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Ricardo Wainer.
Psicólogo; Doutor em Psicologia (PUCRS); Especialista e Supervisor Credenciado pela
International Society of Schema Therapy (ISST); Professor Titular do Curso de Psicologia da
Escola de Humanidades da PUCRS; Diretor da Wainer-Psicologia Cognitiva (WP).
Seção Roteiro.
- Introdução
-Terapia do Esquema: Aspectos Teóricos e Técnicos
- Esquemas Iniciais Desadaptativos (EIDs) e Domínios Esquemáticos e
- Processos Esquemáticos
- Modos Esquemáticos
- Repaternalização Limitada e Confrontação Empática
- Terapia do Esquema no Transtorno de Personalidade Borderline
- Exemplo Clínico
- Considerações Finais
- Referências Bibliográficas
Introdução.
Dentre as modalidades clínicas para o tratamento do Transtorno da Personalidade
Borderline (TPB), a Terapia do Esquema (TE) ocupa um lugar de relevância graças aos seus
comprovados resultados tanto no esbatimento das sintomatologias mais graves, quanto na
manutenção por longo prazo dos resultados obtidos no curso do tratamento (Bakos, Galo &
Wainer, 2015; Bamelis, Evers, Spinhoven & Arntz, 2014; Masley, Gillanders, Simpson &
Taylor, 2012).
A TE constitui-se numa modalidade avançada de psicoterapia Cognitivo-
Comportamental (TCC), sendo considerada uma psicoterapia integrativa, por mesclar
elementos de diversas outros sistemas terapêuticos, tais como Gestalt, Teoria do Apego,
Psicanálise, entre outros.
No seu surgimento, a TE focalizou seus conceitos e técnicas justamente para o
tratamento dos transtornos da personalidade. Ela veio com o propósito de suprir algumas
limitações percebidas no uso da terapia cognitiva tradicional com pacientes caracteriológicos
(Beck & Freeman, 1993), principalmente no que dizia respeito à aderência destes pacientes ao
tratamento e à manutenção dos ganhos terapêuticos (Young, 2003).
As inovações oriundas das concepções quanto à gênese e ao desenvolvimento da
personalidade normal e patológica, assim como das premissas quanto ao que é necessário para
a mudança terapêutica, levaram a que diversas outras TCCs tenham absorvido ideias da TE
em suas formulações. Além dos bem estabelecidos resultados da TE nos transtornos de
personalidade, principalmente com Borderlines, Narcisistas e Antissociais, ela também vem
sendo usada com sucesso para o tratamento de outras patologias complexas, como abuso de
substâncias, transtornos alimentares e conflitos de casais (Ball, Cobb-Richardson, Connolly,
Bujosa, & O’Neall, 2005; Ball, 2007; Carter et al., 2013; Cockram, Drummond & Lee, 2010;
Simpson, Morrow, van Vreeswijk, & Reid, 2010). Também tem sido considerada significativa
na explicação da relação entre as vivências infantis e o desenvolvimento de disfunções ou
psicopatologias na vida adulta (Wainer, 2014).
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Quadro 01: Domínios Esquemáticos, Tarefas Evolutivas, Falha na Etapa e Esquemas Iniciais
Desadaptativos Associados
Domínio Tarefa Falha na EIDs Associados
Esquemático Evolutiva Etapa
1o Domínio Aceitação e Rejeição e Abandono, Privação Emocional,
Pertencimento Desconexão Defeito/vergonha,
Abuso/desconfiança, Isolamento
Social/alienação e Indesejabilidade
Social
o
2 Domínio Senso de Autonomia e Fracasso, Vulnerabilidade,
Autonomia e Competência Dependência/incompetência e
Competência prejudicados Emaranhamento
Adequado
3o Domínio Limites Limites Autocontrole e Autodisciplina
Realistas Insuficientes Insuficientes e
Grandiosidade/merecimento
4o Domínio Respeito aos Orientação Subjugação, Auto-sacrifício e Busca
seus Desejos e para o Outro de Aprovação/reconhecimento
Inclinações
5o Domínio Expressão Supervigilância Inibição Emocional, Padrões
Emocional e Inibição Inflexíveis/hipercriticidade,
Legítima Negativismo/pessimismo e Caráter
Punitivo
Adaptado de Wainer, 2016.
comportamentos adictos (das mais variadas ordens), assim como a impulsividade constante e
a raiva descontrolada são frutos do EID de Autocontrole e Autodisciplina Insuficiente gerados
por um ambiente permissivo e pouco estruturado.
O quarto DE é chamado de Orientação para o Outro, e é caracterizado pela
preocupação exacerbada com as necessidades dos outros, em detrimento das suas próprias.
Respeito aos desejos e inclinações pessoais é o que vem a garantir uma transição normal por
este domínio. Novamente pode-se identificar dificuldades dos indivíduos com TPB nesta
dimensão da personalidade, até pela ocorrência típica de situações de amor condicional por
parte dos cuidadores e figuras de afeto com a criança.
O quinto DE é o da Supervigilância e Inibição. Esquemas deste domínio levam à
supressão da expressão espontânea de emoções e sentimentos, direcionando a pessoa a
esforços para cumprir regras rígidas e inflexíveis quanto ao desempenho pessoal. Ambientes
que validem as expressões emocionais de todos os tipos é o que fornece as necessidades
emocionais desta etapa. Embora os pacientes borderlines tenham alguns EIDs deste domínio,
o que mais se percebe da alteração deste domínio neles é a Inibição Emocional, onde o sujeito
não demonstra uma modulação coerente entre os estímulos/situações vivenciados e suas
emoções.
Processos Esquemáticos.
Os PEs são os mecanismos característicos que a pessoa utiliza ao longo do tempo para
perpetuar os EIDs. Tais processos (que compartilham características com os conceitos
psicanalíticos de “mecanismos de defesa” e “resistência”) vão sendo desenvolvidos ao longo
da infância no intuito de promover a adaptação do indivíduo ao seu ambiente, mas acabam
por se tornarem desadaptativos na vida adulta ao consolidarem os EIDs.
Os PEs são fundamentalmente três: Manutenção do Esquema; Evitação do Esquema e
Hipercompensação do Esquema.
A Manutenção Esquemática refere-se a comportamentos e cognições disfuncionais
que acabam por reforçar diretamente um esquema. Em termos cognitivos, pode-se observar o
mecanismo de manutenção por uma atenção tendenciosa, supervalorização e distorção de
informações que são consistentes com o esquema. É o funcionamento mais comum dos
indivíduos. No TPB vemos os comportamentos de escolha de parceiros abusadores, de
relacionamentos instáveis e de colocação em situações de risco como típicos deste processo.
Em termos de cognições, as crenças e pensamentos automáticos de que se será abandonado,
rejeitado ou abusado são manutenções esquemáticas dos EIDs de abandono, defeito e abuso,
respectivamente.
A Evitação Esquemática, por sua vez é o processo de perpetuação dos EIDs através da
evitação de informações/situações/pessoas que possam contrariar as crenças do esquema. O
objetivo é evitar um contato direto com o esquema, uma vez que isto gera experiências de
intensidade emocional elevada, geralmente desconfortáveis. Algumas condutas típicas do
TPB relacionadas á evitação são o uso de substâncias e outras adicções que funcionam como
modos de desconexão com o sofrimento que sentem. O funcionamento robotizado e
desatento/distraído também são formas de evitação de sentimentos negativos.
Compensação Esquemática ou Hipercompensação é um modo de supercompensar os
EIDs, dando origem a comportamentos e cognições radicalmente opostos ao que seria
esperado com base no esquema em questão. Embora aparentemente este processo venha a
diluir uma estrutura já cristalizada, usualmente o resultado é a obtenção de dados que
corroboram o esquema. Um exemplo típico de Hipercompensão nos indivíduos borderlines é
o comportamento altamente emaranhado e exigente com seus pares afetivos que, tenta
compensar o sentimento crônico de abandono, mas que, no final da maioria das situações,
acaba tendo como desfecho a rejeição destes pares.
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Modos Esquemáticos.
Os Modos dos Esquemas (ME) ou Modos Esquemáticos são padrões característicos de
funcionamento do indivíduo (principalmente nas relações interpessoais) que agrupam em si
um certo número de EIDs, bem como de PEs. Deste modo, um ME consiste num estilo global
do funcionamento do sujeito quando em determinada estado de ativação emocional. Esta
ativação funciona como espécie de gatilho para o ME. O Modo Esquemático é o estado
predominante da pessoa num determinado momento e inclui sentimentos, pensamentos,
formas de enfrentamento saudáveis ou não que são vivenciados em determinada situação.
O sujeito pode mudar de modos saudáveis para modos desadaptativos quando suas
necessidades emocionais não forem atendidas e, portanto, quando um EID estiver acionado.
Relevante salientar que, evolutivamente falando, os MEs foram funcionais em algum
ponto do desenvolvimento do indivíduo, como uma estratégia que lhes permitia obter suas
necessidades básicas emocionais. O problema é que este mesmo padrão acaba sendo ativado
sem maiores adaptações ao universo adulto e, portanto, com grandes probabilidades de
desadaptação.
Fundamentalmente se trabalha com dez MEs, divididos em quatro categorias.
Atualmente, este número é bem maior, a partir de novas pesquisas no tratamento de outras
classes de transtornos mentais (Vreeswijk, Broersen & Nadort, 2012). No quadro 2 são
apresentados estes dez principais MEs.
Pode-se reparar que o Modo Adulto Saudável não é típico nestes indivíduos quando
chegam iniciam o atendimento, assim como o Modo Criança Feliz também não. O terapeuta
deverá funcionar como uma referência do “Adulto Saudável” para o paciente, até ele ou gerar
o seu ou vir a fortalecer o que possui. Já a “Criança Feliz” acaba se expressando quando do
combate aos Modos Pais Disfuncionais Internalizados.
A meta do tratamento é que o paciente identifique suas vulnerabilidades (Criança
Vulnerável), bem como as necessidades básicas não atendidas (que são a base do sofrimento
desde os primórdios). A partir disso, ele é psicoeducado a respeitar tais vulnerabilidades, não
as criticando ou ignorando.
Os demais “modos” são investigados em relação aos seguintes aspectos:
- Que situações ativam o “modo”, e qual (is) necessidade (s) está (ão) em pauta;
- Quais as características (pistas) de que o “modo” está ativado (pode ser o tom da voz,
o distanciamento afetivo, o uso de violência etc);
- Quais as lembranças da infância e/ou adolescência onde lembra de agir de modo
similar;
- Que situações da vida atual, além da específica que ativou o modo, também o fazem
ou fizeram.
O paciente é estimulado a abdicar do uso de estilos de enfrentamento mais
desadaptativos, por outros mais funcionais, como aqueles relacionados aos “modos” “Criança
Feliz” e “Adulto Saudável”.
Há uma sequência de passos para o trabalho com os modos, que buscam, desde a
identificação do ME até o trabalho de ressignificação das memórias e a revivência de
emoções reprimidas de situações tóxicas da infância. Tal método de trabalho tem
demonstrado resultados significativos e duradouros (Weertman & Arntz, 2007).
A sequência de passos para o trabalho com os Modos Esquemáticos é:
1. Identificar e dar nome aos MEs do paciente;
2. Explorar a origem e (quando for o caso) o valor adaptativo dos modos na infância ou
na adolescência;
3. Relacionar os modos desadaptativos a problemas e sintomas atuais;
4. Demonstrar as vantagens de modificar ou abrir mão de um modo se estiver
interferindo no acesso a outro modo;
5. Acessar a criança vulnerável por meio de imagens mentais;
6. Realizar diálogos entre os modos. Inicialmente, o terapeuta proporciona modelos do
modo adulto saudável; posteriormente, o paciente representa esse modo;
7. Ajudar o paciente a generalizar o trabalho com modos em situações de sua vida fora
das sessões de terapia.
Considerando o TPB e seus modos mais típicos, o quadro 03 ilustra os objetivos
terapêuticos que o clínico deve buscar atingir com esta população.
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Exemplo Clínico.
Ana tinha 19 anos quando da procura pelo atendimento. Sexo feminino, solteira, tendo
ensino médio incompleto. Era católica de batismo, mas se dizia sem religião. Não trabalhava
formalmente, sendo a responsável pelos cuidados da casa e alimentação dela e de sua mãe.
Era filha única de mãe solteira, sendo que nunca conheceu seu pai biológico. Segundo
sua mãe, ele teria “sumido” após saber da gravides. Ana morava com sua mãe, que tinha 45
anos e que tinha sua subsistência através de uma pensão do avô de Ana (que foi militar). A
mãe de Ana nunca havia trabalhado formalmente, tendo ensino médio incompleto e tendo
problemas de abuso de álcool e drogas desde seus 16 anos de idade.
O tratamento de Ana iniciou logo após a alta hospitalar de sua 3a internação
psiquiátrica por tentativa de suicídio. Nesta última internação, ela tinha tentado suicídio por
inalação de gás de cozinha em sua casa. Sua mãe encontrou-a desacordada e levou-a
imediatamente ao hospital. Suas outras duas tentativas de suicídio tinham se dado por uso
abusivo de medicação antidepressiva e benzodiazepínica (1a tentativa aos 16 anos) e por
abuso de analgésicos e cortes nos pulsos (2a tentativa aos 18 anos). O motivo desta sua
terceira tentativa havia sido uma discussão com a mãe, onde esta, como de costume, lhe
agrediu fisicamente e saiu de casa prometendo não mais retornar. Quando a mãe retornou 3
horas depois, foi que encontrou a filha inconsciente.
Além da queixa relativa às tentativas repetidas de suicídio, também foram elencadas
como expectativas para com o tratamento a diminuição dos acessos de fúria de Ana (que
ocorriam com a mãe e amigas), os comportamentos de ingesta exagerada de alimentos, os
comportamentos autodestrutivos como cortar e queimar os braços e as coxas e bater a cabeça
contra a parede quando contrariada. Episódios de hipersonia também foram citados como
queixas pela mãe.
A primeira entrevista teve a participação de Ana e de sua mãe, sendo que a mãe era
que apresentava, de forma crítica, as queixas em relação à filha e era insistente em dizer que
este atendimento psicológico seria a última tentativa dela para “resolver Ana”, pois que não
aguentava mais ter uma “maluca” em casa e gastar quase todo seu dinheiro com tratamentos e
remédios para a filha. Quando Ana mostrava-se incomodada pelas críticas da mãe, esta
instantaneamente olhava de modo crítico e ameaçado para a filha e dizia que ela deveria dizer
toda a verdade para o psicólogo. Num único momento durante a entrevista, Ana disse que
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seus comportamentos eram fruto das agressões físicas e psicológicas que a mãe lhe fez a vida
toda e também por ter que lidar com as “bebedeiras” semanais desta. Novamente a mãe
colocou toda a responsabilidade em Ana, dizendo que não bebia tanto assim e que só fazia
estas coisas porque Ana a tirava do sério.
Ana era uma moça de boa aparência e denotando pequeno sobrepeso. Vestia-se de
modo um tanto infantilizado para sua idade, utilizando roupas com estampas de personagens
infantis. Sua conduta estava um tanto lentificada (o que foi justificado pelo uso de altas
dosagens de psicotrópicos) e com um afeto entre o embotado e o depressivo. Já a mãe passava
uma impressão de ser bem mais idosa do que sua idade, mostrando-se descuidada na
aparência e asseio pessoa. A conduta desta era agressiva e crítica durante toda a entrevista.
O tratamento ocorreu em clínica privada, sendo combinado uma periodicidade inicial
de três vezes por semana durante as duas primeiras semanas em virtude do risco de suicídio
ainda presente (saiu da internação por alta voluntária – mãe estava descontente com o médico
psiquiatra responsável) e para que se fizesse uma avaliação psicológica das condições de Ana.
Combinou-se com a mãe que durante este período de duas semanas, Ana não deveria
ficar sozinha. Foi explicada para ela a Ana a gravidade da situação e o impacto que o
comportamento crítico e agressivo dela causava na filha, principalmente num momento de
tamanha vulnerabilidade. Esta intervenção gerou um impacto muito positivo na relação
terapêutica com Ana, que se mostrou emocionada e aliviada com a identificação da empatia
do terapeuta por sua condição.
Nas duas primeiras semanas foram realizadas as sessões de avaliação, anamnese e
vínculo onde foram investigadas a história pregressa e história de vida atual da paciente, bem
como foram aplicados os Questionário Young de Esquemas e de Estilos Parentais.
Ana relatou que teve uma infância relativamente tranquila até os 3-4 anos de idade,
pois vivia sendo cuidada por seus avôs maternos. Sua mãe tinha uma vida bastante
desregrada, só voltando para a casa à noite, e geralmente embriagada. Ela dizia ter lembranças
vívidas de seu avô brigando com a sua mãe quando esta chegava em casa.
Informou que seus avôs, principalmente o avô, eram muito bons e cuidadosos com ela.
Como o avô já era da reserva (ex coronel do exército) e a avó, do lar, ambos se concentravam
nos seus cuidados. Lembra de ter sido bem cuidada e não sofrer nenhum tipo de agressão por
parte destes. Entretanto, relata que, desde cedo, sua mãe gritava muito com ela e, algumas
vezes, lembra que ela lhe balançava violentamente quando estava alterada (drogada ou
alcoolizada).
Dos dois até os cinco anos, ficava em casa na parte da manhã e à tarde ia para creche,
a qual lembra de gostar. Quando tinha 4 anos, seu avô faleceu num acidente doméstico (caiu
de uma escada – diz lembrar-se da cena). Isto mudou muito sua vida, pois a partir daí a mãe
começou a agir de modo mais descontrolado, ameaçando a avó de Ana, quando esta não lhe
fornecia o dinheiro que queria ou quando lhe impunha cobranças pelo comportamento
desregrado. No ano seguinte, a avô de Ana falece por complicações de um diabetes.
Ana relata que a partir da morte dos avôs sua vida mudou. Em menos de um ano sua
mãe vendeu a casa dos avôs onde moravam e se mudou para o litoral. Lá a mãe de Ana, não a
manteve em creche, sendo que ela lembra de ficar longos períodos de tempo sozinha em casa,
enquanto a mãe saia. Também lembra de a mãe ficar dormindo por quase toda a manhã e ela
sentir fome, mas não conseguir acordar esta para solicitar alimento.
A partir dos seis anos de idade, Ana ingressou numa escola, onde ficava desde cedo da
manhã até o final da tarde. Lá ela sentia-se bem, pois tinha rotina e alimentação. Referia
também que embora se sentisse segura na escola, tinha sempre muito medo que a mãe não
viesse lhe buscar no final do período, situação que ocorreu algumas vezes.
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Diz que ao chegar em casa da escola, era obrigada a limpar a casa e ajudar a preparar a
janta. Neste momento, era comum a mãe reclamar da vida, dizendo que se ela não tivesse sido
enganada pelo pai de Ana, não teria lhe tido e estaria bem melhor.
Quanto a seu pai biológico, Ana nunca o conheceu, sendo que sua mãe disse que era
um homem que lhe enganou, pois prometeu casamento, mas, na verdade, já era casado e
quando soube de sua gravidez, nunca mais conseguiu ter contato com ele. Ana refere não
sentir nada em relação a este homem e não ter tido nunca vontade de conhece-lo.
Suas figuras mais importantes de apego foram o avô e a avó e, depois, uma empregada
que cuidou dela dos oito até os onze anos de idade.
Ficaram vivendo no litoral até que a mãe teve um envolvimento com um suposto
namorado que era traficante e que lhe roubou muito dinheiro e ainda lhe ameaçou de morte
caso não saísse da cidade. Nesta época, Ana estava com onze anos e acabaram retornando
para a sua cidade natal às pressas. Ana que estava na 6a série e com bom desempenho
acadêmico, acabou perdendo o ano letivo, pela mudança abrupta de cidade e escola.
O desempenho escolar de Ana foi bom até este momento, pois dizia que na nova
escola não era bem tratada pelos professores e que tinha muita dificuldade em fazer amigos.
Seu desempenho então decaiu abruptamente e ela, frequentemente, fingia estar doente para
tentar evitar ir à escola.
Segundo o relato de Ana, sua mãe não atendia suas solicitações de mudar de escola e,
inclusive, chamava-a de burra e preguiçosa; quando não lhe batia para que fosse forçada à
escola.
Ana identifica que suas dificuldades começaram realmente aos treze anos, quando se
envolveu com um grupo de alunos da escola considerado problemático. Começou a fazer uso
de álcool, maconha e tabaco nesta época. Também teve suas primeiras experiências sexuais,
fazendo sexo oral com garotos e garotas. Dizia que fazia isso muito mais para ser aceita e
admirada do que propriamente por desejo ou gratificação na prática. Nesta época o colégio
exigiu que a Ana fizesse avaliação psicológica como condição dela se manter na instituição.
Sua mãe aceitou, mas Ana lembra-se da surra que levou por causa disso, sendo que ficou dias
usando roupas compridas para não mostrar as marcas pelo corpo.
Foi a uma psicóloga que lhe avaliou e disse que ela precisava de acompanhamento
terapêutico e que a sua mãe também. A mãe de Ana ficou revoltada com a profissional e se
negou a dar continuidade ao processo. Como estava mais próximo do final do ano, e as notas
de Ana não estavam tão ruins, o caso acabou passando desapercebido pela escola.
Um dos acontecimentos mais graves relatados por Ana foi quando, aos seus quatorze
anos, foi abusada sexualmente por um outro namorado da mãe, durante aproximadamente
quatro meses. Este sujeito era um homem truculento que conhecia a mãe de Ana desde a
adolescência e que acabou se envolvendo com ela por estarem morando próximos. Ana nunca
gostou dele, pois além de lhe falar obscenidades, também tratava mal sua mãe, e obrigava
ambas a lhe servirem quando estavam juntos.
A primeira vez em que Ana foi abusada, foi numa noite em que sua mãe estava tão
alcoolizada que ficou dormindo enquanto este homem ingressou no quarto de Ana e lhe
estuprou. Imobilizou-a e disse que sabia que ela não era mais virgem e iria ser também
“mulherzinha” dele. Disse-lhe que sua mãe não acreditaria nela, pois ele já “tinha feito a
cabeça” dela quanto a possíveis intenções sexuais de Ana para com ele. E mais, que se ela
falasse algo, ele se vingaria das duas.
A partir daí, Ana diz que começou a beber e usa maconha todos os dias e também a ter
as primeiras vontades de se cortar. Dizia que ao se cortar ou se queimar com cigarro, sentia
um alívio e um certo prazer.
Nunca contou das violências para a mãe, pois acreditava que a mesma iria confiar
mais no namorado do que nela.
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As violências sexuais cessaram quando a mãe de Ana traiu este namorado com outro
homem e ele acabou por abandoná-la.
O funcionamento geral de Ana, no início do tratamento, era oscilante. Ora estava
calma e distante, ora estava agitada, irritada e crítica em relação a sua vida, a mãe ao
tratamento. Em termos de metas terapêuticas só dizia que queria se sentir bem e que os
amigos fossem mais compreensivos com ela.
Tinha alterações alimentares importantes, enquadrando-se num quadro de bulimia
nervosa. Também tinha alterações em seu sono, sendo que tinha insônia inicial significativa,
com a qual ela lidava utilizando maconha ou benzodiazepínicos.
Durante o tratamento, identificaram-se dezesseis EIDs, sendo os mais intensamente
ativados os de defectibilidade/vergonha, abandono, privação emocional, abuso/desconfiança,
autocontrole e autodisciplina insuficientes, auto sacrifício e caráter punitivo.
Estes EIDs, associados a todos os dados da história clínica, levaram o terapeuta aos
diagnósticos de Transtorno de Personalidade Borderline, Transtorno Depressivo Maior
recorrente e Bulimia Nervosa.
A abordagem terapêutica adotada foi a dos Modos Esquemáticos, sendo que,
gradualmente foi possível levar Ana a perceber seu modo Criança Vulnerável (criança
solitária, abandonada e abusada), seu ME Criança Zangada (que surgia principalmente com
seus namorados, amigas e terapeuta) e também seu modo de Enfrentamento Desadaptativo
Protetor Desligado e Hipercompensador de ataque (quase que exclusivamente com sua mãe).
O ME “Mãe Punitiva” era expresso através das condutas auto lesivas, bem como as suas
críticas quanto a pessoa inaceitável que ela se considerava ser.
A maior dificuldade na relação terapêutica foi a paciente entender seu funcionamento
como resultado das falhas de cuidados que teve ao longo de sua infância e adolescência.
Sistematicamente, Ana tendia a proteger sua mãe quando o terapeuta a levava a identificar as
inúmeras e graves falhas nas condutas de cuidados de sua mãe. Dizia, então, que ela só fez e
fazia os erros por não saber fazer melhor. Ana também tinha muitas dificuldades em acolher
suas necessidades emocionais básicas não supridas, considerando isso fraqueza. Comumente
representava as colocações do terapeuta a ela como críticas ou formas de rebaixamento. Neste
momento seu ME Criança Zangada surgia e ela explicitava que não podia confiar no terapeuta
e em ninguém, pois as pessoas não lhe entendiam e nem lhe davam valor. O terapeuta, por sua
vez, desculpava-se se tinha dito algo que ela tinha entendido como agressão ou crítica,
mostrando que sua verdadeira intenção era demonstrar que entendia seu sofrimento, mas que,
ao mesmo tempo, tinha de ajudá-la a repensar sua forma de lidar com suas dificuldades
(Confrontação Empática).
O tratamento se organizou a partir de uma conceitualização de caso que é ilustrada
pela figura 01.
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Criança Vulnerável
(abandonada e abusada)
Protetor Desligado
- Medo e tristeza
- Uso de álcool e drogas
- Desamparo
- Comer compulsivo
- Hipersonia
- Desligada e distraída
Criança Zangada
Raiva e desespero quando criticada
ou rejeitada
Ataques verbais quando abandonada
Hipercompensador - Ataque
-
- Agressões verbais e físicas a
- Medo e tristeza
mãe
- Desamparo
- Conduta sedutora e de
Mãe Punitiva desprezo em relação aos
História de abusos e invalidação outros
Automutilações, tentativas de suicídio
Auto criticismo em relação aos maus
tratos dos outros
-
- Medo e tristeza
- Desamparo
Considerações Finais.
A TE trouxe avanços consideráveis, tanto em termos do entendimento da dinâmica da
personalidade, quanto no desenvolvimento de técnicas inovadoras e empiricamente validadas
para algumas das condições clínicas mais complexas e desafiadoras, como é o caso do TPB.
Os recursos teóricos dos EIDs, dos Modos Esquemáticos e dos Processos de
Perpetuação dos Esquemas, associados a novas e poderosas abordagens técnica
(Reparentalização Limitada e Confrontação Empática) fazem com que a TE seja uma das
psicoterapias de eleição para os pacientes borderlines.
O treinamento do profissional permite a aplicação destes recursos teórico-técnicos de
forma homogênea em grupos bem treinados. Entretanto, o sucesso terapêutico somente é
plenamente atingido quando há o acolhimento empático e uma disposição quase inesgotável
do psicoterapeuta em “mergulhar” na história de vida do paciente. Porque assim conduz-se o
sujeito a ressignificar memórias de sua infância e adolescência e, então, conseguir ter uma
percepção mais adulta e emocionalmente liberta das necessidades emocionais que acabaram
lhe sendo vetadas no passado, mas as quais podem ser supridas por conexões e
relacionamentos emocionais significativos na vida atual.
O desafio é o profissional manter a consciência das suas ativações esquemáticas e,
assim, manter continuamente o processo de reparentalização do paciente.
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