto ao desenho do Coragem, inspirando seu cheiro ainda
presente.
Rony fica brincado com um rolo de barbante que comprei para
ele. Lágrimas escorrem por meus olhos lembrando de tudo o que eu
e Ruslan passamos juntos, de como chegou de mansinho, fazendo-
me enfrentar meus demônios.
Me encolho mais e fecho meus olhos, deixando o sono me
levar para a terra dos sonhos, onde posso me encontrar com
Ruslan.... Abro os olhos sobressaltada ao escutar meu celular tocar,
o relógio da parede da sala marca nove da noite.
Espreguiço-me, relaxando meus músculos. Dormi o dia inteiro
e nem sequer sonhei. Forço-me a levantar e vou até meu celular
com o objetivo de recusar a ligação de quem quer que seja.
Encaro o identificadorde chamadas, meu coração acelera com
expectativa ao encarar um número desconhecido, será que é
Ruslan?
Umedeço meus lábios e engulo em seco.
Antes que a ligação caia, atendo e lentamente levo ao ouvido
com o coração palpitando, sentindo calafrios percorrerem meu
corpo.
— Alô? — Murmuro, a pessoa por trás da linha não diz nada,
escuto apenas sua respiração. — Ruslan, é você? — Pergunto,
espero por mais alguns segundos.
— Te encontrei, Lauriana . — Tudo congela ao meu redor
quando sua voz penetra meus ouvidos... ele... ele...
— Ja-ames? — Balbucio, começando a tremer.
Não... não... não...
— Achou que ficarialivrede mim? — Lágrimas caem dos
meus olhos, fico encarando a parede, congelada enquanto sou
arrastada para o passado...
Não aguento mais... não aguento... não consigo... digo sem
parar, enquanto passo a bucha com força em minha pele depois
dele ter me tocado... me machucado... foi tão dolorido... não
aguento mais...
Abraço meus joelhos,querendo gritar, pedir por socorro, mas
apenas um choro doloroso sai de mim tão silencioso quanto minha
voz, assim como tudo em minha vida. Não consigo desfazer a
sensação de suas mãos em mim, dele atrás de mim, dentro de
mim...
Abafo o grito entre as mãos. Quero tanto morrer, mas
sobretudo, quero tanto matá-lo. Olho para a porta do banheiro,
imaginando-ocaindomorto com uma balana testa ou perfurado por
uma faca.
Levanto-me, esfregando minhas partes íntimas,tentando a
todo custo lavara sujeiraimpregnada em mim.Por que não consigo
reagir? Por que não posso ignorar suas ameaças?
Sou uma covarde... quero tanto matá-lo...
Começo a me enxugar, minha pele está esfolada,cortada e
vermelha pelas sucessões de arranhões causadas por mim e
hematomas causados por seus espancamentos. Ele sempre deixa
marca onde posso esconder, muitas delas nem aparecem, são
internas.
Vistominhasroupas e saiodo banheiro.Olhopeloquarto, sem
sentir mais nenhuma emoção. Precisoapenas arrumar um jeitode
sair daqui... de fugir
...
Agacho e puxo uma caixadebaixoda cama, dentro dela há o
envelope que escondi, com meu passaporte, a passagem e os
documentos que preciso para ir embora.
É amanhã... falta pouco...
Escondo o envelope atrás das costas. Não existe nada para
levar. Meu plano era fugiramanhã durante a aula,mas não aguento
mais nenhum segundo aqui, nesse inferno.
Com passos cautelosos,caminhoaté a porta de casa que fica
sempre trancada. Giro a chave, tentando não fazer barulho, mas é
em vão.
Sinto-oatrás de mim,estremeço e virolentamente,encarando
seu rosto petrificado
com olhosmalignos.A cada dia,maisexigente
ele se torna, mais estupros durante o dia acontecem... cada dia
mais violentos...
Ele vai me matar
, é questão de tempo.
Sempre me pergunto como minhamãe nunca percebeu o que
acontece dentro de sua casa, o problema é que quando não está
fazendo programas, ela está drogada e bêbada, cada dia mais
viciada.
É pesado... tão pesado lutar sozinha sabendo que ninguém
acreditaráem minhas palavras.Sem amigos, afastando todos que
tentam de algum jeitochegar até mim, vivonesse infernoque me
destrói, que tirou meu sorriso, vivendo sempre em silêncio.
— Onde pensa que vai?— Estremeço, o timbreda sua voz é
de puro ódio.
— Eu... eu... — Não consigo inventar uma mentira que ele
possa acreditar.
Meu coração acelera,encosto as costas na porta quando dá
um passo em minha direção.
— Vá para o quarto — ordena, nego com a cabeça.
— Não — pela primeira vez eu retruco sua ordem.
Sem que perceba, destranco a porta.
— Eu mandei ir para o quarto — engulo em seco, negando
com a cabeça.
Se eu obedecer, eleiráme tocar de novo e dessa vez vaime
machucar muito mais do que costuma, vejo isso em seus olhos.
Medo toma conta de mim, precisoser rápida. Viro e abro a porta,
mas não sou tão ágil ao ponto de conseguir sair
.
James agarra meus cabelose me puxa para trás, me jogando
no chão. Bato a cabeça contra o piso,quase perdendo os sentidos.
Minha visão escurece.
— Acha que vai fugir?
Com ajuda das minhas mãos, me ergo um pouco.
— Tenho nojo de você... — Murmuro, me levantando.
Ele ri.
— Você que desperta nojonas pessoas, eu estou sujopor sua
causa, Lauriana.Você não presta. Por sua causa eu façocoisasque
não deveria.
— Como me estuprar? — Retruco, procurando algoque possa
me ajudar.
— Eu te puno por ser asquerosa. Já se olhou no espelho?
Você é horrorosa, ninguém gosta de você, por isso que não tem
amigos...
Bloqueiotodas as suas palavras,ele anda em minha direção
como um predador, só consigo ver ódio em seus olhos... olhos
insanos.
— Vou te punir por isso — sua voz me faz estremecer, sem
esperar que chegue mais perto de mim, corro até a cozinha.
Com as mãos, eu procuro por algoque possa me ajudara me
proteger. Todas as facas e garfos foram abolidosda nossa casa.
James manipuloua mente da minhamãe para que acreditasseque
ela era um perigo ao estar drogada. Ela acreditou, como sempre.
Apenas ele sabe onde estão... apenas ele as usa.
Lágrimas caem sem parar , arfo por não encontrar nada. Escuto
James entrar na cozinha,olhopara piae corro até ela,agarrando a
únicafaca presente dentro de casa. Eledeveriaestar usando-a e se
descuidou ao notar que eu estava tentando fugir.
Minha chance... essa é minha chance... viro e aponto a faca
em sua direção. Ele para de andar
, encaro-o através das lágrimas.
— Não chegue mais perto! — Aviso,segurando mais firmeo
cabo da faca, determinada a pôr um fim em tudo.
A prisão é muito melhor do que estar com ele.
— Acha que vaiconseguirme atacar? — Diz,com um sorriso
maléfico nos lábios.— Você é muitoingrata,deveriaagradecer por
tudo o que fiz por você e sua mãe.
— Você só trouxe dor. — Rebato. — NÃO SE APROXIME!—
Grito quando ele dá um passo à frente.
— Estou ficando com raiva.
— Eu vou te matar — ameaço tão decidida,que surpresa
percorre seu rosto. — Eu te odeio...
— Ah é?
Segundos se passam enquanto ficamosencarando um ao
outro. James avança em minhadireçãotão rápidoque não consigo
me defender do tapa em meu rosto que corta meus lábios.
A facacaino chão, ele agarra meus cabeloscom tanta força,
que solto um gritoque é silen
ciadocom um soco no meu estômago.
Me encolho, choramingando...
— Vagabunda — xinga,me jogando no chão, ele me chuta e
pisaem mimenquanto proferexingamentos.— Me mata agora, sua
putinha!
Eleme gira,sangue escorre de meu narize lábios.Me debato
quando começa a tirarminhacalçade moletom.Gritoagoniadacom
ele me tocando, perdendo a esperança de permanecer viva.
Acerto seu rosto com as unhas quando se encaixa entre
minhas pernas. Afundo meus dedos em seus olhos, ele solta um
gemido de dor e acerta meu rosto.
Pontos pretos nublam meus olhos, ele aproveita minha
fraquezae começa. Voltoa me debater, lutandocom tudo o que eu
tenho contra ele, suas mãos contornam meu pescoço e começa
apertar sem parar seus movimentos contra mim, seu gemido me
causa ânsia.
Fixomeus olhos nos seus ao segurar seus pulsos,vejoque a
sanidade... a escuridão...ele vaime matar, James vaime matar...
Lágrimasescorrem, talvezseja minha salvação,mas... quero lutar,
quero viver... quero... quero...
Volto a debater minhas pernas ao sentir o ar dos meus
pulmõesdesaparecerem, eleestá me sufocando.Em seu rosto não
há expressão... até um demônio tem expressão... Olho para o lado
sem mover a cabeça, a faca está poucos metros de mim... eu só...
Fecho meus olhos,não conseguindomaisrespirar. James está
imóvel,olhospresos em mim,sem alma...sem sentimentos....sem
coração.
Esticomeu braço e tateioo chão, precisode algunssegundos,
só mais um pouco... consigo sentir o cabo da faca, com cuidado
arrasto-a com as pontas dos meus dedos em minhadireção, fechoa
mão em torno do cabo.
— Eu te odeio... — Balbucio,encarando-o. — Você destruiu
minha vida, eu vou te matar
....
Ergo a faca e então, no segundo seguinte, afundo a lâmina
com toda forçaque me resta na lateralde sua cintura.James solta
um berro de dor, soltando meu pescoço e se afastando de mim.
Puxo o ar, desesperada para respirar. Rolopara o lado.A faca
ensanguentada é jogada para perto da geladeira. Preciso pegá-la.
— Desgraçada — ele agarra meus tornozelos,solto um grito,
inclino para frente e soco seu rosto, James chia.
Aproveitoe me arrasto até a faca,pegando-a. Sintosuas mãos
em cimade mim, me tocando e tentando me levaraté ele. Com a
faca posicionada em minha mão, giro e corto seu rosto.
James grita, cambaleiapara trás com as mãos no rosto
ensanguentado. Minhasmãos tremem, o cheirode ferrugem invade
minhas narinas.
Eleme olhacom apenas um olho,o outro escorre sangue, não
sei se ele voltará a enxergar novamente. Com dificuldade me
levanto, pronta para lutar. James avança cambaleando, esquivo e
viroo atacando de novo, fincandoa facacom um gritoensurdecedor
em suas costas.
Elerosna e caide joelhos,me afasto com as mãos tremendo.
Tenho a oportunidade de matá-lo, mas... perderia a chance de
recomeçar uma nova vida.
Limpo meu rosto, não quero chorar
... não vou chorar e nem me
arrepender. Começo a sairda cozinha,mas congeloao escutar sua
voz.
— Não importapara onde você for, eu ireite encontrar. — diz
com dificuldade, arfando. — Nem que seja no inferno,eu vou te
encontrar e te destruir... você é minha, Lauriana...
— Quando isso acontecer, eu ireiatrás de você e te matarei.
— Afirmocom tanta certeza que ele me olha. — Eu te matarei,
James, não ireime importar com as consequências,apenas vê-lo
sangrar até morrer...
Me aproximodelefriamente,arranco a facade sua pele.Agora
ele não passa de um abusador ensanguentado e fracassado. Ele
escorrega até se sentar no chão. Passo a faca em sua bochecha,
elegritae tenta me impedir, pisoem sua mão com tanta força,que
prazer navega por cada parte do meu corpo por vê-lo sofrer
.
Passaria dias fazendo isso... o torturando, escutando-o
clamando por misericórdia.
— Eu te matarei.Issoé uma promessa. — Recuo, deixandoa
faca fincada em sua coxa, ele tenta retirar
.
Dou-lhe as costas, visto-me e pego todas as minhas coisas,
saindode casa ensanguentada e machucada. A chuva limpa todo o
sangue enquanto vago pela madrugada sem rumo.
Ao chegar no terminal,vou direto ao banheiro, me tranco no
reservado. Sento-me no vaso e tiro o envelope e três maço de
dinheiroque tinhadebaixoda blusade moletom,dinheiroque minha
mãe vinha juntando ao longo dos anos. Mesmo que eu tenha
escondido, ele ficouum pouco molhado. Retiro de dentro meus
documentos, a passagem e o cartão do banco da minha mãe.
Preciso limpar a conta.
Durante horas permaneço dentro do banheiro até amanhecer.
Caminhoaté uma lojade malase compro uma e vou direto ao caixa
eletrônico,tirando de láos cincomilreaisque é permitidosacar por
dia.
Avistoum orelhão e vou até ele,discoo número da minhamãe
a cobrar. Espero que aceite,sua voz invademeus ouvidos,começo
a chorar.
— Lauriana,é você? — Pergunta com desespero, acreditoque
tenha encontrado James.
— Sim...
— Meus Deus, onde você está? Chegueiem casa e encontrei
James machucado, ele está internado, fora de perigo. Disse que
invadiramnossa casa e que lutoucontra o ladrão,e que você fugiu
com medo.
— Você acreditou nele, mãe? — Pergunto, limpando as
lágrimas, ela fica em silêncio.
— O que está acontecendo, Lauriana?
— Mãe, para de se drogar... — Murmuro em uma súplica.—
Para de beber... assim quem sabe, consiga tirar a venda de seus
olhos e enxergar o estrago. James é um mentiroso... ele me
destruiu... — Minha voz some por causa do choro.
— Laur...
— Eu te amo, mãe... te amo demais...
— Eu também, — mentira,elanão me ama, apenas James —
volta para casa, estou preocupada.
— Não vou voltar... nunca mais...
— O... quê?
— Adeus, mãe! — Coloco o telefoneno gancho, um choro
intensosaide dentro de mim,não consigome manter de pé e caio
no chão.
Por que tem que ser assim? Por que minha mãe não pode
acreditar em mim? Eu sou sua filha,eu deveria ser sua primeira
escolha.
— Moça, está tudo bem? — Sintomãos em cimade mim,solto
um grito e me afasto, encarando o rosto de uma senhora.
— Não me toca... não me toca... nunca maisme toque — falo
me levantando e passando a mãos por meus braços, como se
estivesse limpando sujeira.
A senhora recua, assustada.
Ignorando-a,apanho minha mala e saio apressada em busca
de um táxique possa me levarao aeroporto de Brasília.
Depoisde
muito custo, encontro um disposto, mas que cobra uma quantia
absurda.
Aceito sem me importar, pronta para ir embora e tentar
esquecer todo esse inferno que vivi...
Infelizmente esse inferno nunca me deixou... nunca fui capaz
de esquecer o que ele me fez passar, da dor que me fez sentir.
Mesmo em outro país, James nunca me deixou em paz.
Agora ele está de volta, cumprindo com suas palavras e sei
perfeitamente que ele vai até o fim para acabar comigo. Porém, ele
não faz ideia de que a minha promessa também é verdadeira.
— Não vejo a hora de te encontrar! — Afirma ainda na linha,
deixo o celular escorregar da minha mão, sentindo o ódio crescer
dentro de mim.
Chegou a hora... chegou o dia em que irei cumprir com aquilo
que prometi. Não deixarei James me destruir, não deixarei que me
toque outra vez, porque eu o matarei...
Matarei James e nada me fará parar até vê-lo sangrar.
Fico encarando o celular caído no chão, só tem uma pessoa
que é capaz de trazê-lo de volta. Ele me ameaçou com meu
passado... Olho para a mesa e vou até ela em busca do seu
verdadeiro endereço, nada encontro.
Fito meu celular, agacho pegando-o do chão e disco o número
de Aksinya. Depois de quatro tentativas, ela me atende.
— Laura? — Sua voz sai alarmada. — O que houve?
— Desculpa por estar te incomodando, mas preciso de uma
informação. — Mantenho minha voz calma para não perceber meu
desespero.
— Claro, mas tu estás bem?
— Estava trabalhando no material do documentário, uma
informação apareceu e preciso com urgência do... endereço de
Mirom, de sua casa. — Ouço ela bocejar.
— Mas tu já tens.— Fecho meus olhos, controlando-me.
— Não, preciso da verdadeira casa dele, não o da Okasana.
— Ah, sim! — Escuto um barulho de papéis. — Tenho aqui,
consegui quando Artem foi preso, te mandarei por mensagem.
— Preciso que seja agora.
— O que aconteceu? — Indaga, percebendo meu desespero.
— Como falei, preciso falar com ele.
— Okay! — Aksinya finaliza a ligação, espero por sua
mensagem andando de um lado para o outro, sentindo os segundos
se tornarem uma eternidade.
O celular apita com a chegada da mensagem, agradeço a
Aksinya e vou para meu quarto, abro o guarda-roupa e visto roupas
pretas, prendo meus cabelos, calço um tênis e coloco o capuz, me
encarando pelo espelho.
— ... eu ireiatrás de você e te matarei. — Afirmocom tanta
certeza que ele me olha. — Eu te matarei, James, não ireime
importar com as consequências, quero apenas vê-lo sangrar até
morrer...
Inspiro fundo ao lembrar da promessa que fiz a mim mesma.
Rony mia, se aninhando em meus pés. Agacho e passo minha mão
em seu pelo negro.
— Preciso fazer isso — falo, tentando tranquilizá-lo. — Ele me
destruiu... — Me levanto e saio de casa, subindo apressada as
escadas até o segundo andar. Esmurro a porta de Gana, sei que ela
ainda não foi trabalhar. Ela abre a porta, entro sem olhar para ela.
— Laura? — Vou até seu quarto. — Por que tu estás vestida
assim? — Abro sua gaveta, jogando suas calcinhas no chão.
— Cristo Laura, o que está acontecendo? — Ignoro-a e
congelo ao ver a pistola escondida.
Gana arfa.
— Laura, não...
— Eu preciso... — Fecho a mão em torno dela. — Eu vou
matá-lo...
— Matar quem? — Me viro para Gana, pálida como um
defunto.
— Preciso ir...
— Não, de jeito nenhum te deixarei sair por essa porta com
uma arma na mão.
Fico encarando-a enquanto bloqueia a porta. Já tomei minha
decisão, não tenho mais nada a perder. Então, lentamente ergo a
arma, apontando-a para Gana que arregala os olhos.
— Laura, se acalme primeiro. Tu não estás raciocinando
direito.
— Saia do meu caminho — peço, destravando a arma. — Eu
não quero te machucar.
— Não és tu, Laura... eu não a reconheço. — Lágrimas
escorrem por meu rosto, mas me mantenho firme.
— Não sou a Laura, Gana — digo. — Sou a Lauriana... —
Seus olhos arregalam, ela balança a cabeça de um lado para o
outro.
— Deixe-me passar! — Vendo a determinação em meus olhos,
ela se afasta.
Sem abaixar a arma, passo por ela, andando de costas com
meus olhos fixos nos seus nublados de lágrimas.
— Não faça isso, não destrua sua vida.
— Ele me destruiu... não tenho nada a perder. — Apanho as
chaves do seu carro. — Eu te amo, Gana, não como Lauriana, mas
como Laura.
— Como assim?
Não respondo, apenas viro as costas e saio do seu
apartamento, escondendo a pistola atrás das costas, em segundos,
arranco com o carro pelas ruas, apressada e sem diminuir a
velocidade.
Posso estar errada, talvez Mirom não tenha trazido James....
talvez ele tenha vindo sozinho por outros meios ou descoberto
apenas meu número para me atormentar como fezdurante todos os
anos em que vivi com ele.
Só que não irei esperar sentada, preciso comprovar se é
verdade.
Mirom sabe que James é minha fraqueza, mas não faz ideia
da forma que eu reagiria. Nesse momento eu só quero vingança...
quero ver James morrer, assim como matou meus sentimentos... da
mesma forma que me torturou todos esses anos.
Vou até o infernopara encontrá-lo se preciso for, e através das
minhas mãos, James irá sucumbir à morte, de forma lenta e
dolorosa.
Sou Lauriana Silva, aquela que teve sua vida destruída por
alguém que deveria cuidar e amar... aquela que acreditou ter ganho
o pai que tanto sonhou, a que foi aprisionada em um abismo sem
fim. E é essa mesma garota, que colocará fim em todo esse
pesadelo.

Paro o carro em frentea uma casa de dois andares em um dos


lugares mais ricos de Kharkiv. Desço do carro e encaro-a com a voz
de Mirom entoando em minha mente.
“Queria ajudá-laa rever sua família ...” ele declarou naquele
maldito jantar “... Ele é simpático,tu foste a culpada por tudo...”
Mirom estava falando a verdade, ele trouxe James, sei que ele está
dentro dessa maldita casa, mas não sairá com vida, não se
depender de mim.
Certifico de que a arma está escondida atrás das costas. Olho
para os lados, a rua está deserta, há apenas neblina. Ajeito o capuz
e com a respiração funda, pulo o pequeno muro que cerca a
propriedade, aterrissando no quintal.
Com a pistola na mão, me aproximo da entrada. Jogo para o
fundo da minha alma, trancafiando qualquer sentimento de medo
que possa me fazer parar... que possa me fazer recuar. A frieza e a
vingança tomam conta de mim.
Paro diante da porta, seguro a maçaneta e giro. Ela se abre,
hesito por um instante antes de entrar.
A casa é uma verdadeira mansão. A sala é enorme com
decoração em branco e um lustre vermelho reluzindo cada detalhes
da perfeita decoração. A escada que dá acesso ao andar de cima
está forrada com um carpete vermelho.
Seguro a pistola com as duas mãos quando começo a tremer,
meu coração bate tão acelerado que temo que faça eco por toda
casa. Paro por alguns segundos, tentando escutar qualquer ruído
que seja.
Vou até a cozinha, meus olhos navegam impressionados pelo
tamanho e sofisticação. Decorada com vermelho e branco, ela se
torna o sonho de qualquer mulher que ame cozinhar.
Viro para trás ao escutar uma porta ser fechada. Calafrios
percorrem meu corpo e ando com passos lentos em direção ao
barulho. Olho para cima diante à escada.
Ele está lá em cima...
Respiro fundoe começo a subir. Cada degrau é uma batida do
meu coração entoando junto com os ponteiros do relógio. Chego ao
patamar e olho para o corredor à minha frente.
Estreito meus olhos para acostumar minha visão com a
escuridão, dou um passo à frente, engolindo em seco e controlando
a vontade de recuar.
Aperto a pistola, contendo a respiração desregulada, andando
com passos silenciosos. Congelo de repente, meu corpo se
arrepiando enquanto meus olhos se enchem de lágrimas ao encarar
a silhueta distante.
Sozinha, meu caminho se encontra com o seu, onde o mundo
hostil não tem voz. É dele que sempre fugi, que tive medo de que
esse dia chegasse.
Entre a escuridão, a vida me traz a tristeza de voltar para onde
meu coração se ruiu.
Sozinha, encaro seu rosto coberto por cicatrizes que eu
causei. Meus pensamentos sempre ficaram presos no passado, se
afogando nas lembranças de todo o mal que me fez. Sempre tentei
curar todas as feridas, tentando fazer minha vida voltar a brilhar,
esquecer do que vivi e reconstruir meu lugar, meu pequeno espaço,
libertar-me dele.
Mas a cada batalha, ele permaneceu.
— Eu te... encontrei! — Digo com a voz carregada de dor.
James dá um passo à frente, deixando mais nítido seu rosto
cicatrizado. A íris de seu olho direito está de um branco intenso.
Eu o ceguei.
— Como você cresceu... — Sua voz acerta em cheio cada
sentido meu. — Te procurei por anos, mas se escondeu muito bem.
— Não tão bem, porque acabou me encontrando. — Retruco,
rangendo os dentes e deixando o ódio me dominar.
— Você é como sua mãe. — Fala, percorrendo os dedos por
toda a superfície do rosto. — Uma verdadeiraputa!
— E você continua o mesmo merda de sempre. — Rebato,
recuando um passo.
James solta uma risada.
— Está vendo esse estrago? — Aponta para seu rosto. —
Achou que iria ficar impune por muito tempo?
— Na verdade, — começo, passando a línguaem meus lábios
— sempre soube que você retornaria, que me encontraria.
— Esperta... — Balbucia.
— Quem te trouxe? — James sorri de lado.
— Mirom... acho que é esse o nome do dono dessa casa, não
entendo uma só palavra do que diz.
— Porque é inútil demais para aprender qualquer outra língua.
— Ele fica me encarando com seu olho bom.
— Você ficou desaforada, me deve respeito.
Ele só pode estar brincando!
— Respeito? — Balanço a cabeça. — Você se lembra da
minha promessa, James? Lembra que faltou pouco para eu te
matar?
— Mas não matou.
— Porque fui fraca... mas não sou mais. — Digo, dando um
passo à frente. — Eu vou acabar com você!
Inspiro, encarando o fundo de seus olhos e lentamente
começo afundar meu dedo no gatilho, enfrentando meu medo.
Dentro de mim não há nada além de dor, o sussurro de sua voz de
anos atrás, apenas a escuridão se faz presente.
Quero que queime no inferno e me deixe para sempre. Que
pare de atormentar meus sonhos e minha vida... quero que
desapareça para sempre...
Um barulho engasgado sai da pistola, meu coração para ao
perceber que a arma falhou.
Um sorriso brota de seus lábios, então me vejo de novo,
imponente e fraca. Não há como voltar atrás. A luz dentro de mim,
aquela que se recusa a apagar, começa a desaparecer, nunca pude
viver meus sonhos... nunca pude ser livre, tudo o que procurei,
nunca me foi dado.
Minha mente grita desesperada, mas não consigo me mover,
não consigo sair dessa prisão. Todas as correntes voltam aos meus
pulsos enquanto o vejo se aproximar.
James dá um tapa tão forte na pistola que ela sai voando,
batendo contra a parede e caindo no chão. Dou um passo para trás,
encurralada por ele. Sua mão de repente contorna meu pescoço,
apertando-o.
Arfo e seguro seu pulso sentindo o ar desaparecer. James me
joga contra a parede, solto um gemido ao colidir com tanta forçaque
meus pulmões reclamam.
Quero acordar, lutar contra essas correntes que me
aprisionam, que queimam minha pele para que eu possa destruí-lo.
Inspiro fundo, segurando-me para não cair.
James volta a segurar meu pescoço, apertando-o com força.
Começo a me debater, arranhando seu braço. Seu olho bom
permanece fixo em mim. Frio. Insano.
— Você se tornou uma mulher linda — diz, aproximando a
outra mão e percorrendo-a por meu corpo. Tento impedir, mas ele
intensifica o aperto. — Por que fez isso? Por que me abandonou?
Eu estava apenas te punindo por me deixar confuso. — Paro de me
debater e fito seu rosto, sentindo nojo.
— Eu te odeio... — Sussurro. — Te-enho... nojo de você... —
Declaro, cuspindo em seu rosto.
James fecha os olhos, inclina a cabeça para o lado e sorri
antes de voltá-los a abrir. Pavor me consome ao ler em sua
expressão suas motivações.
Ele vai terminar o que não conseguiu anos atrás...
— Vou te punir — dizendo isso, ele aperta mais forre meu
pescoço, ódio nubla seus olhos escuros.
Nada poderá me libertar, ninguém pode sentir o que sinto.
Noite após noite sendo atormentada, pensando em cada momento
de dor. Fecho meus olhos, tentando buscar a migalha de força que
me resta.
Eu vou acordar, jogar para longe essa corrente que me liga a
James e um passado de dor. Irei florescer como uma rosa, lutarei
até meu último suspiro. Sou a única que pode fazer isso. Abro os
olhos e o encaro.
Sou a única que pode me salvar!
Com impulso, ergo meu joelho e acerto entre suas pernas, ele
chia de dor. Levanto meus braços e impulsiono para baixo com força
sua mão em torno do meu pescoço. James me solta e acerto meu
punho em seu rosto, fazendo-o recuar alguns passos para trás.
Arfo em busca de ar, sentindo-o voltar a circular.
— Vagabunda! — Olho para James, encolhido de dor, não
espero que se recomponha, vou até ele e tento acertar seu rosto,
mas ele é mais ágil e me dá um tapa em meu rosto.
Vacilo alguns passos, sentindo sangue em minha boca. Solto
um grito quando ele agarra meus cabelos, inclinando minha cabeça
para trás.
— Você continua sendo fraca. — Ranjo os dentes e com o
cotovelo, acerto a lateral de seu corpo, ele me solta, giro e volto a
acertar seu rosto.
James cambaleia e me encara, limpando o nariz que sangra.
Olho para a arma perto de mim com a respiração acelerada, mas
não posso arriscar a pegá-la, não agora.
Volto meu olhar para ele, que sorri mesmo diante dessa
situação. Não sou a mesma menina que ele tinha poder sobre mim,
a Lauriana cresceu.
— Vou acabar com você, James. — Digo, olhando por cima de
seu ombro, e antes que reaja, corro até ele e o empurro com força.
Sorrio ao encarar seu rosto surpreso adquirindo uma
expressão de pavor antes de cair nas escadas e sair rolando. Ouço
seus ossos colidindo a cada degrau, gemidos saem de sua garganta
e tudo se silencia quando ele fica estirado no chão, ao pé da
escada.
Pego a pistola e começo a descer lentamente. Engatilho a
arma, aponto em sua direção quando me aproximo. Contorno seu
corpo e o empurro com meu pé, mas então sou agarrada pelo
tornozelo e puxada para frente.
Caio de costas com tudo no chão, a arma faz outro barulho
engasgado, escorrega da minha mão e em instantes James está em
cima de mim, com as mãos em torno do meu pescoço.
Debato minhas pernas, ele está vermelho de raiva e estremece
enquanto tenta me sufocar. Ranjo os dentes e afundo meus dedos
em seus olhos, ele grita.
Intensifico meus dedos para dentro de sua pele, James solta
meu pescoço e me dá um tapa em meu rosto, fazendo minha visão
escurecer, mas não vou desmaiar... não permitirei que me mate.
Tento livrar-me dele quando volta esmagar meu pescoço.
— Eu vou te matar, sua asquerosa...
Eu acredito em suas palavras. Fecho meus olhos prestes a ser
levada pela escuridão. Quando volto a abri-los ao sentir que James
se levantou um pouco, dou uma joelhada entre suas pernas e o
empurro para o lado ouvindo-o gemer de dor.
James cai, não perco tempo, mesmo arfando, chuto seu rosto.
Ele leva as mãos ao nariz, gritando de dor. Rastejo até a pistola e
me viro de costas, apontando a arma para ele que está de pé.
Seu nariz está jorrando sangue, assim como sua cicatriz que
de alguma forma se abriu. Seu peito sobe e desce em uma
respiração rápida e furiosa, se essa arma falhar
, será meu fim.
Meu coração e minha alma nunca irão perdoá-lo. Não há nada
a perder, eu não vou recuar, James matou meus sonhos. Meu
coração chora ao lembrar de seu toque. Ele me empurrou em um
abismo sem fim, sorriu enquanto eu rastejava em busca de saída.
Chorei aos céus, rezando todos os dias para me livrar desse
tormento... chegou a hora de colocar um fim...
Inspiro e afundo o dedo no gatilho, o tiro ensurdecedor zumbe
em meus ouvidos. James dá um passo para trás quando a bala
penetra sua testa, calafrio percorre meu corpo encarando seus
olhos presos em mim enquanto o brilho vai desaparecendo.
Sangue escorre do buraco da sua testa, ele cai de joelhos,
sendo ceifado pelos demônios... sendo carregado para o lugar que
nunca deveria ter saído.
James inspira uma última vez antes de cair para trás, morto.
Tudo se cala ao meu redor. As batidas do meu coração entoam em
meus ouvidos e lentamente me viro, encontrando com seu olhar...
A bala que nocauteou James não saiu da minha arma, porque
ela falhou outra vez, mas sim da de Mirom, que está parado com a
pistola ainda levantada.
Ele acabou de salvar minha vida ou... de destruí-la mais uma
vez.
Sua expressão ilegível e dura não diz nada. Não faço ideia do
estado do meu coração, do que pensar ou sentir.
James está morto e Mirom... me encara.
Sinto ser aprisionada por outro demônio, por uma nova
corrente... mais uma vez implorarei por liberdade, por um apagão,
pedindo para que tudo desapareça.
Mirom abaixa a arma, começando a andar em minha direção.
O encaro petrificada, sem nem abaixar a arma. Ele para à minha
frente, tento apertar o gatilho, ciente de que não funcionará. Mirom
respira fundo e se inclina, arrancando a arma da minha mão.
Ele sorri, analisando a pistola.
— Tu pretendias matá-lo com uma arma de mentira? — Olho
para ele, confusa.
Mirom estala a língua e vai até o corpo do meu padrasto, me
ergo e o observo sentada.
— Se eu não tivesse assistindo tudo, — seus olhos verdes
cintilam ao me encarar — tu estariasmorta agora.
— Fal... falsa?
— Não me surpreende tu não saberes diferenciar. — Ele
agacha e coloca dois dedos no pescoço de James, certificando de
que está morto. — Que bagunça...
— Por que trouxe ele? — Murmuro. — Por que você fez isso?
— Para que possamos seguir em frente, necessitamos
enfrentar e aniquilar o passado. — Diz, estalando a língua de novo.
— Ele era o seu, apenas dei uma forcinha.
— Sua atitude foi motivada por outra coisa.
— Levante-se, precisamos limpar essa merda. — Mirom fala,
olhando para os lados.
— O-o quê? — Olho para ele desorientada. — A polícia...
chame a polícia...
— E em quem eles irão acreditar? — Prendo a respiração. —
Se levante, estás uma bagunça. — Diz, indo até a cozinha.
Solto um suspiro e forço-me a levantar. Cambaleio com as
pernas bambas, quando me preparo para cair, sinto as mãos de
Mirom nas minhas costas, me sustentando. Estremeço e me afasto.
— Aqui — ele estende um saco de gelo. — Coloque em seu
rosto, vai diminuir o inchaço.
— Pensei que era verdadeira... a arma. — Ele solta uma
risada.
— Venha aqui! — Me chama, com cautela me aproximo dele.
— Olhe para esse vídeo.
Mirom aperta o play do notebook em cima da mesa. Meus
olhos nublam de lágrimas ao ver minha luta com James e o
momento em que ele atirou em sua testa, só que não mostra Mirom,
em todo caso, eu atirei em James... nas filmagens, eu sou a
assassina.
Giro a cabeça, dando de cara com a câmera de segurança.
Desvio os olhos e prendo em Mirom, sentado na cadeira de forma
relaxada com um copo de uísque na mão.
— Você o matou... — Ele nega com a cabeça, jogando uma
pasta sobre a mesa.
— Tu mataste um homem, as filmagens não negam. —
Balanço a cabeça.
— Era um plano... era a merda de um plano.
— Bingo — comemora dando um gole na sua bebida. — Tu
disseste que para te assustar deverias ser algo realmente
assustador, acho que consegui.
— Você é doente...
— Não — ele coloca o copo sobre a mesa e sem terminar de
falar, vai até James. — Abra a pasta.
Com a respiração funda, faço o que pede. Uma foto da minha
mãe com um macacão laranja e com uma placa numerada faz meu
mundo desabar.
— Lívia ficou presa durante seis anos por tentativa de
assassinato. — Esclarece, folheio todo o documento. — Ela tentou
matar James, acredito que na época em que tu fugiste, mas o filho
da puta foi mais esperto. — Fecho meus olhos com força.
— Agora ela está livre... — Murmuro.
— Ela tentou matá-lo quando saiu da prisão. — Olho para
Mirom. — Mas uma vez o filho da puta a trancafiou,tem dois meses
que ela está livre.
— Onde... ela está agora? — Mirom enruga os lábios.
— Não faço ideia. — Coloco o saco de gelo em meu pescoço,
sentindo minha voz falhar. — Talvez morta por ele.
— Eu... liguei para ela, mamãe está viva.
— Ótimo! — Solto um suspiro.
Então... mamãe tentou matá-lo por minha causa? Eu senti
tanto ódio, a condenei por tantos anos, mas... mesmo assim não
apaga sua negligência.
— Como conseguiu essa informação? — Pergunto, traçando o
rosto da minha mãe.
Sinto tantas saudades...
— Quando se tem dinheiro, se consegue tudo.
— O que você está fazendo? — Pergunto quando começa a
enrolar o corpo com o carpete.
— Temos um corpo a ocultar. — Aperto a bolsa de gelo.
— Por que está fazendo isso? — Ele para e me olha.
— Eu sei do seu crime, o que me torna um cúmplice. Se tu
caíres, eu caio. — Explica. — Não fique aí parada, não temos
tempo.
— Por que você se importa?
— Entenda, eu preciso fazer essa escolha, preciso te
prejudicar de alguma forma.
— Por causa do Ruslan? — Mirom abaixa a cabeça, sorrindo
de lado.
— Ele é o de menos. — Seus olhos se prendem em mim, mais
intensos. — Agora pare de falar e me ajuda. — Diz.
Não há como recusar, eu posso ver a ameaça em seus olhos.
Por que o destino me jogou em mais essa armadilha?
O que eu faço agora?
Sei que não há escapatória, mas também não vou correr, vou
encarar de frente. Tenho que ficar firme e não ceder
.
Vou até Mirom e começo a ajudá-lo. Se eu não fizer isso, ele
me destruirá. A verdade está dentro de mim, sempre estará, não
importa o tempo que passar, ela sempre estará oculta e isso não
tem volta.
Esfrego meus braços encarando o nada, apenas uma mata
nos cercando. Olho para trás quando Mirom abre o porta-malas do
jipe e retira de dentro uma pá. Ele passa por mim sem dizer nada,
eu o sigo em silêncio.
Ele finca a pá na terra perto de uma grande árvore que seus
galhos balançam conforme o vento da madrugada toca suas folhas
com a força do vento. Mirom joga um par de luvas, pego antes que
caia do chão.
— Comece a cavar — ordena, se afastando e sentando nas
grandes raízes da árvore.
— O... quê? — Ele arqueia uma sobrancelha, seu rosto sendo
iluminado pelo farol do seu carro.
— A vítima não é minha.
— Mas foi você quem matou...
— Não é o que o vídeo mostra. — Mirom acende um cigarro,
tragando e soltando a fumaça pela madrugada.
Respiro fundo, calço as luvas e começo a cavar.
— Tu foste preparada para morrer? — Pergunta minutos
depois, dou de ombros, concentrada na cova que abro.
— Um de nós dois sairia sem vida — respondo.
— Tu lutaste bravamente, tenho que reconhecer o quanto és
corajosa. — Não respondo por um longo momento, passo o dorso
da mão enluvada na testa suada.
— Por que tem tanto ódio de Ruslan?
Mirom traga, prende a fumaça por alguns segundos e solta
lentamente.
— É maconha? — Pergunto, ele sorri em confirmação.
— Você quer? — Oferece, nego com a cabeça. — Ajuda a
relaxar. — Ele aponta para a cova que bate no meu tornozelo.
— Cave mais rápido. — Murmuro suas palavras antes mesmo
que as diga.
— Ele é um assassino — responde minha pergunta, minutos
depois.
— Bom... você também é... enfim, viva a hipocrisia. —
Sustento seu olhar por alguns segundos.
— Tu achas que sou o verdadeiro assassino? — Umedeço
meus lábios, fecho e abro minhas mãos, as articulações dos meus
dedos gritando de dor.
— Não... — Respondo. — Não mais!
— Por quê?
— Você só está com medo de que eu consiga descobrir a
verdade e com isso seus segredos. — Estico meus lábios. — Você
tem podridão escondida por trás da sua farda, dor por trás de seus
olhos frios e solidão por trás de seu sorriso sem emoção.
Mirom me encara por longos segundos.
— Volte a fazer essa merda. — Inspiro fundo e volto a cavar
.
Depois de mais ou menos duas horas cavando, Mirom assume
meu lugar. Meus olhos o acompanham até o carro, ele pega o corpo
de James enrolado no carpete e um litro que parece ser de gasolina.
O corpo de James é jogado, fazendo um baque ao colidir no
fundo da cova. Meu coração salta com o barulho, inspiro fundo
assistindo a gasolina o encharcar.
Mirom acende um fósforo e me entrega.
— Faça as honras.
Solto um suspiro e jogo o fogo. O fogo cresce quando se une
com a gasolina. Lágrimas silenciosas caem de meus olhos,
lembrando do que me foi tirado, de quando a esperança se extinguiu
da minha alma. Desejei tanto que a vida me levasse, mas agora...
me sinto abraçada pelo vento, beijada pela luz da manhã.
— Temos um segredo, Laura. — Mirom quebra o crepitar do
fogo, sinto o cheiro de pele e pano queimado. — Pare de investigar
os Rotam.
— A verdade sempre aparecerá, não adianta correr. — Digo,
sem desprender meus olhos do corpo que queima.
— Como se sente? — Murmura, balanço a cabeça, lembrando
do meu passado... de James...
Ele nunca mais me atormentará, a partir de hoje ele é apenas
cinzas.
— Livre — revelo, lançando um olhar cansado para Mirom. —
Depois de tantos anos... eu me sinto... aliviada... me sinto liberta.
— Viva sua vida, mas nunca se esqueça do dia de hoje. —
Assinto, voltando a encarar o corpo queimando em fogo.
— Obrigada... — sussurro com a voz trêmula. — Obrigada por
tê-lo matado.
— Cacete, Ruslan! — Vocifera Nikita quando entro na sala e
me sento, sustentando seu olhar. — Onde tu estavas todo esse
tempo?
— Por aí! — Ele esfrega seus olhos.
— Cada esquina de Kharkiv tem policiais, pensei por um
momento que talvez tu tinhassido capturado.
— Estou de boa — minto.
Nikita inspira fundo, coloco as mãos no bolso do moletom e
começo a balançar a perna. Ansiedade e nervosismo me corroem
aos poucos.
— Tu viste o quanto emagreceu? — Abaixo a cabeça sem
responder. — Cacete, garoto!
— Eu estou bem — minto outra vez sem revelar que, na
verdade, estava com Olesya esse tempo todo, despedindo-me da
minha irmã e tentando trazer Lívia para Kharkiv.
— Conseguiste? — Assinto.
— Olesya embarcou ontem à noite. Estará de volta depois de
amanhã.
— Certo! — Nikita esfrega o rosto. — Não some dessa forma
de novo, porque espalhei homens por todos os lados atrás de ti.
— Só precisava de um tempo.
— Tu achas que tem tempo para pensar? — Ele balança a
cabeça.
— E tu queriaso quê? — Pergunto, ficando com raiva. — Que
eu sorrisse diante de toda essa merda? Diante de tudo o que perdi?
— Deveriasestar ciente disso.
Levanto de uma vez, pego a cadeira, giro e com impulso jogo-
a contra a parede com um rugido furioso. Coloco as palmas das
mãos na testa andando de um lado para o outro, controlando a raiva
dentro de mim e a fisgada de dor de cabeça, que insiste em não ir
embora.
Estou uma bagunça...
— PORRA!
— Se acalma, garoto. — Me viro para ele.
— Acalmar? — Indago, inconformado. — Como tu achas que
estou? Deixei a mulher que amo sem me despedir, não posso
construir uma família com ela porque sou um merda de um
criminoso, condenado por crimes que não cometi. Me diga como
achas que deve estar aqui dentro? — Bato em meu peito. — Estou
exausto... estou cansado de toda essa merda!
Nikita fica me olhando sem dizer nada, mas vejo em seus
olhos, compreensão, de alguma forma ele entende o que estou
passando.
— Não podemos fugir do nosso destino.
— Que destino merda é esse? — Resmungo, parando em
frente à janela que dá acesso à pista de dança da boate.
— Beba um pouco de álcool, te fará bem. — Respiro fundo e
aceito o copo de vodca que me entrega. Jogo a bebida na boca, ela
desce rasgando a garganta. Nikita bate em meus ombros tentando
me tranquilizar.
— Olha garoto, tu precisas ser ainda mais forte. — Olho para
ele, que dá um gole na sua vodca. — O que tenho... não é bom!
Nikita se afasta, sobre a mesa lotada de papéis, ele pega uma
pasta e volta até mim, estendendo-a.
— Eu entendo perfeitamenteo que sentes em relação à Laura,
vai por mim, eu sei. — Conta com o olhar perdido.
Abro a pasta, folheio alguns documentos e seguro a foto de um
homem na faixa de uns cinquenta anos. Franzo a testa, ele não me
é estranho...
— O nome dela era Mariya, olhos castanhos capazes de me
fazer sonhar. Vivemos grandes momentos, mas... — Ele engole
mais uma dose de vodca. — Conheces a história de Romeo e
Julieta?
— Sim.
— Detesto essa comparação, mas nossa história foi parecida.
Uma moça pertencente a uma das famíliasmais importantes da
Ucrânia e eu um criminoso, filho de um mafioso.
Nikita faz uma pausa, seus olhos ficam vermelhos e
marejados.
— Eu a amava mais que minha própria vida, essa garota era
tudo para mim, Ruslan.
— Imagino que sim.
— Um namoro escondido não é uma escolha sábia, não vindo
de famílias rivais. Seu pai um juiz renomado, meu pai, um dos
mafiosos mais perigosos. — Ele balança a cabeça, dando um gole
no bico da garrafa da vodca. — Claro que daria errado, mas... não
como Romeo e Julieta que se mataram. Mariya foi morta por seu
próprio pai, Ruslan, ele não aceitou nosso romance, era obcecado
por ela de modo doentio, era um merda de um abusador.
Lágrimas caem por seu rosto, desvio o olhar e encaro os olhos
escuros do juiz, sentindo ódio por meu amigo.
— Ela estava fugindo, vindo até mim... — Uma fisgada de dor
aperta meu peito ao imaginar sua dor. — Então ele atirou... na
minha frente, ele a matou... matou a mulher que dava sentido à
minha vida de merda. Ele atirou na nuca de Mariya e eu não pude
fazernada. Ela morreu em meus braços, levou com ela tudo de bom
dentro de mim.
— Então Adam colocou a culpa em você pelo assassinato? —
Nikita limpa o rosto, assentindo.
— Meu pai estava de acordo... porra, ele a aceitou como nora,
viu o quanto Mariya era importante para mim. Eu morri Ruslan.
Nada mais fez sentindo... até te encontrar naquele banheiro com o
pulso cortado. Um garoto em meio aquele inferno. Seus olhos...
merda, seus olhos inocentes me lembraram os dela.
— Tu salvasteminha vida.
— Algumas coisas devem acontecer, o destino nunca erra. —
Diz, dando outro gole na sua bebida. — Se ela não tivesse sido
morta, tu estarias morto. Se tu não tivessesfugido, não teria salvo
Laura da escuridão. Tudo está intercalado... tudo acontece com um
propósito e tudo no final faz sentido.
— Por que ainda não o matou? — Nikita não responde a
princípio.
Fico analisando sua expressão adquirir uma expressão de
raiva, seus olhos se fixam no meu.
— Eu tentei, mas ele tem uma escolta de seguranças e
policiais, não posso arriscar ser preso de novo, não quando preciso
assumir todos os negócios do meu pai. — Revela. — Ele está
doente, não viverá por muito tempo.
— Então?
— Tu irás fazer isso. — Franzo a testa, sem desviar de seu
olhar. — Tu me deves uma vida, e prometi cuidar de Laura.
— Quer que eu o mate? — Ele confirma com um aceno.
— Mas isso tem ligação contigo também.
— Como assim? — Nikita me entrega seu copo, bebo a vodca
em um só gole, chiando por causa da intensidade do álcool.
— Foi ele quem te julgou. O mesmo quem bateu o martelo e te
condenou à pena perpétua.
Volto a encarar os olhos do juiz, começando a recordar da
frieza em que me olhava. De como desdenhou do meu pedido de
ajuda ou quando me ajoelhei aos prantos diante de si, pedindo por
socorro, implorando, pois estava condenando a pessoa errada.
Uma criança pedindo por misericórdia...
— Adam é um dos criminosos de colarinho branco mais sujo
da Ucrânia, sempre foi. — Diz. — Por isso tenho quase certeza de
que ele trabalhou com o verdadeiro assassino. Ele deve ter
descoberto alguma sujeira do juiz e o coagiu a te condenar e forjar
as provas.
— Cacete... — Xingo, quando penso que nada pode ficar pior,
essa bomba explode em minhas mãos.
— Quando tudo acabar, é ele quem tu irás procurar e em meu
nome, tu o matarás.
— E minha dívida será paga. — Nikita assente.
— Está tudo esquematizado, quando chegar a hora meus
homens entrarão em ação. Também preparei uma rota de fuga para
ti.
— Fuga?
— Sim! — Responde, rodando a garrafa. — Espanha,
México... qualquer lugar que tu escolheres, eu te enviarei.
— Não sei se é uma boa ideia, fugir não é a solução. — Nikita
e eu ficamos em silêncio por um momento, sua proposta batucando
minha mente.
— Não podemos perder mais tempo. — Fala com uma
respiração funda. — Eu o encontrei, depois de muita investigação
enquanto tu refrescavasa mente, eu consegui identificar quem é o
culpado.
— Quem é? — Pergunto com meu coração acelerado, meu
corpo inteiro irrompe em calafrios.
Nikita abre a boca para revelar, mas o toque do meu celular o
faz calar. Tiro-o do bolso e atendo a ligação de Kliment.
— Sim?
— Tu não irásgostar disso...— Seguro a ponte do meu nariz,
fechando os olhos em um suspiro longo. — Me enviaramum vídeo
de um número desconhecido e te encaminhei na mesma hora, quem
quer que tenha feito isso, sabe que tenho uma ligação contigo.
— Agradeço-te por isso.
— Assista, não é nada bom. — Dizendo isso, ele finaliza a
ligação, hesito um pouco antes de apertar o play do vídeo.
Choque me atinge ao assistir Laura e um homem lutando
ferozmente. Ela tentando a todo custo se afastar dele ao mesmo
tempo que anseia por espancá-lo, ele a machucando, esmagando
seu pescoço...
Meu coração parece parar ao ver toda essa cena, fico
congelado vendo-a apontar uma arma em sua direção e... cacete,
ela aperta o gatilho, impregnando a bala na testa do sujeito. O filho
da puta recua, cai de joelhos e tomba para trás, morto.
Sinto meu chão ceder sob meus pés, sem acreditar no que
estou vendo. Laura não cometeria esse ato do nada... a não ser que
ele seja a pessoa que ela mais deseja matar.
Passo minhas mãos por meu rosto, tentando buscar uma
resposta que justifique sua aparição ou... quem o trouxe tinha a
intenção de provocá-la da maneira mais covarde que existe.
Sem conseguir raciocinar direito, saio apressado ignorando os
gritos de Nikita. Não hesito, preciso chegar até Laura o mais rápido,
para me certificar de que ela está bem, de tentar entender toda essa
merda.
Entro no carro de Olesya e arranco em alta velocidade. Minha
mente grita me repreendendo por tê-la deixado. Não posso permitir
que destruam sua vida de novo. Piso mais fundo no acelerador.
Apesar de tudo, entendo suas motivações, ela sempre esteve
procurando por sua liberdade... para poder se livrar do demônio que
a atormentava dia após dia.
Eu a entendo... entendo porque eu faria o mesmo.
Freio bruscamente em frente ao seu prédio e entro correndo,
bato à sua porta, rodo a maçaneta empurrando a porta, mas está
trancada.
— Laura, sou eu, Ruslan! — Chamo, mas não há resposta.
Escuto alguma porta ser aberta, coloco meu capuz e saio
discretamente, voltando para o carro. Tento ligar para seu celular,
mas está desligado...
— Cacete! — Esmurro o volante e encosto a testa nele,
controlando a respiração. Não importa o tempo, irei esperar até que
ela apareça.
Não importa onde esteja agora, ela terá que voltar para casa,
Laura não deixaria Rony tanto tempo sozinho.
Espero mais ou menos duas horas dentro do carro e quando
começo a ficar impaciente, um jipe vira a esquina, me chamando
atenção. Sangue borbulha em minhas veias ao vê-los descerem do
carro. Não espero por mais nenhum segundo, saio e vou até Mirom,
esse desgraçado armou para ela, tenho certeza!
Empurro suas costas, giro-o e soco seu rosto. Mirom revida,
partindo para cima, acertando meu estômago. Encolho-me com falta
de ar, um erro terrível. Um instante depois caio no chão com meu
rosto queimando de dor depois do seu soco.
— Ruslan!
A voz de Laura ao fundo me deixa mais furioso com Mirom. Ele
mexeu com ela, a perturbou da maneira mais covarde que um ser
humano é capaz. Esse desgraçado não sabe nada do que essa
garota passou na mão daquele desgraçado, para cometer uma
barbaridade dessa.
Levanto-me, encaro seus olhos frios e o ataco. Entre socos,
chutes e xingamentos, a briga se estende. Seu nariz sangra e um
corte se abre em sua sobrancelha esquerda enquanto bato sua
testa contra o vidro da janela do jipe, que se rompe, cortando o rosto
de Mirom ainda mais.
Ele rosna de raiva e dor, me afastandocom uma cotovelada na
minha garganta. Cambaleio para trás, Mirom segura minha cabeça e
a leva em direção ao seu joelho, acertando-me com força.
Dor me faz estremecer, sangue escorre pelos cortes do meu
rosto. Contorno meus braços em sua cintura e o derrubo no chão,
acertando novamente seu rosto, várias e várias vezes.
Minhas mãos queimam de dor, Mirom tosse e geme, mas não
desiste. Ele me joga longe, se levantando e chutando-me.
— Seu merda! — Vocifera, furioso, consigo segurar seu
tornozelo, puxo para frente e faço com que caia.
Gemendo e tentando controlar a dor, me viro, cuspo o sangue
da boca e me levanto. Zonzo e cansado, ele faz o mesmo. Viro-me
para ele arrancando a arma escondida nas costas, destravo-a e
aponto na sua cabeça. Encaro sua arma também apontada em
minha direção antes de encontrar com seus olhos.
— Tu não deveriaster feito aquilo. — Rosno.
— Feito o quê? — O sarcasmo de sua voz me irrita. — Cada
um faz suas escolhas, ela fez a dela.
— E tu acabas de assinar sua sentença de morte...
— Assim como tu! — Rebate. — Como ficariasua pequena flor
se você morrer na sua frente? — Meus olhos se encontram com os
de Laura, assustados com nossa briga.
— Tu és doente!
— Precisava fazer isso. — Responde, duro como uma rocha.
— Eu também preciso apertar esse gatilho...
— Aperte, me mate. Não fará nenhuma diferença, não é? —
Minhas mãos estremecem.
— Parem... — A voz fraca de Laura me impede de apertar o
gatilho.
— Parem... — Ele debocha, respiro fundo e abaixo a arma,
não irei matá-lo na frente de Laura, não depois de tudo o que ela
passou.
Mirom sorri vitorioso e abaixa a arma. Embora eu não tenha
apertado o gatilho, não quer dizer que o deixarei impune. Em
passos largos o alcanço, acertando seu rosto outra vez.
Mesmo exausto e machucado, continuo, quero vê-lo apagar
olhando em meus olhos, quero que fique por dias lembrando do
meu punho.
Ele me olha, arfando, tão exausto quanto eu. Mirom cospe no
chão e vem em minha direção, mas Laura e outra mulher entra no
meio, nos impedindo.
— Parem, isso está ridículo! — A moça de frente a Mirom diz.
— Se querem se matar, aqui não é o melhor lugar. Aqui tem famílias
e crianças.
As mãos de Laura repousam em meu peito que sobe e desce
com minha respiração acelerada. Meus olhos recaem nela, a súplica
em seu rosto me desestrutura, assim como os hematomas em seu
rosto e pescoço... fico sem ar.
— Chega Ruslan, vamos conversar direito, okay? — Fala com
a voz rouca, fecho meus olhos e assinto, contornando minhas mãos
em seu pulso.
— Tu és um merda... — Mirom rosna, volto a encará-lo. — Vou
acabar contigo, Ruslan... assim como fizestecom ela.
— Como dizes? — Franzo a testa, confuso.
Mirom ri, incrédulo. Dá um passo à frente, mas a moça o
impede, dando-lhe um empurrão.
— Eu falei para parar, cacete! — Ela diz, o empurrando de
novo.
Mirom fica encarando-a. Tenho que admitir que ela é corajosa
para enfrentá-lo dessa forma.
— Cuidado! — Ele avisa com a voz gélida.
— Com o quê? Com você?
— Não volte a me tocar. — Mirom se afasta dela sem
desprender do seu olhar. — Me ouviu?
— Tu és um babaca de merda.
— Gana! — Laura intervém, indo até ela e a puxando para
trás. — Chega!
— Vai embora seu idiota — a moça continua.
Mirom sorri como um predador que acaba de selecionar sua
próxima vítima. Noto um encolher de ombros dela diante ao olhar
assassino dele.
— Vamos, Gana. Vamos entrar! — Laura me olha e aponta
com o queixo para entrarmos. Respiro fundo e por ela eu a
obedeço, mas não antes de encará-lo com a promessa de que essa
conversa ainda não terminou.
— Babaca! — Gana rosna antes de ser puxada para dentro do
prédio.
Sento-me no sofá, colocando a cabeça entre as mãos
enquanto balanço a perna. Estou furioso demais para conseguir me
acalmar ou dizer alguma coisa.
Gana anda de um lado para o outro, xingando. Ambos
estamos alterados pelo que aconteceu. Laura permanece encostada
na parede, em silêncio.
Ergo a cabeça, encontrando seu olhar carregado de dor.
Inspiro fundo e me levanto.
— Tu poderias ter morrido. — Digo, passando por ela em
direção à cozinha e enchendo um copo de água.
— Mas não morri!
— Laura? — Olho para Gana por sobre o ombro. — Tu
apontaste uma arma para mim! — Me viro.
— Desculpa...
— Tu terias apertado o gatilho, não teria? — Angustia nos
olhos de sua amiga faz Laura se encolher.
— Não, mas... precisava te assustar para me deixar passar. —
Gana bufa, entrelaçando seus cabelos.
— Fiquei com tanto medo...
— Gana, a arma era de mentira — franzo a testa ao escutar
essa declaração. — Por que tinha uma arma falsa dentro da
gaveta?
— Fa-aal-sa? — Gana começa a empalidecer.
— Tu foste atrás daquele homem com uma arma falsa
?! —
Pergunto, deixando o copo de lado e me aproximando.
— Eu não sabia...
— Cacete Laura, e se tivesse morrido? Céus, uma arma
falsa
!? — A intensidade que minha voz sai a assusta.
— Não pensei, está bem? — Diz, se desencostando da
parede. — Eu queria matá-lo e não importava o que acontecesse,
um de nós não sairia com vida.
— E tu conseguiste! — Laura me olha espantada, sustendo
seu olhar.
— Preciso ir... — Gana declara. — Preciso respirar!
— Gana me perdoa! — Laura vai atrás de sua amiga.
— Sabe Laura, — Gana solta uma respiração pesada — se eu
tivesse coragem, se não fosse covarde, eu teria feito o mesmo. —
Declarando isso, ela sai, fechando a porta atrás de si.
— Ele te enviou o vídeo? — Esfrego meu rosto, lembrando de
toda a cena.
— Sim, tu mataste... James? — Laura abaixa a cabeça.
— Não! — Inclino a cabeça para o lado, sem desgrudar meus
olhos dela. — A arma era falsa, Ruslan, a bala... impregnada na
testa do meu padrasto foi de Mirom. — Ela levanta a cabeça e me
encara com seus olhos azuis marejados. — Mirom que o matou.
— Merda! — Vocifero,levando as mãos à cabeça e me virando
de costas para ela. — Agora ele está te ameaçando?
— Sim...
— Cacete! — Grito, dando um soco na parede, mas me
arrependo de imediato ao escutar um arfar, me viro para Laura.
Ela está trêmula, suja e machucada, me olhando com medo.
Ranjo meus dentes e respiro fundo. Jogando para o fundo toda
minha raiva.
É com Mirom que devo ficar com raiva e não com ela.
— Perdoe-me — ela assente.
— Tudo bem! — Nego com a cabeça.
— Não está nada bem, pequena! — Laura aperta os lábios,
estendo minha mão para que venha. — Venha, tu precisas lavar
toda essa sujeira.
Laura enlaça sua mão na minha, tão fria, que aperta meu
coração. Lentamente percorro as mãos por seu rosto, descendo por
seu pescoço e braços, sentindo seu calor, sua pele e agradecendo
por ela estar aqui viva, mesmo ferida.
Seguro a barra do seu moletom e passo por sua cabeça. Seus
pelos eriçam conformecontorno seus seios, cintura e barriga. Trinco
os dentes ao encontrar mais hematomas.
Fito seus olhos antes de me ajoelhar à sua frente. Tiro seus
tênis e, lentamente, desço sua calça, engolindo em seco. Em
instantes Laura está nua diante de mim.
Afasto seus cabelos do seu ombro, seus olhos se mantêm
presos em mim.
— O que eu faço? — Murmuro com a voz embargada.
— Você veio até mim — diz, rouca.
— Como poderia deixar você? — Lágrimas caem de seus
olhos cristalinos. — Nunca senti tanto medo...
— Medo de quê? — Seguro sua cintura e trago-a para mim,
encostando minha testa na sua.
— De te perder. — Confesso, pegando-a no colo. — Não tenho
muito tempo. — Seus braços contornam meu pescoço.
— Você precisa ir? — Assinto, roçando meus lábios nos seus.
— Não penses nisso agora. — Levo-a para o banheiro,
colocando-a no chão.
— Você deveria tirar suas roupas e vir se banhar comigo. —
Sorrio com malícia, Laura retribui.
— Tens certeza? — Suas mãos descem por meu peito e
sobem até meu pescoço.
Tiro minhas roupas, ligo o chuveiro e limpo seu rosto com
delicadeza, despertando a luxúria dentro de mim.
— Laura? — Paro, encarando seu olhar vazio.
— Sim?
— Estou aqui... — Sussurro, seus olhos estremecem. — Pode
chorar, eu te seguro. Não deixarei que caia, não enquanto estiver
em meus braços.
— Ruslan, eu... eu me sinto feliz por ele ter morrido. —
Confessa. — É errado estar sentindo isso?
— Não, não é errado!
— Sou cúmplice de um assassinato, ocultei um corpo e ajudei
a queimá-lo... — Laura balança a cabeça. — Por todos esses anos
eu chorei, gritei e sangrei com as lembranças do que ele me fez.
Sua voz me perturbando, seu toque impregnado em minha pele...
Eu deveria estar com remorso, mas em vez disso, sinto-me... salva.
James não mais me atormentará diariamente, não me sinto
derrotada. É como se sua morte me devolvesse a vida, estou
respirando novamente. Ruslan, estou livre!
— Não queres chorar? — Laura nega com a cabeça.
— Eu quero sorrir... — Declara. — Quero você... — Seguro
seu queixo e sorrio, ela retribui com um tão cheio de vida, que as
batidas do meu coração falham. Preciso dela... Laura é tudo o que
eu necessito.
— Você floresceu... — Sussurro, trazendo-a para mim. —
Minha pequena flor floresceu.
Roço meus lábios no seu, sentindo sua respiração ficar
acelerada. Um nódulo cresce em minha garganta enquanto olho no
fundode seus olhos, conseguindo ver sua alma sendo reconstruída.
Laura destrancou as portas. Se libertou das correntes. Sua
mudança me deixa renovado, mais forte para enfrentar qualquer
desafio.
Ela lutou grandes batalhas, e venceu. Agora chegou a hora
dela viver sem medo, de encontrar sua felicidade com intensidade.
Queria poder estar ao seu lado, mas não posso, entretanto, meu
coração permanecerá com ela.
Inclino e capturo seus lábios, envolvendo meus braços em
volta da sua cintura e a puxo para perto de mim, seu sorriso
puxando seus lábios entre nosso beijo exigente.
Empurro-a contra a parede do banheiro. Percorro minha mão
por seu corpo molhado e levanto sua perna esquerda, aperto sua
coxa e solto um gemido ao me encaixar entre suas pernas, sentindo
sua intimidade, me segurando para não me afundar em seu desejo.
Com a outra mão, seguro firme sua nuca, exigindo mais de
seus lábios, querendo cada vez mais.
Não vou esquecer de como é tê-la em meus braços. Quero
permanecer apaixonado mesmo com a tristeza de tê-la deixado.
Quero ir para cama, dormir ao seu lado todas as noites, ao
amanhecer, quero assisti-la despertar e sorrir. Não posso impedir
que meu coração deseje ser feliz ao seu lado.
O que fiz de errado para que arrancassem tudo de mim?
Minha felicidade, meus sonhos, minha liberdade...
Afasto meus lábios dos dela sem conseguir mais aguentar.
Coloco as mãos ao seu redor e encosto minha testa na sua,
permitindo-me desabar e sem dizer nada, Laura me vê chorar.
Sinto-me cair, tudo desaparecendo, se definhando.Minha hora
está chegando ao fim. Não existe a possibilidade de as coisas
mudarem, o trajeto da minha vida já foitrilhado. Mesmo que eu lute,
meu destino é certo. Ao sair daqui, sairei morto como antes, a
neblina me jogará para o caminho que me espera, me deixando sem
nada, me devolvendo para o abismo.
Porém, o que me resta é o agora. Levanto a cabeça, o brilho
de seus olhos diz que não importa o que aconteça, sempre
permaneceremos um ao outro. Laura iluminará minha escuridão
quando não houver esperança, como um sonho... como uma rosa
em meio à devastação de uma vida injustiçada pelo destino.
Enquanto as noites se tornarem anos, meu lugar permanecerá
em seu coração, onde a névoa é eliminada com seu sorriso, e em
seus braços eu sonharei em estar até o momento em que darei o
meu último suspiro.
— Eu te amo — Laura sussurra, deslizo meus dedos nos seus
cabelos.
— Obrigado — inspiro fundo, ocultando toda a dor que sinto
nesse momento. — Obrigado por ter me tornado um homem
completo.
Ela sorri, não perco mais tempo e colo seus lábios nos meus.
Sua língua se encontra com a minha. Seguro sua cintura e a
levanto. Laura contorna suas pernas em mim, encosto-a na parede,
beijando-a com paixão, entregando meu coração em suas mãos e
sentindo o seu coração bater mais rápido a cada momento em que a
toco.
Pressiono meu corpo no seu e encontro a porta da sua alma,
nos levando para um mundo onde poderemos ficar juntos, sem que
a esperança desapareça.
Laura geme ao ser amada da forma que merece, ela tem tudo
de mim mesmo que não tenhamos um futuro. Minha alma chora,
meu coração se quebra e a rosa dentro de mim murcha a cada
instante em que digo adeus.
Fico me encarando pelo espelho, olhos vazios e alma
dilacerada, mas tudo ocultado por uma máscara inabalável.
Ninguém faz ideia do que é viver o pesadelo de seus sonhos.
Estico meus lábios em um sorriso, preciso sorrir mesmo que
eu queira chorar. Nunca desejei tanto que Laura tivesse apertado
aquele gatilho... eu pensei... cogitei que talvez se lutasse contra ela,
a arma dispararia e me tiraria daqui.
Mas não pude... não podia fazer aquilo com a única pessoa
que me olha sem me condenar, por ser quem eu sou. Laura se
tornou minha rocha. Quando pensei que ninguém sofria tanto
quanto eu, ela me mostrou que há sofrimento maior.
Desvio meu olhar e encaro Tamara, sorrio para ela.
— O que tu estás fazendo aqui e não tentando arrumar um
cliente? — Pergunta, descendo o zíper da sua bota.
— Iryna quer que eu vá buscar duas garotas no aeroporto. —
Tamara fecha os olhos.
— São tão idiotas quanto nós fomos. — Assinto, calçando
minhas botas.
— Estou ficando exausta — confesso, aTmara suspira.
— Temos que achar um jeito...
— A morte... é o único jeito. — Desvio do seu olhar, dou de
ombros e sorrio para afastar a tristeza.
— Gana? — Olho para trás ao escutar a voz doce de Zoya. —
Mandaram entregar-te esta caixa.
Levanto-me da cadeira e apanho a caixa preta. Zoya começa a
se arrumar.
— Eles me mandaram para rua. — Confessa, balançando a
cabeça. — Que merda!
— Obedeça calada, Zoya, assim eles confiarão em ti e te
darão os melhores clientes.
— E ser capacho como você? — Ela me encara com seus
olhos escuros, Zoya não tem mais que vinte e dois anos, tão linda
que despertou o interesse deles.
— Sou livre... — Me calo quando Tamara solta uma risada.
— Livre
? — Debocha. — Que liberdade, não?
— É o único jeito de sobreviver a tudo isso. — Elas se calam.
— Não vi mais a Fernanda... — Zoya diz, se sentando e me
olhando pelo espelho.
Fernanda era uma de nós, brasileira de carteirinha, mas que...
desapareceu e eu sei porquê.
— Talvez eles a tenham enviado para outro lugar.
— Gana, não se iluda. — Aliso a caixa, sem prolongar essa
conversa.
— Porra! Cacete! Caralho! — Olena entra no camarim soltando
fogo pelo nariz.
— O que aconteceu? — Pergunto, ela não me olha, mal
conversa comigo, porque me culpa por tê-la trazido.
— Não te suporto, garota burra! — Diz para mim, tirando suas
roupas e colocando uma mais ousada.
Um nó se aloja em minha garganta. Ela se aproxima das
minhas coisas e nota meus cadernos e livros. Abro a boca para
impedi-la, mas Zoya me barra com um aceno sutil de cabeça.
— Você acha que vai conseguir aprender alguma coisa? —
Olena pergunta, pegando meu caderno.
— Estou conseguindo...
— E se formando vai sair daqui? — Engulo em seco, ela ri.
— Você é burra Gana, gente burra nunca sai daqui.
— Não seja cruel, Olena! — Zoya a intervém. — Gana não tem
culpa de não conseguir aprender as coisas.
Abaixo a cabeça, esticando meus lábios em um sorriso que
impede que as lágrimas caiam de meus olhos. Tamara apenas
assiste toda a cena, ela nunca se intromete.
— Ela é a queridinha... não podemos tocá-la. — Olena caçoa.
Ignorando suas ofensas, abro a caixa. Dentro dela há duas
rosas vermelhas murchas, minhas mãos estremecem.
— Pelo jeito alguém deseja má sorte a você. — Olena para
diante de mim, levanto a cabeça e encaro seus olhos castanhos. —
Tomara que essas rosas sejam o sinal de que você desaparecerá de
nossas vidas.
— Não tive culpa... — Murmuro, ela estala a língua e pega
uma rosa.
— O que é seu está guardado, sua puta burra! — Diz, enfiando
a rosa dentro da minha boca antes de sair do camarim.
Cuspo a rosa, balançando a cabeça sem conseguir reagir
devido a culpa e o remorso que me corroem. Olho para Tamara e
Zoya, elas apenas dão de ombros.
Respiro fundo e saio pelos fundos da boate, sentindo a brisa
da noite beijar minha pele. Não ligo que elas não gostem de mim,
todas tem razão em me condenar dessa maneira, mas pelo menos,
tenho uma amiga que me faz sentir uma pessoa normal.
O salto da minha bota entoa pelo beco. A música da boate soa
abafada, estremeço de frio quando o vento passa por mim. Queria
estar dentro de roupas quentes, sendo abraçada pelo calor.
Olho para o lado e vejo Luba me assistindo com o queixo
erguido e braços cruzados. Ofereçoum aceno leve antes de desviar
e seguir até meu carro em meio ao estacionamento vazio e
silencioso.
Escuto passos e olho para trás, Luba não está mais onde
estava. Meus olhos percorrem o estacionamento, não há mais
ninguém. Volto a andar, agora em alerta e com o coração
palpitando.
Tiro a chave do xoxo do bolso, encarando-a. Dentro desse
chaveiro há um rastreador, igual ao que está impregnado na minha
nuca.
Paro de andar assim que escuto os passos de novo. Engulo
em seco, minha respiração acelerando assim como os batimentos
do meu coração.
Olho por sobre o ombro, piscando até encontrar o responsável
pelos ruídos. Alguns metros distantes de mim, encaro uma silhueta
escura, coberta por uma capa que balança conforme o vento toca o
tecido.
Viro para frente e volto a caminhar apressada em busca do
meu carro. Meu pé se afunda em uma poça de água, molhando
minha perna. Balanço-a para tirar o excesso e volto a caminhar.
O estacionamento parece se fechar ao meu redor, despertando
uma sensação estranha. Gotas de chuva começam a cair como
melodias ao colidirem na lataria dos carros. Prendo a respiração e
seguro com mais força a chave e a caixa em minhas mãos.
Diminuo os passos e disfarçadamenteolho para trás por sobre
o ombro. Meu coração salta ao ver um pouco distante que a sombra
encapuzada continua a me seguir.
Volto a olhar para frente,meu instinto de sobrevivência soando
a cada segundo. Apresso os passos a ponto de estar quase
correndo pelo estacionamento, que parece não ter fim. Desespero
aumenta ao não conseguir chegar até meu carro.
Onde ele está?
Olho para trás e percebo que a figura sombria está cada vez
mais perto. Cada movimento seu é calmo, calculado. Meu medo faz
com que eu comece a correr, meus pés se afundando nas poças,
respiração ofegante e coração palpitando em desespero.
Deixo cair a caixa enquanto corro mais rápido. Olho para
frente, e finalmente vejo meu carro.
Preciso entrar... preciso fugir!
Volto a olhar para o perseguidor, ele está parado como uma
estátua, implacável.
Preciso fugir!
Corro até meu carro, a chuva se intensifica, enquanto tento
destrancar a porta com as mãos trêmulas e escorregadias.
Passo a mão em meu rosto para limpar minha visão. Estou
encharcada, meu instinto grita para que eu fuja,preciso me salvar. A
chave cai no chão, dentro de uma poça.
— Cacete! — Sussurro em desespero.
Olho para o lado e prendo a respiração quando uma faca
aparece em sua mão, e o relâmpago reluz em sua lâmina. Me sinto
um rato acuado pelo gato. Sou sua diversão nesta noite e ele não
vai parar até me pegar.
Giro meus calcanhares e corro em direção a uma ruela. Meu
peito aperta, já sem fôlego. Paro de uma vez antes de colidir com
uma parede.
Entrei em um caminho sem saída de puro desespero.
Encosto a mão no muro, sentindo sua textura gelada e
molhada em busca de salvação. Ouço passos e congelo. Calafrio
percorre minha espinha, me viro lentamente e encaro a silhueta.
Engulo em seco fitando a faca em sua mão, imaginando-a
perfurando minha pele. Encosto as costas no muro sem conseguir
respirar direito.
Não tenho para onde fugir. Estou presa!
Me encolho quando ele solta uma risada sombria, ecoando
através da chuva. Engulo em seco, meus olhos arregalados estão
fixos em quem quer que esteja prestes a me atacar.
— Po-or... fa-a-vor... — gaguejo aterrorizada, minha súplica
não surte efeito.
— Toda rosa estragada deve ser eliminada... — Diz,
levantando a cabeça, seus olhos se fixando nos meus e prendo a
respiração quando seu rosto é iluminado pelo raio e logo em seguia
o trovão estremece todo o chão.
Solto um grito apavorado quando avança em minha direção,
me esfaqueia enquanto tento proteger meu rosto com as mãos.
Ele não para, sinto a lâmina perfurar meus braços, me tirando
gemidos e gritos de dor. Choro pedindo socorro, não consigo me
afastar ou lutar por estar guerreando contra a faca que me perfura.
Choramingo, sem mais forças, tamanha dor. Ele se afasta, e
me encolho, desesperada. Olho para meus braços, estão cortados e
jorram sangue. Levanto a cabeça, um trovão irrompe e abafa meu
grito de ajuda em meio a noite chuvosa.
— Po-or... fa-avor... não me machuque... — Peço e antes de
tentar gritar de novo, ele avança. Perco o ar ao sentir a lâmina
afundar na minha barriga.
A dor é tão insuportável que meu corpo paralisa. Seguro seus
pulsos, estremecendo e encarando seus olhos verdes sem
acreditar... arfo em busca de ar... estou morrendo, meu coração
começa a bater mais lento, entoando em meus ouvidos, dizendo
que daqui alguns segundos não existirei mais.
Talvez seja bom ser levada para um lugar onde não há
sofrimento... um lugar onde posso ser eu mesma, sem ter medo de
criar laços.
Solto um gemido quando retira a faca do meu estômago.
Escorrego até o chão perdendo os sentidos. Olho para baixo, o
sangue não para de escorrer do corte.
Começo a engasgar com meu próprio sangue, desejando que
essa dor acabe... Tombo a cabeça para frente com a visão
embaçada, ouço passos e depois silêncio, apenas o barulho da
chuva permanece.
Estou sozinha em um beco, morrendo na calada da noite
enquanto a maioria do mundo vive uma vida agitada.
Acreditei que a morte seria a única solução para me tirar dessa
vida, eu estava certa. Tombo a cabeça para frente, não consigo
mais respirar... mãos envolvem meu rosto antes de tudo
desaparecer como pó.
Inclinada sobre a mesa de reunião cheia de papéis, assisto
toda a discussão de como será o andamento do documentário de
Ruslan que entreguei ontem.
Os diretores, roteiristas, editores e Andry acertam os detalhes,
montam os roteiros, excluindo os furosque encontram, dando vida à
sua história. Será meses de trabalho árduo até ficar perfeito, hoje é
apenas o começo.
Recosto na cadeira, encontrando com o olhar de Aksinya e
Justik, eles surtaram quando me viram machucada, menti dizendo
que tinha sido assaltada perto de casa, a mesma mentira foi
contada a Andry.
Yaroslav não caiu, mas também não exigiu a verdade,
respeitando meu silêncio. Volto minha atenção para os diretores que
conversam, Lybochka tenta dar sua opinião, mas para Andry a sua
própria é a única que importa, principalmente essa reunião que já
estava marcada há dias, e eu nem sabia.
Respiro fundo, notando-a fuzilar meu chefe com um olhar
mortal.
— Acho que ela se arrependerá de trabalhar com Andry. —
Sussurra Yaroslav.
— Já se arrependeu! — Ele ri.
Viro a folha indo para segunda parte da reunião, mas meu
celular me interrompe ao vibrar em meu bolso. Olho para Yaroslav
avisando que sairei para atender.
Aceito a ligação assim que saio do estúdio.
— Sim?
— Senhora Laura? — A mulher pergunta.
— É ela!
— Bom dia, sou a enfermeiraHanna do KharkivCity Clinic al
Hospital№ 8, estou entrando em contato para inform ar que a
senhorita Gana Navolska deu entrada às 03:00 da manhã em
estado grave. Seu contato é o de emergência, você é da família?
Fico congelada sem conseguir assimilar o que ela acabou de
dizer. Gana no hospital? Em estado grave?
Começo a tremer, minha respiração acelera, ao mesmo tempo,
em que a luz branca embaça minha visão.
— Senhorita Laura?
—Si-im... — Consigo dizer, tentando me acalmar. — Como...
como ela está? O que aconteceu?
— Não estou autorizada a passar informaçõespor telefon
e,
preciso que compareça à unidade o mais rápido que puder
.
— Tudo bem, estou indo. — Finalizo a ligação, olhando para
os lados, desorientada e sem saber o que fazer.
— Laura? — Yaroslav para à minha frente. — Tu estás pálida
...
O que aconteceste? — Olho para ele através das lágrimas. — Meu
Deus Laura, o que ouve? — Ele se aproxima automaticamente com
uma expressão preocupada, dou um passo para trás, assustada
com seu avanço. Ele congela por alguns segundos antes de
balançar a cabeça como se dissesse que não irá me tocar.
— É a Gana... ela... ela está no hospital. — Conto, vendo seus
olhos adquirirem um brilho assustado. — A enfermeiradisse que... é
grave.
— Quando isso aconteceu? — Nego com a cabeça sem saber
a resposta. — Vamos, eu te levo.
Yaroslav recua alguns passos para que eu possa andar ao seu
lado. Agradeço, porque sou incapaz de pegar um ônibus nesse
estado.
Enterro meu rosto entre as mãos ao me acomodar no carro. Às
vezes não tenha sido algo tão grave assim... talvez tenha sido
apenas um acidente. Funcionários de hospitais gostam de nos
assustar.
O caminho até o hospital parece levar uma eternidade.
Yaroslav estaciona o carro em frente ao prédio antigo dizendo que
irá encontrar uma vaga enquanto vou na frente.
Entro apressada sem prestar atenção em nada. Encontro a
recepção e paro em frente ao balcão, fitando o rosto das duas
recepcionistas.
— Gana... estou... — Faço uma pausa por estar ofegante
demais para falar. — Sou amiga da Gana Navolska, me ligaram,
falaram que ela deu entrada aqui.
— Só um instante, senhorita. — Abaixo a cabeça e esfrego
meu rosto. Olho em volta, analisando o lugar, hospital é tudo igual, o
mesmo cheiro, a mesma sensação de morte, doença e dor.
Yaroslav vem correndo em minha direção, lanço um olhar de
medo que o faz comprimir os lábios ao parar ao meu lado.
— Senhorita...
— Laura... Lauriana Silva. — A moça assente, digita por mais
alguns segundos e prende seus olhos azuis nos meus.
— Nesse momento ela está na UTI.
— O qu... — me calo, sem conseguir falar mais nada.
— Ela deu entrada no hospital com ferimentos causados por
arma branca, passou por cirurgia e no momento está em
observação.
— Ela ficará bem? — Yaroslav pergunta.
— Sinto muito, mas não tenho todas as informações.Por favor,
esperem na sala de espera da UTI. Avisarei ao médico que os
responsáveis por ela estão aqui.
— Obrigado. — Yaroslav agradece, me guiando pelo caminho.
Não posso perdê-la, sempre tive medo de que algo desse tipo
acontecesse. Minha mãe já apareceu em casa espancada por causa
de um dos seus clientes, e a outra vez, foi por se envolver em uma
briga com uma das prostitutas que trabalhava na mesma boate que
ela.
Esse mundo em que vivem é perigoso, muitos homens pegam
prostitutas apenas para cometer barbaridades, mas no final elas só
querem trabalhar e ganhar seu dinheiro.
Yaroslav me orienta a sentar evitando me tocar, encosto as
mãos entrelaçadas na boca enquanto espero impaciente pelo
médico.
— Parentes da senhorita Gana? — Me levanto ao encarar o
médico que aparece meia hora depois de chegarmos.
— Sim.
— Sou Avgust, médico de Gana.
— Como ela está, doutor? — Pergunta Yaroslav, ele nos olha
por alguns segundos.
— Ela tem cortes por toda parte do corpo e um que perfurou o
estômago. Tivemos que fazer uma cirurgia de urgência, no momento
ela está estável.
— Então está fora de perigo?
— As primeiras 24 horas são cruciais, sinto muito, mas Gana
precisará ser forte para se recuperar. Estamos fazendo o possível
para tratá-la da melhor forma.
— O que aconteceu? — Pergunto com a voz fraca.
— Ela foi esfaqueada. — Declara. — Gana tem algum
inimigo... alguém que queira seu mal?
— Não sei... — Balbucio.
— A polícia foi acionada, em alguns minutos eles estarão aqui
e poderão abrir uma investigação.
— Posso vê-la? — Lanço um olhar de súplica, ele respira
fundo.
— Apenas por trás dos vidros. — Assinto.
— Venham!
Sigo Avgust pelos corredores do hospital, passando por
pacientes machucados, doentes e enfermeiros correndo
apressados. Inspiro o odor próprio do lugar, pressentindo algo ruim.
Olho para Yaroslav em busca de apoio, ele balança a cabeça
me tranquilizando, mas um barulho ensurdecedor me assusta, não
sei dizer o que significa. Vejo movimentação de médicos e
enfermeiros como se estivessem desesperados.
— Doutor? — Uma moça para na nossa frente, ela passa as
mãos no tecido do seu uniforme. — É a paciente Gana, ela está
com complicações!
Arregalo os olhos, meu coração acelera. Avgust não espera e
corre até ela, eu os sigo, esquivando das enfermeiras que tentam
me impedir.
Paro na porta do quarto, meus olhos presos em Gana que
estremece na cama com os olhos fechados. Seus braços e suas
mãos estão enfaixados e seu rosto pálido está cheio de cortes.
— O que aconteceu? — O médico pergunta.
— Não sei doutor, ela estava bem minutos atrás. — Levo as
mãos à boca quando o corpo dela fica imóvel, então o aparelho de
batimentos fazmeu coração parar. — Sem pulso! — Avgust declara.
Todos começam a agir, meus olhos não param de acompanhar
seus movimentos. O médico abre a blusa de Gana e começa a
reanimá-la.
Estou paralisada, sem saber como reagir, não posso perder
minha amiga... não posso... perdê-la também.
Cambaleio para trás, Yaroslav me segura impedindo que eu
caia. Eles continuam tentando trazê-la de volta. A cena é demais
para eu suportar.
— Temos pulso! — Uma enfermeira grita, meu corpo relaxa.
— Ela está de volta. — Avgust declara, soltando um suspiro
longo minutos depois. — Bom trabalho, pessoal! — Ele se vira e me
olha. — Te darei dois minutos enquanto a enfermeira a monitora.
Gana voltou, mas seu quadro ainda é crítico.
Ele passa por mim, os demais enfermeiros o seguem, ficando
apenas uma que monitora o respirador e os aparelhos que estão
ajudando a manter Gana viva.
Olho para Yaroslav antes de me aproximar da sua cama.
Analiso seu corpo ligado à vários fios, seu rosto machucado e seu
peito sobe e desce lentamente.
— Você ficaria furiosa se visse o estado do seu rosto. —
Murmuro. — Você ficará boa, okay? — Passo a mão em seus
cabelos e olho para sua mão fechada em punho. Assim como o
resto do seu corpo, ela está enfaixada me impedindo de ver o
estrago que fizeram com sua pele.
Viro sua mão para cima e delicadamente a abro. Meu sangue
gela ao fitar o artefato na sua palma, sentindo o chão ceder sob
meus pés.
Olho para os lados e para a enfermeira antes de encarar a
mão de Gana, pego o artefato e guardo no bolso.
— Yaroslav? — Chamo, me virando e encarando-o.
— O que foi? — Pergunta alarmado, passo a língua em meus
lábios secos, sentindo-o cortado.
— Alguém esteve aqui e tentou matá-la. — Murmuro, indo para
o canto do quarto.
— Como dizes? — Esfrego meu rosto, meneando a cabeça.
— Encontrei algo... — Engulo em seco, observando a
enfermeira cuidar de Gana. — Yaroslav, acho que quem fez isso foi
o maníaco da rosa. — Ele arregala os olhos.
— Mas, por que ela? — Entrelaço as mãos em meus cabelos
com os olhos presos em Gana.
— Apesar de ela ser uma prostituta, Gana é linda e jovem,
quem a vê acredita que ela tem dinheiro.
— Laura, isso não se encaixa. — Mordo meu lábio inferior. —
E como o assassino entrou aqui sem que ninguém percebesse?
Como entrou no hospital, passou pela CTI e tudo mais sem ninguém
perceber?
— Yaroslav, ele conseguiu se esconder durante anos, acredito
que essa é sua primeira falha,deixou uma vítimaviva. Entrar no CTI
para terminar o serviço que começou não é um obstáculo.
— Só que falhou de novo. — Confirmo com um balançar de
cabeça.
— Vocês precisam ir. — A enfermeira informa, respiro fundo e
assinto, dando um beijo na testa de Gana antes de sair.
— Laura, o que estás planejando? — Yaroslav indaga lendo
minha expressão.
— Eu preciso ter certeza. — Digo, andando de um lado para o
outro no corredor. — Me empresta o carro. — Estendo minha mão.
— Tu irásfazer besteira.
— Preciso que fiqueaqui vigiando-a. — Peço, ele umedece os
lábios. — Os policiais vão chegar e quero que conte a verdade, não
permita que ninguém entre, muito menos enfermeiros
desconhecidos.
— Mas como vou fazer isso?! — Pergunta exasperado. —
Como impedirei que enfermeiros entrem?
— Você vai saber como agir. Agora me dê a chave do seu
carro. — Exijo, Yaroslav bufa de raiva e me entrega.
— Me liga, okay?
— Okay!
Percorro os corredores em direção à recepção, ao chegar,
encaro as meninas que me olham alarmadas. Espero alguns
segundos para minha respiração se acalmar.
— Antes de mim, Gana teve outra visita?
— Ela não estava autorizada a receber nenhuma visita,
senhorita. — Uma delas responde, franzindo a testa.
— Está proibido qualquer visita antes de me comunicarem,
tudo bem? — Elas assentem, passo a mão na testa e me afasto.
— Senhorita? — Olho para trás. — Precisamos que preencha
a ficha da paciente Gana.
— Ah sim! — Hanna, que é uma das recepcionistas, me
entrega vários documentos, preencho com todos os dados
necessários e sou dispensada assim que termino.
— Manteremos contato. — Diz, assinto e vou embora.

Chego em casa com o coração sobressaltado. Procuro por


toda parte até encontrar a carta que roubei da caixa de Mirom.
Antes de ver o conteúdo, apanho um copo de água e tomo em um
só gole com as mãos trêmulas.
Sento-me à mesa, fecho meus olhos acalmando meu coração.
Inspiro fundo e solto um grito assustado quando Rony pula em meu
colo. Seguro-o para que não caia.
— Merda, Rony! — Vocifero, colocando-o em cima da mesa,
ele senta com os olhos amarelos presos no meu. — Estou
apavorada... — Confesso, respirando fundo e abrindo a carta.
Franzo a testa escutando meus próprios batimentos enquanto
sinto meu sangue gelar. Isso... isso é um desenho de uma silhueta
em frente a um corpo de uma mulher ensanguentada e machucada,
a faca em sua mão pinga sangue e seus olhos estão fixos à frente,
como se estivessem me encarando.
Seu rosto nítido e sem expressão é de pura insanidade, seus
olhos estão frios e algo dentro de mim estala. Não posso acreditar...
não pode ser real...
Embaixo da carta, tem apenas a assinatura de Ruslan,
significando que foi ele quem desenhou. Mas por que estava com
Mirom? Por que Ruslan nunca citou que sabia quem era o
assassino o tempo todo? Ou será que... ele esqueceu?
Minha mente me leva aos primeiros dias em que ele chegou,
Ruslan estava desorientado. Depois de tudo o que viveu, é normal
ter amnésia devido aos traumas. Só que preciso ter certeza.
Levanto meu olhar e encontro com o de Rony fixoem mim, como se
dissesse para eu não fazer o que estou pensando, mas já estou
com a decisão tomada, a mais burra de toda minha vida.
Estaciono em frente à casa com o quintal cheio de roseiras,
meu coração aperta ao lembrar que as pessoas que estão nesse
lugar são as responsáveis por terem destruído a vida de Ruslan, e
tirado nossa chance de ficarmos juntos.
Sinto lágrimas queimarem meus olhos ao lembrar de ontem,
quando ficamos juntos, em uma despedida silenciosa. Engulo em
seco e apanho meu celular dentro da bolsa, discando para Yaroslav.
— Oi!
— Como Gana está? — Pergunto, batucando o volante sem
desprender os olhos da casa dos Rotam.
— Até o momento estável.
— Certo! — Coloco meus cabelos atrás da orelha. — Eu acho
que descobri quem é o maníaco da rosa.
— Laura, não me diga que tu estás...
— Sim — corto-o. — Estou parada na frente da casa deles,
mas não se preocupe, irei apenas sondar para ter certeza.
— MEU DEUS LAURA!!! — Yaroslav grita do outro lado da
linha. — Cacete! Tu podes correr risco de vidase descobriremque
tu sabes quem é!
— Não vão fazer nada. — Asseguro, Yaroslav respira fundo,
murmurando inconformado.
— Laura, estou indo aí, vamos fazer isso juntos.
— Não! Vigie Gana, te retorno em duas horas.
— Em duas horas você pode estar morta! — Mordo meu lábio
sem deixar que isso me impeça de prosseguir. — Quem é, Laura?
— Não tenho certeza, se em duas horas eu não retornar é
porque aconteceu alguma coisa. — Digo, descendo do carro.
— Foda-se Laura! não deixarei que faça uma burrice dessa!
— Eu já fiz! — Respondo, abrindo o portão. — Preciso ir. —
Finalizo a ligação adentrando na propriedade que um dia foio lar de
Ruslan.
Paro para analisar as roseiras. Acaricio as pétalas de algumas,
admirando-as antes de subir o pequeno degrau e bater na porta.
Meu coração acelera em expectativa, bato novamente e encosto o
ouvido contra a porta tentando escutar algum ruído.
— Dona Okasana? — Chamo, girando a maçaneta e
percebendo que a porta está aberta. — Dona Okasana, é a Laura, a
senhora está aqui? — Com passos cautelosos, adentro na casa
silenciosa. Mantenho minha respiração calma enquanto percorro o
cômodo, indo até à cozinha.
— Dona Okasana?
Nada de barulho, ruído ou sinal de que há alguém na casa.
Ando para trás e giro nos calcanhares, entrando no corredor dos
quartos. Paro em frente ao de Artem e tento abrir sua porta, mas
está trancada.
— Merda, o que tem aídentro? — Murmuro, olhando para trás.
Desvio o olhar e encaro a porta de Okasana, cogitando entrar
lá, mas um barulho me impede de prosseguir. Engulo em seco, viro
a cabeça e encontro-a parada no começo do corredor com uma
tesoura de jardinagem um pouco grande, com um vestido de verão
e chapéu de palha parecendo uma camponesa. Okasana me encara
com uma expressão ilegível no rosto.
Começo a tremer.
— Laura?! — Sua voz sai surpresa.
— Oi, dona Okasana. — Pigarreio, afastando da porta. —
Peço desculpas por ter invadido sua casa, mas a senhora não
respondeu. Achei que talvez estaria no seu quarto.
Ela ficame olhando, ponderando se acredita na minha mentira
ou não. Seus lábios esticam em um sorriso e seu olhar amolece.
Suspiro um pouco aliviada por ter conseguindo convencê-la.
— Perdoe-me, não te ouvi. — Meneio a cabeça de leve. —
Estava nos fundos adubando as rosas. Venha, logo mais começo a
preparar o almoço.
Vou até ela com seu olhar me avaliando. Tento disfarçar
minhas intensões. Passo ao seu lado, sentindo calafrios
percorrerem meu corpo ao fitar a tesoura em sua mão.
— Os meninos chegarão daqui a pouco.
— Eu gostaria de pedir ajuda a eles, por isso estou aqui. —
Minto, seguindo-a porta afora.
— O que ouve? — Pergunta, parando em frenteao canteiro de
rosas que estava trabalhando antes de ser interrompida.
Ela agacha e começa a mexer na terra.
— Gana foi atacada. — Okasana me lança um olhar atônito.
— Meu Deus! Ela está bem?
— Não, mas vai melhorar, tenho certeza! — Ela assente, meus
olhos se prendem em seu pescoço onde seu colar transluz com os
raios do sol.
Franzo a testa, piscando para dissipar meu choque.
— Queria pedir ajuda a Mirom, já que ele é da SBU, talvez
consiga pegar quem fez isso com ela. — Continuo.
— Encontrar assassinos desse tipo não é sua função. — Diz,
cortando algumas folhas secas da roseira. — Acredito que Artem
seja mais qualificado para esse caso.
— Confio mais em Mirom, se eu tentar convencê-lo, talvez ele
possa me ajudar. — Okasana levanta a cabeça, estreitando os olhos
e me fitando com estranheza.
— Como disse, essa não é a função dele. — Fala pacífica,
meneio a cabeça.
— Artem me ajudaria?
— Claro. — Sorri para mim, voltando a trabalhar. — Tu gostas
da cor vermelha, Laura? — Pergunta, concentrada em podar as
rosas.
— Sim.
— O vermelho foi utilizado pelos iconógrafos nos mantos e
túnicas de Cristo e dos mártires. — Conta, movimentando as mãos
para que eu agache ao seu lado. — Simboliza o sangue do
sacrifício,assim como também o amor, pois, o amor é a causa
principal do sacrifício.
Okasana me entrega uma rosa, inclina a cabeça para o lado e
fica me encarando sem dizer nada.
— Ao contrário do branco que significa o intangível — seus
olhos percorrem meu blazer branco. — O vermelho é a cor que
representa o humano, e está relacionada à plenitude da vida
terrena. Na iconografia, Jesus veste uma túnica vermelha, porque é
o Filhodo homem preparado para o sacrifício.— Okasana deixa a
tesoura de lado e apalpa a terra. — Por isso que o vermelho está
tão presente nos bordados. Tu bordas Laura?
— Não. — Digo, sem graça.
— Bordar é uma arte plena. Os pontos, as cores, os desenhos,
as formas, as folhas,flores,linhas e curvas é a riqueza que refletea
alma exuberante do povo que ama sua pátria e suas tradições. —
Ela volta a me olhar e sorri. — Se quiser, posso ensiná-la.
— Eu adoraria. — Okasana me entrega mais uma rosa,
juntando as folhas secas.
— É muito importante sempre manter as roseiras podadas. —
Diz, voltando a apalpar a terra. — Caso a poda não seja feita, ela
irá crescer de maneira irregular e com galhos fracos.
— E as pragas? — Pergunto, curiosa e fitando sua mão se
movimentando.
— Como a maioria das plantas, elas ficam em estado de
dormência para guardar energia para a atividade na primavera, por
isso que ficam mais sujeitas às doenças e a contaminação dos
jardins por pragas. — Relata, cortando uma rosa murcha da roseira.
Meu coração para de bater por alguns segundos enquanto
encaro as mãos de Okasana. Ela alisa o que parece ser cabelos
loiros, a rosa murcha cai sobre eles e meu corpo congela.
— Por isso que toda rosa estragada deve ser eliminada. —
Suas palavras me atingem em cheio e lentamente ergo meus olhos,
prendendo nos seus que agora estão frios e inexpressivos.
— Vo-o-cê... — Okasana sorri e antes que eu constate que é a
verdadeira assassina e que era seu rosto desenhado naquela carta,
ela acerta minha têmpora com a tesoura em um baque que zumbi
meus ouvidos.
Caio sobre as roseiras com a visão turva, sentindo os espinhos
perfurarem minha pele antes de ser levada pela escuridão.
Sinto uma dor na cabeça que estremece todo meu corpo ao
começar a despertar. Confusa, levanto a cabeça, tombando-a para
trás por estar ainda tonta e solto um gemido de aflição. Passo a
língua em meus lábios secos, pisco ao tentar abrir os olhos.
O que aconteceu?
Engulo em seco e tento me mover, congelo quando minha
mente clareia.
Eu chegando na casa dos Rotam, Okasana me encontrando e
me levando até o canteiro e... merda... merda, merda... Meu coração
começa a acelerar, pavor me consome de uma forma insuportável.
Ela é a assassina!
Começo a me debater, pisco até conseguir focar minha visão,
então constato que meus pulsos estão presos atrás da cadeira e
meus tornozelos em seus pés. Arfo em desespero, levantando a
cabeça e analisando o lugar.
Meu estômago embrulha na mesma hora em que o cheiro de
ferrugem invade minhas narinas, mas, na verdade é cheiro de...
sangue!
Merda!
Volto a me debater, parece que estou dentro de um porão
iluminado por apenas uma lâmpada em cima de mim. Há vários
facões e facas pendurados na parede em frente à uma mesa de
madeira suja.
Minha mente grita desesperada para eu sair daqui, estou tão
assustada que me vejo sem saber o que fazer, pensar ou até
mesmo reagir.
Calafriospercorrem meu corpo ao escutar a porta ser aberta, a
luz do dia que irradia do lado de fora ilumina seu corpo antes dela
fechá-la. Aperto minhas mãos trêmulas escutando seus passos
ecoarem pelo porão.
Okasana retira seu chapéu e para à minha frente, me
encarando sem expressão. Estou sozinha com uma assassina,
começo a rezar por ajuda, porque não sei se sairei com vida. E mais
uma vez, estou lutando com um insano.
Estou perdida, o que eu faço?
Queria tanto que isso não fosse real. Queria que Ruslan não
tivesse que passar por isso, porque sua alma sangrará ao descobrir
que sua mãe foi a responsável por colocá-lo na prisão, será um tiro
em seu coração.
— Eu realmente gosto de ti, Laura. — Sua voz me estremece,
fico imóvel encarando seus olhos gélidos. — Mas infelizmente tu
entrastes em meu caminho, xeretando onde não te diz respeito e
descobrindo o que jamais deveria saber.
Balanço a cabeça, desejando com todas as forças da minha
alma que isso não passe de um pesadelo. Ela dá um passo à frente
e percorre a mão por meus cabelos, rosto e ombros. Me encolho
com seu toque.
— Nunca a vi sorrir — diz, esfregando meus lábios. — Só que
eu via em seus olhos o sorriso que tu não conseguias expressar.
Tão quebrada que perdeu o dom mais precioso da vida, o sorriso.
Uma lágrima escorre em meu rosto. Okasana a limpa com o
polegar.
— O que fizeram com você, pequena? — Pergunta, ainda
alisando meus cabelos. — Tão linda... — Murmura. — Por que não
se afastou quando foi avisada? Por que se envolveu com minha
família?
— Você... colocou Ruslan na cadeia! — Digo, finalmente
despertando do transe em que me encontrava.
Okasana abaixa a cabeça, afastando as mãos sujas de mim.
— Chega um momento na vida em que temos que sacrificar
algo, mesmo doendo em minha alma, tive que fazer o que fiz. —
Balanço a cabeça.
— Não entendo... ele é seu filho
! — Ela vira de costas para
mim, indo até à mesa.
— Tu já passaste fome, Laura? — Pergunta, voltando a me
olhar. — Já sentiu a dor de ver seus filhos dormirem com fome? —
Okasana pisca algumas vezes até eu perceber que seus olhos
estão nublados de lágrimas por causa das lembranças de um
passado conturbado.
— Depois que meu esposo faleceu, tudo ruiu. Todos os dias
meus filhos pediam por comida e eu não podia dar. Ouvia seus
choros de lamento, de fome. Então me questionava, por que existir
dessa forma? Por que continuar vivendo nesse inferno? — Seus
olhos se perdem. — Vi a esperança se esvair através dos olhos dos
meus filhos, da magreza e da tristeza. Eu os amava tanto que era
demais para suportar tamanho sofrimento. Entre a falta de
esperança e desespero, comecei a sentir raiva de Deus, do mundo
e de mim. Eu batia na porta pedindo um prato de comida em troca
de serviços. A maioria, Laura, a maioria fechou a porta em recusa.
— Okasana começa a chorar, um choro doloroso de uma pessoa
que perdeu a fé. — Eu só queria alimentar meus filhos!
Ela abaixa a cabeça, seus ombros estremecem conforme seu
choro aumenta. É triste, queria que tudo fosse diferente, e que isso
nunca tivesse acontecido com eles. Uma mãe nunca deveria ver
seus filhos passarem fome.
— Tudo o que me restava era a desilusão absoluta de uma
alma entregue a escuridão. Nem todos temos o que sonhamos, o
meu, era apenas ver meus filhos sorrindo de novo, esse era meu
sonho. A dor não tinha fim,era insuportável. — Ela solta um suspiro
longo e limpa seu rosto, indo até a parede de facas.Eu não consigo
falar, é como se todas as palavras tivessem desaparecido, consigo
apenas encará-la sem reação.
— Eu os deixava dormindo à noite e me tornava uma sombra
vagando sem rumo pelas ruas. Lágrimas escorriam por meu rosto,
meu coração rasgava a cada olhar devastado deles. Em um
momento achei que me culpavam, e me via a cada dia em um
labirinto sem fim. — Okasana me lança um olhar de raiva. — Em
uma dessas noites, enquanto caminhava em um bairro rico da
cidade, sonhando em ver meus filhos morando em uma dessas
casas, correndo felizes e longe da pobreza, presenciei uma briga.
Okasana faz uma pausa ao colocar duas facas em cima da
mesa e dois facões. Engulo em seco, o que ela pretende fazer com
elas?
— A moça era linda e rica, mas não respeitava sua mãe, que
queria apenas seu bem. Ódio tomou conta de mim, porque
enquanto estavam brigando por coisas fúteis, meus filhos dormiam
com fome. — Ela balança a cabeça, estalando a língua. — Eu a
segui pelas ruas quando saiu para arejar a mente. Queria lhe dar
uma lição, mas algo dentro de mim, agitava, minhas mãos tremiam
e soavam, eu precisava fazer aquilo. Então eu a puxei para um
beco, tirei a faca que escondia para me proteger por andar sozinha
à noite e depositei todo meu ódio nela. A cada golpe, era um prazer
incalculável, era como se algo dentro de mim, aliviasse a pressão
que sentia. Assim como as roseiras que temos que podar, tirar as
estragadas, a moça deveria desaparecer. — Okasana me encara no
fundo dos olhos.
— Vo-o-cê a matou?! — Ela confirma com um aceno leve.
— O prazer alcançou as depressões profundas do meu ser,
abriu caminho para me libertar. Estava presa em um mundo de
becos sem saída. — Diz. — Fiquei assustada encarando minhas
mãos sujas de sangue, mas ao mesmo tempo me senti bem. —
Seus olhos estremecem, perdendo o foco novamente. — Este
mundo é maldoso, Laura, egoísta e sádico, a dor estava me
matando, eu precisava disso. — Okasana balança a cabeça. —
Abandonei o corpo no beco, me perguntando se alguém iria
descobrir. Eu matei a filha de alguém... eu matei umapessoa.
Ela soluça voltando a chorar, meu coração aperta de medo e
confusão, me perguntando até onde uma pessoa consegue ir
quando está dominada pelo ódio.
— Cheguei em casa, — continua a contar com olhos fixos na
parede — lavei toda a sujeira e chorei... um choro tão doloroso que
acreditei que morreria. Alguém ia me culpar pelo assassinato e...
iriam tirar meus filhos de mim, eu preferiria a morte do que vê-los
sendo arrancados de minhas mãos, Laura.
— Você matou uma inocente! — Sussurro, piscando para
dissipar as lágrimas.
— Não existe inocentes nesse mundo insano. — Responde,
engulo em seco ao lembrar de James. Ela fica em silêncio, apenas
me olhando como se soubesse do que fiz... do corpo que ocultei.
— Eu era como gasolina correndo solta, não havia mais medo,
e fui dominada pela maldade. — Revela com a expressão fria. —
Um mês depois matei outra moça... a cada mês uma morria em
minhas mãos. Porém, as mortes não alimentavam a fomedos meus
filhos, sentia aos poucos o remorso me corroendo, não estava
matando por algo, era apenas para satisfazer meu ego.
Okasana pega uma cadeira e arrasta até estar sentada diante
de mim. Remexo meus pulsos, começando a me apavorar com a
forma que me olha.
— Então passei um mês calculando meu próximo ataque.
Tinha que ser perfeito, não tinha dinheiro e comecei a roubar nas
feiras até que o dia chegasse. — Ela respira fundo e olha para suas
mãos. — Sequestrei, matei e desossei. — Arregalo os olhos. —
Sentada à mesa, assisti meus filhos comerem a carne, o brilho em
seus olhos foram retornando e finalmente pude rever o sorriso de
cada um de novo. Naquele momento, eu soube que o que fiz foi o
correto. Teríamos comida por vários dias, eles não dormiriam mais
com fome.
Um nódulo se forma na minha garganta. Okasana espera até
eu conseguir assimilar o que acabou de revelar. Mas... é impossível,
meu rosto começa a retorcer de nojo, assombro. Ela sorri.
— Você... comia suas vítimas? — Indago, nauseada.
— Não me olhe dessa forma. — Diz, balançando a cabeça. —
Eu precisava para alimentar meus filhos.
— Okasana... isso... isso é demais! — Balbucio, é repugnante
tudo isso, não pode ser real. — Ruslan... ele... ele viu você? — Seus
olhos estremecem.
— Meu pequeno era o que mais sofria. Perdi as contas de
quantas vezes ele enxugou minhas lágrimas. — Revela com uma
lágrima caindo de seus olhos. — Ele começou a vender rosas, eu
me sentia feliz por isso. Ruslan estava virando o homem da casa.
Só conseguia sentir orgulho dele.
— Não entendo por que fez isso.
— Ninguém entende. — Okasana respira fundo. — Continuei
matando, alguns corpos eu deixava onde havia cometido o crime,
outros eu trazia comigo quando a carne de casa acabava. Foram
anos difíceis, Laura, só que pensei que melhoraria, mas... não
melhorou. — Diz, se levantando.
Fecho meus olhos, incapaz de acreditar.
— Você é a mãe dele! — Murmuro, abrindo meus olhos e
encarando-a, incrédula. — Você é a mãe de Ruslan, Okasana,
como pôde?
— Foi aberta uma investigação sobre os meus assassinatos, o
cerco estava se fechando. — Revela, voltando a se sentar. —
Ruslan tinha paixão nos olhos. Seus sonhos o levaram a enxergar a
vida de uma forma diferenteda qual eu enxergava, comtemplando a
noite, se ajoelhando e orando antes de dormir. Eu perdi a fée deixei
que o crime destruísse meu coração.
— Você deveria protegê-lo e não o jogar em um ninho de
cobras. — Ela abaixa a cabeça, assentindo.
— Um dia, ele me disse que desejava que a noite durasse
para sempre, só que não fazia ideia de que as sombras o
envolviam, que seus sonhos desapareceriam. — Okasana prende
seus olhos nos meus. — Naquela noite em que assassinei uma
moça, ele acordou para a realidade. Chorando, ele me encarou. O
sofrimento em seu coração tinha acabado de começar e ali, eu me
despedi do meu pequeno com o coração mais puro e o mais forte
entre os outros. A chuva era como uma orquestra. Deus, eu iria
acabar com sua vida, mas eu tinha mais dois filhos para criar, então
Ruslan eu teria que sacrificar. — Fecho meus olhos com força. —
Naquela noite, ele se tornou o assassino.
Aperto meus lábios segurando meu choro indignado. Sua mãe
destruiu sua vida, o abandonou no inferno... não é real... não pode
ser real!
— Laura, tu tens que entender que fiz isso por amor. Se eu
fossepresa, meus filhosiriam para abrigos. Eu nunca mais os veria.
— Você é um monstro! — Sussurro, incapaz de olhar para seu
rosto. — Como conseguiu esconder seus crimes? Como o juiz e o
júri não viram as falhas? Por que você não foi presa? — Encaro-a
com tanta raiva que sinto-me ferver por dentro.
— Eu presenciei o juiz assassinar sua filha. — Revela, me
congelando. — O mesmo responsável pelo caso de Ruslan. Estava
perambulando em busca de mais uma moça que eu pudesse matar
e aliviar minha dor, quando me deparei com toda a cena que
resultou na morte de uma moça que tentava fugir com seu
namorado.
— E você o ameaçou? — Okasana assente. — E nunca parou
de matar?
— Eu tinha que continuar alimentando meus filhos e ele me
obedeceu, só tinha que condenar Ruslan. — Conta, se levantando e
arrastando a cadeira. — Adam fez o que ordenei. Com todos
pensando que Ruslan era o assassino, retomei minha vida.
Passamos por vários momentos difíceis, mas foi melhorando.
Olesya e Artem conseguiram entrar na faculdade e Mirom no
exército. O sacrifício de Ruslan foi por uma boa causa.
— E os assassinatos? — Ela apanha uma facae liga o afiador
de lâminas me fazendo sobressaltar.
— Nunca parei. — Diz, focada no que está fazendo. — Vendi
muitas comidas, meu congelador nunca mais ficou vazio.
— Então... meu Deus, a comida que eu comi... era carne
humana? — Ela olha para atrás, sorrindo.
Seu olhar é a confirmação da minha pergunta, me inclino para
frente de uma vez e vomito. Toda aquela comida que me ofereceu
era carne humana... Quanto mais penso, mais enjoada eu fico.
Depois de alguns minutos, levanto a cabeça, arfando com os olhos
cheios de lágrimas.
— Onde estão os corpos?
— Adubo para minhas roseiras.
— Você é doente... — Sussurro, me debatendo. — Você
atacou Gana, duas vezes! — Olho para ela, me sentindo exausta de
tanto vomitar.
— Ela é linda, não? — Fecho meus olhos, com ânsia e nojo.
— Jovem, espírito valente e rica.
— Não é seu padrão de vítimas. — Ela dá de ombros.
— Mas é sua amiga. — Abro a boca para retrucar, mas nada
sai. — Gostou das rosas que te enviei? Ou da chacina em seu
prédio? — Arregalo os olhos, Okasana ri.
— Foi... você? Por quê?
— Para te colocar medo, avisar para ficar longe antes que
fossetarde demais. Pelo jeito não adiantou, olha só onde você está.
— Seu olhar se torna maléfico.
— Você não conseguiu matar Gana, falhou duas vezes.
— Não costumo falhar na terceira vez! — Afirma.
— Você começou a deixar suas vítimas para trás apenas para
incriminar Ruslan?
— Ele tem que voltar para cadeia, Laura.
— Você destruiu sua vida, Okasana. Não faz ideia do inferno
em que ele viveu dentro daquela cadeia. Você o destruiu, seu
monstro!! — Vocifero, me debatendo.
— Seu sacrifício fez com que os outros crescessem na vida.
— E ele? — Pergunto, indignada. — Ruslan nunca pôde amar,
estudar e viver sua vida, por que foi condenado por crimes que não
cometeu! Ele não pode ser feliz, sua alma se definhou, seu coração
se quebrou e por sua culpa, não podemos ficar juntos ! Por sua culpa
Ruslan teve sua inocência e vida arrancados! Então não me venha
falar de sacrifício,eles teriam vivido muito melhor sem você, seu
mostro!
Okasana larga a lâmina que estava afiando, encaro-a com a
respiração acelerada. Seus olhos estão tão sombrios, que duvido
que tenha alguma alma dentro da carcaça que é seu corpo. Ela vem
em minha direção, e acerta em meu rosto um tapa ensurdecedor.
Viro a cabeça, sentindo a queimação do seu toque.
— Cala a boca! — Ordena, segurando meu queixo com força e
virando meu rosto para que eu a encare. — Tu não tens o direito de
me julgar quando não entende o que passei. Quando tiver filhos,
talvez entenda o que é fazer de tudo por eles.
— Ruslan te ama mais do que tudo nessa vida. — Digo,
tentando me livrar do seu aperto. — Ele chorou por você. Gritou por
sua mãe quando aqueles desgraçados o torturavam na prisão. Ele
suplicou por sua ajuda quando a mesma o trancafiou naquele
inferno. Okasana, você é desprezível!
Sustento seu olhar durante vários segundos antes dela me
soltar e recuar alguns passos.
— Você não acha que já o fez sofrer demais? — Ela
permanece calada. — Ele te ama tanto... quando estava na minha
casa, muitas noites chamou por você. Ruslan tinha esperança de
que sua mãe o salvasse da dor e solidão. Você não sente nada?
Que coração é esse que não sangra por seu filho? Que mãe é essa
que faz seu filho sofrer por algo que não cometeu?
— Tu achas que não sofri?— Pergunta, batendo em seu peito.
— Eu sofri, Laura. Lutei contra todos, eu salvei minhas crianças. O
sangue em minhas mãos foi por eles.
— Você continuou quando não precisava mais. Você deixou
seu filho na cadeia, Okasana. — Falo, tentando mostrar a ela que
não existe nada que justifique seus crimes.
Seus olhos ficamde um verde pálido e marejados. Ela balança
a cabeça de um lado para o outro.
— Eu precisava fazer isso, eles estavam passando fome. —
Diz, se virando e voltando para suas facas. — Não se preocupe,
Ruslan nunca saberás da verdade.
— Okasana — chamo, me remexendo. — Livre o Ruslan
desses crimes. Foram quatorze anos tirados dele, mas você pode
fazer com que ele recupere o tempo perdido. — Digo, sabendo que
não adiantará. — Liberte-o de toda dor e aflição. Você já criou seus
filhos, eles são adultos agora, deixe que Ruslan viva agora. — Ela
para de manusear as facas e me olha, estreitando os olhos.
— Tu estás apaixonada por ele, não é? — Pergunta, aperto os
dentes e assinto.
— Liberte-o, Okasana. — Peço, ela inclina a cabeça para o
lado sem esboçar nenhuma emoção em seu rosto. — Chegou a
hora de libertar seu filho. — Ela nega com a cabeça.
— Eu realmente gostei de ti, Laura. — Okasana respira fundo,
balançando a cabeça. — Mas não posso deixá-la ir, sabe demais e
Ruslan se sacrificou.
— Você o sacrificou ! — Tento livrar meus pulsos da fita, mas
está apertada demais. — Deixe-me ir! — Imploro. — Eu não
contarei a ninguém, ficarei em silêncio.
— Tu és esperta, com certeza contou a alguém que estás aqui.
— Diz, estalando a língua. — Não vai doer nadinha, prometo.
— O que você vai fazer? — Indago, apavorada.
Ela sorri.
— Te matar! — Revela, pegando a faca que afiava. — Sinto
muito. — Diz, andando em minha direção. Remexo-me apavorada e
com olhos assustados. Okasana não é mais aquela senhora doce e
gentil, mas sim um monstro sedento por sangue e morte.
— Mãe!? — Ela congela, meu coração para, encarando-a
parada perto de mim.
Okasana gira a cabeça, eu faço o mesmo. Artem está parado,
segurando a porta com uma expressão impassível. Meu corpo fica
mais tenso quando seu olhar se fixa em mim.
Penso em pedir ajuda, mas não sei de qual lado ele está.
— O que faz aqui? — Okasana pergunta em um tom furioso.
— Mãe... — Murmura ainda me encarando. — Por que a Laura
está aqui? — Artem olha para ela e fecha a porta atrás de si.
Okasana solta a respiração e volta para mesa, jogando a faca
sobre ela.
— Essa sonsa descobriu tudo. — Revela, ele esfrega seus
olhos. — É melhor eu calá-la e... bom, preciso disso.
— Mãe, tu me prometeste que não faria mais isso. — Fala, se
aproximando dela. — Não consigo mais esconder suas merdas, fui
afastado e estou sendo investigado.
Balanço a cabeça, indignada. Artem sabe... por todos esses
anos, ele sabia o que sua mãe fazia.
Faz todo sentindo agora...
As provas inconclusivas, o arquivamento dos casos, a demora
das investigações e seu desespero atrás de Ruslan. Sendo um
policial na área de homicídios, facilmenteconseguiu roubar todas as
provas que incriminava sua mãe, podendo assim forjá-las para
culpar Ruslan.
É um pesadelo... não é real!
— Não temos outro jeito, filho. — Ela diz. — Por favor, vá abrir
a cova na lateral da casa, a noite a gente a enterra. — Okasana
cruza os braços, sustentando seu olhar.
— Ela é a Laura! — Artem exclama. — Ruslan é louco por ela,
mãe! — Ele se vira com as mãos trêmulas na cabeça. — Mirom está
perto de descobrir alguma coisa, ele está estranho, mãe. Ele não é
como Ruslan ou eu, aquele cara é sádico e não vai se calar. A corda
está em nosso pescoço e tu não colabora!
— Nada vai acontecer. — Okasana olha para mim.
— Mãe... você me prometeu que pararia. Tu juraste...
— Quer apodrecer na cadeia como seu irmão? — Ela o cala.
— Se tu quiseres, é só libertá-la. — Artem fica encarando-a.
— Estou cansado, mãe. — Sussurra. — Chega de matar as
pessoas... chega mãe! Eu não sei mais o que fazer.
— Você sabe, filho, não há outra forma de calá-la. — Artem a
fita por alguns segundos e me olha, desesperado.
— Eu te pedi tanto para desaparecer, Laura. — Ele me fala.
— Você sabia o tempo todo? — Artem abaixa a cabeça,
parecendo impotente.
— Tem pouco tempo que soube.
— E decidiu se tornar seu cúmplice? — Ele fecha os olhos.
— Ela é minha mãe, faço o que for preciso para mantê-la a
salvo. — Diz, se afastando.
— Vocês destruíram a vida de Ruslan. — Minha voz sai fraca.
— Vocês são dois monstros! — Lágrimas escorrem por meu rosto,
Artem me encara pálido.
— Artem... — Okasana o adverte, seus olhos permanecem em
mim.
— Mãe, não podemos fazer isso com Ru...
— Vá fazer o que te pedi!
— Estamos indo longe demais, se fizermos isso, não haverá
volta. — Okasana lança um olhar sombrio em sua direção que o faz
encolher.
Artem se vira e sai do porão me deixando sozinha com sua
mãe. Ela respira fundoe me olha. Calafriospercorrem meu corpo ao
encará-la através das lágrimas de pavor, alimentando meu desprezo
por tudo o que fez.
Okasana destruiu vidas inocentes e por uma causa que acha
justo, destruiu seu filho e sem arrependimento, continua agarrada na
crueldade.
Ela nos seduziu com sua simpatia e inocência como um
predador silencioso, nos enganou com seu amor. Um demônio que
não faço ideia de como conter, estou presa em suas mãos.
— Sinto muito, Laura — diz, sem me olhar. — Eu gostei de ti
desde quando veio pela primeira vez, mas, ao mesmo tempo, senti
que tu seriasum problema. Queria que as coisas fossemdiferentes.
— Ela vai até à parede de facase me olha por sobre o ombro, olhos
nublados de lágrimas. — Queria te deixar livre, mas não posso.
Sinto a sinceridade em sua voz, sempre tão doce. Seus olhos
malignos escondidos atrás de uma máscara de bondade continuam
me analisando. Encaro-a com raiva, desejando que um dia ela chore
lágrimas de arrependimento, que um dia se pergunte como pôde
fazer isso com seu filho.
Quero que um dia deseje desaparecer, que seu coração
encontre a verdadeira dor do sofrimento, e como uma rosa doente,
ela murche em seu próprio veneno.
Fico olhando os policiais saírem do refeitório depois de quase
uma hora de perguntas sobre Gana. Mesmo não a conhecendo
direito, presumo ter me saído bem com o pouco que sei. Esfrego
meu rosto, torcendo para que eles tenham acreditado no que falei.
Apanho meu celular e olho para o relógio. Se passaram três
horas desde que Laura me ligou. Mordo minha unha, ansioso ao
tentar ligar para ela pela décima vez e xingo ao cair na caixa postal,
de novo.
Peço um carro por aplicativo e caminho até o lado de forapara
esperar por ele. Laura foi descuidada ao ir sozinha, e eu estou
sendo tão descuidado quanto ela.
Depois de alguns minutos, o carro para em frente à casa dos
Rotam. Agradeço ao motorista assim que lhe passo o pagamento e
desço com meu coração acelerado.
— Yaroslav, tu estás sendo burro. — Digo a mim mesmo,
discando o número de Aksinya.
— Oi?— Fala assim que me atente.
— Preste atenção no que irei te dizer, Aksinya.
— Ande, estou ocupada! — Reviro os olhos.
— Se eu não der notícias daqui a duas horas, vá até o bairro
de Laura e pergunte por Kliment, diga que tu precisas falar com
Ruslan Rotam.
— O quê?
— Tu irásdizer para ele, que eu e a Laura estamos com a sua
mãe.
— Do que está falando,Yaroslav?— Pergunta, alarmada. —
Ruslan... o Ruslan, assassino?
— Esse mesmo. — Confirmo.
— Tu estás louco?
— Se tu não fizeres isso, Aksinya, nunca mais nos verá.
— Oi?!
— Se eu não entrar em contato, tu ligaspara Ruslan e diga
que estamos com a sua mãe. Ele saberá do que se trata. — Repito.
— Yaroslav... — Finalizo a ligação, irritado com Aksinya.
Engulo em seco com meus batimentos acelerados, guardo o
celular no bolso, abro o portão e entro na propriedade repleta de
segredos.
Bato na porta e aguardo alguns segundos, mas ninguém me
atende. Desço o degrau, decidindo contornar o quintal na tentativa
de ver se alguém está nos fundos.
Paro ao escutar algo. Aguço meus ouvidos e sigo o barulho,
encontrando com Artem sem camisa, cavando um buraco. Pigarreio
chamando sua atenção, ele congela e levanta a cabeça, me olhando
com surpresa.
— Errr... oi? — Digo sem graça com um sorriso forçado.
— O que faz aqui? — Pergunta, fincando a pá na terra.
— Laura me disse que vinha ver sua mãe. Estou atrás dela,
mas ninguém me recebeu na porta. — Sua expressão se torna
ilegível.
— Ela não está aqui.
— Ah, sim! — Murmuro, olhando para os lados e vendo meu
carro estacionado do outro lado da rua. — Desculpe-me a
intromissão, mas acho que ela está aqui sim!
— Eu disse que não está!
— Aquele carro é meu. — Falo, apontando na direção dele. —
Eu o emprestei para que ela viesse até sua casa. — Declaro, Artem
fica me olhando por tempo demais.
— Elas foram à feira. — Engulo em seco, não há sinceridade
em seu olhar.
— Então vou esperar ela no carro. — Sorrio, dando um passo
para trás, receoso. — Desculpe o incômodo.
Sorrio, olhando para o buraco que parece grande demais para
ser mais um canteiro de rosas. Entretanto, visto que o quintal é
cheio de roseiras, convenço-me a pensar que é para plantá-las.
— Ei Yaroslav! — Artem me chama, viro a cabeça e encaro
seus olhos. Ele ergue a pá, no instante seguinte estou caído no
chão com meu nariz sangrando ao ser atingido por ela.
Solto um gemido e me encolho de dor, tentando não desmaiar
com a intensidade da pancada. Artem se aproxima e me olha de
cima.
— Deveria ter ido embora, idiota! — Diz, pegando meus
braços e me arrastando.
Pisco, choramingando de dor e sem conseguir reagir por estar
zonzo demais. Tento me manter acordado mesmo que seja uma
tarefa difícil.
Artem me solta, abre o que parece ser uma porta de metal e
volta a me arrastar. Solto um gemido de dor ao ser jogado por uma
escada. Meus ossos rangem de dor ao colidirem nos degraus.
Quando chego no fim, me viro espalmando a mão no chão para
tentar me levantar.
— Por que tu estás fazendo isso? — Pergunto com a voz
pesada.
— Merda! — Ele diz, chutando meu estômago e me
derrubando de novo. — Cala a boca, seu merdinha! — Rosna,
começando a me arrastar de novo.
Ele me solta, escuto um grito abafado, fazendo meu sangue
gelar. Giro com dificuldade e olho para frente onde encontro Laura
sentada, amarrada e amordaçada em uma cadeira, se debatendo
enquanto me encara.
Seus olhos estão cheios de lágrimas, ela desvia seu olhar e
encara à frente. Sigo seu olhar e congelo imediatamente.
Okasana?
— O que é isso? — Ela pergunta a Artem.
— Eu te falei para tu parar, mãe. — Ele fala. — Merda!
— Vamos enterrá-lo vivo também. — Okasana declara, me
encarando com um brilho nos olhos que jamais vi em uma pessoa.
— Mãe, estamos indo longe demais.
— Faça o que te mandei, à noite os enterramos. — Ela nos dá
as costas e sai.
— Perdoe-me, cara, mas é minha mãe. — Artem diz com
pesar.
Volto a encarar Laura e sem dizer nada, compartilho o medo e
o pavor. Estamos em uma situação que não há saída, só o que nos
resta é rezar por nossas vidas e esperar que de alguma forma
Ruslan nos encontre, ou então... morreremos.
Olho para Serhiy em busca de alguma resposta, ele apenas
nega sutilmente com a cabeça. Volto a andar de um lado para o
outro na espera de Nikita que desapareceu sem nenhum vestígio.
— Quando teve contato com Nikita? — Pergunto a ele.
— Ontem quando tu saíste, senhor. — Serhiy responde, encho
meu copo de vodca e dou um gole, fechando os olhos.
Não faço ideia de onde Nikita pode estar, nem seus capangas
sabem, o que me deixa muito mais preocupado. Encho mais uma
vez o copo tentando me acalmar de alguma forma,porque dentro de
mim há uma agitação que não consigo entender.
Sinto meu coração apertar com uma intensidade que chega a
ser insuportável. Olho para trás quando a porta é aberta de uma
vez, Nikita entra, seu olhar se encontra com o meu.
— Onde tu esteves? — Ele retira sua jaqueta, jogando para
Serhiy que pega antes de cair no chão.
— Estava com meu pai. — Diz, desviando o olhar por estar
mentindo.
— Quero a verdade! — Ele suspira.
— Estava no hospital. — Franzo a testa. — A amiga de Laura,
uma tal de Gana, foi atacada. Fiquei sabendo quando estava com
meu pai e fui direto para lá averiguar a situação.
— E a Laura?
— Está bem! — Aperto o copo. — Mas sua amiga, não!
— O que aconteceu?
— Pelo que consegui descobrir, Gana foi esfaqueada ontem à
noite. Não se sabe quem a levou para o hospital.
— Certo, o que mais? — Nikita dá um gole na vodca pelo
gargalo.
— Tudo indica que foi a pessoa que estamos procurando. —
Revela, indo até seus documentos em cima de sua mesa. —
Ruslan, preciso te contar... — Ele me olha. — É melhor se sentar,
não será fácil.
— Tu estás falando isso tem dias, Nikita. — Repreendo, ele
apenas meneia a cabeça.
— Não é fácil! — Franzo o cenho, ele inspira fundo e quando
vai revelar o que tanto esconde, barulhos de tiros soam.
Viro-me assustado, já empunhando minha pistola quando a
porta é escancarada com um dos capangas de Nikita caindo com
um tiro na perna. Ele geme, se arrastando para longe do
responsável pelo ataque.
Ergo a arma e me preparo para apertar o gatilho. Prendo a
respiração, dando um passo para o lado para conseguir enxergar
além da porta. Ranjo os dentes ao ver Mirom parado com a pistola
abaixada ao lado do corpo, nos encarando com frieza, sem se
importar com as várias armas apontadas para sua cabeça.
— Que porra é essa? — Nikita pergunta, não desprendo meus
olhos dele, nem ele dos meus.
— Precisamos conversar, Ruslan. — Aperto mais firme a arma,
vendo em seus olhos que algo aconteceu.
— Abaixem as armas! — Nikita ordena, abaixo a minha e
inspiro fundo. — Tu deveriaster solicitado uma visita e não ter feito
todo esse show.
— Foda-se! — Mirom diz, entrando na sala.
Guardo a pistola nas costas, observando Serhiy e mais outro
retirarem o capanga baleado. A porta é fechada nos deixando
sozinhos, ficoem alerta sentindo a presença de Mirom, estamos tão
vulneráveis que ele poderia nos matar em segundos. Nikita se
encosta em uma parede mais afastada, fingindo não se abalar com
sua presença.
— O que tem a me dizer? — Pergunto, olhando-o se aproximar
da mesa.
Ele folheia cada documento e encara o painel com as
informações do meu caso. Eu e Nikita não nos preocupamos em
esconder, apenas deixamos ele verificar o que quer que esteja
procurando.
Encosto-me na parede e espero.
— Foda-se! — Diz com fúria, jogando todos os papéis no chão.
Cruzo meus braços, sem me afetar com seu comportamento
explosivo. Mirom coloca as mãos sobre a mesa e abaixa a cabeça,
seus ombros começam a estremecer até eu perceber que está
rindo.
— Teremos que esperar até quando para o rei começar a
desembuchar? — Nikita pergunta com tranquilidade.
— Pensei que tinha sido você. — Começa erguendo a cabeça.
— Ordak... tu lembras dela? — Seus olhos se prendem em mim,
busco em minha memória até me lembrar que ela é a moça que
encontrei morta na noite em que fui preso.
— Sim.
— Ela era uma amiga, na verdade, mais que amiga. Só não
tive tempo de dizer a ela, porque tu a mataste. — Sustento seu
olhar, Mirom fecha os olhos, rangendo os dentes. — Nada faz
sentido agora, é tudo uma bagunça.
— Descobriu? — Nikita pergunta se aproximando dele.
— Tu sabes? — Eles se encaram por longos segundos. —
Não contou? — Nikita nega e ambos me lançam olhares ilegíveis.
Desencosto da parede com calafrios percorrendo meu corpo.
Fecho as mãos em punhos e umedeço meus lábios.
— O que estão escondendo? — Pergunto, estreitando os
olhos, desconfiado.
— Descobri tem poucas horas. — Mirom fala.
— Eu há alguns dias, mas não tive coragem. — Nikita declara,
dando mais um gole na vodca.
— Falem, porra!
Mirom esfrega o rosto, negando com a cabeça e dando as
costas como se fosse difícildemais me olhar. Nikita respira fundo,
me fitando por longos segundos.
— Sinto muitíssimo, Ruslan. — Diz, pigarreando. — Mas a
responsável pelos assassinatos e por ter te colocado na prisão, foi...
— Ele se cala e abaixa a cabeça, dou um passo à frente.
— É sua mamãe. — Mirom fala, se virando para mim. — A
responsável por tudo é a Okasana Rotam. Sua mãe, Ruslan.
Sinto o chão ceder ao sentir suas palavras penetrarem em
minha mente. Olho para Nikita que confirma com um aceno. Minhas
mãos começam a tremer, congelo no lugar. Não consigo nem
sequer me mover, falar ou raciocinar.
Minha mãe? Minha Mamis?
Balanço a cabeça... não pode ser real! Deve ser um mal-
entendido... Dentro de mim não há nada além da dor. Lágrimas
escorrem por meu rosto ao ser levado para o dia em que minha vida
foi destruída...
Olhopara a cesta com as rosas que restaram depoisde horas
entre bares, restaurantes e praças. Os arranjos delicado
s foram os
que meus clientes mais se interessaram. Paro em frente a um cartaz
do Festivalde Ivan Kupalo que temos todos os anos, cheio de
tradições,rituais e flores,minha chance de ganhar um pouco mais
de dinheiro.
Arranco da parede já ansioso para a chegada desse dia. Dobro
e guardo no bolso, voltandoa caminharde voltapara casa em um
frio de doer os ossos.
Olho para cima quando um relâmpago entoa intensamente
estremecendo o chão. Encolho-mee apresso meus passos quando
gotas de chuva começam a cair
.
Não há lugar onde eu possa me esconder da chuva por estar
em uma ruelade casas simples,é certo que ireime encharcar antes
mesmo de chegar em casa. Tiromeu casaco e cubro as rosas para
que não estraguem.
Suspiro e me preparo para correr.
— SOCORRO! — Paro de uma vez ao escutar o grito.— Por...
favor... não... não... — Meu coração falhaas batidas, hesito um
pouco e lentamente olho para o lado em que escuteios lamentos
desesperados.
Escuto ruídos, choro e mais súplicas.A chuva engrossa,
quando penso em ir embora, me vejo caminhando em direção ao
barulho como um imã.
Enguloem seco e colocoa cesta em cimado contêinerde lixo
que está fechado. O beco é estreito, paro ao escutar junto ao
barulho da chuva, murmúrios de dor
.
Caminho, controlando minha respiração, a curiosidademe
comandando. Virono beco, inspirofundoe olhopara frente,paraliso
de imediato ao ver uma pessoa com capa e capuz esfaqueando
uma mulher que está imóvel no chão.
Arregaloos olhos,assustado com a cena. Arfo, estagnado no
lugar. O assassino para com as mãos segurando a faca no ar ao
notar minha presença.
Eleficaimóvel,eu não me movo e é como se o tempo tivesse
parado.
Seu rosto vira como se estivesse em câmera lenta sendo
iluminado pelos raios. Minhas pernas vacilame colocoa mão na
parede para evitarcair. Encaro seus olhosverdes sem acreditarque
é...
— Mamis? — Ela se levanta com o corpo diante de si.
Olho para baixo, o sangue escorre do corpo da moça e da
lâminada faca. Seu rosto está desfigurado.Ergo meu olhar, e
prendo-o no de minha mãe.
— Ruslan? — Murmura, contornando o corpo e se
aproximandode mim. Recuo alguns passos, assustado, fazendo-a
parar.
— O que tu fizeste?
— O que está fazendoaqui,pequeno? — Sua voz saicalmae
doce como sempre.
— Mamis...
— É um sonho, não é real, voltepor onde veio.— Balanço a
cabeça, sentindo o frio do muro sob minha mão.
É real, tudo isso é real!
— Você a matou?
— Olhe para mim, filho. — Pede, desprendo meus olhos do
corpo ensanguentado. — Nem sempre temos o controledas coisas.
Às vezes a vida nos obriga a fazer coisas que não queremos.
Balançoa cabeça sem acreditar em sua declaração,isso não
faz sentido. Tudo ao meu redor começa a girar, sinto frioe encaro
seus olhos sem conseguir enxergar sua inocência.
Minha mãe matou uma pessoa, e não há como negar.
— Por quê? — Ela abaixa a cabeça, soltando a faca que cai no
chão, tilintando.
— Vocês estão sofrendo por minha culpa... — Diz, fico
encarando-a com a chuva impedidode saber se elaestá chorando.
— É por vocês que fiz isso.
— Não, Mamis... você... você...
— Tu és um rapaz agora. — Mamãe me cala, olhando para
dentro dos meus olhos. — Tens que ser forte, mais do que já é.
— O que você vai fazer
, mãe? — Pergunto.
— Vamos dar um jeito.
Fito-a sem dizer nada, o brilhoem seus olhos me dá a
resposta antes mesmo que eu formuleuma pergunta. Mamãe não
vai se entregar à polícia.
— Mamis,tu cometeste um crime.— Murmuro, elapercorre a
língua em seus lábios. —u T
precisas contar
, mamãe.
— Você e seu senso de justiça...— Fala,sorrindo para mim.
— Mas teremos que mudar isso.
— Como dizes?
— Tu e eu, vamos guardar esse segredo. — Franzo a testa. —
Porque o que fiz, foi por você e por seus irmãos.
— Eu não entendo, Mamis!
— Sacrifícios são necessários, meu pequeno. — Ela se
aproxima,dessa vez não me movo. — Tu se lembrasquando disse
que gostaria que a noite durasse para sempre? — Assinto. — Por
quê?
— O brilhodo luar deixa as rosas ainda mais linda
s. —
Respondo, mamãe sorri, assentindo. — É como se as rosas
sorrissem.
— Talvez eladure para sempre. — Franzo a testa, confuso.—
Talveza escuridão da noite o consuma até o momento em que a
rosa dentro de si seja iluminada pelo luar de novo.
— Não estou entendendo. — Ela se aproxima, pega minha
mão e me puxa para perto dela.
— Eu te amo, meu pequeno. — Lágrimasescorrem por meu
rosto. — Amo-te mais que tudo nessa vida. Você é meu orgulho,
mas tem certas escolhas que temos que fazer mesmo que nossa
alma sangre.
— Mamis,o que está acontecendo? — Pergunto, olhandopor
cima do seu ombro.
— Um dia saberás, meu filho...— Ela segura meu rosto,
fazendo-me encará-la. — Perdoe-me... — Mamãe se inclinae
deposita um beijo demorado na minha testa. — Adeus!
Antes de processar o que está acontecendo, minha cabeça é
empurrada com força contra o muro, arfo de dor desmaiando
imediatamente.
Abro os olhossentado no chão, sentindouma dor insuportável
na cabeça. Levo a mão até ela,mas paro ao vê-lavermelhamesmo
com a visão um pouco turva.
Confusão me atinge ao olhar para minha outra mão que
segura uma faca. Começo a tremer, prendendo meus olhos no
corpo diante de mim... Solto um grito apavorado quando minha
visão foca no rosto desfigurado. Pisco várias vezes tentando
lembrar o que aconteceu e de como vim parar aqui.
O que façoaquicom ela?Por que estou segurando uma faca?
O sangue... o sangue é dela?
Uma luzforte me cega, fecho os olhos com força, escutando
barulhos de sirenes e vozes. Abro-os com dificuldade
e olho para
frente assim que a luz diminui.
Ficoimóvel ao ver policiais
com armas apontadas em minha
direção. Eles estão falando alguma coisa, nesse momento, só
consigo ver seus lábios se movendo sem nenhum som.
Meus ouvidos zumbem e com um estalo repentino, volto a
ouvir.
— Você está preso em flagrante por assassinato! Mãos ao
alto! — Um deles diz, fazendo-me entender o que está acontecendo.
Olho para minhas mãos, para faca e depois para a moça
deitada,sem vida.Eu a matei?Eu que fizissocom seu corpo? Mas
por quê?
Não me lembro de ter vindoaqui, estava voltandopara casa
e... minha memória acaba nesse momento.
Desespero me fazsoltara faca,desorientadome arrasto para
longe, balançando a cabeça de um lado para o outro.
— Não... não foi eu! — Consigo dizer
. — Não foi eu!
Dois dos policiais me alcançam.
— Erga as mãos! — Nego com a cabeça.
— Não, vocês estão errados, eu não matei... eu não matei...
não matei!
— Tu tens direitoa um advogado. — Um deles fala,me
levantando e me algemando.
— Não, eu não a matei,tu tens que acreditarem mim.— Olho
para o policial,
mas a únicacoisaque fazé abaixarminhacabeça e
me arrastar para uma viatura.
Sou jogado no porta-malas, chorando e pedindo por ajuda,
vendo minha vida caindo em uma verdadeira desgraça...
O retorno das lembranças daquele dia fatídico, que tinha
acreditado que nunca recuperaria, me deixa paralisado, mal
conseguindo respirar.
Abro a boca para tentar dizer alguma coisa, mas o que sai, é
apenas um som de angústia da minha garganta. Ela jogou sujo, foi
cruel, me fez acreditar que eu era o assassino de várias mulheres,
me empurrou e me abandonou no inferno. Fez todos me
desprezarem.
Essa traição começa a queimar minha alma. Minha mãe
destruiu meus sonhos com sua crueldade, não restando nada para
mim. Estou em um caminho sem saída, caindo em um abismo sem
fim.
— Ruslan? — Movo meus olhos.
— Foi ela... — Sussurro. — Eu a vi matar Ordak... ela me
incriminou... — Meus olhos nublam de lágrimas. — Mas... não pode
ser verdade!
— Artem sabe. — Mirom revela. — Não sei a quanto tempo,
mas é ele quem encobre seus crimes, esconde os corpos e elimina
as evidências. Eu estava investigando desde o dia em que tu me
enviaste um desenho sem rosto. Embora a raiva de você me
dominasse, continuei a investigar para te colocar de volta na prisão,
mas então...
— Descobriu. — Completo, ele assente. — Como?
— Gana... — Murmura, limpando a garganta. — Eu ia me
encontrar com aquela prostituta, mas então a vi entrar em um beco,
logo em seguida uma figura foi atrás, fiquei encucado. Demorei um
pouco a compreender que talvez aquilo que me perturbava fosse
algo, quando fui atrás, escutei gritos e corri para ajudá-la, o
assassino fugiu assim que notou minha presença. Deixando Gana
no hospital, comecei a busca por imagens pela redondeza que
tenha registrado o ataque. Encontrei um vídeo onde mostrava
nitidamente o rosto de Okasana depois de ter corrido. Vim direto
para cá, porque eu sabia onde se escondia.
Umedeço meus lábios, percorrendo minhas mãos por meu
rosto, despertando-me do choque em que estou.
— Por que estava atrás da Gana? — Mirom não diz nada,
apenas me encara.
— Precisamos prendê-la antes que destrua mais vidas,
Ruslan. — Mirom fala sem responder minha pergunta, fico olhando
para ele sem conseguir acreditar que tudo não passa de um
pesadelo.
Meu celular de repente toca, retiro do bolso e franzo o cenho
ao ler o número do Kliment. Atendo de imediato.
— O que foi?
— Ruslan, não queria te incomodar
, mas ela insistiu.
— Quem? — Pergunto, me afastando um pouco.
— Aksinya,ela falasem parar, não consigocompreender. —
Escuto uma voz de mulher pedindo para falar comigo. — Ela disse
que trabalha com a Laura.
— Me passe para ela.
— Certo!
— Ruslan Rotam?— A voz feminina invade meus ouvidos.
— Sim.
— Olha, não sei o que está acontecendo, mas Yaroslav me
disse que se não entrasse em contato comigoem duas horas, era
para procurar o Klimente pedir para falarcontigo.— Ela faz uma
pausa.
— O que aconteceu?
— Não sei!Estou tentando ligarpara ele,mas só caina caixa
postal, e demorei para encontrar Kliment.Ele não soava bem ao
telefone.— Ela faz mais uma pausa para controlar a respiração. —
Yaroslav apenas pediu para avisar que estão com a sua mãe agora.
— Onde está Laura?
— Com ele.— Responde, franzo o cenho.
— Eles estão com minha mãe?
— Sim. — Confirma com um suspiro. — Tu sabes do que se
trata?
— Não, mas vou descobrir.
— Certo! Por favor, me mantenha informada,estou muito
preocupada.
— Okay! — Finalizo a ligação com o coração acelerado.
Viro-me para Nikita e Mirom.
— Yaroslav, quem é Yaroslav?
— Amigo de trabalho da Laura, não se lembra? — Nikita
revela, nego com a cabeça. — Por quê?
— Uma moça chamada Aksinya me ligou, disse que eles estão
com minha mãe.
— Eles quem? — Nikita estreita os olhos.
— Laura e Yaroslav. — Fico encarando-os, atordoado.
— Porra! — Mirom vocifera. — Não temos tempo! — Diz me
olhando.
— Merda... — Nikita nos olha. — Merda, merda, merda...
— Será que Laura já sabe quem é minha mãe de verdade? —
Murmuro sem conseguir me mover.
— Laura sabe das coisas, Ruslan. — Mirom fala,balançando a
cabeça. — Eu avisei para ela não meter o nariz nessa droga de
investigação. Ela com certeza descobriu a verdade.
— Cacete! — Amaldiçoo, levando as mãos à cabeça
desesperado com a possibilidade de minha mãe a ter machucado.
Sinto mais uma vez o chão ruir sob meus pés, só que agora a
queda é ainda maior.
Dirijo pela noite, vidrado na viatura que segue à minha frente,
a tensão me domina. A lua brilha em um céu repleto de estrelas,
como um mar silencioso, e a impressão é que tudo está em câmera
lenta, cada minuto parecem horas.
A raiva me domina, deixando-me insano de novo, como antes
de ser trancafiado sozinho em uma cela. Meu sangue ferve
enquanto corre por minhas veias.
— Não dá para acreditar que isso está acontecendo.
— Eu te odiei por anos — fala, engatilhando sua pistola. —
Mandei te matar, fui o responsável por torna sua vida na prisão um
inferno. Eu te abandonei quando mais precisou e aqui está a
verdade.
— No fundo, tu sabias que eu era inocente. — Mirom estala a
língua, descontente. — Senão já teria me pegado. — Olho para ele.
— Assim como Artem.
— Vivemos em uma mentira... uma vida dominada pela
mentira.
Solto um suspiro longo, percebendo que fuio único que sofreu
as consequências dessa mentira.
— Quando tudo acabar, irei atrás de você. — Mirom declara.
— Eu sei!
— Apesar de tudo, você se tornou um perigo, matou muitos
dentro da cadeia, agia como um assassino de aluguel lá dentro. —
Sorrio friamente.
— Mas sobrevivi. — Retruco. — Quando nada mais fazia
sentindo, a escuridão me dominava, e eu deixava.
Mirom não fala mais nada. Em silêncio seguimos para casa.
Meu coração volta a bater desesperado com a possibilidade de eles
terem a machucado.
— Aguente firme, Laura... — Sussurro, estacionando uma
esquina antes.
Faço menção de descer, mas Mirom segura meu braço, me
impedindo de prosseguir.
Olho para ele e franzo o cenho.
— Vamos aguardar só mais um pouco, precisamos pegá-los
agindo.
— Esperar para que matem Laura? — Ele balança a cabeça.
— Vamos fazer do jeito certo. — Diz, pegando seu celular.
Mirom desce, soco o volante de raiva e faço o mesmo,
sentindo o vento frio bater em meu rosto enquanto encaro de longe
a casa em que cresci.
Fecho meus olhos e encosto a testa na janela do carro,
esperando o que parece ser uma eternidade. Escuto Mirom pedir
reforços à sua equipe. O tempo está passando, o maldito medo me
dominando, e Laura está sozinha com aqueles maníacos.
— Chega! — Afasto do carro, confiro minha arma e olho para
Mirom. — Não irei mais esperar.
— Ainda não é o momento de agir.
— Foda-se!
Caminho sem me importar com o maldito momento de agir. Eu
preciso salvá-la a qualquer custo. O que minha mãe fez não tem
perdão, ela me transformou em seu próprio inimigo, e não pensarei
duas vezes para proteger Laura.
Por que o destino insiste em nos fazer sofrer dessa maneira?
Parece existir uma maldição em minha vida que faz com que eu
perca o pouco do que me resta.
Paro em frente à casa, inspiro fundo e fecho meus olhos em
busca de controle. Não irei cair... não deixarei com que a
machuquem, não comigo vivo.
Remexo meus braços dormentes pelas horas presa na mesma
posição. A noite tomou conta do lado de fora, Okasana sumiu, assim
como Artem, deixando-me com ainda mais medo sobre o que
pretendem fazer conosco.
Olho para Yaroslav, seu rosto está inchado e machucado
depois da surra que Artem lhe deu na minha frente, a mando de
Okasana. Um aviso para que eu ficasse quieta.
Fiquei tão apavorada de eles o matarem que me vi sem chão.
Com a cabeça baixa e a respiração lenta, tento chamá-lo mesmo
com a mordaça que machuca minha boca, abafando o som da
minha voz.
Ele geme, meche seus braços e levanta a cabeça. Lágrimas
caem por meu rosto.
Ele está tão machucando...
Seus olhos se encontram com os meus, desesperados.
Precisamos sair daqui!
Desvio meu olhar quando a porta é aberta. Okasana e Artem
entram. Meu sangue ferve de ódio e medo ao encará-los.
— Chegou a hora, querida. — Okasana diz, com sua mascará
de boa senhora.
Não posso permitir que façam isso, não depois de tudo o que
vivi durante anos. Agora que pensei estar livre para recomeçar sem
o demônio de James, me vejo em outra guerra.
Artem se aproxima, encarando o fundo dos meus olhos.
— Fique quieta. — Pede, eu apenas o encaro com ódio.
Ele começa a tirar as fitas dos meus tornozelos presos no pé
da cadeira. Fico esperando com calma o momento certo de reagir.
Mexo minhas pernas livres do aperto que estava me incomodando,
calculando uma estratégia de fuga.
Noto uma corda em sua mão quando ele se levanta e vai para
trás de mim, solta meus pulsos presos no encosto da cadeira. Sinto
o sangue voltar a correr por eles ao serem livres da fita.
Levanto a cabeça e encontro com o olhar de Okasana, depois
olho para Yaroslav que a encara com pavor, vendo em seus olhos a
morte se aproximando.
Artem segura meus braços. Inspiro, buscando a força que
ainda me resta, mantendo a respiração no controle antes de
levantar de uma única vez, soltando meus braços e pegando a
cadeira.
Nosso olhar se encontra segundos antes de eu jogá-la nele,
que se protege com as costas. O estrondo da cadeira se quebrando
faz com que eu recue alguns passos. Artem se desequilibra, mas
não cai, e o sangue começa a escorrer por seu pescoço.
Viro para ver Okasana me encarando com fúria.
Tiro a mordaça da minha boca e ranjo os dentes.
— Sua doente, não deixarei que faça isso! — Rosno, andando
para trás.
Ela sorri, vindo em minha direção.
— Não seja teimosa, criança. — Sua voz me estremece.
Pisco na tentativa de manter minha coragem, viro para ir à
parede de facas, mas ao dar um passo à frente, Artem agarra meus
cabelos com tanta força que solto um grito.
Ele me joga na mesa e prensa minha cabeça contra ela,
fazendo-me lembrar das agressões de James, de quando ele me
colocava nessa posição apenas para... para... começo a chorar,
tentando livrar suas mãos de mim ao mesmo tempo, em que luto
para não ser tragada pelas lembranças.
— Eu pedi para ficar quieta. — Artem diz, prensando mais
minha cabeça. — Isso que acontece quando não me obedece. —
Congelo com suas palavras, ele acabou de falar como James, uma
alma tão podre como a dele.
— Vocês vão se arrepender... — Murmuro, tentando acertá-lo
com o cotovelo, uma tentativa em vão, porque ele consegue segurar
meu braço.
Movimento meus olhos e vejo uma faca perto de mim. Sem
pensar duas vezes, estico meu outro braço e fecho a mão em torno
do cabo, respiro fundo e me mantenho imóvel até sentir que seu
aperto diminuiu.
Com impulso, o empurro e giro meu corpo, conseguindo me
livrar de sua mão na minha cabeça, e finco a faca em seu braço.
Artem solta um grito e acerta a mão em meu rosto,
derrubando-me no chão. Sinto o gosto de sangue na boca.
— Desgraçada! — Xinga, chiando de dor.
Balanço a cabeça, espalmando a mão no chão e me
levantando com minha visão embaçada pelo golpe. Cambaleio em
direção à parede de facas, ainda acreditando que conseguirei sair
daqui com vida... que conseguirei lutar contra dois doentes.
Lágrimas inundam meus olhos, a fraqueza me dominando.
Pego uma faca, arfando de dor e me viro, dando de cara com
Artem apontando uma arma na cabeça de Yaroslav.
Meu sangue gela.
— Tens certeza que irá lutar? — Okasana pergunta com os
braços cruzados e uma tranquilidade assustadora.
Yaroslav estremece de medo tentando ser forte, mas falha
miseravelmente. Minhas pernas enfraquecem. Artem destrava a
arma, pronto para atirar.
— Mate-o, Artem! — Ordena.
— Não! — Solto a faca e dou um passo à frente. — Não o
mate!
— Desistiu de lutar, querida? — Pergunta com um tom frio na
voz. — Mate-o, Artem!
— Por favor... — Ergo as mãos e me ajoelho, derrotada.
— Mãe, não é uma boa ideia. — Artem intervém. — Vamos
manter o plano. — Diz, me olhando.
Okasana fica encarando-o com uma expressão ilegível antes
de concordar. Ele abaixa a arma e vem até mim, e prende meus
pulsos, com fitas, atrás das costas.
Yaroslav me olha um pouco aliviado por ainda termos ganho
um pouco mais de tempo. Respiro fundo, ficando de pé quando
Artem me puxa para cima. Okasana sai pela porta liderando o
caminho, enquanto seu filho me arrasta para a cova em que
cavaram.
Quero implorar para que não cometam esse erro, mas tudo o
que eu disser será em vão. Ela está dominada pela maldade, a
frieza consome seus olhos e acredito que não há como a senhora
simpática que conheci voltar, aliás, ela nunca existiu.
Artem me faz ajoelhar em frente ao buraco que abriu.
Okasana fica do outro lado, me olhando. As recordações do
que fiz com James retornam com intensidade.
Eu abri uma cova e joguei seu corpo lá dentro. Ateei fogo e
cobri seus restos com terra vermelha. Agora estou aqui, em frente a
uma cova prestes a ser enterrada viva.
Artem volta trazendo Yaroslav que luta para se manter lúcido.
— Sinto muito, Laura. — Ela diz.
Desvio o olhar do meu amigo e fixo na senhora louca com
sangue assassino.
— Você não sente, Okasana. — Retruco, com raiva. — Você
não tem coração para sentir alguma coisa.
— Você está enganada, querida. — Seus olhos se prendem
em Artem. — Tudo o que fiz foi por meus filhos, e continuo fazendo
isso por eles. Ruslan se sacrificou e em hipótese alguma pode
descobrir quem sou.
— Ele saberá da verdade mais cedo ou mais tarde. — Balanço
a cabeça. — Já pensou na Olesya? Sua filha, Okasana... o que ela
vai sentir quando descobrir o que fez?
— Ela seguiu com sua vida longe de mim, se tornou uma
mulher linda e bem-sucedida.
— Porque vocês sempre a jogaram contra seu irmão. —
Retruco, bufando.
— Eu a amo, Laura. — Diz, me fitando com olhos marejados.
— Mesmo que tenha cortado laços, eu sempre a amarei.
— Por quê? — Pergunto, curiosa. — Por que se afastaram?
— Ela defende Ruslan com toda alma, não aceita que ele seja
o culpado. Foi contra minhas ordens de não reabrir o caso dele ou
de contratar qualquer advogado que o tirasse da cadeia. —
Esclarece. — Então saiu de casa e nunca mais voltou, nem ao
menos ligou.
— Você é a culpada, não Ruslan!
— As provas existem e apontam para ele. — Fecho meus
olhos por alguns segundos.
— Então é isso, Artem? — Olho para ele que anda de um lado
para o outro. — Vai nos matar?
— Não posso fazernada! — Diz, parando de andar. — Eu pedi
para você parar de vir atrás da gente, mas não parou. O aviso foi
dado, Laura.
— Vocês estão cometendo um grande erro. — Alerto. — As
pessoas vão procurar pela gente...
— E assim como as outras, vocês dois não passarão de meras
lembranças. — Artem rebate, me lançando um olhar furioso.
— Vamos acabar com isso, antes que amanheça. — Ela o
orienta, Artem concorda com um aceno de leve.
Franzo a testa observando seu comportamento. A submissão é
visível em sua expressão, me dando a certeza que não importa o
que ela quer fazer, ele irá obedecê-la.
Okasana sorri para Artem como se estivesse orgulhosa dele,
substituindo sua feição fria para uma calorosa, amorosa e doce, a
mesma que presenciei todas às vezes em que a vi.
Ela se aproxima do filho, segura seu rosto e beija sua testa
antes de vir até nós. Desespero me abate ao ver suas mãos
repousarem nos ombros de Yaroslav que estremece diante do seu
toque.
— Perdoe-me, querido. — Diz, o empurrando para dentro da
cova, solto um grito que é abafadopelas mãos de Artem, me debato
vendo Yaroslav caído lá dentro, imóvel.
Artem me segura com mais força e me amordaça, seu toque
me desperta tanta repulsa que meu estômago embrulha. Ele segura
meus ombros e me empurra para dentro da cova.
Um gemido sai da minha garganta ao cair desajeitada em cima
de Yaroslav, meu corpo inteiro dói. Ele se remexe debaixo de mim e
tentamos nos ajeitar num espaço tão pequeno.
Com muita dificuldade, consigo me sentar e sair de cima dele.
O cheiro da terra invade minhas narinas, olho para cima e fecho os
olhos com força quando terra cai sobre nós. Encolho-me, sentindo-
me impotente, não sei mais o que fazer, estão nos enterrando vivos.
Com minhas mãos atadas atrás das costas nunca conseguirei fugir.
Abro meus olhos depois de alguns minutos e encontro com o
olhar desesperado de Yaroslav quase coberto pela terra. Começo a
chorar, balançando a cabeça e percebendo que essa luta, iremos
perder. Vendo um caminho sem fim, clamo por ajuda enquanto
ainda me resta alguma esperança.
O som da pá quebra o silêncio da noite, chocando contra a
terra que em seguida cai sobre nós, aos poucos, nos cobrindo,
tornando doloroso demais para suportar essa morte cruel.
— Mamis? — Meu coração para ao escutar o som da voz de
Ruslan.
— O que está fazendo?
— Ruslan? — A voz de Okasana sai trêmula e a terra para de
cair.
Um silêncio recai sobre nós, nada é dito... nada é esclarecido
— Por quê? — Ele pergunta com a voz falhando.
— Meu pequeno...
— Tu me tirasteo direito de ser ouvido, de ser amado, de ser
livre e de realizar meus sonhos para continuar fazendo essas
barbaridades? — Meu peito aperta, sentindo sua dor. — Naquela
noite, quando eu a encontrei, tu deixasteclaro que destruiria minha
vida... por quê? Para continuar matando?
— Eu tinha mais duas crianças para criar Ruslan, não podia
deixar com que a justiça os tirasse de mim. — Okasana responde
com convicção. — Eu tinha que criar vocês... alimentá-los, por isso,
fiz o que fiz. Estava desesperada...
— O que a morte de inocentes tem a ver com a gente, Mamis?
Mesmo que esteja com raiva e indignado, ainda consigo sentir
o amor que sente por ela através da sua voz.
— Cansei de vê-los com fome e... essas moças alimentaram
vocês. — Yaroslav arregala os olhos ao compreender o que
Okasana quis dizer com essa afirmação. — Vocês não passaram
mais fome, tínhamos carne todos os dias...
— Mamis... me diga que é mentira! — A voz de Ruslan sai
incrédula. — Por favor, diga-me que é uma criação da sua cabeça.
— É verdade, meu pequeno. — Eles se calam por alguns
segundos. — Tu és o mais forte entre todos, sabia que conseguiria
aguentar.
— Conseguir aguentar? Sério? — Sua voz sai revoltada. — Eu
só encontrei escuridão em todos esses anos. Vivi sem amor, sem
misericórdia, mas acreditando que tu ainda me amavas.
— Eu amo-te, filho.
— Ama? — Ruslan solta uma risada fria. — Tu és uma espécie
maldita, Mamis! Uma alma doente. — Declara com fúria. — O que tu
fizeste
, não tem perdão.
— Tu tens que me entender, Ruslan...
— Deitei em seu colo, dias atrás... tu viste meu sofrimento
sabendo o tempo todo que eu era INOCENTE ! — Escuto passos,
meu corpo fica tenso. — Tu, a mulher que eu amo e que chamo de
mãe, não passa de uma mentira... um monstro!
— Filho...
— Não me chame de FILHO
! — Ele grita.
Sobressalto de susto quando alguém pula dentro da cova. Não
pode ser Ruslan, ele está com Okasana, então... tento me arrastar
para mais perto de Yaroslav no pouco espaço que temos,
apavorada e com muito medo de que seja Artem.
— Shh! Sou eu, Laura, o Mirom! — Pisco várias vezes até seu
rosto se tornar nítido.
Ele se agacha retirando de dentro do seu coturno uma
pequena facae se aproxima. Colo as costas na parede de terra com
medo dele fazer algum mal contra a gente, mas a única coisa que
ele faz é esticar as mãos e tirar a mordaça da minha boca.
— Fique calada. — Diz em um sussurro. — Agora se vire! —
Fico encarando-o, escutando Ruslan e Okasana conversarem. —
Ande! — Hesito por mais alguns instantes, quando ele inspira com
impaciência, me viro e em instantes tenho meus braços livres.
— Yaroslav... — Me inclino, tirando a mordaça e a terra de seu
rosto, suspirando aliviada por estarmos quase saindo desse buraco
apertado. — Você está bem?
— Vou ficar... — Responde baixinho, Mirom corta a fita dos
seus pulsos e o ajuda a se sentar.
— Vou te ajudar a subir. — Mirom fala, segurando meu braço.
— Chegando lá, tu me ajudascom Yaroslav. — Assinto, ele cruza as
mãos e coloco meu pé esquerdo sobre elas. — Tente manter
silêncio, não distraia Ruslan.
— Certo!
— No três, okay?
— Okay! — Confirmo, repousando as mãos na parede.
— Um, dois e três! — Mirom me empurra para cima, agarro a
beirada da cova e saio de dentro com a respiração pesada.
Espero alguns segundos agachada até me recuperar do pavor
instalado dentro de mim. Fecho as mãos sob a terra solta, quase
caindo no choro por estar livre daquele buraco.
Com as pernas bambas, começo a me levantar, mas paro de
uma vez, e me arrasto a tempo de ver Artem erguer a pá e quase
me acertar.
Meu coração acelera, encarando seu olhar cruel.
— Não deixarei que fuja, Laura! — Diz com a voz bradando,
entro em desespero quando vem em minha direção com a pá pronta
para acertar minha cabeça, não vou conseguir desviar dessa vez.
Fecho meus olhos esperando a pancada, mas nada acontece,
o único som que vem é da voz de Okasana e Ruslan. Volto a abri-
los, calafrios percorrem meu corpo ao ver Mirom, com a mão em
sua boca, o arrastando para as sombras.
Seus olhos se encontram com os meus. Mirom lança um
aceno discreto, viro-me e vou para beira da cova, chamando
Yaroslav que se mantém sentado com a cabeça caída para frente.
— Ei, Yaroslav? — Chamo em um murmuro, olhando
rapidamente para Ruslan. — Consegue vir até mim?
— Acho... — Sussurra em resposta, se movimentando e
chegando perto de mim.
— Venha! — Estendo minhas mãos. — Vai doer só mais um
pouco.
— Eu aguento. — Ele fecha as mãos em meus pulsos e eu nos
dele.
Inspiro fundo, concentrando o pouco de força que ainda tenho.
— Um, dois... três! — Puxo-o para cima.
— Arch!!!!! — Reclama com um gemido alto.
Ranjo os dentes, ele é pesado demais para mim e acaba
caindo de volta, quase me levando junto.
— Merda! — Xingo, preocupada. — Você está bem?
— Sim... — Balbucia, se levantando com dificuldade.
— Vamos tentar mais uma vez, okay? — Yaroslav assente e
olha além de mim, congelando de imediato e arregalando os olhos.
— Laura, atrás de ti!
Meu coração gela, olho para trás e encontro Artem com a pá
novamente levantada com o rosto coberto por sangue. Sento-me
estagnada, sem saber o que fazer.
Artem acertará minha cabeça, e eu não sobreviverei a essa
pancada. Levanto as mãos para proteger meu rosto, mas antes dele
me acertar, dois disparos soam pela noite.
Solto um grito e cubro meus ouvidos, assustada. Olho para
Artem que dá dois passos para trás com olhos arregalados, a pá cai
de suas mãos fazendo um barulho abafado.
Ele se ajoelha, leva as mãos trêmulas ao peito que jorra
sangue e olha para frente, além de mim, perplexo.
— Não a machuque, não na minha frente!— A voz de Ruslan,
tão intensa e fria,me arrepia. Olho para trás, fixandomeus olhos no
seu rosto inexpressivo. — Eu avisei para ficarlonge dela... para não
tocar nela!
— Eu... sempre... te odiei! — Artem diz, pausadamente.
— Nunca duvidei. — Ruslan concorda, apesar de estar sendo
frio, sinto em cada parte do meu ser, a sua dor.
— Sempre... o bo-o-om garoto... o filho preferido... — Artem
tosse, sorrindo enquanto balança a cabeça. — Quando... tu foste
preso... nunca me senti tão... grato. Torci para que não precisasse
nunca mais te ver... queria te ver sofrer.
— Tu conseguiste! — A voz de Ruslan vacila, olho para seus
olhos marejados, a arma que segura treme.
— Quando... quando descobri o que mamãe estava fazendo...
— Artem geme e sangue sai por sua boca. — Eu a ajudei... enterrei
e a protegi... Queria fazer de tudo para que tu continuaste dentro
daquela cadeia.
— Eu sei... — Ruslan murmura, lágrimas escorrem por seu
rosto. — Eu sempre senti sua raiva, era sempre uma tensão ficarao
seu lado. Queria a atenção do meu irmão mais velho, trabalhei para
que estudasse e nos tirasse daquela vida de merda... — Artem
gargalha.
— Babaca... sempre foio merda de um babaca! — Ele arfa.—
Eu nunca te tiraria daquela vida... eu iria vencer, mas no fim, te
jogaria no lixo onde tu sempre pertenceste.
— Estás feliz agora? — Ruslan pergunta, hesitante.
— Não... — Artem trinca os dentes. — Porque tu estás aqui,
vivo, amando, sorrindo e tendo uma mulher do seu lado... lutando
por você... — Seus olhos se prendem em mim. — Eu quero matá-la,
porque... porque eu vejo que tu a ama... eu o odeio por isso... por
sempre vencer...
— Artem... — Okasana murmura. — Filho, olhe para mim... —
Ela dá um passo à frente.
— Não se mexa, Mamis. — Ruslan alerta, ela para.
— Tu machucaste teu irmão, não lhe ensinei isso, Ruslan!
— Dentro daquele inferno, aprendi a não ter piedade, Mamis.
— Ele revela, olhando para o fundo de seus olhos. — Eu aprendi a
matar tudo de bom dentro de mim sem ter rancor ou
arrependimentos, sem me importar com quem seja.
— Filho...
— Só que, se expormos a realidade, nada disso aprendi. —
Ruslan ri, friamente. — Porque a crueldade impregnada em meu
ser, foi herdado de ti e acredito que ela só desabrochou!
— Eu sempre criei vocês para se tornarem pessoas boas...
— Não me importo em matá-lo. — Ruslan declara.
— E sua mãe? Tens coragem de matá-la? — Ele não
responde, mantendo a expressão dura, impassível.
— Ouch... — Volto minha atenção para Artem, seus olhos
perdem o foco e em instantes seu corpo cai para trás.
— Laura? — Yaroslav me chama, desperto-me e vou até ele,
sentado na cova.
— Você está bem? — Ele assente. — Espere só mais um
pouco.
— Eu queria ter a coragem de te matar, mãe... — Ruslan fala,
sem olhá-los, me levanto e vou atrás de Mirom, passando por Artem
desacordado.
Se está morto, não faço ideia e nem paro para conferir
.
Estreito meus olhos, tentando enxergar direito na escuridão.
Ele trouxe Artem até aqui... tropeço em algo e caio com as mãos no
chão.
— Droga... — Murmuro de dor, me sento e tiro os espinhos das
rosas que fincaramem minhas palmas. — Mirom! — Exclamo assim
que percebo que foi nele que tropecei. — Mirom?
Me aproximo, notando um grande corte na testa que vai até
sua sobrancelha. Engulo em seco, tocando seu rosto
ensanguentado com as mãos trêmulas.
— Ei... acorda! — Sacudo-o de leve, entrando em desespero.
— Eu preciso de você, entende?
— Siiim... — Ele murmura, solto um suspiro.
— Você está bem?
— Acha que estou? — Retruca, gemendo de dor, continuando
imóvel.
— Quase morrendo e continua um babaca! — Rosno,
segurando seu pulso e o puxando para cima. — Tire Yaroslav
daquele buraco. — Peço. Mirom abre os olhos e toca sua testa,
amaldiçoando. — Uma bela pancada! — Digo, ele ignora.
— Onde está Artem? — Pergunta, se levantando sem minha
ajuda, parece recuperado.
— Morto... eu acho! — Seus olhos se prendem em mim.
— Como?
— Ruslan... — Aponto para ele que ainda segura a arma na
direção de Okasana.
— Porra! — Xinga, indo até Artem, e eu o sigo. — Vivo, ainda!
— Consta, com dois dedos no pescoço dele.
— Bom ou ruim? — Indago, sem paciência.
— Os dois. — Responde, indo até Yaroslav.
Mirom pula para dentro da cova, ajuda meu amigo a se
levantar e com minha ajuda, conseguimos tirá-lo de lá de dentro.
Puxo-o para mim em um abraço forte.Seu corpo treme por conta do
seu choro.
Respiro fundo, segurando minhas lágrimas e de repente,
escuto ao longe, barulhos de sirenes. Yaroslav desfaz o abraço e
me encara.
— A polícia está chegando, Laura. — Yaroslav comunica tão
aliviado quanto eu.
Assinto, me levantando e olhando para Mirom que sai de
dentro da cova.
— Mirom? — Ele me encara. — Os corpos... eles estão... —
Faço uma pausa, tendo dificuldade de falar. — Tem corpos
enterrados aqui!
— Como dizes?
— Eles escondem os corpos aqui, nas roseiras. — Mirom fica
me encarando sem se mover, dou um passo para trás e encontro
com o olhar devastado de Ruslan.
— Okasana, acabou! — Falo, fazendo-a olhar para mim. — Sei
de tudo o que teve que passar, mas está na hora de você assumir
seus erros.
Luzes vermelhas e azuis reluzem pela noite que estava sendo
iluminada apenas pelo luar. Policiais encapuzados contornam toda a
casa, confirmando minhas palavras.
Ruslan abaixa a arma, encarando sua mãe que olha para o
corpo caído de Artem, sem esboçar nenhuma emoção.
— Lutei tanto contra a dor e a obsessão que crescia dentro de
mim, mas o único alívio que encontrei, foi esse. Eu não aguentava
mais ver vocês com fome. — Ela desvia o olhar de Artem, voltando
sua atenção para Ruslan. — Chorei por você todas as noites,
Ruslan... entenda, meu pequeno, não tive outra escolha. Todos me
viraram as costas quando mais precisei. Eu era uma mãe viúva,
sem dinheiro e com quatro crianças para criar. — Okasana encara
Mirom que está um pouco distante de mim com os olhos cheios de
lágrimas. — Eu não tive outra escolha...
— Sempre tem outra escolha, mãe... — Ele diz.
— Quando me chamas de mãe, Mirom, sinto-me realizada. —
Revela. — Mesmo com tudo o que aconteceu, tu me transformaste
em tua mãe. Eu nunca irei me esquecer de vocês... eu os amo! —
Diz com a voz embargada, voltando a encarar Ruslan. — Eu nunca
me esqueci de você, pequeno...
— Eu também nunca me esqueci do som da sua voz e do seu
cheiro... — Ruslan revela com a cabeça baixa. — Quando pensava
em ti, eu pedia para Deus fazercom que tu fosteme buscar logo, eu
não conseguia mais aguentar... eu só queria estar seguro em seus
braços.
A dor no coração de Ruslan domina sua alma, jogando-o em
um chão frio, onde sozinho enfrenta a solidão do abandono e da
injustiça.
Na minha frente, não está o homem misterioso que conheci, e
sim, aquele garoto de dezoito anos que tanto gritou por socorro, se
ajoelhou e implorou para ser ouvido quando sua própria mãe, de
forma cruel, o condenava.
— Mamis, queria tanto que isso não passasse de um
pesadelo. Queria tanto te dizer o quanto te amo com um sorriso no
rosto, e não com lágrimas de dor e traição.
— Sempre carreguei você em meu coração, filho, mesmo não
conseguindo olhar dentro de seus olhos, eu sempre te amei e te
amarei.
— É cruel e injusta essas palavras... — Ele balança a cabeça,
recusando-as.
— Sinto muito, pequeno, mas não poderei apagar tudo o que
te causei... — Okasana dá um passo à frente, começando a chorar.
— Eu me sinto morto, mãe... — Ruslan se ajoelha no chão,
soltando a arma, Okasana faz o mesmo, segurando seu rosto. —
Guardei em minha memória seu carinho e seu amor, porque era o
único jeito de sobreviver naquele lugar.
— Perdoe-me... — Ela implora. — Perdoe-me por tudo, filho!
— A dor, mãe... façaessa dor acabar! — Ele suplica, Okasana
o leva para seus braços em prantos.
Fecho minhas mãos em punhos com raiva, me segurando para
não ir lá e retirar suas mãos sujas de Ruslan. Ele não merece esse
sofrimento, nada do que ela fez justifica essa maluquice que chama
de amor de mãe.
Dou um passo à frente, decidida a afastá-la dele, mas Mirom
me impede ao segurar meu braço. Olho em seus olhos assustada
com seu toque, afasto meu braço e congelo quando nega com a
cabeça, lendo o que pretendia fazer.
— Mãe, me livre desse inferno, estou tão cansado de lutar...
Meu coração se parte ao escutar as palavras dolorosas de
Ruslan. Não quero vê-lo sofrendo dessa forma,quero dizer que isso
tudo é apenas uma merda de um pesadelo, nada é real...
— Filho, tem que ser forte... seja forte, meu amor... — Ela
limpa seu rosto. — Perdoe-me... Ruslan. — Ele a encara, dentro de
seus olhos só consigo ver confusão, Ruslan não quer aceitar que
sua mãe seja a culpada por sua devastação, a dor... que ele sente,
está tão pesada a ponto de se tornar insuportável.
Sua alma sangra, assim como a minha por vê-lo tão...
vulnerável.
— Eu te perdoo, mãe, te perdoo... porque eu te amo... te amo
mais-que-tudo nessa vida! — Ele segura seu rosto.
Percebo Mirom dar um passo à frente, seus olhos também
estão nublados de lágrimas em um choro silencioso. Fecho os meus
por alguns instantes, tentando com todas as forçascontrolar minhas
emoções.
Sobressalto de susto ao escutar um disparo, meus ouvidos
zumbem, me encolho e minhas mãos tremem. Olho para Mirom com
as mãos na cabeça, medo me consome e aos poucos me viro para
Ruslan.
Prendo a respiração, o tempo parece passar em câmera lenta.
Levanto imediatamente as mãos em rendição ao ver Okasana com
uma arma apontada para a cabeça de Ruslan com olhos em mim.
— Não se mexam! — Ela ordena. — Tu és um ingrato, Ruslan!
— Seus olhos se prendem nele que se mantém congelado.
— O que está fazendo,Mamis? — Okasana balança a cabeça
e vem em nossa direção, fico imóvel, porque seus olhos estão
cheios de determinação e qualquer movimento, poderá colocar fima
qualquer um de nós.
Ela passa por mim e Mirom, meu coração bate disparado com
sua aproximação. Okasana para ao lado de Artem, prendendo seus
olhos nele.
— Tudo o que fiz foi por vocês. — Diz, se agachando.
— Abaixa a arma, mãe! — Mirom pede, calmo. — Vamos dar
um jeito nessa situação. — Olho para ele a tempo de vê-lo dar um
comando com os dedos para os policiais que se aproximam, eles
recuam e Mirom volta sua atenção para Okasana.
— Que jeito, filho?
— Um jeito de tudo isso acabar bem. — Insiste, se
aproximando devagar. — Essa situação não precisa acabar em
tragédia.
— Seu irmão atirou em Artem... — Okasana resmunga,
acariciando o rosto do filho. — Ele vai morrer, não vai?
Engulo em seco ao ver seu rosto repleto de dor, lágrimas
escorrem por ele como água corrente repleta de medo. Meu peito
aperta, vendo-a destruída com a possibilidade de ele estar morto.
— Eu não vou aguentar, Mirom... não vou aguentar perder um
filho...
— Mãe... — Ele se agacha à sua frente. — Podemos salvá-lo
ainda.
— Artem está fraco e... Sinto meu coração sendo arrancado
dentro do meu peito... — Declara em prantos. — Eu daria minha
vida por vocês, morreria no lugar de qualquer um, mas não tire um
filhode mim... por favor... não o tire de mim! — Ela se curva sobre o
corpo de Artem com o choro mais doloroso que eu já vi.
— Eu errei, fiz tudo errado quando acreditava fazer o certo...
vocês cresceram, essa foi a única escolha que tive.
— Tu continuaste, Mamis! — Ruslan fala, se levantando e
dando um passo à frente. — Se tivesses parado...
— Não consegui... — Okasana revela, passando as mãos por
Artem. — O prazer do ato me dominou. Quando tu fugiste
, eu fiquei
com medo de a justiça tirá-los de mim, é como se eu estivesse
presa nos anos em que vocês passaram fome.
— Artem pode sobreviver se tu largar a arma. — Mirom afirma.
Ela levanta a cabeça, adquirindo um olhar sombrio.
— Eu nunca te ensinei a matar, Ruslan! — Fala, se voltando a
ele. — Te ensinei a ser um homem integro, trabalhador e honesto,
eu fiz o que fiz para o bem de todos, nunca te ensinei a ser um
assassino.
— Não? Tu me colocaste na prisão, mãe. — Ele retruca,
franzindo a testa e balançando a cabeça, inconformado.
— Você não deveria ter aparecido de novo, era para estar na
cadeia. — Raiva começa a borbulhar minhas veias. — Se
continuasse lá, nada disso teria acontecido. É assim que são os
sacrifícios.
— Mamis...— Ruslan murmura, dando mais um passo.
Seus olhos devastados se prendem nos meus. Ele está
exausto de tudo isso, pedindo desesperadamente para que retirem
a angústia de seu coração. Dou um passo em sua direção,
congelando logo em seguida ao sentir algo gelado encostar na
minha nuca.
Fico imóvel, encarando o rosto pálido de Ruslan.
— E se eu a matar, Ruslan? — Okasana pergunta, prensando
a ponta da arma na minha pele. — O que irá acontecer? Pelo visto
gosta muito dela, não?
— Mãe, abaixa a arma! — Mirom pede, Ruslan apenas
permanece petrificado.
— Tu fariasisso? — Ele pergunta.
— Por que não? Olhe só o que já fiz! — Mantenho minha
respiração calma. — Porém, meu pequeno, o medo de perdê-la não
chega nem perto da perda de um filho.
— Eu sou seu filho também, por que me tratas como se não
fosse?
— Por que tu és um assassino. — Respiro fundo. — Tu
suportaste os momentos mais difíceis, se manteve de pé...
— Não Mamis, a vida que não me impediu de deixá-la. —
Okasana arfa. — Eu tentei acabar com tudo inúmeras vezes...
— Por isso que tenho que ir, pequeno, não consigo mais
suportar essa dor... — Fico em alerta. — Eu te amo e... salva seu
irmão, apesar de tudo ele te ama.
Sinto a arma abandonar minha nuca, fecho e abro minhas
mãos e olho para trás, assistindo Okasana apontar a arma debaixo
do queixo, encarando Ruslan com olhos cheios de lágrimas.
Ele não suportaria essa cena... ela não pode sair ilesa depois
de tudo o que fez, então no segundo seguinte, avanço em sua
direção e afasto a arma dela, que dispara quase me acertando.
O barulho zumbe em meus ouvidos, me desequilibro e caio no
chão, levando Okasana comigo. Ela cai em cima de mim, a empurro
e viro, a procura da pistola.
— Garota estúpida! — Ela xinga, puxando meus cabelos antes
que eu chegue até a arma.
— Maluca! — Devolvo a ofensa, girando e acertando um tapa
em seu rosto, ela me solta e apanho a arma, me levantando e
apontando em sua cabeça.
Minhas mãos tremem e seguro firmea pistola, encarando seus
olhos.
— Não deixarei que se mate, Okasana. — Digo, seus olhos
fervem de ódio. — A morte é muito pouco para pagar pelas
atrocidades que fez. Não é uma punição!
— Eu não entendo! — Ela se levanta, limpando a terra de seu
vestido com tranquilidade. — Não entendo porque gosto de ti!
— Okasana... você me enganou... — Murmuro, magoada. —
Eu estava gostando de você e poderia facilmente considerá-la uma
mãe, mas... tudo o que existe dentro de você é crueldade.
— Não leve para o lado pessoal, querida. — Balanço a
cabeça, indignada.
— Seu filho perdeu tudo por sua culpa, que amor é esse que
mata, engana, mente e finge, Okasana? — Pergunto, mantendo a
arma apontada em sua direção.
— Foi preciso...
— Por isso... — Corto-a. — Por isso que você deve apodrecer
na cadeia, pagando por todo mal que feza Ruslan e as famíliasque
você destruiu. Quero que o arrependimento consuma seu coração,
que a solidão seja tão opressora que você comece a definhar como
uma rosa doente, e a cada pétala perdida, seja a lembrança do mal
cometido.
Okasana fica me encarando por alguns segundos e abaixa a
cabeça, assentindo.
— Quero que tu sejasfeliz... tu és tudo que meu filho precisa.
— Declara, me surpreendendo com sua mudança de
comportamento. — Perdoe-me, Laura, por todo mal que causei,
mas... dói dentro de mim, como se meu coração não aguentasse
mais tantos espinhos. Quero descansar, me livrar da necessidade
de continuar matando para alimentar meus filhos... quero deitar e
poder dormir à noite sem escutar vozes, gritos e grunhidos de dor
das almas atormentadas que enterrei em cada canteiro de roseira
aqui.
— Ruslan não merece isso... — balbucio.
— Tu não mereces isso, querida. Uma mulher tão gentil,
educada, forte e linda... não merece passar pelo que passou... não
merece ser quebrada ao ponto de perder o sorriso.
— Você é mãe dele... você o abandonou! — Okasana nega
com a cabeça.
— Ser mãe é ter no colo o poder de acalmar, no sorriso o
poder de confortar, é rastejar se necessário, é abrir janelas a cada
porta fechada. É o sangue e a pólvora... — Ela dá um passo à
frente.— Ser mãe é errar, pequena, sofremoscalada, no canto e na
madrugada para que nossos filhos não percebam. É se sentir
fracassada ao ver que não pode proporcionar uma vida melhor aos
seus pequenos... somos a escuridão dos sonhos não realizados...
— São meras palavras, porque você nunca o amou de
verdade... — Falo com raiva.
— Como nunca, Laura? Se tudo o que fiz foi por eles!
— Trancafiá-lo em um inferno ainda garoto é fazer tudo por
ele? É egoísmo Okasana, é maléfico em uma proporção
incalculável! — Ela se aproxima, sem se importar com a arma
apontada em sua cabeça.
— Como mãe, eu errei em trancafiar meu filho na cadeia por
crimes que não cometeu... eu quase matei a mulher que ele ama. —
Confessa com olhos presos nos meus. — Fui dominada pelo
sofrimento, pela dor e solidão, fiquei cega, Laura... A crueldade
tomou conta de mim, mas nem por isso eu deixei de amá-lo.
Balanço a cabeça sem acreditar em suas palavras... elas não
me descem! Como uma mãe pode falar desses sentimentos depois
de ter matado várias mulheres, colocado a culpa em seu filho que
tinha apenas dezoito anos e ainda por cima, quase ter enterrado
duas pessoas vivas?
Não consigo ver bondade em seu olhar e muito menos em
suas palavras, tudo o que vejo é uma mulher calculista tentando me
manipular com esse papinho de boa mãe.
Okasana é cruel, é uma assassina!
Fico em silêncio por alguns segundos, lembrando do meu
passado e de como James se vitimizava, dando uma justificativa
para suas atrocidades.
É isso o que Okasana está fazendo, desde que Ruslan
chegou, ela começou a se vitimizar, se culpando e justificando seus
crimes, mas dentro dessa carcaça de corpo humano, só há
podridão... ela tentou tirar Gana de mim... por quê?
Abro a boca para perguntar, mas sou surpreendida com sua
proximidade. Okasana sorri e no instante seguinte, retira a arma das
minhas mãos e me dá um empurrão no peito tão forte que dou
vários passos para trás, batendo as costas na parede.
— Estúpida... — Xinga com a arma apontada para mim. — Tu
és uma mulher muito estúpida, Laura!
— Mãe não! — Ruslan grita, Okasana não desvia seu olhar de
mim.
— Você é desprezível, Laura! — Rosna com tanto ódio que
estremeço. — Se tu não tivesses aparecido, nada disso estaria
acontecendo!
— E continuaria matando e colocando a culpa em Rus... — Me
calo quando começa a gargalhar.
— Primeiramente, ele nem teria fugido... acredito que tu foste
um dos motivos árduos de ele orquestrar sua fuga. Tu devolvestea
esperança que ele tinha perdido... da possibilidade de ser feliz...
tudo, Laura, tudo começou por ti!
— Nada acontece por acaso... — Sussurro, virando a cabeça e
encontrando com o olhar desesperado de Ruslan, Mirom o segura
para que não venha até mim. — O destino sempre trilha nosso
caminho sem que percebemos, se o meu cruzou com o do Ruslan,
foi por um propósito. — Volto minha atenção a Okasana. — E esse
propósito foi te encontrar e te colocar na cadeia, para apodrecer
sozinha por seus crimes. — Ela fica calada por um instante.
— Mirom, mandem seus homens recuarem! — Ela ordena, me
olhando. — Ou eu a mato!
— Tu sabes que não me importaria, certo? — Fecho meus
olhos ao escutá-lo.
— Acredito que Ruslan se importaria, não é, filho? — Olho
para ele, imobilizado por Mirom.
— Não faça isso, Mamis! — Ele pede, com os olhos
carregados de medo.
— Onde tudo começou e onde tudo deve terminar! — Okasana
declara, engatilhando a pistola e dando um passo à frente.
Com o coração acelerado, encaro a arma, colando as costas
na parede, querendo de algum jeito me afundar nela para me
proteger da bala que está prestes a me perfurar.
Fui uma idiota por baixar a guarda quando mais precisava ficar
atenta, ela aproveitou minha distração, jogou sujo.
A mulher diante de mim é ardilosa com um amor pútrido.
— RECUEM! — Mirom grita a ordem para seus homens. —
Agora deixe a Laura vir, mãe, e vamos resolver isso!
— Vá querida, vá até eles. — Diz, inclinando a cabeça para o
lado com o rosto ilegível, engulo em seco. — ANDA!
Desencosto da parede e começo a me afastar. Okasana não
baixa a arma e sei que não me deixará livre. Ela está apenas
brincando comigo, me apavorando a ponto de eu fazer uma loucura
de sair correndo... e está conseguindo.
— Você não vai me deixar ir! — Consto, olhando para Ruslan.
— Eu te amo... — Murmuro, através das lágrimas.
— Mamis, não faça isso! — Ele se solta de Mirom, dando um
passo à frente.
— Tarde demais, pequeno! — Volto meu olhar para ela e
inspiro fundo, assistindo-a apertar o gatilho como se tudo estivesse
em câmera lenta.
Quero tanto acordar desse pesadelo. Acreditei durante anos
que a morte seria o único jeito de me livrar da solidão em que me
encontrava e que matando James seria a chave para minha
liberdade, mas agora vejo que estou fadada a ter esse fim mesmo
optando por sempre seguir em frente.
Ruslan foi tudo o que eu precisava para enxergar a vida de
uma forma diferente, por ele eu soube como é ser tratada com amor
,
de como é ser tocada por um homem que me ama. Ao seu lado,
mesmo que tenhamos passado pouco tempo juntos, eu soube que o
amor pode ser o alívio de muitas dores, mesmo que os traumas
nunca se curem, que as lembranças não se calem. Com amor, tudo
se torna suportável.
O som do tiro quebra o silêncio assim como o grito devastado
de Ruslan, selando meu destino, libertando minha mente e
apagando meu passado.
Só que a bala não penetra meu coração, mas sim o de Artem
que se joga à minha frente. Aconteceu tão rápido que não consegui
perceber seus movimentos. Ele cai de joelhos, Okasana fica
congelada com olhos arregalados como se não pudesse ser capaz
de acreditar que seu filho entrou na frente de uma bala.
— Chega... — Ele sussurra com a voz fraca. — Chega de...
destruir a vida de... Ruslan... — Artem solta um gemido doloroso.
— Por... quê? Por que tu fizesteisto? — Okasana pergunta,
com os olhos cheios de lágrimas, sua mão treme e ela deixa a arma
cair.
— Ruslan... — Artem arfa. — Mãe...
Seu corpo cai para o lado lentamente, Okasana vai até ele e o
segura antes de colidir no chão. Encaro seus olhos que começam a
perder o brilho, sangue escorre de sua boca e de seu peito.
— Não filho,olha para mamãe... fiqueaqui comigo... — Pede o
embalando.
— Médico!!!! — Mirom grita.
Sinto mãos segurarem meus ombros e me girar, fazendo-me
desprender o olhar de Okasana e Artem. Encaro os lábios de
Ruslan movimentarem, mas não consigo escutar sua voz... está
tudo silencioso. Ele me balança para que eu possa acordar, mas a
cena de Artem morrendo no meu lugar se repete inúmeras vezes.
O grito estridente de Okasana quebra o silêncio e uma coisa
estranha percorre todo meu corpo que nenhuma palavra conseguiria
definir, é como se algo rasgasse sua carne... como se algo a
estivesse comendo viva...
É um grito de perda... um grito de uma mãe que acaba de
perder seu filho.
Meu olhar se encontra com o de Ruslan antes de me virar para
trás e encarar Okasana abraçada ao corpo de Artem balançando
para frente e para trás.
No fim, ela acabou matando seu próprio filho que se sacrificou
para que ela não cometesse mais um crime que destruiria seu
irmão. A culpa e as lembranças sempre a atormentará como um
demônio perfurando seu coração a todo instante, e onde um ciclo
começou, é onde outro termina...
Uma nova ferida se abre em meu coração. As sombras da
escuridão encheram a vida do meu irmão. Não existe uma maneira
de voltar atrás e apagar tudo o que aconteceu.
Pouco a pouco o destino foinos trazendo a esse final.Cheguei
ao ponto de estar disposto a atirar em seu peito sem me importar
em matá-lo... me perdi de tão cego que fiquei com ele ameaçando
Laura.
Agora que Artem se foi, as sombras do passado e todas as
lembranças ficarão como um sussurro na calada da noite. Quero
chorar por ele... sofrer por ele, mas fiz isso durante tantos anos que
a única coisa que espero é que sua alma se liberte.
Encaro seu rosto, me despedindo antes de cobri-lo com o pano
branco. Eu tentei severamente encontrar a verdade, voltei para casa
e os persuadi, mas no fundo, desejava que todos fossem inocentes.
Odiamos um ao outro, nos ofendemos e nos acusamos, para
no fim, ter meu irmão morto. Esfrego meus lábios, incrédulo com
toda essa merda.
Se eu venci essa guerra? Não, porque me sinto um perdedor...
um derrotado no meio de um campo de batalha.
Como eles puderam me olhar sabendo da verdade? Como
puderam fazer isso, quando me viam em pedaços?
Eles deixaram com que o mundo me transformasse em um
homem sem esperança e sonhos, meu coração se transformou em
aço, nem uma bala consegue penetrá-lo.
Me sinto vazio por dentro, estou quase no meu limite, toda
minha agonia querendo fazer-me desaparecer, não sei mais o que
sobrou de mim... do que restou do meu coração.
— Sinto muito — Mirom diz, se agachando diante de mim,
erguendo o pano para olhar o rosto de Artem.
— Tu perdeste um irmão também. — Relembro, embora
pareça estar tranquilo com toda essa merda, Mirom está sofrendo
muito mais do que transparece.
Ele sofre em silêncio.
— Foram encontrados corpos por toda parte desse quintal. —
Revela.
Balanço a cabeça, incrédulo com tamanha barbaridade.
— Quanto tempo eu tenho? — Ele respira fundo.
— Te darei dez horas antes de mandar toda a cidade atrás de
você. — Assinto.
— Onde minha mãe está?
— Dentro da viatura, esperando ser levada. — Responde,
sinto seu olhar sobre mim enquanto fico calado. — Quer vê-la?
— Por quais motivos?
— Não sei, últimas palavras? — Me levanto, olhando para o
horizonte.
— Tudo o que precisava dizer, foi dito. — Respondo,
procurando por Laura.
— Ela está sentada na ambulância do outro lado da rua. —
Meneio a cabeça, juntando coragem para ir até ela.
— Se cuide, cara! — Digo com sinceridade, Mirom assente. —
O enterre e... faça nossa mãe pagar pelo que ela fez.
— Farei isso. — Confirma com um olhar inexpressivo.
Respiro fundo, seguro seu ombro em um até logo silencioso e
saio andando em direção à Laura.
Há algo que eu preciso dizer, mesmo que não encontre as
palavras certas... mesmo que minha alma sangre, preciso fazer isso.
Sou um homem condenado com um destino traçado, e a cada
passo me sinto no fundo do poço, sem saída, não tenho esperança
de retornar.
E é assim que me aproximo cada vez do meu fim...

Estou morrendo aos poucos, cada vez que Ruslan se aproxima


de mim. Gostaria que nosso destino não fosse esse, que não
acabasse com sofrimento.
A cada segundo a realidade vai minando o que restou de mim,
tirando de forma dolorosa o homem que me ama e ultrapassou
meus espinhos, que me fez desabrochar quando estava
encolhendo, findando no passado.
Não quero acreditar que dessa vez é verdade... que o adeus
definitivo está estampado em seu rosto, porque agora não resta
nada que nos ligue além da paixão e das lembranças que ficarão.
Me levanto e coloco meu cobertor nos ombros de Yaroslav,
sentado ao meu lado com o braço enfaixado. Seus olhos se
encontram com os meus, depois recaem em Ruslan atrás de mim,
compreendendo que não há mais fuga.
Precisamos colocar um ponto final!
Me viro e vou até ele. Quando me segura em seus braços,
todas as muralhas da minha alma desabam, restando apenas
devastação. Não podemos terminar assim... não irei perder a
esperança de que nosso fim seja o que merecemos.
Ruslan me afasta para que eu possa olhá-lo. Com os
polegares ele limpa as lágrimas do meu rosto. Não é necessário
palavras para dizer quando estamos lendo um no outro todo medo,
toda dor e solidão que nos acomete.
Ele segura meu rosto e se curva, tocando seus lábios nos
meus, beijando-me com delicadeza, deslizando suas mãos por meu
corpo com cuidado como se estivesse verificando se tudo está em
seu devido lugar.
Contorno meus braços em seu pescoço, sentindo o beijo se
tornar mais profundo e intenso. Um nó aperta minha garganta, o
calor de seu corpo colado no meu faz meu coração queimar,
simplesmente não consigo aceitar nosso destino.
O vento traz um novo amanhecer, dizendo que nada
permanece para sempre, que pessoas cruzam nosso caminho com
tempo determinado, sempre com um propósito.
Preciso sufocar a dor enquanto consigo me manter forte. O
doce cheiro da chuva nos invade antes dela cair sobre nós, nos
encharcando, limpando não só a sujeira de nossos corpos, mas de
nossas almas.
Ruslan desfaz o beijo e encosta a testa na minha. O som da
chuva se torna uma canção para nos lembrar de tudo o que
vivemos... uma canção para nunca esquecermos desse momento.
— Tu estás bem? — Pergunta. — Senti tanto medo...
— Eu vou ficar bem. — Deslizo minhas mãos até seu rosto. —
E como você está? — Ele inspira, roçando seus lábios nos meus.
— Vou ficar bem... — Diz, se afastando e tirando meus cabelos
do rosto. — Mais tarde Kliment te entregará uma carta minha, quero
que aceite o que está dentro dela.
— Carta? — Franzo a testa, fitandoseus olhos verdes. — Que
tipo de carta?
— Tu irás descobrir. — Ruslan esboça um sorriso triste. —
Hoje, às seis da tarde, quero que tu vás buscar Olesya no aeroporto
Kiev-Boryspil.
— Quer que eu conte o que aconteceu? — Ele comprime os
lábios, pensativo.
— Até chegar lá, ela já estará sabendo. — Responde. — Ela
tem algo para você.
— Muitas surpresas, não? — Ruslan sorri, beijando de leve
meus lábios.
— Quero que tu continues com sua vida, pequena, sorria
sempre que puder. Saia e conheça novas pessoas, permita que elas
entrem em seu coração. Não se afunde na dor... não mais!
— Ruslan, se você voltar para cadeia eu... — Me calo, quando
seus olhos ficam sombrios.
— Não quero que vá me visitar, Laura, não se prenda a mim.
Isso não é a vida que merece. — Diz, balançando a cabeça. — Tu
mereces muito mais e eu não tenho nada a te oferecer.
— Mas...
— Faça isso por mim, pequena flor. — Insiste, engulo em seco,
fitando seus olhos que sempre estarão em meus sonhos. — Viva e
sorria por mim, porque enquanto eu estiver naquela cela, meus
pensamentos estarão com você.
— Não posso acreditar que esse é nosso fim...— Fecho meus
olhos com força, incapaz de suportar essa dor.
— Quando ficar pesado demais, lembre-se de nossos
momentos, e não importa o que aconteça, eu estarei contigo.
— Por quê...? — Murmuro. — Por que temos que terminar
assim? — Abro os olhos e encaro os seus, cheios de lágrimas.
— Encontrei dentro de ti, Laura, a luz que eu precisava para
me sentir vivo outra vez. Foi sua maneira de me salvar do pesadelo
em que estava preso. — Sua voz sai trêmula através do som da
chuva. — Foi o bastante para sentir a felicidade que tinha perdido,
mesmo que tenha tido tão pouco tempo, foi o suficiente...
— Eu te amo... — Sussurro, devastada.
— Te amarei para todo sempre, não importa quantos anos
passem, eu sempre serei seu. — Ele diz, encarando o fundo dos
meus olhos.
Eu sempre irei esperar por ele, mesmo que o mundo lute
contra, porque nunca superarei o que não pudemos viver. Esse não
será nosso último beijo e muito menos nosso adeus.
Um carro escuro chama minha atenção ao parar um pouco à
frente, meu coração salta de medo. Encontro com seu olhar fixo no
meu rosto como se estivesse gravando em sua memória minha
imagem.
— Chegou a hora... — Nego com a cabeça, não posso aceitar.
— Não... não me diga adeus... — Ruslan me puxa, capturando
meus lábios, a realidade pesa em meus ombros, me afogando na
chuva.
Pressiono meu corpo contra o seu, sentindo sua mão percorrer
meus cabelos. Meu coração luta para manter a esperança de um
amanhã, mas o brilho de seus olhos me mostra que nosso destino já
está traçado.
Ruslan desfaz o beijo e me abraça, enterrando seu rosto em
meu pescoço. Vai ser doloroso abrir os olhos todos os dias e saber
que não poderei vê-lo deitado no meu sofá... ou me entregando
rosas todas as manhãs...
— Cuide do Rony... — Murmura em meu ouvido.
— Darei todo amor do mundo. — Ruslan me aperta antes de
me soltar e recuar alguns passos para trás.
— Sinto meu coração rasgando, Laura. — Balanço a cabeça,
porque é assim que me sinto, como se estivessem arrancando cada
parte do meu corpo.
— Quando a solidão te oprimir a ponto de não aguentar, grite
por mim, Ruslan... Chame por meu nome, porque eu estarei aqui te
esperando, sonhando com o dia em que poderemos ficar juntos,
tentando fazer meu melhor para seguir em frente.
— Adeus, pequena flor... — Ficamos nos olhando, esperando
que tudo mude, que um sinal nos invada e diga que não precise ele
ir embora.
Ruslan se vira e sai andando em direção ao carro, entrando
sem olhar para trás.
Não há nada mais o que fazer, a chama do adeus me queima,
os momentos que passamos nunca desaparecerão, se tornaram
lembranças que reviverei a todo instante. Enquanto o assisto ir
embora para longe dos meus sonhos, minha alma se quebra.
— Finalmente acabou... — Mirom diz, parando ao meu lado,
passo a mão em meu rosto, afastando a água da chuva.
— Você vai atrás dele?
— Sim, apesar de tudo, mesmo que ele seja inocentado pelos
crimes de Okasana, Ruslan ainda é um criminoso perigoso demais
para permanecer nas ruas.
— Ele vai ficar... bem? — Pergunto sem desgrudar os olhos da
direção em que ele se foi.
— Ruslan viveu durante quatorze anos em um lugar em que
poucos suportaria. Ele é forte!
— É tão injusto...
— Nem sempre a vida é justa. — Diz, tocando algo em mim,
olho para sua mão. — Pegue.
— O que é isso? — Seguro um CD sem nada escrito.
— A gravação que mostra o momento em que mato James. —
Levanto meus olhos, encontrando com os seus.
— Por que agora? — Mirom dá de ombros. — Essa gravação
vai adiantar alguma coisa? — Ele sorri, desviando o olhar.
— Eu a persuadi a enterrar James... te ameacei.
— Posso te destruir com isso?
— Pode! — Afirma. — Meu destino está em suas mãos. Irei
ser julgado por assassinato, ocultação de cadáver e ameaça...
pegaria uns dez a quinze anos de prisão. — Ele balança a cabeça.
— Mas você estava me protegendo.
— Entregue à justiça, me denuncie e me veja apodrecer na
cadeia.
— Talvez eu te mande, Ruslan adoraria ter sua companhia. —
Mirom me olha sério. — Esse é nosso segredo, vou deixar guardado
caso precise futuramente. — Bato o CD de leve em seu braço e me
afasto, andando em direção a Yaroslav.
— Ele se foi? — Yaroslav pergunta assim que me sento
dentro da ambulância ao seu lado.
— Sim.
— Hoje percebi o quanto somos sortudos. — Olho para ele,
apertando meus lábios trêmulos de frio. — Nunca mais reclamarei
da minha vida.
— Acho que tenho sete vidas que nem um gato. — Yaroslav ri,
colocando o cobertor em meus ombros.
— Tu és a mulher mais forte que eu conheço. — Ele passa seu
braço por meu ombro também e me leva para seu peito, permito-me
ser aquecida por ele.
— O hospital me ligou, disse que Gana está fora de risco e que
acordou. — Inspiro tão aliviada que lágrimas escorrem por meu
rosto.
— E agora? — Pergunto, encarando vários policiais escavando
o quintal de Okasana que já foi levada para o lugar a que pertence.
— Vamos continuar, só que dando mais valor em nossa vida,
nas pessoas que amamos, fazendo o nosso melhor. — Responde,
repousando a bochecha na minha cabeça.
Fico encarando o horizonte, pensando em como as coisas
acontecem com um propósito, algumas perguntas sempre
permanecerão sem respostas, porque nosso futuro já está escrito,
apenas nosso caminho muda conforme nossas escolhas.
A injustiça muitas vezes permanecerá em cada momento,
escolhendo as pessoas para destroçar... o amor pode curar um
coração injustiçado?
Talvez sim... talvez não...
O amor muda as pessoas... o amor muda o mundo, mas talvez
ele não mude o destino já traçado.
O amor pode nos transformar em pessoas mais fortes, nos tirar
da escuridão e nos renascer da morte, e é por ele que continuamos
tendo fé, acreditando que tudo é possível.
Agora meu amor por Ruslan, é apenas uma lembrança, um
sonho distante... um fantasma na névoa.
Percorro meus olhos pela sala de casa. Por um momento
cheguei acreditar que nunca mais voltaria, ou sentaria no meu sofá
para assistir aos meus desenhos.
Agora, sinto como se estivesse acordado de um longo sonho,
tão surreal que ainda é difíci
l acreditar que seja real. Vou à cozinha
com Rony esfomeado me seguindo.
Desde que cheguei, ele não saiu de perto, acredito ter sentido
tanto medo de me perder quanto senti de nunca mais retornar.
Deposito sua comida no pote e coloco no chão. Agacho e
acaricio seu pelo negro, encarando seus olhos amarelos presos nos
meus.
— Sairei por algumas horas, mas voltarei para você, okay? —
Rony ronrona, desviando seu olhar e focando em sua comida.
Fecho meus olhos ao me sentir nauseada, levanto-me e vou
para o banheiro. Me ajoelho no chão e inclino sobre o vaso,
colocando o pouco que tenho dentro do estômago para fora.
É difícil não sentir enjoo ao lembrar das barbaridades de
Okasana. Levanto-me e vou até a pia, jogo água no rosto e inspiro
fundo, me recuperando da fraqueza que me assola.
Quando vou me sentar no sofá para descansar antes de ir para
Kiev, uma batida soa na porta me assustando. Fico paralisada por
alguns segundos, com medo de quem possa ser. Engulo em seco e
vou atender, encontrando com Kliment recostado no batente da
porta.
Ele levanta o olhar, sorri de leve e estende um envelope em
minha direção.
— Perdoe-me por estar te incomodando, mas Ruslan pediu
para que lhe entregasse isto.
“Mais tarde Kliment te entregará uma carta minha, quero que
aceite.”
Recordo de suas palavras e apanho o envelope, agradecendo.
— Ele só te pediu para me entregar? Nada mais?
— Não, senhora! — Diz. — Preciso ir, fique bem.
— Você também. — Despeço-me dele e fecho a porta, indo até
a mesa.
Fico encarando o envelope, temendo o conteúdo. O abro sem
demora e tiro de dentro, duas chaves - uma de carro e outra parece
ser de uma casa, algo assim.
Franzo a testa, sem conseguir entender o intuito disso. Me
sento, retirando alguns documentos de dentro. Em um post-it, há
algo escrito que faz meu chão ceder.
A chave da sua felicidade encontra-se em suas mãos, é acreditando
nas rosas que a fazemos desabrochar, acredite em ti, Laura!
Sempre a manterei em minhas memórias, lembrando do seu sorriso e
de seus olhos.
Viva, minha pequena flor, como se fosse o último dia.
Floresça e seja um jardim eterno...
Ruslan Rotam
Finalizo com os olhos cheios de lágrimas, deixo o bilhete de
lado e analiso os documentos. Meu coração salta imediatamente ao
notar que é uma escritura de um apartamento na parte nobre de
Kharkiv e os documentos de um... carro?
... quero que tu aceite.
Solto os documentos e enterro meu rosto entre as mãos,
liberando o choro que vinha segurando desde sua partida. Meu
coração rasga, Ruslan me deixou uma casa e um carro antes de ir
embora?
Por que tem que ser assim?
Limpo meu rosto e me levanto, não posso permitir que a
derrota de o ter perdido me abata. Apanho minha bolsa, fecho a
mão em torno das chaves e saio de casa.
Assim que chego na calçada, procuro pelo carro da Caoa
Chery Arrizo 6 preto. Minha boca escancara ao encontrá-lo, me
aproximo sem acreditar no que estou vendo.
— Cacete... — Murmuro, passando a mão nele, admirando sua
beleza. — Mas como... — Me calo, não quero saber como Ruslan
arrumou tanto dinheiro para o apartamento e o carro tão caro.
Ao entrar, ficoainda mais surpresa, é tanta tecnologia que não
sei nem se saberei aproveitar tudo que tem. Coloco minha bolsa no
banco do passageiro de couro, aliso o volante e olho para cima,
para o teto solar.
— Céus Ruslan... — Sussurro, com os olhos navegando pelo
painel e tento ligá-lo, acreditando que talvez terei que usar o manual
de instruções.
Ao conseguir, a câmera traseira é acionada, passo a mão pelo
computador de bordo e a luz ambiente panorâmica é ativada.
Balanço a cabeça impressionada e sigo meu caminho, ainda
incrédula.
A viagem até a capital demora aproximadamente seis horas e
meia, contando com as paradas e o congestionamento que peguei
em algumas partes.
Paro o carro no estacionamento do aeroporto Internacional de
Kiev-Boryspil com o coração na mão. Como será que vai ser
encarar Olesya depois de tudo o que sua mãe fez e da morte de
Artem? Ainda mais que já está em todos os jornais e na internet.
Andry foi o primeiro a publicar as informações após eu repassar em
detalhes o que aconteceu.
Caminho entre as pessoas, subo as escadas e encaro cada
parte do aeroporto tentando achar meu destino. Ruslan não me
falou em que local eu deveria me encontrar com ela e muito menos
de onde ela vinha. Pego meu celular, tento ligar para Olesya, que
infelizmente cai direto na caixa postal.
Fico perambulando sem rumo durante vários minutos, acabo
voltando para a porta principal e aguardando, porque se tem um
lugar por onde ela irá passar, será pela saída.
— Laura? — Olho para trás assim que escuto sua voz.
— Oi! — Ela me lança um olhar triste, respiro fundo e vou até
ela. — Já sabe, certo?
— Sim. — Olesya abaixa a cabeça, segurando a haste da
mala. — Recebi uma ligação de Mirom e Ruslan uma hora atrás me
contando o que aconteceu.
— Sinto muito...
— Tu não tivesteculpa. — Aperto minhas mãos em punhos,
querendo abraçá-la, sei que precisa disso.
Fecho os olhos por um instante tomando coragem de ir
consolá-la e quando volto a abri-los, congelo ao avistar logo atrás de
Olesya uma mulher com os mesmos olhos que os meus.
Minha pulsação aumenta, será que estou vendo coisas? Será
que estou delirando?
Talvez seja os efeitos da noite passada, da tensão de quase
ser morta e dos traumas que ficaram. Eu nem dormi e muito menos
descansei, deve ser isso!
Olho para trás e depois volto, continuando vendo minha mãe,
parada, me encarando fixamente. Seus olhos estão marejados e
vermelhos, pisco tentando afastar sua imagem, que do nada
começou a me perseguir.
— Olesya... — Olho para ela, que sorri dando um passo para o
lado, expondo ainda mais minha mãe.
— A pedido de Ruslan, fui buscá-la no Brasil e a trouxe para
você. — Declara, abro a boca, mas nada sai. — Está na hora de
acertar as coisas, Laura, fugir para sempre não é a solução.
Permita-se perdoar!
Fico encarando-a, Olesya assente como se dissesse que
preciso dar esse passo. Prendo a respiração e meu olhar se prende
em minha mãe, que tem lágrimas por todo o rosto.
Ela envelheceu, mas mesmo assim continua linda...
Ela dá um passo à frente, soltando sua mala. Mamãe ficou
presa durante anos por tentativa de assassinato cometida contra
James, ao sair, feza mesma coisa, o caçando. Ela não o encontrou,
mas eu sim, e hoje ele é apenas uma lembrança de um passado
distante.
O quanto Lívia, minha mãe, sofreu durante esses 15 anos?
— Lauriana... — Estremeço ao escutar sua voz fraca e
trêmula. — Você está tão... linda!
Sinto meu corpo inteiro começa a tremer, meus olhos inundam
de lágrimas. Quando saí de casa, eu era apenas uma menina que
tinha acabado de completar dezoito anos. Fui embora sem me
despedir, sem agradecer por ela ter tentando me proporcionar uma
vida confortável. Fui tão egoísta que não me dei conta de que ela
também sofria, dia após dia se afogando no fracasso e na tristeza,
sendo abusada e agredida por James assim como eu.
Fomos vítimas de um monstro, nos trancando em um mundo
destrutivo, recusando ver além das muralhas.
Quando tentei lhe contar o que ele fazia, ela recusou a
acreditar... a me ouvir. Minha alma pedia por ajuda, eu era uma
criança. O vazio dentro de mim foi devastador, me corroendo
durante anos.
Quantas vezes eu a odiei... não conseguia nem olhar para
seus olhos, repleta de vergonha e mágoa, porque eu estava
sofrendo sozinha, chorando sozinha, despedaçando na solidão e a
única coisa que eu queria, era o abraço da minha mãe.
— Eu... — Tento falar, mas minha voz falha,fechoos olhos por
alguns instantes. — Fui tão machucada que tenho medo de ficar
perto das pessoas, perdi a confiança na humanidade, em homens e
qualquer um que se aproxima, porque minha mente sempre me leva
para as suas ações... eu era apenas uma criança, mãe! —
Confesso, batendo em meu peito. — Era só você sair, que James
fazia aquilo, era doloroso, nojento...
— Filha... — Vejo através dos seus olhos a culpa a corroendo.
— O que eu fiz de errado? — Pergunto. — Por que ele fazia
aquilo comigo, mãe? Por que você não me protegeu? — O rancor
que sinto é tão grande que começa a me sufocar.
— Me perdoa... perdão por a ter negligenciado... eu... — Ela
para de falar, devastada demais pela culpa para encontrar as
palavras certas que justifiquem seu erro.
— Sinto tanta raiva por não ter conseguido me defender... Me
sinto culpada, mãe! — Ela balança a cabeça, inconformada. — Fui
na delegacia, eu ia denunciar, eles não quiseram acreditar em mim
e acabei desistindo da denúncia.
— Você contou, mas...
— Você estava enterrada no álcool e nas drogas para perceber
que sua filha vinha sendo abusada pelo homem que prometeu ser
um pai para mim, que prometeu cuidar da nossa família.— Falo
com raiva.
— Fui cega, filha, me afoguei no assombro do fracasso,
porque eu queria te dar uma vida digna, que tivesse orgulho de mim
e não fosse conhecida como a “filha de uma prostituta
”.
— Nunca me importei com isso, mãe! — Ela se aproxima.
— Mas eu sim. Essa realidade me doía todo instante, uma dor
sufocante. — Mamãe para à minha frente, olhando para dentro dos
meus olhos. — Eu entendo o que você passou, do que sente,
porque eu passei por isso... eu fui... — Ela fecha os olhos e inspira
fundo, tomando coragem. — Você nasceu através de um abuso,
Lauriana.
Fico encarando-a, meu sangue gela ao mesmo tempo sinto
que meu coração não vai aguentar essa revelação.
— Fui gravemente abusada por um dos clientes, um mês
depois descobri que estava grávida. Comecei a buscar meios para
interromper a gravidez, mas um dia passando pela praça da cidade,
presenciei uma mulher com seu bebê, e aquele brilho nos olhos
daquela mulher mexeu comigo. Quando fuifazero primeiro exame e
escutei seu coração, tive a certeza de que jamais poderia tirar meu
bebê. — Ela ergue a mão e traça os dedos trêmulos por meu rosto,
fico imóvel sem saber como reagir. — Você foi a luz para minha
escuridão, jamais poderia lhe contar essa parte suja da sua história,
mas eu te amei desde sempre. Você se tornou uma rocha, mesmo
me afundando na desgraça, fechando meus olhos para tudo o que
acontecia, era em você que me segurava.
— Mãe... — Murmuro, segurando meu choro.
— Quando você foi embora... quando descobri o que ele tinha
feito com você, meu mundo explodiu de ódio, porque o que
aconteceu comigo, se repetiu com você e eu não te protegi. — Ela
balança a cabeça. — Eu tentei matá-lo, Lauriana, queria tanto ter
conseguido, mas me trancafiaram em um presídio, não me ouviram
e deixaram que James se livrasse. A cada dia, supria ódio por ele, e
o que me sustentava era a única certeza de que um dia você
voltaria, que estaria em meus braços de novo, meu pequeno
milagre.
— Ele está morto, mãe... — Confesso. — James me achou, e
teve o fim que mereceu. — Ela fica me encarando.
— Morreu? — Assinto. — Como?
— Por um policial. — Mamãe fecha os olhos, comprimindo os
lábios como se estivesse aliviada.
— Quando você me ligou... — Ao voltar a abri-los, noto um
desespero. — Eu senti tanta saudade... me perdoa, filha,perdoa por
não ter cuidado de você... — Solto um soluço, assentindo, porque
tudo o que eu quero, é deixar essa dor para trás e ter minha mãe de
volta.
Sem esperar por mais nenhum segundo, vou para seus
braços, ela me segura tão forte que é como se tudo o que passei
apagasse da minha memória.
Nosso choro é intenso, minhas pernas fraquejam e nós duas
sentamos no chão, sem desgrudar, uma nos braços da outra. Seu
cheiro... seu calor... era tudo o que mais desejava.
— Eu esperei tanto por esse momento, — ela conta, me
abraçando mais forte — que acho que estou vivendo um sonho.
— Não é um sonho... você está aqui comigo... — Murmuro
entre o choro.
Sentindo seu cheiro, me dou conta do tamanho da saudade
que tanto me machucou por anos. Perdemos muito ao longo da
nossa caminhada, fugi sem dar um adeus, culpando-a muitas vezes
pelo que James fez.
Agora é como um resgate da nossa história, ela sempre esteve
presente na minha mente. Sempre que deitava, era minha mãe que
eu reencontrava nos mais belos sonhos.
Talvez eu esteja apenas sonhando, porque é somente nele que
eu podia a ter... somente em meus sonhos que podia sentir mais do
que um simples toque, onde meu coração ligava ao seu.
— Eu te amo, mãe... muito... muito...
— E eu mais que minha própria vida! — Ela me afasta,segura
meu rosto e começa a depositar beijos carinhosos. — Você voltou
para mim, é o suficiente para me reviver.
— Nunca mais vou te deixar, mãe... — Digo, segurando seu
rosto e sentindo seu calor. — Eu senti saudades! — Ela sorri e me
puxa de volta para seus braços, me embalando como se nada
pudesse nos separar.
Sinto a brisa morna nos aquecendo, levando o frio para longe.
A alegria suavemente solene retorna em meu coração. Depois de
tudo o que passamos e lutamos, chega o momento em que tudo é
esclarecido, as coisas são compreendidas e o passado esquecido.
James não está mais aqui, sua morte não só me libertou, mas
a minha mãe também, tornando mais fácil me entregar ao perdão e
permitir que eu volte ao meu lar, para os braços da mulher que mais
amo na vida, devolvendo minha luz e a minha mãe.
Meu coração aperta ao ver a foto de Laura e Lívia no aeroporto
que Olesya enviou, um reencontro de mãe e filha. Era tudo o que
faltava para que minha pequena flor se tornasse completa.
Uma emoção me abate, infelizmente não poderei viver esses
momentos ao seu lado, mas estarei presente em seu coração, e é
tudo o que preciso para me sentir em paz, como se minha missão
fosse essa, salvar a mulher que amo da escuridão. Estou lutando
contra a dor de nunca mais poder encarar seus olhos azuis, de
sentir seu sabor e de nunca mais poder tocá-la. Não quero voltar
para escuridão, mas percebo que ela fazparte de mim, é tudo o que
sou.
Respiro fundo e encaro a casa que parece mais uma fortaleza
enquanto espero. Nikita através do comunicador instruí todos os
seus homens a agirem.
— Está na hora. — Nikita comunica, respiro fundo eliminando
qualquer sentimento que me faça recuar, minha decisão já foi
tomada. — Tu tens pouco tempo até a SBU chegar. Entre, faça o
que deve ser feito e saia o mais rápido possível.
Solto um suspiro longo com o coração batendo mais rápido,
vibrando contra meu peito como um trovão.
Por anos eu tentei me livrar desse destino de merda, pedindo
ajuda, esperando alguém me tirar desse buraco, lutando para não
me tornar um animal sádico sem sentimentos, mas foi em vão, essa
luta foi perdida, deixei que o obscuro tomasse conta de mim.
Laura conseguiu que eu enxergasse através das sombras, me
mostrou o poder do amor. Não estarei ao seu lado, embora eu
esteja inconformado com esse destino, ela me deu força suficiente
para que eu sobreviva no inferno daquela prisão.
Não consigo escapar dele, agora esse inferno me pertence, faz
parte de mim.
Abro a porta, hesito por alguns instantes antes de descer do
carro. O barulho da luta e dos tiros aumentam, tenho muito pouco
tempo.
Me inclino e prendo meus olhos nos de Nikita, eles estão
ansiosos e ao mesmo tempo calmos.
É a sua vingança e eu sou o meio para que isso se concretize.
— Tu estás se esquecendo disso. — Ele estende o capuz,
nego com a cabeça.
— Cumpra com a sua promessa. — Digo, me despedindo em
silêncio. — Não espere por mim! — Fecho a porta e saio andando.
— Ei! — Nikita me grita, paro e olho para trás. — Meus
homens estarão te esperando para te levar para longe daqui.
— Mande-os para casa. — Falo, ele fica me encarando. —
Não irei fugir.
— Não foi esse o combinado, garoto!
— Nem tudo é o que planejamos. — Nikita se afasta do carro,
franzindo a testa. — Obrigado por tudo o quefizestepor mim.
— Que isso... — Ele ri. — Vamos manter o plano.
— Quando eu entrar, voltarei para meu lugar... — Nikita vira o
rosto ao escutar ao longe o barulho das sirenes que não nos deram
descanso.
Ele volta a me olhar, inquieto, como se lutasse contra si
mesmo para esquecermos toda essa história de vingança, porém
não é apenas a sua, é a minha também, porque o homem que está
dentro daquela mansão, foi o mesmo que me condenou.
Sorrio em despedida e sigo meu caminho.
Retiro a pistola das costas, certifico de que está carregada e
entro na mansão. O que irei fazerme condenará para sempre e isso
destroça meu coração, transformando meus sonhos de estar ao
lado de Laura impossível.
Você me deve uma vida...
Ele a matou na minha frente...
Permito que a frieza me preencha, que o maníaco da rosa
retorne. Caminho pelos corredores e subo as escadas, tudo ao meu
redor passa com lentidão, homens sendo mortos e rendidos por
bandidos de Nikita.
Tudo vira uma bagunça, explodindo aos poucos.
Paro em frente a porta do seu escritório, engatilho a arma e
chuto-a, a escancarando. Entro, percorrendo todo o lugar vazio,
chego até a mesa e olho para baixo.
Com dedo no gatilho, encaro seus olhos, aqueles que me
condenaram mesmo sabendo da minha inocência.
— Lembra de mim, juiz Adam? — Ele franze suas
sobrancelhas encolhido debaixo da mesa e com o rosto pálido. —
Lembra daquele garoto que ajoelhou aos pés pedindo ajuda para
livrá-lo das acusações de assassinato? Lembra de como o tratou?
Adam parece confuso, até encarar meus olhos com mais
atenção. Sorrio quando vejo em sua face o reconhecimento.
— Eu voltei, mas em nome de Nikita Ivashcenko. — Ele
arregala os olhos. — Venho cobrar a dívida.
— Não faça isso, sou um DE, tu irás apodrecer na cadeia. —
Adam diz, apavorado, o que desperta em mim a vontade de
gargalhar.
— Não se preocupe, você já garantiu isso há catorze anos
atrás.
Dentro da prisão vivi uma vida perigosa, me tornei um
assassino, aprendi a trancafiar meus sentimentos, a não ter
misericórdia. Aprendi a ser frio e a me pôr de pé, sempre correndo
contra a maré.
— Ah, ele me pediu para dizer as seguintes palavras. —
Aponto a arma em sua cabeça, encarando o fundo de seus olhos. —
Que você apodreça no quinto dos infernos.
Me sinto imbatível, como fogo queimando tudo por onde
passa. Eles me transformaram nisso, estou aqui para tirar a vida do
homem que me tirou a liberdade.
Me inclino, puxo-o pelo colarinho e o coloco sentado em sua
cadeira. Dou dois passos para trás de costas para porta, esperando
o momento certo, encarando seus olhos apavorados, sentindo
prazer do seu medo.
Adam implora para que o liberte, digo em um sussurro o nome
de sua filha, ele fica imóvel, ainda mais pálido que antes. Escuto
passos e gritos de ordens do andar de baixo.
Nada pode me parar hoje à noite, todos temos uma escolha,
eu fiz a minha, me transformei em uma tsunami deixando apenas
destruição pelo caminho.
Aperto o gatilho. O barulho do disparo se torna uma canção...
um rugido de vitória e de condenação.
— PARADO, AQUI É A POLÍCIA! — Fecho os olhos por um
segundo. — LARGUE A ARMA E LEVANTE AS MÃOS!
Adam inspira uma última vez, observo seus olhos perderem o
brilho, sangue escorre por sua testa. Levanto as mãos em rendição
e solto a arma que cai no chão.
— De joelhos com as mãos na nuca onde posso vê-las! —
Faço como o ordenado.
Escuto passos se aproximando, um dos policiais vestido de
preto, encapuzado e armado se aproxima de Adam, dando um sinal
de que ele está morto.
Um deles para à minha frente, levanto a cabeça quando
aponta uma pistola na minha testa. Ele retira o capuz e me encara
com seus olhos frios.
— Ruslan Rotam, tu estás preso por assassinato. — Mirom
declara. — Tu tens o direito de permanecer calado ou tudo o que
disser poderá ser usado contra ti no tribunal.
Sorrio com suas palavras que selam meu destino.
Estou de volta com minha única companhia, a solidão. Passar
os dias trancado em uma cela, sem tv, apenas costurando para
ganhar algumas migalhas de dinheiro para comprar alguns livros
nunca, foi tão tedioso como agora.
As horas parecem mais longas que o normal, algumas vezes
me encontro agoniado, com pensamentos agitados com medo de
um dia adormecer e esquecer do seu rosto e de todos os momentos
que me fazem manter de pé.
Quando meus pensamentos me levam para um caminho sem
saída, prestes a desistir de tudo, é nela que me apego... é seu
sorriso que me puxa para superfície.
Olho as nuvens se amontoarem, o sol ainda não consegue
aquecer meu rosto, estou congelado, frio por dentro. Fomos
destinados a não ficarmos juntos.
Queria que tudo fosse diferente...
Coloco o antebraço sobre meus olhos, mergulho nas
lembranças e me direciono até Laura. Não quero desparecer, eu só
quero poder voltar para seus braços, sentir o calor de seu corpo e o
sabor dos seus lábios.
Quero me sentir completo outra vez, a dor daquilo que não
pudemos viver me corrói, e atrás das grades vi o tempo passar,
enquanto os dias se tornaram meses, e os meses se tornaram um
ano.
Como ela está agora?
Sinto saudades...
Meses depois de eu ter voltado, minha mãe foi condenada à
prisão perpétua, as acusações dos seus assassinatos contra mim
foram retiradas, diminuindo minha pena para quarenta anos de
prisão.
Segundo eles, os assassinatos que cometi dentro da cadeia
foram cumpridos com os catorze anos que fiquei aqui, ou seja,
esses quarenta anos é pelo assassinato de Adam.
Sobressalto quando o guarda bate nas grades me chamando
atenção.
— Seu tempo acabou, Ruslan, levante-se! — Com uma
respiração funda, me levanto do chão e vou até ele, virando de
costas para poder me algemar.
— Meia hora é pouco para meu banho de sol. — Reclamo,
Volodymyr segura meu braço e me guia pelos corredores.
— É o suficiente para você. — Retruca, carrancudo.
— Onde estamos indo, senhor? — Olho para ele que se
mantém impassível.
— Ande Ruslan, sem perguntas.
Sou levado até a sala do psicólogo, estranho porque não é o
dia da minha sessão... ou é?
Volodymyr abre a porta e me coloca sentado em frenteà mesa
de Olek, que me encara por cima de seus óculos, recostado na
cadeira e com as mãos cruzadas, repousadas na sua grande barriga
me avaliando minuciosamente.
— Boa tarde, Ruslan. Como estás? — Pergunta, fico olhando
para seu rosto rechonchudo, seus cabelos estão mais grisalhos do
que da última vez que o vi, mês passado.
Dou de ombros em resposta, me recostando na cadeira.
— Sua saúde está perfeita.— Ele aponta para os exames que
fui obrigado a fazer. — Gostaria de te colocar junto com outros
detentos, viver solitário não faz bem para sua mente.
— Não me dou bem com pessoas.
— Percebi isso quando esfaqueou Klim. — Abaixo a cabeça,
sem me importar com esse fato, porque o filhoda puta me provocou
durante dias até eu não suportar mais. — Sua pena pode aumentar
por tentativa de assassinato, mal comportamento e pegaria mais
alguns anos de prisão.
— Tu achas que tenho esperança de um dia sair daqui? —
Pergunto, erguendo a cabeça e fixando meu olhar no seu.
— A esperança só acaba quando seu coração para de bater.
— Diz, se inclinando sobre a mesa.
Arqueio uma sobrancelha, comprimo meus lábios e lanço um
olhar entediado em sua direção. Olek respira fundo e se levanta
sem se abalar.
— Por que recusou todas as visitas, Ruslan? — Não respondo,
começo a balançar minha perna já irritado com suas perguntas. — E
as cartas, porque não leu?
— Não tenho interesse em saber o que está acontecendo lá
fora.
— Medo de não poder mais suportar a solidão? — Ele para
diante de mim com um olhar avaliador. — De sentir vontade de sair
daqui? De ser livre?
— Sim — respondo, Olek assente.
— Não tiro sua razão, estar trancafiado aqui é realmente
lamentável, porém, cada um que está aqui fez alguma escolha
errada. — Ele fica me olhando por um longo tempo, tempo demais
para me deixar incomodado.
Olek se afasta, saindo da sala sem dizer nenhuma palavra. O
silêncio toma conta, balanço a perna querendo voltar para minha
cela.
Inclino a cabeça para trás, encaro o teto enquanto espero por
Olek que está demorando a voltar, instigando minha curiosidade.
Percorro os olhos por sua mesa e os prendo na pistola ao lado dos
exames.
Talvez essa seja a única chance que terei para acabar com
tudo. Que diferença faz se eu morrer agora ou daqui a quarenta
anos? Não sairei da cadeia com vida mesmo, qual o sentido de
continuar respirando?
Entretanto, dias antes da minha fuga, eu facilmente tomaria
essa decisão de acabar com tudo, assim como tentei inúmeras
vezes, não teria ninguém chorando por mim, ninguém se importava
se eu estava morto ou vivo, talvez a Olesya fosse a única a chorar
por mim.
Então qual o sentido? Inclino-me um pouco, fitando a arma, me
relembrando do rosto de Laura, ela ficaria arrasada. Mas e se ela
estiver acorrentada a mim? Se mesmo eu estando aqui, esteja a
impedindo de seguir sua vida?
Qual o sentindo de permanecer vivo?
Inspiro fundoe fechomeus olhos, mantendo minha mente sã e
eliminando esses pensamentos que querem me levar a tomar uma
decisão...
— Se matar seria um ato de covardia ou de coragem? — Meus
pensamentos congelam ao escutar sua voz. — Eu escolheria
covardia! — Escuto passos se aproximando, ele passa por mim e se
senta no lugar de Olek, relaxado enquanto me encara com seus
olhos gélidos.
— Acredito que seja um ato de coragem, Mirom. — Ele sorri.
— Fugir de seus problemas nunca é a solução.
— Mas se livrar da dor que corrói, do tormento da nossa mente
dia após dia é algo que ninguém irá entender. — Digo, apontando
para minha cabeça. — Os pensamentos não se calam, as
lembranças nunca vão embora, são como demônios.
— Certo! — Ele ri, como se isso fossepiada, como se a minha
dor fossepiada.
— Tu queres isso, não quer? — Seu sorriso desaparece no
momento em que as palavras saem da minha boca. — Queres que
tudo se cale, mas é covarde demais, estou errado? — Mirom
umedece os lábios e me olha, esboçando aquele sorriso que
desperta raiva em qualquer um.
— Tu estás deplorável! — Declara, recostando na cadeira e
colocando as pernas em cima da mesa, mudando completamente o
rumo da conversa.
— O que faz aqui? — Pergunto, estreitando meus olhos.
— Uma visita de rotina, já que é difíciltu aceitaresuma. — Ele
fecha os olhos com uma tranquilidade irritante.
— Pensei que nunca mais te veria, e aqui está, na minha
frente.
— Nunca é tempo demais. — Responde, soltando um suspiro
impaciente.
— Desembucha logo, cacete! — Mirom ri, no instante seguinte,
Olek adentra na sala e coloca um documento à minha frente, sem
dizer nada, ele se retira, nos deixando sozinhos outra vez.
— Fiquei sabendo que tu esfaqueasteum detento e entrou em
uma briga com mais cinco. Tu és um perigo para sociedade. —
Mirom me olha com tédio.
— O que isso significa? — Aponto com o queixo o papel com
uma caneta em cima, os olhos de Mirom descem até ele.
— Tu já sabes quanto tempo está aqui?
— Quinze anos? — Mirom me lança um olhar frio. —
Aproximadamente um ano. — Respondo, ele assente.
— Pois bem, — Mirom arrasta as chaves da minha algema —
essa é a chave da sua liberdade. — Fico o encarando com o cenho
franzido.
— Como dizes?
— Sua filha precisa de ti, e acredito que já tenha passado
tempo demais aqui dentro. — Fico o encarando, congelado. Suas
palavras dançam em minha mente como um emaranhado de linhas.
— Esse documento é sua liberdade, assim que tu assinares, é um
homem livre.
Sua filha precisa de ti....
Sua filha...
Minha filha...
Fico sem reação quando as palavras se organizam em minha
cabeça, sinto choque percorrer meu corpo e se alojar em meu
coração.
— Como... dizes? — Mirom sorri, se levanta e para atrás de
mim.
— Infelizmente eu lutei durante todo esse tempo para tirá-lo
daqui, então me agradeça sem fazer perguntas de como consegui.
Agora assina sua liberdade e vá viver o que lhe foi tirado.
Pego a caneta assim que ele solta as algemas ainda abalado
com suas palavras. Fico encarando o alvará de soltura que me
concede a liberdade que tanto sonhei. Sem perder mais tempo,
assino o documento e me levanto.
— O que quis dizer com filha
? — Mirom fica me encarando.
— Não quis dizer nada, foiapenas para mexer com sua mente
doente. — Responde, se virando e indo até a porta. — Te espero
na saída, tu ainda precisas seguir o protocolo. — Falando isso,
Mirom sai me deixando sozinho totalmente atônico.
Depois de algumas horas torturantes, finalmente os portões
são abertos para que eu possa passar por eles. Meu coração bate
acelerado incapaz de acreditar que estou livre para sentir e viver
aquilo que fui privado por tantos anos.
Estou segurando minhas emoções, ainda achando que isso é
uma armadilha de Mirom. Fecho meus olhos, inspiro fundo e aperto
minhas mãos, segundos depois coloco os pés para fora do Colony
100.
Cruzo os portões, incrédulo. Viro para trás, encarando a
construção que por anos foi minha casa, me separando do mundo
real.
Os portões se fecham, meu coração salta e meus olhos
queimam de emoção. Consigo sentir o peso da minha liberdade no
bolso em um papel delicado que se transformou em algo tão
precioso que sou incapaz de descrever o que estou sentindo.
Estou livre? Eu realmente estou livre
?
Viro-me para frente, dando de cara com Nikita recostado em
um carro escuro com os braços cruzados, me encarando com um
sorriso escancarado.
— Céus, tu estavas definhando dentro dessa merda! — Diz,
estalando a língua. — Bem vindo de volta, garoto! — Ele vem até
mim, me puxando para seus braços, retribuo sem palavras para
expressar esse momento.
— Se tu fizeresmerda, serei eu quem te colocará de volta
atrás das grades. — Olho para o lado assim que Nikita me solta.
Mirom está inclinado no seu jipe, fumando enquanto encara o
presídio. Ele me olha e sorri com sinceridade.
— Não cruza o meu caminho, não me procura, para você eu
não existo. — Diz, jogando o cigarro no chão e abrindo a porta,
Mirom hesita por um instante e me olha. — Bem vindo de volta,
Ruslan! — Assinto em agradecimento, ele me fita por mais alguns
segundos antes de entrar em seu carro e partir.
Volto a encarar o Colony 100, relembrando todos os anos em
que vivi aqui. Dos momentos de isolamento, das vezes em que me
trancafiaramna solitária, dos dias em que pensei que não teria mais
força para suportar... Mas sobrevivi a tudo isso, consegui provar
minha inocência e além de tudo, descobri a verdadeira felicidade, do
poder de ser amado, de ser ouvido e jamais esquecido.
Lágrimas escorrem por meu rosto. Entrei como um garoto e
estou saindo como um homem prestes a explorar o que o mundo
tem a oferecer, deixando todo o passado para trás.
— Onde queres que eu o leve? — Nikita pergunta ao meu
lado, encarando o presídio, sabendo perfeitamente que foi dentro
desses portões que perdi sonhos.
Fecho meus olhos e inspiro fundo com um único destino...
— Me leve para casa. — Respondo, sorrindo e ansioso para
finalmente ter a mulher que amo em meus braços para sempre.

A sensação de não ter para onde ir, de sofrer a vidatoda em


silêncio,
fugirde qualquersentimentoque aindapossa existirdentro
de mim, era como correntes presas em meus pulsos.
Meu nome é Lauriana Silva da Souza, fui abusada
sexualmente pelo meu padrasto dos meus sete anos até minha
adolescência.
Na época, eu nem sabia direitoo que era sexo. Ele vinha
fazendo aquilocomigo havia um tempo, e eu não entendia o que
significava.
Ele se sentia dono do meu corpo. Me tocava, tirava
minha roupa e depois de tanto lutar, eu me encontrava
completamente entregue às suas ameaças.
O desespero era vivo, pulsante e terrível.Depois do ato,
enojada, ficavahoras no banho tentando me limpar , me sentia
suja... Na frente dos outros, meu padrasto agia como se nada
tivesse acontecido, era um homem bom, sorridente, com vários
amigos, e dentro de casa, um verdadeiro monstro.
O meio de sobrevivênciaque encontrei foi,justamente, me
silenciar
. Eu não tinha coragem de falar
, de alguma forma eu me
sentia culpada e a causadora da situação.
Sempre usava roupas largaspara tentar esconder ao máximo
meu corpo, fazendo-me anular como pessoa, afastando quem
pudesse querer amizade. Porém, de uma coisa eu tinha certeza,
seria os estudos que me tirariamdo infernoem que eu vivia.Essa
era a minha única esperança.
O medo, a angústia e todo o nojo que sentia moldaram a
mulherque me tornei.As consequênciasdo abuso sexualcausaram
uma feridatão grande, que só restou dor por ter sofridoem um
período onde uma criança só deveria brincar. Toda vez em que
minha mãe saia, na calada da noite, ele ia atrás de mim. Meu
coração sufocava de pavor e a minha única reação eram as
lágrimas.
Era apavorante demais,eleameaçava matar minhamãe se eu
contasse a alguém, toda vez que eu apresentava certa relutância
contra os abusos, ele a agredia fisicamente. Eu vivia no inferno, com
um homem que prometeu cuidarde mim como um pai e com uma
mãe alcoólatra.
O abuso é real, muitas vezes existedentro de casa. Dei sinal
do que estava acontecendo, mas ninguém prestou atenção. Eu
apanhava, eledeixavamarcas internas,o ato era doloroso e quanto
mais eu crescia, mas violento ele ficava.
O ódio dentro de mim me fez reagir, tentei denunciar duas
vezes, a primeirame sentitão acuada que desisti.Na segunda, ele
me encontrou antes, pensei que nesse dia eu morreria. Então só
tinhauma saída, estudar, conseguiruma bolsapara fora do Brasile
fugir
.
As marcas do abuso, com o passar do tempo, ficarammais
severas, não suportava ser tocada, perdia confiançano ser humano
e me mantive reclusa. Mesmo fazendo tratamento psicológico, eu
ainda me via presa no passado.
Mesmo me tratando, em minha cabeça, eu nunca conseguia
superar. Mas eu não desisti,eu queria tentar... eu merecia ser feliz
depoisde ter percebidoque não era a culpadapelosabusos, e sim,
uma vítima.
Meu coração estava destroçado... despedaçado ao ponto de
ninguém ser capaz de consertá-lo, até que o amor invadiu minha
casa, pedindo por ajuda, seus olhos perturbados, pediam por
socorro e eu permiti... permiti que entrasse.
Esse amor foia cura das minhas feridas,mostrou o quanto é
bom ser amada. Me torneio centro do seu mundo, pude sorrirsem
medo mesmo que nosso tempo tenha sidopouco, aindaassim,foio
suficiente para eu me redescobrir como mulher
.
As marcas do abuso são como uma tatuagem, nunca serão
apagadas, estão impregnadas na alma. Sei que terão dias que
serão mais difíceis,que lágrimas irão escorrer por meu rosto pela
inocênciaarrancada, pela infânciaque não pude viver e da
adolescênciaque nunca pude aproveitar. Continuareia não suportar
ser tocada e a confiarmenos nas pessoas, e issovaidoer muito.Só
que dessa vez, a dor será menor, as cicatrizespermanecerão em
meu coração e muitas vezes, elas serão as responsáveis pelo
retorno das minhas piores lembranças.
Mas, sobretudo, terei forças para continuar
.
Demorou anos para que eu pudesse falarsobre o que me
aconteceu. Às vezes, me pergunto como seriaminhavidasem que
minhamãe tivesseo levadopara casa, se tivéssemosvividoapenas
eu e ela em nosso mundo, ou se ela tivesse acreditado em mim.
Perguntas que nunca saberei a resposta.
Mães, não coloquem qualquer homem dentro de casa, não
deixemseus filhos com qualquerpessoa, ou irpara qualquerlugar,
sempre acreditemneles.Quando uma criançarelataalgograve, ela
nunca está mentindo. Você é o seu porto seguro, é tudo o que ela
tem. Preste atenção em seu comportamento, qualquer sinal,pode
indicarque há algoerrado. O abuso existee com elevem grandes
marcas das quais são incuráveis.
E para você, que assimcomo eu, foiabusada, te digoque há
esperança, podemos superar essa dor e com ajuda,podemos tornar
essa carga menor. Não temos culpado malque nos fizeram.Não se
calem, não permitam que te destruam dessa maneira, tenham
coragem e denuncie.
Nós podemos ter um final
feliz.
Somos fortes e temos direitoà
justiça,somos donas de nós mesmas e ninguém tem a permissão
de nos tocar sem nossa permissão. Juntas, somos capazes de
vencer esse mal.
E como uma rosa solitária,desabrocharemos em um lugar
cheio de amor e carinho... tenha fé, acredite, o fardo é menor
quando compartilhamoscom o outro... e quando menos esperar, um
sorriso floresceráem seu rosto, mostrando que um novo amanhã
chegou.
Laura, colunista do Jornal AS – Kharkiv
Aperto o enter para enviar a matéria para Andry com meu rosto
molhado pelas lágrimas. Dói saber de tudo o que James tirou de
mim, da vida que eu poderia ter levado sem que ele tivesse entrado
em nosso caminho e destruído tudo.
Ainda tenho pesadelos a noite, mesmo tendo certeza de que
está morto, percorro a casa toda manhã em busca de algum intruso,
sinto repulsa ao toque e não consigo confiar muito nas pessoas,
mantenho apenas meus amigos.
É algo que jamais superarei, porém, agora, é muito mais leve
do que antes, consigo manter minha mente controlada e com a
ajuda de Olesya, consigo seguir em frente.
Ruslan nunca saiu do meu coração e todas as noites chamo
por ele. Choro por ele e sorrio por ele. Tentei mandar cartas, visitá-
lo, mas ele nunca me recebeu. Entendo os motivos que o levaram a
fazer isso, ele não quer que eu fique presa a um homem que não
tem nada a me oferecer, mas o que ele não sabe, é que ele me deu
tudo o que precisava.
Tenho fé de que um dia possamos ficar juntos, nem que seja
um único dia antes do meu coração parar de bater, por isso, todos
os dias eu rezo para que Deus possa trazê-lo de volta.
Tem dias que são mais difíce
is que os outros, que a dor é mais
intensa comparada aos dias anteriores... dias que desejo me
encolher em um canto e ficar definhando até que tudo um dia
silencie de vez.
O que me impede de recair nas profundezas, são seus olhos
verdes como água rasas e cristalinas de uma alma pura que
simboliza vida.
Abaixo a cabeça e encaro seu rosto de anjo, bochechas
rosadas e pele de porcelana. Seu cheiro é o que mais me enche de
amor, que me fortalece dia após dia. Por ela eu me torno mais forte
a cada dia, o melhor presente que Ruslan poderia ter me dado.
Quando ouvi seu coração bater pela primeira vez, tudo dentro
de mim explodiu, a incerteza, a insegurança e a incredulidade me
abateram. Não me movi por dez minutos.
Naquele momento eu me tornei uma mãe... uma mulher
gerando outra vida, e aquele pequeno ser, precisava de mim, mais
do que qualquer um nesse mundo.
Eu me tornaria mãe solteira, como seria capaz de cuidar de
uma criança sozinha? Logo eu, quebrada de todas as formas, como
poderia me tornar mãe?
Mas então, percebi a dádiva que me foi dada. Ruslan se foi,
mas não me deixou sozinha, e quando me dei conta de que teria um
filho, meu mundo explodiu em rosas.
Percorro meus dedos por seu rosto delicado. Quando a tive em
meus braços logo que nasceu, não pude segurar minha emoção.
Ela se tornou meu tudo, o centro do meu mundo, minha vida, o ar
que eu respiro, o coração que pulsa dentro de mim.
Chorei por não ter Ruslan ao meu lado, ele merecia vivenciar
aquela felicidade, a maior do mundo, merecia estar lá comigo, ele
merece uma família que o ame.
Solto um longo suspiro, reprimindo a dor da saudade.
Violeta... pequena violeta... minha pequena flor.
Ela se remexe em meus braços, fico imóvel temendo que
comece a chorar, mas a única coisa que faz é segurar meu dedo
com sua mão.
Rony pula em cima do sofáe se aproxima dela, ficandoperto e
a encarando como se estivesse vendo a coisa mais linda do mundo.
Ele se tornou tão protetor, que quando alguém além de mim e da
minha mãe chega perto dela, ele rosna ao ponto de avançar na
pessoa.
Gana e Yaroslav tiveram a prova do seu ciúme, tive que
segurá-lo para que não os machucassem. Passo a mão em seus
pelos escuros como a noite, tão lindo...
Olho para frente quando mamãe entra na sala com uma
caneca. Ela sorri para mim, estendendo o chocolate que preparou.
Agradeço dando um gole, a bebida desce aquecendo meu corpo.
— Quando você nasceu, me deu muito trabalho também. —
Diz, pegando Violeta dos meus braços. — Sentia muita cólica, mas
o problema é que não queria sair do meu colo.
— Que nem Violeta? — Estico meus braços dormentes,
aliviando a dor de ter ficado horas segurando-a.
— Sim, que nem essa pequena chiclete. — Sorrio,
observando-as.
— Mãe? — Ela me olha. — Hoje faz um ano... — Murmuro,
encarando a caneca com meus olhos queimando. — Dói muito
saber que... o pai dela não está aqui com a gente.
— Filha... — Levanto o olhar, encarando-a através das
lágrimas.
— Eu não consegui tirá-lo de lá mãe... — Fecho meus olhos,
lembrando de todos os advogados que busquei e que não tiveram
sucesso. — Seu silêncio me dói tanto que não consigo aceitar,
entende? — Respiro fundo, voltando a acariciar Rony deitado em
meu colo como se compartilhasse a mesma dor que a minha.
— Acho que nada acontece por acaso, sabe? No fundo tudo
tem sua hora, nem sempre nossos planos coincidem com o
momento que pensamos ser o certo, embora nós não entendemos.
— Assinto, me levantando assim que a campainha toca.
Abro a porta encontrando Yaroslav e Gana parados com
braços cruzados. Percorro meus olhos por suas roupas, arqueando
uma sobrancelha e escondendo a surpresa de ter esquecido do
compromisso que tinha com eles.
— Meus Deus... — Sussurro, olhando para minha mãe em
busca de uma saída, ela apena dá de ombros. — Perdoem-me! —
Digo, voltando a encará-los.
— Tu esqueceste? — Gana cruza os braços. — Yaroslav, é
realmente isso?
— Acho! — Ele responde, balançando a cabeça em
reprovação.
— Violeta passou a noite em claro e o dia todo com cólica,
estou um caco. — Choramingo, me afastandopara que eles entrem.
— Pois bem, Laura, te darei trinta minutos. — Diz, indo até
minha filha, Rony rosna para ela. — Mas que cacete, esse gato tá
de brincadeira né? — Ela se afasta assim que ele desce do sofá.
— Não se preocupe, ele me odeia também. — Yaroslav
resmunga se encolhendo.
— Rony é ciumento com Violeta. — Falo, colocando a caneca
em cima da mesa. — Será que posso remarcar o compromisso? —
Gana me lança um olhar indignado, sorrio sem graça.
— Nem morta. — Fala, apontando para as escadas. — Trinta
minutos.
— Uma hora, porque tenho que arrumar Violeta também. —
Pego minha pequena dos braços da minha mãe.
— Ótimo! — Yaroslav se senta no sofá, olho para eles mais
uma vez antes de virar e subir os degraus.
— Dona Lívia, a senhora também. — Gana fala com calma
para que minha mãe possa entender, apesar de ter aprendido um
pouco do Ucraniano, ela ainda tem muita dificuldade de
compreender muitas palavras, até porque, não é uma línguafácilde
aprender.
Um ano atrás, antes de Ruslan voltar para cadeia, ele me
deixou esse apartamento e quando o visitei pela primeira vez, fiquei
admirada ao perceber que é uma cobertura, muito luxuosa.
Uma hora depois dirijo em direção à Praça da Liberdade para
uma exposição de flores que Gana e Yaroslav insistiram que eu
fosse.
Ajeito minha pequena no carrinho de bebê, cobrindo-a para
que não passe frio e olho para a praça enfeitada com luzes, flores
de todas as espécies, rosas de todas as cores e crianças correndo
por todos os lados.
Meu coração aperta, Ruslan iria gostar de vir aqui, esse é seu
mundo.
Gana e Yaroslav engatam em uma conversa, eu respondo o
essencial, prestando atenção em cada detalhe. Paro em frente à
uma barraca completamente enfeitada com rosas vermelhas, tão
perfeita que meus olhos marejam, pisco para dissipar as lágrimas da
saudade.
Uma babushka com um lenço na cabeça vestida com roupas
bordadas me olha de dentro da barraca, sustento seu olhar que
desce para minha filha dentro do carrinho.
— Não se entristeça, ainda não é o fim.— Diz, me entregando
uma rosa com um sorriso lindo. — Não duvide do poder de Deus,
criança. — Aceito a rosa e saio andando com meu coração
palpitando.
— Tudo bem, filha? — Mamãe pergunta ao meu lado, assinto
e sorrio para tranquilizá-la.
Paro para observar Yaroslav e Gana em uma barraca de flores
violeta, olhando para mim com sorrisos escancarados.
— Tu deste um nome perfeito a essa pequena. Olha que
lindas! — Gana ergue um vaso com violetas escuras com detalhes
mais claros. — Eu vou levar. — Ela diz, entregando para a
babushka que agradece pela compra.
— Laura, venha aqui, precisasver isto! — Yaroslav me grita,
olho para Violeta que remexe suas perninhas.
— Vá, eu fico aqui com ela. — Mamãe diz, assinto e vou até
Yaroslav desviando das pessoas pelo caminho.
— Estou embasbacado! — Sigo seu olhar ao parar ao seu
lado, diante de nós há uma barraca de margaridas das cores rosa,
amarela e branca, meus olhos brilham de tamanha perfeição.
— Magnífico! — Elogio, Y
aroslav confirma.
— Vamos tirar foto da Violeta aqui, vai ficar linda, o que acha?
— Olho para ele, sorrindo.
— Uma flor em volta de várias outras, assim meu coração de
mãe não aguenta. — Ele ri. — Vou pegá-la!
— Vou esperar, porque vai que é só uma miragem?
— Claro que não, Yaroslav! — Repreendo batendo a rosa em
seu nariz.
Quando viro para ir até Violeta, paraliso ao ver um homem
agachado em frenteao seu carrinho. Meu sangue gela, olho para os
lados em busca da minha mãe e de Gana.
Como minha mãe pôde deixar minha filhacom uma pessoa
desconhecida?
Engulo meu medo e dou um passo à frente, pronta para
afastá-lo da minha bebê, mas então paro outra vez, congelando
quando ele se levanta e se vira, cravando seus olhos nos meus.
Não consigo ver seu rosto por conta do capuz, minhas mãos
começam a tremer e meus olhos se enchem de lágrimas
observando-o tirá-lo, tudo ao meu redor se silencia.
Durante um ano lutei para tê-lo de volta, fizde tudo para que a
esperança não desaparecesse, que os pensamentos que insistiam
em dizer que ele não voltaria me libertasse... que me deixasse.
Não fui capaz de aceitar seu adeus, tenho o direito de tê-lo ao
meu lado depois de tudo o que passamos, de lutar para que isso
aconteça, porque eu sei que no fim valerá a pena, que a dor que
sinto desaparecerá.
Muitas noites longas, deixaram-me sem forças para continuar.
E através dos sonhos eu via seu rosto, me devolvendo a esperança
e me dando motivos para continuar.
Será que é mais um sonho?
Dou um passo vacilante em sua direção, incapaz de dizer
qualquer coisa, não tenho palavras.
— Te encontrei... — Ruslan diz, fecho meus olhos sentindo sua
voz percorrer cada parte do meu corpo, se alojando em meu
coração.
Se for um sonho, por favor
, que seja eterno.
Volto a abri-los, percebendo o quanto está perto com o olhar
fixo no meu. Tenho tantas perguntas, mas só quero ter certeza de
que ele realmente está aqui.
Abro a boca para perguntar, mas Ruslan me cala ao segurar
minha nuca e levar-me para seus lábios. Meu coração explode ao
sentir seu calor e seu sabor, seguro seu rosto beijando-o como se
nada no mundo fosse capaz de nos separar outra vez.
A maneira com que me beija, com que me segura me tira
todas as dúvidas de que possa ser um sonho, é real, ele está aqui
comigo e toda essa luta termina aqui, vencemos o que tendia a nos
separar.
Ruslan desvencilha dos meus lábios, encostando a testa na
minha, sua respiração acelerada se mistura com a minha. Fecho
meus olhos, memorizando seu toque.
— Você voltou...
— Te encontrar era minha missão, meu destino é pertencer a
você. — Mordo meu lábio inferior, segurando o choro.
— Senti tanta saudade... — Olho para seus olhos verdes que
foram capazes de me salvar da solidão.
— Eu também, estava definhando... — Murmura, segurando
meu rosto e afastandomeus cabelos. — Sou um homem morto sem
ti, Laura.
— Você permaneceu em meus sonhos, no meu sorriso e na
certeza de que um dia iriamos ficar juntos. — Limpo suas lágrimas.
— Você está livre?
— Sim...
— Co-omo? — Ele sorri, entrelaçando os braços por minha
cintura.
— Mirom... só não me pergunte como, não faço ideia. — Fico
olhando para Ruslan.
— Ela é a sua cara... — Seus olhos brilham. — Violeta...
pequena Violeta... sua pequena flor... — Ruslan solta uma risada tão
linda que lágrimas caem por meus olhos.
— Minha filha... nossa pequena? — Pergunta sem acreditar,
assinto, o empurrando em direção ao carrinho, ele se vira e agacha,
afastando os cobertores para poder ver melhor sua filha.
— Quando Mirom disse que eu tinha uma filha, tudo se calou,
depois o babaca disse que tinha mentido. — Ruslan a pega e eu o
ajudo a segurá-la da forma correta, ele ri através do choro. — Nikita
confirmou, eu... eu não sei o que sentir, é uma emoção tão grande
que não sei se cabe em meu coração.
— Esse amor não tem explicação... — Digo, ele me encara
com Violeta em seus braços.
— Eu estive me perguntando por muito tempo o significado de
tudo o que estava acontecendo comigo, tentando entender meu
destino, mas agora acredito que tudo aconteceu para que meu
caminho cruzasse com o seu... com um propósito. — Ruslan se
aproxima, fitando o fundo dos meus olhos. — Propósito esse de te
devolver a vida. — Sorrio.
— Quando você invadiu minha casa, Ruslan, no instante em
que tomei a decisão em te ajudar, esse foi o momento em que
nosso destino foi traçado. — Ele fica me olhando, até ser atraído
para Violeta que remexe em seus braços, prestes a chorar.
— Ei, é o papai! — Ruslan sussurra, lavando-a para o seu
peito. — Estou aqui, pequena flor, para te proteger de todo mal... —
Sorrio, emocionada e sem acreditar que isso está acontecendo. —
Eu daria minha alma para voltar atrás... — Ele fala, voltando a me
olhar. — Reviveria tudo outra vez se significasse te salvar da
escuridão. Eu voltaria e então você estaria em meu caminho de
novo.
— Eu te amo... — Murmuro, encostando a testa na sua.
— Obrigado... Obrigado por me fazer o homem mais feliz do
mundo, amo-te. — Ruslan roça os lábios nos meus, Violeta solta um
suspiro, nos fazendo sorrir.
Vivemos por anos na dor, tivemos nossas almas quebradas e
nos decepcionamos, vimos o horror no infernode nossas vidas, mas
conseguimos vencer o mal que nos torturava.
As cicatrizes permanecerão como lembranças, tudo acabou,
chega de lágrimas, estamos juntos agora. Ruslan está aqui, com a
família que formou e nada no mundo será capaz de nos separar.

Ele se inclina e deposita um beijo na cabeça de Violeta,

me olhando logo em seguida. Vejo em seus olhos tudo o que

tivemos que passar até chegar aqui, e esse não é o nosso fim, mas

o começo de uma nova história.


Escrever esse livro foi um desafio tratando de um tema tão
delicado, Laura e Ruslan me tocaram de uma forma tão única que
nem sei explicar. Me deram uma lição de força e superação, me
levando muitas vezes aos prantos, sem conseguir me pôr no lugar
dos dois.
E nada disso teria acontecido sem a ajuda da Carina Barreira,
que a cada capítulo vibrava, me incentivava, apontava os erros e
onde eu deveria consertar. O final foi reescrito umas três vezes até
acertarmos o desfecho perfeito para o vilão.
Obrigada amiga, por estar comigo em mais uma obra, nada
disso seria possível sem sua ajuda, sem seus e-mails de
madrugada e sem seus puxões de orelha.
Outra pessoa que devo meus agradecimentos é a Mariana,
minha amiga, que me escutou quando decidi escrever Intensa
Paixão, ouvindo minhas ideias, me ajudando a encontrar o vilão, me
incentivando e motivando.
Mariana, nada disso teria acontecido sem ter você ao meu lado
também, obrigada por tudo.
Carina e Mariana, eu amo muito vocês.
Agradeço a Deus por tudo o que está fazendo em minha vida,
por ter me ajudado a criar essa história, tentando ao máximo trazer
uma trajetória tocante, poética e que desse significado. Era ele que
eu pedia para ficar ao meu lado todos os dias, às 03:00 da manhã
quando começava a escrever, juntos criamos a história de Laura e
Ruslan. Pai, obrigada por estar ao meu lado, escutar minhas
reclamações, sei que às vezes até revirava os olhos para os meus
dramas, por enxugar minhas lágrimas, mas sobretudo, por estar
sempre me ajudando a levantar e superar meus medos.
Agradeço à minha família,namorado, meus irmãos, meus pais
por sempre me apoiarem. Aos meus leitores fiéis, aos bookstagram
por resenharem minhas obras e por ajudarem divulgando para que
mais pessoas possam conhecer minhas histórias. Aos leitores do
wattpad que me incentivam sempre com seus votos, leituras e
comentários, e a você que leu Intensa Paixão e que está lendo esse
agradecimento.
"Viva, pequena flor, como se fosse o último dia.
Floresça e seja um jardim eterno...”
E com essas palavras me despeço de você com meu coração
repleto de gratidão.
... É acreditando nas rosas que a fazemos desabrochar, acredite em
você e desabroche...
Até o próximo!
[1]
Aciaria é a unidade de uma usina siderúrgica onde existem máquinas e
equipamentos voltados para o processo de transformar o ferro gusa em diferentes
tipos de aço.
[2]
Moeda Ucraniana
[3]
Casa noturna
[4]
SBU – Serviço de segurança da Ucrânia – é a principal agencia de
segurança do governo nas áreas de atividade contra espionagem e combate ao
terrorismo.

[5]
Borsch é uma “sopa” de vegetais de beterraba como ingrediente
principal. Os Ucranianos não se referem a borsch apenas como sopa, mas como
uma das mais importantes entre as refeições.
[6]
Kompot é uma bebida não alcoólica originária da Rússia, mas popular
na Europa de Leste, que se prepara cozendo frutos, frescos ou secos, em um
grande volume de água.
[7]
É um bolinho de massa feita de água, sal e trigo, recheado com carne,
purê de batata e muitos outros. É um prato muito comum no dia a dia Ucraniano

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