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Copyright © 2021 Luana Oliveira

Todos os direitos reservados.

Título: ENCONTRE-ME NA NEVE


Escrito por Luana Oliveira

Capa (arte): G.B. Design Editorial


Diagramação: Luana Oliveira

Proibida a reprodução, no todo ou em parte, através de quaisquer meios, sem o consentimento


do(a) autor(a) desta obra.

Texto revisado conforme o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

Esta obra é uma ficção. Personagens, lugares e acontecimentos são produtos da imaginação do
autor e não possui relação com a realidade. Quaisquer semelhanças com pessoas e acontecimentos
reais é mera coincidência.
NOTAS INICIAIS:
Antes de você iniciar essa leitura, caro leitor, preciso te dar alguns avisos importantes.
Primeiramente, essa história é o segundo livro de uma série denominada The Hurricane Freedom,
onde cada livro contará a história de um integrante do MotoClub. O primeiro livro da série se chama
Encontre-me No Parque e você poderá encontrá-lo aqui na Amazon e no Kindle Unlimited também.
Mas, caso você não tenha lido, não precisa se desesperar, pois são livros independentes e podem ser
lidos fora da ordem. Mas, eventualmente, irá se deparar com possíveis spoilers.
Esse livro é +16 e poderá conter gatilhos referentes à bullying na infância, violência e perdas
familiares. Nada será explícito, muito menos romantizado. Caso seja sensível a esses assuntos,
mesmo que tudo seja abordado da maneira mais leve que possa ser possível, recomendo que preserve
a sua saúde mental em primeiro lugar.
Dito tudo, espero que tenham uma ótima leitura e se divirtam muito com o mundinho anos 90 e
jaqueta de couro.

Redes Sociais:
1. Instagram: @autoraluanaoliveira
2. Twitter: @autoraluanaoliv
3. Wattpad: @autoraluanaoliveira
Eu não sou bom com datas.
Na verdade, sou a porra de um filho da mãe esquecido para um
caralho.
Por mais que eu faça uma força extracorpórea para lembrar a data do
aniversário dos meus melhores amigos, sempre acabo esquecendo. Todos
eles sabem disso, já estão completamente acostumados de eu simplesmente
não falar um parabéns se quer no dia deles. Como se já não bastasse isso,
quase sempre me perco em que dia do mês nós estamos, o que acaba
resultando no esquecimento do dia dos pagamentos das contas de casa ou
algo parecido com essas merdas. É estúpido, eu sei.
É completamente ferrado.
Mas o quão ferrado eu estou agora se disser que lembro perfeitamente
da data que os meus lábios tomaram os dela pela primeira vez? O quão
ferrado eu estou agora se disser que lembro perfeitamente que no dia 19 de
setembro de 1993 a minha boca alcançou o céu ao se chocar com o
vermelho vibrante adornando os lábios voluptuosos dela?
Céus, isso faz meses!
Eu, com toda certeza do mundo, deveria ter esquecido.
Mas a verdade é que não aconteceu. Eu lembro da data e de todas as
pequenas coisas que compuseram aquela noite. Aquela maldita festa.
Ela estava completamente deslumbrante em um vestido justo e
vermelho que, diga-se de passagem, sempre fora a sua marca registrada. O
vermelho combina mais com ela do que qualquer outra cor, talvez por ser
um tom quente, que ressalta a cor dos seus olhos castanhos e ferinos,
visivelmente parecidos com o de um gato. Ou talvez por
contrastar fodidamente bem com a cor de fogo dos seus fios,
transformando-a numa linda obra de arte que traz associações com emoções
intensas e provocativas. Seu sorriso também estava tão radiante quanto, mas
desapareceu feito fumaça assim que a alcancei no lado de fora da festa, em
um jardim bem cuidado e repleto de flores. Nossos olhares faiscaram
naquele momento, e se eu fizer um pequeno esforço, posso sentir agora
mesmo a forma como meu corpo reagiu ao ser contemplado pelo seu olhar
que, de fato, é matador.
A verdade é que Pasha Stratford por completo é matadora.
Ela não brinca em serviço. Seu nariz é empinado e arrebitado, sua
postura é impecável e seus passos são confiantes e certeiros. Ela tem ciência
do poder que exala e do modo como todos param para orbitar ao seu redor,
como se ela fosse o próprio sol andando em terras estadunidenses. E eu
sempre soube disso, eu sempre soube do poder magnético da ruiva. Sempre
soube que mexer com ela seria perigoso, afinal, quem brinca com fogo um
dia se queima. Mas, apesar disso, quis ver as chamas bruxuleantes de perto.
Naquela noite de setembro eu quis descobrir com os meus próprios olhos o
que aconteceria quando o fogo se juntasse à gasolina num embate épico.
E óbvio que o resultado foi um incêndio generalizado.
Pasha e eu brigamos, assim como todas às vezes em que nos
encontramos. Diferente de todas as outras, essa ela estava furiosa mesmo,
completamente furiosa. Seu rosto fervia em raiva e sua boca não parava de
jorrar coisas absurdas sobre mim. Em uma atitude impensada e desesperada
da minha parte, já que eu estava de saco cheio de ouvi-la
gritar, colidi minha boca na sua, pronto para fazê-la se calar. No começo
deu certo, Pasha ficara de forma estática e sem esboçar reação alguma, e
quando eu pensei que fosse se separar ou dar um tapa no meu rosto, a única
reação que recebi por parte dela foram os lábios cheios se entreabrindo para
dar passagem a minha língua desesperada e completamente faminta.
— Perdeu a porra da noção? — esbravejou, assim que nos separamos
para recuperarmos o fôlego. — O que te levou a pensar que pode fazer isso?
O que te levou a pensar que pode simplesmente me beijar?
Lembro que abri a boca para retrucar, mesmo que não soubesse muito
bem o que iria ou deveria sair dela. Lembro que recuei um passo para trás
ao me perguntar que merda tinha feito ao beijar a garota que me desprezava
mais que tudo. E, definitivamente, lembro muito bem que no segundo após
a sua frase, apertou o passo para ficar novamente em minha frente e
entrelaçou seus pulsos finos em meu pescoço, beijando-me como se sua
vida dependesse daquele momento para prosseguir.
Naquela noite, Pasha Stratford, que veio diretamente do Alasca só
para bagunçar a minha vida, derrubou os muros erguidos ao seu redor e me
deixou finalmente alcançá-la. Me deixou finalmente degustar do que é
alcançar o céu.
E isso é tão irônico de se dizer.
Pois ao mesmo tempo que ela me fez estar lá em cima, desfrutando da
sensação libertadora junto a ela, também me fez decair diretamente no
inferno.
E isso só por nunca mais, a partir daquela noite, conseguir encontrar
outros olhos que carreguem o diabo dentro deles como os dela.
O Alasca sempre foi o melhor lugar do mundo para mim. Eu amava
o frio, amava observar os flocos de neve caindo sobre a pontinha do meu
nariz, amava sair para fazer anjinhos na neve, amava patinar nos lagos
congelados perto de casa e, sobretudo, amava ter uma xícara fumegante de
chocolate quente em mãos enquanto me enfiava nas cobertas junto da
minha irmã mais nova para assistirmos a algum desenho que fosse fazê-la
feliz ou até mesmo para somente escutar sua risada contagiante e melodiosa
nos momentos em que decidia apertar suas bochechas gorduchas e
sardentas quando desviava seu foco da televisão.
Até que, em um determinado momento, o Alasca se transformou em
um purgatório para mim no exato momento em que uma força superior
decidiu, de uma forma totalmente injusta, que só ele poderia ter o prazer de
escutar aquela risada novamente. Afinal, Penelope Stratford, minha
irmãzinha, descobriu a Leucemia aos seis anos e falecera aos sete,
deixando-me completamente quebrada, destroçada, sozinha e sem
perspectiva nenhuma de futuro. Eu me vi, de uma forma totalmente crua,
vivendo no fundo daquelas águas gélidas de um lago congelado, onde toda
vez que eu olhava para cima, não conseguia ver uma saída, já que uma
camada expeça de blocos e mais blocos de gelo cobriam a superfície, assim
como cobriam a minha vida, impedindo-me de sair daquela situação
taciturna que o destino fez questão de me enfiar.
E assim que Penelope se fora, mesmo eu sabendo que seria melhor
para lhe poupar tanto sofrimento neste mundo terreno, ainda assim fui
egoísta. Eu a queria perto de mim. Eu queria escutar sua risada, seus
conselhos sábios demais para uma criança pequena, as histórias fantasiosas
que circundavam sua mente brilhante e, claro, queria ela perto de mim para
que pudéssemos conversar e debater sobre borboletas, seu assunto favorito
no mundo todo. Mas como nada disso era possível mais, a única coisa que
consegui fazer para suprir a sua falta foi me tornar uma pessoa
completamente diferente, uma pessoa vazia e sem coração. Eu me tornei
uma completa vadia má e dei um giro de trezentos e sessenta graus na
minha vida, frequentando festas de uma classe social diferente da minha –
uma coisa que nunca poderia ser permitido para uma pessoa com um
sobrenome de peso como o meu —, me envolvendo com caras da pesada e
todas as coisas que uma rebelde sem causa faria. Por causa disso, meus
pais, que são completamente compenetrados com regras e etiquetas sociais,
além de que também estavam tentando processar o luto da maneira deles,
acharam, assim como toda a minha família, que eu estava tentando chamar
atenção de alguma forma e resolveram intervir, me mandando para morar
com o meu tio David Wilson e a sua esposa chamada Rosalinda, em uma
cidade chamada Hellaware, que fica situada no estado da Carolina do Sul.
Como David e Rosalinda são donos do Fast Rocket, uma lanchonete que
fica dentro de um parque de diversões super famoso, meus pais não
pensaram duas vezes em pedir para que eu trabalhasse como garçonete,
alegando que isso faria com que eu conseguisse pôr mais juízo dentro da
minha cabeça.
Faz um ano que estou em Hellaware e, definitivamente, não sei se o
meu trabalho ou qualquer coisa nessa cidade foi capaz de colocar juízo em
mim, mas o que sei é que tive uma evolução considerável aqui,
principalmente por ter me aberto a amizades e pessoas incríveis que, com
toda certeza, foram essenciais para que eu pudesse conseguir cicatrizar pelo
menos um pouco da ferida que há em mim, dando-me amor como ninguém
nunca havia feito antes. Exceto Penelope, claro. Pois apesar de ser rica e
influente na cidade em que morava, nunca considerei que as pessoas que eu
andava fossem minhas amigas, achava que elas só queriam o cargo e o
poder de estar com uma garota como eu. E meus pais? Bom, meus pais
nunca olharam para mim como filha, eles sempre me viram como uma
sucessora, uma garota que, em pouco tempo, irá herdar todo o império
construído por eles. Quando minha irmã ficou doente, todo o pouco afeto e
cuidado que pareciam demonstrar por mim, simplesmente sumiu. Mila e
Joseph passavam o tempo corrido deles cuidando de Penelope e eu, em
hipótese alguma, jamais ousei cogitar que aquilo não deveria acontecer. Se
alguma de nós duas merecia receber amor, esse alguém definitivamente
deveria ser ela, não eu.
Solto uma longa e densa lufada de ar e mexo a cabeça de um lado
para o outro, tentando não começar a chorar por me recordar de Penelope e
do meu passado conturbado. Inflo o ar nas bochechas e flexiono os joelhos,
direcionando meus passos até o meu guarda-roupa, a fim de escolher as
roupas para a festa de hoje, que acontecerá no rancho dos
The Hurricane Freedom, o MotoClub mais famoso da cidade e que, de
alguma forma aleatória, acabei meio que fazendo amizade.
Ok, não foi de uma forma tão aleatória assim, afinal, sou uma das
melhores amigas de Barbie St. Claire, a namorada do líder do bando e,
querendo ou não, estou sempre cercada pelo mesmo círculo de amizade.
Escolho um curto vestido de alcinhas, que tem uma estampa de
xadrez em tons de vermelho e preto, e também um blazer de um vermelho
vivo para repousar sobre os meus ombros, além de escolher um par de salto
alto brilhante e acessórios tão brilhantes quanto. Desfaço o nó do meu
roupão e ele cai sobre meus calcanhares, deixando-me apenas de calcinha.
No segundo seguinte, já estou me enfiando nas peças escolhidas e indo
saltitante sentar na cadeira da minha penteadeira, pronta para fazer uma
maquiagem esplêndida que ressalte e delineie a minha boca carnuda e que
também deixe meus olhos castanhos ainda mais bonitos. Quando isso
acontece, pego um guardanapo em uma das gavetas e tiro o excesso do
batom cor de vinho, batendo palminhas assim que vejo o resultado.
Amo o fato do ruivo do meu cabelo, que agora está ondulado nas
pontas por conta dos bobs de mais cedo, combinar tão bem com todo o
vermelho que me cobre.
Quando estou prestes a me levantar, escuto leves batidinhas na porta
trancada do meu quarto. Em um pulo rápido, já estou abrindo-a e dando de
cara com Barbie St. Claire e Georgina Sinclair, completamente arrumadas e
com sorrisos adornando seus rostos.
— Meu Deus! — é Barbie quem diz, ou melhor, quase grita. Sua boca
está entreaberta e os olhos azuis estão analisando-me dos pés à cabeça.
Aproveito da oportunidade para fazer isso com ela também, observando
minuciosamente o modo como está vestida hoje. Há uma jaqueta jeans
clarinha abraçando seu corpo pequeno, o colarinho da mesma é daqueles
felpudos em um tom de branco gelo. A blusa por dentro dela também é
branca e tem a cara do Elvis Presley estampada, além de que tem uma saia
de pregas de um tom de rosa choque quase não cobrindo suas pernas
torneadas e sapatos de plástico da mesma cor enfeitando seus pés, meias
brancas com babadinhos deixando-a ainda mais fofa do que já costuma ser.
Sorrio e olho para seu rosto, mas nada de maquiagem forte ou exagerada
está visível por ali. Eu chutaria que só passou blush nas bochechas, máscara
de cílios já nos cílios fartos e um gloss brilhoso nos lábios. Seu cabelo, que
é de um loiro dourado e bem volumoso, liso e ondulado nas pontas, está
cascateando sobre seus ombros. Depois que parece realmente terminar de
me analisar assim como eu fiz, eleva os lábios em um sorriso genuíno e
fala: — Você está maravilhosa, Pasha Denise Stratford!
Rolo os olhos quando escuto meu nome completo sair deslizando pela
sua boca. Sei que está provocando, por isso retruco:
— Até que você também não está nada mal, Barbara. — Antigamente
ela não gostava muito que a chamassem pelo nome completo por motivos
pessoais, então é por isso que força uma risada e me dá língua no minuto
seguinte.
Georgina, atrás de Barbie, pigarreia, chamando nossa atenção.
— O quê? — pergunto, arqueando uma sobrancelha para ela.
— Detesto quando as duas fingem que eu não existo — responde, e a
sua expressão emburrada é a melhor, pois até o biquinho de criança e os
braços cruzados estão presentes na encenação. — Eu sempre tenho que ser
notada primeiro, está bem? Meu ego fica muito ofendido e eu não sei lidar
com rejeição.
Tanto eu quanto Barbie rimos na mesma hora com o seu drama, águas
cristalinas formando-se em nossos olhos. Pisco algumas vezes na tentativa
de pará-las, uma última risada escapando dos meus lábios.
— Isso tudo por um elogio, G? — questiono, achando graça. —
Achei que sua autoestima fosse maior que isso, garota. Mas, sinceramente,
eu entendo. Deve ser de outro mundo receber um elogio vindo de mim, e se
é isso que você quer, então é isso que você terá. — Encosto-me no batente
da porta, e ela revira os orbes verdes-escuros. — Você também está linda.
Não tanto quanto eu e Barbie, mas ainda assim linda. — Georgina entra na
brincadeira e junta as mãos ao peito, fingindo estar emocionada com o meu
elogio. Apesar de estar apenas provocando, já que a minha amizade com ela
é basicamente dessa forma, não menti. A garota realmente está linda com
seu vestido verde limão de flanela, que tem um decote generoso para os
seus seios fartos ficarem visíveis, a sua meia calça preta cobrindo suas
coxas grossas e os coturnos brancos finalizando seu estilo único. As
pálpebras de seus olhos estão pinceladas por uma sombra também verde e
os lábios cheios estão envoltos por camadas de batom nude. O cabelo ainda
mais loiro por conta das suas idas frequentes à praia emoldura seu rosto
redondo.
— Vamos embora, ruiva. — Georgina, assim que suspira
cansadamente, me puxa pelo braço. — Vamos embora antes que eu te
coloque no seu devido lugar.
Estou prestes a sair do quarto, mas antes volto para pegar minha bolsa
repousada sobre a cama. Assim que passo pela porta, Barbie se coloca de
um lado e Georgina do outro, ambas enroscam os braços junto ao meu na
mesma hora. Elas riem com algo, e eu, mesmo sem saber direito do que
estão falando, também rio.
Só que diferente delas, eu rio por lembrar do que passamos para
chegarmos até aqui.
Como as meninas trabalham também na lanchonete do meu tio,
acabou não sendo algo fácil, afinal, eu não facilitei para que se
aproximassem. Eu fui a típica patricinha chata e mimada, me tranquei no
meu próprio mundo e não quis que ninguém se aproximasse, muito menos
com o papo de que queriam me ajudar de alguma maneira na fase que foi a
minha mudança. Apesar de tudo pronto para dar errado, o destino fez com
que Barbie e Georgina fossem o meu maior acerto de um ano para cá.
E eu prometi a mim mesma que esse ano eu iria fazer com que ele
valesse por uma vida inteira.

O rancho, mesmo que seja afastado da cidade, está tomado por uma
multidão de gente que, obviamente, não perderia por nada a oportunidade
de pisar os pés por aqui para curtir uma boa festa junto das garotas e dos
garotos mais comentados pela população habitante daqui. Os motoqueiros
são, definitivamente, como uma cultura do local e todos possuem algum
tipo de opinião a respeito de cada um. Alguns idolatram, alguns julgam,
alguns abominam pela forma como se vestem e vivem, mas todos, com toda
certeza, mesmo que não admitam, os veneram como se fossem deuses
caminhando sobre a terra sagrada da Carolina do Sul. Ao mesmo tempo que
é patético, é compreensível. Todos os integrantes, sem exceção, possuem
aquela áurea magnética, hipnotizante e problemática apitando através de
suas motos, suas jaquetas de couro e suas infinitas tatuagens serpenteando
seus corpos fortes e ornamentados com músculos perfeitamente esculpidos.
Eu, definitivamente, não estou em posição de julgar.
Atravessando alguns corpos suados com o cotovelo, após sermos
largadas por Barbie, que foi dançar com Devin Leblanc, seu namorado, eu e
Georgina alcançamos o mini bar improvisado. A loira ao meu lado rola com
o pirulito ao lado das bochechas e fita todas as opções com os olhos
injetados de fascínio, pegando uma long neck logo após desbravar todo o
ambiente. Eu, por outro lado, pego uma taça de champagne e a bebida no
meio do cesto coberto de gelo, derramando o conteúdo alcoólico no vidro.
Quando estou prestes a devolver a garrafa, sinto um corpo parar atrás de
mim, a mão repleta de tatuagens entrelaçando meu pulso para que eu refreie
meus movimentos. O cheiro forte do perfume da pessoa invade tudo ao
nosso redor, e eu fecho os olhos com certa força, sentindo cada centímetro
da pele do meu corpo reagir.
Não precisou mais do que cinco segundos para que eu soubesse de
quem se tratava.
— Começando os trabalhos com champagne, diabinha? Eu jurava que
gostava de coisas mais fortes. — Sua boca está perigosamente próxima da
minha orelha quando decide proferir essa frase juntamente do apelido que
dera para mim em algum momento de nossas desavenças, assim como seu
corpo viril está próximo demais do meu. Apesar de querer muito sair da
posição que me encontro agora, não consigo. Busco minha amiga de
soslaio, mas também não encontro sua figura em lugar nenhum. — Medo
de ficar sozinha, Stratford? — Sua mão finalmente solta meu pulso e eu,
com muito esforço, consigo colocar a bebida no lugar dela. Quando penso
que não, sinto que se afasta. Solto todo o ar que nem sabia estar
acumulando dentro dos meus pulmões.
Giro sobre os calcanhares de modo devagar, fitando John Scott pela
primeira vez na noite. Seus lábios sobem sutilmente quando me
esquadrinha, os olhos azuis claros passeiam por minhas pernas expostas.
Apesar de ficar levemente desconcertada com o modo que me sinto nua
sobre seu olhar, dou um passo para frente. Nunca fui de recuar,
principalmente quando o assunto é garotos.
— Quer uma foto minha para guardar de recordação? — digo e cruzo
os braços assim que troco o peso dos pés. Uma risadinha escapa de sua
garganta no exato momento em que ele passa a mão pelos fios agora fartos
e pintados de um loiro platinado. Tento muito não fazer, mas quando
percebo, estou passando os olhos pelos seus braços expostos pela camiseta
regata de uma banda de rock que usa, analisando as tatuagens que parecem
brilhar sob a luz do luar. Além de seus braços, os rabiscos bem feitos
também cobrem seu peito e caminham num trajeto pelo seu pescoço,
deixando-o numa verdadeira bagunça problemática, infernal e um tanto
quanto sexy. A calça preta rasgada nos joelhos aperta suas pernas esguias e
as botas de combate ficam em evidência à medida que ele as bate no chão.
— Depende. — John tenta disfarçar seu sorriso malicioso mordendo o
lábio inferior rosado, as argolas prateadas em suas orelhas balançam de um
lado para o outro no momento em que sua cabeça faz o movimento. — Só
se eu estiver junto.
E lá está o John que todos conhecem: engraçado, sarcástico e
conquistador nato. Sua postura é confiante e tudo que sai por entre seus
lábios é calculado e muito bem pensado para te atingir de alguma forma.
Até mesmo o seu maldito sorriso e os seus olhos, que são sempre
expressivos e injetados de particularidade, são tipo mares tortuosos prontos
para deixar qualquer uma afogada por eles. Todas as garotas da cidade o
veneram como se o integrante do MotoClub fosse algum tipo de artista, ou
até mesmo algum deus mitológico não mencionado em livros de história.
Seu jeito de garoto mau problemático não deixa que ele passe uma noite se
quer sem uma garota enfeitando sua cama. Mesmo que você não
perceba, ou mesmo que lute muito para nadar contra, uma hora ou outra
acabará se afogando.
Ninguém consegue encarar por muito tempo aquela
imensidão oceânica transbordando em suas írises e não se sentir nem um
pouco instigada em desbravar tudo o que está escondido por debaixo
delas.
E foi exatamente por isso que o detestei logo de primeira. Foi
exatamente por isso que nutri uma antipatia por John Scott nos primeiros
minutos em que pus meus orbes em sua figura. Muitos podem acreditar que
tenha sido por causa da sua baderna assim que chegou no local em que
trabalho, por conta das suas investidas baratas com toda pessoa que seja
portadora de um par de peitos, por todos os comentários afiados e ácidos
que saem bem da ponta da sua língua ou pelo simples fato dele me irritar
demais e eu ser uma mesquinha qualquer pronta para aterrorizar homens
que passem pelo meu caminho. Apesar de todas essas questões se
enquadrarem muito bem, não foi a principal.
Meu crescente ódio por Scott se deve a um único fato; seus olhos.
Não por ele ter sido abençoado com um tom de azul
extremamente claro no centro e um tom de cinza prateado nas bordas, e
sim pelo fato deles serem límpidos ao ponto de eu conseguir enxergar meu
reflexo através deles. Eu conseguia, de algum modo que não sei
explicar, ver a minha farsa e, consequentemente, a dele também.
Ainda que ninguém ao nosso redor conseguisse perceber, eu sentia e
enxergava que havia uma máscara por ali. Eu consegui perceber logo de
cara. Ainda não sei definir de fato qual o problema que o ronda, mas sei que
existe. Foi exatamente por isso que escorreguei para uma realidade mais
fácil que não o suporta.
De mentira já bastava a minha vida.
A questão é que estou tentando mudar esse pensamento. Depois que
nos beijamos após uma de nossas brigas — sim, essa merda aconteceu —,
até cheguei a cogitar deixar nossas desavenças de lado, estava mesmo
pronta para isso. Até cheguei a cogitar que nós dois poderíamos nos divertir
juntos com algo totalmente casual, mas o problema é que ele parece querer
ainda mais se afastar de mim. Mesmo sempre nos mesmos lugares e sempre
com os mesmos amigos, John e eu não conversamos muito, e sempre que
acontece é o básico do básico.
Por saber que sua aproximação agora é completamento atípica,
resolvo provocar ao dizer:
— Isso foi um flerte? — Contorno meu lábio superior com
a língua, os olhos semicerrados em desafio. Posso jurar que acabo de ver
seu pomo de Adão subir e descer em sua garganta.
Apesar de tudo, sua postura não vacila. Muito menos o
sorriso arrogante enfeitando sua boca.
— Isso foi apenas um comentário — pontua, e logo depois começa a
andar até mim lentamente, os glóbulos nunca deixando os meus, como se
estivessem prontos para a caça, prontos para finalmente pegar a
presa. Tento ainda manter uma distância segura entre nós, mas quando
percebo, já estou chocando minha lombar contra o mini bar improvisado, o
champagne em minha taça quase pula para fora por conta disso. Suas
írises permanecem conectadas com as minhas no processo. Estamos tão
próximos agora que sinto sua respiração ondular em meu rosto. Entretanto,
mesmo que pareça querer fazer algo comigo, a única coisa que faz é
alcançar uma garrafa de cerveja atrás de mim. Ele sorri ainda mais assim
que se afasta, parece perceber como sua atitude havia me feito pensar
besteira. — Fico triste em saber que você acha que sou um canalha vinte
quatro horas por dia. Nem tudo que eu faço é com segundas intenções,
diabinha. A maioria das vezes eu estou apenas tentando ser legal com
você.
A ironia juntamente da falsidade goteja por toda a sua frase. John
sabe o quão ridículo soa, pois tenta disfarçar mais um dos seus sorrisos
idiotas ao beber o líquido espumante da garrafa diretamente do gargalo.
Seguro a vontade de revirar os olhos e levo minha bebida aos lábios,
ainda desacreditada com tamanha cara de pau.
— Claro — murmuro baixinho, finalmente rolando os
olhos. — Como eu nunca percebi isso antes?
— Boa pergunta. — John acha graça. O mais irritante disso é saber
que ele está se divertindo ao extremo. — Acho que o problema está em
você, querida.
— Em mim? Por que em mim?
— Porque você quer e deseja que eu seja um canalha. Mas só se for
direcionado a sua pessoa, claro.
Consigo revirar ainda mais os olhos com o seu argumento.
— É engraçado o modo como você ama ser um clichê ambulante. —
Fricciono os meus lábios para não rir dos seus projetados para baixo,
fingindo estar magoado com as minhas escolhas de palavras. — Agora me
diz, está com saudade de fazer a minha vida um inferno, não é? Achei que
estivesse se esforçando para não ficar a sós comigo depois de...
— Da onde tirou isso? — Scott me corta, sulcos formando-se em sua
testa.
Olho para os meus sapatos só para não dar risada novamente. Ele nem
ao menos me deixa mencionar o que aconteceu entre nós. Esse na minha
frente é mesmo o galinha que todos por Hellaware parecem venerar?
Bom, não me parecia.
— Estava tentando ser discreto na hora de fugir de mim? — ironizo.
Enquanto brinco com a borda da minha taça, ergo as minhas sobrancelhas,
divertida. — Bem, não funcionou.
É a sua vez de revirar os olhos, passando as pontas dos dedos entre os
fios platinados.
— Eu não sei por que ainda tento conversar com você — bufa, e eu
vejo que parece desgostoso com algo. Não tenho tempo de retrucar, pois
logo dispensa a mim com um abano de mão e gira nos calcanhares,
direcionando suas botas de combate para algum lugar que não seja ao meu
lado.
Libero toda a risada que havia acumulado.
— E depois diz que não está fugindo — digo para mim mesma,
balançando a cabeça de um lado para o outro, ainda sorrindo.
Também aproveito para sair de onde estou. Entorno o líquido
alcóolico em meus lábios e repouso a taça em cima do tampo da mesa,
arrastando os passos até encontrar minhas amigas. Quando vejo os corpos
de Barbie e Georgina na pista de dança feita no meio da relva verde, apenas
empurro alguns corpos com a ajuda do cotovelo e rapidamente me enfio
entre elas, sendo recepcionada por sorrisos e pela música Don´t Stop
me Now do Queen retumbando a todo vapor nas caixas de som.
— Onde você estava? — Barbie grita para mim em meio à música,
não deixando de balançar o corpo esguio em nenhum momento.
Busco Georgina com o olhar, mas a loira parece alheia com a nossa
conversa. Acho completamente estranho o fato dela ter segurado sua língua
nervosa, já que não perde a oportunidade de espalhar uma fofoca e me
dedurar como sempre costuma fazer.
— Escutando as baboseiras de John Scott — respondo no mesmo tom
e dou de ombros. Não havia motivos para mentir.
St. Claire arregala os olhos, parecendo surpresa por finalmente saber
que estávamos conversando sozinhos.
— Nada demais — emendo, antes que minha amiga possa começar a
fazer teorias da conspiração.
Georgina Sinclair, por outro lado, ao contrário do que eu achava, está
bem ligada na nossa conversa, pois logo se aproxima ainda mais e diz:
— Vocês vão ficar nessa que se odeiam até quando? Ninguém
aguenta mais esse teatro fracassado. A gente quer ver beijo na boca e
pegação, Pashazinha.
— Então reclame com seu amigo. — Afasto meu cabelo para trás e
decido fazer um coque, tentando de alguma forma me livrar do calor. A
loira, que realmente tem uma amizade consolidada com o garoto problema,
me olha atentamente, como se quisesse dizer “sério mesmo?” — Ele
provavelmente não me suporta. E sabe o que é melhor disso tudo? —
pergunto, e todas me encaram agora, balançando a cabeça em negação. —
O melhor disso tudo é que é recíproco.
Tanto Barbie quanto Georgina dão risadas, não convictas das minhas
palavras. Apenas ergo os ombros para cima e balanço-os, desinteressada no
assunto. E quando a voz de Fredy Mercury é substituída pela da Madonna, é
tudo que eu preciso para deixar o assunto John Scott de lado e realmente
começar a me divertir.

Eu não sei em que momento da madrugada o rancho esvaziou, mas


aconteceu. O sol já está começando a pincelar o céu e todos nós agora
estamos sentados em um círculo perfeito ao redor dos trailers, conversando
sobre coisas aleatórias demais para que eu consiga dizer com exatidão do
que se trata. Georgina está ao meu lado, enquanto Barbie está do outro,
sentada entre as pernas do seu namorado. Na minha frente se encontra John
e o restante dos The Hurricane Freedom, como Violet Mohn,
Kara McAllister e seu irmão, Kieran McAllister.
Quando finalmente consigo entender do que se trata o novo rumo da
conversa, percebo que estão falando sobre o casamento que está por vir de
Hunter Leblanc e Amber St. Claire.
Sim, o pai adotivo de Devin Leblanc e a tia da Barbie vão se casar.
Os dois namoraram na adolescência e, por algum erro cometido por
ele no passado, acabaram terminando e se separando, já que o fundador
do MotoClub passou um tempo longe viajando por outras cidades pouco
tempo depois. Quando retornou para cá, após uma série de acontecimentos,
decidiu investir no perdão da sua ex-namorada e mulher da sua vida. É
claro que as coisas não foram fáceis, afinal, a tia da Barbie é cabeça dura e
bem convencida do que quer para vida, mas, depois de idas e vindas, sentiu
que estava pronta para o perdoar e recomeçar. Faz três meses que
anunciaram o noivado com uma festa daquelas e agora, pelo que me parece,
já estão prontos para dar início aos preparativos do casório.
— Quem imaginou que isso fosse mesmo acontecer? —
é Devin Leblanc quem diz, fazendo os outros rirem e confirmarem com um
aceno de cabeça ao se referir a seu pai e sua futura madrasta. O garoto
também tatuado e de olhos esverdeados tem o queixo repousado na
curvatura do pescoço da sua namorada.
Sorrio com a cena. É muito bonito ver o quão se amam e o quão
estão amadurecendo juntos. Apesar de me julgarem como sem coração, não
consigo não ficar feliz e nem ao menos encantada com a paixão que ambos
emanam quando estão próximos — e até longe também.
— Eu jurava que Hunter e Amber fossem se matar em algum
momento — John confidencia. Seu corpo bêbado pende para o lado e
provavelmente cairia se não fosse sua amiga Violet dando-lhe um leve
empurrão emburrado para que voltasse ao lugar.
— Assim como você e a Pa...
O que quer que Georgina fosse soltar, é interrompida pela presença de
Hunter e Amber, que acabam de chegar juntos de uma outra festa que
foram.
Assim que eu me mudei, Amber St. Claire tinha o cabelo curto
tingido por um loiro forte, mas de uns dias para cá, a tatuadora mais famosa
da localidade havia decidido radicalizar ainda mais seu visual ao fazer um
corte pixie cut em seu cabelo, deixando-o ainda mais curtinho. Também
havia trocado o loiro pelo preto, que agora ressaltava ainda mais a cor dos
seus olhos. Seu noivo, no entanto, ainda continuava o mesmo com seus fios
tão pretos quanto penas de corvos, a barba escura emoldurando seu maxilar
e as costumeiras blusas xadrez acompanhando sua jaqueta de couro
desgastada.
Logo atrás do casal, percebo os cinco garotos que moravam na cidade
vizinha. Ivy Prince, Anastasia Green, Blue Sanders, Daisy Flinch e Apollo
Flores foram trazidos pelo pai de Devin de Gipsy Hill para morar aqui,
junto a eles. Os cinco passaram por problemas na cidade em que moravam
ano passado e Hunter, que estava vivendo naquela cidade, decidiu intervir,
ajudando-os a se estabelecerem em uma nova cidade. Após passarem um
tempo aqui no rancho até conseguirem empregos e moradias novas, eles se
mudaram mês passado, assim que todos conseguiram se estabelecer
financeiramente.
Exceto a Daisy, que ainda não havia conseguido emprego na cidade.
Se eu não me engano, a garota de cabelos vermelhos e alaranjados nas
pontas divide o trailer com uma das garotas do THF.
Eles se aproximam do nosso círculo e sorri, após cumprimentarem
todos. Nem Hunter nem ela reclamam da bagunça, pelo contrário,
aproveitam e sentam conosco, juntamente dos outros.
— Posso saber sobre o que os meus filhotes estão conversando? — O
mais velho questiona de forma interessada, passeando os orbes escuros
sobre nós.
— Estávamos comentando sobre o famoso casamento. Ai... estou tão
animada! — Kara, a garota de longos cabelos cacheados e pele preta, se
apressa em responder. Suas mãos se juntam e ela bate palminha,
visivelmente ansiosa. Pelo que eu sei, Kara ama eventos, moda, decoração e
todas essas coisas. Provavelmente não vê a hora de ajudar Amber na missão
de preparar essa festa.
O casal se entreolha e parecem gostar do nosso tema de discussão,
pois sorriem entre si. Quando voltam a nos olhar, é a tia de Barbie quem
solta:
— É sobre isso mesmo que queríamos conversar com vocês. — Seus
olhos passeiam por cada pessoa no círculo, e todos nós a fitamos com
curiosidade. Ela apruma a postura e o sorriso que adorna seu rosto fino
consegue reluzir mais que o sol agora entre nós. — Nós decidimos que
todos vocês serão nossos padrinhos de casamento. Incrível, não?! Mas antes
que perguntem algo, já vou avisar de antemão que eu e Hunter já separamos
os casais e não será possível troca.
— Então fala os nomes! — Kieran se pronuncia, tão animado quanto
sua irmã.
Os noivos começam a listar os casais. Barbie ficou com Devin —
obviamente —, Kara ficou com o Ivy Prince, a Violet ficou com o Kieran, a
Georgina com o Apollo, a Blue com a Anastasia e a Daisy com um velho
amigo de longa data do Hunter.
Nós não fazíamos ideia de quem se tratava.
— E o John com a Pasha — Hunter termina de listar. — Espero que
gostem de dançar, pois nós contrataremos um professor de dança que
ensaiará com Amber e eu para a valsa dos noivos, e com vocês para a dança
dos padrinhos.
Todos ao nosso redor parecem animados de alguma forma. Eu e John,
por outro lado, apenas nos entreolhamos e fazemos caretas um para o
outro.
— Vamos ter ensaio duas vezes por semana. Se algum de vocês não
comparecer ou chegar atrasado, juro que cometo uma atrocidade
— Amber alerta, o dedo em riste para nós.
Dito isso, o casal se levanta e se retira. Parecendo que não havia mais
nada para dizer ou fazer, os outros também vão se levantando pouco a
pouca, uns indo para o trailer e outros indo para suas respectivas casas.
Quando me dou conta, estou sozinha.
Na verdade, não sozinha, sozinha. Estou com John, parado bem em
minha frente.
O loiro me esquadrinha e seus lábios se erguem em um sorriso
malicioso.
— Espero que dance tão bem quanto beija, diabinha.
John confessa finalmente o nosso beijo e se levanta, umedecendo os
lábios rosados ao me fitar com um olhar que crepita.
Reviro os olhos e o observo me dar as costas.
Céus, eu não o suporto.
Mas como diabos me sinto tão quente só com um maldito olhar seu?
Olho-me no espelho e dou de cara com uma garota vestida em um
uniforme cor verde água, que está rabiscado em alguns lugares com notas
de músicas ou com frases memoráveis do filme Cantando Na Chuva, um
dos meus favoritos.
“Não há nada entre nós. Nunca houve nada entre nós. Apenas ar.”
É o que está escrito de caneta perto do fim da minha saia. Não tem
uma razão para eu ter a escrito, só veio na minha mente e eu quis escrevê-
la. Pode não fazer sentido, mas quando a saudade da minha casa ou a
saudade da minha irmã aperta, o que eu faço para abafar meus pensamentos
e todo o tumulto de sentimentos dentro de mim é rabiscar coisas aleatórias
em coisas mais aleatórias ainda. Escrevo letras da Billie Holiday no
guardanapo da lanchonete em que trabalho, escrevo frases dos romances da
Jane Austen no meu bloquinho de anotações, escrevo frases dos meus
filmes favoritos no meu próprio uniforme e até mesmo fico desenhando
pequenas borboletas invisíveis em minha própria pele.
Quando eu escrevo, me teletransporto para universos e realidades
diferentes da minha. As frases e as músicas que pipocam a minha mente
nesses momentos difíceis fazem com que eu viva outras vidas, sonhe outros
sonhos, ame outros amores e, de certa forma, fazem com que eu esqueça e
me liberte das amarras de cada uma das dores infiltradas em meu âmago.
A arte sempre foi sobre ser uma válvula de escape e uma terapia para
mim.
Passo o dedão pelas frases e sorrio, voltando a fitar meu reflexo no
espelho. Meus fios ruivos estão presos em uma trança desleixada e o meu
rosto está coberto por naturais tons purpuras nas maçãs, efeito do calor
exorbitante da cidade. Não passo nada hoje a não ser gloss de cereja na
minha boca e algumas camadas de rímel nos cílios, numa tentativa sutil de
disfarçar os efeitos de ter chegado da festa já com o sol raiando.
Adoraria que meu tio David fosse mais tranquilo no quesito trabalho e
me deixasse dormir por horas hoje só para não ter que carregar
hambúrgueres e milkshakes de um lado para o outro.
Inspiro todo o ar que consigo e direciono meus passos até a pilha de
livros ao lado da minha cama, retirando Assassinato no Expresso do
Oriente da Agatha Christie do meio deles. Já com o livro debaixo do braço,
saio do quarto e tranco com a chave, descendo as escadas logo em seguida.
— Bom dia, minha querida — tia Rosalinda me recepciona assim que
adentro a cozinha, um sorriso hospitaleiro ganhando vida em seu rosto
redondo e simpático quando decide me fitar sobre os ombros. — Estou
fritando bacon com ovos para nós. Vai querer?
Confirmo com um manear de cabeça e um sorriso, puxando uma das
cadeiras para poder me sentar. Do outro lado, lendo o jornal local, David
Wilson me cumprimenta enquanto arruma seu bigode engraçado.
— Você está com uma cara péssima, Pasha — meu tio informa, como
se eu não tivesse espelho no meu quarto. — É isso que acontece quando a
gente pensa primeiro nas farras do que nas nossas responsabilidades.
Sei que ele não está com raiva ou me punindo, consigo perceber
através da força que faz para não dar uma risada, mas, mesmo assim, abro a
boca para retrucar. O problema é que a sua esposa sai na frente ao soltar:
— David! — brada, visivelmente furiosa com ele. Abaixo o olhar
para o livro em meu colo só para não rir da forma como Rosalinda o coloca
em seu devido lugar. — Para de falar besteira para a sua sobrinha, homem.
Imagina acordar e ter que escutar suas frases nada motivacionais? Tenha
dó!
— Desculpe — Sr. Wilson, como todos da cidade são acostumados a
chamá-lo, diz isso direcionado a sua esposa baixinha e brava. Quando ela
arrebita o nariz e volta sua atenção para o fogão, ele me olha e sussurra, a
fim de que só eu escute: — Despertamos a fera.
— Você despertou — esclareço, e ele dá de ombros ao enfiar
novamente o jornal em frente ao rosto.
Faço como o meu tio e coloco o livro de uma das minhas autoras
favoritas sobre a mesa, lendo o capítulo em que havia parado ontem, antes
de ir para a festa. Bocejo algumas vezes e coço os olhos, entrando de uma
vez no suspense que faz os meus neurônios fritarem dentro da minha
cabeça. Quando estou pegando o ritmo da leitura e quase devorando todas
as páginas, minha tia limpa a garganta e chama minha atenção, pedindo
para que eu retire o livro só para que ela consiga depositar o meu prato
perto de mim. Assim que o faço, agradeço suas mãos de fada e pego os
talheres, me empanturrando com os melhores bacons com ovos do mundo.
Depois de mais duas ou três garfadas, termino meu café da manhã e
me levanto, circulando a mesa para pegar o prato já vazio do meu tio
também. Sussurro em seu ouvido que só estou sendo boazinha em lavar seu
prato para que se lembre disso e deixe passar caso eu fique procrastinando
no Fast Rocket. Ao contrário do que eu imaginei, ele apenas confirma e
sussurra de volta que se caso perceba isso, se fingirá de cego por poucos
segundos.
Passo alguns minutos lavando a louça, enquanto tio David e
tia Rosalinda se arrumam para irmos juntos ao trabalho. Assim que acabo,
pego novamente o livro e me enfio no sofá de qualquer jeito, retomando a
leitura de onde havia parado. Estou quase lá, quase descobrindo o mistério
quando ambos retornam e me chamam, as chaves do carro nas mãos do Sr.
Wilson tilintam uma na outra e me avisam silenciosamente que já está na
hora de ir.
Tento ao máximo não revirar os meus olhos, mas quando saio de casa,
afundo no estofado do Cadillac do meu tio e o observo aumentar o som
para deixar que Alan Jackson embale nosso trajeto com suas músicas
country, é impossível não deixar que isso aconteça.

O parque de diversões Starryland é uma atração fantástica


em Hellaware. Com brinquedos dos mais variados tipos, com barraquinhas
de jogos e de comida, além de uma lanchonete que fornece os melhores
lanches e os melhores milkshakes da região dentro dele, o parque sempre
consegue estar cheio ao reunir pessoas de todas as idades possíveis. Além
de ser um lugar mágico e bonito, reza a lenda que o casal que se beija em
algum dos brinquedos permanece juntos para a sempre. E entre
outras crenças que eles acreditam com fervor.
E o Fast Rocket, que é uma atração à parte do local, também
consegue ficar tão cheio quanto ele. O estabelecimento onde trabalho é
dono de um enorme foguete por fora, que fica em cima das
letras piscantes do nome, e de uma decoração ainda mais incrível por dentro
ao ter luzes coloridas, estofados dos mais variados tipos em tons de verde
água, piso quadriculado preto e branco, paredes cobertas por quadros dos
mais variados artistas — até mesmo os que vieram conhecê-la um dia — o
emoldurando.
Nunca estou muito satisfeita ao gastar as horas preciosas do meu dia
aqui, afinal, não recebo nem um dólar pelo estresse de limpar mesas quando
crianças derrubam coisas nelas, mas, apesar de tudo, não consegue ser tão
ruim assim. As músicas que tocam na Jukeboox e embalam o meu dia, além
da presença contagiante de Barbie e Georgina, que sempre fazem de tudo
para deixar o serviço mais divertido, acabam sendo fundamentais para que
eu não morra de tédio em algum momento.
Por saber disso, pesco uma moeda e introduzo na máquina, que logo
brilha e nos abençoa com a voz de Don Lockwood cantando a emblemática
música Singin´In The Rain. Quando a melodia começa a permear o
ambiente, sinto o olhar de incredulidade das minhas amigas sobre mim.
Tento não dar risada do ódio mortal que elas sentem por essa música, já que
estou sempre colocando-a para tocar em um looping infinito aqui.
Mas o que posso fazer se sou apaixonada por esse filme?
Dou de ombros e vou atender a um cliente, que acena por mim e pede
o hambúrguer da casa assim que me aproximo. Dou um sorriso dócil para o
rapaz e arrasto meus passos até estar na parte que dá acesso a comunicação
com as cozinheiras, descrevendo o lanche pedido. Retorno equilibrando a
bandeja cerca de alguns minutos depois.
— Ei! — Barbie chama por mim, quando já estou prestes a me enfiar
em algum estofado para descansar depois de ter atendido o cliente. —
Venha aqui, por favorzinho.
Vou até ela, me aproximando do balcão em formato de círculo situado
logo na entrada da lanchonete.
— Sim? — Finco os cotovelos na madeira e repouso meu queixo em
uma das mãos, observando-a.
— Só para te avisar que os ensaios da dança dos padrinhos
de Amber e Hunter começarão essa semana. — Percebo o tom malicioso do
seu tom de voz, isso faz com que eu balance a cabeça negativamente,
soltando um muxoxo. — O quê?! Não vai me dizer que está animada?
Solto uma risada.
— Muito — prolongo as sílabas, deboche gotejando por elas. — Não
vejo a hora de poder dançar com o inimigo.
Barbie aperta seus lábios um no outro, olhando para um ponto fixo
atrás de mim. Uno as sobrancelhas e lhe direciono um olhar questionador,
mas a garota de cabelos dourados segue brincando de ping pong com os
olhos ao ir de mim até algo completamente interessante em minhas costas.
Faço até menção de me virar, porém uma risada gutural ressoando ao nosso
redor me impede.
— É bom saber que você não vê a hora de dançar com o
inimigo, Stratford — John Scott sopra, agora ficando ao meu lado, no
balcão. Seus braços ficam na mesma posição que os meus e o seu queixo
também repousa em sua mão tatuada, os olhos azuis sorrindo tanto quanto
sua boca. — Pois eu não vejo a hora de dançar com o diabo.
Faço a maior força do mundo para não empurrar seu corpo para o
lado e arrumo minha postura, aprumando os ombros. Olho a traidora da
minha amiga e ela ergue os ombros para cima, como se quisesse dizer que
não o tinha percebido antes.
Mentirosa.
Traidora.
Eu poderia facilmente matá-la. Ou melhor, eu poderia facilmente
matar os dois. Entretanto, a única coisa que faço é esboçar um sorriso
forçado para ambos.
— O que está fazendo aqui, Scott? — questiono, observando que
nenhum dos seus amigos está por aqui para lhe fazer companhia, como é de
costume.
— O que se faz em uma lanchonete, Pasha? — rebate, irônico. —
Xavecar as garçonetes, é claro — ele mesmo responde a própria pergunta,
soltando um sorriso. Depois, também arruma sua postura e a lapela da sua
jaqueta de couro, mandando uma piscadela apenas para mim quando decide
girar sobre os calcanhares para se sentar em alguma mesa dos fundos.
Eu realmente poderia matá-lo facilmente.
— Eu não o suporto — falo para Barbie, que ainda permanece no
balcão, achando graça da cena que havia presenciado. Minha amiga apenas
deixa que seu queixo suba e desça em um movimento quase que
imperceptível, como se não quisesse realmente concordar comigo.
Fecho a mão em punho e vou pisando duro até o local onde John está,
apenas para trocar provocações. Eu não iria deixar barato.
— Não pode ficar na lanchonete se não vai consumir nada —
menciono, assim que me aproximo. John está olhando para o parque através
das grandes janelas de vidro que cercam o estabelecimento, a postura
completamente desleixada, como se estivesse sentado no sofá da sua casa.
Penso que não vai me responder ou nem ao menos olhar para mim, mas
antes que eu possa limpar a garganta para chamar sua atenção, o loiro vira
lentamente a cabeça em minha direção e olha dentro dos meus olhos,
daquela forma poderosa que só ele consegue fazer.
— E o que você sugere então?
— Que faça um pedido ou vá embora, oras!
— Tudo bem... — John volta seu corpo totalmente para mim, a fim de
me observar melhor. Seus cotovelos tocam à mesa prateada e as mãos se
entrelaçam pouco abaixo do seu queixo. Finalmente percebo os anéis pretos
e pratas adornando seus dedos repletos de rabiscos, a luz do ambiente
refletindo tanto neles quanto nos brincos em suas orelhas. Ergo meus
glóbulos para os seus quando percebo que fico tempo demais tentando
desvendar as inicias cravadas nos nós dos seus dedos. — Se eu fizer o
pedido, você que irá realizá-lo?
Por que eu sinto que vem alguma gracinha por aí?
Talvez por ser John Scott falando.
Apenas sigo os seus passos, somente para saber onde iremos chegar.
— Sim. Irei realizá-lo. — Dou de ombros ao fingir pouco caso.
Ele confirma com um manear lento de cabeça e desvia o olhar do
meu, fitando um ponto aleatório em cima da mesa. A ponta da sua língua
salta da sua boca e John a leva até os lábios, umedecendo a região inferior.
Depois desse processo extremamente longo e que parece se passar em
câmera lenta através da minha vista, morde a carne rosada enquanto pensa
em algo e, finalmente, após não sei quantos segundos nessa, olha para mim
e sorri.
— O meu pedido é, cara diabinha: só tenta não se aproveitar de mim
na dança. Não quero acabar com a minha boca na sua uma segunda vez. —
Diferente de todas as outras vezes em que tenta me provocar, sua expressão
está séria agora, livre de qualquer traço que denuncie seu bom humor. O
loiro pega impulso no estofado e se levanta, arrastando as costumeiras botas
de combate até mim. Não percebo que estou com a cabeça levemente
abaixada até que seus dedos gélidos toquem a minha pele, erguendo meu
queixo para que eu possa fitá-lo. — Entendeu bem? — Aproveita do
contato íntimo para direcionar os dedos para minha bochecha, e eu sou mais
rápida ao dar um leve tapa neles, afastando-os de mim. John parece ter
gostado disso, pois morde um sorriso.
— Já que você tocou nesse assunto, é sempre bom lembrar que
foi você que me beijou. — Aponto o dedo em sua direção, semicerrando os
olhos. — Só devolvi o beijo porque quis me divertir naquela noite, então
não precisa chegar com essas merdas para cima de mim. Acha mesmo que
eu queria estar dançando ou fazendo qualquer outra coisa com você? —
Espalmo uma mão na cintura e sopro os fios que insistem em soltar da
minha trança, já irritada com isso e com a conversa entre nós. — Só vai
embora, John.
— Não precisa se descontrolar, gata. Eu estava apenas brincando. —
O garoto infernal à minha frente decide raspar o dedo novamente em meu
queixo, retirando-o antes que eu possa arrancá-los fora. — Você sabe que eu
adoro te ver irritada, não sabe? Sua boca fica ainda mais atrativa quando
despeja toda a sua ira sobre mim.
— Então contemple-a agora. — Me aproximo, o hálito quente da
minha boca o atingindo em cheio. — Porque só será assim que você, John
Scott, terá o prazer de apreciá-la.
Sorrio assim que me afasto, tão venenosa quanto a minha frase. Não
tenho tempo de estudar sua reação ou de ouvir qualquer coisa que saia por
entre seus lábios, pois logo o dou as costas e saio desfilando, jogando a
minha trança para trás. Sei que seus olhos me seguem, sinto a queimação
por toda a minha espinha. Apesar disso, não vacilo e nem ao menos tento
olhar para trás.
Eu realmente não consigo o entender. Em uma dessas festas que
comparecemos ano passado, John e eu estávamos conversando, tentando
entender nossas desavenças, e, em um pulo completamente rápido, nós dois
já estávamos brigando e proferindo coisas na cara um do outro. Numa
tentativa de me calar, John enroscou as mãos entre meus fios e me beijou.
No começo, pensei muito se deveria corresponder, mas, sinceramente,
apenas mandei tudo ir à merda e decidi me divertir nessa cidade. O
empurrei depois de ter correspondido, o xinguei e o trouxe de volta para a
minha boca. Ele pareceu ter gostado da batalha que nossas línguas travaram
naquele dia e o quanto nossos corpos pareciam meros conhecidos
borbulhantes de prazer.
O problema é que John Scott resolveu me ignorar e ignorar o que
tínhamos aprontado juntos por meses. Qual o sentido de vir me perturbar
justamente agora?
Não sei o que decidiu aprontar, mas agora eu estava decidida mais do
que nunca em não corresponder.
Também não sei se realmente falou sério ou se realmente falou
brincando no que disse minutos atrás, contudo, farei questão de não cair em
tentação na hora de garantir não juntar minha boca na dele uma segunda
vez.
Os dias do ensaio para a dança do casamento entre Amber St. Claire
e Devin Leblanc acontecerão toda terça-feira e todo sábado. Serão duas
vezes por semana — sem falta, como a noiva costuma frisar — e sempre
pela noite. Por saber que eu, Georgina e Barbie trabalhamos, os noivos
decidiram deixá-lo às sete horas em ponto para que possamos conseguir
conciliar. E apesar de ter adorado a consideração deles conosco, adoraria
que tivessem esquecido esse pequeno detalhe para que eu conseguisse fugir
desse negócio e não ter que ficar próxima demais de pessoas que eu
adoraria me manter o mais longe possível.
Mas como isso não foi possível, permaneço atenta em Andrew, o
professor de dança contratado pelos noivos, que repete as instruções do que
devemos fazer pela milionésima vez ao rodopiar pela pista do seu estúdio.
Sei que o motivo de Andrew ser tão repetitivo e não começar de fato
com o ensaio é unicamente pela falta de comprometimento de John
Scott. Ele está vinte minutos atrasado. John está vinte minutos atrasado, e
eu estou há vinte minutos pensando em qual posição na dança será melhor
para enfiar propositalmente meus saltos em seus pés.
Infelizmente não tenho muito mais tempo de elaborar meu plano,
pois o sino da porta do estúdio de dança soa e a figura de um John Scott
enfiado em uma blusa regata cinza e calça moletom preta prende e rouba a
atenção de todos. Até Andrew, que estava pronto para mostrar mais um
passo, simplesmente refreia seus movimentos para observá-lo de uma forma
nada disfarçada. Eu posso até jurar que vejo seus olhos saltarem das órbitas
ao mesmo tempo em que sua boca saliva ao contemplar o corpo alto e viril
do loiro parado a poucos centímetros de nós.
— Então é você o garoto que estava atrasado? — o professor
pergunta, e John confirma, meio sem jeito. Seus orbes azuis passeiam por
nós e está explícito neles o silencioso pedido de desculpas que emana para
cada um. — Ótimo! — Andrew bate palminhas, completamente
contagiante. — Entre, venha! Estávamos esperando você, belezinha, para
poder começarmos! — Ele saltita até John e o puxa para o centro da pista, o
sorriso carregado de malícia fazendo com que seu rosto possa se partir em
dois a qualquer momento.
Solto uma risada baixa e nasalada, totalmente inconformada pela sua
beleza gritante demais ser um fator completamente decisivo na
hora de ele sair ileso de problemas.
Abro a tampinha da garrafa de água em minhas mãos e a levo até
meus lábios, tentando disfarçar o incomodo que sinto por Scott ser recebido
por sorrisos e elogios quando na verdade merecia levar vários esporros por
ter chegado atrasado e por ter me deixado ser a única garota sem um par.
Quando uma generosa quantidade de água gelada desce por entre
minha garganta, fecho a garrafinha e passo o dorso da mão na minha boca,
retirando os resquícios. Dou as costas para qualquer conversa entre John e o
professor, ou John e qualquer outra pessoa, e arrasto meus passos até minha
bolsa, que está em uma espécie de armário para cada um de nós. Deposito a
garrafinha por ali, e, assim que estou prestes a retornar para o círculo de
padrinhos, choco o meu peito contra o peitoral firme e feito de aço de
alguém.
Ergo meus olhos para o rosto da pessoa que trombei e encontro quem
não gostaria por ali. Franzo o nariz em uma careta de desgosto quando
observo o rosto de John Scott passar de levemente preocupado para
completamente achando graça de toda a situação. Franzo o nariz ainda
mais — se realmente for possível — por sentir a queimação da
sua mão envolvendo com firmeza a pele exposta da minha cintura, já
que me encontro agora apenas de top e calça legging e esse foi o único
lugar que encontrou para ajudar a me equilibrar.
Deveria ter me coberto mais. Droga!
— Com pressa? — pergunta, provavelmente se referindo ao fato
de termos nos batido. Quer dizer, nós não nós batemos. Ele quem se bateu e
quase se jogou em mim.
— Não tanto quanto você — ironizo. — Se perdeu no caminho,
Scott? — A firmeza do seu toque consegue aumentar por conta disso. Não
ao ponto de machucar, óbvio, e sim ao ponto de me deixar um pouco fora
de órbita. Detesto que meus hormônios carentes me traem nessas horas.
Limpo a garganta e tiro sua mão de mim, dando um passo para trás.
Temo que tenha prestado atenção no modo como me esquivei da sua
presença, mas isso parece não acontecer. John apenas aperta as pálpebras
com o polegar e o indicador, balançando a cabeça de um lado para o outro.
— Qual a probabilidade de você acreditar em mim se eu disser que
realmente me perdi no caminho?
— Zero. — Sou direta. Ele provavelmente conhece essa cidade de
cabo a rabo, como isso seria possível?
— Então nem vou me dar ao trabalho de explicar que fui parar em um
estúdio de ballet para crianças, então — John sacode os ombros, mas vejo o
lampejo de um sorriso cobrir seus lábios rosados.
Ele estava mesmo falando sério?
— Ballet para crianças? — repito, e o loiro confirma ao cobrir sua
boca com dois dedos, como se fosse para tentar impedir que um
riso ecoe pelo estúdio de dança.
— Isso mesmo. Eu fui parar em um estúdio de ballet e a professora
era uma senhorinha até que simpática. No começo, não havia percebido
nada de errado, até cheguei a cogitar que tinha chegado cedo no ensaio.
Depois, quando a senhora percebeu que eu não era nenhum pai de aluno e
nem estava lá para matricular ninguém, fez questão de me mostrar sua
turma. Resumindo... tive que assistir as meninas dançarem por não sei
quantos minutos.
— E pelo menos a apresentação foi boa?
John cobre ainda mais os lábios.
— Não, foi um completo desastre.
No exato momento em que libero uma gargalhada ao imaginar toda a
cena, John libera a sua também. O estúdio fica em silêncio e todos os
olhares estão cravados em nós, nos julgando de alguma coisa. Presumo eu
que seja por estarmos atrasando ainda mais o ensaio.
— Vamos acabar com isso logo, Scott. — Puxo sua mão e o arrasto
junto a mim. Antes que possamos chegar ao círculo com nossos amigos,
viro sobre os ombros e sopro: — Espero que sua visita às crianças tenha
feito a bailarina que habita em você se aflorar.
O erguer dos seus lábios é quase imperceptível, mas eu o flagro.

Nós iremos dançar uma seleção de músicas românticas dos anos 70 e


80, todas escolhidas por Hunter e Amber, os noivos mais exigentes desse
planeta. Apesar de algumas serem agitadas e terem uma coreografia
engraçada e até mesmo legal, a maioria são calmas e teremos que dançar
sempre grudadas com o nosso parceiro.
Odiei todas essas.
John pareceu ter odiado tanto quanto eu.
Nós não tínhamos sincronia alguma. Enquanto eu ia para um lado,
John seguia para o outro. Se o passo da vez era apenas me girar, John queria
me tirar do chão. E embora Andrew estivesse ensinando passo a passo para
nós com a maior calma e didática do mundo, nada parecia fazer sentido ou
entrar em nossa cabeça. O coitado fez tudo que pôde, mas enquanto não
estávamos fazendo tudo errado, estávamos discutindo sobre quem errou tal
passo ou até mesmo rindo sobre quem errou tal passo.
Éramos um completo desastre.
Um desastre ainda mais desastro que as garotinhas do ballet de mais
cedo — palavras de John, claro.
O ensaio acabou faz cinco minutos e Andrew pediu para que nós dois
ficássemos, pois queria conversar com a gente. Todos os outros, sem
exceção ou exagero da minha parte, pareciam que tinham adorado os
passos, além de que conseguiram aprender alguns deles super rápido. Me
sinto frustrada e John, que está ao meu lado, também parece exatamente do
mesmo jeito.
Andrew alterna o olhar entre nós dois e estala a língua no céu da
boca, balançando a cabeça.
— Como vocês podem ser tão horrorosos dançando, e tão lindos
separados? — questiona, incrédulo, com as mãos espalmadas na cintura. —
Vocês por acaso são ex-namorados que se odeiam por não terem terminado
nada amigavelmente?
— O quê?! — solto, rápida e inconformada. — Céus, não!
— Não são ex-namorados ou não se odeiam? — Andrew continua
querendo saber.
— Não somos ex-namorados — dizemos em uníssono.
— Hum... — Ele parece pensativo, ainda nos olhando como se
quisesse enxergar nossa alma ou algum problema entre nós que nos impeça
de dançarmos bem. — Então vocês se odeiam, certo?
Continuo sem entender nada. John apenas ri.
— Pode-se dizer que sim — Scott confirma, e eu o dou uma
cotovelada nas costas. — Quer dizer... é claro que não! Não nos odiamos,
não. Até nos beijamos um dia desses.
Arregalo os olhos e começo a tossir, constrangida. Minhas bochechas
queimam e Andrew corre para ficar atrás de mim, levantando meus braços e
dando batidinhas em minhas costas, visivelmente preocupado. Aproveito da
oportunidade para encarar Scott ao meu lado, minhas sobrancelhas erguidas
quase que no couro cabeludo, perguntando-o silenciosamente o que diabos
resolveu dizer. Ele apenas ergue as mãos em um sinal de rendição.
— Estou bem, estou bem — digo, após suspirar um bocado. O
professor de dança volta para a nossa frente, ainda desconfiado.
— Seja lá o que vocês sentem, precisam deixar para trás assim que
passarem por aquilo ali. — Aponta para a porta, depois para nós. — Eu já
vi muitas coisas na minha profissão e já atendi todo o tipo de casal que
possam imaginar. Já vi os que possuem química dançando, os que possuem
química só no modo como se olham e os que não possuem química alguma.
Vocês, mesmo que não tenham química na dança, possuem química
enquanto se olham e todos percebem isso. Só precisam confessar isso para
si mesmos e deixar que o sentimento flua para a pista. — Andrew solta um
suspiro apaixonado, ficando no meio de John e eu. — Se querem um
conselho, garotos, sugiro que procurem algo em comum. De acordo com a
minha vivência, achar algo que ambos conseguem fazer juntos é o pontapé
para que consigam e confiem um no outro para fazer qualquer outra coisa;
até mesmo dançar. Espero que no sábado voltem melhores, ou eu mesmo
me certifico de colocá-los em um quarto sozinhos por horas.
Dito isso, Andrew pega nossos pertences e nos entrega, depois
enrosca seus braços nos nossos e nos conduz até a porta, claramente
expulsando a gente para tomar um longo banho em sua banheira, como o
mesmo diz. Quando eu e John já estamos do lado de fora, nosso professor
— e agora conselheiro — pega a placa que diz ABERTO e a vira, as letras
da palavra FECHADO brilhando em nossa cara. Dá um sorriso e um
tchauzinho logo após, desligando as luzes do seu estúdio e sumindo do
nosso campo de visão.
Bufo, passando as mãos pelos meus fios ao me virar. Scott segue
alguns centímetros atrás de mim, os braços cruzados em frente ao corpo. Os
olhos claros encaram o céu, e um sorriso divertido pincela sua boca
esculpida em um tamanho perfeito. Não tão carnuda quanto a minha, mas
também nada fina. Os lábios de John Scott são do tamanho ideal para que
qualquer uma deseje senti-los por todas as partes expostas dos nossos
corpos.
Balanço a cabeça. Não posso pensar nessas coisas.
Puxo a minha bolsa de lado e vasculho dentro dela, procurando a
chave do Cadillac do meu tio. Como não trouxe o meu carro da minha
cidade para cá, David não faz questão que eu use o seu quando tenho coisas
para fazer, e eu amo isso nele.
— Estou indo, Scott. — Giro a chave em meu dedo, pronta para ir. —
Tenha uma boa noite.
Ele não me responde, então começo a me mover. Como se algo
tivesse estalado em minha mente, simplesmente paro. Viro sobre os ombros
e vejo o loiro parado, de costas, puxando os fios platinados do seu cabelo
liso.
— Ei! — grito, e John se vira para mim. — Você veio andando, não
foi? — Amber e Hunter escolheram esse estúdio de dança exatamente por
ser perto do rancho, então facilitaria para eles e os garotos. Como não
encontrei sua moto por aqui, então confio cem por cento no que acabou de
sair por entre meus lábios. John confirma minhas suspeitas com um manear
de cabeça logo depois.
Isso também explica o atraso.
— Vamos. — Aponto com a cabeça para o carro parado do outro
lado da rua. — Anda, vamos logo. Não tenho problema em te dar uma
carona. Ou prefere andar ainda mais do que já andou hoje?
John nega e sorri, apertando o passo para se colocar ao meu lado.
Andamos juntos até meu carro. Quando a gente se aproxima o suficiente, o
destravo, e John logo escorrega para o banco da frente e coloca o cinto.
— Não se acostume com essas coisas, John Scott — alerto, já me
sentando no banco do motorista e também colocando o cinto. Ligo o carro e
o rádio, colocando em alguma estação qualquer, apenas para não deixar o
trajeto mais desconfortável do que provavelmente vai ser. — É só uma
carona. Nada mais.
— Por que você não consegue ser legal sem ficar justificando o
porquê de estar sendo legal? — questiona, e vejo que me olha por rabo de
olho. Não devolvo seu olhar, não gosto quando fica querendo olhar para
além de mim. Presto atenção na rua e dou partida no carro. — É medo de
que as pessoas descubram que por baixo dessa sua farsa de garota má exista
uma garota real e genuinamente boa? — continua, após ver que não lhe
respondi.
— Eu só fico me justificando para você, John — minto. Jamais
admitiria que sua constatação tem um pouco de fundamento. — Tenho
medo de que você ache que estou sendo legal porque quero terminar a noite
na sua cama.
— E não quer? — brinca. Apesar de não o estar encarando, sei que
está sorrindo. Viro um pouco e... está lá. O sorriso atroz está tomando conta
de todo o seu rosto. — Você jamais confessaria, mas eu sei que quer. Todas
querem, diabinha.
Aumento mais o som, impedindo que John possa falar qualquer coisa
que atice em mim a vontade de jogá-lo para fora do carro com ele em
movimento. Por algum milagre divino, isso faz com que ele se cale e olhe
para a sua janela, vislumbrando todo o caminho de boca fechada.
Muito melhor assim, penso.
Cerca de cinco minutos depois, estaciono em uma rua próxima do
rancho e deixo o carro no ponto morto. Penso que John vai simplesmente
abrir a porta e dar o fora, mas a única coisa que ele faz é tirar o cinto e virar
o corpo um pouco mais para mim, a claridade do poste parado perto de nós
reflete em seu rosto e em cada (im)perfeição dele. Suspiro longamente por
causa disso.
— Você acha que deveríamos fazer o que Andrew sugeriu? Não gosto
de saber que sou ruim em algo. — Ergo uma sobrancelha, achando que está
de graça. Mas alguns segundos observando sua expressão estoica me faz ter
a certeza de que não está.
— Está realmente considerando o que ele falou?
— E por que não estaria? — John se aproxima um pouco mais, e eu
me afasto no momento em que faz. O garoto morde um sorriso por perceber
que não gosto de quando se aproxima demais.
Droga.
Mil vezes droga.
Eu sempre fui ótima em fingir e esconder minhas emoções, por que
não consigo esconder quando mais necessito?
Murmuro baixinho, voltando ao que interessa.
— Porque ele nem sabe de nada da nossa vida, John Scott. Ele nem
sonha que eu e você somos de mundos completamente diferentes e que,
muito provavelmente, não exista nada nesses mundos que façam nós dois
termos química na dança ou em qualquer outra porcaria. Nós dois nem ao
menos temos química.
John leva a mão ao rosto e coça sua bochecha, parecendo pensativo.
— Já foi em algum fliperama? — é a única coisa que menciona,
assim que volta seu olhar ao meu.
O quê?!
— Você ao menos escutou o que eu disse, garoto?
— Já foi em um fliperama ou não, Pasha? — repete, incisivo.
— Não, John. Eu nunca fui em um e nem estou entendendo o que isso
tem a ver com o que estamos discutindo.
John sorri de orelha a orelha, como se aquela fosse a resposta de
todos os nossos problemas.
— Ótimo. Eu também nunca fui — confidencia, e eu sigo sem
entender nada. A minha vontade de jogá-lo para fora do meu carro só
aumenta. — Amanhã, quando sair do Fast Rocket, passo para buscá-la.
Abro minha boca para retrucar, mas ele já está saindo do conversível.
O baque que a porta faz ao ser fechada é quase imperceptível, então John
Scott curva seu corpo e enfia o rosto pela janela, duas fileiras de dentes
perfeitos e branquinhos sendo evidenciados à medida que sorri.
— Não é que eu não acredite que não tenhamos nada em
comum, Pasha. Porém, se ficará melhor acreditando nisso, então eu finjo
que acredito junto com você. — E lá vamos nós de novo. John agora olha
dentro dos meus olhos e parece perceber mesmo como sou por dentro,
embora não consiga acreditar muito nisso. Ninguém nunca quis ou
conseguiu me ler tão bem. — Então se é para fingirmos que não temos nada
em comum, mesmo que nunca ter ido em um fliperama já seja uma coisa
em comum, quero te mostrar que nem tudo é preto no branco como você
diz, diabinha. Quero poder te mostrar que mundos diferentes se interligam
criando novos mundos. E eu tenho certeza que criaremos um amanhã muito
divertido e que tenha muita química. — Pisca, e antes de ir embora, sopra:
— Eu até pediria para ficar bonita amanhã, mas é impossível pedir algo que
já é seu por natureza.
Pisco uma, duas, três vezes.
Criar um mundo novo só para nós dois? Que piada!
É completamente impossível um mundo que caiba John Scott
e Pasha Stratford dentro dele.
Quando falei para Pasha Stratford que iríamos criar um novo mundo
hoje, não quis realmente dizer aquilo. Quer dizer, eu quis dizer aquilo. Eu
realmente quis. O problema é que não sei se quis dizer da maneira como ela
provavelmente interpretou.
O fliperama do Mike, como todos costumam chamar, é bem famoso
pela criançada — embora eu nunca tenha pisado os pés por lá — e tem a
fama de ter vários jogos diversos e tecnológicos, atraindo uma quantidade
razoável de clientes todos os dias em que abre, principalmente por vender
os melhores doces da região. Lá, dentre uma infinidade de temas de jogos,
se destaca um chamado Make Your World, onde as pessoas têm a chance de
escolher algumas opções de vilas, bonecos e até mesmo um segundo
jogador, cujo objetivo é resgatar uma princesa que fica presa dentro de uma
torre cercada por guardas. Além de ter que cumprir algumas missões, se
você for pego por algum guarda, provavelmente morrerá e terá que começar
tudo do zero.
Foi desse mundo que eu quis falar.
E é um mundo bem difícil, a propósito. Ouvi dizer que é mais fácil
cair neve em Hellaware do que alguma criatura zerar o maldito jogo.
E o fliperama foi exatamente a primeira coisa que passou pela minha
cabeça quando ela falou que não tínhamos nada em comum. Nunca o tinha
visitado e, sabendo como ela é, já tinha a maior certeza de que nunca havia
pisado os pés em um também. Matei dois coelhos com uma cajadada só,
pois eu iria provar para Pasha que poderíamos nos divertir juntos sim. Eu
iria provar que pessoas de mundos diferentes podem se colidir, sim, em
algum momento.
Se fosse para nos juntarmos apenas com pessoas que partilham das
mesmas crenças, dos mesmos costumes e das mesmas vontades que nós,
qual graça teria a vida?
Seria uma porcaria chata e robótica demais para alguém com sede de
viver como eu.
E é por isso que eu solto um fluxo de ar e abro a porta da lanchonete
do parque, adentrando no ambiente colorido e completamente lotado de
adolescentes baderneiros. As garçonetes passam apressadas perto de mim e
até uma chega a esbarrar em meu ombro, todavia logo percebe o que causou
e em quem causou, pedindo desculpas a mim com um sorriso repleto de
segundas intenções ao passar os olhos descaradamente por todo o meu
corpo. Eu até retribuiria seu flerte, mas minha atenção se volta totalmente
ao som de algo tilintando contra o piso de quadradinhos do
estabelecimento. Assim que sigo o som, vejo Pasha Stratford e seus
indispensáveis saltos altos se aproximarem do lugar em que me encontro
estagnado.
A garçonete logo se retira, e a ruivinha toma seu lugar ao ficar em
minha frente. Faço o maior esforço para olhar apenas em seus lindos olhos
e não em suas lindas pernas.
Inferno de mulher matadora.
Ela precisava mesmo colocar esse vestido minúsculo e apertado para
ir a um fliperama? Qual é, chega a ser inapropriado para as crianças. Os
moleques nerds na fase da puberdade muito provavelmente vão ir à loucura
assim que colocarem os olhos nesse monumento que chamam de mulher.
Porra. Pasha Stratford deve ser a mulher mais linda, gostosa e
problemática que eu já vi na vida. E cacete, eu já vi muitas mulheres na
vida. Minha fama pela cidade com certeza faz jus ao que estou falando
agora. Mas, mesmo assim, mesmo me deparando com centenas delas,
nunca, em hipótese alguma, consegui ficar frente a frente com uma que
fosse tão... tão Pasha Stratford.
É exatamente por isso que a detesto.
Deveria ser crime e atentado contra o pudor tamanha beleza em um
ser humano do sexo feminino.
Tentando não parecer afetado com a pontada agonizante que sinto lá
embaixo, lhe direciono o meu melhor sorriso sagaz ao dizer:
— Pronta para o nosso encontro, minha gata?
O rosto estoico da ruiva ligeiramente se transforma em uma careta ao
ouvir minha frase que, com toda certeza do mundo, havia sido proferida
com o intuito de provocá-la.
Sabe como é, só para não perder o costume.
— Por que você sempre tem que estragar tudo abrindo essa sua boca?
— Pasha soa entediada, e sei que faz a maior força para não rolar os olhos.
Meu sorriso se alarga ainda mais em meu rosto quando encurto nossa
distância. Curvo um pouco as minhas costas, tiro algumas mechas do cabelo
que cascateia seus ombros, me aproximo da sua orelha e sopro bem
lentamente:
— Se você prefere que eu a mantenha ocupada, é só falar, minha gata.
Volto para minha posição anterior bem a tempo de vê-la finalmente
rolar os olhos.
Adoraria saber se ela sentiu o mesmo arrepio na espinha que eu.
Tento procurar algum indício disso, e o encontro bem no meio do castanho
dos seus olhos. A faísca foi completamente acendida e eu a vejo se espalhar
por toda sua íris cor de mel.
Bingo!
Ao contrário do que aconteceria se fosse outra garota, Stratford não
devolve o meu flerte e nem recua, tímida. Ela apenas libera uma risada sem
humor algum e encurta nossa distância novamente. Nós não temos uma
diferença de altura gritante, afinal, Pasha não é baixa e tem uma altura
considerável. Porém, ainda assim, ela tomba a cabeça para trás e lentamente
um sorriso diabólico começa a crescer em seu rosto.
— Eu não sou sua gata, John Scott. Nem sua e nem de ninguém —
ronrona, e eu quase perco as estribeiras com o ar sedutor que a envolve
agora. Não sei se as pessoas ao nosso redor prestam atenção em nós, mas,
sinceramente, quem liga? Sinto como se só tivesse nós dois e a nossa tensão
aqui. Eu poderia facilmente beijá-la agora. — Se me chamar assim
novamente, juro que arranco suas bolas.
— Ok. Perdão. — Ergo minhas mãos em rendição. Depois, as afundo
na minha jaqueta de couro e ergo os ombros assim que decido reformular
minha pergunta do início e que, caso a gente não queira se atrasar, precisa
ser dita agora: — Preparada para o nosso encontro, minha diabinha?
Suas sobrancelhas quase tocam em seu couro cabeludo no mesmo
instante em que seus lábios cheios e envoltos por camadas de batom
vermelho friccionam-se um no outro.
— O quê? — soo inocente ao me defender do seu olhar mordaz sobre
mim. — Você falou que eu não poderia te chamar de minha gata. Achei que
minha diabinha estivesse livre. Não estava?
Pasha balança a cabeça de um lado para o outro, inconformada, e se
direciona até minhas costas. Antes que eu possa entender o que ela está
fazendo, sinto suas duas mãos repousarem um pouco abaixo do meu ombro,
empurrando-me em direção a saída. Não protesto, entretanto. Com um
sorriso adornando meus lábios, empurro a porta do Fast Rocket e ela segue
em meu encalço.
Escuto seus saltos ecoarem assim que detenho os passos já no parque,
e logo se põe em minha frente, com os braços cruzados.
— Antes de irmos, preciso esclarecer algumas coisas, Scott. — Ela
olha dentro dos meus olhos, e eu sinto que é algo sério dessa vez. Apenas
confirmo e peço que prossiga. — Eu estar indo não quer dizer que eu
concorde com a sua teoria maluca. Muito menos significa que eu quero
estar fazendo programa a dois com você. Só estou me enfiando nessa
situação desconfortável porque estou com uma vontade quase descomunal
de rir da sua cara quando você finalmente perceber, lá para o fim da noite,
quando estivermos voltando para casa, que não temos nada a ver um com o
outro.
Admito que Pasha Stratford tem um bom ponto. Lá para o fim da
noite isso pode mesmo acontecer. Posso fracassar nessa e levar um “eu
avisei” da garota do Alasca. Mas, para a minha surpresa, não é isso que
sinto dentro de mim. Eu até poderia dar a desculpa de que conheço bem o
sexo feminino para saber que é impossível que qualquer uma possa consiga
sentir tédio ao meu lado, mas seria completamente não aceitável nessa
situação.
O que sinto de verdade é que ela sente tanto quanto eu que só o fato
de estarmos juntos já é algo divertido.
— Acabou? — Ergo uma sobrancelha, brincalhão.
— Não, não. — Pasha balança o dedo indicador e morde um sorriso.
— A última e não menos importante é: nada de usar pronomes possessivos
quando for se referir a mim.
— Sim, senhora. Nada de pronomes possessivos. Ainda — corrijo só
para vê-la se irritar mais um pouco. E é exatamente o que acontece, pois
pisa duro e abre a boca para retrucar. O problema é que saio na frente antes
ao completar: — Já que você tem coisas a esclarecer, eu também tenho.
Primeiro, esse salto aí? — Aponto para os seus pés, e ela logo olha para
baixo, depois para mim. — Escolha péssima, diabinha. Como planeja subir
em uma moto com essa coisa?
Até tento continuar com meus argumentos, mas ela logo me corta, um
“shh” saindo dos seus lábios para que eu me cale. E é exatamente o que eu
faço.
— Acho fofo o fato de você achar que eu vou subir na sua moto,
John. Juro que acho mesmo. Mas é óbvio que isso não vai rolar.
— E por que não?
— Porque eu tenho amor a minha vida e a minha reputação. Não
quero morrer e nem quero que surjam fofocas dizendo que me viram na
garupa da sua moto como mais uma de milhares.
Não consigo não soltar uma gargalhada.
— Isso para mim soa como desculpa para não querer ficar
agarradinha comigo na minha garupa. Quanta covardia, diabinha.
— Ache o que quiser. — Dá de ombros ao girar nos calcanhares.
Antes de começar a caminhar de fato, vira sobre os ombros e solta: — Vai
me seguir ou vai ficar aí parado?
Inspiro a maior quantidade de ar e dou alguns passos, colocando-me
ao seu lado. O máximo que consigo ficar calado é por cerca de um ou dois
minutos, porque, quando percebo, já estou mencionando:
— Se não vamos de moto, então vamos do quê?
— Com o meu carro, claro — Pasha responde, sem olhar para mim.
Seus olhos passeiam pelos brinquedos e por algumas crianças que insistem
em correr de um lado para o outro, provavelmente deixando seus pais de
cabelo em pé.
Quando percebo, estou parado. Não me movo e a ruiva parece sentir a
minha falta ao seu lado, pois logo também para. Percebo sua testa crispada
e seus olhos injetados de confusão quando me fita, exatamente iguais aos
meus nesse momento.
— Eu não te entendo, Stratford — digo, assim que vou dando alguns
passos novamente em sua direção. — Qual a diferença de ir na minha moto
ou ir no seu carro? Não vai dar no mesmo? As pessoas podem comentar do
mesmo jeito.
— Rá. Aí que está, querido Scott. — Seus olhos ganham aquele
brilho costumeiro de quando a garota está prestes a dar a cartada final, e sua
língua circunda o seu lábio superior, como se fosse a porra de uma gênia
poderosa para um cacete. — Estaremos no meu carro. Estaremos no meu
território. As pessoas não dirão que me viram na sua moto, e sim que te
viram no meu carro. Entende a diferença, garotão? Você será apenas mais
um comigo.
Isso deveria me deixar puto ou algo do tipo? Porque, honestamente,
se essa foi a intenção, devo admitir que não deu nem um pouco certo.
Eu gostei para um caralho.
— Então eu serei a sua presa hoje à noite? — solto. Meu sorriso pode
partir meu rosto em dois a qualquer momento, mas não estou nem aí.
— Não será, não. Mas e daí? Se alguém quiser pensar que sim, então
que pense.
Pasha sorri travessa e volta a caminhar, deixando-me para trás. Estou
observando-a sair do parque enquanto rebola descaradamente. Os pescoços
de alguns caras acompanham o trajeto da ruiva, a despindo com o olhar.
E sabe o que eu faço quanto a isso? Exatamente... nada!
Não faço nada porque me encontro na mesma situação dos caras.
Enquanto permaneço na minha espécie de transe, assim como todos
eles, me pergunto como pude, logo depois que nos beijamos, achar que
deveria me afastar dela. Como pude achar que deveria ignorar toda a
atração e eletricidade que nos envolve? Fazer isso é simplesmente uma
atrocidade.
Sua frase de minutos atrás, sua identidade, seus olhos, seu sorriso
diabólico e, obviamente, sua audácia em demonstrar que não liga para o que
pensam acabam de me dar um estalo.
Finalmente consigo enxergar com clareza agora.
Somos mesmo como fogo e gasolina. Somos fogo e gasolina e eu
estou simplesmente muito a fim de deixar tudo queimar.
Eu nunca me envolvi romanticamente com nenhuma garota. Sempre
fui o mais sincero quanto a isso e nunca enganei ninguém. Todas que iriam
parar na minha cama sabiam exatamente que eu não poderia oferecer nada
em troca, ou seja, tudo não passava de sexo casual e elas sabiam disso. Era
tudo muito claro; eu as dava prazer e vice-versa. Nada romântico, nada que
me desse frio na barriga ou nada que ascendesse uma leve fagulha em meu
coração.
Devin Leblanc, um dos meus melhores amigos, costuma dizer que eu
tenho um coração de gelo e que dentro dele, lá no fundo, quase achando
petróleo, só resta uma pequena parte onde eu reservo apenas para ele e para
o restante da minha família, que são Kieran, Kara e Violet. Mas,
sinceramente, não são assim que as coisas funcionam. Tem um lado da
minha vida que ainda me controla o suficiente. Tem um lado da minha vida
que ainda serve de lembrete para que eu nunca esqueça do quão ferrado eu
e ela somos.
Então me diga como posso deixar que alguém adentre o meu coração
se ele, definitivamente, não é um bom lugar para alguém fazer morada? Ele
é oco, cheio de retalhos e com uma bagagem não muito boa.
A quem eu quero enganar? A verdade é que meu coração é ferrado.
Eu sou ferrado. Sou uma pessoa ferrada, com um humor ácido e com
comentários sarcásticos bem articulados na ponta da minha língua, prontos
para atingir quem quer que seja.
E quando beijei a Pasha, meu coração, que é tão escuro quanto eu,
sentiu algo dentro dando uma leve ascendida. E puta merda, eu nunca havia
sentido aquilo antes com ninguém. Eu nunca havia sentido uma vontade
quase incontrolável de fazer aquilo uma segunda vez e nunca, em hipótese
alguma, senti que o sabor de alguma garota havia se tornado o meu sabor
favorito dentre todos os outros. Foi aterrorizante me ver encurralado
naquela situação, onde meu coração pedia que algo como aquilo se
repetisse e o meu cérebro implorava para que eu me afastasse o quanto
antes.
E, como um bom covarde, escolhi a segunda opção.
Então eu a afastei, não a procurei e fiz de tudo para que não tocasse
no assunto, assim como fiz de tudo para esquecê-lo. O problema é que
agora, depois que o destino riu da minha cara ao colocá-la como minha
acompanhante no casamento, e depois das nossas trocas de farpas,
realmente quero mandar todo esse meu pensamento ir à merda.
E não. Não é porque quero algo romanticamente com a ruiva. Não é
porque estou sentindo algo diferente ou porque quero sentir algo diferente.
Estou destinado a fazer isso porque simplesmente não posso ignorar e
reprimir a vontade que tenho de tomá-la em meus braços e levá-la para a
minha cama. Fazer isso seria estúpido, idiota e nem se pareceria comigo, de
qualquer forma.
E eu tenho certeza que a ascendida que meu coração deu naquela
noite foi algo parecido com muito desejo por ela. Só isso.
E, embora eu nunca tenha sentido nada igual por nenhuma outra
mulher, não posso ficar com medo de um simples desejo. Meu coração não
iria querer que alguém adentrasse ele do nada, então não tenho pretensão de
afastá-la.
Certo?
A única coisa que preciso lutar é para que ela não me afaste. Eu sei
que ela sente o mesmo que eu e compartilha do mesmo medo. Seu desejo
por mim e a sua fome de me beijar era tão cristalino naquela noite quanto as
águas do Caribe. Por isso, preciso abaixar a guarda dela e provar que não
sou um babaca completo como ela provavelmente pensa que sou. Preciso
que ela aceite se divertir comigo assim como eu anseio me divertir com ela
há meses.
Preciso que ela confie em mim e em toda essa coisa que nos envolve.
E, parando para analisar bem agora, como Pasha Stratford pensa que
nós não temos química? Isso chega a ser piada, na verdade. Eu e a ruiva não
só temos química como temos física, história e todas as matérias possíveis
nos englobando.
Faço uma nota mental para prová-la isso hoje.
Mudo o rumo dos meus pensamentos quando finalmente adentramos
o fliperama juntos. O local é preenchido por tons de roxo e até a luz é dessa
cor. Há dezenas de máquinas de jogos por todas as partes, assim como
garotos e garotas circulando o estabelecimento com uma porrada de doces
em mãos. O Fliperama do Mike não é tão grande, então mesmo estando na
entrada consigo ver um senhor beirando os sessenta anos lá nos fundos, em
uma espécie de balcão, onde os doces ficam logo atrás. Presumo que seja
Mike, o dono, pois está usando uniforme e um boné roxo na cabeça que diz
“sou o Mike”.
Olho de soslaio para a garota ao meu lado, e, embora pareça
impassível aos olhos de qualquer outro por aqui, percebo que morde o lábio
inferior na tentativa de conter um sorriso, pois seus olhos passeiam por cada
parte do ambiente e, quando finalmente os repousa sobre mim, vejo-os
brilharem como se tivéssemos voltado à infância.
Já disse o quanto os olhos dela são lindos? Pois são, sim. Muitos
podem não ver nada demais por serem castanhos e, aparentemente, comuns.
Mas eu os acho completamente lindos e encantadores. Deve ser pelo fato de
serem os castanhos dela. E qualquer coisa em Stratford é fascinante e
surreal.
Pigarreio.
Preciso parar com esses pensamentos esquisitos e aleatórios.
— Quer comer doces ou já quer partir para a diversão? — questiono
ao meu pôr em sua frente. Pasha balança a cabeça de um lado para o outro,
como se estivesse desacredita com algo. Tento muito não sorrir agora, mas é
inevitável. Estou querendo sempre sorrir para ela. — O que foi que eu fiz
agora?
— Você? Dessa vez, nada — devolve e balança os ombros para cima
e para baixo. — Estou aqui pensando nos meus pecados, tentando adivinhar
qual deles me fez estar aqui nesse exato momento com você.
— Você fala como se estar ao meu lado fosse a coisa mais horrível do
mundo. Caramba, diabinha, isso magoa. — Projeto meu lábio inferior para
fingir tristeza, e levo minha mão ao peito para potencializar o teatro. — E a
propósito, não deveria sair por aí reclamando. Se eu tivesse que pagar os
meus pecados com uma pessoa como eu, provavelmente estaria de joelhos.
Sulcos formam-se entre as sobrancelhas alaranjadas de Pasha ao ver
meu sorriso ladino.
— Para agradecer, Pasha Stratford. Estaria de joelhos para agradecer
— completo, e vejo o fantasma de um sorriso passar por seus lábios cheios.
— Que mentezinha diabólica, garota. Eu gostei disso.
— Você ainda não viu nada — ela solta, antes de me deixar sozinho.
Quando percebo, a ruiva já está indo atrás de Mike, debruçando-se no
balcão ao apontar algum dos doces da prateleira. Seu vestido curto e
apertado sobe ainda mais por conta da sua bunda empinada.
Fico de costas para a cena e enterro meu rosto entre as mãos. Em
seguida, solto um grunhido e desalinho ainda mais meus fios platinados. Os
moleques nerds com fundos de garrafas e espinhas passam por mim e me
olham com curiosidade.
Ótimo.
Acho que acabei de me tornar um deles.
Suspiro, frustrado, e arrasto minhas botas de combate até um estofado
roxo e em formato de círculo, que fica ao lado de uma máquina de
fliperama meio que abandonada por todos os adolescentes. Quando me
sento, procuro por Pasha e a vejo varrer o local com suas írises castanhas,
provavelmente procurando por mim. Levanto meu braço e a chamo.
— Achei que tivesse fugido, Scott — é o que Stratford diz ao se
aproximar. Ela está com um Push Pop na mão, que é uma espécie de
pirulito cilíndrico estranho que se retrai em tubo de plástico tampado,
imitando um batom. A garota de fios alaranjados roda o tubinho até o doce
azul aparecer, e a ponta da sua língua avermelhada solta para fora,
lambendo circularmente o doce. Quando seus globos saem do pirulito e se
concentram em mim, enxergo algo lascivo perpassando por eles,
queimando-me por inteiro. Essa mulher é tão sensual que, novamente
afirmando, chega a ser inapropriado. Mas, antes que eu possa pensar muito
mais sobre, Pasha sorri para mim de forma inocente que, venhamos e
convenhamos, não combina nada com ela. — Já peguei o doce. Cadê a
parte da diversão?
Me levanto, pronto para mostrá-la.
— Por aqui, senhorita. — Aponto para o jogo Make Your World com
a cabeça, indicando ele um pouco mais lá na frente. — Vou mostrar para
você que podemos criar um mundo perfeito juntos. Espero que esteja
pronta. Ah! Antes que eu me esqueça, preciso que a gente faça uma
promessa.
— Promessa? Que tipo de promessa? — Pasha pergunta assim que
cruza os braços. Suas sobrancelhas estão erguidas e ela parece visivelmente
interessada.
Me animo só com a probabilidade de ela realmente estar começando a
considerar que isso aqui no fliperama possa ser sério. Meus lábios se
erguem sutilmente por conta disso.
— É uma promessa séria, Stratford. Não estou fazendo graça. —
Deixo claro, e ela parece compreender que não estou fazendo algum tipo de
piada, pois seu queixo sobe e desce, como se estivesse confirmando. —
Você disse que só topou isso aqui porque está doida para rir da minha cara
no final, já que acha que não vamos nos divertir e que não há um mundo
para nós dois. Mas, caso eu te mostre que, sim, há um mundo para nós e
faça você se divertir, espero que, no mínimo, como eu acho que seja uma
jogadora nata, seja cem por cento sincera no fim e me diga a verdade.
Apenas a verdade. Fui claro?
— Resumindo... — Pasha dá uma pausa e lambe o pirulito
novamente. — No fim da noite você quer que eu seja sincera e diga se me
diverti ou não, certo? — Confirmo. Ela sorri. — Posso fazer isso. Mas por
quê?
— Por que o quê?
— Por que esse empenho de fazer com que eu me divirta? Por que
esse empenho de mostrar que existe um mundo para nós? Não me parece
que seja só por Andrew e pela dança. — Seus lábios com as grossas
camadas de batom vermelho estão manchados de azul por conta da tintura
do pirulito. Entretanto, isso consegue deixá-la ainda mais sexy. Não sei se é
uma tentativa da garota de me provocar ou se sou eu ficando louco com
qualquer coisa que ela faça, mas vejo em câmera lenta o exato segundo em
que seu dedão melecado do corante do pirulito vai parar em sua boca.
Desvio minha atenção para conseguir focar em sua pergunta e não na
fricção dos seus lábios voluptuosos chupando a droga do seu dedo.
Assim que volto meu olhar para ela, alguns segundos depois, está
com o mesmo dedão passeando pela região dos cantos da sua boca,
retirando qualquer resquício do doce por ali. Nesse interim, seus olhos
permanecem grudados na minha figura, esperando uma resposta que
demora a chegar. Pigarreio mais uma vez.
— E não é mesmo só por isso. Estou fazendo isso porque está na hora
de fazer isso. Está na hora de você, Pasha Stratford, me conhecer de
verdade. Está na hora de você parar de ver o idiota que te irrita para ver o
idiota que te irrita e te diverte.
Termino de falar e ela fica calada. Suas írises fixam-se ainda mais nas
minhas, parecendo procurar algo nelas da qual não sei se deseja. Pela forma
como me observa, penso que vai fazer o maior discurso, provavelmente
percebendo que estou escondendo informações, ou até mesmo retrucar meu
comentário com inúmeros pontos que o coloquem lá embaixo. Mas, pela
minha surpresa, a única coisa que escapole dos seus lábios é:
— Você não está apaixonado por mim, né?
Sinto meu coração parar por um segundo, mas ele logo se tranquiliza
e volta a bater normalmente quando um sorriso engraçado pincela o rosto
dela.
— Se estiver apaixonado por mim, John Scott, já deixo claro que terei
que partir seu coração — emenda, divertida.
Não sei o que eu disse para, aparentemente, fazê-la baixar um pouco a
guarda e começar a se sentir segura comigo, mas, honestamente, mesmo
não sabendo o que seja, gosto bastante do que disse. Gosto bastante desse ar
agora que nos envolve.
— Não precisará partir o meu coração se eu partir o seu primeiro —
brinco, e dessa vez ela não sorri. Fica estoica, olhando-me daquele jeito que
não sei compreender muito bem. Ótimo. Qualquer avanço que poderia ter
feito, acaba de ser desfeito com a minha falta de tato e a minha falta de
firmeza em segurar a porcaria da minha própria língua.
Abro a boca, pronto para desfazer o que quer que eu tenha feito,
porém Pasha não deixa que eu faça, pois sai na frente ao soprar:
— Eu sou uma vadia sem coração, John Scott. Achei que soubesse
disso.
Aperto meus lábios um no outro, assentindo.
— Esqueci disso por um momento.
— Farei questão de te lembrar. — A alasquiana inspira fundo e dá um
passo em minha direção. Prendo a respiração quando sinto seu cheiro de
cereja próximo demais de mim. Ela está perto. Perto demais. Vejo com
clareza cada sarda espalhada pelas suas bochechas e ossinho do seu nariz,
assim como vejo com muita nitidez seus cílios fartos e a sua boca se
abrindo em um sorriso de quem joga sujo. Quando percebo, a mão da ruiva
se enfia dentro do bolso da minha jaqueta e joga o pirulito já fechado por lá.
— Enjoei dele. Pode chupar depois, se quiser. — Então, como se sua fala
não fosse nada, se afasta. — Vamos? Qual desses jogos aqui eu vou acabar
com a sua raça?
Rio, porque essa garota é inacreditável. Ela simplesmente não existe.
Não há alguém no mundo que se assemelhe com pelo menos um pouco do
que Stratford é.
Acho que está para nascer uma mulher tão fenomenal e, claro,
sensual.
— Nenhum, diabinha. Agora se estiver me perguntando o jogo que eu
acabarei com a sua raça, aí sim poderei te mostrar. Só preciso saber se está
pronta para adentrar nesse nosso novo mundo.
Pasha parece pensar a respeito. Tem até um biquinho fofo pairando
em sua boca. Segundos depois, responde:
— Não há nada nesse mundo que eu não esteja pronta.
— Esse aqui é o mundo que você estava dizendo que poderíamos ter em
comum? — Aponto para a máquina do fliperama e para o nome Make Your
Word brilhando em letras garrafais. John Scott confirma, e seu sorriso largo
me faz querer esganá-lo. — Tá de sacanagem, idiota? Eu estava esperando
algo sério, não essa palhaçada.
O mundo que ele estava falando era esse aqui. O tal do jogo é uma
estupidez tremenda de criar novos mundos com novas vilas, bonecos,
segundos jogadores, salvar princesas presas e fugir de guardas.
É óbvio que ele estaria de palhaçada quando falou aquelas coisas no
carro. Como eu pude pensar o contrário? John Idiota Scott não leva nada a
sério.
E por que merda eu estou puta com isso?
“Porque uma parte de você pensou que ele realmente estava
empenhado em lhe mostrar que vocês dois poderiam dar certo juntos”, meu
subconsciente perverso grita para mim e, por instinto, levo minhas mãos até
minha cabeça, balançando-as, em uma tentativa inútil de tentar retirar as
palavras sufocantes dentro dela.
Droga. Detesto toda essa merda. Detesto toda essa montanha-russa de
humor quando estou ao lado dele.
No começo, estava certa que não viria. Estava pronta para dar um bolo
nele e simplesmente sair do trabalho mais cedo, alegando para meu tio que
estava passando mal só para que ele pudesse me dispensar sem muita
cerimônia. Acontece que uma parte de mim, aquela sádica e perversa que
adora me meter em confusão, estava louca de curiosidade para saber do que
isso aqui hoje se trataria. Estava louca para descobrir se era possível mesmo
que pudéssemos nos divertir e até mesmo nos sentirmos compatíveis em
alguma coisa. E, embora tenha dito a John que só aceitei sair com ele por
querer rir da sua cara no final — mesmo que não seja de todo uma mentira
—, ainda sim, algo lá no fundo, bem lá no fundo mesmo, quase não existindo,
queria poder ter o contrário.
O quão estúpido e ferrado isso é?
Eu prometi a mim mesma que não iria cair nos encantos dele e não vou.
Então preciso encarar isso como algo positivo e que comprova a minha teoria
de que eu e ele não temos nada a ver um com o outro. Nós somos
incompatíveis e nossos mundos também.
Abro a minha boca para completar meu pensamento, só que John me
impede. Ele solta uma gargalhada contagiante e seus olhos azuis claros ficam
injetados de diversão e fascínio, como se a sua ideia fosse a mais genial do
mundo.
— Não é fantástico? — ele sussurra, para que só eu possa escutar, o que
é totalmente idiota, já que ninguém parece se quer prestar atenção em nós. —
Vamos nessa criar nosso mundo, diabinha.
Solto um muxoxo.
— Então tudo não passava de uma piada? — indago, e detesto o modo
como a minha voz vacila por um segundo. John parece nem perceber, mas as
suas sobrancelhas grossas se unem e ele parece confuso com o meu
comentário. — O que você realmente está querendo com tudo isso aqui,
John? E seja sincero dessa vez.
— Eu já falei, quero fazer com que a gente se divirta. Sei que a analogia
foi péssima, mas foi a única coisa que passou pela minha cabeça quando você
começou a falar sobre mundo, química e essas coisas. — O loiro solta uma
risadinha nasalar e tira as mãos da jaqueta de couro que usa, apontando para a
máquina à minha frente. — Esse jogador aqui... — Seu dedo em riste está na
direção do boneco moreno, musculoso e engraçado, pronto para salvar a
princesa em apuros. — Vamos fingir que sou eu. A princesa é você. Os
guardas são as nossas teimosias querendo impedir que a gente se aproxime. E
aí a gente os detona e mostra que podemos ficar juntos sem que um queira
matar o outro.
É impossível não dar risada dessa analogia que, com toda certeza, é
ridícula.
— E o jogo a gente finge que é um mundo criado só para nós, estou
certa? — Por algum motivo que desconheço, entro na sua brincadeira. E lá
vamos nós na montanha-russa. Dessa vez, a raiva se dissipou e deu lugar a um
sentimento beirando a algo bom. — E se perdermos? Significa que não temos
jeito mesmo?
Estou brincando, mas John provavelmente não percebe. Ele penteia seu
cabelo para trás e depois coça sua bochecha e o queixo.
— Porra, não pensei nisso. — Acho fofo o modo como ele parece
perturbado por não ter pensado nessa parte. Faço o meu melhor para não
sorrir e estragar tudo.
Preciso tirar proveito disso. É da minha natureza e da dele que
procuremos uma brechinha para que possamos nos alfinetar.
— Então seu plano tem furos, caro Scott — digo ao fingir decepção. —
Como você planeja me convencer de algo se nem ao menos se esforçou para
isso?
Sinto a tensão preencher os músculos do seu rosto e do seu corpo
enquanto seu cérebro parece se fundir ao pensar demais, então solto a risada
que estava segurando todo esse tempo.
— Estou brincando com você, não precisa ficar com essa cara. — Solto
uma risada e, pouco a pouco, John suspira e sorri também. — Você pensou
em uma grande idiotice e realmente a analogia foi péssima, mas gostei da sua
originalidade para mostrar um ponto. Então vamos nessa, vamos salvar a
princesa em perigo.
— É para já, minha princesa — John bate uma mão na outra, animado,
e se coloca ao meu lado, em frente ao jogo. Quando o Make Your World
começa a ganhar vida, ele engancha seu braço em meu pescoço por um
instante. Parecendo perceber o que havia feito, vira o rosto para me encarar,
talvez tentando enxergar algum desconforto da minha parte. Não me importo
que ele se aproxime, no entanto. Acho que precisamos baixar a guarda para
que nós dois não transformemos o casamento de Amber e Hunter em um
completo desastre.
Faço a minha melhor expressão de séria e digo, firme:
— Nada de pronomes possesivos quando for se referir à princesa,
mocinho.
E então começamos a jogar.

Eu e John fomos péssimos no fliperama.


Na verdade, péssimos seria eufemismo.
Como nenhum dos dois nunca fez nada do tipo, mal sabíamos como
conduzir todo aquele universo, muito menos como criar estratégias para nos
esconder dos guardas, que sempre apareciam para nos matar e começar o jogo
tudo de novo. Nós acabamos chorando de rir boa parte do tempo, até que uma
criança emburrada apareceu por lá querendo jogar, quase nos expulsando da
máquina.
John até tentou subornar a garotinha para que nós jogássemos mais
algumas partidas, alegando que compraria todos os doces do Mike para ela,
mas a loira de olhos felinos não quis saber e ainda por cima disse que era
alérgica a açúcar e que não iria aceitar nada de estranhos.
Nós não tivemos outra opção a não ser correr para a máquina do
Pacman.
Dessa vez eu e ele detonamos no jogo.
Agora já são dez horas da noite e o lugar acabou de ser fechado. Acho
que Mike se encantou por mim, pois antes de eu sair, me chamou até o seu
balcão de doces, recolheu o maior número deles e os enfiou dentro de uma
sacola roxa com o símbolo do fliperama, pedindo que eu voltasse mais vezes.
Eu não sei se isso acontecerá, mas a única coisa que tenho a maior
certeza é que terei de dividir todos os meus doces com Georgina, já que a
minha amiga é a maior viciada em doces e, muito provavelmente, me mataria
caso soubesse que eu não cogitei a opção de dividi-los com ela.
Estamos eu e John do outro lado da calçada, calados, o som do vento
forte da noite sendo o único presente entre nós. Talvez possa parecer estranho,
mas eu tenho a sensação de que nem eu e nem ele quer que o momento acabe,
afinal, pela primeira vez em um ano que nos conhecemos, finalmente demos
risada e curtimos a companhia um do outro sem xingamentos, troca de
insultos, palavras que machucam e nem nada do tipo. Até que está sendo legal
ver uma outra camada dele, uma camada que eu não fazia questão de
descobrir que existia.
Não que eu tenha deixado de achá-lo um babaca, até porque ele é, mas
talvez ele não seja um babaca completo como tinha plena convicção.
É, ninguém é cem por cento bom ou cem por cento mal. Temos os
nossos momentos de vez em quando. Acho que tenho que parar com essa
minha mania de querer dividir as pessoas entre uma coisa e outra. Muito
tempo que o pessoal esperou perfeição da minha parte me fez enxergar o
mundo assim. Quando eu simplesmente fui para o caminho errado, mesmo
tendo feito muitas coisas boas durante a minha vida, logo me enquadraram
como uma pessoa cem por cento ruim. Acho que me acostumei a achar que
quem desvia do esperado precisa ser tão mal quanto me fizeram acreditar que
eu sou. Talvez colocar pessoas entre uma coisa ou outra fizesse eu me sentir
menos culpada e menos sozinha.
Não sei explicar, e embora saiba que é horrível de se dizer, me sentia
bem enquadrando uma pessoa em ruim quando elas simplesmente cometiam
algum deslize, já que sentia que havia pessoas em um caminho tão torto
quanto o meu.
Não me sentir a única pessoa horrível no mundo era reconfortante de
alguma forma.
Bom, é como dizem, vivendo e aprendendo.
— Quer passear sem destino comigo, diabinha? — John quebra o
silêncio entre nós, e eu me encolho por conta da brisa fria que me atinge.
Quando me dou conta, o loiro já está retirando sua jaqueta de couro e ficando
atrás de mim para colocá-la sobre meus ombros. Abraço o tecido grosso e o
agradeço quando retorna para minha frente.
— Depende — respondo e faço um bico de lado, fingindo estar
pensando em sua proposta. — E se isso só for um pretexto para você me
matar e largar meu corpo em um beco escuro por aí?
John solta uma risada, e puxa, não tinha me tocado até então como ele
fica lindo quando sorri. Seus olhos ficam pequenininhos e algumas ruguinhas
os adornam nesse momento. Sua boca rosada se alarga e o sorriso se expande
e toma conta de todo o seu rosto. Acredito que clareia tudo ao nosso redor.
— Seu corpo é bonito demais para que eu o descarte dessa forma. —
Seus olhos sorriem tanto quanto sua boca, e a névoa que cobre ambos não é
nada mais e nada menos do que malícia pura. — Muitas coisas passam na
minha cabeça com o que eu poderia aprontar com ele, Pasha. E,
definitivamente, largá-lo por aí não chega nem perto.
Meu Deus, esse garoto é muito bom nisso.
— Preferia morrer a fazer qualquer coisa que se passe nessa sua cabeça
suja — minto. Meu Deus, como sou uma mentirosa. Minha cara nem treme e
eu nem ao menos vacilo, mesmo que esteja sentindo meu corpo ficar quente
ao imaginar o que se passa na cabeça dele. A verdade é que eu daria um
milhão em troca dos pensamentos de John.
— Veremos — é o que ele apenas diz. O sorriso petulante ainda
continua estampado em seu rosto bonito para um cacete. — Então, me
concede a honra de ter a sua companhia enquanto caminhamos sem destino
algum por esse bairro maravilhoso e romântico? — Scott coloca uma mão
atrás das suas costas e uma em sua frente, estendendo-a para mim. A única
coisa que eu faço é rolar os olhos e girar nos calcanhares, me agarrando a sua
jaqueta enquanto começo a andar sem ele.
Mas nem morta que vou andar de mãos dadas com John Scott.
Ele logo aperta o passo e fica ao meu lado, os olhos azuis fixos na rua e
nas casas que deixamos cada vez mais para trás. O silêncio retorna e nos
envolve, e dessa vez não tem nada de desconfortável. O silêncio é algo bem
reconfortante até. Então ficamos nessa de desfrutar a nossa companhia por um
bom tempo. John chuta algumas pedrinhas no meio do caminho e eu
cantarolo baixinho uma música qualquer. Mas, assim que adentramos uma
outra rua, meus olhos são atraídos por uma cafeteria 24 horas, que tem o
nome do estabelecimento piscando em luzes coloridas.
— Ai que vontade de tomar um café. — Meu tom de voz sai mais alto e
mais manhoso do que eu gostaria. — Quer vir comigo? — Aponto com o
polegar e o indicador para a cafeteria, e John logo assente em prontidão.
Caminhamos juntos até lá. O sino toca quando a gente entra e o cheiro
de café expresso logo invade minhas narinas, o que faz minha boca salivar.
Sou completamente alucinada e viciada em café, então é completamente
normal que eu esteja assim. Os tons do estabelecimento são em um tom de
verde musgo e ele é bem pequeno, logo só tem poucas pessoas para nos
atender.
Quando eu e John sentamos em uma mesa perto das janelas de vidro,
uma moça jovem se aproxima para anotar nosso pedido. Ela usa um boné
verde, blusa da mesma cor, um avental marrom por cima e calça jeans. Ela
sorri contidamente quando se aproxima, anota o meu pedido e então olha para
John, que até então não havia falado nada.
— Uma água, por favor — pede, assim que os olhos incisivos dela os
perscrutam.
Então a garota de boné assente e se retira, deixando-nos a sós.
— Não gosta de café? — questiono para John, curiosa. Encosto minhas
costas no estofado da cadeira e observo suas expressões se contorcerem em
uma careta.
— Detesto com todas as minhas forças.
Abro a minha boca em um perfeito “O”.
— Meu Deus, John Scott, como assim você não gosta de café?! Café é
tipo a oitava maravilha do mundo. Não posso ser amiga de uma pessoa que
não gosta de café. Eu posso tentar lidar com todos os seus defeitos, suas
piadas e seu sorriso estúpido, mas isso? Isso eu não posso aceitar de jeito
nenhum.
Não sei o que eu falo de tão interessante, só que um grande sorriso
escorrega por seus lábios no exato momento em que fico quieta, olhando-o
indignada.
— Bom saber que você está considerando minha amizade, diabinha. —
Ele pisca para mim e mordisca rapidamente o lábio inferior, uma risada
escapole logo depois.
— Eu não disse isso — defendo-me, rápida.
— Bom, mas foi o que deu a entender nas entrelinhas. — O loiro
sacode os ombros e finca os cotovelos na mesa, descansando o queixo em
uma das mãos. Seus glóbulos me analisam daquela forma que parece estar
enxergando minha alma. Já disse que não gosto disso? — Ainda estou
esperando a sua sinceridade, Stratford.
— Sobre? — Me faço de desentendida ao analisar minhas unhas.
Sei do que ele está falando. Sei o que ele quer ouvir. Só estou a fim de
fazer um suspense apenas para irritá-lo, então mantenho a pose de
desinteresse.
— Sobre o que achou do nosso encontro, minha gata. Quer dizer, gata.
Sobre o que achou do nosso encontro, gata.
É a minha vez de dar risada.
— Primeiro, não foi um encontro. Todo mundo sabe que nós dois não
vamos a encontros. Segundo, gostei de ver que está aprendendo sobre os
pronomes, embora eu deteste esse gata. E terceiro, eu gostei, Scott. Sua
companhia não foi tão insuportável quanto eu imaginei que seria. Dá até para
repetir, caso você se comportar.
John não tem tempo de falar, pois a moça retorna com meu café e com a
água dele em mãos. Agradecemos antes que ela gire nos calcanhares e nos
deixe sozinhos novamente.
John abre a tampa da garrafinha e leva seus lábios até o gargalo, o
pomo de Adão se movimenta assim que o líquido gelado escorrega por entre
sua garganta. Logo em seguida, ele retira o resquício da água com sua mão
tatuada, fecha a garrafinha, coloca-a em cima da mesa, encosta na cadeira e
sorri abertamente antes de dizer:
— Prometo me comportar, diabinha. Não estava brincando quando
disse que estava disposto a selar a paz entre nós.
Anuo e olho para a minha xícara de café, que tem uma grande espuma
de chantilly em cima. Como uma boa travessa, passo o dedo indicador por
cima do chantilly e me levanto em um rompante, marchando até a cadeira de
John. Estou pronta para macular seu nariz, mas antes que eu possa fazer
qualquer menção disso, um braço do garoto se enrosca em minha cintura e o
outro tenta refrear meus movimentos ao tentar fugir de mim. O problema é
que, durante nossa pequena briga, enrosco um pé no outro e caio bem em seu
colo. Nossas risadas papocam o estabelecimento, e, nesse meio tempo,
consigo melecar o meu próprio rosto com o chantilly.
— Parece que o feitiço caiu contra o feiticeiro — John cantarola, entre
nossas risadas. Quando enfim vamos parando, encaro seus glóbulos e eles me
encaram de volta, totalmente brilhantes. Por uma fração de segundo, ele
desliza os olhos e fixa-os em minha boca. O ar parece congelar, assim como
tudo e todos ao nosso redor. Uma mão de John vai até os fios do meu cabelo e
os colocam atrás da minha orelha. Meu coração dá uma cambalhota dentro do
meu peito por conta disso. — Eu já ouvi muita besteira sair da sua boca,
Pasha Stratford, e dentre todas elas a pior foi escutar você dizer que não
temos química. Então se não temos, me responda o que é isso acontecendo
entre a gente agora.
Exalo todo ar preso dentro de mim e também não consigo não me fazer
a mesma pergunta enquanto me afundo no mar agitado que são seus olhos
azuis.
Não gosto do ritmo que meu coração se encontra nesse momento. Ele
está hiperativo e parece papocar uma música estrondosa de heavy metal bem
no meio do meu peito só pela forma agitada que ele dança desenfreadamente
contra as minhas costelas. Não gosto do zumbido que alcança os meus
tímpanos, e gosto menos ainda da sensação de garoto na pré-adolescência que
Pasha Stratford traz à tona todas as vezes que momentos como esse
acontecem.
A ruiva está me fitando em silêncio faz mais ou menos um minuto. O
castanho das suas írises parece escurecer gradativamente à medida que elas
passeiam e desbravam cada parte do meu rosto como se estivesse querendo
memorizá-los para sempre. Apesar da sua análise descarada e do modo como
parece encantada com o que vê, deixando-me alucinado, o que me deixa ainda
mais impaciente e completamente pronto para entrar em colapso ou ter uma
síncope a qualquer momento é o fato dela estar sentada na porra do meu colo.
Eu simplesmente não consigo ignorar a sensação estarrecedora da sua
bunda farta estar concentrada bem no meio das minhas pernas.
Parecendo finalmente se dar conta do nosso momento no meio de uma
cafeteria, mesmo que não tenha durado mais de dois ou três minutos e
ninguém pareça interessado em nós, Pasha balança a cabeça de um lado para
o outro, como se estivesse saindo do transe, se desvencilha rapidamente do
meu braço ao redor da sua cintura e se levanta em um pulo, marchando até a
cadeira que estava. Quando se senta, segura a xícara do café pela haste e a
leva até os lábios, sorvendo o gosto da cafeína em suas papilas gustativas.
Longe do seu toque, finalmente consigo respirar sem dificuldade.
Que merda.
Nunca passei um terço disso com garota alguma. O que estou me
tornando? Não me pareço nem um pouco comigo quando estou ao lado dela.
Céus, quando estou ao lado de Pasha parece que eu nunca cheguei perto de
garota alguma. Me sinto um virgem completo.
Eu só posso estar na merda mesmo.
— Então quer dizer que Andrew estava certo, huh? — ela diz, assim
que termina de entornar o líquido e colocá-lo de volta na mesa.
Meus lábios sobem e um sorriso torto aparece, pois sei do que está
falando. Pensei que ia simplesmente ignorar meu comentário, mas aqui está
Pasha Stratford finalmente cedendo da sua pose de durona e que não dá o
braço a torcer em nada.
— Sobre a química que há entre nós? — questiono, divertido. Ela sobe
e desce seu queixo em um gesto quase imperceptível ao finalmente confirmar.
— Ah, por favor, isso nem deveria ser questionado. Nós nos beijamos,
Stratford. E você sabe tanto quanto eu o quão incrível foi.
— Sei? — Pasha está sendo retórica, então não respondo ou falo nada.
Uma risadinha sem humor escapa por seus lábios logo em seguida. — Achei
que esse momento tivesse sido uma alucinação ou que ao menos eu tivesse
beijado sozinha, já que você, até uns meses atrás, fingiu que ele nunca
aconteceu.
Isso é verdade. Eu realmente fingi que nada aconteceu por meses e me
sinto um estúpido ao vê-la constatando isso em voz alta. Mas o que eu posso
fazer se simplesmente fiquei com medo do que poderia ser desenvolvido entre
nós? Não gosto de me envolver e de sentimentos, então, como essa
possibilidade nunca havia aparecido antes, a única saída rápida que me
ocorreu para o bem de nós dois foi me afastar e, consequentemente, ignorar o
que tínhamos feito no jardim daquela festa.
— Desculpa por isso, a propósito — peço, sinceramente. — Não quis
parecer um babaca ou fingir que aquele momento não foi algo significativo.
Eu só... não soube lidar com ele direito. Em um dia, nós nos odiávamos e
declarávamos guerra todas as vezes que nos encontrávamos. No outro, lá
estávamos nós dançando juntos e depois nos beijando. Foi difícil de
processar.
A ruivinha cruza os braços e abre um daqueles sorrisos perversos que é
característico seu.
— Ficou com medo de mim, Scott? Achei que gostasse de um bom
desafio.
Não sei se consigo, mas tento sorrir exatamente como ela.
— Não tive medo de você, diabo do Alasca. — Trago o apelido que
dera a ela em um dia que estávamos discutindo à tona. Pasha dá uma risada
por causa disso ao mesmo tempo em que revira os olhos. — Eu tive medo de
mim e do que poderia fazer com você. Eu até posso gostar de desafios, mas só
entro em um quando sinto que tenho chances de ganhar. Não me garanto nisso
quando o assunto é Pasha Stratford. — Sou sincero ao dar de ombros.
—Porque você sabe o quão boa eu posso ser. Porque você, mais do que
ninguém, sabe que tenho a total capacidade de virar o jogo. Então, sim, você
até pode ter medo de você e até de me ferir, mas tem ainda mais medo de me
querer. — pontua, os olhos focados totalmente nos meus. Consigo enxergar
daqui o quão gostando dessa conversa está. — Por que você tem medo de me
querer, Scott? Por que você, que sempre parece desejar todas as mulheres do
mundo, tem medo de querer a mim?
Ela me escrutina e eu sinto que estou aberto em sua frente, como se ela
pudesse me ler por completo e enxergar cada um dos meus medos e
inseguranças em relação a ela. Só que, diferente de antes, eu não tenho mais
medo. Seja lá o que esteja acontecendo entre nós agora, estou aberto. Sei que
meu coração está seguro contra ela e qualquer garota no mundo. Não é que eu
seja contra romance e contra o amor, só que... eu sei que ele não é para mim.
Não depois de ter vivido e enfrentado tanta coisa.
— Eu não tenho medo de te querer, Pasha. Não tenho medo, porque eu
te quero. É impossível alguém não te querer. Você é toda linda, tem as
melhores tiradas bem na ponta da língua e um humor um tanto quanto
peculiar. Você é segura de si, inteligente, não liga para o que os outros pensam
e é... tudo. Você é tudo, Pasha Stratford. Só não sei se você, tão do jeito que é,
vai querer o que eu posso te oferecer.
Pasha parece mexida com as minhas palavras, pois vejo que engole em
seco. Ela volta a apertar a haste da xícara e seus dedos ficam esbranquiçados
pela força que impõe. Seus olhos vacilam e desviam do meu, observando algo
aleatório no meio da cafeteria já quase vazia agora. Depois de alguns
segundos, volta seu olhar ao meu no mesmo instante em que apruma a
postura. Se Stratford pareceu vacilar por algum momento, nenhum rastro dele
aparece em seu rosto agora. A garota olha bem no fundo dos meus olhos e
parece ainda mais decidida do que nunca no que está para sair por entre seus
lábios.
— Eu nunca te pedi nada, Scott. Eu nunca pedi nada a homem nenhum.
Por que vocês sempre pensam que nós, mulheres, queremos algo romântico
em uma relação? Por que vocês sempre pensam que somos frágeis e iremos
nos apaixonar mais cedo ou mais tarde? — Ela parece inquieta, visivelmente
incomodada por eu ter a julgado de uma forma errada. — Ok que isso pode
ser possível, mas, no meu caso, na minha vida, nunca foi sobre isso. Eu quero
me divertir, aproveitar e ter relações casuais como qualquer outro homem,
sem que achem que sou uma vadia ou coisa do tipo só por fazer coisas que
vocês fazem à vontade. Com você foi a mesma coisa, Scott. Eu só queria
aproveitar do seu corpo, mas você foi precipitado achando que eu queria seu
coração. Que merda, não?
Porra. Mil vezes porra. Essa mulher é mesmo fantástica e diferente de
qualquer uma que eu tive o prazer de ter algum tipo de contato. Se eu já
achava isso, agora acabo de achar ainda mais. Adoro o fato dela não se
importar como fala, com quem fala ou para quem fala. Pasha Stratford
simplesmente fala. Ela não deixa de se impor, de colocar seu ponto de vista,
de se fazer ouvida e isso é, bom, completamente surreal.
Ninguém está acima da ruiva, mas certamente que ela está acima de
muitos.
— Já que as coisas estão finalmente esclarecidas entre nós... —
começo, e meu sorriso que ela parece detestar aparece, o que logo a faz me
olhar com as sobrancelhas erguidas e uma expressão de desdém, mesmo que
um fantasma de um sorriso queira adornar sua boca voluptuosa. — Então
vamos simplesmente esquecer os acontecimentos dos últimos meses e
começar tudo do zero. — Me remexo na cadeira e inclino meu corpo para
frente, lhe estendendo uma das mãos ao dizer: — Prazer, me chamo John
Scott. Você, por algum acaso, gostaria de se divertir comigo casualmente
qualquer dia desses?
Pasha não se aguenta com o meu teatro, pois sua risada estridente sai
depressa e percorre por todo o perímetro do estabelecimento. Só que, ao
contrário do que eu imaginei, a alasquiana estrangula sua risada poucos
minutos depois e seca os olhos, pronta para prosseguir com o que lhe foi
proposto ao dizer:
— O prazer é todo meu, John Scott. E antes que eu me esqueça, me
chamo Pasha Stratford, vim do Alasca para aterrissar no inferno que é
Hellaware e estou tentadíssima a pensar na sua proposta. — Pasha sorri,
arrasta a cadeira para trás e se põe de pé. — Só que para que isso aconteça,
preciso chegar em casa viva e antes da meia-noite.
Também solto uma risada e me levanto. E assim que pagamos por
nossas bebidas, saímos da cafeteria e andamos tranquilamente até o carro.

Assim que chego no rancho, após Pasha ter me deixado no parque para
que eu finalmente pudesse voltar para minha casa com a minha moto, me
direciono até o meu trailer desbotado e subo as escadinhas que me dão acesso
à porta. Quando adentro o ambiente, encontro Daisy Flinch, uma das garotas
trazidas por Hunter da cidade vizinha, lá no ano passado, deitada
sensualmente em minha cama. Seus fios vermelhos com um tom de laranja
forte nas pontas estão espalhados sobre o meu travesseiro e percebo que está
usando apenas uma peça de lingerie preta e de renda, que abraça seu corpo
fora dos padrões e extremamente delicioso, agora também bronzeado.
Adoro o fato de ela se sentir totalmente segura com a sua aparência,
porque ela é maravilhosa e autentica demais para se prender a padrões
estéticos de merda.
Quando Daisy chegou, me interessei por ela logo de cara. Ela é bonita,
tem piercings espalhados pelo rosto, algumas tatuagens e uma sensualidade
mesclado com uma coisa doce que encanta qualquer cara, então comigo não
foi diferente. Por isso que não demorou muito para que eu a tivesse no meu
alvo. Não lembro quando ficamos pela primeira vez, mas sempre que dá
vontade ela aparece de surpresa no meu trailer dessa forma — ou vice-versa.
— Achei que não fosse chegar nunca, neném. — A voz de Daisy soa
doce e manhosa aos meus ouvidos. Até sorriria, só que o apelido que ela dera
para mim, já que sou mais novo que ela alguns anos, me faz revirar os olhos.
Daisy tem vinte e quatro anos, eu tenho vinte e dois. Não é uma
diferença gritante, mas a garota faz parecer que é.
— Boa noite para você também — resmungo, me aproximando. Sento-
me na beirada da cama e retiro a jaqueta de couro, as botas de combate e a
camiseta. — O que você veio desabafar hoje, D?
Não sei que tipo de fetiche estranho é esse, mas todas as vezes que ela
aparece aqui, interessada em meu corpo, sempre antes de fazermos algo,
Flinch me faz deitar ao seu lado e começa a desabafar sobre coisas que a
estão incomodando. Não me importo, entretanto. Gosto da sua companhia e
da sua amizade, então não vejo problema em conversar e dar conselhos, assim
como não vejo problemas em pedir para ela quando preciso. Somos bons em
simplesmente sermos nós. Sem cobranças, sem sentimentos envolvidos e
nada do tipo.
— Hoje? Embora tenha sido recusada em mais um emprego, não vou
reclamar dessa vez. Estou aqui para escutar sobre você e Pasha. — Quando a
olho sobre os ombros, Daisy está sorrindo e batendo palminhas. Como uma
boa romântica, adorou escutar sobre minha história com a diabinha e não
pensou duas vezes em me aconselhar antes de eu sair de casa.
Balanço a cabeça e me jogo na cama, ao seu lado.
— Por que você simplesmente não tenta fazer o que ama? — lhe
pergunto, referindo-me ao teatro.
Daisy ama Hollywood e tem o sonho de ser atriz. Há vários cursos e
teatros pela cidade, mas em nenhum momento ela tenta fazer nada disso.
Apenas alimenta o sonho dentro de si e não corre atrás.
— Não tente mudar de assunto — me repreende, bufando logo em
seguida.
— Não tente mudar de assunto você — retruco, sem olhar para seu
rosto. Observo o teto do trailer e entrelaço as mãos sobre a barriga.
— A noite de confissão hoje é sua, não minha — Daisy fala,
impaciente, e eu sei que simplesmente não posso fugir. Então respiro fundo e
me viro em sua direção.
Pelo resto da noite, conto sobre todos os detalhes da noite entre mim e
Pasha Stratford. Daisy adora ouvir cada detalhe, então presta bastante atenção
e dá vários palpites algumas vezes, quando arruma uma brecha. Ela encosta o
rosto no meu peito desnudo e fica fazendo desenhos invisíveis por ali,
enquanto despejo tudo.
Não sei que horas acontece, mas ouço a respiração da minha amiga e
vejo que está dormindo. Pela primeira vez, nós não fazemos nada. Daisy
dorme escutando sobre Pasha e eu me sinto extremamente leve por isso.
Pego no sono logo depois.
Hoje é sábado e também meu dia de folga no Fast Rocket, então
passo o dia todo em cima da minha cama, com o livro da Agatha Christie
em mãos, finalmente com tempo para terminá-lo. As últimas páginas me
deixam aflitas, por isso estou com uma mão na boca, quase roendo minhas
unhas compridas, e a outra livre passando as páginas como se a minha vida
dependesse disso. Então é óbvio que não percebo Rosalinda encostada no
batente da porta aberta do meu quarto. Só consigo me dar conta da sua
figura quando finalmente termino o livro e me levanto para guardá-lo junto
com uma parcela pequena que trouxe do Alasca para cá.
— Ah, oi, tia — a cumprimento, pedindo para que entre. — Esteve aí
parada me observando há quanto tempo? E por que não disse nada?
Rosalinda faz um gesto de passar uma mão em frente ao rosto, como
quem diz que não foi nada demais. Suas bochechas ficam ainda mais
rosadas quando ela sorri, sentando-se na beirada da minha cama.
— Não quis atrapalhar a sua leitura, querida. Só vim me certificar se a
senhorita está bem e se deseja ligar para os seus pais.
Sento-me ao seu lado e inflo o ar nas bochechas, exausta fisicamente
e mentalmente. Desde o dia que me mudei por tempo indeterminado — sem
brincadeira — Rosalinda e David se revezam no quesito me procurar no
meu quarto e perguntar se estou bem ou precisando de algo. Amo eles e
amo a preocupação que demonstram, mas amaria ainda mais se eles
simplesmente esquecessem de perguntar se desejo ligar para os meus pais,
pois a resposta sempre será a mesma.
— Estou cansada do trabalho, mas nada que eu nunca tive que lidar
antes. Então estou bem, obrigada por perguntar. — Retribuo o seu sorriso e
encosto a cabeça em seu ombro no exato momento em que inspiro e
suspiro. — Eu adoraria ligar para os meus pais, tia. De verdade. Só que não
posso fazer isso. Não posso ser eu a ligar quando foram eles que decidiram
se livrar de mim.
Como se não bastasse me enviar para uma cidade completamente
diferente, meus pais nem ao menos ligam para saber como eu estou. Eles
nunca ligaram, na verdade. Eles mandam dinheiro para os meus tios e
acham que isso serve de alguma coisa.
Acho que eles nem ao menos se importam se estou viva ou deixo de
estar.
— Entendo, querida. — Rosalinda afaga meus cabelos e deposita um
beijo na região. — Mas não ache nem por um segundo que você está só,
ouviu? Não ache nem por um segundo. Seus pais são atarefados, então é
compreensível. Enquanto eles não podem, eu e David estamos aqui. Sempre
estaremos e não iremos a lugar algum.
Eu gostaria de dizer a ela que é impossível duas pessoas estarem
atarefadas vinte e quatro horas por dia durante um ano. Um ano inteiro. Eu
gostaria de dizer que é impossível que eles se importem comigo ou algo do
tipo, mas não faço isso. Apenas assinto, sorrio e agradeço.
Se não fosse por David Wilson, Rosalinda e minhas amigas, eu
provavelmente estaria sozinha e desamparada.
Minha tia se levanta da cama e passa as mãos pelo cabelo
desgrenhado. Ela solta uma risada fofa ao perceber que estou sorrindo da
sua falta de jeito de se manter arrumada ao estar sempre arrumando as
coisas pela casa. Não digo nada, entretanto. Rosalinda balança a cabeça,
ainda rindo, e gira sobre os calcanhares. Antes de sair pela porta, vira-se
minimante, me encara e solta:
— Vai querer me ajudar no jantar hoje?
Ela adora ter minha companhia na cozinha, seja para picar alguns
legumes, ajudar com os temperos ou se for só para conversar amenidades.
Embora também ame, mesmo não fazendo nada de surpreendente na
cozinha, hoje não vou poder.
— Tenho ensaios toda terça e todo sábado, lembra? — Me refiro ao
casamento de Amber e Hunter, então ela logo bate levemente na testa e diz
que se esqueceu completamente.
Sorrio e a observo me deixar só.
Fito as minhas unhas e me sinto levemente ansiosa para o ensaio de
hoje à noite. Não vejo e nem falo com John Scott desde o dia do fliperama e
da cafeteria, que foi na terça, quatro dias atrás.
Nossa conversa foi bastante esclarecedora para mim, a propósito.
Através dela consegui enxergar algumas coisas que antes pareciam confusas
demais para mim. E é claro que também entendi o motivo de John ter
fugido de mim e do nosso beijo.
John Scott estava com medo de me ferir por não corresponder aos
meus sentimentos, já que costuma levar tudo na diversão.
E quem foi que disse que eu não quero diversão?
Acho que ele também conseguiu entender isso, pois propôs que
começássemos do zero. Estou animada para isso, para ser bem sincera.
Estou precisando de diversão e ele é a melhor que eu poderia encontrar aqui
em Hellaware.
Tudo bem que eu disse que não iria cair no seu charme, mas a quem
eu estava querendo enganar? É claro que eu quero cair. Só que dessa vez,
diferente de antes, quem irá comandar sou eu. Eu vou ditar as regras e eu
vou dizer como será a diversão, onde será e como será.
No momento, estou apenas aquecendo.
Fui buscar Barbie e Georgina em casa, então é óbvio que elas estão
falando sem parar sobre o meu suposto encontro com o John durante todo o
trajeto até o estúdio de dança. Mesmo com a música estrondando nas caixas
de som, a voz doce de Barbie St. Claire junto da voz esganiçada de
Georgina Sinclair consegue sobressair qualquer outro som por aqui.
Por que eu decidi contar isso para elas mesmo?
— Vocês poderiam calar a boca? — peço de um jeito nada amigável,
olhando-as pelo retrovisor. Minhas amigas se calam na mesma hora. —
Obrigada. Meus tímpanos agradecem.
Georgina rola os olhos e Barbie dá risada, achando graça de algo.
— Pasha, você não está entendendo, amiga. Você precisa dividir
comigo todos os detalhes. Você simplesmente não pode virar para mim, que
adora saber uma boa fofoca, dizer que saiu com o John para um fliperama e
depois para uma cafeteria e só. — Ainda pelo retrovisor, vejo que Georgina
passa os fios loiros para trás, como se estivesse nervosa ou ansiosa com
algo. Ela é realmente impossível quando se trata de saber da vida alheia. —
Vocês sabem daquele ditado que diz “a curiosidade matou o gato”, não
sabem? — Fricciono os lábios para não rir e assinto, assim como Barbie. —
Pois então, ele é verídico. Mata mesmo. Eu estou a ponto de morrer agora
mesmo caso Pasha Stratford não me conte o que rolou no encontro com
John Scott.
Explodo em gargalhadas, olhando-a sobre os ombros quando vejo que
o semáforo está piscando em cores vermelhas.
— E se eu quiser que você morra? — brinco, e seus olhos verdes-
escuros quase saltam das órbitas.
Barbie alterna o seu olhar entre mim e Georgina e também faz de tudo
para não rir.
— Não me teste, Pasha Denise. Você não sabe o que eu sou capaz
para descobrir algo — ela alerta, o dedo em riste. Balanço a cabeça ao
retornar minha atenção às ruas.
— Você é tãããããão fofoqueira, G — Barbie é quem diz para a nossa
amiga, e eu faço de tudo para me manter calada e não concordar.
— Ei! Fofoqueira, não! — a loira se defende, parecendo indignada.
— Apenas nasci com uma pré-disposição a ser curiosa demais com o que
acontece na vida dos outros. Não posso fazer nada, culpem os meus pais.
Aceito seu ponto de vista com mais uma risada e faço mais suspense,
me mantendo calada. Depois que ela quase arranca os cabelos de
curiosidade é que eu decido contar tudo o que aconteceu para as minhas
amigas. Embora não tenha acontecido nada demais, ambas ficam animadas
e me dizem que sempre souberam que nós dois acabaríamos juntos no final.
Nem tento argumentar contra, pois sei que não adiantaria de nada.
Quando chegamos ao estúdio, Amber e Hunter estão lá dentro,
ensaiando a valsa. Então ficamos todos do lado de fora, até John e todos os
outros do THF estão aqui. Não demora mais que cinco minutos para que
eles saiam e deixem que a gente entre.
Andrew começa a repassar os passos, enquanto fala sobre confiar no
nosso parceiro e algo sobre química no olhar e coisa e tal. Sei que isso tudo
é para mim e John, pois ele nos olha a todo o momento durante sua fala.
Nós assentimos tudo, como se estivéssemos absorvendo suas palavras
motivadoras.
A música romântica começa logo depois e John Scott logo se põe em
minha frente, uma das suas mãos se enroscam na minha cintura e a outra
fixa-se em segurar a minha mão, girando-me em um dos passos da
coreografia. Sinto-me uma bailarina enquanto giro, mas tudo parece parar
de fazer sentido quando o loiro me puxa em um rompante, colando minhas
costas em seu peito. Seu próximo movimento não faz parte da coreografia,
porém ele coloca todo o meu cabelo para um lado só, de modo que uma
parte do meu pescoço fique à mostra, e afunda o nariz na região sensível,
inspirando meu cheiro para si.
O arrepio me pega desprevenida e estremece cada célula do meu
corpo.
Não tenho tempo de fazer ou falar nada, pois ele logo me gira
novamente e eu fico em sua frente, agora com os pulsos entrelaçados em
seu pescoço e as suas duas mãos firmes em minha cintura. Vamos de um
lado para o outro, conforme a música e a coreografia pede. E não estamos
tão ruins dessa vez. Não estamos perfeitos, mas nem de longe estamos
patéticos.
— Acho que confessar nossa química ajudou em algo — John
sussurra, bem no pé do meu ouvido. Sua voz sai extremamente rouca e
sensual agora. — Estamos voando e dominando toda essa pista, diabinha.
Dou risada.
— Não estamos, não. — Sou sincera, e ele me afasta minimamente só
para ver se estou falando sério. — Estamos quase. Precisamos melhorar
muito ainda. Veja só como estão eles dois. — Aponto com a cabeça para
Barbie e Devin bem do nosso lado, que estão dançando tudo certinho e
completamente conectados, como se fizessem isso há anos. O amor deles é
tão nítido que chega a dar diabetes. — Eles sim estão voando e dominando
toda essa pista.
John bufa e rola os olhos, mas executa um outro passo.
— Essa comparação não vale, Stratford. Barbie e Devin são tipo, sei
lá, Bonnie e Clyde. São inseparáveis e insuperáveis.
O olho, os lábios entreabertos. Pisco algumas vezes.
— O quê? — Scott indaga, depois que Andrew para a música para
ensinar algo a Georgina, que se perdeu no meio do caminho. Ainda estou o
olhando com uma expressão estranha, eu sei.
— Você acabou de comparar nossos amigos com um casal de
criminosos, John.
— Foi o único casal famoso que me veio à mente — O loiro dá de
ombros.
— Bom, você poderia comparar com a Barbie e o Ken mesmo — Nós
dois damos risada no mesmo momento, porque tenho certeza que ele
lembra exatamente do que eu lembro. Na festa de noivado de Amber e
Hunter, que foi uma festa a fantasia, Barbie convenceu seu namorado de se
fantasiar de Ken e completar a fantasia dela, que era da boneca Barbie. Foi
hilário ver a roupa de bad boy do Devin dar lugar a roupa de mauricinho.
— Se Devin pegar você relembrando isso, provavelmente você está
morta. Ele detesta que o lembrem disso. Quando Amber e Hunter revelaram
as fotos do noivado, em poucas fotos que ele aparecia, Devin fez questão de
rasgar seu rosto de todas elas. Só foi salva a foto que estava com a gente, e
isso só porque a Barbie estava junto. — John revira os olhos azuis, e eu dou
risada. — Ele é louco por ela.
— Quem é louco por quem? — Devin Leblanc se aproxima, agarrado
a Barbie. A garota está em sua frente e ele tem os braços entrelaçando a
barriga dela. Um grande sorriso pincela o rosto de ambos quando decidem
nos observar em busca de uma resposta.
— John. Por mim. — Faço pouco caso, e solto uma risadinha. Eu não
poderia alimentar o ego deles, certo? Por isso percebo que todos os três me
olham, boquiabertos.
Um tempo depois, Scott entra na brincadeira e confirma. Eu, no
entanto, solto uma piscadela para eles e me afasto, indo buscar água nessa
nossa pequena folga.
Quando a música retorna cinco minutos depois, volto para a minha
posição e John Scott já me espera com um sorriso torto adornando seus
lábios rosados. Seu cabelo loiro platinado está uma verdadeira bagunça,
alguns fios até caem sobre seus olhos azuis. Ele usa calça moletom, regata
branca e está coberto por uma fina camada de película de suor no peito,
fazendo com que suas tatuagens visíveis brilhem e se tornem ainda mais
sexys para mim.
Adoro o fato de estar indo dançar com o próprio pecado.
— Quero te levar para conhecer um lugar — John menciona, assim
que já estou em sua frente. — E já aviso que terá que ser na minha moto.
Hoje você será a minha presa, diabinha. — Suas mãos voam para a minha
cintura e ele me puxa com tudo, o que faz meu peito se chocar contra o
dele. Meu coração dá um solavanco por causa do susto e dos nossos corpos
colados demais. — E aí, o que me diz? Quer ser vista comigo hoje?
Com sua respiração ondulando em meu rosto e seus dedos fazendo
carinho na pele exposta da minha barriga, simplesmente não consigo fazer
outra coisa a não ser concordar.
Coloco o capacete em minha cabeça e escorrego na garupa da moto de
John Scott, entrelaçando meus braços ao redor de sua cintura. O garoto
parece adorar a aproximação dos nossos corpos, pois vira sobre os ombros e
um sorriso carregado de malícia acaba sendo direcionado a mim. Nem tenho
tempo de xingá-lo ou fazer qualquer coisa parecida com isso, pois logo sua
moto raivosa canta pneu e um rastro de poeira preenche o ar ao nosso redor,
deixando o estúdio de dança e todos os nossos amigos para trás.
Enquanto ele costura com a moto pela pista de Hellaware, fecho os
olhos com todas as minhas forças e me agarro a seu corpo ornamentado por
músculos ainda mais, como se tivesse acabado de encontrar um bote salva-
vidas em meio ao mar que me encontro. Funciona um pouco e meu coração
parece ir diminuindo o ritmo frenético, mas ainda assim não é o suficiente
para me deixar relaxada ou pensar com seriedade sobre onde diabos estou me
enfiando.
Afinal, onde diabos estou me enfiando?
Onde diabos ele está me levando?
Apesar de eu ter usado todos os meus truques para descobrir, assim que
Andrew nos dispensou do ensaio, nada funcionou e John Scott pareceu muito
convicto em não me dizer absolutamente nada, sempre alegando que será
surpresa e que eu vou curtir muito.
Bom, talvez eu curta mesma, o problema é que sou ansiosa, curiosa e
não gosto de ficar no escuro. Gosto sempre de liderar a situação e estar no
controle, então não me sinto nem um pouco à vontade agora. Não me sinto
nem um pouco à vontade ficando à mercê das coisas que se passam na cabeça
de Scott.
Também não me sinto nem um pouco à vontade na hora que percebo as
ruas pelas quais estamos passando. Não conheço essa cidade direito, mas,
considerando as placas que passam por nós, tenho uma noção de que estamos
nos afastando tipo muito. Passamos por lugares escuros, desérticos, cheio de
mato e ele simplesmente... para.
John Scott simplesmente para a moto em um lugar completamente
estranho e cercado por árvores e arbustos.
Tiro o capacete, o entrego, desço da moto e desbravo o local com meus
olhos. Escuto um coro de coruja ao longe e meu corpo todo se retesa.
— Não precisa ficar com medo, Stratford — diz, também descendo da
moto. — Não vou te matar, linda. Eu realmente estava falando sério sobre o
seu corpo naquele dia. A não ser que você precise que eu te mostre em ações
o que se passa na minha cabeça quando penso nele.
Finco o incisivo na carne do meu lábio superior e, céus, detesto as
imagens que pipocam na minha cabeça agora. Detesto estar pensando nas mil
posições que John Scott poderia experimentar com o meu corpo agora
mesmo.
Foco.
Você simplesmente não pode se entregar agora. Ainda mais aqui. Qual
é, tenha respeito pelo seu corpo!
Balanço a cabeça na tentativa de afastar a voz do meu subconsciente e
espalmo as mãos na cintura, olhando-o com a cabeça tombada para o lado.
— O que você quer me mostrar, Scott? — indago ao ignorar
completamente seu comentário. — Eu não tenho todo o tempo do mundo,
lindo — ironizo o adjetivo, com um sorriso divertido no rosto, e ele logo abre
o seu.
Droga de sorriso molha-calcinhas.
Ele não responde e se põe ao meu lado ao passar o braço ao redor do
meu pescoço, forçando-me a andar para frente junto com ele. Não protesto
dessa vez. Ando junto com John e pouco a pouco, bem pouco a pouco
mesmo, todo o verde ao nosso redor parece sumir e nós parecemos subir em
algo. Quando finalmente me dou conta, percebo que estamos em uma espécie
de montanha.
E o céu noturno sobre nós é a coisa mais linda que já presenciei.
O tom de azul escuro do céu está rasgado por corpos celestes brilhantes
que parecem piscar todas de uma vez para nos cumprimentar. As estrelas
estão bem próximas e eu sinto como se ali, bem ali no meio dos astros,
estivesse Penelope, minha irmã mais nova, se divertindo ao estar sendo
contemplada por mim, a maior admiradora que um dia ela já teve em vida.
Meus olhos se enchem de lágrimas e um sorriso trêmulo aparece em
meus lábios, pois, de alguma forma, assim que o pensamento sobre ela me
ocorre, uma estrela cadente acaba de disparar rapidamente pela imensidão
que nos cobre.
Fecho meus glóbulos e faço um pedido.
Que Penelope Stratford seja a estrelinha mais feliz dessa galáxia.
Quando abro meus olhos, percebo a figura de John ao meu lado,
também de olhos fechados. Sorrio ao ver que ele também está fazendo um
pedido.
— Isso aqui é lindo — digo baixinho para John, sem retirar os olhos do
céu. — Obrigada por me trazer aqui.
Ele assente, então me puxa para deitar no chão. Deito-me ao seu lado e
junto as mãos sobre minha barriga, ainda fitando o azul infinito. Não sei por
quanto tempo ficamos em silêncio, absortos demais em nossos pensamentos,
só sei que sou a primeira a quebrá-lo, pois me viro de lado, de modo que
consiga enxergar seu rosto, e solto, quase em um sussurro:
— Por que quis me trazer até aqui?
John fica em silêncio, sem me olhar de volta. Mesmo não me olhando,
a luz das estrelas faz com que eu flagre um erguer sutil dos seus lábios
rosados.
— Porque estamos começando do zero — ele responde, tempos depois.
Suas írises azuis finalmente encontram as minhas e eu quase perco todo o ar
ao estar tão, tão próximo dele. Sua pele branca parece de porcelana, suas
sobrancelhas escuras parecem perfeitamente desenhadas, seu nariz parece ter
feito sob medida por um cirurgião plástico e seus lábios são, sem dúvida, a
coisa mais bem feita e bem elaborada de todo o seu rosto. John Scott poderia
muito facilmente se passar por Eros, o deus do amor e do erotismo da Grécia,
pois tudo seu foi milimetricamente esculpido para fazer com que uma mulher
caia em seus encantos apenas por encará-lo. — E eu quis que você começasse
me conhecendo de verdade. Eu tenho um amor secreto por estrelas e por esse
lugar, então queria que você fosse a primeira a saber. Talvez seja por eu
lembrar dele todas as vezes que encaro o seu sorriso.
Não sei o porquê, mas essa confissão dele faz com que meu coração se
agite.
Gosto de saber que sou a primeira a quem ele conta isso. Gosto de
saber que, muito provavelmente, sou a primeira que ele trouxe aqui. Gosto de
saber também que ele lembre das estrelas quando vê o meu sorriso.
— Na verdade, eu acho que esse papo é só para me engambelar —
brinco e empurro meu ombro contra o seu. — Você está falando de estrelas e
todas essas coisas para que eu duvide que é mesmo um babaca.
— Jamais faria isso. — Seu dedo toca o meu nariz e ele aperta a
pontinha, brincalhão. — O máximo que eu quis foi tentar te impressionar,
gata. Sou o melhor dos babacas, pode admitir. — Ele me olha de forma
convencida e eu caio na risada. — Agora que estamos nessa, me conta algo
seu que ninguém sabe.
Uno as sobrancelhas.
— Vai, me conta. Não vou contar para ninguém. Promessa de escoteiro.
— John ergue a palma da mão e, embora saiba que ele provavelmente nem
entenda dessas coisas, assinto.
Começo a pensar no que contar.
— Eu tenho certeza que a Marilyn Monroe foi assassinada — admito,
mas já estou rindo da expressão que seu rosto faz. — O quê?! É uma
confissão séria, Scott. Eu realmente nunca contei isso para ninguém.
— Confissões da sua vida, Pasha Stratford. Quero saber sobre você.
— Tudo bem — bufo, mas sei que preciso ser sincera. Não posso
esquivar de falar sobre mim. Pelo menos não agora que estamos nos
conhecendo melhor. — Não sei se você sabe, mas a minha irmã morreu aos
sete anos, vítima de câncer. Passei muito tempo ao lado dela, assim como de
outras garotinhas, na ala oncológica do hospital. Toda vez que ela tinha
quimioterapia, eu levava livros infantis e lia para ela e todas as crianças
presentes. — Dou uma pausa, apenas para respirar e tentar despistar as
lágrimas que já começam a brotar nos meus olhos. Quando pareço um pouco
melhor, continuo: — Apesar de elas terem passado por coisas horríveis
naquele hospital, minha irmã e suas amigas sempre me agradeciam pela
leitura e faziam questão de dizer que eu deixava todo o momento um pouco
menos doloroso. Isso me deixava realizada. Me deixava realizada saber que
eu fazia a diferença para elas. Então, desde que fiz isso pela primeira vez na
minha vida, soube que queria trabalhar com crianças no futuro. Não sei se
será em um hospital, em uma escola ou em qualquer outro lugar, mas sei que
será com elas e para elas.
Trago a maior quantidade de ar para os meus pulmões assim que acabo
de terminar de falar, expirando tudo depois pela fresta entre meus lábios. Esse
assunto sempre mexe muito comigo, principalmente por sempre ter
desenvolvido ele e guardado dentro de mim.
É bom externar seus sonhos para outra pessoa de vez em quando.
Parece que quando você se permite dizer em voz alta, o universo faz questão
de ouvir para te surpreender depois.
Assim que olho para John, percebo que seus olhos parecem carregar
um brilho diferente. Sua boca está entreaberta e ele pisca os longos cílios
tantas vezes que sou incapaz de contar.
— Eu sinto muito pela sua irmã, Pasha. Eu realmente não sabia disso
— o loiro sopra. — E sobre as crianças, tenho certeza que elas irão adorar ter
você para se inspirar. Tenho certeza também que o quer que você queira ser,
irá ser perfeita e a melhor de todas.
Eu confirmo, soltando uma risada.
— Obrigada por inflar meu ego, John Scott.
— Sempre que você precisar, Pasha Stratford.
O loiro se levanta e fica sentado em posição de índio, me olhando com
as írises brilhando em desafio.
— Ah, meu Deus, o que você quer aprontar dessa vez? — pergunto, e o
sorriso que envia apenas para mim é completamente atroz.
Minha infância não foi fácil. Eu fui uma criança sozinha e nunca tive
qualquer reação saudável com uma outra pessoa. Então, como eu nunca tive
uma troca, não desenvolvi amor e afeto por ninguém quando criança. A
única coisa que me fazia sentir algo de verdade era olhar as estrelas naquele
lugar infernal em que eu vivia e ficar contando cada uma delas com as
pontinhas dos meus dedos.
E quando eu saia do jardim, depois de passar horas e horas
conversando com as minhas amigas — eu realmente acreditava que as
estrelas me escutavam —, subia as escadas de dois em dois e ia fuçar os
livros que falavam sobre o universo naquela biblioteca deteriorada que
quase ninguém visitava.
Lembro-me até hoje que eu achava surreal o fato de ter tantos
pontinhos brilhantes no céu e o quanto eu gostaria de descobrir mais sobre
eles, pois, de alguma forma, olhando para as estrelas, eu sentia que eu não
estava só no mundo. Não ao menos quando todos aqueles astros vinham me
visitar sem falta toda noite.
Foi exatamente por isso que o pequeno John começou a perder noites
escondido de todos, lá na biblioteca. Ele reunia a maior quantidade de livros
que falavam sobre o Universo e mergulhava em bilhões de galáxias até sua
cabeça começar a querer explodir com tantas informações novas e surreais
demais para um garotinho compreender.
É a única lembrança boa que tenho daquele lugar e da minha infância.
Depois que eu simplesmente fui embora de lá, antes de finalmente
encontrar Devin Leblanc e toda a família que tenho com meus amigos,
encontrei esse lugar, onde as estrelas são ainda mais encantadoras e visíveis.
Passei a me sentir pertencente a algo e então foi por isso que comecei a
visitá-lo com frequência. E eu nunca trouxe ninguém para cá. Nem os meus
amigos, que me conhecem mais do que tudo, fazem se quer a menor noção
que ele existe e o quanto significa para mim. Esse lugar é como se fosso só
meu, uma parte secreta da minha vida. E eu nem sei ao certo o porquê de ter
decidido mostrá-lo a Pasha hoje, só sei que senti que precisava. Senti que
precisava compartilhar com ela uma parte minha que não fosse babaca ou
obscura demais. Se estávamos levando a sério mesmo esse lance de
recomeçar, senti que precisava ser sincero com alguma garota uma vez na
vida, principalmente depois de ter pegado tanto no pé da ruiva durante esses
meses em que dividimos o mesmo círculo de amizade. Precisava mostrar
pelo menos um pouco de quem sou de verdade.
Contudo também, claro, não esquecendo de mencionar, eu realmente
lembro das estrelas quando encaro seu sorriso. Afinal, de acordo com todo o
meu conhecimento acerca do assunto, estrelas são esferas gigantes
compostas de gases que produzem reações nucleares, mas, graças à
gravidade, podem se manter vivas por trilhões de anos.
E quando o sorriso de Pasha Stratford pincela seu rosto, ele consegue
causar reações nucleares exatamente como as estrelas, liberando energia e
acendendo tudo ao seu redor. E graças a esse poder, o sorriso dessa garota
pode ficar tão vivo na cabeça daquele que o contempla quanto os corpos
celestes esplandecendo no espaço.
Ela está sorrindo agora por conta do meu pedido, e olhando-o nesse
momento, tenho ainda mais convicção do que mencionei. O sorriso da ruiva
é mesmo como uma explosão de estrelas.
— Você está mesmo falando sério? — Pasha me pergunta, e eu
confirmo, sorrindo. — Tudo bem então. Quem começa?
Eu propus que a gente brincasse de duas verdades e uma mentira
quando a olhei daquela maneira que denunciava meus pensamentos. Estou
mesmo empenhado em conhecê-la. Eu até poderia usar a desculpa de que
sou atencioso com as garotas por quem me interesso, mas isso não seria algo
cem por cento verídico. Não que eu seja um imbecil e as trate mal, não é
isso. É só que, de vez em quando, quando estamos tão envolvidos no nosso
momento, nem o nome eu faço questão de perguntar para elas.
Então, novamente, não sei responder o motivo de estar mais
interessado em sua vida do que em seu corpo. Só sei que estou. Estou para
um caralho. Pela primeira vez na vida, estou muito mais interessado em
desbravar o que há por trás da sua mente do que o que há por trás de sua
roupa.
Isso deveria me deixar pilhado e preocupado. No entanto, por que não
me sinto dessa forma?
Talvez seja por eu entender que é impossível que eu e Pasha Stratford
tenhamos qualquer coisa além do que uma amizade possivelmente colorida.
Ela já demonstrou tanto isso que é impossível cogitar o contrário.
— Damas primeiro — respondo de modo galanteador pouco tempo
depois, o que acaba lhe fazendo revirar os orbes e soltar uma risada,
daquelas desacreditada.
Depois que ela parece concordar com a minha sugestão, volta a se
deitar para escrutinar o azul do céu, bem ao meu lado. Diferente de antes,
dessa vez seu corpo está extremamente próximo ao meu, de modo que faz o
seu ombro roçar em meu braço.
Sorrio internamente por conta disso.
— Vou começar. Está preparado, John Scott? — A ruiva indaga, e eu
balanço a cabeça afirmativamente. — Duas verdades e uma mentira. Meu
nome completo é Pasha Denise Stratford, sou do signo de áries e também
sou completamente apaixonada por bandas de pop rock.
Faço um bico de lado, a observando por rabo de olho.
— Nem fodendo que você é apaixonada por bandas de pop rock,
diabinha — afirmo, e Pasha vira o rosto em minha direção. — Essa foi
extremamente fácil. Moleza, moleza.
— Como você pode ter tanta certeza? — a ruiva retruca. — Eu
poderia muito bem gostar.
— Mas não gosta.
— Ok, ok. Você está certo. Eu não gosto mesmo. Na verdade, eu
cresci escutando música clássica e frequentando concertos por causa dos
meus pais e seus amigos. Então, eventualmente, me apaixonei por esse
mundo e sou completamente apaixonada pela Billie Holiday.
Meu rosto se contorce em uma careta de desgosto assim que Stratford
termina sua fala.
— Téééédio — cantarolo, a fim de irritá-la. Ao contrário do que eu
imaginei, Pasha apenas solta uma risada contagiante. Sorrio só por escutá-la.
— Minha vez, certo? — Apesar de ser algo retórico, a garota ao lado
murmura uma confirmação e eu assinto, esfregando uma mão na outra,
ansioso para ver sua resposta. — Bom, vamos lá. Eu amo e sou
completamente fanático por futebol americano, já tive uma cobra de
estimação e meu nome completo é John Scott Abernathy.
Pasha olha dentro dos meus olhos e tenta encontrar a resposta bem ali,
no azul das minhas írises. Apenas me mantenho estoico para não denunciar
e nem dar dica de nada.
— A mentira é que você já teve uma cobra de estimação? — indaga, e
vejo que suas sobrancelhas quase se tocam, assim como vejo que começa a
mordiscar o lábio inferior ao se sentir incerta.
Faço que não com a cabeça.
— Errou, diabinha.
— Que absurdo, John Scott! Como você foi capaz de fazer uma coisa
dessa? — Seus olhos estão levemente arregalados e a sua boca, entreaberta.
— Fazer o quê? — questiono, sem entender.
— Deixar que uma cobra fique sob os seus cuidados, oras. Coitadinha
dela.
— Há Há Há. — Forço uma risada, e aproveito a deixa para revirar os
olhos. — Eu sou ótimo em cuidar de cobras, Stratford. Se você quiser, posso
te mostrar o quão bom nisso eu posso ser.
— Me chamando de cobra, Scott? — O tom da sua voz sai gotejando
veneno por todas as sílabas. Olhar para os seus olhos castanhos agora, que
parecem extremamente venenosos e diabólicos, faz com que eu concorde
sem pensar duas vezes. Quando faço isso, ela logo se equilibra sobre os
cotovelos e aproxima o rosto perigosamente próximo do meu. Foco nos seus
lábios cheios exatamente no momento em que ela sopra, baixinho: — Olha
que eu posso ser extremamente rasteira como uma, lindo.
Eu sou incapaz de duvidar disso. Sou incapaz de duvidar que ela seja
perigosa e rasteira. Sou incapaz de fazer isso exatamente agora, pois me
encontro envenenado pelo brilho lascivo dos seus olhos e pela reação
nuclear que seu sorriso desperta em cada célula do meu corpo.
Ergo sutilmente minha cabeça e, se eu fizer mais um pouco de esforço,
consigo acabar com qualquer distância entre nós e colidir com minha boca
na sua uma segunda vez. Estou muito tentado a fazer isso, e ela parece
perceber, pois seus glóbulos deslizam dos meus olhos até os meus lábios,
admirando-os com a mesma luxúria que os crepitam.
Lentamente, Pasha fecha seus olhos e se aproxima, o hálito da sua
boca mesclado com o cheiro do seu gloss labial de cereja me atingindo em
cheio. Fecho os meus também na mesma hora, rezando para que parta dela a
iniciativa de acabar com essa necessidade que sinto de me esbaldar com seu
gosto uma outra vez.
Mas, para a minha tristeza, a única coisa que a garota faz é depositar
um beijo em minha têmpora, soltando uma risadinha assim que menciona:
— Se o seu nome completo não é John Scott Abernathy, então qual é?
Só quando Pasha se afasta que consigo abrir os olhos e expirar todo o
ar acumulado.
— John Stone Scott.
Seu queixo sobe e desce, em uma confirmação quase imperceptível.
— Pois então, John Stone Scott, vamos continuar a brincadeira. —
Stratford leva o indicador até meu peito e sua unha arranha a região,
brincando de sobe e desce com ele. Um arrepio atinge minha espinha
cervical, mas me mantenho impassível. — Agora vai ser uma verdade e uma
mentira e eu vou te dizer elas. A verdade é que a gente só se beija quando,
onde, e se eu quiser, afinal, quem está no comando é a diabinha aqui. —
Seus dedos agora vão subindo e seguram meu queixo com eles em pinça,
puxando-me para olhar em sua direção. Sei que está mencionando isso por
conta do nosso quase momento. O sorriso estampado em seu rosto e modo
como soa deliciosamente mandona me faz adorar essa conversa. — E a
mentira é que você não vai querer e vai tentar com todas as suas forças me
impedir quando esse momento chegar.
Detesto o fato dela estar fodidamente certa em sua verdade e em sua
mentira.

A brincadeira entre mim e Pasha acabou rolando por mais alguns minutos
antes que decidíssemos ir embora, já que estava ficando tarde e o caminho
de volta para casa poderia acabar se tornando algo perigoso.
Então, apesar de ter sido uma coisa rápida, a noite foi muito divertida.
Eu descobri que Pasha Denise Stratford — agora que eu sabia seu nome
completo não iria parar de mencioná-lo — tem vinte um anos, se dedicou a
patinação artística no gelo por toda a sua infância e começo da adolescência,
fez aulas para aprender a tocar violoncelo por dois anos inteiros, que café e
champagne concorrem o primeiro lugar na sua lista de bebidas favoritas e
que, sem esquecer de mencionar, descobri que a garota de fios alaranjados se
considera levemente controladora e que acredita ter um ego nas alturas por
sempre ter sido elogiada devido à beleza fora do normal.
E isso, por incrível que pareça, nós temos em comum.
Apesar de Pasha ter dito lá no início que nós dois não temos nada em
comum, agora eu consigo discordar. Nós somos até que parecidos. Sei que
ela é determinada e obstinada assim como eu, consegui chegar nessa
afirmação quando escutei suas palavras decididas ao falar sobre quando nós
vamos nos beijar de novo. Ela gosta de jogos tanto quanto eu e, com toda
certeza, adora estar no comando em tudo que se propõe a fazer. Ela também
tem uma língua afiada, um humor ácido, não liga para ninguém e... bom, é
igualzinha a mim em diversos aspectos, sim.
Por que estou sorrindo agora?
Balanço a cabeça na tentativa de dissipar o sorriso e os pensamentos,
adentrando no rancho logo após. A luz vertiginosa da lua projeta minha
sombra na relva verde musgo e ela me acompanha até que eu fique em
frente ao meu trailer. Subo as escadinhas, abro a porta e quando entro,
encontro vários pares de olhos me observando.
Devin, Kieran, Kara e Violet estão todos deitados na minha cama.
— Vocês deveriam parar de fazer essas coisas. Nunca ouviram falar
sobre privacidade, não? — murmuro para todos eles. Meus amigos apenas
caem na risada. — Estou falando sério, porra. E se eu estivesse entrando
aqui com alguma garota?
— Simples. — Violet Mohn responde, sentada no chão. Seus fios
castanhos estão presos em um rabo de cavalo e ela tem um cigarro
pendurado em uma das suas orelhas, que agora está repleta de brincos e
piercings. A garota está coberta por roupas pretas e coturnos, que combinam
super bem com suas pálpebras pinceladas por sombras escuras, como de
costume. — Se você tivesse entrado com alguma garota, nós a chamaríamos
para fazer parte da festa junto com a gente.
Contorço o rosto em uma careta irônica para ela, que me devolve um
sorriso cínico e petulante.
Afasto alguns deles da minha cama e me sento. Entrelaço uma mão na
outra e os observo.
Devin está deitado, vestindo sua jaqueta de couro e sua calça jeans
rasgada. Suas mãos estão atrás da sua cabeça e seus olhos verdes me
esquadrinham, divertidos. Já Kieran, que está apenas com uma calça
moletom e o peitoral definido desnudo, está meio sentado e meio deitado
bem ao lado da sua irmã, aninhada em seu corpo. Kara tem os cabelos
longos e cacheados cascateando suas costas, enquanto está vestindo uma
jardineira jeans com a blusa preta da banda Ramones por dentro. Sua pele
oliva parece brilhar sob a luz proeminente do meu trailer. E estão todos, sem
exceção, me encarando agora.
— O que vocês estão aprontando, afinal? — indago, o meu dedo em
riste passeia por cada um deles.
— Queremos saber para onde você e Pasha Stratford foram. — Kara é
quem responde, e seus lábios pintados por várias camadas de batom vinho se
alargam de uma forma muito maliciosa. Ela bate palminhas logo depois. —
Vocês finalmente estão tendo algo, não estão?
— Não se empolgue, mana. — Kieran acalma a irmã ao passar as
mãos pelas costas dela, em um movimento de vai e vem. — Nosso amigo
John Scott não tem algo com ninguém. A não ser com a sua própria figura
no espelho, claro.
Rolo os olhos e mando todo mundo se foder quando as risadas deles
reverberam pelo cômodo.
Como não fiz questão nenhuma de ser discreto ao sair junto da ruiva
assim que o ensaio acabou, é óbvio que todos viram e ficaram confabulando
o que estava acontecendo entre nós, afinal, de acordo com todos eles, algo
provavelmente acabaria rolando entre mim e Pasha, pois novamente,
segundo eles, era impossível que eu, mulherengo do jeito que sou —
palavras dos meus amigos, não minhas — iria ficar implicando com ela a
troco de nada. Então para todos estava bem óbvio que eu e Pasha
aconteceria uma hora ou outra.
A verdade é que já aconteceu, mas eles não fazem a menor ideia disso.
O único que sabe é Devin Leblanc, já que foi o único que percebeu meu
jeito estranho na noite em que aconteceu. Era simplesmente impossível não
contar para ele, parecia estar escrito em minha testa. Mas agora, no entanto,
nem ele e nem os outros sabem que estamos nos conhecendo melhor para
que algo possa acontecer entre nós no futuro.
— Eu já disse o quanto odeio vocês? — menciono, bufando. Passo as
pontas dos dedos pelos fios platinados e jogo-os para trás, decidido a
partilhar com eles também. Eu sei que não há o que esconder, então apenas
dou de ombros e solto: — Nós dois baixamos a guarda, decretamos paz e
estamos tentando nos conhecer melhor. Só isso até agora. Prometo que vou
atualizando vocês conforme o progresso. Mas nem pense que vou
compartilhar detalhes, pois sou um cara de respeito e não saio espalhando o
que acontece entre mim e as minhas garotas.
E é verdade, não faço esse tipo de coisa. Detesto esses caras que
compartilham com todo mundo o que faz entre quatro paredes com as
garotas que saem.
— Cuidado para não se apaixonar, amigo — Violet me alerta, e faz de
tudo para conter o sorriso em seu rosto. — Pasha Stratford não me parece
ser uma mulher que entra na vida de um cara sem fazer estrago. Ela é
simplesmente... uau! Uau demais para qualquer um. Inclusive para você.
Sorrio, porque realmente é verdade. Pasha é areia demais para o meu
caminhãozinho.
Na verdade, areia demais para o de qualquer cara.
— Você tem um ponto, furacão — digo, sinceramente, retomando o
apelido que eu dera a ela muito tempo atrás, já que Violet Mohn é a
personificação de um furacão, completamente destruidora, assim como a
ruivinha. — Mas só se esqueceu do fato que eu não me apaixono, gata.
Mohn solta uma risada e o modo como me olha parece revelar que não
acredita no que acabei de mencionar. Devin, que até então estava calado,
parece partilhar da mesma opinião, pois logo afirma:
— Todo ser humano tem a capacidade de se apaixonar, Johnny — ele
soa irônico. — Você não é diferente disso, amigão. Se quer um conselho,
não se apegue nessa teoria. Quanto mais a gente fala que uma coisa não
acontece, o Universo conspira para que ela aconteça só para rir da nossa
cara. Então não duvide, senhor-eu-não-me-apaixono. A não ser que você
seja um robô e não nos comunicou, é isso? — Mais uma vez, assim como
sempre quando o assunto é me perturbar, todos caem na gargalhada.
Pego o travesseiro atrás de mim e rumo na direção dele, que logo
desvia para o lado, fazendo com que o objeto atinja o assoalho. Solto um
muxoxo por causa disso.
— Cansei desse assunto. — Estalo a língua no céu da boca. — Se
vocês não tiverem outra coisa para falar, podem se retirar agora mesmo. Não
quero a toxidade de vocês infectando a minha casa.
— Calma, cara — pede Kieran ao estrangular uma risada. — Não é só
de zoar da sua cara que a gente vive, não. Viemos aqui te contar uma
novidade fresquinha que, com toda certeza, você irá adorar. — Meu amigo
agora olha para Violet e aponta a cabeça para mim, como se estivesse
pedindo implicitamente para ela que me conte da novidade.
Violet aquiesce e se vira em minha direção.
— Vai rolar uma festa na fraternidade da Hellaware University
amanhã — explica, logo após se engatinhar pelo chão. Ela fica de joelhos no
assoalho e seu corpo se curva sobre a cama, ficando agora mais próxima de
mim. — E todos nós fomos convidados.
Meu corpo já se anima com a menção da tal fraternidade que, com
toda certeza, ficou marcada ano passado pelas suas festas incríveis e por
uma em específico. Bom, para resumir, Barbie St. Claire, que é namorada do
Devin, morava em Nova York antes de se mudar para morar com sua tia
aqui na cidade. Ela era rica e seu pai, dono de empresa. Nesse interim, a
garota namorou um cara chamado Jasper Clement por quatro anos, só que
seu pai e ela acabou descobrindo que ele só estava com ela para dar um
golpe em sua família, já que, devido a aproximação, o pai da Barbie fez o
pai de Jasper seu sócio.
A empresa do pai de Barbie foi a falência, ela terminou com Jasper,
Jasper e sua família fugiram e o pai da loira morreu meses depois, fazendo-a
se mudar de vez para cá. Meses depois de começar um relacionamento com
meu amigo, Jasper e sua família se mudaram para essa cidade e todo mundo
acabou descobrindo que ele tinha fugido naquela época para Gipsy Hill —
sim, a cidade vizinha onde Daisy e seus amigos trazidos por Hunter
moravam. Inclusive, eles também tiveram a vida ligada ao garoto e sua
família de criminosos —. O tal Clement aprontou inúmeras coisas, interferiu
no romance da ex, chantageou Devin e, no fim, acabou sendo denunciado e
preso por tráfico de drogas em uma dessas festas na fraternidade.
Foi Barbie e Violet que executaram um plano para prendê-lo
juntamente da família criminosa.
Apesar de toda essa confusão ter acontecido no ano passado, todos
eles sabem o quanto eu amo as festas dessa fraternidade e o quanto eu amo
as garotas de lá, por isso que provavelmente vieram correndo me contar. O
sorriso em meu rosto cresce copiosamente quando as lembranças de um
John bêbado se divertindo naquela noite pipocam em minha mente.
— Não sei se vocês vão, mas eu estou dentro — digo, e Kara, Kieran,
Violet e Devin prestam atenção em mim. — Estou definitivamente dentro.
Meus amigos sorriem e confirmam que também estão.
Quando adentro a fraternidade da HU, a primeira coisa que sou
atingido são pelas luzes estroboscópicas que rasgam o ambiente e o deixam
ainda mais interessante no exato momento em que reflete nos corpos
sensuais das meninas aglomeradas na pista de dança improvisada. A música
pop reverbera pelas caixas de som estrategicamente espalhadas e faz com
que todos gritem de entusiasmo, as mãos jogadas no ar para que toda
animação retesada dentro deles sejam libertadas para o alto.
Sorrio torto para algumas garotas que me observam e cumprimento
com dois dedos alguns conhecidos de vista.
Meus amigos estão logo atrás de mim, com os olhos varrendo cada
canto da área muito bem movimentada. Sinto a presença deles agora
dividida ao meu lado, e viro sobre os ombros para fitá-los. Violet Mohn,
que tem o estilo completo de garota rebelde sem causa, está usando apenas
um moletom liso e cinza, que chega em um pouco mais da metade das suas
coxas cobertas por meia arrastão e que acaba escondendo o pequeno short
de lycra que usa. Seus cabelos castanhos estão presos em um rabo de cavalo
bem feito no topo da sua cabeça, o que deixa bem visível as grandes argolas
em suas orelhas e a gargantilha de couro preta em seu pescoço. Já Kara,
posicionada ao lado dela, está coberta por calça mom jeans clara adornada
por um cinto preto, uma camiseta social rosa bebê com os dois primeiros
botões abertos, as mangas dobradas até o cotovelo e um nó formado no
meio da sua barriga, que deixa um pouco da sua linda pele preta à mostra.
Seu rosto está longe de maquiagem e as sardas seguem percorrendo suas
bochechas e o ossinho do seu nariz, a boca carnuda coberta por gloss
brilhando tanto quanto o piercing prata posicionado em seu nariz.
A beleza das duas é de deixar qualquer marmanjo de boca aberta.
Quer dizer, melhor reformulando o meu comentário, a beleza dos
meus amigos é de deixar todos de boca aberta. Não posso simplesmente
ignorar e deixar Kieran McAllister de fora dessa, seria mancada. O cara é
mesmo bonito, admito. Não tenho masculinidade frágil e nem essas merdas.
Ele, diferente da sua irmã que tem os olhos verdes cintilantes, tem os seus
da cor de chocolate, um cabelo crespo curto e em uma espécie de degrade,
bíceps tatuados e torneados — o detesto por causa disso — e agora, nesse
exato momento, consegue chamar atenção das gatas só por tê-los totalmente
em evidência por conta da regata branca e cavada que usa.
Se Kieran não fosse calado, reservado e não comesse quieto, eu muito
provavelmente me sentiria ameaçado por ele.
No entanto, como ele costuma agir por de baixo do pano e é
considerado uma pessoa difícil para se envolver com alguém, boa parte das
mulheres miram em mim primeiro, pois sabe que aqui, com certeza, as
coisas são muito mais fáceis.
Quer dizer, depende. Não me depravo tanto assim.
Sorrio e dou alguns tapinhas no peito de aço de Kieran.
— O papai aqui vai aos trabalhos — digo para o meu amigo,
maliciosamente. Ele me olha com cara de desprezo e assente, já acostumado
com minhas falas idiotas e as minhas atitudes em festas. Solto uma risada e
uma piscadela para McAllister.
Estou pronto para movimentar minhas pernas e ir em busca de bebida,
mas sou interrompido de fazer qualquer coisa ao escutar Violet murmurar,
bem atrás de mim:
— Vê se não engravida ninguém, bonitão. — Sua boca pincelada por
batom coral se alarga em um sorriso divertido. — Não queremos nenhum
mini John nos chamando de titios por agora.
Fecho minha mão em punho e logo depois meu dedo do meio
aparece.
— Hasta la vista, baby — é o que eu apenas digo para Violet e todos
os outros, girando sobre os calcanhares para finalmente dar início a
brincadeira.
Arrasto meus passos até a mesa de bebidas mais próxima, sendo
acompanhado agora pela música de U2 ressoando por todos os lados. Pego
um daqueles copos vermelhos típicos de festa e encho de cerveja até o talo.
Depois, em busca de uma presa, encosto-me na parede, levo o copo até os
lábios, entorno o líquido alcoólico e passeio com meus orbes pela
fraternidade. Alguns bons pares de olhos femininos já estão cravados em
mim, o que acaba felicitando tudo. Geralmente, quando fico só, as garotas
costumam chegar em mim bem depressa. Elas se aproximam timidamente,
começam a falar sobre o quanto o lugar é abafado, ou sobre o quanto a
música é contagiante e, quando vou perceber, já estão com lábios prensados
nos meus e com as mãos bobas ziguezagueando de um lado para o outro em
meu corpo.
Para ser sincero, costuma ser bem divertido. Eu gosto de ser xavecado
e de xavecar, gosto da conquista, do sentimento bom do flerte e, sem dúvida
alguma, gosto de desfrutar dos prazeres carnais. Afinal, estamos aqui para
isso, não?
Como eu disse, feito um passe de mágica, logo uma garota brota ao
meu lado. Observo-a por rabo de olho e disfarço o sorriso de vitória
formado em meu rosto, colocando o copo em frente aos meus lábios. Ela
segura seu cabelo preto com uma das mãos, como se estivesse fazendo um
rabo de cavalo, e, com a outra, abana seu pescoço, logo depois soltando
uma densa lufada de ar.
Quando os olhos cinzas da garota encontram os meus, já sei
exatamente o que irá sair por entre seus lábios pintados de rosa.
— Nossa, calor aqui, não? — Bingo. Afasto o copo dos lábios e me
mantenho impassível, como se nunca tivesse ouvido nada parecido.
— Nem me fale. — Balanço a cabeça, potencializando a atuação ao
começar a me abanar também. — E a música? Divertida, huh?
Os olhos da quase-não-tão-mais desconhecida, que são
completamente cinzas, parecem escurecer ainda mais uns bons tons ao
ouvir exatamente o que gostaria de escutar. Ela passa a língua pelo lábio
inferior e morde um sorriso. Estou muito tentado a embarcar nesse flerte,
afinal a garota é gata, mas minha atenção se volta totalmente para a porta,
que é escancarada para que todos possam ter o vislumbre da entrada triunfal
de Pasha Stratford, que está acompanhada de Devin, Barbie e Georgina.
Talvez nossos olhos sejam como malditos imãs, pois eles criam um
campo magnético a nossa volta e são instantaneamente atraídos um para o
outro. O castanho do dela se choca com o azul do meu e o resultado nada
mais é do que uma mistura de sensações alastrantes e desconhecidas
percorrendo toda a droga do meu corpo.
Ainda sustentando o meu olhar, já que não é mulher de desviar ou
fugir de situações como essa, Pasha dá alguns passos para dentro da festa,
então nossos amigos também a acompanham nessa. Não sei quanto tempo
dura nossa pequena batalha, mas a garota ao meu lado me faz entender que
foram apenas segundos, pois toca no meu ombro a fim de chamar minha
atenção.
Pisco algumas vezes.
— Perdão, gata, me distrai. O que disse?
— Tudo bem. — Ela sorri, fingindo inocência. Suas mãos agora
descem pelo meu braço. — Eu perguntei se você não saberia me dizer onde
fica o banheiro. Sou caloura, então ainda estou meio perdida por aqui.
Antes de respondê-la, olho mais uma vez para a ruiva. Agora ela
permanece junto de Georgina, pois Barbie e Devin já foram se enfiar Deus
sabe lá onde. Não demora muito para que a loira cochiche algo em seu
ouvido, sumindo para pista de dança logo depois. No segundo seguinte em
que isso acontece, Stratford volta a olhar para mim e, parecendo finalmente
se dar conta da morena ao meu lado, ergue as sobrancelhas e solta uma
risadinha em descrença. Ela não parece chateada ou algo assim, até porque
não temos nada um com outro — e nem nada demais está acontecendo aqui
—, mas, ainda assim, parece estar debochando ou com muita vontade de
dizer que sou um babaca e que não mudo nunca.
De repente, tudo parece perder a graça. Então bebo o restante da
cerveja, enfio as mãos no bolso e ergo os ombros, finalmente respondendo
para a garota:
— O banheiro fica no andar de cima. É uma porta rosa, você vai
conseguir identificar.
E antes que eu saia do lugar que me encontro, consigo flagrar o exato
momento em que o sorriso dela vacila.
Obviamente não era essa resposta que estava esperando. No entanto, a
única coisa que consigo fazer é sorrir e dizer que nos vemos em breve,
embora saibamos que isso nunca mais vai acontecer.
Minhas botas de combate agora se arrastam pelo assoalho desgastado
e me levam até a cozinha americana da fraternidade, que é para onde Pasha
acabou de ir. Quando entro, me deparo com a ruiva empurrando —
literalmente falando — um casal que estava se agarrando encostado na
geladeira. O casal se separa, atônitos, e então murmuram palavras
desconexas e emburradas para ela antes de saírem da cozinha.
Fricciono os lábios para não rir da cena.
A ruiva agora abre a porta da geladeira e se curva, em busca de algo
por ali. Me aproximo cautelosamente, a porta cobrindo minha figura e
impedindo que ela saiba que estou ali. Quando a fecha, após não encontrar
o que estava procurando, seu corpo dá um sobressalto no exato momento
em que seus orbes me capturam ali, encostado na base de alvenaria da pia.
— Em busca de algo, minha gata? — Uso o tal do pronome para
irritá-la, e parece surtir efeito, pois a ruiva logo franze o rosto em uma
careta. — Posso ajudá-la com alguma coisa?
Pasha balança a cabeça negativamente e se coloca ao meu lado. Não
demora mais que poucos segundos para que eu a veja cruzar os braços e a
escute bufar.
— É inadmissível o fato de que essa gente não tenha água na porcaria
da geladeira — menciona, visivelmente indignada. — Ninguém se importa
com quem sente sede? Ao menos eles sentem sede de algo que não seja
álcool?
Não consigo não conter a risada. A ruiva está muito inconformada e
toda a expressão corporal do seu corpo demonstra isso. Suas bochechas
estão mais vermelhas que o normal, há sulcos formados entre suas
sobrancelhas e seu nariz pontudo se encontra levemente dilatado.
A própria personificação da fúria se encontra parada bem ao meu lado
e eu simplesmente não consigo parar de rir.
Eu definitivamente não tenho nenhum amor pela minha vida.
— Para de rir, idiota. — Pasha empurra meu ombro com a mão, e,
pouco a pouco, olhando para mim, sua carranca se desfaz. Eu posso até
jurar que vejo um erguer sutil dos seus lábios. — Você deveria ir agora
mesmo em busca de água para mim, já que fica achando graça.
Mordo um sorriso.
— Ir em busca de água?! — retruco. — Ah, querida, eu poderia ir
facilmente agora em busca da Lua por você.
Minha cantada barata não parece afetá-la, só contribui para que seus
olhos se revirem e quase saltem para fora das órbitas.
— Regra número um para a nossa boa e pacífica convivência: não
tente flertar comigo depois de eu ter visto você flertar com outras. — O
castanho dos seus olhos me perscruta, e ela leva uma das mãos em meu
rosto, depositando leves batidas na região. — Não gosto e nem sirvo para
ser segunda opção de ninguém, lindo. Se estou em um jogo de sedução com
você, preciso ter a certeza de que sua mente e seu corpo estejam
concentrados apenas aqui. — Pasha retira sua mão do meu rosto e passeia
com ela pelo seu corpo, tocando na curva sinuosa do seu quadril. Depois,
ergue seu rosto em minha direção e sorri, atroz. — Mesmo na diversão,
querido John, gosto que me tenham como prioridade. Pelo menos nesses
momentos, sabe? Passei tanto tempo me contentando com tão pouco que
quando finalmente descobri que sou muito, não deixo mais que qualquer
cara tire proveito da minha grandeza.
Estou sem palavras. Definitivamente sem palavras. Mas que inferno
de mulher é essa e porque suas palavras, assim como suas ações, precisam
me atingir tanto?
Tento procurar o que dizer, mas não consigo formular nada coerente e
me sinto um estúpido por isso. Não posso simplesmente dizer que não
estava flertando com a garota porque, minha nossa, seria muito babaca e
idiota da minha parte. Eu estava quase lá, quase pronto para o abraço, então
não posso simplesmente dizer que não estava flertando com mulher alguma.
Mas, venhamos e convenhamos, eu nem ao menos sabia que ela viria para
essa festa. Eu nem ao menos sabia que meu comentário, embora tenha sido
um flerte de leve, fosse causar essa reação nela, já que não estava tentando
tirar proveito nenhum com ele, só quis fazer graça e provocá-la como
sempre faço.
Além de que, francamente, como que alguém entra em um jogo de
sedução com Pasha Stratford e simplesmente pensa em outra coisa que não
seja ela? Isso, na verdade, seria inadmissível. Quando alguém se depara no
mesmo ambiente que essa garota, é meio que impossível não se sentir
instigado a desbravar seu corpo, sua mente, seu coração e tudo que lhe diz
respeito. Ela é a porcaria do Sol e todos, sem exceção, orbitam ao seu redor,
como se tivessem essa necessidade absurda de sempre se manter por perto.
E comigo não seria diferente. Não é diferente, na verdade.
Eu orbito ao seu redor — mesmo admitindo isso a contragosto — até
quando nem estou próximo.
E quando estou próximo, quero ela. Somente ela. Não penso em
ninguém. Para ser sincero, eu nem ao menos penso. Eu só consigo enxergar
uma vastidão absurda e perigosa de vermelho.
Abro a boca para tentar pôr para fora o que corre pela minha mente
quando se trata dela, mas acaba sendo tarde demais. Pasha parece entender
meu silêncio como uma confirmação de algo, porque solta mais uma das
suas risadinhas irônicas e me deixa sozinho, perplexo, ainda imóvel no
mesmo lugar.
Ah se ela soubesse que o papo da Lua é verdade...
Eu não queria ter vindo para essa festa de fraternidade, afinal, hoje é
domingo, o dia em que eu me enfio nas cobertas até tarde da noite para ficar
assistindo os filmes trashes de terror se desenrolarem na tevê de tubo do
meu quarto enquanto cuido da minha pele com máscara facial. É tipo um
ritual e eu adoro muito fazê-lo, então é claro que fui relutante com o pedido
das minhas amigas e tentei negá-lo até onde pude, mas é claro que elas me
venceram pelo cansaço e fizeram com que eu parasse todos os meus planos
apenas para eu me entupir de álcool com adolescentes e jovens
universitários, alegando o quanto seria divertido.
Estou sentada no meio do sofá encardido e há dois casais se beijando
e fazendo barulhos esquisitos bem ao meu lado.
Inclusive, Georgina e um cara qualquer do time de basquete da
universidade é um desses casais.
Então é claro que tudo está sendo bem divertido.
Não me importo que elas se divirtam e me deixem só de vez em
quando, não me importo mesmo. Apesar de amar a companhia delas, gosto
de ficar sozinha de vez em quando e elas sabem disso. Em certos
momentos, quando fico cercada por tanta gente, me sinto sufocada, porque
nunca estive cercada por tantas pessoas antes. Não estou acostumada e me
deixa claustrofóbica. Então agora, apesar de estar nessa situação de tédio,
me sinto bem. A música alta é reconfortante de alguma forma, assim como
o drinque que tenho em mãos — minha única opção, já que não encontrei
água para matar minha sede.
Não sei quanto tempo fico imersa nessa bolha, mas, algum tempo
depois, Georgina e o cara do basquete se desgrudam e ela parece o
dispensar, pois ele aparenta estar chateado com algo antes de finalmente se
levantar e dar o fora. Minha amiga se aproxima mais de mim, e vejo que um
suspiro de alívio escapa por entre seus lábios.
— Nossa, como um cara pode ser tão lindo e nem ao menos saber
beijar? — ela conta, exasperada. — Achei que fosse perder um dente ou ter
meu lábio arrancado em algum momento.
— E foi tão ruim assim? — questiono. Seu rosto logo se franze em
uma careta e ela balança a cabeça de um lado para o outro, o que acaba me
fazendo rir.
— Foi péssimo. — Georgina soa sincera, como de costume. Ela não é
uma mulher de suavizar situações ou de mentir, ou seja, quando a loira
precisa falar algo, ela vai falar e não está nem aí. É a pessoa mais
verdadeira que já conheci. — Céus, teria sido melhor até se eu tivesse
beijado uma porta.
É impossível não dar risada.
— Coitado do cara, amiga. — Pressiono os lábios para não reverberar
ainda mais a minha risada pelos quatro cantos.
— Coitada de mim, isso, sim. — Georgina Sinclair, a loira mais
perigosa que conheço, flexiona os joelhos e se levanta do sofá. Ela passa as
mãos pelos fios desgrenhados e varre o local em busca de algo,
provavelmente uma nova presa. — Vou tentar tirar o prejuízo, vem comigo
ou vai querer ficar aí?
Faço que não com a cabeça, indicando que ficarei onde estou.
— Certo. — Seus olhos continuam desbravando a fraternidade, e,
quando parece encontrar o que estava procurando, volta seu olhar para mim,
bate palminhas e sorri. — Só não passe a festa toda sentada nesse sofá,
criatura. Tem um monte de cara te olhando, então dê abertura e pare de
afastá-los com essa sua cara de vilã de seriado.
Já me chamaram de muitas coisas nessa vida, mas vilã de seriado é a
primeira vez. Confesso que gostei.
— E você sugere que eu faça o quê?
— O primeiro passo é começar a sorrir. — Georgina ergue os ombros
ossudos para cima. — Será que você sabe fazer isso?
Dou língua para a minha amiga, como se estivéssemos numa briga
infantil, e ela me mostra a sua também. Depois, a vejo mandar um beijo no
ar para mim e girar nos calcanhares, sumindo do meu campo de visão.
Afundo minhas costas no estofado e cruzo os braços, levando o
drinque aos meus lábios logo em seguida. Entorno todo o conteúdo e,
quando não sobra mais nada, repouso o copo sobre a mesa de centro. Tiro
os resquícios do líquido da minha boca, tentando não manchar o batom
vermelho, e me levanto. Quando arrumo a alça da minha bolsa no meu
ombro, antes de arrastar meus saltos até às escadas, flagro Barbie e Devin
dançando na pista de dança. Sorrio com a animação deles e finalmente
empurro com o cotovelo os corpos amontoados perto dos degraus, seguindo
escada acima em busca de um banheiro disponível.
Assim que chego no andar, peço informação a algumas pessoas sobre
onde fica o banheiro e eles logo me respondem que fica à direita. Então
corro para lá, minha bexiga já gritando em protesto, e logo dou de cara com
uma porta rosa. Eu até ficaria receosa de abri-la de imediato, mas o símbolo
feminino desenhado nela me faz ter a certeza que é o banheiro, então não
penso duas vezes em girar a maçaneta gélida e me enfiar no cubículo que,
graças aos céus, está totalmente livre para ser usado.
Cerca de poucos minutos depois, após fazer xixi e lavar as mãos,
procuro o zíper da minha bolsa e o abro, pescando meu batom de lá de
dentro. Cravo os olhos no espelho à minha frente e entreabro os lábios
minimamente, contornando-os com mais generosas camadas de vermelho
sangue, que combina perfeitamente com toda a roupa que estou usando
hoje; um cropped preto com decote em coração, que faz com que meus
seios generosos queiram pular para fora, uma calça também preta e que
aperta minhas coxas e emolduram muito bem a minha bunda, gargantilha
vermelha no pescoço e saltos também da mesma cor.
Logo em seguida, retiro alguns poucos borrados das bordas e estalo
os lábios, que agora estão exatamente do jeito que gosto. Fecho o batom,
jogo de volta na bolça, arrumo os meus fios ruivos, libero um sorrisinho
para o meu reflexo e giro sobre os calcanhares, pronta para sair do banheiro.
Então toco a maçaneta e abro a porta, dando alguns pequenos passos para
fora, escutando a madeira bater sozinha atrás de mim. E, antes que eu possa
esquecer, trago a bolsa para perto de mim e começo a fechar o zíper,
andando pelo corredor sem prestar atenção em nada à minha frente ou até
mesmo ao meu redor.
Quando coloco a bolsa de volta no seu devido lugar e ergo os olhos
para seguir meu caminho novamente, o que ele logo flagra faz com que eu
fique estática ali mesmo, no meio do corredor. Minhas pernas parecem que
criaram raízes no carpete e não me deixam fugir para nenhum lugar, então
eu permaneço encarando a cena com os olhos arregalados e o queixo quase
atingindo o chão.
John Scott está encostado na parede, próximo da escada. Ele está no
meio de duas garotas. Uma ele está beijando na boca, e a outra, totalmente
atenciosa, distribui beijos pelo seu pescoço tatuado. Seus braços estão
envoltos pelas cinturas delas e as mãos, totalmente exploratórias, passeiam
sem pudor pelas partes sinuosas dos corpos das garotas. No segundo
seguinte, pronto para beijar a outra, seus olhos me encontram.
John para por um milésimo de segundo e isso é o bastante para que eu
prenda todo o ar dentro de mim.
O azul das suas írises parece abrigar brasas agora e elas me queimam.
Queimam tanto que sinto um calor absurdo, como se tivesse acabado
de aterrissar no fogo do próprio inferno.
Ele me olha dos pés à cabeça e seus lábios sobem em uma espécie de
sorriso sujo, desafiador e totalmente perigoso. E então, logo após me despir
por inteira, enrosca a mão repleta de desenhos e anéis no cabelo da garota
que iria beijar, agora sendo a vez dele de distribuir beijos, chupões e
mordidas no pescoço da morena.
Embora a esteja dando prazer, seus olhos não deixam os meus nem
por um momento. Ele me olha com tanto afinco que sinto como se estivesse
querendo me mostrar algo que não estou vendo.
Algo que estou deixando passar.
E então, após um estalo na minha cabeça, é que percebo.
John Scott está tentando me mostrar que mesmo estando com várias,
é em mim que ele pensa.
Isso faz com que um raio atinja bem o meio entre as minhas pernas.
Faz com que eu, bem diferente do que eu imaginei, queira pegá-lo agora
mesmo pela gola da sua camiseta e enfiá-lo em um quarto qualquer para
que pague severamente pela forma que escolheu me mostrar isso.
E contrariando todo meu lado racional, é exatamente isso que faço.
Meus saltos ecoam pelo corredor e eles me levam até o loiro, que
ainda permanece me olhando com o sorriso estúpido em seu rosto. Sem
falar nada, quando estou em frente a eles, apenas puxo John Scott pela gola
da sua camiseta e o faço andar junto a mim, nem aí para os xingamentos
que recebo da parte das garotas, muito menos ligando para as perguntas que
disparam da boca dele.
Apenas procuro o quarto vago mais próximo e enfio nós dois lá, nos
trancando. John penteia os fios fartos do seu cabelo para trás, e seus olhos
parecem me perguntar se estou ficando louca, mas nenhuma dessas palavras
saem da sua boca, já que ela está ocupada demais pondo um sorriso
descarado em seu rosto.
— Regra número dois — digo, andando em sua direção. Encurto
tanto a nossa distância que suas costas se chocam contra a parede do quarto.
— Não me provoque — sopro, perigosamente próximo da sua boca, que
logo se entreabre para mim. — Eu não pego leve quando vou dar o troco. E
eu vou te dar o troco, John Scott. Só preciso saber se você está mesmo
pronto para entrar nessa porque, honestamente, se você aceitar, não terá
mais volta.
John pisca uma, duas, três vezes. Seus cílios superiores e inferiores se
chocam tantas vezes que chega a ser engraçado de assistir. Entretanto,
quando aquela imensidão oceânica finalmente me encara, quase perco toda
a minha pose. Preciso fazer muito esforço para não desmoronar ou até
mesmo mandar meu plano ir à merda e o beijar agora mesmo.
— Como eu posso não aceitar que você me dê o troco, diabinha? —
Scott indaga, e seus dedos gélidos tocam o meu queixo com eles em
formato de pinça, fazendo com que eu tombe levemente a cabeça para trás.
— Eu estou querendo que isso aconteça desde sempre.
Umedeço os lábios e sorrio, contente pelas escolhas das suas palavras.
— Então está bem. — Envolvo seu pescoço com os meus punhos,
trazendo-o para perto de mim de forma brusca e nada serena. — Só não
peça para parar quando eu começar, lindo.
— Jamais — ele diz, suas mãos segurando firme cada lado da minha
cintura. — Dê o troco agora, Pasha Stratford. Me puna por ter beijado outra
pessoa. Jogue comigo. Sou todo seu agora para você fazer o que quiser,
diabinha.
Assinto em um manear lento de cabeça e circulo meu lábio superior
com a língua, pensando o que posso começar a fazer para provocá-lo de um
modo tão torturante quanto o que ele fez comigo. E só quando ele avança
para capturar os meus lábios, tentando dominar a situação, é que eu desvio
para o lado e o empurro na cama de casal. John não tem nem tempo de
processar o que havia acontecido, pois eu trato de me sentar em seu colo,
minhas pernas em cada lado da sua cintura.
— Esqueceu que você só me beija quando eu quiser? — Sorrio,
inocentemente. Seu maxilar começa a ficar totalmente marcado pela tensão,
e eu não poderia estar adorando mais. — E eu definitivamente não quero
agora.
— E o que você quer agora?
— Te torturar. — Dou de ombros.
Aproveito da situação para fazer um coque no meu cabelo, a fim de
tentar diminuir o calor infernal que sinto.
— Mas isso você já está fazendo, diabinha — John ronrona ao
depositar as mãos nas minhas coxas, apertando a região. — Não é como se
você precisasse fazer muito esforço para me torturar.
Libero uma risada irônica.
— Achei que você fosse mais forte nesses jogos — cantarolo.
— Não quando o jogo se trata de você — afirma, sem vacilar. Ele
costuma ser bom nessas coisas e eu preciso tomar cuidado. Preciso tomar
muito cuidado para não ser deixada para trás porque, venhamos e
convenhamos, John Scott tem o poder de fazer isso.
Por mais que eu me garanta nessas coisas, John também é um jogador
nato e, com toda certeza, à minha altura. Meus próximos passos terão que
ser milimetricamente calculados e bem pensados para que ele se sinta
exatamente da mesma forma que me senti. Preciso que ele queira mais. Que
me peça mais. Que se sinta realmente torturado e tocado de alguma forma.
Então é aí que a ideia surge em minha cabeça.
Me inclino ainda mais, e seus olhos logo recaem para o meu decote.
Não ligo, entretanto. Isso só faz com que eu me sinta ainda mais confiante,
então aproximo a boca da sua orelha e mordisco uma parte que consigo do
seu lóbulo — já que ele usa argolas nas duas. Quando solto aquela parte do
seu corpo, menciono:
— Você disse que hoje eu poderia fazer o que eu quisesse com você,
certo? — John murmura uma confirmação, e eu sorrio. — Então não estava
blefando? — Ele logo nega, balançando a cabeça. — Se você diz...
Volto para minha posição anterior e dou um sorriso sapeca antes de
adentrar minha mão boba por dentro de sua camiseta. A ponta dos meus
dedos toca cada gominho do seu abdômen, o que resulta xingamentos e
arrepios da sua parte. Aproveito também para arranhar com minhas unhas a
região, subindo pelo seu peitoral bem definido e de outro mundo. Para
completar, salpico beijos pelo seu pescoço exatamente da mesma forma
como ele estava fazendo com outras mais cedo.
Suas mãos se fecham em minha nuca, e eu tenho quase certeza que
está revirando os olhos agora mesmo.
— Elas te proporcionaram essa sensação, John? — pergunto, bem na
pele sensível do seu pescoço, que faço questão de lamber e mordiscar. —
Foram tão boas quanto eu? — Retiro minha mão da sua barriga e a levo
para perto do botão da sua calça, que fico brincando de girar com a ponta
do dedão, apenas para provocá-lo. Não esqueço de rebolar contra a sua
ereção viva sob mim.
A única coisa que escuto como resposta é uma mistura
enlouquecedora de arquejos, murmúrios e palavrões nada inocentes
escapulindo por entre seus belos lábios.
Ele quase suplica por misericórdia, e é exatamente nessa hora que
paro com os beijos e com qualquer outra coisa para me concentrar em
retirar meu cropped, jogando-o para algum canto do assoalho. Meus seios
estão livres de sutiã, então é óbvio que eles logo atraem a atenção do
garoto, que finca o incisivo no lábio inferior ao contemplá-los com a
lascívia passeando por suas írises claras e límpidas.
— Puta merda, garota — ele rosna, e até tenta tocá-los, mas eu dou
tapas em suas mãos antes que consiga chegar perto dos meus seios. — Você
realmente não existe. É a porra da mulher mais sexy e diabólica que eu ou
qualquer cara já viu.
Bom, meu ego agradece pelo elogio.
Engatinho para o lado, saindo do seu colo, e decido pular para fora da
cama. Com o movimento, meus longos cabelos se desfazem do coque e
cascateiam sobre meus ombros, cobrindo parcialmente meu colo. E já fora
da cama, não tão longe, mas não tão perto, retiro os saltos com a ajuda dos
calcanhares e começo a desabotoar minha calça, os olhos sempre
conectados ao de John, assim como ele fez mais cedo no corredor.
Nesse interim, John aproveita para se equilibrar sobre os cotovelos, os
glóbulos passeando por cada centímetro do meu corpo, queimando cada
parte que olha. Sou boa em fingir que não estou afetada, por isso deslizo a
calça pelas minhas pernas, jogando-a para o lado e ficando apenas de
calcinha.
Dou uma voltinha e, quando uma música com uma pegada mais sexy
começa a ressoar pela festa e atingir até mesmo o quarto em que estamos,
aproveito a deixa para passar as mãos pelas minhas coxas e ir subindo em
um caminho que passa pelo meu quadril, cintura, busto e que finalizo ao
jogar meu cabelo para o lado. Sinto que John observa atentamente cada um
dos meus movimentos, pois um arrepio se alastra da ponta do meu dedo
mindinho até a minha cabeça.
Não preciso ser uma gênia para saber que ele pulará para fora da
cama e se colocará atrás de mim, pois é exatamente isso o que ele faz. Suas
mãos seguram com força a minha cintura e me viram para si em um
solavanco, o que faz meu peito ser chocado contra o seu rapidamente.
Expiro lentamente todo o ar, e ele retira alguns fios da frente dos meus
olhos, colocando-os atrás da minha orelha.
Aproveito para pegar a sua outra mão e conduzi-la pelo meu corpo,
começando do meu pescoço, descendo pelo vão entre meus seios e
passeando por alguns cantos da minha barriga. Quando nossas mãos
chegam próximas do elástico da minha calcinha, a solto. Ele não faz mais
nada. Seus olhos seguem fixos nos meus e eu me sinto muito perto de
mergulhar no mar que ele abriga, afinal, a pouca luz proeminente do quarto
os deixam ainda mais lindos, parecendo exatamente a personificação de
quando visitamos à praia no fim da noite. Até consigo sentir a sensação dos
fios soprando meu cabelo, até mesmo ouvir o som das ondas se quebrando
quando o encaro. É uma mistura linda de reconforto, paz e tranquilidade.
O que é totalmente estranho para se perceber no momento que
estamos agora.
Apesar da sensação de familiaridade que estamos agora, me afasto.
Me afasto uns bons passos para trás e deixo que observe meu corpo
parcialmente nu uma última vez.
— Memorize bem essa cena — solto, antes de começar a procurar
minhas roupas pelo assoalho do quarto. Coloco-as junto ao meu peito e
sorrio, direcionando meus passos até a maçaneta da porta, que a indico com
a cabeça, em um gesto implícito para que saía. — Boa festa, lindo. Espero
que consiga se divertir com esse momento passando por sua cabeça.
Ele não diz nada, apenas sorri, atordoado, e fica parado ao meu lado,
perto da porta. Suas írises azuis analisam algo nas minhas, mas não tenho
tempo de pensar a respeito, pois logo abro minimamente a madeira e ele se
retira, deixando-me sozinha.
Solto um longo e fluxo de ar. Toco os meus lábios e eles logo se
formam em um sorriso. Com a outra mão, toco meu coração, que parece
cavalgar com toda intensidade por conta da adrenalina.
Bingo.
Acho que estamos quites esta noite, John Scott.
Fui embora da festa assim que saí daquele quarto. Não estava
conseguindo pensar com clareza, minha cabeça parecia abrigar soldadinhos
de chumbo, meu coração não se mantinha no lugar e todas as luzes, músicas
e garotas ao meu redor só conseguiam piorar e triplicar tudo o que eu estava
sentindo.
Tudo obra do diabo do Alasca, claro.
A imagem do seu corpo e a sensação das suas mãos e dos seus lábios
pareciam ter se impregnado em mim como uma maldita maldição. Nem
mesmo se eu quisesse ou rezasse para todos os santos, conseguiria fazer
com que seus efeitos simplesmente evaporassem das minhas células.
Por isso, sem pensar duas vezes, comuniquei aos meus amigos que
estava dando o fora da fraternidade e pilotei na minha moto até chegar em
casa, onde eu me enfiei em um banho gelado por horas, a fim de tentar tirar
os resíduos da ruiva. Mas, para a minha infelicidade, nada adiantou. O
contato gélido da água só conseguiu fazer com que eu lembrasse
exatamente dos seus olhos sobre mim, quando me mandou embora do
quarto. Eles estavam gélidos e, por incrível que pareça, mesmo que
tivéssemos incendiado tudo naquela cama, eu senti frio naquele momento.
Eu senti frio quando ela decidiu repousá-los sobre mim, pois, querendo ou
não, estava jogando comigo e tentando me punir de alguma forma.
Seus olhos não pareciam nada amigáveis. E o seu troco foi tão
certeiro que, assim como ela desejou — mesmo que ironicamente e
implicitamente —, não consegui me divertir com o momento passando pela
minha cabeça como em um looping infinito.
E eu sabia que não seria fácil participar do seu jogo, eu estava vendo
em seu rosto o quanto estava disposta a me maltratar, mas, mesmo assim,
sentindo o que estava sentindo e querendo-a mais do que tudo, não consegui
recuar. Não consegui ir embora e fiquei. Fiquei para ver onde aquilo daria e
não me arrependo. Não me arrependo de ter sentido seu toque, seus beijos e
de ter contemplado cada parte bem feita do monumento que é seu corpo. Eu
amei cada segundo daquela nossa pequena bolha de jogos, desafios e
punições.
Mas, para falar a verdade, me arrependo de ter ficado com aquelas
garotas. Fiquei com elas por conta da fala de Pasha na cozinha, por ter tido
ela impregnada em meu cérebro e, com toda certeza, fiquei com as garotas
para tentar abafar meus pensamentos que sempre eram levados para a ruiva.
Estava tentado a mostrar a mim mesmo que, quando estivesse com outras,
não conseguiria pensar nela. Eu precisava que isso fosse mesmo real e fiz o
que fiz para que pudesse ter a certeza disso.
O plano foi totalmente falho, obviamente. Tive duas garotas em meu
encalço e só conseguia pensar na diabinha e no modo como ela estaria
reagindo se eu a pegasse da mesma forma como estava pegando as meninas.
E quando eu a vi, parada no corredor, olhando para a cena com os olhos
saltados e a expressão pincelada por choque, raiva e desejo, contrariando
tudo o que estava pensando no momento, quis que percebesse através dos
meus atos que até mesmo quando não estava com ela, pensava nela.
Que até quando estava cercado por mulheres, era nela em quem eu
pensava e quem eu desejava.
Foi uma péssima forma de mostrar isso, afinal, seria muito mais fácil
falar em um diálogo sincero, só que não sou bom com palavras e às vezes é
difícil não ser um babaca, mesmo que eu me esforce muito para não ser um
quando se trata dela.
Pasha não parecia chateada, magoada, enganada e nem nada do tipo
quando decidiu me puxar pela gola da camiseta e me enfiar em um quarto
qualquer. Na real, Pasha parecia ter ficado visivelmente desafiada, pronta
para me fazer sentir o que sentiu quando me flagrou naquela situação. E,
sinceramente, devo dar meus parabéns, pois consegui entender exatamente
o que ela sentiu através do seu jogo, já que senti exatamente a mesma coisa.
Eu me senti desafiado através das faíscas das suas írises, me senti
excitado pela forma como sua mão passeava deliberadamente pelo meu
corpo, e, claro, me senti ainda mais pela forma como retirava cada peça das
suas roupas, olhando-me daquele jeito ardente e hipnotizante que só ela
consegue. Me senti pronto para ela, para querer ela e para fazer qualquer
coisa com ela.
Eu só queria Pasha Stratford naquela festa, naquela cama, naquele
chão ou em qualquer lugar que quisesse. Queria estar com ela, sobre ela,
embaixo dela ou dentro dela.
Então quando a ruiva fez o que fez, me mandando memorizar a cena
do seu corpo seminu e logo depois catando suas roupas e me expulsando,
havia entendido o troco.
Nada de provocações daquele tipo mais.
Suspiro e estiro meus pés na cama, logo após contar para Daisy tudo
o que havia acontecido na festa ontem. Nós dois estamos assistindo o filme
O Estranho Mundo de Jack sozinhos no meu trailer, pois meus amigos
estão todos no Fast Rocket e eu, definitivamente, não quero estar lá hoje. A
garota de cabelos vermelhos, que até então não tinha nada para fazer, topou
me fazer companhia para que eu pudesse desabafar sobre tudo o que estava
inundando minha mente.
Gosto de compartilhar essas coisas com ela. Daisy não me julga, não
me condena e nem fica afirmando toda hora o quão idiota e com pouco tato
eu sou. Ela sempre fica calada para que eu possa contar as coisas, faz
observações pertinentes aqui e ali, não toma partido e é sempre bastante
sincera com o que precisa ser dito. E embora nós dois não tenhamos uma
amizade super forte, já que quando estamos juntos sempre ficamos
ocupados com outras coisas, me sinto à vontade com ela. Não sei o porquê,
mas tem algo em seu jeito e em sua personalidade que reconforta qualquer
um.
— Essa garota é maravilhosa — Daisy se refere à Pasha logo depois
de parecer processar tudo. Ela tem um sorriso divertido pincelando seu
rosto agora, enquanto me fita de rabo de olho. — Preciso urgentemente ter
umas aulas com ela sobre como colocar um homem em seu devido lugar. A
tática que ela usou para te dar o troco foi ótima, John. Tenho certeza que
você se sentiu tão afetado por aquilo quanto ela ficou por ter te visto beijar
duas garotas bem na frente dela.
Reviro os olhos de brincadeira.
— Ela é perversa, Flinch — conto, e sou sincero. Apesar da garota ao
meu lado estar grudada no filme que se desenrola, está atenta a conversa,
pois confirma meu comentário e solta uma risadinha. — Ela desfrutou do
meu corpo gostoso, tirou a porra da roupa bem na minha frente e tocou na
minha mão e a conduziu por algumas partes do seu corpo, como se aquilo
não fosse me levar à loucura, e depois simplesmente foi embora. — Passo
as mãos pelo meu rosto ao ter as cenas pipocando em minha mente,
soltando um grunhido logo depois. — Eu deveria denunciar ela só por ter
me deixado tão duro.
Daisy cai na gargalhada.
— O que será que vai acontecer com vocês agora? — ela me
pergunta, visivelmente curiosa. Apenas dou de ombros, porque nem eu sei
responder essa. — Posso estar equivocada, mas acredito que o que
aconteceu naquele quarto não foi nem metade da metade do que tem pela
frente. — Daisy sacode os ombros para cima, despreocupada. — Sei lá, é o
que eu sinto, sabe? Sua ruiva vai causar muito e eu espero que seu coração
esteja preparado, pois ela sabe brincar.
— Ah, mas isso eu não tenho a menor dúvida — afirmo, convicto. —
Eu me garanto nesse lance todo, mas, por alguma razão, quando se trata
dela, não sei... Não me garanto tanto, não. Eu deveria começar a me
preocupar, não é? Isso tem cara de que não vai terminar bem. Pasha é
perigo demais até para mim.
Daisy pega o controle da tevê e pausa o filme, depois se vira para
mim. Seus lábios estão formados em um bico de lado e ela parece realmente
pensar direitinho sobre sua próxima fala e como ela me atingirá. O jeito
como essa garota sabe lidar com as pessoas é surreal. Talvez por ter passado
por tanta coisa na cidade em que veio, conseguiu aprender a ler muito bem
quem passa pelo seu caminho.
— É algo para se preocupar, sim, Scott — diz, por fim. — Mas
também não é nada de outro mundo. Se o jogo não for mais jogo para
vocês, então simplesmente parem a partida e reflitam cautelosamente os
próximos passos e se vocês estão prontos para eles. Nada que sinceridade e
diálogo não ajudem. — Seus olhos castanhos escuros ficam semicerrados
no exato momento em que levanta o dedo em riste na minha direção. — E
não magoe a garota por medo, está me ouvindo? Como já dizia
Shakespeare: “Nossas dúvidas são traidoras e nos fazem perder o que, com
frequência, poderíamos ganhar, por simples medo de arriscar.” Então, se eu
posso te dar um conselho, arrisque-se.
Daisy Flinch sempre se empolga nos conselhos. Ela tem essa veia
artística e meio filosófica, então sempre que pode fica enfiando essas frases
motivacionais. É engraçado, mas não deixa de ser sábio e bem motivador.
Quando percebo, estou sorrindo.
— Guardarei suas belas palavras, Flinch. Ou melhor, as palavras de
Shakespeare. Dá até pra fazer uma tatuagem com ela, sabia? Gostei. —
Olho para os meus braços e para o meu peito, mas quase não tem pele
nenhuma sobrando, está tudo tomado por tinta. — Qual lugar você acha que
ficaria legal? Na perna, talvez? — pergunto, incerto. Daisy apenas revira os
olhos e empurra meu ombro com uma das mãos.
— Estou falando sério, neném. — Lá vem ela com esse apelido
estúpido, faz com que uma careta de desgosto se forme em meu rosto. Isso
não a abala, pois continua: — Você gosta de levar tudo na brincadeira, não
é? Quero só ver quando a brincadeira se voltar contra você.
Touché.
Levo a mão até o peito e finjo que fui atingido com suas palavras.
— Tudo bem, tudo bem. — Dou o assunto por encerrado, e ela
finalmente volta a encarar a tevê, liberando o filme de onde parou.
As vozes do desenho animado voltam a reverberar pelo trailer e nós
dois ficamos em silêncio por mais quarenta e poucos minutos, não sei ao
certo. Infelizmente, me desligo do momento e tudo que consigo pensar é em
Pasha Stratford e nossa brincadeira altamente perigosa e nada segura para
ambos.

Estou tão atordoado que nem sei ao menos em que bar que me enfio
dessa vez. Só sei que ele é escuro, as paredes são pintadas de preto e o
assoalho é de uma madeira propositalmente desgastada. O cheiro de tabaco
e uísque barato é predominantemente forte e atinge minhas narinas assim
que me sento em uma das mesas próximas ao balcão de bebidas.
Não é reconfortante, mas parece ser exatamente o tipo de lugar que
preciso estar agora.
Preciso encher a cara com bebidas baratas e tentar esquecer uma tal
cena que não sai da droga da minha cabeça.
Acho que eu não deveria estar aqui, e sim em hospital. Estou entrando
em colapso e parece ser bastante sério.
— Inferno de dor de cabeça — murmuro para mim mesmo,
massageando a têmpora.
Depois que terminei de assistir ao filme com Daisy, precisei sair para
dar uma espairecida. Nunca rodei tanto a cidade quanto hoje. Fui para um
lado, para o outro e nada parecia fazer com que eu me sentisse do jeito que
estou me sentindo. Até pensei em ir para o meu lugar secreto, pois em
momentos como esse, em momentos que estou à beira do nervosismo, lá
costuma ser meu ponto de paz, só que lembrei que agora lá também é um
lugar que me faz lembrar da pessoa que estou fugindo.
Por que eu tive que levá-la lá, afinal?
Não tenho mais tempo de me martirizar por isso, pois logo chamo um
garçom e peço uma garrafa de uísque, que ele logo faz questão de ir buscar.
Cerca de dois minutos depois, estou enfiando o líquido âmbar goela abaixo
enquanto um cigarro se encontra pendido entre meus dedos adornado de
anéis. A fumaça cinzenta dança em espiral e tudo ao meu redor parece
nublado demais para que eu consiga analisar.
A música Smells Like Teen Spirit da banda Nirvana ressoa pelo
cubículo e embala o meu momento solitário, então batuco os dedos na
madeira da mesa e faço o líquido caramelo dançar no copo de vidro,
balançando-o de um lado para o outro. Trago a maior quantidade de
nicotina para os meus pulmões, o que acaba relaxando os músculos tensos
do meu corpo.
Se passam algumas horas, pessoas saem, pessoas entram, e eu
continuo sentado no mesmo lugar. Mesmo que eu tenha bebido a metade da
garrafa, não me sinto bêbado o suficiente.
Merda, detesto ser resistente para bebidas.
Adoraria estar esquecido do meu próprio nome agora.
Bufando, arrasto a cadeira para trás, flexiono os joelhos e me levanto.
Varro o local com os olhos e tento achar indícios de onde fica o banheiro.
Depois de ver uma pequena fila de garotos ir na minha direção contrária,
suponho que seja para ir ao banheiro, então sigo todos eles.
Passo por um corredor estreito e ainda mais escuro do que o normal.
Pisco os olhos para tentar acostumar com o breu e, quando percebo, não
dou de cara com porta de banheiro ou nada parecido. Me dou de cara com a
saída de emergência, onde os caras saíram. Eu provavelmente deveria dar
meia volta e procurar o banheiro, mas algo em mim diz que preciso abrir
essas portas e conferir o que está acontecendo no fundo desse bar. Pode ser
a minha estupidez falando mais alto, mas resolvo escutá-la e é exatamente o
que faço. Toco a gélida porta de metal, a empurro e dou um passo para fora.
Os fundos da rua estão escuros, desérticos e nada parece estar
acontecendo.
Estou pronto para voltar para dentro do bar, mas um grito sôfrego
ecoando pela viela me faz retesar meus próximos movimentos. Fico quieto,
paralisado e tenho medo da minha respiração entrecortada entregar que
estou bem aqui, possivelmente espiando o que definitivamente não deveria
ser da minha conta. O silêncio permanece, nada se escuta novamente e eu
até chego a duvidar se o que escutei foi real ou se foi algum tipo de
brincadeira idiota do meu subconsciente alcoolizado.
Só que não foi. Não foi brincadeira do meu subconsciente, porque
escuto o grito outra vez, só que dessa vez muito mais forte e muito mais
audível. Minhas pernas pensam antes que meu cérebro e me levam até o
beco, onde eu encontro cinco ou seis homens ao redor de um só, que está
imprensado contra a parede e tem a mão de um dos caras envoltas do seu
pescoço, lhe enforcando. Todos os outros idiotas parecem adorar a cena e o
sofrimento alheio, pois dão risada e continuam incentivando a maldade.
Fecho a minha mão em punho e já sinto o ódio borbulhar em minhas
veias. Minha narina dilata e eu tenho certeza de que meu rosto está todo
vermelho por conta da raiva, afinal, detesto cenas como essa. Detesto
demais para simplesmente ficar aqui sem fazer nada. Não sei que merda
está acontecendo, mas já fui aquele garoto e nunca tive ninguém para me
defender como ele tem agora. Embora a minha pessoa provavelmente não
vá fazer diferença alguma, me aproximo, sem nenhum tipo de vontade de
ser cauteloso ou pacífico.
Todos os pares de olhos me encontram, surpresos. Esses caras,
mesmo que sejam grandes e fortes, provavelmente são do colegial, pois
usam aquelas jaquetas do time de futebol americano e estão, sem sombra de
dúvida, atormentando algum garoto que esteja lá embaixo dessas típicas
hierarquias criadas em escolas.
Odeio valentões. Odeio esses caras e tudo que eles representam.
Odeio, odeio e odeio.
Eles me lembram a pior fase da minha vida, o que faz com que a raiva
só aumente.
— Soltem. Ele. Agora! — rosno, entredentes. Estou completamente
furioso, corajoso e tenho certeza que é tudo devido ao uísque. Meu Deus, eu
posso me ferrar tipo muito agora, mas não deixo transparecer a pontada de
medo que se aloja em meu estômago. — Eu mandei soltar!
Os caras do time de futebol se entreolham, olham para mim de novo,
olham para o garoto e decidem rir. Eles riem como se eu fosse a porra de
uma piada ou um palhaço de circo.
Dou mais um passo, dessa vez muito mais sombrio que antes, e o que
estava com a mão ao redor do pescoço do outro logo solta, fazendo com que
o garoto caia no chão e comece a chorar desenfreadamente, completamente
amedrontado, nervoso e visivelmente sem ar, como se estivesse entrando
em uma espécie de ataque de pânico.
De repente, me vejo naquele garoto.
De repente, me sinto voltando para aquele lugar.
Em um momento, sinto todas as minhas dores voltarem, assim como
o do garoto deitado em posição fetal. No outro, sinto meu punho atingir
com todas as forças o nariz do moreno valentão, que cambaleia para trás,
xinga e leva a mão até a região coberta de sangue.
E no outro, tudo se mistura em um borrão de socos, ossos quebrados e
sangue.
Muito sangue.
Às vezes, quando estou com a cabeça a mil, tenho a mania de
escapulir à noite pela janela do meu quarto e correr pelas ruas do meu
bairro. Então é exatamente isso que faço agora. Coloco os fones do meu
walkman, que agora explodem a música Stand By Me do Ben E. King nos
meus ouvidos, posiciono o capuz do meu moletom canguru na cabeça,
afundo as mãos nos bolsos e acelero meu tênis de corrida, deixando
algumas árvores e casas para trás — inclusive a minha.
Enquanto corro, já sentindo os meus pulmões queimarem e a
respiração ficar ofegante, flashes da noite passada rompem em minha mente
e eu acelero ainda mais, como se acelerar os passos fosse capaz de evaporar
os pensamentos e me manter focada no que interessa, que é puxar o ar com
precisão e não esbarrar em nada que possa eventualmente me fazer parar.
E eu simplesmente não paro.
À medida que entro nas próximas ruas, para o meu completo
desespero, mais imagens e borrões da festa se impregnam em mim. A cada
passada, uma imagem diferente. A cada hiperventilação, um arrepio só por
sentir o toque de John Scott pelo meu corpo. A cada gotícula de suor, um
desespero diferente por estar com a imensidão oceânica dos olhos dele
cravados bem na minha frente, como se ele estivesse ali, correndo junto
comigo ou até mesmo me puxando para um caminho em que o encontro.
Não gosto nada dessa sensação de iminência que se alastra pelos
meus ossos agora.
O refrão de Stand By Me ressoa com força e, assim que percebo que
corri mais do que deveria — já que entro em uma rua completamente
desértica e escura —, dou uma desacelerada, com medo. Pouco a pouco,
quase no meio do beco, vou desacelerando os passos e aproveito para
curvar o corpo e colocar as mãos nos joelhos, tentando desesperadamente
respirar.
Meu Deus, eu preciso de água agora. Sinto que posso desfalecer a
qualquer momento, pois meus pulmões simplesmente não param de arder
pela corrida que eu claramente estava despreparada.
Estou pronta para retornar, mas simplesmente não consigo sair do
lugar. Provavelmente pode ser um protesto das minhas pernas ou só a droga
do pânico se expandido em cada célula do meu corpo, mas não consigo nem
ao menos me mover e correr para a minha casa, para o lugar que eu
definitivamente não deveria ter saído. E isso tudo por estar, mesmo que na
quase completa escuridão, enxergando passos cautelosos sendo dados em
minha direção. Eu até posso ver a merda de um par de botas masculinas
contrastando perfeitamente com o chão de tijolos que nos encontramos.
Estou ferrada.
Completamente ferrada.
Vou morrer agora mesmo como uma dessas garotas estúpidas de filme
de terror e nem ao menos consigo me mexer por causa dessa constatação.
Fecho os olhos com certa força e peço, de onde quer que ele esteja,
que Ben E. King me proteja e não deixe que eu seja morta ou torturada essa
noite.
Ou que ele pelo menos me dê uma forcinha para que eu consiga
correr a tempo.
Não sei se alguém ouviu as minhas preces, mas consigo dar uns bons
passos para trás quando a pessoa dá uns para frente. Estou prestes a gritar e
a correr mais rápido que The Flash agora, só que quando o homem sai da
escuridão e a sua figura agora é clareada pela luz vertiginosa da Lua acima
de nós, o reconheço. Seu rosto pode estar inchado, cortado, arroxeado e
coberto de sangue em alguns lugares, mas eu sempre o reconheceria.
John Scott está completamente destruído em minha frente.
Meu peito se comprime no exato momento em que eu retiro o capuz e
os fones do walkman, logo depois me aproximando bem a tempo de vê-lo
cambalear para o lado. Se eu não tivesse o segurado, com certeza que
chocaria seu peso todo no chão. Pego seu braço e o coloco ao redor do meu
pescoço, tentando equilibrá-lo. E embora seja mais alto e pese uma tonelada
de músculos, consigo ajudá-lo de alguma forma. Ele logo crava os olhos em
mim e parece surpreso demais ao saber que estou bem aqui, ao seu lado,
provavelmente no momento que ele mais precisa.
— Diabinha? — Sua voz sai em um sussurro sôfrego. — É você
mesmo ou a porra da minha cabeça está afetada com as pancadas que levei?
— É, sou eu — respondo, fazendo-o andar junto a mim. — Onde
merda você se enfiou pra ficar todo arrebentado assim? O que foi que você
aprontou dessa vez, hein?
De soslaio, enquanto vamos caminhando de pouquinho em pouquinho
para sair desse lugar, vejo que seus lábios se erguem em um sorriso. Ele
franze o rosto em uma careta logo depois, pois parece que até o mínimo ato
de sorrir dói todos os músculos do seu rosto.
— Por que você sempre tem que pensar o pior de mim? — John tenta
não parecer ofendido, mas eu percebo que ficou. Percebo através do seu
tom de voz e dos seus olhos, que se encontram me fitando agora. Há um
brilho de decepção por ali, e eu me sinto horrível pelo pré-julgamento. — E
por que, em nome de Deus, você está nessa merda de rua a essa hora da
noite? Perdeu a noção do perigo, porra?! — ele esbraveja, visivelmente
irritado e preocupado. — Eu vou matar você, Pasha Stratford! Eu vou matar
você por colocar sua segurança em risco, está me ouvindo?
Tento esconder o sorriso que se forma em meu rosto, mas é quase
impossível. Mesmo estando todo ferrado, quebrado e machucado, John
Scott grita e se preocupa por eu estar me aventurando em minhas corridas.
Gosto disso. Gosto de saber que ele se preocupa comigo e com a minha
segurança.
— No estado que você se encontra agora, lindo, nem uma mosca você
mata — afirmo, e o ouço grunhir. Não sei se é causado pela dor que sente
ou por conta das minhas palavras, mas ele solta. No final das contas, talvez
sejam as duas coisas. — Agora fica quietinho aí e coopera comigo. Vou te
levar para minha casa, fazer uns curativos em você e lá, somente lá, vou
querer que você abra essa sua boca para me contar o que aconteceu. Antes
disso, nenhum som — ordeno, John faz o maior esforço para mostrar que
entendeu. — Bom garoto.
Ele fica realmente em silêncio e a gente consegue se afastar cada vez
mais, agora andando em direção a minha casa. O lugar que estamos agora
não é tão longe dela, provavelmente viraremos algumas quadras e já
estaremos lá. Só que apesar de estar tentando bancar a forte e controlar a
situação, ainda sinto uma falta de ar incômoda e todo o meu corpo dói. Meu
coração parece querer saltar pela garganta e eu desconfio que nenhuma
dessas reações seja por conta da minha corrida ou do meu medo a princípio
por John saindo do escuro. Na verdade, para ser bem sincera, acredito que
todos esses sintomas se devam ao fato de ter encontrado esse garoto nessa
situação. Me sinto mal só em pensar em encontrá-lo de outra forma naquele
beco ou, pior, me sinto mal só de pensar em como seria a sua situação se eu
não tivesse o encontrado, se eu simplesmente não tivesse decidido correr
esta noite.
Será que ele conseguiria chegar em casa? Provavelmente não. Andar
em sua moto seria horrível demais para alguém que saiu visivelmente
ferrado de uma briga.
Eu realmente não sei o que lhe aconteceria.
Um grande obrigada aos meus músicos favoritos que me deram um
empurrãozinho lá de cima para que eu o encontrasse.
Mais alguns dificultosos passos e conseguimos adentrar a minha casa.
Apesar de ter escapado pela janela para não acordar meus tios, sempre levo
a chave reserva que tenho junto a mim, provavelmente por medo que coisas
como essas aconteçam. Já dentro dela, me separo de John e peço para que
não mexa em nada e nem faça barulho. Subo as escadas correndo e observo
o andar de cima, só para checar se a área está liberada. O quarto de David e
Rosalinda está trancado, então fico mais aliviada e desço os degraus, agora
me pondo ao lado de John para poder subir com ele em meu encalço.
Quando chegamos em meu quarto, tranco a porta e o ajudo na hora de
se sentar na minha cama, acomodando alguns travesseiros em suas costas.
Ele geme de dor e eu uno as sobrancelhas, fitando seu rosto com aquele ar
de preocupação me envolvendo. John parece perceber, pois murmura que
está bem e agradece por eu o ter lhe ajudado.
— Não precisa agradecer — respondo. Aproveito para tirar os tênis
de corrida e o moletom, ficando apenas de short e top. — Se quiser e se
tiver mais ferimentos, pode tirar a jaqueta e a camisa. — Aponto com o
polegar e o indicador para a porta atrás de mim, onde fica o meu banheiro.
— Vou pegar o kit de primeiros socorros, fica aí.
John assente e eu giro sobre os calcanhares ao ir buscar o kit. Abro a
porta do banheiro, fico na frente dos armários em baixo da pia e pesco a
caixa de lá de dentro. Com ela agarrada ao peito, volto para o quarto e
encontro John Scott arrancando a camiseta branca lisa, o peitoral definido e
cheio de desenhos ficando à mostra em toda sua glória. Preciso fazer o
maior esforço para não percorrer os olhos por cada desenho, então fecho os
olhos, pigarreio e me aproximo, sentando-me em sua frente.
Com a caixa de primeiros socorros repousadas sobre minhas coxas,
retiro o algodão e o álcool de lá de dentro. Pingo algumas gotas do álcool
no algodão, coloco a caixa na cama e me aproximo mais, pedindo
silenciosamente uma autorização para prosseguir. John balança a cabeça e
eu olho para o seu rosto, que está, novamente, sendo clareado pela luz da
Lua que invade as janelas do meu quarto. Vejo com mais nitidez que um
dos seus olhos já se encontra roxo e inchado, que há cortes em seu
supercílio, lábio superior e queixo, que tem sangue seco espalhado por esses
pontos e que, contrariando todas as coisas humanamente impossíveis, se
encontra ainda mais lindo do que o habitual.
Parece uma versão ainda mais rebelde, perigosa e impossível para
mim.
Balanço a cabeça de um lado para o outro ao afastar os pensamentos
impróprios para o momento e, com todo o cuidado do meu ser, aproximo o
algodão do corte em seu supercílio. Um xingamento apressado sai dos seus
lábios e uma careta de dor se forma em seu rosto por conta da ardência que
muito provavelmente está sentindo com a pequena pressão que imponho, a
fim de conseguir tirar a maior quantidade do sangue. Depois, quando ele
parece ter se acostumado e eu pareço ter melhorado aquela área, desço para
seus lábios e depois para o queixo, tudo na maior calma e paciência
possível.
— Prontinho — comento, assim que finalizo todo o processo. Toco a
parte não cortada do seu queixo e ergo seu rosto um pouco para cima,
tentando ver se tinha conseguido passar por todos os pontos afetados. Bom,
tirando o olho roxo, parece que ficará bem, pois não precisará de pontos nos
cortes. Está quase novo em folha. Aproveito para fazer os curativos. —
Mais algum lugar que eu preciso cuidar?
Scott desce os olhos para suas costelas e eu o acompanho, flagrando a
vermelhidão se formar no lugar. Ele parece entender que não tem como
cuidar dessa, pois ergue as írises azuis para mim e faz que não com a
cabeça. Só que eu ergo a minha palma e peço para que ele espere, voltando
a mexer na caixa de socorros. Reviro algumas coisas e procuro a pomada
para dor muscular que eu sei que tem. Dentro de uma caixa de papel
amarela, a encontro.
— É para dor muscular — explico ao colocar o conteúdo da pomada
em minha mão. — Vou passar na região, certo?
Mais uma vez, parecendo estar incapacitado de falar qualquer coisa,
ele assente em um manear de cabeça.
Eu provavelmente acharia muito estranho esse seu silêncio, mas tendo
em vista o que deve ter enfrentado hoje, não o julgo caso não queira falar
pelo resto da noite.
Queria poder ter chegado antes, queria poder ter evitado qualquer
coisa que lhe aconteceu. Queria, sem sombra de dúvidas, ter o protegido.
Inspiro todo o ar que consigo e expiro pela fresta dos meus lábios,
prestando atenção em sua costela. Passo a pomada na região avermelhada e
sinto seu corpo se arrepiar sob a ponta dos meus dedos. Finjo que aquilo
não me comove e continuo passando, espalhando-a um pouco agora pelas
suas costas. E, antes que eu possa fazer qualquer coisa mais, John segura
em meus pulsos, impedindo-me de prosseguir. Ele não fala nada, apenas me
olha, bem no fundo dos meus olhos. Lentamente, vou soltando as minhas
mãos do seu toque e ele não se opõe, pois continua completamente atento
aos meus olhos, como se as minhas írises castanhas fossem o bote salva-
vidas que as suas tanto precisam.
Ele me olha, por incrível que pareça, como se quisesse ter a certeza de
que sou eu mesmo ali. De que o nosso momento é mesmo real e não apenas
um sonho que teve depois da surra.
Ele me olha com cuidado, carinho e proteção. Não tem lascívia, não
tem luxúria, não tem desafio, não tem nada. John Stone Scott me olha como
se quisesse me proteger de tudo e todos.
E eu provavelmente devo o estar olhando da mesma maneira.
— Não sei se o apelido de diabinha faz jus a você mais — solta, e seu
hálito de bebida alcóolica lambe meu rosto. Se fosse outra ocasião, se fosse
outra pessoa em minha frente e não ele, eu provavelmente reclamaria.
Agora, no entanto, não faço nada a não ser engolir em seco. — Você é um
anjo, Pasha. Não, não apenas um anjo, mas o meu anjo. — Suas mãos se
encontram em cada lado da minha bochecha e seus dedos escovam a maçã
do meu rosto, o que acaba me fazendo sorrir involuntariamente. — Porra,
Stratford, você é boa demais para mim. Mesmo eu agindo como um babaca
ontem, você nem ao menos pensou duas vezes em me ajudar e me trazer
para sua casa. Por que você fez isso? Por que fez isso por mim? — John
nega com a cabeça várias vezes, inconformado. — Eu não mereço. Não
mereço que você se envolva comigo. Sou ferrado, cheio de problemas e não
sei tratar você do jeito que você merece ser tratada. Nasci para ficar
sozinho, então por favor, se afaste de mim antes que seja tarde demais.
Antes que eu te corrompa e te puxe para o buraco negro que é a minha vida.
— Seus olhos azuis parecem se encher de água cristalina, mas não tenho
tempo de ver se é mesmo verdade, pois o loiro logo afunda o rosto na
curvatura do meu pescoço, soltando: — Garotas como você não devem
brincar com caras como eu.
Dou uma risadinha irônica e coloco minhas mãos em seu peito, o
afastando minimamente. Seus olhos estão banhados de medo, desespero e
agonia quando me encaram. Eu reconheço a dor ali, pois eu a possuo
também. Somos iguais e eu consigo perceber isso agora através dos seus
orbes, que imploram para que eu me afaste, embora tenha algo ali que não
concorde com isso.
Não sei o que aconteceu hoje, mas não sou ingênua. Sei que o que
aconteceu com ele provavelmente pode ter acionado alguns gatilhos da sua
vida, que acabou resultando nesse desespero da parte dele, nesse desespero
de me afastar, como se não fosse merecedor de coisas boas. Embora não me
considere uma pessoa boa, ele provavelmente acha que sou. Provavelmente
acha que não podemos entrar no que estávamos tentando entrar por achar
que deve me preservar dele. Que deve me manter afastada, pois isso, sem
sombra de dúvida, será algo benéfico para mim.
— Deixe-me te explicar uma coisa, John Scott. — Afasto tudo da
cama e me coloco de joelhos, agora ficando um pouco mais alta. Coloco
minhas mãos em seu rosto e forço que ele olhe para os meus olhos, apenas
para eles. — Você não sabe nada sobre a minha vida e sobre quem sou.
Perdi a minha irmã de sete anos, que era a melhor coisa da minha vida, vivi
um inferno no Alasca, fiz coisas das quais não me orgulho, me envolvi com
pessoas erradas, briguei com os meus pais, tem um ano e alguns meses que
nem sequer escuto as vozes deles e não sou a garota perfeita ou perto disso
que acha que sou. Sou quebrada, um pouco mimada, ainda tenho traços de
ignorância e nunca, em hipótese alguma, busquei por um príncipe
encantado no cavalo branco. — Me aproximo ainda mais, e vejo seu pomo
de Adão subir e descer, assim como vejo seus olhos se concentrarem em
minha boca. — Não quero que me dê ordens e nem que tome decisões por
nós dois. E, meu Deus, por favor, da onde tirou que sou um anjo? Sou
mesmo uma diabinha e posso infernizar ainda mais a sua vida se você ficar
quieto e não me beijar agora mesmo.
Ele parece assustado com as minhas palavras incisivas, mas não me
contraria e nem diz mais nada. Parece refletir sobre os prós e os contras de
seguir a minha ordem e de embarcar definitivamente nessa comigo, porém,
para a minha grata surpresa, parece mandar tudo à merda no segundo
seguinte, pois sua mão grande e firme se concentra em minha nuca e, em
um solavanco totalmente delicioso, choca a sua boca quente contra a minha,
que logo se entreabre e deixa que a sua língua explore cada canto dela.
Logo em seguida, sua outra mão livre crava em minha bunda e força
meu corpo para baixo, obrigando-me a sentar em seu colo. Não protesto,
entretanto. Monto-me nele e passo as unhas pelas suas costas desnudas, lhe
arrancado um gemido baixinho durante o nosso beijo.
Sua língua brinca e se enrosca com a minha, tirando proveito dela e
de todo o meu gosto.
Meu coração palpita e sinto-me tonta — talvez pelo gosto de uísque e
nicotina da sua boca —, mas não sou capaz de me afastar e nem nada disso,
principalmente quando seus dentes cravam em meu lábio inferior e os
mordem de forma provocativa.
Nosso primeiro beijo, que aconteceu em uma festa no ano passado,
havia sido bom. Sério, foi mesmo. Mas, venhamos e convenhamos, não se
compara com esse aqui. Nós estamos a sós, a meia luz e tudo ao nosso redor
parece congelar só para que consigamos tirar o maior proveito disso.
Nossas bocas se separam alguns minutos depois, em uma tentativa
desesperada de retomar o fôlego, mas eu continuo próxima. Continuo tão
próxima que consigo sentir seu coração dançando desenfreadamente junto
do meu.
— O que estamos fazendo, Pasha? — Scott indaga, quase
sussurrando. Ele leva alguns dedos para perto do meu rosto e afasta alguns
fios rebeldes do local, colocando-os atrás da minha orelha.
— Não sei — respondo, sinceramente. — Quer descobrir comigo?
O sorriso de John parece clarear todo o cômodo ao nosso redor. Ele
nem ao menos pensa dessa vez, apenas diz:
— Quero, sim. Mas só se você deixar eu colocar o pronome
possessivo na frente da palavra anjo.
— De jeito nenhum. — Dou risada ao negar, e me aproximo da sua
orelha, apenas para soprar: — Só deixo o pronome possessivo se for na
frente da palavra diabinha.
Meio a contragosto, o loiro assente.
— Faremos o que você quiser então, minha diabinha.
E então, simples assim, John Scott volta a me beijar.
Não sou um anjo e nem me pareço com um.
Acho que o apelido de diabinha nunca combinou tanto comigo.
Principalmente agora.
John distribui beijos pelo meu pescoço e aperta a minha bunda, o que
me faz arfar e revirar os olhos. Sua língua quente e macia circunda a minha
pele e seus lábios molhados descem em um trajeto certeiro até meu colo,
onde ele salpica beijos e mordidas. Sem deixar que o loiro faça mais
alguma coisa para me levar à loucura, coloco minhas mãos em cada lado do
seu rosto e trago sua boca à minha, pressionando seus lábios aos meus com
toda a urgência e necessidade que habita o meu ser.
Acho que faço pressão demais no seu ferimento não cicatrizado, pois
o escuto grunhir de dor.
— Meu Deus, desculpa! — peço, assim que separo nossas bocas.
Meus olhos logo se cravam no seu lábio superior e consigo perceber o filete
de sangue começar a escorrer. — Está sangrando novamente, John. É
melhor que a gente pare por aqui. — Aponto com o queixo o seu ferimento,
e ele acaba dando de ombros ao passar o dorso da mão tatuada na região,
sumindo com o vermelho escarlate.
— Nada vai fazer com que a gente pare por aqui, minha diabinha. —
Seu tom de voz soa tão malicioso quanto o sorriso torto que se forma em
seu rosto. — Seus beijos anestesiam a minha dor, então eu acho que você
precisa voltar para cá urgentemente — diz, manhoso. As pupilas logo se
expandem em suas írises com a forma enérgica que seus olhos me
esquadrinham, pidões. — Já estou começando a sentir uma puta dor,
mocinha.
Balanço a cabeça com a sua cara de pau e deposito um selinho
demorado em seus lábios, sorrindo feito uma idiota no processo.
— Você deveria descansar, lindo — aconselho, e estou sendo sincera.
Seu corpo está todo ferrado e ele precisa deitar e dormir um pouco. Caso
faça mais esforço, muito provavelmente vai acordar ainda pior, e eu não
quero isso. Tento me levantar do seu colo, mas a sua mão firme em minha
cintura me impede. Faço uma cara de brava na mesma hora. — Estou
falando sério, John Scott. Embora seja tentador, não vou contribuir para que
acorde ainda pior daqui algumas horas. Então apenas para o seu bem,
sossegue esse facho e tente dormir um pouco. Você pode usar e abusar do
meu corpo magnífico depois, mas agora, no entanto, só poderá fazer isso
nos seus sonhos.
John projeta o lábio inferior para baixo e choraminga.
— Você é extremamente cruel, Pasha Stratford — comenta, uma falsa
mágoa sendo evidenciada em sua fala. — Como espera que eu durma após
ter feito isso comigo? — Ele pressiona meu corpo um pouco mais para
baixo e eu o sinto, completamente grande, vivo e duro sob mim. Pressiono
os lábios e balanço a cabeça de um lado para o outro.
Me desvencilho da pressão dos seus braços ao redor de mim e em um
ímpeto, me levanto, antes que possa voltar atrás.
— Você pode tomar um banho gelado ou eu posso colocar um filme
para você ficar entretido. — Chacoalho os ombros para cima, fingindo
pouco caso. — Eu te mostro minhas VHS, você me diz qual mais detesta e
eu coloco, talvez funcione com isso aí. — Aponto com o indicador para o
meio das suas pernas e sorrio, cínica.
John bufa, revira os olhos e joga seu corpo no colchão da minha
cama.
— Coloque Cantando Na Chuva — ele diz, sem me olhar. Seus olhos
estão vidrados no teto e suas mãos estão entrelaçadas sobre sua barriga nua.
— Eu detesto esse filme, e bom, deve funcionar.
Meu queixo vai ao chão e a minha boca se entreabre em um O
perfeito.
— Como assim, dentre todos os filmes do mundo, você me fala logo
esse? — indago, logo após espalmar as mãos na cintura, meio indignada por
ele ter dito logo o meu filme favorito.
Sua risada contagiante logo se faz presente no cômodo e eu uno as
sobrancelhas, sem entender.
— Você tem uma péssima memória, diabinha. Simplesmente
esqueceu que me disse sobre esse ser seu filme favorito lá na brincadeira de
duas verdades e uma mentira? Falei isso só para te irritar, gata... Nunca nem
assisti esse filme.
Oh.
É verdade, eu tinha mesmo dito isso. O que me surpreende é ele ter
lembrado.
Bato palminhas e sorrio, agora animada para lhe mostrar o melhor
filme da vida. Giro sobre os calcanhares, vou em busca do VHS e quando o
encontro, ligo a televisão e o coloco sem pensar duas vezes no meu
videocassete. Saltitante, pego o controle remoto e escorrego ao lado de
John, que logo se põe para o lado e me dá espaço. E como Hellaware tem
uma temperatura maluca — faz muito calor pelo dia e muito frio à noite —,
pego a coberta e cubro nossos corpos. John não protesta e nem fala nada,
entretanto. Ele vai se aconchegando mais em mim e aproveita, de uma
forma que ele acha ser disfarçada, para me puxar com a intenção de que a
minha cabeça descanse em seu peito. Sorrio e detesto a forma como meu
corpo parece ter sido preparado para se moldar perfeitamente ao seu, mas
não reclamo e nem penso muito sobre. Apenas cravo os olhos na tevê para
ver as cenas se desenrolarem e sussurro:
— Se você dormir antes que o filme acabe ou expor qualquer opinião
grosseira acerca dele, juro que termino de te quebrar na porrada.
Ele une as sobrancelhas e um sorriso divertido e zombeteiro pincela
suas feições.
— Mulheres violentas sempre foram o meu forte, sabia? — Seus
dedos tocam o meu nariz e ele aperta a pontinha, o que me faz dar um tapa
em sua mão e afastá-la para longe. Mas, não parecendo ter sido o bastante,
esmaga as minhas bochechas até que meus lábios estejam fazendo peixinho,
depositando um beijo desengonçado neles dessa forma.
Quando se separa minimamente de mim, volta a olhar para a
televisão, como se aquele ato fosse comum demais entre nós dois. Como se,
por incrível que pareça, aquele tipo de comportamento carinhoso um com o
outro fosse muito normal e recorrente. Chega a ser engraçado a forma como
agimos, pois nunca sabemos de que modo vão terminar as coisas quando
estamos juntos. Nós não sabemos se vamos bater boca, entrar em jogos de
provocações ou se vamos nos tratar como agora; com beijos, carinhos e atos
fofos. É meio estranho nossa relação, mas também não teria como ser muito
normal, afinal, somos Pasha Stratford e John Scott, nada de normal
acontece entre nossos mundos.
E chega a ser engraçado chegar a essa conclusão, mas, diferente de
tudo o que eu achava, há sim um mundo em que Pasha e John existam
juntos. E é exatamente nesse que estamos nos fiando agora; um mundo
imperfeito, falho, com erros, com provocações, com jogos, com desejos,
com descobertas, com acertos e com entrega.
Estamos finalmente nos enfiando em um mundo real.
Pois aqui, longe de toda farsa e tentativas falhas de perfeição,
conseguimos finalmente ser quem somos: dois seres humanos a fim de errar
e acertar. Juntos.
Cantando Na Chuva embala o nosso momento enquanto ficamos
aninhados um no outro, rindo de certas partes e reclamando de outras —
John, no caso —, e em um determinado momento, quando o filme já está
próximo de acabar e uma chuva começa a cair lá fora e açoitar minha
janela, seus olhos azuis límpidos como as águas do Caribe me encaram, eu
consigo ver através deles o pedido implícito que dança por ali.
— Nem pensar — já vou negando antes mesmo que ele fale qualquer
coisa, tentando tirar qualquer ideia maluca implantada em sua mente. —
Nós não vamos fazer isso. Ficou maluco?!
Seus lábios se erguem ferozmente.
— Se você ama esse filme, provavelmente sonhou inúmeras vezes
com esse momento — John diz, agora se levantando da cama. Ele coloca
sua camiseta branca e me olha, esperançoso. — Uma pessoa me disse que
nossas dúvidas são traidoras e nos fazem perder o que, com frequência,
poderíamos ganhar, só por simples medo de arriscar. Então na dúvida,
querida diabinha, arrisque-se comigo. Saia já dessa cama, cante e dance
comigo na chuva.
Eu o olho e dou risada, cruzando os braços em seguida.
— Você só pode ter ficado maluco — constato, achando graça da sua
súbita vontade de reproduzir a clássica cena de Gene Kelly comigo.
Confesso que como uma grande fã do filme, idealizei mil vezes essa cena
na minha cabeça, mas nunca tive coragem o suficiente para realizá-la. Estou
muito tentada, porém não posso fazer isso com ele. É um grande esforço e a
chuva definitivamente pode agravar ainda mais a sua situação. — Não vou
deixar que você se coloque em risco novamente. Por acaso está tentando
morrer?
John quebra a nossa distância e se debruça na cama, as mãos apoiadas
em cada lado do meu corpo, no colchão. Seu rosto fica muito próximo do
meu, o que faz meu coração dar uma pirueta de nervoso com a aproximação
repentina.
— Na verdade, ruiva, estou tentando viver — menciona,
simplesmente. — O momento que eu passei hoje me fez lembrar do meu
passado que, como eu já havia dito a você, é horrível. Eu me enfiei em uma
bolha de vingança, justiça ou chame como quiser, mas foi o que eu fiz para
proteger um garoto de apanhar de uns caras, o que acabou me tornando o
cara que apanha. E eu já fui esse cara tantas vezes, Pasha. — John solta
uma longa e densa lufada de ar, claramente aborrecido. Não sei sobre o seu
passado e nem me acho no direito de perguntar agora, mas consigo ver o
quanto mexe com ele, o quanto mexe com ele ter que esconder de todos que
é um garoto quebrado, diferente do que todos pensam pela máscara que
costuma usar o tempo todo. — Se você não tivesse jogado aquelas coisas
sobre mim e me feito enxergar algo além da minha amargura por mim
mesmo, eu provavelmente deixaria que a vida me batesse mais uma vez e te
afastaria. Te manteria longe de mim e de tudo o que sou. Só que eu não vou
permitir isso, pelo menos estou corajoso demais para afirmar isso agora. —
O loiro passeia as mãos pelo meu rosto e beija a ponta do meu nariz, as
minhas bochechas, os meus lábios, dá uma risadinha junto a mim e
continua: — Então viva comigo, Pasha. Não sei como serão os próximos
dias e como as coisas vão acontecer entre nós, mas hoje, pelo menos hoje,
viva comigo e esqueça tudo. Vamos cantar na chuva, dançar na chuva e nos
beijar na chuva. Vamos lavar nossas almas com a água e pedir que ela leve
nossos medos juntos, diabinha. Você aceita? — ronrona ao resvalar os
lábios nos meus. — Diz que aceita, Stratford. E pelo amor de Deus, não se
preocupe com o meu corpo, não menti quando disse que a sua figura
anestesia a minha dor.
Depois de receber uma declaração dessas, algum ser humano é capaz
de fazer qualquer coisa a não ser concordar? Porque, honestamente, não me
vejo nessa posição. Eu concordo, dou um pulo para fora da cama, pego em
sua mão e o arrasto até a porta, que eu logo a destranco e a fecho sendo a
mais discreta possível. Uma vez do lado de fora, John Scott e eu descemos
as escadas de dois em dois, logo depois arrastando os passos até a porta da
sala, que graças a Deus abre e fecha sem ranger, nos livrando de acordar
meus tios e nos deixando finalmente do lado de fora.
As gotas gordas da água da chuva nos molham e nos acompanham à
medida que vamos nos afastando da casa. Estamos encharcados agora,
nossas roupas estão maculadas e percebo que, glória a Deus, a camiseta
branca de John se encontra transparente e completamente grudada em seu
corpo, o que acaba deixando totalmente visível para mim o abdômen bem
definido e de outro mundo que carrega.
Mordo o interior da minha bochecha e meio receosa, me aproximo ao
me pôr em sua frente. Baixinho, ainda com vergonha, começo a cantar um
trecho de Singin´in The Rain. A água se sobressai aos meus sons e embaça
minha visão, mas não deixo que isso me atrapalhe. Canto um pouco mais
alto e Scott parece aprovar, pois afirma com a cabeça, sorri de orelha a
orelha e repousa as mãos em cada lado da minha cintura.
— I’m singing in the rain, Just singin’ in the rain what a glorious
feeling — cantarolo, e abro os braços, sentindo cada gota de água correr
pelo meu corpo. Tombo um pouco a cabeça para trás, coloco a mão sobre
meus olhos e encaro o céu e continuo: — I’m happy again, I’m laughing at
clouds so dark up above.
“Estou cantando na chuva
Apenas cantando na chuva
Que sensação gloriosa
Estou feliz outra vez
Estou sorrindo para as nuvens tão escuras lá em cima.”
John movimenta minha cintura e me incentiva a dançar, só que logo
depois me gira e faz com que fique com as minhas costas grudadas em seu
peito. Meu coração palpita nesse exato segundo, o ar parece ter se tornado
rarefeito e minha visão se torna ainda mais nublada, mas talvez isso seja
efeito da minha felicidade. E em uma tentativa de imitar a cena do filme,
me separo de John e começo a sapatear, mesmo que eu não saiba muito bem
o que estou fazendo.
Escuto a risada de John se misturar ao som da chuva.
Acho que vou me lembrar desse momento sempre.
— The sun’s in my heart and i’m ready for love — menciono essa
parte da música apenas para mim, soando bem baixinho. Levo uma mão ao
coração e fecho em punho, ainda sapateando pela rua já completamente
molhada.
“O sol está em meu coração
E eu estou pronto para o amor.”
Ergo meus orbes para John e simplesmente paro de dançar, cantar ou
fazer qualquer coisa. Eu olho para ele em meio à chuva e sinto como se
estivesse encarando uma obra de arte ou algo muito similar. Seus fios
platinados estão molhados e completamente jogados para trás, o que acaba
deixando todo seu rosto à mostra. Seus olhos azuis clareiam toda a
escuridão que nos cobre e, se não fosse pelo seu sorriso, que mostra duas
fileiras de dentes brancos e impecáveis, eu diria que eles são as únicas
fontes de luz presente. Solto um suspiro pela forma eloquente que me
encara e caminho a passos largos e decididos, apenas parando quando já
estou o puxando pela gola da camiseta que usa, chocando sua boca na
minha em uma explosão estarrecedora de química e desejo primitivo. Ele
arfa contra mim e passa sua língua pelos meus lábios, logo avançando para
quase dentro da minha garganta quando permito.
— Precisamos voltar — falo, em meio ao beijo. — O que eu quero
fazer com você agora não pode ser feito aqui.
Scott parece entender perfeitamente o que se passa em minha cabeça,
pois um sorriso carregado de maldade atravessa seu rosto coberto por gotas
gordas de água e ele deposita um beijo estalado em minha boca antes de me
puxar de volta para a minha casa.
Assim que adentramos a residência, após fazermos todo o ritual do
silêncio, subimos as escadas agarrados um no outro, desesperados por mais
contato físico. E já entrando no meu quarto e fechando a porta atrás de si,
respingos de água cobrindo toda parte, John me levanta pela cintura e eu
aproveito para enlaçar as pernas em seu quadril, os braços agora em volta
do seu pescoço enquanto sua boca devora a minha.
No segundo seguinte, minhas costas atingem o colchão e os lábios do
garoto se afastam dos meus apenas para aprumar levemente a postura e
arrancar, de forma totalmente desesperada, a camiseta pela sua cabeça.
Algo que não tem como ser revertido está prestes a acontecer agora, e
eu tenho total certeza que não quero e nem vou parar.
Os caras me bateram até cansar.
Em um determinado momento, com a ira borbulhando minhas veias,
consegui desferir uns socos e outros, até mesmo deixei alguns no chão. O
problema é que eles eram muitos e eu não daria conta, muito menos o pobre
garoto assustado se levantaria para me ajudar, estava sofrendo demais
naquele beco moribundo. Então, quando dei por mim, estava no chão sendo
recepcionados por chutes de uns e socos de outros.
Achei que fosse morrer. Novamente.
Apesar de ter demorado anos para acontecer, aquela era uma cena
meio que familiar para mim. E sem pensar muito, apenas me deixei ser
levado para as memórias de um John pequeno, franzino, assustado e que
vivia cercado por valentões daquela mesma espécie.
E se não fosse pela sirene de uma viatura ecoando próximo do local,
provavelmente que os garotos terminariam o serviço sabe Deus lá como.
Tive sorte de eles saírem correndo, de eu conseguir me levantar, levantar o
garoto e incentivá-lo a ir embora ou buscar ajuda. Também tive sorte de
encontrar Pasha no meio do caminho. Embora tenha ficado com raiva da
ruiva estar andando por aquelas bandas tarde da noite, acho que acabei
compreendendo que era coisa do destino ou algo do tipo — e olha que eu
nem sou de acreditar nessas baboseiras. Mas tinha mesmo outra explicação?
O engraçado é que eu nunca imaginei que o que aconteceu hoje com a
ruiva pudesse mesmo acontecer algum dia. Eu estava chafurdado na merda
com tudo o que tinha acontecido e estava me sentindo um lixo da maior
espécie. Me senti inútil, fraco e completamente tomado por uma melancolia
fodida. Mesmo com a diabinha ao meu lado, mesmo com ela tendo me
ajudado pra cacete e feito um pouquinho da minha noite melhor, ainda
assim estava sentindo o peso do mundo nas costas e sabia que precisava
afastá-la antes que fosse tarde demais para ela. Antes que ela pudesse
perceber o quão vazio eu e a minha vida somos.
O problema — ou não — é que Pasha Stratford sempre tem que dar a
cartada final para qualquer situação. Ela não gosta que ninguém decida as
coisas sem que ela dê sua opinião e nem que tomem decisões visando o seu
bem estar, pois segundo a alasquiana, só ela sabe o que é bom e suficiente
para a sua vida. E é claro que ela fez questão de me mostrar isso na nossa
conversa, expondo para mim o quanto a sua vida foi e é complicada,
impedindo-me de colocá-la em um pedestal.
Não sei se foi a sua maldita sinceridade ou o modo como o meu
desejo por ela falava muito mais alto naquela hora, mas não me vi em outro
lugar se não nos seus lábios.
Seu beijo, que parecia acender um vulcão dentro e fora do meu corpo,
me fez perceber que eu não poderia e nem queria estar em nenhum outro
lugar. Me fez perceber que, mesmo que eu quisesse muito, não conseguiria
ficar longe. Eu a queria e, pelo menos naquele momento, após saber que a
garota de fios alaranjados também partilhava de dores semelhantes, me vi
na obrigação de jogar todos os meus medos e inseguranças para escanteio.
Naquela hora, eu estava disposto a não deixar mais que o garotinho
amedrontado do meu passado conseguisse atrapalhar de alguma forma o
meu presente. Então a incentivei a viver junto comigo esta noite, realizei o
seu sonho de dançar na chuva e me encontro totalmente realizado por estar
finalmente assim com ela, na cama e deixando que tudo o que estávamos
guardando se liberte e nos consuma.
Os lábios macios de Pasha deslizam pelo meu pescoço molhado e ela
morde a região. Literalmente falando, claro. Os dentes da ruiva cravam na
minha pele e, minha nossa, por algum motivo que desconheço, isso acaba
me enlouquecendo ainda mais nesse momento. Tento não rolar os olhos
quando a escuto soltar uma risadinha perversa e vitoriosa, agora arranhando
as longas unhas pintadas de vermelho vivo em meu torso.
Bom, acabei de descobrir que ela gosta das coisas um pouquinho
mais... selvagens.
Eu até poderia sorrir ao chegar nessa constatação, mas estou ocupado
demais tomando sua boca na minha mais uma vez, a devorando. Sua língua
se encontra tão abrupta quanto a minha e as duas se enlaçam em um embate
frenético e enérgico, ainda mais sintonizadas e cheias de desejo agora. À
medida que nossos gostos se misturam, aproveito para dedilhar seu corpo
curvilíneo com as pontas dos meus dedos, passeando um pouco abaixo dos
seus seios cobertos pelo top que usa até o cós do seu short ensopado de
água, onde fico enroscando-os ali, nas laterais. Faço menção de arrancar a
peça, o que logo ganho seus quadris levemente erguidos numa resposta para
prosseguir com o que quer que eu queira fazer com ela. Mas agora, pelo
menos agora, não faço nada. Apenas me separo dos seus lábios e salpico
beijos por sua têmpora.
— John? — Escuto-a murmurar, quase inaudível. Quando fito seu
rosto, vejo que a boca está formada em uma linha tênue e os olhos
revirando-se nas órbitas.
— Pois não, diabinha? — Volto a brincar com seu short, apenas para
aumentar ainda mais a tensão e, claro, com toda certeza, para não perder o
costume de provocá-la. — Diga. Diga para mim o que quer, Stratford. Estou
inteiramente à sua disposição essa noite, meu bem.
— Não me provoque — sibila, e sua mão agora se enrosca nos fios da
minha nuca. — Eu quero você. Eu quero nós dois. Eu quero agora.
— Será uma honra realizar o seu desejo, gata — digo, depositando
mais um beijo, só que agora na pontinha do seu nariz arrebitado.
E sem mais delongas, antes que ela pudesse revirar os olhos mais uma
vez — fico preocupado com o tanto que faz isso —, decido arrancar seu
short, sem cerimônia e sem nenhuma vontade de ser gentil. Ela arfa e solta
um gemido baixo, visivelmente despreparada e pega de surpresa. Me separo
minimamente só para poder contemplar agora de perto o corpo dessa
mulher usando calcinha na porra de uma cama comigo.
Se isso for algum tipo de sonho de um garoto virgem, céus, por mim
tudo bem, aceito a realidade de que me pareço com um quando se trata dela
e não quero acordar.
O meu amigo lá embaixo se agita e lateja como o inferno quando
meus orbes passeiam por ela, lutando fortemente contra o tecido da cueca e,
consequentemente, da calça também. Solto um longo fluxo de ar e
desabotoo o botão da calça que uso, logo me livrando de uma vez dessa
peça tão incômoda.
O quarto provavelmente deve estar todo encharcado da chuva e isso
vai dar um trabalhão mais tarde, mas quem é que se importa mesmo?
Os olhos de Pasha me analisam descaradamente e sem nenhum pudor,
os cantos dos lábios cheios vibrando-se para alargar um sorriso nada
inocente em seu rosto que, nenhum pouco me surpreendendo, está livre de
rubor e de qualquer coisa que revele está com vergonha, tímida ou qualquer
uma dessas coisas porque, obviamente, a ruiva não está.
Pasha Stratford parece não ter vergonha de absolutamente nada, o que
a torna ainda mais fascinante. Ela não esconde o que sente e muito menos o
que quer. Se ela está a fim de jogar, vai deixar bem claro isso, pois é isso
que garotas diabólicas como elas fazem; marcam território, cravam as
garras no oponente e usam de todo o seu charme e poder de conquista para
chegar no que almejam.
E ela com certeza consegue sempre chegar no que almeja.
Ela chegou agora mesmo.
Pasha Denise Stratford me desejou e, como um passe de mágica,
conseguiu me colocar em suas mãos.
Meus lábios se curvam em um sorriso e eu volto a beijá-la,
simplesmente incapacitado de ficar longe demais da sua boca que,
inegavelmente, foi moldada para se encaixar perfeitamente sobre a minha.
Meu coração dá um sobressalto quando suas mãos logo depois decidem
descer pela minha barriga e parar bem na minha cueca, tocando e
envolvendo a minha ereção com a sua mão pequena e totalmente
habilidosa, instigando-me a gozar bem ali, na porcaria do tecido fino da
boxer. Me separo apenas para fechar os olhos e xingar uns trezentos
palavrões.
Ela segue me tocando, e quando, ainda com dificuldade, abro os
olhos, me dou de cara com os castanhos das suas írises brilhando em
lascívia e a sua língua circundando o seu lábio superior, como sempre tem
costume de fazer. A forma como tudo parece torturante e excitante demais
faz com que eu perca a cabeça.
Inferno de garota diabólica!
Cubro sua mão com a minha e a afasto, agora prendendo-a no topo da
sua cabeça, emaranhando meus dedos junto aos seus. Pasha parece soltar
uma espécie de murmúrio com um rosnado, mas não tenho tempo de pensar
muito sobre isso, pois levo meus lábios na orelha dela e sopro:
— Acho que não estamos com tempo para preliminares, huh? — A
diabinha logo confirma, seu queixo sobe e desce incontáveis vezes. Através
da sua respiração descompassada, percebo que quer que eu esteja dentro
dela o mais rápido possível. — Ótimo. — Sorrio sacana ao dizer, sendo a
minha vez de umedecer os lábios. — Mesmo que eu já saiba a resposta,
ainda sim quero escutá-la dizer... Então me responda, Stratford, quer que eu
te trate agora como a minha diabinha ou como o meu anjo?
Apesar de revirar os glóbulos quase que automaticamente ao escutar a
minha pergunta, a ruiva crava a unha no meu braço e parece reunir toda a
coragem do mundo para responder:
— Diabinha. Trate-me como a sua diabinha e mostre-me se é mesmo
digno de desbravar o inferno do meu corpo.
Solto uma risadinha irônica, e meu pau se contorce ainda mais de
tesão por ela. Libero um suspiro e solto nossas mãos, agora prensando
nossos lábios apenas porque não consigo me manter muito tempo longe.
Aproveito da aproximação para arrancar o top que usa, ela logo se separa da
minha boca e levanta os braços, ajudando-me a arrancar a peça, que eu logo
a descarto em algum canto qualquer do quarto mal iluminado.
Minha boca saliva ao contemplar mais uma vez seus seios fartos e
empinados, a auréola rosada contrastando de uma forma fodida com o tom
branco como gelo da sua pele. Meu cérebro entra em curto circuito por
alguns segundos, porque cacete, essa mulher é fora do normal de tão
gostosa e deliciosa, mas balanço a cabeça sutilmente e aproximo meus
lábios do seu pescoço, onde eu vou descendo com a língua, sugando a
maior quantidade do gosto do seu corpo. Quando deslizo pelo vão entre
seus seios, aperto o bico esquerdo com os dedos em formato de pinça, o que
rapidamente a faz dar um sussurro-grito e enterrar os dedos pelos fios do
meu cabelo, puxando-os com certa força.
Sorrio descaradamente com as reações que consigo provocar em seu
corpo e levo minha boca e toda minha atenção para o seu outro seio, onde
eu brinco, me lambuzo e mordo toda a região sensível e já afetada. Estou
prestes a mudar a direção, porém a garota refreia meus movimentos ao
puxar ainda mais os meus fios e, consequentemente, minha cabeça. Quando
ergo meus olhos e encontro os seus, enxergo toda a chama incendiar suas
írises. Pode parecer brincadeira ou surreal demais, mas eu a encontro, ela
está mesmo lá. Parece a base da chama de uma vela, pois há muito calor ali
e chega a formar ondas de luz com muita energia, chamas azuladas
mesclando-se com a cor castanha de seus olhos felinos.
Seus glóbulos queimam cada centímetro de pele do meu corpo e eu
sinto-me ainda mais quente.
— Enterre-se em mim agora, Scott. — Sua voz sai em uma súplica, e
eu logo obedeço ao puxar sua calcinha para baixo, a despindo
completamente. Meus olhos varrem cada curva do seu corpo quando ela já
está sem a peça de roupa, completamente admirados. E ela parece adorar a
forma contemplativa com que descubro seu corpo e observo o trajeto que as
gotas gordas de água descem pela sua pele, pois sorri de forma exibicionista
enquanto morde a unha do seu polegar.
Alguns segundos depois, quando finamente percebo, Pasha se coloca
de joelhos na cama e direciona suas mãos para cada lado do meu quadril
para puxar a cueca para baixo em um safanão. Retiro-a completamente com
a ajuda dos calcanhares e, quando dou por mim, já estou procurando a
minha carteira em busca da camisinha que sempre guardo por lá. Assim que
a encontro, retiro a embalagem laminada com os dentes e envolvo meu pau,
que parece completamente pronto e agitado para entrar em cena.
Tombo a cabeça um pouco para o lado e esquadrinho o rosto da
diabinha, lhe lançando o meu melhor sorriso carregado de lascívia e luxúria.
Sem mais delongas, completamente louco por ela, empurro levemente seu
corpo contra o colchão macio e com ela já deitada, cravo os dedos nas suas
coxas torneadas e as separo, colocando-me no meio dela. Aperto com certa
força os seus seios, e a ruiva se contorce toda sob minhas mãos.
— Eu sonhei com isso tantas vezes — soo sincero, meus olhos ainda
fixos na forma sinuosa do seu corpo. Umedeço a região do meu lábio
inferior e flagro o exato momento em que meio ao torpor, os seus
conseguem se erguer em um meio sorriso. — É sério, garota, eu sonhei
mesmo.
— Você sonhou com nós dois transando? — pergunta, a voz baixa e
entrecortada. — Achei que gastasse seu tempo me odiando e xingando até a
minha quinta geração.
Dou uma risada nasalar do seu comentário e mudo o foco da minha
atenção, descendo uma mão do seu seio até o fim da sua barriga, onde eu
aproveito para torturá-la mais um pouco, afastando seus grandes lábios e
esfregando o dedão em seu clitóris inchado. Pasha geme, me xinga e os
glóbulos se reviram, só que dessa vez apenas de prazer.
— O sexo no sonho era bom exatamente por isso, diabinha —
confidencio, sentindo sua umidade escorrer entre meus dedos. Puta merda,
que mulher. Que mulher! — A raiva que eu sentia por você deixava tudo
ainda mais delicioso.
Agora todos os seus dentes aparecem e o sorriso que me direciona é
completamente predatório.
— Então me odeie na realidade também. — Seus calcanhares
prendem meu corpo e ela me traz mais para si, nossas intimidades se
friccionam no mesmo instante. — Me odeie da forma mais primitiva que
um homem pode odiar uma mulher, John Scott. Eu quero que desconte em
mim todas as vezes que fui uma vadia com você.
Estou muito tentado a fazer o que ela pede, muito mesmo. A ruiva
está claramente pedindo para que eu a foda de forma impiedosa, e eu não
teria nenhum problema em fazer isso se fosse em outras circunstâncias.
Mas, sinceramente, não consigo agora. Não depois de hoje e de tudo que
passamos juntos nessas horas.
Eu não quero apenas fodê-la. Quero tomá-la em meus braços, senti-la
de todas as formas, desfrutar da sintonia dos nossos corpos e alcançar o
paraíso junto a ela. Quero poder fazer isso hoje, amanhã quando acordamos,
depois de amanhã e depois, depois e depois. Não quero só esse momento.
Quero uma coletânea deles.
— Não posso fazer nada disso, gata — explico, e Pasha me olha com
as sobrancelhas arqueadas. — Não posso fazer nenhuma dessas coisas com
você, pois a única coisa que quero agora é adorar o seu corpo e tudo que há
nele da forma mais linda e intensa que um homem consegue fazer por uma
mulher. Você permite que eu faça isso, ruiva?
Demora que Pasha me responda. Suas sobrancelhas se franzem e os
olhos parecem levemente arregalados, como se tivesse sido pega de
surpresa com alguma coisa. Apesar desse meio tempo pensativa, não
demora muito para que as linhas de expressões se suavizem em seu rosto e
ela confirme minha fala puxando-me para um beijo sereno e calmo dessa
vez.
E então, como se nossos corpos estivessem destinados a se
conectarem desde o início, eu entro dentro dela. Os músculos de Pasha
Stratford me apertam e me envolvem e eu solto um grunhido em sua boca,
totalmente entorpecido ao estar finalmente onde sempre quis estar. Demoro
uns bons segundos até conseguir me movimentar, mas ao passo que faço
isso, permaneço estimulando-a no seu ponto sensível, arrancando-lhe
arquejos e gemidos baixinhos. E então estoco uma, duas, três, quatro vezes.
O ritmo que estamos seguindo agora parece completamente coreografado,
pois seu quadril consegue me acompanhar perfeitamente bem.
Meu coração parece brincar de dar piruetas em minha caixa torácica,
agitado como nunca esteve antes em momentos como esse. Minha
respiração acelera e a da garota também, que tem o peito subindo e
descendo como se estivéssemos correndo uma baita maratona. Céus, ela
consegue ficar ainda mais linda nessa posição, completamente entregue a
mim e ao nosso momento. Seus fios laranjas estão espalhados pelo
travesseiro branco, seus seios balançam, a boca voluptuosa está
avermelhada e entreaberta, seus olhos se apertam de vez em quando e as
suas sobrancelhas franzem-se de tanto desejo e tesão acumulado.
Definitivamente a personificação do pecado.
Enxergo o exato momento em que Pasha crava os incisivos no seu
lábio inferior com toda força, numa tentativa que eu suponho ser para calar
todos os gritos aprisionados em sua garganta, prontos para serem libertos e
acordar toda a casa, querendo mostrar para todos o que estamos aprontando
entre quatro paredes. Seu corpo se contorce sob o meu e ela crava as longas
unhas em minhas costas, apertando bem a carne. Entro e saio dela tantas
vezes que chego à conclusão que poderia fazer isso pelo resto da minha
vida, de tão bom e certo que parece ser.
Puta merda. Essa foi, sem sombra de dúvidas, a pior e a melhor noite
da minha vida.
O mais engraçado é que ela realmente parece inibir qualquer tipo de
dor em meu corpo, pois apesar da briga de mais cedo, não sinto nada agora.
Posso acordar completamente ferrado amanhã, mas agora, pelo menos nesse
exato segundo, sinto que posso carregar toneladas que nada me abalaria;
efeito de Pasha Denise Stratford.
Com mais um impulso forte e fundo, minha visão enturvece,
pontinhos pretos pipocam em minha mente e todo o meu corpo treme, o
melhor orgasmo da minha vida me atingindo em cheio. Curvo meu tronco e
capturo sua boca convidativa, minha língua logo lhe invadindo e o beijo
sendo retribuído da melhor forma possível. Seu corpo treme em espasmos,
ela solta um rosnado quando se separa de mim e seus músculos se relaxam,
inebriada e totalmente relaxada quando atinge seu ápice.
Fecho os olhos, descarto a camisinha, retiro o acúmulo de suor
misturado com o restante da água em minha testa e saio de cima dela,
jogando-me ao seu lado, no colchão. Minha respiração segue ofegante, e ela
aproveita para cobrir nossos corpos nus com o lençol, aproximando-se cada
vez mais. Percebo que, mesmo não sabendo muito fazer, quer uma
aproximação mais forte entre nós, então apenas a puxo para mim, sem
muita cerimônia. Sua cabeça se repousa em meu peito e eu aproveito para
afagar seus fios, inspirando o cheiro de xampu mesclado com chuva para
dentro das minhas narinas.
Nós não falamos nada, apenas ficamos escutando o som das nossas
respirações se misturarem com o som da chuva fraca e fina que agora atinge
lá fora. Através da janela, vejo quando um raio corta o céu escuro e clareia
o cômodo, focalizando-se por alguns segundos no rosto da garota em meu
peito, que agora tem os olhos fechados e a respiração começando a se
desacelerar.
Sorrio ao vê-la pegar no sono pela primeira vez.
Não sei quanto tempo passo a admirando, mas provavelmente não
dura muito, pois a exaustão me toma e me impede de prosseguir. Fecho os
olhos e, quando penso que não, estou entregando-me ao cansaço, dormindo
tranquilamente mesmo após toda a turbulência do dia.
E tenho certeza que isso só se deu por conta da garota dormindo ao
meu lado.

Meu nome saindo entredentes pela boca de alguém é primeira coisa


que faz eu despertar do meu sono. E eu até pensei muito em ignorar quem
quer que fosse, mas o problema é que mãos firmes estão presas em meus
ombros enquanto usam das mesmas para me chacoalhar de um lado para o
outro.
Inferno!
Solto um murmúrio e abro os olhos lentamente, sendo atingido e
recepcionado por raios solares na porra da minha cara e por um par de olhos
castanhos arregalados e apreensivos. Uno as sobrancelhas para a figura de
Pasha em minha frente, meio confuso e atordoado. Mas não demora mais
que alguns segundos para que a noite de ontem rebobine em minha mente e
as lembranças a inundem como um tsunami forte e arrebatador.
Meus lábios se erguem sutilmente em um sorriso zombeteiro para a
ruiva.
— Se você quer um segundo round pela manhã, gata, então por que
não me acordou de forma mais gentil? — brinco com ela, mas parece não
surtir muito efeito, Pasha segue com a cara fechada e com os olhos
injetados de preocupação. Percebo que seus fios alaranjados estão presos
em um coque bagunçado, seu corpo está coberto por uma camisola de seda
e seu rosto está livre de qualquer maquiagem, as sardas que tem salpicam
cada lugarzinho dele. Os cílios parecem ainda maiores de perto, as
bochechas estão naturalmente rosadas pelo calor e o seu semblante é de
sono e cansaço, o que consegue deixá-la ainda mais linda. Fala sério, existe
alguma maneira em que essa garota fique no máximo desarrumadinha?
Bom, provavelmente não. É impossível que ela fique qualquer coisa
diferente de linda pra cacete. — Já sei... — digo, fingindo ter sacado seu
jogo e o que ela realmente quer. — Você não quer nada gentil dessa vez,
huh? Caramba, ruiva, você é insaciável e um pouquinho sadomasoquista.
Não sei se fico com medo disso ou se fico excitado.
E então, como todas as vezes, Pasha Stratford revira os olhos para
mim e bufa.
— Não é nada disso que você está pensando, idiota. — Agora ela se
levanta da cama e fica parada a poucos passos de distância. Suas mãos
espalmam a sua cintura e os seus pés batem impacientemente no assoalho
do quarto. — Acordei cedo, arrumei toda a nossa bagunça e eu preciso que
você vá embora. Meus tios vão acordar daqui a pouco e eles não podem dar
de cara com você no café da manhã.
Projeto o lábio inferior para baixo e coloco a mão sobre o peito.
— Assim você me ofende, diabinha. — Minha mágoa fingida goteja
por toda minha frase, e eu sei que ela fricciona os lábios agora para não
sorrir e para não perder a pose de marrenta. — A família das garotas sempre
me adora, sabia? Tenho certeza que seus tios vão me adorar também. Fala
sério, é impossível alguém resistir aos meus olhos, meu charme, meu
sorriso e a minha lábia. Não dou horas para que eles prefiram a mim do que
a você.
Agora sim ela libera uma risadinha debochada.
— Você está querendo enganar a quem, John Scott?
— Do que você está falando? — indago ao cruzar os braços.
— Como é que você pode dizer que a família das garotas te adora se
você foge delas como o Diabo foge da cruz? Você nem se quer dar o
trabalho de conhecer quem vai para a sua cama, quem dirá conhecer a
família delas.
Bom, ela tem um ponto. Eu realmente nunca conheci a família de
nenhuma garota que saí, mas e daí? Tenho certeza que eles me adorariam.
Ou não.
Muito provável que não.
Solto uma gargalhada, me sento na cama — com muito esforço, pois
estou dolorido para um caralho —, olho para os olhos de Pasha e dou de
ombros.
— Mas e se eu disser que quero conhecer a sua família? — solto a
pergunta. E eu não sei dizer se foi para provocá-la, para ver a sua reação ou
se foi até com uma pontadinha de verdade, mas não foco muito nisso,
apenas continuo fitando-a. Pasha balança a cabeça de um lado para o outro,
encurta a nossa distância e pega em meu braço, me forçando a levantar.
Como sou uma tonelada em suas mãos, mal me mexo.
— Anda, vamos. — Insiste em me puxar, mas permaneço na cama,
com a minha cabeça tombada para trás e os olhos fixos no rosto dela. —
Levanta logo essa bunda quebrada daí, John Scott.
Reprimo a risada e faço que não com a cabeça.
— Só vou embora quando você me responder.
Pasha me solta, meio contrariada, e dá um único passo para trás. Suas
írises castanhas esquadrinham meu rosto, e agora a preocupação dá lugar a
um brilho divertido que perpassa por elas.
— Você quer uma resposta, certo? Então tá bom. — Seus ombros
ossudos se agitam para cima, como se ela estivesse fazendo pouco caso do
assunto. — Se você quisesse mesmo conhecer a minha família, o que eu sei
que não é verdade, seria eu quem iria fugir de você como o Diabo foge da
cruz. Deus me livre expor para eles que eu tenho qualquer tipo de contato
com você. Imagina só? Se eles já me achavam problemática, vão me achar
o triplo quando descobrirem que meu passatempo preferido na cidade é me
encontrar às escondidas com a personificação em carne e osso do problema.
É impossível não dar risada da sua fala ou de como finge que ela é
verdade, embora realmente tenha seu quê nisso. Flexiono os joelhos e, com
certa dificuldade, me levanto da cama enrolado no lençol e arrasto meus
passos até quebrar totalmente nossa distância. Os olhos dela se arregalam
minimamente e os lábios logo se entreabrem, prontos para mim. Mas a
única coisa que faço é pôr minha mão em sua bochecha, meu polegar
escovando sua maçã.
— Gostei de saber que sou seu passatempo e o seu problema
preferido, gata — sopro, extremamente próximo do seu rosto. — Porque
você é, sem sombra de dúvidas, o meu também.
Pasha morde um sorriso e enlaça meu pescoço, ficando um pouquinho
na ponta dos pés para selar nossos lábios. É apenas um toque simples e
rápido, mas parece acender cada parte de mim.
O efeito que essa mulher tem sobre meu corpo chega a ser bizarro.
— Agora coloque a roupa e vá — ordena, assim que se separa. —
Ainda preciso de você inteiro para conversamos sobre o que aconteceu
ontem naquele lugar e claro, sem deixar de mencionar, para que possamos
repetir mais vezes o que fizemos ali. — Aponta para a cama, e o meu
sorriso cresce. Eu sei que deveria me retesar ao escutá-la falar sobre o
ocorrido do beco fodido, mas não é isso que minha atenção está
concentrada. Na verdade, a única coisa que consigo pensar é nela dizendo
que quer repetir o que fizemos ontem. Cacete, eu poderia explodir agora
mesmo de felicidade. — E por favor, Scott, toma cuidado. Seu rosto está
bem melhor, mas quando chegar em casa pede para algum dos seus amigos
lhe ajudar com novos curativos. Também não esquece de...
A interrompo, puxando-a pela cintura para lhe beijar e calar todas as
suas preocupações. Eu estou bem, vou dar meu jeito e não preciso que
minha diabinha se preocupe com uma surra, afinal, não é como se fosse a
primeira vez. Nesse ínterim, o lençol agarrado à minha cintura cai, meu
membro cutuca a barriga de Pasha e nós dois nos separamos para rirmos
disso.
Seus olhos apressados logo descem para aquele lugar e a minha
gargalhada papoca ainda mais, o que acabo ganhando um tapa no braço
como repreensão da minha falta de silêncio. Levanto as mãos em forma de
rendição, agacho para pegar o lençol e vou em busca das minhas roupas,
ainda rindo dela e para ela.
Coloco a minha cueca, a calça jeans, a camiseta, a jaqueta de couro e
os sapatos. Já vestido, puxo os meus fios para trás, afundo as mãos no bolso
da jaqueta e encaro Pasha, que está encostada no batente da porta, me
esperando. Com a cabeça, aponta para a madeira da porta do seu quarto e
sorri. Eu assinto, direcionando-me até a maçaneta, ela logo atrás de mim
quando decido dar um passo para fora do quarto.
Puxo-a para meu lado ao enroscar o meu braço em seu pescoço, e a
ruiva logo aceita, passando o seu braço pelo meu quadril. Nós descemos as
escadas juntos, de degrau por degrau e fazendo o máximo de silêncio. Já no
último, a garota se desvencilha de mim apenas para abrir a porta, ainda
tomando o máximo de cuidado possível para não acordar seus tios que,
graças a Deus, possuem um sono de urso.
— Obrigado por ter me salvado ontem, diabinha — falo baixinho, já
passando pela porta. Fico do lado de fora e viro-me para encará-la antes de
ir. — Você me achou, me salvou dos meus demônios e me trouxe de volta à
realidade, então muito obrigada por isso.
Pasha faz que não com a cabeça e sorri, como se estivesse me dizendo
que eu não preciso agradecer nada.
— A partir de agora é isso que faremos um pelo outro. Coisa de
amigo, huh? — Cruza os braços em frente ao peito e troca o peso dos pés,
sorrindo de forma moleca para mim.
— Isso aí. — Confirmo com a cabeça. — Amigos. Com benefícios.
— Pasha confirma, e sua risada baixa nos engloba. — A gente se vê por aí
então, gata.
Estou prestes a girar sobre os calcanhares, mas a voz da ruiva
chamando meu nome me impede. A olho sobre os ombros e arqueio uma
das minhas sobrancelhas, incentivando-a falar.
— Obrigada por ter realizado meu sonho, John. Acho que nunca vou
esquecer da gente cantando e dançando na chuva. Foi um dos melhores
momentos da minha vida.
O sorriso que pincela meu rosto nesse momento facilmente pode
parti-lo em dois, mas quem se importa com isso agora? Eu poderia estar
todo partido ao meio e continuaria sorrindo feito um idiota. E é assim que
continuo: sorrindo e assentindo para Pasha Stratford, afinal, foi um dos
melhores momentos da minha vida também.
— Se acostume com essas coisas, ruiva — digo, sinceramente. —
Tenho certeza que ainda iremos viver outros momentos inesquecíveis como
aquele.
Não sei como essa certeza habita em mim, mas é só algo que
simplesmente sei.
A minha história com essa garota só está começando.
O Fast Rocket está cheio essa tarde. Hoje o meu tio decidiu que iria
colocar uma televisão no meio da lanchonete para que seus clientes
pudessem assistir um jogo super importante de futebol americano aqui,
comendo e bebendo enquanto ficam vendo os caras quase se matarem por
causa de uma bola do outro lado da tela.
E o mais engraçado disso tudo é que David Wilson, o dono disso aqui
e quem teve a brilhante ideia, detesta futebol americano. Sério, ele detesta
mesmo. Sei disso por que todas as vezes que passa o esporte lá em casa,
meu tio só falta xingar a quinta geração dos jogadores e dos donos dos
canais de televisão, pois, segundo ele, é um esporte superestimado e que
não chega nem aos pés do seu tão amado e precioso beisebol. E se hoje ele
acabou de fazer toda essa preparação por conta do futebol americano, tenho
certeza que foi com um único intuito: lucrar e ganhar alguns bons dólares,
como sempre está disposto a fazer.
Sr. Wilson é um cara legal, e extremamente capitalista. Meu tio é um
daqueles caras que topa tudo — ou quase tudo, pelo menos — por dinheiro
e não tem nenhuma vergonha disso. Ele costuma se vestir de garçonete para
atrair clientes no feriado da independência, costuma sempre comprar coisas
novas para não deixar a lanchonete na mesmice e, pelo visto, como tudo
está acontecendo hoje, costuma também passar por seus gostos só para ir
com a maioria e trazer novos lucros.
Apesar de ser cômico ver o sorriso forçado que alarga o seu rosto ao
tentar adentrar o assunto do futebol com alguns clientes vez ou outra, não
acho que esteja errado. Para alguém que sustenta a casa, a esposa, a
sobrinha e ainda se vira com as despesas do estabelecimento, acho ainda
pouco ele não ter apelado para o uso de bebidas alcoólicas, jogos de sinuca
e músicas sensuais englobando sua preciosa lanchonete. Se eu fosse a dona
daqui, ainda bem que não sou, já teria dado um up nisso tudo há muito
tempo.
Um grupo de garotos com a jaqueta do time de basquete da Hellaware
University adentra o estabelecimento e Georgina, que parece querer entrar
em uma concha de tanta vergonha, já que um dos garotos foi aquele que não
sabia beijar muito bem na festa da fraternidade, olha para mim com os
lábios imprensados um no outro e balança a cabeça repetidas vezes, como
se quisesse dizer que não vai atender a mesa onde eles estão indo se sentar.
Apenas cubro minha boca com alguns dedos e faço o maior esforço para
não cair na risada com o desespero estampado no rosto da loira, parada bem
ao meu lado.
— Não é você que sempre diz que o karma é uma vadia? — direciono
a pergunta a ela de uma forma totalmente irônica, e Georgina Sinclair me
lança um olhar completamente mordaz. — O quê? — indago, fingindo não
estar entendendo sua reação e a fuzilada que dá em mim. — Não me olhe
com essa cara, só estou repassando uma das suas frases super motivadoras.
Como elas sempre costumam me ajudar, achei que fosse te ajudar agora
nesse momento também.
Minha amiga me escrutina com aquele quê de desgosto, os orbes
verdes-escuros agora saltando para um ponto específico atrás das minhas
costas. Não preciso me virar para deduzir que é o grupo dos garotos do
basquete e que, muito provavelmente, se sentaram justamente no setor de
mesas que ela está responsável hoje.
Viro sobre os ombros para confirmar minhas suspeitas e bem, estão
lá. Todos aqueles corpos altos e viris dispersos na mesa dez.
— Sabe, eu achava que fazer strip-tease na cruz era pecado e que,
muito provavelmente, quem fizesse isso teria consequências. Agora eu
nunca imaginei que fazer strip-tease na porcaria de uma festa de
fraternidade fosse me trazer esse tipo de castigo. — Georgina aponta
disfarçadamente para o grupo, na verdade, para o garoto do beijo ruim e seu
rosto se contorce em uma careta ao mesmo tempo em que seus pés batem
no chão feito uma garotinha emburrada. — Deus deveria relevar meu mau
comportamento de vez em quando.
Aí está algo que eu esqueci de mencionar. Na festa da fraternidade,
enquanto eu e John Scott travávamos nossa pequena guerra naquele quarto,
Georgina Sinclair virava todas as garrafas de bebida e, no exato momento
em que o álcool começou a fazer efeito em sua cabeça maluca, decidiu que
era hora de alegrar ainda mais a noite da galera com um show à parte. De
acordo com os relatos de Barbie e Devin, que a tiraram de lá o mais rápido
possível quando a encontraram, nossa amiga estava dançando em cima de
uma mesa só de calcinha e sutiã, com os olhares de todos os garotos
possíveis em suas curvas poderosas.
Sabe o que é melhor nisso tudo? Georgina Sinclair não se arrepende
nem um pouco. Ela acredita fielmente que deu uma levantada no astral da
galera e que se não fosse por seu show, provavelmente não teriam assuntos
memoráveis para debaterem depois sobre o que ocorreu naquela noite.
Mesmo que não se lembre, ela adorou saber que todos pelo campus estão
falando dela de alguma maneira.
A garota realmente ama ser o centro das atenções, bem como tirar
uma brechinha das oportunidades da vida para se aparecer e se promover de
alguma forma.
— Sabe, Georgina — a respondo, tempos depois. — Deus deve estar
simplesmente cansado de relevar seu mau comportamento. Então peça
perdão a Ele e cumpra sua penitência sem reclamar.
A loira projeta o lábio inferior para baixo e arruma as ondas dos seus
cabelos, que agora batem um pouco abaixo dos seus seios. Sem me dizer
mais nada ela apruma a postura, arrebita o nariz, infla o peito e passa por
mim, provavelmente pronta para pagar os pecados — como a mesma
denominou.
Antes de sair de fato, vira sobre os ombros e solta:
— Não pode ser tão ruim, certo? — questiona, e eu vejo a incerteza
gotejar tanto por sua frase quanto por seus olhos, que agora se encontram
semicerrados. — Talvez ele nem se lembre do beijo, por causa da bebida e
coisa e tal. Possa ser que ele sequer me reconheça, mas caso isso aconteça,
tenho uma tática que acho que vai funcionar.
Apesar de estar com a sobrancelha arqueada e duvidar muito de que o
garoto não a reconheça, ainda assim quero saber, por isso falo:
— E qual seria a tática?
— Até chegar na mesa dele eu descubro.
E então ela se vira e vai atender a mesa, deixando-me na companhia
das minhas risadas que, se não fosse pelo barulho da televisão e dos rapazes
falando um por cima do outro, chamaria a atenção de todos aqui por soar
estridente demais. Me obrigo a parar e seco os cantos dos olhos, retirando o
acúmulo de água cristalina por ali. Respiro fundo e cruzo os braços, agora
querendo mais do que nunca assistir o desenrolar de Georgina e o pobre
garoto do time de basquete que, por provável consequência da bebida, não
se saiu tão bem assim em um beijo com uma garota que entende muito do
assunto.
Coitadinho. Será que foi o primeiro beijo da vida dele?
Não tenho tempo de pensar muito sobre, pois meus olhos e toda a
minha atenção se foca em Georgina e no modo como seu sorriso vacila no
instante em que ela chega na mesa e o garoto de cabelos castanhos se retrai
e desvia o olhar para um ponto aleatório do parque, visivelmente
desconfortável e com vergonha. Suas bochechas brancas ganham um tom
escarlate e os óculos de grau que usa desliza pela ponta fina do seu nariz,
ele logo colocando-o de volta de uma forma rápida e apressada.
Minha amiga conversa normalmente com os outros garotos e anota o
pedido deles. Não demora muito para que eles a façam rir e engatem em
uma conversa trivial, o sorriso costumeiro da loira pincelando seu rosto
redondo. O garoto que ela ficou, no entanto, pende as costas para trás e
solta todo o seu peso no estofado, sem se intrometer na conversa e sem nem
ao menos ousar olhar na direção de Georgina.
Estou quase indo salvá-lo daquela situação, com uma mentira de que
estão precisando da minha amiga na cozinha, mas não me movo ou faço
menção de me mover, pois escuto o som do sino da porta tilintar e
sobressair a qualquer outro, como se fosse específico para mim, para que só
eu escute com precisão. Viro a minha cabeça um pouco para o lado e
simples assim, os flagro. Tão fácil quanto tirar doce de criança, meus olhos
logo se conectam às figuras dos The Hurricane Freedom adentrando a
lanchonete e meu coração parece parar por um ou dois segundos, apenas
para voltar com toda força depois só por saber que ele está aqui. Só por
saber que ele está dividindo o mesmo espaço que eu após a nossa noite na
chuva — e tudo que veio depois disso — ontem.
Por incrível que pareça, John Scott não está com a sua sagrada jaqueta
de couro desgastada dessa vez. Ele está usando apenas uma camiseta preta
da banda Guns N’ Roses, que deixa todos os rabiscos bem feitos do seu
antebraço, um pouco do braço e, claro, do seu pescoço à mostra. Uma calça
preta e justa cobre suas pernas esguias e as costumeiras botas de combate
continuam ali, complementando toda a áurea escura e misteriosa que o
envolve como uma redoma. Os hematomas e os cortes da briga da noite
passada deixam-no ainda mais obscuro e instigante. Seu cabelo loiro
platinado está perfeitamente penteado dessa vez, mas ele acaba estragando
tudo ao passar para todos os lados os seus dedos longínquos e repletos de
anéis, deixando-os bagunçados de um modo interessante. Alguns fios caem
sobre seus olhos azuis, e ele não parece se importar nem um pouco com
isso. John apenas caminha tranquilamente e varre os glóbulos pelo local,
como se estivesse em busca de algo ou... alguém.
E não demora nem uma fração de segundo para que eu tenha sua
atenção totalmente voltada para mim. Engulo em seco, e ele apenas acena
com dois dedos em minha direção, os lábios automaticamente se
projetando minimamente para cima, como se quisesse ser discreto ou não
quisesse transparecer também em sua boca o brilho diferente que atinge
suas írises quando encontra minha figura em meio às outras.
Mas, independentemente do que seja, lhe devolvo um aceno com um
manear de cabeça e um sorriso extremamente parecido com o seu. O
integrante do MotoClub logo passa por mim e se senta em uma mesa
próxima à televisão, todos os seus amigos lhe acompanhando. E, como se
fosse em um passe de mágica, Barbie se materializa em frente a eles, pronta
para atender seus amigos e, óbvio, seu namorado, que a recepciona com um
beijo estalado na testa. Eu até acompanharia o desenrolar da cena, só que tio
Wilson passa pelo balcão e crava seus olhos escuros em mim, sulcos
formando-se em sua testa ao constatar que estou parada sem fazer nada a
um tempão. Ergo os ombros para ele, sorrio sínica e me viro, fingindo ir
falar com as cozinheiras sobre o pedido de alguém.
A verdade é que estou ficando de saco cheio dos gritos, dos
xingamentos quando os times não fazem pontos e da voz do narrador da
partida de futebol americano zumbindo alta demais em meus ouvidos. Acho
que me pareço com Sr. Wilson, entretanto. Acabo de descobrir que odeio
jogos de futebol americano e o quanto as pessoas parecem ficar eufóricas
demais por conta de quarterbacks, touchdowns e sei lá mais o quê. Prefiro
muito mais ficar prestando atenção na vida agitada dos meus amigos do que
na vida sem graça dos torcedores ao meu redor, ou até mesmo dos
jogadores suados se amontoando entre si.
Solto um muxoxo, sacudo a cabeça e dou uma espiadinha atrás de
mim, tentando ver se meu tio permanece de olho na minha falta de
responsabilidade. Mas ele não está, graças a Deus. David Wilson está em
frente à televisão, com as mãos espalmadas na cintura e os olhos totalmente
focados na partida, como se realmente entendesse ou se importasse. Um
sorrisinho vitorioso se apossa dos meus lábios e eu volto a minha antiga
posição, pronta para continuar observando. Meus olhos procuram por
Georgina e não a encontro, tão pouco o garoto do basquete, que
provavelmente deu o pé daqui o mais rápido que conseguiu.
Tadinho. Realmente fiquei com pena dele.
Então volto minha atenção para John e o encontro com uma Coca-
Cola de cereja em mãos, os dedos brincam de subir e descer no canudinho
listrado dentro da lata. Seus olhos estão fixos no futebol americano,
obviamente. Parece brilhar, também. Então eu simplesmente me recordo
dele falando que é super fã do esporte. E diferente do garoto, Devin, Kieran,
Violet e Kara, parecem entretidos com outras coisas e não erguem nem os
orbes para fitar a televisão. Ele é o único completamente compenetrado, até
solta um murmúrio agora quando um dos caras do time adversário pega a
bola.
Sorrio por vê-lo irritado.
Quer dizer, não estou sorrindo por saber que ele está irritado. Estou
sorrindo porque John Scott fica ainda mais lindo irritado; seus olhos azuis
ficam semicerrados, suas sobrancelhas grossas e definidas se unem, o nariz
bem moldado fica com as narinas levemente dilatadas, os incisivos cravam
no lábio inferior, deixando-os vermelhos e a mandíbula fica extremamente
marcada ao passo em que ele a tensiona. Até os músculos dos seus braços
parecem ficar ainda maiores com a força que ele impõe ao cerrar a mão
livre em punho.
Desfaço o sorriso na mesma hora ao concluir os pensamentos. Não
gosto nada como meu pescoço parece ficar quente, assim como não gosto
nada da fina película de suor que cobre minha testa, do modo como pareço
hiperventilar agora e, principalmente, não gosto nada do raio que atinge o
meio entre minhas pernas. Me sinto sufocada e mexida por causa da beleza
de um garoto.
Que merda está acontecendo, Pasha Stratford? Você não está mais no
colegial. Você já viu uma dezena de garotos bonitos antes, não haja como se
nunca tivesse cruzado o caminho de um assim antes. É ridículo.
“Pode ter cruzado o caminho de garotos bonitos antes, mas,
definitivamente, nunca cruzou com John Scott. E todo mundo sabe que John
Scott não é apenas um garoto bonito.”
Meu subconsciente grita para mim. E eu o detesto. Eu o detesto tanto,
minha nossa! Detesto ainda mais o fato dele estar completamente certo,
afinal, John Scott não é só mais um garoto bonito. Ele é o garoto bonito. Ele
é o garoto bonito que tem aquele sorriso molha-calcinhas. Ele é o garoto
bonito que tem um par de olhos parecendo a droga do mar do Caribe. Ele é
o garoto bonito que tem uma altura intimidadora, corpo forte, másculo e
desnorteador. Ele é o garoto bonito que te fala coisas sujas, e que te leva
para ver as estrelas, para dançar e cantar na chuva só porque seu filme
favorito tem uma cena assim.
John Scott é o garoto bonito que tem cara que vai destruir a sua vida e
de brinde vai esmagar seu coração, mas que você quer mesmo assim, pois
se ele estiver ao seu lado, que se dane as consequências. Que se dane o
coração e os cacos espalhados para todos os lados.
Eu deveria me assustar e ter medo desses pensamentos, mas a verdade
é que não tenho. Tentei resistir, tentei me enganar, tentei ir contra... Meu
Deus, eu fiz isso tantas e tantas vezes. Mas simplesmente não posso e não
quero me privar de sentir. Não quero estar com medo de me machucar, com
medo de ser quebrada, com medo de estar com medo. Eu quero viver. Eu
preciso viver. Eu preciso me arriscar, me divertir e me permitir errar. E,
sinceramente, quem disse que não posso ser eu a quebrar seu coração? Eu
me conheço, sei que isso pode muito bem acontecer.
Se ele é o garoto bonito, eu sou a garota bonita. Eu sou a garota
bonita que tem fios ruivos, olhos castanhos e um corpo repleto de curvas
capaz de atrair qualquer atenção. Eu sou a garota bonita do nariz empinado,
das roupas de marca e dos saltos altos. Eu sou a garota bonita que veio do
Alasca, que perdeu a irmã prematuramente e que vem tentando se
reinventar. Eu sou a garota bonita que não aceita ouvir não, que não sabe
lidar muito bem com as pessoas, que tem defeitos e muitas qualidades,
também. Sou a garota bonita que tem um sorriso cruel, um coração difícil
de ser conquistado e que, com toda certeza, assim como todas as outras
mulheres, tem o poder de dar o xeque-mate em um jogo.
Não sou inofensiva, fraca ou qualquer merda do tipo. Sou Pasha
Stratford, a garota bonita e que não teme nada e nem ninguém por ser
justamente a que todos temem.
E é exatamente por todas essas coisas que John e eu somos perigosos
um para o outro. Nós somos destrutivos, inconsequentes e radioativos.
Somos como uma bomba e ninguém sabe quem pode estourar a qualquer
segundo. Só que, apesar de tudo isso, somos bons nisso a nossa maneira.
Sabemos como nos conduzir, como nos tocar e como nos sentir. Ontem,
quando estávamos juntos, parecia que tinha sido tudo premeditado; a minha
vontade de correr à noite, eu entrando naquelas ruas, o encontrando e o
trazendo para casa. Parecia que precisava acontecer. E foi bom. Na verdade,
foi surreal. Nunca havia me sentido daquela forma antes, tão pouco havia
sido tocada daquela maneira, que fez eu me sentir única e especial, não
somente uma distração de fim de noite para um garoto de cabeça cheia.
Ao mesmo tempo que nós dois parecemos tão errado, também
parecemos tão certo.
E quer saber de uma coisa? Acho que aceito os riscos. Não seria a
primeira vez, de qualquer forma. Acho que sempre estive atraída pelo caos.
Meu sangue sempre ferveu em minhas veias com a probabilidade de fazer
algo errado e que me leve para fora da curva. Então se o toque desse garoto
mau for o responsável por me levar ao acostamento, bem, não me parece
tão ruim assim me colocar em perigo mais uma vez e deixar que ele me
traga o céu, o paraíso e o caos tudo junto.
Solto um longo fluxo de ar e passo as mãos na barra do uniforme,
secando as palmas. Pego a caneta que tenho guardada em um dos bolsos e
ouço um click quando a preparo para a usar, pronta para rabiscar a letra de
uma música no meu pulso. Fecho uma mão em punho e começo a escrever,
minha letra desengonçada cobrindo minha pele.
“Por que não toma tudo de mim? Será que você não vê? Eu não me
sinto bem sem você. Tome meus lábios. Eu quero perdê-los.”
A letra é da música All Of Me da Billie Holiday. E essa cantora é
importante para mim por um milhões de fatores. Meus pais, que se
conheceram ainda novos em um concerto de ópera — já que os dois
compartilham desse mesmo amor pela música —, são apaixonados por ela e
decidiram dançar justamente essa música no casamento deles, pois, segundo
eles, é uma canção que remete ao amor e a história que eles têm. Então,
obviamente, cresci escutando-a, assim como inúmeras outras de jazz e
músicas clássicas. Foi inevitável não criar o mesmo amor por esse mundo.
Foi inevitável também não lembrar dessa letra em específico agora.
Olho uma última vez para o meu pulso e guardo a caneta no bolso.
Arrumo a postura, alinho o uniforme e arrasto meus passos até o pequeno
banheiro do estabelecimento. Já dentro do local, assim que empurro a porta
atrás de mim, me direciono até a pia e minhas mãos se firmam em cada lado
dela, meus olhos fixos no assoalho. Um fluxo de ar escapa pela fresta dos
meus lábios no exato segundo em que alguns fios do meu cabelo se
desprendem do meu rabo de cavalo. E, quando ergo meus orbes para a
frente, dou de cara com a minha figura através do reflexo do espelho.
— Toma jeito, garota! — brado para mim mesma. — Arruma logo
essa cara e vai trabalhar! — Meu dedo está apontado em minha direção, e
balanço a cabeça ao me sentir ainda mais patética falando sozinha.
Grunho, irritada, e desfaço o rabo de cavalo em meu cabelo apenas
para fazer um outro, bem mais firme e bem mais arrumado que antes. Dou
alguns tapinhas em minhas bochechas depois, como se fosse para me
acordar. Aprumo os ombros e giro nos calcanhares, pronta para deixar a
procrastinação de lado. Estou prestes a tocar a maçaneta, mas refreio meus
movimentos quando ela abre por si só, fazendo-me recuar uns bons passos
para trás quando meu cérebro entende a figura de John Scott adentrando às
escondidas no banheiro feminino.
Suas írises passeiam e varrem o local em busca de mais pessoas, logo
dando um sorriso malicioso quando percebe que sou a única aqui.
Abro a boca para perguntar que diabos ele pensa que está fazendo,
mas simplesmente não consigo fazer nada, pois sou pega de surpresa
quando Scott simplesmente nos tranca aqui dentro e marcha rapidamente
em minha direção, fazendo minha lombar se chocar contra a pia ao ter seu
corpo subitamente tão próximo do meu. Suas mãos voam para cada lado do
meu rosto e elas me puxam no mesmo instante para a sua boca, que se
encontra quente e ansiosa pela minha. Simples assim, sem trocar uma única
palavra, estou completamente entregue ao beijo e a eletricidade que nos
envolve. Colo ainda mais nossos corpos ao entrelaçar meus pulsos em seu
pescoço. John, no entanto, desce uma das mãos pelo meu pescoço e a crava
na minha nuca. Arquejo completamente quando meu lábio inferior fica
preso entre seus dentes. Ele o solta segundos depois, se separa
minimamente, cola a testa na minha e a respiração sai ofegante.
— Eu estava louco para fazer isso desde que cheguei — comenta, e
seus lábios automaticamente se repuxam em um meio sorriso. — Fiquei
ainda mais quando percebi você me encarando o tempo todo, diabinha. Não
foi fácil focar minha atenção no jogo quando tudo que eu queria era focar
ela em você.
Meu coração se agita com a sua frase. Perco completamente as
estribeiras, mas me forço a parecer estoica. Apenas ergo as minhas
sobrancelhas.
— Como soube que eu estava te observando? — indago. O garoto
nem ao menos virou o rosto em minha direção uma única vez.
John dá de ombros.
— Apenas soube — responde, agora salpicando beijos em minha
têmpora e pescoço. — Apenas senti.
Fecho os olhos e fricciono os lábios, pois agora o tenho mordiscando
meu lóbulo. Seus dentes fincam na carne e sua língua surge logo após,
deixando um rastro molhado na extensão da minha orelha. Reprimo um
palavrão ao me sentir tão quente. Balanço a cabeça, meio que o pedindo
para parar, e espalmo minhas mãos em seu peito, o empurrando
minimamente para longe. Aproveito do espaço para deslizar em uma
distância segura.
— Aqui não — explico ao assentar meus fios no lugar. — Tenho que
voltar ao trabalho. Já passei tempo demais enrolando.
Meu tio pode me procurar a qualquer momento, e eu definitivamente
não quero escutar meia hora de sermão sobre ser responsável e blá blá blá.
— Tudo bem, diabinha. — John encurta nossa distância de novo, e
dessa vez eu deixo. — Só vim aqui para matar o que estava me matando —
ele se refere ao beijo, e eu sorrio feito boba. — E também, claro, vim te
dizer que quando acabar o jogo, te levarei para o rancho. Todos os meus
amigos vão sair, ou seja, isso significa que teremos tudo aquilo lá só para
nós dois. Sabe como é, a noite de ontem não foi suficiente para me saciar de
você.
Minha sobrancelha se levanta e eu cruzo os braços.
— E o que te faz pensar que eu quero ir?
O garoto infernal solta uma risadinha, como se fosse óbvio demais e
estivesse escrito na porcaria da minha testa o quanto desejo ficar a sós com
ele. Bom, talvez esteja mesmo, mas não gosto do fato de eu ser tão
transparente para ele.
Ao contrário do que eu imaginei, John Scott não responde nada. Ele
me puxa pela cintura, curva seu corpo e alcança os meus lábios mais uma
vez. Sua língua pede passagem na minha boca e, como se fosse impossível
ir contra, eu a entreabro e lhe dou passagem. Meu coração palpita, minhas
pernas fraquejam e o banheiro parece girar com o gosto de Coca-Cola de
cereja que se derrama em minha língua. Mas, em alguns segundos depois,
Scott se separa e um sorriso convencido pincela seu rosto.
— Isso me faz pensar que você quer ir. — Fico boquiaberta. Ele me
beijou apenas para mostrar um ponto? Que bastardo! — Vamos embora às
seis horas, pode ser?
Não falo nada. Acho que estou chocada demais com a sua audácia
para me mover. E o bastardo filho de uma mãe parece perceber, pois
umedece o lábio inferior e o morde, visivelmente escondendo um sorriso.
Ele se aproxima mais uma vez, entretanto. Sua boca se direciona para a
minha orelha na mesma hora que suas mãos cheias grudam em minha
bunda sob o tecido do uniforme, apertando-a. Solto um gritinho de surpresa.
— Às seis horas, diabinha. — Sua voz parece propositalmente mais
rouca ao passo em que soa arrastada. — Esteja pronta para mim às seis
horas. — E então, antes de me dar as costas, suas mãos firmes atingem
minhas nádegas com um tapa não tão forte e não tão fraco.
Oh.
Céus, como se recusa um convite de um homem desses?
Seria uma baita blasfêmia contra o deus Eros. E eu definitivamente
não quero contrariá-lo.
O meu turno termina poucos minutos depois do fim da partida de futebol
americano. E apesar de eu realmente ter voltado ao trabalho para ajudar as
minhas amigas e não mais procrastinar, não consegui não ficar com a cabeça em
outro lugar. Entre limpar a bagunça dos clientes e entregar hambúrgueres, meu
cérebro parecia ter sido fundido e a única coisa que ele conseguia pensar era na
porcaria das seis horas, que pareciam não querer chegar nunca só para rir da
minha cara e da minha ansiedade estúpida.
O karma deve ser mesmo uma vadia pronta para me humilhar, Georgina.
Só que, após os minutos se arrastarem ainda mais demoradamente nesse
interim, o relógio em meu pulso acaba de marcar seis horas, o que me faz soltar
uma lufada densa de ar e encarar novamente meu reflexo no banheiro do
espelho. Minha aparência até que está ok. Me livrei do uniforme verde água e o
coloquei dentro da minha bolsa, agora estou usando apenas uma salopete preta,
blusa de gola alta e de cor branca por dentro, meia calça preta de coração e botas
de verniz da cor vermelha. Há blush em minhas bochechas, rímel nos cílios e
meu indispensável batom vermelho nos lábios. O cabelo está solto, partido ao
meio e escorre por minhas costas.
Me olho uma última vez, aperto a alça da bolsa contra meus dedos e saio
do banheiro. Já do lado de fora, me despeço dos meus tios ao dizer que voltarei
tarde e que eles não precisam me esperar acordados. Por sorte, aceitam de bom
grado e não fazem muita pergunta, afinal, não sou de sair muito e, segundo eles,
é bom que eu me divirta uma vez ou outra.
Agora eu não sei se eles pensariam dessa forma se soubessem onde e com
quem será a minha diversão da noite.
Mordo um sorriso ao pensar nisso e empurro a porta do Fast Rocket, sendo
atingida pelas rajadas de vento que sempre costumam aparecer à noite. Meus fios
alaranjados voam por conta disso, e eu tento os manter no lugar enquanto
caminho pelo parque em busca de John Scott.
Se ele tiver me dado um bolo, juro que piso em suas bolas preciosas com a
porcaria dos meus saltos.
Serpenteando entre as pessoas, encontro o loiro — graças a Deus — na
barraquinha de algodão doce jogando conversa fora com o dono dela. Ele está
com os braços cruzados em frente ao peito e parece bastante focado no que o
homem diz, afirmando tudo com um leve manear de cabeça vez ou outra.
Cautelosamente, me aproximo da barraca e limpo a garganta para chamar a
atenção, o que acaba dando certo, pois todos os dois encerram o assunto e me
encaram. John, mais especificamente, me olha da cabeça aos pés e dos pés à
cabeça, sem esconder o sorriso atroz que retorce o canto da sua boca.
— Eu sabia que você viria — ele soa convencido, e eu forço um sorriso só
para não fazer feio na frente do homem, que ainda permanece olhando para nós
dois. John parece perceber, pois se volta para o cara, ergue os ombros para ele e
diz: — Vou querer um algodão doce. Sabe como é, quero impressionar a gata
aqui no nosso segundo encontro. — Sua cabeça agora aponta para mim, seu
sorriso crescendo ainda mais.
Oi?
— Eu não vou querer algodão doce, senhor. Muito obrigada. — Sorrio
para o dono da barraca, que automaticamente para de pegar as coisas para o
preparo do doce. Ele entreabre a boca, mas acaba por assentir sem falar nada.
John pede desculpas por mim, como se eu tivesse feito algo errado, e eu o
puxo para darmos o fora.
— Você precisa sempre me contrariar? — indaga, agora caminhando ao
meu lado para podermos sair de Starryland. — O que custava aceitar? Foi na
maior boa intenção, gata.
Argh. Lá vem ele com esse apelido de novo. Não gosto quando me chama
assim. Na verdade, parece algo genérico, algo comum, algo trivial como dizer
bom dia para um desconhecido. Parece uma forma fácil demais de chamar todas
as garotas com quem sai, sem precisar se dar ao trabalho de descobrir o nome
dela.
Gosto muito mais de quando me chama de diabinha. Parece algo
definitivamente só nosso.
Mas me mantenho calada quanto a isso.
— Não gosto de algodão doce — respondo, sinceramente. — Não tem
nada demais. É açúcar puro.
John me olha com as suas sobrancelhas grossas completamente erguidas e
o cenho franzido.
— Você é estranha — constata, e nós dois passamos pelos portões de
madeira do parque. Não sei que direção seguir na rua, porém me mantenho
acompanhando os passos dele que, muito provavelmente, nos levarão até a sua
moto. — Não gosta de algodão doce, e gosta de café. Qual sentido disso?
— É sério que você quer fazer essa comparação? — pergunto, retórica,
levemente indignada também. — Acabei de perceber que o seu paladar é igual
ao de uma criança de cinco anos, John Scott.
— E o seu é igual ao de uma velha de sessenta — rebate, rápido. Fico
calada e fricciono os lábios, pois de certa forma ele tem razão. Meu gosto para
comida pode se assemelhar mesmo a de uma idosa, confesso. E até certo ponto
eu me pareço com uma também. — Quando chegarmos lá no rancho eu tenho
que te preparar o quê? Uma canja de galinha? — Nós viramos a rua, e eu consigo
observar daqui a sua moto brilhando em meio à escuridão da noite. Apenas me
viro em sua direção para soltar uma risada forçada e fingida. — Ou sei lá, que tal
peixe? Ouvi dizer que auxilia na prevenção contra artrite.
— Ah, cala a boca! — Choco meu ombro contra o seu, e John voa
levemente para o lado, nossas risadas dançando pelo ar no mesmo instante. —
Você fica mais bonito de boca fechada.
Scott para de dar risada e coloca a mão no peito, fingindo estar ofendido.
Dou de ombro, e nós dois paramos perto de sua Harley-Davidson. Ele senta nela
e dá uns tapinhas no couro, indicando que eu o acompanhe, os lábios se erguendo
em um sorriso malicioso por me ter mais uma vez na garupa da sua moto. Reviro
os olhos e, com muito autocontrole para não esganá-lo, sento-me no local
indicado. John manda uma piscadela irritante e suas mãos se fixam no guidão,
pronto para acelerá-la. E, antes que ele possa finalmente dar partida, escuto sua
voz soar arrastada ao passo em que ele diz:
— E você fica ainda mais bonita com a boca na minha. Mas isso
provavelmente você já sabe.

Quando chegamos no rancho, que estava completamente vazio, eu não


sabia muito bem o que iríamos fazer. Na realidade chegava até a ser estranho
estar sozinha com ele aqui, já que sempre estive acostumada a encontrá-lo cheio
de pessoas, então apenas esperei para que John pudesse externar o que tinha em
mente quando decidiu me convidar, de uma forma nada sutil, para sua casa. E aí
que John Scott me conduziu até seu trailer, pegou bebidas para nós e me trouxe
de volta para fora.
O vento agora sopra nas árvores, os grilos cantam numa espécie de coral e
eu juro que consigo escutar o chirriar de uma coruja ao longe. Parece tudo
desértico demais. Se não fosse também aconchegante, isso aqui se
assemelharia fácil com uma daquelas cenas clichês de filme de terror barato e
com pouco orçamento — que eu adoro, por sinal.
Remexo a cabeça de um lado para o outro e me concentro em nós dois,
que estamos sentados no meio da relva, os trailers já desgastados ao nosso redor.
Há um pequeno rádio velho entre nós, que John fez total questão de trazer,
dizendo que era necessário para embalar nosso momento. A voz de Bonnie Tyler
dá lugar aos primeiros solos de guitarra da música que eu logo reconheço como
Sweet Child O’ Mine da banda Guns N’ Rose, e John sorri ao começar a
tamborilar os dedos repletos de anéis na long neck, seguindo o ritmo da música.
— Deixa eu adivinhar, hm... — Faço um bico de lado e bato com o
indicador no queixo ao fingir que estou pensando. — Essa é a sua banda favorita,
huh?
Seus lábios se repuxam ainda mais.
— Como adivinhou? — Ele estreita os olhos em minha direção e sulcos
formam-se em sua testa. Parece estranhar totalmente o fato de eu ter descoberto
isso. Meu Deus, que lerdo.
— Não sei. — Finjo pouco caso ao dar de ombros. — Talvez por estar
estampada na sua camiseta. — Aponto com a garrafa para a logo da banda em
seu peito, e ele logo olha para baixo, conferindo-a. — Você é mesmo desligado
assim ou só se faz?
Uma risada sincera e estridente escapole entre os lábios do garoto,
misturando-se com a minha ao passo em que me sinto contagiada por ela. John,
alguns segundos depois, cala qualquer som seu ao levar o gargalo da cerveja aos
lábios, o pomo de Adão descendo e subindo conforme o líquido alcoólico
escorrega entre sua garganta. Então simplesmente paro de rir também, fico
apenas observando-o. E quando retira os resquícios da sua boca com o dorso da
mão, prende o vidro entre as coxas e, por fim, resolve responder:
— Só quando se trata dessas coisas — soa casual, e eu vejo o brilho
diferente que suas írises tomam, poderiam facilmente me ofuscar agora. Não
preciso ser uma gênia para deduzir que a sua próxima frase será mais uma de
suas pérolas. — Porque, ruiva, venhamos e convenhamos, quando o assunto é
você, não sou nenhum pouco desligado. Na verdade, eu me acendo muito rápido,
se é que você me entende. — John umedece o lábio inferior e o prende entre os
dentes, naquele mesmo esquema de tentar esconder o sorriso sujo que sempre
escorrega pela sua boca em momentos como esse.
Ele é tão depravado. Minha nossa. Qualquer assunto que a gente entra,
independente do que seja, Scott consegue dar um jeitinho de levar facilmente
para um lado mais ladino. E eu não deveria gostar tanto disso quanto eu gosto,
mas acho que não tenho muito como evitar. Pelo menos não quando as suas írises
azuladas de bordas acinzentadas me perscrutam desse jeito ardente, como se
estivesse conseguindo me visualizar despida bem em sua frente.
Mas, para continuar na minha atuação de que nada que diga me afeta —
mesmo que eu esteja sentindo a pele do meu pescoço esquentar — apenas bufo
teatralmente e reviro os olhos, fingindo estar farta de suas investidas baratas.
— Você por acaso tem coisas como essa anotadas em um caderninho? —
questiono, a fim de zombá-lo. Brinco com o gargalo da cerveja agarrada em
minhas mãos e faço a melhor expressão de tédio ao completar: — Parece algo
tão decorado. No mínimo algo lido em revistas de adolescentes.
Diferente do que eu acreditei que aconteceria, John não me responde. Ele
não está mais mordendo os lábios ou tentando esconder o sorriso sujo agora. Na
verdade, ele se encontra totalmente visível para qualquer um ver. Ou melhor,
para eu ver. Só que o loiro vira a cabeça minimamente para o lado e sua atenção,
assim como a minha, acaba sendo direcionada totalmente para a música
reverberando pelo ambiente.
A princípio, não entendo o fato de John Scott estar absorto em
pensamentos, até mesmo não entendo o fato de estar passeando com o indicador
e o polegar pelo queixo, sorrindo para o rádio. Mas, assim que presto atenção na
letra e no que vem a seguir, uma luz se acende na minha cabeça e eu finalmente
consigo entender.
“Seu cabelo me lembra um lugar quente e seguro
Onde, quando criança, eu me escondia
E rezaria para que o trovão e a chuva
Passassem quietos por mim.”
É nessa parte da letra de Sweet Child O’Mine que ele ergue os orbes para
mim. Suas írises se conectam com as minhas e ambas parecem possuir uma
linguagem própria, pois parece que conversam e se entendem entre si, sem que
nossas bocas emitam som algum. John permanece sem falar nada por longos
segundos, e também nem precisa. Seus pensamentos parecem que foram
desligados pela música e, se eu pudesse chutar, mesmo que desse muito errado,
diria que foi porque ela lhe fez lembrar de mim.
Não costumo tirar esse tipo de conclusão rápida demais, mas é exatamente
isso que as suas írises parecem querer dizer para as minhas. E daqui, sob a
claridade proeminente da lua, enxergo quando as suas pupilas se expandem e o
oceano de seus olhos acaba sendo parcialmente engolido por um buraco negro.
Então, simples assim, eu me afundo. Me afundo nas profundezas, nos abismos e
no que costuma ser desconhecido. Me afundo nos olhos dele e encontro.
Finalmente encontro o que estava procurando dentro desses minutos que, sem
sombra de dúvidas, pareceram horas de busca.
Eu encontro a confirmação.
John Scott pensou mesmo em mim ao escutar a canção da sua banda
favorita.
Pode parecer surreal demais eu simplesmente sentir isso através de seus
glóbulos, só que eles para mim sempre foram tão límpidos. As respostas podem
não estar sempre na superfície, mas basta um mínimo esforço da minha parte que
eu as encontro, cristalinas como a água do mar. E ela está lá. Está mesmo lá. Eu
sinto.
Mais uma vez, como se fosse o destino tentando me mostrar algo, isso faz
com que eu perceba de novo o quanto isso aqui rolando entre nós pode ser
perigoso. Para ambos. Pode ser completamente fatal e o meu lado racional
aciona sirenes e alertas por todo o meu corpo, impulsionando-me a fugir antes
que seja simplesmente tarde demais para o nosso coração, nosso ego e nosso
orgulho ferrado.
Seria ainda muito cruel ou estúpido da minha parte dizer que ainda
permaneço com a ideia de aceitar os riscos? Pois é, provavelmente deva ser
mesmo, mas não seria Pasha Stratford se eu não tomasse essa decisão. Nunca fui
conhecida por ter as melhores escolhas mesmo, de qualquer forma.
O refrão da música se repete e eu pisco uma, duas, três vezes, como se
meu cérebro estivesse recalculando as rotas do meu pensamento, que logo se
desviam para uma outra direção totalmente diferente. Eu começo a pensar nas
palavras “lugar quente”, “trovão” e “chuva”, que compõem a letra de Sweet
Child O’ Mine, me fazendo recordar da nossa noite e, inegavelmente, me
fazendo lembrar de todas as sensações avassaladoras que senti. Meu coração
pulsa fortemente contra a minha caixa torácica com a lembrança e eu sinto o ar
começar a faltar.
Só que parecendo sair do transe que se enfiou por alguns longos segundos,
John Scott balança a cabeça de um lado para o outro e pisca um par de vezes. Em
seguida, se levanta em um rompante e marcha até mim, estendendo a mão em
minha direção. Uno as sobrancelhas e o olho desconfiada.
— Aceita dançar comigo, Pasha Stratford? — Sua voz sai rouca, grave e
flutua até meus ouvidos. Aperto os lábios para não sorrir do seu pedido
inusitado.
— Aqui?! — Olho para todos os lados, capturando a escuridão da noite, as
árvores e arbustos nos cercando como uma espécie de floresta. Quando volto a
fitá-lo, encontro seus olhos injetados de súplica e o seu rosto contorcido como
um cãozinho que acabara de cair da mudança. — E para que você quer dançar
comigo, a propósito?
— Para sentir seu corpo colado ao meu mais uma vez.
E simples assim, após dizer isso, sua mão se enrosca no meu pulso e ele
me levanta como se eu não pesasse nada. Meus lábios se entreabrem
minimamente assim que fico em sua frente, enquanto sua outra mão livre finca-
se com afinco em minha cintura, quase me fazendo sobressaltar. John impulsiona
essa região para frente e ela se choca contra o seu abdômen espetacular, que logo
faz com que eu prenda um gritinho em minha garganta. Suas írises profundas
esquadrinham meu rosto e eu sinto frio. Sinto frio da cabeça até os dedos dos
pés. E deve ser exatamente por isso que eles se contorcem dentro das botas que
uso.
O vento passa por nós, como se quisesse que a gente note sua presença, e
alguns fios do meu cabelo voam para frente do meu rosto. Por causa disso, Scott
usa dois dos seus dedos para levá-los de volta até minha orelha, aproveitando da
situação para se inclinar e sussurrar lentamente:
— Acho que encontrei a minha Sweet Child.
Prendo a respiração e sinto o meu coração galopar ainda mais forte com a
sua frase que, com toda certeza, acaba de confirmar que ele estava mesmo
pensando em mim ao escutar a letra da canção. Confirma todas as minhas
suspeitas e eu detesto como todos os músculos do meu rosto decidem sozinhos
pôr um sorriso estúpido em meu rosto por conta disso.
Sem falar mais nada, o loiro volta a sua posição anterior e, com toda a
facilidade do mundo, me coloca contra seu corpo, seus braços envoltos da minha
cintura. A música, que provavelmente já deve estar em seu fim, continua
ressoando e envolvendo nossos passos que não passam de dois para lá e dois
para cá. Apesar de não ser nada demais, gosto da sensação de estar em seus
braços. Gosto de como seus braços firmes me envolvem, de como o seu corpo
sempre segue o meu primeiro, e de como tudo parece calmo, sereno e certo
agora.
Nunca pensei que dançar com John Scott fosse algo tão bom.
A vida é uma loucura mesmo, não é? Eu o odiava e não ia de jeito nenhum
com a cara de soberbo que o integrante do MotoClub esbanjava. Eu tinha certeza
que nossos mundos não poderiam e nem iriam se colidir... E olha só onde estou
agora.
— Pasha? — ele me chama assim que a música termina, e eu me afasto
minimamente apenas para alinhar minhas írises com as suas. — Seria muito
louco se eu pedisse para te beijar agora?
Minhas sobrancelhas se arqueiam no mesmo instante em que sorrio sem
descolar os lábios. Tento muito me segurar, mas é impossível não alargar o
sorriso quando observo seu pomo de Adão descer e subir, nervoso. Ele espera
pacientemente por minha resposta, a mão passeia e faz um carinho singelo em
minhas costas.
— Desde quando você precisa pedir para me beijar, John Scott? — Tombo
a cabeça para o lado, a fim de observá-lo por uma perspectiva diferente. E
caramba, ele parece perfeito por todas elas. A luz vertiginosa da lua dança por
suas feições e ilumina cada canto bem esculpido de seu belo rosto.
— Desde quando eu quero que isso aqui seja romântico. — John aponta
para nós dois com seu dedo tatuado em riste, e é impossível que eu guarde minha
risada somente para mim. A minha risada escapole por entre minha boca e se
sobressai a qualquer som presente pelo rancho. — Estou falando sério, diabinha.
Preciso desconstruir toda essa imagem de um canalha sem coração que você
criou de mim nessa sua cabecinha maldosa.
Me forço a parar de rir. Faço a minha melhor expressão de séria e confirmo
seu comentário com um manear lento de cabeça. John provavelmente percebe
que sou uma péssima atriz com ele, pois sulcos se formam em sua glabela e seus
lábios se delineiam em um biquinho irritado ao passo que seus glóbulos me
pedem para que eu o leve a sério.
— A gente conversa sobre essa desconstrução em uma outra hora — digo
ao dar de ombros, sem querer dar o braço a torcer. — Agora, nesse exato
momento, estou louca para ver seu lado mais canalha comigo. — Levo minha
mão até a gola da sua camiseta e a torço contra meus dedos, puxando-o em um
solavanco para mais perto de mim. Seus lábios se repuxam em um sorriso
carregado de maldade no exato momento em que o mesmo sorriso cresce em
meu rosto.
Resvalo minha boca contra a sua logo depois e sinto sua mão se emaranhar
em meus cabelos, fazendo uma leve força para a minha cabeça se inclinar para
trás.
— Gosto disso — ronrono, e o garoto desliza beijos pela minha têmpora e
pescoço. Sem mais delongas, foca sua atenção em meus lábios e o prova com
toda fome e vontade do mundo, a língua brincando de forma excitante e
provocativa com a minha.
Um grunhido irrompe da minha garganta quando sua outra mão adentra
minha salopete, agora apalpando a carne cheia da minha bunda com ela. Scott
quebra o beijo apenas para sorrir descaradamente e sugar para si todo o nosso
gosto salpicado em sua boca agora inchada e rosada. E em um minuto depois,
como se fosse a coisa mais normal do mundo, ele se afasta uns bons passos para
trás e puxa sua camiseta pela cabeça e a descarta na relva, o peito completamente
desnudo para mim. Observo cada uma das suas tatuagens bem feitas abraçando
seu corpo e tudo parece girar abaixo dos meus pés.
— O que pensa que está fazendo? — questiono, incerta. Minha respiração
sai tão desregulada que sinto uma ardência enorme no peito e a minha boca
secar.
Um fantasma de um sorriso atroz cobre e pincela o rosto dele nesse exato
momento, provavelmente fantasiando coisas absurdas com nós dois. Bem aqui.
— O que eu estou fazendo?! O que eu estou fazendo, gata? — Sua voz sai
carregada de sarcasmo e ele dá um passo para frente, o olhar sempre conectado
ao meu. — Eu estou fazendo apenas o que você me mandou. Estou apenas
pronto para lhe mostrar o meu lado mais canalha. Você quer ou não quer, ruiva?
Ah, Deus, como eu quero.
— Uhum — confirmo, manhosa, agora sendo a minha vez de dar mais um
passo em sua direção. — Mas só apenas se você me disser o que tem em mente.
— O que eu tenho em mente, diabinha, é que eu quero te foder bem aqui
— responde, como se não fosse nada. Ele soa tão depravado e tão fodidamente
gostoso que eu posso sentir a droga da minha calcinha se encharcar só com a
maneira sedutora que as palavras se desenrolam em sua língua. — Quero te foder
aqui, na relva, a céu aberto, com a adrenalina de saber que alguém pode chegar a
qualquer momento e nos pegar fazendo aquilo que sabemos fazer de melhor.
Abro a boca uma, duas, três vezes. Acho que é totalmente impossível
formular uma frase agora. Meu cérebro parece ter sido fundido e a única coisa
que sou capaz de fazer agora é enxugar as palmas das minhas mãos na barra da
salopete que uso. Mas, depois de algum tempo, reúno coragem e encurto
totalmente nossa distância, encurralando seu pescoço com meus pulsos. Sorrio
tão ladina quanto ele e sopro:
— Então me foda. Agora.
— Será um prazer, ruiva. Também literalmente falando.
Me separo novamente de John e solto uma risada, ele apenas tenta
esconder o seu sorriso balançando a cabeça e olhando para baixo, pronto para
desabotoar sua calça e ficar apenas de cueca. Quando seu volume generoso fica
totalmente visível contra o tecido da sua cueca boxer, me aproximo
sorrateiramente e cravo o incisivo no meu lábio inferior no exato momento em
que decido passear com minhas unhas pelo seu torso, arranhando-o de leve.
Chego próximo do seu umbigo e sinto sob as pontas dos meus dedos o
movimento de arrepio que a sua barriga faz.
— Sente-se — ordeno, entredentes. Seus olhos ficam semicerrados e uma
interrogação parece pairar acima de sua cabeça. — Sente-se agora, John Stone
Scott. Não é um pedido, é uma ordem.
O garoto parece começar a adorar meu tom autoritário, pois antes de
realmente fazer o que eu pedi — ou melhor, mandei — consegui enxergar o
brilho de lascívia que tomou conta dos seus glóbulos enquanto me olhou de
baixo para cima. E com ele já sentado em cima das ervas agora, decido fazer o
que fiz na festa da fraternidade; tirar minha roupa de forma lenta e sedutora. Tiro
as botas primeiro, escorrego as alças grossas da salopete pelos braços e a tiro por
completo pelas pernas, ficando apenas com a blusa de gola alta, calcinha e a
meia arrastão. Antes de continuar, olho uma última vez para John e o flagro com
o seu queixo quase atingindo o chão, os olhos completamente sobressaltados
enquanto passeiam por cada centímetro de pele exposta do meu corpo. Sorrio
internamente antes de prosseguir.
Jogo todo o meu cabelo para trás e, de uma forma que tento ser sexy, vou
prendendo-o em um coque desleixado, sem desviar em nenhum momento do
integrante dos The Hurricane Freedom. Circundo meus lábios com a língua e me
viro de costas apenas para que ele possa ter total acesso da vista, principalmente
quando decido me curvar propositalmente para retirar por completo a meia
arrastão. Escuto um arfado mesclado com um rosnado bem atrás de mim, e eu
tenho total certeza de ter sido reproduzido por conta da minha bunda coberta por
uma calcinha vermelha fio dental bem no seu campo de visão. Jogo a peça para o
lado e retorno para a minha posição de frente.
Mordo um sorriso e tiro a minha blusa, ficando apenas com o meu
conjunto de calcinha e sutiã em um tom vivo de vermelho sangue, que tenho
certeza que contrasta perfeitamente bem com o tom branco da minha pele. A
forma contemplativa e cheia de desejo que ele me encara nesse momento
confirma totalmente minha teoria.
Vou dando alguns passos em sua direção e quando finalmente me
aproximo, me agacho. Coloco minhas pernas em cada lado do seu corpo e sento-
me sem cerimônia em seu colo, afundando uma das minhas mãos atrás da sua
nuca, sentindo seus fios se embolarem em meus dedos. Sua ereção cutuca a
minha parte sensível sob a renda da calcinha e eu me contorço por inteira. Por
incrível que pareça, ou talvez por total ironia do destino, Like a Virgin da
Madonna começa a tocar no rádio que fora esquecido por nós. Ela soa bem
baixinho, lá no fundo, quase não sendo audível por estarmos um pouco longe de
onde estávamos antes. Volto minha atenção para John Scott quando sua mão
repousa em um lado do meu rosto, seu dedão escovando com carinho a maçã
dele.
— Você é a mulher mais gostosa que já vi — John ronrona, e eu sinto
várias pontadas em diversas partes do meu corpo. — A mais gostosa, a mais
gata, a mais maluca e a mais problemática de todas. Você, Pasha Stratford, é
simplesmente sensacional demais para ser real. Simplesmente sensacional
demais para mim e para qualquer outro cara. Às vezes, em momentos como esse,
me pergunto que porra foi que eu fiz pra ter sido agraciado com os seus beijos,
com o seu corpo, com a sua beleza, com os seus comentários maldosos e
excitantes e com tudo que se refere a você. Acho que não mereço.
— Eu sou realmente maravilhosa e tudo isso que você falou, mas também
não é para tanto, John Scott. Cadê aquele homem com o ego elevadíssimo que
todos conhecem? Ele pode até ser irritante, porém, não gosto quando ele
simplesmente some.
— Às vezes eu costumo ser pior que isso, ruiva. — Ele dá de ombros. —
Você não viu nada.
— E nem quero ver — afirmo, convicta. — Não quero que se coloque para
baixo. Não quero que pense que sou melhor ou boa demais para você porque,
como eu havia dito antes, sou cheia de defeitos e você sabe muito bem. Quero
que se sinta o máximo, porque dentre todos desta cidade, essa garota aqui que
você acha tão maravilhosa, escolheu você para desfrutar dela. Então
simplesmente desfrute. — No segundo seguinte após minha frase, empurro com
toda força o seu peito, fazendo-o deitar na relva. Curvo meu corpo para
conseguir ficar bem próxima do seu rosto, meu hálito quente lambendo seus
lábios. — Desfrute de mim hoje, amanhã e quando quiser. Quando eu estou com
você, Scott, não quero mais ninguém. E eu posso me odiar depois por confessar
isso, mas nunca senti o que eu sinto com você com nenhuma outra pessoa. Acho
que o que temos é único.
— Não se arrependa — sopra. — Sempre que quiser ser sincera, seja. Não
precisamos jogar o tempo todo, Pasha. Agora, por exemplo, estou com total
vontade de te dizer que faço das suas palavras as minhas. Acho que o que temos,
embora não saibamos o que seja, é realmente único. Também nunca senti nada
parecido antes.
— Que bom — é o que eu digo, antes de selar nossas bocas por breves
segundos. — Nada de jogos por enquanto, então.
John confirma com a cabeça e me beija mais uma vez, de uma forma
totalmente lenta e exploratória. Sinto meu coração dar uma pirueta e tudo rodar,
inclusive meu estômago, que parece abrigar centenas de borboletas irritantes.
Sinto uma das mãos de John descer pelas minhas costas, fixando-se no fecho do
meu sutiã.
A peça se afrouxa no meu corpo e eu me separo apenas para tirá-la de uma
vez. Os olhos de John logo recaem para meus seios fartos, e seus dedos gélidos e
apressados logo se direcionam para o vão deles, brincando de subir e descer por
ali, fazendo-me respirar com dificuldade só pela expectativa. No minuto
seguinte, sua mão se enche com o meu seio direito e a sua boca logo desce para
abocanhar o esquerdo, a língua brincando de forma precisa com o bico já duro.
Estremeço e gemo, o som se alastrando por todo o perímetro.
Fecho os olhos e me entrego totalmente ao momento, sem me importar que
estamos em um lugar inapropriado e que, caso nossos amigos voltem antes da
hora, nos peguem no flagra em uma situação comprometedora. Acho que a
adrenalina de estarmos fazendo algo perigoso torna tudo ainda mais gostoso,
pois me sinto ainda mais tentada a continuar. E então, quando abro os olhos e
solto uma arfada, sinto uma mordiscada na região, assim como sinto seu dedão
beliscar o outro. Depois de me torturar, o garoto volta para a sua posição e
apruma os ombros. Sua língua salta para fora e ele lambe os lábios, a intensidade
oceânica de seus olhos me gelando e me queimando ao mesmo tempo,
contrariando todas as leis básicas do universo.
— Você quer mesmo continuar isso aqui? Podemos ir para o meu trailer,
seria maravilhoso da mesma forma e... — Cubro sua boca com a mão ao impedi-
lo de prosseguir. Nego com a cabeça e sorrio, perversa. — Entendi, entendi. —
Sua voz sai abafada contra a minha palma, então decido tirá-la pouco a pouco,
reconhecendo o sorriso que se forma em seu rosto, pois ele é exatamente igual ao
meu.
John Scott entende o meu desejo através dos meus atos e volta a me beijar,
muito mais intenso e fervoroso dessa vez. Sua boca se molda tão perfeitamente
na minha que parece coisa de outro mundo. Aproveito para morder o seu lábio
inferior, também o capturando entre meus dentes. John ronrona e chama meu
nome de um modo sôfrego, o que me faz sorrir involuntariamente. Fricciono
nossas intimidades ao me remexer apenas para torturá-lo mais um pouco.
— Eu preciso estar dentro de você, garota — sussurra ao refrear meus
movimentos. — Preciso estar dentro de você agora.
— E o que você está esperando? — devolvo, tão necessitada disso quanto
ele.
Não espero uma resposta da sua parte. Apenas me afasto um pouco e o
deixo retirar sua cueca, ficando completamente nu para mim. Sem que Scott
peça, já imaginando em que lugar esteja, engatinho até sua calça e procuro sua
carteira nos bolsos, a fim de encontrar o preservativo. Quando encontro a
embalagem laminada, engatinho de volta até o loiro e o entrego, ainda sorrindo.
Não demora para que ele envolva seu pau e puxe-me de volta para seu colo,
colocando minha calcinha para o lado e adentrando minha entrada de modo
devagar com seu membro rígido e firme.
Meus músculos internos o envolvem e eu me remexo lentamente para cima
e para baixo, experimentando aos poucos a sensação de tê-lo me preenchendo
por inteira. Reviro meus glóbulos com o calor estarrecedor que começo a sentir e
John segura cada lado das minhas nádegas, incentivando-me a ir mais rápido.
Começo a cavalgar da forma que ele gostaria e os meus seios balançam,
gotículas de suor dançando por entre eles. Espalmo minhas mãos no peito de aço
de John e o escuto murmurar, xingar e revirar os olhos tanto quanto eu enquanto
eu o domo e tomo as rédeas da situação. Sinto tapas sendo desferidos em minha
bunda e, mais uma vez, sua boca envolver meu mamilo. Ele suga todo meu gosto
e eu solto um gritinho estridente. Uma mão de John voa para meus lábios, a fim
de abafar meus sons ou até mesmo me calar, e eu grunho, querendo me libertar e
colocar para fora todos os sentimentos acumulados dentro do meu peito, que bate
completamente enlouquecido agora. O dedão de John acaba escorregando para a
minha boca nesse ínterim, e eu circundo a ponta com a minha língua, logo depois
friccionando o lábio superior e inferior na região, sugando o gosto para mim de
forma atiçadora. Com a velocidade constante que meu corpo segue agora, meus
fios se desprendem do coque e caem como cascatas sobre meus ombros.
Já Scott, como esperado, solta um palavrão e as sílabas do meu nome se
arrastam de forma assustadoramente agressiva e um tanto quanto sexy por entre
seus lábios, que agora se encontram presos por seus dentes incisivos.
— Gostosa — rosna para mim, e eu me sinto tentada a subir e descer ainda
mais rápido, engolindo-o quase por completo. Ele solta várias lufadas de ar antes
de retirar a mão da minha boca, agora direcionando-a para meus quadris
juntamente com a outra, que logo fazem força para que eu acalme ou
provavelmente pare meus movimentos. Com o peito subindo e descendo como se
eu tivesse corrido uma baita maratona, uno as sobrancelhas e esquadrinho seu
rosto em busca de respostas. — Acho que eu estou a fim de uma outra posição,
gata.
E, mais uma vez, como se eu fosse a droga de uma pluma, o garoto gira
comigo e troca nossas posições, a relva agora fazendo cócegas na pele das
minhas costas. Apesar disso, não me importo. Não consigo me importar com
nada a não ser John, que aperta minhas coxas e se posiciona entre minhas pernas,
arremetendo ainda mais fundo dessa vez. Enquanto nossos gemidos se mesclam
pelo ar, o farfalhar das árvores ressoa tanto quanto a coruja e o rádio no fundo.
E, ainda por cima, como se o cenário não fosse diferenciado demais, se eu
fixar os glóbulos um pouco acima, consigo ver com nitidez a lua vigiando nossos
corpos tornando-se um só.
E eu realmente faço isso.
Olho para a lua no exato momento em que John levanta uma das minhas
pernas, como se quisesse e necessitasse sentir mais de mim. As estrelas
pincelando o céu piscam infinitas vezes e eu, com a minha boca entreaberta,
solto um gemido de prazer misturado com um de fascínio ao observá-las. Mas
não tenho tempo de fazer mais isso por muito tempo, pois John Scott curva seu
corpo e espalma os braços em cada lado da minha cabeça, seus lábios capturando
os meus mais uma vez. Devolvo o beijo, ergo meus quadris ainda mais, ele
estoca mais quatro ou cinco vezes e, simples assim, como se estivéssemos
mesmo conectados todo o tempo, chegamos ao ápice juntos. Fogos de artifício
explodem em minha visão e eu sinto todo o meu corpo amolecer sob o seu,
completamente rendido ao cansaço, ao prazer e a todos os sentimentos
descobertos e não descobertos dentro de mim.
John sai do foco da minha boca apenas para recuperar o ar, inalando toda a
quantidade de oxigênio possível para seus pulmões que, se estiverem parecidos
com o meu, estão queimando como um incêndio generalizado. Quando parece
recuperar pelo menos um pouco, retira as gotas de suor da sua testa com as
costas da mão e salpica beijos no meu queixo, nas minhas bochechas, testa e
pontinha do nariz, que me faz contorcê-la em uma careta acompanhada de um
sorrisinho retorcendo o canto dos meus lábios.
— Acho que não existe um safado mais romântico do que você —
menciono, tocada pelo ato singelo, e ele concentra sua atenção em tirar os fios
suados do meu rosto, deixando-o livre para que ele possa contemplá-lo. —
Agora eu descobri o seu truque. Deve ser por isso que todas as garotas do mundo
vão parar na sua cama.
Ele solta uma risadinha sacana.
— Que todas as garotas do mundo me perdoem, mas elas que se lasquem.
— Scott soa brincalhão e desliza os dedos pelo meu braço até alcançar minha
mão, onde ele a entrelaça com a sua. — Eu só quero saber agora da minha garota
do Alssca. — Tanto suas palavras quanto o seu sorriso parecem flechas, pois elas
acertam um alvo certeiro: o meu peito. Até abro a boca para tentar formular
alguma frase ou apenas uma palavra, porém o garoto tatuado sai na frente ao
dizer: — Por falar em minha cama, diabinha, será que você aguentaria um
segundo round? — Suas sobrancelhas se arqueiam e dançam sugestivamente, os
glóbulos injetados de súplica banhados com uma pitada enlouquecedora de
lascívia ao me observar.
Solto uma gargalhada e confirmo.
Acho que eu seria capaz de aguentar qualquer coisa se ele me pedisse com
esse sorriso.
O segundo round na cama do integrante dos The Hurricane Freedom
foi ainda melhor do que o nosso sexo a céu aberto, no meio da relva do
rancho. Nossos corpos pareciam seguir uma coreografia ritmada, nossos
corações pareciam bater na mesma batida e tudo parecia confabular para que
pudéssemos sentir a variedade de fenômenos resultante do fluxo de carga
elétrica que se alastrava através dos nossos toques completamente
carregados. Tudo girava, queimava e explodia em partículas de desejo,
prazer e uma necessidade absurda e incontrolável, quase anormal demais
para dois seres humanos, afinal, quanto mais provávamos um do outro, mais
queríamos consumir até a última gota, até não restar mais nada de
autocontrole e sobriedade.
E acho que somos bons demais nisso, pois não me sinto nem um pouco
no controle agora, muito menos sóbria. Meu corpo está mole e parece que eu
tomei um porre daqueles. Acho que me embebedei somente ao perscrutar as
írises intensas e caóticas de John Scott esta noite.
Um longo fluxo de ar escapa por entre meus lábios e eu me remexo na
cama, puxando o fino lençol branco até cobrir parcialmente meus seios.
Levo meus olhos até John, que está fumando na janela do seu trailer, bem ao
lado da cama.
Seu corpo está da mesma forma que veio ao mundo e ele parece não
estar nem aí para isso, completamente à vontade com os meus olhos
desbravando cada centímetro de seus músculos firmes. Um dos seus braços
está apoiado no outro, flexionado, o que aumenta ainda mais seus bíceps já
torneados. Os dedos tatuados têm o cigarro pendido entre eles, a fumaça
acinzentada escapulindo em espiral, rondando sua figura viril. O cabelo loiro
platinado está uma verdadeira bagunça ao despontar para todos os lados,
alguns fios até caem sobre seus olhos azuis bem clarinhos com bordas
prateadas.
Acho que ele sente meu olhar o perfurando feito agulhas, pois sua
cabeça vira sobre os ombros e suas írises logo buscam pelas minhas. Quando
me encara e arrebita o nariz, provavelmente satisfeito pelo meu leve
escrutínio, logo seus lábios se repuxam para cima em um sorriso safado e
galanteador, a sua famosa marca registrada.
— Gosta do que vê? — pergunta de forma arrastada, levando o cigarro
aos lábios para dar uma tragada. Ele joga a fumaça pela boca logo depois e
ela flutua até se dissipar pelo ambiente.
Reviro os olhos e estalo a língua no céu da boca.
— Você sabe que sim, Scott.
O canalha solta uma risadinha nasalar quando me escuta e joga a
bituca no seu cinzeiro, em cima da cômoda ao lado da cama. Suas pernas se
apoiam no colchão macio e ele engatinha até mim, prendendo meu corpo
contra o seu. A sua coluna logo se curva e as suas mãos se direcionam para
cada lado da minha cabeça, o peso todo apoiado em seus braços. Não desvio
da imensidão oceânica nem por um segundo, e ele fita o meu castanho avelã
de volta com ainda mais energia.
— Não sei que feitiço foi que você fez, diabinha... — sopra em meu
ouvido, aproveitando para lamber o lóbulo. — Mas estou completamente
viciado em você. Acho que vou comprar algemas e te prender em minha
cama para sempre.
Dou uma risadinha.
— Esse cenário de Misery eu passo. Estou muitíssimo satisfeita apenas
na ficção criada pelo mestre King — respondo, e ele provavelmente não
entende nada do que eu falo, pois suas feições mudam e as sobrancelhas se
unem. — King. Stephen King. Pelo amor de Deus, John Scott, você não
conhece o mestre do terror?
Ele faz que não com a cabeça.
— E Carrie, A estranha, você conhece? — Tento uma outra vez, já
que esse é o nome mais conhecido dele por ter sido adaptado para um filme
de sucesso. O rosto do garoto vai se iluminando e ele parece finalmente
entender de quem estou falando. — Pois então, esse filme é uma adaptação
do primeiro livro publicado do King. E Misery, que eu havia mencionado, é
um livro dele que também foi adaptado para os cinemas. — Passo as mãos
pelo seu cabelo e os coloco todo para trás, penteando com os dedos enquanto
discorro sobre o assunto que tanto amo. — É sobre uma história louca de um
escritor renomado e uma fã psicopata que não aceita o fim que a sua
personagem preferida levará. Tem algemas, armas e essas coisas loucas de
uma boa história de terror e suspense.
Scott balança a cabeça para cima e para baixo, como se quisesse me
mostrar que está escutando e entendendo tudo. Mas, olhando bem para o seu
rosto agora, posso ver o quanto está desinteressado sobre os livros famosos
de Stephen King e suas adaptações tão famosas quanto.
Ok. Acho que me excedi um pouco. Mas o que posso fazer se sempre
me empolgo quando o assunto se refere à livros ou escritores que sou muito
fã?
— Desculpa pelo monólogo — peço e mordo um sorriso. — Eu
sempre me empolgo demais e nunca sei a hora de parar.
John beija minha testa e a ponta do meu nariz.
— Não precisa pedir desculpa, gata. — O loiro agora sai de cima de
mim e rola na cama para ficar próximo, ficando de lado para permanecer me
olhando nos olhos. — Gosto de ouvir você falar, independentemente do que
seja o assunto. Gosto de descobrir as camadas que compõem Pasha Stratford
e essa, a camada leitora e extremamente inteligente, me agrada demais. Acho
que acabo de ficar ainda mais encantado por você.
Meu coração bobo se agita com essa sua pequena confissão e eu
coloco a mão sobre o peito, como se fosse uma tentativa — inútil, claro —
de fazer com que ele se acalme. Tento contornar o assunto somente para não
demonstrar como fiquei afetada, usando do meu melhor tom para dizer:
— Você sabe que eu ler livros não me faz superior a outras mulheres
que não exercem essa prática, ou até mesmo sabe que não me faz ser mais
culta e mais inteligente do que elas, certo? — indago ao me levantar e
colocar minhas pernas em posição de yoga, o lençol ainda colado em meu
corpo. Ele também se senta na mesma posição, e não sei que merda foi que
eu falei, mas John Scott parece ganhar um brilho diferente nos olhos. — É
sério, não sou mesmo. Nós, leitores, lemos por amor. Lemos para distrair a
mente, para sonhar, para amar, para embarcar em novos universos e, nunca,
em hipótese alguma, para se sentir numa hierarquia onde somos as mais
fodas do mundo por causa disso.
Mulheres são fodas com ou sem leituras, essa é a verdade.
Ao contrário do que eu imaginei que aconteceria, Scott sorri para mim
de uma forma diferente e puxa a minha mão para se juntar com a sua, onde
ele fica fazendo um carinho singelo nos nós. Sua cabeça está levemente
abaixada e seus olhos seguem concentrados nas nossas mãos grudadas cerca
de um minuto inteiro. Mas, depois que esse tempo passa, sua cabeça volta a
se erguer e seus glóbulos ficam presos nos meus e um meio sorriso é
direcionado a mim nesse meio tempo.
— Não me encantei mais por você só por ser leitora — ele diz, e eu
mordo a carne interior da minha bochecha. — Me encantei mais por ver o
brilho que seus olhos ganharam quando estava falando sobre o assunto. Suas
írises se acenderam, as ruguinhas da sua testa simplesmente desapareceram e
o cenário pareceu totalmente seu. Pareceu algo pertencente demais a você,
como se o hábito da leitura fosse algo seu por natureza, algo que nasceu e
floresceu somente dentro do seu peito. É bonito demais de ver, Stratford.
Percebi isso desde o dia que fomos ver as estrelas, quando me falou que lia
para as crianças na mesma situação da sua irmã.
Oh.
Por essa eu realmente não estava esperando.
Acho que eu não fazia a mínima noção que o meu amor por livros
ficava tão escancarado assim.
A real é que eu leio desde que me entendo por gente. Quando eu
aprendi a ler, de fato, não havia uma palavra escrita em qualquer lugar que
passasse por mim despercebida. Eu fazia questão de parar qualquer coisa que
eu estivesse fazendo, olhar aquelas letras e juntá-las como uma espécie de
quebra-cabeça fascinante demais. Lembro-me que isso era, definitivamente,
a minha brincadeira favorita quando criança. Deve ter sido por isso que logo
passei a ler as revistas de moda da minha mãe, mudando a rota tempos
depois para me concentrar em histórias em quadrinhos e, consequentemente,
me aventurar em romances quando já estava maior.
— Não sabia que era algo tão notório assim — admito, meio
envergonhada por ainda estar absorvendo sua fala de poucos minutos atrás.
— E muito menos sabia que você seria capaz de perceber. Ninguém nunca
notou antes. Sempre cresci escutando que isso era bobagem ou uma coisa
passageira que, uma hora ou outra, eu acabaria abandonando.
John morde o lábio inferior assim que termino de falar e volta a olhar
para as nossas mãos, que permanecem enlaçadas. Ele as aperta com mais
força e volta a me olhar.
— Eu sou capaz de perceber qualquer coisa quando se trata de você,
diabinha. — admite, e eu solto uma risadinha baixa, como uma daquelas
garotas abobadas.
— Eu sei que eu posso falar muita besteira de vez em quando e
ninguém me levar a sério, mas, pelo menos uma única vez, preste atenção no
que eu vou dizer. — Sua mão solta a minha apenas para colocar meu cabelo
atrás da minha orelha, logo depois deslizando os dedos para o meu queixo,
onde eles ficam em formato de pinça. — Seu amor por livros não é
bobagem. Nada do que você sinta, do que você goste ou do que você queira
é bobagem, Pasha. E se você tem mesmo vontade de trabalhar com isso
como havia me dito, então o que está esperando para realizar esse seu sonho?
O que está esperando para espalhar conhecimento e dominar a porra do
mundo?
Meu coração troveja e eu sinto a minha boca secar, assim como sinto
meus lábios tremelicarem. Desvio do seu olhar e encaro um ponto aleatório
em seu trailer, sem entender direito o turbilhão de sentimentos que me
invadem. Estou feliz com o seu incentivo — já que nunca ouvi algo parecido
antes —, verdadeiramente emocionada e, por incrível que pareça, triste e
confusa. Estou triste e confusa porque as coisas não são tão fáceis assim
como ele faz parecer ser. Não posso simplesmente fazer o que eu sonho e
dominar a porra do mundo espalhando conhecimento.
Meus pais já não me apoiam direito, sabendo disso é que eles não vão
nem querer olhar na minha cara mais.
Para eles, para Mila e Joseph Stratford, nada de curso superior para a
sua filha, muito menos um que faça com que eles sejam inferiorizados
perante seus amigos de classe alta. Meus pais, que deveriam me apoiar
independentemente de qualquer coisa, não querem que eu “perca” meu
tempo estudando para virar professora ou para que eu trabalhe com algo
parecido. Para eles, o meu preparo para futuramente herdar a empresa deles
já é o bastante. Ou olhe lá. Tenho minhas dúvidas que eles se martirizam
todos os dias por não ter tido um filho homem como primogênito para seguir
com o legado da família.
Inferno de sociedade machista do cacete.
Estamos nos anos 90, mais especificamente em 1994, e ainda a
sociedade custa a aceitar que uma mulher pode ser e estar onde ela quiser.
Mulheres podem, sim, estar comandando empresas, criando impérios,
desbravando o mundo, fazendo seu nome, ou simplesmente estar em
universidades, quietas, estudando, querendo mudar o mundo de alguma
forma e se empenhando bastante para isso.
Mulheres são donas de si e têm a total capacidade de decidir seu
próprio futuro.
Pena que, não importa o que eu faça ou diga, meus pais nunca irão
entender isso.
— As coisas não são tão simples como parecem ser, Scott —
menciono, a voz embargada. Limpo a garganta e a massa de saliva desce
como uma bola de concreto por entre ela. Finalmente tomo coragem de
encarar seus olhos. — Eu tenho uma vida traçada no Alasca esperando por
mim. Não queria mencionar isso, principalmente agora, mas eu não vou ficar
aqui para sempre. Em algum momento, seja cedo ou tarde, terei que voltar
para o que os meus pais decidiram para mim.
Enxergo o exato momento em que suas feições se contorcem em uma
careta de desgosto misturado com incredulidade, como se fosse surreal
demais compreender minha fala.
— Mas isso não é justo, Stratford. Não é justo com você, com seus
planos e com seus sonhos — ele grunhe, visivelmente inconformado. Suas
mãos voam para seu cabelo e ele puxa os fios para trás, consternado.
Remexo a cabeça de um lado para o outro, implicitamente o mandando
parar. Engatinho até ficar em seu colo e afundo meu rosto na curvatura do
seu peito, seus braços me envolvendo perfeitamente.
— A vida é injusta, John — sopro ao sentir seu queixo se repousar
bem no topo da minha cabeça. — Ela costuma ser assim de vez em quando
comigo. E eu já aceitei. Não se tem muito mais o que fazer, acredite em mim
quando digo que já tentei de tudo.
— Queria poder fazer alguma coisa, ruiva. Juro que se estivesse ao
meu alcance, mudaria a translação da terra, voltaria no tempo, transformaria
nossa realidade, só para que você pudesse realizar todos os sonhos guardados
a sete chaves em seu coração — confidencia. Me agarro ainda mais a ele,
como se quisesse mostrar através dos meus atos que acredito em suas
palavras. — E por favor, garota, nunca mais mencione sobre voltar para o
Alasca novamente. Não quero ter que pensar nisso tão cedo.
Tombo a cabeça para trás e gargalho.
— Vai demorar — digo, brincalhona, embora não tenha tanta firmeza
nisso. Me remexo em seu colo até ficar sentada entre suas pernas, pondo-me
de joelhos. Seguro cada lado do seu rosto com as minhas mãos, e as suas se
concentram em minha cintura. Sorrio antes de sussurrar: — Agora eu estou
aqui. E não vou a lugar nenhum.
— E eu também não deixaria.
É o que John Scott fala antes de eu pressionar meus lábios nos seus. E
aquelas borboletas, que eu havia mencionado antes, reaparecem e levantam
voo todas de uma vez bem na boca do meu estômago quando sinto seu gosto
se esparramar bem na ponta da minha língua.
Céus.
Acho que quero morar nesse beijo para sempre.
Pasha foi embora ontem pouco mais das onze horas, quando nossos
amigos já estavam voltando para casa. De início, quando eles flagraram a ruiva
indo embora após nossa conversa e mais algumas trocas de carícias, não
disseram nada, apenas ficaram me encarando com aquelas caras de que sabiam
tudo o que estava rolando entre nós. E, por ingenuidade da minha parte, quando
eu pensei que eles fossem simplesmente esquecer do ocorrido ou pelo menos
fingir que aquilo era uma cena corriqueira demais, todos se juntaram para ir até
meu trailer me bombardear de perguntas, insinuações descabidas e zoações sem
fim, só as cessando quando estavam cansados demais para continuarem rindo da
porcaria da minha cara.

E isso, quando decidiram ir embora, já passava das três da manhã.

Resultado: John Scott passou quatro horas ininterruptas sendo


escorraçado pelos seus melhores amigos.

— Você fez um inferno na minha vida quando eu comecei a sair com a


Barbie — Devin disse ao soar totalmente debochado, enquanto estava deitado
em minha cama horas atrás —, agora aceite meu troco. Só não posso retribuir
com perfeição porque, venhamos e convenhamos, a ruiva já deve fazer isso por
mim.

Balanço a cabeça de um lado para o outro na tentativa de afastar as


memórias recentes e o sorriso querendo brotar em meus lábios.

Eu só posso ser uma piada mesmo.

Agora, por falar em uma certa ruiva, não consegui pregar os olhos por
conta dela. Passei a noite toda em claro, rolando de uma ponta da cama para a
outra, relembrando nossos momentos em um looping. Além de ter estado com
uma certa falta de ar ao ficar relembrando seu cheiro, seu gosto e a sensação do
seu corpo se contorcendo em cima e embaixo de mim, me senti ainda mais
claustrofóbico com o fato de não ter conseguido simplesmente deixar para lá a
conversa importante que tivemos.

Não consegui simplesmente engolir que Pasha Stratford já tem um futuro


do qual ela não quer fazer parte, traçado.

Pasha Stratford é o tipo de pessoa que precisa fazer o que sonha. Ela não é
nenhum tipo de bicho enjaulado em um zoológico para simplesmente ser
privada de fazer o que ama, de fazer o que nasceu para fazer. Ela é aquela brisa
que sopra em um fim de tarde; serena, pacífica e boa. Mas também pode ser
aquela ventania forte e impetuosa, capaz de destruir tudo por onde passa. E você
pode até não saber como ela chegará, pode até não saber em qual estágio ela vai
passar por sua vida, mas sabe que ela simplesmente vai, porque é de sua
natureza se fazer presente de forma marcante.

E Pasha, assim como o vento, não tem como ser mantida presa. É algo
impossível.

Por causa disso, de uma forma que eu não entendo — mesmo que eu tente
muito compreender toda a avalanche de emoções e sentimentos dentro de mim
—, após alguns dias desde a nossa conversa, estou parado em frente à
Biblioteca Pública de Hellaware, que fica nos arredores do centro da cidade. A
fachada ornamentada por tijolos laranjas propositalmente desbotados parece me
encarar na mesma intensidade em que eu a encaro de volta. Deslizo a bola de
saliva por entre a minha garganta e, ainda um pouco cauteloso com a minha
ideia, que pode ser uma tremenda maluquice, decido dar alguns passos em
direção a entrada. Suspirando e expirando uma porção de vezes, finalmente
decido subir os poucos degraus e passar pelas grandes e ornamentadas portas da
entrada.

É a primeira vez que piso os pés aqui. E não por nunca ter me interessado
por livros ou algo do tipo, afinal sempre fui apaixonado por livros que falam
sobre o universo — mas também apenas por esses, porque consumir romances
ou coisas do gênero nunca foi o meu forte —, e sim porque nunca soube até
então que ele havia voltado a funcionar. Lembro de ouvir falar sobre a
biblioteca da cidade quando ainda era criança, mas sempre cresci sabendo que o
lugar havia sido fechado e abandonado por conta do descaso dos antigos
prefeitos. Agora, no entanto, com esse atual, descobri que a reabertura dela foi
um dos primeiros projetos que ele se empenhou esse ano. Parece que a reforma
durou alguns meses e a nova atração passou a funcionar regulamente não tem
nem duas semanas.

Se você vê de fora, a Biblioteca Pública de Hellaware não parece tão


extensa. Mas, assim que adentro o lugar, me surpreendo com o quão espaçoso,
bonito e aconchegante é. Os tons do ambiente são uma mistura de marrom,
branco e cinza, principalmente as mesas e as poltronas espalhadas pelo assoalho
laminado de madeira. As enormes estantes vão de uma ponta até a outra, do
chão até o teto e todas elas estão enchidas por livros de todos os tipos, as
lombadas de todos eles brilhando conforme a luz das grandes janelas de vidro
reluz nos objetos bem dispersos em cada prateleira ao meu redor.

Meus lábios automaticamente se repuxam para cima e um sorrisinho


desabrocha em minha boca quando penso na expressão do rosto da ruiva
quando eu lhe contar o que vim aprontar aqui esta tarde.

E é claro que tem dedo de Daisy Flinch nisso, pois quando foi para o meu
trailer, provavelmente já ciente que eu precisava desabafar com algo, não pensei
duas vezes em pedir a sua ajuda com as coisas que estavam fazendo os meus
neurônios — que já são poucos — fritarem dentro da minha cabeça. Não lhe
contei o dilema de Pasha e nem as coisas pessoais que compartilhou comigo
naquela noite, porque, como eu já disse, foram coisas pessoais, coisas
compartilhadas apenas comigo, então não havia necessidade nenhuma de eu
quebrar o que estávamos construindo contando seus problemas e suas
dificuldades para a minha amiga, mesmo que eu saiba que ela é de confiança.

Apenas contornei o ponto disso tudo para Flinch, fui breve, sucinto e pedi
a ajuda da garota de cabelos vermelhos para tentar ajudar também a minha
garota, que ama livros incondicionalmente e que eu gostaria muito de fazer algo
para surpreendê-la em relação a isso, já que, sei lá, queria suprir pelo menos um
pouquinho dessa vontade absurda que ela sente de trabalhar ou estudar com
aquilo que ama.

Então foi aí que ela me deu uma ideia maravilhosa.

Bom, ela me pareceu muito maravilhosa a primeiro momento, já que a


Biblioteca Pública tem um lugar reservado apenas para crianças, que conta com
algumas mulheres contratadas e voluntárias para ler e cuidar delas enquanto
seus pais estão trabalhando ou precisam sair por algum tempo e não tem com
quem deixá-las. Tudo é muito organizado, o salário é ótimo e para quem gosta,
como é o caso de Pasha, todo o cenário infantil e encantador na área da
biblioteca direcionada apenas para as crianças é como se fosse o paraíso na
terra.

Daisy me contou que eles estavam precisando de funcionárias para essa


área, e que só não tentou a sorte por não ter muita paciência com pirralhos,
como ela mesma chamou. Ela não sabia se ainda estavam contratando ou se a
vaga já havia sido preenchida, mas me convenceu a tentar ver como estavam as
coisas por aqui. Segundo Daisy, era para eu falar com a dona Emma, uma
espécie de coordenadora dessa área da biblioteca. Nas palavras da minha amiga,
a senhora é uma fofa, simpática e que com certeza vai fazer tudo que eu pedir
quando encarar meus olhos azuis e cair no encanto do meu sorriso sagaz.

É uma probabilidade bem alta, a propósito. Geralmente costumo tudo o


que eu quero muito facilmente, mas quando eu estou empenhado, minha nossa,
as coisas simplesmente caem no meu colo sem esforço algum.

Talvez sejam mesmo os meus olhos ou o meu sorriso.

Então afundo as mãos dentro do bolso da minha calça e arrasto meus


passos até a área infantil, que está completamente silenciosa, como se nem
estivesse rodeada por pestinhas com idades de cinco a dez anos, por aí. Todos
estão sentados em uma roda lendo algum livro que desconheço, enquanto uma
senhora de pouco mais de sessenta anos está em pé no meio deles, admirada
com tamanha concentração. Dou duas batidinhas leves na porta que se encontra
escancarada apenas para anunciar minha presença, e a única atenção que recebo
é da mulher que suponho ser Emma. Abro o meu melhor sorriso e ela vem até
mim, após dar uma última conferida nos garotos que, por incrível que pareça,
seguem quietos e entretidos com a narrativa que se desenrola através das
páginas presas em suas pequenas mãos.

— Olá! Emma, certo? — indago, de forma totalmente gentil e


galanteadora, e ela assente ao cruzar os braços em frente ao peito. A senhora
usa uma espécie de avental com o nome do lugar sobre suas roupas simples,
algumas pequenas marcas de tinta sendo evidenciadas em algumas partes, o que
eu presumo ser fruto de alguma arte das crianças. Seus cabelos são grisalhos,
estão firmes no topo da sua cabeça, e seus olhos são pequenos, pretos e
possuem pequenas rugas os adornando, tornando-a adorável. Tudo se torna
ainda melhor quando um meio sorriso cobre e pincela seus lábios finos. — Eu
não sei como começar isso aqui... Talvez eu até pareça um completo maluco ou
idiota agora, mas eu gostaria muito de saber se a senhora poderia, por todos os
mestres da literatura, ajudar um pobre garoto desesperado para fazer uma garota
feliz?

Eu não sei o que falo de extraordinário, afinal, pareço patético, mas a


dona Emma consegue sorrir ainda mais com a minha fala. Um daqueles largos
sorrisos que mostra todos os dentes e que parece prestes a partir o rosto da
pessoa em dois aparece em seu rosto redondo.

— Ah, meu querido... — Emma suspira, como uma daquelas adolescentes


bobas e apaixonadas. — Eu faço tudo o que estiver ao meu alcance para poder
ficar encarando esses seus belos olhos por mais de dois minutos.

Sorrio tanto quanto ela.

Não é que Daisy Flinch estava certa?

Acho que dona Emma, essa fofa senhora, deve ter algum tipo de tara por
olhos claros.
— Ótimo — digo ao dar um passo em sua direção. — Olhe para eles o
quanto quiser.

E ela olha.

Enquanto conversamos e acertamos tudo, Emma não deixa de admirar o


azul dos meus olhos, assim como não deixa de falar do meu sorriso e de como a
garota que o tem é a mais sortuda do mundo.

A primeira parte do meu plano havia dado certo. Na verdade, havia dado
muito certo. Tudo havia saído melhor do que o planejado e eu me encontrava
fodidamente feliz, realizado e com uma imensa vontade de gritar para Pasha
Stratford e para todo o mundo o que eu havia conseguido fazer por ela. O que
eu havia conseguido para que, pelo menos um pouco, a minha diabinha
conseguisse desfrutar de algo parecido com o seu maior sonho.

Não sei que necessidade é essa que surgiu dentro de mim, não sei que
sensação estarrecedora é essa no meu peito, muito menos sei o que causa
tamanha arritmia em meu coração quando se trata desse assunto e de tudo que
envolve a felicidade de Stratford, mas a única coisa que eu sabia desde o início
é que eu não iria parar. Eu não iria ficar de braços cruzados. Eu simplesmente
não conseguiria. Não conseguiria me sentir impotente, fraco demais ou até
mesmo estúpido por pelo menos não tentar mudar a realidade. Por pelo menos
não tentar fazer algo para acalentar o seu presente antes de ela embarcar em seu
futuro.

E, embora eu não tenha como fazer algo contra ele, que aparentemente já
se encontra traçado, pelo menos ainda tenho uma parcela de chance de fazer o
agora acontecer.

Inflo o ar nas bochechas e desço da minha Harley-Davidson, penteando


para trás meus fios platinados, que se encontram uma bagunça por conta do
capacete. Aproveito para deixá-lo no banco da minha moto por alguns minutos,
enquanto me direciono para a casa que me remete a memórias incríveis demais
para não explodirem em minha mente conforme atravesso o jardim e o caminho
de pedrinhas, ficando cara a cara com a porta.

Dou três batidas na madeira com o punho fechado e dou apenas um passo
para trás, aguardando.

Poucos minutos depois, escuto o som de chaves tilintando bem perto da


fechadura e, no segundo seguinte, como se estivesse a minha espera, a porta é
aberta e revela para mim a figura masculina com quem eu pretendo ter uma
conversa extremamente séria.

— Olá, Sr. Wilson — o cumprimento, e ele me esquadrinha com as


sobrancelhas escuras totalmente arqueadas, como se estivesse se perguntando o
que diabos estou fazendo em sua casa. Ou até mesmo se perguntando como sei
onde fica a sua casa. Melhor que ele nem sonhe com uma coisa dessas. — Estou
aqui para ter uma conversa longa e extremamente séria sobre a sua sobrinha.
Sr. Wilson e Rosalinda me deixaram encarregada de tomar conta do
Fast Rocket hoje, já que ambos decidiram — do nada — tirar um tempo de
folga para curtirem um pouco a casa a sós. Eu, que não tinha como
contestar, apenas acatei a ideia e estou dando meu máximo para fazer o meu
trabalho e supervisionar o das outras garotas. E se eu não tivesse Georgina e
Barbie para me ajudar durante as horas que se seguiram aqui dentro,
provavelmente teria levado meus tios a falência ou levado essa lanchonete
abaixo.
Claro que o movimento de pessoas entrando e saindo
catastroficamente por aquela porta de vidro tinha que ser justamente no meu
dia.
Solto um muxoxo assim que me sento no estofado, aproveitando do
tempo livre para colocar no lugar todos os meus fios ruivos que decidiram
pular para fora do meu coque. Quando estou prendendo os últimos fios,
meus glóbulos capturam a garota de cabelos dourados, que sempre parece
radiante, arrastar os passos até mim de uma forma saltitante e enérgica.
Estou só o caco e Barbie St. Claire parece extremamente revigorada.
Como isso pode ser possível?
— Acabei de atender o último cliente — ela menciona, o sorriso
meigo pincelando seu rosto coberto por uma fina película de suor. —
Estamos prontas para fechar e ir para casa, ruiva. Já pode dar a notícia para
seu tio que faturamos horrores para ele hoje.
Solto uma risada.
— E eu devo mencionar isso antes ou depois de dizer que quase
coloquei tudo a perder?
Por rabo de olho, vejo Georgina se aproximar e sentar ao meu lado.
Seus cabelos loiros estão presos em um rabo de cavalo e ela se encontra já
livre do uniforme cor verde-água, agora vestida com um short jeans de
cintura alta e uma blusa regata branca, que está amarrada na cintura e que
deixa sua barriga bronzeada à mostra. Quando me fita com seus olhos
verdes-escuros pincelados por um delineado bem feito, já sinto que
palpitará sobre a minha frase de segundos atrás.
— Você se cobra demais, sabia? — Minha amiga cruza os braços em
frente ao peito e encosta as costas no estofado, sem parar de me encarar
com as suas sobrancelhas arqueadas. Eu apenas a encaro de volta. — Você
não tem nenhuma obrigação de tomar conta da lanchonete, sua função é ser
apenas a garçonete, e mesmo assim você não pensou duas vezes em ajudar
seus tios e se empenhar bastante em uma função que você não está tão apta
assim. Ou seja, ao invés de reclamar, agradeça por ter feito o que fez hoje e,
claro, com toda certeza, por ter duas amigas maravilhosas, incríveis, lindas
e gostosas te ajudando nessa e em todas as outras dificuldades que forem
aparecer por seu caminho.
Pisco uma, duas, três, quatro vezes.
— Meu Deus! — Coloco a mão sobre o peito e finjo estar secando
lágrimas em meus olhos. — Essa foi, Georgina Sinclair, a coisa mais linda e
encorajadora que você já disse em toda a sua vida.
Barbie explode em gargalhadas ao passo que olha de mim para a loira
ao meu lado.
— Mais uma gracinha sua e eu retiro tudo o que eu disse — ela
menciona, cutucando-me com seu cotovelo. — Sua ruivinha gata e sem
noção.
— Obrigada — digo, agora falando sério. Sinclair parece perceber
que estou a agradecendo por hoje e por tudo, pois seu semblante divertido
se desfaz e um novo toma conta de seu rosto redondo, um muito mais
compreensivo e que consegue flechar meu coração pelo amor que perpassa
por ele. — Obrigada por tudo sua loirinha fatal e fofoqueira. — Aperto a
pontinha do seu nariz com um pouco mais de força do que o comum, afinal,
não seríamos nós se não equilibrássemos a fofura com uma dose de
implicância.
Barbie limpa a garganta de forma extremamente forçada para chamar
nossa atenção. Quando a gente se vira em sua direção, a encontramos com
as mãos espalmadas na cintura e com os seus lábios pintados com várias
camadas de gloss de morango projetados para baixo, claramente uma
tristeza fingida apenas para nos atingir.
— Parem de me excluir desses momentos — nossa baixinha
choraminga, depois se enfia no meio de nós duas e passa o braço por nossos
pescoços quando se encontra sentada. — Não se esqueçam de que somos
um trio.
Estou sorrindo tanto agora que as minhas bochechas ardem.
— Impossível esquecer isso — esclareço, apertando-as ainda mais
contra mim. Georgina e Barbie grunhem e reclamam de tanto aperto, mas
não paro. — Será que vai soar piegas demais se eu disser que uma parte de
mim, uma parte bem pequenininha ama vocês?
— Piegas, não — é Barbie quem se manifesta. — Mentirosa, talvez.
— Muito mentirosa — Georgina afirma logo após. — Porque todo
mundo sabe que você nos ama muito, muito, muito.
Abro a broca para retrucar seu comentário presunçoso e confiante
demais — embora esteja certo —, mas simplesmente volto a fechá-la
quando a porta da lanchonete se abre e o som que avisa a ilustre presença
dos clientes tilinta por todo o perímetro do estabelecimento, desfocando a
minha atenção e a das garotas do assunto. No segundo seguinte a isso, eu,
Georgina e Barbie nos afastamos e ficamos em pé em um ímpeto, prontas
para falarmos a quem quer que seja que o Fast Rocket já está fechado para
pedidos.
Só que a pessoa que entra por aquela porta e entra no nosso campo de
visão faz com que fiquemos relaxadas, mesmo ainda surpresas.
— John? — Seu nome escapole por entre meus lábios de um modo
rápido e entusiasmado demais para o meu gosto.
Só que eu perco totalmente o meu raciocínio quando vejo seu sorriso
crescer copiosamente em seu rosto quando me escuta. Ele afunda as mãos
na costumeira jaqueta de couro preta e suas botas de combate parecem que
criaram raízes no assoalho xadrez, pois permanece estagnado a uns bons
passos de distância, sua atenção totalmente voltada para mim como se não
existisse mais ninguém por aqui. Meu coração bate tão depressa agora que
eu repouso a mão no peito com um leve medo de que ele possa subir pela
minha garganta e sair por entre minha boca.
E tudo parece piorar ainda mais para mim só pelo modo como está
agora; o cabelo platinado totalmente úmido, como se tivesse acabado de
sair do banho, os jeans apertando suas coxas, os olhos azuis perfurando-me
por completo, os lábios bem delineados curvados em um sorriso meio torto,
as infinitas tatuagens do pescoço em evidência.
Por que ele tinha que estar sempre tão bonito?
Nesse interim em que parecemos entrar dentro de uma bolha, escuto
bem de fundo a Georgina e a Barbie cochicharem e rirem de alguma coisa.
Quando pisco e desvio a atenção do garoto para olhar para o lado, vejo que
as duas não se encontram mais aqui. Simplesmente desapareceram de um
segundo para o outro.
Fricciono os lábios para não rir da tentativa delas de me deixar
sozinha aqui com ele.
No momento que dou alguns passos em sua direção, John também dá.
Rimos ao mesmo tempo da coincidência.
— Nem tive tempo de cumprimentá-las — John fala, em meio às
risadas. — Acho que elas foram muito sutis na hora de fugirem pelos
fundos. Quase eu não percebo que elas queriam deixar nós dois a sós.
— Me lembre de avisar a elas depois o quão péssimas nisso elas são.
— Mordo um sorriso, e ele aproveita que já estamos com uma pouca
distância agora para me puxar pela cintura e grudar nossos corpos. — Você
sempre tem que me pegar dessa forma?
— De que forma? — questiona, seus orbes descendo para meus
lábios.
— Dessa forma bruta.
Scott dá uma daquelas risadas roucas que fazem todos os pelos do
meu corpo se eriçarem.
— Achei que gostasse, diabinha. — Ele leva um fio do meu cabelo
para trás da minha orelha, aproveitando que já está com os dedos no meu
rosto para contorná-los em minha boca. — Porque essa é a única forma que
eu sei ser. Mas, caso me diga que não gosta, posso repensar por você.
Com o ego lá nas alturas, entrelaço meus pulsos em seu pescoço e
ganho impulso com os pés para me aproximar do seu rosto, depositando um
selinho demorado em seus lábios. John aperta minha cintura e aproxima
ainda mais nossos corpos.
— Posso saber o que veio fazer aqui, Sr. Todo Bruto? — indago
assim que me afasto minimamente para poder fitar seu belo rosto. — Ou só
veio aqui para não me fazer esquecer da sua pegada?
Com a mesma mão que estava me prendendo contra seu corpo, me
afasta.
— Tenho uma surpresa para você, minha gata. — Suas írises azuis
ganham um brilho diferente, quase consigo ver meu reflexo através delas.
Uma ansiedade repentina atinge a boca do meu estômago só pela forma
como ele me olha, como se estivesse prestes a me contar todos os segredos
do Universo.
— Então me conta! — peço ao trocar o peso dos pés, sem conseguir
conter a ansiedade dentro de mim.
Seus lábios se repuxam ainda mais em um sorriso apaixonante.
— Não vou te contar, diabinha, vou te mostrar.

Acho que andar na garupa de John Scott virou algo habitual para
mim, pois estou fazendo isso com tanta frequência ultimamente que me
sinto completamente segura aqui, com as minhas mãos entrelaçadas em sua
cintura e os cabelos esvoaçantes pelas rajadas de vento que insistem em nos
acompanhar durante o trajeto até a tal surpresa que o garoto decidiu fazer
para mim.
Admito que a ansiedade na boca do meu estômago continua aqui, até
ouso dizer que parece estar ainda mais forte do que antes, pois acho que
passei a simplesmente amar tudo o que John tem para me mostrar ou falar.
Seja vendo as estrelas, seja dançando na chuva, seja apenas no rancho, seja
conversando, não importa, ele parece ter esse dom de me impressionar e de
me ganhar com qualquer coisa que se propõe a fazer.
Tenho certeza que está prestes a me ganhar um pouquinho mais
agora.
Sua Harley-Davidson para em uma rua desconhecida por mim e ele
logo pula para fora dela, ajudando-me a descer assim que dá a volta para
ficar ao meu lado, pegando em minha mão daquela forma galanteadora que
ele tenta muito ser, mas que acaba sendo extremamente engraçada para
mim.
— Você não combina com essas coisas, lindo — refiro-me às suas
tentativas frustradas de ser um cavalheiro, e ele apenas rola os olhos ao me
empurrar para andar com ele pela rua. John engancha seu braço em meu
cotovelo e sorri sem descolar os lábios quando eu viro um pouco o rosto de
lado para o perscrutar. O modo como esse ato dele parece algo tão natural e
corriqueiro entre nós faz com que meu coração se sinta aquecido dentro do
meu peito. — Então, posso saber para onde está me levando desta vez?
Flagro o exato momento em que suas sobrancelhas formam um arco
perfeito e a sua boca se entreabre, como se estivesse chocado ou descrente
com algo.
— Não era você que estava me ofendendo há cerca de, sei lá, dez
segundos atrás? Agora quer saber da surpresa, huh?
O fito com os olhos semicerrados e com um leve bico adornando os
lábios.
Totalmente infantil e patético, mas não consigo não entrar na onda
dele.
— Vai, fala logo! — Puxo a barra da sua jaqueta de couro, enquanto
seguimos caminhando pela rua que, sinceramente, não faço ideia de onde
terminará. — Estou ficando ansiosa, John Scott, não gosto disso.
— Você já está ansiosa, meu amor. — Então ele para de andar. John
simplesmente para de andar e desengancha o braço do meu, parando bem
em minhas costas. — Agora feche os olhos.
O quê?!
Viro sobre os ombros, e ele dá risada, provavelmente percebendo a
minha cara contorcida em uma interrogação.
— Feche os olhos, diabinha — repete. — Coopera comigo, vai.
Com esse tom de voz pidão, é impossível não o obedecer. Então eu
faço questão de rolar os olhos e bufar da forma mais dramática possível,
para que pense que estou relutante quanto a isso, agora voltando a olhar
para a frente. Demoro dois ou três segundos para finalmente fechar os
olhos. Quando isso acontece, John comemora atrás de mim e suas mãos se
direcionam até meu rosto, tampando ainda mais minha visão para que eu
não enxergue absolutamente nada.
— Pode andar agora, eu digo quando for para parar — ele menciona,
e eu assinto. Arrasto meus pés para frente e Scott segue em meu encalço
apenas para conduzir-me.
Não sei quanto tempo ficamos nessa, só sei que acabamos adentrando
em uma outra rua que parece ser um pouco mais movimentada que a que
estávamos, pois consigo escutar agora vozes, risadas e até mesmo o som de
bicicletas ressoando ao meu redor. Apesar da curiosidade corroendo meu
âmago sobre tudo, não paro até que ele diga que pode.
Mais alguns passos para frente e John sai das minhas costas,
arrumando minha postura para que eu fique de costas — ou de frente —
para alguma coisa. Faço força nos meus olhos já fechados e, quando sua
voz me dá o sinal que eu preciso dizendo que eu posso me virar, abro meus
orbes pouco a pouco, prestes a me dar de cara com a tal surpresa.
Então eu simplesmente me viro para o que quer que seja ao passo em
que escuto meu coração zumbir em meus ouvidos.
Pisco algumas vezes e a primeira coisa que encontro é o nome
“Biblioteca Pública de Hellaware” enfeitando o local revestidos por tijolos
laranjas. Encaro cada parte de fora do lugar e sinto as palmas das minhas
mãos suarem, mesmo que eu não entenda muito bem o que está
acontecendo agora.
Assim que tiro os olhos do local e encaro John, com meus glóbulos
transbordando confusão, o garoto me encara de volta com os seus injetados
de expectativa.
— O que significa isso? — Minha voz, por algum motivo que
desconheço, sai por um fio quando decido indagar no exato momento em
que aponto para a biblioteca.
É provavelmente tarde da noite, estamos sendo iluminados pela lua e
pela luz fraca do poste do fim da rua, mas, mesmo assim, consigo enxergar
com muita clareza o momento em que seus olhos sorriem tanto quanto a sua
boca.
— Isso, Pasha Denise Stratford, é seu mais novo trabalho em
Hellaware. Você acaba de ser contratada para trabalhar na ala infantil da
biblioteca da cidade.
No primeiro momento, a minha única reação é unir as sobrancelhas e
sentir um belo de um V se formar entre elas, só que no segunde seguinte,
quando rebobino sua frase uma segunda vez, a única coisa que consigo
fazer é dar risada, porque isso aqui só pode ser algum tipo de piada ou algo
muito parecido com isso.
Scott dá um passo em minha direção.
— Que tipo de brincadeira é essa? — Espalmo as mãos na cintura,
um medo repentino se apossando do meu corpo.
Não quero que ele brinque com algo tão sério para mim.
Não sei se suportaria.
— Não consegui dormir nem fazer nada depois que você foi embora,
Pasha. Simplesmente não consegui seguir com a minha vida depois de saber
que, pelo menos de alguma forma, você estava sendo privada do que tanto
ama. Do que nasceu para fazer. — Suas mãos agora alcançam as minhas e
ele as aperta. Não consigo apertar de volta, tão pouco fazer ou falar
qualquer coisa, pois me sinto petrificada. Completamente em estado de
choque na droga dessa rua. — Eu disse que não era capaz de mudar a
realidade, lembra? Mas eu quis tanto mudá-la, quis tanto transformá-la para
você que dei meus pulos e vim aqui, completamente sem vergonha,
implorar para que contratassem uma garota maravilhosa, apaixonada por
crianças, pelo universo literário e que, ainda por cima, possui o sorriso mais
lindo no rosto quando discorre sobre ele. Talvez possa parecer maluquice,
talvez até seja, mas eu consegui, ruiva. Eu realmente mudei a realidade e
vou conseguir fazer com que se sinta cada vez mais próximo do seu sonho,
porque você acreditando ou não, achando possível ou não, eu sei e sinto que
você está mais próximo dele do que imagina.
Lágrimas nevoam minhas írises e eu mordo o interior da bochecha,
ainda mais em choque.
Eu provavelmente devo estar sonhando, é a única explicação.
Isso só pode se tratar de um sonho.
Mas o modo como John olha dentro dos meus olhos e parece enxergar
até mesmo a minha alma me faz não ter tanta certeza assim.
— Mas como? — é a única pergunta que consigo externar. — Como
isso foi possível?
— Conversei com uma senhora chamada Emma, responsável pela ala
infantil, e ela foi super gentil na hora de me atender e escutar, além de ter
ficado apaixonada por mim e por meus olhos. — Ele dá risada e balança a
cabeça de um lado para o outro. — Enfim, isso não vem ao caso. O que
interessa é que, por incrível que pareça, uma garota que trabalhava na ala
havia pedido demissão recentemente e a senhora estava em busca de uma
funcionária, então por ter ficado emocionada por ver o meu empenho em
transparecer o seu amor pelos livros, além do meu claro desespero para
conseguir isso, não pensou duas vezes em aceitar te contratar. Mas ainda
haverá testes, claro. Ela vai ver se você é tão boa quanto eu falei e se
realmente leva jeito com as crianças. E é claro que você leva e é claro que o
trabalho vai ser mesmo seu.
Uau.
Não consigo acreditar que John fez isso tudo por mim sem querer e
sem pedir nada em troca. Não consigo acreditar que ele se empenhou tanto
para me ver realizada de alguma forma, para me ver realmente satisfeita
com o meu trabalho e com as coisas que eu realmente dedico minhas horas.
Não consigo acreditar que ele levou meus sonhos e os meus desejos a sério,
tão pouco que correu atrás de cada um deles. Não consigo, de forma
alguma, acreditar que acabei de encontrar alguém no mundo capaz de fazer
algo nessa dimensão.
Estou tão acostumada com as pessoas tratando-os como um nada que
isso aqui é, sem sombra de dúvida, um dos atos mais grandiosos que já
fizeram por mim.
Uma súbita coragem me invade e eu aperto ainda mais seus dedos
contra os meus, encurtando de vez qualquer distância que estivesse nos
separando.
— Engraçado você sempre falar de mim, mas já olhou para dentro de
si e fez uma reflexão? Você é um cara incrível, Scott. — Seu pomo de Adão
sobe e desce com a minha frase e com a firmeza com a qual as palavras
saem. — Você é o cara que dança com uma garota na chuva só porque o
filme favorito dela tem uma cena assim, é o cara que se mete em confusão
para tentar salvar um desconhecido em apuros, é o cara que realiza meus
desejos quando ninguém nunca ao menos tentou, nem mesmo eu, e é o cara
que sempre está disposto a fazer as pessoas ao seu redor sorrirem,
independentemente de estar bem consigo mesmo ou não. — Livre de
qualquer receio, abraço seu corpo e descanso a cabeça em seu peito. Em
seguida, seus braços me envolvem e seu queixo repousa no topo da minha
cabeça. — Obrigada por me fazer enxergar que por baixo da camada de bad
boy clichê há um ser humano incrível aí dentro.
Scott não me responde nada, e eu nem me importo, afinal, consigo
escutar as engrenagens da sua cabeça daqui ao trabalhar tão copiosamente
dentro do seu cérebro quanto seu coração dentro do seu peito, que troveja
incessantemente e extremamente próximo do meu ouvido.
O meu não se encontra muito diferente, entretanto.
Ficamos nessa posição por longos minutos, nossos corpos juntos e
conectados como nunca antes. O silêncio nos engloba como uma redoma e
acaba sendo extremamente reconfortante, provavelmente efeito dos
sentimentos conflitantes que guerreiam dentro de nós.
De repente, um pensamento me invade e faz com que eu sinta uma
pontada quase sufocante no peito.
Me afasto minimamente apenas para tombar a cabeça para trás, a fim
de esquadrinhar seu rosto.
— Meu tio não permitirá — sopro baixinho, quase com medo que ele
escute. — Não permitirá que eu abandone tudo para me aventurar aqui,
nessa biblioteca.
Como se eu tivesse falado a maior estupidez do século, John solta
uma risadinha e me puxa de volta para o nosso abraço.
— Ele não só vai como já permitiu — o loiro garante. — Acha
mesmo que eu esqueceria dessa parte? Eu sou o tipo de cara que faz o
serviço completo, gata. — Nesse ínterim, suas mãos sobem e descem em
um carinho sutil e singelo pelas minhas costas. Me aninho ainda mais a ele
por conta disso. — E eu também não sou o único cara que quer te ver feliz,
Stratford. Seu tio está muito empenhado nessa função, também.
Apesar de saber que David Wilson me ama e é capaz de fazer
qualquer coisa pela minha felicidade, ainda assim sei que ele é casca grossa
em determinados assuntos, principalmente quando se trata de trabalhos.
Tenho certeza que não foi uma tarefa fácil para John Scott convencê-lo de
que trabalhar na biblioteca era o meu sonho e o ideal para mim.
Saber que ele se empenhou tanto e não esqueceu de nenhum detalhe
faz com que os sentimentos se tumultuem ainda mais dentro de mim.
Droga. Acho que se ainda existia uma parte de mim armada, ela
acaba de estar inteiramente, completamente e irrevogavelmente sem
munição agora.
A fumaça cinzenta do cigarro que eu fumo se expande pelo rancho em
espirais até que simplesmente desaparece sobre minha cabeça. Olho ao meu
redor e finalmente me dou conta de como o outono deixou tudo ainda mais
bonito por aqui. O rancho está cercado por cores quentes, as árvores estão
uma mescla de vermelhas, laranjas e amarelas, e o cair das folhas parece
tornar a paisagem ainda mais reconfortante. É uma pena que ele já está indo
embora para dar lugar ao inverno daqui a alguns dias.
Apesar de não nevar na cidade e nem fazer um frio exorbitante, gosto
do clima que toma Hellaware no final do ano; é refrescante, acolhedor e cai
chuvas dignas de assistir filme em casa na companhia de um bom chocolate
quente.
Fico tanto tempo encarando a paisagem e imerso em meus próprios
pensamentos que não percebo a presença dos meus amigos até eles se
sentarem perto de mim em um círculo bem formado na relva. Devin se senta
ao meu lado, Kieran do outro e Kara e Violet ficam em minha frente. Todos
os pares de olhos se voltam para mim na mesma hora, como se fosse algo
coreografado.
— O que foi? — questiono, rápido. — Por que estão me olhando com
essa cara? Sei que sou gostoso e a vista se torna maravilhosa, mas com tanta
gente assim eu fico com vergonha.
Devin contorce o rosto em uma careta com a minha fala, Kieran
balança a cabeça de um lado para o outro e Kara e Violet se entreolham de
forma cúmplice e levam a mão às bocas para evitar de dar risada bem na
minha frente.
— Seu ego consegue ser maior que isso tudo aqui, sabia? — Violet
Mohn, a garota que sempre adora pegar no meu pé, diz ao apontar todo o
perímetro do rancho com o dedo girando. — Nós só queríamos conversar
com você, Johnny, não pode mais? Você anda muito sumido depois que
ficou de coleira. Ficamos com saudades, poxa.
— Pois é! — é a vez de Devin Leblanc afirmar a fala da nossa amiga.
Seus olhos verdes me escrutinam, suas sobrancelhas sobem de forma sutil e
um meio sorriso aparece em seus lábios ao passo em que entrelaça as mãos
embaixo do queixo. — Você se tornou um cãozinho adestrado muito
sumido, sabia? Acho que vamos ter que conversar seriamente com a sua
dona pra ver se ela aceita a nossa sugestão de guarda compartilhada.
Fricciono os lábios para não rir porque, porra, eles são muito bons
nisso.
Abro a boca para retrucar com alguma piadinha tão idiota quanto, mas
é claro que Kieran McAllister me impede ao sair na frente para falar:
— Vamos pegar leve com o cara, pessoal. — Seu sorriso é
completamente cínico e divertido. O filho da mãe deve estar adorando esse
momento. — Imagina se ele tivesse sozinho nessa? A sorte é que Leblanc
entende muito bem do assunto também.
Devin dá um murmúrio de surpresa e joga todo seu peso em cima de
Kieran, que quase tomba para o lado e cai. As risadas, inclusive as minhas,
preenchem o espaço e o nosso momento por longos segundos.
Acho que mereço todas as provocações, no final das contas.
Ontem, mais uma vez, acabei chegando muito tarde e perdendo o
jantar que havíamos combinado de fazer na semana passada. Todos eles
ficaram furiosos comigo e exigiram saber onde eu havia me enfiado, então
não vi outra alternativa a não ser contar a verdade, a não ser contar que
passei horas na companhia da minha ruiva diabólica, conversando sobre
tudo que fiz para conseguir o trabalho para ela na biblioteca e, claro, todas
as artimanhas que tive que usar para driblar e convencer o tio dela, o Sr.
Wilson, que Pasha tinha um sonho e que ele precisava ser atendido o mais
rápido possível.
Acho que o homem rechonchudo ficou se perguntando o porquê de eu
estar tão empenhado em ajudar sua sobrinha e o que diabos eu queria com
aquilo, mas, sinceramente, não externou nada se realmente pensou. Ele
apenas me sentou no sofá da sua casa, ouviu cada coisa que eu tinha para
falar, cada coisa que eu sabia sobre o amor da ruiva por livros, por crianças
e, claro, sobre a vontade gigantesca de trabalhar com alguma coisa dessas
que ela possuía dentro de si. E então, assim que eu coloquei para fora tudo o
que eu havia ensaiado e o implorei para me ajudar — é sério, eu implorei
mesmo —, o dono do Fast Rocket apenas assentiu, retrucou algumas vezes
e, no fim, disse que conseguia enxergar todo o amor que a sobrinha tinha,
pois a pegava várias vezes lendo pela casa, até mesmo lembrava muito
nitidamente dela recitando poemas famosos quando era pequena.
Dizendo que não queria aprisionar a sobrinha em algo que não era
para ela, David Wilson me garantiu com todas as letras que apoiava
totalmente a minha ideia. Como se isso já não fosse o bastante para me
deixar numa alegria tremenda, o homem me agradeceu por ter aberto seus
olhos e por eu ter me saído um amigo e tanto.
Ah, se ele soubesse...
No fim, apesar de ter ficado nervoso para um cacete, apesar de ter me
arriscado, apesar de ter sido e estar sendo zoado pelos amigos, sinto que
tudo valeu a pena só de lembrar o sorriso da alasquiana quando contei a
novidade, só de lembrar seu rostinho emocionado, seus lindos olhos cor de
avelã marejados, seu corpo agarrado no meu em um abraço repleto de
significados, palavras não ditas e muito, muito agradecimento. Sinto-me
realizado por saber que ela está realizada e sinto-me feliz por saber que a fiz
feliz. Sinto como se, pela primeira vez, tivesse acertado em algo grandioso e
feito a coisa certa como nunca antes.
Pasha Stratford vem causando muitas sensações e sentimentos em
mim ultimamente, uma coisa completamente louca, intensa, fora do normal
e avassaladora. Depois que eu a deixei adentrar a minha vida, venho
experimentando coisas das quais nunca cogitei antes; a garota é como se
fosse a única para mim agora, como se a sua presença, a sua beleza e a sua
figura imponente tivesse ofuscado a de todas as outras, como se tivesse feito
um feitiço para adentrar em minha corrente sanguínea e se manter presente
em cada centímetro do meu corpo, transportando sua vivacidade e a sua
ferocidade por todas as veias até que estas bombeiem o meu coração de
forma pulsante e arrebatadora.
Ela me fez querer estar por perto sempre, me fez um completo viciado
em seus cabelos cor de fogo, em seus olhos expressivos, em seu corpo cheio
de curvas sinuosas que virou meu lugar favorito, em seus lábios voluptuosos
prensados contra os meus e, sem sombra de dúvida, me fez ficar
completamente alucinado pelo gosto doce deles, deixando-me cada vez mais
inebriado, esfomeado e embebedado por todas as particularidades que a
envolvem tanto externamente quanto internamente, que consegue ser um
trilhão de vezes melhor quando alguém consegue desbravar cada uma das
suas camadas.
Céus, essa mulher me deixa mesmo louco.
E o pior de tudo é que não sei denominar isso que sinto.
“Ou talvez você tenha medo”, alguma voz grita dentro da minha
cabeça.
Os dedos estralados de Kara na frente do meu rosto me faz piscar um
par de vezes até conseguir voltar à órbita, encontrando seu rosto meigo e o
seu sorriso doce e cheio de dentes brancos direcionados apenas a mim.
— Escutou o que eu disse? — a cacheada pergunta, e eu balanço a
cabeça negativamente e peço para que repita. — Eu estava dizendo para eles
que não tem nada de errado em se apaixonar ou em amar alguém. O amor e
a paixão são sentimentos muito bonitos e que deveriam ser mais buscados,
ao invés de serem afastados. As pessoas têm medo de amar, de se entregar,
de se permitir viver como se esse sentimento fosse uma doença, uma coisa
errada, quando, na verdade, é bem o contrário. Esses dois, quando estão
juntos, libertam almas, alimentam sonhos e transformam vidas. Não tem
nada de vergonhoso em sentir. Para mim, sinceramente falando, é algo muito
nobre e que eu desejo muito viver um dia.
Kara suspira feito uma romântica ao finalizar, e suas palavras, assim
como toda a conversa e todos os pensamentos que tive mais cedo, me
atingem com força, como se fosse uma forte pancada bem na minha cara. E
sem me preocupar em parecer um maluco mal educado, flexiono meus
joelhos e me levanto em um rompante, marchando para o meu trailer sem
falar nada e sem nem ao menos virar para trás, ignorando completamente as
vozes dos meus melhores amigos me chamando.
Subo os degraus do trailer, abro a porta, fecho-a com uma certa força e
solto um rosnado baixo, direcionando-me até o sofá. Já sentado, bagunço os
fios do meu cabelo para trás e solto todo o ar preso dentro dos meus
pulmões.
A voz de Kara falando sobre amor e paixão rondam a minha mente e
faz com que eu feche os olhos com certa força, balançando a cabeça de um
lado para o outro ao tentar negar o que uma parte de mim tenta me mostrar.
Nesse meio tempo, escuto o ranger da porta sendo aberta, mas não me
movo. Não consigo me mover ou fazer nada que não seja reprimir o que eu
acho que sinto pela ruiva.
Meu senhor, estou morrendo de medo, essa é a verdade.
— John? — Escuto a voz rouca de Devin me chamar, porém continuo
sem me mover. Estou ocupado demais olhando para um ponto fixo no
assoalho. — O que aconteceu com você, cara? Você estava rindo das nossas
provocações, estava bem... O que foi que mudou? — Meu amigo senta-se ao
meu lado e toca em meu ombro. — Eu sou seu irmão, porra, pode falar
sobre o que quiser comigo.
Finalmente crio coragem para encará-lo. Suas írises, totalmente
banhadas de compreensão, encontram as minhas e, de certa forma, me
acalmam pelo menos um pouco.
Devin é realmente o meu melhor amigo, o meu irmão, e não vejo
problema nenhum em dividir minhas angústias e inseguranças com ele,
afinal, sempre dividimos tudo um com o outro. Não importa o assunto, não
importa o grau de importância e relevância, não importa absolutamente
nada, estaremos sempre contando um para o outro.
Se há alguém nesse mundo que me entende e me ajuda como
ninguém, esse alguém é esse cara sentado ao meu lado.
— Acho que a minha ficha caiu — sopro. Uma pontada estranha
atinge o meio do meu peito. — Acho que tudo faz sentido agora.
— Seja mais específico, Scott.
Balanço a cabeça de um lado para o outro e fico em silêncio, quase
como se estivesse decretando que não iria rebater ou responder a sua frase.
Ele parece perceber, pois sulcos formam-se entre as suas sobrancelhas e
glabelas, incentivando-me a falar o que parece estar entalado em minha
garganta. Até tento fugir, mas, quando dou por mim, estou perguntando:
— Como uma pessoa sabe que está se apaixonando?
Devin sorri.
Não um sorriso de provocação, e sim um daqueles sorrisos de
percepções, um daqueles que a gente só dá quando finalmente conseguimos
compreender muito bem um determinado assunto que estava custando a
quebrar nossa cabeça.
Engulo em seco na mesma hora, a bola de saliva descendo feito uma
massa de concreto por entre a minha garganta.
— Seria clichê demais se eu falasse que a pessoa simplesmente só
sente? — Leblanc dá uma risadinha ao passo em que remexe a cabeça,
provavelmente lembrando de quando se deu conta de que estava apaixonado
por sua namorada. — Clichê ou não, essa é a verdade, John. A gente só
sente o coração bater mais forte que o normal, a respiração falhar, a mão
suar, o mundo mudar. A gente só sente uma vontade incontrolável de querer
conquistar a mesma pessoa todos os dias, de estar com ela todos os dias, de
ser o único responsável a transformar todos os seus sonhos em realidade, de
ser o único a fazê-la feliz. A gente simplesmente sente. A gente
simplesmente sabe.
“A gente simplesmente sabe.”
— Mas eu não sei se eu sei, Devin. — Enterro o rosto entre as minhas
mãos e reprimo um grito de frustração. — Você sabe muito bem que eu não
sou capaz disso. Sabe muito bem que sou ferrado, que sou fodido e que
tenho medo. Que tenho medo de não saber retribuir, que tenho medo de não
saber lidar, que tenho medo de não me sentir digno e de não me sentir
merecedor de amor. Eu nem ao menos sei se sou capaz de amar alguém que
não seja vocês, a minha família.
Meu melhor amigo segura os meus braços e coloca-os ao lado do meu
corpo, agora forçando-me a encará-lo no exato momento em que se
aproxima ainda mais.
— Para de deixar seu passado interferir em seu futuro, John Scott. —
Sua voz sai forte, alta e imponente, quase como se estivesse disposto a fazer
com que as palavras fiquem fixadas em minha cabeça e não saiam por nada.
— Você passou anos da sua vida fugindo disso, passou anos se esquivando,
e agora chegou a hora de parar de se contentar com tão pouco. Chegou a
hora de se arriscar, cara. Chegou a hora de finalmente reconhecer o ser
humano incrível e cheio de luz que há dentro de você. Chegou a hora de
simplesmente sentir. Se permita sentir, se permita viver, se permita ser
libertado daquele garotinho pequeno, que vivia com pessoas que não sabiam
reconhecer seu devido valor. Mais uma vez, meu amigo, se quer um
conselho, deixe seu passado no passado e viva. Viva como nunca antes.
Enquanto ele fala, meu coração infla-se de esperança.
Mas eu não consigo deixar de me perguntar como eu posso fazer isso
se, na verdade, meu passado sempre dá um jeito de voltar para me
assombrar.
ESSE CAPÍTULO PODE CONTER GATILHOS REFERENTES À BULLYING E VIOLÊNCIA
12 ANOS ATRÁS

As estrelas que aparecem no céu toda noite não deveriam ser as


únicas amigas de um garoto na infância, mas é exatamente isso que elas são
para mim. Esses pequenos pontos brilhantes são as únicas companhias
legais que tenho por aqui, as minhas únicas companheiras fiéis, afinal,
ninguém nesse lugar parece se importar tanto comigo ao ponto de me
incluírem em brincadeiras, em conversas divertidas, ou seja lá o que eles
costumam fazer em seus grupinhos de amigos já muito bem definidos. No
entanto, quando olho para o céu, sinto como se elas conversassem comigo.
Sinto como se elas estivessem todas ali, todas as noites, para mim, para me
observar, para me guiar e para fazer com que eu entenda que, mesmo tudo
querendo me fazer pensar o contrário, nunca estarei sozinho, pois enquanto
existir o mundo, enquanto existir o universo, enquanto existir as estrelas,
sempre andarei acompanhado.
Só que quando não estou aqui, refletindo sobre isso ser mesmo
possível ou não, me sinto um completo invisível boa parte do tempo — para
não dizer sempre — e todas as crianças que moram aqui, sem exceção,
são muito empenhadas em me mostrar todos os dias o quão certo nisso eu
estou.
E eu deveria estar acostumado com essa rotina robótica, deveria estar
acostumado a não falar, a não ser ouvido, a não receber carinho, a não ter
nenhum tipo de contato amigável ou cordial com outras crianças, deveria
sentir que isso tudo nem machuca mais tanto quanto antes, só que,
infelizmente, essa não é a minha verdade.
Não é o que eu sinto.
Quanto mais o tempo passa, parece que a dor só aumenta.
Parece que ela me abraça, me engole, me aperta, me sufoca, me torna
incapaz de respirar, como se a dor fosse mãos invisíveis apertando a todo o
tempo minha garganta, me fazendo recuar, me fazendo definhar, me
fazendo implorar; implorar por ar, por amor, por compaixão, por
misericórdia.
Para que, no fim, a dor ria às minhas costas quando eu percebo que
não sou digno de nada disso.
Orfanato Mary Depp. Esse é o lugar que chamo de lar há cinco anos
inteirinhos. Esse é o lugar que me desprezam, que me maltratam e que me
dizem o tempo todo o quão desprezível eu sou.
Inclusive, não sabia o que significava a palavra desprezível, nunca
tinha a ouvido na vida, mas, infelizmente, é claro que logo tive que
aprendê-la bem cedo. Assim como muitas outras coisas.
Moro aqui agora, porque, aos dois anos de idade, perdi a minha mãe
em um acidente trágico de carro. Como meu pai não havia me registrado e a
minha mãe não possuía família, fui trazido para cá ainda muito pequeno.
Não lembro dela, não lembro em que momento descobri essas coisas sobre
minha vida, nem lembro do momento em que cheguei nesse inferno que
chamam de abrigo, só sei que estou trancado aqui por tempo demais para
simplesmente saber ou se quer lembrar do mundo lá fora. Só sei que estou
aqui por tempo demais para me lembrar todo santo dia o quanto sou
azarado, invisível, insignificante, sem graça, sem amor para dar, sem amor
para receber e uma pancada de adjetivos negativos que, com toda certeza,
cairiam muito bem agora e me definiriam como ninguém.
E o pior de tudo é que, sinceramente, não sei por que os garotos
maiores cismaram tanto comigo, mas, infelizmente, aconteceu e eu não
tenho controle sobre isso. Eles não foram com a minha cara, simples assim.
Eles viram em mim, tão magro, pequeno e indefeso, uma oportunidade de
descontar tudo de ruim que consumiam cada parte deles. Então, desde que
me entendo por gente, essa é a minha vida; ninguém se importa, ninguém
liga, ninguém quer me levar para casa e, sem deixar de mencionar,
ninguém, ninguém mesmo, nem as tias que trabalham por aqui, fazem nada
para mudar isso, muito menos para mudar a minha rotina de saco de
pancadas.
Sim, isso mesmo, eu apanho de vez em quando dos valentões.
Quando eles não têm nada de interessante para fazer, ou quando eles
simplesmente acham que me deixaram quieto por tempo demais, decidem
que é hora do show. E eu até sou ousado demais ao tentar revidar algumas
vezes, cansado e revoltado demais para simplesmente me manter quieto,
porém é claro que falho em todas elas e acabo piorando ainda mais a minha
situação, afinal de contas, os caras são o dobro do meu tamanho, sempre
andam em bando e sempre ficam ainda mais raivosos quando decido bancar
o corajoso.
Quando essas sessões de torturas acontecem, ora eu fico de olho roxo,
ora minhas pernas ficam simplesmente dormentes demais pelos chutes, ora
passo a noite toda sofrendo com falta de ar. Mas sempre, em todas elas, as
funcionárias percebem e sabem o que causa tudo aquilo, só não falam.
Elas fecham os olhos. Ficam caladas. Nada comigo soa relevante.
Quem vai procurar saber o que anda ferindo o menino invisível se,
basicamente, como o próprio nome já explica, ninguém o vê?
Então por quase sempre me encontrar exausto da bolha assustadora
que só eu pareço fazer parte, quando a noite chega e os meus colegas e
todas as pessoas que trabalham aqui vão dormir, saio de fininho para poder
ficar no jardim olhando as estrelas enquanto folheio um livro antigo em
mãos, que sempre passo na biblioteca deteriorada para pegar para me fazer
companhia também. Aqui é silencioso, não há pessoas para me olhar torto,
para proferir para mim palavras ofensivas ou para simplesmente ignorar a
minha existência. Aqui fica somente eu e a vastidão do universo, olhando
tanto para mim quanto eu olho para ela.
Vinte mil léguas submarinas é o livro que se encontra repousado entre
minhas pernas, enquanto minhas costas descansam no tronco da árvore que
quase perfura o céu de tão alta. As lindas e exuberantes folhas verdes
farfalham em um ruído gostoso, quase como se fosse para embalar esse meu
momento novo de descanso e aventura. A verdade é que não costumo ler
livros de ficção, esse será o primeiro. Costumo mais ler livros que falam
sobre astronomia — embora não entenda muita coisa daquelas porções de
nomes e explicações complicadas, gosto de pelo menos acreditar que estou
mergulhando no universo por conta das fotos que serpenteiam as páginas
—, o problema é que provavelmente já devo ter bisbilhotado todos da
biblioteca, o que acabou me fazendo ficar sem opção.
Vinte mil léguas submarinas foi o que mais me chamou atenção e o
que mais me pareceu abordar coisas legais, pois vi que narra aventuras em
um mundo ainda pouco conhecido: as profundezas gigantescas e surreais
dos oceanos. Pelo que eu entendi, os protagonistas caem no mar e acabam
no ventre de um monstro que, logo depois, descobrem não se tratar de algo
desse tipo, e sim de um grande submarino elétrico.
Parece mesmo divertido.
Olho para o céu uma última vez e estou pronto para mergulhar junto
com meus novos amigos, porém o som de passos afundados na relva me faz
parar antes mesmo de começar. Com uma rapidez impressionante, fecho o
livro, coloco-o contra meu peito e olho para todas as direções, com medo de
que alguém descubra e dedure meu esconderijo secreto.
O som parece que se torna mais próximo, fazendo-me prender a
respiração involuntariamente dentro dos pulmões.
— Que não seja alguém para me bater. Que não seja alguém para me
insultar. Que não seja alguém para me bater. Que não seja alguém para me
insultar — cantarolo baixinho, como se fosse um tipo de prece. — Por
favor, Deus, me escuta só dessa vez.
Mas é claro que isso não acontece, porque Michael, o líder da gangue
de garotos que me odeia sem nenhum motivo especial, aparece bem em
minha frente. Ele usa o mesmo pijama listrado que o meu e o seu sorriso
maldoso e esticado enquanto me olha faz com que ele se assemelhe muito,
muito e muito com o Coringa, tão maluco e malvado quanto um dos
maiores vilões das histórias em quadrinhos. E ele deve estar adorando a
postura indefesa que me encontro agora, com os joelhos quase no queixo, o
livro entre minha barriga e os braços ao redor das pernas, tremendo de
medo por sua aparição repentina.
— Finalmente eu descobri o que você faz todas as noites, pirralho. —
Sua voz soa tenebrosa, macabra, horripilante. Seus olhos negros parecem
abrigar um abismo, que me engole e tira tudo de vida que existe dentro de
mim. Sinto-me como se fosse capaz de colocar todo o jantar para fora aqui
mesmo, nos seus pés. — Achou que fosse mesmo me enganar? Não tem
como isso acontecer, pequeno John. Pode ser rápido ou pode até demorar
um pouco, mas eu sempre vou te achar. Eu sempre vou achar
vocês, perdedores.
Eu nem ao menos sabia do que ele estava falando, nem ao menos
sabia do que ele estava se referindo. Nada do que Michael falava ou fazia
tinha algum sentido, então nem me apeguei muito a isso, afinal, não estava
escondendo nada dele e nem de ninguém. A única coisa que consegui fazer
foi cerrar os dentes e me preparar para o pior, porque eu sabia que ele viria.
E ele veio. Veio com força.
Michael me puxa pelo colarinho do pijama e me ergue numa
facilidade absurda, como se eu pesasse nada mais e nada menos do que uma
pluma. O exemplar do meu livro cai com as páginas abertas, e o garoto olha
para ele com as sobrancelhas erguidas, provavelmente achando alguma
coisa engraçada em sua mente perturbada. Quando retorna os glóbulos para
mim, vejo o exato momento em que tudo ali brilha de um modo perverso.
Engulo a seco e me seguro ao máximo para não mijar nas calças de tanto
medo que percorre e lateja cada parte do meu corpo.
— Acho que preciso te dar mais uma lição — ele diz calmamente,
como se tivesse se deliciando com o meu nítido medo e sofrimento. — É
uma pena ter que estar sempre fazendo isso, sabia? Você não aprende
rápido, John, e esse é o seu maior problema. Se você fosse mais esperto,
nada disso aqui precisaria estar acontecendo.
Mais uma vez, não sabia do que diabos ele estava falando.
— Por que você faz isso? — arrumei coragem para perguntar, já
sentindo meus olhos arderem. — Por que me maltrata dessa forma?
Seu sorriso sádico reaparece.
— Porque você é fraco, pirralho. Porque você é fraco, covarde,
medroso, inseguro e que não sabe o que é amar, afinal, ninguém nunca te
amou, certo? Alguém que não recebe amor, consequentemente, também não
ama. — Ele apertou ainda mais os dedos contra o tecido do meu pijama,
retorcendo-os em seus dedos. — E alguém que não sabe amar é, sem
sombra de dúvidas, um ser humano desprezível. E você é um.
Então ele me jogou contra o tronco da árvore, rasgou algumas páginas
do livro bem na minha frente e marchou até mim, completamente furioso.
Tudo o que eu senti foi dor quando o primeiro soco veio, seguido de outro e
de outro.
Minha cabeça rodou naquele momento e a bile invadiu a minha
garganta, subindo sem dó pela minha boca.
O meu ódio por ele só aumentou depois daquele dia.
E eu e todos do orfanato descobrimos que Michael tinha sérios
problemas algumas semanas depois desse ocorrido, quando ele atacou uma
das nossas professoras com um canivete. Segundo ele, a professora estava
induzindo os alunos a comportamentos profanos e inadequados por dar
aulas básicas sobre o sistema reprodutor feminino e masculino. Ninguém
entendeu nada.
Logo depois disso, o garoto foi internado em uma clínica
psiquiátrica.
Mas, apesar de saber que ele não batia muito bem, e apesar de saber
que as marcas da sua covardia em meu corpo sumiriam uma hora ou outra,
não consegui me livrar por completo das marcas que ele e todos os outros
haviam deixado dentro de mim.
Por muito tempo eu me senti fraco, inseguro, covarde, medroso.
E sobretudo, me senti com muito medo de realmente não saber amar.
Minha infância não foi uma infância comum, normal, feliz e mágica
como a maioria. Minha infância foi repleta de perdas, tragédias, machucados
— tanto internos quanto externos — e eu tive que lutar muito dia após dia
para silenciá-la, tornando-me o homem que sou agora: intimidador, forte
fisicamente falando, com um bom humor sempre pronto para alegrar quem
está em minha volta e, claro, usando-o também como escudo para despistar
qualquer traço de cólera em mim que pudesse denunciar meu passado de
merda, porque, obviamente, não me orgulho nem um pouco dele.
Fugi do Orfanato Mary Depp aos quinze anos, quando estava farto
daquela ilusão que todos ali pregavam em mim de que eu seria adotado cedo
ou tarde. Eu sabia que eu não iria. Todos sabiam que isso estava longe de
acontecer. Os casais nunca me queriam quando eu era pequeno, sempre
acabavam se interessando por outros; talvez meu jeito reservado e de não falar
uma palavra na época tenha contribuído, talvez até mesmo parecer estranho
demais tenha tido sua parcela, ou somente por eu não ter tido algo que os
cativasse mesmo. Embora eu não saiba com precisão o que em mim me levou
a ser deixado de escanteio, eu sabia que tudo só pioraria com a idade que eu
estava, porque além de ainda continuar herdando aquelas mesmas
características que poderiam ter me afastado de possíveis famílias, eu ainda
tinha que somar com o fato de estar mais velho do que o comum, já que a
maioria dos futuros pais sempre se interessavam em adotar crianças lindas e
fofas do que moleques marmanjos em desenvolvimento.
E de saco cheio de todo aquele ambiente tóxico, repugnante e mentiroso,
coloquei poucas das minhas roupas em uma mochila, driblei a parte de
segurança do local ao tocar o alarme de incêndio e, em meio ao caos daquele
lugar à noite, pulei o muro e corri para longe como se parecesse que a minha
vida dependesse daquele momento.
Na verdade, não é como se parecesse que dependia, ela simplesmente
dependia.
Porque se eu não tivesse optado por deixar aquele lugar para trás, não
conheceria, cerca de um mês depois, Devin e seu pai, Hunter, em um pequeno
bar na beira de estrada, onde eu trabalhava por algumas horas limpando copos
e servindo bebidas em troca de comida e moradia no fundo daquela espelunca.
Tocados com a minha história, que acabei desabafando com os únicos clientes
do estabelecimento após estar terrivelmente cansado e levemente bêbado,
decidiram me dar abrigo no rancho e, assim que consegui a confiança do mais
velho e a amizade do filho dele alguns poucos anos depois, decidiram me
denominar integrante do MotoClub da cidade que Hunter Leblanc estava
pronto para deixar para Devin, presenteando-me com uma jaqueta de couro e
uma moto novinha.
Um ano depois veio Violet, meses depois, Kara e Kieran.
Então faz sete anos desde que meu destino se entrelaçou com o deles.
Faz sete anos desde que, finalmente, fui adotado por uma família que me ama
e me apoia do jeito que eu sou.
Eles foram a prova de que, sim, John Scott é mais do que capaz de amar
e ser amado, contrariando todas as teorias que fui obrigado a escutar durante
longos anos da minha vida.
Rá! Chupa essa agora, Michael-Coringa!
Brincadeiras à parte, Michael, o garoto que me atormentou por anos, fez
com que eu precisasse frequentar a terapia por anos, pois eu vivia tendo
pesadelos com o maldito, além de que eu era repleto de vários traumas que
faziam a minha saúde mental não ser das melhores. E apesar de eu ser
relutante no começo, a terapia foi a melhor coisa que aconteceu comigo. Com
ela, consegui lidar dar melhor forma com tudo que envolvia meus pais,
consegui me reconectar comigo mesmo, consegui lidar com os traumas, com
os medos, com as inseguranças. Só que, apesar de ter melhorado um bocado, é
impossível simplesmente apagar. Há como aprender e fazer com que ele não te
afete tanto quanto antes, mas não há um botão para sumir com tudo do seu
passado, mesmo que a gente queira desesperadamente.
Ainda há resquícios da minha infância em mim, infelizmente. Tenho
recaídas, fraquejo, não sou acessível quando o assunto é adentrar meu coração
e, durante muito tempo, tinha decretado que não iria deixar que isso
acontecesse romanticamente falando. Conheci várias garotas, dormi com a
maioria delas, mas nunca, nunca senti que ele estava querendo se abrir para
nenhuma delas.
Acreditei que fosse por ele ainda estar ferrado, remendado, esburacado.
Mas, na real, não é nada disso. Céus, agora eu consigo enxergar. Meu amigo
acabou de dar o pontapé que eu precisava para finalmente enxergar o que
sempre esteve tão cristalino.
Nunca foi nada disso.
Meu coração nunca esteve aberto para nenhuma delas porque,
incontestavelmente, esteve todo esse tempo esperando por uma única pessoa.
Esteve todo esse tempo esperando para ser alcançado pelas garrinhas
vermelhas do diabo do Alasca. Da minha diabinha.
Da garota que saiu do frio para esquentar e trazer sol para a minha vida.
Da garota que derrubou todos os meus muros, que tirou completamente
as minhas armas, que me enfeitiçou, que me enlaçou e que me deixou, sem
mais medo de admitir, completamente e inteiramente... apaixonado.
Porra, estou apaixonado por Pasha Stratford. E ao mesmo tempo que é
arrebatador e alucinante, também é assustador e agonizante, pois não sei lidar
com esse sentimento. É tudo novo para mim. Não sei se sei amar alguém
desse modo e dessa magnitude, não sei se sou ou se serei correspondido algum
dia — e perco o ar só de pensar na resposta —, não sei se estou preparado, se
tenho condições e se tenho forças.
Minhas inseguranças passadas estão voltando com força agora e temo
que faça com que eu sucumba novamente em uma crise existencial fodida.
Olho para Devin, que segue pacientemente esperando eu imergir em
pensamentos após sua frase motivacional de minutos atrás, e encontro seus
olhos verdes intensos perfurando os meus como agulhas pontudas em busca de
respostas. Desalinho ainda mais os fios do meu cabelo e solto o ar pela fresta
entre meus lábios.
— E se ela não sentir o mesmo? — solto de repente, muito mais para
mim do que para ele.
— Duvido — meu amigo responde completamente convicto, sem nem
ao menos hesitar. — Se ela não sentisse, John Scott, não estaria mantendo isso
entre vocês, não acha? Provavelmente a ruiva te descartaria na primeira
oportunidade que tivesse. — Ele agora se remexe no lugar em que está, e eu
sorrio, confirmando. — Como ela tem um gênio quase parecido com o seu,
possa ser que ainda está em processo de descoberta também. Se você tiver
coragem, por que não tenta uma conversa sincera, huh? Sem provocações,
sem jogos, sem medos. Apenas sinceridade um com o outro, para que
ninguém saia machucado no fim.
Suspiro, pois ele tem razão. Esse filho da mãe sempre tem razão.
Apesar do meu melhor amigo ter acalmado os meus sentimentos,
puxando-me de volta para a minha realidade, ainda consigo sentir aquela
pontada incômoda dentro do peito em uma mescla de medo e insegurança.
Acho que Devin parece perceber isso através das minhas feições, já que se
apressa em continuar:
— Eu entendo seu medo, entendo a sua insegurança, entendo mesmo. É
normal ter medo do desconhecido. É normal que seus monstros adormecidos
queiram te engolir em momentos como esses, porque eles não querem te ver
feliz, Scott. Eles querem te sugar, te levar para o fundo do poço junto com
eles, pois é disso que se alimentam. E só depende de você, meu amigo, não
deixar que isso aconteça. Você precisa estar no controle da situação,
empurrando-os para longe e decretando de uma vez por todas que é forte,
digno de toda a felicidade e amor desse mundo. — Suas mãos se direcionam
para os meus ombros e ele me puxa para um abraço, que sai completamente
desengonçado por me pegar desprevenido. Apesar disso, não recuo e retribuo.
— Eu, Kieran, Kara, Violet, Barbie, Georgina, meu pai... Todos nós te
amamos, seu idiota. Todos nós temos orgulho da sua luz, da sua resiliência, da
sua força para enfrentar às dificuldades e as barreiras da vida, da sua lealdade,
amizade, de tudo que você fez e faz para sobreviver. Se eu fosse a metade do
homem que você é, estaria completamente feito.
Me afasto do abraço para olhá-lo com as sobrancelhas unidas.
— Ah, não, pode parando. — Balanço a cabeça de um lado para o outro.
— Se eu fosse a metade do homem que você é, aí sim eu estaria feito.
Ele ri da nossa melação e eu também não consigo me segurar.
— Te amo, irmão — emendo.
— Amo você ainda mais, seu cabeça oca. — Devin passa a mão na
minha cabeça como se eu fosse uma criança. — Nunca duvide da sua
capacidade de amar e de ser amado, tá certo? O amor é a força mais poderosa
que guardamos dentro de nós. E você a tem, saiba disso. Você tem tanto ela
que transborda, que atinge até mesmo quem você não conhece. Pode ter
certeza que a sua ruiva já percebeu isso. Pode ter certeza que você vai
encontrar um lindo caminho de mostrá-la, porque você é capaz. Você sempre
foi.
Meus olhos ficam nevoados pela água cristalina, pois, além das suas
palavras que me tocam, recordo-me de ontem, quando Pasha Stratford listou
as coisas que eu fiz para ela ter a certeza do quão incrível eu sou. A diabinha
parecia tão certa disso, tão convicta, como se aquela fosse uma verdade
absoluta. Seus olhos conversaram com os meus, seus braços me envolveram e
tudo ali pareceu certo. E então, simples assim, só de pensar nisso sei que meu
melhor amigo pode estar realmente certo com tudo que disse.
Não posso e não vou deixar que meus demônios me arrastem para o
inferno mais uma vez. Não vou deixar que eles me consumam, me devorem,
façam morada dentro de mim somente para sugar tudo o que eu batalhei para
conseguir pôr no lugar como se fossem malditos sanguessugas.
Não posso ter medo. Preciso me permitir. Preciso finalmente provar a
mim mesmo que sou capaz, que sou digno, que nasci, assim como todo ser
humano, para se apaixonar, para amar e para ser amado.
Preciso mostrar a mim mesmo que, diferente do que me fizeram a
creditar, não sou um garotinho indefeso e covarde.
Dessa vez, meu sorriso sai completamente confiante.
— Irei conversar com ela — exponho do fundo do meu coração. — Irei
conversar com a ruiva e ser totalmente sincero quanto aos meus sentimentos e
ao que eu sinto.
Leblanc fricciona às mãos uma na outra, empolgado. Segundos depois,
flexiona os joelhos e se levanta, fazendo-me acompanhar seus movimentos.
Sem dizer mais nada, como se tivéssemos conversado tudo só com a troca dos
nossos olhares agora, ele vem ao meu lado e engancha seu braço em meu
pescoço ao passo em que me faz andar, provavelmente nos levando para fora.
Quando nós dois abrimos a porta em um ímpeto, Violet, Kara e Kieran
dão um solavanco para dentro, como se estivessem ouvindo nossa conversa
atrás da porta.
Como se fosse coreografado, eu e Devin espalmamos nossas mãos na
cintura enquanto olhamos para toda a cena que se desenrola em nossa frente;
Kieran pressiona os lábios para não rir, Violet, de forma totalmente
apreensiva, morde a ponta do polegar, e Kara, que parece ser a única
morrendo de vergonha, caminha até nós com seus ombros erguidos.
— Não foi nossa intenção escutar atrás da porta, eu juro! Nós só
queríamos ver se John estava bem, mas ficamos receosos de entrar, então
ficamos do lado de fora esperando um sinal de que a barra estava limpa e... e
aí... e aí que não deu tempo de entrar — ela explica, totalmente embolada com
as palavras. Conhecendo-a como conheço, posso imaginar que está querendo
se enfiar em um buraco agora mesmo. Faço minha melhor expressão neutra
para não rir da sua falta de jeito. — Não escutamos tudo, só o finalzinho. Meu
Deus, que vergonha! Eu sinto muito. Não queríamos mesmo invadir a
privacidade de vocês.
Dou de ombros.
— Está tudo bem, pequena McAllister — a tranquilizo. — Eu também
já escutei a conversa de vocês atrás da porta, então acho que estamos quites.
Todos nós rimos, e Kara parece a mais aliviada com a minha confissão.
Tadinha.
Quando nossas risadas cessam, quem dá um passo para frente é Violet
Mohn.
— Podemos te dar um abraço? — a tatuada pede, seus grandes olhos
castanhos injetados de súplica. Por saber que isso é uma maneira de ela
mostrar para mim o quanto sou amado, não penso duas vezes em assentir. Ela
e os outros correm para abraçar a mim e a Devin, que ainda permanece ao
meu lado. O abraço é forte, aconchegante, aquece meu coração e faz, pela
segunda vez no dia, entupir meus olhos de lágrimas. Nesse interim, a voz de
Mohn soa abafada ao declarar: — Nós amamos você pra cacete, seu bobo.
Sem que eles percebam, algumas lágrimas desavisadas escorrem pelas
minhas bochechas.
Meus lábios automaticamente se repuxam para cima.
Posso ter duvidado de muita coisa nesse mundo, mas nunca disso aqui.
Nunca desse amor imenso que sentimos um pelo outro.
E é com esse abraço e com esse amor deles que sinto ainda mais força
para criar coragem de abrir o meu coração.
De abrir o meu coração para ela.
O casamento de Hunter Leblanc e Amber St. Claire está cada vez
mais próximo e, por conta disso, por conta de todos os ensaios que
começamos a ter de forma dobrada, além de nós do The Hurricane
Freedom estarmos vendo todo o estresse dos preparativos de perto, não
consegui encontrar uma oportunidade para declarar meus sentimentos para
a ruiva, mesmo que eu tivesse tentado muito. Algo sempre aparecia para
atrapalhar nessas duas semanas que se seguiram, o que acabou me fazendo
ficar ainda mais nervoso e ansioso do que já estava.
Mas, apesar de todos esses sentimentos estarem se apossando de mim
de forma intensa nos últimos dias, fiz de tudo para guardar para mim e não
demonstrar nem por um segundo para Pasha Stratford. Continuamos com
nossas provocações, nossas trocas de beijos, nosso carinho um com o outro,
mas não deixei ficar visível para ela o que estava entalado na minha
garganta. Eu simplesmente não poderia. Eu precisava ser cauteloso,
paciente e muito perspicaz, pois ainda preciso encontrar uma brecha para
fazer isso da melhor forma possível. Preciso fazer com que ela me escute,
me entenda e não se amedronte ou se feche em uma bolha impenetrável.
A ansiedade bate em minha garganta e revira o meu estômago boa
parte do tempo, mas estou fazendo o possível e o impossível para lidar com
isso. Estou fazendo o possível e o impossível para não deixar que a emoção
fale mais alto que a razão, quebrando qualquer tipo de chance bem sucedida
que eu possa ter com a diabinha.
Então, por estar empenhado em não fazer uma burrada das grandes,
preciso encontrar a chance perfeita.
Devin e todos os meus amigos permanecem ao meu lado depois
daquele dia onde nos abraçamos — ainda mais do que antes, se é que isso é
possível — e me encorajam sempre, como se fosse um constante lembrete
do quanto eu sou amado, apoiado e incentivado. Como se isso já não fosse
o bastante para deixar minha autoestima nas alturas, me perguntam sempre
como eu estou me sentindo, compartilham um pouco das suas inseguranças
comigo, listam sempre que podem alguns motivos que os fazem ter a
certeza de que sou um cara incrível e, claro, em todas elas, não deixam de
ressaltar que vão me arrebentar todinho caso o meu ego infle
categoricamente ainda mais com a forma que eles estão me paparicando —
palavra que eles costumam usar com muita frequência agora, a propósito.
Eu bufo e reviro os olhos todas as vezes que eles fazem isso, porém
não posso deixar de admitir que tem me ajudado para um caralho. Não
posso deixar de admitir que eles, minha família, são o alicerce dessa minha
vida, são o bote salva-vidas que me mantém seguro na superfície, sem
deixar que eu me afogue por completo no caos que circunda a minha
existência. E se não fosse por Devin, Kieran, Kara e Violet empenhados em
me puxar da correnteza, provável que eu estaria agora mesmo vivendo uma
vida podre, colérica e extremamente fodida pelos arredores mais esquecidos
da cidade. Ou pior, talvez eu nem estivesse vivendo uma. Talvez eu tivesse
sido sugado pela dor e sucumbido há muito tempo atrás.
Não gosto de pensar muito sobre o que poderia ter acontecido comigo
caso não tivesse os encontrado assim que fugi daquele inferno, mas,
gostando ou não gostando, não deixa de ser uma possibilidade que poderia,
sim, ter acontecido.
Contudo, graças a Deus tudo aconteceu como aconteceu. Posso não
demonstrar em ações o tanto que sou grato e o tanto que os amo, mas sou
capaz de matar e morrer por cada um deles. Sou capaz de mover montanhas
caso signifique que ficarão bem, saudáveis e seguros. E tenho a plena
convicção que todos fariam isso por mim na mesma intensidade que eu
faria por eles.
Sorrio com os pensamentos, voltando à realidade ao escrutinar minha
figura refletida no enorme espelho à minha frente, que pertence a uma loja
masculina super conceituada em Hellaware. O terno cinza grafite agora
totalmente ajustado molda o meu corpo muito bem e me dá uma pegada até
mais sexy que o normal, pois me pareço muito mais sério agora, como se
fosse um homem importante e de negócios. Gostando dessa atmosfera nova
que me envolve, como se eu tivesse o poder concentrado bem na palma da
minha mão, arrumo a gravata em meu pescoço e, lentamente, vou girando
para que possam ter um vislumbre de como estou no exato segundo em que
me encontro de frente para eles.
Kieran McAllister assobia assim que faço pose de modelo ao passo
em que coloco as mãos dentro dos bolsos da calça social.
Como o casamento dos pombinhos ocorrerá daqui a dois dias, nós, eu,
Hunter, Devin e Kieran, viemos fazer a última prova dos ternos para que
tudo saia o mais perfeito possível, sem causar nenhum problema e dor de
cabeça em cima da hora. E isso realmente acontece, porque todos nós
estamos perfeitamente vestidos para matar; Devin está exalando autoridade,
com os músculos torneados do seu corpo se prensando contra o tecido
grosso do terno, os olhos verdes claros e a pele de porcelana sendo o
contraste perfeito em uma vastidão de cinza e preto; Kieran, com seu cabelo
crespo-cacheado e olhos cor de chocolate, se assemelha muito fácil a um
príncipe encantado nesse exato momento, pois seu sorriso cheio de dentes
brancos é mágico e reluz toda a sala em que nós estamos; Hunter, o mais
velho entre nós, no entanto, ao usar um terno de veludo preto, que combina
perfeitamente com seu cabelo e a sua barba cor de ébano mesclado com fios
grisalhos, parece a porra de um chefão. Ele é, sem sombra de dúvidas,
extremamente conservado para a sua idade. O cara parece um galã de
novelas, sem dúvidas. Tem uma estatura alta, ombros largos, um porte viril
e assustador à primeira vista de quem não o conhece.
Não é por nada não, mas, sinceramente, vestidos assim estamos
prontos para arrebatar e matar qualquer uma. Os olhos de algumas
funcionárias, que passeiam por nossos corpos sem pudor, estão injetados de
cobiça, luxúria e vontade, e só ajudam para confirmar ainda mais a minha
tese.
Espero que eu, apesar de estar pensando essas coisas na brincadeira,
arrebate de forma enérgica o coração de apenas uma única garota naquela
festa.
Mas algo em mim diz que ela irá causar esse efeito em mim muito
antes.

Os dias que antecedem o casamento passam voando, fazendo o


aguardado evento da cidade chegar ainda mais rápido do que
provavelmente nós estávamos esperando. Por isso, ao observar os
convidados espalhados por todo o perímetro, todos me parecem carregar a
mesma áurea: terrivelmente nervosos, ansiosos, com energia acumulada,
altas expectativas e muita, muita felicidade pelo passo significativo que
Amber e Hunter estão dando rumo ao “felizes para sempre” hoje.
Eu não me encontro muito diferente deles, entretanto.
A cerimônia está acontecendo na praia, antes do sol se pôr aqui em
Sun Valley, restrito aos nossos amigos mais íntimos. Tudo está decorado da
forma mais simples, bela e singela, diferente de tudo que costuma cercar o
casal. Há flores dos mais variados tipos e cores espalhadas por todo o lugar,
tapete de palha no meio da areia fofa para receber a noiva, assentos de cada
lado do tapete para os convidados prestigiarem o casamento, além de um
enorme arco repleto de rosas para recepcionar o casal, onde permanecerão
pertos um do outro para seguirem com todo o protocolo junto do Juiz de
Paz.
Parece que estou enfiando em um daqueles filmes clichês
adolescentes água com açúcar, mas não posso ser hipócrita ao ponto de
negar o quão bonito, romântico e aconchegante tudo se encontra.
Os convidados estão chegando demoradamente, o que faz Hunter
Leblanc levar seu lenço à testa todas as vezes que uma fina camada de
película de suor cobre seu rosto, os olhos escuros sempre atentos a tudo que
se passa ao nosso redor. Apesar de ser meramente engraçado para quem está
de fora, sei que ele está sofrendo ainda mais com toda essa demora, pois
quanto mais tudo se arrasta, mais tempo significa que terá que esperar até
poder ver com seus próprios olhos a mulher da sua vida vestida de branco.
E Devin, que estava ao meu lado, parece perceber o que acontece com seu
pai, pois decide sair do lugar que nos encontramos para se aproximar ainda
mais do mais velho, dando leves tapas em seu ombro e cochichando
algumas palavras motivadoras, suponho.
Desvio o meu olhar dos dois e me concentro na roda formada que
faço parte. Os padrinhos estão próximos, rindo e conversando amenidades
enquanto isso aqui não começa de fato, mas nada no assunto me prende,
então finco meus olhos e toda a minha atenção no grupo das madrinhas, que
está a apenas alguns passos de distância. Meu coração parece dar uma
cambalhota quando vejo Pasha Stratford rir de alguma coisa que Georgina
conta. A forma como o seu sorriso largo se molda em seus lábios cheios
pintados por uma grossa camada de batom coral faz com que ela transmita
paz, enchendo meu peito com esse sentimento muito mais do que as ondas
claras que se quebram no mar, muito mais que o vento que sopra os seus
fios flamejantes e muito mais que todo o cenário que nos cerca.
E cacete, ela está a coisa mais linda e angelical hoje.
Contrariando tudo e todos, totalmente livre do ar de garota marrenta e
diabólica, a ruiva está vestida e com a áurea semelhante à de um anjo
mesmo. Um anjo delicado, celeste, divino e que tem o poder de me deixar
enfeitiçado. Seu vestido, seguindo a paleta de cores e de estilo das garotas,
é de um rosa bem clarinho, com alças finas, decote em V — o que faz seus
seios volumosos quase saltarem para fora —, além de ter uma fenda
generosa na sua coxa direita totalmente torneada. Seus cabelos longos e
ruivos, que estão alinhados em ondas perfeitas e artificiais, caem feito
cascatas sobre seus ombros ossudos e possuem uma coroa de flores brancas
adornando o topo da sua cabeça. A maquiagem que usa é simples, mas ao
mesmo tempo caprichosa, e as pinceladas de sombra clara e brilhosa nas
pálpebras deixam seus olhos mais poderosos e maiores, escondendo pelo
menos um pouco o lado perigoso que perpassa por eles de vez em quando.
Quem olhar para ela agora, apenas desse jeito e com todo o ar que nos
envolve, certamente pensará que está diante da criatura mais fofa, doce e
meiga que já chegou a pisar os pés nessa terra.
E ela pode me odiar se me ouvir falar isso, mas ela é essa garota
também.
Longe da pose defensiva, sarcástica, má e endiabrada que sempre
costuma portar quase sempre, eu sei bem que existe uma grande parte do
seu ser que é doce, sensível, carinhosa, generosa, empática e única. Uma
parte que poucos tiveram o prazer de conhecer, o prazer de sentir e o prazer
de poder admirar. Eu, de uma forma que não entendo tamanha sorte, fui
capaz de presenciar, admirar e sentir cada uma das camadas infinitas dessa
mulher. Fui capaz de saber e entender todas as particularidades e todas as
mínimas coisas que a tornam tão, tão especial e insuperável. Fui capaz de
desvendar e mergulhar em todos os seus segredos, seus sonhos e suas
conquistas. Fui capaz de olhar com os meus próprios olhos o quão diverso,
plural e encantador o mundo de Pasha Stratford é.
Ela é arte, é a música clássica que tanto ama, com diferentes timbres e
tonalidades, criando um som profundo, rico e inesquecível para quem a
escuta. É os livros que gosta de ler, descarregando magia para quem a toca,
carregando infinidades de universos dentro de si, enlaçando o coração de
quem a desvenda através das entrelinhas e despertando sonhos a quem se
permite estar ao seu lado. Ela é o batom vermelho que constantemente
serpenteia seus lábios cheios; forte, intensa, marcante, que exala poder e
sensualidade. Ela é ferina, bate de frente, gosta de jogar e dar as cartadas
finais, tem essa sede de se manter sempre a um passo à frente e é capaz, em
um piscar de olhos, de colocar qualquer tipo de homem curvado aos seus
pés, endeusando-a como se ela fosse a droga de uma rainha pronta para
comandar as maiores das monarquias.
Pasha é o próprio inferno na Terra, mas também é o ser celestial mais
lindo, puro e encantador, daqueles que você jura não existir de tão perfeito
que é.
Acho que é por isso que me encontro terrivelmente apaixonado por
essa mulher — e que Deus e ela me perdoem por não ter percebido antes,
ou até mesmo lutado contra —, pois com a ruiva não tem essa de ser uma
coisa nem outra. Ela é simplesmente tudo. Ela é o fogo, a paixão, a
calmaria, a luxúria e o amor. Ela é tudo o que eu precisava, tudo que faltava
na minha vida, completando cada peça do meu quebra-cabeça de forma
simples e categórica. Chegou, ficou, montou as peças bagunçadas e
reivindicou cada pedacinho de mim e do meu coração para si.
Ah, porra, eu estou mesmo nas mãos dela.
A minha crise naquele dia com os meus amigos no rancho parece
totalmente estúpida agora. Apesar de eu ter escutado Devin e sentindo que
suas palavras realmente poderiam fazer sentido, além de que me deram um
gás que eu precisava para ter coragem de assumir tudo o que eu estava
sentindo, não consegui descartar totalmente aquela pontada de dúvida que
ainda queria habitar meu coração. Mesmo mais confiante e menos
paranoico, ainda tive um pouco de medo e de receio de não saber o que
estava sentindo, de não conseguir expressar e de não saber lidar por estar
crente que não saberia o que é amar e se apaixonar por uma mulher, pois
aquilo nunca havia acontecido, mulher nenhuma havia me amado. E agora
tudo o que eu senti parece bobo e pequeno, porque o que eu sinto agora ao
vê-la aqui, parecendo a porra do sol entre nós é tão grande, avassalador e
poderoso que eu poderia colocar o mundo ao chão se isso significasse fazê-
la feliz. E se isso não é ser capaz de demonstrar e de expressar o que sente,
então eu realmente não sei.
Sim, posso não ter experiência, posso ser novo nisso e posso cometer
diversos deslizes no meio do caminho, mas estou disposto a tentar se ela
também estiver. Estou disposto a ser uma melhor versão de mim mesmo,
estou disposto a enfrentar ainda mais os meus medos e traumas, chutando
para longe aquela voz irritante que sempre quer fazer com que a gente abra
mão do que nos faz feliz, estou disposto a ser melhor para mim mesmo e,
consequentemente, para ela também.
Eu só torço para que estejamos na mesma sintonia como tudo que
vivemos fez parecer.
Só torço para que ela sinta o que eu sinto bem aqui no meu peito, que
troveja e grita pela ruiva de constelações salpicadas pela bochecha e nariz,
que faz eu ter ainda mais certeza de que fomos feitos um para o outro, pois
tudo o que eu sempre amei desde pequeno faz abrigo em seu belo rosto;
suas porções de estrelas em formato de sardas.
Paro de pensar nas profundezas de Pasha quando a mesma se põe em
minha frente, esquadrinhando-me por completo. Pisco uma, duas, três
vezes. Não havia percebido sua aproximação, tão pouco que as madrinhas
já haviam se dispersado da roda de antes para se concentrarem ao nosso
lado. Agora todas elas estão ao lado do seu par, com posturas impecáveis
enquanto esperam para que possamos entrar. São tantos sorrisos abertos que
meus amigos distribuem por conta da emoção que acabam doendo a minha
vista.
Céus, eu me perdi tanto nas minhas divagações que também, mais
uma vez, não percebi que praticamente todos os assentos já estão ocupados
com os convidados que esperam animadamente os padrinhos entrarem.
Arrumo uma última vez a minha gravata, deslizo um meio sorriso
torto por entre meus lábios e ofereço meu braço para a diabinha, que revira
os olhos, divertida, e o pega com um bufar totalmente teatral. Dou risada ao
passo que começamos a caminhar até a fila de casais, ficando um pouco
atrás de Barbie e Devin. O casal inseparável olha para nós e acena dando
tchauzinhos e sorrisos de orelha a orelha. Troco um olhar injetado de
divertimento com Pasha antes de finalmente devolvermos o aceno na
mesma intensidade de felicidade. Eles aceitam nossos cumprimentos com
um aceno de cabeça e voltam a prestar atenção na frente, os ouvidos atentos
a próxima música que, provavelmente, será a nossa deixa.
Aprumo a postura e faço o maior esforço para não levar as mãos até o
meu cabelo enquanto espero, já que ele se encontra perfeitamente assentado
no lugar por uma quantidade generosa de gel que meus amigos me forçaram
a usar.
— Você está gato, Scott. — Stratford quebra o silêncio entre nós
quando o seu elogio sai baixinho feito um cochicho, como se aquilo fosse
uma confissão secreta e extremamente particular. Ergo as sobrancelhas e
cravo os incisivos na carne do meu lábio inferior para conter o sorriso que
luta para retorcer os cantos da minha boca. — Achei que precisasse saber
disso. — Dá de ombros ao empinar o nariz de forma impotente e
despreocupada.
— Eu não preciso que me digam o óbvio, diabinha — brinco, e ela
me olha com os lábios entreabertos. — E gato seria muito pouco para me
descrever, na verdade.
— Ah, é? E qual seria o certo então?
Dessa vez, não impeço que meus lábios se repuxem em sorriso
carregado de malícia e prepotência.
— Gostoso. Muito gostoso. Essas palavras, sim, me definem.
— Estou até com falta de ar agora. — Ela se abana e força para o ar a
entrar nos seus pulmões. — Seu ego é tão gigantesco que acabou de ocupar
todo o maldito espaço. — Pasha faz a quantidade exagerada com seus
braços e suas mãos, o que acaba me fazendo rir.
Até abro a boca para retrucar seu comentário, mas a música dos
padrinhos retumba através das caixas de som estrategicamente espalhadas
pelo local, fazendo com que a gente pare tudo para poder prestar atenção na
cerimônia cada vez mais próxima de acontecer. Um casal por vez começa a
desfilar pelo tapete de palha, sendo recebidos pelos convidados
emocionados, os fotógrafos contratados e suas câmeras enormes. Inspiro
profundamente quando Barbie e Devin são os próximos da fila, pois logo,
logo será eu e a garota espetacularmente linda ao meu lado.
— Você sabe que nós somos o casal mais bonito daqui, não sabe? —
pergunto, porém a nossa vez de entrar chega e tenho a plena certeza de que
serei ignorado, só que não é isso que acontece. Quando estamos quase no
meio do tapete, sorrindo para as câmeras e sendo recebidos por centenas de
flashs de todos os lugares, a escuto falar algo. Sai baixinho, quase como se
fosse mais para ela do que para mim, mas entendo perfeitamente bem o
“sei, sim“ que sai por entre seus lábios. Meu coração reage na mesma hora.
Completamos todo o trajeto perfeitamente bem e nos posicionamos ao
lado dos nossos amigos, que se encontram em um lugar reservado apenas
para nós. Daqui, ficamos perto do casal e conseguimos acompanhar sem
perder nada. Alguns minutos se passam, o último casal de padrinhos entra,
se juntam a nós logo depois e a ruiva segue com o braço enganchado no
meu em todo o processo, como se não tivesse se dado conta que não é mais
preciso ficarmos tão próximos assim. Gosto para um cacete que isso para
ela soe natural, porque para mim realmente é. Não há nada mais natural do
que a minha vontade absurda de sempre estar por perto dela, como se eu
fosse um maldito cachorrinho e ela a minha dona.
Rio internamente com os pensamentos, pois lembram-me o dia que
me zoaram lá no rancho por conta disso.
A marcha nupcial ressoa alguns minutos depois e a garota ao meu
lado se aperta ainda mais contra mim, como se não estivesse conseguindo
conter sua felicidade, euforia e ansiedade ao saber que Amber St. Claire
está pronta para entrar. Tiro meus olhos e minha atenção dela apenas para
prestigiar a noiva, que começa a aparecer para nós pouco a pouca. A tia da
Barbie, diferente do comum, não tem ninguém ao seu lado para acompanhá-
la nisso — e isso por total escolha dela —, já que quis demonstrar que,
independentemente de qualquer coisa, independentemente de estar próxima
de juntar sua vida com um homem, sempre foi ela por ela mesma. Não
houve família, não houve ninguém, apenas ela. Sua entrada é um grande
ato, demonstra sua liberdade, sua força, sua coragem e seu amor próprio,
que nunca foi e nunca vai ser diminuído ou deixado de lado por nenhum
tipo de circunstância. Nem mesmo agora.
Amber começa a caminhar por entre o tapete de palha posto sobre a
areia, seus olhos azuis feito o mar parecem estar tomados pela água
cristalina, fruto da emoção que a consome. Eles se conectam a Hunter e não
desviam nem por um segundo durante seu trajeto propositalmente lento.
Seu vestido branco e rendado aperta seu corpo curvilíneo nos lugares certo,
é de alças finas, tem algumas pérolas espalhadas pelo busto e, para
complementar tudo, há aquela fenda expondo uma de suas coxas. Uma flor
branca repousa em sua orelha direita e um pequeno buquê está preso em
suas mãos. Assim que se aproxima, cumprimenta o Juiz de Paz com um
aceno comedido de cabeça e se vira para seu futuro marido, que a recebe
com um beijo casto na testa. Eles sorriem, nervosos, e prestam atenção nas
palavras do homem atrás deles, que saem firmes e ecoam por toda Sun
Valley trazendo conforto, esperança e amor até mesmo para os corações
mais gelados.
Algum tempo depois, Amber e Hunter se declaram um para o outro
com seus votos emocionantes, que impulsionam lágrimas e mais lágrimas
de todos — inclusive da mocinha ao meu lado, que fungou baixinho e
tentou limpar a prova do crime com as costas das mãos em um movimento
rápido —, fazem as típicas promessas de que até a morte os separem,
colocam suas alianças e, em meio às lágrimas, selam o destino que sempre
esteve reservado para eles com um beijo. Nós batemos palmas, assoviamos
e assistimos toda a cena se desenrolar com um pôr do sol de tirar o fôlego
no fundo, a vastidão celeste sendo pincelada por tons de rosa, roxo e um
lindo laranja vivo num fim de outono.
Em seguida, todos nós damos parabéns aos noivos e desejamos tudo
de melhor nessa nova fase para eles. Assim que escutam e falam com todos,
Hunter e Amber ficam empolgados para aproveitarem a festa, saindo antes
de nós no Fordi Capri vermelho da noiva, que vai embora com as
costumeiras frases de recém-casados no capô do carro, arrastando várias
faixas atrás conforme pisam o pé no acelerador e somem dos nossos
campos de visão.
Não demora muito para que nós, embebidos da mesma empolgação,
saiamos da praia rapidamente rumo ao mesmo destino que eles.

A festa dos noivos está acontecendo no rancho dos The Hurricane


Freedom. Tudo está devidamente decorado como manda o figurino; há
flores por todos os lados, luzes bruxuleantes, uma enorme pista de dança
improvisada na relva, bebidas e comidas dos mais variados tipos e gostos,
garçons, fotógrafos, além de cabines de fotos e de tatuagens, que Amber St.
Claire, como a melhor tatuadora da cidade que é, resolveu disponibilizar
para quem quisesse rabiscar um pouco da sua pele hoje com alguns dos seus
poucos funcionários.
Espero não ficar chapado o suficiente para fazer alguma que me
arrependa no outro dia.
Com uma cerveja na mão e a outra tentando deixar o nó da gravata
um pouco mais folgado, me aproximo da pista de dança, já que o casal irá
performar a valsa que tanto ensaiaram em poucos minutos. Entorno o
restante do líquido na boca e o descarto em qualquer canto, agora me
colocando no meio dos convidados, que se aglomeram em frente a pista de
dança para que possam prestigiá-los da melhor forma possível. Apesar de
ter chegado com Pasha, a perdi de vista assim que passamos pela entrada do
rancho e ela decidiu procurar Barbie e Georgina para sabe se lá Deus o quê.
Não a encontro em lugar algum por aqui também. Decido relaxar os ombros
no momento em que a música embala Amber e Hunter direto para a pista.
Quando dou por mim, Devin se espreme entre as pessoas e fica ao meu lado
com a sua filmadora VHS em mãos, pronto para deixar esse momento tão
importante eternizados em fitas que, com toda certeza, serão assistidas
muitas vezes.
Aperto o ombro do meu melhor amigo, incentivando-o e o
parabenizando de alguma forma pela sua família, e ele sorri tanto que as
suas covinhas afundam em suas bochechas.
As luzes da pista se concentram todas no casal, e eles dançam como
se fossem totais profissionais nisso, como se tivessem sonhado com esse
momento uma vida inteira. Eles se movimentam para todos os lados,
executam cada passo sem pressa, rodopiam, sorriem e permanecem
conectados enquanto fazem tudo. Seus olhos conversam, a valsa bem feita
transmite palavras e emoções que atingem o meio do meu peito como uma
flecha extremamente pontiaguda. Enquanto olho para eles e enxergo o amor
dançando junto, sinto que quero ter o que eles têm. Quero ter o amor, o
companheirismo, a ligação, a sintonia, o tal do felizes para sempre. Quero
ser ainda mais forte, quero viver o que ainda não vivi, quero ter a
capacidade de embarcar em novos sentimentos, novas descobertas e quero
poder me sentir vivo, deixar o passado onde está. Quero poder finalmente
ser feliz sem medo. Ah, sim, eu quero. Quero muito.
Não sei em que momento me tornei esse idiota romântico e deixei o
babaca mulherengo escapar, mas até que não é tão ruim quanto eu passei
muito tempo acreditando que fosse. A verdade é que decidir abrir as portas
para o amor não dói. Dói é viver uma vida reclusa, restrita e com medo. Dói
é ser quem você não é.
Dói é se negar receber o que você merece só porque algum otário te
disse o contrário.
Inflo o ar nos pulmões e bato palmas assim que a dança termina.
Amber faz uma espécie de reverência para nós com o seu vestido, solta uma
risada e Hunter a acompanha, também agradecendo todos que os elogiam.
Quase meu corpo sobressalta quando duas mãos apertam minha
cintura. Olho sobre o ombro e enxergo a estatura mediana da diabinha
parada atrás de mim. Levanto uma sobrancelha em uma espécie de arco
perfeito assim que falo:
— Achei que fosse me abandonar.
Ela balança a cabeça, negando.
— Quem iria dominar a porcaria dessa pista de dança comigo se não
fosse você?
É automático que meu sorriso alcance tanto a minha boca quanto os
meus olhos agora.
— Você está sendo muito boa nas respostas ultimamente, gata. — A
observo se pôr em minha frente, sorrindo tanto quanto eu. — Assim fica
difícil lhe contestar.
A ruiva ergue os ombros e dá um passo em minha direção. Apesar das
pessoas nos cercando, só começo a me sentir claustrofóbico exatamente
agora. Com um sorriso exibicionista, ela entrelaça os pulsos ao meu redor e
coloca nossos rostos a pouquíssimos centímetros de distância. Quente. Essa
é a palavra que define esse lugar agora. Quente, abafado e sufocante.
— Eu sou só boa nisso ultimamente, Scott? — Sua voz, apesar de sair
em um sussurro, ainda sai de forma tão maliciosa e perversa que faz meu
sangue esquentar em níveis inimagináveis. Engulo em seco, e a diaba
parece perceber o que causara em mim, pois faz questão de sorrir,
escorregar e circundar bem lentamente sua língua aveludada em seu lábio
superior, daquela forma sexy que só ela consegue fazer. — Achei que você
estivesse ciente de todas as minhas qualidades. — Agora ela projeta o lábio
inferior para baixo, fingindo estar decepcionada. Balanço a cabeça de um
lado para o outro e a danada gargalha, aproveitando para arranhar a minha
barriga sobre a camisa social.
— Está tentando me provocar no meio de um casamento? — Minha
voz sai mais rouca do que o normal. — Você gosta mesmo de brincar com
fogo, hein, menina?
Seus olhos cor de avelã brilham em uma lascívia impressionante.
— Você sabe que te provocar passou a ser meu passatempo favorito.
— É. Eu sei bem disso. — E outra, brincar com fogo sempre me pareceu
muito mais interessante. Acho que para você também, não?!
Ah, com certeza.
— Por falar em fogo... — A ruiva soa sugestiva e estende a mão para
mim. — Pronto para queimar tudo nessa pista junto com a sua diabinha
favorita?
Se estivéssemos protagonizando um desenho animado, certamente
que apareceriam corações em meus olhos agora mesmo. Acho que acabo de
ficar um pouco mais caidinho — se é que é possível — por ela, pela sua
certeira escolha de palavras e pela forma manhosa que profere essa
pergunta bem no pé do meu ouvido.
Suspiro mais uma vez antes de entrelaçar minha mão na sua.
— Eu queimaria até no inferno se você estivesse ao meu lado, Pasha
Stratford.
Os primeiros segundos da música I Wanna Dance With Somebody da
Whitney Houston grita pelas caixas de som espalhadas pela festa e nós,
padrinhos, nos entreolhamos e sorrimos por saber que o momento que tanto
ensaiamos com Andrew, que está nos assistindo agora com um grande
sorriso serpenteando seus lábios, está finalmente pronto para se desenrolar
aos olhos de todos os convidados esta noite.
Deixo a música dançante e a voz marcante da cantora tomar conta de
mim e de todos os meus movimentos, executando cada um deles sem pensar
muito. Sorrio ainda mais por perceber que não fico nervosa, não erro e nem
acabo esquecendo nenhum passo enquanto nós dançamos só, sem estarmos
juntos do nosso parceiro. John, que está ao meu lado, troca de lugar comigo
como ensaiamos, e no meio do percurso não deixa de lançar uma maldita
piscadela para mim, o que acaba quase estragando tudo por deixar minhas
pernas levemente bambas. Por sorte, os assovios, a cantoria da galera e
os flashs incandescentes das câmeras dos fotógrafos fazem com que a bolha
de tensão que eu e o meu par acabamos de criar seja estourada rapidamente,
forçando-me a continuar a dança sem sentir que as minhas pernas possam
fraquejar a qualquer momento.
Droga de garoto estúpido. Droga de olhos azuis extremamente e
surpreendentemente claros. Droga de sorriso e de boca bonita. Droga de
beijos molhados e quentes. Droga de sensação avassaladora que atinge o
meio do meu peito e o meio das minhas pernas quando ele está
próximo. Mil vezes droga!
Por que, em nome do senhor, ele havia de ser tão bonito, tão
engraçado, tão perigoso, tão cuidadoso e tão amoroso? Deus, isso beira ao
absurdo. É um absurdo viver no mesmo mundo em que existe John Scott,
um ser humano de coração enorme, de bondade sem tamanho e de uma luz
capaz de ofuscar até mesmo quem se mantém longe. Imagino que deve ser
um absurdo também para todos ter que viver sabendo que nunca, em
hipótese alguma, conseguirão ser metade da metade do que ele é. Da
metade da metade do que ele é para seus amigos, sua família. Da metade da
metade do que ele é para mim.
Desde que soube sobre seu plano infalível de conseguir um trabalho
para mim na biblioteca, além da sua longa conversa com meu tio, meus
horizontes em relação a ele se abriram ainda mais, tudo passou a ficar ainda
mais visível, ainda mais cristalino. Se ainda havia uma parte de mim
negando, se ainda havia uma parte de mim querendo nadar contra a maré
que me atingia em cheio, ela acabou dando meia volta e escorrendo em
algum canto por aí depois daquele gesto que, para mim, foi muito maior do
que qualquer coisa que já recebi na vida. E olha que eu já
recebi muita coisa. Sinceramente, acho que nem consegui externar minha
gratidão como deveria, mas é que nada que passava pela minha cabeça
parecia estar à altura. Nada parecia tão bom quanto o que ele merecia. Eu só
consegui agradecer, encher os olhos de lágrimas e abraçá-lo, pois acho que
sempre falamos melhor quando estamos juntos, corpo a corpo. Eles se
entendem, possuem uma linguagem própria e tudo flui de forma calma, sem
pressa e que faz nossos corações baterem na mesma batida.
Naquela noite, quando meu peito estava repousado sobre seu peito,
constatei isso.
O ritmo que seu coração pulsava e zumbia em meu ouvido era exatamente o
mesmo que o meu seguia contra a minha caixa torácica: alto, impetuoso e
extremamente potente.
Naquela noite, após ele trazer esperança e reacender cada sonho
adormecido dentro de mim, constatei que não há nada nesse mundo que me
faça mais feliz do que John Scott e livros.
E assim que ele se põe em minha frente, pronto para finalmente
dançarmos juntos a música seguinte, que é lenta, calma e romântica, tenho
ainda mais certeza disso. Suas mãos tocam a minha cintura, elas me puxam
para mais perto e uma descarga elétrica parece perpassar pelo meu corpo no
minuto seguinte, arrepiando cada centímetro de pele. Engulo a seco, empino
o nariz e olho dentro dos seus olhos. Sem desviar do meu contato, John me
conduz na dança e flutua comigo por entre a pista improvisada, também
sem esbarrar ou atrapalhar nem um outro casal. A conexão e sintonia que
estamos tendo nesse exato momento parece evaporar dos nossos poros e
flutuar pelo ar em uma velocidade impressionante, totalmente diferente da
primeira vez que fizemos isso.
Se eu pudesse levantar os dedos agora, certamente conseguiria senti-
las pinicando em todas as pontas.
— Está satisfeita, Stratford? — Scott indaga, bem no pé do meu
ouvido.
Antes que eu possa responder, o loiro me afasta minimamente, pega
em minha mão e faz com que eu gire duas vezes, seguindo o passo que
todos fazem. Quando me traz de volta, um longo fluxo de ar escapole pela
minha boca.
— Com o quê? — consigo responder, enquanto me afasto para o lado
apenas para terminar a coreografia com a minha pose, que consiste em
cruzar os braços ao passo em que ele também faz o mesmo, nossos glóbulos
injetados um no outro.
Uma fina película de suor cobre minha testa ao mesmo tempo em que
sinto algumas gotas gotejarem pelas minhas costas, meu peito subindo e
descendo conforme tento, aos poucos, me recuperar da dança.
— Com o fato de que cumprimos — ele diz, por fim, a voz saindo por
um fio. — Cumprimos com a promessa de que seríamos o melhor casal
aqui. — Seu dedo aponta para baixo, indicando a pista de dança, o que
acaba sendo impossível não sorrir de forma abobada.
Mais aplausos, mais assovios, mais fotos.
Uma outra música toca, e reconheço-a dessa vez. É How Deep Is
Your Love de Bee Gees que faz o povo gritar, se soltar e correr para a pista
de dança.
E como todo mundo parece alheio a nossa presença, além de eu estar
me sentindo estranhamente animada por tudo ter saído lindo e como
planejamos, aperto o passo e quebro a pequena distância entre mim e John,
colocando minhas duas mãos em seu rosto para conseguir pressionar seus
lábios contra os meus. Em um primeiro momento, penso que irá recuar com
o meu contato tão íntimo na frente de tanta gente, mas não é isso que
acontece. Surpreendentemente, John arfa contra a minha boca, enrosca a
mão em meu pescoço e, sem se importar com nada e nem ninguém,
aprofunda o beijo de uma forma suave e doce.
— Você é feito uma caixinha de surpresa, diabinha — ronrona assim
que nos afastamos para recuperarmos o fôlego. — Uma caixinha de
surpresa e tanto.
Sorrio. Sinto que poderia me desmanchar em seus braços agora
mesmo.
— Boa ou ruim?
— Muuuito boa.

Não sei ao certo, mas acho que já tomei três ou quatro taças de
champagne depois que eu e John decidimos sair da pista para bebermos
alguma coisa. Tudo entre nós acontece muito rápido, então não me lembro
com exatidão quantas vezes já entornei o líquido transparente e espumante
em minha garganta, tão pouco me lembro em que momento ele me
convenceu a entrar em uma dessas cabines de tatuagem que Amber alugou,
só sei que conseguiu e que agora estou o observando folhear uma espécie de
caderno que o tatuador lhe entregou, onde provavelmente deve ficar os
desenhos de sua autoria.
John parece pensativo e seus orbes acompanham atentamente cada
detalhe nas folhas, enquanto o cara alto, tatuado e de barba escura e espessa
conta alguma coisa interessante sobre as artes do caderno. Não consigo
focar muito no que estão falando, estou mais interessada em assistir cada
uma das expressões interessantes que Scott expressa em seu rosto, uma
mistura engraçada de pânico e horror quando o homem não o olha.
Coloco a minha boca na borda da taça para evitar que uma risada
ressoe pelo lugar.
Cerca de pouquíssimos minutos depois, John se despede do tatuador,
para em minha frente e torce o nariz em uma careta ao passo em que
remexe a cabeça de um lado para o outro.
— O que aconteceu? — Uno as sobrancelhas, achando tudo divertido
demais.
Ele olha sobre os ombros, volta a me encarar, passa o braço ao redor
do meu pescoço e caminha para fora da cabine comigo em seu encalço. É só
quando estamos fora do lugar que menciona:
— O cara era meio mórbido. — Assovia. — Acredita que ele só tinha
desenhos de caveira, morte e coisa do tipo? — Faço a minha melhor
expressão de surpresa, embora não esteja totalmente. — Além de ser
sinistro demais, eu também não teria como fazer uma sem tirar a calça e
talvez até a cueca, já que tudo aqui em cima se encontra cheio de desenhos.
Meio inapropriado para o momento, não acha?
Seguimos caminhando pelo rancho sem destino algum.
— Você já é inapropriado por natureza, querido — menciono,
achando graça.
Seu sorriso atroz toma conta de todo seu rosto agora.
— Ouvi dizer por aí que é a qualidade minha que você mais gosta.
Abro a boca para lhe chamar de convencido, mas nós dois paramos
com qualquer conversa quando Barbie, Devin e Georgina aparecem afoitos
em nossa frente. Eu e John, como de costume, nos entreolhamos com as
sobrancelhas unidas.
— Estávamos procurando por vocês — Georgina diz, e vejo que seu
peito sobe e desce, como se todos eles tivessem acabado de correr a festa
inteira em busca da gente. — Vamos tirar fotos na cabine! — Soa
totalmente animada e saltitante ao apontar para atrás de si.
E tão rápida quanto chegou, Georgina Sinclair desaparece atrás da tal
cabine de fotos.
Eu, John, Barbie e Devin gargalhamos ao assisti-la correndo no meio
da relva.
Sem falarmos mais nada, e ainda sorrindo, seguimos os passos da
maluquinha para congelarmos esse momento em fotos. Já passando pelas
pequenas cortinas vermelhas da cabine, nós cinco ficamos imprensados
quando estamos dentro do local apertado para que todos possam ficar
enquadrados pela câmera. John, que está atrás de mim e ao lado do melhor
amigo, imita a pose dele e da namorada ao pôr os braços ao redor da minha
cintura e repousar o queixo na curvatura do meu ombro. Não reclamo,
entretanto. Deixo que me abrace, inspire o cheiro de creme de cereja na
minha pele e faça com que as borboletas se alojem no meu mais profundo
âmago só pela posição que estamos.
O sorriso que adorna meus lábios pincelados por batom coral é
extremante largo e sincero quando olho para a câmera.
— Meus amores e casais da minha vida... — Georgina fala assim que
a máquina começa a fazer a contagem regressiva. — Digam X para a
mamãe aqui!
Todos nós rimos da escolha de palavras dela.
— X! — é o que dissemos em uníssono, totalmente sorridentes,
quando a contagem termina e a câmera se volta totalmente para nós.
No começo, todos nós fazemos poses bonitas e bem comportadas,
mas quando vai chegando no fim, fazemos infinitas caretas com direito a
línguas e dedos do meio. Scott, em uma das últimas, vê que Devin e Barbie
estão se beijando e faz isso comigo também. No final de tudo, quando
saímos da cabine e as fotos saem por aquele lugarzinho de costume, rimos
ainda mais do resultado quando percebemos que Georgina foi capturada
fingindo segurar uma vela enquanto eu beijava John e Barbie beijava
Devin.
As fotos estão nas minhas mãos, então John fica atrás de mim
observando cada uma delas. E quando eu viro lentamente sobre os ombros
para prescrutar seu rosto nesse interim, seus glóbulos logo capturam os
meus. Seu sorriso enfraquece e vacila em seus lábios, seus longos e
espessos cílios se chocam tantas vezes um no outro quando me observa que
acabo fazendo o mesmo por estar totalmente hipnotizada e presa nesse
momento.
Pisco e entreabro os lábios.
Nossos amigos, que estão ao nosso lado conversando e rindo de algo
aleatório, parecem não perceber essa redoma estranha que nos enfiamos de
repente. Parece haver palavras não ditas em seu olhar e não consigo decifrar
muito bem o brilho diferente que perpassa por suas írises nesse momento.
— Eu... eu — John tenta deixar que algo saia, mas sua boca
friccionada não deixa que nenhum som escape. — Eu preciso conversar
algo com você, mas antes eu preciso fazer uma coisa. Você se importa em
esperar alguns minutos?
Meio a contragosto, já que sinto a curiosidade borbulhar dentro de
mim, assinto. John aquiesce, diz que volta já para os nossos amigos e
arrasta os sapatos sociais para algum ponto lá na frente. Tentando não surtar
com os meus questionamentos internos sobre o que ele tem de tão
importante para me falar, aceito o convite de Barbie, que acaba de perguntar
se quero me juntar a eles na pista de dança.
Me ponho ao lado da minha melhor amiga e ela se desgruda do
namorado apenas para enlaçar os braços em minha cintura e encostar sua
cabeça em meu braço enquanto caminhamos. Sorrio para ela sem descolar
os lábios e devolvo seu aperto genuíno.
— Ver você livre, feliz e desprendida dos seus medos me deixa muito
feliz, sabia? — Barbie sussurra só para que eu escute, e eu assinto sem nem
pensar duas vezes. Como passamos por muitos problemas parecidos e
trilhamos um caminho tortuoso até consolidarmos essa amizade que temos,
é impossível não saber que ela se sente feliz e orgulhosa por mim. Eu me
sinto exatamente assim por ela, me sinto exatamente assim por saber que
ela está finalmente vivendo a vida que sempre quis. — Apesar de você ser
uma traidora e ter me abandonado lá no Fast Rocket, ainda te amo.
Gargalho, porque assim que minhas amigas ficaram sabendo da
minha mudança súbita de emprego, me chamaram de tudo quanto é nome.
Falaram que eu era traidora tantas vezes que quase comecei a achar que era
verdade. Apesar das brincadeiras, me apoiaram mais do que tudo. Até
fizeram uma visita para mim lá na biblioteca e ficaram me assistindo
enquanto eu lia Os Três Porquinhos no meio da roda de crianças.
Parecendo ler o que se passa em minha mente, Barbie continua:
— Você está amando trabalhar lá, não está? — Confirmo mais uma
vez. Trabalhar com crianças sempre foi tudo o que mais quis na minha vida.
Estou amando ler para elas, amando escutá-las me chamando de tia Pasha,
amando cada momento que venho passando durante essas poucas semanas.
Entrar naquele lugar é como revigorar as energias um milhão de vezes. —
Dá para perceber pela forma como seus olhinhos brilham.
Tenho certeza que meus olhos brilharam dessa mesma forma quando
fui fazer a entrevista de emprego, pois foi uma das primeiras coisas que
mencionaram para mim quando me deram a notícia que a vaga seria minha.
Sorrio só de lembrar.
— Agora tenho ainda mais certeza que quero isso para minha vida —
confidencio a ela. — Tudo graças a John Scott. Quem diria, huh?
— Eu diria — Barbie menciona assim que chegamos na pista de
dança e as luzes nos atingem tanto quanto a música. — Eu sempre disse —
a garota de cabelos dourados grita por cima da voz de Ramones.
Balanço a cabeça de um lado para o outro e reviro os olhos,
brincalhona, e aproveito para puxar Devin Leblanc para mais perto de nós,
que estava um pouco separado como se estivesse querendo nos dar espaço.
Ele cantarola a música, pega a mão da namorada e encosta as costas dela
em seu peito, indo de um lado para o outro conforme permanecem juntos.
Passamos tantos minutos dançando que perco a noção do tempo.
Sinto a minha respiração ficar pesada, meu coração pulsar na batida da
música envolvente e a minha cabeça rodopiar pelo álcool que consumi mais
cedo. Cerca de vinte ou trinta minutos depois, já com os meus pés doendo,
sinto a falta de John e lembro de suas palavras antes de simplesmente sumir.
Sentindo algo estranho revirar no meu estômago — que dessa vez não é por
conta do champagne —, dou as costas para os meus amigos e peço licença
para as pessoas conforme vou tentando sair da pista. Afasto algumas com o
cotovelo e, assim que já estou livre dos corpos amontoados e suados, tento
procurar John pela festa, mas não o encontro em canto nenhum.
Sigo desbravando o rancho e a preocupação de algo ter acontecido
com ele faz com que mãos invisíveis apertem a minha garganta, o meu peito
também sendo esmagado pelo meu coração frenético e ansioso por uma
resposta. Arrasto meus pés livres de salto pela relva, sentindo as plantas
pinicarem os solados desprotegidos. Apesar disso, não paro.
Estou passando pelos trailers prateados quando algo me faz parar.
Pela janela do trailer da minha frente, vejo John passar de um lado para o
outro, como se estivesse ansioso com algo. Cautelosamente, me aproximo
pouco a pouco a fim de tentar ajudá-lo com o que quer que seja. Paro ao
lado da porta quando, de repente, vejo mais uma figura dentro da moradia
em rodas.
Uma garota, para ser mais exata.
Mesmo sabendo que é errado, não saio do lugar. Na verdade, até me
aproximo mais para tentar enxergar um pouco mais. Só então quando vejo
os fios vermelhos com pontas alaranjadas e o piercing brilhando em seu
supercílio é que a reconheço. Daisy Flinch. Daisy, uma das garotas trazidas
por Hunter da cidade vizinha e a única que havia permanecido por aqui.
Sinto meu coração quase parar pelo sentimento intenso que o inunda feito
tsunami quando observo os dois juntos, sozinhos nesse lugar. A pontada que
sinto ao pensar nisso me faz retesar.
Sinais vermelhos pipocam em minha vista e sirenes ecoam em minha
cabeça, impulsionando-me a sair desse lugar o quanto antes, mas contrario
todos eles e continuo aqui, extremamente perto deles.
— Eu não sei como te falar isso. — Ouço John dizer para Daisy, o
que faz meu coração bater ainda mais rápido com a adrenalina de estar
prestes a escutar algo que não deveria. Finco o incisivo na carne do meu
lábio inferior enquanto o escuto. — Mas eu preciso te dizer de uma vez.
Preciso tirar isso que está entalado na minha garganta e que me faz perder o
ar. — Ele dá um passo e para em frente à Daisy, olhando-a de um jeito tão
apaixonante, daquele jeito que costuma só fazer comigo que faz um bolo se
alojar em minha garganta. — Então, não sei como irá reagir ou o que fará
com essa informação, mas me encontro terrivelmente apaixonado por você.
Estou apaixonado por todas as coisas que envolvem você, só por serem
suas. Estou completamente em suas mãos desde o momento em que te vi
pela primeira vez. Acho que eu sempre soube que terminaria assim, mas
não me importo. Estou completamente e inteiramente pronto para ser seu...
A partir desse momento, não absorvo mais nada.
Não consigo se quer prestar mais atenção no que ele fala, sua voz sai
completamente distante agora. Olho para minhas mãos e percebo que se
encontram trêmulas. Uma gota gorda de lágrima cai sobre elas. Pisco e mais
outras caem.
Só então percebo que estou chorando.
Meu coração se comprime tanto quanto meus pulmões, que me
impossibilitam de respirar trivialmente enquanto suas palavras permanecem
ecoando em minha mente feito um loop insanamente doloroso. Ainda
tentando desesperadamente trazer o ar de volta, saio desse lugar e marcho
em direção à saída sem me importar com as unhas que cravam e machucam
a palma da minha mão, tão pouco com as lágrimas que nublam os meus
olhos e insistem em embaçar todo o caminho que percorro.
A única coisa que consigo pensar, enquanto corro para longe como se
a minha vida dependesse desse momento, é que o que ele tinha para me
contar era isso. Ele iria se declarar para ela e viria me contar, provavelmente
rir da minha cara por ter sido tão estúpida e idiota de não ter percebido que
estava dormindo e me entregando para um homem que estava
completamente apaixonado por outra. John Scott provavelmente me
humilharia na frente de todos e cuspiria o quanto eu não passei de um jogo
sádico para ele, o quanto eu não passei de mais uma garota fácil, ingênua e
que se deixa levar por meias verdades, cantadas baratas e ilusões bem
atuadas e dignas de Oscar. Diria para todos o quanto eu sou insignificante,
cheias de defeitos, venenosa e que não sirvo para nenhum tipo de cara.
O choro irrompe em minha garganta e já não me importo de estar
soluçando.
Me doei de corpo e alma, embarquei nessa sabendo que era perigoso,
que iria contra todos os meus princípios e contra tudo o que eu vinha
lutando, e mesmo assim quebrei a cara. Porque enquanto eu estava
sentindo, enquanto tudo da minha parte era verdadeiro, ele estava apenas
rindo nas minhas costas e me... usando.
Enquanto me apaixonei perdidamente por John Scott, que foi o único
que conseguiu desarmar toda a munição que eu carregava para me proteger,
ele só estava esperando o momento certo para pegá-las em suas próprias
mãos e usá-las contra mim. John tem a porra da arma mirada no meu
coração agora e o tiro vem certeiro, corroendo todo o meu organismo por
dentro, maculando minha alma com o vermelho. Sinto o gosto do sangue,
da derrota e do coração partido bem na ponta da minha língua. E todos eles
são horríveis. Todos eles fazem que eu sorva para dentro de mim o gosto de
ter experimentado brincar com fogo, como ele mesmo disse hoje mais cedo,
e tudo dentro de mim queima por isso.
Rio escárnio com a constatação enquanto todo o meu corpo treme; de
pavor, de dor, de ódio. Ódio dele. Ódio de mim. Porque, no fundo, eu
sempre soube que esse momento aconteceria. Eu sempre soube que John e
eu acabaríamos assim. Que acabaríamos em ruínas, destroços e fogo
generalizado, capaz de provocar ferimentos impossíveis de serem curados
com facilidade. Mas, mais uma vez, fui burra ao acreditar que poderíamos
dar certo, que poderíamos ir contra qualquer estatística que mostrasse para
nós o quanto perigoso tudo estava sendo. Fui burra ao acreditar que, dentre
as opções caso isso acontecesse, não seria eu a afetada por nosso jogo agora
corrompido. Fui impulsiva, sonhadora, infantil, me deixei ser levada pela
necessidade que, no fundo, sentia de finalmente me sentir pertencente a
algo ou alguém.
Seco as lágrimas com as costas das mãos quando estou na saída e
avisto meu carro. Corro até ele e o abro em um ímpeto, escorregando para o
banco do motorista. Procuro pela chave dele na minha bolsa, pesco-a entro
os dedos e o ligo com as mãos tremendo. Antes de dar partida e ir para casa,
bato incontáveis vezes no volante e deixo um urro de dor escapar pela
minha garganta já dolorida de tanto segurá-lo. A água cristalina reaparece
em meus glóbulos, só que dessa vez não sei se elas caem copiosamente por
mim, por John ou por Daisy, que terá o que eu tanto almejei enquanto
estávamos juntos: a paixão dele. Sinceramente, acho que é por uma junção
de tudo.
No automático, sem de fato prestar atenção na estrada escura e
desértica, dirijo para casa. Momentos de nós dois pipocam em minha mente
durante o trajeto e me pergunto quando me tornei tão iludida, pois tudo
parecia sempre tão sincero e verdadeiro quando se tratava de nós dois. Tudo
parecia tão real e recíproco. Não consigo não me questionar com o que ele
pode ter ganhado fazendo tudo isso. O que ele pode ter ganhado brincando
comigo, com o meu coração e, ainda por cima, com as minhas feridas
internas não cicatrizadas e que se tornaram ainda mais expostas agora.
A única explicação plausível que encontro é que John Scott sempre
quis ser o único que conseguiu me colocar lá em cima só para me arrancar
com as suas próprias mãos depois. Me assistir ruir em meio às cinzas do
que achei que construímos juntos talvez sempre tivesse sido seu maior
objetivo.
Bom, devo dar meus parabéns, pois ele chegou muito bem nele.
Quando percebo, alguns longos minutos depois, já estou adentrando a
rua que vivo com meus tios. Assim que passo por algumas casas da
vizinhança, enxergo, mesmo que de longe, as luzes vermelhas da sirene de
uma ambulância. Achei que não fosse possível, devido ao estado que me
encontro, sentir mais um arrepio percorrer pela base da minha espinha, mas
é exatamente isso que sinto ao me aproximar mais com o carro e ver que
uma movimentação atípica acontece bem em frente da minha casa. Uma
movimentação derivada de pessoas e paramédicos, que correm com uma
maca, totalmente apressados, até estarem de volta a ambulância.
Ainda no automático, estaciono o carro, escorrego para fora e me
aproximo de tudo sentindo a veia latejando em meu pescoço.
Meus olhos fincam em meu tio, que sai da casa chorando ainda mais
ao me enxergar em meios às outras pessoas.
Sr. Wilson se aproxima e me perco completamente quando o escuto
balbuciar:
— Rosalinda... — Seu choro sôfrego me faz prender o ar dentro dos
pulmões e apertar ainda mais as unhas na carne da palma. — Ela... ela... ela
está morta.
Pisco. Pisco uma, duas três vezes.
Como se fosse uma mera telespectadora, assisto quando meu tio
envolve seus braços em meu corpo e me embala em um abraço
desengonçado e repleto de carga emocional. Pouco a pouco, me deixo ser
tomada pelo vazio que se aloja em meu peito e, simples assim, sucumbo.
Sucumbo na dor pela segunda vez na noite.
Perder alguém que se ama muito, mesmo que de forma repentina ou
que você já sentia que estava prestes a acontecer em algum momento
devido à vários fatores que não nos cabem mudar, deveria ser algo proibido
pelo universo, afinal, ninguém está preparado para dar adeus a quem ajuda
a tornar seu mundo um pouco mais colorido e tolerável no fim do dia.
Ninguém está preparado para entender que, enquanto estivermos nesse
mundo, não veremos mais essa pessoa sobre hipótese alguma. Ninguém
está preparado para deixar para trás um sorriso, um conforto, um ombro
amigo e um amor. Ninguém está preparado para lidar com a dor da perda, a
dor da saudade e a dor de saber que a vida é um trem que anda sob trilhos
infinitos, cujo a duração de algumas pessoas dentro dele será mais curta que
a de outras que, eventualmente, ainda não cumpriram seu propósito no
vagão.
E eu, definitivamente, não estava preparada para dar adeus à
Rosalinda de uma forma tão súbita e precípite. Não estava preparada para
entender que uma pessoa que passou a estar comigo o tempo todo,
simplesmente não estará mais. Não estava preparada nem pronta para
entender que o seu propósito no vagão havia se cumprido, tornando-a
pronta para ir embora do trem e nos deixar sem a sua companhia, sem a sua
preocupação e zelo diário, sem o seu toque de amor e a sua alegria que
preenchia e tomava conta de todos os lugares da casa. Da nossa casa.
Minha tia sofreu um ataque fulminante no banheiro na noite de
ontem, enquanto seu esposo terminava de fazer o jantar na cozinha. Ele
escutou o barulho, gritou o seu nome, ela não respondeu e bom, a ajuda
chegou tempo depois e tudo se transformou em um borrão na minha mente
e, provavelmente, na do meu tio também, que teve que tomar a frente para
organizar as coisas que precisavam ser organizadas.
O funeral dela está ocorrendo aqui em casa e tudo faz com que minha
cabeça rodopie feito um peão e o gosto da bile invada minha boca. Sempre
odiei funerais; o de Penelope fora um tormento e um pesadelo que me
assombra até hoje. Os salgadinhos, as pessoas, as conversas fúteis sobre
amenidades, bebidas... Qual sentido possui essas merdas? Eu poderia
facilmente gritar e enxotar todas essas pessoas hipócritas daqui agora
mesmo. Mas seria idiota da minha parte. Isso aqui, embora eu não entenda,
é importante para o meu tio e eu o respeito bastante ao ponto de aceitar
qualquer coisa que ele decida fazer para manter viva de alguma forma a
memória de sua esposa.
Solto um muxoxo e meu cenho se franze em uma careta quando vejo
a pilha de salgadinhos posta na mesa à minha frente.
Não coloquei nada na boca desde ontem na festa e nem preguei os
olhos em nenhum momento quando cheguei. Minha visão pisca com
pontinhos brancos e tenho certeza que é um grande aviso do meu corpo
sobre o meu esgotamento físico e mental capaz de entrar em colapso a
qualquer momento. No entanto, não tenho força e nem desejo de me
alimentar. Mesmo que não tenha comido nada há horas, sinto como se
minha barriga estivesse forrada por toda comida provinda de um banquete
enorme. A região toda do meu estômago dói e protesta, mas nada que possa
me afetar ou até mesmo se sobrepor a dor dilacerante que sinto no meu
peito por estar diante do caixão da minha tia a poucos passos de mim e por
ainda estar sentindo o peso da decepção amorosa extremamente recente.
Rio descrente comigo mesma.
Como é que pode tamanhas notícias ruins em um dia só? Achei que
depois da morte da minha irmã, que ainda não é uma ferida cicatrizada,
nada mais pudesse me abalar ou me fazer perder as rédeas da minha vida.
Achei que nenhum tipo de dor me atingiria mais, pois acreditei que tudo
que passei com Penelope na sua luta pela vida fosse ser a única, já que
havia sido grandiosa e dolorosa demais. Mas é claro que eu estava
totalmente enganada. Mais uma vez.
A dor poderia até demorar, poderia até deixar eu desfrutar um
pouquinho do que é estar livre dela, mas ela sempre voltaria. Ela sempre
acharia um caminho de volta para a minha vida, pronta para se impregnar
em mim como uma espécie de doença ou uma sina maldita.
Pisco um par de vezes para tentar despistar as lágrimas. Estou me
sentindo farta de tanto chorar. Estou farta de me sentir em verdadeiros cacos
de vidro. Por isso, meio que a contragosto, decido aprumar a postura,
limpar as palmas das mãos suadas na barra da saia lápis preta que uso e sair
dessa casa, escutando meus saltos tilintarem contra o assoalho bem polido
conforme marcho até a porta. No momento em que estou do lado de fora, a
brisa da tarde escura e nebulosa lambe meu rosto e faz com que eu abrace
meu próprio corpo. O inverno em Hellaware está cada vez mais próximo e
isso faz com que pancadas de chuvas apareçam justamente hoje, deixando o
tempo mais frio e mais fechado. Apesar de não estar chovendo agora, sei
que começará a qualquer momento só pelo fato das nuvens estarem densas,
largas e mais próximas umas das outras. Acredito que até os deuses que
abrigam o céu sentem que a morte da minha tia não só foi uma grande perda
somente para mim e para o meu tipo, e sim para o mundo também. O
mundo acabou de perder um ser humano cheio de luz e que fazia a
diferença na vida de outras.
Um trovão impiedoso ribomba pelo ar e me faz estremecer.
Tiro os olhos do céu e eles logo se concentram na figura loira que
caminha em minha direção.
Minha garganta aperta e preciso apontar a ponte do nariz para não
chorar feito um bebê novamente.
Georgina Sinclair, com seus lábios cheios friccionados, para a poucos
passos de mim e abre seus braços, claramente me chamando para um
abraço. Não hesito e corro até a minha amiga. Seus braços finos me
envolvem e suas mãos afagam meus cabelos, sussurrando no meu ouvido
que ela está aqui e que tudo ficará bem. Deito minha cabeça na curvatura do
seu pescoço, inspiro seu aroma doce e enjoativo que tanto amo e me
permito ser vulnerável mais uma vez.
— A Barbie já ficou sabendo — Georgina conta, as mãos descendo e
subindo em um carinho singelo em minhas costas. — Ela vai te ligar
depois. Mas disse que sente muito por tudo o que aconteceu, que te ama
demais e que você nunca estará sozinha. Faço das palavras dela as minhas,
está me ouvindo? — Em meio às lágrimas e soluços, assinto. — A gente vai
passar por essa tempestade juntas e de mãos dadas, eu prometo.
Me agarro ainda mais em Georgina e faço das palavras dela a minha
âncora.

Assim que a festa de casamento estava pelo seu fim, Barbie, Devin,
Amber e Hunter pegaram um voo pela madrugada com destino à Nova
York, cidade natal da família St. Claire, onde decidiram que seria o lugar
perfeito para se passar a lua de mel dos noivos — que fizeram questão de
levar os garotos consigo. E hoje, dois dias depois do velório de Rosalinda,
Barbie me ligou da cidade que nunca dorme e ficou conversando comigo
por horas sobre como eu estava me sentindo, como meu tio estava, se eu e
ele estávamos nos alimentando, bebendo água direito e essas coisas super
protetoras que é de seu feitio. Minha amiga disse que apesar de não ter
conseguido comprar um voo para ela e Devin ontem ou hoje, já que é quase
final de ano e as coisas estão uma loucura com o pessoal viajando,
conseguiu um para a próxima semana. Eu quis matá-la por ter feito isso e,
consequentemente, estragado o momento dos dois com preocupações
excessivas comigo. Mas não adiantou de muita coisa, a baixinha disse que
estava feito, que eu não tinha que opinar nada e que logo, logo ela estaria
aqui para ficar ao meu lado o tempo todo para me irritar ainda mais.
Não consegui não conter o primeiro sorriso sincero nas últimas vinte
e quatro horas enquanto conversávamos.
Mas apesar de termos conversado sobre tudo, não mencionei sobre
John e o que eu presenciei na festa. Acho que tive medo de que ela deixasse
escapar para o namorado e ele contasse para John, que é o seu melhor
amigo. Sei que Barbie não contaria caso eu pedisse, mas quis evitar ainda
mais drama em minha vida. Ultimamente tudo anda saindo do meu controle
para dar errado, então quanto custa evitar?
Levanto da minha cama para abrir a porta quando escuto batidinhas
serem desferidas sobre ela. Assim que giro a maçaneta gélida, encontro os
olhos profundos e arroxeados de David encarando os meus. Engulo em seco
pela sua aparência acabada e dou espaço para que entre.
— Então... — O escuto dizer depois de limpar a garganta e se sentar
na ponta da minha cama. Faço o mesmo caminho percorrido por ele e me
sento em sua frente. Puxo as mangas do suéter que uso e o encaro,
incentivando-o a continuar assim que levanto uma das minhas sobrancelhas.
— Estive pensando uma coisa esses dias, Pasha.
— Sobre o quê?
— Sobre o meu futuro. — David pressiona os lábios e olha para
alguma coisa aleatória em suas mãos. Tenho certeza que está tentando evitar
chorar em minha frente, assim como vem fazendo esses dias, somente para
que não me mostre nada mais e nada menos que força. E olha que ele é
muito. — Eu não consigo mais ficar nessa casa, sobrinha. Simplesmente
não consigo. Tudo aqui tem o cheiro da sua tia, o toque dela, a luz dela e
isso está me matando aos poucos, como se eu pudesse enlouquecer a
qualquer momento. Você sabe o que é escutar o grito da sua mulher antes de
desfalecer zumbindo em seu ouvido todas as noites? Eu não estou sabendo
lidar com nada disso! — Meu tio para de falar, e as lágrimas começam a
despencar do seu rosto, maculando o lençol branco da minha cama. Apesar
dos meus olhos arderem com o seu sofrimento, não demonstro e decido
pegar suas mãos e entrelaçá-las nas minhas. — Eu sinto muito, Pasha. Eu
sinto tanto. Não queria ter que te dizer isso, não agora que estava se
sentindo pertencente a esse lugar e a essa cidade, mas eu preciso te dizer.
Preciso te dizer de uma vez por todas.
Mordo o interior da bochecha, nervosa, e assinto para o que quer que
ele tenha a me dizer agora.
— Nós vamos ter que voltar para o Alasca.
Se fosse em outro momento, a revelação que sai por entre os lábios do
meu tio me deixaria baqueada. Não é como eu me sinto agora, entretanto.
Eu não sinto nada além de compreensão.
Para ser sincera, eu o entendo. Entendo de verdade. Deve ser doloroso
ficar na mesma casa que construiu a vida ao lado de alguém, onde tudo,
eventualmente, irá te fazer recordar de cada momento. Se ele quer voltar
para a sua cidade natal, mesmo que isso signifique que terei que ir junto
para ficar nas garras dos meus pais novamente, eu aceito. Eu aceito
qualquer coisa desde que seja para que ele se sinta um pouco melhor para
poder reerguer e recomeçar a sua vida.
— Tudo bem — respondo, sinceramente. — O senhor tem certeza
que é isso que quer? E o Fast Rocket? Achei que ele fosse o seu maior
orgulho. — Dou um pequeno sorriso, e David me acompanha nessa.
— Meu maior orgulho era ela. — Meu tio solta minhas mãos apenas
para secar o canto dos seus olhos ao passo em que funga. — E eu não vejo
mais sentido em continuar sem Rosalinda. Não há nada que me prenda mais
nessa cidade. Além de que já trabalhei demais, minha sobrinha, agora está
na hora do seu velho se aposentar e voltar para às origens.
Com a ponta do suéter, seco uma única lágrima desavisada que rola
pela minha bochecha.
— Então é isso — concluo por nós dois. — Vamos voltar para o
Alasca.
Meu tio confirma com um acenar positivo de cabeça.
Penso em Barbie e Georgina e meu peito pesa com o fato de deixá-
las, mas todas nós sempre soubemos que a minha estadia aqui não era para
sempre. Além de que, apesar da saudade que sentirão, eu sei que me
entenderão super e serão as primeiras a me apoiar. E, claro, farei questão de
levá-las para lá sempre que possível, então não é como se fossemos cortar
laços e acabar com qualquer contato. Distância não é nada quando a nossa
conexão e amizade — que passou por altos e baixos — é extremamente
forte.
Respiro pausadamente e solto todo o ar pela minha boca.
Dói dizer isso, mas não há mais nada nessa cidade que me faça querer
ficar. Até o trabalho na biblioteca faz com que eu queira fugir para longe só
para não ter que lembrar de como fui parar lá. Só para não ter que me
lembrar dele.
Assim como o meu tio, não há mais nada que me prenda aqui.
Pasha está desaparecida há exatos dois dias e meio.
Não a vejo desde a festa de casamento de Amber e Hunter no rancho.
Não a vejo desde que falei que precisava conversar algo sério com ela. Não
sei o que deu na ruiva para simplesmente evaporar de um dia para o outro.
E eu não ficaria tão aflito assim em um outro momento, afinal, só são dois
dias, mas o que me faz ter a certeza de que algo está errado é que todas as
vezes que ligo para o número residencial da casa dos seus tios, chama,
chama e ninguém atende. Até pensei em passar na sua casa ou na
Biblioteca, só que não quero bancar nem parecer o cara chato, grudento e
possessivo que precisa saber de todos os passos da garota que sai. Então
preferi esperar pacientemente — mais ou menos — enquanto ela toma o
tempo que precisa para sabe se lá o quê.
Mas a verdade é que, mesmo que eu tente muito, não consigo ignorar
essa pontada estranha que se aloja em meu peito. Não consigo ignorar o
fato de que ela saiu extremamente cedo da festa e ninguém soube me dizer
o porquê. Sinceramente, fico com medo de que tenha sido por minha causa.
Fico com medo dela ter percebido a minha aproximação, o brilho que
resplandecia em meus olhos azuis enquanto estávamos juntos e a minha
falta de jeito para contar que tinha algo para falar como possíveis sinais de
que eu finalmente revelaria meus sentimentos naquela noite. Embora isso
realmente fosse acontecer, talvez ela não tenha gostado nada de chegar a
essa constatação. Talvez ela tenha fugido para não olhar na minha cara e
dizer com todas as letras que não estava nem um pouco perto de retribuir o
que eu sentia.
São muitas possibilidades.
Foi por isso que pedi cinco minutos a Pasha. Mesmo sentindo que era
o momento certo, afinal todo o cenário era romântico e propício a
declarações, ainda estava nervoso, com medo e criando mil paranoias na
porra da minha cabeça. Então decidido a esfriá-la, fui para perto dos
trailers, fumei alguns maços de cigarro e tentei gravar em minha mente
todas as palavras que usaria quando estivesse frente a frente com a minha
diabinha. Mas Daisy Flinch estragou todo o meu momento quando me
chamou para um dos trailers para fazer uma daquelas suas confissões
malucas. Eu não queria demorar mais do que cinco minutos e estava pronto
para deixar para depois o que quer que ela tivesse para me contar, mas não
consegui não a seguir quando vi toda animação presente em seu sorriso
enquanto me esperava.
Quando subi as escadas e adentrei o trailer, Daisy me contou que
finalmente havia feito as malas e conseguido uma carona destinada a Los
Angeles, onde tentaria a sorte para estudar e, futuramente, conseguir
trabalhar com o cinema como tanto gostaria. Fiquei feliz por ela e a
incentivei ainda mais a seguir seus sonhos. Como estávamos naquele
momento de confissões e conselhos, pedi um sobre como deveria me
comportar na hora de falar para Pasha Stratford que estava completamente
apaixonado por ela.
— Finge que eu sou a sua ruiva — foi o que Daisy disse para me
ajudar a me soltar mais. — Diga para mim tudo o que você deseja dizer
para ela. No fim, direi se está bom e digno de um bom filme de romance.
Lembro que rolei os olhos pelo seu lado romântico e achei a ideia
péssima no começo, mas estava tão desesperado em fazer o certo que acabei
aceitando logo depois. Dei um passo em sua direção, realmente entrando na
encenação de que a pessoa em minha frente era a garota mais diabólica do
mundo, e soltei tudo o que estava pulsando de forma vívida e extremamente
verídica em meu coração. No fim, quando havia me declarado como
gostaria de fazer logo que saísse dali, minha amiga me abraçou, sorriu,
disse que estava incrível, que estava orgulhosa de mim e que Pasha
Stratford era a mulher mais sortuda desse mundo por ter um homem como
eu completamente rendido e em suas mãos.
Achei de um exagero sem tamanho da sua parte, mas não protestei.
Gostei de ouvir suas palavras e de como elas pareceram massagear um
pouco do meu ego.
E com o coração injetado de adrenalina e esperança, saí em busca da
minha garota. Infelizmente, não a encontrei aquela noite.
“Nem naquela, nem em nenhuma outra”, uma vozinha insuportável
grita em minha cabeça.
Olho para os ponteiros do relógio posto acima da televisão de tubo do
meu quarto e bufo. Acho que o pior de tudo, além da angústia de estar no
escuro, é saber que o universo está disposto a conspirar contra mim esses
dias, porque Barbie e Devin estão em Nova York junto de Amber e Hunter
e, obviamente, estão aproveitando a viagem e não fazem se quer ideia se
algo realmente aconteceu com ela, impossibilitando-os de me ajudarem a
descobrir a verdade por trás dos meus questionamentos. Como se isso já
não fosse o bastante, me sinto com medo de procurar Georgina só por conta
do seu jeito extremamente sincero de ser. A loira não é daquelas que floreia
uma situação, que tenta suavizar quando a resposta precisa ser dura demais,
ou que não se envolve e nem se mete em coisas das quais ela não é
chamada. Muito pelo contrário, na verdade. Georgina se mete, dá sua
opinião nua e crua quando tem que dar e não passa a mão na cabeça de
ninguém. A garota de olhos verdes-escuros é super famosa por derrubar um
balde repleto de gelo em quem precisa acordar para vida. Então, levando
em consideração seu jeito de ser, tenho medo que o balde de gelo recaia
sobre a minha cabeça caso resolva não ter nenhum tipo de piedade com o
meu coração e diga de uma vez por todas que a alasquiana não irá querer de
jeito nenhum dá o passo que eu estou querendo dar na nossa relação.
É por isso que ainda querendo preservar meu lado iludido e sonhador,
permaneço em casa e longe da língua grande e afiada de Sinclair.
Balanço a cabeça de um lado para o outro e tento enfiar todos esses
pensamentos para o fundo da minha mente. Não quero mais pensar nisso.
Não quero parecer um maluco neurótico criando teorias da conspiração que,
eventualmente, não adiantarão de nada e só me deixarão ainda mais
nervoso. Relaxo meu corpo um pouco mais na cama e decido deixar esse
assunto para lá pelo menos por agora, já que a única coisa que me resta a
fazer é torcer para que tudo não passe de achismos e que os motivos que a
levaram a sair da festa mais cedo, assim como ficar um pouco mais reclusa
esses dias, não tenha nenhum tipo de ligação com nós dois.
Uma fresta de ar escapa por entre meus lábios no exato momento em
que eu coloco os pés para fora da cama e flexiono os joelhos, levantando-
me para ir em busca de alguns filmes alugados na vídeo locadora do centro
da cidade. Pego todos em minha mãe e faço um bico de lado quando
começo a pensar sobre qual escolher. Caçador de Assassinos, Clube dos
Cinco e O Alvo são alguns exemplos de filmes que fico em dúvida. Mas por
saber que esse é um dos filmes favoritos de Violet e que ela sempre fica
recitando as frases desse filme quando arruma uma brecha, o que desperta
totalmente a minha curiosidade para saber se é mesmo tão bom quanto ela
diz, opto por colocar Clube dos Cinco no vídeo cassete e me jogar de volta
na cama.
Passa apenas dez ou quinze minutos de filme quando escuto a porta
metálica do meu trailer ranger, indicando a entrada de alguém. Não demora
mais que um para que Violet, parecendo ter adivinhado totalmente o que
estava se passando por aqui, corra até onde estou e dê gritinhos eufóricos
quando percebe o que se desenrola em minha frente.
— Seu safado traidor! — Mohn branda assim que volta a me fitar, os
grandes olhos castanhos semicerrados e intimidadores. — Como ousa
assistir meus bebês sem mim?
Abro a boca para me defender do seu olhar predador e acusatório,
mas é claro que a furacão nem me dá essa oportunidade. Ela joga seu corpo
no meu colchão e se aninha ao meu lado, puxando as cobertas para cobrir
suas pernas desnudas. Prendo a risada ao cruzar os braços e arquear a
sobrancelha em sua direção, tentando ao máximo deixar visível em minhas
feições o quanto achei sua atitude completamente folgada.
— Alguém aqui te chamou? Porque, sinceramente, lembro-me muito
bem de não ter gritado por sua presença em momento algum. — Tento
parecer sério, mas a forma petulante como seus ombros sobem e descem em
um lindo “por mim” me faz remexer a cabeça e rir, desacreditado. — Não
faz isso aí para mim não, mocinha.
Violet pisca de modo inocente os longos cílios cobertos por generosas
camadas de rímel.
— Não estou fazendo nada, mocinho — se defende falsamente ao
pegar o controle da minha mão. — Agora vê se cala a boca. Quero escutar a
voz deles, não a sua que é totalmente insuportável. — Dito isso, ela aperta
no botão do controle que aumenta e deixa com que as vozes se tornem
ainda mais altas.
O conto da minha boca se contorce ao passo em que dou uma risada.
— Você é péssi...
— Shhhh.
Então eu fecho a boca, meio a contragosto, e cravo os olhos durante
longos minutos no popular, na patricinha, na esquisita, no nerd e no rebelde.
Inclusive, chega certa parte do filme em que sussurro para a garota ao meu
lado:
— Alguém já te falou que você parece muito com a esquisita?
Ela rola os olhos de forma teatral.
— Vê se cresce — é o que Violet murmura para mim antes de chocar
seu ombro contra o meu e aumentar um pouco mais a televisão.
Não reclamo, entretanto. As vozes dos personagens mescladas com a
de Violet Mohn, que não para de repetir as falas que sabe de cor, sobressai
as vozes dos meus pensamentos e impossibilita que eu pense em qualquer
outra coisa que não seja no agora.
Todos nós acreditávamos que Devin só voltaria de Nova York daqui
há duas ou três semanas, mas meu melhor amigo está de volta após uma
semana fora. Ele tem a jaqueta preta do MotoClub pendurada em seu ombro
enquanto empurra a pequena mala com a outra, seguindo o caminho para o
trailer que mora. Seus cabelos castanhos estão uma verdadeira bagunça,
alguns fios caem sobre seus olhos verdes e as suas roupas escuras parecem
tão amarrotadas quanto tudo que envolve a sua figura visivelmente cansada.
Franzo o cenho ao achar tudo muito esquisito.
Dou uma última tragada no cigarro pendido entre os meus dedos e
jogo a bituca fora, soltando toda a fumaça espessa pela boca conforme sigo
até meu melhor amigo, que bate a porta do seu trailer antes que eu consiga
alcançá-lo. Subo as pequenas escadas, dou três batidas na porta com o
punho fechado e escuto sua voz concedendo permissão para que eu entre. A
porta metálica range deliberadamente assim que eu a abro. Fecho-a com um
leve empurrão e sigo até Devin, que está puxando a gola da sua camiseta
por trás da sua cabeça. Seus glóbulos me encontram assim que ele joga a
peça em cima da sua cama.
— Ah, oi! — Devin sorri e suas covinhas aparecem para me
cumprimentar. — Sentiu minha falta, garotão?
Acho engraçado quando ele me chama assim, então sorrio de volta.
— Você nem deu tempo para isso — digo ao me sentar em sua cama,
fincando os cotovelos nas coxas para poder segurar meu rosto entre as
mãos. Vejo que ele balança a cabeça negativamente e arrasta os passos até
sua mala. — O que aconteceu que você voltou antes do previsto? Todo
mundo estava achando que vocês iriam arrumar uma desculpa para não
voltar nunca mais para Hellaware.
Devin para de abrir sua mala e me fita por sobre o ombro. Um V se
forma entre as suas sobrancelhas no exato momento em que sinto sua
análise minuciosa sobre mim.
— Desde quando você se tornou tão insensível? — é o que ele solta
quando decide se voltar totalmente para mim e cruzar os braços em frente
ao peito desnudo e tatuado, os olhos afiados ainda sobre a minha figura.
Suas botas pesadas batem contra o assoalho de madeira, como se ele
estivesse ansioso para ouvir uma resposta.
Sem entender nada, desfaço minha postura relaxada e aprumo os
ombros ao questionar:
— Insensível? De que merda você está falando?
Meu melhor amigo não me responde de imediato, apenas segue
prescrutando meu rosto como se tentasse desvendar alguma coisa que está
deixando passar. As írises verdes bem claras se concentram bem nas minhas
e engulo em seco, afinal, mesmo sendo a pessoa mais amorosa que existe,
Devin Leblanc consegue ser bastante intimidador quando quer.
— O que foi que você fez ao longo dessa semana?
Uma interrogação paira bem acima da minha cabeça com seus
questionamentos sem pé e nem cabeça. Ele não está sendo nem um pouco
claro e só me deixa ainda mais sem entender nada quando decide abrir a
boca.
— Nessa semana? Nada! Fiquei em casa assistindo e me
empanturrando de salgadinho de queijo e pimenta. Por quê?
Assim que me escuta, Devin coça a barba por fazer, fecha os olhos e
solta um muxoxo.
Ah, céus, ele gostaria que eu respondesse o quê? Que eu passei a
semana toda na fossa, me sentindo péssimo por Pasha Stratford ter
simplesmente sumido por dias e ignorado todas as minhas ligações? Ou ele
gostaria que eu dissesse que passei a semana toda me sentindo um otário
medroso de marca maior que estava com medo de sair de casa e ir atrás dela
por ainda não se sentir pronto o suficiente para saber se o motivo do
desaparecimento da ruiva tinha sido ocasionado pelo medo dela de quebrar
meu coração e acabar com todas as minhas expectativas me dando um belo
fora?
Escovo os fios platinados — que já estão precisando de um retoque,
inclusive, já que o castanho do meu cabelo já está despontando na raiz —
para trás e Leblanc dá alguns passos em minha direção.
— Você não faz ideia do que está acontecendo, não é? — Sua voz sai
baixa, sinto o toque de receio, medo e certa melancolia nela.
Meu coração, que provavelmente já percebeu a atmosfera mudando
no quarto, palpita incessantemente contra as minhas costelas.
Devin também bagunça os fios do seu cabelo, puxa-os para trás e
quebra ainda mais a nossa distância, sentando-se ao meu lado. Meu corpo
todo se volta para ele no exato minuto em que o seu também se volta para
mim.
— Depois da festa, Pasha passou mal e decidiu ir mais cedo para
casa, por isso que a gente não a viu mais por lá... — ele começa, e eu sinto
as palmas das minhas mãos suarem. Uma única gota de apreensão pinga e
desce por um caminho copioso pela base da minha espinha. — Quando ela
chegou em casa, se deparou com uma movimentação atípica na sua rua e
percebeu alguns paramédicos aglomerados na porta de casa e... e ela viu
que eles estavam com o corpo da Rosalinda na maca. — Devin para de
falar, respira fundo e sopra em um fio de voz: — A tia da Pasha morreu,
John. Rosalinda sofreu um ataque fulminante naquela noite.
Meu maxilar fica trincado e as minhas mãos se retesam ao lado do
meu corpo, fechadas em punho. Sinto uma ardência no peito, um revirar no
estômago e um ruído gutural escapando de dentro de mim. Penso na minha
ruiva, no sofrimento que deve estar passando ao se deparar com mais uma
morte de um ente querido e enlouqueço, completamente preocupado e me
odiando em níveis inimagináveis por ter ficado esses dias longe, sem
confortá-la e, ainda por cima, por ter ficado com receio de me aproximar
esses dias por medo de coisas pequenas e bobas quando o seu mundo, mais
uma vez, estava ruindo bem abaixo dos seus pés e eu não estava lá para
segurá-la. Não estava lá para mostrar que, independentemente de qualquer
coisa, não soltaria sua mão em momento algum e que permaneceria ao seu
lado para ajudar a colar os pedacinhos do seu coração sem pressa, apenas eu
e ela. Juntos.
Pisco para que pontinhos pretos sumam da minha visão e me levanto
da cama em um rompante, pronto para descer do trailer, buscar as chaves da
minha moto e ir atrás dela sem nem hesitar. Mas é claro que Devin
interrompe meus passos ao colocar sua mão ao redor do meu cotovelo e me
puxar para que eu fique em sua frente. Um arrepio percorre até mesmo as
minhas entranhas quando finco meu olhar em seu rosto que, sinceramente,
conhecendo-o como eu conheço, me diz de maneira implícita que o
problema não acabara ali.
— Diga o que tem que dizer de uma vez — arrumo forças para
externar, mas meu amigo nada responde. Ele segue me encarando com os
olhos injetados de pesar, seu pomo de Adão subindo e descendo conforme
meu olhar se torna mordaz. — Diga logo, porra! — Puxo meu braço do seu
aperto em um safanão e empurro seu ombro para trás com uma das mãos. A
veia em minha testa salta e lateja com a raiva que me consome agora. — O
que aconteceu com a Pasha, Devin? Onde ela está? — Vejo que uma fina
película de suor cobre sua testa assim que ele se aproxima.
— Ela... — Devin aperta as pestanas com o indicador e o polegar.
Prendo a respiração com medo do que pode vim a seguir. — Ela está
voltando para o Alasca hoje, John.
Recuo um passo para trás e balanço a cabeça, sem querer acreditar no
que meu cérebro acabou de processar. Respiro com dificuldade e um nó se
forma em minha garganta e lágrimas inundam meus olhos, mas não permito
que elas caiam.
— O quê?
— Achei que todos vocês já estivessem sabendo — emenda. — Me
perdoa por não ter contado antes. Eu deveria ter percebido que você, caso
soubesse, não estaria aqui me esperando, e sim estaria ao lado dela. Me
perdoa mesmo.
Ignoro completamente seu pedido de desculpas. E não por estar com
raiva dele por não ter mencionado nada antes, e sim porque quero evitar
qualquer drama desnecessário. Eu só preciso saber se ela já foi embora ou
se ainda tenho chances de, sei lá, impedi-la. Ou pelo menos de chegar a
tempo para me despedir. Eu só não posso ficar aqui sem fazer nada.
— Que horas é o voo dela, Devin?
— Eu não sei... — Meu amigo passa a mão pelo cabelo e olha o
relógio em seu pulso. — Acho que daqui há vinte minutos. Barbie e
Georgina estão lá com...
Não fico no quarto para terminar de escutá-lo. Dou as costas para o
meu amigo, saio do seu trailer, corro em direção ao meu, pego a chave da
moto repousada na mesa e disparo até ela. Quando já estou montado na
minha Harley-Davidson, coloco o capacete, abaixo a viseira e dou partida,
cantando pneu e deixando um rastro de poeira para trás.
Acelero como se a minha vida dependesse disso. Acelero e não me
importo nem um pouco de estar passando da velocidade permitida. Se eu
não for rápido o suficiente, não chegarei em tempo, afinal, o rancho fica um
pouco afastado da cidade, o que torna o caminho até o único aeroporto de
Hellaware extremamente longo.
Enquanto sigo o meu caminho de forma abrupta, não consigo não
sentir algo em meu coração se quebrar. Apesar de imaginar o que pode ter a
levado de volta para sua cidade natal, não entendo o porquê de ter feito isso
de modo sorrateiro, como se estivesse fugindo de alguma coisa. Não
entendo o porquê de ter me deixado de fora desse momento quando ela se
tornara a pessoa mais importante do mundo para mim e, eventualmente, sua
partida seria como uma condenação de morte. Não entendo o porquê de ter
me deixado de fora, de não ter pensado em mim para desabafar, para
compartilhar suas dores, seus medos, sua vontade de deixar a cidade... Eu
realmente não compreendo tamanha falta de consideração da parte dela.
Acima de tudo, acima de todas as coisas, somos amigos, não somos?
Amigos deveriam compartilhar coisas um com o outro.
Será que sou tão insignificante assim que ela nem ao menos pensou
em mim? Que nem ao menos pensou em nós?
Porque, em nome de Deus, ninguém ao menos me contou que ela
estava indo embora?
Dói para caralho saber que ela vai embora para longe e nem ao menos
me ligou para dizer adeus.
Quando já estou próximo do lugar, após alguns torturantes minutos,
engulo o choro e todos os sentimentos confusos e tumultuados dentro de
mim, estaciono a moto perto do aeroporto, guardo o capacete e me
direciono até a entrada, ainda sentindo o coração galopar fortemente em
meu peito enquanto rezo para que tenha chegado a tempo. O vento gelado
que abraça a cidade me cumprimenta e faz a pontinha do meu nariz ficar
gélida. Coço a região, sentindo que a minha alergia pode atacar a qualquer
momento, e atravesso as enormes portas de vidro do lugar. Meus olhos se
fixam nas pessoas indo e vindo, meus ouvidos se atentam às vozes
anunciando os voos e minha apreensão se triplica por não saber onde diabos
procurar por Pasha Stratford.
Corro — literalmente — pelo aeroporto e pergunto para algumas
pessoas se elas viram uma mulher de altura mediana, com longos cabelos
ruivos e olhos castanhos, mas tudo soa tão vago perante a tantas mulheres
que nos cercam que ninguém sabe dizer com exatidão se viram ou não
justamente a pessoa que procuro. Suspiro, frustrado, e arrasto meus passos
até o enorme telão de LED que dá todas as informações necessárias dos
voos do dia.
Com as mãos espalmadas na cintura, cravo os olhos nos nomes da
cidade e procuro Avell District entre elas. O ar parece rarefeito quando leio
que o embarque está acontecendo exatamente... agora. Os ponteiros do
enorme relógio do meu lado direito acabam de confirmar isso.
Apesar de estar sentindo minhas esperanças se esvaindo pouco a
pouco, não desisto e ponho minhas pernas para correr, procurando as
escadas rolantes que me levarão para o andar de cima, onde eu torço que a
ruiva permaneça. E quando coloco meus pés no piso bem polido, com o
coração zumbindo um som particular em meus ouvidos, dou alguns bons
passos para a frente, olho tudo a minha volta e meus olhos se concentram
em um ponto bem conhecido por mim; Barbie e Georgina. Meu corpo se
petrifica no lugar e minhas pernas parecem criar raízes no chão, pois as
duas amigas estão andando de braços dados, meio chorosas, e sem nenhum
sinal da ruiva que compõe o trio. Elas descem para ir embora na escada
rolante do outro lado e nem ao menos parecem perceber que há alguém que
elas conhecem muito bem destruído a só alguns passos de distância delas.
Elas somem do meu campo de visão, escuto o barulho dos aviões e
minhas pernas cedem, porque sei que não cheguei a tempo. Sei que cheguei
tarde demais e ela se foi.
Caio de joelhos no chão e minha vista se torna embaçada por conta
das lágrimas acumuladas e presas em meus olhos.
A dor da rejeição e abandono se infiltra em todo o meu sistema mais
uma maldita vez.
Volto para casa horas depois com o coração totalmente dilacerado,
com o corpo parecendo que um trem havia passado por cima e com os olhos
completamente inchados e vermelhos derivados de um choro compulsivo e
de uma bebedeira fodida em algum bar minúsculo e moribundo de beira de
estrada. Apesar de saber que meu estado está deplorável e digno de pena,
não me importo nem um pouco. Tenho certeza que ele deve estar com uma
aparência infinitamente melhor do que o órgão que faz moradia no meio do
meu peito, que parece estar sendo constantemente nocauteado por socos e
chutes de tanto que grita, sangra e dói feito um péssimo e um humilhante
aspirante a lutador barato que é.
Solto um grunhido irritado quando cambaleio sobre a relva verde
musgo e quase caio em frente às escadas que dão acesso ao meu trailer.
Xingo incontáveis palavrões quando me equilibro e subo as escadas de
qualquer jeito, abrindo a porta, passando por ela e a fechando com um forte
empurrão que a minha embriaguez permite. Já dentro de casa, tiro os
sapatos com a ajuda dos calcanhares, arranco a camisa pela gola e a jogo
para longe, os sentimentos confusos e tumultuados voltando com força.
Pode parecer maluco, mas já estou morrendo de saudade da minha
diabinha. Estou morrendo de saudade do seu sorriso sagaz, dos seus olhos
hipnotizantes, das suas implicâncias e do seu humor ácido extremamente
parecido com o meu. Estou com saudade de ouvir sua voz, de sentir seu
perfume, de saborear seus beijos e de poder dedilhar cada parte sinuosa do
seu corpo com as minhas próprias mãos, sentindo-a se arrepiar e se
desmanchar sob meu toque. Estou morrendo de saudade de tudo. Mas,
sinceramente, estou com raiva também. Estou com raiva dela ter sido
egoísta, de ter me abandonado, de ter desistido de nós, de não ter atendido
uma ligação para poder me contar o que tinha acontecido, de ter partido
sem nem se importar de se despedir, como se estivesse foragida ou qualquer
merda do tipo. Estou puto com toda a situação. Até comigo mesmo estou
enfurecido.
Eu poderia também ter feito alguma coisa para impedir, mas não fiz.
Me enfiei na minha bolha de garotinho medroso que foge dos problemas
mais uma vez e não percebi que haviam coisas extremamente sérias
acontecendo. Não fui em sua casa, não fui em seu trabalho e nem procurei
suas amigas. Preferi ficar em uma zona segura e confortável, esperando que
ela tomasse uma atitude, do que ter que dar minha cara a tapa e procurar
com afinco o que realmente estava se passando.
Céus, quando é que eu vou crescer e agir feito um homem adulto?
Quando é que eu vou poder finalmente ter um final feliz? Estou
cansado de parecer a droga de um personagem dessas histórias
melodramáticas o tempo inteiro, que quando tudo parece estar finalmente
entrando nos eixos, algo acontece para desestruturar de vez quaisquer
pensamentos e sentimentos de uma vida digna. Estou cansado de ficar
degustando incontáveis vezes a perda, a dor, a rejeição e de saber que, não
importa quanto tempo passe, não importa o que eu faça, não importa quem
eu conheça, não importa os conselhos que ouça, ao final do dia algo
acontecerá para me fazer ter a certeza de que nasci para ser e seguir o
caminho do garoto solitário que perdeu a mãe em um acidente de carro, do
garoto que não faz nem ideia de quem é o seu pai e do garoto que quase não
viveu nada da sua infância por ter passado ela em um orfanato e por lá
dentro ter recebido mais porradas do que convites para participar de
brincadeiras. Estou cansado, farto e totalmente exausto de nadar, nadar,
nadar e sempre morrer na praia.
Tendo a conversa com Devin, acreditei que tudo fosse ser diferente.
Acreditei na confiança que ele me transmitiu ao dizer que o passado
permaneceria no passado, que as vozes negativas em minha cabeça eram só
uma tentativa de me arrastar de volta para o fundo do poço, que o medo só
estava se apossando do meu corpo porque eu estava permitindo ser fraco e
que tudo ficaria bem.
Bom, acontece que tudo não ficou bem.
Sinceramente falando, tudo ficou foi pior.
Tudo ficou pior porque me permiti acreditar no amor, me permiti
acreditar que era digno dele, que era digno dela. Tudo ficou pior porque
acreditei, porque fui levado pela emoção e não pela razão, porque entreguei
meu coração de bandeja a quem foi a primeira a esmagá-lo, porque sonhei
com um mundo encantado quando, na verdade, o mundo real só estava
esperando o tic tac do relógio se voltar contra mim para que a queda dele
sobre a minha cabeça fosse inegavelmente fatal e irreversível bem do jeito
que eu mereço.
Uma risada sarcástica misturada com choro preso irrompe da minha
garganta quando decido abrir os armários da pequena cozinha improvisada
e buscar pela minha garrafa de uísque.
A imagem do dia em que tive Pasha Stratford em meu colo, bem aqui
nesse trailer, dizendo que não iria a lugar algum após termos falado sobre
ela voltar para o Alasca pipoca em minha mente e eu aperto ainda mais a
garrafa contra meus dedos, fechando a porta do armário com toda a força do
meu ser. Vejo todo o local balançar com o baque e a sensação de ter sido
enganado borbulha em meu estômago, o gosto da bile pairando sobre a
minha língua. Munido pela raiva que se alastra pela minha corrente
sanguínea por conta das malditas lembranças, abro a garrafa e entorno uma
generosa quantidade do conteúdo alcóolico cor âmbar em minha boca.
Apesar de quase não estar aguentando ficar em pé de tão chapado que me
encontro, quero me afundar ainda mais nisso até esquecer a porcaria do meu
nome.
Seco os resquícios do líquido na boca com o dorso da mão, abraço a
garrafa contra meu peito desnudo e sigo cambaleando de volta para a cama.
Quando já estou próximo, me sento de qualquer jeito e brindo meu coração
partido com mais uma golada de uísque.
Automaticamente, penso em uma vastidão vermelha e me iludo
achando que a ardência que abriga o meu peito nesse momento é
exclusivamente derivada da ingestão de álcool, e não da ingestão da falta de
uma certa ruiva.
— Por que você foi embora, Pasha Denise Stratford? — finjo estar
conversando com ela ao sentir as lágrimas pinicarem meus glóbulos quando
percebo que ninguém irá me responder. Estou sozinho. No sentido mais cru
da palavra. — Por que você foi embora e decidiu levar meu coração na sua
mala sem nem ao menos avisar e sem nem ao menos se importar?
Nenhuma resposta.
Sou envolvido por um silêncio ensurdecedor e que parece me matar
um pouquinho mais a cada segundo.
Me levanto, jogo a garrafa para longe e solto um grito sôfrego. Os
cacos do vidro se despedaçam e se espalham rente ao líquido caramelo bem
no assoalho de madeira, transformando-se numa bagunça tão caótica quanto
a minha mente e a minha alma.
Quando dou por mim, sinto minhas nádegas se chocando contra o
chão, minhas pernas ficando próximas do meu peito, meus braços
envolvendo-as e o meu queixo trêmulo repousando-se sobre os joelhos,
enquanto lágrimas gordas rolam por minhas bochechas e maculam meus
jeans surrados.
Olho uma última vez para os cacos da garrafa a poucos centímetros
de distância e tenho certeza que me encontro ainda mais em pedaços do que
ela.
No dia seguinte, acordei com uma chuva torrencial batendo contra a
minha janela, uma enxaqueca ferrada esmagando meu cérebro e um gosto
terrível e amargo na boca. Ainda com aquela sensação angustiante de que
havia sido atropelado por um trator de obra, fui forçado a me levantar da
cama — não me lembro em que momento da noite fui parar nela —, tomar
aspirina e um bom banho, limpar e recolher os destroços do que um dia
tinha sido uma garrafa de uísque, voltar para as cobertas logo depois e fugir
de qualquer tipo de contato e socialização humana.
Meus amigos até tentaram me fazer companhia e, acredito eu, fazer
com que o peso de ser abandonado pela garota que estou profundamente
apaixonado diminuísse pelo menos um pouco, mas é claro que eu não
respondi as batidas incessantes na porta metálica, aos gritos de Violet e
Kara e nem as insistências para tomar café da manhã de Kieran e Devin.
Fingi que estava dormindo e passei o dia inteirinho dessa forma: fingindo
estar no décimo sono ou realmente caindo nele.
E eu até tentei seguir a mesma lógica no outro dia, porém não havia
mais como ficar trancafiado em um trailer onde as porcarias que eu estava
me alimentando já tinham mais do que acabado. Por isso, ainda muito
relutante e rezando para que ninguém tocasse no assunto, vesti meu casaco
moletom, coloquei uma bermuda e saí para desfrutar do piquenique que eles
estavam fazendo no meio da grama quando o clima frio não se desabou em
chuva. No fundo, eu sabia que aquilo tudo era proposital e que eles queriam
me atrair pela barriga, mas não me importei naquele momento. Cheguei de
forma sorrateira, ignorando todos os olhares cautelosos sendo direcionados
em minha direção, me sentei na relva e desfrutei do banquete posto sobre a
típica toalha xadrez.
Por sorte, ninguém comentou nada.
Meus amigos respeitaram meu momento, comeram tão silenciosos
quanto eu e deixaram que eu voltasse para o meu trailer tão calado quanto
cheguei.
Depois de quase uma semana seguindo o mesmo estilo, vi que era
hora de mascarar mais uma vez meu sofrimento e a minha dor com o meu
costumeiro sorriso, minha língua afiada e o meu bom humor. Pelo menos
para eles, claro. Eu ainda não me sentia disposto a sair de casa e nem com
vontade de encontrar outras pessoas. Então comecei a conversar
tranquilamente com eles, a brincar e a seguir nossa rotina costumeira. Como
incríveis amigos que são, provavelmente sabendo que só comentarei do
ocorrido quando me sentir preparado, eles comentavam de outros assuntos e
nunca, em hipótese alguma, falavam de qualquer coisa que pudesse me
fazer lembrar do que estava me fazendo sofrer. Mesmo que eu não
conseguisse esquecer dela em nenhum momento, Devin, Kieran, Kara e
Violet faziam com que tudo se tornasse mais leve nos momentos em que
estávamos juntos.
Mas, quando não estávamos, a dor fazia questão de voltar com força
para me mostrar que ela sempre será a minha companheira mais fiel.
Quase perto da hora do almoço, escuto três batidas sendo desferidas
em minha porta e corro para atender algum dos meus amigos. Assim que
abro e escuto o metal ranger, meus olhos logo capturam Kara parada nas
pequenas escadas do meu trailer. Seus cabelos longos e cacheados têm uma
touca preta enfeitando o topo dos seus fios e eles cascateiam sobre seus
ombros. A garota de pele negra cor oliva veste um moletom azul marinho
do Hard Rock Cafe que tem as palavras “save the planet” em cima da logo.
O moletom chega até a metade das suas coxas e ela usa meias pretas e tênis
da vans. O sorriso que me direciona é carregado de uma doçura sem
tamanho.
— Preciso de um favor seu — ela quase choraminga, e eu sorrio ao
achá-la tão fofa. — Minha moto está sem gasolina e eu preciso pegar uma
coisa. Devin e Violet foram fazer compras para cá e Kieran insiste em dizer
que meus gostos são uma idiotice, então só me sobrou você, Johnny. — A
forma como ela fala o meu apelido soa tão manhosa que é impossível não
concordar com qualquer coisa que peça. — Por favor, por favorzinho me
ajuda! — Ela junta as mãos em formato de oração e me olha com seus olhos
pidões.
Me afasto da porta e cruzo os braços em frente ao peito.
— O que você está querendo aprontar, pequena McAllister?
Seus lábios cheios e pintados com grossas camadas de batom vinho se
alargam em um sorriso tímido.
— Hoje é dia de promoção no Fast Rocket e eu estou com muita
vontade de experimentar os donuts de lá. — Fricciono os lábios para não rir.
— É sério! Eu não pediria a você se não fosse importante.
Semicerro os olhos em desconfiança.
— Por acaso isso é desejo de grávida?
Suas bochechas ganham um tom escarlate na mesma hora.
— Eu não faço essas coisas há tempos, John Scott. — O modo como
Kara McAllister não consegue encarar o fundo dos meus olhos e falar que
tem tempo que não faz sexo ou não transa é realmente encantador. — Você
vai ou não? — Ela espalma as mãos na cintura e bate o pé de maneira
impaciente na escada.
Eu detesto o fato de ter que sair de casa, principalmente para ir ao
Fast Rocket e saber que lembranças de Pasha Stratford irão inundar minha
cabeça feito uma avalanche, mas não consigo dizer não a essa criaturinha
linda, que me olha de uma forma tão intensa e esperançosa que não consigo
ser egoísta ao ponto de negá-la donuts.
— Seu irmão é um otário por não fazer seus gostos — digo,
brincalhão, e a cacheada não pensa duas vezes em concordar e dar risada da
minha fala. — Vamos comprar seus doces então, bebezinha linda.
Kara dá pulinhos de alegria e me abraça. Ela é tão pequena que sua
cabeça encosta em minha barriga. Não penso duas vezes em retribuir seu
abraço e sorrir com seus gritinhos eufóricos e suas frases dizendo que me
ama e que eu sou o melhor de todos.

Enquanto espero Kara comprar seus donuts na promoção, finco o


olhar no enorme foguete acima do estabelecimento e engulo em seco.
Minhas mãos, que estão escondidas no bolso da minha jaqueta de couro,
suam tanto que quase começo a ficar preocupado. Mas não é isso que
acontece. Minha atenção fica totalmente voltada a qualquer coisa nesse
parque de diversões que não me faça lembrar dos momentos que passei com
a diabinha por aqui.
A saudade comprime tanto o meu peito que fica quase impossível
respirar.
Sei que deveria blindar todos os sentimentos que sinto em relação a
ela, sei que deveria odiá-la com tudo o que eu tenho, afinal, a ruiva me
deixou para trás sem nem hesitar, mas, obviamente, também não consigo.
Não consigo odiá-la, não consigo parar de sentir, não consigo não sofrer e
nem sentir saudade vinte e quatro horas por dia.
Eu simplesmente não consigo e isso só me faz sofrer ainda mais,
porque ainda estou completamente enfeitiçado por aquela mulher e não sei
em que momento esse feitiço se romperá.
A posta da lanchonete se abre, mas não é Kara McAllister quem sai.
Quem sai da lanchonete expondo um sorriso que se desmancha no mesmo
segundo que me vê parado a sua frente é Georgina Sinclair, ainda usando o
uniforme verde-água e com um saco de lixo em mãos. Seus olhos me
perscrutam, me medem de cima à baixo e então ela desvia o olhar, como se
eu não fosse nada. A loira pisa duro até a lixeira ao lado do
estabelecimento, joga o que tem para jogar lá dentro e permanece de costas
por tanto tempo que sinto que é para não ter que me cumprimentar.
Mas que diabos?
— Georgina? — a chamo assim que paro em suas costas. — Por que
você está agindo como se não me conhecesse?
Ela não responde e nem se vira, mas consigo escutar o som forte da
sua respiração.
Ficamos bons segundos assim, e quando decido abrir a boca para falar
qualquer outra coisa, ela se vira e quem recua um passo para trás sou eu,
porque Sinclair está totalmente enfurecida, suas mãos cerradas ao lado do
corpo e seu rosto redondo completamente vermelho.
— Por que você a magoou? — Seus lábios tremelicam quando sua
voz sai por um fio. — Por que você fez isso com ela, seu idiota? Você é um
canalha sem coração! — Georgina se aproxima de forma rápida e desfere
socos em meu peito. Não dói nada, mas não consigo não ficar assustado. —
Espero que esteja satisfeito por destruí-la ainda mais! — Ela vem mais uma
vez me atacar, só que sou mais rápido em segurar seus punhos e fazer com
que seus glóbulos fitem os meus. As lágrimas que tanto estava segurando
agora caem com facilidade. — Seu nojento! Eu nem consigo olhar para
você agora depois do que você fez...
Eu a interrompo.
— De que merda você está falando? — brado, e Georgina se
desvencilha do meu aperto com um safanão. Seus olhos ainda transbordam
fúria. — Você ficou maluca? Você só pode ter ficado maluca, porra!
— Não tente se fazer de vítima, John Scott! — Georgina aponta o
dedo em riste extremamente próximo do meu rosto. — A Pasha soube de
tudo antes de ir embora. Ela ouviu tudo — a loira sibila a última palavra e o
meu coração lateja. — Pasha ouviu toda a sua conversa no casamento com
a Daisy e simplesmente não suportou o fato de você estar apaixonado por
outra enquanto estava a usando da maneira mais sórdida possível!
Ela continua a despejar e cuspir fatos sobre mim, mas eu já não a
ouço faz tempo.
Dou alguns passos para trás e afundo os dedos no meu cabelo,
puxando-o para trás ao gritar a plenos pulmões. Eu grito de raiva, de
arrependimento, de angústia, de frustração. De tudo. Eu simplesmente grito
e não me importo nem um pouco de estar chamando atenção e atraindo
olhares curiosos até mim, porque, após quase uma semana desde que ela se
foi, agora tudo parece fazer sentido.
Pasha Stratford deve ter ido me procurar na festa quando viu que eu
estava demorando a voltar e ouviu apenas a parte que eu dizia que estava
apaixonado e toda a minha confissão. Ela viu que eu estava falando para
Daisy e entendeu tudo errado. A minha ruiva acreditou que tudo aquilo se
tratava de mim e Daisy Flinch quando, na realidade, tudo o que eu estava
fazendo era ensaiar o melhor jeito de confessá-la o quanto estou e sempre
estive alucinado por tudo dela. Tudo o que eu estava fazendo era por ela.
Era por nós.
Agora eu entendo tudo.
Entendo seu afastamento, suas decisões, seu desejo de me deixar para
trás.
Agora eu finalmente entendo tudo e me odeio ainda mais por tudo
que causei.
Mas, se tiver alguma coisa que eu possa fazer para mudar toda essa
situação, eu irei fazer nem que não me reste nada, nem que seja a última
coisa que farei na minha vida.
Georgina Sinclair ainda me olha daquele jeito desconfiado. Sua mão
segura com força o copo do milk-shake de baunilha enquanto a outra que está
livre brinca com o canudo listrado de um lado para o outro, as sobrancelhas
grossas e bem feitas totalmente delineadas em um arco perfeito de
intimidação, capaz de ter o poder de fazer com que os piores bandidos
confessem suas maiores atrocidades como se estivessem dando um simples e
corriqueiro bom dia.
Por que diabos o meu caminho só se cruza com o de garotas
extremamente terríveis?
Solto um longo fluxo de ar e encosto as costas no estofado, cruzando os
braços em frente ao peito logo em seguida, ainda sustentando seu olhar e toda
a sua marra.
Depois da minha pequena crise no meio de Starryland, algo no coração
dessa maluquinha sentada à minha frente se amoleceu, pois ela se aproximou
pouco a pouco, esperou até que eu ficasse parcialmente calmo e perguntou o
motivo de eu simplesmente ter surtado do nada. Como eu não estava mais
suportando toda a bola de neve que essa história tinha se formado, não pensei
nem duas vezes antes de despejar em seu colo tudo o que havia acontecido
naquela noite. Na verdade, tudo o que havia acontecido até mesmo antes dela.
Contei sobre ser cheio de inseguranças e como isso estava atrapalhando que
eu enxergasse meus reais sentimentos pela ruiva, contei sobre o show que eu
dei na frente dos meus amigos ao finalmente me dar conta dele, contei sobre a
conversa com Devin, sobre como estava esperando o momento ideal e, claro,
como estava com medo de que algo desse errado na hora de eu falar em voz
alta tudo o que estava sentindo há um bom tempo. Também contei um pouco
sobre a minha amizade com Daisy, sobre a notícia da sua ida à Los Angeles e
sobre como ela me ajudou naquele momento, pedindo-me para que eu
treinasse na frente dela o que falaria para Pasha quando finalmente chegasse a
hora.
Ouvindo tudo sem emitir nenhuma opinião, a loira pediu para que
prosseguíssemos a conversa aqui dentro, no Fast Rocket, onde ela decidiu
comer algumas coisas em seus pequenos minutos de folga. E Kara, que já
estava prestes a me encontrar do lado de fora com seus donuts embrulhados
em uma embalagem de cor creme, aceitou numa boa quando eu disse que
precisava conversar algo sério com Georgina, indo se sentar sozinha em uma
mesa dos fundos para nos dar privacidade e, consequentemente, para
experimentar os doces que tanto estava com vontade.
— Então... — Sinclair limpa a garganta ao finalmente parar de tentar
me desvendar. Ela desliza o milk-shake pela metade para o lado, finca os
cotovelos na mesa prateada que nos separa e entrelaça as mãos abaixo do
queixo. — Quer dizer que isso tudo se trata de um grande mal-entendido? —
Tenho certeza que há um quê de sarcasmo mesclado com veneno gratuito
gotejando por sua frase, mas o ignoro completamente e assinto com a cabeça.
— Como eu posso confiar em você, John? Eu realmente gostaria muito, mas
fica bem difícil dado às circunstâncias dos últimos acontecimentos.
— Você pode perguntar ao Devin — respondo ao dar de ombros. —
Assim que ele chegou de viagem, percebeu que algo estava estranho e
perguntou se eu estava sabendo do que estava acontecendo. Como eu disse
não, já que eu realmente não fazia noção de nada, ele me contou da morte de
Rosalinda e que Pasha estava no aeroporto pronta para ir embora. Eu me
desesperei no mesmo segundo e corri para tentar impedi-la. Quando eu
cheguei lá, já era tarde demais, Georgina. Eu não tive nem chance de vê-la
uma última vez. As únicas pessoas que eu vi naquele lugar foi você e Barbie
descendo as escadas rolantes para irem embora. — Contar isso agora, já tendo
a confirmação de que tudo poderia ser resolvido com uma boa conversa, faz
com que meu coração doa ainda mais do que antes. — Eu realmente estou
apaixonado por ela, Georgina Sinclair. É impossível não estar, na verdade.
Você mesma é a prova viva disso que estou falando. Vocês duas não se
bicavam de jeito nenhum no começo e olha só como estão agora, huh? Não
conseguem mais viver uma longe da outra. É exatamente a mesma coisa que
aconteceu comigo. — Pela primeira vez em dias o meu sorriso é
completamente sincero ao me recordar daquela diabinha perversa e incrível.
— Eu não consigo mais viver sem a Pasha. Essa garota fodeu com a minha
cabeça, adentrou no meu coração mais rápido que um raio e o reivindicou
para si. Acha mesmo que eu sou capaz de fazer qualquer coisa para magoá-
la? — Me debruço sobre a mesa e me aproximo o quanto tudo entre nós
permite. — Olhe nos meus olhos e responda!
Georgina fica em silêncio enquanto me fita. Seus glóbulos olham para
dentro dos meus, e eu simplesmente sei quando sua postura defensiva muda,
quando seus ombros relaxam e quando as expressões tensas do seu rosto se
suavizam. Sei que ela é tão teimosa quanto Pasha e não vai dar o braço a
torcer, tão pouco assumir que errou ao me julgar sem antes ouvir a minha
versão primeiro. Por mim, tudo bem. Não a condeno por ter tomado as dores
da amiga e ter ficado ao lado dela. Se fosse algo assim acontecendo comigo,
também agiria da mesma forma.
Fico feliz da ruiva ter alguém que lute tanto assim por ela quanto suas
amigas.
— E o que você planeja fazer? — é a única coisa que ela fala quando
decide quebrar o silêncio instaurado sobre nós. — Eu consigo escutar suas
engrenagens trabalhando copiosamente em busca de ideias daqui. Além de
que, claro, você não pode simplesmente deixar ela lá no Alasca sofrendo
ainda mais por uma coisa que não aconteceu. Você precisa planejar alguma
coisa para mostrá-la que tudo não passou de um grande mal-entendido e que
você sente por ela a mesma coisa que ela sente por você.
Só por ter escutado isso, meu coração parece dar incontáveis
cambalhotas dentro do meu peito.
— Então você, Georgina, está me dizendo que Pasha Stratford sente o
mesmo que eu? — O canto da minha boca vibra para alargar um sorriso de
orelha a orelha em meu rosto quando menciono isso. A garota à minha frente
apenas rola os olhos de maneira teatral, o que acaba liberando o sorriso e a
risada tudo na mesma hora.
A loira se levanta, pega o milk-shake e seca uma das mãos na barra do
seu avental.
— Não sou eu quem pode confirmar isso, mas todos nós desconfiamos
que sim. — Uma piscadela engraçada é direcionada a mim. — Preciso voltar
ao trabalho agora. Sabe... Desculpa por tudo que falei mais cedo. — Uou.
Estamos tendo um progresso aqui? — Espero que possa reverter toda essa
situação. De verdade. E obrigada por finalmente esclarecer tudo, agora eu
posso voltar a querer que fiquem juntos sem nenhum tipo de peso na
consciência.
Assinto com um manear de cabeça e uma gargalhada baixa.
— Obrigada por ter me contado — digo, sinceramente. — Se não fosse
por você e seu ataque de fúria, talvez eu continuasse chafurdado na merda por
séculos.
— Não há de quê. — A loira finge uma reverência ao tocar em seu
vestido imaginário, e eu rio ainda mais. — Sempre soube que meu
temperamento ajudaria alguém em algum momento. E não precisa se
preocupar, não comentarei nada quando ela ligar. Deixarei que vocês
conversem e decidam o que será melhor para ambos.
Mais uma vez, assinto.
Georgina me dá tchau antes de se virar e sumir pela lanchonete adentro,
provavelmente tentando se preparar para voltar ao trabalho depois de tantas
emoções em um dia só.
Por falar em emoções, o Fast Rocket parece completamente
desanimado e pouco movimentado, como se todos os clientes estivessem
sofrendo e se compadecendo com a dor do Sr. Wilson. Por falar no senhor de
meia idade e de bigode engraçado, não o encontro em lugar nenhum desde
que cheguei. Não sei como estão as coisas para ele, como ficarão a partir de
agora e gostaria muito de desejar meus sentimentos. Mas, infelizmente, como
não tenho nenhum sinal dele, decido me levantar do estofado e chamar Kara
McAllister para voltarmos para nossa casa.
A pequena McAllister — como nós dos The Hurricane
Freedom costumamos chamá-la — se levanta da sua mesa, joga as sobras do
seu doce no lixo e se coloca ao meu lado, seguindo os meus passos assim que
começo a andar para fora da pequena lanchonete colorida. Como o esperado,
a baixinha não comenta nada, não pergunta o porquê da minha conversa longa
e segue falando naturalmente comigo sobre o quão bom os donuts daqui são
enquanto saímos do parque em direção à rua também não muito
movimentada.
Já próximos da minha Harley-Davidson, Kara e eu colocamos os
capacetes e sentamos nela quase que no mesmo momento. Nós dois rimos
quando faço alguma piadinha sobre ela continuar tagarelando sem parar sobre
comida, parecendo realmente uma grávida com seus malucos desejos
completamente apurados.
Mesmo me divertindo e conversando durante o trajeto, nada consegue
fazer com que eu pare de pensar em Pasha, no seu sofrimento ao escutar tudo
fora de contexto e no modo como deve estar me xingando e me odiando mais
do que tudo agora. Nada consegue fazer com que eu pare de pensar como está
sendo seus dias naquele lugar que não a representa mais, em como os seus
pais estão a tratando, se estão a obrigando a fazer algo que ela não queira, se
estão apoiando-a e consolando-a de alguma forma ou se estão ainda mais
distantes e frios do que já costumavam ser. Nada consegue parar de fazer com
que eu pense em nós, nos nossos momentos, nos nossos beijos, nos nossos
jogos, nas nossas trocas de farpas, no nosso dia a dia. Nada consegue parar de
fazer com que eu me sinta um inteiro babaca pelas coisas que eu disse, pelas
coisas que eu pensei e pelo modo errôneo que a julguei.
Pasha Stratford não queria me abandonar. Ela não queria ir embora e
me deixar para trás. Se tudo tivesse sido diferente, se tudo tivesse terminado
comigo me abrindo o mais rápido possível, talvez ela se apoiasse em mim e
nos seus amigos, sem precisar realmente pensar em voltar para Avell District,
sua cidade natal localizada no estado do Alasca. Talvez ela não tivesse saído
daqui, talvez estivéssemos bem romanticamente falando, talvez tudo estivesse
pelo menos um pouco perto de voltar a seu devido lugar.
São muitos talvez, eu sei, mas não consigo ignorá-los. Pelo menos por
agora, enquanto não encontro uma solução para desfazer tudo o que causei,
não consigo silenciar esses pensamentos que me ocorrem.

Quando chegamos no rancho, Kara me agradece pela carona e diz que


até estava pensando em guardar um dos seus preciosos doces para mim, mas
não aguentou a pressão de ter que me esperar sem ter o que fazer a não ser
encarar os donuts e sentir uma vontade absurda de devorá-los. Apesar de
realmente ter ficado com vontade de experimentá-los, não me importei em
não ter sobrado nenhum pedaço para eu saborear. No fundo, acho que eu
sempre estive conformado que algo parecido aconteceria.
Mulheres e esperas não dão certo.
Já dentro da minha casa, após ver a cacheada voltar saltitante para o seu
trailer feito uma criancinha, sento na cama e jogo todo o meu peso para trás,
minhas costas sendo agraciadas com a maciez logo que se chocam contra o
colchão. Bagunço os fios do meu cabelo platinado precisando de retoque e
começo a pensar no que posso fazer.
Pedir o número a Georgina para ligar para ela está totalmente fora de
cogitação, afinal, assim que a ruivinha escutar a minha voz na chamada é
muito capaz de desligar na minha cara e nunca mais me entender novamente.
Além de que, com toda certeza, não quero e não posso resolver essa coisa
entre nós de qualquer jeito e ainda por cima em uma chamada telefônica.
Eu não sei como resolverei essa situação e não sei como me livrarei dos
empecilhos, mas sei que conseguirei. Não há nada que eu não consiga fazer
por ela.
Eu poderia facilmente...
De repente, paro com as divagações e uma ideia me atinge. Uma ideia
louca, perigosa e arriscada, porém, finalmente uma ideia. Uma ideia concreta
e capaz de ser executada se eu a planejar cuidadosamente do início ao fim,
sem deixar que haja margens para erros e dúvidas.
Com o coração batendo na garganta e com a certeza de que vou
recuperá-la, saio de onde estou feito a própria encarnação do The Flash dos
quadrinhos e grito pelos meus amigos, correndo feito um louco — e
completamente apaixonado — no meio do rancho em busca deles.
Se todos toparem, talvez eu possa ir atrás do “felizes para sempre” que
agora não tenho mais dúvidas de ser digno.
Os The Hurricane Freedom é um MotoClub diferente do que as
pessoas costumam pensar. Nós não fazemos nada de ilegal, não somos
criminosos, não fazemos rachas às escondidas e nem nada dessas merdas
estereotipadas. Nós somos um grupo de jovens que compartilham o mesmo
amor pelas motos e que viu nesse grupo a oportunidade de consolidar uma
família, já que todos nós acabamos tendo alguns leves problemas nesse
ponto — um outro fator que nos interliga e que temos em comum. E, apesar
de sermos bem diferentes nesse quesito, há algo que a gente ama fazer que
ainda nos faz parecer um MotoClub tradicional; as longas e intensas viagens
de moto que percorremos pelas estradas.
Bom, faz algum tempo desde que não viajamos mais. Não sei o porquê
de simplesmente não termos mais nos aventurado por aí, mas acredito que
tenha sido por pura preguiça, afinal de contas, todas as viagens exigem muito
de nós, e mesmo que a gente ame a liberdade, o momento que passamos
juntos e o fato de estarmos conhecendo lugares novos, não é sempre que
estamos dispostos a enfrentar horas e mais horas pilotando, tão pouco com
vontade de passar algumas noites em motéis baratos que encontramos em um
lugar ou outro.
A nossa última viagem, cerca de poucos anos atrás, foi para a Virgínia,
onde passamos alguns dias turistando por Virgínia Beach, uma cidade
extremamente parecida com a que vivemos, porém, as garotas queriam tanto
conhecê-la que foi impossível não sermos levados pela onda de entusiasmo
de Violet e Kara em desbravar novas praias, novas diversões e novas belezas
situadas na costa leste. Quando voltamos para casa, após termos virado
aquela cidade de ponta cabeça e ainda com um bronze fora do normal de
brinde, trouxemos tanta coisa da cidade que chegou a ser engraçado o fato de
termos pegado tantas blusas, chapéus e broches com a frase “I Love Virgínia
Beach” para usarmos o tempo todo em Hellaware, na Carolina do Sul. Acho
que todos os moradores daqui, pelos narizes franzidos em uma careta todas
as vezes que nos olhavam, ficaram irritados com a nossa tentativa de exaltar
uma cidade que não fosse a nossa.
Por saber que provocávamos esse tipo de reação no pessoal que já não
ia muito com a nossa cara, fizemos questão de andar com a blusa e com o
broche grudado às nossas jaquetas de couro.
No entanto, mesmo colecionando histórias hilárias e divertidas todas as
vezes, nunca mais desfrutamos de momentos como esses. Nunca mais
tiramos um tempo só para nós, nunca mais nos divertimos dessa forma,
nunca mais pegamos lembrancinhas de outras cidades, nunca mais fizemos
nada disso, infelizmente.
Mas, mesmo que eles não estivessem inclusos nisso, eu estava muito
perto de mudar essa realidade.
Assim que a ideia me ocorreu e eu senti que o rumo da minha vida
poderia mudar caso eu a executasse com maestria, corri para contar para os
meus amigos o que eu tinha em mente. No começo, todos eles me olharam
de forma surpresa, com os olhos arregalados, os lábios entreabertos e aquele
choque por terem sido pegos desprevenidos perpassando por seus rostos
quase que ao mesmo tempo. Tenho certeza que todos eles me acharam um
completo maluco, mas não externaram nada, eles sabem que sou mesmo.
Então, como o esperado, meus amigos ficaram atentos ao que eu tinha para
falar, fizeram algumas perguntas pertinentes quando arrumavam uma brecha
e, no fim, provavelmente percebendo que eu não estava pensando em dar
para trás, concordaram que era uma boa ideia ala John Scott e que iriam me
apoiar nisso caso fosse o que eu realmente estava desejando no momento.
Eles são tão incríveis, tão incríveis, que disseram que iriam largar tudo
e ir junto comigo, pois não queriam que fosse algo perigoso ou que eu
acabasse numa enrascada sem tamanho. Mas é claro que eu não deixei. É
claro que eu fui contra, é claro que bati o pé feito uma criança emburrada e
neguei todos os pedidos suplicantes. Mesmo que houvesse em mim um lado
egoísta, eu não poderia aceitar. Eu não poderia aceitar que eles parassem
tudo, que parassem suas vidas, que deixassem seus amores para trás — como
é o caso de Devin — somente para me darem apoio e suporte nesse
momento. É claro que eu precisava da ajuda deles em algumas coisas para
pôr o plano em ação, mas não daquela extremamente grande que eles tanto
insistiram em me oferecer.
Eu os amo ainda mais por sempre ficarem demonstrando que levam
mesmo o nosso lance de família a sério, mas era algo que eu precisava fazer
e resolver sozinho. Pelo menos dessa vez, eu queria mostrar para mim
mesmo que era maduro, forte, corajoso e capaz de fazer qualquer coisa para
consertar os meus erros e ir atrás da minha felicidade. Eu queria mostrar para
mim mesmo que eu era capaz de atos grandes, que eu era capaz de fazer e
tomar decisões certas, que eu era capaz de amar, de demonstrar e, caso tudo
desse certo, era capaz de ser amado na mesma proporção também.
Porque, embora você ache que não, amar não está ligado apenas a
palavras. Amar está ligado a atos, a gestos, a sorrisos, a olhar. Amar está
ligado ao momento de ouvir, de ser ouvido, de ser percebido quando
ninguém nunca antes te percebeu. Amar está ligado a tudo de mais simples,
daquilo que a gente costuma muitas vezes ignorar por achar banal. E por
isso, por amar significar todas essas coisas, não tem como alguém ser
privado desse sentimento, não tem como alguém ter medo dele, medo de
lidar com ele ou medo de não saber externá-lo por acreditar ter recebido
pouco dele em algum momento. Simplesmente não tem como. Não tem
como porque ele é simples, ele não é traiçoeiro, ele não machuca, ele não lhe
suga para baixo. O amor é algo genuíno, é superação, é força, te dá asas e te
faz crer; crer em si mesmo, crer no mundo, crer na vida, crer nas
oportunidades e nas segundas chances. O amor nasce com aquele que está
apto para ele, se enraíza no coração daqueles que o merecem e eu não tenho
mais dúvida de que sou um deles. Não tenho mais dúvida de que sou
merecedor, de que encontrei a minha luz no fim do túnel e de que sou capaz
de desbravar oceanos e mares caso isso signifique uma vida plena ao lado da
única mulher que fez o meu coração bater mais forte.
Tudo não estava perdido como eu cheguei a acreditar quando ela foi
embora. Tudo sempre esteve achado, solucionado e de portas escancaradas
bem na minha cara. Eu só precisava ter me esforçado um pouquinho mais.
E é o que eu pretendo fazer agora.
Vou viajar com a minha Harley-Davidson para o Alasca. Sozinho. Vou
enfrentar os longos e tortuosos quilômetros, os dias na pista, as noites mal
dormidas nos motéis de beira de estrada, as refeições que não farei com
muita frequência e todas as coisas desagradáveis como consequência de ir de
um estado para outro em uma moto. Vou enfrentar o frio também, claro. Vou
enfrentar qualquer coisa só para que ela me escute, para que entenda o que
houve e para que saiba que nunca, nunquinha, estive apaixonado por outra
garota a não ser ela. Vou enfrentar qualquer merda para ter a chance de olhar
em seus olhos e poder me abrir como estive querendo todo esse tempo,
colocando para fora toda a bagunça de sentimentos arrebatadores que só a
ruiva foi capaz de despertar em mim.
E enquanto eu estiver passando por cada cidade, farei questão de pegar
qualquer coisa que remeta àquele lugar somente para que Pasha Stratford
saiba o tanto que tive de percorrer para colocar meu coração novamente
perto do seu.
Com uma mochila nas costas contendo algumas mudas de roupa e tudo
que eu possa precisar durante a viagem, após passar mais uma semana
elaborando-a, me despeço dos meus amigos, ou melhor, da minha família, e
saio do rancho com um sorriso enorme pincelando meu rosto, pois nunca me
senti tão animado, tão feliz e tão... vivo quanto nesse exato momento.
“Essa é a maior prova de amor que eu já vi na vida, John Scott. E olha
que eu assisto muitos filmes de romance, viu?! Tenho certeza que assim que
Pasha te encontrar lá, conversar com você e entender tudo, se sentirá a
garota mais sortuda do universo.”
As palavras de Kara ecoam em minha mente e eu sinto meu estômago
revirar de ansiedade quando ligo minha moto e a acelero, decidido, deixando
todo o rancho do verde para trás para ir de encontro a uma cidade revestida
por neve e gelo.
“Estou orgulhoso de você, cara!”
As poucas palavras de Kieran, como é de seu costume, foram ditas de
uma forma tão sincera que é impossível também não me sentir orgulhoso
comigo mesmo. É impossível não sentir orgulho do que estou construindo,
do que estou me tornando, da minha singela evolução e, claro, é impossível
não sentir orgulho do que ainda está por vir, do que ainda aprenderei e do
que ainda tenho para melhorar. Sei que ainda irei errar, sei que ainda serei
falho e ainda terei algumas recaídas com o meu passado, mas também sei
que estou dando hoje um grande passo para que eu consiga lidar com tudo da
melhor maneira possível.
Minhas engrenagens estão trabalhando de forma tão incessante no meu
cérebro que nem me atento que já estou deixando tantas coisas para trás ao
passo em que piloto e costuro os carros pelas ruas. E após mais alguns
minutos nessa, escuto o som de várias motos chegando muito próximo ao
correr atrás de mim, as buzinas de todas elas soando extremamente alta e me
fazendo olhar sobre os ombros para saber do que se trata.
Meus olhos automaticamente se arregalam e se enchem de lágrimas
com a cena.
Devin, Kieran, Kara e Violet me alcançaram com suas respectivas
motos, suas respectivas jaquetas pretas, e estão me acompanhando como se
essa fosse mais uma de nossas viagens. Sorrio feito um bobo e também
aperto a minha buzina de forma alta e estridente, eles logo repetem o gesto,
como se estivessem dizendo que estão aqui e que nunca me deixarão só. Os
outros conversíveis que andam com a gente reclamam e xingam por estarmos
querendo dominar toda a pista, mas nós estamos presos em um momento
incrível demais para que fôssemos dar bola para qualquer outra coisa que
não fosse nós. Que não fosse o aqui e o agora.
Eu sei que eles não vão viajar comigo, sei que isso é só uma forma de
me apoiar até alcançarmos o fim da cidade — que não está tão longe —,
porém não deixa de ser extremamente significante e não deixa de fazer com
que meu coração se torne ainda mais hiperativo e descompassado dentro do
meu peito.
Só consigo agradecer ao destino por ter visto algo que valia a pena em
mim quando nem eu mesmo vi. Só consigo agradecer ao destino por ter
recompensado tudo o que eu perdi me dando uma família de verdade, um
amor e uma nova chance para recomeçar.
Alasca, aí vou eu!
Despedida.
Uma palavra relativamente pequena, e com uma carga tão grandiosa
capaz de proporcionar sentimentos intensos, caóticos e até mesmo
irreversíveis em quem a desconhece.
Não é o meu caso, entretanto.
Despedida é uma palavra que está no meu vocabulário há anos. Tenho
tanta familiaridade com ela que é como se fossemos próximas. E talvez
sejamos mesmo, afinal, a minha vida é uma constante despedida carregada
de um adeus precoce. Eu dei adeus a minha irmã, a minha tia, a Hellaware e
ao que eu vivi naquela cidade com os meus amigos. Eu dei adeus a
sentimentos que cultivei, a momentos que colecionei e a ideias que criei em
minha mente.
Nunca vou esquecer dos rostos tristes de Georgina e Barbie quando
disse que ia embora, tão pouco esquecerei do momento em que embarquei
no avião e elas ficaram para trás. Mesmo que minhas amigas tenham
entendido pelo o que eu e meu tio estávamos passando e me apoiado como
eu imaginei que aconteceria, doeu tanto para elas quanto doeu para mim.
Estávamos acostumadas com a nossa rotina, com a nossa troca de
provocações ridículas só para soar irritante uma com a outra, com as nossas
conversas, nossos conselhos e nossa amizade, que foi o ponto alto de tudo o
que conquistei.
O engraçado, ao pensar nisso, é entender que dei adeus a tudo e ao
mesmo tempo a nada, porque tudo permanece embolado comigo até aqui.
Avell District, uma cidade relativamente nem tão grande nem tão
pequena situada no Alasca, não está me passando nenhum tipo de conforto,
exatamente como eu acreditei que aconteceria. O frio, o gelo, os extensos
pinheiros salpicados por flocos de neve e a mansão imponente da família
Stratford parece extremamente amena e sem graça. Ao meu ver, apesar de
ter crescido e vivido minha vida aqui e amar muitas coisas nessa cidade,
nada aqui parece mais tão divertido quanto as coisas que encontrei na
Carolina do Sul. As praias foram substituídas pelos lagos congelados, os
parques de diversões por arenas de hóquei e patinação artística, as roupas
simples e confortáveis por sofisticadas e densas, o amor e atenção constante
que eu recebia por indiferença e poucas palavras da parte dos meus pais.
Por falar neles, assim que foram informados sobre a morte de
Rosalinda e sobre a notícia de que meu tio estava esperando vender a casa e
o Fast Rocket para voltar de uma vez para cá, se lembraram de que tinham
uma filha e resolveram me ligar, avisando que já estavam mexendo seus
pauzinhos para conseguir um voo de primeira classe para mim o mais
rápido possível, pois, segundo eles, estavam querendo me consolar e me ter
por perto nesse momento tão difícil. Eu não acreditei naquele papo furado e
tentei relutar, tentei deixar claro minha opinião de que não queria deixar
meu tio sozinho nessa casa e que não iria voltar sem ele, mas é claro que
eles deram um jeito de convencer até mesmo ele para me fazer mudar de
ideia.
Foi difícil, mas David Wilson insistiu tanto para eu buscar abrigo no
colo dos meus pais que não tive como dizer não. Além de que eles estavam
extremamente exigentes, não era como se eu tivesse muita escolha. Eu
nunca tive, na verdade. A única opção que me restou foi concordar, fazer
minhas malas, comunicar minhas amigas e partir pouquíssimos dias depois
do velório e da conversa no meu quarto com meu tio, deixando para trás
coisas grandes demais para que eu simplesmente consiga fugir do peso
delas.
Não importa quantos dias ou semanas passem, eu ainda sinto como se
estivesse dentro de um grande buraco negro, sendo constantemente sugada
por energias pesadas e ruins, pois não há um dia que se passe sem que eu
me recorde daquela maldita noite, daquela maldita ida até o trailer, da
maldita voz de John Scott se declarando para outra, da minha ida desastrosa
até o meu carro e do momento em que adentrei a minha rua, sendo
recepcionada por luzes avermelhadas do socorro e pelos paramédicos
trazendo o corpo já sem vida da minha tia em uma maca. Não há um dia
que se passe sem que eu me recorde do horror perpassando pelos olhos
fundos do meu tio quando parou em minha frente e me contou o que havia
acontecido, dos seus braços me envolvendo, do soluço preso em minha
garganta e da sensação de estar sendo esmagada pouco a pouco pelos
acontecimentos intricados e sucessivos daquela pós-festa.
Não há um dia que se passe sem que eu me sinta mal comigo mesma
e com o mundo, sem que eu me martirize, sem que eu me sinta culpada,
burra, fraca, quebradiça, estúpida e vários outros xingamentos que ando
discorrendo para mim mesma todo o tempo. Não há um dia que se passe
sem que eu sinta um ódio descomunal da minha pessoa, porque, mesmo
depois de ter visto com meus próprios olhos tudo o que eu significava para
ele, mesmo depois de tudo, não consigo esconder as marcas que John Scott
deixou em meu coração. Não consigo abafar os sentimentos, a saudade, a
vontade constante que sinto de ouvir as besteiras que sempre saiam de sua
boca incontrolável, de contemplar seu sorriso molha-calcinhas, de enxergar
meu reflexo em suas írises azuis claras com bordas acinzentadas, de ter o
prazer de escutar sua respiração se mesclando com a minha em nossos
momentos a sós... Céus, eu sinto falta dele e de tudo. Me odeio muito por
isso. Me odeio por sempre estar tendo esses pensamentos, por sempre ficar
lembrando do dia que nos beijamos pela primeira vez, do dia que fomos no
fliperama, do dia que fomos visitar as estrelas, do dia que o encontrei todo
machucado e mesmo assim ele quis dançar na chuva comigo só para que eu
pudesse realizar o meu sonho de recriar uma das cenas do meu filme
favorito, dos dias em que dançamos juntos no estúdio de Andrew e, claro,
do dia que ele fez de tudo para conseguir um emprego para mim na
biblioteca só porque estava inconformado com o fato de que eu não estava
realizando o meu sonho e que, muito provavelmente, não o realizaria
nunca.
Eu sei que eu sou totalmente idiota por ainda ficar cultivando John
Scott em meus pensamentos e em meu coração quando, de uma vez por
todas, eu deveria colocar um ponto final na nossa história e odiá-lo como eu
sempre deveria ter continuado a fazer, mas de fato não consigo. Ainda há
aquela parte em mim que não consegue acreditar que tudo foi uma mentira,
que tudo não passou de uma brincadeira e uma conquista idiota só para
inflar o ego dele, conquistando a única garota que parecia não querer cair
em suas garras. Ainda há uma parte em mim que acha tudo muito estranho e
que sente que existe ainda algo faltando nessa história, porque caso não
tenha, eu diria com todas as letras que John Scott pode ser facilmente
nomeado como o futuro astro de Hollywood no quesito atuação a qualquer
momento.
Mas eu estava lá, não estava? Eu vi e ouvi tudo, não estou ficando
maluca. Então, mais uma vez, preciso repetir para mim mesma que essa é a
realidade, que tudo aconteceu mesmo, que fui uma ingênua sem tamanho e
que me deixei ser levada pela forma única que ele me fazia sentir.
Preciso repetir para mim mesma — talvez uma hora eu comece a
achar que é verdade, vai saber — que está tudo bem ter desilusões
amorosas, que está tudo bem se permitir ser fraca de vez em quando e que
mais cedo ou mais tarde esquecerei dele, do que vivemos e terei meu
coração ainda mais forte e ainda mais blindado contra garotos da mesma
índole e da mesma laia do integrante dos The Hurricane Freedom.
Saio do looping dos meus pensamentos quando a música no meu
disco de vinil para de tocar e uma rajada de vento congelante invade a fresta
da minha janela aberta, abraçando todo o meu corpo sem nenhum tipo de
permissão. Tentando me aquecer, passo as mãos pelos braços, me levanto
da cama e arrasto os meus passos até o toca discos, que opto por trocar e
colocar o de Frank Sinatra para soar baixinho e reconfortante agora.
Quando a música começa a permear pelo cômodo, sigo até a janela, abaixo
o vidro e fecho as enormes cortinas brancas, sumindo com a minha vista da
neve caindo impiedosamente do lado de fora.
O inverno chegou no Alasca tem poucos dias e eu me esqueci
completamente que posso virar um picolé humano se vacilar desse jeito.
O frio é realmente absurdo, intenso e feroz aqui como costumam
ressaltar. Ainda bem que tem aquecedor no meu quarto, uma garrafa
cheinha de chocolate quente repousada na cômoda ao lado da minha cama,
meu toca discos para que eu possa escutar meus ícones do jazz, uma estante
do chão ao teto ocupando a parede toda e repleta de livros dos mais
variados gêneros para que eu possa mergulhar em outros universos, uma
televisão para assistir e pôsteres dos meus filmes, atores e atrizes favoritas
da década de 50 colados à minha frente, pois ainda não tenho pretensão de
sair desse quarto tão cedo, afinal, não há nada no andar de baixo que possa
me interessar minimamente. Sem contar que estou ainda sem saco para
ouvir meu pai falar de negócios e para ouvir mamãe falar das suas amigas
ricas e influentes da vizinhança que estão extremamente animadas para me
visitar depois de um ano todo que passei fora. Estou totalmente sem saco
para ter ainda mais certeza de que o papo que se importavam comigo e que
me queriam por perto depois de mais um luto era totalmente mentira, já que
ainda nem tiveram a decência de perguntarem como estou me sentindo.
Quer dizer, minto, minha mãe até tentou adentrar nesse assunto na
hora do jantar na noite seguinte da minha chegada, mas é óbvio que meu
pai, Joseph, a cortou de forma rude e continuou a falar sobre como seus
negócios estavam indo bem, como estava animado para me ensinar algumas
coisas do meu cargo e de como a empresa estaria em boas mãos
futuramente.
Achei toda a conversa estranha e fora do comum, pois meu pai, desde
que me entendo como a sua primogênita, nunca se mostrou nem um pouco
animado com a ideia da empresa ficar em minhas mãos, mas como estava
fisicamente e emocionalmente esgotada, nem tive tempo para pensar e
continuar naquilo, então me retirei, jantando em meu quarto todas as noites
a partir daquele dia.
Eu prefiro assim e acho que até eles também, já que não reclamaram,
não me convidaram para voltar a prática e nem mencionaram minha
ausência.
Na real, será que Joseph e Mila já se deram conta que a filha voltou
para casa ou ainda estão achando que estou vivendo em outra cidade?
Sinceramente falando, fico com a segunda opção.
Pelo menos não é nada com que eu já não esteja acostumada. Lido
com a indiferença, com a falta de tempo e com as horas que eles dedicam
ao trabalho há anos, não é como se fosse algo novo capaz de me deixar
surpresa, triste ou com qualquer outro sentimento parecido. Tudo segue na
mesma programação e dentro da normalidade padrão da minha família.
Viro sobre os ombros e encontro o porta-retrato na cômoda, quieto,
bonito e intacto como havia deixado quando fui embora. É uma foto minha
com Penélope, nós duas estávamos fazendo anjinhos na neve quando ela
tinha seus quatro aninhos. A nostalgia me pega com força, eu sorrio com as
lembranças desse dia e estico o braço para alcançar a fotografia, trazendo-a
para meu colo quando a seguro de forma firme contra meus dedos.
— Gostaria que estivesse aqui, irmãzinha — converso com ela,
passando o polegar sobre seu rostinho lindo, gorducho e cheio de sardas
feito o meu. — Mas sei que você está feliz, descansando e me protegendo.
— Pisco para não deixar que as lágrimas caiam. Não quero chorar. Não vou
chorar. — Espero que encontre a tia Rosalinda aí em cima e que vocês
possam se divertir muito juntas, tá legal? Mostre para ela como você sabe
tudo sobre borboletas, mostre também suas brincadeiras favoritas e deixe
que ela te abrace e faça o melhor cafuné desse mundo. — Dou uma pausa,
respiro fundo, olho para o teto e abraço o porta-retrato. — Prometo que não
vou sentir ciúmes. Amo vocês.
Uma lágrima solitária rola pela minha bochecha e eu trato de sumir
com ela rapidamente, arrastando o dorso da mão pela região provavelmente
já avermelhada. Inspiro todo o ar que consigo para dentro dos meus
pulmões, tiro a fotografia de perto do meu peito e a coloco na altura dos
meus olhos só para poder admirá-la mais um pouquinho.
Quando percebo, já estou adormecendo.
Acordo do meu sono da tarde com algumas batidas sendo desferidas
em minha porta. Por isso, abro o olho vagarosamente, praguejo baixinho e
passo a mão pelo rosto e cabelo, bagunçando e amassando tudo no
processo. Fico muito tentada a simplesmente ignorar e me fingir de morta,
talvez a pessoa se canse e vá embora, porém não é isso que acontece. As
batidas ficam ainda mais incessantes, obrigando-me a prender os fios
revoltos do meu cabelo em um coque, me retirar da cama e ir atender a
porta puxando a enorme t-shit que uso para baixo enquanto meu rosto se
contorce em uma careta de desgosto por ter meu horário precioso
interrompido.
Quando abro a porta, dou de cara com a minha mãe parada à minha
frente e seu sorriso hospitaleiro quando encara o fundo dos meus olhos me
faz desfazer a careta na mesma hora. Mas não retribuo seu sorriso, apenas
crispo os lábios e encaro sua figura. Mila tem os mesmos fios longos, lisos
e ruivos que o meu, um pouco até mais alaranjado, eu diria. Suas
sobrancelhas bem feitas e arqueadas são da mesma tonalidade, seus olhos
são grandes, com cílios longos e espessos, de uma tonalidade bem clara de
castanho, quase cor de mel. Sua aparência é jovem, seu corpo permanece
cheio de curvas e todo mundo que não nos conhece acha que somos irmãs,
nunca mãe e filha. Ela veste um vestido preto, justo e que chega até um
pouco acima dos seus tornozelos. Há um blazer vermelho sobre seus
ombros e um scarpin também da mesma cor enfeitando seus pés. Seus
lábios cheios como os meus também estão pincelados por grossas camadas
de vermelho sangue e uma fina camada de maquiagem cobre sua pele
pálida e de porcelana.
Estar de frente para ela é como estar de frente para mim numa versão
madura e mais velha.
Somos muito parecidas fisicamente, chega a ser assustador. E é óbvio
que meu amor pela cor veio por influência dela. Ao invés do rosa, uma cor
esperada pela sociedade que meninas gostem e que mães usem desde cedo
em suas filhas, mamãe simplesmente contrariou tudo e todos e já desde
pequena me entupia de roupas e acessórios onde a cor era sempre
predominante. Lembro muito bem que ela dizia que o vermelho deveria ser
minha cor favorita porque combinava perfeitamente com o tom da nossa
pele e do nosso cabelo.
O vermelho veio a se tornar minha cor favorita, mas não tinha nada a
ver com combinação de tons de pele e de cabelo.
Sempre foi sobre ter um significado muito mais forte.
Balanço a cabeça de um lado para o outro para sair do transe, pisco
ainda mais os cílios e troco o peso dos pés, esperando pacientemente para
que Mila diga o que veio fazer aqui.
— Seu pai pediu para que eu te avisasse sobre a festa que teremos
mais tarde — ela diz alguns poucos segundos depois, ainda me olhando e
sorrindo daquela forma receptiva. — Ele pediu que se arrumasse e fosse
pontual, pois sua presença será de muita importância para el.. quer dizer,
para nós hoje.
Eu detesto o jeito como minha mãe parece sempre viver nas sombras
do meu pai. Ela sempre faz o que Joseph quer, quando quer, na hora que
quer, sempre está às ordens quando ele manda, como se fosse mais uma de
suas funcionárias prontas para servi-lo. Detesto que ela sempre tenha se
fechado em um casulo, que não se abra comigo, que não consiga interagir
com ninguém além dele e suas amigas ricas, que não pareça se importar
com o que quer que aconteça comigo, com os meus desejos e os meus
sonhos. O pior disso tudo é saber que mamãe não era tão indiferente assim.
Ela ainda tentava falar comigo sobre coisas fúteis como roupas e se eu
estava precisando que ela marcasse o salão de beleza, e embora eu não
gostasse, ainda tinha um pouco da sua atenção nesses momentos. No
entanto, quando Penelope nasceu as coisas foram diminuindo e eu fiquei
cada vez mais de lado. Quando ela ficou doente, eu quase não existia para
Mila e bom, quando infelizmente a perdemos, aí é que eu passei a não
existir mesmo.
Me mudei meses depois da morte da minha irmã, passei um ano
inteiro fora sem que eles ligassem para saber da minha existência e agora eu
estou de volta, totalmente presa na bolha da invisibilidade tanto para a
mulher parada à minha frente quanto para o patriarca da família.
Inflo as bochechas de ar e cruzo os braços.
— Posso saber do que se trata essa festa? — indago, genuinamente
curiosa.
O sorriso que ela tanto carrega no rosto vacila por um segundo.
— Negócios.
— E o que eu tenho a ver com isso?
Agora seu sorriso murcha e se desfaz completamente.
— Não desobedeça às ordens do seu pai, Pasha — mamãe ordena ao
dar um passo para trás, extremamente séria e convicta de duas palavras. —
Desça assim que alguma funcionária de minha confiança vier te entregar o
vestido que comprei. E, pelo amor de Deus, não se atrase, está bem? Não
queremos seu pai furioso... Queremos?
Mais uma vez, sempre temos que estar às ordens dos pedidos da
espécie de general da mansão. Faço a maior força extracorpórea do mundo
para não revirar os olhos.
— Não, não queremos — respondo, meio a contragosto. — Vejo
vocês já, já. — Forço um sorriso e, de forma rápida, fecho a porta antes que
ela decida soltar mais alguma coisa.
Caminho de volta para o meio do meu quarto e fico aqui, parada e
com as mãos espalmadas na cintura, repassando todos os acontecimentos
que envolvem meu pai desde que cheguei. Primeiro tivemos a ligação
suspeita e a necessidade absurda de que eu voltasse para casa logo, depois
tivemos o jantar que ele falou sobre estar animado comigo e com os
negócios e agora isso... Uma festa — afinal, como eu não escutei barulho
nenhum da decoração? — onde a minha presença será de muita
importância.
Algo de muito errado está acontecendo aqui e eu consigo sentir o
cheiro de longe de algo sendo confabulado bem debaixo do meu nariz.
Não sei que merda é, mas a minha intuição me diz que acabei de ser
atraída para uma armadilha muito bem arquitetada para que todos achem
que fazemos parte de uma família perfeita.
Adelaide, uma das funcionárias mais antigas que trabalha aqui em casa e
que é de muita confiança dos meus pais, trouxe o vestido que eu deveria usar
hoje na festa alguns poucos minutos depois da minha mãe ter saído do meu
quarto. Ela não falou muita coisa quando resolveu me entregar a caixa preta
ornamentada com fitas vermelhas e um cartãozinho logo na frente, onde uma
mensagem caprichada de Joseph Stratford se desenrolava como um pretexto
fajuto para conseguir me enganar e me levar direto para sabe lá Deus o que
esteja disposto a me arrastar esta noite.
Sei que eu deveria permanecer no quarto, ou sei lá, fugir pelas portas do
fundo da mansão e me livrar de uma vez por todas do que tudo isso hoje
significa, mas, mesmo caindo e quebrando a cara mil vezes, ainda
permanecerei com as piores escolhas, não tem jeito. Sou curiosa,
constantemente tenho vontade de bater de frente com o perigo e geralmente
não costumo recuar quando me sinto instigada a desbravar alguma coisa.
Mesmo que nada de bom e útil para mim possa sair dos planos mirabolantes
da cabeça retrógrada do meu pai, ainda me sinto afrontosa o suficiente para
querer descobrir com os meus próprios olhos o que se trata dessa vez. Talvez
eu até consiga ganhar respostas hoje sobre o porquê da vontade deles da minha
chegada nessa cidade ter sido tão abrupta, já que vontade de cuidar de mim, de
me dar apoio e me consolar que não foi.
Com uma súbita dose de coragem que se instalou em mim, repousei a
caixa com o vestido na minha cama, joguei o cartãozinho fora e me dei ao
luxo de deleitar um banho de banheira no espaçoso banheiro do meu quarto. A
água estava morna e recheada de pétalas de rosa como sempre tinha costume
de usar, tudo entrando em consenso e em uma boa harmonia para fazer com
que os músculos tensos e rígidos do meu corpo ficassem mais leves e mais
relaxados para o que eu tivesse que enfrentar mais tarde. Depois de passar um
tempo daquela forma, peguei uma toalha próxima, sequei cada centímetro do
meu corpo e me vesti com um roupão que tinha meu nome bordado em linhas
douradas às minhas costas.
Agora, após ter tirado o vestido da caixa, volto ao banheiro para encarar
meu reflexo no banheiro e ver como o modelo tinha se ajustado em minhas
curvas.
Uau.
O vestido é preto, longo, de mangas longas e gola média. Ele é
extremamente colado ao corpo, ou seja, aperta, ressalta e dá uma boa
valorizada em mim, marcando o meu busto, a minha cintura, o meu quadril e a
minha bunda, que ficam bastante em evidência aos olhos curiosos de qualquer
pessoa. Além disso já ser um ponto positivo, há ainda uma fenda enorme e
extravagante na minha perna esquerda, o que deixa minha coxa torneada
totalmente à mostra.
Consigo me sentir extremamente poderosa nesse vestido.
Mas, para me sentir ainda mais pronta para matar, saio do banheiro e
vou até o meu closet na intenção de fitar todos os pares de saltos que haviam
ficado por aqui. São tantos que eu quase perco o fôlego por ter me esquecido
dos meus bebês. Inflo o peito e me aproximo, passando os olhos por todos eles
para encontrar o par perfeito e que case muito bem com o meu vestido. E
então, após alguns segundos nessa, o encontro se destacando no meio de
outros, o que faz meus orbes logo se iluminarem com a magnitude da peça.
Os saltos, além de serem altos e finos, são de um tom de vermelho
sangue e possuem aquela típica serpente dourada para enlaçar os tornozelos de
forma firme e impotente.
Coloco-os nos meus pés sem nem hesitar, sentindo-me equilibrada e,
definitivamente, pronta para combater as piores guerras. Um sorriso brota em
meus lábios porque agora, nesse exato momento, me recordo da frase icônica
de Marilyn Monroe:
“Não sei quem inventou o salto alto, mas todas as mulheres devem
muito a essa pessoa.”
Talvez nem todas as mulheres do mundo se identifiquem com essa frase
— talvez até achem ela ridícula —, mas eu, Pasha Denise Stratford, me
identifico. E muito. Sempre que estou com eles, sinto como se fosse possível
tudo, até mesmo alcançar o céu. Sinto que sou a própria estrela da passarela da
minha vida, que sou destemida, que tenho todo um caminho a percorrer de
maneira firme e elegante, que não sou capaz de cair nem de receber as
famosas rasteiras da vida. Sinto-me na altura de todos os outros que tentam me
diminuir, sinto-me com a mesma postura e no mesmo patamar.
Com salto e com um batom vermelho, que eu corro agora para passá-lo
em meus lábios sedentos por ele, sinto-me a própria resistência, afinal, é isso
que a cor significa, não?
É isso que ela sempre significou para mim.
Toda vez que eu passo o tom em minha boca, faço questão de sempre
me lembrar das mulheres no século 16, que eram julgadas e perseguidas como
bruxa caso ousassem usar o batom vermelho, e das sufragistas de Nova York
no ano de 1912, onde elas usaram a cor como arma de expressão, afirmação e
resistência. Faço questão de me recordar de todas as outras que sofreram e
perderam a sua vida para que eu pudesse estar aqui, me sentindo
extremamente incentivada a ser eu mesma; forte, livre e com vontade de
resistir mais uma vez.
Resistir a opressão e a indiferença do patriarca da família, a falta de
vontade ou o medo da minha mãe de se manter mais próxima, a perda, a
saudade, o coração dilacerado e a desilusão. Mesmo sabendo que seja difícil e
doloroso, estou me sentindo muito capaz e pronta para resistir a tudo e a todos
que me fizeram mal de alguma forma.
Não vou deixar que nada, pelo menos por agora, me atinja e me leve
para o fundo do poço.
Homem nenhum será capaz de me levar ao chão.
“Pelo menos não quando eu estiver em cima desses saltos”, é o que eu
penso.
Independentemente do que Joseph esteja armando, acho que eu estava
precisando disso, de qualquer forma. Estava precisando de um empurrão para
me arrumar, colocar um bom vestido, um salto alto, um batom vermelho e
perceber que já passei e enfrentei coisas demais para simplesmente desistir
agora.
Tudo o que eu preciso é me adaptar à nova realidade da minha vida e do
meu coração, tentando achar o melhor caminho para me reerguer e me
reestruturar mais uma vez. Como uma fênix ressurgindo das cinzas.
Dou o meu melhor sorriso, desfaço meu cabelo do coque e deixo que ele
caia em perfeitas ondas sobre meus ombros, enquanto sigo para apagar a luz e
trancar o meu quarto. Com a postura ereta e os ombros aprumados, guio
minhas longas pernas pelo corredor e vou em busca da escada clássica em
formato de U, tocando o corrimão brilhoso feito ouro com as pontas dos meus
dedos e sendo recepcionada pelo som instrumental do violino que, muito
provavelmente, estava sendo derivado da orquestra que papai costuma
contratar quando quer recepcionar uma festa daquelas em sua casa.
Agora parada no hall, olho para o lustre exuberantemente posto sobre as
nossas cabeças e quase dou um sobressalto quando percebo uma rápida
aproximação ao meu lado.
— Vejo que o vestido que a sua mãe lhe comprou caiu super bem —
Joseph Stratford diz, completamente intimidante em seu porte alto, atlético e
viril quando crio coragem para lhe fitar. Ele usa um terno preto, de marca e
capaz de valer uma fortuna. Meu pai tem cabelos escuros serpenteados por
alguns fios grisalhos, que também alcançam sua barba bem feita e que
emoldura seu rosto anguloso. Seus dedos envolvidos por um único anel
dourado com uma pedraria escura seguram a taça acrílica de champagne e a
leva até os lábios finos, bebericando um pouco do álcool conforme seus olhos
castanhos seguem presos aos meus. — Você está linda, minha querida.
— Obrigada.
Desvio do seu escrutínio para olhar nossa casa, cada vez mais se
enchendo de pessoas fúteis, vazias e que não se importam com nada além
delas mesmas e da gorda conta bancária que possuem. Elas ostentam as roupas
das mais recentes coleções, sorrisos com dentes enfileirados e brancos,
pescam os drinques mais sofisticados com os garçons que passam de um lado
para o outro e conversam amenidades, como se realmente estivessem
interessadas.
Faço o maior esforço para não revirar os olhos e bocejar de tédio.
Nunca gostei de festas como essas.
— Pasha. — A voz do meu pai me chamando faz com que eu pare de
encarar as pessoas e volte a olhá-lo. — Fico feliz que tenha aceitado de bom
grado comparecer hoje. É realmente muito importante para mim e para Mila
termos nossa linda primogênita de volta e aqui conosco.
Fricciono os lábios para não rir da sua encenação. Como se eu tivesse
tido alguma opção de não aparecer. Mamãe foi muito clara lá no quarto, ou eu
apareceria ou as coisas ficariam complicadas para o meu lado. Como sempre.
E também só compareci nessa merda porque estou disposta a ver até
onde isso vai dar.
Joseph abre a boca para continuar com o seu teatro, mas eu sou mais em
rápida em cortar qualquer oportunidade ao soltar:
— Vou ver os músicos tocando.
Não tenho tempo de ficar para ver qual seria sua resposta, pois logo viro
de costas e fujo dele como o diabo foge da cruz. Aperto cada vez mais os
passos, me guio pelo som e fico próxima do pequeno palco improvisado perto
do local onde algumas pessoas conversam e outras dançam, admirando a
conexão de todos eles com os instrumentos e com a música que tocam, com o
meu rosto repleto de fascínio e adoração.
Quando me enfiavam em festas desse tipo, isso, sim, era a única coisa
que me fazia ficar empolgada; o som dos melhores músicos da cidade, admirar
os instrumentos de corda e resgatar as memorias do tempo em que eu fazia
aula de violino e violoncelo, que acabei tendo de cancelar por não estar
conseguindo conciliar com os estudos e nem com a patinação artística, meu
maior amor na adolescência.
Sim, Avell District é uma daquelas cidades onde as meninas crescem
querendo ser patinadoras profissionais e os garotos os melhores jogadores de
hóquei.
A música termina tempos depois e aplausos se escutam de forma
estridente, principalmente os meus, que saem empolgados e ainda conseguem
arrancar alguns gritinhos entusiasmados de mim, o que acaba fazendo algumas
pessoas ao meu redor me olharem torto e outras rirem. De esguelha, noto que
um garoto aproximadamente da minha idade, ou talvez mais velho uns dois
anos, e que está parado ao meu lado esquerdo, é o que se mantém sorrindo de
forma descarada em minha direção, como se estivesse encarando o próprio
palhaço convidado para animar a festa.
— O há de tão engraçado? — quando decido questionar, a acidez que
me é comum sai gotejando por todas as sílabas. Surpreendentemente, isso não
o afeta nem um pouco.
O desgraçado consegue sorrir ainda mais quando me ouve.
— Nada — responde. — Só achei encantador o modo como você
parecia feliz ouvindo a música. Seus olhinhos chegaram a se fechar e tudo.
O quê?!
— Estava me espionando? — Aponto o dedo indicador em minha
direção e entreabro os lábios. — Você é o que, um serial killer fascinado por
garotas que sabem apreciar uma boa música?
A risada do desconhecido, ao ouvir minha estúpida pergunta, permeia o
ambiente e ele parece genuinamente achar graça. Seus olhos, que são
pequenos e angulados, se tornam ainda menores quando ele sorri grande e
pequenas ruguinhas emolduram os cantos de forma precisa e fofa. Suas
bochechas se tornam ainda mais rosadas nesse momento. Apesar de não o
conhecer, não consigo não ficar encantada por sua beleza natural.
— Um serial killer, não. — Suas mãos afundam no bolso social da sua
calça cinza e ele ergue minimamente os ombros. — Mas um cara fascinado
por garotas que sabem apreciar uma boa música, sim.
Ele umedece a sua boca pequena e naturalmente avermelhada com a
pontinha da língua, olhando para mim com seus olhos extremamente escuros
— a pupila claramente se camufla com as írises, é impressionante — e
totalmente prontos para me fisgar no seu charme e no seu flerte rápido. Como
eu continuo estática e não respondo nada, o garoto bagunça os fios lisos do seu
cabelo castanho e o joga para trás, logo depois passando a mão pela bochecha
e parando no queixo.
— A propósito, sou o Kenneth — se apresenta ao estender a mão agora
em minha direção. — Kenneth Park.
Coreano, eu suponho.
— Pasha Stratford — digo, apertando sua mão e fazendo um
cumprimento breve.
Kenneth abre mais um de seus sorrisos ao mencionar:
— Eu sei quem você é.
Bom, não faço a mínima ideia de como isso pode ser possível, mas sou a
filha do dono da casa e da festa, não? Se ele está aqui, então sua família é
próxima da minha e provavelmente saiba quem eu seja por conta deles.
— Bom saber que sou famosa, então. — Não o encaro quando falo isso,
apenas olho para frente e presto atenção no que os músicos estão se
preparando para tocar dessa vez.
Kenneth fica quieto, acho que percebe que não estou no clima para
prolongar conversas, fazer amizades e, principalmente, corresponder seus
flertes. Apesar da minha falta de hospitalidade, o garoto permanece ao meu
lado encarando fixamente o mesmo ponto que o meu. E, quando eu penso que
não vai mais puxar assunto por conta da música e do barulho que impossibilita
uma boa comunicação, ele vira sobre os ombros e sussurra-grita extremamente
próximo do meu ouvido:
— Se eu te convidasse para dançar agora, seria precipitado demais?
Permaneço sem o encarar e cruzo os braços em frente ao peito.
— Seria.
— Perdão. — Kenneth se afasta um pouco e acaba por me imitar,
também cruzando os braços. — É só que você é muito gata, provavelmente
tem um gosto musical impecável e eu queria garantir que nenhum outro
homem se aproximasse. Mas se você quer bancar a difícil, então podemos
continuar nessa até você se cansar e dizer sim para mim.
Kenneth provavelmente nem percebe a merda que disse, pois segue me
olhando com seus olhos fofos, seu sorriso tão fofo quanto e com a certeza
estampada em sua cara de que acabou de garantir uma garota para terminar a
sua noite.
Homens, em nome de Deus, por que vocês têm que agir dessa forma
nojenta com as mulheres e ainda achar que vamos querer qualquer coisa com
vocês?
Fico com tanta preguiça dele que faço questão de revirar os olhos e
bufar bem na sua frente, girando sobre os calcanhares para sair daqui o mais
rápido possível. Ele está me chamando, provavelmente segue os meus passos,
porém faço questão de andar ainda mais rápido e costurar com certa pressa por
entre as pessoas. Avisto a minha mãe no meio delas e peço seu casaco felpudo
emprestado, que ela logo me entrega sem muita cerimônia e eu agradeço
rapidamente, dizendo que ficarei um pouco lá fora.
Talvez Kenneth tenha cansado de ser inconveniente, pois alcanço a porta
da mansão e saio sem ver nenhum sinal dele. Me aqueço com o casaco, desço
as escadas e decido caminhar um pouco pelo bairro para espairecer e sair um
pouco de um lugar que não estou mais acostumada a ficar.
Enquanto caminho, olho para o céu escuro e solto um longo fluxo de ar
por entre meus lábios, que se condensam e fazem a típica famosa fumaça do
frio. É estranho me sentir deslocada como um peixe fora d´água novamente.
Me senti assim quando cheguei em Hellaware, quando não conhecia ninguém,
quando não sabia o que ia acontecer na minha vida após estar longe de casa
pela primeira vez. Agora, voltando para casa depois de ter encontrado tudo o
que eu precisava lá, não consigo sentir mais como se fosse o meu lar, o meu
lugar. Parece que eu evoluí, cresci e fui obrigada a voltar trezentas casas para
trás.
É péssimo estar de mãos atadas.
Um arrepio intenso, que dessa vez não deriva do frio, sobe pela minha
espinha e aquela sensação de estar sendo observada ou perseguida me atinge
com certa força. Paro de caminhar, olho para os lados e cerro as mãos em
punho. Não encontro nada. Nadinha. Apenas as casas luxuosas do bairro
nobre de Avell District e algumas poucas pessoas na janela ou na porta. Talvez
seja paranoia da minha cabeça, então permaneço meu percurso e não ouso
olhar para trás.
— Diabinha?
O apelido e a voz extremamente conhecida soando com certo receio
atrás de mim me faz parar e dar um solavanco para trás. Permaneço olhando
para a frente e sinto meu coração trovejar, o meu peito subir e descer, a
respiração sair ofegante e entrecortada, além de sentir a água cristalina
subindo, nevoando e transbordando em meus olhos só com a possibilidade.
Mas não tem como. Simplesmente não tem como. Estou tão afogada em
saudade e no que sinto por ele que meu cérebro afetado acha que estou
ouvindo coisas quando, na verdade, não devo estar ouvindo nada.
Não há nada e ninguém atrás de mim. Não tem como ter. Eu estou no
Alasca e John Scott na Carolina do Sul. Estamos há quilômetros e quilômetros
de distância um do outro. Estamos separados para sempre e eu preciso
começar a entender.
Preciso começar a entender que nossa história ficou para trás, assim
como tudo que deixei em Hellaware. Preciso entender que, a partir de agora,
estou prestes a dar início a uma nova fase da minha vida que vai exigir muito
de mim e do meu psicológico. Preciso entender e repetir para mim mesma que
tudo vai ficar bem.
Então choco os cílios incontáveis vezes um no outro, em uma tentativa
clara de afastar as lágrimas, empino o queixo e dou alguns passos para a
frente. Mas, mesmo assim, ainda sinto e ouço passos. Ainda sinto a respiração
dele se condensar nas minhas costas, lambendo e eriçando os pelos da minha
nuca, como sempre teve o poder de fazer. Ainda sinto a sua presença, sinto a
sua magnitude me puxando, sinto o sangue latejando em minhas veias e o
coração prestes a querer escapar do meu peito e pular pela minha garganta.
Sinto o campo gravitacional mudar e simplesmente sei que preciso me virar
para ter a confirmação de que John Scott está mesmo a alguns passos de
distância ou se eu estou mesmo ficando maluca por sua causa.
— Diabinha, é você? — Fecho os olhos com certa força e sei que uma
lágrima desce, pois ela queima quando rasteja pela minha bochecha e pinga
em minha boca. — Pelo amor de Deus, Pasha, eu reconheceria você em
qualquer lugar do mundo.
Mais lágrimas se acumulam em meu rosto e eu prendo a respiração,
ainda achando que estou mesmo ficando maluca ou que estou tendo algum
tipo de alucinação. Se eu tivesse bebido alguma coisa na festa, provavelmente
diria que o álcool havia sido batizado. Mas isso não aconteceu. Estou
completamente limpa, sóbria e lúcida, porque, querendo ou não, eu também o
reconheceria em qualquer lugar do mundo.
Solto todo o ar que eu havia prendido em meus pulmões, conto até três e
então me viro.
A figura do garoto que esmagou meu coração com as próprias mãos está
mesmo parada bem à minha frente. Diferente do que eu estava acostumada a
ver, mas ainda, sim, ele. O loiro platinado do seu cabelo sumiu, agora a cor
natural dele, que é um castanho-claro, toma conta de todos os seus fios fartos e
o deixa ainda mais bonito, combinando perfeitamente com o tom claro dos
seus olhos. Há uma barba por fazer emoldurando seu maxilar bem definido e
ele veste um sobretudo preto, cachecol, camiseta preta e jeans também da
mesma cor, além das costumeiras botas de combate. Uma mochila pende em
seu ombro e John a aperta com seus dedos tatuados e repletos de anéis,
consigo até ver os nós ficando esbranquiçados do tanto que esmaga a alça.
Seus cílios também piscam, seus lábios se entreabrem e ele acaba por
dar dois passos em minha direção, ainda com certo medo de se aproximar o
bastante.
— O que... o que você está fazendo a-aqui? — solto tão baixo, tão baixo
que fico surpresa dele ter escutado. — O que pensa que está fazendo no
Alasca, John Scott?
Finco os dentes incisivos na carne do meu lábio inferior e faço a maior
força do mundo para não chorar em sua frente, para não demonstrar a fraqueza
que se apossou de mim depois de tudo. Faço o possível e o impossível para
conseguir encarar os seus olhos e conter a vontade que tenho de me jogar em
seus braços, sentir seu cheiro e nunca mais deixá-lo ir. Faço de tudo, de tudo
mesmo, para permanecer quieta, impassível e apenas com as minhas
engrenagens trabalhando incessantemente para tentar descobrir do que isso
aqui se trata.
Será que ele se deslocou da sua cidade até a minha para rir de mim? O
quão perverso, maldoso e nojento esse jogo significa para ele?
Não tenho muito tempo de pensar sobre, pois Scott se aproxima ainda
mais e me sufoca. Não consigo raciocinar, não consigo elaborar uma frase
para ser dita, não consigo fazer absolutamente nada. Sua presença, mesmo
sendo extremamente incômoda, também é reconfortante e eu não arranjo —
talvez eu nem queira — forças para pedir que ele se afaste, vá embora e nem
tente me explicar qualquer que seja a mentira passeando pela sua cabeça. A
única coisa que eu consigo fazer é me manter quieta e puxar o ar com
desespero.
— O que você pensa que está fazendo no Alasca, Pasha Stratford? —
Sua voz sai alta, grave, imponente e eu me sinto extremamente pequena e
incapaz de fazer qualquer coisa. — O que você exatamente pensou que estava
fazendo quando foi embora e me deixou para trás? Achou que eu não fosse te
procurar, huh? Achou mesmo que eu não fosse maluco o suficiente por você
para te seguir até o fim do mundo se fosse preciso?
John avança em minha direção, decidido, e eu, como sempre, recuo.
Dou alguns passos para trás completamente ofegante e minhas costas se
colidem suavemente em algum ferro que desconheço. Estou encurralada, sem
saída e completamente presa em seus olhos azuis, que estão injetados de força
e coragem de um jeito que eu nunca vi antes.
— Por que você está falando essas coisas? — Sei que meu tom de voz
sai trêmulo e nada confiante, mas não consigo fingir. Pelo menos não agora.
Pelo menos não em sua frente. — Você não precisa vim me machucar mais um
pouco, John. Eu já estou completamente machucada, não está sobrando mais
nada para você aqui. Não há uma mísera parte de mim sobrando para ser seu
brinquedinho sádico favorito. Inclusive, está satisfeito? Esse sempre foi o seu
plano desde o começo, não foi?
Minhas palavras são duras e cortantes, provavelmente iguais aos meus
olhos, que encaram os seus feito agulha a fim de perfurá-los. No entanto, o
garoto não parece nem um pouco atingido por nada. O filho da mãe insolente
leva os dedos até os fios do meu cabelo, brinca com eles e sorri, como se tudo
o que eu falei fosse um combustível para ele continuar com o que veio fazer
aqui.
— Eu já disse o quanto você fica linda com raiva? — sopra, seu hálito
gelado cumprimentando o meu rosto, fazendo-me fechar os olhos e respirar
fundo. — Mas só quando ela tem fundamento. Essa sua raiva, por exemplo,
não há fundamento algum, diabinha. Não há fundamento algum, porque eu saí
da Carolina do Sul em uma viagem de moto até o Alasca para te encontrar,
olhar em seus lindos olhos e falar que a única mulher que existe para mim é
você. Sempre foi você. — Meu coração palpita tão rápido nesse momento que
sinto como se fosse ter uma síncope a qualquer instante. — Nunca houve
outra. Nunca houve dúvida. Ouve um medo, uma insegurança de não ser
merecedor do seu amor e de você, de não ser suficiente para te fazer feliz, mas
nunca, nunca uma dúvida de que a garota que eu estava esperando todo esse
tempo era você. — John para de brincar com o meu cabelo e direciona seu
dedo para o meu queixo, que ele faz questão de empurrar gentilmente para
cima para que eu possa olhar bem dentro dos seus olhos azuis. — Meu
coração é seu. Ele sempre foi seu para você fazer o que quiser. Então queime,
destrua, pise com seus saltos, faça o que bem entender. Só, por favor, pegue
ele de volta, porque o lugar dele sempre foi junto do seu.
Suas palavras e a intensidade do oceano preso em seus olhos me
atingem com tanta força que perco o equilíbrio nas pernas e preciso me
segurar em seus braços. Olho para seus glóbulos, depois para a sua boca e me
sinto perdida; perdida nele, no que eu sinto por ele e no medo de estar sendo
enganada mais uma vez, afinal, eu ouvi quando ele se declarou para outra, eu
estava lá.
— Mas... — Pela minha voz sair falhada e extremamente baixa, limpo a
garganta e começo de novo. — Eu fui te procurar na festa e escutei você
conversando com a Daisy. Eu sabia que não deveria escutar atrás da porta, mas
foi exatamente isso que eu fiz. Eu te escutei, John. Eu ouvi tudo.
Ele balança a cabeça de um lado para o outro, negando a minha frase.
Suas mãos agora voam para cada lado da minha bochecha, ainda me mantendo
firme em seu olhar.
— Você escutou só uma parte da conversa totalmente fora de contexto e
tirou conclusões precipitadas. — John nega com a cabeça mais uma vez e
sorri, como se fosse tudo muito simples. — Eu te pedi alguns minutos naquele
dia, porque estava preparado para me abrir com você naquela noite. Então eu
saí para pensar um pouco e acabei encontrando a Daisy, que se tornou uma
amiga para mim no tempo que Hunter a abrigou no rancho, e ela me chamou
para dizer que havia conseguido realizar seu sonho... havia ganhado uma
carona para ir para Los Angeles tentar a sorte no mundo artístico. Eu fiquei
super feliz por ela, a gente se abraçou e, conversa vai e conversa vem, acabei
contando do que estava prestes a fazer e Daisy pediu para que eu treinasse
minha fala como se você fosse ela. Foi isso que ouviu, Pasha. Aquela
declaração, a declaração que pensou que fosse para Daisy Flinch, era para ser
dita a você. — Mais lágrimas descem em meu rosto e John faz questão de
limpar cada uma delas com o seu polegar. — A essa altura, Daisy já deve estar
fazendo testes e mais testes para ser atriz. Se você não acreditar, pode
perguntar a qualquer um do THF. Pode perguntar a qualquer um sobre como
eu estava me sentindo quando pensei que havia sido largado e abandonado
pela minha diabinha favorita. Eu não me importo se você continuará
duvidando, eu só precisava tentar e te falar que eu estou mesmo apaixonado
por você, garota. Apaixonado por tudo; cada mínimo detalhe, cada
composição que te faz ser essa mulher incrível, cada singularidade, cada
qualidade e cada defeito. — Scott ri, e eu não consigo não o acompanhar
nessa, ainda chorando feito uma criança. — Eu quero o pacote completo,
Pasha Stratford. Eu quero tudo que você tem a me oferecer. Quero seu mau
humor, sua língua ácida, sua mente perversa, seus olhos doces e ao mesmo
tempo diabólicos, seu falatório quando o assunto é aquilo que gosta, seus
beijos, seu carinho, seu amor. Por favor, pelo amor de Deus, diz que acredita
em mim, que me quer de volta e que me deixará ter tudo.
Céus, eu continuo chorando feito um bebê e não consigo parar. Parece
até que um soluço irrompe da minha garganta, mas não tenho certeza disso,
pois me afundo em seu colo, em seus braços e deixo que ele me ampare, me
traga de volta para a superfície. Deixo que as lágrimas desçam, que as suas
mãos façam um carinho singelo em minhas costas, que o seu nariz inspire o
cheiro do xampu do meu cabelo, que o mundo pareça fazer sentido
novamente. Deixo que o meu coração se recomponha pouco a pouco, que ele
se sinta seguro novamente e que dance freneticamente junto ao dele, que
parece bater exatamente no mesmo ritmo que o meu. Deixo que a nossa
sintonia se reconecte, floresça e se torne uma só.
Me sinto péssima por ter tirado conclusões precipitadas e por ter
desistido antes mesmo de lutar. Se John não estivesse empenhado em me
contar o que houve — tenho certeza que isso veio de Georgina, pois foi a
única para quem contei o que havia acontecido, já que não queria envolver
Barbie nem Devin — nós permaneceríamos afastados, chafurdados na merda e
com muita raiva um do outro.
E, para ser sincera, eu acredito nele. Acredito em suas palavras, em seus
olhos que me passaram tamanha sinceridade e na prova que ele demonstrou ao
sair de Hellaware até aqui para me falar isso. Quem, em sã consciência, faria
essa maluquice por outra garota que não fosse a que está apaixonado?
Provavelmente ninguém, afinal, estamos falando de uma viagem cansativa,
uma viagem de dias e mais dias e que demanda muita vontade, determinação
e... paixão.
Bote paixão nisso.
Me afasto minimamente do abraço, seco as minhas lágrimas e os cantos
dos meus lábios pincelados pelo meu batom vermelho se repuxam em um
sorriso grande, largo e sincero.
— Eu acredito em você, John Stone Scott — confidencio. — Eu
realmente acredito em você, lindo. Me desculpe por não ter conversado, por
ter ido embora e por ter feito você se sentir abandonado. Eu jamais faria isso
se soubesse que tudo não passou de um mal-entendido.
— Eu sei meu amor, eu sei. — Ele junta sua testa na minha e nós dois
sorrimos um para o outro. — Está tudo bem agora. Eu vim te encontrar no
Alasca, na neve, nesse lugar que grita dinheiro e faria tudo novamente. Eu
seria capaz de te encontrar em qualquer lugar do mundo.
Aquiesço, pois agora sei que sim.
Agora eu finalmente sei que sim.
— Então encontre-me aqui, encontre-me na neve e me beije. — Puxo-o
pela gola do sobretudo que usa e quebro totalmente nossa distância, nossos
rostos agora extremamente próximos. — Reivindique a sua diabinha.
Seu sorriso torto e sacana logo dá as caras.
— Só se for agora!
Com um impulso em minha cintura, John me prensa contra seu corpo
alto, forte e musculoso e esmaga minha boca com a sua em uma completa
urgência e necessidade. De repente, não há frio, não há nada. Há calor
arrebatador, desejo pulsante e a certeza de que voltei para casa, de que estou
na minha zona de conforto novamente. Com o seu gosto se derramando
deliberadamente em minha língua, sinto-me alcançando o céu, o paraíso e as
melhores coisas que a vida e o destino tem para me oferecer.
Inclusive, vida e destino, muito obrigada por isso.
Muito, muito, e muito obrigada por me dar um tapa na cara e me mostrar
que, independentemente do que aconteça, todos têm direito de encontrar a sua
luz no fim do túnel.
John Scott é e sempre será a minha.
— Estou perdidamente apaixonada por você, seu cretino! — digo, aos
risos, quando interrompemos o beijo para recuperarmos o fôlego. — Eu te
odeio muito por isso, sabia?
Ele levanta os ombros e os sacode no ar, fingindo pouco caso.
— Acho que posso lidar com isso. — John paira com os lábios em
minha testa e deixa um beijo casto na região. — Afinal, eu também te odeio
muito por isso, sabia?
Dou uma risada e o abraço novamente, fechando os olhos e inspirando
seu perfume para dentro dos meus pulmões ao me inebriar com seu cheiro
gostoso e que tanto senti falta. Quando abro os olhos, ainda sentindo seu
aperto em meu corpo, finco os olhos no outro lado da rua e vejo um táxi se
aproximar devagar. Um estalo surge em minha cabeça, então me desvencilho
dos seus braços, pego em sua mão e o faço andar junto a mim até a beirada da
calçada. Sei que ele provavelmente fica todo confuso quando dou com a mão
para o motorista no táxi, mas ignoro totalmente suas perguntas, sua
observação de que a moto estava estacionada extremamente próxima e a
enorme interrogação pairando em sua cabeça.
Segundos depois, o carro para perto de nós e eu estou muito próxima a
abrir a porta, mas refreio meus movimentos apenas para olhar para ele e dizer:
— Entra. — Aponto com a cabeça para a porta, um sorriso presunçoso e
sedutor serpenteando minha boca. — Vamos terminar nossa noite da melhor
forma possível.
John parece perceber o brilho de luxúria que se apossa dos meus olhos,
pois entra no conversível sem nem pensar duas vezes.
Deixo meu pai e todo o seu plano para trás, focando em mim e na minha
felicidade pela primeira vez desde que cheguei aqui.
Enquanto eu e John seguíamos nosso destino surpresa — pelo menos
para ele — com a rádio do táxi ressoando com força a música You Give Love A
Bad Name do Bon Jovi, ficamos conversando e esclarecendo algumas coisas
necessárias. O integrante do The Hurricane Freedom me contou como teve que
pedir informações para achar a minha casa, também um pouco da sua história
de infância, o quanto sofreu com ela e o quanto ela estava impedindo-o de ser
feliz comigo, me disse também que soube do falecimento da minha tia e da
minha viagem por conta de Devin, que achou muito estranho ele estar agindo
de forma normal quando eu estava extremamente mal e indo embora. Também
me contou que foi até o aeroporto me impedir, que ficou dilacerado, que tomou
todas no bar e passou dias escondido do mundo em seu trailer. Além disso,
também me contou, assim como eu suspeitava, que só ficou sabendo do que eu
achava que tinha descoberto com ele e Daisy por conta de Georgina Sinclair,
que com seu jeito explosivo e que não costuma pensar direito nas coisas que
faz antes de realmente fazer, partiu para cima dele, xingou e acabou soltando a
informação.
E é óbvio que ele me contou sobre como chegou a pensar no plano de
viajar até aqui e como todos os seus amigos o incentivaram e o ajudaram de
alguma forma.
Foi impossível não ter ficado toda boba e emocionada feito uma
adolescente descobrindo o seu primeiro amor enquanto o escutava contar tudo.
Foi impossível não liberar algumas lágrimas, não arrancar uns beijos em
diversos momentos e não sentir completamente e inteiramente a sua paixão e o
sentimento grandioso que ele sente por mim através de sua fala, de seus gestos,
de seus olhares e de seus sorrisos. Foi impossível não me apaixonar um
tiquinho mais por ele, por seu jeito e por tudo que o envolve. Foi impossível
não me sentir mais leve, mais relaxada e realmente pronta para enfrentar marés,
terremotos, furacões e tsunamis, porque agora finalmente sabendo do que ele é
capaz, sei que estará em todos esses momentos ao meu lado me incentivando,
me guiando e, de certa forma, me protegendo e me salvando.
Ao mesmo tempo em que sinto que John Scott moveria céus e terras por
mim, sinto que faria a mesma coisa — ou até mais — por ele.
As pessoas costumam dizer que sabem exatamente o momento em que se
apaixonaram pelo seu parceiro ou parceira, mas nesse caso, no meu caso e de
John, acho que não sei ao certo. No começo, eu não o suportava. O achava
arrogante, prepotente, indecente, insuportável demais e altamente perigoso para
o bem de qualquer garota que tinha juízo. Ele provavelmente também não ia
com a minha cara e me achava chata, mimada, fútil, patricinha e sabe lá o que
mais. Mas todos os meus conceitos caíram por terra quando eu finalmente dei
uma chance de conhecê-lo, de conhecer seus desejos, suas ambições, suas
experiências e seu coração, que cabe milhares de pessoas dentro de tão grande.
Tudo caiu por terra quando o conheci pouco a pouco, quando o deixei entrar em
minha vida, quando o deixei olhar para dentro de mim, quando parei e vi que
ele é muito maior do que aparenta, quando percebi que ele é doce, que cuida e
protege com a vida quem é importante, que é verdadeiro, engraçado,
batalhador, lutador e um sobrevivente. Tudo caiu por terra e, quando percebi,
quando me dei conta, estava afundada nas suas profundezas, emaranhada em
seus encantos, fissurada e apaixonada demais por ele para simplesmente dar
para trás e lembrar do momento em que isso aconteceu.
Acho que só aconteceu, como algo trivial demais como respirar, acordar,
andar, falar.
Um sentimento inerente apenas a mim, que sempre esteve esperando o
momento certo para se aflorar e dominar todos os meus impulsos, me
corroendo e me puxando sempre para o lado dele, como se fosse uma força
maior e que, mesmo eu querendo, não me deixava desistir.
Suspiro assim que John dá algumas gorjetas para o motorista e nós
saímos do táxi, ficando cercados pela floresta de pinheiros, neves sob nós, um
lago congelado e o chalé amadeirado, pequeno e aconchegante da minha
família, que não era visitado em final do ano mais.
— Uau. — Olho para o lado e John parece visivelmente impressionado.
— Vamos invadir uma propriedade ou ela é sua?
Dou risada.
— Ela é dos meus pais, então, tecnicamente, vamos invadir. — Dou de
ombros ao morder o interior da bochecha, ansiosa. — Vem comigo nessa ou
não? As chaves ficam debaixo do tapete.
— Nossa, ricos são tão previsíveis assim?
— Meus pais costumam ter esse dom — brinco, e estendo a minha mão
para que ele a segure, como se estivéssemos prestes a cometer alguma
atrocidade irreversível.
Scott a segura sem hesitar e nós dois andamos pela neve, deixando
pegadas nela à medida que fazemos o caminho até o chalé. Já subindo as
escadas e sentindo a madeira ranger sob nossos pés, me separo dele apenas
quando já subimos tudo só para ir até a porta e me agachar em busca das
chaves. Quando pego o molho em mãos e volto para a minha posição normal,
coloco-as na frente do meu rosto, sorrio de forma maliciosa e começo a
balançar de um lado para o outro, o tilintar delas soando extremamente
saboroso para nós.
— Se eu soubesse que você fica extremamente sexy invadindo casas,
teria feito isso com você antes — John morde um sorriso torto ao apontar para
a porta, incentivando-me a abri-la de uma vez por todas.
E é exatamente isso que eu faço.
Coloco a chave certa na fechadura, abro-a rapidamente e entro logo em
seguida dele. Mal tenho tempo de fechá-la, ligar as luzes e o aquecedor que o
garoto sedento por mim já corre em minha direção para me prensar contra a
parede, prendendo meus braços acima da minha cabeça conforme beija meus
lábios, pede passagem com a sua língua e enfia ela em minha garganta. Grunho
de surpresa, de prazer, de saudade, de devoção e sinto minhas pernas bambas.
Arfo quando John decide descer os beijos pelo meu pescoço, mordiscando e
sugando a região com a sua língua aveludada, quente e extremamente ágil.
Arranho a sua nuca, puxo os fios do seu cabelo e solto palavras desconexas
quando ele sobe, envolve o lóbulo da minha orelha com os dentes e diz de
forma lenta, infernalmente sexy e arrastada:
— Você não tem noção do quanto eu estava sedento por isso. — John
agora alinha seus olhos nos meus e eu me sinto extremamente enfeitiçada e
excitada com o brilho devasso que os envolvem agora. — Eu estou tão duro por
você, Pasha. Somente por você, meu bem.
O empurro para trás, totalmente orgulhosa e com o ego massageado pela
sua frase, e tiro o casaco grosso e pesado de mamãe, jogando-o em um canto
qualquer. Seus glóbulos se arregalam, como se ele estivesse notando pela
primeira vez na noite o modo como estou vestida. John olha cada curva do meu
corpo, lambe os beiços, sorri abobado e puxa os fios do seu cabelo para trás,
ainda completamente hipnotizado. Hipnotizado por mim.
— Tira esse vestido para mim, gata — ordena, a voz saindo totalmente
autoritária e rouca. — Você está extremamente gostosa com ele, mas eu te acho
ainda mais quando está sem nada.
Há alguma razão para negar seu pedido?
Pois é, acho que não.
Começo a tirar os saltos vermelhos e, logo em seguida, puxo o tecido
grosso do vestido para cima, passando-o pela minha cabeça e jogando-o no
meio da bagunça. Fico apenas de sutiã e calcinha e arrasto lentamente meus pés
em sua direção, devagar feito uma predadora pronta para dar o bote em sua
caça favorita. Ele sorri, provavelmente percebendo, e nesse interim, joga a
mochila para o lado, o sobretudo e o cachecol para o outro. E, assim que eu me
aproximo completamente, pego impulso para pular em seu colo e enlaçar as
pernas em seu quadril. John não desequilibra e nem parece surpreso, apenas me
segura com a sua força viril e afasta meu cabelo para o lado, que havia ficado
feito uma cortina entre nós. Sorrio de forma doce e angelical assim que seus
olhos me acham.
— Satisfazer a sua diabinha no andar de cima, por favor — menciono,
baixinho. — Agora.
— Você é extremamente infernal, garota — diz ao andar comigo até as
escadas. — Pena que eu sou ainda mais nessas horas.
— Está esperando o que para me mostrar?
John não me responde, apenas olha para mim desacreditado, solta uma
risada gutural e me beija, subindo comigo em seu colo completamente às cegas.
Infiltro minhas mãos em seus cabelos e me delicio com a maciez dos fios,
puxando-os entre meus dedos e o sentindo gemer sobre meus lábios. Sorrio
entre o beijo, ele entra em qualquer quarto disponível, eu ajudo a ligar a luz
mais próxima e, no segundo seguinte, sinto minhas costas se chocarem contra
algo fofo quando ele me joga no colchão. Meus olhos logo voam para seus
movimentos apressados, que retiram com certa pressa sua camiseta, sua calça e
suas botas, deixando seu corpo em quase toda a sua glória à mostra. Passeio
com os orbes pelas infinitas tatuagens, pelos músculos bem definidos e pela sua
barriga cheia de gominhos impressionantes.
— Eu não trouxe camisinha — ele avisa, e vejo quando seu semblante se
transforma em algo parecido com preocupação.
Olho ao redor e percebo que estamos no quarto que costumava ser dos
meus pais quando passávamos uma temporada aqui no chalé.
— Procura nas gavetas. — Aponto com o queixo para a cômoda e para o
guarda-roupa atrás dele. — Com certeza deve ter algumas.
John assente para mim e vai procurar no guarda-roupa primeiro, mas não
encontra nada. No entanto, na cômoda ele parece encontrar alguns pacotes
laminados, pesca um no meio deles e avalia a validade do que está pendido
entre seus dedos. Parecendo estar tudo ok, sorri da forma mais suja e cafajeste
possível e vem em minha direção, engatinhando entre o colchão e afastando as
minhas pernas ao se colocar entre elas. Não demora muito para que eu sinta seu
membro extremamente próximo da minha intimidade e sinta uma fisgada e uma
contorcida certeira em meu ventre por conta da expectativa de tê-lo me
consumindo por inteira. Suas mãos ficam em cada lado da minha cabeça e
Scott se equilibra em cima de mim com a ajuda delas, os olhos passeando em
cada centímetro do meu rosto e do meu peito, que sobe e desce
desenfreadamente por conta dele.
— Você é minha. — O modo como ele soa tão sério, certo e decidido faz
meu coração galopar ainda mais rápido contra as minhas costelas. — Minha, só
minha.
— Só sua — respondo, tão convicta disso quanto ele. — E você é só
meu. Para sempre.
Um meio sorriso aparece em seu rosto quando me escuta, mas ele decide
por abafá-lo ao salpicar beijos pela minha testa, pontinha do nariz, lábios e
queixo. Quando enterra o rosto na curvatura do meu pescoço, aproveita para
reafirmar nossa promessa ao soprar contra a minha pele:
— Para sempre.
Subo e desço o queixo quase de maneira imperceptível ao concordar, e
John sai da sua posição para olhar em meus olhos de forma profunda antes de
me beijar. A princípio, é só um toque suave, um roçar de lábios, uma paciência
e uma calma que não nos é característico, porque nós somos intensidade,
libertinagem, força, devoção e fogo. Quando estamos juntos, tudo ao nosso
redor vira um caos, crepita, incendeia e se alastra em um piscar de olhos. É
exatamente isso que acontece agora. O fogo nos usa como brasa e nos
consome, consigo sentir até as chamas em ondas maiores e vermelhas fazendo
moradia em meu peito, pedindo, implorando e sedenta por mais; mais contato,
mais pele com pele, mais fome, mais combustão, mais de John e Pasha.
A gente se afasta minimamente e eu aproveito para arquear a coluna, tirar
o sutiã e jogá-lo pelo assoalho, deixando meus seios fartos totalmente à mercê
da boca de John, que os contempla com os olhos claros escurecendo uns bons
tons e a boca salivando. Eu o chamo com o dedo indicador de forma
provocativa e ele logo me obedece, me fazendo deitar novamente. Suas mãos
grandes massageiam meu peito direito e a sua boca abocanha o esquerdo,
chupando, sugando e mordiscando o meu mamilo já duro e arrebitado de
desejo. Eu solto alguns gritinhos, reviro os olhos de prazer e finco as minhas
longas unhas nos ombros largos e fortes dele. Me arrepio e sinto tanto uma
enxurrada de sentimentos sob seu toque que sinto como se fosse desmaiar ou
perder a consciência a qualquer momento.
John solta uma risadinha safada e vitoriosa quando vai com a boca dar
atenção ao outro seio e percebe o estado em que eu me encontro no meio do
caminho. Fricciono os lábios para não o xingar e fecho os olhos, me deleitando
e saboreando dos seus dotes extremamente incríveis. Estava sentindo tanta falta
dele, tanta falta disso que tenho medo de não aguentar por muito templo e
explodir aqui mesmo.
Não sei se ele parece perceber, mas John Scott dá uma última mordida e
um beliscão no meu mamilo e desce com a boca pela minha barriga, seus dedos
exploratórios extremamente próximos das extremidades da minha calcinha, que
ele logo faz questão de arrancar sem muita cerimônia e me deixar sem nada.
Ele arfa com vontade e sopra o meio das minhas pernas, os dedos agora
fincados na carne das minhas coxas à medida que me deixa exposta ao afastá-
las ainda mais. Com o peito inflado de ar e os dentes presos em meu lábio
inferior, olho para o teto no exato momento em que sinto sua respiração
ondular em minhas partes íntimas e a sua língua invadir com muita destreza a
região sensível e pulsante, sugando para a sua boca todo o gosto do meu corpo
de forma ágil, enérgica e enlouquecedora. Os gemidos guturais que escapolem
da minha boca no exato segundo em que ele brinca com o meu clitóris entre os
dentes poderia, caso tivesse casas ao redor, acordar toda a vizinhança para que
eles pudessem fofocar no outro dia o quanto o chalé da família Stratford estava
movimentado de uma forma totalmente indecorosa e pervertida à noite. É uma
verdadeira lástima que isso não possa acontecer.
Uma fina película de suor cobre a minha testa e algumas gotas gordas se
arrastam pelo vão entre meus seios, descendo por um trajeto copioso só pela
maneira desgovernada e descompassada que meu peito sobe e desce em busca
de ar, que parece totalmente disposto a fugir para bem longe dos meus pulmões,
principalmente em momentos como esse, em momentos que preciso
desesperadamente de oxigênio. A busca só piora, pois John Scott resolve me
torturar ainda mais com seus dedos, ora entrando com um, ora com dois; ora
me arrancando gritos eufóricos por estar usando de um ritmo rápido dentro de
mim, ora arrancando choramingos por ser um cretino abusado de marca maior e
refrear toda a brincadeira divertida no meu interior quando decide me levar
ainda mais à loucura.
— Eu vou matar você — murmuro entredentes, contorcendo-me ainda
mais para que ele acelere. — Filho de uma mãe.
Mesmo com a cara enfiada entre as minhas pernas, ele faz questão de
levantar o rosto em minha direção apenas para que eu flagre o canto da sua
boca vibrando para pôr um daqueles seus sorrisos prepotentes e perversos,
como se soubesse exatamente o que está fazendo. E o pior está bem aí. John
realmente sabe o que está fazendo e eu não posso ser louca em negar uma coisa
tão óbvia como essa.
Não demora mais que alguns poucos minutos para que ele siga me
provocando, me consumindo, me arrebatando e, claro, para que continue se
infiltrando, se esbaldando e lambendo cada gota da minha umidade até que eu
sinta o corpo rígido, a pontada abaixo do estômago, o coração frenético, os
pontinhos pretos salpicando a minha vista e o clímax chegar e explodir feito
fogos de artifício. John sorri, olhando para a minha expressão extasiada, lambe
todos os resquícios que sobraram de mim em seus lábios e volta a ficar sobre
meu corpo, beijando rapidamente minha boca.
— Preparada para o segundo? — Seus olhos claros com bordas
acinzentadas feito pratas esquadrinham meu rosto, e eu não consigo não fazer
outra a não ser balançar a cabeça afirmativamente, porque mesmo extasiada,
ainda quero e necessito de mais. John parece adorar a minha reação, pois pega
de volta a camisinha – que havia deixado entre os lençóis –, rasga a
embalagem, tira sua cueca, veste o seu membro ereto e volta a sua posição
anterior. — Você não sabe a saudade que eu estava de você, diabinha. Não sabe
a saudade que eu estava do seu corpo delicioso e de nós dois fazendo amor até
tarde da noite.
Sorrio ao ouvi-lo falar que estamos fazendo amor. Gosto demais disso.
Gosto demais de saber que ele é unicamente e inteiramente meu, que sou a
única mulher com quem ele fez isso na vida. Gosto disso porque, bom, ele
também é o único para mim.
Até abro a boca para fazer algum comentário acerca de sua fala, mas
John Scott não permite, já que sua glande brinca de vai e vem na minha entrada
e me faz implorar para que me preencha logo. Dizendo que meu pedido é uma
ordem, John aperta um pouco acima dos meus joelhos e, com uma habilidade
impressionante, escorrega para dentro de mim, o que me faz arquear ainda mais
os quadris em sua direção e soltar um grito sôfrego quando ele começa a se
movimentar, entrando e saindo lentamente tantas vezes que sou incapaz de
contar, como se fosse para aproveitar o máximo de tempo possível. Mas,
parecendo não se aguentar mais, solta um murmúrio parecido com um rosnado
e começa a estocar de maneira forte e funda. A cabeceira da cama bate contra a
parede por conta dos movimentos bruscos, range, faz barulho e eu arquejo,
chamando seu nome e mencionando o quanto ele é meu, o quanto estou
apaixonada por ele e o quanto estava morrendo de saudade.
— Você é meu tudo — ele diz ao beijar meu pescoço e depois fisgar meu
lábio inferior entre os dentes, indo cada vez mais forte e rápido. — É o meu céu
e o meu inferno particular. É o meu paraíso e o meu purgatório. É a minha cura
e a minha droga. É a minha salvação e a minha ruína. É a minha paixão e a
minha perdição. É, sem sombra de dúvidas, minha. Para sempre.
Meus olhos se enchem de lágrimas e eu levanto a minha cabeça para
colidir minha boca na sua, a água cristalina se esparramando em nossos lábios à
medida que somos puxados pela correnteza de sentimentos intensos que nos
engloba feito uma redoma protetora. E então, simples assim, jurando me sentir
a pessoa mais feliz e apaixonada do mundo nesse momento, me desmancho sob
seu corpo e sinto alguns últimos impulsos e espasmos dele antes de finalmente
se juntar a mim.

Depois que eu e John tomamos banho de água morna após deixarmos


nosso ninho de amor, nos enfiamos em roupas confortáveis — eu encontrei
algumas perdidas por aqui, ele apenas pescou de sua mochila —, nos
direcionamos para o andar debaixo, fizemos um sanduíche e chocolate quente
para comermos, ligamos a lareira da sala e nos sentamos no carpete vermelho
de veludo, um de frente para o outro. Com os dedos sujos de pasta de
amendoim ao fim do sanduíche, limpo todos eles no guardanapo e retiro os
resquícios dos cantos da minha boca com a língua. Olho para John, que
também termina seu lanche, o coloca de lado, se levanta e vai em busca da sua
mochila de viagem, voltando segundos depois com uma sacola em mãos.
Arqueio uma sobrancelha para ele, totalmente curiosa.
— Quando eu saí de Hellaware para vim para cá, tinha em mente que iria
comprar coisas que me lembrassem de você nos lugares por onde eu passaria.
— John senta-se em posição de índio em minha frente e coloca a sacola dos
prováveis presentes no meio de nós dois. Não a pego logo de início, apenas fico
o olhando, admirada por ele realmente ter pensado em tudo. — Está tudo aí.
Espero que goste.
Com uma animação surreal se alastrando pelas minhas veias, puxo a
sacola até mim e a coloco em meu colo. Em seguida, desfaço o nó e dou uma
espiada dentro, vendo alguns dos presentes amontoados. Sorrio ao me deparar
com tudo, pois percebo por cima que há chaveiros, broches, batom e até mesmo
um livro. Meu Deus, um livro!
Presentear uma leitora assídua com um livro novo é como lhe entregar
um pote de moedas de ouro e garantir um lugar extremamente importante na
vida dela.
Mas isso ele já tem, de qualquer forma.
— Você aprendeu a ser incrível assim com quem? — indago, fingindo
estar curiosa. — Eu preciso que o mundo tenha ciência dessa pessoa.
Ele dá risada de uma forma tão linda e acolhedora que faz meu coração
se tornar ainda mais quente dentro do meu peito.
— Com você — diz, por fim. — Você costuma despertar esse lado em
mim, pode começar a se acostumar.
Faço um biquinho fofo para ele, mando um beijo daqueles que estala os
lábios e tiro todos os presentes, colocando um por um no chão. Apesar de eu ter
amado receber mais um batom vermelho para a coleção, uns broches com “I
Love Alasca” escrito em letras garrafais, chaveiros de bonecos de neve e um
em especial de livro, toda a minha atenção se volta para o exemplar de 20 mil
léguas submarinas extremamente convidativo perto de mim. Seguro o livro
entre os dedos, analiso a capa e o fito. Scott parece perceber que há
questionamentos se formando em minha cabeça, pois logo abre a boca para
explicar:
— Esse livro que você está segurando tem um grande significado para
mim e, por incrível que pareça, o encontrei em uma das barraquinhas da feira
que comprei o seu batom, lá em Anchorage. — Sorrio ao assentir, voltando a
olhar para o livro que não conhecia muito bem. — Foi o primeiro e único livro
fictício que li em toda minha vida. O encontrei na biblioteca do orfanato,
comecei a ler ele por lá até que... Bom, até que fui ameaçado e levei uma surra.
Apesar da dor, da solidão, do medo e de ter ficado sem algumas páginas
iniciais, não deixei de me aventurar na leitura, até me arrisco dizer que esse
carinha me ajudou muito a esquecer de tudo o que estava passando quando
estava mergulhado nele. — John aponta com o indicador para o livro em
minhas mãos e também sorri, provavelmente nostálgico. — Quis te presentear
com esse livro porque, assim como me senti quando estava lendo ele, a partir
de agora também não sinto mais medo, deixarei o passado no passado e me
concentrarei no meu futuro, que é você. Mergulharei de cabeça nisso que
estamos construindo e não pretendo ir a lugar algum. Então, por favor, Pasha,
quero que fique com esse livro como garantia de que você e ele, mesmo em
momentos diferentes, foram o suficiente para que eu me sentisse completo e
feliz mesmo quando tudo parecia querer me dizer o contrário.
Quando ele termina, sei que estou chorando. Mais uma maldita vez. Ou
eu estou emotiva demais ultimamente, ou esse garoto resolveu ensaiar coisas
extremamente incríveis para me dizer a fim de que elas resultassem em um
choro compulsivo feito de um bebê. Não me importo, entretanto. Sei que tudo
que ele fala e faz é extremamente sincero e vem do coração, porque esse é ele,
esse é John Scott; é coração, é bondade, é luz. E eu estou completamente
perdida por ele.
Deixo o livro repousado no assoalho e com o impulso das mãos, me
levanto em um ímpeto e marcho em sua direção, descendo e ficando de joelho
em sua frente. Alinho minhas írises com as suas e estico meu braço em direção
em seu rosto, tocando sua bochecha com a minha mão. Ergo os lábios em um
sorriso emocionado e choroso.
— Obrigada — sibilo, totalmente tocada com suas palavras. — Obrigada
por ter vindo me encontrar e por não ter desistido de mim. Obrigada pelo livro
e pelas outras coisas. Mas eu quero que você entenda que o meu maior presente
é você e esse momento que estamos tendo agora.
Ele retribui o sorriso emocionado e me puxa para o seu colo. Seus braços
logo me envolvem e o seu queixo repousa gentilmente no topo da minha
cabeça.
Nesse exato momento, de uma forma totalmente paradoxal, já que a neve
e o frio se amontoam lá fora, meu coração se torna ainda mais quente e
aquecido feito a lareira do chalé ao estar finalmente em paz e nos braços dele.
Como eu e John não queríamos dormir, já que queríamos aproveitar
todo o tempo perdido das últimas semanas longe, nos agasalhamos por
completo e decidimos dar um passeio pela área de Vixens, perto da floresta de
coníferas que serpenteia nosso chalé. Nós estamos em busca de um lago
congelado diferente, porque o que temos lá de frente é pequeno e não muito
seguro, então achamos melhor procurar outros pela região, tenho certeza que
isso é uma coisa que não falta por aqui. E por incrível que pareça, peguei
meus antigos patins que havia deixado pelo quarto que eu ficava no chalé e
coloquei na mochila, além de ter pegado também o de papai para John, pois
definitivamente eles possuem o mesmo número. Não sei se ele vai topar se
aventurar comigo nessa, mas não custa nada tentar. Farei de tudo para ouvir
um sim sair por entre seus lábios e conseguir ensiná-lo a patinar no gelo junto
comigo.
Enquanto vamos caminhando de mãos dadas deixando nossas passadas
por todos os lados e falando sobre o quanto aqui é realmente frio, damos de
cara com mais um lago, só que diferente do outro esse está repleto de jovens
da nossa idade patinando, bebendo e fazendo a própria festa tarde da noite.
Uma coisa importante de se mencionar sobre Avell District: os jovens
tomam conta dos arredores da cidade e adoram fazer farras em lugares
incomuns como no meio de um lago congelado, no meio da floresta e até
mesmo nas montanhas.
— Bem que eu estava sentindo falta de uma festa — John Scott discorre
ao meu lado, arregalando os olhos ao escrutinar todo o local movimentado e
cercado por coisas que ele adora. Me permito a rir. — É sério, gata, você me
deixou na pior. Passei dias sem saber o que era sair de casa.
Projeto o meu lábio inferior para baixo, fingindo estar com dó — pior
que eu fico mesmo — e esmago suas bochechas com certa força, deixando os
seus lábios em um fofo formato de peixinho, que eu faço questão de depositar
um beijo estalado neles exatamente nessa posição. Completamente adorável.
— Fico com tanta pena de quando você fala assim, lindo — esclareço,
manhosa. — Corta meu coração.
Faço até menção de me afastar, mas ele me impede ao fincar as mãos
em minha cintura, os olhos injetados de diversão presos nos meus. Seu sorriso
atroz, que se abre pouco a pouco, serpenteia sua boca e me faz ter a certeza de
que ele vai aprontar alguma coisa exatamente agora.
— Vou fazer amizade com os moleques. — Bem como eu suspeitava.
Ele aponta com o queixo para a turma de amigos bebendo e conversando alto
a poucos passos de nós. — Vou ver se eles conseguem me arranjar algumas
cervejas. Quer ir comigo?
Balanço a cabeça de um lado para o outro.
— Pode ir lá — o incentivo, recuando alguns passos para trás e
apertando a alça da mochila contra meus dedos. — Vou calçar os patins para
patinar. Te espero aqui, ok?
John assente, se aproxima para depositar um beijo na minha testa e vai
saltitante em busca da sua preciosa cerveja. Mordo um sorriso por estar me
sentindo estupidamente feliz, tiro a mochila dos ombros e a abro para retirar
os patins de lá de dentro. Quando pego eles em minhas mãos e coloco a
mochila de volta em meus ombros, sinto uma sensação indescritível de
nostalgia ao me lembrar que havia feito uma das minhas manias nos meus
patins desgastados; uma frase extremamente significante estava escrita com a
minha letra pequena e caprichosa ao lado do desenho de borboleta cor de rosa
e azul que Penelope havia feito para mim.
“Aproveitem o dia, garotos. Façam suas vidas serem extraordinárias.”
É uma frase memorável do filme Sociedade dos Poetas Mortos. Lembro
que a escrevi ali no dia que estava me sentindo meio para baixo com o rumo
da minha vida, provavelmente depois de ter brigado com os meus pais por eles
não respeitarem as minhas vontades e as minhas ambições para o futuro. A
deixei ali como um lembrete para que, independentemente de qualquer coisa,
quando estivesse em cima dos patins, aproveitasse o dia, o momento e a
vontade de fazer a minha vida ser extraordinária. E ela me ajudou muito
durante muito tempo.
Pena que, após a morte da minha irmã mais nova, optei por largar a
patinação artística e ficar ainda mais revoltada com a vida e com o mundo.
Deixei para trás tudo o que me fazia bem e me enfiei em coisas que me faziam
mal. Bebi, fiz amizades com pessoas tóxicas, me envolvi com garotos
extremamente babacas e problemáticos, me tornei alguém fria, amargurada,
nojenta aos olhos dos meus pais e tive que me mudar de cidade para ver se
algo dentro de mim mudava. Eu jurava que isso não seria capaz de acontecer,
jurava que não importava o lugar, não importava os meus tios perto de mim,
não importava o trabalho e as pessoas que eu encontraria, eu sempre estaria
chafurdada no vazio.
Mas a vida, mais uma vez, fez questão de me dar um belo de um tapa na
cara e mudar, mesmo pouco a pouco, todos os meus conceitos sobre o amor,
sobre a confiança, sobre amizade, sobre perdão, amor próprio e recomeço. Fez
questão de me envolver com atenções reais, amizades reais, oportunidades
reais e novos começos, porque não importa quantas vezes tentem te derrubar,
algo ainda mais grandioso estará ao seu lado para te puxar para cima.
Não sinto que superei totalmente a ausência da minha irmã, afinal,
ninguém supera um amor do mais puro e genuíno, tão pouco se esquece de
uma saudade. Mas já não lido com isso da mesma forma que antes. Ainda dói,
ainda me corrói e eu ainda daria tudo para tê-la de volta, mas acredito e confio
que foi melhor assim, que ela está descansando, em paz e em um jardim
repleto de borboletas, tranquila e serena me esperando junto à Rosalinda
quando der a minha hora. O caminho pode ter sido longo e tortuoso para que
eu chegasse até aqui e entendesse, mas agora eu percebo que elas não
morrerão nunca, pois estarão para sempre enraizadas em meu coração e
eternizadas em mim.
Enquanto eu viver, nunca estarei só. Elas serão para sempre o meu anjo.
Talvez tenha sido até obra delas trazerem John Scott de volta para mim,
pois sabem e entendem que ele nunca foi o meu fim, e sim o meu começo e a
minha esperança em dias melhores.
Percebo que estou emocionada e provavelmente chorando quando uma
garota da festa também segurando os seus patins se aproxima de mim,
visivelmente preocupada. Faço questão de, com as costas das mãos, sumir
com os vestígios e sorrir para ela, que logo suaviza as expressões tensas do
seu rosto e também sorri. Aprumo os ombros e abraços os patins contra o
peito quando ela já está extremamente próxima.
— Algum problema? — Ela parece visivelmente preocupada e com
intenção de ajudar. Fazendo uma análise minuciosa do modo como está
vestida, percebo que é antenada na moda, provavelmente rica e descolada. Há
um enorme casaco felpudo e pesado da cor rosa pink por cima de suas roupas
xadrez, luvas da mesma cor em suas mãos e uma touca branca com o G da
Gucci estampado de forma nada chamativa no topo de seus fios castanhos e
encaracolados. Apesar de parecer uma daquelas patricinhas dos filmes dos
anos 80, ela não parece nada megera. Parece ser bastante simpática e
amigável, até. — Vi que você estava chorando e fiquei preocupada. Não quero
parecer intrusa nem nada do tipo, mas caso esteja passando por problemas,
estou disposta a ajudar.
É simpática mesmo, seus olhos cor de chocolate demonstram isso para
mim ainda mais ao passo em que ela me fita.
Outra coisa importante para mencionar sobre Avell District: as garotas
sempre costumam desabafar umas com as outras, como se fossem melhores
amigas desde sempre. É engraçado.
— Nada demais. — Também dou de ombros. — Estava apenas
lembrando de algumas pessoas importantes que já não estão mais entre nós.
Mas enfim, obrigada por se preocupar.
A garota à minha frente não responde de imediato. Ela segue mexendo
em seu cabelo, olha de um lado para o outro e eu aproveito esse ínterim para
procurar John. Não me surpreendo quando o encontro bebendo a cerveja e
ainda rindo com alguma coisa dita no grupo de garotos, já que é ótimo para se
entrosar e fazer amizade instantaneamente. Sorrio com isso e volto a encará-
la.
— Não foi nada. Qualquer coisa pode chamar, caso queira. Estou indo
patinar.
Até abro a boca para me despedir, mas ela aperta os patins com toda
força contra seu corpo e gira sobre os calcanhares tão depressa que se torna
impossível falar qualquer coisa. Franzo o nariz em uma careta da forma
abrupta que ela chegou e foi embora, mas acabo dando gargalhada quando
percebo que ela parece ser meio maluquinha e engraçada.
Arrasto meus passos até a borda do lago, curvo meu corpo para baixo e
tiro os sapatos, colocando-os na mochila e calçando os patins logo depois. Faz
tanto tempo que não patino que me sinto estranha sobre eles, mas até que é
reconfortante estar em cima deles de novo. Como dizia minha treinadora, uma
vez patinadora, patinadora para sempre. Ou seja, mesmo que queira muito,
não se tem como esquecer. Acho que é como andar de bicicleta.
No segundo seguinte após esse pensamento, já estou deslizando pelo
gelo e gritando o nome de John, que para de conversar no mesmo instante
apenas para me olhar, gritar, assoviar, bater palmas e dizer que sou fantástica.
Dou uma espécie de jump combination, que consiste em executar dois
ou mais saltos em sequência de uma maneira rápida e sem pausa entre eles,
onde a posição final de um do primeiro salto já é a posição de saída do
seguinte. Provavelmente deve sair todo mal executado e sem prática, mas é o
suficiente para John cutucar os colegas com os cotovelos e mostrar a sua
garota de forma totalmente orgulhosa, consigo ver que o seu sorriso alcança
até seus olhos brilhantes. Meu coração logo se agita e quer mostrar que está
feliz.
Dou mais alguns giros, sorrio e toco em meu peito, sentindo-o pulsar
ferozmente contra a minha palma.
Não sei quanto tempo fico nessa, porém acabo chamando — ou melhor,
implorando — para que Scott me siga nessa. Ele tenta negar, diz que não sabe
nem se equilibrar, que vai passar vergonha, que está muito satisfeito apenas
me olhando, mas além de eu ser extremamente insistente, todos ao nosso redor
acabam sendo também. As pessoas gritam e incentivam tanto para que ele
patine comigo que acaba aceitando, meio a contragosto e meio com vontade
de fazer os meus gostos.
Daqui da pista congelada, comemoro quando percebo que se direciona
até a mochila repousada na neve fofa, também retira seus sapatos e coloca os
patins. Corro até o lugar que se encontra para ajudar a equilibrá-lo, tocando
em sua mão e fazendo o maior esforço para aguentar seu peso e conseguir
arrastá-lo um pouco junto comigo. Ele até faz menção de cair algumas vezes e
até de me levar junto, mas em meio às nossas risadas e ainda incentivo do
pessoal que nos assiste, vou conseguindo fazer com que ele fique firme e se
acostume com os patins.
— Eu juro que eu vou matar você se me fizer cair — ele até tenta
parecer ameaçador e intimidador ao rosnar e semicerrar os olhos em minha
direção, mas ele só consegue contribuir para que eu exploda em gargalhadas.
— Isso aqui é difícil para um cacete... Como você consegue ser tão boa nisso?
Ergo os ombros para cima, fingindo pouco caso, e aproveito sua
distração para soltar sua mão e deslizar com os patins para trás, deixando-o
equilibrado e pronto para se movimentar sozinho. Quando percebe o que eu
acabei de fazer, arregala os olhos, entreabre os lábios em um perfeito “O” e
grita para que eu volte, já que fica completamente estático no lugar com medo
de cair. Apenas balanço a cabeça e deixo que o fantasma de um sorriso pincele
o meu rosto.
— Anda, venha me pegar! — peço, chamando-o com os dedos
indicadores. — Venha até mim, lindo.
— Você é perversa, garota! — John grita, o que acaba chamando
atenção das pessoas provavelmente bêbadas, que assoviam e uivam para mim,
como se eu tivesse acabado de fazer algo extraordinário. — Pasha Stratford,
você quer que eu dê de cara com o chão, não quer?
Novamente, nego e faço um biquinho.
— Jamais, meu amor. — Dou uma giradinha rápida apenas para
provocá-lo. — Eu quero que você pare de ser medroso, patine até mim e dê de
cara com a minha boquinha. — Aponto para os meus lábios e solto para o ar
mais um beijo estalado.
John parece extremamente incrédulo com as minhas provocações, pois
passa as mãos pelos fios agora castanhos e os puxa para trás, buscando força e
coragem para se movimentar e deslizar até mim. Cerca de um ou dois
minutos, é exatamente isso que acontece. John patina de forma trêmula,
desengonçada, as pessoas riem e ele não parece se importar, chegando cada
vez mais próximo. Quando me alcança, Scott se embola nós próprios pés, eu
tento segurá-lo, e acaba sendo tarde demais. Nós dois simplesmente caímos
no gelo. Seu corpo fica por cima do meu, as nossas risadas se misturam no ar
de forma cômica e tenho certeza que todos ao nosso redor prestam atenção no
nosso momento desastroso. Fito os olhos azulados de John e, de repente, sem
que eu espere ou tenha tempo para processar, seus lábios se chocam contra os
meus. Não é algo profundo dessa vez, apenas um prensar gostoso de nossas
bocas. Rápido, bom e que me faz sorrir.
— É uma boca bem gostosa para se dar de cara, sabia? — John brinca
ao se separar minimamente e roçar nossos narizes. — Não só a boca como
outras coisas.
Arregalo os olhos com a malícia gotejando por sua frase e decido
espalmar seu peito, fazendo com que ele saia de cima de mim e se sente no
gelo de pernas abertas, ainda rindo da sua fala e da minha expressão. Também
me sento do mesmo modo e fico o esquadrinhando. Observo seu sorriso largo
e arrebatador, seus olhos claros feito as águas do Caribe, seu nariz
perfeitamente bem moldado e me pergunto como pode alguém nascer tão
bonito e fazer com que qualquer cara seja um mero nada se comparado a ele.
Como pode alguém ter uma beleza tão forte, tão marcante e ainda conseguir
manter a mesma beleza dentro de si?
Como pode existir um homem desses no mundo e ele ser todinho meu?
Estou com uma pergunta pairando na ponta da minha língua e não
aguento mais segurá-la. Não aguento mais guardar para mim. Por isso, quando
percebo, estou juntando as mãos em meu colo e perguntando sem nem hesitar:
— Então nós somos tipo namorado e namorada agora?
Apesar disso ter saído totalmente fora do contexto e ele ter sido pego de
surpresa, John não demonstra nenhuma reação diferente, como se estivesse
preparado para essa pergunta a um tempão, como se ansiasse por ela hoje e
aqui mesmo. Inflo o peito de ar e espero. Ele morde o cantinho do lábio
inferior e, mesmo com a carne presa entre seus dentes, consegue sorrir
presunçosamente.
— Exatamente, diabinha. Agora somos oficialmente namorado e
namorada. Satisfeita?
— Muito!
Meu coração dá uma cambalhota tão grande que é como se ele tivesse
ido parar em minha garganta durante o pulo. Me sinto extremamente
realizada, nas nuvens e com uma vontade incontrolável de beijá-lo. Mas, antes
que eu possa fazer qualquer movimento para conseguir isso, vejo meu
namorado — uau, estou mesmo falando isso?! — se virar para o grupo
aglomerado atrás de nós, colocar dois dedos na boca para assoviar e chamar
atenção de todos eles. Quando todos os pares de olhos se concentram em nós,
John levanta os braços, afobado, aponta para mim e grita:
— Ela aceitou, pessoal! — Todos parecem atentos e silenciosos, a única
voz audível sendo a do garoto sentado no gelo à minha frente. Se fosse em um
outro momento, me encolheria e morreria de vergonha, mas agora deixo que
ele fale, grite e mostre para todos o quanto estamos felizes e finalmente juntos.
— Essa garota ruiva aqui, perfeitamente angelical e diabólica como vocês
podem observar, agora é minha namorada. Minha e só minha. Sou a porra do
cara mais sortudo do mundo!
Explosões de felicidades e gritos bêbados são o que eu escuto quando
decido me colocar de joelhos, engatinhar até ele, trazer seu rosto em minha
direção e o beijar avidamente, deixando que todos os desconhecidos
testemunhem o nosso amor e celebre esse momento junto conosco.
Não há um lugar no chalé que eu não tenha corrompido com os meus
gostos. No ano retrasado, quando a minha família veio passar alguns dias
por aqui porque Joseph estava extremamente estressado com o trabalho, fiz
questão de trazer meu antigo toca discos para cá só para poder escutar
minhas músicas clássicas aqui, além de também, claro, poder usar isso
como uma desculpa para comprar um novinho, já que o meu não estava
funcionando tão bem quanto antes e eu queria um de uma cor diferente para
combinar com a cor da parede do meu quarto.
Por isso, assim que acordo de manhã primeiro que John e desço para
a sala, já corro em busca de alguns discos que deixei aqui e espalho todos
eles pelo carpete, procurando algo bom para começar o dia e me dar
disposição para enfrentar meus pais que, com toda certeza, estão loucos e
enfurecidos querendo saber o porquê de eu ter sumido no meio da festa, o
porquê de eu ter dormido fora e uma porção de blá blá blá que sei que vou
ter que escutar quando aparecer pela mansão. Gostaria de poder ficar aqui
com John para sempre e nunca mais ver ou me importar com o mundo lá
fora, mas sei que isso é completamente impossível e um sonho utópico. Não
posso simplesmente desaparecer de uma hora para outra, tão pouco fingir
que não estou morando sob o teto deles e não devo um mínimo de
explicação que seja. Além de todas essas questões que já estão me
consumindo, também preciso começar a pensar o que vou fazer da minha
vida a partir de agora.
De uma coisa eu tenho certeza, mesmo sabendo que será difícil, não
quero ficar mais no Alasca. Algumas semanas com os pés aqui foram
suficientes para eu entender que não pertenço mais a esse lugar e a essas
pessoas. Não quero luxo, não quero poder, não quero desfrutar do bom e do
melhor, não quero viver uma vida de mentiras e de aparências. Eu quero a
paz, a calmaria, a tranquilidade, poder voltar a trabalhar como um ser
humano normal e ficar ao lado dos meus amigos e do meu namorado, que
fizeram por mim em um ano muito mais do que a minha família em uma
vida inteira. Eu quero ser livre, quero me desprender de uma vez por todas
de tudo isso aqui e me concentrar de verdade em mim, nos meus sonhos e
nas minhas ambições.
Quero ser a Pasha que desde pequena sonhei, não a Pasha que os
outros desejam que eu seja.
Quero viver por mim e para mim agora.
Escolho por Mozart no meio das outras infinitas opções e o repouso
no toca discos, a música permeando todo o perímetro da casa e embalando
meu coração, que se tranquiliza momentaneamente e me permite relaxar um
pouco antes de adentrar, de fato, no caos que me aguarda. Estico a barra da
camiseta que uso de John para baixo e cruzo os braços em frente ao peito.
Olho para a grande vidraça à minha frente e assisto os flocos de neve
voarem e caírem de uma forma calma e serena lá fora. Inspiro todo o ar
necessário para dentro e repito numa promessa a mim mesma que, a partir
de hoje, não fugirei dos problemas e deixarei a minha vida tão cristalina
quanto esses pequenos cristais condensados em gelo que se amontoam na
neve do outro lado.
Dou um pequeno sobressalto quando escuto as madeiras da escada
rangerem em um aviso implícito que John havia acordado. Viro-me sobre
os ombros e encontro sua figura sonolenta, bagunçada e linda vindo até
mim. Alguns fios do seu cabelo castanho caem sobre seus olhos, que me
analisam descabidamente dos pés à cabeça, e todo o seu peitoral definido e
tatuado fica à mostra por ele estar livre de qualquer peça em cima, apenas
usando a jeans de ontem, já que estávamos tão cansados por termos
chegado tarde que acabamos caindo na cama e dormindo de qualquer jeito.
Por falar em ontem, após John Scott ter gritado para todos os jovens
daquela festa que estávamos namorando, todos eles chamaram a gente para
comemorar e presentearam nós dois com copos vermelhos de cerveja lotado
até em cima. Estávamos tão felizes que nem pensamos na possibilidade de
dizer não. Aceitamos, ficamos conversando um pouco com o pessoal que
não faço a mínima ideia do nome e voltamos para casa quando estávamos
mais sem aguentar a intensidade do frio. Mesmo que estivéssemos
totalmente protegidos, quando o frio simplesmente aperta por aqui é
impossível aguentar por muito tempo. O aquecedor quase no máximo e o
aconchego do nosso lar é sempre a melhor opção nessas horas.
— Já deu tempo de sentir minha falta? — brinco ao questionar sua
rapidez repentina em despertar. Espalmo a cintura, e ele para no último
degrau da escada apenas para me imitar e entortar a cabeça para o lado,
como se estivesse me analisando por um outro ângulo. — O que foi agora?
— Já para o quarto, mocinha — ordena, como se eu fosse uma
garotinha que acabou de sair do castigo por conta própria. — Quero você
me esperando no banho em exatamente um minuto.
Deixo que uma das minhas sobrancelhas fique em um arco perfeito e
opto por tombar a cabeça para a mesma direção que a sua se encontra nesse
momento.
— Isso por acaso deveria ser um pedido?
— De forma alguma. — John cruza os braços em frente ao peito,
troca os pesos dos pés e faz uma cara de mau extremamente sedutora. —
Isso é uma ordem. Sobe logo.
Sorrio de forma provocativa e circundo meu lábio superior com a
língua, uma mania terrível que costumo fazer quando quero seduzir ou
quando me sinto extremamente desafiada e excitada. Sem que ele precise
pedir novamente, ando alguns poucos passos até ficar em sua frente. Perto
do seu porte extremamente másculo e viril, fico na ponta dos pés e passo a
minha língua em seus lábios de forma rápida, porque, no segundo seguinte
a isso, já estou correndo escada acima, só que não sem antes sentir a leve
ardência em minha bunda quando ele desfere o tapa na região no exato
momento em que segue atrás de mim.
Rio e adentro o meu quarto, logo John aparece também e sorri de
forma suja. Em um piscar de olhos, o garoto se livra da calça e eu da sua
camiseta, ficando apenas de calcinha em sua frente. Finco os incisivos na
carne do meu lábio quando meus olhos descem pelo seu corpo e eu flagro o
volume entre as suas pernas, cutucando e quase rasgando o tecido fino para
poder pular para fora. Prendo uma risadinha moleca em minha garganta e
giro nos calcanhares para poder entrar no banheiro como mandou, deslizar a
minha calcinha entre as pernas, colocá-la em qualquer lugar que encontro e
abrir totalmente o box. Ao passo em que estou dentro, fico de costas para
poder ligar o registro e me arrepio por inteira quando a temperatura quente
da água pinica e rasteja pela minha pele. Me arrepio ainda mais quando
ouço barulhos no local e o calor do seu corpo mesclado com a sua
respiração descompassada pairar bem nas minhas costas segundos depois.
Fecho os olhos quando sinto nossa distância ser encurtada, quando
sinto sua rigidez firme se pôr contra o meu corpo e quando sinto uma das
suas mãos passear sem pressa pela parte sinuosa da minha cintura e se fixar
em meu quadril.
— Você sabia que eu pintei meu cabelo para me sentir mais sério e
maduro? — Nego com a cabeça e faço a maior força para não esquecer
como se respira. — Eu disse para mim mesmo que isso aqui era uma nova
fase da minha vida e que eu ia fazer valer a pena as bençãos do destino. Eu
disse para mim mesmo que seria um pouco mais sério, um pouco mais
maduro e que não teria mais medo de enxergar e pôr para fora meus
sentimentos. — Com a outra mão livre, John desliza os dedos para cima e
para baixo em meu braço, e quando se aproxima da minha mão, a puxa com
certa pressa para que eu consiga me virar e ficar em sua frente. Ele dá
alguns poucos passos para a frente e eu colo as costas no azulejo. — O que
eu sinto por você me fez enxergar que tudo o que eu escutei a minha
infância inteira não passava de bobagens, porque o amor sempre esteve
esperando por mim, ele sempre esteve disposto a me achar. E você me
achou, diabinha. Você me achou, deixou a minha vida de cabeça para baixo
e me fez entender que o amor é o sentimento mais leve, mais nobre e mais
bonito que alguém pode sentir. — Scott para de falar por alguns segundos
apenas para escovar o dedão na maçã da minha bochecha. Fecho os olhos
com a familiaridade do toque e me permito escutar o que eu sempre quis
ouvir saindo da boca dele. — E eu não tenho mais medo. Estou livre.
Completamente livre para dizer que eu te amo, Pasha. Da maneira mais
pura, genuína e sincera possível. Eu te amo hoje, amanhã e pretendo te
amar por uma vida inteira.
Mais uma vez me sinto bamba, zonza e entorpecida pelas suas
palavras, que parecem flechas certeiras e cravam bem no alvo do meu
coração. Me sinto fazendo parte de um sonho que eu poderia viver para
sempre e não tenho nenhum intuito de acordar. Mas eu sei que não é um
sonho. Sei que é real e que está mesmo acontecendo, consigo ter a
confirmação disso quando abro os olhos e encontro seus glóbulos banhados
de doçura, de apreço e de veracidade.
— Acho que essa foi a coisa mais linda que alguém já falou para mim
— digo, sinceramente. — Eu vou guardar essas palavras para sempre. Pode
passar dias, meses, anos e eu sempre me recordarei desse momento. —
Toco o seu rosto da mesma forma que ele toca o meu e sorrio ao completar:
— Eu também te amo, John Stone Scott. Eu te amo hoje, amanhã e
pretendo te amar por uma vida inteira. Obrigada por ser a minha luz.
Meu namorado olha dentro dos meus olhos daquela maneira intensa
que só ele consegue e me beija. Ele reivindica minha boca, meu coração,
minha alma e me mostra o quanto me ama de diferentes formas possíveis
nessa manhã. Nós fazemos amor e nos consumimos por inteiro embaixo do
chuveiro, sentindo as gotas gordas de água se misturarem ao nosso desejo
carnal, além de que continuamos isso e outras travessuras na cama, no sofá
próximo da leira e até quase na cozinha.
Sentíamos tanto, mas tanto, que nenhum contato parecia ser
suficiente. Estávamos claramente viciados um no outro e droga nenhuma
parecia tão atrativa quanto o nosso amor.
John me fez ter a certeza disso incontáveis vezes hoje, principalmente
quando preparou um café da manhã simples para mim depois de tudo, com
um bilhete escrito à mão bem embaixo do prato de panquecas de cereja —
minha fruta favorita — somente para que eu encontrasse e lesse:
"A neve cai.
O frio preenche sorrateiramente cada canto da cidade.
Mas, de forma totalmente paradoxa, quando ela mira seus olhos
amendoados em minha direção, a única coisa que sou capaz de sentir é o
meu corpo se transformando em chamas no seu estado perfeito de
combustão."
Não sei quando ele se tornou um romântico incurável, mas estou
adorando conhecer esse e outros lados dele.

Mesmo que coisas incríveis estejam me acontecendo o dia todo, eu


não poderia mais focar nessa parte e esquecer dos problemas que me
aguardam. Então avisei a John que iria resolver algumas coisas em casa,
pedi que ele ficasse me esperando e liguei para pedir um táxi mais próximo.
Durante o caminho até a mansão, fiquei pensando de forma incessante
o que contar para os meus pais, mas acabei chegando à conclusão que devo
contar a verdade. Provavelmente meu pai não entenderá nada, minha mãe
permanecerá sem dar muita opinião e nós acabaremos discutindo no fim de
tudo, como sempre.
Quando desço do carro, após pagar a corrida com o dinheiro
emprestado de John, já que eu havia saído de casa sem nada, respiro e subo
os poucos degraus que me levam até a imponente porta branca da mansão.
Toco a campainha e não demora muito para que alguma funcionária venha
abrir a porta para mim. Cumprimento ela com um sorriso, passo pela
entrada e deixo meu casaco branco gelo e meu cachecol pendurados nos
cabides próprios para que as visitas façam isso.
Com a sensação de que Joseph se encontra no andar de cima e minha
mãe provavelmente na casa de alguma amiga, subo as ornamentadas
escadas e antes mesmo de caminhar pelo corredor, já escuto sua voz
trovejar por todos os lados e quase causar o desabamento dessas paredes e
até mesmo dessa cidade. Com um pequeno medo se alojando e revirando
meu estômago, decido contar até dez antes de cruzar todo o corredor e bater
na porta do seu escritório. Embora eu não precise da sua permissão para
entrar, espero até que ele se acalme levemente e consiga autorizar a entrada
de quem quer que seja.
Coloco o meu rosto por entre a frecha, vejo seu rosto vermelho pela
fúria e sinto muita vontade de ir embora e fingir que isso não passou de um
surto. Mas é claro que isso é impossível, Joseph Stratford já me viu, já
berrou o meu nome e conseguiu ficar ainda mais nervoso e vermelho do que
já se encontrava.
— Pasha Denise Stratford. — Meu nome completo saindo por entre
seus lábios quase me desperta calafrios. Fecho a porta atrás de mim, entro e
me mantenho em uma distância segura. — Eu posso saber onde diabos você
se meteu? Eu já estava prestes a acionar o FBI caso você demorasse mais
alguns minutos para aparecer.
Eu abro a boca para responder, juro que abro mesmo, mas é claro que
ele me impede. É claro que só ele vai falar aqui hoje.
— Você tem noção da vergonha que me fez passar naquela festa? —
indaga ao bater as mãos contra o tampo da sua mesa. Pisco os olhos
algumas porções de vezes por conta do susto, mas não dou o gostinho de
fazer mais nada em meu corpo que denuncie qualquer coisa além de
impossibilidade com as suas afrontas. — Você tem noção do quanto eu
investi ontem? Tem noção de como aquilo tudo havia sido orquestrado para
o seu futuro e você simplesmente desapareceu para fazer sabe se lá o quê?
“É claro que eu tenho noção, você acha que eu sou burra o suficiente
para acreditar na vontade repentina de me ter de volta sem que isso
trouxesse benefício para você?”, tenho uma vontade absurda de dizer, mas
me mantenho com os lábios friccionados e totalmente estoica diante do
homem fervendo em raiva. Fico com medo de que a grossa veia latejando
em sua testa se estoure a qualquer momento caso eu atice ainda mais sua
fúria com as minhas rebatidas na mesma proporção.
— Não, não tenho. — Opto por mentir e seguir um caminho
totalmente diferente. Estou tão enfurecida quanto ele, minha garganta
queima e meu tom de voz sai totalmente sério, duro e inquisitivo. — Seria
ótimo se o senhor começasse a me explicar o que havia de tão importante
para mim naquela festa.
Como esperado, meu pai não responde nada, apenas recua um passo
para trás e me olha com os seus grandes olhos castanhos intimidadores.
Dessa vez não estou disposta a dar para trás e permaneço sustentando seu
olhar.
— A família Park era o que havia de importante, Pasha. — O quê?!
— Dediquei boa parte do meu tempo planejando isso e a sua petulância e
rebeldia estragou tudo. Mais uma maldita vez. — Meu pai circula sua mesa,
abre o armário de bebidas e se serve com um copo de uísque, como se fosse
para aliviar tudo o que está sentindo. — Eles ficaram te esperando por
horas, tem noção disso? Como se deixa esperando uma família tão
importante e capaz de ampliar nossa empresa, hum? Como se deixa
esperando por horas a minha chance de finalmente poder confiar meu
legado em suas mãos, Denise?
Abro a boca uma, duas, três vezes. Até tento formular alguma coisa,
mas nada sai. Não entendo que tipo de conversa é essa que nós estamos
tendo, não entendo do que ele fala agora e não consigo assimilar direito
suas últimas palavras.
Como assim essa família era a sua única chance de poder confiar seu
legado a mim? Do que merda ele está falando?
Então, de uma hora para a outra, minha ficha cai. Família Park.
Kenneth Park. Não poderia ser coincidência. Era mesmo real. Meu pai
ultrapassou todos os seus limites, passou por cima de todas as minhas
vontades e arquitetou um plano como eu suspeitava, só que muito mais
asqueroso e nojento do que eu poderia imaginar.
— Você prometeu a minha mão em casamento para o filho mais novo
da família, não foi? — Cerro as minhas mãos ao lado do meu corpo quando
eu o vejo apertar com o polegar e o indicador as pestanas, totalmente
furioso com a minha ousadia em levantar a voz para ele. — Você prometeu
a minha mão a um desconhecido só porque seria bom para as ampliações da
empresa e porque só assim, só com um homem ao meu lado, você confiaria
em mim para trabalhar, certo? — Remexo a cabeça negativamente e sinto
uma raiva descomunal preencher meu peito e se alastrar em minhas veias.
Solto uma risada banhada em escárnio quando o encaro mais uma vez. —
Na verdade, conhecendo a sua mente e tendo o prazer de conversar com
aquele garoto por poucos minutos, consigo supor que iriam querer que eu
não tomasse a frente de nada, huh? Quem comandaria tudo certamente seria
ele, porque, de acordo com o século passado que vocês vivem ainda, só
homem sabe cuidar de negócios e mulheres... Ah, mulheres só devem se
importar com cartão de crédito e em manter uma família, não?
Ironia, sarcasmo e raiva pingam pela minha boca e eu preciso de todo
autocontrole do mundo para não surtar e fazer um escândalo aqui mesmo.
Preciso de autocontrole para não avançar, para não levar essa casa abaixo e
para não fazer nenhuma besteira.
Dói saber que meu próprio pai me trata como um objeto, mas só eu
sei o meu valor e não vou deixar que ninguém, nem mesmo ele, me
inferiorize, me menospreze e duvide da minha capacidade. Eu sou uma
mulher e tenho muito orgulho disso. Sou uma mulher forte, decidida e a
porra da rainha da minha vida.
E se ele sabe jogar e brincar com a vida das pessoas, eu sei fazer pior.
Se ele acredita que isso aqui é algum tipo de jogo de xadrez, sou eu
quem dou o xeque-mate.
Aprumo os ombros e arrebito o nariz, passando uma postura tão
autoritária e firme quanto a sua. Nós ainda permanecemos encarando um ao
outro, os olhos faiscando de fúria e palavras não ditas. Se Joseph pensa que
irei recuar, está muito enganado. Nunca estive tão pronta para enfrentá-lo
quanto agora.
— Veja só, minha querida... — ele quebra o silêncio instaurado entre
nós. Agora o seu tom de voz está mais suave, mais controlado e eu tenho
certeza que isso é só mais uma de suas manobras para me convencer. É uma
pena que não funciona mais. — Você falando dessa forma faz realmente
parecer algo absurdo. Mas nós dois sabemos que não é verdade. Você está
exaltada, eu entendo, mas procure se acalmar e enxergar o lado bom das
coisas. Você nunca quis comandar nada, nunca quis me suceder, então o
Kenneth é a sua melhor opção para ficar com o que é meu de uma forma
mais leve e tranquila. Ele vai administrar tudo, vocês vão poder viajar,
morar na Coreia do Sul caso desejem e terão um futuro lindo. Kenneth é
jovem, bonito, agradável... Não é como se eu estivesse te propondo um
casamento com um homem velho e barrigudo, minha linda.
É impossível não dar risada com o nível baixo que ele é capaz de
chegar por mais status, mais poder e mais dinheiro. É impossível não dar
risada daquelas que a barriga dói, os olhos se acumulam de água nos cantos
e quase o ar some. É tanta cara de pau que chega a ser cômico de certa
forma.
Dou um passo para a frente, seco as lágrimas, desfaço o sorriso e
mantenho uma expressão totalmente séria.
— Eu não sei o que se passou na sua cabeça quando cogitou que eu
pudesse aceitar e me sujeitar a uma coisa dessas. Você é ainda mais podre
do que eu imaginava — cuspo as palavras em sua cara sem nenhum tipo de
medo ou remorso. — Deixa eu te dizer uma coisa, papai — ironizo a
palavra e dou mais um passo. — Pode ir dando adeus a seu sonho de
expandir seus negócios para a Ásia, pois eu jamais vou aceitar qualquer
merda dessas. Eu vou me casar futuramente com o homem que eu amo e o
único lugar que eu irei viajar é para Hellaware, pois é lá onde é a minha
casa, onde está a minha família de verdade. Vou viver uma vida simples,
tranquila, trabalharei por conta própria e realizarei todos os meus sonhos.
Serei livre, feliz e finalmente realizada ao poder dizer que sou
independente, que não estou sob o teto de ninguém e que sou a própria dona
da minha vida.
Minha declaração parece pegar papai de surpresa, pois ele aperta os
dedos ao redor do copo e dá alguns passos para trás. Seus olhos me
perscrutam atentamente, como se estivesse buscando alguma reação do meu
corpo que demonstre que tudo não passou de um blefe da minha parte. Mas
é claro que ele não encontra nada, pois nunca estive tão segura das minhas
palavras e das minhas escolhas quanto nesse exato momento.
— Você não pode estar falando sério. — Ele balança a cabeça. — Eu
jamais permitiria! — esbraveja e eu sorrio, quebrando nossa distância. Não
importa o quanto ele recue, sempre me colocarei à sua frente.
— Você não vai nem ousar me impedir — sibilo, categórica e
venenosa. — Você vai ficar quieto e acatar a minha decisão. Se você fizer
alguma coisa, qualquer coisa que seja, eu faço um escândalo, está me
ouvindo? Eu faço um escândalo, eu contato os jornais, eu dou entrevistas e
espalho para Avell District e para o Alasca inteiro a farsa que você e essa
família é. Eu viro a sua vida de ponta cabeça e faço vocês viverem em um
inferno, sendo mal falado pela cidade e, consequentemente, tendo
problemas nos negócios. E você sabe perfeitamente que sou capaz disso.
Sabe perfeitamente que sou capaz de tudo, afinal, sou uma Stratford, não
sou?
Joseph solta uma risada, mas sei que está abalado. Sei que está
abalado com a possibilidade de um escândalo e de como isso afetaria seus
negócios, sua reputação e sua farsa de família perfeita. Sei que toquei no
ponto exato para que se desarmasse completamente.
— Ninguém acreditaria em você, Pasha. Eu diria para todos que é
mentira.
Ergo os ombros para cima e os sacudo, fingido pouco caso.
— Bom, há essa possibilidade. — Olho para as minhas unhas, confiro
a tonalidade e uso do meu bom sarcasmo apenas para deixá-lo ainda mais
irritado. Levo de volta meu olhar até ele e abro meu melhor sorriso, como
se tivesse acabado de ganhar a partida final. — Mas você não vai pagar para
ver, vai?
Meu pai não responde, ele fica quieto. Seu pomo de Adão sobe e
desce e sei que só a possibilidade de isso acontecer o assusta
tremendamente. Sorrio ainda mais, totalmente vitoriosa.
— Você é realmente muito bom em fazer negócios, papai. — Minha
expressão divertida parece o deixar ainda mais enfurecido, mas eu só
consigo me sentir ainda mais poderosa. — Mas acho que acabamos de
perceber que eu sou muito melhor, huh?
Estou pronta para me virar, sair desse escritório, ir em meu quarto
para fazer minhas malas e sumir dessa casa, dessa família, dessa vida e de
tudo que me sobrecarrega, mas antes que eu faça isso, paro na porta e viro
sobre os ombros apenas para dar meu último aviso.
— Quando eu sair dessa casa, ligue para meu tio. Pergunte-o se ele
realmente deseja voltar para cá e, caso ele diga sim, pergunte se já vendeu a
casa. Caso a resposta seja não, papai, diga que vai comprar para dar de
presente a sua filha. — Espero um bom tempo até que ele possa me
responder, mas isso não acontece. Meu pai não olha nos meus olhos e nem
me confirma nada, então preciso ser um pouco mais firme. — Estamos
entendidos? — grito tão alto que meu pai se assusta e me olha. Está furioso,
eu sei disso. Mas, mesmo morrendo por dentro, consegue balançar
afirmativamente a cabeça e deixar claro para mim que, sim, vai fazer o que
eu pedi.
Levanto a minha mão no ar e dou um tchauzinho carregado de
provocação. Embora eu esteja prestes a adentrar no corredor, paro no meio
do caminho quando o escuto chamar meu nome, voltando até ficar
novamente na porta.
— O que eu vou dizer para a família Park? — questiona, assim que
me percebe o encarando com as sobrancelhas erguidas.
Dou risada.
— Sei lá, diz que eu morri. Aproveita e começa a achar isso também.
— Puxo a carne morta do meu lábio inferior e fico brincando com elas. —
Como eu sei que hoje é o dia que a minha mãe sai para frequentar a casa de
suas amigas, a avise de tudo quando chegar. E diga que ela, somente ela,
pode ligar para mim se desejar saber como eu estou. Mas duvido muito que
ela queira ou você deixe, já que passou um ano inteiro sem vontade de saber
se eu estava viva.
Giro nos calcanhares e vou até meu quarto, trancando a porta para que
ninguém possa me encher a paciência. Pego as minhas malas, vou até o
closet e coloco tudo que quero e preciso dentro delas. Encho todas elas com
as minhas roupas, meus acessórios, meus discos e alguns livros até não
sobrar mais nenhum espaço para nada.
Sei que vou deixar algumas coisas para trás, mas não me importo.
Tudo o que me importa de verdade estará lá na Carolina do Sul me
esperando.
Carrego as malas comigo e antes de realmente ir embora, passo no
quarto de Penelope, que ainda não havia sido desfeito e que eu ainda não
tinha tido a coragem de visitar desde que cheguei. Assim que entro,
encontro seu cheiro, todos os seus brinquedos e a sua parede revestida por
papel de parede de borboletas. Sorrio, nostálgica, e me sinto revigorada
para finalmente ir embora, pois sei que a minha irmã estará comigo sempre.
Sempre no meu coração.
Uma coisa em sua cômoda me chama atenção e eu vou até lá, curiosa.
Vejo vários desenhos, folhas em branco e um caderno no meio deles.
Provavelmente não deve haver nada demais, mas sinto que preciso tocá-lo.
E assim que o pego em minhas mãos e o folheio, uma carta de Penelope voa
feito pluma e caí sobre os meus pés. Sinto o coração bater mais rápido
quando me agacho para pegá-lo.
Assim que abro o envelope, lendo suas últimas palavras ainda em
vida, choro compulsivamente com o recado deixado para mim, como se
minha irmã soubesse o tempo todo que precisava ler isso um dia, e tenho
ainda mais certeza do que estou fazendo e do futuro que me aguarda.

Quando volto para o chalé com as malas, John sai para me ajudar e
me olha com as sobrancelhas erguidas, provavelmente querendo uma
explicação de como foi enfrentar o meu pai. Pelo modo como me olha,
tenho certeza que pensa que eles me enxotaram de casa ou algo do tipo, mas
mal sabe ele que foi bem o contrário disso. Mal sabe ele que foi decisão
minha e que estou livre para poder voltar para casa. Para o nosso lar.
Quando eu conto tudo para ele, fazendo questão de deixar bem claro
tudo o que falei para Joseph Stratford, meu namorado arregala os olhos e
entreabre os lábios, completamente surpreso, mas ainda assim dizendo que
eu sou a mulher mais foda que ele já conheceu, falando com a boca cheia o
quanto está orgulhoso de mim.
Eu também estou muito orgulhosa de mim, amor.
— Então quer dizer que nós vamos voltar? — John indaga logo após
eu explicar e repetir tudo umas vinte vezes. Ele está tão feliz e animado que
não vejo problema algum em repetir mais cem vezes se for preciso. —
Vamos ficar juntos em Hellaware para sempre?
— Sim — confirmo, toda boba. — Juntinhos para sempre. Não
haverá mais nada entre nós. Nada.
Ele agarra a minha cintura e me puxa contra o seu corpo em um
solavanco perfeito. Espalmo o seu peito e suspiro, apaixonada. No exato
momento em que ele se aproxima para selar nossos lábios, algo parece
estalar em sua mente e ele recua o rosto para trás, um V formando-se em
sua testa.
— Eu preciso buscar a minha moto, meu neném ficou na rua da sua
casa. Minha nossa, o que acontecerá com ela quando formos embora? —
Dou risada por achar muito engraçado o modo como ele parece
completamente preocupada com a sua Harley-Davidson. Eu quase sinto
ciúmes. — Porque se formos de avião, ela não poderá ir com a gente,
obviamente. Eu não posso simplesmente deixá-la para trás, diabinha.
— Relaxa, relaxa. — Resvalo meus lábios nos seus apenas para
acalmá-lo. — Eu dou um jeito de conseguir alguém que a leve de volta para
você. Confia em mim? — pergunto, manhosa, e ele confirma sem nem
pensar duas vezes, louco para que eu pare de brincar e o beije logo de uma
vez. — Então, John Stone Scott, você está pronto para voltar para
Hellaware e viver uma vida inteira comigo? Seu momento de desistir é
agora.
Suas mãos se tornam ainda mais firmes em minha cintura e ele prende
meu lábio inferior entre seus dentes, soltando-o devagar ao sorrir.
— Eu nunca estive tão pronto, Pasha Denise Stratford.
Uma grande vantagem de ser de família rica é que você, aos quinze anos,
costuma ganhar de presente um cartão de crédito black, ou seja, totalmente
sem limite e que possa gastar até dizer chega. Ao contrário do que muitos
pensam, eu não usufruí muito dele como gostaria. Eu não queria dar o gostinho
aos meus pais para que eles tirassem conclusões precipitadas e me achassem
ainda mais fútil e vazia do que achavam. Mas, contrariando tudo o que eu
acreditava, comecei a usá-lo sem pena enquanto eu e John estávamos no
Alasca, com medo de que ele fosse cancelado a qualquer momento. Então
comprei nossas passagens de volta para Hellaware e ainda fiz questão que
fosse de primeira classe. Comprei também algumas lembrancinhas para as
minhas amigas, mais algumas roupas para mim e outras para o meu namorado.
Obviamente, ele tentou me fazer desistir da ideia e não queria que eu
comprasse nada para ele, mas como eu disse que estava gastando apenas o
dinheiro do meu pai e que ele não valia o que tinha, acabou aceitando e se
divertindo junto comigo.
Foi difícil encontrar passagens com destino para a Carolina do Sul por
estarmos no final do ano, mas conseguimos encontrar umas por valores
exorbitantes e conseguimos chegar em Hellaware alguns dias antes do natal.
Foi literalmente uma festa quando chegamos, quando todos souberam que eu
estava de volta para valer e que estava namorando John Scott, o integrante do
The Hurricane Freedom que eu jurei odiar. Tanto eu quanto John fomos
recebidos por abraços, por choros e gritos eufóricos de Barbie e Georgina, por
felicitações sinceras pelo nosso namoro e por algumas piadas dizendo que
sempre souberam que eu e ele terminaríamos assim, juntos e completamente
apaixonados.
Foi uma sensação indescritível de saudade, de felicidade, de amor, de
acolhimento e de pertencimento.
E assim que eu cheguei na casa de David Wilson, o encontrei lá me
esperando de portas e braços abertos. Meu tio estava com suas passagens
prontas para embarcar para o Alasca no dia seguinte e me disse, como se eu
não fizesse a mínima noção, que o meu pai havia ligado para ele
provavelmente no mesmo dia da nossa discussão lhe dando uma ótima oferta e
comprando a casa para mim, com os móveis e tudo dentro. Fingi surpresa e ele
ficou extremamente feliz por ver que meus pais estavam finalmente acatando e
respeitando minhas decisões. Quis rir no momento, mas acabei achando
melhor deixar para lá. Também fiquei sabendo por ele que está animado para
aproveitar sua aposentadoria no frio e que se sente realmente fazendo a coisa
certa ao ir embora para se recuperar da sua perda recente. Enquanto
conversamos e colocávamos os papos em dia, me surpreendi totalmente
quando soltou que os mais novos donos do Fast Rocket são Amber St. Claire e
Hunter Leblanc, que se sensibilizaram com o meu tio e não pensaram duas
vezes em salvar a lanchonete e mantê-la viva e funcionando como uma das
melhores coisas que existem nesse lugar.
No outro dia, quando o levei para o aeroporto e me despedi, agradecendo
por tudo que ele havia feito por mim, decidi fazer compras no mercado e
abastecer a geladeira de casa com comida o suficiente para o Natal, que eu
estava disposta a fazer uma ceia enorme para mim, minhas amigas, John e o
pessoal do MotoClub, tipo para comemorar a nova fase que estava prestes a se
iniciar. Assim que paguei as compras, fui para casa e organizei tudo por lá,
logo depois corri para o centro da cidade e comprei uma árvore de Natal,
enfeites, gorros e uma infinidades de outras decorações natalinas para enfeitar
o lugar.
Agora, no entanto, quase quatro horas da tarde da véspera do dia de
Natal, estamos eu, Barbie e Georgina montando a árvore, depois de termos
espalhados as outras decorações pela casa. O pisca-pisca está ligada e as
minhas amigas, com ajuda de uma escada, repousam e ajustam uma estrela
dourada no topo da árvore. Estou aqui embaixo dando algumas direções para
elas para que não fique torto e acabe estragando toda a produção de horas. Mas
elas são boas demais em tudo que se propõem a fazer e é claro que não
precisam de nenhuma direção minha, pois acertam logo de primeira. Elas me
olham com expectativa e eu repuxo meus lábios pincelados por um gloss de
cereja para cima.
— Perfeito! — digo ao bater apenas uma palma no ar, e as minhas
melhores amigas saltitam e descem da cadeira que estavam penduradas. —
Vocês são mesmo incríveis, sabia?
No exato momento em que digo isso, Georgina Sinclair olha para Barbie
com as suas sobrancelhas arqueadas, como se não tivesse acreditando no que
estava ouvindo. Depois que elas se entreolham e ficam claramente zombando
da minha cara, voltam a me fitar com seus glóbulos injetados de diversão.
— O que foi? — Espalmo as mãos na cintura e faço um bico de lado. —
Por que estão com essa cara?
Georgina também crava as mãos em sua cintura e deixa Barbie para trás
apenas para ficar em minha frente. Ela toca em minha testa com as costas da
mão, depois desce para o meu pescoço, e eu a encaro com o rosto contorcido
em uma careta pela sua repentina estranheza de me analisar como se estivesse
achando que estou doente.
— Com febre você não está — a loira menciona o óbvio. — Achei que
estivesse doente por estar nos elogiando por livre e espontânea vontade. Mas
acabo de perceber que é porque você está apaixonada. Costumam dizer que
pessoas apaixonadas se tornam mais fofas. Acho que você está fofa, Pasha
Stratford.
Olho para a Barbie com uma expressão muito parecida com “garota,
olha o que essa maluca está falando!”, mas ela não me defende e sei que gira
nos calcanhares só para não se comprometer nessa e dizer que o seu raciocínio
é o mesmo que o da garota sincera à minha frente.
— Sabe o que eu acho? — rebato, repousando uma mão em seu ombro e
olhando dentro dos seus olhos. — Eu acho que se você mencionar algo
parecido com isso novamente eu arranco a sua cabeça fora. E te expulso da
minha casa.
Tento mesmo parecer intimidadora, mas acho que perdi a prática. Quer
dizer, pelo menos com ela eu devo ter perdido, porque a minha amiga maluca
começa a sorrir e me puxa para um abraço, envolvendo seus braços finos ao
redor do meu corpo. Apesar de ter sido pega desprevenida, não recuo. Fecho
os olhos e permito sentir seu cheiro doce, seu toque e o seu aperto. Quando eu
penso que vai se afastar, já que não temos muito o costume de fazer isso,
Sinclair me abraça ainda mais forte.
— Senti falta disso. Embora eu ame a Barbie com todo o meu coração,
ela é doce demais e não briga comigo nem costuma me colocar no lugar com
frequência. Gosto que você seja a única a fazer isso — ela sopra contra minha
orelha. — Gosto demais que você tenha voltado para a gente. Mas agora já
chega. — Ela se separa do abraço de forma brusca e dá um passo para trás,
tentando esconder que estava emocionada. É impressionante como ela é
igualzinha a mim em certas coisas. — Quem está ficando fofa agora sou eu... E
olha que eu nem estou apaixonada.
Solto uma risada e fico ao seu lado apenas para enganchar meu braço no
seu pescoço, a arrastando até a cozinha.
— Vamos preparar a ceia logo antes que você se derrame em lágrimas,
fofa. — Ando com ela em meu encalço e, mesmo que eu não vire para encará-
la, sei que está me olhando com seus lábios voluptuosos entreabertos. — Está
tudo bem, G. Eu não vou contar a ninguém que você tem um coração e é capaz
de chorar — sussurro, como se fosse nosso pequeno segredo. — Inclusive,
obrigada. Obrigada por ter uma maldita boca e ser totalmente fofoqueira. Se
você não fosse desse jeitinho que é, talvez eu estivesse sofrendo lá no Alasca
sem vocês e sem o John.
Viro sobre os ombros para flagrar bem a tempo o sorriso esticado e
presunçoso que ela me direciona.
— Não há de quê — fala, brincalhona. Nós adentramos a cozinha e nos
separamos minimamente logo depois que ela completa: — Eu sei que eu sou
um ótimo cupido. Um cupido com a boca grande, mas ainda assim um ótimo
cupido.
Afirmo sem pensar duas vezes e seguimos Barbie, que está pronta para
nos ajudar a cozinhar. Eu e ela somos horríveis nisso, mas Georgina é ótima e
sabe fazer de um tudo, então estamos animadas em acompanhá-la nessa para
que possamos passar o maior tempo possível juntas e grudadas.
Uma música da banda New Kids On The Block embala o nosso momento
e acompanha nossas fofocas, nossas risadas e o nosso empenho para que saia
tudo perfeito hoje à noite.

Olho para o espelho e analiso minuciosamente o meu reflexo através do


vidro da penteadeira. Muito melhor do que eu imaginei, a propósito. Estou
usando um top faixa vermelho, que deixa um pouco da pele da minha barriga à
mostra, um blazer vermelho sangue por cima, calça social com boca de sino da
mesma cor e saltos scarpin pretos e brilhantes. Há grandes argolas em minhas
orelhas e os meus fios ruivos alaranjados se encontram partidos no meio,
cascateando minhas costas e com algumas ondulações não naturais nas pontas.
No meu rosto, optei por uma fina camada de base no rosto, deixando minhas
sardas naturais um pouco visíveis, camadas de rímel nos cílios para deixá-los
ainda mais cheios e curvados, sombra nude nas pálpebras, blush nas bochechas
e, diferente do costume, um batom da cor coral substituindo o comum batom
vermelho.
Estou tão coberta pelo vermelho hoje que deixei ele de lado. Apenas por
agora.
Quando confirmo que realmente estou pronta para recepcionar os
convidados, que já estão espalhados lá na sala apenas me esperando, dou uma
esticada no blazer, arrumo a postura e saio do quarto, direcionando-me até as
escadas. Com todo cuidado, desço degrau por degrau e meus olhos brilham
com toda a decoração; uma mistura de vermelho e verde por toda a sala, o
globo de neve que eu ganhei de John repousado no centro perto do sofá, gorros
do papai Noel, arranjos de flores perto da mesa, além do pisca-pisca clareando
todo o cômodo e a árvore de natal com os enfeites e com a linda estrela
dourada no topo.
Inclusive, me deparo com todos os meus amigos sentados no sofá e
outros até mesmo no chão, rindo e conversando tranquilamente. O primeiro a
me notar é John que, como sempre, parece ter um ímã que puxa seus olhos
automaticamente em minha direção assim que eu chego em qualquer lugar. Ele
me olha dos pés à cabeça, depois da cabeça até os pés e se levanta rapidamente
para caminhar em minha direção. Nesse interim, vejo que está extremamente e
absurdamente lindo dentro de uma jaqueta jeans de lavagem clara, uma
camiseta branca do Nirvana, calça jeans rasgada nos joelhos e coturnos. Seu
cabelo está úmido, como se ele tivesse acabado de sair do banho, e o rosto
totalmente liso e com o maxilar à mostra, livre daquela barba por fazer. O
órgão mais vital em meu corpo logo se prontifica a ficar agitado e bater forte
contra as minhas costelas quando ele para em minha frente e o seu perfume
forte e arrebatador me invade.
— Você está linda. Como todo santo dia. — Sorrio e beijo seus lábios
rapidamente. — Feliz Natal, minha diabinha.
— Feliz Natal, meu amor — digo, e Scott estende a sua mão repleta de
desenhos para que eu possa entrelaçar com a minha. A pego na mesma hora.
— Você viu que eu coloquei um visco lá fora?
Meu namorado assente, a malícia logo escorrega por entre seus lábios
quando ele sorri.
— Arranjando motivos para poder me beijar, Stratford? — O tom da sua
voz, que tenta ser sexy e galanteador, acaba soando engraçado e fofo para
mim. — Achei que estivesse muito claro que você pode fazer isso sempre
agora. Quer dizer, se antes você já podia, imagine no patamar em que estamos.
Acho ainda mais graça da sua fala, aperto nossas mãos e me aproximo
apenas para sussurrar:
— Mas no visco é mais romântico, não?
— Qualquer lugar com você ao lado se torna romântico. — Ele aperta a
pontinha do meu nariz com o dedo em formato de pinça. — Você é quem
torna tudo especial. Mas podemos fazer isso no visco, sim. Podemos nos beijar
em baixo do visco, acreditar que ele é mesmo mágico e pedir para que deixe a
gente assim para sempre.
Céus, eu o amo tanto que chega dói. Sou apaixonada por tudo que
envolve esse garoto, mas quando ele fala coisas assim, coisas desse tipo e que
deixam minhas pernas tão moles quanto gelatinas, sinto que posso amá-lo cada
dia mais. Sinto que posso viver isso para sempre.
Antes que eu possa lhe responder com alguma coisa à altura, nossos
amigos interrompem o nosso momento e começam a me abraçar e me desejar
feliz natal. Kara McAllister, que possui um sorriso doce e hospitaleiro, faz
questão de dizer que adorou a decoração que eu fiz e que tudo estava lindo. Já
Violet, que não se importa nem um pouco com essas coisas, foi a única que
falou da nossa comida exposta na mesa e que perguntou em que momento
poderíamos devorá-la, pois estava morrendo de fome — exatamente com essas
palavras.
Tive que dizer a ela que essa parte iria demorar um pouquinho ainda.
Me afasto do aglomerado de pessoas apenas para colocar o disco da
Billie Holiday para tocar. Blue Moon ressoa pelo recinto e todos, inclusive
John, apreciam a canção sem reclamar. Sorrio por eles não crucificarem os
meus gostos musicais e vou até a cozinha para me servir com uma taça de
vinho. Entorno o líquido roxo na taça e daqui, escorada no batente da pia, fico
vendo os meus amigos sorrindo, conversando, curtindo o jazz e me sinto tão
feliz que poderia facilmente explodir.
Olhando para eles, tenho a completa certeza de que casa não tem nada a
ver com uma construção, e sim com onde o seu coração está gravado.
E o meu está aqui; com John, com Barbie, com Georgina e até com os
outros do The Hurricane Freedom.
Estou finalmente em casa.
Com o coração em paz, beberico do vinho e vejo quando Georgina entra
feito um furacão na cozinha, provavelmente me procurando. Ela está afoita,
animada e completamente linda em suas roupas chamativas e em sua
maquiagem muito bem elaborada para causar.
— Vamos trocar os presentes agora! — Bate palmas e saltita no lugar, eu
apenas dou risada. — Vem, vamos!
Dito isso, minha amiga volta para a sala e eu a sigo. John, sentado no
sofá, me vê chegar e bate no espaço vago ao seu lado, pedindo para que eu me
aproxime. Acato o seu pedido, sento ao seu lado, cruzo as pernas em um X e
sinto seu braço enganchar em meu pescoço numa aproximação suave e
reconfortante logo depois. Nós ficamos com os olhos atentos na cena que se
desenrola a seguir, que é Barbie e Devin trocando presentes de uma forma
encantadora. Minha amiga dá para o seu namorado um quadro lindo de uma
roda-gigante pintada a óleo, simbolizando e eternizando mais uma vez aquele
brinquedo onde eles se beijaram pela primeira vez. E ele, que também não fica
para trás no quesito presentes incríveis, lhe entrega um disco da banda New
Kids On The Block totalmente autografado por todos os integrantes. A garota
de cabelos dourados quase morre quando assimila o presente e a assinatura de
Jordan Knight bem em sua frente, soltando gritinhos, pulando e perguntando
como ele havia conseguido algo tão difícil.
— Encontrei ele em uma loja de discos aqui pelas redondezas. Esses
garotos aí me arrancaram uma grana altíssima, sabia? Fiquei um pouco mais
pobre por conta deles — Devin explica, o que faz todos nós cairmos na risada.
Isso não acontece com Barbie, entretanto. Ela parece ficar abismada que o
namorado gastou suas economias comprando esse tipo de coisa para ela. —
Não precisa ficar com essa cara, boneca. Eu posso ter ficado um pouquinho —
Ele junta o polegar e o indicador em frente ao rosto para mostrar a pequena
quantidade — pobre por conta deles, mas o seu sorriso e a sua felicidade são a
minha maior recompensa. Sempre vai ser.
Todo nos soltamos uma espécie de “owwwn” em uníssono para o casal
no exato momento em que Barbie St. Claire fica com as bochechas coradas de
vergonha e tasca um beijão no seu namorado aqui mesmo, na frente de todos.
Nós aplaudimos, gritamos e eles se separam pouco tempo depois, ficando
abraçados e deixando o espaço da sala para que outras pessoas possam trocar
presentes. Quando nossos amigos se sentam, ninguém se habilita para levantar
e ir até o meio se declarar para um amigo ou amiga. Ficamos em silêncio e nos
entreolhando por um bom tempo até que John decidisse limpar a garganta, se
levantar, pegar um embrulho embaixo da árvore de Natal e ficar no centro.
Me encolho no sofá no exato momento em que suas írises azuis se
concentram em mim.
— Bom, já que Devin e Barbie tiveram o seu momento fofo, acho que eu
e a minha diabinha precisamos protagonizar um também. — Violet, que tem
esse dom de levantar o coro junto consigo, coloca uma mão em formato de
concha ao lado da boca e grita, totalmente animada em ver seu melhor amigo
de anos se declarar pela primeira vez em sua frente. Não costumo ficar com
vergonha, mas droga, é exatamente isso que estou sentindo agora. — Assim
que Pasha me avisou que iria fazer o Natal em sua casa, fui em busca do que
eu tinha em mente na mesma hora. — Pega totalmente desprevenida, o assisto
jogar o embrulho em minha direção que, por ajuda do reflexo, acabo
conseguindo pegá-lo no ar antes mesmo que chegue ao chão. — Espero que
você goste do que eu mandei fazer para você, gata. Pode abrir agora.
Olho para Barbie, Georgina, Devin, Kara, Kieran e Violet, e todos me
encaram com os glóbulos levemente arregalados e injetados de curiosidade.
Suas sobrancelhas ficam formadas em arcos perfeitos em seus rostos, que
claramente me incentivam a abrir logo e acabar com a curiosidade de todos. E
é exatamente isso que eu faço. Volto para fitar John, sorrio para ele e abaixo o
olhar para o presente repousado em minhas mãos. Com uma vontade absurda
de descobrir o que é, abro o embrulho em um tempo recorde e dou de cara com
algo incrível e lindo, que logo me faz abrir a boca em um “O” perfeito de
surpresa e admiração enquanto retiro a peça do papel de presente e ergo para
que todos possam ver o que acabei de ganhar.
Meus dedos envolvem o tecido grosso e pesado da jaqueta de couro e
meus olhos correm por toda parte, analisando cada mísero detalhe que a torna
tão linda. É uma jaqueta vermelha — obviamente — e atrás tem o mesmo
desenho do furacão com as asas de anjo dos The Hurricane Freedom, além de
ter o nome do MotoClub com as letras derretendo exatamente como o fundo da
jaqueta de todos os integrantes. Inclusive, Devin presenteou Barbie em seu
aniversário com uma jaqueta igualzinha, só que preta.
O vermelho havia sido escolhido porque é a minha cor e ele sabe bem
disso. John Scott me conhece mais do que ninguém.
— Ela é linda — digo, sinceramente. — Eu amei, amei mesmo. Agora
eu e Barbie vamos ficar combinando e desfilando por aí como as garotas que
conseguiram capturar os corações dos garotos mais cobiçados da cidade.
Vamos causar muito.
O garoto à minha frente sorri sem descolar os lábios, olha para os
melhores amigos e depois volta a me encarar. O oceano dentro dos seus olhos
brilha, me convida, me afunda e eu não consigo desviar.
— Como meu amigo fez isso para a namorada, eu também não poderia
deixar de fazer isso pela minha. — Ele pisca para mim, divertido, e se
aproxima. — Acho que vai virar uma tradição agora.
Escuto alguns burburinhos de conversa ao meu lado, uns concordando e
outros brincando com a situação, como se não fossem viver isso tão cedo, mas
estou imersa demais nele, nesse nosso pequeno momento e nada parece
realmente estar aqui. Parece que só há nós dois, essa sala e a música do disco
tocando ao fundo.
Deixo a jaqueta vermelha repousada no sofá e me levanto, pronta para
beijá-lo aqui e agora, só que acabo mudando totalmente os pensamentos. Dou
uma risadinha quando me aproximo, pego sua mão e o puxo para andar junto a
mim. Nossos amigos não percebem que estamos saindo de casa, talvez nem
estejam se importando e queiram mais é que a gente aproveite e faça tudo o
que tivermos vontade, porém saímos pela porta e ficamos parados embaixo do
visco, exatamente como eu disse que gostaria de ficar com ele mais tarde. Seus
orbes curiosos logo cravam no visco e os cantos dos seus lábios se retorcem
em um dos seus sorrisos de deixar pernas bambas e tirar o fôlego de qualquer
mulher.
Não importa quanto tempo passe, acho que nunca vou conseguir superar
o seu maldito sorriso.
— Obrigada pelo presente — digo, atraindo sua atenção para mim. John
me encara e o sorriso não desaparece do seu rosto em nenhum momento.
— Me trouxe embaixo do visco só para me agradecer?
Droga.
Ele me conhece bem demais.
Faço que não com a cabeça, aperto ainda mais as nossas mãos e me
aproximo.
— Eu não costumo ser supersticiosa, mas estou me sentindo
extremamente como uma hoje. — confidencio, baixinho. — Então eu te trouxe
aqui para poder te fazer uma promessa. Uma promessa de Natal. Uma
promessa de Natal e embaixo do visco que é para não ter como não ser
realizada. — Vejo que ele fricciona os lábios para não rir da minha falta de
jeito, e eu inspiro fundo para me manter mais calma e centrada para pôr para
fora tudo o que eu estou sentindo. — Eu, Pasha Stratford, aqui embaixo desse
visco que dizem ser mágico, prometo viver intensamente e aproveitar cada
segundo ao seu lado, John Scott. Você é o meu maior presente, a minha luz na
escuridão, o meu recomeço e a minha casa. E eu te odeio muito por me fazer
soar tão piegas, mas também te amo na mesma proporção e na mesma
intensidade. Eu te amo e te prometo que sempre será assim. Sempre será eu e
você contra o mundo, não importa o que aconteça.
— Eu também te amo. — Meu namorado encosta a testa na minha e eu
fecho os olhos. — E eu, John Scott, aqui embaixo desse visco que dizem ser
mágico, prometo que serei capaz de colocar o mundo aos seus pés se assim
você quiser. Vou mover céus e terras para te fazer a mulher mais feliz desse
mundo, diabinha, porque eu finalmente encontrei o meu final feliz e não vou
deixá-lo escapar por nada neste mundo. No que depender de mim, protegerei
isso que temos com a minha vida.
Uma lágrima desliza pela minha bochecha e ele faz questão de sumir
com ela antes de pôr uma mão ao lado do meu rosto, se aproximar e selar
nossa promessa com um beijo doce sob o visco em uma linda noite de Natal.
E eu tenho a mais absoluta certeza que não há nenhum lugar do mundo
que eu prefira estar se não aqui.
— Conseguiu?
É a primeira coisa que pergunto para Pasha quando a flagro saindo da
Biblioteca Pública de Hellaware. Seus olhos cor de avelã estão maiores
pelas grossas camadas de rímel que usa, parecem brilhar de longe e eu sinto
o fundo do meu âmago se contorcer por conta da vivacidade deles e, claro,
sinto ainda mais quando tenho o vislumbre de um sorriso querendo florescer
em seus lábios cheios, bem desenhados e cobertos pelo típico batom
vermelho extremamente sexy e atrativo quando decide se aproximar.
Minha diabinha se encontra ainda mais linda vestindo a jaqueta
vermelha — ela agora está com um costume maravilhoso de usá-la em
qualquer ocasião — e parecendo totalmente confiante por causa dela e do
que ela representa. Analiso suas expressões quando se põe em minha frente,
estudo cada uma delas e fico com medo do que posso acabar escutando
agora, já que após as datas comemorativas de final do ano, Pasha decidiu de
uma vez por todas tentar recuperar seu emprego na ala infantil da biblioteca
e retomar o seu sonho de trabalhar com livros e crianças exatamente da onde
parou.
— Conseguiu ou não? — repito a pergunta, tão ansioso quanto ela.
A verdade é que não ficarei em paz se não tiver a confirmação de que
ela não será prejudicada, de que ela poderá voltar, de que poderá atender as
crianças, ler para elas e se sentir realizada com o seu sonho e a sua maior
vontade desde que descobriu a sua vocação. Preciso saber se ela trabalhará
com aquilo que ama, se o mundo está realmente a nosso favor agora e se
tudo ficará bem da maneira que desejamos de hoje por diante. Preciso ter a
confirmação de que verei o seu sorriso, sua felicidade, seu amor e o seu dom
pronto para ser usado da melhor forma possível. Preciso ter a confirmação
de que essa garota maravilhosa terá tudo o que um dia a negaram e fizeram
acreditar que não seria digna de ter, pois a minha garota sofreu, batalhou, se
mostrou extremamente corajosa e confiante para que pudéssemos chegar até
aqui e é merecedora de realizar os seus sonhos e colher as melhores coisas
dessa vida.
Vou enlouquecer caso ela demore a começar a desenrolar ou me diga
que não conseguiu.
— A minha vaga já foi ocupada — Pasha projeta o lábio inferior para
baixo, triste e levemente manhosa. Trinco o maxilar, cerro os punhos ao lado
do corpo e ela provavelmente parece perceber que começo a ficar chateado,
pois se aproxima de mim, toca o meu ombro e massageia região. — Mas,
mesmo tendo trabalhado aqui por apenas duas semanas, isso se tornou o
suficiente para que as crianças ficassem apegadas a mim e perguntassem do
meu paradeiro durante todo esse tempo. Então, como o meu trabalho e a
paixão que eu sinto por livros tocou os meninos de alguma forma, além de
que eu expliquei toda a situação que passei e o quanto queria e precisava
voltar, decidiram me dar mais uma chance e não se importaram com o fato
de que tinha outra pessoa tomando o meu lugar. Agora será eu e outra garota
comandando tudo por aqui. — Toda a sua antiga expressão que agora
percebo ter sido fingida fica para trás e o seu sorriso sincero, verdadeiro e
emocionado cresce copiosamente em seu rosto salpicado por sardas naturais
que a deixam ainda mais linda e fascinante. Relaxo totalmente e me sinto
extremamente realizado só por saber que é desse mesmo jeito que ela se
encontra nesse exato momento. — E eu consegui, amor. Eu consegui tudo de
volta e sinto como se todas as peças do quebra-cabeça da minha vida se
juntaram para finalmente fazer sentido, pois agora eu tenho ainda mais
responsabilidade, uma casa só minha, vou trabalhar com aquilo que eu amo e
sempre sonhei, talvez investirei em algum curso nessa área futuramente,
tenho pessoas incríveis ao meu lado me apoiando, me incentivando, me
colocando para cima e se mostrando todos os dias uma verdadeira família
para mim, porque essa palavra não tem nada a ver com parentesco e laços
sanguíneos, e sim com amor e ligação instantânea. E vocês são a minha
ligação instantânea. — Ela encaixa a pequena mão em um lado do meu rosto
e escova a maçã com a ponta do polegar, fazendo-me fechar os olhos por
breves segundos para poder apreciar o seu toque e a corrente elétrica que ele
faz se dissipar e percorrer por todo o meu corpo. — Você é a minha. E o
engraçado é que se me contassem isso meses antes, se me contassem que eu
e você estaríamos assim hoje, provavelmente eu gritaria e chamaria a pessoa
de louca. Mas a louca fui eu de não ter percebido antes e de ainda ter tentado
negar o óbvio. De ainda ter tentado negar que eu e você éramos um
problema muito melhor separado quando, na verdade, sempre fomos um
problema muito mais bonito e interessante juntos, capaz de destruir ou
dominar a droga do mundo inteiro em um simples estalar de dedos.
Inflo o peito de ar, totalmente comovido com suas palavras, e a prendo
contra mim ao circundar sua cintura sinuosa com os meus braços. Seus olhos
parecem brilhar ainda mais com a minha ação, as linhas de expressão do seu
rosto conseguem ficar suavizadas e relaxadas, deixando que a bolha de
felicidade que estamos presos a torne ainda mais aquecida, segura do que
estamos fazendo, do que estamos falando, do que estamos construindo juntos
e com uma certeza imensurável de que separados nós somos incríveis, mas
que juntos nos tornamos invencíveis.
— Sabe o que é mais engraçado disso tudo? — indago, brincalhão.
Pasha ergue os ombros, une as sobrancelhas e crispa seus belos lábios, como
se estivesse me perguntando “o quê?” — O mais engraçado disso tudo é que
eu provavelmente faria a mesma coisa se me contassem que eu iria ficar
completamente caidinho, louco, apaixonado e viciado pelo diabo do Alasca
que aterrissou nessa cidade para fazer da minha vida um inferno com seu
jeito egocêntrico, mimado, ácido e explosivo de ser. Eu provavelmente
esganaria a pessoa que estivesse me contando isso e ainda diria que isso não
aconteceria nem se eu estivesse morto. Mas nunca me senti tão vivo quanto
agora, minha gata.
Stratford revira os olhos por conta do tal do pronome possessivo que
sempre pareceu odiar, e eu dou risada ao me divertir às suas custas e adorar
arrancar reações como essa de vez em quando.
Sabe, não importa em que patamar nós estejamos, eu sempre vou amar
provocá-la.
— Você é minha e é gata, que mal tem de voltar a te chamar de minha
gata? — emendo ao vê-la remexer a cabeça de um lado para o outro,
tentando esconder o sorrisinho que quer ganhar espaço em seus lábios.
— Nenhum — responde, rápida e divertida. — É que eu acho um
pouquinho brega ainda.
Desenrosco um braço da sua cintura, direciono uma mão para o centro
do meu peito, entreabro os lábios e faço a minha melhor cara de ofendido.
— Eu sou um homem apaixonado, tenho crédito para soar brega,
sabia?
Minha namorada solta uma risada tão contagiante ao me ouvir que é
impossível não a acompanhar nessa.
— Você já me chamava bem antes assim, sabia?
Bom, ela definitivamente tem um ponto.
— Acho que é porque eu sempre fui apaixonado por você.
Parecendo adorar a minha resposta, Pasha dá uma daquelas risadinhas
impressionadas e se aproxima um pouco mais apenas para entrelaçar seus
pulsos ao redor do meu pescoço, encostar os lábios nos meus e me dar um
daqueles beijos de girar a cabeça, o estômago — que parece se contorcer à
medida que o aprofundamos — e tudo a nossa volta. Perco o equilibro, perco
o rumo, perco o ar e sinto meu coração pular para se repousar bem ao lado
do seu, que bate no mesmo ritmo, na mesma batida e que segue a bela
melodia do nosso amor. Hoje e para sempre, tenho certeza disso.
Quando a gente se separa tempos depois, sorrimos um para o outro e
damos um único passo para trás, como se decretássemos juntos que é hora de
ir.
— Posso saber para onde nós vamos agora? — Cruza os braços ao
trocar o peso dos pés e erguer uma única sobrancelha alaranjada em um
desafio implícito e que me deixa totalmente animado.
— Desbravar o mundo. — Dou de ombros, mordendo um sorriso. —
Topa?
— É claro que eu topo! Eu topo tudo com você, lindo.
Sem mais delongas, arrumo a lapela da minha jaqueta de couro e
Pasha faz o mesmo com a sua da cor vermelha, dando uma última olhada no
seu novo — quer dizer, não tanto assim — trabalho antes de voltar até mim e
estar disposta a começar mais um ano e mais uma etapa. Eu me desencosto
da minha Harley-Davidson, que por sorte a ruiva conseguiu contatar um dos
seus contatos lá no Alasca para trazê-la de volta o quanto antes, e coloco
novamente meu capacete em minha cabeça para depois me sentar no
estofado macio da moto e preparar as mãos no guidão com o intuito de
acelerar e deixar esse pequeno bairro importante para trás. Ela logo segue os
meus movimentos, se coloca atrás de mim e passa os braços ao redor do meu
corpo. Não demora muito depois disso para que eu vire sobre os ombros,
lance uma piscadela para ela, volte minha atenção para a rua e dê partida,
levantando um rastro de poeira ao decidir andar por aí sem destino com a
garota da minha vida.
Apesar de estarmos no começo de janeiro e o inverno ainda ser a nossa
estação, o clima em Hellaware não é nada parecido com o de Avell District,
sendo frio na medida certa e gelado de uma forma totalmente suportável. O
vento gélido durante o trajeto percorrido a lugar nenhum nos cumprimenta,
beija cada centímetro da nossa pele e não deixa que a gente fique ou se sinta
só em nenhum momento. Hora ou outra sinto o aperto de Pasha em mim, sua
bochecha encostando em minhas costas, a sua respiração densa se
assemelhando muito com a minha. Até escuto a sua voz bonita e melodiosa
soar baixinho ao cantar uma de suas músicas favoritas conforme vamos nos
afastando daquele lugar em que estávamos.
Enquanto piloto e costuro pelas ruas da cidade, repasso todos os
acontecimentos dos últimos meses e sorrio, incrédulo com tudo o que
aconteceu e com o rumo que a minha vida tomou. Penso em minhas
descobertas, em meus aprendizados, meus erros, meus acertos, minhas
conquistas e em tudo o que eu enfrentei ao longo do caminho. Penso que
encontrei um amor, que fui em busca dele em uma viagem longa e
extremamente cansativa de moto até o Alasca somente para recuperá-lo, em
como sou capaz de amar, de ser amado, de fazer coisas grandiosas e de
receber coisas tão grandes e significativas quanto. Penso nos meus amigos,
na minha família, no que vivi, no que tenho para viver e em tudo e todas as
pequenas coisas que me compõem e me tornam esse homem e esse ser
humano que sou hoje; melhor para ela, muito melhor para mim e mil vezes
melhor para receber de bom grado o que o universo tem a oferecer.
Avanço pelas ruas com a minha garota e tenho certeza que não
mudaria nada em minha história, porque eu viveria tudo de novo somente
para encontrá-la, olhar para trás e poder falar para o pequeno John que, sim,
você conseguiu.
Você aguentou tudo até o final, cara.
E mesmo que seja difícil, mesmo que tudo pareça completamente
perdido e sem saída, aguente firme como ele aguentou e não desista. Há um
final feliz aguardando todos nós.
Eu nunca pensei que fosse dizer isso um dia, mas eu tive o meu.
E ele foi lindo.
Desde que comecei a trabalhar na biblioteca, venho me sentindo
extremamente realizada, como se a minha vida finalmente tivesse seguindo
o rumo que fora destinada a seguir desde que vim ao mundo. Tudo parece
finalmente em paz como eu sempre sonhei; fazendo o que eu amo e lidando
com crianças maravilhosas, amigos incríveis ao meu lado, longe de toda
toxicidade que me sugava e, claro, sem esquecer de mencionar, um
namorado incrível, atencioso e que faz questão de mostrar todos os dias o
quanto não há ninguém nesse mundo que ame mais do que eu e o quanto ele
é capaz de fazer qualquer coisa nesse mundo por mim.
Qualquer coisa mesmo.
Não estou sendo hiperbólica ou nada do tipo, e sim extremamente
sincera. Quando eu digo que ele é capaz de qualquer coisa, estou falando
bastante sério. Como se não passar dias viajando de moto da Carolina do
Sul até o Alasca somente para me encontrar já não fosse uma demonstração
de amor grande demais, John Scott não pensou duas vezes, em uma dessas
minhas reclamações bobas de dizer que não conhecia ninguém para surtar
comigo sobre os romances de época que leio, que seria ele a minha
companhia para surtos e desabafos literários. Fiquei extremamente feliz
quando mencionou isso, mas é claro que havia uma parte de mim achando
que era um blefe qualquer só para me deixar mais animada e menos
rabugenta. Bom, não foi nem perto de um blefe. Nem um pouquinho.
John Stone Scott, um dos integrantes dos The Hurricane Freedom, o
MotoClub mais temido e respeitado do estado, o garoto com pose de bad
boy, portador de língua afiada e de um costumeiro sorriso torto e sacana,
escolheu Orgulho e Preconceito da Jane Austen como o seu primeiro
romance de estreia nesse meu – ou seria nosso? – novo universo particular.
E é óbvio que eu o amei um pouco mais naquele dia por isso.
Foi totalmente impossível não me apaixonar ainda mais pela
excitação que emanava de seus poros só com a possível ideia de
compartilharmos mais uma coisa em comum.
Apesar de ter lido o livro, sou completamente fissurada pelo Sr. Darcy
e não vi outra alternativa a não ser relê-lo junto com John, totalmente
contagiada pela sua animação. Então estipulamos que toda sexta-feira, após
fazermos todas as nossas obrigações, iríamos para o nosso lugar secreto
observar as estrelas e debater sobre os capítulos que havíamos combinado
de ler. Meu namorado é um pouquinho lento, afinal Scott não tem muito
costume com isso, então geralmente ou ele fica atrasado ou ele pede para
que continue a leitura de onde parou junto a mim, nós dois abraçados na
grama para ler em voz alta o romance de Elizabeth e Darcy.
E é exatamente isso que estamos fazendo agora.
O céu sobre nós parece uma infinita tela de arte pincelada por um
manto azul escuro e uma porção de estrelas prateadas e brilhantes, que
sempre parecem piscar de modo enérgico quando estamos aqui, como se se
sentissem ainda mais poderosas ao observarem de longe o nosso amor. Eu
estou deitada entre as pernas de John, o tecido pesado da jaqueta de couro
vermelha está repousado entre meus ombros e o livro está agarrado às
minhas mãos, enquanto recito em voz alta mais uma das cenas icônica entre
um dos meus casais literários favoritos.
O vento beija a minha pele, açoita os fios ruivos do meu cabelo e uma
sensação estarrecedora de felicidade e plenitude se injeta em minhas veias
quando percebo que finalmente, após tantos altos e baixos, tenho tudo o que
preciso para alimentar os meus sonhos e me manter viva bem aqui e agora;
livros e o meu garoto problema favorito.
— Você sabia que você é a própria encarnação da Elizabeth Bennet?
— John indaga assim que termino de ler o parágrafo, e eu o olho sobre os
ombros, com as sobrancelhas arqueadas e o canto da minha boca
extremamente pronto para deixar que um sorriso bobo floresça em meu
rosto. — É sério! Ou a Jane Austen era uma vidente e se inspirou numa
linda jovem ruiva do século XX para compor essa personagem ou a linda
jovem ruiva se inspirou nessa personagem para roubar o meu coração de
uma vez por todas. — Seus olhos límpidos brilham tanto agora que quase
consigo ver meu reflexo através das suas írises. Automaticamente, meu
coração pula dentro do meu peito. — Se bem que eu sou levemente
parecido com o Sr. Darcy também. Acho que essa história foi inspirada em
nós, diabinha.
Solto uma gargalhada contagiante com o seu comentário que, mesmo
sendo maluco, faz sentido. Nós até que temos um pouco de Elizabeth
Bennet e Sr. Darcy dentro da gente.
Enquanto a minha risada vai diminuindo, John puxa o livro das
minhas mãos, me coloca para o lado de forma delicada, senta-se agora em
posição de índio e começa a folhear os capítulos, como se estivesse em
busca de algo. Ainda com os lábios sustentando um sorriso, estico o
pescoço para ver o que ele tanto procura e arregalo um pouco os olhos
quando vejo uma parte do livro grifada.
— Veja só isso... — Ele aponta para o trecho e limpa a garganta,
pronto para dizer o que havia grifado em voz alta. — “ São muitos os meus
defeitos, mas nenhum de compreensão, espero. Quanto a meu
temperamento, não respondo por ele. É, segundo creio, um pouco ríspido
demais… para a conveniência das pessoas. Não esqueço com facilidade
tanto os disparates e vícios dos outros como as ofensas praticadas contra
mim. Meus sentimentos não se manifestam por qualquer coisa. Meu
temperamento poderia talvez ser classificado de vingativo. Minha opinião,
uma vez perdida, fica perdida para sempre. ” — Agora, sim, estou
parecendo uma boba apaixonada ao ver o cara que ama lendo uma frase de
Orgulho e Preconceito com tamanha intensidade. Ah, céus, muito
bonitinho. — Isso aqui é muito Pasha Denise Stratford Bennet.
Me engatinho até ele e, com os joelhos fincados na relva verde, fico
na altura certa para enlaçar seu rosto com as minhas mãos e pressionar com
urgência seus lábios nos meus. É impressionante como as borboletas no
estômago nunca passam. Parece até que elas voltam ainda mais fortes todas
as vezes, prontas para disputarem corridas intensas no meu âmago.
John aperta a minha cintura e me afasta, os lábios incríveis e rosados
erguidos em um sorriso perfeito ao me esquadrinhar gentilmente.
— Eu amo você, sabia? — O modo como ele sopra isso, de uma
maneira agora séria e como se estivesse me contando que guarda um grande
tesouro, me faz ter ainda mais a certeza de que é ele. Sempre foi e sempre
será ele. — Há algo dentro de mim que pulsa e me diz todos os dias que o
nosso amor é inexplicável e insuperável. Que o nosso amor será tão
eternizado nas próximas gerações quanto Elizabeth e Sr. Darcy foram.
Sorrio e aceno positivamente, pois há algo dentro de mim que me diz
exatamente a mesma coisa todos os dias.
— Eu te amo, meu Sr. Darcy — digo, com a maior certeza do mundo.
— Eu te amo daqui até as estrelas. Eu, Pasha Denise Stratford Bennet, te
amo até o infinito.
Meus olhos se enchem de lágrimas no exato momento em que ele me
traz de volta para o seu colo, me abraçando como se eu fosse tudo o de mais
precioso que ele tem. E talvez eu seja mesmo. Mas, quando eu penso que
John vai se afastar, fazer algum dos seus típicos comentários engraçadinhos
quando estamos melosos demais ou qualquer outra coisa, seus dedos
colocam uma quantidade generosa do meu cabelo para trás da minha orelha,
deixando-a livre para que ele possa aproximar seus lábios da região e
sussurrar:
— Meus sentimentos não podem ser reprimidos e preciso que me
permita dizer-lhe que eu a admiro e amo ardentemente.
Outra citação de Orgulho e Preconceito.
Uma que ele havia feito questão de decorar apenas para me
surpreender.
Uma que os seus mais puros sentimentos por mim haviam sido
representados.
Uma que, assim como esse momento, nunca seria capaz de esquecer,
porque o admiro e o amo ardentemente tanto quanto.
Até o infinito.
CARTA DA PENELOPE DIANA STRATFORD

Meu nome do meio é Diana


Mamãe costuma dizer que é porque sempre soube que eu seria
parecida com a princesa. Ela diz que eu sempre serei a sua princesinha
favorita.
Mas, para ser sincera, eu nunca entendi.
A única pessoa extremamente parecida com uma é a minha irmã.
Pasha, sim, é uma princesa. Ela tem o porte daquelas pessoas da
realeza, pois ela é extremamente bonita, glamurosa e usa uns vestidos muito
legais, que com certeza princesas usariam. Além disso, minha irmã tem
sardas pelo seu rosto, cabelos ruivos e um sorriso tão branco que é digno de
comercial na televisão. Minha irmã é alta, patina no gelo e é bem popular
na sua escola. Os garotos costumam se apaixonar por ela no instante em
que a vê.
Mas também quem não se apaixonaria?
Não estou falando isso só por conta da sua aparência. Estou falando
isso porque Pasha tem um coração enorme e faz de tudo para ajudar quem
necessita. Desde que eu descobri a minha doença, minha irmã não sai do
meu lado. Sei que ela deveria estar aproveitando a vida, indo a festas,
conhecendo garotos, mas não é isso que ela faz. Pasha nem ao menos
parece se importar com essas coisas. Ela só se importa comigo e com o meu
bem estar. Ela faz de tudo para manter um sorriso em meu rosto; seja
comprando coisas das quais eu gosto, seja ficando até tarde ao meu lado
assistindo desenhos, ela sempre consegue. A verdade é que não tem como
ninguém não ficar feliz ao lado dela.
Eu a amo tanto por isso.
A amo tanto, tanto.
Ela não é somente a minha irmã mais velha, é a minha parceira e
melhor amiga. Não tenho nenhuma outra. Sinceramente, só ela basta para
mim. Quando estou ao seu lado, não sinto dor ou medo de morrer. Eu só
sinto vontade de aproveitar o tempo que me resta ao lado dela, observando
as borboletas, tomando chocolate quente, escutando-a contar histórias de
contos de fadas ou apenas escutando sua voz.
A voz dela cura.
Ela costuma ter esse dom, só é teimosa demais para perceber que todo
o mundo fica mais colorido só por ela existir.
Bom, pelo menos o meu mundo fica.
Eu sei que sou pequena, sei que não entendo da vida e nem das
escolhas de Deus, mas acredito que vivi o suficiente para saber que fui
abençoada por Ele. Fui abençoada com um lar e com uma família não muito
perfeita, mas que é a minha família, a família que fez e faz tudo por mim.
Fui abençoada não só com uma irmã, mas com uma inspiração também.
Na próxima vida, se eu tiver a chance, gostaria que Deus me fizesse
um pouquinho parecida com ela. Gostaria de ter a sua força, o seu brilho, a
sua luz e o seu jeito de princesa. Gostaria de ter os seus talentos, a sua voz,
o seu amor por livros... Ah, eu simplesmente amo quando ela conta histórias
para mim e as meninas da quimioterapia. Elas ficam tão fascinadas por
Pasha que me dá um pouquinho de ciúmes.
Mas, novamente, o que posso fazer se ela tem esse poder?
Eu não sei o que estou fazendo aqui, nem se o que estou escrevendo
faz sentido, os remédios costumam me deixar um pouco desnorteada e um
pouco fora de órbita, então posso estar falando coisa com coisa. Mas o que
eu quero dizer com isso tudo é: minha vida está acabando, eu sei disso.
Todos ao meu redor estão prontos para me dar adeus. Mamãe chora, papai
grita com os médicos e Pasha parece prestes a desabar bem na minha frente,
só que ela me ama demais e é forte demais para deixar que eu presencie sua
queda.
Se eu tivesse forças, diria que ela é incapaz de cair.
Pasha Stratford é igualzinha ao efeito borboleta que tanto gosto...
Quando ela bater as suas asas e finalmente se der conta da mulher
que é, vai poder influenciar o curso natural das coisas e, assim, provocar
um tufão do outro lado do mundo, porque ela pode. Ela simplesmente pode
tudo.
Pasha, se você encontrar isso algum dia em algum lugar, saiba que eu
te amo e que sempre serei grata por tudo que você fez por mim. E por favor,
não sofra, não chore e nem deixe de viver sua vida por conta da minha
ausência. Minha ausência no mundo terrestre, claro, porque eu sempre
permanecerei com você. No seu coração. Se depender de mim, te protegerei
de lá de cima como você sempre me protegeu aqui embaixo.
Se quer um conselho de uma garotinha de sete anos, viva
intensamente.
Mostre ao mundo a borboleta que há dentro de você.
Bata as asas, seja feliz, deixe que o mundo aprenda a lidar com a sua
liberdade e ame por mim.
Ame a si mesmo e ao próximo.
Nunca deixe de amar.
O amor muda vidas, e o seu por mim mudou a minha.
Em sete anos eu consegui ser feliz por uma vida inteira, Pasha.
Graças a você, minha irmã. E eu te amo para sempre.
Até o infinito.
AGRADECIMENTOS

Mais um livro finalizado e eu me sinto extremamente feliz, realizada


e grata demais por ter escrito essa história linda de superação, amizade,
força, independência e muito amor. Me sinto extremamente grata a Pasha e
ao John, pois em meio a um momento tão difícil e doloroso pelo qual passei
há dois meses atrás, eles conseguiram, com esse jeitinho único deles, me
dar força, me tirar da minha realidade dolorosa pelo menos por algumas
horas e, com toda certeza, conseguiram ser o meu bote salva-vidas quando
eu pensei que tudo estava perdido. Eles não me deixaram desistir deles,
dessa história, da minha escrita, e é por isso que termino esse livro com os
melhores sentimentos possíveis, pois eu consegui fazer tudo que eu queria.
Para mim, o resultado de tanta luta foi lindo.
Também não poderia deixar de mencionar o meu pai. José Pereira, no
primeiro livro dessa série, o senhor presenciou tudo e foi o meu maior
incentivador. No entanto, nesse aqui, em mais um dos nossos sonhos, o
senhor não está mais entre nós para comemorar comigo mais uma
conquista. Mas eu sei que, independentemente de onde esteja, está muito
orgulhoso de mim por eu ter sido forte, por eu ter conseguido terminar isso
aqui mesmo lutando com a dor da perda e por eu estar sempre me mantendo
focada e empenhada. O senhor vai ser para sempre o meu herói, a minha
inspiração e a estrelinha mais brilhante dessa galáxia. Obrigada por sempre
ter sido o meu tudo. Eu te amo hoje, amanhã e vou continuar te amando
pela minha vida inteira.
Mãe, obrigada por ser essa mulher incrível, que não mede esforços
para me ver feliz, que sempre escuta as minhas ideias, que não se importa
em passar horas ao meu lado procurando coisas para o livro, e por estar
sempre aqui, não importa para o que seja. Você é a mulher mais forte,
corajosa e resiliente que eu já conheci. Quando eu crescer, quero ser
igualzinha a você. Meu amor por você é imensurável e nem cabe em
palavras, mas mesmo assim vou dizer que te amo muito só para não perder
o costume.
Também não poderia deixar de agradecer aos meus irmãos, meus
primos e toda a minha família, que é a melhor de todas.
Rary e Carol, as melhores amigas do universo, muito obrigada por
serem o meu alicerce, por sempre estarem ao meu lado e por nunca
deixarem de me apoiar, de me incentivar e de me colocar lá em cima
quando dizem que eu vou rodar os quatro cantos do mundo com o meu
trabalho. Obrigada por serem o meu trio lindo e inseparável há anos. Amo
vocês demais.
E por último, mas não menos importante, claro, eu gostaria de
agradecer todas as minhas leitoras, que chamo carinhosamente de minhas
motoqueiras. Vocês são as melhores do mundo, podem ter certeza disso.
Muito obrigada por permanecerem comigo, por sempre surtarem com
qualquer coisinha que eu posto, por sempre me darem tanto apoio e suporte
e por estarem me ajudando a tornar realidade tudo o que eu sonhei e venho
sonhando. Eu vou ser extremamente grata, tudo o que eu puder fazer para
retribuir tamanho carinho e amor, farei sem nem hesitar.
E se você é novo por aqui e caiu de paraquedas nessa história, muito
obrigada também por ter dado uma chance a mim e ao meu livro no meio de
vários outros tão bons quanto.
Amo vocês! Até a próxima!
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