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Copyright © 2021 Crys

Carvalho
Esta é uma obra de ficção.
Nomes, personagens, lugares
e acontecimentos descritos são
produtos de imaginação do
autor. Qualquer semelhança
com nomes, datas e
acontecimentos reais é mera
coincidência.
Capa: Mirella Santana
Imagem: ©IgorVetushko
/depositphotos.
Revisão: Bárbara Pinheiro
Leitura Crítica: Danielle
Barreto
Todos os direitos reservados.
São proibidos o
armazenamento e/ou a
reprodução de qualquer parte
dessa obra, através de
quaisquer meios — tangível ou
intangível — sem o
consentimento da autora.
A violação dos direitos autorais
é crime estabelecido pela lei nº
9.610/98 e punido pelo artigo
184 do Código Penal.
Edição Digital ǀ Criado no
Brasil
1º Edição
Fevereiro de 2021
Sinopse
Nota da autora
Agradecimentos
Playlist
Prólogo
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Epílogo
Romeu e Letícia tornaram-se
arqui-inimigos no momento que seus
olhos se encontraram, mas entre uma
briga e outra, acabaram descobrindo que
tinham uma química perfeita.
Ele não estava procurando o
amor, na verdade, pensava que o
sentimento machucava as pessoas e por
isso se escondeu atrás de uma máscara
de rebeldia.
Ela queria se sentir amada
depois de tanta dor e abandono pelas
pessoas que deveriam acolhê-la.
Agora, eles precisam encontrar
uma maneira de provar que o que sentem
um pelo outro é mais forte do que
qualquer coisa, mesmo que um deles
esteja do outro lado do país e tenha feito
uma promessa que envolve partir o
coração de alguém.
Um amor para Romeu é um Spin-off
de Um amor de presente e não necessariamente
você precisa ler, mas esteja ciente de que aqui
você encontrará spoilers do referido livro. Os
personagens Leandro e Natasha, citados ao
longo da história são protagonistas do meu
conto Uma chance a mais, disponível na
antologia Música em contos 2, publicada em e-
book na Amazon.
Antes que embarque nesta viagem,
gostaria de lembrá-lo de avaliar a história no
Skoob, Amazon e compartilhe suas impressões
nas redes sociais marcando @eucryscarvalho.
Agradeço desde já, a sua opinião é muito
importante para mim.
Boa leitura!
Quero agradecer, acima de tudo, a
Deus, pelo dom maravilhoso; à minha família
por compreender que escrever é o que me
mantém viva; depois aos leitores, que se
permitiram conhecer a minha escrita,
mergulhando de cabeça nas histórias e
indicando por aí, aquecendo meu coração; os
ig’s parceiros que ajudam a espalhar a “palavra”
dos meus personagens pelo mundo;
especialmente às minhas amigas: Ari, Lucy,
Vall, Ray, Bah, Gisa, Pry e Tali, obrigada por me
ouvirem e sempre terem uma palavra de
incentivo quando estou a ponto de desistir.
Obrigada e até a próxima aventura!
Para ouvir a playlist de “Um amor
para Romeu” no Spotify, abra o app no seu
celular, selecione “buscar”, clique na câmera e
posicione sobre o code abaixo.

Ou clique aqui.
Romeu, 11 anos
— Quero o divórcio, Ariel!
Espero ter uma carreira nacional, você
quer me ver cantando em barzinhos e
abrindo shows locais a vida inteira? —
Ouvi mamãe gritar do quarto e me
encolhi ao lado de Ana Júlia, que
brincava tranquilamente com seus
bloquinhos coloridos no tapete de
atividades da sala. — Fiquei grávida
quando era apenas uma adolescente e
sinto que estou sendo puxada para o
buraco a cada ano que passamos neste
casamento sem amor.
Claro, eu sabia o significado de
cada uma dessas palavras. Meus pais
iam se separar, lembro quando, no ano
passado, os pais de Ivan, meu colega da
aula de música, se divorciaram e ele
ficou se gabando que agora teria duas
casas para morar.
Só que eu não vejo dessa forma,
papai e mamãe nunca foram aquele casal
super-romântico que vemos nos filmes,
no fundo, sempre soube que havia algo
errado com eles, pois discutiam muito,
mas nunca pensei que pudessem se
separar. Embora, nos últimos tempos as
brigas estivessem cada vez mais
frequentes, por mais que papai tentasse
evitar o conflito. Depois comecei a
reparar em como meus avós paternos se
tratavam, comecei a questionar o que era
realmente esse tal de amor.
— Não fala besteira, Carla. Nós
temos dois filhos para criar. — Meu pai
usa seu usual tom apaziguador, mas
parece tenso com o que a esposa acabou
de dizer. — Conseguiu muito bem
conciliar a carreira com a nossa vida
esses anos todos, qual o problema
agora?
Há uma pausa enorme que me faz
pensar se não é melhor ir até lá fingir
que a minha irmãzinha precisa de algo e
interromper esse conflito, então uma
resposta ríspida vem, assim que começo
a caminhar, sugerindo que devo ficar
quieto no meu canto.
— O problema? Ainda tem
coragem de me perguntar isso? — A
mágoa dela parece transbordar por
todos os lados.
Nosso apartamento é pequeno, a
porta do quarto deles está aberta e
consigo ouvir até a respiração pesada da
minha mãe, aposto como seu rosto deve
ter aquele tom vermelho de quando
apronto alguma coisa ou a desobedeço.
Essa discussão começou assim que o
papai chegou do trabalho, há poucos
minutos, e não entendi o real motivo
ainda, mas o que desencadeou tudo foi o
envelope amarelo que o Jairo,
empresário da minha mãe, trouxe mais
cedo.
— Você pode ser conformado
com essa vidinha de merda, tocando em
eventos ou lecionando para as crianças
na periferia, mas acha que eu me sinto
feliz cantando para um pequeno público,
quando o meu potencial poderia ser bem
mais explorado? — Fico intrigado, tinha
certeza de que minha mãe era contente
cantando, mesmo que reclamasse à beça
quando era contratada para se apresentar
em restaurantes chiques aqui da cidade.
— Não seja injusta comigo! —
A resposta controlada de papai ecoa,
deixando-me um pouco confuso sobre
qual lado escolher, já que mamãe parece
estar sofrendo do mesmo jeito. — Nunca
a impedi de fazer o que gosta, Carla.
Quer participar de grandes concursos e
mostrar seu talento para o mundo? Tudo
bem, vá, você sempre foi livre.
— Uma falsa liberdade, diga-se
de passagem. — Escuto, atento, seus
argumentos. — As coisas são muito
difíceis para mim, Ariel. Quando as
pessoas sabem que tenho dois filhos, já
me olham de cara feia e não querem me
contratar para shows mais relevantes,
com medo de eu furar com eles.
— Sinto muito, eu sei que
vivemos em uma sociedade machista e
com oportunidades desiguais para
homens e mulheres, mas não desconte
suas frustrações em mim. — Ele faz uma
pausa e depois continua: — Me esforço
ao máximo para não te sobrecarregar
com as crianças, porque sei que nós dois
somos os responsáveis por elas e não
apenas você.
— Mas me sinto sufocada, Ariel.
— A voz embargada pelo choro me
deixa com a sensação de que estou
perdendo a minha mãe. — Você se
contenta com pouco, já eu... quero alçar
voos maiores.
— Sou feliz tendo sonhos que
estão dentro do meu alcance, Carla, e
sempre soube disso.
— É tão triste. — Seu lamento
parece sincero. — Poderíamos ter um
futuro lindo, se nos mudássemos para
São Paulo. Pense nas oportunidades que
o Romeu poderia ter com todo aquele
talento e a Ana Júlia, imagine o leque de
opções que teríamos para ela.
— Achei que concordávamos em
criar as crianças perto dos meus pais e
numa cidade menos agitada. — Lembro-
me da fazenda dos meus avós no interior
que é o nosso refúgio nos feriados,
minha irmãzinha e eu amamos correr
pelo gramado verdinho e tomar banho de
cachoeira, mas mamãe sempre pareceu
emburrada quando estamos lá.
— Nunca quis que meus filhos
tivessem oportunidades limitadas. Tá
vendo, Ariel... Nossos sonhos são tão
divergentes, quero voar e você quer ter
os pés fincados no chão. — Seu tom é
pesaroso. — Não dá mais para continuar
assim, quero o divórcio, acho que é a
melhor solução.
— Está tentando dizer que
vamos nos separar, porque eu não quero
largar tudo que construímos aqui e me
mudar para uma cidade como São Paulo,
com duas crianças? — Meu pai parece
muito magoado com a decisão dela. —
Carla, em todo esse tempo apoiei seus
sonhos, sei o quanto é talentosa e a
incentivei a correr atrás da sua carreira.
Mas uma coisa é você fazer uma turnê
pelo país e eu ficar aqui, na segurança
da nossa casa com as crianças, outra
bem diferente é largar tudo isso, meu
trabalho, pegar nossos filhos e, sem
nenhum planejamento, desembestarmos
para uma cidade tão longe da nossa
família para tentar a sorte. O que você
tem na cabeça?
— Sabe que não é a única razão
para eu querer me separar. — Ouço um
soluço abafado que presumo ser da
mamãe. — Acha que Romeu com o
talento que tem, vai querer passar a vida
toda trancafiado nesta maldita cidade?
Ele tem onze anos, Ariel, e já conquistou
tanto... está na hora de dar o próximo
passo, um conservatório seria perfeito e
Jairo já disse várias vezes que tem
contatos que podem nos ajudar. Ele é
muito habilidoso, mas você o limita
demais.
Sinto um arrepio pelo corpo,
quero muito seguir carreira na música, é
algo que está enraizado como se
fôssemos uma coisa só, mas tenho medo
do quanto mamãe cria expectativas em
torno disso.
— Não vamos ter essa conversa
outra vez. — Ouço alguns xingamentos
vindos da mulher e me angustia ser uma
das razões dos frequentes
desentendimentos dos meus pais. — Por
favor, segure sua língua, as crianças
estão na sala.
— O Romeu vai se cansar dessa
orquestra de fundo de quintal, quando
perceber que pode ir mais longe. Ele
não tem um futuro nesta cidade idiota!
— Não é você quem decide,
aliás nenhum de nós pode fazer isso. —
Papai nunca me forçou escolher, apesar
de ser um ótimo músico, sempre
explicou que se eu fosse mesmo fazer
isso, tinha que vir do meu coração e não
por pressão de qualquer pessoa. — Ele
tem muita vida pela frente e o que
precisa fazer é estudar, ter amigos ou
qualquer coisa que os garotos normais
fazem.
— Acha que Mozart teria sido
considerado o maior nome da história da
música clássica, se os pais dele
tivessem deixado que ele vivesse como
um garoto “normal”? Com certeza, não.
— A determinação contida em cada
palavra me
deixa tenso.
— São casos diferentes e
vivemos tempos modernos, em que não
precisamos sacrificar a infância de uma
criança para que ela possa ser um
profissional de sucesso no futuro. —
Tenho uma pontada de orgulho do que
ele diz.
Meu pai frequentemente diz que
devo aproveitar a infância, enquanto
mamãe insiste que devo praticar até a
exaustão para ser um músico melhor.
Quando os meus dedos estão cheios de
calos, os ombros doendo e exaustos de
tanto manusear o arco, sei que ele tem
razão, mas jamais verbalizei isso, por
medo de magoar mamãe, que se dedica
demais para que tenha os melhores
professores, aprenda as mais diversas
técnicas, mesmo que para isso tenhamos
que, uma vez ao mês, passar de três a
seis horas na estrada até a cidade
vizinha.
— Não estou desperdiçando meu
tempo com esse garoto para ele se
apresentar em eventos dessa gente
petulante e juro que não vou aguentar
ver isso acontecer com ele, Ariel. Não
quero que Romeu seja um fracassado
como eu ou você, está me ouvindo? —
Parece haver muito mais que só rancor
em seus posicionamentos.
A compreensão do que ela disse
vai acontecendo aos poucos e sou
dominado por um sentimento de revolta
indescritível. Realmente acreditei que
ela era minha maior fã. Dedilhar as
notas no Cello e emocionar as pessoas é
uma das coisas que mais amo fazer na
vida, a música era uma parte muito
importante de mim.
Ouvindo essa conversa, me dou
conta de que sou um pouco como o
papai, que adora levar essa arte para
todas as classes sociais. Lógico que
sonho com grandes plateias, com
viagens e prêmios internacionais, só que
quero ir devagar e não acelerado como a
mamãe deseja.
A ambição desmedida dela pelo
meu sucesso parte meu coração de uma
forma inexplicável. O tempo todo me
orgulhei de ter o seu apoio, mesmo
quando ela me conduzia com mãos de
ferro no estudo das partituras, mamãe
sempre esteve nas primeiras filas em
todas as minhas apresentações com os
olhos brilhando, emocionada, e agora
tudo está confuso demais. Parece que, se
eu não tiver sucesso, serei um filho
menos amado e isso me incomoda muito.
— Não diga uma coisa dessas
nem brincando, Romeu é apenas uma
criança, não podemos exigir tanto dele.
— Papai retorna ao seu tom
apaziguador. — Vamos devagar com
isso!
— Tudo bem, Ariel, faça como
achar melhor, só não venha chorar
depois pelo leite derramado. — Ela
parece muito certa do que fala.
A discussão tomou um rumo
inesperado e mamãe percebe, então usa
um novo argumento para justificar o
motivo de querer o divórcio:
— Você nunca me amou, estou
cansada de ficar com migalhas. Tenho a
sensação de que até a música é mais
importante que eu na sua vida, nossos
filhos têm mais da sua atenção que eu —
reclama, ressentida. — Estou cansada
de ser sua sombra, de ter que cuidar
desta casa, das crianças, de tudo para
que a sua vida seja perfeita e você nunca
mover uma palha por mim.
— Nunca exigi nada disso,
sempre deixei bem claro que as crianças
eram responsabilidade nossa, tudo
dentro deste apartamento diz respeito a
nós dois e não apenas a mim e, quanto a
amor, você sempre soube a razão de
termos entrado neste casamento. —
Agora há muita mágoa nas falas de papai
também. — E se para você “mover uma
palha” significa que tenho de largar tudo
que já conquistamos e ir para uma
cidade estranha tentar a sorte, saiba que
não vai ter isso de mim, Carla.
— Você é só um frouxo que não
quer ficar longe do papai e da mamãe.
— A acusação vem sem pestanejar.
— Meus pais estão velhos e já
moro longe o suficiente para lhes causar
preocupação, agora se não dá a mínima
para os seus, isso não é problema meu.
— A impaciência dele é nítida agora. —
Quer me pintar de vilão? Pode fazer isso
para sua família e amigas, só segure sua
língua solta dentro desta casa, as
crianças estão ali na sala, ouvindo tudo,
elas não são culpadas das nossas
frustrações.
— Não quer ir porque aqui sua
vidinha é confortável, tem tudo na mão,
seus alunos naquela escola da periferia,
seus eventos nos fins de semana que
rendem um dinheiro para que viva
razoavelmente bem, seus pais a alguns
quilômetros de distância, a chata da sua
irmã ali do outro lado da cidade e sua
família de comercial de margarina te
espera aqui todos os dias. — Uma
gargalhada maldosa ecoa pela casa e
desconheço a mamãe por um momento,
nunca achei que ela fosse capaz de dizer
coisas tão feias. — Olha só para você,
um cara com tanto potencial sendo
desperdiçado neste fim de mundo. Tudo
vem fácil demais para você, eu não me
casei para partilhar sonhos tão
pequenos, já abri mão de coisas demais
e precisa pensar em mim ao menos uma
vez nessa sua maldita vida perfeita.
— Ao menos está se escutando?
Acha que não tive que fazer nenhum
sacrifício por esse casamento, pela
nossa família ou pela minha carreira? —
O homem fala mais alto que o normal,
me assustando, eu jamais o vi agir assim
em nenhuma discussão anterior.
— Se refere àquela namoradinha
da adolescência? Ela nunca ficaria com
um “banana” feito você. — Existe tanta
raiva no modo como ela fala, que desejo
por um momento ter os três anos de
Aninha para não saber o que tudo isso
significa. — É verdade que sempre
soube que não me amava, Ariel, mas
achei que ia conseguir te fazer me
enxergar, depois de tudo que fiz e faço
pelos nossos filhos, que quando
estivéssemos morando em uma cidade
decente você a esqueceria, mas isso
nunca vai acontecer, não é?
— Você está sendo cruel. — A
voz dele soa muito baixa.
— Quer saber, Ariel? Vá se
foder! — ela esbraveja e a garotinha ao
meu lado faz um biquinho de choro, mas
consigo distrai-la agitando um chocalho
que prende sua atenção facilmente.
O silêncio dos meus pais é
esquisito e me deixa com muito medo do
que virá a seguir. Aninha chama a minha
atenção para pegar uma peça que caiu
debaixo do sofá, nenhum deles parece
ter percebido que baixei o volume da
tevê quando a discussão começou.
Então, mamãe volta a falar, em um tom
mais brando:
— Preciso pensar na minha
felicidade, no sonho de ser uma cantora
reconhecida nacionalmente, enquanto
ainda sou jovem. — E é exatamente
neste momento que percebo que nunca
mais seremos uma família. — A melhor
solução é ir cada um para um lado,
assim você continua aqui com essa
vidinha e eu vou para São Paulo, me
dedicar à minha carreira.
— Já tem tudo decidido? Os
nossos filhos como ficam nessa história?
— As perguntas do meu pai são as
mesmas que me faço.
Como será a minha vida e de
Ana Júlia? E as minhas aulas de
música? Quem vai me levar para as
aulas mensais na cidade vizinha, com o
professor famoso que ela mesma pagou?
Em qual lugar morar? Sinto uma coisa
horrível no peito, engulo o nó em minha
garganta e passo as mãos pelos cabelos
castanhos-dourados da garotinha
distraída alheia ao fim eminente do
casamento dos nossos pais. Espero pela
resposta, que demora a vir.
— Não me olhe assim, não estou
abandonando as crianças e eles sempre
foram mais apegados a você do que a
mim. — A raiva começa a crescer por
cada célula do meu corpo enquanto ela
continua: — Nosso casamento foi um
erro e está mais do que na hora de
admitirmos isso. Acabou, Ariel! Eu
tenho um ótimo contrato com uma
gravadora, Jairo garante que as coisas
vão mudar depois que gravar esse single
e não posso mais adiar isso.
— Existe alguma chance de você
ficar conosco, Carla? — meu pai insiste,
em um tom que me faz querer abraçá-lo
apertado. — Nós podemos fazer isso
dar certo, Carlinha, pela nossa família,
pelos nossos filhos. Já fizemos isso uma
vez...
Tenho pena do meu pai, é quase
como ele se sentisse culpado por mamãe
ir embora.
— E deu errado, enfiamos os pés
pelas mãos e fiquei grávida do Romeu.
Nos casamos pela responsabilidade que
caiu em nosso colo, Ariel, e não por
amor. — Sua revelação tão crua, faz
meus olhos se encherem de lágrimas.
Sempre me orgulhei de ser a
razão para eles estarem juntos, mas
parece que me contaram uma história
fantasiosa.
— Nós tentamos, Carlinha. —
Ouço um longo suspiro, que acredito ser
do papai. — Eu só não quero abrir mão
da nossa família.
— Não precisa fazer isso, Ariel
— mamãe diz, com a voz embargada. —
Romeu e Ana Júlia continuam sendo
seus filhos e meus também... Sei que
sempre acabo falando o que não devo e
estou cansada de brigar por coisas que
eu acredito serem o melhor, mas você
discorda. Acha que não merecemos ser
felizes e voarmos livremente por aí?
— Sim, acho que sim. — A voz
dele sai arranhada, talvez porque assim
como eu, ainda está magoado por tudo
que ela disse.
— Vejo seus olhos tão opacos e
me sinto culpada por termos apagado o
brilho um do outro. — Deixo Ana
entretida com seus brinquedos e
caminho devagar na direção da porta
aberta, me sento ao lado dela, mesmo
correndo o risco de ficar de castigo
mais tarde, preciso escutar tudo que
conversarem. — Forcei a barra e, como
o homem íntegro que você sempre foi e
deixou o seu senso de responsabilidade
falar mais alto, nos casamos, mas nunca
consegui ter o seu coração e não é justo
com nenhum de nós.
— Eu fico com as crianças. — A
afirmação do papai me faz soltar a
respiração, devagar.
A possibilidade de ir embora
para outra cidade, longe dos meus
amigos, dos meus avós e do papai é
aterradora, não consigo sequer imaginar
uma coisa dessas.
— Tem certeza? — Fico com a
impressão de que há uma pontada de
alívio contida na pergunta dela.
— Até você se estabelecer, pelo
menos — ele continua, com a tristeza
nítida em sua voz. — É o tempo que se
adaptem a essa vida nova, sempre fui
bom em me virar com eles, acho que
você merece ao menos a chance de ter
seus sonhos realizados, Carla, e isso é o
mínimo que posso fazer depois de tantos
anos juntos.
Não consigo respirar direito,
parece que meus pais nunca se amaram
de verdade e só se casaram por minha
culpa, agora vão se separar. Abraço os
joelhos, encostando a testa neles,
começo a chorar, em desespero. Fecho
os olhos. Nem sei por quanto tempo fico
assim, mas quando percebo, estou sendo
carregado pelo papai até o meu quarto e
colocado na cama.
— A mamãe vai embora? —
sussurro, segurando a sua mão quando
ele arruma o cobertor em mim.
Sua resposta custa a sair, como
se estivesse tentando encontrar qualquer
desculpa, seus olhos parecem perdidos
em algum lugar muito distante.
— Sim — diz, por fim,
sentando-se na beirada do colchão,
passando os dedos pelos próprios
cabelos que caem sobre a testa.
— O que será da gente papai? —
indago, quando nossos olhares se
cruzam, ele parece tão perdido quanto
eu, seus olhos marejados o entregam.
— Vamos sobreviver a isso
juntos, pirralho, prometo! — garante,
bagunçando meus cabelos e acredito,
porque o meu pai sempre cumpre suas
promessas.

Letícia, 12 anos
Afundo no assento do carro,
evitando olhar para o banco do
motorista ou do passageiro, coloco os
fones, dou play na música e aumento o
volume no máximo, qualquer coisa é
melhor que ouvir o silêncio
constrangedor que se instala entre nós.
Escuto longe alguém dizer um “Vamos
para casa” e sou invadida por uma
sensação horrível de abandono.
Eu odeio ir para casa, aliás, não
suporto essa palavra. Houve um tempo
em que adorava, contudo, nos últimos
anos tem sido cada vez mais difícil fazer
isso.
Não sei se posso dizer que é
sorte, mas mamãe trabalhou muito bem
para me manter com a “mente ocupada”,
então, além da escola, tenho aulas de
natação, inglês, teatro e balé, além dos
encontros semanais nas tardes de quinta-
feira com a psicóloga. Ela acha que
todas essas coisas são capazes de me
distrair do momento que estamos
vivendo, só que não está funcionando.
Fecho os olhos, apertando minha
mochila contra o peito, hoje o dia foi
daqueles.
Sexta costumava ser o meu dia
preferido da semana, porque significava
que mamãe, tia Isis e eu assistiríamos a
algum filme melodramático e no
empanturraríamos de pizza com
refrigerante, sem pensar nos danos à
saúde, no que chamávamos de “noite das
meninas”. Agora é uma lembrança
constante de que estamos perdendo uma
parte muito importante nossa a cada dia
que passa.
Os olhos vão sendo inundados
pelas lágrimas com a simples
lembrança, não quero chorar na frente
desses dois. Na maior parte do tempo,
tenho uma horrível sensação de solidão
e rejeição, se estou em casa, não saio do
quarto; se estou fora dela, fico
deslocada e, às vezes, tenho vontade de
morar com a minha tia, porque na sua
companhia é o único lugar que me sinto
parte de algo. Já tive algumas amigas da
mesma faixa de idade que eu, mas com
todos os problemas que venho
enfrentando, a minha frequente falta de
humor junto às respostas ríspidas, todas
elas se afastaram de mim.
Sobrou uma única pessoa que me
aguenta — além da tia Isis, é claro! —,
Breno, que é um garoto muito esquisito,
segundo o meu pai, e destoa muito da
patricinha que aparento ser. O que no
fundo é apenas uma desculpa para o
preconceito velado dele pelo garoto de
pele preta e “trejeitos suspeitos”, como
ele mesmo diz de forma irônica. Não
devia me importar com sua opinião
irrelevante sobre a única companhia da
minha idade que tenho nos últimos
meses, mesmo assim, frequentemente
discutimos feio por suas piadinhas sem
graça sobre o meu amigo.
Voltando a Breno, ele é mais
velho que eu, um ano, tem treze anos e
nos conhecemos na academia de balé,
desde então, nos tornamos inseparáveis.
Pego meu celular no bolso da frente da
mochila e digito uma mensagem rápida.
“Conseguiu carona com o
Nando?” Ele acha que não sei o
verdadeiro motivo de estar enrolando
até tarde nos treinos.
“Obviamente. E você? A
Sararaca veio com seu pai?” Olho para
o banco do passageiro, exibindo um
sorrisinho de canto ao olhar para o
protótipo de Barbie conversando,
animada, com o meu pai.
“Por acaso, a Bruxa Má perderia
a oportunidade de deixar o meu dia
pior?” Solto um suspiro irritado,
agradecendo a música dos fones que
agora abafa totalmente a voz dos dois.
“Seu pai quer ser tão certinho,
mas faz uma cagada dessa com a dona
Adriana. Desculpa, amiga, não dá para
defender!” A frase é acompanhada de
vários emojis indicando raiva.
Não dá mesmo, olho para a mão
de papai pousada na perna da menina
que é mais velha que eu uns poucos anos
e sinto nojo. Como ele pode fazer isso e
achar que é normal?
“Você vai ao hospital à noite?”
O celular vibra, me fazendo desviar o
olhar.
“Vou sim, tia Isis passa lá em
casa às sete e vamos passar o fim de
semana juntas.” Lembro-me que ela tem
se esforçado demais para fazermos
coisas divertidas e fico esperando
ansiosa pelos dias longe do ambiente
tóxico que se tornou o lugar que antes
era o meu preferido do mundo.
“Vou te deixar em paz, nos
vemos na segunda. Beijokas.” Ele se
despede.
Olho pela janela, o mundo
parece tão feliz e cor-de-rosa, mas para
mim tudo é um enorme borrão em escala
de cinza, limpo a lágrima que escorre
antes que possa evitar. Minha mãe tem
câncer, está morrendo dia após dia em
uma cama de hospital, meu pai trouxe a
amante para nossa casa e as pessoas
continuam sorrindo. Qual o problema
com o Universo?
É impossível acreditar em uma
felicidade real, quando se espera a
qualquer momento uma notícia
comunicando a morte da pessoa mais
importante da sua vida. Não consigo
pensar positivo e ver uma luz no fim do
túnel, tudo que vejo é tristeza e nada
além disso.
Nós duas aproveitamos muito
cada um dos momentos que passamos
juntas, fizemos coisas bobas, como
tomar banho de chuva, guerra de
travesseiros, brincamos e rimos
bastante, mas não achei que isso
significava que ela seria consumida por
uma doença cruel, mesmo sendo tão
jovem. No começo, quando soube sobre
a doença, eu acreditava que haveria uma
cura milagrosa e realmente aconteceu,
só que durou apenas dois anos e agora já
perdi todas as minhas esperanças.
Mamãe é o meu mundo, todas as
escolhas que já fiz foram influenciadas
por ela, em vários momentos durante o
dia me pego pensando em como será
viver em um mundo onde seus sorrisos,
afagos e canções de ninar serão apenas
uma linda lembrança. Não consigo
sequer aceitar essa possibilidade.
Chegamos em casa e
rapidamente corro para o quarto,
ignorando a pergunta do meu pai sobre
qualquer coisa aleatória, já passaram
alguns minutos das seis da tarde, não
tenho muito tempo para me arrumar e
preciso correr. Durante o banho, choro
bastante, porque nunca sei se haverá
uma conversa no dia seguinte, nunca sei
se vou ver o seu rosto pálido novamente,
ouvir sua voz fraca e apertar sua mão
tão magra. Deveria ter alguma lei
sobrenatural para impedir que as mães
ficassem doentes ou morressem antes
dos filhos.

O cheiro forte de produtos de


limpeza me causa náusea, tia Isis segura
minha mão, tão apertado, que é como se
soubesse o desastre que estou por
dentro. Eu não quero mais ver mamãe
sofrendo e isso está me matando aos
pouquinhos.
— Lety — titia chama, quando
estamos prestes a entrar no quarto do
hospital. — Espera, você está bem
mesmo?
— Não, tia! — respondo,
sentindo as lágrimas já escorrendo pela
minha bochecha. — Só queria que ela
não estivesse sofrendo tanto. Isso não é
justo com a pessoa que mamãe é!
— Eu sei, meu amor. — Seus
braços me envolvem em um abraço de
urso enquanto chora comigo. — Juro que
queria muito ter um superpoder para
fazer isso, mas vamos manter a
esperança. Quem sabe não acontece um
milagre, hein?!
— Acho difícil! — digo,
ressentida com qualquer força suprema
que esteja permitindo isso.
Ficamos abraçadas por um
tempo sem falar nada, tia Isis foi a única
família que restou da mamãe e as duas
são muito ligadas, sei que ela também
está sofrendo tanto quanto eu. Nos
soltamos no contato, limpamos o rosto e
colocamos um sorriso que não chega aos
olhos, antes de abrir a porta.
O quarto é privativo, ao menos
uma coisa boa meu pai fez, gastou
dinheiro em um bom plano de saúde
para dar algum conforto nos últimos
momentos de vida da mulher que
aguentou suas traições por tanto tempo.
Sua benevolência acabou aí, pois sequer
tem coragem de vir visitá-la e no fundo
sou muito grata, não gostaria que mamãe
ficasse pensando em tudo de mal que ele
já lhe fez durante os anos que estão
casados.
A mulher de corpo frágil está
sentada na poltrona reclinável com um
cobertor sobre as pernas e abre um
sorriso fraco quando nos vê.
— Minhas meninas... — ela diz,
tão baixo, que poderia até mesmo ser
fruto da minha imaginação.
Um lenço de seda cobre o local
onde antes havia lindos cabelos
castanhos ondulados, as olheiras fundas
contornam os olhos de um verde
esmeralda idênticos aos meus, a sonda
nasal lembra que ela já não consegue se
alimentar normalmente, os lábios estão
sem cor e extremamente ressecados, os
ossos do ombro estão saltando, seguro o
sorriso, mesmo que meus olhos estejam
cheios de lágrimas.
Ela parece o ser mais indefeso
do universo, tudo que quero é colocá-la
no colo como fazia comigo e dizer que
as coisas ficarão bem, mas não consigo
acreditar nessa cura milagrosa, então me
ajoelho ao seu lado, lhe dando um beijo
estalado na bochecha, enquanto engulo o
nó em minha garganta.
— Como está a garota mais linda
deste mundo? — pergunta, passando as
mãos pelos meus cabelos quando me
ajoelho no chão e encosto a cabeça no
braço da poltrona para olhá-la. — Está
se alimentando direito? Tô te achando
muito magrinha, filha, e o treino de hoje,
como foi?
— Quer dizer que não fala mais
com a sua irmã? — Tia Isis finge estar
chateada quando se aproxima para
beijar o lenço dela.
— Sua boba... — Ela segura a
mão da outra mulher. — Está tão bonita,
maninha.
— Ah, mas você está muito mais
— responde, tirando um envelope da
bolsa e estendendo para a irmã. — As
fotos ficaram lindas e vão deixar este
quarto mais alegre.
Mamãe pediu que tia Isis me
fotografasse em nosso último passeio,
porque queria se lembrar de como era o
meu sorriso fora destas paredes brancas
do hospital. Fomos ao parque no fim de
semana, foi difícil ir ao meu lugar
preferido sem a pessoa que o tornou tão
especial, mas dei o meu melhor para que
tudo saísse bem e ela tivesse o que
desejava. Mamãe acaricia cada uma das
fotos com os olhos lacrimejantes
emocionada, talvez pensando que nunca
mais faremos esse passeio juntas e que
provavelmente nunca mais sentirá o sol
batendo em seu rosto como sempre
amou.
— Ficaram tão lindas, Isis —
ela diz, limpando os olhos. — Você é
tão talentosa, minha irmã!
— Não seria nada disso, se você
não tivesse me obrigado a estudar
incansavelmente para ser boa no que
faço. — Titia se senta no braço da
cadeira e abraça a irmã. — Obrigada,
por tudo, Dry.
— Foi muito legal puxar a sua
orelha nesses momentos, confesso!
— Sempre soube disso, maninha.
— Tia Isis usa um tom brincalhão. — O
que faremos hoje?
— Que tal assistirmos a um
filme juntas? — dou minha sugestão e
mamãe abre um sorriso.
— Uma noite das meninas? —
mamãe indaga e vejo sua sobrancelha
arquear, os olhos opacos brilharem com
a possibilidade.
— Adorei a ideia da Lety e só
por isso trouxe umas coisas escondidas
na mochila, tenho certeza de que
ninguém vai nos pegar. — Titia tem um
olhar travesso quando vai até a porta do
quarto e finge trancá-la. — Precisamos
ter alguma privacidade enquanto
suspiramos pelos mocinhos desses
filmes.
Mamãe exibe um sorriso fraco.
De todos os dias desta semana, hoje é o
que ela está mais animada e tenho muito
medo disso, pois da última vez que isso
aconteceu, foi parar na UTI. Não acho
que esteja bem de verdade, só não quer
que eu a veja sofrer, porque sabe como
me sinto.
Uma enfermeira vem fazer a
visita de rotina para saber se ela precisa
de algo e depois de se certificar de que
tudo está bem, ela nos deixa. Como
garotas levadas, tia Isis e eu nos
deitamos sorrateiramente na cama, uma
de cada lado da minha mãe, mesmo
sabendo que proíbem visitantes de fazer
isso. Me aconchego ao corpo debilitado,
sentindo meu coração despedaçado,
enquanto decidimos ver pela
milionésima vez Megamente.
Nós três sabemos de cor cada
fala dessa animação, ainda assim, não
perde a graça.
— O meu dia tem sido assim:
fui pra cadeia, perdi a garota dos meus
sonhos e levei uma surra federal —
sussurramos juntas quando o filme
começa. — No entanto, poderia ter
sido muito pior. Ah, esqueci, estou
caindo em direção à morte certa. Acho
que pior, impossível. Querem saber
como tudo isso aconteceu? O meu fim
teve início no começo, bem no
comecinho...
A imagem do Megamente
despencando prédio abaixo sempre me
faz rir. Ele é vilão cheio de planos
idiotas que nunca dão certo, mas quando
seu arqui-inimigo Metroman é dado
como morto em uma de suas batalhas
épicas e ele finalmente consegue o que
deseja, a vida fica muito sem graça.
Cansado de ter tudo aos seus pés, ele
arquiteta uma maneira de voltar a ter
uma vida agitada, mas acaba se
apaixonando pela repórter investigativa
Roxane e fazendo muita asneira.
Eu me identifico com o fato de
ele ser solitário, até costumo brincar
com Breno que ele é o meu “peixinho
danadinho”. Geralmente as histórias
trazem heróis perfeitinhos que tem tudo
na ponta da língua e aqui não é bem
assim que as coisas acontecem.
Comemos alguns docinhos que
tia Isis fingiu ter trazido escondido,
rimos como nos velhos tempos,
fofocamos sobre os caras bobões que
aparecem na vida da minha tia, por um
momento é como se o fantasma da
doença da mamãe não existisse. O fim
do horário de visitas está quase no fim e
com isso o meu medo de hoje ser a
última vez que terei a oportunidade de
ver o seu sorriso, sentir o seu afago e
poder abraçá-la.
Quando estamos nos organizando
para irmos embora, ela pede à irmã um
momento a sós comigo como sempre faz,
todos os dias nos despedimos como se
nunca mais fôssemos nos ver.
— Como estão as coisas com o
seu pai? — pergunta, segurando a minha
mão e continuo deitada ao seu lado.
— Ruins, muito ruins...
— Sinto muito que tenha que
passar por tudo isso tão jovem — ela
começa, com a voz embargada. — Eu
queria tanto poder fazer tudo diferente,
mas infelizmente a vida parece não
querer me dar uma segunda chance.
— Não diga isso, mamãe. —
Beijo seus dedos ossudos.
— Você vai fazer diferente, filha.
— Nos encaramos e seus olhos
cansados estão cheios de lágrimas. —
Não é boba como eu, vai conseguir uma
bolsa de estudos em uma boa academia
de dança e brilhará nos palcos pelo
mundo. Queria tanto estar na primeira
fila para aplaudir, no entanto, acho que
as minhas forças estão se acabando, meu
amor, estou cansada.
— Fique comigo, mamãe —
peço, enlaçando sua cintura, como se ela
tivesse controle sobre isso e sinto as
lágrimas escorrendo pela minha
bochecha. — Por favor, eu preciso de
você!
— Ah, meu amorzinho. — Seus
dedos magros percorrem meu rosto. —
Olhe para mim, não importa o que o seu
pai ou qualquer outra pessoa diga, você
é forte e capaz de conquistar tudo o que
desejar. Prometa para mim que nunca
vai se entregar como eu fiz...
— Eu não...
— Apenas me prometa que vai
resistir a qualquer tentativa de te
prenderem em uma gaiola. — Seus
dedos seguram meu queixo e nos
encaramos, emocionadas. — Prometa
que não vai deixar que nenhum homem
entre no seu coração sem antes merecê-
lo... Promete?
Ela parece tão distante agora, eu
nem penso em garotos dessa forma e não
gostaria de fazer essa promessa, mas
alguma coisa nos olhos dela me faz
acenar em concordância.
— Prometo — digo, por fim.
Seus braços me envolvem e
ficamos em silêncio apenas ouvindo o
som das nossas respirações. É tão
doloroso imaginar que nunca mais
poderei estar dentro desse abraço,
sentindo o cheiro de sua colônia de flor
de laranjeira.
— Eu te amo, filha — ela
sussurra.
— Também te amo, mamãe —
devolvo sua declaração, acrescentando
algo nosso: — Do tamanho do universo.
Logo tia Isis entra, nos avisando
que o horário de visita chegou ao fim,
nos despedimos da mamãe e partimos.
O trajeto até o apartamento dela
foi silencioso, quando chegamos
ficamos abraçadas no sofá, enquanto eu
chorava inconsolavelmente. Era como se
nós duas soubéssemos que aquela seria
a nossa última “noite das meninas” e foi.
Romeu, 16 anos
Devia ter deixado meu pai
cumprir algumas de suas ameaças, não é
que não goste de vir para a fazenda, só
que aqui é um saco no fim do ano, com
todas aquelas irmãs, sobrinhos e primos
distantes da vovó querendo saber por
que parei de tocar, se um dia pretendo
voltar ou pior, se consigo um autógrafo
de algum famoso para elas. Olhando por
esse lado, com certeza passar uns dias
na companhia de mamãe, seu novo
namorado e todos os fotógrafos que a
perseguem, parece tentador.
Ainda bem que chegamos alguns
dias antes dos outros convidados, dá
tempo de curtir um pouco o ar puro do
campo, sem aquele monte de gente chata
sendo inconveniente e menos tempo
bancando o adolescente rebelde que
mantém as pessoas a uma distância
segura.
Depois de um banho de
cachoeira, com alguns velhos amigos da
fazenda vizinha, volto correndo para o
casarão com Ana Júlia empoleirada nas
minhas costas, porque ela está muito
cansada para andar e tenho um coração
idiota que não resiste ao seu maldito
biquinho de choro, quando chegamos à
entrada que leva à casa, a coloco no
chão.
— Este burro de carga aqui está
cansado e precisa desesperadamente de
alguma comida, pirralha! — reclamo,
começando a caminhar, mas ela não me
acompanha. — Aonde vai?
— Vou ver se as galinhas
botaram algum ovo. — A garotinha, que
já está corada depois de quase um dia
aqui, me joga a camisa molhada. —
Também vou procurar o vovô, porque
ele prometeu que pescaríamos alguma
coisa antes do almoço e sumiu.
Reviro os olhos, coitado do
vovô! Essa pirralha vai deixá-lo louco
nos próximos dias, ao menos terei um
descanso.
— Vai lá, Jane, rainha da
floresta — grito, quando ela sai em
disparada na direção do galinheiro.
Noto o carro de tia Ari parado
na frente da casa, jogo a camisa sobre o
ombro e entro empolgado, mas então
escuto vozes diferentes, que me fazem
diminuir o passo até chegar à entrada da
cozinha, me encostando no batente da
porta para decidir se corro de volta para
a cachoeira ou encaro as visitas.
Minha tia e uma baixinha de
cabelos castanhos, que presumo ser sua
namorada, conversam animadamente
com a vovó em volta da mesa,
acompanhadas por duas outras estranhas
que estão de costas para mim, uma delas
parece ser mais velha e muito à vontade,
noto que é morena com cabelos
castanhos lisos caindo sobre os ombros.
Provavelmente uma gata!
A conversa está boa e não
reparam a minha chegada, a outra garota
é, ao que me parece, uma patricinha
fresca, percebe-se pelos headphones,
mochila e jaqueta cor-de-rosa e os
cabelos impecáveis, como se estivesse
vindo a uma festa e não a uma fazenda.
Enfim, ela destoa totalmente do
ambiente rústico que é a cozinha da
vovó, apesar de não ter visto seu rosto
ainda, posso dizer que tem uma voz que
me deixa estranhamente irritado.
— Ouviu que a senhorinha vai
matar as pobres galinhas para o almoço,
tia? — Ela parece horrorizada e não
consigo segurar a língua.
— Esquenta não, patricinha, a
gente pega umas alfaces com lagartas da
horta da vovó para você comer. — Uso
meu tom mais debochado, enquanto
caminho até minha tia, que exibe um
sorriso largo, ela nunca foi boa em me
repreender. — Meu Deus, tia Ari, para
que trazer uma patricinha pro hospício
dos Santos?
— Romeu, presta atenção em
como trata as visitas — vovó ralha.
A garota me olha embasbacada e
quase posso ver a baba escorrendo pelo
canto de sua boca carnuda pintada com
batom cor-de-rosa. Fazer o que, se
causo isso nas garotas? Ela é gata, tem
um olhar penetrante verde-esmeralda,
entretanto, o seu nariz empinado, o ar de
superioridade e a cara de nojo me dizem
que estamos de lados opostos.
Vovó pigarreia e lembro-me de
ser o garoto educado que me ensinaram,
mas que esqueço quase sempre, então
respondo vovó com minha melhor face
de anjo incompreendido.
— Desculpa, vó — digo,
exibindo um sorrisinho torto.
— Meninas, esse palhaço aqui é
o meu sobrinho, Romeu. — Tia Ari se
levanta e me segura pelo braço. — Juro
que ao telefone ele parecia mais
educado.
— Tia! — A fulmino com os
olhos, fingindo estar irritado.
— O quê? — Ela me dá um
tapinha no braço. — Chega me fazendo
vergonha e quer confete?
— No mínimo — retruco, dando
de ombros.
— Bom — tia Ari começa as
apresentações, indicando a mulher ao
seu lado —, essa aqui é Maya, minha
namorada...
— Pô, que gata, hein, tia,
descola uma dessas para mim — tiro
onda.
— Me respeita, rapaz! — ela
repreende, enquanto aperto a mão de
Maya, cumprimentando-a.
— E a patricinha aí, quem é? —
A curiosidade fala mais alto e aponto
para a garota que está quase encolhida,
mexendo no celular, ao lado da morena.
— Letícia, sobrinha da Isis —
minha tia fala e fico tenso quando o
olhar superior da menina se encontra ao
meu.
Tenho algo na ponta da língua
para dizer, só que não é nada educado,
então me contenho.
— Quem é Isis? — Faço uma
careta engraçada para tia Ari, me
lembrando de uma amiga que ela sempre
fala e nunca a conheci pessoalmente. —
Não brinca, é a sua Isis?
— Sim, a ingratidão em pessoa
— fala, apontando para a outra. — Viu,
ela não é só fruto da minha imaginação,
existe de verdade. Não é incrível?!
— Nossa, passei a vida toda
achando que era sua amiguinha
imaginária. Porque ela sempre te deu
bolo em todos os eventos. — Sorrio,
estendendo a mão para ela e não perco a
oportunidade de flertar com a linda
mulher. — Você é mais bonita que nas
fotos. Casada? Solteira? Tenho
interesse.
— Garoto, pare com isso! —
Vovó me bate com o pano de prato.
— Não sou casada, você é um
gatinho, mas é muito jovem para o meu
bico! — Ela pisca e sinto as bochechas
corarem. Malditos hormônios
adolescentes!
— E eu não preciso de uma nora
da sua idade. — A voz de papai nos
pega desprevenidos e noto a cor fugir do
rosto da mulher quando o localiza do
outro lado da cozinha, há um silêncio
constrangedor, então ele o quebra com
seu usual tom brincalhão: — Que foi,
gente?
— Como você entra imundo
desse jeito, na minha cozinha, para
receber as visitas? — Vovó o encara,
feio.
— Desculpa, mãe — fala, com
as duas mãos levantadas em rendição e
então seus olhos se prendem aos da
moça. — Que história é essa de achar
meu filho “um gatinho”, Isis?
— Na verdade, ela acha o pai
um gato, mas na ausência dele, pode
falar do filho — tia Ari fala, encarando
a amiga com um olhar mais falso que
nota de três e não consigo entender o
que acabou de rolar aqui.
Será que a Isis gosta do meu pai?
Ninguém parece se importar com isso e
não serei eu a tentar desvendar o que se
passa entre eles, papai é quase um
alienígena que não tem tempo para si
mesmo.
Todos começam a falar ao
mesmo tempo em uma confusão de
abraços, brigas e perguntas infinitas por
parte de papai e sua irmã. Me limito a
ficar em silêncio, maquinando uma
forma de fazer essa patricinha se
arrepender de ter vindo para o meio do
mato. Acho que não vou precisar de
muito, está estampado no seu rosto que a
qualquer momento pode sair correndo
em direção à porteira da fazenda e ir
embora.
— Romeu, pode mostrar a
propriedade para a sobrinha da Isis? —
Vovó desvia a minha atenção da garota
intrigante.
— Mostrar para quem? — me
faço de desentendido.
— Para a menina. — Ela aponta
na direção em que os meus olhos
estavam.
— De jeito nenhum! — sussurro,
entredentes, aproveitando que ninguém
notou o que ela me pediu. — Essa
patricinha metida, não vai querer
arredar o pé de dentro do casarão. Olhe
para ela, vovó, parece que vai surtar a
qualquer momento, tá vendo?
— Você costumava ser um neto
obediente — a senhora de cabelos
grisalhos retruca, balançando a cabeça
em negativa.
— Quando seus pedidos não
tinham gosto de “cutucar onça com vara
curta” — respondo, me virando para
deixar a cozinha. — Tô fora!
— Não se fazem mais netos
como antigamente. — A ouço protestar,
contrariada, e ignoro, fugindo para o
mais longe possível.
Quero colocar o máximo de distância
entre mim e essa garota metida à
patricinha da cidade, se bem conheço
minha vó, ela já está querendo me tornar
o novo guia turístico da fazenda e isso
não vai acontecer, de jeito nenhum.

Os dias seguintes se arrastam,


como se o relógio tivesse decidido
deixar de trabalhar, minha relação com a
patricinha metida? Está de mal a pior,
meus planos infalíveis para tirá-la do
sério deram muito certo, preciso
confessar que é divertido ver suas
bochechas corarem, seus enormes olhos
verdes me fulminarem e sem falar na sua
maldita língua afiada.
Protagonizamos embates épicos
por conta das mais diversas bobagens
que possam imaginar, tia Ari conseguiu
a proeza de me levar junto no tour pela
fazenda e tenho absoluta certeza de que
se arrependeu amargamente, já que a
garota terminou o passeio como um
cachorro molhado em suas belas roupas
— chiques demais para o campo —,
depois que a empurrei “acidentalmente”
na cachoeira.
Implicar com ela se transformou
no meu novo hobby, é isso. Uma pena
que papai tenha cortado o meu barato
para os planos que envolviam a ceia de
Natal, depois que ela e eu quase nos
estapeamos durante à tarde, por conta da
porcaria de uns DVDs antigos.
Tenho a impressão de que papai
só quer ficar de boa com Isis, todos
estão comentando sobre o romance não
muito secreto, ao que parece, que
tiveram na adolescência. Fiquei chocado
com isso? Lógico, meu pai não é como
minha mãe. Ariel Santos é um homem
que age com o coração e isso me deixa
de orelha em pé.
— Romeu, pelo amor de Deus,
me prometa que não vai estragar esta
noite em nome dessa guerra idiota que
travou com aquela garota — papai diz,
enquanto nos arrumamos para a festa.
— Você é mais inteligente que isso e
velho demais para ser tão infantil.
— Ela que começou papai! —
argumento, tentando parecer
convincente. — Quem, em nome de
Bach, curte filmes bobos adolescentes?
Ele revira os olhos e solta o ar
como se estivesse entediado.
— As mulheres de modo geral
gostam e acho bom você se acostumar
com isso, seu pirralho irritante! — Sua
frase é acompanhada de um tapa na
minha cabeça. — Não faça nenhuma
besteira ou terá que fazer o seu próprio
jantar, pelo resto da vida.
— Eu já não faço isso duas
vezes por semana? — retruco,
erguendo a sobrancelha.
— Isso não vem ao caso. — Ele
dá de ombros. — Estamos entendidos?
— Claro!
Minha resposta a ele não foi
totalmente sincera, mas é provável que
pegue leve com essa patricinha chata
metida à besta. É esse o motivo para eu
estar neste momento entre duas primas
exibidas, escutando-as falarem o quanto
morar na capital é maravilhoso ou a
quantos shows legais elas tiveram a
oportunidade de ir durante o último ano.
Grande coisa! A maioria dos artistas que
ambas falam são amigos íntimos da
mamãe, mas quem sou eu para cortar o
barato?
Quando consigo fugir delas,
encontro um tio do meu avô que quer
saber se consigo afinar o violão dele (de
onde ele tirou que eu conserto
instrumentos?), depois uma sobrinha-
neta de alguma das irmãs da vovó gruda
no meu braço e começa a tagarelar
insistentemente sobre bandas de K-pop
que ela presume que conheço, escapo
finalmente sorrindo forçadamente e
acenando para algumas pessoas sentadas
próximo à mesa das bebidas.
Abro os botões da camisa social
xadrez, deixando a blusa branca à
mostra, enquanto me afasto
sorrateiramente do vozerio em busca de
paz e sossego. Não vou muito longe,
apenas o suficiente para que não seja
visto pelos convidados e possa fugir um
pouco de toda a pressão que sempre
sinto nesses eventos, além das
lembranças inconvenientes. Quando eu
era mais novo, costumava me apresentar
com papai para o deleite da vovó, mas
desde que mamãe nos deixou, isso
perdeu totalmente a graça para mim.
Sigo pela trilha atrás do casarão
e depois pego um atalho até uma
pequena rocha, que costuma ser o meu
refúgio quando quero ficar sozinho e
apenas observar a noite sem ninguém
enchendo o meu saco. Aproximo-me
devagar e me dou conta de que alguém
teve a mesma ideia, que beleza!
— Patricinha? — constato,
surpreso, quando subo até o topo e
reconheço a garota sentada sobre a
rocha abraçando os joelhos, encarando a
escuridão. — Que foi? Cansou dos
caipiras? Perdeu o medo do mato?
— Pode me deixar em paz, pelo
menos esta noite? — Sua voz soa
estranha sem o tom afiado de sempre.
Ignoro seu pedido, me sentando
ao seu lado oposto, com as pernas
penduradas, a ouço fungar baixinho,
fazendo um movimento com uma das
mãos sobre rosto, como se estivesse...
chorando? Giro a cabeça em sua
direção, tentando ver melhor sob a
iluminação precária. Estamos a uns
poucos centímetros de distância, seus
olhos brilham cheios de lágrimas e o
rosto molhado. Droga! Não consigo
lidar com o sofrimento de garotas, a não
ser que seja a minha irmã e ainda assim
faço bobagens.
— Isso tudo é porque falei mal
dos seus filmes bobos? — questiono,
tentando fazer com que ela volte a ser a
chata de sempre e não essa versão
esquisita.
— Nem tudo é sobre você, seu
garoto metido à besta — solta, limpando
o rosto e sem o mínimo indício de que
irá embora o que, de certa forma, faz
com que eu fique aliviado.
— Por que está aqui, tão longe
da festa, patricinha? — insisto, um tanto
curioso, apoiando as mãos na rocha e
inclinando o corpo levemente para trás.
— Me deixa em paz, Romeu. Vá
embora! — Seu tom suplicante faz com
que deseje ficar um pouco mais e
descobrir o motivo do seu choro.
Inclino o rosto para cima, como
se cogitasse atender ao seu pedido,
normalmente chove por aqui nesta época
do ano, mas graças a Deus a noite está
agradável, embora haja poucas estrelas
iluminando o céu. Ouço-a fungar outra
vez e decido quebrar o silêncio entre
nós.
— Temos um problema, você
não quer voltar para lá e muito menos
eu. — Dou de ombros, voltando a ficar
com a coluna ereta, enquanto balanço os
pés a alguns metros do chão.
Letícia bufa e quase posso vê-la
revirando os olhos, contudo não tenho a
intenção de deixá-la aqui mergulhada em
autopiedade, ou seja, lá o que esteja
sentindo. Alguma coisa nela me faz
lembrar o garoto revoltado que pensava
ter perdido a mãe para sempre e se
sentia culpado por não atender às
expectativas.
— Que tal uma trégua? — Faço
uma oferta de paz, afinal, é Natal e eu
ainda tenho um coração batendo aqui
dentro, apesar de ninguém acreditar
nisso. — Só por esta noite, depois nós
podemos continuar brigando como gato
e rato.
Ela me encara, incrédula, por um
momento, aproveito para avaliar seu
aspecto físico — ou o que dá para ver
nessa penumbra —, a maquiagem está
borrada e isso não diminui de modo
algum a sua beleza. A patricinha veste
uma calça jeans rasgada nos joelhos e
coxas, uma blusa cor-de-rosa com
decote “V” amarrada em um nó, que
deixa um pouco da sua pele à mostra,
enfim quase parece uma garota normal,
tirando o fato de que parece estar
tremendo de frio.
— Fechado! — Estende a mão
para mim, aparentemente alguma coisa
no meu rosto a fez acreditar.
— Está com frio? — indago,
sem esperar por resposta, já tirando a
minha camisa xadrez manga longa e
jogando-a sobre seus ombros.
— Não precisa — ela diz, mas
não retira a peça e posso jurar que a vi
inspirar profundamente.
— Vai me contar a razão do seu
choro? — Volto a olhar para o céu.
— Não é da sua conta. — A
resposta vem ríspida.
— Ok! — Tento ficar em
silêncio, mas a curiosidade está me
roendo por dentro. — Alguém te falou
bobagem na festa?
— Não.
— Está com saudade de casa?
— insisto, arqueando a sobrancelha.
— De jeito nenhum.
— Brigou com a sua tia? —
Faço outra tentativa, apoiando o pé
direito no topo da rocha.
— Quanta insistência! — Ela se
vira para mim, nossos olhares se
encontram e há tanta tristeza nela, que
tenho vontade de confortá-la de algum
modo. — Minha tia é a última pessoa na
face da Terra com quem brigaria.
— Então sou eu? Está chateada
porque não trocamos farpas hoje à
noite?
— Pelo amor de Deus! Garoto,
você se acha demais. — As palavras
são acompanhadas de um sorriso
descontraído, que faz meu coração
acelerar, talvez eu precise ir ao médico
quando as férias acabarem.
— Não vai mesmo me contar?
— Sou um pouco dramático. — Assim
me faz pensar que não sou uma pessoa
confiável.
— E você não é. — Letícia me
encara, séria.
— Ok, isso feriu o meu ego. —
Coloco a mão sobre o meu coração. —
Pegou pesado, hein, patricinha?!
— É capaz de ficar em silêncio
por alguns minutos?
— Não — respondo. rindo —,
mas posso tentar. — Finjo passar um
zíper na boca.
— Obrigada!
O clima entre nós parece menos
tenso, a olho de esguelha, a garota seria
meu tipo se não tivesse uma língua tão
afiada e uma enorme facilidade para me
irritar. Descobri há algum tempo que o
meu jeito rebelde atrai as meninas,
somado ao cabelo penteado de um jeito
estiloso e o sorriso sacana, tenho os
ingredientes certos para sempre ter
alguma boca para beijar quando quero.
Merda, por que estou pensando
nisso agora? Balanço a cabeça e a brisa
traz o cheiro adocicado da patricinha,
fazendo-me fechar os olhos.
— Por que você gosta da
fazenda? — A pergunta quebra o fluxo
dos meus pensamentos.
— Por causa dos meus avós —
admito, sem olhá-la. — Eles sempre são
tão gentis e amam este lugar, sinto que
os estaria traindo se não curtisse vir
para cá, sabe?! E você, patricinha, por
que parece odiar o campo?
— Nunca tive muito contato com
a natureza dessa forma, gosto da
civilização — explica, entrelaçando os
dedos uns nos outros. — Minha mãe
sempre amou a vida no campo, seus
olhos brilhavam quando me falava sobre
as férias com a tia Isis, aqui na fazenda,
mas o meu... pai... ele odiava e acho que
peguei um pouco disso. Não é nada
pessoal!
— Ainda bem. — Suspiro
teatralmente. — Por um momento, achei
que tinha a ver comigo.
— Você é tão bobo quando não
está sendo um chato. — Ela ri.
Percebo que não sei muita coisa
sobre Letícia, a não ser o fato de que é
sobrinha de Isis e sobre sua mãe, então
me pego querendo saber mais.
— E como ela era?
— Quem? — Seu olhar parece
confuso.
— Adriana, a sua mãe. —
Lembro-me de a vovó mencionar. — Era
esse o nome dela?
— Ah, sim... — Ela faz uma
pausa. — Mamãe era a melhor pessoa
do mundo, Romeu. Apaixonada pela
vida, adorava cuidar da família, de suas
amadas plantinhas, cheirava à flor de
laranjeira e tinha o melhor abraço do
mundo.
— Sinto muito! — Coloco a mão
sobre a sua, sentindo uma conexão
estranha entre nós. — Eu sei como é
perder uma mãe, não desse modo
horrível, mas o que quero dizer é que
entendo você querer um tempo sozinha.
Ver todo mundo feliz não parece correto,
quando nosso coração está sangrando.
Eu me aproximo um pouco mais
dela, ficamos lado a lado com as pernas
quase roçando uma na outra, entrelaço
nossos dedos e ficamos em um silêncio
reconfortante.
— Se quiser falar sobre ela,
fique à vontade — digo baixinho,
acariciando seu indicador com o meu
polegar. — Às vezes, é bom pôr para
fora o que estamos sentindo. Eu sou
péssimo fazendo isso, mas já diz o velho
ditado “faça o que eu digo, não faça o
que eu faço”.
— Tenho tanta saudade... — Ela
limpa o rosto e continua a falar: — Das
coisas que fazíamos juntas, queria tanto
ouvir seus conselhos e, hoje em
especial, queria poder me sentar à mesa
com mamãe para comermos o chester
quase tostado, porque ela sempre o
esquecia no forno e vê-la sorrir por
estarmos todos juntos outra vez.
Fico sem saber o que falar e
Letícia encosta a cabeça em meu ombro,
em um gesto que me deixa sem ação. Eu
não sou o carinha que fica de mãos
dadas na ponta de uma rocha no meio do
nada ouvindo uma garota falar sobre a
falta que sente da mãe, o que está
acontecendo comigo? Não tenho a menor
ideia, mas preciso dizer que parece
muito bom.
— Onde quer que ela esteja,
tenho certeza de que quer ver um lindo
sorriso no seu rosto de patricinha da
cidade. — Encosto a cabeça na sua,
sentindo o cheiro bom que vem dos seus
cabelos.
— Obrigada! — sussurra,
fazendo meu coração galopar no peito
quando se vira e nossos lábios quase se
tocam.
Deslizo os dedos por uma mecha
de seu cabelo que cai sobre o rosto, sua
respiração se misturando à minha e um
desejo absurdo de beijá-la me invade de
repente. Por um momento, é como se
deixássemos de lado nossas diferenças
sob um feitiço mágico que me atrai cada
vez mais para ela.
— ROMEU, DESÇA JÁ DAÍ E
TIRE AS MÃOS DE LETÍCIA! — A
ordem de minha tia quebra o encanto
entre nós.
— Merda! — praguejo baixinho,
desfazendo o contato.
Lá embaixo estão tia Ari, Maya e
minha irmã, que me olham como se eu
fosse um delinquente juvenil e... bom,
talvez eu aja como tal em alguns
momentos.
— Se disser qualquer coisa
sobre o que aconteceu esta noite para
alguém, arranco suas bolas e dou aos
porcos — Letícia ameaça, se levantando
e jogando a camisa em mim, como se
não estivéssemos prestes a nos beijar
momentos antes, depois salto para o
chão numa desenvoltura admirável.
— Quanta agressividade! —
grito, mas ela já alcançou a minha tia,
que a puxa pelo braço na direção da
estrada, como se a protegesse de mim.
Era só o que me faltava!
Demoro um tempo para voltar à
festa, tentando digerir o clima estranho
entre nós e principalmente o fato de ter
gostado muito da conexão que senti com
essa garota maluca. Graças aos céus,
nunca mais vou vê-la depois que for
embora amanhã. Nem vou perder meu
precioso tempo com ela.
A não ser que o meu pai... Ah, meu
Deus! Eu tô muito ferrado.
Romeu
Bom, aconteceu o que eu temia:
meu pai está namorando Isis.
Alguns meses se passaram desde
o Natal na fazenda e, embora, nenhum
dos dois admita, o fato é que ela dorme
aqui em casa quase todo fim de semana
e já tenho idade o suficiente para saber
o que rola entre eles. Apesar de dar uma
ou outra alfinetada no papai, não vejo
problemas nesse relacionamento, está
mais do que na hora dele seguir a vida
depois do pé na bunda que ganhou da
minha mãe.
A Isis é bem legal comigo e com
Aninha, gosto bastante da ideia de que a
pequena tenha alguém em quem se
espelhar, já que mamãe esqueceu que
tem filhos desde que foi embora, a não
ser que precise dar alguma entrevista ou
queira se aparecer para algum fotógrafo.
Nossa relação não é das melhores,
apesar de eu sempre a usar como
desculpa quando quero fugir dos eventos
musicais que papai insiste em me levar.
Graças aos céus não vi mais a
patricinha e procuro deixar meus
pensamentos o mais distante possível
dela, já tenho problemas o suficiente
com que me preocupar.
Este é meu último ano na escola
e sinto que minha família acha que vou
escolher cursar faculdade de Música ou
entrar em um conservatório, mas existem
dois agravantes nessa ideia. A primeira
é que na nossa cidade não tem esse
curso, muito menos um conservatório e
só de pensar em morar com a minha
mãe, já sinto um calafrio pelo corpo. A
segunda — e mais importante — é que
tenho medo de que a música me consuma
como fez com a minha mãe, quando
meus pais se separaram, ela
simplesmente esqueceu que tinha filhos,
como se o seu trabalho fosse mais
importante que qualquer outra coisa.
Não quero ser assim, por esse
motivo escolhi seguir uma carreira
comum e fazer Administração, quem
sabe consiga um trabalho legal na
empresa que explora o minério da
região o que, aliás, é o sonho de metade
dos meus amigos. O problema é que seu
Ariel não facilita para mim e decidiu
que, por algum motivo, para passar em
um vestibular eu preciso fazer um
cursinho preparatório. Então, meus dias
são cheios — parte do plano de papai
de se livrar de mim, disso não tenho
nenhuma dúvida.
— Aê, cara, tu nem prestou
atenção na aula. — Ivan puxa minha
mochila, enquanto caminho pelo
corredor até a saída. — A Marina está te
dando o maior mole e tu no mundo da
lua. O que está acontecendo?
— Nada que te interesse —
resmungo, rabugento, desviando dele e
continuando meu caminho.
— Tá de TPM, moço? — Ele me
alcança com seu tom debochado
irritante.
— Não enche, Ivan.
— Aff... tu precisa sair dessa
seca, viu?! Para ver se melhora esse
humor do cão — fala, sem se importar
com o meu estado de espírito. —
Lembro que antes, quando você ficava
assim, a gente ia lá para ONG e tocava
até os dedos ficarem dormentes.
— Pronto! Já vai começar essa
merda de novo. Quantas vezes eu
preciso dizer que não toco mais e ponto.
— Passo as mãos pelo cabelo, um tanto
irritado, e paro de caminhar. — Andou
conversando com meu pai e Aninha?
— Só para você saber, seu pai é
meu professor de música e converso
com ele todos os dias — o garoto
insistente retruca. — E essa parte sobre
não tocar mais é Fake News, porque
outro dia te vi tocando pra um caralho
na festa do Leon.
Solto um suspiro longo, eu não
chamaria aquilo de tocar... Considero
um quase assassinato com as cordas do
Cello e isso foi semanas atrás, sabia que
ninguém ia esquecer o meu pequeno
showzinho.
Não deveria ter feito aquilo,
estava chateado porque tive uma
conversa com papai sobre uma escola
de Música que mamãe havia comentado
com ele, depois fui à tal festinha e Leon
tinha chamado uns caras que levaram um
Cello na intenção de chamar atenção das
garotas, mas eles não sabiam tocar e
isso despertou o meu lado crítico
musical. Apontei todos os erros que
cometeram na apresentação — se é que
podíamos chamar aquela coisa horrenda
disso — do pior jeito possível e me vi
no meio de uma rodinha de pessoas que
me provocavam querendo saber se eu
era o “bonzão” mesmo.
Segurar o instrumento, depois de
tantos anos, foi como se tivessem
despertado em mim um monstro
adormecido. Apesar de não tocar há
muito tempo, eu nunca me desliguei
totalmente desse universo, ouço os
músicos da atualidade e os clássicos,
estudo partituras escondido, talvez por
isso as notas fluíram tão naturalmente
como se nunca houvesse parado, mas eu
não quero pensar em tudo que senti
naqueles poucos minutos.
— Se contar para o meu pai, juro
que o faço te expulsar da turma dele —
ameaço e Ivan dá risada.
— Não se expulsa o melhor
aluno da turma assim, do nada. Seu pai
me ama. — Ele dá uma piscadela e eu
reviro os olhos. — O que foi? Você
acabou de dizer que não toca mais.
— Eu nem sei por que ainda falo
contigo.
— O nome disso é amor
incubado. — O babaca faz que vai me
abraçar e desvio bem a tempo. — E
então, vai no aniversário do Rubinho?
— Lógico que vou, preciso
desestressar, como você mesmo disse.
— Arrumo a mochila nas costas. —
Beijar umas garotas e fingir que a minha
vida não tá uma merda.
— Que dramático! — Meu
amigo balança a cabeça, enquanto
voltamos a caminhar lado a lado. — Só
por causa de um pouco de pressão para
estudar em um dos melhores
conservatórios de Música do país. Olha,
eu queria ter esse tipo de problema viu,
seu bocó.
— Não quero estudar música,
Ivan! — digo, mais alto do que gostaria.
— Tudo bem, mas isso não te faz
menos burro. Pelo amor de Deus, quem
recusa uma oferta dessas? — Ele parece
incrédulo desde que contei sobre a ideia
da minha mãe. — E eu aqui, esperando
pelo menos passar no programa de
aprendiz de uma empresa decente,
porque estudar música, posso esquecer.
A família dele, ao contrário da
minha, não o apoia nesse sonho de ser
músico e esse é um dos motivos de Ivan
sempre insistir comigo, ele faz parte de
uma orquestra composta por alunos do
papai que tocam em alguns eventos,
entretanto, seus pais não veem isso
como algo sério. Às vezes, até cogito a
ideia dele de aproveitar essa
oportunidade, mas em seguida me
lembro das mágoas que tudo isso me
trouxe, que vou ter que encarar a mamãe
e desisto.
— Depois o dramático sou eu —
respondo, tirando o celular do bolso
para ler as mensagens e ele fica
bisbilhotando.
— Vem cá, tu tá pegando a
Stefane também? — O encaro, sem
entender. — Não estava com a Marina
ontem, Romeu?
— Não, ontem era a Gigi.
— Tu é o bichão mesmo, hein?!
— Ivan faz piada e dá tapinhas no meu
ombro. — Deixa pelo menos uma para o
seu brother aqui.
— Se quiser a Stefane, pode
levar. — Dou de ombros, enquanto
digito qualquer desculpa para não
conversar com essa menina que é um
verdadeiro chulé no meu pé.
— Ela é a maior gata, cara. —
Esse bobão se encanta por toda garota
que aparece na sua frente. — Como tu
pode dispensar uma mina dessas?
— Tu sabe que eu não sou de me
apegar, Ivan — justifico.
Para mim, sentimentos só servem
para uma única coisa: machucar. É por
isso que nunca vou me render à paixão,
amor etc. Isso definitivamente não é
para mim.

— Ô, paiê, sábado à noite tem a


festa de aniversário do Rubinho, e eu
combinei de ir com a galera — aviso,
durante o jantar. — Tem como descolar
uma graninha para eu comprar uma
roupa nova?
— E as que você já tem? —
questiona, como se o meu guarda-roupa
fosse superatual.
— Tudo figurinha repetida, né,
pai?! — respondo, revirando os olhos.
— Se não puder, falo com a mãe para
adiantar a minha mesada.
Esse tipo de ameaça sempre
funciona, papai aceita a ajuda da ex-
mulher, mas ele é quem dita as regras,
acho muito injusto.
— Falei com a sua mãe e ela não
vai adiantar mais nada. — Papai faz uma
pausa e já sei que lá vem merda. —
Tenho uma proposta para você, preciso
de ajuda com a nova turma, que vai
começar aos sábados de manhã, e a
Érica sugeriu que poderia nos ajudar,
usar todo seu talento para alguma coisa.
O que acha?
Que grande merda! Não quero
ensinar música, só queria comprar uma
roupa nova, impressionar as garotas.
Como o assunto se desviou tanto?
— Eu não vou fazer isso, pai! —
Meu tom é um pouco exaltado, me
levanto da mesa e pego o prato para
levá-lo à cozinha. — Já disse que esse
negócio de música acabou para mim,
prefiro ir com as roupas velhas a pisar
naquela escola outra vez.
— Por que o Romeu não gosta
mais do Cello, papai? — Ana Júlia se
mete na conversa, falando com a boca
cheia.
— Outra vez essa conversa,
Ana? — retruco, irritado, da cozinha
colocando o prato bruscamente na pia.
— Todo mundo aqui tá careca de saber
que não toco mais e ficam insistindo o
tempo todo. Isso é um saco!
— Filho, não precisa falar assim
com a sua irmã — papai apazigua, mas
ando de saco cheio de forçarem essa
barra comigo.
— Tô cansado de ficar
respondendo a mesma coisa, toda hora
— argumento, sem um pingo de
paciência.
— Precisa conversar com
alguém sobre isso, nem que seja com a
sua psicóloga — insiste, entrando na
cozinha, segurando meu ombro e
encarando-me, mas desvio os olhos dos
dele.
Faço terapia desde que meus
pais se separaram, porém, isso só me
ajudou a lidar com outras questões,
algumas como a música e o meu
relacionamento com a minha mãe, não
tiveram muita evolução.
— Já disse que a minha vida
agora é outra e acho melhor aceitarem
— digo, magoado, replicando um dos
discursos mais frequentes de mamãe,
antes do divórcio, apenas para machucá-
lo.
Ele respira fundo, se preparando
para falar qualquer coisa, mas ao invés
disso, tira o celular do bolso lendo
alguma coisa na tela, depois digita e
volta seu olhar para mim.
— Ninguém aqui está te
obrigando a fazer nada, campeão —
afirma, dando tapinhas amistosos em
meu ombro. — Mas estarei aqui para
conversar, quando for a hora.
— Esquece, pai! — Me afasto
do seu toque e caminho até a porta. —
Vou para o meu quarto, posso ir à festa
com a galera?
— Se não se incomodar em usar
suas roupas “velhas”, pode sim —
autoriza, um tanto desconfiado. — Só
tenha juízo e não faça nenhuma
bobagem, o pai confia em você, filho!
— Relaxa, não vou engravidar
ninguém. — Forço um riso, afinal, esse
é o outro tema polêmico desta casa. —
A sua história não vai se repetir.
Vou para o meu quarto e me jogo
na cama, talvez eu tenha pegado muito
pesado com o papai, mas não aguento
essa paranoia dele sobre gravidez na
adolescência e suas conversas
intermináveis sobre fazer sexo seguro.
Ele não tem a menor ideia de que ainda
sou virgem, em sua cabeça transo todo
dia com uma garota diferente, quando,
na verdade, só avanço o sinal e nunca
permito mais que sexo oral.
Vago pelas redes sociais
assistindo a vídeos engraçados, depois
pulo para os músicos “diferentões” com
performances que me deixam vidrados,
vou passando os vídeos e por algum
motivo acabo em uma performance de
dança contemporânea que um amigo
compartilhou, a garota dança como se
ela, a música e o ritmo fossem um só.
Ao final da apresentação fico com a
sensação de que conheço a bailarina,
mas não tenho ideia de onde.
Coloco o pijama, os fones de
ouvido em uma playlist de cover pop
tocados no Cello e resolvo voltar à
leitura do livro que tia Ari me deu
semana passada. Não consigo gostar do
melhor amigo da mocinha e sinto que o
enredo vai tentar me empurrar esse
romance goela abaixo. Qual o problema
dos autores de fantasia em fazer a gente
gostar dos casais certos? Estou entretido
com a leitura, quando escuto uma batida
na porta e em seguida papai entra.
— Vou buscar a Isis, cuide da
sua irmã, volto logo. — Sua expressão
parece preocupada.
— Aconteceu alguma coisa? —
pergunto, arrumando os cabelos
bagunçados.
Ele acena para que espere um
momento e conversa com alguém ao
telefone.
— Vou desligar, mas chego aí em
alguns minutos — informa, andando pelo
meu quarto, que no momento parece uma
zona de guerra. — Você não está sozinha
nessa, meu bem!
A pessoa do outro lado parece
dizer alguma coisa, por fim, ele coloca o
celular no bolso e passa as mãos pelo
rosto, em um gesto que sempre faz
quando está tenso.
— E então, pai? — pergunto,
curioso.
— É a sobrinha da Isis... —
começa e reviro os olhos ao me lembrar
da garota irritante, jogando os braços
rente ao corpo, sem permitir que
continue.
Não tenho notícias dela desde a
fazenda e gostaria que tudo continuasse
do mesmo jeito, mas aparentemente ela
fez alguma besteira adolescente.
— A patricinha aprontou, e
agora o meu pai tem que sair no meio da
noite para limpar as merdas dela? —
disparo, sem pensar, e o homem me olha
cheio de reprovação.
— O pai dela a espancou, não é
hora para briguinha adolescente, Romeu
— diz, um tanto irritado e a informação
me assusta, porque nem consigo pensar
no meu pai fazendo algo assim.
— Que merda! — Levo as mãos
à boca. — O que você vai fazer?
— Por ora, só trazer as duas
para cá. — Balança a cabeça. — Elas
estão assustadas e não vou conseguir
dormir se não fizer ao menos isso. Por
favor, não faça piadinhas com a Letícia,
contenha seu humor ácido e segure essa
língua solta.
— Beleza, pai! — falo,
pensativo.
— Pega o colchão na despensa e
coloca no quarto da Ana Júlia para a
Letícia dormir lá — ordena e ainda
estou preso na informação de que uma
garota foi espancada pelo próprio pai.
— Está me ouvindo, Romeu?
— Hã... Tô sim, pai. Acho que
ela pode dormir aqui no meu quarto, eu
fico no sofá da sala. — Começo a puxar
os lençóis da cama para levar ao sofá da
sala e colocar novos para a garota. —
Pode deixar, pai, vai lá...
— Mais uma coisa, filho — ele
diz, parando na porta e virando-se para
mim. — Nada de implicar com a garota,
pelo amor de Deus! Não preciso de um
novo problema. Promete que vai se
comportar?
— Prometo — respondo, de
forma sincera.

Ana Júlia e eu não tivemos uma


criação violenta, apesar de meu pai
fazer boas ameaças, provavelmente essa
foi a razão do horror estampado na
minha cara quando abri a porta do nosso
apartamento para que entrassem. Seu
lábio inferior estava inchado e com um
corte, o olho roxo e ela parecia um
animalzinho acuado com os olhos cheios
de vergonha.
A imagem dela toda machucada
daquele jeito permanece na minha
cabeça a noite toda, que espécie de pai é
esse que espanca a filha de um modo tão
agressivo a esse ponto? Rolo no sofá
tentando dormir, acompanho todas as
vezes que Isis vai ao quarto onde a
sobrinha está, ouço o choro
descontrolado da garota e fico
angustiado querendo fazer qualquer
coisa para arrancar o desespero dela,
porém, me contenho.
Papai acorda cedo para preparar
o café da manhã, enquanto o ajudo por
livre espontânea pressão, acabamos
conversando um pouco sobre a nossa
hóspede.
— Foi mesmo o pai da
patricinha que fez aquilo no rosto dela?
— pergunto, depois de colocar as
canecas sobre a bancada de mármore,
encostando na pia e minha voz soa mais
preocupada do que pretendia
transparecer.
— Sim, não vou entrar em
detalhes — explica, olhando-me. —
Afinal, é a vida da garota e não cabe a
mim nem a você se meter nisso.
Entendeu?
Assinto, arqueando a
sobrancelha.
— Como uma pessoa pode ser
tão ruim assim? — continuo, baixinho,
olhando na direção da porta.
— Estou tentando entender isso
também, meu filho — diz, colocando o
café na garrafa térmica e muda de
assunto. — Vai continuar aí parado ou
vai me ajudar?
— Tô indo, eu, hein?! — Pego as
canecas, mas permaneço parado,
encarando-o, preocupado com uma ideia
que me ocorreu. — Acha que o velho
pode fazer alguma coisa contra a
patricinha?
Papai me encara como se
estudasse as minhas intenções, tento
esconder a parte que está quase entrando
em pânico por ver a menina sofrendo
tanto e tenho certeza de que falhei
miseravelmente quando ele me
responde, em um tom compreensivo:
— Não sei, foi por isso que as
trouxe para cá — admite, por fim. — A
Ísis estava muito nervosa, com medo de
que Wallace aparecesse lá e fizesse
alguma coisa com as duas.
— Existe alguma coisa que se
possa fazer? — questiono, fitando-o
tenso. — Sei lá, uma denúncia, uma
queixa na delegacia.
— A Isis registrou um B.O.,
fizeram corpo de delito e mandaram elas
para esperarem em casa — responde,
um tanto incomodado.
— Eu não gosto dessa
patricinha, mas não quer dizer que curto
ver ela sofrendo. — Puxo os fios dos
cabelos nervosamente, essa garota me
causa sensações estranhas e não gosto
nada disso.
— Isso se chama empatia —
alfineta, rindo. — É muito bom saber
que ainda restou um pouco de
humanidade em você.
— De tempos em tempos, ela dá
sinal de vida. — Dou de ombros,
fingindo indiferença, um pouco antes de
ir para a sala de jantar, equilibrando as
canecas e pratos nos braços.
Estamos quase finalizando à
organização, quando Ana Júlia surge,
sonolenta, em seu pijama rosa com
coroa de princesa, com os cabelos
bagunçados e olhos inchados.
— Por que o Romeu está
arrumando a mesa de café da manhã? —
pergunta, esfregando os olhos.
— Porque é um garoto muito
obediente. — Papai aperta seu nariz e se
abaixa para beijar sua testa. — E a Isis
dormiu aqui com a Letícia, sobrinha
dela, lembra?
Ela se enche de empolgação com
a possibilidade de ter companhia para
suas brincadeiras chatas que me deixam
entediado, mas papai parece tenso.
— A tia Isis dormiu aqui? —
especula, com a mão no queixo. — Mas
hoje nem é domingo e por que a Lety
está aqui? — A garotinha abaixa o tom
de voz. — Ela nem gosta do Romeu,
papai.
— Aconteceu um probleminha
com ela, e o papai acabou trazendo-a
junto da tia Ísis para a nossa casa — ele
explica, tentando arrumar os cabelos
dela, provavelmente calculando o que
pode ou não contar à minha irmã. — A
Lety caiu... e machucou o rosto, mas não
fica perguntando sobre isso,
combinado?
— Que pena! — lamenta,
balançando a cabeça. — Acha que ela
vai querer brincar comigo, mesmo
estando doente?
— Pirralha, a patricinha não é
mais criança, é melhor esquecer essa
ideia — afirmo, afastando-a do meu
caminho quando organizo os pratos na
mesa. — O que você deveria fazer era
escovar os dentes, porque está com bafo
de leão.
— Como você sabe disso, se
nem chegou perto de mim? — Ela
semicerra os olhos.
— Para ver como está horrível,
estou sentindo o seu bafo daqui —
implico, ignorando o olhar de
repreensão do papai.
— Parem com essa briga boba,
agora — ele interrompe a nossa
discussão. — Ana, vá escovar os dentes
e trocar de roupa; Romeu, faça o mesmo,
assim que colocar tudo na mesa. Não
quero saber de intrigas, temos visitas e
precisamos, ao menos, fingir que somos
uma família civilizada. — Bate palmas.
— O que ainda fazem aqui?
Continuo fazendo as minhas
coisas quando os dois somem pelo
corredor, depois eu faço o que papai
pediu.

Letícia não saiu do quarto para


tomar café da manhã conosco, muito
menos para o almoço. Isis levou alguma
coisa para ela comer, só que parece que
a garota está imersa demais em seu
próprio sofrimento, não a julgo, porque
sei exatamente como é se sentir assim.
Durante a tarde, papai, Aninha e
a Isis vão assistir a um filme e acabo me
esgueirando pela casa, inquieto, com
uma desculpa de que não gosto da
história que eles escolheram e encontro
a garota no corredor, como se estivesse
em dúvida sobre ir ou não até a sala.
— Tudo bem? — pergunto,
enfiando as mãos no bolso do short e me
encostando na parede, mas ela não me
responde. — Olha, eles estão assistindo
a uma animação chata, mas talvez você
goste...
Seus olhos estão inchados pelo
choro, o hematoma arroxeado em seu
rosto junto ao seu lábio machucado faz
uma raiva me dominar. Como alguém faz
isso com a própria filha?
— Eu não quero assistir... —
Sua voz é um sussurro. — Vou voltar
para o quarto.
— Posso ir com você? —
indago, passando as mãos pelos cabelos,
fazendo uma careta.
— O quarto é seu. — Ela dá de
ombros, segurando a maçaneta da porta.
Mesmo sabendo que a menina
gostaria de ficar sozinha, a sigo em
silêncio, não consigo evitar essa
vontade de fazer com que ela se sinta
melhor ou esqueça o que quer que
tenham lhe feito. Ela se joga na minha
cama e me sento no chão, encostando-me
ao guarda-roupa, encarando-a.
— Do que você gosta de fazer?
— pergunto, um pouco sem jeito.
— Não precisa fazer isso —
Letícia diz, encarando o teto.
— O quê? Só estou tentando ser
legal. — Finjo estar ultrajado com sua
resposta.
— Você não me suporta, garoto,
e sempre fez questão de deixar isso
muito claro.
O jeito que fala demonstra sua
mágoa, mas sei que não tem nada a ver
comigo, por isso, continuo:
— Nunca assistiu Megamente?
— A ouço rir, sem humor. — Arqui-
inimigos também têm seus dias de
trégua.
— Não é bem assim que as
coisas acontecem no filme, mas não vou
discutir isso com você — diz, enrolando
uma mecha de cabelo entre os dedos.
Balanço a cabeça, rindo.
— Então você curte animações
— afirmo, pegando um livro sobre a
mesinha de estudos, sem me levantar. —
E livros? Gosta de ler?
Ela se senta na cama e me encara
com uma expressão indecifrável.
— Escuta aqui, Romeu —
começa, em um tom baixo, talvez para
não chamar atenção das outras pessoas
da casa —, não precisa ficar aqui,
tentando fazer com que eu me sinta
melhor, pode ir cuidar das suas coisas
irritantes. Não preciso da sua pena, eu
nem queria vir para cá, mas não tive
muitas opções. Só me deixa em paz!
Olho-a por um momento, ela não
parece tão irritada quanto quer que eu
acredite, ao contrário, a expressão de
seu rosto está mais suave e sem muita
tensão.
— Tudo bem, se é o que quer. —
Levanto-me e caminho até a porta,
parando por um momento e virando para
olhá-la. — Só não saia dizendo por aí
que eu sou um péssimo anfitrião, porque
eu tentei.
Letícia me mostra o dedo do
meio e joga um travesseiro na minha
direção, ao menos agora ela voltou a ser
a garota irritante de antes. Sigo para o
terraço em busca de um pouco de ar,
talvez eu devesse mesmo sair esta noite
e tentar esquecer um pouco esse clima
estranho que está aqui em casa.

Decido ir à festa do meu amigo,


talvez o fato de eu não estar em casa
possa ajudá-la a desenfurnar e fazer
alguma coisa de garotas como a
namorada do papai faz com a Ana Júlia.
Vou até o quarto para pegar minhas
roupas e, com a porta entreaberta, acabo
ouvindo a conversa das duas, a
curiosidade fala mais alto e não as
interrompo.
— Não vou jantar com o
professor e os filhos dele, tia. — Ouço a
patricinha dizer. — Já foi constrangedor
demais vir toda arrebentada para casa
desse garoto, ele vai tirar onda da minha
cara pelo resto da vida.
— O Romeu não é esse tipo de
pessoa, Lety — Isis me defende e dou
um sorrisinho presunçoso, encostando-
me na parede próxima à porta. — O
menino deu o próprio quarto para você,
não seja tão má.
— Eu não pedi nada, nem queria
vir para cá — ela diz, magoada. — O
que eu queria mesmo era sumir desta
merda de planeta e nunca mais voltar,
mas já entendi que seria pedir demais.
— Escuta o que você está
dizendo. — Fico com pena de Isis, ela
parece se sentir culpada pelo que
aconteceu com a sobrinha. — Esses
machucados não vão doer para sempre,
embora não possa dizer o mesmo das
cicatrizes, e sei que é forte o suficiente
para superar isso. Sou sua tia, querida,
nunca vou sair do seu lado.
— Ah, tia... está doendo tanto —
a garota desaba, com a voz embargada
pelo choro e isso faz um nó se formar
em minha garganta.
— Vai passar, meu amor, confia
na tia — garante, ela tem muita sorte de
ter uma mulher tão legal ao seu lado em
um momento horroroso feito este. —
Prometi à minha irmã que cuidaria de
sua filha e vou cumprir, nem que para
isso eu tenha que chutar a bunda do
babaca do Wallace.
Ouço passos pelo quarto e fecho
os olhos, tentando fazer o mínimo de
barulho possível, meu pai tem um ataque
do coração se me pega bisbilhotando
desse jeito, só que quero entender
melhor o que aconteceu com a patricinha
e sei que ninguém vai me contar de fato.
— Não suporto isso! —
esbraveja, fungando. — Tudo por culpa
daquela mulherzinha baixa, nunca vou
perdoar meu pai por escolher acreditar
na amante e espancar a própria filha.
Fico em choque com as suas
palavras, é como se eu fosse novamente
aquele garotinho que se sentiu trocado
pela música e desistiu de todas as coisas
que amava, não é justo que essa menina
passe por isso. Sei o quanto dói querer
só um pouco de amor e receber
indiferença em troca — ao menos era
isso que eu pensava na época.
— Meu amor, não fica remoendo
isso. Você precisa se alimentar. — Isis é
persistente. — O Ariel está sendo tão
gentil, não custa nada retribuir.
— Desculpe, mas não vou sair
daqui. — Ela parece muito decidida a se
trancar no meu quarto. — Eu estou
horrível, parecendo um monstro com
esse olho inchado e todo o resto, não
quero assustar seus amigos. — Não
posso permitir que essa garota mergulhe
na autopiedade, é mais forte do que eu.
— E não vai, porque ninguém
aqui a está julgando, patricinha —
afirmo, abrindo a porta de uma vez,
fazendo com que ambas olhem na minha
direção. — Perdão, vim buscar uma
roupa para tomar banho e acabei
escutando a conversa de vocês.
Não é totalmente verdade, mas
ninguém precisa saber. Enfio as mãos no
bolso do short e pressiono os lábios em
linha reta, dando um passo incerto para
dentro do quarto, Letícia leva as duas
mãos ao rosto, envergonhada.
— Por favor, saia daqui — ela
diz, entredentes, com a voz embargada
pelo choro.
— Sinto muito, mas o quarto é
meu — retruco e sua tia me olha feio
quando dou alguns passos de forma
cautelosa. — O que aconteceu não foi
culpa sua... — começo baixinho. —
Você não pode ficar se escondendo aqui
para sempre, patricinha.
— Não estou fazendo isso, seu
garoto metido — responde, fulminando-
me com os olhos.
— Está, sim — rebato, exibindo
um sorrisinho que a deixava possessa na
fazenda. — Sei que deve estar tudo
bagunçado aí na sua cabeça e só pensa
em sumir, ficar sozinha em um canto
escuro, chorando as suas mágoas, e te
digo, por experiência própria, que não é
a melhor opção.
Consigo sua atenção, que me
olha um tanto curiosa quando me sento
na cama, segurando um porta-retratos
com uma foto minha e de mamãe, que
peguei de um dos nichos da parede. O
fato de ter essa recordação aqui e em
outras partes da casa é um constante
lembrete de que existem coisas que não
podemos mudar e precisamos seguir em
frente, mesmo sem superar.
— Meu pai e minha irmã são
meio chatos e até entendo seu medo de ir
lá fora... Eu sou a pessoa mais legal
desta casa — afirmo, piscando para Isis,
fazendo-a rir. — Porém se permitir que
eles entrem, vai ver que são os melhores
amigos que alguém poderia ter.
— Não preciso de amigos —
Letícia se apressa em dizer.
— Ah, precisa, sim. Só não se
deu conta, ainda. — Inclino o corpo
para trás, deitando-me na cama,
encarando o teto. — Não se incomode
comigo, vou sair daqui a pouco para
uma festa com os amigos e, na minha
humilde opinião, você deveria
aproveitar a companhia dessas pessoas,
ao invés de ficar se martirizando por
algo que nem foi sua culpa.
— Cale a sua boca, não sabe
nada sobre mim. — A garota ainda soa
magoada.
— É verdade, não te conheço,
patricinha — a surpreendo com a
concordância, seu olhar diz isso quando
a encaro —, mas sei o suficiente para
afirmar que não merece nenhum desses
hematomas no seu corpo. — Me levanto
de uma vez e vou até o armário pegar as
minhas roupas. — Vou sair, mas não
porque me mandou — digo, em um tom
petulante, depois pisco para Letícia. —
Aproveita essas horinhas livre de mim e
faça algo que te deixe realmente feliz,
esqueça o idiota do seu pai, o meu é
bem mais legal, isso eu garanto!
Deixo-as sozinhas novamente e
com uma incômoda sensação de que não
deveria sair de casa. Me arrumo e
quando estou prestes a sair, papai
aparece na sala.
— Romeu, tenha cuidado —
recomenda, com aquele olhar de
preocupação que sempre faz quando vou
a algum lugar com os meus amigos. —
Estou te deixando ir porque me garantiu
que Leon não vai estar nessa festa, sabe
que não gosto daquele garoto.
— Relaxa, pai, não vou fazer
nenhuma bobagem — garanto e ele
franze a sobrancelha. — Juro?!
— Você também jurou das outras
vezes... — O homem me encara, sério.
— De verdade, papai, aprendi a
lição. Aquilo foi há meses. — É
horrível essa sensação de que ele não
confia mais em mim como antes.
— Ok. E, pelo amor de Deus,
não se esquece de usar camisinha —
sabia que não ia demorar muito para
esse assunto voltar.
— Eu sei, pai. — Faço uma
careta e lhe dou um tchauzinho. — Fui.
Peço um carro no aplicativo e passo a
viagem toda pensando na garota que
ficou na minha casa, preciso tirá-la da
minha cabeça.
Letícia
A noite passada foi horrível,
estar em uma casa estranha não ajuda
muito. Embora aqui me sinta segura,
estou numa vergonha terrível por ter que
contar com a generosidade de pessoas
que nem conheço direito para fugir do
homem que deveria me proteger. Faz
mais ou menos uns quatro meses que
conheci Ariel e sua família, apesar de
não os ver depois do fim de ano na
fazenda — graças ao Pai, porque eu não
tinha a mínima intenção de ver Romeu
outra vez —, não gosto de incomodar
ninguém com a droga dos meus
problemas familiares.
Jantei em silêncio, enquanto Ana
Júlia tagarelava com tia Isis sobre um
filme que assistiram durante à tarde.
Ariel pareceu preocupado com o meu
estado, Romeu foi para a festa depois de
se meter onde não foi chamado, isso me
deixou um pouco à vontade.
A família mora na cobertura de
um prédio charmoso de três andares em
um bairro de classe média, o
apartamento tem aquele ar de lar e isso é
reconfortante. A garota mais nova
dormiu, eu fiquei sem graça de
atrapalhar minha tia e seu “quase
namorado” — como ela mesma intitula
—, por isso acabei indo mais cedo para
o quarto cedido por Romeu — um fato
que me deixou muito intrigada.
Deito-me na cama, encarando as
fotos do garoto bem mais novo
segurando um Cello, ele parecia ser
legal nessa época de sua vida. Pego um
livro sobre a sua mesa de estudos e leio
o título Sombra & Ossos, Leigh
Bardugo. Ele curte fantasias, a julgar
pelas coleções de Harry Potter e Trono
de Vidro expostas no nicho acima do
ambiente de estudos. Tento não pensar
muito no dono do quarto, mas o seu
cheiro está por toda parte e me lembram
do quanto ele pode ser irritante quando
não está tentando ser um bom anfitrião,
como este fim de semana.
Eu me arrumo na cama, na
esperança de conseguir dormir, e uma
pontada de dor na costela levam-me à
outra questão, as imagens do homem
furioso me agredindo tomam conta da
minha cabeça. Começo a me sentir
sufocada dentro do cômodo, uma
angústia horrível me invadindo e
levanto-me pé ante pé para ir até o
terraço que Aninha me levou antes do
jantar.
Olho no visor do celular e é
quase meia-noite quando me encosto à
mureta de proteção, tentando tirar da
cabeça toda a merda que aconteceu
comigo, sentindo que posso explodir a
qualquer momento. Odeio meu pai em
um nível que gostaria de nunca mais vê-
lo nesta vida.
Como ele pôde achar aquelas
coisas horríveis de mim por conta de
um vídeo? Apanhei feito uma condenada
por fazer o que amo, mas ele odeia, esse
tem sido o tipo de vida que levo desde
que mamãe se foi. Tudo isso porque
Breno postou um vídeo de uma
apresentação minha lá na academia, meu
pai nunca aceitou muito bem meu amor
pela dança e com a morte da mamãe isso
descambou para agressões verbais
constantes.
Se não fosse por minha tia, já
teria me tirado das aulas que, segundo
ele, só tem o propósito de me tornar uma
mulher desqualificada que sai “dando”
para qualquer um, até minhas roupas são
um problema e a Sararaca sabe muito
bem como ele fica, inclusive, foi a
responsável por mostrar o vídeo e
enfiou mil bobagens na cabeça louca do
meu pai.
— Eu não acredito que estou
passando por isso — sussurro, limpando
as lágrimas, enquanto observo as luzes
da cidade com a brisa da noite tocando
meu rosto.
Sinto-me solitária, meus olhos se
enchem de lágrimas com esse
pensamento e o celular vibra anunciando
uma nova mensagem de Breno, às vezes
é como se meu amigo soubesse
exatamente quando preciso dele.
“Oi, bandida! Ainda na casa do
‘quase’ namorado da sua tia?”
“Infelizmente.” Sinto uma
pontada de culpa, porque embora eu
esteja toda arrebentada, Ariel e os filhos
têm sido muito gentis comigo, apesar
dos olhares de pena, não houve nenhuma
pergunta indiscreta como imaginei que
teria, mas isso não anula o fato de que
eu queria estar bem longe daqui, na
verdade, gostaria de poder ir para
Marte.
“Ao menos, você tem um colírio
aí à sua disposição. No seu lugar, eu
saltaria no pescoço dele e só
desgrudaria se alguém nos separasse.”
Caí na besteira de contar a Breno sobre
o meu quase beijo em Romeu e, embora
tenha lhe explicado que o garoto metido
tornou os dias na fazenda horríveis, meu
amigo acha que preciso agarrar as
oportunidades que a vida me oferece e
não é de forma metafórica.
“Assanhado! Aquele cara é um
pé no saco de tão chato... ontem veio
com liçãozinha de moral para o meu
lado, se metendo onde não foi
chamado.”
“Me apresenta para ele, nunca
te pedi nada.” Quase posso ver sua cara
sem-vergonha ao escrever isso.
“Ele não faz o meu tipo e muito
menos o seu. Aceita que dói menos!”
Talvez a minha parte não seja totalmente
verdade, mas ele não precisa saber.
“O menino é lindo e tem uma
carinha de nerd incompreendido,
lógico que faz o nosso tipo. Você só
pode é ser cega! Já viu os vídeos dele
tocando Cello? Meu Deeeuuuusss, é
isso que eu quero pra minha vida e
nada além.” Seu áudio escandaloso
quase arrebenta meus tímpanos.
“Andou stalkeando o garoto?”
Digito, intrigada.
“Lógico! Se achou que eu ia
simplesmente deixar para lá o fato de
minha amiga quase ter beijado um
garoto depois de meses na seca? Você
não me conhece.” Esqueço que às vezes
Breno é pior do que aqueles IG’s de
fofoca.
“E o que descobriu?” Envio a
mensagem e me arrependo
imediatamente, mas ele já leu.
“Sabia que a mãe dele é a
Carla Cardoso, aquela cantora pop
famosa ou que o pai dele chegou a ter
um canal badalado sobre música no
Youtube?” Sim, tia Isis havia me
contado, mas não achei necessário
contar esse detalhe para ele,
conhecendo-o bem não demoraria muito
para que ligasse os pontinhos e eu não
queria saber nada da vida de nenhum
deles... Ah, pelo amor de Deus, a quem
estou querendo enganar?
“Passou os últimos meses
investigando a família do ‘quase’
namorado da minha tia? É isso que
está me dizendo?” Mando-lhe um áudio.
“Pode ser que sim, pode ser que
não. Aposto que vai adorar saber que o
seu Romeuzinho era uma gracinha
quando pequeno e tá cheio de vídeos
fofos dele tocando Cello na internet.
Vou te mandar alguns. Quer ver?”
Senhor, quando eu digo que meu melhor
amigo tem uma veia fofoqueira, não
estou brincando.
Recebo alguns links para o
Youtube, mas não me atrevo a abrir.
“Não quero ver. Isso só prova
que eu tenho razão e ele é um filhinho
de mamãe muito mimado e cheio de si.
Não vou mais falar sobre ele, Breno.”
“Poxa, vida! Ele é tão gatinho.”
“Acho que não sou eu quem está
cega.” Escrevo, rindo.
Breno sabe como me tirar de
uma bad como ninguém.
“Tu está bem mesmo, amiga?”
A mensagem de texto vem acompanhada
de um emoji tristonho.
“Vou ficar. Meu rosto continua
horrível, mas menos inchado e tenho
uma sensação de que estou perdida na
vida, sabe?!” Não tenho por que mentir
para ele.
“Desculpa por ter insistido
tanto para postar aquele vídeo.” Breno
ficou péssimo quando contei a razão da
surra que levei.
“Não foi culpa sua, amigo. Vou
ficar bem.” Respondo, tentando tirar um
pouco da culpa que ele sente.
“Só não esquece que estou aqui
para você, sempre e para sempre, como
naquele livro que terminamos semana
passada, com a diferença que não sou
eu quem vai beijar a sua boca.” Outra
coisa sobre nossa amizade, sempre
gostamos de ler os mesmos livros,
geralmente romances proibidos para a
nossa idade e roubamos as frases deles
para a nossa vida.
“Bobo. Te amo!”
“Eu também, se precisar de mim
é só gritar que vou correndo. Preciso
dormir, tenho ensaio amanhã cedo.
Sabe de uma coisa? Deveria espantar
toda essa energia ruim fazendo uma
coisa que te deixe leve. Boa noite,
Lety.”
Fico encarando a tela do celular
por um tempo, pensando em sua
sugestão, por fim, resolvo seguir seu
conselho, afasto a mesa de centro em
que está próxima a um sofá em formato
de L, abrindo espaço para que possa
fazer a única coisa capaz de dissipar
toda a tensão do meu corpo: dançar.
Ao contrário do que a mamãe
sonhava, eu não segui com as aulas de
balé depois de sua morte, não fazia o
menor sentido me tornar bailarina
quando a pessoa que mais almejava isso
não estaria presente para ver a minha
evolução. Ainda assim, a dança sempre
teve um efeito calmante sobre mim,
mesmo não a praticando com tanta
frequência, então há dois anos fui
apresentada pelo meu melhor amigo a
um estilo moderno e foi como se
finalmente estivesse livre.
A dança contemporânea é
basicamente uma desconstrução do balé
clássico, sem toda a rigidez e com
movimentos mais fluídos, os dançarinos
possuem mais liberdade para interpretar
a coreografia e isso me atraiu demais.
Desisti de fazer muitas coisas
que gostava nos últimos anos, não me
orgulho disso. Retornar para algo que
amava e me faz sentir próxima da minha
mãe, traz um pouco de alento aos meus
dias sombrios. Tiro o tênis ficando
apenas com as meias nos pés, amarro o
cabelo em um rabo de cavalo, abro o
aplicativo de música, escolho a playlist.
Uma versão de Lovely, de Billie
Eilish começa a tocar quando me sento
sobre as pernas no piso de madeira,
fechando os olhos para sentir a batida
lenta do início, a música vai penetrando
pela minha mente empurrando os meus
temores para um cantinho escuro.
Oh, I hope some day I'll make it
out of here
(Oh, eu espero que algum dia eu
consiga sair daqui)
Even if it takes all night or a
hundred Years
(Mesmo que demore toda a noite
ou cem anos)
Need a place to hide, but I can't
find one near
(Preciso de um lugar para me
esconder, mas não consigo encontrar um
próximo)
Wanna feel alive, outside I can
fight my fear
(Quero me sentir vivo, poder
lutar contra o meu medo do lado de fora)
A letra conversa comigo
influenciando cada movimento do meu
corpo desde o mais simples ao mais
elaborado, os músculos relaxando cada
vez mais. Sozinha na noite fria, sinto-me
como um pássaro voando no céu em uma
sensação de liberdade indescritível. A
segunda música começa, Believer, de
Imagine Dragons parece perfeita para
extravasar as emoções e me deixo levar
pelos movimentos, me esquecendo de
toda a dor que tenho sofrido.
O suor escorre pelas minhas
costas sob a regata de malha, os cabelos
estão molhados, o meu corpo dolorido,
sei que nada tem a ver com o que acabei
de fazer e sim com a surra que levei há
dois dias. Meu olho parece melhor,
Ariel sugeriu que fizesse compressa de
gelo além de tomar as medicações e
sinto-me grata por isso, porém adquiriu
um tom roxo-azulado, que me deixa num
estado deplorável. O lábio inferior está
quase cicatrizado, os hematomas nas
minhas costelas e coxas são de uma cor
horrível, por sorte, a legging e a blusa
larga disfarçam.
Sinto tanta raiva por ter
permitido que isso acontecesse comigo,
detesto os olhares piedosos de todos
desde sexta à noite, quando cheguei,
contudo, o pior foi ver o horror
estampado no rosto de Romeu, aquilo
foi a coisa mais constrangedora que já
vivi, nem mesmo o nosso quase beijo e
meu surto na fazenda conseguem superar.
Seco o rosto com o dorso da
mão, desligo a música e caminho até a
mureta com uma grade de madeira para
sentir o vento refrescante da noite e
olhando para a rua lá embaixo nem
parece tão distante ou perigoso, tenho
uma ideia maluca de me sentar sobre
ela, entretanto, meu momento é
interrompido por uma voz muito familiar
para mim, desde ontem à noite.
— Viver ainda é a melhor opção,
a sua tia te ama... pensa em como ela vai
ficar se você fizer isso — Romeu diz
cautelosamente, a uns poucos passos de
mim.
— Eu não ia pular — afirmo
rapidamente, sem me virar para o garoto
intrometido.
— Duvido muito. — Ainda há
hesitação em sua voz que está um pouco
mais próxima agora. — Por favor, me dê
a sua mão e saia daí. Não quero ter que
explicar ao meu pai e sua tia como
foram seus últimos momentos antes de
morrer.
Ele parece convencido do que eu
estava prestes a fazer e, analisando
friamente, dadas as circunstâncias da
minha vida, é muito fácil deduzir que
quero dar cabo a ela. Apesar de ter
parado com a terapia poucos meses
depois da morte de mamãe, sei o quanto
isso soa errado, sem mencionar que
seria uma injustiça sem tamanho e
estaria desonrando a promessa que fiz a
minha mãe de resistir bravamente,
embora esteja falhando muito nisso.
— Me dê a sua mão e venha até
aqui, Letícia! — Romeu pede outra vez
em um tom muito preocupado e acabo
virando-me para olhá-lo.
Temos a mesma idade, só que ele
aparenta ser muito mais velho que eu,
como se já tivesse vivido coisas demais
e isso é intrigante, porque julgando-o
por sua aparência falsamente
desleixada, não passa de um adolescente
rebelde sem causa. Ele veste uma
camiseta cinza com a estampa de um
rosto que parece uma pintura barroca e o
nome Vivaldi escrito logo abaixo em
uma letra elegante na cor preta, uma
calça jeans azul-claro, pelo modo como
me olha, sei que devo atender ao seu
pedido, mas hesito por um momento.
— Estou falando sério. — O
garoto arqueia a sobrancelha dando
passos relutantes na minha direção com
a mão estendida para mim. — Por
favor...
Coloco a mão sobre a sua, certa
de que isso irá acalmá-lo e quando nos
tocamos, sinto aquela porcaria esquisita
de meses atrás, no dia do Natal. Seus
dedos estão frios e o peito sobe e desce
acelerado, consigo observar mesmo com
a pouca iluminação.
— Da próxima vez que tentar se
matar, certifique-se de que não tem
plateia — ralha, arrastando-me pelo
braço para longe da mureta. — Existem
outros meios de resolver os problemas
da vida, como um psicólogo. Já
experimentou?
— Garoto. Eu. Não. Estava.
Tentando. Me. Matar — digo, irritada,
soltando do seu aperto e me jogando no
sofá com almofadas coloridas.
— Não foi o que pareceu,
patricinha. — Romeu puxa os fios dos
cabelos e balança as pernas
nervosamente, em seguida puxa a mesa
de centro e se acomoda à minha frente.
— Num momento você era uma
dançarina gostosa e no outro uma doida
tentando se jogar do terraço, tem ideia
do que senti quando percebi que ia subir
na grade?
— Desculpe. — Não o encaro,
mas me sinto muito idiota.
— Que ideia idiota! — ele ralha,
ainda assustado.
Então, assimilo suas palavras
cerrando os olhos na sua direção, sem
acreditar no que acabei de ouvir:
— Estava me espionando
dançar?
Silêncio.
— Sim. — Sua resposta curta
diz muito mais do que eu gostaria de
saber. Droga!
— Você não deveria estar em
algum lugar com seus amigos ao invés
de ficar me espionando ou se metendo
onde não foi chamado, seu garoto
metido? — questiono, irritada.
— Ei, não precisa ficar assim —
diz, na defensiva.
— Preciso, sim! — sibilo e ele
faz uma careta. — Não tinha que estar
com os seus amigos? Aliás, seu pai
deixa você chegar assim, tão tarde?
— Preocupada comigo,
patricinha? — Romeu arqueia a
sobrancelha e reviro os olhos.
— De jeito nenhum.
— Não é o que parece. — A
frase é acompanhada de um risinho
debochado. — Meus amigos estavam
chatos, quanto ao meu pai... bem, sou
confiável e ele sabe disso.
— Sei...
— E você não deveria estar
dormindo como todos lá embaixo? —
Agora parece mais relaxado.
— Queria um pouco de ar —
minto, encarando minhas mãos sobre os
joelhos.
— Duvido. — Seu tom é de
desafio. — Olha, eu disse isso a você
mais cedo, só que não custa repetir. O
que aconteceu não foi culpa sua...
— Você não sabe — retruco,
abraçando o meu próprio corpo.
— Posso não saber mesmo, só
que você não é o tipo que merece uma
surra tão feia dessas, patricinha — ele
diz, sério, mas ainda assim usa o
apelido debochado. — Aliás, ninguém
merece.
— Talvez eu tenha feito algo
muito feio — insisto, sentindo as
lágrimas inundarem meus olhos,
enquanto tento em vão segurá-las.
Seus olhos estão sobre mim,
Romeu parece pensar na resposta ou
pode ser que apenas esteja analisando as
emoções estampadas em meu rosto,
apoio as mãos nas bordas do sofá e
aperto até os nós dos dedos ficarem
brancos.
— Não fez. — Ele se inclina,
ainda sentado na mesa de centro de
modo que fiquemos frente a frente e
pega a minha mão, segurando-a entre as
suas. — No máximo, você o chamou de
metido e ele não gostou.
Rimos juntos, o clima parece
mais leve agora. O vento balança os
coqueiros plantados em jarros e
dispostos em alguns pontos para dar um
visual aconchegante ao local.
— Eu daria um soco nele, por te
machucar desse jeito. — Seus dedos
contornam o hematoma sobre meu olho
secando uma lágrima e me encolho com
o contato. — Você é chata pra um
caralho, mas nada justifica toda essa
atrocidade.
— Era para ser um elogio ou um
xingamento?
— Os dois. — Seus lábios se
curvam em um sorriso que traz um frio
na minha barriga.
Nenhum de nós diz nada por um
longo momento, os dedos macios fazem
pequenos círculos no dorso da minha
mão, o movimento lento vai acalmando a
confusão de sentimentos e não sinto toda
aquela irritação que sempre me
persegue.
— Onde você aprendeu a dançar
daquele jeito? — O questionamento me
faz encarar os pés e soltar o ar, devagar.
— Não é da sua conta. — A
resposta soa mais grossa do que eu
gostaria.
— Quase me mata do coração e
não posso saber onde aprendeu a se
mexer de um jeito tão hipnotizante? —
diz, balançando a cabeça com aquele
sorrisinho presunçoso no canto da boca.
— Eu sou uma piada para você?
— Seu idiota! — ralho.
— Um idiota muito bonito,
admita. — Agora ele aperta minhas
mãos e me olha de um jeito sedutor. —
Ah, e que quase teve um infarto por sua
culpa, poucos minutos atrás.
— Você se acha demais e é tão
dramático, quer que eu peça desculpas
de novo?
— É um bom começo. — Pisca,
chegando mais perto, fazendo com que
seu cheiro invada meus pulmões. —
Está desviando do assunto, patricinha.
— Não estou, não. — Balanço a
cabeça, rindo ao mesmo tempo que tento
não me afetar pelo seu perfume.
— Pare de sorrir assim, caso
contrário, terei que terminar o que
começamos meses atrás. — Uma
corrente de adrenalina percorre o meu
corpo quando ele entrelaça nossos
dedos desajeitadamente, me olhando
fixamente.
Não consigo respirar direito,
suas pupilas estão dilatadas, os olhos
descem para os meus lábios e os mordo
involuntariamente.
— Essa sua boca linda não sai
da minha cabeça — ele sussurra, tão
próximo que seu hálito quente toca
minha pele, a fragrância suave que exala
de seu corpo me deixa tonta.
Óbvio que pensei muitas vezes
naquele nosso breve momento de trégua,
mas depois daquela noite, quando
Romeu percebeu o clima de romance
entre seu pai e minha tia, logo tratou de
tornar os meus dias na fazenda
impossíveis. É exatamente essa
lembrança que me traz de volta à razão,
ele só finge que gosta de mim para se
divertir com o meu sofrimento e agora
talvez só esteja com pena da garota boba
de rosto esfolado.
Desfaço o contato de nossas
mãos e me levanto num salto, tentando
colocar alguma distância entre nós.
— Você tá louco? — A pergunta
soa quase como uma acusação.
— É provável que sim! — Ele
fica de pé e dá um passo incerto até
mim. — Se levar em conta que quero
beijar uma garota que me odeia e quer
me ver pelas costas, então a resposta é:
sim, estou louco.
— Que brincadeira boba é essa?
— Dou um passo para trás.
— Olhe para mim — pede, mas
temo ser traída pelo meu próprio corpo.
— Tudo bem, se achar que não pode
resistir a mim...
Gargalho, fitando-o ao mesmo
tempo em que dou outro passo para trás
quando ele se aproxima.
— Não se ache tanto, você não
faz o meu tipo — rebato, tentando
convencer a mim mesma.
— Ah, não? — Ele segura meu
braço antes que eu dê mais um passo. —
Então, por que parece que está fugindo
do que sente quando toco em você?
Romeu puxa meu pulso até os
seus lábios, que tocam a parte interna
trazendo um arrepio que percorre todo o
meu corpo e, de repente, não sei mais
como é que se respira.
— Me diz o motivo do seu
coração está disparado? — Sua voz
baixa soa perigosamente perto do meu
rosto enquanto massageia meu pulso. —
Qual a razão da sua respiração
ofegante?
Quero fugir, só que não tenho
força nenhuma para me afastar desse
garoto quando ele segura meu queixo,
fazendo-me encará-lo.
— Por que é que essa boca
gostosa está gritando: me beije, me
beije? — sussurra e posso sentir cada
parte minha reagindo ao tom rouco de
sua voz.
— Você... — Coloco a mão
sobre o seu peito na intenção de afastá-
lo, mas não é bem isso que faço.
O coração dele bate tão
descompassado no peito que as palavras
acabam morrendo antes que eu possa
formular qualquer frase. O perfume
suave vai penetrando cada parte de mim,
como uma droga alucinante que nubla
todos os pensamentos.
— Eu o que, patricinha? — Ele
está a um beijo de distância e não sei se
quero que se afaste, então fico em
silêncio. — Foi o que imaginei.
Seu nariz desliza pela minha
bochecha, inspirando profundamente, em
câmera lenta seus lábios tomam os meus,
sugando devagar como se quisesse
saborear o momento e a primeira reação
que tenho é de afastá-lo, mas o seu gosto
maravilhoso me atinge em cheio,
deixando as pernas bambas e a
respiração ofegante, fecho a mão no
tecido de sua camisa puxando-o para
mais perto.
A língua dele roça levemente
pelo meu lábio machucado, Romeu tira o
elástico que prende o meu cabelo,
soltando os fios e enfiando as mãos por
baixo deles, segurando meu pescoço,
intensificando ainda mais o contato,
mordiscando levemente meus lábios
sugando-os, fazendo-me acreditar por
um mísero momento que meus pedidos
foram atendidos e finalmente estou em
outra dimensão, longe de qualquer coisa
que possa me ferir.
Não é o meu primeiro beijo, no
entanto, nunca experimentei algo tão
intenso ao ponto de me levar ao paraíso
em tão pouco tempo. É como se de
repente todas as peças se encaixassem e
estar com Romeu no meio da noite em
um terraço sob a luz do luar, fosse a
coisa mais certa que já fiz em toda a
minha curta existência. Como se o
universo houvesse enviado uma
recompensa por todo o meu sofrimento
nos últimos dias.
Ele se afasta devagar, minhas
mãos ainda seguram sua camisa sentindo
seu coração galopar assim como o meu,
sua respiração ofegante toca meus
lábios, seu polegar traça o contorno do
meu rosto gentilmente, então abro os
olhos e sou recepcionada por um sorriso
que faz o tempo parar por alguns
instantes.
— Seu gosto é muito melhor do
que imaginei que seria, Lety. — Meu
apelido dito por sua voz rouca causa um
reboliço em meu peito e tenho a
sensação de que estou despencando em
queda livre rumo ao desconhecido.
— Romeu... — balbucio, ainda
perdida em todos os acontecimentos dos
últimos minutos e ele me olha como se
estivesse me vendo pela primeira vez.
— Devia tentar me chamar assim
mais vezes. — Há um sorriso
presunçoso em seu rosto quando sua
mão direita segura minha cintura. — Na
verdade, acho que nós dois deveríamos
fazer isso outra vez para ver se foi
mesmo real.
Ele não espera por resposta,
apenas se inclina e me beija novamente.
Romeu
Na festa, eu não conseguia parar
de pensar na nossa nova hóspede, em
como ela parecia querer ficar escondida
pelo resto da vida no quarto. Meus
amigos reclamaram sobre o fato de eu
estar em outra dimensão, Marina ficou
chateada porque não quis ficar com ela,
na verdade, fugi a noite toda das garotas
e isso não é normal, dificilmente
dispenso uma boca para beijar e uns
bons amassos, mas hoje a minha cabeça
estava em uma garota que nada tinha a
ver com o meu mundinho.
Cheguei em casa mais cedo do
que o planejado, todos já dormiam ou
pelo menos foi o que pensei, fui ao
banheiro para vestir o pijama, mas
percebi que a porta do meu quarto
estava entreaberta e Letícia não estava
lá. Confesso que a princípio achei que
tivesse ido embora, então vi sua mochila
em cima da cadeira e imaginei que ela
estaria no único lugar onde se pode ter
um pouco de paz por aqui.
O terraço foi um dos motivos
pelos quais meus pais escolheram nosso
apartamento, embora tenham se
separado pouco tempo depois. Papai,
minha irmã e eu continuamos nele e
quando minha mãe começou a colher os
frutos de sua fama, fez questão de dar
uma repaginada em nome dos filhos,
porque ela sabia o quanto amávamos o
lugar, talvez para exumar um pouco da
culpa que sentiu por ter escolhido a
carreira ao invés da família. Costumo
vir aqui todas as noites apenas para
observar as estrelas e ter um momento
de silêncio antes de dormir.
Quando abri a porta, ouvi a
música e minha atenção foi
imediatamente capturada pela garota
dançando, fiquei hipnotizado
observando cada movimento do seu
corpo e o vídeo que vi ontem me veio à
mente, será que era ela?
A dança parecia ser parte de
Letícia, por um momento me lembrei
saudoso da incrível sensação de
semanas atrás, quando o arco arranhou
as cordas do Cello e a melodia começou
a se formar com os meus movimentos,
fazendo meu coração bater loucamente,
levando as pessoas que assistiam ao
completo êxtase. Mesmo que eu negue a
todos à minha volta, não posso fingir
que a música não é uma parte importante
demais para mim, ao ponto de não
conseguir me desligar completamente
desse universo.
Perdido nos meus próprios
pensamentos, não vi quando ela foi para
a grade de proteção, de repente pareceu
que a garota estúpida estava cogitando
fazer algo tão louco como se jogar
prédio abaixo, fui dominado por um
pânico horrível. Entendo que às vezes a
gente tem umas ideias sem noção, mas
por que essa menina acha que a vida
dela não vale a pena?
Vivi momento tenebrosos quando
meus pais se divorciaram e sei que não
podem ser comparados ao que deve
estar passando na cabeça dela depois do
que aconteceu e, enquanto me convence
de que interpretei errado o que vi, sinto
a obrigação de fazer alguma coisa para
que esqueça pelo menos por esta noite o
motivo da tristeza nos seus olhos,
mesmo que uma parte minha queira que
ela se exploda.
Letícia está fragilizada, eu não
tinha a menor intenção de beijá-la, até
porque sei que esse tipo de dor que ela
está sentindo não se cura assim, mas
acabei me distraindo com seu sorriso
relaxado e as lembranças da outra noite
em que senti um magnetismo entre nós.
Colar a boca na dela parecia algo
inevitável e simplesmente aconteceu.
Já beijei muitas garotas pelos
motivos errados, contudo o que acabou
de acontecer entre mim e Letícia foi algo
certo. Seu gosto é viciante, o cheiro
adocicado do xampu impregnado em
seus cabelos, junto a fragrância de flores
de sua pele — mesmo suada pela dança
—, tudo isso acaba de entrar para o topo
das coisas que as meninas perfeitas para
mim precisam ter, ela elevou o nível do
jogo.
Não dissemos muita coisa um ao
outro, estamos perdidos demais na
forma como nossos lábios se tocam em
um encaixe perfeito, a puxo andando
para trás até chegarmos ao sofá, onde
caímos desajeitados. Somos uma
confusão de bocas se fundindo, línguas
se acariciando com os hormônios à flor
da pele que nos tira qualquer resquício
de sanidade por um bom tempo.
Nós nos afastamos brevemente
apenas para buscar um pouco de ar,
deslizo a mão pelos seus cabelos
desgrenhados, sua boca está muito
vermelha e inchada por conta dos beijos
desesperados, as bochechas coradas, os
olhos verdes agora brilham de um jeito
hipnotizante presos aos meus e sinto uma
pontada de orgulho por ser o causador
dessa confusão. Letícia é linda! O
hematoma em seu rosto me causa uma
onda de raiva e encosto os lábios
levemente em cima dele, depois
distribuo beijinhos pela face até chegar
novamente à boca.
— Ai — reclama, quando me
inclino sobre seu corpo.
— Te machuquei?
— Seu cotovelo encostou na
minha costela dolorida. — Ela faz uma
careta envergonhada e me dou conta de
que existem mais marcas como a do olho
espalhadas pelo seu corpo.
— Desculpe! — Beijo sua
têmpora, afastando-me para puxar a
mesa de centro para mais perto do sofá.
Tiro o tênis colocando os pés
sobre o móvel, a envolvo com o braço
esquerdo em um abraço desajeitado e
nos arrumamos meio deitados sobre as
almofadas do sofá. Letícia se aconchega
em meu peito, fazendo-me fechar os
olhos inspirando profundamente ainda
sem acreditar que realmente beijei a
minha arqui-inimiga e o que é pior,
quero fazer isso outras vezes.
Encosto o queixo no topo de sua
cabeça, as pontas dos meus dedos
deslizando para cima e para baixo do
seu braço em um silêncio reconfortante,
apesar de querer fazer mil perguntas
sobre esse maldito homem que a
agrediu.
— Aqui é tão lindo! — ela diz
baixinho, olhando em volta do espaço
onde estamos.
— Foi ideia da minha mãe... —
respondo, sem evitar a careta.
— Ela tem muito bom gosto.
Não digo nada, não quero ter que
falar sobre mamãe agora. Viro-me para
Letícia e seus olhos verdes encontram os
meus enquanto brinco com uma mecha
do seu cabelo entre os dedos,
imaginando se em algum momento desta
noite a magia entre nós vai acabar, como
da outra vez.
— E então, não tem alguma
ameaça bizarra para me fazer antes de
sair correndo? — Ergo a sobrancelha,
trazendo à tona a lembrança do nosso
pequeno desastre no Natal.
— Quer que eu faça isso? — Ela
estreita os olhos, rindo.
— Uma parte de mim está
ansiosa para ouvir os seus xingamentos
nada criativos — confesso, dando uma
piscadela. — Mas acho que consigo
sobreviver sem eles.
— Que galante! — Seus dedos
trançam formas no meu peito. — Até que
você beija bem, sabia?!
— Preciso me preocupar com
isso? — Finjo um olhar apreensivo.
— Talvez.
— Como está se sentindo? —
Apoio meu braço direito atrás da
cabeça.
— Depois de você quase tirar
todo o meu ar com esses beijos? — Ela
me olha de um jeito engraçado. — Muito
bem, obrigada!
— Fico feliz em ter ajudado. —
Faço uma reverência tosca exibindo um
sorriso torto. — Você disse que veio
para cá porque precisava de um pouco
de ar, não conseguia dormir?
— Não.
— Quer falar sobre isso? —
Seguro seu queixo, a encarando.
Letícia parece pensar um pouco.
— Vai usar o que eu disser
contra mim amanhã? — Seu tom
desconfiado me faz rir.
— Claro que não! — Entrelaço
nossos dedos. — Sou um mocinho, não
um vilão.
— Quem não te conhece que te
compre. — Ela dá de ombros.
— Juro juradinho que vai ficar
entre nós.
— Meu... pai... — a garota
hesita por um momento —... ele é um
homem muito instável emocionalmente,
não concorda que eu participe de
competições, meu melhor amigo me
convenceu a participar de uma
apresentação da academia e postou o
vídeo esta semana, nas redes sociais.
Minha madrasta viu e mostrou para o
marido e acabou mal.
— Eu assisti a esse vídeo, mas
só agora me dei conta de que era você.
— Lembro-me da sensação de
reconhecimento que tive ao assistir. —
Agora tudo faz sentido, você dança
demais, patricinha.
— Não tenho tanta certeza, já
que foi ele a causa de todos esses
hematomas no meu corpo. — Letícia
parece melancólica agora. — Ah, e a
minha língua grande também, não
consigo ouvir os absurdos calada,
sabe?! Então digamos que meu pai não
lida muito bem com isso, a mulher dele
se aproveita usando a raiva que sente
por mim, colocando mais lenha na
fogueira, enfim, as coisas sempre
acabam mal.
— Não é a primeira vez que ele
bate em você? — pergunto, alarmado,
ajeitando o corpo no sofá.
— É a primeira vez que apanho
dele desse jeito — diz baixinho, os
olhos se enchendo de lágrimas. —
Temos discussões terríveis por besteiras
desde a morte da minha mãe e de um
tempo para cá as coisas têm piorado
bastante. Eu não quero falar sobre isso...
— Está segura agora. — A
abraço com cuidado para não a
machucar e beijo seus cabelos, sentindo
uma raiva desmedida desse homem. —
Tenho certeza de que sua tia vai fazer
algo a respeito e você não vai precisar
passar por isso nunca mais.
Ficamos ouvindo apenas o som
da nossa respiração ritmada por um
longo minuto.
— O que te deixa feliz? —
especulo, tentando distrai-la de qualquer
pensamento ruim e ela franze o cenho,
me olhando confusa com a pergunta
inesperada. — Deve ter alguma coisa
que te faz feliz, pode me contar?
— Bom... tem várias coisas tipo:
ler romances fofos, jogar videogame,
ouvir músicas pop e dançar... — A
empolgação é nítida em sua voz. —
Quando estou dançando, é como se
pudesse resolver todos os meus
problemas em um estalar de dedos.
— Que espécie de patricinha
metida é essa, que joga videogame,
gosta de música pop, dança pra caralho
e lê romances melosos? — Não resisto à
oportunidade de tirar um sarro. — Você
é muito eclética.
— Palhaço! — Ela me dá um
tapa. — Prometeu que não ia usar nada
do que eu dissesse contra mim.
— A promessa entra em vigor
amanhã — brinco e acabo ganhando um
beliscão nas costelas. — Hoje eu posso,
patricinha, e não tem ninguém aqui, só a
gente.
— Bobão.
— O que você joga?
— Gosto muito de RPG e... por
favor, não ria de mim. — Ela esconde o
rosto na minha camisa. — Adoro
aqueles jogos antigos de consoles da
Nintendo.
— Não brinca com o meu
coração, eu tenho um console desses —
revelo, sem esconder a surpresa. — Por
que não contou isso antes?
— Porque você é o garoto chato
que eu ameacei, meses atrás, ou por
estar com a cara arrebentada e
desejando sumir do universo? — sugere,
levantando uma sobrancelha, me fazendo
rir.
— Acha que pode jogar comigo
e Ana Júlia amanhã? — convido, um
pouco receoso achando que ela não vai
aceitar.
— Pode ser. — Letícia dá de
ombros. — E quanto a você, o que te
deixa feliz?
A pergunta dela me pega
desprevenido e enrolo um pouco antes
de responder.
— Quer a versão fake ou a real?
— Aceito as duas. — A menina
de olhos lindos parece muito interessada
no que tenho a dizer.
— Bora lá então, se rir de mim
te faço passar vergonha na mesa do café
da manhã. — Pisco, rindo. — Fake:
qualquer coisa que envolva meus amigos
da escola e videogames. Real: ficar com
meu pai e minha irmã... — Tocar Cello
também tinha esse efeito, só que são
águas passadas.
— Olha ele, você é muito fofo...
— Letícia desliza os dedos pelos meus
cabelos, bagunçando-os. — Quem diria!
— Se contar para alguém, eu
nego até a morte. Juro!
— Que drama! — Ela mostra a
língua e aperto seu nariz. — E você tem
amigos, isso é realmente surpreendente.
— Ei, eu sou muito legal,
patricinha.
— E modesto também. — A
garota revira os olhos enquanto sorri.
— Tenho minhas qualidades. —
Acaricio sua bochecha ainda com as
nossas mãos entrelaçadas. — Você fica
bem melhor sorrindo, sabia?
— Obrigada, por se preocupar.
— Sua voz parece nervosa agora.
— Não precisa agradecer. —
Beijo os nós dos seus dedos, encarando-
a. — Me prometa uma coisa?
— Olha lá o que vai pedir, seu
garoto metido.
— Não é nada de mais. — Seus
olhos se prendem aos meus, procurando
algum indício de brincadeira e só então
ela assente. — Prometa que não vai
ficar se martirizando com o que
aconteceu? Você não teve culpa, é uma
vítima.
— É complicado — fala,
desviando o olhar. — As coisas voltam
do nada e não consigo controlar.
— Me dê o seu celular — peço,
soltando sua mão.
Ela puxa o aparelho que está na
outra ponta do sofá e me entrega. Gravo
o número do meu telefone e entrego de
volta.
— Contatinho para desabafar?
— Letícia arqueia a sobrancelha e sorri
largamente ao ler o nome que coloquei.
— A uma mensagem de distância
— gracejo, me lembrando da fada
madrinha de Shrek 2. — Quando achar
que está muito difícil lidar com tudo,
pode me chamar, a qualquer hora que
precisar, prometo sigilo absoluto.
— Eu tenho amigos também,
sabia? — ela diz.
— Quem disse que quero ser seu
amigo? — Seguro seu queixo e
mordisco seu lábio inferior. — Somos
arqui-inimigos, esqueceu... Isso... —
Chupo lábio, devagar. — É uma trégua
temporária.
— Sempre flerta e beija suas
“inimigas”?
— Só as patricinhas feito você
— sussurro, fitando-a, solto sua mão,
arrumo uma mecha de cabelo que cai
sobre seus olhos, capturo seus lábios
saboreando-os devagar.
Ela enfia os dedos nos meus
cabelos, trazendo um arrepio pela minha
coluna, o cheiro dessa menina é viciante
e a boca dela... Meu Deus! É a melhor
coisa que já provei na vida e o volume
das minhas calças aumenta
significativamente.
Puxo-a para o meu colo, ela
coloca uma perna de cada lado e seguro
sua cintura, sem desgrudar de sua boca.
Sinto o controle escapando entre os
meus dedos quando ela pressiona a
virilha na minha ereção e depois enfia
as mãos por baixo da minha camisa,
percorrendo meu peito, deixando a pele
arrepiada.
Estou muito ciente do seu corpo
sobre mim, quando distribuo beijos pelo
seu pescoço e as mãos sobem para os
seios com os biquinhos arrebitados
sobre o tecido da blusa. Uma música
irritante começa a tocar em algum lugar
entre as almofadas, nos trazendo de
volta à razão.
— É o meu celular! — sussurro,
encostando a testa na dela, tentando
respirar direito.
Tateio pelo sofá em busca do
aparelho até encontrá-lo. Letícia
descansa a cabeça no meu ombro, rindo
ao ler o nome na tela. Droga!
— Papai — atendo, ainda
ofegante.
Lety me olha confusa,
perguntando sem emitir som: “papai?”,
com um sorrisinho sarcástico no rosto e
a ignoro.
— Pelo amor de Deus, Romeu!
Você está usando camisinha? — Sinto
um rubor subindo ao rosto, porque sei
que a garota está ouvindo a nossa
conversa constrangedora. — Não seja
irresponsável e trate bem a menina!
— Papai, tenho 16 anos... —
argumento, inutilmente.
— Quase nessa idade eu
engravidei a sua mãe. — Ele parece
muito preocupado, como sempre. —
Que horas vem para casa? Eu confio
em você, mas não abuse da sorte.
— Fique tranquilo. — Tento
ignorar o fato de ter uma menina no colo
enquanto meu pai briga comigo. —
Chego em vinte minutos. Tchau!
Desligo o telefone sem lhe dar a
chance de falar mais alguma coisa, há
um silencio e então Letícia começa a rir,
sem controle.
— Por favor, não torne isso pior.
— Fecho os olhos, jogando a cabeça
sobre as almofadas, enfiando as mãos
pelos cabelos. — Estava bom demais
para ser verdade...
— Você é tão filhinho de papai,
Romeu — Letícia começa a me zoar,
ainda rindo.
— Não sou nada — respondo,
cruzando os braços sobre o peito feito
um garotinho malcriado.
— É sim. — Ela revira os olhos
enquanto me imita. — “Papai, tenho 16
anos”, olha, achei que você era um bad
boy, mas tô começando a achar que é
inofensivo.
— Eu não ligo para o que está
pensando de mim agora, patricinha —
rebato, segurando firme sua cintura,
puxando-a para mais perto.
Enfio as mãos por baixo da
blusa, tocando a pele arrepiada com as
pontas dos dedos, sem tirar os olhos
dela, seguindo meus instintos e subindo
lentamente até chegar aonde desejo. Os
seios pequenos e durinhos cabem
perfeitamente na palma da minha mão,
aperto levemente, ela morde o lábio
inferior, me fitando como se esperasse
pelo próximo passo.
— Ainda acha que sou
inofensivo, patricinha? — Levanto o
tecido da blusa deixando os seios
expostos para mim. — São perfeitos! —
sussurro e ela tenta esconder os
hematomas em suas costelas.
Seguro suas mãos que tentam
esconder a parte lesionada de seu corpo,
me inclino para beijar o local devagar e
Letícia arfa, faço isso nos dois lados
onde as manchas se estendem. A garota
se inclina para mim e é impossível
resistir aos seios durinhos me
convidando, abocanho de uma vez, o
biquinho empinado, chupando gostoso,
Letícia arfa se agarrando aos meus
cabelos, esfregando a virilha na minha
ereção. Eu já cheguei muito perto de ir
para a cama com algumas garotas, mas
sempre recuo quando estamos
envolvidos demais, mas essa patricinha
tem uma coisa que me deixa doido para
avançar cada vez mais e não consigo
controlar.
— Ah, Romeu...
Estou perdido entre seus
gemidos e o sabor de sua pele em minha
língua, quando o meu celular volta a
tocar. Solto um suspiro frustrado, me
afastando dela, preciso parar de pensar
com a cabeça de baixo. Pego o aparelho
e o silencio, a garota coloca a cabeça
em meu peito, tentando controlar a
respiração, talvez se dando conta de que
ultrapassamos alguns limites, deslizo os
dedos pelos seus cabelos desgrenhados,
não conseguimos dizer nada um ao
outro.
Ainda sinto a adrenalina
correndo loucamente pelas minhas veias
quando ela sussurra, inclinando a cabeça
para me olhar:
— Por que mentiu para o seu
pai?
Demoro a responder, fico
pensando em todas as suas possíveis
reações, caso nos pegasse juntos. Há
muitos cenários e em nenhum deles eu
saio ileso, e ainda tem o fato de Letícia
ser sobrinha da Isis, ele vai me proibir
de vê-la e depois de tudo que aconteceu
entre nós, não vou conseguir me manter
longe dessa garota.
— Se ele ao menos sonhar que
estou me agarrando com você, nem sei
do que ele seria capaz. — Passo as duas
mãos pelo rosto tentando pensar de
modo coerente depois de toda essa
nossa explosão. — Meu pai é ótimo,
mas é o rei do drama. Podemos manter
isso entre nós?
Letícia faz um muxoxo, me
encarando desconfiada.
— Você não tem uma namorada
por aí e a está traindo comigo, não é,
Romeu? — A pergunta é direta.
— Pelo amor de Deus! Não,
Letícia. — Nem escondo o pânico na
voz, por ela pensar isso. — É só que,
meu pai vai fazer marcação cerrada se
souber o que aconteceu entre nós.
— Jura que é só por isso? —
Seus olhos se estreitam na minha
direção.
— Juro. — Seguro sua mão. —
Me dá aqui o seu dedinho mindinho.
— Ai credo, Romeu! —
reclama, revirando os olhos, mesmo
assim estende o dedinho. — Que brega!
Prendo ao meu e tento parecer
sério enquanto falo:
— Juro que não tenho uma
namorada perdida. — Faço uma careta
engraçada e ela segura o riso.
— Tem certeza? — Arqueia a
sobrancelha. — Como é que eu posso
acreditar em um garoto que chama o pai
de “papai”?
— Já não tínhamos superado
isso? — questiono, com os nossos
dedinhos ainda unidos.
— Você fugiu do assunto,
jogando baixo — ela diz, com um
sorriso de canto e tenho vontade de
morder seus lábios, mas me contenho.
— O que mais quer? — indago.
— Sei lá, foi você que começou
com isso... podia prometer mais algumas
coisas. Continua, estou te achando uma
gracinha. — Mordo o lábio, pensando
em algo que a faça rir, porque gosto
dessa versão risonha dela.
— Vamos lá, eu quero te beijar
outras vezes — admito e ela me olha,
encabulada. — Mas meu pai não pode
saber disso, nem a sua tia. Senão a gente
tá ferrado. Então, prometo te beijar
sempre que tiver oportunidade.
— Olha, gostei disso... —
Letícia encosta a testa na minha. —
Concordo, sobre manter segredo sobre
hoje, mas a gente continua arqui-
inimigo. Só porque você é um medroso.
— Cala a boca, patricinha! —
sussurro, puxando-a para mim, calando-
a com um beijo.
Sim, estou muito ferrado com
essa garota! Estar com ela assim é
diferente de quando estou com Stefane,
Gigi ou Marina. Essa garota me faz
querer ficar e ser o Romeu que deixei
para trás quando mamãe atravessou a
porta indo embora da minha vida, eu
deveria fugir e afastá-la incorporando o
bad boy que normalmente sou,
entretanto, esta noite só quero um pouco
mais dela.
Letícia
Às vezes, fico pensando em
como seria a minha vida se mamãe não
tivesse morrido tão jovem, será que ela
teria se separado do meu pai ou
continuaríamos vivendo com ele? São
perguntas que nunca serão respondidas.
Sinto tanto a falta dela, das nossas
risadas, do modo como trançava meus
cabelos, sua voz doce dizendo “eu te
amo, filha”, seu cheiro de flor de
laranjeira e o modo como me dava
bronca sem conseguir ficar séria por
muito tempo.
Eu pensei que o tempo faria com
que a dor de perdê-la sumisse em algum
momento, entretanto continuo sentindo
aquele vazio no peito sempre que me
lembro dos momentos que tivemos.
Morar com tia Isis vai ser legal, porque
é quase como ter uma mãe outra vez e,
sendo adolescente ou não, sinto falta de
ter uma figura feminina que possa me
aconselhar ou fazer coisas legais ao
invés de rivalizar comigo.
Passei uma semana inteira sem ir
à escola trancada no apartamento da tia
Isis, tivemos uma reunião virtual com
Dr. André, um advogado conhecido de
Ariel, que nos instruiu a entrar com um
processo de emancipação e respondeu
todas as minhas dúvidas sobre o tema.
Ao contrário do que pensei, ser
emancipada não vai me “tornar adulta”
depois que sair a sentença e ela for
registrada em cartório, mas vou poder
tomar algumas decisões por conta
própria, como morar com quem eu
quiser sem que meu pai possa proibir
como tem feito.
Não sinto mais tanta culpa pelo
que aconteceu, contudo isso não remove
aquela sensação de rejeição, se levar em
consideração o fato de que ele não me
fez uma única chamada para se
desculpar, a coisa toma uma proporção
bem maior. Minha tia acha que ele está
esperando a poeira baixar, já eu penso
que ele é um grandessíssimo covarde
que nunca vai perceber todo o mal que
fez.
Ser agredida pelo homem que
deveria me proteger fez com que alguma
coisa dentro de mim morresse em
relação a ele, como se o laço entre nós
tivesse sido desfeito de forma definitiva
e nem consigo sentir remorso por isso.
Ana Júlia veio me visitar com o pai
depois que recusei ir ao cinema com
eles, é engraçado como pessoas que nem
conheço direito se preocupam comigo
mais que o meu próprio sangue.
Hoje, sexta-feira, Ariadne e
Maya vieram para uma noite das
meninas, foi muito divertido e acabei
esquecendo um pouco de como a minha
vida está virada do avesso. Quando elas
vão embora, me sinto outra pessoa, essa
família tem uma energia legal e fico
pensando se me aceitariam parte deles
em algum momento quando tia Isis se
acertar de vez com o “quase namorado”.
É uma ideia tentadora, mesmo
que eles sejam confusos na maioria das
vezes, acho que preciso me acostumar
com isso, já que cedo ou tarde isso vai
acabar em casamento, o que torna Ariel
o quê? Meu tio?
Fico rindo disso por um
momento, até que os pensamentos
vaguem para outro terreno bastante
perigoso: Romeu. Esse garoto
definitivamente não é nada do que
pensei, isso se deve ao fato de ele se
comportar de um jeito que esconde quem
é de verdade.
Quando começo a pensar
naquela noite no terraço, em tudo que
fizemos, as sensações que despertamos
um ao outro, meu coração dispara e
tenho vontade de repetir tudo. Foi
preciso muito autocontrole para não
irmos até o fim, mas pensar na decepção
da minha tia ou Ariel, caso nos
pegassem, foi suficiente para descermos
e ir cada um para o seu lado.
O dia seguinte ao beijo, na mesa
do café da manhã, tentamos agir como se
nada tivesse acontecido entre a gente.
Todos estavam tão felizes por eu sair
finalmente do quarto, que nem prestaram
muita atenção no fato de estarmos
trocando olhares cheios de significados
nas entrelinhas.
Depois, quando nos encontramos
no corredor, acabamos enroscados em
um beijo que me deixou sem ar. Fiquei
rindo dele brigando com Aninha por
conta da bagunça que ela fez com as
bonecas no tapete da sala e, mesmo
assim, a ajudou organizá-las, por fim o
menino sugeriu à irmã que talvez eu
aceitasse jogar com ela no videogame,
enquanto os adultos preparavam o
almoço.
Romeu acabou se metendo na
partida, a garotinha queria uma revanche
por alguma bobagem que o irmão havia
lhe dito, ao final estávamos os três
disputando quem era o melhor, o
derrotei por cinco vezes seguidas no
Street Fighter e Ana Júlia fez a maior
algazarra. Naquele domingo senti que
fazia parte de algo.
O garoto não conseguiu se
manter longe, sempre dando um jeito de
entrelaçar nossos dedos ou qualquer
outro toque sutil quando ninguém estava
prestando atenção, nos beijamos outras
vezes e em dei conta de que precisava
daquele conforto de ser querida, ser
desejada por alguém que parecia
compreender o que se passava na minha
cabeça.
Sem dúvida alguma, estou mais
leve do que uma semana atrás, o
hematoma em meu olho está quase
desaparecendo e consigo enxergar com
otimismo a vida tranquila que poderei
ter ao morar com a tia Isis.
Já não me assusto tanto quando
ouço uma porta se abrir ou algo cair no
chão, consigo dormir relativamente bem
à noite. Breno disse outro dia em uma
das nossas chamadas de vídeo que o
meu semblante está diferente, que
pareço mais feliz. Ele nem imagina que
existe um motivo a mais para isso, um
que pretendo contar pessoalmente
quando nos encontrarmos amanhã. Meu
melhor amigo é um fofoqueiro, tenho
medo de que no momento que se inteirar
do que está acontecendo comigo e
Romeu, ele não segure a sua língua.
Estou deitada, pronta para
dormir, lendo um livro de fantasia que
trouxe da casa de Ariel, quando meu
celular toca pontualmente à meia-noite
em uma chamada de vídeo e não consigo
evitar o sorriso ao ler o apelido bobo
que ele gravou em seu número no meu
celular. Contatinho para desabafar.
— Oi, garoto metido — atendo,
com uma voz sussurrada, enquanto
tranco a porta do quarto e o rosto de
Romeu preenche a tela, fazendo um
sorriso bobo despontar em meu rosto.
— Oi, patricinha — ele diz,
encarando a câmera. — Como foi com a
tia Ari?
— Legal, ela é meio doida, mas
já estou acostumada. Talvez isso seja
coisa de família — alfineto, me jogando
na cama.
— Essa doeu, viu?! — Usa um
tom dramático colocando a mão sobre o
coração, depois fica sério. — Queria te
ver um pouquinho antes de dormir,
saber se está tudo bem?
— Você é muito fofo e as
pessoas deveriam saber disso. — Ele
detesta que eu diga isso, mas adoro ver
seu embaraço.
— Não posso estragar a minha
reputação de adolescente rebelde. —
Seus dedos se enroscam nos cabelos,
puxando-os, o que parece ser uma mania
dele. — Por favor, não acabe com o
meu disfarce.
— Bobo. — Mostro a língua e
ele ri. — E você, o que tem feito?
— Arrumando confusões com
Aninha e o papai, as coisas de sempre.
— Romeu faz uma careta engraçada e o
que diz em seguida me deixa um
pouquinho derretida: — Estou com
saudade, queria te ver.
— Eu nunca pensei que diria
isso, mas também estou. — Coloco uma
mão sobre o rosto em uma tentativa
inútil de escondê-lo.
— Você vem amanhã com a
Isis? — especula, arrumando os fones
de ouvido.
Minha tia passa os fins de
semana na casa do “quase namorado” e
não sei se é certo eu me intrometer na
vida deles assim. Marquei com Breno
de passarmos o dia juntos fazendo
bobagens, mas estar com Romeu parece
bastante tentador.

— Eles estão mesmo namorando


sério? — Romeu sussurra, quando
colocamos as sacolas no porta-malas do
carro de Ariel, indicando o casal que
caminha de mãos dadas de volta ao
apartamento para pegar o restante das
coisas.
— Sim, a tia Isis foi atrás e tudo
— respondo, rindo.
Os dois resolveram suas
diferenças e finalmente assumiram o
relacionamento no final de semana
passado, não que a gente não soubesse
que isso acabaria acontecendo.
— Nossa, que moderno. — Ele
faz um biquinho debochado. — Quer
dizer que somos quase parentes agora?
— De jeito nenhum — me
apresso em dizer. — Minha tia namora o
seu pai e ponto.
— Ufa, fico mais tranquilo, não
quero ter nenhum parentesco com você.
— Seu tom irônico faz com que eu lhe
jogue a boia de plástico da Ana Júlia
que estava por cima das sacolas do
bagageiro.
— Por que meu irmão não quer
que a gente seja parente, Lety? — A
garotinha surge logo atrás de nós vestida
como uma cowgirl, aposto que é coisa
de tia Isis.
— Eu é que não quero, não é
nada contra você, Aninha, mas Deus me
livre de ter qualquer grau de parentesco
com um garoto insuportável desses —
desdenho e ele me fuzila com os olhos.
— Vou te jogar acidentalmente
dentro do chiqueiro da vovó, assim que
chegarmos à fazenda e nem vai poder
dizer que eu não tive motivo. — Romeu
dá de ombros, rindo com o seu ar
sabichão. — Essa sua roupa de
patricinha vai ficar um luxo só quando
for decorada com a lama do chiqueiro e
essas suas tranças... — o babaca faz uma
careta, apontando meu cabelo —... vão
receber uma hidratação digna.
— Meu Deus, vocês já estão
brigando outra vez? — Tia Isis nos
interrompe, colocando uma mochila no
porta-malas e o fecha. — Achei que
tínhamos combinado que iam tentar ser
civilizados pelo menos no fim de
semana.
— Não prometi nada. — O
garoto levanta as mãos para o alto,
fingindo inocência. — Sua sobrinha que
é irritante, a gente tem mesmo que a
levar para fazenda? Da última vez que
estivemos lá, as coisas não deram muito
certo, lembra?
Reviro os olhos, me lembrando
de todas as coisas que ele fez comigo no
fim do ano quando nos conhecemos.
— Porque você é um idiota —
reclamo, lhe mostrando a língua.
— Olha só quem fala, a
patricinha que odeia a fazenda. —
Agora ele pega pesado.
— Eu não odeio a fazenda —
digo, um pouco antes de Ariel aparecer.
— Odeio você na fazenda.
— Romeu, pelo amor de Deus,
já está pegando no pé da Lety outra vez?
— O homem encara sério o filho. —
Você não toma jeito mesmo, viu?! Entra
no carro, já estamos atrasados.
O garoto faz uma careta, mas
obedece a ordem do pai, a contragosto,
e nos esprememos no banco de trás com
Ana Júlia entre a gente, o celular dele
toca, assim que Ariel dá partida.
— Leon? Droga, você bebeu de
novo, cara. — Romeu puxa os fios de
cabelo do seu topete. — Não, são sete
da manhã. Vá dormir! Ah, caramba, eu
não vou a essa festa hoje. — A pessoa
do outro lado parece reclamar de
alguma coisa e ele responde impaciente.
— E eu com isso, não mandei fazer
compromissos em meu nome, seu
imbecil.
— Desligue o telefone! — seu
pai ordena, com uma expressão irritada
no rosto.
— Só um minuto — ele pede,
ignorando o pedido e continua falando
ao telefone. — Nada, vamos para a
fazenda com a namorada dele e a
sobrinha dela... Cala a boca... Nem
fodendo!
— Filho, não vou falar outra vez.
— O tom repreensivo de Ariel faz com
que Romeu o obedeça. — Já disse que
não gosto que ande com esse garoto, e
coloque o cinto de segurança.
— Mas ele é meu amigo —
rebate, enquanto faz o que o pai pediu.
— Não é, não. — O homem dá
partida no carro e continua a falar: —
Os pais de um dos meus alunos contaram
que Leon tentou embebedar uma menina
e se aproveitar dela em uma dessas
festinhas de vocês. É esse o tipo de
amizade que quer?
— Isso é mentira! Esse pessoal
só diz isso porque o garoto é tatuado. —
Romeu olha através do vidro. — Não é
o senhor que sempre diz que temos que
dar o benefício da dúvida para as
pessoas?
— Não nesse caso, por causa
daquele moleque, eu tive que te buscar
na delegacia, Romeu. — A informação
me deixa alarmada. — Ou já se
esqueceu disso?
— Aquilo foi o ano passado e
não deveríamos estar falando na frente
de estranhos sobre isso. — Ele parece
irritado agora, talvez envergonhado.
— Isis e Lety são da nossa
família — Ana Júlia sussurra, segurando
a minha mão como se eu precisasse de
um conforto.
— Isis é namorada do papai e a
patricinha não tem nada a ver com a
gente. — Seu tom magoado me atinge em
cheio, minha tia pigarreia, mas não tenho
tempo de retrucar nada.
— Pare de descontar suas
frustrações em quem não tem culpa,
Romeu — Ariel ralha e fico quietinha no
meu canto, sentindo um gosto amargo na
boca. — Você sabe que estou dizendo a
verdade e deveria reavaliar suas
amizades.
O clima fica esquisito dentro do
carro quase a viagem toda, achei que
tudo estivesse bem entre Romeu e eu,
conversamos sempre por mensagem e
chamadas de vídeo, óbvio que não
queríamos que ninguém suspeitasse
sobre nós, porém, o modo como falou
agora há pouco foi desconfortável.
Aninha puxa assunto sobre um
vídeo novo da Luluca e acabo
ignorando o mau humor do seu irmão.
Chegamos à fazenda e dona Vanda nos
recebe toda feliz com sorrisos e abraços
que tinha esquecido o quanto me faziam
bem.
— Lety, não liga para as coisas
que o Romeu falou — Aninha diz,
quando nos acomodamos no quarto e
colocamos uma roupa mais leve. — Meu
irmão é legal, mas às vezes ele é muito
chato.
— Acho que ele é chato sempre
— digo, ajustando a alça do meu
macacão jeans.
— Será que o papai me deixa
usar uma roupa assim, igual a sua? — a
garota indaga, segurando o queixo.
— Claro que sim, o Ariel é um
pai muito massa. — Aperto sua
bochecha quando ouvimos uma batida na
porta e tia Isis entra no quarto com uma
expressão preocupada.
— Aninha, sua vó está te
procurando — informa, arrumando o
chapéu na cabeça da menina que sai
correndo em seguida em busca da
senhora amável, minha tia se vira para
mim. — Está tudo bem?
— Sim.
— Nos últimos dias eu tive a
impressão de que estava rolando alguma
coisa entre você e Romeu, mas acho que
foi só a minha imaginação fértil. — Ela
segura a minha mão. — Aquele menino
está em uma fase horrível e diz coisas
sem pensar. Tente ignorar as
provocações dele, ok?
— Vou tentar, tia.
— Olha, vá passear por aí — a
mulher diz, acariciando meus cabelos.
— Tem um monte de lugar legal por aqui
e, graças a Deus, a chuva deu uma
trégua, o sol está lindo, tia Vanda fez um
bolo de mandioca delicioso e se eu
fosse você, faria a minha primeira
parada na cozinha.
— Romeu está lá? — pergunto,
desconfiada.
— Não, ele sumiu na hora que
chegamos e ninguém sabe dele. O Ariel
disse que isso é normal, acho que aquele
garoto precisa é de uns tapas — Ela ri.
O seu relacionamento com os
filhos do namorado é bem legal, ao
contrário da Sararaca, tia Isis não fica
criando competição entre pai e filho.
— Pelo menos isso. — Levanto
as mãos em um gesto teatral.
Fico sozinha por um tempo,
aproveito para reler as últimas
mensagens que troquei com Romeu, em
busca de qualquer coisa que tenha feito
de errado, mas não há nada e isso me
deixa bastante irritada.

Aninha vai comigo até o pomar e


depois some pela trilha que leva ao
galinheiro, nunca vi uma criança para
gostar tanto desse clima do interior.
Ando um pouco entre as árvores e
reconheço a trilha que leva à cachoeira,
quando estivemos aqui no Natal,
Ariadne nos trouxe várias vezes.
Olho de um lado para o outro
decidindo seguir o caminho, estou
começando a gostar desse ambiente tão
acolhedor e entender por que as pessoas
amam esses lugares. O ar puro, o som
dos pássaros, a sensação de paz e
tranquilidade é indescritível.
Depois de fazer um lanche,
resolvi seguir o conselho de tia Isis e
andar por aí, na tentativa de espairecer.
Ouço ao longe o som da cachoeira e ao
entrar na clareira percebo que não estou
sozinha mais, porque Romeu está
sentado no tronco de uma árvore com os
pés dentro do rio, jogando pedrinhas na
água.
Dou meia-volta tentando não
fazer barulho, mas ele me vê.
— Agora você não fala mais
comigo? Que ótimo! — A irritação está
nítida em sua voz. — Pode fugir,
patricinha.
Hesito por um momento, com
vontade de ir embora e não responder à
sua provocação, só que eu não sou de
ficar com as coisas entaladas na
garganta, por isso me viro e dou alguns
passos em sua direção.
— Não fui eu quem disse que
não tenho nada a ver contigo e sua
família, foi? — Estreito os olhos e ele
desvia o olhar jogando outra pedrinha na
água.
— Aquilo não era com você —
afirma, abaixando a cabeça e apoiando o
braço no joelho.
— Mas machucou do mesmo
jeito. — Encaro as minhas botas e o
ouço pular da pedra.
— Ei... Olha para mim. — Ele
se aproxima e toca meu rosto. — Me
perdoe, não queria te machucar, só
estava com raiva e tenho essa mania
idiota de descontar nas pessoas erradas.
— Você é um babaca. — Bato
em seu peito.
— Um babaca que está morrendo
de saudade dos seus beijos. — Romeu
segura a minha mão e nossos olhares se
encontram.
— Não vai me convencer assim
tão fácil. — Balanço a cabeça e tento
me afastar. — Estou chateada com você,
pare de me olhar desse jeito.
— Desse jeito como? — O
desgramado finge uma inocência que
não tem, enquanto enlaça a minha cintura
colando seu corpo no meu.
— Como se eu devesse esquecer
a raiva que me fez hoje cedo e te beijar
até perder o ar. — Agora nossos rostos
estão bem próximos e a minha
respiração está ofegante. — Pare!
— Eu quero perder o meu ar
com você, patricinha, e sabe do que
mais? — Ele desliza o nariz pelo meu e
seu cheiro gostoso começa a desfazer
minhas certezas e assinto. — Quero
sentir seu sabor, a textura da sua pele,
ouvir seus gemidos enquanto toco
lugares proibidos. — Seus lábios tocam
meu pescoço em um beijo que me deixa
arrepiada. — Se me perdoar, tem muito
a ganhar, Lety.
— Romeu... — Arfo, sentindo
meu corpo mole com seu toque. — Você
me magoou.
— Eu sei, patricinha. — Seus
lábios roçam os meus. — Não queria
fazer aquilo, mas fiz e infelizmente não
posso desfazer. — Ele pousa as duas
mãos no meu pescoço, roçando os
polegares na minha bochecha e me
encara. — É a sobrinha gata da
namorada do meu pai, que tem os
melhores beijos que eu já provei, não
podia dizer isso dentro daquele carro, ia
ser deserdado.
— Faz sentido, mas acho que as
coisas são sempre muito fáceis para
você. — Nem sei mais por que estava
chateada com esse garoto.
— Não são nada. — Ele arqueia
a sobrancelha.
Nós nos fitamos e aos poucos
vou cedendo ao seu olhar arrependido,
sua testa se encosta à minha, o som da
queda d’água vai ficando distante e
nossos lábios se encontram famintos em
um beijo desesperado por coisas que
não sabemos nomear ao certo. Seu gosto
está por toda parte, suas mãos descem
até a minha cintura apertando-me contra
ele, entrelaço os braços em seu pescoço
e nos beijamos como se a nossa vida
inteira se resumisse apenas a este
momento.
É tão fácil gostar dessa versão
dele, mas tenho medo de que acabe me
machucando feio. Nós nos afastamos
apenas para tomar um pouco de ar,
depois recomeçamos, ele me empurra
lentamente para trás até que minhas
costas batem no tronco de uma árvore,
com uma mão ele segura meus pulsos
acima da cabeça e distribui beijos pelo
meu pescoço, a outra toca a pele entre o
short da jardineira e o cropped soltinho
que uso por baixo.
— Ah, patricinha, você está
muito gostosa — ele sussurra, conforme
vai avançando, tocando a renda do sutiã,
fazendo com que os bicos dos meus
seios fiquem arrebitados e ansiosos por
seu toque, mas o garoto para.
Romeu solta minhas mãos e,
desabotoando o fecho do suspensório da
jardineira, enfio as mãos debaixo de sua
camiseta, fazendo-o praguejar baixinho,
empurrando o volume em seu short
contra mim. Ele volta a enfiar as mãos
por baixo do cropped, segurando meus
seios, acariciando os bicos com o
polegar, enquanto sua boca devora a
minha de um jeito quase obsceno,
fazendo com que chamas tomem o meu
corpo inteiro.
— Você gosta disso? — A voz
cheia de desejo desencadeia ainda mais
sensações pelo meu corpo, os beijos
intensos parecem ter um único objetivo:
me enlouquecer.
— Aham... — respondo,
ofegante, mordendo seus lábios,
lambendo seu pescoço, apreciando o
gosto salgado de sua pele, inspirando o
cheiro gostoso que ele tem, mordisco
seu queixo e volto a devorar sua boca,
minha língua dançando em sincronia
com a dele. Não sei como fazer para
parar de querer cada vez mais de
Romeu.
— Minha vez — diz nos meus
lábios, descendo devagar com beijos
suaves por toda a extensão da
mandíbula, sugando o lóbulo da orelha,
me arrancando gemidos involuntários.
Aos poucos, vai fazendo o
caminho do pescoço, arrancando
gritinhos excitados a cada vez que sua
boca toca a minha pele, ele morde o meu
seio por cima da roupa, sua mão direita
aperta a minha coxa, levantando a perna,
enfiando a mão por dentro do short curto
ao mesmo tempo que esfrega sua ereção
em meu centro fazendo-me queimar e
querer ir mais longe do que deveríamos,
Romeu parece perceber, pois se afasta.
— A gente não pode fazer isso
— afirma, virando de costas para mim,
suspirando longamente e puxando os fios
do cabelo desgrenhado. — Precisamos
acalmar os ânimos.
Ele tira a camisa e se joga na
água antes que eu possa dizer qualquer
coisa.
— Essa é a sua ideia de acalmar
os ânimos? — indago, arqueando a
sobrancelha. — Ficando sem camisa e
pulando na água?
Ouço-o rir, sei que tem razão,
não devemos transar por “n” motivos,
mas resolvo provocá-lo um pouco mais.
Começo a tirar a roupa, ficando apenas
de sutiã e calcinha de algodão, ele
morde o lábio inferior inclinando a
cabeça para trás. Sei que essa nossa
brincadeira pode ser bem perigosa,
porém, não consigo controlar a vontade
de tirar o restinho de juízo que ele
parece ter.
— O que vai fazer, patricinha?
— ele pergunta, quando dou alguns
passos para trás para tomar impulso.
— Nada que você não tenha
feito. — Corro na direção da água e
mergulho, sentindo o frio acalmar um
pouco do quase incêndio que Romeu
causou.
Nado um pouco mantendo uma
distância segura dele, até que eu seja
capaz de domar as emoções do meu
corpo. Jogo água em seu rosto
abestalhado me vendo só de sutiã, como
se não tivesse visto meus seios nus outro
dia no terraço.
— Assim vai ser bem difícil me
manter longe — ele diz, se aproximando
devagar até estarmos frente a frente. —
Achei que ia ser fácil, mas você não
facilita em nada a minha vida.
Então eu finalmente me dou
conta de que a qualquer momento
alguém pode chegar e nos ver ali como
namoradinhos e sou invadida pelo
pânico, quando ele me envolve por
baixo da água, me puxando para si.
— Alguém pode nos ver, Romeu.
— O empurro e ele ri.
— Ei, ninguém vem aqui a uma
hora dessas e é por isso que eu vim para
cá — garante e o encaro, desconfiada.
— O vovô está cuidando da plantação,
vovó está fazendo o almoço, papai não é
muito fã de água gelada a essa hora do
dia e sua tia deve estar conversando
com a minha vó.
— Quanto à sua irmã? —
Estreito os olhos em sua direção.
— Relaxa, patricinha, Aninha
morre de medo de pegar essa trilha
sozinha. — Ele arruma meus cabelos
desgrenhados. — Somos só eu e você.
— Que safado! — Empurro seu
ombro.
— Prometo que não vamos longe
demais — diz, beijando meus lábios e
enlaço as pernas em sua cintura,
sentindo sua ereção sob o fino tecido da
calcinha. — Também não precisa me
provocar desse jeito, garota.
Suas mãos espalmam a minha
bunda, esfrego desavergonhadamente a
virilha em sua ereção, nos beijamos
outra vez e ficamos nesse joguinho
gostoso por um longo momento. Depois
nadamos um pouco e nos sentamos na
gruta formada pela queda d’água, ele se
encosta à parede, me encaixo entre suas
pernas e seus braços me envolvem,
ficamos apreciando o momento,
completamente relaxados.
— Acha que podemos manter
isso por quanto tempo? — ele sussurra e
viro o rosto para encará-lo.
— Não sei, Romeu — digo, com
sinceridade. — Como seu pai reagiria
se descobrisse sobre a gente?
— Mal, provavelmente teria um
surto. Ele é capaz de colocar um oceano
de distância entre nós, Lety. — A frase
soa divertida, mas sei que tem o seu
fundo de verdade. — Não quero me
afastar de você, patricinha, faz muito
tempo que não me sinto assim com
alguém.
— Não precisa se afastar. —
Deslizo a mão pelo seu rosto. — Acho
que a gente consegue manter o papel de
arqui-inimigo por mais um tempo.
Ele beija meus lábios e tenho certeza de
que farei qualquer coisa para ter mais de
nós dois, isso não é nada bom, mas que
se danem as probabilidades.
Romeu, 17 anos
— Cara, você precisa ir à festa
do Matheus com a gente! — Leon insiste
quando andamos pelo corredor do
prédio do cursinho pré-vestibular. —
Essa menina tá tomando conta da sua
vida e tu nem percebe... Nem no teu
aniversário, semana passada, tu quis
sair com a gente.
Meus amigos, Ivan e Leon,
sabem sobre o meu rolo com a
patricinha. Acham uma perda de tempo
com tanta garota me querendo, para eles
esse lance com ela tinha que ser
passageiro e não algo que caminha para
cinco meses.
Apesar de fingir para eles que
não é nada sério, sei que me apaixonei
pela garota, não é como se eu pudesse
controlar isso. Só que o medo de me
machucar com toda essa situação, ainda
fala mais alto.
— Não é por causa dela que não
quero ir — digo, segurando a alça da
mochila. — Aquele cara é um chato e,
além do mais, vai ter um monte de gente
da escola de música que eu não estou a
fim de ver. O pessoal vai ficar botando
pilha para eu tocar e não vou fazer isso
de novo, já basta a última vez.
— Que bobagem! — Ivan
reclama do outro lado. — Você só está
arrumando desculpas para ficar com a
sua patricinha no fim de semana.
— Não tô, não — minto, porque
apesar de não admitir, é exatamente isso
que quero.
— Mente mais que a gente
acredita — Leon tira um sarro e seguro
a onda para não socar a cara dele. —
Você está apaixonado pela garota, só
fala nela, seu celular tem um milhão de
fotos dela, quase não sai com a gente,
nem tá pegando as gatinhas que lambem
o chão que tu pisa. O que tá
acontecendo, irmão?
— Tudo bem que ela é gata, mas
esse não é o Romeu pegador que a gente
conhece — Ivan completa, com um tom
debochado que me irrita.
— Calem a boca! — esbravejo,
chateado. — Os dois estão parecendo
disco arranhado, por que não pegam
essas garotas que deixei para vocês e
façam bom proveito? Talvez assim
parem de me encher o saco com essa
história.
— Já transaram? — Leon
questiona, curioso. — É por isso que
não desgruda mais dela? A mina é tão
gostosa assim?
— Ou pior, não transaram e você
está se aproveitando da garota? Que
isso, Romeuzinho? — Ivan me lança um
olhar julgador.
Balanço a cabeça com um
sorriso cínico, eu não vou ter essa
conversa com esses dois paspalhos. Sei
que devo ter negligenciado a nossa
amizade, mas eles sabem se virar
sozinhos, Leon já não precisa tanto de
mim limpando suas merdas e Ivan sabe
de cuidar.
— Querem saber mesmo? —
Eles me olham, animados, esfregando as
mãos. — Vão para casa do caralho, isso
não é da conta de vocês.
Viro-me e sigo para a saída
sozinho, peço um carro por aplicativo e
mando uma mensagem para a patricinha.
“Que horas a gente se encontra?”
Sua resposta vem em seguida.
“Às sete e meia, o Breno vai
passar aqui para me pegar.”
Solto a respiração, não nos
vimos a semana toda e lá em casa é
marcação cerrada em cima da gente,
então começamos a nos encontrar nas
sextas à noite. Seu amigo nos dá
cobertura e papai acha que estou nas
festas vadiando com os meus colegas,
como sempre.
“Estou com saudade, não vejo a
hora de te encontrar, patricinha.” Sim,
eu ando meio boboca depois que
comecei a sair com essa menina.
Chego em casa um pouco antes
de papai e Aninha, aproveito para fazer
as minhas coisas e não levar nenhuma
punição que atrapalhe os meus planos
com a Lety. Coloco as roupas na
máquina de lavar, seco as louças do
almoço e varro o apartamento na
velocidade da luz.
Quando estou tomando banho,
ouço a barulheira de minha irmã
anunciando a chegada deles, coloco uma
roupa das que mamãe mandou no meu
aniversário. Nossa relação está um
pouco melhor, Isis tem conversado com
a gente e com ela, mas não acho que a
vamos voltar a ser como antes. Preciso
admitir que a mulher está tentando,
prova disso é a Ana Júlia
superempolgada com os convites sem
segundas intenções para passarmos os
fins de semana com a nossa mãe.
Antes de sair do quarto, dou uma
última olhada para a embalagem no
canto próximo à mesa de estudos. Como
eles foram capazes de me dar uma coisa
dessas? Massageio a têmpora, ganhei um
Cello feito à mão no meu aniversário em
nome de papai e mamãe. Nem preciso
mencionar que fiz um escândalo e pedi
para devolverem, mas ele continua aqui,
porque o bom Ariel não quer fazer
desfeita com a recém-regenerada Carla.
— Vai sair? — Aninha pergunta,
assim que me vê.
— Não é da sua conta, pirralha,
devia tomar banho e tirar esse quimono
— aviso, apertando seu nariz.
— Quando eu crescer, vai me
levar com você? — ela insiste, fingindo
não ter escutado o que disse.
— Se continuar surda para a
palavra banho, acho que não vou sair
com a Maria Cascuda fedorenta —
provoco, a vendo fazer um biquinho
dramático de quem vai fingir choro.
— Papai, o Romeu me chamou
de Maria Cascuda fedorenta. — Essa
menina é especialista em virar o jogo a
seu favor.
— Romeu, pare de implicar com
sua irmã. — Ele surge na porta da
cozinha e me encara, intrigado. — Quem
é você e o que fez com o meu filho? Está
me assustando, garoto.
— Ué, só vesti as roupas que a
mamãe me deu. — Dou de ombros.
— Aposto que tem garota
envolvida nisso. Aninha, vá guardar a
sua mochila e tomar um banho. — Pelo
seu tom, sei que teremos um sermão
sobre sexo se eu não fugir antes da
garotinha. — Preciso ter uma conversa
de homem com o seu irmão.
— Por que eu não posso escutar?
— Ana Júlia se debruça no sofá com a
mão no queixo.
— Bom, eu preciso ir. Marquei
com os meninos às sete e meia. — Pego
meu celular e chaves, colocando no
bolso. — Boa noite para vocês que
ficam.
— Romeu, volta aqui, que ainda
não terminamos — o homem chama e eu
ignoro.
— Se tiver a ver com
C.A.M.I.S.I.N.H.A já tivemos essa
conversa, papai. — Abro a porta e dou
um tchauzinho. — Fui.
— Papai, o que ia falar com
Romeu sobre casinha? — Ouço minha
irmã dizer um pouco antes de fechar a
porta.

— A sua fama de bad boy veio


antes ou depois que foi preso, Romeu?
— Breno pergunta, rindo, depois que
terminamos de comer o lanche na praça
de alimentação.
Nem sei como a gente chegou
nessa conversa, mas acabei contando
como eu fui parar na delegacia por culpa
de Leon e meu pai passa isso na minha
cara, desde então, não estive realmente
preso, mas fica divertido quando as
pessoas acham o contrário.
— Antes, lógico — respondo,
sarcástico, apertando a mão de Lety por
baixo da mesa. — Arrumei incontáveis
brigas na escola e acho que foi isso que
me trouxe essa má fama.
— Você não tem, assim, nenhum
amigo bad boy solteiro para me
apresentar? — Seu tom sussurrado me
faz sorrir. — Ah, meu Deus, não faz isso
com o meu coração, Romeu. Se a Lety te
dispensar, me dá uma chance?
— Ei, que conversa é essa, seu
fura olho. — Letícia dá um tapa na mão
do amigo. — Você é mais velho que ele,
querido.
— E daí? O amor não tem idade,
minha querida. — Ele lhe joga um
beijinho e a menina lhe mostra o dedo
do meio. — Mas acho que vocês dois
são bem fofos juntos e deveriam parar
com esse negócio de se pegar
escondido.
— Está achando ruim de nos dar
cobertura, é isso? — Sua amiga lhe
olha, desconfiada.
— Longe de mim, gosto dessa
parada de proteger o amor de outras
pessoas. — Breno usa um tom cheio de
drama. — Porém, entretanto, todavia
esse negócio de namoro escondido está
ultrapassado.
Encaro a tela do celular.
— O seu filme já vai começar —
informo e Letícia me lança um olhar
agradecido. — Você não vai mesmo com
a gente?
— Ah, não... podem ir, não
quero segurar vela para ninguém — ele
diz, com seu olhar conspiratório. —
Tenham juízo, crianças, não façam nada
que eu não faria.
— Mas você é um safado,
amigo. — A garota balança a cabeça,
rindo.
— Exatamente.
Nós o deixamos na bilheteria do
cinema e fazemos uma curta caminhada
até uma pracinha perto do shopping, mas
não tão cheia e onde não há tanta
probabilidade de nos reconhecerem.
Encontramos um lugar reservado para
ficar, mas antes a puxo para um beijo,
adoro essa sensação dos nossos lábios
se tocando, essa fome insana depois de
uma semana inteira sem nos ver.
Ficamos perdidos entre beijos e
carinhos por um momento, depois Lety
tira uma toalha da mochila estendendo
no chão, nos deitamos, coloco uma
playlist pop tocada pelo Simply Three,
compartilhamos o fone, damos as mãos e
fitamos o céu.
Se existe alguma coisa melhor
do que isso, ainda não me apresentaram.
— Você ainda está bravo por
conta do Cello? — ela pergunta, depois
de um tempo em silêncio.
— Um pouco.
— Por que se recusa a voltar a
tocar, mesmo sendo tão apaixonado por
música?
— Está relacionado à separação
dos meus pais — admito, pela primeira
vez a alguém que não é a minha
terapeuta. — Me sinto culpado e tenho
medo de que a música faça comigo o
que fez com a mamãe, ela nos trocou
pela carreira. Sinto isso às vezes, sabe?!
— Não pode pensar assim,
Romeu. — Lety se vira para mim. —
Sua mãe não trocou vocês pela música,
isso deve ter sido apenas o que
desencadeou tudo.
— Meus pais nunca se deram
bem de verdade — explico, sem olhá-la.
— Quando eles se separaram, descobri
que se casaram por minha causa e aquilo
mexeu demais comigo. Mamãe falou
coisas horríveis para o papai, não sei se
consigo perdoá-la por isso.
— Sua raiva do presente está
relacionada à música ou ao seu
relacionamento com a Carla?
— Acho que com os dois, Lety.
— Eu penso que é mais com a
sua mãe do que com a música —
conclui, fazendo com que finalmente me
vire para ela. — Você respira música, é
uma coisa que vem de dentro, não acho
que possa continuar negando isso por
muito tempo, Romeu. A música está para
você, como a dança está para mim.
— Às vezes, penso em voltar —
confidencio e ela acaricia minha mão.
— Mas não sei o que isso faria comigo.
Até sonho com os palcos, em voltar a
participar de uma orquestra, dentre
outras coisas.
— Você toca bem demais.
— Como sabe? — indago,
surpreso.
— Vi uns e outros vídeos seus
por aí. — Ela morde o lábio. — Eu
fiquei chocada com o seu talento,
Romeu.
— Chega de falar de mim, agora
vamos falar de você — desvio do
assunto. — Vai participar daquele
concurso que o Breno mencionou?
— Não sei, faz muito tempo que
fiz algo assim — diz, incerta.
— Mas agora ninguém vai te
impedir, você já é emancipada e aquele
homem horrível não pode mais interferir
na sua vida, Lety. — Lembro-a que
conseguiu a sentença favorável há
poucos dias.
— Sabe o que doí mais em tudo
isso? — Seus olhos brilham cheios de
lágrimas. — Meu pai parece não ter se
importado com isso, fez tanta questão de
ficar comigo desde que mamãe morreu e
agora percebo que era apenas para
pirraçar a tia Isis, não tinha nada a ver
comigo.
Sento-me na toalha e a puxo para
mim, em um abraço apertado.
— Ei, não fica assim. — Beijo
seus cabelos. — Tem um monte de gente
bacana que te quer bem, patricinha. Foca
no que te faz feliz, por exemplo: eu.
— Bobo. — Ela dá um tapinha
no meu braço.
— Ué, eu sou um gato, lindo,
gostoso, beijo bem. O que mais você
quer?
— Nada, só você mesmo. Seu
bad boy metido à besta. — Lety se
inclina e me dá um beijo.
— Não fuja do assunto. —
Aperto seu nariz. — Não respondeu
sobre o concurso, isso também te faz
feliz e acho que deveria tentar fazer algo
por você.
— Ah, Romeu... o que eu faço
contigo?
— Sei lá — respondo, dando
um beijo rápido em seus lábios. — Me
beija, me deixa cuidar um pouquinho de
você ou faça o que quiser comigo, tem
carta branca.
— Uau... Isso é uma declaração?
— pergunta, se afastando de mim para
me encara.
— Talvez. — A puxo de volta
para meus braços. — Volte aqui, eu
ainda não terminei de descontar a
saudade que está atrasada.
Não tenho certeza se consigo
manter segredo sobre nosso
relacionamento, cada dia que passa
parece que estou mais apaixonado por
Letícia e apesar de achar que o destino
dos sentimentos é machucar as pessoas,
estou começando a acreditar que pode
ser diferente. Essa garota, por exemplo,
tem um estranho poder de me deixar
confortável falando sobre assuntos que
geralmente doem.

Letícia
— Não acho justo isso! —
Breno reclama, enquanto andamos pelo
shopping lotado de gente.
— O que não acha justo? —
Ergo a sobrancelha, fingindo não ter
compreendido sua revolta. — O fato de
eu ter um ficante fofo ou o de as pessoas
não poderem saber que estamos “juntos”
há meses ou... tudo isso é porque eu
tenho alguém, enquanto meu melhor
amigo continua solteiro?
Quando fiquei com Romeu pela
primeira vez, há quase seis meses, não
achei que as coisas entre nós fossem
durar tanto tempo, muito menos que
continuariam tão intensas como naquela
primeira noite, até porque precisaríamos
esconder tanto do pai dele quanto da
minha tia e nunca gostei muito da ideia
de omitir algo dela, só que convivendo
com Ariel, acabei concordando que ele
poderia não aceitar muito bem isso.
— Você é uma péssima amiga e
eu te odeio por isso. — Ele empurra
meu ombro com o seu.
— Odeia nada. — Enlaço seu
braço quando paramos para olhar a
vitrine de uma loja chique. — Não
consegue viver sem mim e só está com
ciúme porque tenho passado mais tempo
com Romeu do que contigo, prometo que
vou te arrumar um carinha decente... Que
saiba valorizar a pessoa incrível que
você é.
— Não força, Lety. — Ele ri,
apertando o meu nariz. — Me conta,
você e o bad boy delicinha finalmente
transaram?
Encaro-o, sentindo o rosto
queimar de vergonha, existem momentos
em que eu gostaria que meu amigo fosse
mais discreto.
— Breno! — ralho.
— O quê? Em algum momento
isso vai acontecer e você vai perder
esse cabaço. — Sua resposta me deixa
ainda mais vermelha.
— Não vou conversar isso com
você — digo, chateada, e ele passa o
braço pelos meus ombros.
— Queridinha, é uma coisa
natural que vai acontecer cedo ou tarde
e torço para que seja o mais breve
possível. — Breno ignora o fato de eu
não querer falar sobre o assunto. —
Vocês são adolescentes, os hormônios
estão à flor da pele, uma coisa leva a
outra... Vai dizer que nunca rolou nem
uma “mão naquilo ou aquilo na mão”?
Romeu e eu temos uma química
incrível, se dependesse só de mim,
estaríamos transando feito coelhos há
muito tempo, mas o meu bad boy tem um
autocontrole invejável, junto com o
medo de decepcionar tanto Ariel quanto
tia Isis. Já conversamos sobre isso e
concordamos que vai acontecer no
momento que for melhor para nós dois.
Até lá, temos que segurar esse fogo.
— Ninguém é de ferro, né,
Breno? — sacio sua curiosidade, o
fazendo rir.
— Essa é minha garota — ele
tira onda. — Essa carinha de santa, para
cima de mim, não cola, sabia que ia te
corromper cedo ou tarde.
— O Romeu não precisou me
corromper.
— Ah é, você aprendeu a ser
safada comigo. — Sua fala escandalosa
faz com que as pessoas à nossa volta se
virem para olhar e finjo não perceber.
— Se eu fosse você, já estaria dando
para ele há tempos, seu namoradinho é
um gostoso.
— Ei, mais respeito e ele não é
meu namorado. — Cutuco sua costela.
— Isso é só uma questão de
interpretação. — Ele dá de ombros. —
Quando acontecer, quero saber de tudo.
— Não viemos para falar sobre
a minha vida sexual inexistente. —
Reviro os olhos e desvio o foco da
conversa. — Ao que me consta, você
disse que iríamos escolher o meu
presente de aniversário.
— Que chata! — Breno reclama,
quando paro na frente de uma loja de
artigos geek. — E aí, já pensou no que
quer fazer no seu aniversário, semana
que vem?
Confesso que ainda não pensei
em nada, tia Isis quer dar uma festa para
comemorar a chegada dos meus 17 anos,
Ana Júlia está empolgadíssima criando
uma playlist maluca e Romeu... bem, ele
acha que eu preciso fazer o que me
deixa feliz.
Por enquanto, o plano de ser
arqui-inimigos declarados tem dado
certo, ao menos as pessoas parecem
acreditar, apesar de que não estou tão
certa sobre Aninha acreditar em toda a
nossa encenação, com todas aquelas
piadinhas bobas e brigas sem pé nem
cabeça por conta de coisíssima
nenhuma.
— Ainda não sei... — mordo o
lábio, respondendo finalmente à
pergunta de Breno. — Decidiu
participar do concurso de dança no fim
do ano?
— Com certeza e acho que
deveria tentar também — ele diz, me
olhando cheio de expectativas.
Não participo de competições
desde que mamãe faleceu, mas nos
últimos meses tenho cogitado cada vez
mais a ideia, já que, como Romeu disse
outro dia, ninguém pode me impedir de
ser feliz fazendo o que gosto. Porém
ainda tenho medo.
— Acho que ainda não é o
momento, Breno — digo, com
sinceridade, então ele para e me faz
encará-lo.
— Dançar está no seu sangue,
não importa o quanto tente negar, isso
está estampado no seu rosto. — Ele me
conhece o suficiente para saber como
me sinto quando estou no palco. —
Quando você dança, Lety, todo mundo
deixa o que está fazendo apenas para
admirar. Seus olhos brilham, sua pele
reluz e os movimentos do seu corpo
contam histórias cativantes.
— Diz isso porque é meu amigo.
— Não, falo isso porque você é
a melhor dançarina que conheço e não
queria que desperdiçasse o seu talento
por medo de enfrentar o desconhecido.
— Às vezes, Breno parece ser muito
mais velho do que seus 18 anos recém-
completados. — Tenho certeza de que
aquele seu peguete bad boy concorda
comigo. O jeito que ele te olha quando
está dançando chega dar um negócio na
gente.
Romeu adora me ver dançar, só
por isso às vezes permito que me veja
praticar com Breno ou sozinha, por
chamadas de vídeo, no início ele morria
de ciúme do meu melhor amigo, mas
agora já entendeu que o lance entre nós é
apenas amizade e que gostamos
exatamente da mesma coisa. No geral,
eles se dão bem e gosto disso, porque
ambos são importantes para mim, de
modos diferentes.
— Você é tão infantil — retruco,
quando voltamos a caminhar. — Eu
quero muito dançar, fazer o que gosto,
mas agora preciso focar nas provas do
vestibular.
— Lety, pare de inventar
desculpas. Tenho certeza de que
consegue estudar e equilibrar as duas
coisas. Quem sabe, essa não seja a sua
chance de mostrar a si mesma que não é
tarde para voltar a sonhar com os palcos
e todo o glamour. — Ele faz um gesto
engraçado com as mãos. — Talento,
você tem de sobra, e podemos ensaiar
juntos, seremos imbatíveis.
— Vou pensar, prometo — digo,
apenas para que ele esqueça o assunto.
Talvez não esteja pronta para
enfrentar os palcos sem minha mãe na
primeira fila para me aplaudir, além
disso, passei tempo demais ouvindo do
meu pai que dançar não me levaria a
nenhum lugar e outras tantas baboseiras
que nem devem ser mencionadas. Não
aguentava mais viver naquela casa que
lembrava tanto a minha mãe, porque não
restava mais nada dela ali para me
agarrar e, apesar dos esforços de tia
Isis, eu me sentia um fardo tanto para
meu pai quanto para ela.
Quando Breno me convidou para
assistir a uma apresentação de dança
contemporânea, anos atrás, eu estava a
um passo de entrar em depressão, foi
como receber uma descarga de energia e
aquilo, de certa forma, me trouxe de
volta, de repente eu queria ser mais do
que a garota que brigava o tempo todo
com o pai e a madrasta.
Agora, sou livre para escolher o que
quiser, quem sabe, participar desse
concurso não seja um sinal divino para
que eu possa lutar pelos meus sonhos
por mim mesma?
Letícia
— Eu não entendo o que eu fiz
de errado — digo, encarando o homem.
— Pare de ser cínica, garota. —
A voz do meu pai me causa um tremor
pelo corpo. — Sabe que nunca gostei
dessa baboseira de dança, só deixei
continuar com essa bobagem porque a
Isis pagava suas aulas e me enchia o
saco. Sempre soube que sua tia era uma
perdida, olha só no que ela está te
transformando.
— A tia Isis não é uma perdida
— retruco, afrontosa, e ele avança na
minha direção.
— Ah, não? Por que acha que
ela nunca se casou? — Seu tom irado
me aterroriza, mas não baixo a cabeça.
— Nenhum homem que se preze vai
querer uma mulher que não se dá ao
respeito, Letícia. Olha as roupas que
você estava usando nesse vídeo, eu não
criei filha para tá se exibindo como um
pedaço de carne por aí.
— Quem é você para falar em
respeito? — disparo, cheia de mágoas.
— Nunca respeitou a minha mãe,
colocou sua amante dentro de casa
antes mesmo que ela tivesse morrido.
Sua resposta foi um tapa
certeiro no meu rosto.
— Vai aprender a me respeitar e
não questionar minhas ordens, por bem
ou por mal. — Ele segura meus
cabelos, forçando-me a olhá-lo.
— Eu te odeio! — cuspo as
palavras.
Seu olhar muda de uma hora
para outra e só consigo ver o monstro
dentro dele sobressaindo.
— Não precisa me amar, apenas
respeitar minha autoridade como seu
pai. — Ele me solta em um solavanco,
perco o equilíbrio e caio batendo as
costelas na quina da mesa de centro. —
Você nunca mais vai pisar naquele
antro de gente sem o que fazer e pode
esquecer aquela sua tia sem-vergonha.
As palavras são acompanhadas
de chutes no mesmo local onde bati na
mesinha e neste momento tudo que
desejo é que a morte seja rápida,
porque não aguento mais estar em um
mundo onde esse homem horrível é
quem deve ditar as regras da minha
vida.
— Lety, calma. — Ouço a voz
distante de tia Isis. — Foi só um
pesadelo, eu estou aqui com você,
ninguém pode mais te machucar.
Respira, meu amor...
Abro os olhos reconhecendo o
quarto que ocupo no apartamento dela,
puxo o ar lentamente recobrando aos
poucos os sentidos. Seis meses se
passaram desde aquela noite terrível,
mas vez ou outra tenho pesadelos com o
que passei. Mãos suaves massageiam-
me as costas.
— Está tudo bem — ela
sussurra. — Estou aqui com você.
— Desculpe! — Passo as mãos
no rosto encharcado de lágrimas.
— Precisa voltar para a terapia,
Lety. — Tia Isis me encara, preocupada.
— Esses pesadelos não são normais,
você parecia tão bem nos últimos meses,
feliz e rindo à toa olhando para tela
desse celular.
— Eu não sei o que aconteceu,
tia. — Arrumo os cabelos em um coque.
— Talvez seja porque fiquei pensando
no Wallace antes de dormir, mas eu
estou bem. Juro!
— Não tenho tanta certeza —
diz, segurando meu queixo. — Saiba que
eu estou aqui e pode contar comigo para
qualquer coisa, devo isso à sua mãe.
Abraço-a em resposta, se existe
alguém neste mundo capaz de fazer
absolutamente qualquer coisa por mim, é
essa mulher. Ela se deita ao meu lado na
cama e ficamos abraçadas em silêncio
até que me acalme completamente.
— Então vai me falar quem é
esse garoto que está te deixando nas
nuvens? — Sua pergunta me pega de
surpresa.
— O quê?
— Acha que nasci ontem,
garota? — Ela me dá um beliscão no
braço. — Já tive a sua idade e fiquei
assim por um cara que, por acaso,
voltou para minha vida recentemente.
— É complicado, tia —
respondo, mordendo o lábio.
— Ah, os amores adolescentes.
— A mulher suspira rindo. — Se esse
garoto não quer te assumir, foge
enquanto é tempo, Lety.
— Não é isso, é que...
— Você está apaixonada por ele
— afirma, empolgada, e enfio a cara no
travesseiro. — É pior do que pensei.
Como ele é? Não me mata de
curiosidade, sua tia já está velha.
— Uma idosa bem gata, por
sinal. — Tento fugir da sua pergunta.
— Pode me contar tudo, eu exijo
saber como os adolescentes namoram
hoje em dia. — Ela se arruma na cama
de modo que fiquemos deitadas uma de
frente para a outra.
— Ele é fofo, gatinho, meio
nerd, adora me ver dançar e faz com que
eu me sinta nas nuvens. — Tenho
consciência do quão bobo isso soa, mas
é minha tia e não ligo. — E sim, estou
apaixonada.
— Gente, o que aconteceu com a
garotinha fofa que adorava brincar de
bonecas comigo?
— Cresci, tia. — Mordo o lábio,
rindo.
— E vocês estão namorando?
— Não, só ficando há uns meses.
— Tomo o cuidado de não revelar
muito. — É muito cedo para namorar.
— Ai, meu Deus. Ai. Meu. Deus
— ela dá gritinhos eufóricos. — Garota,
eu não tenho maturidade para isso. Eu
conheço esse carinha fofo?
— Ih, não sei, tia — minto.
— Sua danadinha. — Tia Isis
cutuca minha costela. — Não faça nada
que possa se arrepender depois. Vocês
já... — Ela arregala os olhos e faz um
gesto sugestivo.
— NÃO! — digo, alto demais e
ela ri. — Ah, tia, eu não vou falar essas
coisas com a senhora.
— Vai, sim — Ela começa a me
fazer cócegas. — Eu sou sua tia e tenho
direitos, só me prometa que vai tomar
cuidado, Lety? Não quero que sofra e se
esse menino fizer qualquer coisa que te
magoe, precisa me contar, que eu faço
questão de quebrar a cara dele
pessoalmente.
— Que exagero! — reclamo.
— Vai tomar cuidado? —
indaga, arqueando a sobrancelha. — E
quando digo isso, me refiro a tudo,
inclusive, aquela coisinha que você não
quer me contar. Vou marcar uma consulta
com a minha ginecologista, melhor
prevenir do que remediar.
— Tia!
— O quê? Minha filha, já tive a
sua idade e tinha um fogo no rabo que só
vendo. — Rimos juntas, cresci ouvindo
mamãe contar histórias das maluquices
que ela aprontava.
— Vou tomar cuidado, tia.
Prometo.
— Fico mais aliviada. — Ela
arruma uma mecha de cabelo atrás da
minha orelha. — Você é a coisa mais
preciosa que tenho nesta vida.
Fico emocionada com suas
palavras, nunca me senti tão segura
como nos últimos meses morando com a
tia Isis. Sinto uma pontada de culpa por
não contar sobre Romeu, mas tenho
certeza de que a hora certa vai chegar.

— Tenho uma coisa para você,


patricinha! — Ouço a voz de Romeu
logo atrás de mim, meu coração dispara
quando a brisa da noite traz o seu cheiro
suave e inspiro profundamente.
É o meu aniversário, apesar dos
protestos, fizeram uma festa no terraço
do apartamento do Ariel, por influência
de tia Isis e Aninha, ao menos consegui
convencê-las a chamar apenas Breno,
Ariadne e Maya. Essas pequenas coisas
fazem com que eu me sinta parte de uma
família outra vez, algo que há muito
tempo não sabia o que era.
Ficamos sozinhos pela primeira
vez esta noite, confesso que esperei
ansiosa pelo nosso momento. Temos que
criar todo um esquema para esconder o
que está rolando das pessoas
importantes para nós, que nem fazem
ideia disso porque brigamos quase com
a mesma frequência de que nos
atracamos nos cantos da casa, quando
estamos todos juntos.
A desvantagem do nosso
relacionamento — se é que podemos
chamar o que acontece entre nós de um
— é não poder expressar publicamente
o que sentimos.
Todos estão lá embaixo
arrumando a bagunça e resolvi ficar um
pouco mais por aqui, amo este lugar
pela paz que sempre transmite, além do
seu significado para mim e Romeu. Já
tivemos tantas conversas legais aqui nos
últimos meses, nos beijamos e trocamos
carícias que estão além dos limites
aceitáveis.
Passamos a semana toda
conversando por mensagens e quase
nunca nos vemos, saímos sempre às
sextas longe da pressão e dos olhos do
pai dele. Romeu tem saído cada vez
menos com os amigos, às vezes tenho a
sensação de que não gostam de mim.
Breno é a pessoa que nos dá cobertura
nos encontros às escondidas fora de
casa, tia Isis sabe que tenho alguém, mas
nem faz ideia de que seja o filho do seu
namorado.
Ele me abraça quando estou de
costas olhando a movimentação da rua
lá embaixo e beija meu pescoço. O
garoto está uns bons centímetros mais
alto, fecho os olhos encostando a cabeça
em seu ombro, desfrutando dessa
sensação boa que esse simples contato
causa em mim. Gosto de me sentir
segura em seus braços, de saber que o
que temos é apenas nosso, dessa parte
dele que só eu conheço.
— Não está curiosa pelo seu
presente? — sussurra em meu ouvido,
espalmando a mão na minha barriga,
causando-me um arrepio pelo corpo.
— Na verdade, só queria um
beijo esta noite. — Viro-me para
Romeu, enlaçando seu pescoço, olhando
para a porta e certificando-me de que
realmente estamos sozinhos. — Se
houver algo além disso, ficarei
lisonjeada.
Suas mãos vêm para o meu rosto,
a boca cola na minha tirando o meu
fôlego, fazendo todo o corpo vibrar em
resposta. Adoro o gosto dele, o modo
como enrosca a mão pelos meus
cabelos, trazendo-me para mais perto,
seu cheiro suave deixando meus
pensamentos nublados, sua mão
apertando minha cintura, a forma como
sempre mordisca meus lábios quando
está prestes a me soltar e depois faz tudo
outra vez.
— Você sabe que pode desejar
presentes de verdade no seu aniversário,
não é, patricinha? — Ele ri enquanto se
afasta, pega uma sacola pequena que
estava escondida entre as almofadas e a
estende para mim. — Feliz aniversário,
Lety!
— Obrigada! — agradeço,
segurando a embalagem e abraçando-o
ao mesmo tempo.
Ele se senta no sofá, me puxando
para seu colo, encaro a sacola em
minhas mãos e meu coração dá um salto
quando leio o nome impresso nela.
— Romeu, o que você... — Não
consigo concluir o raciocínio.
— Vamos lá, deixe que eu mime
a minha namorada mais um pouquinho. É
o seu aniversário! — o garoto diz,
arrumando uma mecha do meu cabelo
atrás da orelha, exibindo um dos seus
sorrisinhos misteriosos.
Parei na parte que ele diz “minha
namorada”, como soa bonito saindo
desse modo tão espontâneo. Beijo seus
lábios, acariciando seu rosto.
— Namorada? — Arqueio a
sobrancelha.
— Acha que pode ser minha
namorada daqui para frente? — Ele me
encara, sério. — Não sei se percebeu,
mas eu sou maluco por você, patricinha,
e estou cansado dessa coisa de não
termos um título decente. Então, quer
namorar comigo?
A pergunta me deixa sem
palavras por um momento, achei que ele
nunca pediria isso, mesmo sendo tão
diferente quando está comigo, eu
realmente não esperava que ouviria isso
dele. Borboletas parecem habitar em
meu estômago, fico nervosa e tento
disfarçar.
— As más línguas dizem que
você não tem coração — brinco rindo e
o garoto finge estar ofendido. — Será
que isso vai dar certo?
— Ah, eu tenho um coração,
apesar do que dizem por aí, patricinha
— diz, acariciando meu queixo. — E ele
pode ser seu, se quiser. E aí, o que me
diz?
Perco o ar por alguns instantes,
não consigo falar nada e ele pigarreia.
— Lógico que quero namorar
contigo, Romeu. — Seguro seu rosto e o
beijo calorosamente, sussurrando em
seguida: — Eu tenho um namorado lindo
e fofo que acabou de me entregar seu
coração em uma bandeja.
— Menos, Lety. — Ele ri,
indicando a embalagem em meu colo. —
Vamos lá, abra seu presente.
Desfaço o laço, dentro há uma
caixinha de couro cor-de-rosa em
formato de coração com um zíper no
meio. Abro-a desajeitadamente, meus
olhos enchem de lágrimas quando vejo o
conteúdo.
— Diga alguma coisa,
patricinha. — Ele roça o indicador pela
minha bochecha. — O que achou?
— É linda... — Retiro com
cuidado a pulseira, que tem um tom cor-
de-rosa semelhante a caixa, sem
conseguir conter a alegria ao mesmo
tempo em que me preocupo com outra
coisa. — Não precisava fazer isso, deve
ter custado uma fortuna. Seu pai vai te
matar, se descobrir.
— Uma morte que valeria a
pena, só pelo prazer de ver esse sorriso
bobo que tem aí no seu rosto. — A
forma como ele fala faz minhas
bochechas corarem. — Nunca tive uma
namorada para presentear e você merece
algo com significado.
Romeu passa os dedos pelos três
berloques.
— Ah, e qual o significado
deles? — pergunto, ainda encantada com
a beleza da joia.
— As sapatilhas são óbvias,
representam o seu amor pela dança —
explica, encarando-me profundamente.
— Essas três estrelas são para você se
lembrar sempre do nosso primeiro beijo
e o arco-íris, é para que acredite que
sempre haverá uma esperança para os
dias tempestuosos.
Não consigo conter as lágrimas
por me sentir tão querida com esse
pequeno gesto de Romeu.
— Ei, não chore... Esse presente
era para te fazer feliz e não o contrário.
— Seus dedos limpam as lágrimas que
escorrem pelo meu rosto.
Não sei o que falar, depois de
todas essas coisas tão lindas ditas por
ele, então rompo a pouca distância entre
nós e o beijo demoradamente. A minha
vida ficou mais divertida depois que
esse garoto entrou nela.
— Obrigada. Obrigada.
Obrigada — sussurro, quando nos
afastamos, distribuindo beijos pelo seu
rosto. — Você é o melhor namorado do
mundo.
— De nada, só queria que
soubesse que é importante para mim. —
Sua testa descansa na minha, seu nariz
roça o meu e sinto o coração explodindo
de felicidade. — Eu que agradeço por
me aceitar assim, desse jeito tão
complicado.
E foi assim, sob a luz das
estrelas, me sentindo a pessoa mais feliz
do planeta, que descobri que o amo, mas
não posso revelar, porque tudo parece
rápido demais, então ficamos abraçados
olhando o céu, sabendo que cedo ou
tarde um de nós terá que ceder e admitir
a proporção que o nosso relacionamento
está tomando.

— Acho que Romeu está


apaixonado. — Ouço a revelação de
Ariel assim que entro na sala de jantar.
São oito da manhã e hoje é
domingo, normalmente durmo até tarde,
mas Aninha se mexe demais e acordei
antes da hora. Ele e minha tia estão na
cozinha, sei o quanto é feio escutar
conversa atrás da porta, porém, fico
curiosa demais e permaneço imóvel em
um canto do corredor.
— Por que pensa isso? — sua
namorada indaga.
— Carla mencionou outro dia,
que ele a pediu para comprar um
presente, há alguns meses e era para uma
garota. — Ariel parece encabulado. —
Tem noção de que para aquele moleque
recorrer à mãe, é porque a coisa é séria,
mesmo? — Ouço a torneira se abrir. —
Além disso, ele anda diferente, não sai
mais tanto com os amigos e fica o tempo
todo no celular.
— E você acha isso ruim, Ariel?
— Fico com medo, sabe? — O
homem faz uma pausa. — Dele cometer
os mesmos erros que eu. Romeu não me
conta muito, mas sei que fica com várias
garotas, e se ele transa sem camisinha?
Sei lá, a menina fica grávida. Não tenho
ideia de como ele reagiria, meu filho se
tornou uma pessoa irreconhecível e sou
bem consciente da minha parcela de
culpa nisso.
— Pare de se culpar. — Tia Isis
usa um tom reconfortante. — O Romeu é
um garoto ótimo, só está confuso e
passando pela pior fase da vida: a
adolescência.
— Ele era um garoto tão doce,
dedicado ao que fazia, responsável e
agora quase não consigo enxergar essas
qualidades nele — lamenta e sinto uma
pontada de pena, porque o filho que ele
descreve é exatamente o garoto por
quem me apaixonei, mas ele se esconde
embaixo de várias camadas.
— Dê um tempo a ele, querido.
Ouço passos no corredor e me
preparo para fingir que não estava
bisbilhotando, quando sou agarrada por
trás, o cheiro familiar de Romeu me
invade.
— Bom dia, patricinha — ele
diz baixinho, ao mesmo tempo que beija
meu pescoço. — Que coisa feia,
escutando a conversa alheia.
— Eu não estava fazendo isso.
— Viro-me para ele, olhando para a
porta do quarto que divido com sua irmã
nos fins de semana. — Me solta, alguém
pode pegar a gente se agarrando aqui.
Ele ignora meu pedido e beija
minha boca, seu gosto está misturado ao
sabor mentolado do creme dental, me
dou ao luxo de aproveitar um pouquinho,
mas o meu juízo volta em seguida e o
afasto.
— Por que estava ouvindo a
conversa alheia? — o garoto diz,
arqueando a sobrancelha.
— Seu pai acha que você está a
apaixonado — informo e ele ri. — Tô
falando sério, Romeu.
— Ele está certo — responde,
me roubando um beijo, se afastando
rápido quando ouve o trinco da porta do
quarto de Aninha mexer e ela aparece,
sonolenta, então ele pisca para mim e dá
um sorrisinho travesso, antes de
começar o nosso showzinho matinal. —
Meu Deus, Lety, seu cabelo tá horrível,
você ao menos penteou hoje? Ô, Aninha,
não tem pente no seu quarto?
— Cala a boca, seu garoto besta!
— entro na onda. — Você está com um
bafo horrível, dá para sentir daqui,
credo! Ana, não chega perto dele, senão
vai desmaiar.
— Olha só quem fala. — Ele dá
de ombros. — Ô, paiê, ainda tem café
da manhã ou a patricinha comeu tudo
antes da gente?
— Ei, pare de brigar com a
minha amiga. — Ana Júlia chuta a
canela do irmão. — Papai, o Romeu tá
implicando com a Lety!
— Quanta animação, logo cedo!
— tia Isis fala da sala. — Poderiam
gastar essa energia toda me ajudando a
pôr a mesa, ao invés de brigarem. Que
tal começar o dia na santa paz de Deus?
— Mande sua sobrinha pentear o
cabelo — Romeu provoca, quando
entramos os três no campo de visão da
mulher. — A Aninha nem acordou, pelo
visto, o olho dela mal está aberto.
— Papai — a garotinha diz,
chorosa, encostada a mim.
— Romeu, quando vai crescer,
meu filho? — Ariel passa por nós com
uma travessa de frutas cortadas. — Vá
buscar as xícaras e pare de encher o
saco das meninas.
O garoto passa por mim dando
uma piscadela, seguindo rumo à cozinha
e assim começamos mais um dia
fingindo que não estamos completamente
apaixonados um pelo outro.
Fico pensando nas coisas que o
pai dele falou, que Romeu fica com um
monte de garotas, será que ele continua
com isso? Acho que não, mesmo porque
agora estamos namorando, tudo bem que
é escondido, mas ele não parece o tipo
de carinha que vai quebrar meu coração.
Depois do almoço, os filhos de
Ariel organizam a cozinha e deixam as
louças para a tia Isis e eu, enquanto vão
escolher algum filme para assistirmos.
— Lety, você acha que esse seu
teatrinho com o Romeu vai enganar o
Ariel até quando? — A pergunta da
minha tia faz com que eu congele no
lugar.
— Do que está falando? — Finjo
não entender.
— Ah, garota! Só um cego não
veria que vocês estão caidinhos um pelo
outro. — Ela espirra água no meu rosto.
— Não estou caidinha por esse
garoto metido — afirmo, rápido demais
e não tem nenhuma convicção em minha
voz.
— Então por que estavam se
beijando ontem à noite no terraço? —
Cacete! O Romeu vai ter um treco
quando souber disso.
— Tia, por favor, não conta para
o Ariel — imploro, juntando as mãos.
— Ele vai brigar com o Romeu e isso
vai estragar tudo.
— Aquela pulseira que ganhou
no seu aniversário, foi ele que te deu?
— Ela estreita os olhos.
— Sim.
— O garoto com quem sai toda
sexta, é o filho do meu namorado? O
garoto que vive brincando de gato e rato
com você?
— É. — Mordo o lábio.
— Está me dizendo que está esse
tempo todo, desde que foi morar
comigo, namorando escondido com
aquele projeto de bad boy que deu
errado? — tia Isis sussurra e assinto. —
Isso tem quase um ano. Letícia, tem
noção de que vou ser sua tia e sogra ao
mesmo tempo? — Ela me bate com o
pano de prato. — Como conseguiram
esconder isso?
— Promete que não vai dizer
nada pro Ariel?
— Ele é meu namorado, caso
tenha esquecido — ela responde.
— Por favor, tia. — Seguro seu
braço.
— Só se me prometerem que vão
contar para ele o mais rápido possível
— barganha e sinto um frio na barriga.
— Vamos contar — minto,
porque Romeu morre de medo do Ariel
perder a confiança nele, depois que
souber sobre nós.
— Vocês estão se protegendo,
Lety? Quer dizer, sei você usa
anticoncepcional desde que a levei ao
ginecologista ano passado, mas vocês
usam camisinha? — Quero que um
buraco se abra no chão, antes de ter que
responder essa pergunta à minha tia.
— A gente não está... t-
transando...
— Ah, menos mal. — Ela
suspira, aliviada. — Meu Deus, aquele
sumiço de vocês na fazenda nas festas
de Natal, estavam se agarrando
escondido. Eu não estou acreditando que
todas aquelas provocações eram teatro.
— Bom, no primeiro Natal elas
não eram teatro, mas no último, não
posso garantir. — Lembro-me das
inúmeras escapadas que demos a
semana inteira que passamos na fazenda
para as festas de fim de ano.
— Por que não me contou, Lety?
— Seu tom é magoado agora.
— Tia, você conhece o seu
namorado, né? — Ela assente. — O
filho dele é um pouquinho pior, mesmo
sendo fofo e todas as outras coisas.
— Não sei se vou te perdoar por
isso — ela faz chantagem e Romeu entra
na cozinha, fazendo com que a mulher se
vire para ele, jogando um pano de prato
em seu rosto. — Seu bad boy fake de
uma figa, vai dar um jeito de contar ao
seu pai que está namorando a minha
sobrinha ou eu mesma conto.
O garoto fica pálido por um
momento e olha para mim, com um tom
acusador.
— Contou para ela? — Sua voz
soa estranha.
— Eu vi vocês se atracando no
terraço ontem — ela sibila em minha
defesa.
— Falem baixo — suplico.
— Meu pai vai me matar — ele
constata, puxando os fios do topete.
— Não vai, se vocês
conversarem com jeitinho — tia Isis o
acalma. — Ele já acha que o filhinho
rebelde está apaixonado. Até a Ariadne
acha a mesma coisa, a Letícia estava
furando a noite das garotas para ficar
contigo?
— Acho que sim. — Ele parece
menos tenso agora.
— Seus falsos — reclama,
estreitando os olhos. — Como puderam
fazer isso comigo, logo eu, uma tia tão
legal.
— Isis, você namora o meu pai e
ele não podia saber da gente — Romeu
intervém no drama que ela começa. —
Vai contar para ele?
— Não, vocês vão contar.
— De jeito nenhum — dizemos,
em uníssono.
— Precisamos pensar em como
vamos fazer isso. — Romeu me olha,
preocupado. — Nos dê um tempo, Isis,
por favor. Conhece o meu pai, ele vai
reagir mal.
— Pare de bobagem, garoto, o
Ariel vai entender — garante ela. —
Vou dar um mês e nada além disso. Seu
pai vai ficar péssimo se descobrir pelos
outros, Romeu.
Ele parece ponderar nossas
opções escassas e, por fim, decide:
— Tudo bem, vou contar para o
papai daqui a um mês. — Tia Isis sorri,
aliviada.
Não tenho ideia do que se passa na
cabeça dele, mas sinto que algo ruim
está prestes a acontecer e não vamos
conseguir evitar.
Romeu
Meu pai vai se casar com a Isis!
Ainda estou tentando absorver a notícia
que mamãe acabou de nos dar durante o
café da manhã, no jardim de sua casa.
Não é como se não soubéssemos, papai
nos contou na quinta-feira à noite que
faria o pedido e se concordávamos e é
óbvio que queríamos vê-lo feliz, além
do mais, nesse último ano a Isis foi uma
presença constante em nossa vida. Não
sei exatamente o que o pedido implica,
contudo, tenho certeza de que agora que
ele vai reagir mal à notícia que
pretendia lhe dar quando chegarmos em
casa.
— Eles já sabem quando vai
ser? — Aninha pergunta,
superempolgada. — A Lety vem morar
com a gente? Agora o Romeu vai ter que
parar com as implicâncias com ela, não
é, mamãe?
— Filha, vamos com calma — a
mulher tranquiliza a pequena e não
consigo esboçar nenhuma reação. —
Ainda não sabemos de nada concreto e
você, filho, não vai dizer nada?
Encaro-a, ainda perdido em
meus próprios dilemas.
— Que sejam felizes? — Ergo a
sobrancelha e ela me olha, intrigada. —
Sei lá, mãe, já estava na hora do papai
seguir em frente. Ele finalmente
encontrou alguém que o entende de
verdade e a Isis é ótima conosco, ao
contrário de você.
É, eu quis mesmo magoá-la, e
seu olhar me diz que consegui atingir
meu objetivo.
Nosso relacionamento evoluiu
um pouco, depois que papai e Isis estão
juntos, já que a — agora — noiva dele
decidiu que mamãe precisa entender que
tem filhos incríveis.
Estou tentando esquecer a mágoa
que tenho dela e como a própria Isis diz
sempre: “Carla não é uma pessoa ruim
por querer dar uma vida melhor para os
filhos”. Porém essa ferida se abre a
cada vez que a vejo sendo a mãe que
costumava ser antes de tudo, porque,
isso não anula o fato de que ela passou
anos sem nos dar a atenção que
precisávamos e, ao invés disso, nos
dava presentes caros, viagens para
lugares legais e raramente estava lá de
fato, sempre nos deixava sob os
cuidados de alguma babá, ou seja lá
quem fosse.
Papai e ela nunca foram inimigos
— o que ajuda bastante —, entretanto,
sempre achei que minha mãe deveria ser
mais participativa. Tudo bem que não
facilito as coisas, guardo muitos
ressentimentos dela e sempre dou um
jeito de demonstrar da pior forma
possível, como acabei de fazer.
— Romeu, a mamãe é ótima com
a gente também — Aninha a defende. —
Ela vai até me dar uma festa linda de
dez anos, não é, mamãe?
— Claro, filha — a mulher
assente. — Inclusive, lembra que
combinamos de escolher o tema da
decoração depois do café da manhã? O
que acha de ir até o meu escritório e
começar a pesquisar?
— Ah, que legal — minha irmã
diz, empolgada, já se levantando da
cadeira. — Estou cheia de ideias, tenho
certeza de que vai adorar também. Não
demora, viu?!
A garota sai e ficamos a sós.
— Qual o seu problema comigo,
Romeu? — Ela parece muito chateada.
— Juro que estou tentando ser uma
pessoa melhor, sei que negligenciei
muito você e sua irmã, mas não precisa
me tratar desse jeito.
— O meu problema com você?
— Coloco os talheres dentro do prato
ruidosamente. — Passou anos ignorando
a minha existência e de Ana Júlia, agora
simplesmente acha que pagar de boa
mãe é o suficiente? Sabe o quanto eu
sofri quando foi embora?
— Filho, não seja tão duro
comigo. — Ela tenta segurar minha mão,
mas me esquivo. — Eu me arrependo do
modo como fiz as coisas, mas não de ter
seguido a minha carreira.
— Eu me senti traído, mãe —
cuspo as palavras. — Você preferiu a
música aos seus filhos.
Seus olhos se enchem de
lágrimas.
— Acha que eu não sofri
também, esse tempo todo longe de
vocês, Romeu? — A mulher seca as
lágrimas com as pontas dos dedos. —
Mas eu era orgulhosa demais para voltar
atrás em algumas decisões que tomei.
— E precisou da namorada do
papai para descobrir tudo isso, não é
mesmo? —Não consigo mais conter as
coisas que saem da minha boca. — Sabe
o que é mais engraçado? Passei esse
tempo todo achando que era um estorvo
na sua vida, que se não tivesse
engravidado de mim, poderia ter sido
livre como gostaria.
— Olha para mim, Romeu. —
Ela se senta na cadeira ao meu lado,
fazendo menção de tocar meu braço, mas
me afasto, não vou lhe dar esse gostinho.
— Você foi a melhor coisa que
aconteceu na minha vida. Meu Deus, eu
daria qualquer coisa para não ter te
magoado dessa forma.
— Agora já é bem tarde... —
retruco, irritado com toda essa situação.
Por que que a minha vida tinha
que ser tão complicada? Eu não podia
ter nascido em uma família normal?
— Não é tarde. — A mulher me
olha, suplicante. — Sei que não vai me
perdoar logo, mas um dia vai perceber
que não fiz isso tudo por maldade,
Romeu. Não sei o que ouviu das minhas
discussões com seu pai, falei muita
bobagem, coisas das quais me arrependo
muito.
As lágrimas escorrem pelo seu
rosto e sinto uma pontada de culpa.
— Eu era jovem, imatura,
deslumbrada com a fama e com todo
glamour do meio artístico que seu pai
insistia em manter você e sua irmã
longe. — Seu tom reflexivo me toca de
um jeito estranho. — No fim, Ariel
estava certo, você tem razão, seu pai
precisa seguir em frente. Ele merece ser
feliz, de verdade, meu filho. Sou muito
grata ao seu pai por tudo que fez por
mim, não quero que pense que sou
ingrata e cega. Reconheço cada coisa
que ele abriu mão por minha causa,
agora é hora dele ser feliz com a mulher
que ele sempre amou.
A crueza de suas palavras faz
com que eu amoleça um pouco, só que
não o suficiente para ceder ao seu
rompante tardio de lucidez.
— Me sinto mesquinha por ter
me metido no meio do seu pai e Isis
quando éramos adolescentes, passei
todo o meu casamento querendo que
Ariel me olhasse do jeito que olhava
para ela, mas não era a mim que ele
amava. — Ela enxuga o rosto com as
costas das mãos. — Sei que não tem
como correr atrás do tempo que perdi
com você e sua irmã, Romeu...
— Realmente, isso é impossível.
— Há muito rancor na minha voz. — A
senhora fez uma escolha e agora tem que
conviver com os danos que causou na
vida das pessoas afetadas por essa
decisão.
Talvez devesse ser simpático
com ela, mas é mais forte que eu. Uma
parte minha quer muito que sofra a
mesma dor que senti, parece cruel, só
que não consigo controlar.
— Os danos que causou a mim,
papai e Ana Júlia, não podem ser
esquecidos só porque a senhora, de
repente, descobriu que quer os seus
filhos de volta, mãe. — Evito seu olhar.
— Na prática, as coisas não funcionam
assim.
— Eu sei, Romeu — diz, com a
voz embargada pelo choro. — Apesar
disso, quero tentar ser uma mãe melhor,
ser mais presente na vida de vocês e ser
feliz também.
— Conquistou tudo que sonhou,
mãe. — Indico a casa em que estamos,
depois para ela mesma. — Olha só para
sua vida, é tudo perfeito. Não precisa de
nós.
— Sim, é verdade que conquistei
muitas coisas. Só que no fim das contas
isso não é nada, se não tiver o amor dos
meus filhos. — Balanço a cabeça em
descrença.
— Só está colhendo o que
plantou. — Dou de ombros. — Sua
ambição desmedida pelo sucesso causou
isso à nossa família, nos destruiu.
— Não imagina o quanto me
arrependo disso, Romeu.
— Por que isso agora? —
questiono, intrigado.
— Tenho falado bastante com a
Isis, aquela tem um coração maravilhoso
e estou muito feliz com esse casamento...
— Claro que tinha o dedinho da
namorada do papai nessa história. — A
maneira como ela fala de você e de sua
irmã, me fez querer ter um pouco disso e
se ela diz que não é impossível, eu
acredito muito nisso.
— Pois, eu não acredito. —
Levanto-me da cadeira em um rompante
e ela me olha, desolada. — Está
perdendo o seu tempo, mãe, ao menos
comigo. Não podemos voltar a ser como
antes.
Dou as costas a ela antes que
possa argumentar e entro na casa,
seguindo para a sala de tevê, sei que fui
muito duro com mamãe, mas não vou
pedir desculpas por devolver um
pouquinho da dor que causou à nossa
família.
Bato a porta da sala com força,
pego o controle da tevê abrindo o
aplicativo de música, o som do Cello
sendo tocado de forma agressiva invade
o sistema de som, a interpretação de
Monster feita pelo grupo Cellofourte é
exatamente o que preciso agora.
Chuto os pufes do chão,
arremesso as almofadas do sofá contra a
parede, mordo o punho tentando aplacar
a raiva que estou sentindo, grito como
um cão raivoso sem me importar com
quem vai ouvir, amaldiçoo o universo
por toda a sacanagem que faz comigo,
puxo os fios dos cabelos.
Jogo-me no sofá, fechando os
olhos, tentando me acalmar, volto a
atenção para a música, imagino que sou
eu a tocar cada nota, a mão direita imita
os movimentos do arco com precisão,
aos poucos vou retomando o controle
das minhas emoções.
O celular vibra no bolso do short
e o pego rapidamente.
“Está tudo bem aí?” É o que diz
a mensagem de Lety.
Minha namorada sabe
exatamente como fico nesses passeios,
mesmo que às vezes eu finja
empolgação, apenas para que Ana Júlia
aproveite sem neuras esses momentos
que finalmente está tendo com nossa
mãe.
“Discuti com a Carla. Eu juro
que não entendo essa mudança dela.”
Digito rapidamente.
“Não fica assim, mô. Sua mãe
está tentando, dê uma chance a ela e
não faz nenhuma bobagem.” No fundo,
sei que Letícia tem razão, mas não vou
dar o braço a torcer tão fácil assim.
“Fica tranquila, o meu bad boy
interior está devidamente controlado.”
A resposta vai acompanhada com um
emoji de riso. “Talvez nem tanto,
porque você não está aqui, patricinha.”
Recebo uma figurinha com gif de
uma garotinha coreana chorando, a Lety
tem uma coleção delas para todas as
situações.
“Seu pai pediu mesmo a minha
tia em casamento. Eles vão mesmo se
casar e agora, como contamos?” Ela
manda uma mensagem de áudio em que
parece preocupada com o que isso
significa para o nosso futuro.
“Vamos dar um jeito.” Digito
rapidamente, apesar da afirmativa
parecer convicta, não tenho a menor
ideia de como faremos isso.

— Por que o papai quer


conversar com todo mundo? — Aninha
sussurra, assim que se senta na cadeira
ao lado de Letícia, que está de frente
para mim.
— Você deve ter aprontado algo
muito feio na escola — brinco e ela
mostra a língua.
— Ou foi o seu irmão que
aprontou — Lety retruca, me encarando
com um olhar divertido. — Nunca se
sabe.
Estamos os três em volta da
mesa da sala de jantar, esperando papai
e Isis que estão na cozinha fazendo sabe-
se lá o quê. Normalmente, não ficamos
todos juntos no meio da semana, quero
pensar que se deve ao fato do noivado
há quatro dias, mas uma parte minha está
com medo de ser outra coisa.
— Quem quer cachorro-quente?
— Isis diz, entrando no cômodo,
equilibrando nas mãos um prato cheio
de pães e uma panela de molho, me
levanto para ajudá-la.
— Obrigada, meu bad boy
preferido — ela agradece, rindo.
— Eu quero! — Minha irmã dá
gritinhos empolgados. — Essa reunião
de família é só para gente comer?
— Não, filha — papai reponde,
entrando na sala, segurando uma jarra de
suco e os copos, colocando-os na mesa.
— É outra coisa.
— Se for sobre empurrão que
dei na Duda, semana passada, na aula de
caratê, eu tenho uma explicação —
Aninha conta, já ensaiando sua típica
voz de choro. — Ela falou que a mamãe
canta mal e disse que a tia Isis vai ser
uma madrasta igual à da Branca de
Neve.
— Que coisa feia! — Isis diz,
fazendo uma careta engraçada no rosto.
— Prometo que não vou ser uma
madrasta ruim.
— Eu sei, você é muito
boazinha. — A garotinha pisca os olhos
de um jeito bonitinho.
— Quando ia me contar que
brigou na aula de caratê? — O homem
sentado na cadeira à cabeceira da mesa
estreita os olhos para a garota, que
agora exibe um olhar de quem falou o
que não devia.
— Ah, papai... você estava
ocupado com as coisas do pedido e eu
não quis te perturbar — desconversa,
com a cara mais cínica do mundo,
fazendo Letícia e Isis esconderem o riso.
— Sei... — ele responde,
desconfiado. — Vamos comer, depois eu
conto por que estamos aqui.
Não tenho ideia do que ele
pretende dizer, mas está me deixando
tenso, mesmo imaginando que não pode
ser algo ruim, já que ele parece com o
humor ótimo.
— Então, o motivo de estarmos
reunidos em plena quarta-feira é que Isis
e eu tomamos uma decisão e
gostaríamos de compartilhar com vocês
— papai começa, assim que terminamos
de comer, enquanto segura a mão da
noiva. — Vamos morar juntos, a partir
do mês que vem.
A notícia é despejada assim, do
nada, deixando todos sem palavras,
Letícia me encara com os olhos
arregalados, Isis faz um gesto sugestivo
que ignoro, enquanto Ana Júlia franze a
testa, assimilando o que ouvimos.
— Por favor, digam alguma
coisa — ele diz, impaciente.
— Por que tão rápido? —
consigo falar, por fim.
— Não é tão rápido, Romeu.
Estamos juntos há um ano, nos
conhecemos há bastante tempo, estamos
noivos e sabemos o que queremos. —
Sua fala é acompanhada de um
sorrisinho bobo na direção de Isis. —
Além disso, a Isis tem viajado com
frequência e acabou de fechar um novo
contrato com uma marca famosa, vai ter
que se deslocar pelo menos duas vezes
ao mês para São Paulo e Santa Catarina.
Letícia mora com ela e achamos
perigoso que fique sozinha no
apartamento.
— Faz sentido — respondo, sem
mascarar a surpresa que a decisão deles
me causou, não esperávamos que isso
acontecesse logo.
Quando Isis viaja a trabalho,
Lety sempre fica na casa da tia Ari, mas
é uma vez a cada dois ou três meses.
Estarmos sob o mesmo teto apenas no
fim de semana fingindo sermos inimigos
é uma coisa, outra bem diferente é
morarmos juntos e esconder que não há
nada entre nós.
— Ah, que legal. — Aninha
parece finalmente entender a logística da
coisa. — A Lety pode dividir o quarto
comigo?
— Pode sim, filha — papai
responde, prontamente, sem tirar os
olhos de mim, que mordo a bochecha,
tentando esconder o nervosismo, mas
não dá muito certo. — Eu sei que a sua
vida vai mudar de novo, Romeu, só que
nós cinco já somos uma família e espero
que compreenda que isso significa que
precisamos tomar algumas decisões
juntos, mesmo que você não goste disso.
Ele parece ter entendido tudo
errado, batuco os dedos no vidro da
mesa e apenas aceno afirmativamente,
mordendo o lábio inferior enquanto o
escuto.
— Você e a Letícia não se dão
muito bem e isso é um fato... — O
homem vaga o olhar entre mim e Letícia.
— Os dois precisam pelo menos tentar
conviver sem tantas discussões.
Isis pigarreia, ela vem tentando
me convencer a contar ao meu pai sobre
o namoro com Lety há quase um mês e a
minha desculpa é que não encontro uma
oportunidade, talvez agora seja esse
momento. Não aguento mais ficar
escondendo isso dele, então encaro a
garota do outro lado da mesa, que
assente discretamente e tomo uma
decisão antes que essa conversa se
estenda para um dos sermões dele sobre
a boa convivência.
— Acho que a gente se dá muito
bem — afirmo, sem encará-lo.
— Como, se brigam o tempo
inteiro, Romeu? — questiona, sem
compreender.
— Pai... nós temos uma coisa
para te contar. — O encaro finalmente,
seu olhar parece confuso quando a
sobrinha de sua namorada me estende a
mão e a seguro. — A Lety e eu
estamos...
— Você está grávida, Letícia? —
A cor do rosto dele parece fugir por um
momento quando a encara. — Não
acredito que fez isso, Romeu.
Papai não nos deixa responder
mais nada e Aninha interrompe a
conversa, criando ainda mais caos.
— Vai ter um bebê, Lety? —
Minha irmã olha diretamente para a
barriga da menina ao seu lado, um tanto
chocada. — É por isso que estava
comprando aquela roupinha de neném
outro dia no shopping? Quem é o pai? É
você, Romeu? — Ela agora volta o
olhar para as nossas mãos juntas. —
Estão namorando? Eu bem que achei que
tinha visto vocês se beijarem outro dia.
— Não se meta, pirralha —
digo, entredentes, e Lety aperta minha
mão em um aviso silencioso para que
me acalme.
— Ainda estou esperando uma
explicação para isso. — Papai cruza os
braços rente ao peito, em uma expressão
quase transtornada.
— Amor, está tudo bem, apenas
respire e inspire — Isis intervém,
segurando a mão dele, enquanto faz
exercícios de respiração para que ele a
imite. — Respire e inspire.
— O papai vai morrer? — minha
irmã indaga, espantada. — Ele está com
uma cara esquisita.
— Não, Aninha, seu pai vai ficar
bem — garante a mulher, que agora
massageia seu ombro. — Vamos dar
uma volta no terraço e deixar o seu pai
conversar com os meninos?
— Ah, não quero, não, tia Isis —
a pequena fala, mas no momento
seguinte já está de mãos dadas com a
outra.
Um pouco antes de
desaparecerem, Isis se vira para um
último aviso, que deixa meu pai
aliviado:
— A propósito, minha sobrinha
não está grávida, posso garantir isso. —
Ela pisca para o homem. — Apenas
escute o que eles têm a dizer.
Um silêncio constrangedor toma
o ambiente, nenhum de nós fala nada.
— O que está tentando me dizer,
Romeu? — Papai franze o cenho e
massageia a têmpora. — O que fizeram?
— Eles não fizeram nada, amor,
só estão namorando. — A voz de Isis,
que achei já ter ido, soa impaciente
quando revela de uma vez. — Sabe
aquela coisa que os adolescentes fazem?
— Que ótimo, você já sabia. —
Ele dá de ombros, frustrado.
Sua noiva acena
afirmativamente, dando um sorrisinho
amarelo e sai puxando minha irmã,
deixando a bomba nas nossas mãos.
— Como isso aconteceu?
Parece uma retórica, mas ainda
assim, respondo:
— Como acontece com todo
mundo, pai. Nos conhecemos, nos
apaixonamos e começamos a namorar,
foi isso. — Continuo segurando a mão
de Lety, enquanto falo sem rodeios,
tirando o enorme peso desse segredo
das minhas costas.
— E ela não está gravida? —
Ele ergue a sobrancelha.
— Não estou grávida! — Letícia
se apressa em dizer.
— Pelo amor de Deus, não, pai!
— garanto, quase ao mesmo tempo que
ela, um tanto impaciente com essa
fixação dele por esse assunto.
— Menos mal, estão escondendo
mais alguma coisa? — indaga, após
beber um gole generoso do suco.
— Nada, Ariel — é Lety quem
responde.
— Quando isso entre vocês
começou?
— Faz algum tempo... — digo
vagamente, mas ele não parece
convencido.
— Quanto tempo? — Tamborila
os dedos na mesa. — Diga a verdade.
— Desde o ano passado, quando
a Letícia veio machucada para nossa
casa. — Minha voz soa baixa demais e
temo que ele não tenha me escutado.
Crio coragem e o encaro, ele
parece mais calmo agora, embora seu
rosto ainda esteja pálido, talvez pela
conclusão que chegou precipitadamente
sobre a sua história estar se repetindo.
— Está me dizendo que vocês
namoram há meses, bem debaixo do meu
nariz, e não sei de nada? — questiona,
olhando de mim para a garota, com uma
falsa tranquilidade na voz e sinto que o
meu coração está prestes a sair pela
boca.
Imaginei vários cenários quando
pensei no momento que ele descobriria,
mas nada me preparou para ver a
decepção estampada no rosto do meu
pai ao fazer essa pergunta e fico sem
nenhuma ação.
— O que o Romeu está tentando
dizer, Ariel — Letícia toma as rédeas da
situação —, é que nos aproximamos
bastante desde aquela época, mas
começamos a namorar há pouco tempo.
— E por que não me contou? —
Ele me encara, sério demais.
— Fiquei com medo, pai, você
namora a tia dela e é superprotetor e
pensei que... — Sou interrompido antes
de concluir a frase.
— Pensou que eu pudesse
separar vocês dois. — É uma afirmação
cheia de mágoa. — Não sou essa
pessoa, Romeu. Achei que me
conhecesse melhor, sou seu pai e não
seu dono. Você é livre para fazer o que
quiser, só precisa ter consciência de que
cedo ou tarde terá que lidar com as
consequências dos seus atos.
— Eu sei, pai, — Solto a mão de
Lety e puxo os fios de cabelo
nervosamente.
— Não confiou em mim para
contar sobre a garota. — A decepção é
nítida em sua voz.
— Estou apaixonado pela
patricinha — admito, fitando-a.
— Bom, ao menos isso não dá
para esconder. — Ele dá de ombros,
como se fosse óbvio. — Só que sou seu
pai e pensei que esse seria o tipo de
coisa que, quando acontecesse,
compartilharia comigo.
— Me desculpe — lamento,
encarando-o. — Sei que agora não
posso voltar atrás e fazer tudo certo,
mas não dá mais para ficar escondendo
do senhor, ainda mais agora que vamos
morar todos juntos.
— A gente ia contar, Ariel. —
Letícia arruma uma mecha de cabelo
atrás da orelha. — Só estávamos
esperando o momento certo, Romeu e eu
não fizemos nada de errado, não se
preocupe. Seu filho é muito responsável.
Eu o encaro e quase posso ver
algo como orgulho passando pelos olhos
dele.
— Você tem certeza de que gosta
desse garoto? — Papai arqueia a
sobrancelha, ensaiando um sorriso
debochado. — Conhece todos os
defeitos dele? Porque se não souber,
posso enumerar todos em ordem
alfabética.
— Pai!
— O quê? — Ele me olha com
desdém. — Me esconde algo dessa
magnitude e acha que vai ficar tudo
numa boa? Negativo, vou ter uma
conversa séria com essa garota...
— O Romeu não é uma pessoa
muito fácil de lidar — Lety diz,
interrompendo-o. — Mas a gente se
entende, Ariel. Estou apaixonada por ele
e acho que merecemos uma chance de
fazer isso dar certo.
Ele a encara por um momento,
apoiando o queixo nas mãos, não há
como decifrar a expressão do seu rosto,
talvez essa seja a razão da tensão que
toma meu corpo enquanto aguardo que
fale qualquer coisa.
— Tudo bem, Lety — papai diz,
por fim. — Não vou me meter nisso,
mas quero que me prometam uma coisa.
— Qualquer coisa — ela fala,
sem pensar.
— Espere, você nem sabe o que
ele vai pedir — ralho e o ouço rir. —
Não conhece o meu pai, patricinha, ele
vai pedir algo impossível, tenha certeza
disso.
— Não corta o meu barato,
pirralho! — Gosto de ver o quanto ele
parece aliviado agora. — Só quero que
tenham cuidado, vamos morar juntos e
isso não significa que terão carta branca
para fazerem o que bem entenderem. Já
tive essa idade e sei como uma coisa
leva a outra, só não façam nada que vão
se arrepender depois, tudo bem?
— Tudo bem, Ariel! — Letícia
concorda e faço a mesma coisa.
— E, por favor, usem camisinha
— ele diz, fazendo com que a garota
fique vermelha feito um pimentão. —
Sou muito jovem para ser avô.
Essa conversa não foi nada como
imaginei e estou bastante aliviado com
isso, mesmo que papai não tenha
verbalizado, é como se ele aprovasse a
minha escolha e soubesse o quanto
Letícia me faz bem, no fundo, era
exatamente essa a reação que esperava,
mas o medo acabou nublando meus
pensamentos.
Letícia
— Ownt! Que coisa mais
bonitinha vocês dois juntos. — Ariadne
faz uma voz melosa ao nos ver posando
para a tia Isis tirar algumas fotos. —
Parecem os casais pops das revistas
teen. Sabia que aquela implicância toda
tinha que ser amor reprimido.
— Pelo amor de qualquer coisa,
tia, as pessoas estão olhando para gente
— o garoto reclama, quando a mulher
aperta sua bochecha, depois segura uma
mecha do meu cabelo.
— Fica paradinha aí, Ari —
minha tia pede à amiga, que obedece até
o clique ser disparado. — Prontinho,
podem fofocar. Vou tirar fotos dos outros
convidados da festa, alguém viu a
Aninha?
— Ela estava com a loira aguada
perto da mesa do bolo — Ariadne
responde, fazendo uma careta
desgostosa e sinto Romeu tenso do meu
lado. — De quem foi a ideia de chamar
a ex-mulher do meu irmão para a festa
da minha sobrinha?
— Amiga, você prometeu se
comportar — tia Isis ralha e a outra
revira os olhos. — E não se esqueça de
que foi ela quem deu esta festa.
— Não vou mais ser sua amiga,
se continuar querendo restaurar a paz
mundial, precisava ter convencido essa
mulher a fazer uma festa no lugar que ela
odeia? — Ari faz uma cara de nojo.
— A Carla é uma pessoa boa,
seu coração que é feito de gelo e ela não
odeia a fazenda dos seus pais, por favor,
aja como a pessoa elegante e fina que
você é. — Ambas riem, porque de fina
Ari não tem nada, ela é sutil feito um
coice de cavalo.
— Meu Deus, você é uma santa.
Vou acender umas velas no altar da
mamãe hoje à noite, em frente à sua foto
— a irmã de Ariel debocha, enquanto tia
Isis ignora suas provocações e sai em
busca da enteada.
A presença de Carla na festa tem
causado as mais diversas reações entre
os convidados, indo desde espanto a
olhares cheios de julgamentos. Não tive
a oportunidade de ser apresentada ela
ainda, mas não acho que a mulher seja
uma pessoa tão ruim assim, do contrário,
vejo alguém que errou muito e está
tentando reparar de alguma forma. Só o
fato de ela estar aqui, encarando o seu
passado de cabeça erguida, já diz muito
sobre quem é.
— Me fala que sua tia não fez
uma lavagem cerebral em você e não
está gostando da sua sogra metida? —
Ari estreita os olhos para mim e dou de
ombros, não quero tomar partido de
ninguém.
— Vamos esquecer a minha
mãe? — Romeu sugere, sem esconder o
incômodo.
Ele parece tenso desde que
Carla chegou à fazenda hoje cedo, não
conversamos sobre o assunto e isso me
deixa preocupada.
— Ok! Não está mais aqui quem
falou. — A mulher faz um gesto
engraçado jogando os cabelos para trás.
— Ao menos, tenho alguém no meu time.
Ah, vocês ficam uma gracinha juntos,
melhor do que quando ele estava
tentando te empurrar no chiqueiro da
mamãe ou na cachoeira.
— Tia, por favor, não precisa
ficar se lembrando dessas coisas. — O
garoto me segura pela cintura. — Já
passou, beleza?!
— Tenham cuidado, sou jovem
para ser tia-avó. — Ela pisca e o
sobrinho revira os olhos.
Todo mundo nessa família
parece muito interessado em nossa vida
sexual, que apesar de não ter começado
no sentido estrito, não precisa ser pauta
em toda roda de conversa, mas já cansei
de tentar repreendê-los e agora só faço
cara de paisagem quando começam.
Depois da conversa com Ariel,
há duas semanas, as coisas estão
caminhando para a normalidade, se é
que podemos chamar assim, já que tia
Isis e eu mudaremos para o apartamento
deles no próximo fim de semana. É
estranho não precisarmos esconder de
ninguém, porém, é libertador andar de
mãos dadas por aí, sem ficar achando
que alguém pode nos ver e contar para
nossa família.
— Pelo amor de Deus, vocês
não cansam de nos passar vergonha? —
Romeu reclama, fazendo a tia ri.
— De jeito nenhum, agora que eu
comecei com isso. Tô adorando, não vou
parar tão cedo. — Ariadne segura o
queixo do sobrinho, dá um beijo
estalado em sua bochecha e o puxa para
longe de mim.
Não demora muito e ambos
voltam, a tia do meu namorado com uma
cara de quem fez arte.
— Tenham juízo. — Ela olha
diretamente para o sobrinho, exibindo
um sorrisinho. — Vou achar a Maya, a
mamãe tem que parar com essa coisa de
monopolizar a minha namorada.
Ela se mistura aos convidados,
já é fim de tarde e de longe dá para ver
o quanto Ana Júlia está radiante por ter
Carla e Ariel juntos na sua festa, ao
contrário do seu irmão, que parece ter
chupado limão azedo.
— O que sua tia queria? —
pergunto, despretensiosa, tirando um fio
imaginário de sua camiseta preta que
tem uma estampa curiosa da evolução
humana que finaliza com um homem
sentado em uma cadeira tocando Cello.
— Nada, patricinha —
desconversa, me enlaçando pela cintura,
encostando a boca em meu ouvido e
sussurrando: — Já disse o quanto está
gata nesse vestido?
— Romeu, pare com isso. —
Dou um tapa em seu ombro.
— O que, não posso te achar
bonita?
— Claro que pode, o problema é
em como e onde você fala isso. — O
fuzilo com os olhos.
O garoto ri e depois fala sem
emitir som “gata pra caramba”
deixando-me encabulada, não fiz
nenhuma superprodução. É só um
vestido longo de verão com uma
estampa florida, mas o meu namorado
adora me deixar sem palavras.
Vamos nos misturando aos
convidados, conversamos com parentes
animados, algumas primas que me olham
com desdém por estar com Romeu.
Tiramos fotos com a aniversariante,
depois com muito custo tia Isis convence
meu namorado a posar para uma foto
com o pai, a mãe e a irmã.
Já é noite quando cantamos os
parabéns, fui apresentada à Carla por
minha tia na hora das fotos e não
trocamos mais que meia dúzia de
palavras. O filho dela parece muito
disposto a fugir dela a festa inteira,
quando por fim se torna inevitável. Eles
não se viram mais desde o noivado de
Ariel, quando discutiram, e o clima
entre ambos está tenso.
— Romeu, não basta ter me
ignorado o dia inteiro? — Carla nos
encurrala em um dado momento e posso
ver nos seus olhos o quando a atitude do
filho a está machucando.
— Não estou fazendo isso —
Romeu retruca.
— Ah, não? — Ela cruza os
braços na frente do corpo.
As fotos que vi na internet nem
fazem jus à sua beleza estonteante. Hoje
ela se veste como uma cowgirl, bota,
calça jeans, camisa xadrez, argolas de
ouro em sua orelha, um chapéu na
cabeça e os cabelos dourados presos em
uma trança elegante. Ana Júlia tem
realmente a quem puxar.
— Mãe, não enche. — Fico
incomodada com o modo como ele fala
com a mulher. — Eu não vou entrar
nesse teatrinho de família feliz. Você
nem gosta da casa da vovó e sempre
deixou isso muito claro, pode parar com
essa falsidade.
Os olhos dela ficam marejados,
mas a vejo resistir bravamente.
— Tem todo direito de estar
chateado, filho. — Sua voz está
embargada, entretanto, sua postura é
imponente. — Só que isso não quer
dizer que pode me faltar com respeito. O
que a sua namorada vai pensar de mim?
— A verdade? — O garoto
insolente arqueia a sobrancelha.
— Romeu, já chega — digo,
irritada. — Ela é sua mãe, você goste ou
não. Pare de agir como um babaca e não
estrague a festa da Aninha.
Ele me olha como se eu tivesse
traído a sua confiança e nos dá as
costas, sem dizer uma palavra ao sumir
entre os convidados.
— Desculpe, Letícia. — Carla
limpa as lágrimas com as pontas dos
dedos. — Não queria causar nenhum
desentendimento entre vocês, é só que...
— Ela comprime os lábios, segurando o
choro. — Eu sei que fui uma mãe
péssima para os meus filhos e os fiz
sofrer muito, só queria uma chance para
fazer tudo certo.
Seguro suas mãos e a encaro,
como é possível que alguém possa
recusar uma mãe disposta a mudar? É
uma ideia inconcebível, estou há um ano
inteiro esperando que o homem que se
diz meu pai faça qualquer coisa que
demonstre que sente algum carinho por
mim, mas não tem qualquer sinal disso e
essa mulher tem mostrado a cada dia que
está arrependida e Romeu prefere ficar
se martirizando com todo esse rancor.
— Dê um tempo a ele — digo,
tentando fazer com que se acalme um
pouco.
— É minha culpa, poderia ter
feito tantas coisas diferentes. — Ela
parece arrependida demais.
— Não se culpe tanto, esqueça
essas coisas que o Romeu disse, foi só a
mágoa falando mais alto. — Passo a
mão em seu braço, confortando-a. —
Tenho certeza de que não é isso que o
coração dele quer te dizer e cedo ou
tarde aquele garoto bobo vai entender
isso, Carla.
— Obrigada! — Ela me puxa
para um abraço.
— Não foi nada. — Afago suas
costas. — Vá curtir sua filha, Aninha
está muito feliz por você estar aqui.
— Você se parece muito com a
sua tia — diz, um pouco antes de se
recompor e ir até a mesa do bufê. —
Fico feliz que meu filho tenha alguém
que o entenda de verdade.
Fico olhando-a por um tempo,
desejando que a minha mãe só tivesse
partido para outra cidade correr atrás do
seu sonho e cometido algumas bobagens
no caminho, ao invés de ter nos deixado
para sempre. Sinto as lágrimas
escorrerem pelo meu rosto quando saio
à procura do garoto rebelde que se
recusa a reconhecer os esforços de sua
mãe.

Levanto o tecido leve do vestido


longo e subo com dificuldade na pedra
rochosa guiada pela luz da lanterna do
meu celular, Romeu está deitado com as
mãos atrás da cabeça e olhos fechados,
os fones nos ouvidos, como se eles
fossem capazes de o levar a uma outra
dimensão.
Sento-me ao seu lado, encarando
o céu estrelado, sem saber ao certo o
que lhe dizer, então entrelaço meus
dedos aos seus, fazendo-o abrir os olhos
e o que vejo dentro deles me parte o
coração. Ele está sofrendo e por
motivos que sei que são bem reais para
ele. Não digo nada por um longo
momento.
— Desculpe, não devia ter feito
aquilo. — Romeu se senta, ficando
frente a frente comigo. — Só não
consigo controlar essa mágoa que sinto
dela.
Levo a mão ao seu rosto,
acariciando-o.
— Precisa superar isso, mô —
sussurro e ele fecha os olhos. — Sei que
não é fácil esquecer a dor que a
separação dos seus pais te causou, mas
tem que tentar seguir em frente. Ariel vai
se casar com a minha tia e Carla está
tentando, de verdade.
— Uma parte de mim reconhece
o esforço dela, contudo, há outra que
quer magoá-la e fazer com que sofra
também. — Consigo enxergar a
dualidade dentro dele. — A obsessão
dela pelo sucesso em sua carreira nos
destruiu, patricinha.
— Não, Romeu. — Seguro seu
rosto com as duas mãos o forçando a me
encarar. — Ela não fez isso, olha para o
seu pai. Ariel não parece alguém
destruído, você e sua irmã, muito menos.
Pessoas se separam todos os dias, mas
isso não quer dizer que a vida ou a
família que estavam construindo foi
destruída. Eles simplesmente vão
caminhar em direções diferentes.
— Está parecendo minha antiga
psicóloga. — Ri, sem humor. — Só que
por mais que eu tente, não consigo
pensar dessa forma.
— Vamos tentar enxergar por
uma ótica diferente — sugiro, tentando
fazer com que ele veja o quanto está
sendo irredutível. — Olha para mim, eu
daria qualquer coisa para que, ao invés
de ter morrido, minha mãe tivesse
apenas feito algumas escolhas
equivocadas e ainda tivesse tempo de
perdoá-la por isso.
Faço uma pausa e ele não diz
nada, então, continuo falando:
— Se, de repente o meu pai não
fosse um grandessíssimo idiota e
demonstrasse, como a Carla está
fazendo, que está disposto a mudar, que
é uma pessoa diferente. Acha que eu
perderia essa chance? — Romeu
balança a cabeça, como se fosse algo
impossível. — Família é importante,
mô. Eu queria tanto ter uma como a sua,
mas infelizmente não tenho e você
precisa se dar conta disso o quanto
antes.
— Não pode ser tão simples
assim, patricinha.
— Pode, basta querer. Não acha
que já passou tempo demais mergulhado
em ressentimento, fazendo coisas que
não condizem com o cara incrível que eu
sei que é? — Me aproximo, devagar. —
Estou cansada de te ver assim, quero
que possa mostrar ao mundo esse garoto
inteligente, sensível, que ama música e
não essa máscara de adolescente
rebelde que usa o tempo todo.
— Essa parte minha é só sua,
Lety — ele diz, tocando meu rosto.
— Não vou negar que adoro que
pense assim, mas não posso ser egoísta.
— Coloco a mão sobre a sua. — Seus
pais merecem saber que, por baixo de
todas as camadas, o filho deles continua
sendo o mesmo menino incrível. Não é
certo viver assim e digo isso com
propriedade no assunto. Sofro todos os
dias com a raiva que sinto do meu pai,
Romeu. Não quero que se sinta assim,
quando as pessoas que te amam estão
tentando se aproximar, ao contrário do
que acontece comigo.
— Eu sei que é muito errado
viver assim, mas ela não merece que a
perdoe. — Ele desvia o olhar do meu.
— Por quê?
— Ela passou muito tempo nos
negligenciando e agora resolve ser a
mãe do ano. — O garoto enfia os dedos
nos cabelos e os puxa nervosamente. —
É complicado lidar com isso.
— Imagino que sim, pense que
ao menos ela está viva e você pode
perdoá-la. — Troco de posição, ficando
ao seu lado e passando os braços em
seus ombros. — Pode até achar que não
precisa dela agora, mas vai por mim, só
damos valor ao que temos quando
perdemos.
Ele me puxa para o seu colo e
ficamos abraçados por um tempo sem
dizer nada.
— Sinto muito que sua mãe tenha
partido tão cedo — Romeu diz, tocando
meu rosto. — Acho que consigo
entender por que me apaixonei por
você...
Seus lábios se encostam em
minha boca ternamente.
— Promete que vai pensar
melhor nisso, que vai ao menos tentar se
dar bem com a sua mãe? — digo,
quando ele roça o nariz no meu. — Ela
atravessou o país, cancelou a agenda de
shows pelo fim de semana, só para estar
com você e sua irmã, acho que isso deve
ser levado em consideração.
— Por acaso, vai desistir em
algum momento dessa ideia? —
pergunta, com os olhos fechados.
— Não, você que pediu para ser
meu namorado, então aguente as
consequências. — Ele balança a cabeça,
rindo.
— Isso quer dizer que preciso
segurar o meu B.O.?
— Exatamente. — Nos beijamos
outra vez. — Se acontecer alguma coisa
com ela e vocês estiverem assim, nunca
vai conseguir se perdoar. Ainda existe
esperança para vocês, então aproveita
essa oportunidade. Promete que vai
tratar sua mãe melhor?
Seus olhos se encontram aos
meus, enquanto pondera as opções.
— Isso vai ser libertador, você
vai ver — garanto, incentivando-o.
— Em que momento você se
tornou tão sabichona? — Romeu estreita
os olhos na minha direção. — Que eu
saiba, temos a mesma idade.
— Amorzinho, nunca ouviu dizer
que as mulheres amadurecem mais
rápido? — digo, com um ar de
superioridade fingido e ele ri. — Nós
mulheres, vamos dominar o mundo.
A minha experiência nada tem a
ver com isso, mas sim com todas as
vezes que caí e tive que me levantar sem
ajuda, além de todas as sessões de
terapia que tive antes da morte de
mamãe.
— Você está se achando demais,
patricinha. — Romeu aperta o meu
nariz.
— Aprendi com o melhor. —
Mostro a língua. — Pare de desviar do
assunto e prometa que não vai mais ser
um babaca com sua mãe.
— Tudo bem.
— Tudo bem o que, Romeu? —
Ergo a sobrancelha.
— Vou tentar agir de forma mais
decente com a minha mãe. — Ele sela
nosso acordo com um beijo rápido e se
afasta. — Agora, será que a gente pode
namorar em paz, sem a minha família
metida entre nós?
— Obviamente. — Volto a
enlaçar seu pescoço e voltamos a nos
beijar.
A sensação de poder fazer isso
sem temer sermos pegos por alguém é
maravilhosa, mesmo que a essa hora da
noite ninguém vem aqui, a não ser esse
garoto maluco — ou sua tia mais doida
ainda.
No último ano, aprendi a
apreciar os momentos na fazenda,
ouvindo dona Vanda contar histórias
sobre quando minha mãe passava férias
aqui com tia Isis e Ariadne, é incrível
como a velha senhora sempre encontra
alguma lembrança para compartilhar.
Eu, que só queria um pouquinho
de carinho, encontrei muito mais que
isso, porque decidi passar um Natal
longe do meu pai, há dois anos, só que
isso não me impede de ficar triste por
todas as coisas que perdi.
— No que está pensando? —
Romeu pergunta, encostando o queixo
em meu ombro.
— Que eu tenho muita sorte... —
digo baixinho, fitando-o.
— Ah, mais isso todo mundo
sabe — ele brinca. — Já deu uma boa
olhada no seu namorado?
— Palhaço! — ralho,
espalmando a mão na sua, entrelaçando
nossos dedos. — Não estou falando
disso, mas de como a minha vida mudou
desde aquele Natal, que você me jogou
na cachoeira.
— Precisa confessar que foi
muito divertido.
— Não foi, nada. — Empurro o
ombro em seu peito.
— Você sente falta dele? —
pergunta, de repente. — Do seu pai, sei
que raramente falamos sobre esse
homem, mas imagino que isso machuque
bastante.
— Eu queria que ele fosse
diferente, mas já aceitei que nem todos
os pais são como o Ariel. — Abaixo a
cabeça e ele segura meu queixo,
forçando-me a olhá-lo. — Wallace
nunca cumpriu o seu papel como deveria
e depois que mamãe faleceu, as coisas
só pioraram. Acho que as coisas entre
nós nunca vão ser normais, até porque
depois da emancipação é como se eu
não existisse mais na vida dele.
— Ei, você é a menina mais
incrível que já conheci. — Ele arruma
meus cabelos, afastando-os do pescoço.
— Quem está perdendo é ele.
— Mamãe me dizia muito isso
— lembro, com um sorriso triste.
— Vamos falar de coisas
alegres, não gosto de você assim,
tristinha. — Romeu parece pensar por
um minuto. — Dança te deixa feliz,
dance para mim, o que acha?
O garoto tem um olhar pidão que
sempre funciona comigo, eu gosto de
dançar para ele, mas as coisas sempre
acabam fervendo entre nós e estamos
quase cruzando o limite do aceitável
com os nossos amassos e ainda não
decidimos apagar de uma vez esse fogo
todo que temos.
— Não é uma boa ideia. — Faço
um muxoxo. — Me conta alguma coisa
curiosa sobre a música clássica.
Adoro ver meu namorado
falando de sua paixão e sempre gosto de
fazer isso quando estamos juntos, porque
às vezes sinto que é como se ele fosse
explodir se não falar sobre sua música
com alguém.
— Tudo bem, mas a minha perna
está doendo, você comeu demais na
festa. — Dou-lhe um tapa um pouco
antes de me levantar e me sentar ao seu
lado, então ele põe a cabeça em meu
colo. — Para começar, o termo “música
clássica” é considerado inadequado por
muitas pessoas, porque se refere a um
período histórico entre 1750 e 1830,
mas por falta de uma expressão melhor,
ele continua sendo utilizado.
— Ah, que bobagem! — digo,
passando as mãos pelos seus cabelos.
— O que mais?
— Existe uma lenda que depois
de escrever sua décima sinfonia, o
compositor é amaldiçoado e morre antes
de conseguir criar sua próxima obra. —
Estreito os olhos para ele, querendo
saber se não está brincando comigo. —
É sério, patricinha. Alguns
compositores, meio que “burlam” essa
maldição, pulando da nona para a
décima primeira.
— Nunca vi tanta maluquice —
respondo, rindo. — Como é o nome
daquele moço que escreveu “As quatro
estações”?
— Vivaldi.
— É verdade que ele era um
padre? — indago, quando ele
desbloqueia a tela do celular, abrindo o
aplicativo de música e colocando uma
melodia que já conheço para tocar. —
Essa é a primavera, acertei?
— Boa menina. — Romeu abre
um sorriso largo. — Ele era um padre,
mas foi dispensado das celebrações por
conta da sua saúde que era muito frágil,
foi então que ele focou no ensino do
violino.
— Curioso. — Observo o garoto
balançar a mão, como se estivesse
segurando um arco. — Como é o nome
daquele rapaz do Cello que você vive
assistindo aos vídeos dele?
— Quem? — pergunta,
descarado.
— Aquele que toca junto com a
esposa pianista, que dancei a música
deles outro dia no terraço. — Faço uma
pausa, tentando lembrar o nome da
mulher. — A Natasha... Ela é amiga da
sua mãe? Acho que vi umas fotos delas
juntas outro dia.
— Ah, sim, a Natasha e o
Leandro são amigos da minha mãe. —
Ele tem uma expressão orgulhosa agora.
— O cara é foda, toca demais,
patricinha.
Romeu conta sobre um encontro
que tiveram na casa da mãe, um tempo
atrás, e não conseguiu ser indiferente, e
como Ariel passou a insistir mais com
ele para voltar a tocar depois disso.
— É verdade que já participou
de uma orquestra? — especulo,
despretensiosamente.
— Sim, mas isso foi há muito
tempo... — A resposta soa distante e
evasiva.
— E não pretende voltar a tocar
nunca mais? — questiono, incrédula.
— De jeito nenhum. — Sua fala
não me convence.
— Mentiroso! — Puxo seus
cabelos. — Você deveria parar de ser
tão teimoso e escutar o seu coração,
para variar.
— Eu escuto — diz, bem sério,
me encarando. — E ele grita: Letícia,
Letícia.
Romeu gargalha e depois me
puxa para um beijo, é sempre assim,
quando o assunto pende para esse lado,
ele desvia o foco em uma rapidez
invejável. Queria muito que meu
namorado pudesse se abrir novamente
para as coisas que ama fazer, mas
parece uma tarefa impossível.
Cada dia que passa, eu o amo um pouco
mais, só não tenho coragem de admitir
em voz alta, Breno vive jogando isso na
minha cara. Não sei se estou pronta
ainda para dizer algo tão definitivo
quanto um “eu te amo”.
Romeu
Estou encostado em uma
formação rochosa que se estende por um
pequeno trecho do local onde estamos,
Aninha em sua visão infantil diz que é
uma pedra em cima da outra.
Continuamos no mesmo lugar que
Letícia me encontrou, depois que fugi da
festa.
Perco totalmente a noção do
tempo quando estou com Letícia, o seu
cheiro, seu gosto, seus gemidos quando
a toco, tudo isso me deixa vidrado nela.
Não quero nem pensar como vai ser
quando morarmos sob o mesmo teto, se
apenas nos finais de semana eu já passo
o dia duro, sem querer tirar as mãos
dela.
A garota que está sentada em
meu colo com uma perna de cada lado e
joelhos flexionados, se remexe roçando
a virilha na minha ereção, fazendo com
que eu mordisque seu pescoço. Sob a luz
do luar, ela está muito sexy com os
lábios inchados, o decote em “V”
emoldura os seios sustentado por uma
tira fina que vai até o pescoço onde foi
amarrada em um laço, o tecido florido
do vestido longo está erguido até a
altura das coxas bem torneadas onde
descanso as mãos.
— Ei, vamos com calma —
brinco, quando ela distribui beijos pelo
meu pescoço. — Eu não sou de ferro e a
gente não quer ter a nossa primeira vez
no meio do nada, não é mesmo?
Lety encosta a testa no meu
ombro, rindo.
— Isso é culpa sua, Romeu —
sussurra, sem me olhar.
— Você é a gostosona aqui, caso
tenha esquecido. — Seguro seu rosto,
fazendo com que olhe para mim.
Ela enfia as mãos por baixo da
minha camisa, traçando um caminho
perigoso demais, essa garota adora fazer
isso comigo e sabe bem o que o seu
toque me provoca.
— Meu Deus, nunca desejei
alguém desse jeito. — Enfio as mãos em
seus cabelos e a puxo para a minha
boca. — Você é gostosa num nível que
nem sei como explicar, Lety.
— Então, me lembre por que
ainda não transamos? — ela diz
baixinho, com a voz rouca, tocando-me
por cima da calça em um joguinho que
tem um efeito devastador em mim.
— Porque não queremos
machucar as pessoas que amamos —
repito o mantra que tem acalmado
nossos ânimos por um ano inteiro.
— Mas agora eles já sabem
sobre nós — diz, desatando o laço que
sustenta o seu decote, mordendo o lábio
inferior apenas para me tentar, porque
sou doido nesses peitos perfeitos.
Fico observando o tecido se
afrouxar expondo parte do seu colo.
Como eu imaginei, ela está sem sutiã.
Nós avançamos a linha do perigo há um
tempo, mas de algumas semanas para cá,
anda bem difícil resistir às provocações
dela e quando estamos na fazenda temos
mais oportunidades de ficarmos
sozinhos, então a coisa pega fogo entre a
gente.
Termino de puxar o tecido para
baixo, apalpando os seios nus,
observando-a fechar os olhos e
mordendo os lábios.
— Já mencionei que adoro esses
seus vestidos? — Beijo sua clavícula
demoradamente ao mesmo tempo que
belisco os bicos intumescidos.
— Por que acha que só uso eles
quando estamos por aqui? — revela,
mordendo os lábios.
— Boa menina. — Desço um
pouco mais, lambendo a pele devagar,
vendo-a ficar arrepiada.
Roço levemente os lábios pelo
bico dos seios, sem tirar os olhos dela,
brinco com a língua em movimentos
circulares e a menina fecha os olhos,
soltando um gemido, abocanho,
chupando gostoso, apertando-os.
— Ah, Romeu... — Ela segura
meus cabelos, incentivando-me a
continuar e se esfrega em mim,
procurando alívio.
— Que gostoso, Lety — sussurro
contra a sua pele cheirosa, me
deliciando com o atrito sob os tecidos.
Mordisco um biquinho de cada
vez e solto-os por um momento,
beijando seus lábios, segurando sua
bunda, ajudando-a com a dança ousada.
Ah, como eu quero estar dentro
dessa garota.
Acho que já esperamos demais,
agora todo mundo já sabe sobre nós e
podemos dar esse passo sem medo.
Lembro-me da oferta de tia Ari mais
cedo na festa, um pouco antes de ir
procurar Maya.
“Vá aproveitar sua vida,
garoto! Sei que o seu pai não dá folga,
se você e Lety precisarem de um tempo
longe dessa bagunça pelo menos por
esta noite, já sabe aonde ir.” Claro que
ela estava falando da sua cabana perto
da cachoeira. “A chave está embaixo do
jarro da entrada. Juízo e como diria
seu pai: usem camisinha. Não quero
que me culpem depois.”
— O que foi? — a garota indaga,
quando paro o que estávamos fazendo.
— Você tem certeza de que quer
isso comigo? — pergunto, arrumando
seus cabelos desgrenhados atrás da
orelha e ela me olha como se eu fosse
louco.
— É claro que quero, mô. —
Suas mãos repousam no meu peito. —
Por quê?
— Vamos para outro lugar,
patricinha. — Arrumo seu vestido,
dando um laço desajeitado, erguendo-a
do meu colo e ela se levanta, ainda
confusa.
— Para onde está me levando,
Romeu? — indaga, quando lhe estendo a
mão para ajudá-la a descer da rocha.
— Não vamos transar em cima
de uma pedra ao relento — afirmo,
puxando-a para mim, pousando a mão
em seu rosto. — E aí, você vem
comigo?
Ela assente, entrelaçando os
dedos nos meus em resposta, ligo a
lanterna do celular para iluminar a trilha
e caminhamos no sentido oposto ao
casarão, pegando um outro caminho que
é bem estreito, parando algumas vezes
para nos beijar.
O barulho da cachoeira fica cada
vez mais próximo e Letícia para, me
olhando intrigada.
— Está me levando para cabana
do amor da sua tia? — pergunta,
franzindo a testa e ilumino seu rosto com
a lanterna.
O lugar no meio da floresta é
perto o suficiente da cachoeira para que
o som da queda d’água seja ouvido da
trilha, mas escondido o suficiente para
não ser visto de lá. Essa cabana é meio
que uma piada interna dos adultos da
minha família, dizem que ela faz
milagres pelo relacionamento deles, ao
menos de papai e tia Ari. Meus avós a
apelidaram de cabana do amor e as
“crianças” são proibidas de ir até lá.
— Talvez — digo, fazendo uma
careta.
— Meu Deus, foi isso que ela te
disse quando te puxou para o cantinho?
— A menina parece escandalizada
quando aceno afirmativamente. — Como
vou olhar na cara da sua família, depois
disso?
Coloco o celular no bolso da
calça de um jeito que possa continuar
iluminando.
— Ei, patricinha. — Fico de
frente para ela — Todo mundo aqui já
acha que a gente transa há meses, agora
só vai ser real.
— Que vergonha!
— Onde está aquela garota
ousada, que estava me coagindo agora
há pouco? — Arqueio a sobrancelha,
exibindo um sorrisinho sarcástico.
— Não sei. — Suas mãos
escondem o rosto.
— Vamos pensar apenas em nós
dois esta noite e em nada além disso.
Tudo bem? — Ela assente e voltamos a
caminhar.
Chegamos à pequena clareira, as
luzes da cabana estão apagadas, subimos
os degraus da pequena varanda onde
procuro por um interruptor, quando o
acho acendo a lâmpada de cor
amarelada, depois vou até o jarro,
levantando-o e encontrando a chave.
Abro a porta e o cheiro de limpeza
misturado à madeira envelhecida toma
conta do ar. Apesar da aparência rústica
por fora, dentro tudo é bem
aconchegante.
— Vem, patricinha — a chamo,
porque está entretida olhando tudo ao
redor do lado de fora da casa.
— Ela é tão linda — diz
admirada ao entrar. — Nunca tinha
vindo aqui, Ariadne disse em uma noite
das meninas, que apenas casais
apaixonados tinham esse direito.
— Bingo! — digo, trancando a
porta e reparando nos detalhes do
ambiente.
Papai e tia Ari reformam esta
cabana anualmente e não sei bem o
motivo dela ser tão importante para os
dois, mas no momento só posso
agradecer.
É um cômodo pequeno, com
poucos móveis. Há uma tevê próxima à
porta bem em frente à cama de casal
baixa que está coberta com uma colcha
de retalhos em tons de lilás, ao lado uma
mesinha de madeira com um abajur
decorado com a mesma estampa das
cortinas, que ficam acima da pequena
pia com armário que fica ao lado de um
frigobar, também tem um tapete felpudo
roxo com almofadas que seguem uma
paleta de cores muito estranha.
— Isso aqui é um paraíso! —
Lety suspira ao tirar as sandálias. —
Agora entendo por que falam tanto
daqui. Já conhecia este lugar?
Começo a rir e ela me encara,
intrigada.
— Sim, vim aqui uma vez e levei
uma bronca da tia Ari. — Balanço a
cabeça. — Depois disso, preferi não me
arriscar mais.
— Você é um bad boy levado. —
Ela se aproxima, batendo o dedo no meu
peito e enlaço sua cintura.
— O seu bad boy, que fique bem
entendido. — Beijo seus lábios
rapidamente, acariciando seus cabelos.
— Romeu, eu pareço muito
saidinha, mas você sabe que eu nunca
estive com ninguém. — Ela aperta os
dedos, nervosa. — Então, não sei o que
fazer.
— Relaxa, patricinha. —
Seguro suas mãos, a fitando. — Vamos
descobrir juntos, sem pressão, só vamos
namorar do nosso jeitinho e se não
quiser ir em frente, tudo bem. Só quero
ficar coladinho contigo hoje em um lugar
decente e longe daquela loucura, tudo
bem?
— Eu confio em você, Romeu —
garante e beijo sua testa, me afastando
para tirar os sapatos.
Ela aproveita para andar um
pouco pelo cômodo, abrindo a porta do
banheiro que fica no fundo, depois olha
o armário embaixo da pia.
— Tem bolo e biscoito caseiro,
chocolates — diz, encabulada, seguindo
para o frigobar. — Água e refrigerantes.
— Blé... Achei que teria umas
cervejas — reclamo, me jogando na
cama, testando o colchão e ela faz o
mesmo. — Sabia que a tia Ari não era
tão boazinha assim, ao ponto de deixar
as bebidas acessíveis.
Faço uma careta desgostosa
quando arrumo o travesseiro embaixo da
cabeça ficando de frente à garota, nós
nos olhamos um tanto ansiosos. A
consciência de que estamos realmente
sozinhos pela primeira vez desde que
começamos a namorar, traz um frio na
barriga.
Apesar de desejar muito esse
momento com a Lety, sinto um
nervosismo tomando conta de mim, uma
ansiedade misturada ao medo de fazer
tudo errado. Posso parecer ser bom com
as garotas, mas sempre me disseram que
a prática é bem diferente da teoria.
Fico com receio de machucá-la e
tudo acabar sendo um verdadeiro
desastre, ao mesmo tempo que penso
que não tem como isso dar errado, a
gente se gosta e não deve ser tão
complicado assim. Afinal, ela é a garota
que me faz sentir coisas que já mais
imaginei.
Deslizo os dedos pela sua
bochecha, sentindo a textura de sua pele,
inspiro o cheiro gostoso que ela sempre
tem e passo a língua pelos lábios, ciente
de que não vamos precisar interromper
nada às pressas, que vou finalmente vê-
la do jeito que fantasio quando estou me
tocando.
— Está com medo? — falo
baixinho, contornando com o polegar
seus lábios ainda inchados dos nossos
beijos.
— Não — garante, pousando a
mão no meu peito. — Quero fazer isso
com você, Romeu.
Ela rompe a distância entre nós e
me beija como se para mostrar que me
quer tanto quanto eu a quero. Agarro sua
cintura e ela enlaça a perna no meu
quadril, deslizo a mão para seu bumbum,
apertando-a contra mim. Devoro sua
boca com uma fome insaciável, viro-a
para o lado ficando por cima do seu
corpo, que se encaixa perfeitamente ao
meu.
As mãos dela passeiam pelas
minhas costas sobre o tecido da
camiseta, depois alcança a barra,
tirando-a e jogando em canto qualquer, o
seu toque na minha pele é capaz de criar
um incêndio sem muito esforço. Sugo
seus lábios faminto dela, querendo me
afogar nesse desejo insano que temos um
pelo outro, sentindo meu pau explodindo
dentro da calça.
Não há tempo para conversas,
apenas suspiros, beijos, sussurros e
grunhidos de excitação. Ela engancha as
pernas em minha cintura, inclinando o
corpo, buscando por algum alívio, nosso
encaixe por cima das camadas de roupas
não é o suficiente. Beijo seu pescoço,
aperto os seios sentindo os biquinhos
arrebitados por cima do tecido,
abocanho-os em um joguinho sujo que a
faz arfar.
— Quero te ver nua, patricinha
— digo, com a voz rouca de desejo,
encarando-a e ela lambe os lábios,
avanço sobre a boca, deliciando-me
com seu sabor.
— Também quero te ver, Romeu
— declara, ofegante, quando nos
afastamos.
Levantamo-nos da cama e
ficamos de pé sobre o tapete sem
desgrudar os olhos um do outro. Ela
desata o laço do vestido e vai descendo
a peça devagar até que o vestido se
amontoe em seus pés.
— Caramba! — exclamo,
maravilhado com a visão dela coberta
apenas por uma calcinha de renda cor-
de-rosa.
Eu já vi algumas garotas nuas,
mas elas estavam bêbadas e me recusei
a tocá-las, mas agora é diferente. Óbvio
que não sou nenhum santo intocado,
afinal, não se recusa um boquete de uma
garota que está na sua, mas minha
vivência sexual se limita a isso e não se
compara ao que pretendo ter com
Letícia.
Ao contrário dos meus amigos,
sempre acreditei que a minha primeira
vez seria com alguém com quem tivesse
uma conexão verdadeira e não apenas
para me aliviar, talvez pela pressão do
meu pai ou pelas experiências horríveis
que alguns colegas tiveram quando
finalmente deixaram de ser castos.
Acho que a sintonia que temos, a
confiança um no outro pode nos ajudar a
ter algo diferente, além da minha
vontade cada vez mais crescente de ter
tudo com ela, sem temer qualquer coisa.
— Sua vez — Lety fala, abrindo
e fechando as mãos, nervosa.
Desabotoo a calça, abro o zíper,
desço a peça de roupa ficando só de
cueca boxer, seus olhos se prendem na
parte do meu corpo que pulsa por ela e
dou um passo na sua direção,
acariciando seu braço com o dorso da
mão, sentindo a pele se arrepiar.
— Você é lindo, Romeu! —
sussurra, deslizando a mão sobre meu
peito.
Puxa-a para mim, seus seios nus
se encostando ao meu peito trazendo um
frenesi de emoções ao meu corpo,
seguro sua nuca e beijo atrás de sua
orelha, descendo pela linha do queixo,
beijando sua boca e me perdendo em
meio a todas essas sensações que
causamos um ao outro.
Caminho para trás, puxando-a
comigo na direção da cama. Caímos
desajeitados no colchão macio, seus
cabelos espalhando pelo meu rosto, o
cheiro dela se misturando ao meu,
deixando-me maluco.
— Vamos devagar, não quero te
machucar — sussurro, quando nos
afastamos em busca de ar.
— Não vai me machucar —
responde, quando me sento na cama,
encostando na cabeceira.
Letícia monta em mim sem
timidez, devorando meus lábios, sua
boceta roçando deliberadamente no meu
pau, aperto a bunda e vou subindo pela
cintura até chegar aos seios,
massageando devagar, fazendo-a fechar
os olhos, mordendo os lábios, perdida
nas emoções. Abocanho o bico
empinado, chupando e mordiscando sem
tirar os olhos dela, que geme se
esfregando em mim.
— Ahhhhhhhh... Romeu —
choraminga, com a voz rouca quando a
acaricio por cima da calcinha molhada.
Solto um rosnado, buscando sua
boca em um beijo indecente, nossas
línguas se acariciam de maneira
obscena. Estamos segurando o tesão há
tempo demais, apesar das carícias mais
ousadas que trocamos de uns tempos
para cá, sempre estamos em busca de
mais.
Lety mordisca e beija meu
pescoço quando enfio os dedos por
baixo da renda, brincando com o seu
ponto inchado, deslizando-os pelas
dobras molhadas e ela geme. Já a fiz
gozar apenas tocando-a algumas vezes e
nada se compara ao seu rosto em
completo êxtase, mas hoje quero prová-
la como sempre tive vontade, por isso
retiro os dedos e os levo à boca,
sentindo o gosto delicioso, beijando-a
em seguida, inclinando seu corpo para
trás até que esteja deitada de costas na
cama.
Acaricio sua barriga, segurando
as bordas da calcinha e puxando-a
devagar, jogando-a no chão, meu
coração dispara com a visão da boceta
rosada toda depilada, a boca enche de
água, o pau lateja duro feito pedra e
todo melado, quando me ajoelho na
beirada da cama a puxando para mim,
colocando uma perna de cada lado do
meu ombro. Pelo menos, para isso vão
servir as minhas visitas secretas aos
sites pornô.
Não posso acreditar que vou
enfim provar o seu gosto direto da fonte,
inspiro seu cheiro, aperto a carne
deslizando os dedos pelos lábios, me
inclinando devagar.
— Que bocetinha linda —
sussurro, massageando a carne rosada.
— Quero te chupar todinha, Lety.
— Ahhhh. — Ela se contorce,
fechando os olhos. — E eu quero que
faça isso agora, Romeu.
Obedeço. Beijo sua pelve, a
virilha, descendo devagar até os lábios
chupando-os e me perco um pouco na
maciez da sua carne, no sabor viciante
dela. Meu pau lateja reclamando, mas no
momento preciso sentir o gosto dela na
minha boca, deslizo a língua por toda a
extensão da boceta, lambendo-a,
gemendo ao sentir o seu sabor me levar
a uma espécie de transe. Circulo seu
clitóris brincando com a língua em
movimentos que a fazem se inclinar,
esfregando a carne macia na minha boca.
Enfio dois dedos em sua entrada,
ela arfa segurando os seios e se
contraindo quando volto a lambê-la
intercalando os movimentos. Beijo.
Lambo. Chupo. Brinco com os dedos
dentro dela, fazendo-a gemer, ronronar e
dizer palavras desconexas quando
desaba em êxtase.
— R-Romeu... Ahhhh... Rome...
— Seus fluidos encharcando a minha
boca com seu gosto delicioso.
Suas coxas relaxam e ela parece
estar perdida em meio a tudo que acabou
de sentir, com a respiração ofegante.
Desço as pernas do meu ombro, subindo
sobre ela como um felino, beijando sua
boca, apalpando seus seios, o pau ainda
dentro da cueca se encosta a ela, que o
segura entre as mãos, acariciando-o.
— Ah, patricinha, você é mais
gostosa do que imaginei — digo
baixinho e chupo o biquinho empinado
do seu peito.
Letícia parece ter perdido
qualquer resquício de juízo que tinha,
enfiando a mão dentro da minha boxer,
tocando-me de um jeito que nunca havia
ousado antes. Estou a ponto de gozar
com um simples toque, mas tento me
conter.
A última peça de roupa que tem
no meu corpo é retirada, a garota
embaixo de mim se esfrega na ereção
sem nada entre nós, pele com pele e nem
em meus sonhos mais eróticos com ela,
imaginei que fosse tão gostoso roçar o
pau em sua boceta macia. Somos
guiados pelos instintos, Lety abre as
pernas para que me encaixe e entramos
em uma dança gostosa sem que eu esteja
realmente dentro dela, nos lambuzando e
pegando fogo.
— Romeu, você trouxe
camisinha? — ela lembra, entre um
gemido e outro.
Droga! Faço uma careta. Como
eu não pensei nisso antes? Começo a
entrar em desespero, porque eu preciso
estar dentro dela e não tenho o mais
importante.
Olho em volta procurando uma
solução e acabo encarando a gaveta da
mesinha do abajur, levanto-me, vou até
lá e para o meu alívio há alguns pacotes
de camisinha ali dentro, pego um deles e
volto para cama.
— Está pronta? É isso mesmo
que você quer? — indago, encostando-
me na cabeceira e a garota me olha
como se eu fosse louco. — Tem certeza
de que não vai se arrepender depois?
— Não vou me arrepender e que
é isso que quero, Romeu. — Ela beija
meus lábios devagar, como se quisesse
me provar algo.
Rasgo a embalagem, visto meu
membro e a puxo para mim.
— Se sentir qualquer coisa ruim,
a gente para. Tudo bem? — digo,
tocando seu rosto e ela exibe um
sorrisinho bobo. — Não quero te
machucar, de jeito nenhum.
— Tá, acho que aguento. — Lety
acaricia meu pau. — Posso tentar?
— Vá em frente — digo,
mordendo o lábio em uma mistura de
ansiedade e prazer.
Ela põe uma perna de cada lado,
segurando o membro duro e vai
forçando a entrada devagar, sinto como
se a cabeça estivesse sendo esfolada.
Sufoco um grito, beijando-a devagar.
— Está doendo? — pergunto,
quando ela para de repente.
— Um pouquinho — responde,
fazendo uma careta.
— Quer tentar de outro jeito? —
Seguro seu rosto, fitando-a, quando ela
encosta a testa na minha. — Se quiser, a
gente para.
Letícia descansa a cabeça no
meu ombro, desistindo por um momento
e acaricio suas costas, tentando acalmar
não só a ela como a mim também.
— Vamos outra vez — diz, sem
me olhar, segurando meu membro entre
as mãos. — Se não der assim, tentamos
de outro jeito.
Ela pincela sua entrada com meu
pau, fazendo-me gemer, enfiando
devagar, forçando outra vez, rebolando
um pouco e mordo o lábio contendo a
vontade de gritar de prazer com a
sensação causada. Então, sinto como se
tivesse rompido algo dentro dela e a
ouço soltar um palavrão.
— Tudo bem? — pergunto,
fitando-a, tentando ignorar a onda de
satisfação que me toma e a garota
respira fundo, demorando um pouco
para falar.
— Já passou, estou bem — diz,
colando sua boca na minha.
Começamos uma dança lenta,
Letícia dita o ritmo subindo e descendo
até que eu esteja completamente dentro
dela. A boceta apertada abraça meu pau,
fazendo-me dizer seu nome repetidas
vezes como uma prece, o ritmo vai
aumentando aos poucos.
Nós nos beijamos e rolamos
para o lado, suas pernas enlaçam minha
cintura, meus braços a seguram pela
cintura, enquanto entro e saio em
estocadas que nos arranca gemidos e
palavras inteligíveis, testando nossos
limites e não sei se consigo segurar
muito.
Ela se remexe junto comigo e
entramos em uma sincronia gostosa em
busca de prazer, tudo parece intenso e
gostoso demais, até que não sou capaz
de dominar as sensações do meu corpo.
— Lety, eu acho que...
Ahhhhhhh... — Não consigo segurar
mais.
Desabo, abraçando seu corpo,
sentindo as pernas tremerem, o coração
bombear o sangue freneticamente e uma
sensação de paz me invadir enquanto
grito seu nome como um viciado, a
ouvindo fazer o mesmo, apertando-me
contra o próprio peito.
Ficamos ofegantes por um
tempo, esperando o nosso mundo voltar
a orbitar, enfio a cabeça em seu
pescoço, sorrindo como alguém que
acabou de ganhar na loteria. Então, é
assim que as pessoas se sentem quando
transam?
Aos poucos, tudo vai se
acalmando, minha cabeça para de girar,
a respiração entra no ritmo certo,
enquanto Lety faz pequenos círculos nas
minhas costas.
— Você gostou? — digo,
quebrando o silêncio.
— Aham... — ela diz, manhosa.
— A gente pode repetir?
— Assim que eu descobrir como
é que se respira novamente. — Beijo
seus lábios, devagar.
— Foi bom para você também?
— pergunta, um pouco tímida.
— Tá brincando, comigo? —
Arrumo seus cabelos desgrenhados e
sussurro: — Foi mais do que perfeito,
patricinha.
Eu me retiro dela, vamos ao banheiro
nos limpar e voltamos para a cama, nus,
abraço seu corpo, tendo a certeza de que
essa garota foi feita sob medida para
mim e nada pode desfazer isso.
Letícia
— Precisamos fofocar
pessoalmente, Lety — meu melhor
amigo diz, empolgado. — A gente tem
que dar um jeito de se encontrar esta
semana, eu nem durmo direito desde que
me contou que finalmente deixou de ser
uma pessoa pura e veio para o lado bom
da força. Quero que me conte tudo com
riquezas de detalhes...
— Não vou fazer isso, Breno. —
Balanço a cabeça, sentindo o rosto ficar
vermelho. — Você já sabe o mais
importante, não sou mais virgem e
ponto. Não há nada para saber além
disso.
— Você é uma amiga muito
ingrata! — Breno reclama ao telefone.
— Acabamos de nos mudar, tudo
estava uma zona, as provas da faculdade
estão chegando e eu tenho a sensação de
que vou enlouquecer a qualquer
momento. — Tento justificar a minha
ausência nos ensaios da academia e a
razão de não termos nos encontrado
depois do aniversário da Aninha. —
Passei o fim de semana entre caixas e
livros chatos. Me dê um desconto!
— Para mim, isso significa que
agora que está morando debaixo do
mesmo teto que o seu namorado, vou ser
deixado de lado. Duvido que não tenha
arranjado um tempo para ele. — Como
sempre, muito dramático. — Eu quero
saber como foi a festa da fazenda, você
não me contou nadica de nada das tretas
da família do seu namorado. Ao menos,
pegou um autógrafo da sogrita para
mim?
— Não aconteceu nada de mais,
apenas o de sempre e a Aninha te
convidou para festa, não foi porque não
quis — jogo na sua cara.
— Eu tinha um encontro! — Ele
quase grita no meu ouvido, como se eu
não soubesse. — Sabe quanto tempo eu
não tinha um? Pois é isso mesmo, há
séculos. Não me respondeu sobre o
autógrafo, pegou?
— Ah, meu pai! Você é tão
chato, peguei dois, ok?! — Reviro os
olhos, arrumando a pilha de livros que
preciso levar para aula hoje. — A gente
se vê na sexta, vamos no shopping,
pegamos um cineminha, o que acha?
Volto para os ensaios semana que vem.
— Sexta tem a festa do Leon e
vou encontrar o meu boy lá — responde,
como quem não quer nada.
— Depois sou eu a pessoa que
está trocando os amigos por macho, seu
descarado — reclamo, rindo.
— Você bem que podia ir, né?!
O Leon é amigo do seu namorado. —
Faço um muxoxo, Ariel não gosta desse
garoto e proibiu Romeu de andar com
ele.
— Vou ver aqui, mas não
prometo nada.
— Amiga, tu está parecendo
aquelas velhas chatas que não saem de
casa, Ave Maria, esse macho deve ser
muito bom para te deixar desse jeito,
viu?! — debocha, gargalhando alto. —
Nunca te vi fissurada desse jeito em um
cara, nem aquele dançarino metido de
carimbó te deixou assim.
— Ciumento! — reclamo,
colocando a mochila nas costas e
procurando meu estojo de maquiagem
sobre a bancada. — Amigo, preciso
mesmo ir ou vou chegar atrasada no
curso hoje.
— Ei, pera! Quase esqueci, a
dona Rosinha pediu para avisar que te
indicou hoje para dar aulas de balé em
uma escola de ensino infantil. Na
verdade, o que ela disse foi: “Breno,
fala para Lety atender àquele maldito
celular ou vai perder essa oportunidade”
— ele diz, a imitando na última parte.
— Pronto, recado dado. Não quero
atrapalhar essa futura fisioterapeuta a
tirar boas notas. Beijo, fui!
Dou um gritinho eufórico quando
encerramos a chamada, apertando o
celular contra o peito, animada com a
possibilidade de conseguir um emprego.
Tia Isis não reclama, mas eu morro de
vergonha de ser tão dependente dela e se
eu tiver um trabalho, pelo menos tiro
esse fardo dela.
— Patricinha, já está pronta?
Vamos nos atrasar! — Romeu bate na
porta um pouco antes de entrar, seu
perfume invadindo o quarto.
Viro-me para olhar o meu
namorado e acabo soltando um suspiro,
será que algum dia eu vou me acostumar
com esse desejo insano que sinto por
ele? Caminho na sua direção, enlaçando
seu pescoço e suas mãos seguram a
minha cintura.
— E essa produção toda é para
mim? — pergunta, arrumando uma
mecha do meu cabelo atrás da orelha e
depois captura meus lábios em um beijo
que me deixa sem ar.
Nós nos perdemos um no outro é
fácil demais, basta que me olhe, toque
ou simplesmente sorria para mim, que
fico toda derretida no sentido literal da
palavra e minha calcinha úmida agora é
a prova disso. Nossas línguas dançam,
se provando em um beijo ousado demais
e lembro que não estamos sozinhos, me
afasto, a contragosto.
— Romeu, a tia Isis pode entrar
aqui! — Bato em seu peito.
— Ah, patricinha, todo mundo
sabe que a gente namora. — Ele dá de
ombros com um sorrisinho debochado
no canto da boca. — Podemos ir? Já
está pronta?
— Quase, só falta passar um
batom — digo, abrindo o estojo de
maquiagem. — Não sabia que já tinha
chegado, como foi o primeiro dia com a
Érica?
— Preciso mesmo responder? —
Ele faz uma careta, se sentando na cama
da irmã para me esperar.
Ariel conseguiu convencê-lo a
aceitar um trabalho administrativo no
período da tarde, lá no centro
comunitário, já que ele nunca quer nada
relacionado a aulas de música, seu pai
deu um jeito de mantê-lo próximo a ela.
— Foi tão ruim assim? — O
encaro através do espelho.
— Tenho umas quinhentas fichas
de alunos para organizar. — Ele repuxa
o topete com um olhar de tédio. — Nada
glamoroso, mas precisava começar de
algum lugar, não é mesmo?! Sem falar
que, para aqueles pirralhos que mal
sabem segurar o arco, sou o deus do
Cello e eles nunca me viram tocando de
verdade — fala, como se tivesse
ultrajado com toda a atenção da
criançada. — Queria saber quem é que
alimenta essas coisas?
— Você sabe que tem um canal
no YouTube com todas as suas
apresentações antigas, não é? — Pisco,
terminando de retocar o batom.
Romeu não admite, mas adora o
canal e passa horas assistindo aos
próprios vídeos com um olhar saudoso.
— A mamãe devia ter excluído
permanentemente, ao invés de reativar.
Qual o problema dela em entender que
não quero mais isso para mim? — diz,
se levantando para sairmos do quarto,
me beijando uma vez mais antes de
irmos.
— Ela só quer o seu bem, mô —
digo, quando caminhamos até a sala. —
Não vai dizer besteira para Carla, você
prometeu tentar.
— Não me lembro dessa parte.
— Ele revira os olhos, rindo, e faço uma
cara feia. — Tá bom, vou ser menos
chato com a minha mãe.
Faço uma dancinha de vitória e o
garoto balança a cabeça, admitindo a
derrota.
— Por que é que namoro com
você, mesmo?
— Eu beijo bem e te faço sentir
umas coisinhas gostosas — falo
baixinho, lançando um olhar sugestivo.
Ouvimos um barulho na cozinha
e em seguida a voz de a minha tia ecoa
pela casa.
— Vocês não estão atrasados?
— pergunta, derrubando alguma coisa.
— Droga!
— Estamos saindo — Romeu
responde, pegando sua mochila sobre o
sofá.
— Tenham cuidado! — A mulher
aparece na sala quando estamos prestes
a sair e nos encara, desconfiada. —
Ainda não decidi se confio em vocês.
A porta do apartamento se abre e
Aninha entra vestida em seu quimono,
acompanhada por um Ariel exausto.
— Lety, eu vou participar de um
campeonato estadual! — a garota diz,
empolgada. — O papai deixou.
— Agora que esse ego não cabe
dentro desse corpo tão pequeno —
Romeu diz entredentes, rindo.
— O que disse? — Sua irmã o
fuzila com os olhos.
— Que agora o mundo vai ficar
pequeno para você. — Ele aperta o
nariz dela.
— Ah, eu achei mesmo que tinha
dito isso. — Ana Júlia tem um sorriso
travesso no rosto.
— Que cheiro de queimado é
esse? — Ariel diz, olhando para minha
tia.
— Meu Deus, o macarrão do
jantar! — A mulher sai correndo para a
cozinha.
Romeu e eu nos despedimos em
meio ao pequeno caos que se forma.
Estudamos em campus diferentes, mas
que ficam no mesmo bairro. Quando
estávamos namorando escondido, isso
foi o que nos salvou um pouco, porque
com o início das aulas nós não nos
veríamos muito e desse jeito acabamos
nos vendo quase todos os dias.
Tia Isis e eu nos mudamos no fim
de semana, Ariel estabeleceu uma lista
de regras para mim e seu filho, deixando
bem claro que a qualquer mínimo
deslize, Romeu vai morar com a mãe.
Entre elas, não fazer da sua casa um
motel, isso me deixou morrendo de
vergonha, que chegássemos na hora
estabelecida por ele e um monte de
coisas. Hoje será o primeiro dia das
regras em vigor, já que sábado e
domingo estávamos ocupados
organizando a bagunça da mudança.
Depois da nossa noite perfeita na
cabana, nós não tivemos outra
oportunidade de experimentar
novamente a sensação de estarmos
juntos outra vez, mas nem por isso
perdemos a chance de uns bons amassos
no terraço.
Além de Breno, que sabe o que
realmente aconteceu na cabana. Acho
que minha tia, Ariadne e Maya deduzem
o que aconteceu, porque parecia que
estava estampado na minha cara em
letras de Neon, quando sumimos quase a
noite toda, entrando sorrateiramente em
nossos quartos enquanto as pessoas
dormiam. Nada disso foi mencionado no
café da manhã e foi bem complicado
fingir que tudo continuava igual.
O importante é que nunca me
senti tão feliz como agora e às vezes
tenho a sensação de que estou vivendo
uma realidade paralela.
Romeu
— Eu não vou para essa festa,
Ivan! — afirmo, enquanto andamos pelo
campus da faculdade até a nossa sala. —
Não temos um trabalho para entregar na
próxima semana?
— E daí, cara? — ele diz, um
tanto chateado. — Parece que tu anda
fugindo da gente, não sei. Tô com essa
sensação, o Leon anda bem pilhado com
isso, Romeu. Acho que você poderia
deixar um pouco essa menina e vir curtir
com a gente, como nos velhos tempos.
— Não estou fugindo de
ninguém, Ivan. Só não estou nessa vibe
de festa, bebidas e música alta —
invento qualquer desculpa, o fato é que
estou fugindo de encrenca.
Papai estabeleceu regras para o
meu relacionamento com a Lety, como
não fazer da nossa casa um motel sob o
argumento de que minha irmã pode nos
flagrar e isso não seria nenhum pouco
legal, achei que seria mais fácil, só que
na real está bem complicado.
Tem os horários também, que
nunca obedeci de verdade, mas agora
existe o agravante de que se não andar
na linha, ganho uma passagem para a
casa da minha mãe e não será apenas
pelo fim de semana, como a do próximo
sábado com Aninha. Além disso, exigiu
que parasse de vez com essa amizade
com Leon que, segundo ele, só me traz
problemas. Não estou muito seguro
disso, mas acabei concordando no calor
das emoções.
Conheço meu pai e sei o quanto
pode ser irredutível quando quer, por
isso recuso o convite de Ivan de forma
quase instantânea. Não quero pisar na
bola, também não queria passar o final
de semana na casa da mamãe, mas a
Aninha está superempolgada e não quero
tirar isso dela.
— Conversa fiada! — Bom, o
Romeu que o meu amigo conhece, adora
todas essas coisas que acabei de citar e
isso o deixa intrigado. — Isso é por
causa da garota, tenho certeza.
— Não, não é — garanto, mas
ele não acredita. — Olha, cara, já dei
minha resposta, se vocês querem curtir,
vão em frente, mas não conta comigo,
beleza?
Ivan assente e noto a ruga de
preocupação em sua testa, tento ignorar,
mas sou um bunda mole que se preocupa
demais com o que não deveria.
— O que tá pegando? —
pergunto de uma vez.
— Olha, o Leon não tá bem —
começa a falar, coçando a cabeça. —
Voltou a fazer bobagem e, sinceramente,
tô com medo do que ele vai aprontar
nessa festa. — Ivan parece realmente
preocupado. — Chamou uma galera
esquisita, se tu for, pelo menos coloca
um freio. Ele te escuta, Romeuzinho!
De nós três, Leon é o que mais
dá trabalho, porque é um teimoso que
não mede as consequências do que faz e
sempre acaba sobrando para mim ou
Ivan. Balanço a cabeça, chateado, sei
bem como é quando meu amigo se
empolga nessas festas, ano passado
fomos parar na delegacia, porque ele
pichou uma estátua na praça e ainda
xingou o policial, que acabou nos
levando com o garoto.
Provavelmente, meu pai tem
razão de não gostar dessa minha
amizade com ele, mas parece que tenho
algum tipo de ímã para encrencas.
— Não sei, cara. — Puxo os fios
do meu cabelo. — Vou para casa da
minha mãe no sábado e não quero
confusão com o meu pai, as coisas estão
se acertando.
— Relaxa, não vai acontecer
nada! Cê pode até levar a sua gata. —
Ele pisca, batendo o ombro no meu. —
Com você lá, ele não vai fazer merda.
— Duvido, o Leon tem um
talento incrível para fazer merda.
— Só pensa com carinho. —
Ivan segura meu ombro. — Tem até
amanhã à tarde para pensar, minha aula
já vai começar. Preciso ir, mas espero
que sua resposta seja positiva.
Detesto esse senso de
responsabilidade que tenho pelos meus
amigos, queria muito conseguir deixá-
los se ferrar e não sentir absolutamente
nada, só que não consigo e fico
preocupado com o que pode acontecer
se não for a essa festa.
Quando chegamos em casa
depois da aula, Letícia e eu escapamos
para o terraço aproveitando que todos
estão dormindo. Encosto-a na porta que
dá para a escada assim que fechamos,
pressionando o seu corpo ao meu,
segurando seu rosto e tomando os seus
lábios em um beijo, ela segura a minha
camiseta tentando encurtar uma distância
que, sequer, existe.
Não achei que morar na mesma
casa que a minha namorada seria essa
tortura, papai estabeleceu alguns limites
e estou tentando seguir, mas está
complicado. Depois da nossa noite na
fazenda, tudo que eu queria era estar
dentro dela de novo, só que nunca
estamos completamente sozinhos,
sempre tem alguém à espreita.
A semana foi uma correria cheia
de beijos roubados e alguns amassos
que não aplacaram em nada o nosso
desejo.
— Romeu, a gente não pode —
ela tenta me puxar de volta à razão.
Massageio seus seios por cima
do tecido do top, sentindo os bicos
arrebitados e ela arfa.
— Não pode o que, patricinha?
— Desço em uma trilha de beijos pelo
pescoço até chegar ao colo, mordisco o
local, a ouvindo gemer baixinho. —
Fazer isso?
Ela se empina toda para mim e
enfio a mão por dentro da sua saia,
afastando a calcinha, sentindo-a
molhada e a penetro com os dedos.
— Ou isso? — sussurro em seu
ouvido, mordendo o lóbulo de sua
orelha.
Os olhos esmeraldas brilham
cheios de desejo, os lábios me
convidam à lascívia. Porra! Achei que
ia ser mais fácil cumprir o combinado,
mas em nossa defesa não há
possibilidade de alguém nos pegar aqui
a essa hora da noite, já que estão
dormindo.
— Eu vou enlouquecer se não
transar com você hoje, patricinha —
sussurro em seu ouvido, sentindo-a
rebolar em meus dedos. — Tudo nesta
vida tem limite.
Beijo-a novamente, tentando
silenciar seus gemidos, ela massageia
meu pau por cima do short do pijama e
intensifico nosso contato, chupando sua
língua ao mesmo tempo que mergulho
fundo os dedos em sua boceta apertada.
— Ai, Romeu... — diz manhosa
em meu ouvido, enfiando a mão dentro
da minha roupa, masturbando-me. —
Por favor...
— Ahhh, que gostoso, patricinha
— devolvo, me deliciando com o seu
toque.
— Você trouxe camisinha? —
pergunta, ansiosa, se contorcendo toda.
— Sim, no bolso do meu short
— a tranquilizo, me afastando apenas
para pegar a embalagem, abaixo a roupa
apenas o suficiente para colocar o
preservativo.
Ela se esfrega em mim quando
pincelo sua entrada, sentindo o coração
disparado no peito com essa maluquice
que estamos fazendo. Me enfio nela com
facilidade, colo nossas bocas para
abafar qualquer barulho quando entro e
saio de dentro dela em um ritmo que nos
leva à insanidade.
Por fim, despencamos em um
abismo de prazer, exaustos pela posição
desconfortável. O suor escorre pelas
minhas costas e pela sua testa, mas há
um sorrisinho satisfeito em seus lábios.
— Isso é tão bom, Romeu. —
Sua voz soa trêmula.
— Escondido é sempre mais
gostoso — brinco, chupando seus lábios
devagar. — Transar no terraço é o nosso
novo segredo.
Letícia concorda rindo, nos
afastamos e ela arruma a roupa, mas está
estampado na sua cara o que estávamos
fazendo. Retiro a camisinha, colocando-
a na embalagem e jogando-a na lixeira.
— Quando a gente descer, eu
levo — explico, sob seu olhar
desconfiado. — Mas não é possível que
meu pai e sua tia achem que vamos
conseguir nos conter por tanto tempo,
duvido que eles não tenham cometido
alguma loucura quando tinha a nossa
idade.
— Se fizeram, vão negar até a
morte — ela responde, rindo. — Só que
há muitas coisas em jogo para nós dois,
acho melhor não arriscarmos tanto,
Romeu. Eu não quero ficar longe de
você.
— Nem brinca com isso, patricinha.
— Seguro sua mão, puxando-a para o
sofá, ela se deita sobre meu peito. — Na
próxima vez que formos para a minha
mãe, vou dar um jeito para que vá com a
gente, não sou obrigado a passar o fim
de semana longe de você.
— Seu pai tem um ataque do
coração, Romeu.
— Papai é exagerado,
patricinha. — Acaricio seus cabelos.
— Mas você também não facilita
para ele, né? — Lety cutuca a minha
costela. — O Ariel tem certeza de que
você é um bad boy malvado e eu quase
acreditei nisso quando nos conhecemos
na fazenda dos seus avós.
— Desculpe por aquilo. — Nos
fitamos e sinto uma onda enorme de
coisas boas me invadir. — Eu só queria
te manter longe, mas deu muito errado.
Ficamos em silêncio apenas
ouvindo o som das nossas respirações,
penso nos meus sentimentos por essa
garota e acho que posso afirmar com
todas as letras que a amo. Deslizo as
mãos por suas costas em um carinho que
a faz abrir um sorriso que quase para o
meu mundo.
— Você já arrumou suas coisas
para viagem? — pergunta, depois de
alguns longos minutos.
— Ainda não, só vou levar uma
mochila — digo, soltando um suspiro.
Não estou empolgado, até
porque prometi à Letícia que vou acertar
minimamente as coisas com a minha mãe
e, na real, não sei como vou fazer isso.
Meu celular vibra no bolso e pego o
aparelho para ver do que se trata, é uma
mensagem de Ivan.
“Estou te enviando a
localização da festa, para o caso de
você decidir ir.” Faço uma careta
desgostosa.
— O que aconteceu? — indaga,
preocupada.
— Nada, só o Ivan me mandando
a localização da festa do Leon, mas eu
já disse que não vou — afirmo, sentindo
uma pontada de culpa.
— Por que você parece
preocupado com isso? — ela diz,
apoiando o queixo no meu peito para me
olhar.
— O Leon é inconsequente,
patricinha — revelo, passando as mãos
pelos meus cabelos. — O Ivan acha que
ele vai aprontar alguma e eu também.
— E o que isso tem a ver com
você? — Letícia quer saber.
— Ele me escuta ou pelo menos
finge que sim e Ivan acredita que se eu
estiver lá, talvez o garoto desista de
fazer o que pretende — conto, apesar de
não acreditar nisso.
— Está cogitando em ir? — Ela
arqueia a sobrancelha, curiosa. —
Lembra que o seu pai falou para ficar
longe desse cara, Romeu.
— Eu sei, Lety. — Enrolo uma
mecha do seu cabelo nas minhas mãos.
— Tem uma parte minha dizendo para
não ir, mas a outra quer proteger aquele
idiota de cometer outra loucura para
chamar atenção dos pais.
— Isso não é responsabilidade
sua, mô. — Ela faz círculos com as
pontas dos dedos no meu peito.
— Se eu for, quero que vá
comigo, patricinha — revelo, fitando-a.
— Acha que conseguimos despistar o
meu pai e sua tia, amanhã?
— Isso não é certo, Romeu. —
Lety tenta me convencer. — Breno me
contou sobre essa festa e eu até disse
que ia pensar, mas sei o que seu pai acha
dessa amizade. Eu posso ir com você,
desde que seja a primeira e última vez
que façamos isso. Não gosto de mentir
para quem se importa comigo,
— Prometo que vai ser a última
vez que me envolvo nisto, tudo bem? —
Acaricio o seu rosto, dando um sorriso
sem graça.
Estou com um mau
pressentimento, espero que não me
arrependa dessa decisão amanhã.
Letícia
Leon é um playboy que tem tudo
que quer aos seus pés, constato após
poucos minutos da nossa chegada. A
casa em um bairro nobre da cidade está
cheia de gente, a maioria nunca vi na
vida, mas tudo aqui é refinado desde os
móveis até as comidas e bebidas.
Romeu disse que foi alugada para a
festa, mas não entendo como um garoto
de dezoito anos consegue algo assim, a
menos que seja filho de alguém
importante.
Aperto a mão do meu namorado,
sentindo um incômodo quando ele me
apresenta para algumas pessoas que me
olham de cima a baixo, como se eu fosse
uma doença contagiosa. Toda vez que
alguma garota passa por nós me
encarando com desdém, tenho certeza de
que não devíamos estar aqui. Envio uma
mensagem a Breno, perguntando se ele
realmente virá, mas não obtenho
resposta.
— Esse é o tipo de lugar que
você frequenta com os seus amigos? —
questiono, o puxando para um canto
afastado. — Seu pai sabe disso?
— Não é sempre assim,
geralmente eram apenas festas normais,
patricinha. — Ele tenta me tranquilizar.
— Isso aqui é só quando o Leon quer
chamar atenção dos pais, que sempre
ressurgem das cinzas do buraco onde se
enfiam o resto do tempo.
— Eu quero ir embora, Romeu.
— Cruzo os braços, sentindo alguns
olhares sobre nós.
— Só me deixa achar o Leon e
prometo que essa palhaçada vai acabar.
— Apesar das palavras soarem calmas,
a expressão do seu rosto me diz que ele
está puto com o amigo.
— Ligue logo para os pais dele,
se é só disso que precisam para
aparecerem — digo, quando ele me puxa
em direção aos fundos da casa.
— Não posso fazer isso —
afirma, quando entramos na área da
piscina, que está cheia de garotas bem
mais jovens que eu, de biquíni e com
latas de cerveja na mão.
— Romeuzinhoooo. — Uma voz
vinda da piscina nos faz parar. — Eu
sabia que você ia aparecer.
Localizo o rapaz loiro com
cabelos na altura do ombro ao lado de
duas meninas dentro da água, ele tem
tatuagens cobrindo o peito e os braços
que lhe dão um ar sombrio.
— Leon, precisamos conversar.
— Romeu não solta a minha mão quando
fala firme com o amigo.
— Ah, não, você vem até aqui.
— Ele gesticula, o chamando e parece
finalmente se dar conta da minha
presença, exibindo um sorriso sinistro.
— Você trouxe a patricinha gostosa?
— Está bêbado, por favor, saia
da água. — O tom do meu namorado é
falsamente controlado.
Depois de muita insistência, o
rapaz sai, vestindo apenas uma sunga
vermelha e quando chega perto de nós se
sacode espirrando água para todo lado,
seu olhar de lascívia para o meu corpo
faz com que Romeu me posicione atrás
dele.
— Ela tem um rabo fenomenal
— Leon diz, sem tirar os olhos de mim.
— Agora entendo por que tem me
ignorado todo esse tempo.
— Cala a boca, Leon! — ele diz,
entredentes. — Ou arrebento a sua cara.
— Ah, meu pitbulzinho raivoso
está de volta. — O rapaz faz menção de
abraçar o garoto ao meu lado, mas ele se
afasta. — Que isso, Romeuzinho?
Somos parças para sempre, lembra?
— Já pode parar com essa
palhaçada, cara! — Romeu o segura
pelos ombros sacudindo-o. — Que
merda, você pensa que está fazendo?
Está chapado com a casa cheia de
menores, tem bebida alcoólica em cada
canto e onde achou essa gente esquisita?
— QUEM É VOCÊ PARA ME
DIZER O QUE DEVO OU NÃO
FAZER? — Leon grita, apontando o
dedo no peito do meu namorado,
chamando atenção das pessoas ao redor.
— VOCÊ DEIXOU OS SEUS AMIGOS
PARA FICAR COM ESSA PIRANHA
QUE CONHECEU ONTEM. ELA AO
MENOS SABE TREPAR DIREITO?
No momento seguinte, os dois
estão rolando no chão, trocando socos e
ofensas, começo a gritar desesperada
para que alguém faça alguma coisa, mas
tudo que consigo é que formem uma
rodinha e saquem os aparelhos celulares
para gravar.
— Romeu, para, por favor! —
Tento puxá-lo, mas acabo ganhando um
soco, caindo por cima de uma mesinha
de madeira e grito de dor.
Alguém me ajuda a levantar,
sinto algo quente e pegajoso escorrendo
pelo me rosto, mas ignoro, focada em
tentar tirar Romeu dessa confusão. Dois
braços me seguram pela cintura,
impedindo-me que continue tentando
separar a briga, esperneio, grito, choro,
mas o aperto não cede.
— Lety, por favor, se acalma. —
Reconheço a voz de Breno atrás de mim.
— Mas eles vão se matar —
choramingo, e só então noto um outro
rapaz chamando atenção dos
espectadores para separá-los.
— Seus urubus desgraçados, vão
deixar esses dois idiotas se matarem? —
o cara diz, erguendo os braços. —
Romeu e Leon, se não pararem agora
com isso, serei obrigado a entrar nessa
briga também e vocês sabem o quanto eu
odeio isso.
Alguns caras conseguem separá-
los e meu amigo me abraça apertado,
passando as mãos nas minhas costas,
enquanto choro descontroladamente, a
discussão recomeça logo atrás de mim.
— Nunca mais coloque o nome
de Letícia na sua boca — Romeu diz,
irado, apontando o dedo na cara de
Leon.
Ele mal consegue disfarçar o
horror quando me olha, a culpa
resvalando por cada parte de seu corpo.
Filetes de sangue descem do seu
supercílio, o lábio inferior está
machucado, o olho inchado e sinto
minhas pernas falharem.
— Ah, mas eu queria saber se
esse rabo dela é tão bom quando parece,
Romeuzinho — o outro diz, em um tom
nojento. — A gente sempre dividiu tudo,
por que isso agora?
— CALA A PORRA DA BOCA!
— ele grita, como um animal raivoso.
— Eu juro que te mato se continuar
falando da minha namorada desse jeito!
Leon gargalha, limpando o
sangue do seu rosto.
— É tão moralista por baixo
dessa fachada de delinquente juvenil,
mas no fim não passa de um frouxo, que
tem medo do papai.
Vejo meu namorado tentar se
soltar das mãos que o seguram, mas não
consegue.
— Você é um filho da puta
miserável, que não sabe valorizar o que
tem, Leon — cospe as palavras. — Quer
saber? Vá se foder, continue se
afundando nessa bosta, mas não conte
comigo. Esqueça que alguma vez nessa
sua vida miserável pôde contar com a
minha ajuda para alguma coisa.
Ele olha para o rapaz que os
separou e o reconheço das fotos nas
redes sociais, é Ivan.
— Recomendo que faça o
mesmo, Ivan, se não quiser afundar na
merda junto com esse imbecil, é claro!
— Romeu tenta se livrar do aperto outra
vez. — Me solta, porra!
Os rapazes se entreolham, por
fim, o largam, ele vem até mim e o
abraço, chorando. Romeu se afasta
tocando meu rosto, limpando o sangue
que não sei de onde vem, observando
tudo à procura de mais ferimentos.
— Você está bem? — pergunta,
angustiado, segurando o meu rosto entre
as mãos. — Por favor, me diga que está
bem...
Apenas aceno afirmativamente
para tranquilizá-lo, mas tudo está um
caos dentro de mim e mal consigo
respirar direito.
— Vamos sair daqui — Breno
diz ao nosso lado, colocando a mão em
minhas costas. — Estou com o carro da
minha mãe, levo vocês para casa!
Começamos a andar na direção
da saída, então ouvimos o som das
sirenes e uma reação em cadeia
acontece ao notarem o som, primeiro as
pessoas começam gritar, depois correm.
Breno e Romeu não soltam a minha mão,
mesmo quando tudo se transforma em um
verdadeiro pandemônio.

Ariel
Ainda não consigo acreditar que
Romeu precisou de menos de uma
semana para quebrar a confiança que
depositei nele. Olho o seu rosto
arrebentado através do retrovisor,
tentando entender por que continua
sendo esse adolescente rebelde, quando
eu pensei que as coisas estavam
mudando.
Recebi uma ligação no início da
madrugada, informando que meu filho e
sua namorada foram parar na delegacia,
depois de uma batida da polícia em uma
festa clandestina cheia de menores,
bebidas alcoólicas e... drogas. É difícil
para um pai assimilar isso.
Depois de eles ouvirem um
sermão do delegado, passamos no
pronto-socorro para tratar os ferimentos
de ambos, aparentemente, nada grave.
Só que ver Letícia tão vulnerável me
lembra de quando ela esteve na minha
casa a primeira vez, ela parece um
bichinho acuado agarrada ao braço de
Romeu, que tem um olhar carregado de
culpa.
A garota tem um hematoma
horroroso no rosto, os olhos inchados
pelo choro, o sangue seco em sua blusa
branca, denunciam o ferimento na
costela que precisou ser costurado,
aperto as mãos no volante, tentando
aplacar a raiva que estou sentindo.
Meu filho tem um rasgo no
supercílio, que também precisou ser
suturado, o lábio cortado, o olho direito
está roxo e sabe-se lá Deus onde mais
está ferido. A impressão que tenho é
que ele entrou em uma briga com um
touro bravo, mas enquanto esperávamos
a enfermeira fazer os curativos nele,
Letícia contou que ele fez isso para
defendê-la de Leon, pedi tanto para esse
garoto idiota se afastar e olha só o
resultado. Em vinte e quatro horas,
Romeu, quase zerou a lista de coisas que
pedi para não fazer, tudo bem que não
esperávamos que dois adolescentes com
hormônios à flor da pele não transassem,
já tivemos a idade deles e sabemos
perfeitamente como são essas coisas.
Mas a Ana Júlia tem nove anos, imagina
se ela pega esses dois em uma situação
comprometedora, eu não quero nem
pensar nisso.
Fiz vista grossa para a
embalagem de camisinha que encontrei
no terraço, porque a minha noiva
prometeu que conversaria com a
sobrinha. Letícia é uma boa garota, mas
todo mundo faz bobagem quando está
apaixonado e o que aconteceu aqui está
tão óbvio que me dá vergonha de ter
confiado em Romeu.
Espero uma justificativa ou
qualquer desculpa esfarrapada, mas não
vem nenhuma. São quatro da manhã
quando estaciono o carro na garagem do
prédio, descemos em silêncio e subimos
as escadas até o nosso andar.
— Ah, meu Deus! Até que enfim
vocês chegaram. — Isis abraça a
sobrinha assim que abrimos a porta, sem
esconder o pavor ao ver o estado da
garota. — Você está bem, Lety?
Machucou em mais algum lugar? O que
estavam fazendo nessa festa a essa hora?
— Está tudo bem, tia — a garota
responde, exausta, quando minha noiva a
leva para o nosso quarto.
Romeu se senta no sofá como se
esperasse pela nossa conversa, balanço
a cabeça irritado e meu celular começa
a tocar, atendo porque preciso
tranquilizar a pessoa do outro lado, mas
faço um sinal para que meu filho me
espere.
— Já estamos em casa, Carlinha
— informo, indo até o outro cômodo.
— Como ele está? — Sua voz
parece aflita. — Como foi no hospital?
Ele se machucou muito?
— O rosto dele está quase todo
arrebentado, ao menos agora os
ferimentos estão limpos, não sei se
quero mesmo saber onde mais ele se
machucou. Mas a garota... Ela... Ela...
— Massageio a têmpora sem conseguir
continuar, a culpa me corroendo por
dentro. — Ele colocou a Letícia em
perigo! Estou cansado, Carla, faço o
impossível por esse garoto, hoje foi
demais para mim.
— Eu tenho minha parcela de
culpa nisso também, Ariel — ela diz,
fungando. — Sou uma péssima, mãe.
— Não se culpe sozinha, nós
dois erramos muito com ele — digo,
balançando a cabeça, me sentindo um
pai horrível.
Há um momento de silêncio,
porque nós dois sabemos que dizemos a
verdade.
— Ele vai ficar bem, ok?! Se
acalme, Carla, daqui a pouco as
crianças vão estar aí com você. — Vou
até a cozinha, pegando uma jarra de água
e colocando no copo. — O Romeu não
volta para cá depois do fim de semana.
Não posso permitir que esse garoto faça
merda com a própria via e ainda leve
Letícia junto. Ela acabou de ficar livre
de um problemão com o pai e só tem a
Isis, não é justo.
— Tem certeza de que quer
fazer isso, Ariel? — Carla parece não
acreditar na decisão que tomei no
momento que descobri onde eles
estavam.
— Absoluta, preciso desligar —
digo, colocando a jarra da geladeira. —
Quando os colocar no avião, te mando
mensagem.
Desligo o celular, apoio as duas
mãos na bancada da pia, respirando
profundamente, preciso deixar o meu
lado pai bonzinho, descolado e
compreensivo, para agir como a
situação pede agora. Bebo a água e
volto para sala, com a missão mais
difícil que eu já tive depois que me
tornei responsável por duas crianças.
— Vai me mandar para casa da
mamãe? — Romeu pergunta, assim que
me sento ao seu lado.
— Você sabia que isso
aconteceria, cedo ou tarde, filho. — Me
arrumo no sofá. — Ou achou que eu ia
continuar passando a mão na sua cabeça,
a cada merda que você fizesse? Levou a
Letícia para aquela festa e olha só como
ela está agora.
Passo as duas mãos pelo rosto,
tentando me acalmar.
— Mas, pai, eu só...
— Não quero ouvir explicações,
só precisava que me escutasse uma vez
na vida, Romeu! — Ele encara os
sapatos. — Quantas vezes eu te falei
para se afastar desse garoto, que é esse
tipo de amizade que te leva para o
buraco?
— Muitas — responde, cheio de
culpa, mas não vou aliviar.
— Sei que parece radical
demais — o vejo revirar os olhos —,
mas um dia vai agradecer por ter feito
isso, a Lety chegou aqui com a cabeça
bagunçada, tendo que assimilar todos os
problemas pessoais e acabou se
envolvendo com você. O mínimo que
deveria fazer era não causar mais
problemas a ela. Não posso permitir que
faça isso, que brinque com os
sentimentos ou que a carregue para esse
mundinho problemático em que você
vive.
— Não fiz isso... — Ele enfia os
dedos nos cabelos nervosamente. —
Será que é tão difícil entender isso, pai?
Foi ela quem me salvou.
Balanço a cabeça ao ouvir seus
argumentos que só provam o quanto essa
relação começou pelos motivos errados.
— Filho, em um relacionamento
ninguém tem que salvar ninguém. —
Coço a testa, tentando passar a ideia da
forma mais objetiva possível. — Uma
relação amorosa deve ser baseada em
companheirismo. Nem você nem a
Letícia estão em condições de salvar um
ao outro, porque estão cheios de
questões internas que foram mal
resolvidas.
Paro por um momento e o
encaro, ele precisa entender os motivos
para que eu tenha tomado uma decisão
tão extrema.
— Entenda que está indo para a
casa da sua mãe, porque antes de
qualquer coisa você e a Letícia
precisam compreender que um não
precisa “salvar” o outro de nada —
explico, sob seu olhar desolado.
— Eu gosto dela de verdade,
pai... Antes eu pensava que o amor
machucava as pessoas, mas depois dela,
percebi que não, que amar pode ser
bom. — Sua voz soa trêmula ao revelar
algo tão íntimo.
Embora esteja muito tentado a
acreditar, as evidências de que esse
garoto não entende o significado dessa
palavra estão por toda parte.
— Você ainda não conhece o
amor direito, meu filho. — O encaro,
mas ele desvia o olhar. — Letícia é uma
garota bonita, já tive a sua idade e sei
como essas coisas funcionam. Os
hormônios ficam à flor da pele e a gente
confunde amor com desejo, com paixão.
Nenhum dos dois está preparado para
um sentimento tão profundo quanto esse.
— O senhor não pode dizer isso
sem saber o que sentimos de verdade —
retruca, passando a ponta do dedo no
curativo do supercílio.
— Então me explique, Romeu.
— Coloco os pés em cima da mesa de
centro. — Quando começaram a “ficar”,
como vocês dizem, ela não estava
fragilizada, carente de afeto e de
carinho, depois de ter passado coisa
horríveis nas mãos daquele pai imbecil?
Como imaginei, ele não
responde.
— Esse lance entre vocês não
tem como dar certo, são de mundos
diferentes e essa paixonite vai passar.
— O garoto parece não assimilar tudo
que estou dizendo. —Olha para você,
Romeu. Um adolescente revoltado com
o mundo, com raiva da sua mãe, não
consegue seguir regras simples. Veja
para o que arrastou ela hoje, acha que a
Lety merece isso, depois de todas as
coisas ruins que já viveu?
— Não queria que as coisas
fossem assim — diz, num fio de voz,
passando as duas mãos pelo rosto como
se estivesse cansado de tudo.
— Isso não impediu que
acontecesse. Você não fez nada para
impedir — digo, tocando seu joelho. —
Sei que tem um coração enorme
escondido no meio dessa revolta toda.
Apesar de eu ter acreditado por um
momento que tinha descongelado, não
foi isso que aconteceu.
— A gente conversou, pai — ele
diz, tentando justificar alguma coisa. —
Você nos deu permissão para continuar
namorando.
— Porque entendi errado o que
estava rolando entre vocês. Acabou de
me confirmar isso ao dizer que ela o
salvou. Agora já não posso deixar que
sigam com isso e sei que vão acabar se
machucando em algum momento. — A
verdade é que nunca sequer cogitei que
Romeu fosse para longe de mim. —
Quando imaginei morar junto com Isis,
não fazia a menor ideia de que você
estava com a sobrinha dela e depois
achei que realmente havia mudado, só
que agora descubro que tudo não passa
de uma farsa.
Não consigo esconder a
decepção no meu rosto e Romeu parece
magoado comigo.
— Sinto muito que pense isso de
mim, pai.
— Quer que eu pense o quê?
Ontem vocês transaram no terraço. — O
garoto fica pálido ao escutar a
revelação. — Imagina se a sua irmã
chega lá em um momento desses, você
foi irresponsável de inúmeras formas
nessas últimas vinte e quatro horas,
Romeu, e estou exausto de passar a mão
na sua cabeça.
— Nós tivemos cuidado, pai —
garante, mas a essa altura já não me
importo mais.
— Imagino que sim, porque
encontrei a embalagem da camisinha
jogada no chão, isso nem vem ao caso
mais. — Coço a cabeça, impaciente. —
Você a colocou em perigo hoje. Olha só
o estado dela, Romeu! Que garantias
tenho de que não vai continuar fazendo
isso? Se eu não tomar uma atitude
drástica agora, talvez as coisas piorem,
não quero correr esse risco. Vá arrumar
as suas coisas, essa viagem é só de ida,
até que eu tenha certeza de que posso
confiar no meu filho outra vez.
— O senhor está exagerando,
por favor, isso não vai mais acontecer.
— Agora ele suplica, com os olhos
cheios de lágrimas. — Me deixa ficar,
sabe o quanto me machuca ter que morar
com a minha mãe, depois de tudo que
passamos — implora, chateado, e eu
entendo o seu desespero, só que não
pretendo voltar atrás. Aperto a ponte do
nariz.
— Lamento, mas você irá viver
com a Carla por um tempo — afirmo
categoricamente, como se o meu coração
não estivesse em frangalhos após essa
decisão. — Eu tentei te ajudar de
verdade, nem ao psicólogo está indo
mais...
— Mas, pai, eu não preciso —
ele argumenta.
— Não é você quem decide.
Parou de ir por conta própria, sua mãe
pagando as sessões todo mês e você
mentindo para gente, Romeu. —
Descobri isso esta semana, depois que
ligaram do consultório querendo saber o
que havia acontecido para o meu filho
faltar às últimas cinco sessões. — Não
pode sair decidindo as coisas sem ao
menos me comunicar.
— Desculpe — o garoto diz,
cabisbaixo.
— Agora não há mais nada o que
fazer em relação a isso. — Dou de
ombros, continuando em um tom que o
deixa desconfortável: — Vai esquecer
essa paixonite pela Letícia e deixar que
ela seja feliz como merece, está me
ouvindo?
— Nem faz ideia do que está me
pedindo — resmunga, chateado, mas ao
contrário do que pensa, estou fazendo
isso para protegê-lo de se sentir culpado
quando acabar com os sonhos dela.
— Arrume suas coisas —
ordeno, sentindo um nó em minha
garganta quando o garoto se levanta. —
Só mais um pedido... — digo e ele
assente. — Prometa que vai superar
isso, que vai convencer a Lety de que
não existe qualquer possibilidade de
vocês ficarem juntos em um futuro
próximo.
Romeu balança a cabeça e fecha
os olhos, como se não acreditasse no
que acabou de ouvir.
— É a coisa certa a se fazer, vai
ser melhor para todos nós. Não quero
ver nenhum dos dois sofrendo, ela já
passou por coisas demais, meu filho, e
não acho que seja certo vocês
namorarem nessas circunstâncias.
Promete que vai esquecê-la?
— Não me peça o impossível,
pai. — Sua voz está carregada de rancor
e culpa. — Já está nos fazendo sofrer.
Sabe, não acredito que logo o senhor,
está me pedindo para fazer isso. Eu a
amo.
Ele parece desolado, já me senti
assim uma vez, mas as circunstâncias
eram totalmente diferentes e apesar das
decisões erradas que tomei, eu não era
um perigo para a garota que eu amava.
— Se realmente ama essa garota,
prometa que vai se afastar e não vai dar
esperanças a ela. — Nos encaramos e
quase posso me enxergar nele. — É o
melhor a fazer nesse momento.
Aguardo um novo argumento,
mas ele me surpreende soltando a
respiração devagar, falando as palavras
que eu queria ouvir:
— Prometo! — Ele me dá as
costas e some pelo corredor, deixando-
me com uma sensação pesada de culpa.
Romeu
“Por que você não responde a
porra das mensagens?” Ouço mais uma
vez o áudio de Lety com o meu coração
doendo.
Faz uma semana que arrumei as
minhas coisas e segui a ordem do papai,
sem me despedir, sem olhar para trás e
sem dizer à Letícia que ela é tudo que
importa para mim nesse momento.
Releio todo o histórico de
mensagens da semana, começaram no
sábado com um “Está tudo bem, mô?
Não consegui acordar para me despedir
de vocês”; passando por um “Sei que
está chateado com tudo que aconteceu,
mas fica bem, viu?!”; no domingo, para
um impaciente “Seu pai disse que você
decidiu ficar na sua mãe, por que não me
contou nada, Romeu?”; na segunda as
que se seguiram foram adquirindo um
tom magoado, conforme os dias
passaram.
Para cumprir a promessa
ridícula que fiz ao meu pai, preciso
ignorar a vontade de responder cada
uma de suas perguntas ou ligar para ela
e dizer que não é verdade que escolhi
ficar aqui, só estou fazendo isso porque
fui um completo idiota a minha
adolescência inteira e agora preciso
provar que realmente a mereço, mas nem
sei por onde começar a fazer isso.
Não consigo esquecer a
sensação de culpa que me invadiu
quando me dei conta de que ela estava
machucada por minha causa, que se não
tivéssemos ido até lá, Lety estaria bem,
nunca vou me perdoar por tê-la
colocado em perigo.
Quando digo que não me
despedi, isso não envolve o momento
antes de irmos para o aeroporto, que
fiquei olhando-a dormir, sentindo que o
meu coração estava sendo esmagado
quando deslizei os dedos pelo hematoma
em seu rosto, sentindo a culpa me
consumir. Ninguém precisa saber disso.
Letícia tem problemas demais,
um pai tóxico e mesmo que isso parta o
seu coração — e o meu — agora, sei
que a última coisa que ela precisa é de
um namorado inconsequente com um
passado mal resolvido.
— Romeu, você precisa comer,
sair um pouco e tomar um ar. — Ouço a
voz de mamãe do outro lado da porta do
quarto acompanhada de uma batida leve.
— Não pode ficar desse jeito para
sempre, meu filho!
A última coisa que quero hoje é
conversar com ela, mas infelizmente a
ilustre Carla Cardoso não está disposta
a facilitar a minha vida e falta muito
pouco para que me vença pelo cansaço.
Coloco os fones nos ouvidos, aumento o
volume para que a faixa de Inverno
abafe qualquer ruido externo.
Passo a manhã inteira nesse
limbo como tenho feito desde que
cheguei aqui, sinto falta da minha casa,
das pessoas que moram nela, das coisas
que deixei na pressa... Quanto a
faculdade, ao que parece, meus pais têm
tudo resolvido, sem precisarem da
minha opinião, isso me irrita para
cacete, inclusive, foi o motivo para uma
discussão anteontem.
Saio do quarto no meio da tarde,
vou até a cozinha, roubo uma fatia de
torta de frango, outra de bolo de
chocolate na geladeira e me esgueiro até
a sala de tevê para procurar alguma
coisa que me distraia dessa merda que
estou vivendo, entretanto, acabo
cochilando do meio do filme que
escolhi.
Sonhei que voltava para casa e
Letícia não estava mais lá, eu a tinha
perdido para sempre. Acordei assustado
com uma sensação horrível, como se o
meu coração tivesse sido arrancado do
peito, sento-me no sofá e dou de cara
com mamãe sentada na poltrona de
frente para mim.
Não há um fio de cabelo fora do
lugar, ela é a imagem da perfeição e não
lembra em nada aquela mãe louca que
corria o dia inteiro para lá e para cá em
nosso apartamento.
— Pelo menos comeu alguma
coisa. — Ela indica o prato no braço do
sofá, puxando a poltrona mais para perto
de mim. — Amor não enche barriga,
Romeu. O que acha que está fazendo? Eu
te dei espaço, juro que estou tentando
ser compreensiva com tudo que passou
nos últimos dias, mas já não sei mais o
que fazer para te ajudar.
— É só me mandar de volta para
casa. — Inclino para trás, até bater a
cabeça no sofá, apertando os olhos com
o indicador e o polegar.
— Aqui é a sua casa agora e é
bom se acostumar com isso. — Seu tom
é impaciente.
— Não, a minha casa é onde o
meu pai e a Aninha estão. — Deixo que
a raiva fale por mim. — Você nos
deixou e já é tarde, não adianta querer
ser a mãe perfeita.
Ela engole em seco, endireitando
a coluna e me encarando.
— Olha, Romeu, sei que não
gosta de estar aqui e que tem todos os
motivos do universo para me odiar, mas
sou sua mãe e exijo que me respeite
como tal. — Faz muito tempo que a ouvi
falar comigo dessa forma. — Vou te
dizer como as coisas vão funcionar a
partir de agora, você precisa entender
que está na hora de deixar o nosso
passado para trás e seguir em frente.
— É muito fácil dizer isso... —
inicio meu argumento, arrumando a
postura.
— Eu ainda não terminei — a
mulher me interrompe, antes que conclua
o pensamento. — Já tivemos essa
conversa meses atrás e expliquei os
meus motivos para o que fiz, sabe o
quanto me arrependo da forma como
conduzi tudo. Estou cansada de ouvir
suas grosserias e ficar calada me
culpando, se vamos morar juntos, a
partir de agora é bom que comecemos a
nos tratar de forma civilizada.
— Ok! — Levanto as mãos. —
Existe alguma alternativa?
— Não, não existe. — Ela apoia
os cotovelos nos joelhos e me encara
séria demais. — É meu filho e por mais
que ache que sou um monstro, eu te amo
e só quero uma chance para provar que
posso ser uma mãe melhor, mais
presente na sua vida. Quem sabe essa
não seja uma oportunidade que o
universo está nos dando para resolver as
nossas diferenças?!
— Esse universo é mesmo um
filho da puta! — Bufo, irritado, jogando
algumas almofadas no chão.
— Olha a boca! — repreende,
me fitando como se calculasse suas
próximas palavras. — Na adolescência,
os problemas parecem maiores do que
realmente são, os amores juvenis vêm e
vão, Romeu, e isso acontece para que
consigamos lidar com as dificuldades da
vida adulta e quanto mais cedo você
entender isso, menos bobagens vai
cometer.
— Talvez eu tenha herdado de
você esse talento para fazer besteira —
digo, puxando os fios do meu topete.
— Pode ser que sim. — Ela dá
um sorriso sem graça.
— Não acho que o que sinto por
Letícia é passageiro — digo, cansado de
ouvir os adultos dizerem a mesma coisa
o tempo todo.
Mamãe massageia a têmpora,
fecha os olhos por um momento e
quando os abre posso ver um pouco de
compreensão neles.
— Aquela garota é incrível, sei
que sim — diz, segurando a minha mão.
— Conversei com ela por poucos
momentos e puder entender o que viu
nela, mas o seu pai está certo. Ao
menos, por enquanto, vocês precisam
organizar a bagunça aqui dentro, Romeu.
— Ela toca minha testa com o indicador.
— Sei o quanto isso pode ser difícil,
mas há momentos em que precisamos
nos afastar das pessoas que amamos ou
acabamos as machucando ainda mais.
Entende?
Seus olhos brilham quando
encontram os meus e entendo que está
falando sobre si mesma.
— Foi isso que você fez? —
pergunto, curioso. — Se afastou para
não nos machucar?
— A forma que fiz foi errada,
filho. — Ela passa a mão direita pelos
meus cabelos.
— Acha que foi certo o que o
papai pediu para mim? — Ergo a
sobrancelha. — Ele pediu para que eu
quebrasse o coração da garota que eu
amo e tudo bem para vocês?
— Não posso julgar o seu pai,
eu quebrei o coração de todos vocês. —
Há muita culpa em seu rosto. — Mas
acredito que o Ariel fez isso para
protegê-los, se ele está errado ou não,
só o tempo vai dizer. — Ela tem um
olhar tão doce, que quebra um pouco a
minha resistência. — Só quero que saiba
que estou aqui para te ajudar a passar
por isso, filho.
— E onde você estava antes? —
As palavras não soam como planejei,
saem mais como uma cobrança de um
garotinho carente do amor de sua mãe.
— Me perdoa? — Ela acaricia
meu rosto timidamente. — Se vamos
morar juntos agora, acho que podemos
tentar fazer isso dar certo. Não estou
pedindo para esquecer, só que me dê
uma chance para fazer diferente.
Fito-a por um longo momento e
uma lembrança da conversa com Letícia
na fazenda da vovó me invade com tudo.
“Olha para mim, eu daria
qualquer coisa para que, ao invés de
ter morrido, minha mãe tivesse apenas
feito algumas escolhas equivocadas e
ainda tivesse tempo de perdoá-la por
isso.”
Eu passei tempo demais me
alimentando dessa raiva descabida. Será
que fazia mesmo sentido esse ódio todo?
“Não quero que se sinta assim,
quando as pessoas que te amam estão
tentando se aproximar, ao contrário do
que acontece comigo.”
Era bem verdade que mamãe
estava tentado, mesmo que eu me
recusasse a enxergar. Acabo rindo da
recordação, é inegável que mesmo com
um país inteiro nos separando, Letícia
ainda consegue me fazer bem.
Outra parte do nosso papo vem à
mente e balanço a cabeça, tentando
espantá-la, mas é meio impossível.
“— Pare de desviar do assunto
e prometa que não vai mais ser um
babaca com sua mãe.
— Tudo bem.
— Tudo bem o que, Romeu? —
Ela ergue a sobrancelha.
— Vou tentar agir de forma
mais decente com a minha mãe.”
Ah, droga! Tenho feito muitas
promessas complicadas ultimamente. A
mulher pigarreia trazendo-me de volta à
realidade. Preciso começar por algum
lugar e quem sabe dar uma chance à
mamãe não seja um bom primeiro
passo?
— E então, acha que podemos
fazer isso? — Ela ergue a sobrancelha.
— Tudo bem, podemos — digo,
por fim, e mamãe se joga
desajeitadamente em meus braços. —
Vamos com calma...
— Desculpe — diz, tentando
mascarar a felicidade em seu rosto.
Não estou muito convencido de
que isso vai dar certo, mas não custa
nada tentar.

Em pouco mais de três meses, as


coisas mudaram razoavelmente, embora
ainda sinta a culpa me corroendo todos
os dias e um enorme buraco no meu
peito causado pela ausência de Letícia.
Ser filho de uma estrela da
música tem lá suas vantagens, com o seu
poder de persuasão mamãe conseguiu
que eu fizesse, durante as férias, as
provas que perdi do meu curso, além de
conseguir transferi-lo para uma boa
universidade na capital. Viver com ela
não é tão complicado como imaginei.
Morar em uma mansão em um
condomínio de luxo, ter empregados que
fazem tudo e não precisar me preocupar
com absolutamente nada, como na minha
casa, pode ter me deixado um pouco
mal-acostumado.
Por algum motivo, papai
conseguiu convencer a ex-mulher de que
eu precisava de um bom psicólogo para
lidar com todas as mudanças da minha
vida. Provavelmente ele tenha razão e
desta vez não tenho como fugir, porque
mamãe vai me levar e fica aguardando
até o final, para se certificar de que
estou realmente gastando o seu dinheiro.
O que eles não sabem é que tudo que
faço durante as últimas quatro semanas é
ir às sessões e ficar cochilando por uma
hora inteira deitado no divã, enquanto a
senhora idosa me encara, anotando
qualquer coisa em sua prancheta.
Ao menos, comecei a entender
um pouco a minha mãe, a razão para
nunca questionar tanto os meus pedidos
inusitados, como o presente que dei a
Letícia em seu aniversário de 17 anos ou
a grana extra da mesada. Olhando para
trás, percebo que faz muitas coisas por
mim, como uma forma de se livrar da
culpa que sente por ter ido embora sem
olhar para trás, deixando que sua
ambição desmedida pelo sucesso ditasse
as regras.
Passo a maior parte do tempo
sozinho em casa, é estranho não ter a
Aninha aqui para fazer barulho e
implicar comigo. Sinto muita falta de
casa, mesmo que papai tenha me
magoado, não consigo esquecer que ele
esteve ao meu lado nos piores momentos
da minha vida, como disse a mamãe
assim que cheguei aqui: o meu lar é em
qualquer lugar onde o papai esteja com
Aninha.
Desde que ele me deixou no
aeroporto, nos falamos muito pouco, a
última vez foi quando ligou para dar os
parabéns pelos meus dezoito anos, há
duas semanas, às vezes ele manda
mensagens que respondo de forma seca
ou ficam esquecidas. Apesar de ter
recusado comemorar o meu aniversário,
acabei sendo convencido a jantar em um
restaurante chique com mamãe e Pedro,
seu namorado.
Ana Júlia vem visitar nossa mãe
ao menos uma vez por mês e é assim que
fico sabendo como estão as coisas por
lá, essa garotinha fofoqueira sempre
garante que eu saiba de absolutamente
tudo que acontece.
— O papai disse para tia Isis
que se arrependeu de mandar você para
cá — Ana Júlia confidencia, quando nós
jogamos no sofá e compartilhamos uma
caixa de bombom. — Ele tem andado
muito triste, acho até que sente saudade
das broncas que te dava, Romeu.
— De onde tirou isso?
— Eu ouvi uma conversa, sabe
— continua, enquanto tiro a embalagem
de um bombom e lhe entrego.
É um jogo bem sujo, tenho
consciência, mas é o único modo de
saber sobre o que deixei para trás sem
dar o braço a torcer.
— “Fui radical demais, nunca
agi assim com meus filhos”, acho que foi
mais ou menos isso que ele disse. Sei lá,
o papai não é do tipo que gosta de ficar
longe da gente, ele não é como a mamãe
— finaliza baixinho, deixando-me
pensativo.
Papai realmente não é essa
pessoa, eu acredito que tenha feito tudo
na melhor das intenções, mesmo que
tenha causado alguns estragos no
processo. Ligo o videogame e
começamos a jogar, por um tempo não
conversamos nada em especial.
Reclamo de suas táticas nada
convencionais para me vencer, até que a
minha curiosidade sobressai e acabo
perguntando-lhe algo
despretensiosamente.
— E a patricinha? Como é que
ela está? — Tento não olhar para minha
irmã quando falo e iniciamos uma nova
partida de Street Fighter.
— Linda demais... também está
estudando bastante e ensaiando quase
todo dia com aquele amigo engraçado
dela. — Ana Júlia ri ao mencionar
Breno. — Ela ficou chateada no dia do
seu aniversário, até chorou. Eu queria
ter vindo para cá, mas a mamãe disse
que você estava chato demais e não
compensaria a viagem.
— Que calúnia. — Levo a mão
ao peito, mas estou interessado mesmo é
em saber sobre a patricinha. — Por que
acha que a Letícia ficou triste por minha
causa?
Lembro-me da mensagem que ela
me enviou há duas semanas e não
respondi, como sempre.
— A Lety passou um tempão no
terraço à noite, e quando desceu seus
olhos estavam inchados... Ganhei! —
Ela dá um pulo do sofá quando consegue
me derrotar e depois me olhar,
desconfiada. — Você não está me
deixando ganhar, só para saber sobre
ela, né?
— De jeito nenhum — minto. —
Então, ela chorou no meu aniversário?
— Sim, a tia Isis conversou com
ela, que garantiu que estava tudo bem e
não era nada de mais. — A garota dá de
ombros. — Mas eu vi quando Lety ficou
segurando uma foto sua deitada e
chorando, para mim ela estava era
sentindo a sua falta. Não sei por que
você nunca liga para ela nem volta para
casa, Romeu.
— Não posso!
— Claro que pode. — Ela me
encara por um momento. — Lá é sua
casa também, não acredito que você
esteja feliz morando aqui com a mamãe,
o papai vai entender, tenho certeza.
Ah, eu queria muito que as
coisas fossem assim tão fáceis quanto
ela faz parecer.
— É melhor assim, Aninha.
— Não é, não — nega, enquanto
me ataca no jogo. — Vocês namoravam
e aí do nada decidiu morar com a
mamãe, não sou burra, Romeu. O que
aconteceu para terminarem, mesmo se
gostando assim? Não consigo entender.
— Você é jovem demais para
entender dessas coisas, garota. — Me
concentro no jogo e desta vez a derroto.
— É por causa dos machucados
da Lety? — pergunta, surpreendendo-
me, pois nunca falamos sobre isso. —
Ouvi papai e a Isis conversarem quando
cheguei em casa aquela vez, ele disse
que a culpa era sua da sobrinha dela
estar “arrebentada” e que foi você que a
colocou em perigo.
Infelizmente ele tem razão,
penso, deixando que ela vença o round,
não argumento, apesar de Ana Júlia me
olhar esperando que me defenda, então
ela continua:
— Tia Isis disse que você não
seria capaz disso e eu acho a mesma
coisa. — Aninha dá de ombros. — Acho
que deve ter uma boa explicação para o
que aconteceu.
Claro que há. Não pensei direito,
só queria ajudar o imbecil do Leon e
acabei colocando Lety em uma situação
complicada, mas isso não me faz menos
culpados pelo estrago que aquela
maldita noite causou nela.
— Não tem nenhuma explicação
para a minha burrice. — Engulo o nó em
minha garganta.
— Acha que um dia vai voltar
para casa? — Ana Júlia diz, jogando o
controle para o lado.
— Talvez. — Dou de ombros,
com o coração apertado.
— Sinto sua falta. Você é muito
chato e mandão, só que era mais legal
quando o papai tinha outra pessoa para
reclamar das louças sujas e meias
espalhadas pela casa. — Ela começa a
rir, fazendo o clima entre nós ficar leve
outra vez.
— Está muito ruim? — Arqueio
a sobrancelha.
— Sim, ele é terrível —
continua, rindo. — Às vezes, fico
desejando que a tia Isis descubra que
vai ter um bebê, assim o papai teria
outra pessoa para se preocupar.
— Faz sentido, pirralha. —
Aperto seu nariz, rindo de sua ideia
doida.
— Você vem para o aniversário
da Letícia? — especula, quando
começamos uma nova partida.
— Não.
— Acho que ela iria gostar de te
ver, mesmo que tenha desenhado chifres
na sua foto — diz, em tom de
confidência. — Vocês eram bem
divertidos juntos, a gente fazia tanta
coisa legal. Devia tentar consertar as
coisas com ela.
Ana Júlia fica tagarelando por
um tempão e só consigo pensar se devo
ou não atravessar o país para ver
Letícia, depois de todo esse tempo
deixando que ela acreditasse que
simplesmente tinha decidido morar com
a minha mãe e ignorar a conexão que
tínhamos.
— Romeu, está me ouvindo? —
a garota diz, impaciente.
— O quê?
— Eu vou ao shopping com a
mamãe, quer ir com a gente? — Ela se
levanta do sofá e guarda o controle.
— Ah... Não dá, pirralha,
preciso terminar um trabalho da
faculdade. — É uma meia-verdade, mas
ela não precisa saber, porque se bem
conheço, essas duas vão entrar em todas
as lojas do shopping e não estou com a
mínima vontade de socializar hoje.
— Tá bom! — Aninha dá de
ombros. — Depois não reclama que
sente a minha falta.
A chantagista mirim me deixa
sozinho digerindo o convite nada
despretensioso que me fez, para o
aniversário de Letícia. Odeio fingir que
não estou morrendo de saudade do seu
sorriso, do gosto, do modo como nossos
corpos se encaixavam tão bem e até das
nossas brigas infundadas. Tenho certeza
de que meu pai não vai gostar nenhum
pouco dessa ideia, mas agora já sou
maior de idade, ele goste ou não e posso
fazer isso sem precisar da sua
aprovação.
Desbloqueio o celular, digito o
nome dela e leio — pela centésima vez
— as mensagens que me enviou nos
últimos meses, nenhuma delas obteve
resposta, porque sabia que se baixasse a
guarda, acabaria revelando a verdade e
lhe dizendo que a minha vida é horrível
sem ela.
“Feliz aniversário, garoto
metido! Hoje eu me sentei aqui no
terraço para ver as estrelas como a
fazíamos juntos e fiquei morrendo de
saudade da gente. Dói não saber ao
certo o que fiz de errado para que se
afastasse assim de mim. Sei que tem
alguma coisa a ver com aquela noite
horrorosa, mas você poderia me
responder ao menos uma vez ou dizer
que me odeia, as coisas seriam mais
fáceis sabia?”
Releio algumas vezes as
palavras que já sei de cor e depois
começo a rir do desfecho dramático
dela, minutos depois.
“Quer saber, vá à merda. Você é
um mimadinho que tem tudo à mão.
Continue fingindo que eu não existo.
Obrigada, de nada!”
Eu digitei várias respostas,
contudo, não enviei nenhuma, porque as
palavras do meu pai ficam voltando na
minha cabeça, fazendo com que eu me
sinta culpado por tê-la colocado naquela
situação e sempre desisto antes de lhe
dar qualquer explicação.
“Você a colocou em perigo e vai
continuar fazendo isso se eu não tomar
uma atitude drástica, por isso vai
arrumar as suas coisas agora, essa
viagem é só de ida. Até que eu tenha
certeza de que posso confiar no meu
filho outra vez.”
Não sei se algum dia ele vai
voltar a confiar em mim, ao menos tenho
cumprido a última promessa que fiz de
não dar esperanças a ela, mesmo que
isso implicasse quebrar o seu coração e
fazê-la pensar o pior de mim.
Fecho o aplicativo de
mensagens, abro o notebook e tento
focar no trabalho que só tenho que
entregar no final do semestre. Não
consigo me concentrar em nada, de
repente desenvolver um plano de
negócios parece um bicho de sete
cabeças e estou num humor terrível.
Desisto e acabo deitado no sofá da sala
stalkeando Breno, na esperança de que
ele esteja com a sua melhor amiga e
poste alguma coisa.
Sim, eu cheguei a esse ponto!
O pior é que o cara parece
adivinhar essas coisas e do nada surge
um vídeo deles ensaiando um trechinho
de uma coreografia, fico hipnotizado,
assistindo repetidas vezes, e depois é só
ladeira abaixo quando abro uma pasta
secreta, no meu celular, cheia de fotos e
vídeos de Lety dançando. O aniversário
dela é mês que vem, um dia depois do
feriado do Dia das Crianças e me sinto
tentado a pegar um voo e chegar de
surpresa em casa.
— Chegamos, filho! — A voz de
mamãe me causa um sobressalto.
Nem percebi que se passaram
horas, desde que mergulhei em um limbo
de lembranças que me deixam chateado
por ter dado ao meu pai a impressão
errada sobre quem eu era de verdade.
— Ana, vá tomar um banho —
minha mãe ordena para a garotinha
saltitante, em seguida se senta no sofá ao
meu lado, exausta e nem quero saber as
coisas que minha irmã a obrigou a fazer
nesse passeio. — Essa menina sempre
foi assim, cheia de energias?
— Sempre — digo, rindo.
— Meu Deus, estou velha para
essas maratonas no shopping! — Ela
põe a mão sobre o coração e ergo uma
sobrancelha, encarando-a. — Não ouse
me julgar, estar em um palco é muito
diferente.
— Se você diz. — Dou de
ombros.
— Pare de ficar se martirizando
com essas fotos. — Ela aponta o celular,
mamãe sabe que uma das razões do
papai ter me despachado de casa foi por
ter colocado minha ex-namorada em
risco. — Foi melhor para vocês dois,
Romeu, ainda são jovens, têm uma vida
inteira pela frente e podem se encontrar
em um momento propício, como seu pai
e Isis. Só pare de ficar fuçando a vida
da menina.
Não sei se devo me preocupar
com o fato desses três terem se tornado
tão próximos de uns tempos para cá, Isis
até fez algumas fotos do novo álbum da
mamãe, que foi convidada para o
casamento junto com Pedro, seu
namorado.
— Não estou fazendo isso. —
Tento esconder meus sentimentos, mas
ela desenvolveu uma habilidade terrível
de desvendá-los.
— Está sim, Romeu. — Afasto
um pouco para trás e ela se senta na
beirada do sofá, segurando o meu
queixo, fitando-me ainda deitado. —
Acho realmente que o que sentem um
pelo outro é verdadeiro, cedo ou tarde
as coisas vão se acertar. A Letícia é uma
garota legal! Gostaria de ser sogra dela,
não nego, mas qual é mesmo o mantra
que temos recitado nos últimos meses?
Às vezes, precisamos nos curar de
algumas feridas para nos entregarmos
totalmente ao novo...
— Existem cicatrizes que levam
mais tempo — completo sua fala, com
uma voz robótica e ela ri.
— Só tenha paciência, meu filho.
— Juro que estou sendo muito
paciente. — Faço uma careta e ela ri.
— Vamos parar com esse baixo-
astral, sua irmã está aqui e a Eva fez o
teu prato preferido — informa,
apertando meu ombro um pouco antes de
se levantar. — Não entendo quando foi
que perdi o direito de escolher o
cardápio na minha própria casa.
— Eu causo esse efeito nas
pessoas — respondo, rindo, enquanto
coloco o celular no bolso do jeans.
— Convencido, não sei onde
aprendeu a ser assim — finge
indiferença ao falar, mas tem um
sorrisinho de canto no rosto. — Eu sou
um poço de humildade e seu pai... nossa,
tua personalidade não se parece nenhum
pouco com a do Ariel, definitivamente.
— É porque sai sua cópia, por
mais que não queria admitir. — Dou
uma piscadela a fazendo revirar os
olhos.
Gosto do fato de termos
estreitado os laços nos últimos meses,
no início foi bem complicado, ainda há
resquícios de mágoa da minha parte,
mas procuro ao máximo ver as coisas
boas que ela fez por mim desde que
cheguei à sua casa.
— Não sei se gosto dessa
semelhança toda. — Ela faz um muxoxo.
— Eu tenho mesmo o coração gelado
desse jeito?
— Quer falar sobre isso agora,
antes do jantar? — indago, sem olhá-la e
antes que ela responda, Aninha surge
correndo e se joga em cima de mim.
— Romeu, você deveria ter ido
com a gente! — diz, empolgada. — Foi
muito legal, não foi, mamãe?
— Foi, sim — ela responde,
rindo —, principalmente a parte em que
fiquei perdida dentro na piscina de
bolinhas. Espero que ninguém tenha
fotografado, imaginem só as manchetes.
— Carla Cardoso é flagrada se
divertindo em uma piscina de bolinhas,
na companhia da filha mais nova —
imito uma voz estranha de locutor
dramático. — Será um novo clipe? Ou
ela apenas enlouqueceu de vez, depois
de tanto trabalho?
Ana e mamãe gargalham da
minha imitação boba.
— Você é mesmo um garoto sem
coração. — A mulher mais velha me
joga uma almofada do sofá e desvio
habilmente. — Vou trocar de roupa e
desço para jantarmos juntos.
— Ué, o Pedro não vem hoje? —
Aninha pergunta.
— Não, meu amor, ele está em
uma viagem de negócios e sou toda de
vocês — cantarola, subindo as escadas.
Às vezes, parece que ela quer
recuperar todo o tempo que perdeu
conosco enquanto corria atrás dos seus
sonhos, se fosse antes eu reclamaria
disso ou faria alguma piada boba, mas
confesso que gosto demais dessa versão
atenciosa de minha mãe.

Enquanto comemos,
conversamos um pouco, Ana Júlia conta
sobre o sucesso no campeonato de
caratê que participou há um mês e
ganhou medalha de bronze, aproveita
para reclamar da minha ausência e
perdoa a mamãe, porque lhe mandou
flores e uma caixa de chocolates
importados. Tagarela um pouco sobre os
preparativos para a festa de casamento
de papai e Isis, que será em algum
momento no ano que vem, depois o
assunto gira em torno da próxima turnê
de mamãe e por fim chega a mim.
— Bom, eu acho que o Romeu
deveria voltar a tocar — minha irmã
declara, entre uma garfada e outra. —
Andei assistindo a uns vídeos daquele
canal que a mamãe reativou e você era
muito bom.
— Ah, sabe que também acho
isso. — Mamãe parece despretensiosa,
mas sei que está tramando alguma coisa.
— Que devia aproveitar que o seu pai
mandou o Cello que demos no seu
aniversário ano passado e treinar um
pouco, ver se ainda sente aquela euforia
quando o arco toca as cordas.
Não pretendo fazer isso, apesar
de ter aberto o case elegante e o
admirado algumas vezes desde que o
recebi. O instrumento foi fabricado
especialmente para mim por um luthier
[1]
muito habilidoso e tenho certeza de
que o som dele deve ser divino, só que
não tenho coragem de testá-lo.
— Esquece, mãe. — Dou de
ombros, como se a ideia dela fosse
absurda.
— Você estudou música a
infância inteira, Romeu. — A mulher me
encara, esperançosa. — Tocou em uma
orquestra...
— Fundo de quintal —
completo, lembrando-me de algo que ela
disse ao meu pai certa vez.
— Talvez eu tenha exagerado um
pouco — explica, fazendo uma careta.
— Você era muito bom, filho, duvido
que esses anos que passaram foram
capazes de apagar todo o seu talento.
Acho que deveria repensar isso, sei lá...
entrar em um conservatório ou tocar em
uma banda, só acredito que não deveria
desperdiçar esse talento todo que tem.
Desde que passamos a morar
juntos, esse assunto surge vez ou outra,
mamãe inclusive tem deixado panfletos
de conservatórios de música espalhados
pela casa, como uma forma de me fazer
voltar à razão, mas isso não vai
acontecer.
— Vocês não conhecem nada
sobre arte — retruco, colocando uma
generosa fatia de pudim no meu prato.
— Muito menos sobre música.
— Ah, é? — Ana Júlia me olha,
curiosa.
A pirralha sabe que, apesar de
não tocar um Cello — tecnicamente —
há anos, nunca perdi a conexão com esse
universo e estou sempre mergulhado em
livros, partituras ou vendo vídeos de
aperfeiçoamento. Sempre estudei coisas
relacionadas aos artistas que mais se
destacam no meio ou fico ouvindo-os
tocar por horas pelos meus fones,
enquanto finjo ser outra coisa.
— Caso tenha esquecido —
minha mãe usa um tom ofendido —, sou
uma cantora indicada ao Emmy
internacional, então devo entender
alguma coisa sobre o assunto.
— É diferente de tocar —
argumento, sentindo um incômodo
terrível.
— E como é ser músico? — a
garota insiste, fazendo-me fuzilá-la com
os olhos. — Ué, Romeu, só quero saber.
— Não sei explicar, porque não
sou mais um músico. — Tento encerrar o
assunto entre uma colherada e outra da
sobremesa.
— Estive pensando em uma
coisa — nossa mãe começa, cautelosa, e
sei que não vou curtir muito a ideia. —
Conversei com Natasha, semana passada
— meu coração dispara —, eles vêm
visitar a dona Manuela e Leandro
decidiu de última hora com o agente
deles fazer algumas apresentações, achei
que você gostaria de assistir.
Fico olhando-a sem dizer nada
por alguns minutos, Leandro é um dos
músicos mais talentosos da atualidade e
sou muito fã do seu trabalho, apesar do
meu aparente desinteresse pelo que
mamãe acaba de falar. É uma oferta
tentadora demais, sei o que pretende
com isso e não quero lhe dar
esperanças. Quando eu tocava, dizia que
um dia seria tão bom no Cello quanto
ele, mas isso é um sonho bobo que já
passou.
— Obrigado, mas não tenho
interesse! — A resposta soa grossa
demais e me arrependo. — Estou
atolado de trabalhos da faculdade neste
semestre, não posso ir — remendo, me
concentrando na sobremesa.
— Mas eu nem disse quando vai
ser, Romeu! — Ela parece desapontada.
— Achei que fosse gostar, você era tão
fã deles.
— As coisas mudam... — Tento
convencer tanto a mulher quando a mim
mesmo de que não gosto mais dessa
dupla, mas sou um péssimo mentiroso.
A ideia de poder vê-los
novamente é tentadora, mas ainda assim
não quero dar esse gostinho à mamãe.
Apesar de estarmos bem agora, lembro-
me muito bem de como era ambiciosa
quando se tratava da minha carreira, de
como me senti quando ela decidiu se
divorciar do meu pai. Foi essa ambição
dela pelo estrelato que destruiu nossa
família e o relacionamento que
tínhamos.
Na época, cheguei a cogitar que
a música dela era mais importante do
que eu ou Ana Júlia para ela, então
deixar de tocar e perseguir o sucesso foi
o meu ato de protesto, minha maneira de
falar que meu pai estava certo e ela
errada.
— Você poderia convidar a Lety
para ir também — minha irmã sugere,
em uma inocência que não me convence.
— Tenho certeza de que ela vai adorar,
esses dias ela estava dançando no
terraço ao som da Natasha e do Leandro.
Ela vai gostar!
A revelação me pega
desprevenido, porque fui eu quem
apresentei a dupla à Letícia e sei que
pensa em mim quando os escuta tocar.
— Esquece a patricinha, pirralha
— digo, tentando bloquear a imagem de
Lety dançando no vídeo que vi agora há
pouco.
— Gostei dessa ideia, Aninha!
— mamãe se intromete, olhando
diretamente para mim e faço uma careta,
coçando a cabeça. — Então, o motivo
do seu mau humor diário nos últimos
meses também é fã dos meus amigos?
— Não inventa, mãe, já sei o que
está pensando. — Ela é capaz de
recorrer a qualquer artifício para me
fazer ir a esse show. — O meu pai nunca
permitiria.
— O que você acha, Ana Júlia?
— pergunta, virando-se para a minha
irmã, ignorando o que acabei de falar.
— Se conversar com a tia Isis,
consegue convencer o papai fácil, fácil.
— A garota fica empolgada, mas nem
me animo.
— Nem pensem nisso! — Tento
encerrar o assunto, mas minha mãe pega
o celular.
— Vou falar com a Isis — diz,
como se estivesse digitando alguma
coisa. — Não custa nada tentar, se ela
aceitar, você vai ao show com a Lety?
— Eles são namorados, né,
mamãe, dã. — Aninha coloca a mão na
testa e faz uma careta engraçada.
— Letícia é minha ex-namorada
— digo, impaciente, colocando a colher
sobre o prato, fazendo uma pausa e
depois emendo, me levantando da
cadeira e virando para minha mãe: —
Não era você que estava me dizendo
agora há pouco sobre paciência, dentre
outras coisas?
— Só estou usando artilharia
pesada para te fazer enxergar que a
música é sua vida. — Ela pisca,
fingindo inocência e balanço a cabeça.
— Papai nunca permitiria isso e,
de qualquer forma, eu não vou à essa
apresentação, é a minha palavra final —
finalizo, sem olhá-la.
— Mas mudou de ideia e vai ao
aniversário da Letícia no mês que vem,
né? — A garota enfia outra conversa no
meio, deixando-me ainda mais tenso.
Que grande droga! Por que é
que de repente todo mundo decidiu que
vai se meter na minha vida?
Letícia
— Então, acha que o Romeu vem
para sua festa, no sábado? — Breno
especula, enquanto nos alongamos para
começar o treino.
— Deus me livre! — digo
rapidamente. — Não quero aquele
garoto idiota estragando a minha noite.
— Mora com o pai e a irmã
dele, se lembra disso? — ele refresca a
minha memória. — Apesar de ter ido
embora do nada, sabe que o carinha
pode aparecer quando quiser,
independentemente de você querer ou
não?
— Infelizmente — bufo, irritada
com a possibilidade —, mas se ele não
veio para assistir ao campeonato da
irmã, acha mesmo que virá para o meu
aniversário? Eu não sou importante para
ele.
— Acho que é sim... — meu
amigo insiste, mas eu não alimento essa
esperança.
No tempo em que ficamos juntos,
achei realmente que as coisas entre nós
seriam diferentes, queria acreditar que o
Romeu que eu conhecia era o
verdadeiro, o que se preocupava
comigo, que me beijava como se eu
fosse a coisa mais importante do mundo.
Só que a partida dele, depois do
incidente da festa, provou que ele não
pensava o mesmo, a sua falta de
respostas nos últimos meses me faz
acreditar que as coisas entre nós não
passaram de um capricho de um garoto
acostumado a ter todas as garotas que
queria.
Quando Ariel e tia Isis
decidiram morar juntos e contamos
sobre o nosso namoro, não pensei que
tudo daria tão errado. Amar alguém nos
deixa vulneráveis e propensos a fazer
bobagens, foi isso que aconteceu, eu
aceitei ir à festa porque não queria que
Romeu ficasse se sentindo culpado.
Mentimos para o pai dele e minha tia,
depois tudo acabou daquele jeito.
Eu devia saber que alguma coisa
estava errada quando acordei no dia
seguinte e ele tinha ido passar o fim de
semana com a mãe, mesmo depois de
tudo que passamos à noite e do seu rosto
arrebentado. Demorei dias para entender
que aquela noite havia sido o nosso fim.
Ariel parecia diferente, ele se
sentia responsável pelo que aconteceu,
estava estampado na sua cara quando
Ana Júlia chegou sozinha da casa de
Carla e nos sentamos à mesa para o
jantar.
“Romeu decidiu ficar com a
Carla por um tempo.” Anunciou,
tirando o meu chão e tia Isis parecia
concordar com o noivo, aquilo não
podia ser real. O meu namorado não ia
me deixar do dia para noite para morar
com uma mãe que ele nem se dava bem,
tinha que ter algo errado, mas apesar de
todas as inúmeras tentativas de falar
com o garoto, eu nunca soube a
verdadeira razão por trás dessa decisão
idiota.
Nada fazia sentido e mesmo que
Romeu tivesse sido obrigado a se
afastar, acho que eu merecia uma
explicação, mas isso nunca aconteceu e
no lugar dos sentimentos bons que sentia
por ele, começaram a transbordar mágoa
e raiva por não ter confiado em mim
para contar o que estava acontecendo.
Quase enlouqueci criando mil
teorias nos últimos meses e, por fim,
decidi fingir que não me importo mais
com qualquer coisa que venha dele.
— Vocês formavam um casal tão
fofo! — meu amigo diz, piscando
teatralmente e colocando a mão sobre o
coração. — Não consigo entender como
é que duas pessoas com uma química tão
boa acabaram assim, ou melhor, não
acabaram. Isso é inadmissível!
— Acontece, a vida nem sempre
é justa, caro amigo, e os homens são
idiotas, sem ofensas — retruco,
segurando a barra e olhando-o através
do espelho. — Nós dois sabemos que
ele está fugindo de mim, eu só queria
saber a razão, mas ele é imbecil o
suficiente para não responder minhas
mensagens.
— Amiga, eu ainda acho que o
Ariel mandou o garoto para longe.
Aquela noite foi horrorosa e depois de
conhecer o tal do Leon, com toda aquela
agressividade, acho até que o pai dele
fez bem — meu amigo insiste nessa
teoria e concordo parcialmente com sua
opinião, mas nunca vou entender por que
Romeu não fala comigo. — Sei lá,
talvez o se ex só precise de um tempo
para digerir tudo, vamos combinar que
ele é um bad boy e eles são
imprevisíveis.
— Já se passaram quatro meses,
já deu tempo de digerir. Ei...— Dou-lhe
um tapa no braço. — De que lado você
está?
— Do seu, só que o Romeu é um
gostoso e não posso evitar passar pano
para ele. — Breno ri descaradamente.
— Não fica com ciúme, tá?!
— Não estou com ciúme, é
melhor aceitar logo que acabou e partir
para outra — digo, em uma falsa
convicção.
— Sacanagem isso, viu! A forma
que você se ilude é diferente. — Ele
balança a cabeça rindo e muda de
assunto. — Me conta, por que aceitou
que fizessem essa festa, ainda estou
meio perdido aqui.
Explico os detalhes de como
cedi para tia Isis e Ana Júlia, as duas
estão superempolgadas com o meu
aniversário, mas depois que da morte de
mamãe passei a não gostar de
comemorar, porque não fazia o menor
sentido fazer isso sem ela, desde o ano
passado essas duas conseguem me
ludibriar e acabam me convencendo a
festejar.
Meu aniversário foi ontem, só
que meio de semana é complicado para
gente, então decidimos que sábado será
ideal para o que as duas planejaram.
Apesar da culpa que Ariel parece
carregar sempre e dos meus problemas
com Romeu, morar com eles é quase
como ter uma família normal, com um
pai preocupado, uma mãe amorosa, uma
irmã que sempre te faz rir.
Isso não quer dizer que esqueci
mamãe, apenas estou conseguindo
conviver melhor com a sua ausência. Já
o meu pai, só sei notícias através das
redes sociais da Sara, ao que parece
eles andam se divertindo bastante. Não
nos vimos mais depois audiência de
emancipação, e acho que é melhor
assim. Às vezes, fico pensando se ele
acredita que os nossos laços sanguíneos
deixaram de existir depois daquele dia,
tia Isis diz que eu não devia me importar
com isso, mas é inevitável.
Voltei para as sessões semanais
com a psicóloga e estou, aos poucos,
aprendendo a lidar com essa rejeição e
todo o caos emocional que tem sido a
minha vida nos últimos meses, devo
acrescentar que essa última parte está
indo a passos de tartaruga.
Enquanto bailamos pelo estúdio,
a ideia de que Romeu pode aparecer no
fim de semana fica me rondando. Não o
vejo há meses, desde que foi morar com
Carla. O filho da mãe não respondeu a
nenhuma das mensagens que lhe mandei
e estou cada vez mais convencida de que
o que aconteceu entre nós foi apenas um
passatempo para ele.
Tem dias que sou invadida por
uma saudade de quem éramos até aquela
maldita noite, quando ele passou a fingir
que eu não existo. Sinto sua falta, dos
conselhos divertidos, do modo como me
fazia rir de bobagens, da forma como me
beijava e de como ele me tocava.
Em casa, o assunto Romeu é
quase proibido e tia Isis tenta me
incentivar a fazer coisas que gosto para
não ficar me lembrando dele o tempo
todo, ela acha que foi melhor assim, que
seu enteado é muito intenso em suas
atitudes e que precisava passar esse
tempo com a mãe, eu continuo achando
que ele é medroso que foge quando as
coisas se complicam.
Algumas noites, quando estou no
terraço olhando as estrelas, me sinto
culpada por ter concordado em irmos
àquela festa, mesmo sabendo que Ariel
não gostava de Leon, então me lembro
de sua indiferença e só sinto raiva de
continuar querendo uma explicação para
o nosso fim.
No aniversário dele fiquei muito
emotiva, pensando que talvez estivesse
triste por estar longe da família e
mandei uma mensagem, acreditando que
teria uma resposta, mas não foi isso que
aconteceu e aquilo doeu mais que
qualquer coisa que ele pudesse ter me
feito. Passei um tempão chorando e
ouvindo músicas que me faziam lembrar
de um tempo que eu não queria esquecer.
Descarrego as energias negativas
dançando com Breno ao som de
Apologize One Republic, a coreografia
que estamos ensaiando há semanas para
uma apresentação em dupla, conversa
com a letra da música que fala sobre um
casal que apenas se machuca o tempo
todo e acredita que talvez seja tarde
demais para as desculpas. Meu amigo
que a escolheu, apenas concordei,
porque tudo que eu queria era focar em
algo que não fosse meu ex babaca e suas
mentiras.
Terminamos o treino, vou para o
vestiário tomar um banho, trocar de
roupa e ir para casa. Estou prestes a sair
quando ouço o barulho de algo caindo
no chão, viro-me para ver do que se
trata, é uma pulseira que carrego
comigo, embora me recuse a usá-la,
ainda não consigo desapegar.
Sinto as lágrimas quentes
empossando em meus olhos, quase
posso ouvir a voz dele falando sobre o
significado de cada berloque, quando
deslizo os dedos sobre eles.
“As sapatilhas são óbvias,
representam o seu amor pela dança.
Essas três estrelas são para você se
lembrar sempre do nosso primeiro
beijo e o arco-íris é para que acredite
que sempre haverá uma esperança para
os dias tempestuosos.”
Mentiroso! Não existe nenhuma
esperança para os dias ruins, eles só
ficam piores.

Pego Ana Júlia no caratê depois


do treino, tia Isis e Ariel chegam um
pouco tarde hoje, o que significa que
vou me atrasar para a aula da faculdade.
Ariel trabalha o dia todo se dividindo
entre as aulas e os detalhes para o
lançamento do seu primeiro álbum
independente. Minha tia viaja até três
vezes ao mês para ensaios das coleções
das marcas com quem trabalha, é legal
ver o quanto se dedica tanto à sua
profissão. Então, as coisas em casa
andam bem intensas.
Consegui um emprego de meio
período pela manhã, em uma escola
infantil, dou aulas de balé para crianças
entre 3 e 5 anos. Ainda não tive coragem
para encarar um concurso de dança em
outro estado ou algo maior que as
apresentações da academia, entretanto,
fui convidada para participar de alguns
eventos locais da programação de fim
de ano, daqui a três meses. Tia Isis,
dona Leila e Breno que me indicaram,
algumas apresentações serão em dupla
com meu melhor amigo, em outras
sozinha e por conta disso ensaio quase
todas as tardes, à noite me concentro no
curso de Fisioterapia. Ao menos tento
manter a minha mente fica muito
ocupada, mas não é o suficiente.
Com a partida de Romeu, acabei
ficando com a responsabilidade de
Aninha, que é uma garotinha fácil de
lidar, então a gente se diverte bastante
juntas. Quando estou atolada de trabalho
na faculdade, ela fica com a Ariadne e
Maya, mas a maior parte do tempo sou
eu quem seguro as pontas.
— Podemos assistir Shrek, Lety?
— ela pede, assim que abrimos a porta
do apartamento.
— Eu tenho aula hoje —
respondo, fazendo uma careta. —
Prometo que amanhã a gente maratona
todos os filmes, combinado?
— Ah, tinha esquecido. — Ana
Júlia joga a mochila sobre o sofá,
desatando o laço do quimono. — Mas
amanhã é a sua festa, lembra? A vovó
ligou hoje, quando o papai estava me
levando para escola e disse que vai
conseguir vir com o vovô, eles vão ficar
na casa da tia Ari. Será tão legal!
A menina, que agora tem dez
anos, adora uma farra e talvez esse seja
o motivo para eu ter cedido aos seus
pedidos para organizar uma festa para o
meu aniversário com sua tia e a
madrasta.
— Sei não, viu, pirralha?! —
Pisco para ela, apontando a mochila,
seguindo até a cozinha. — Qual é o
nosso combinado?
— Mochilas dentro do quarto.
— Ela revira os olhos, pegando seus
pertences e sumindo pelo corredor um
pouco antes de soltar uma frase que
mexe comigo: — Convidei meu irmão
quando estive na mamãe, mês passado,
acho que ele vem.
Quase derrubo o copo com água
ao assimilar o que a garota acabou de
falar. Não, o garoto jamais viria. Ele
está muito ocupado tirando fotos com as
milhares de fãs de sua mãe e postando
nas suas redes sociais, não sou
importante ao ponto de largar qualquer
coisa que esteja fazendo e despencar de
São Paulo para os confins do Pará
apenas para comemorar o aniversário da
menina que resolveu ignorar. Coloco o
copo na pia e vou até o meu quarto,
tranco a porta me encostando nela e
fechando os olhos, sou bombardeada por
uma enxurrada de recordações.
Nossa primeira vez na cabana,
os beijos roubados, as noites no terraço
e a conversa leve que sempre me
deixava leve.
— Mas que droga! — sussurro,
olhando para o quarto que um dia foi
dele.
O cômodo está diferente da
primeira vez que entrei aqui, agora tem
uma porção de coisas minhas misturadas
às poucas que restaram do antigo
morador e, ainda assim o sinto por toda
parte.
Detesto que tudo aqui lembre
Romeu, odeio que nos beijamos em
todos os cantos desta casa e,
principalmente, não suporto o fato de
ocupar o quarto que lhe pertencia. Ariel
achou que eu precisava de privacidade e
não havia necessidade do quarto do
filho dele ficar desocupado, tia Isis
tratou de concordar com o noivo e eu
apenas aceitei para não fazer desfeita,
ignorando o quanto estar tão perto e tão
longe dele me machucaria.
— Lety, o papai já chegou —
Ana Júlia avisa, com uma batidinha e só
então me dou conta de que estou há um
tempão remoendo algo que
provavelmente nem vai acontecer.
Resmungo qualquer coisa e abro
o armário, procurando algo para vestir.
Uma parte de mim acredita que o filho
de Ariel não será capaz de voltar aqui
tão cedo, pelo modo como se foi e acho
que o seu relacionamento com o pai está
pior, porque segundo sua irmã e minha
tia, os dois se falam muito pouco. Então
duvido muito que ele venha, só por isso
abro seu perfil na rede social quando
estou a caminho da faculdade. Meu
coração se aperta a cada foto.
Queria não sentir saudade,
aceitar que não nascemos para ser um
casal como Breno disse mais cedo,
queria não saber o gosto da sua boca,
queria não ficar arrepiada só de pensar
no seu toque... enfim, queria esquecer
que um dia tivemos alguma coisa. Mas é
impossível, porque o pai dele e minha
tia se amam e vão se casar dentro de
alguns meses, querendo ou não teremos
que nos encontrar nos eventos de
família, o que é uma droga.
Abro os Stories usando um perfil
fake, tem fotos e vídeos dele com os
colegas da faculdade, algumas com
garotas derretidas só por estarem ao seu
lado, um boomerang de comida, uma
mala e uma frase que me deixa
paralisada: “De volta para minha
terrinha.”
Não posso acreditar nisso... Eu
não preciso que Romeu venha para casa
justo no meu aniversário, não preciso
que coloque sal nas minhas feridas.

— Prontinho! — Maya avisa, ao


dar o último retoque no batom cor-de-
rosa em minha boca. — Já pode matar a
sua curiosidade e ver como ficou.
Encaro o espelho, um tanto
embasbacada. A maquiagem me deixou
parecendo a adulta que sou agora, os
olhos parecem mais verdes do que
nunca, meus cabelos estão soltos caindo
em uma cascata castanha exibindo o
novo corte que Breno me convenceu a
fazer e precisava exibi-lo esta noite.
Fico de pé ainda olhando meu reflexo. O
vestido de micropaetê cor-de-rosa se
ajusta perfeitamente ao meu corpo indo
até o meio da coxa com uma pequena
abertura que mostra mais do que deveria
no lado esquerdo, o modelo — que foi
um presente de Ariadne — tem apenas
uma manga bufante de um lado e decote
que valoriza meus seios.
Por um momento, tenho a
sensação de que estou prestes a entrar
em uma apresentação, mas essa
definitivamente não é a razão para ter
me vestido assim. É a minha festa de
aniversário de 18 anos e estou muito
feliz por ter pessoas que se importam
comigo, depois de tantos anos
reclamando de solidão.
A porta do meu quarto se abre de
uma vez e duas das pessoas
responsáveis por eu ter uma
comemoração hoje, entram.
— Nossa, Lety! Tá parecendo
aquelas moças dos programas de dança
— Ana Júlia dispara, sentando-se na
cama. — Acho que vou trocar de roupa.
— Pare com isso, garota —
digo, rindo, olhando para ela. — Você
está linda nesse vestidinho fofo.
A menina dá um sorrisinho
convencido.
— Quando foi que cresceu e
deixou de ser a minha garotinha? — Tia
Isis se aproxima, emocionada,
segurando as minhas mãos.
— Faz um tempo já, tia. —
Retribuo seu toque, sentindo uma onda
de gratidão indescritível por essa
mulher tão incrível.
— Adriana teria tanto orgulho de
você, Lety. — Suas palavras soam
carregadas de amor quando me abraça.
— Está tão maravilhosa!
— Ô, Isis, não vai estragar a
maquiagem da Letícia, te proíbo de fazê-
la chorar — Maya reclama, enquanto
recolhe os pincéis sobre a bancada. —
Hoje é um dia de alegria, finalmente
poderemos dar álcool a ela nos nossos
encontros de sexta.
Acabo rindo, temos uma noite
das meninas toda sexta e a namorada de
Ariadne sempre tira onda comigo por
não poder acompanhá-las nas bebidas
alcoólicas.
— Lembrem-se de que ainda tem
uma pré-adolescente no seu grupinho —
Ana Júlia retruca, mexendo em alguma
coisa no nicho de livros.
— Você não nos deixa esquecer,
pirralha — Maya diz, apertando o nariz
empinado da garota.
— Já podemos subir para o
terraço? — a filha de Ariel pergunta, se
levantando inquieta com uma das mãos
na cintura.
— Viemos justamente buscar a
aniversariante, lembra? — Tia Isis pisca
para a garota. — Podem nos dar um
momento a sós?
— Desde que não a faça estragar
a maquiagem, por mim, tudo bem. —
Minha maquiadora a fuzila, enquanto
segura a mão de Aninha. — Vamos,
pirralha!
Ficamos sozinhas e ela me
abraça outra vez.
— Não tenho a intenção de te
fazer chorar, mas é meio inevitável,
sabe?! — Nos sentamos na beira da
cama e ela segura as minhas mãos. —
Lety, sei que passou por muitas
mudanças na sua vida nos últimos anos,
mas eu só queria dizer que vou estar
aqui por você, sempre que precisar.
— Eu sei, tia. — Tento segurar
as lágrimas.
— Prometi algo que, na época,
achei que seria superfácil, mas agora
não sei direito como fazer isso. — A
mulher tira um envelope cor-de-rosa
dobrado do bolso lateral do macacão
elegante. — Isso é para você — ela diz.
Seguro-o desconfiada, encarando
o papel que tem o meu nome escrito, o
coração dá um salto ao reconhecer a
letra. Mamãe... Eu deveria saber que ela
faria algo do tipo.
— Isso é... — Não consigo
finalizar a frase.
— Sim. — Tia Isis segura a
minha mão e beija a minha testa. — Vou
deixá-la sozinha, mas não demore. Os
convidados a aguardam no terraço.
Inspiro profundamente,
acariciando o papel quando a porta é
fechada, em busca de forças para abrir o
envelope e ler seu conteúdo, mas não me
sinto pronta ainda. O aperto contra o
peito em seguida, coloco-o sobre a
penteadeira, fazendo uma promessa
silenciosa de ler no fim da noite.
Olho-me no espelho uma última
vez, antes de subir ao terraço.
— Estou bem — recito o mantra,
engolindo o nó na minha garganta,
enquanto caminho até o hall de entrada
do apartamento.
Respiro fundo, tentando pensar
apenas nas coisas boas da minha vida,
giro a maçaneta, abro a porta e dou de
cara com a última pessoa que gostaria
de ver hoje, meu coração acelera
desenfreado no peito e perco o rumo por
um momento, passei o dia inteiro
tentando ignorar o Story que vi ontem e
sufocar as expectativas de que cedo ou
tarde ele apareceria.
De pé, diante de mim, está uma
versão mais sofisticada do garoto
rebelde que me deixou, meses atrás.
Esse Romeu pode ser facilmente
confundido com um popstar, ele passa as
mãos pelo topete e depois as enfia nos
bolsos da jaqueta marrom exibindo um
sorrisinho torto se divertindo com o meu
embaraço.
— Olá, patricinha! —
cumprimenta, quase esbarrando o ombro
em mim quando passa arrastando a
pequena mala, deixando um rastro do
perfume que venho tentando esquecer.
Fecho a porta e viro-me para
ele, ainda sem conseguir falar, o
analisando de cima a baixo do mesmo
modo que faz comigo. Por baixo da
jaqueta há uma camiseta preta com os
nomes Bach & Beethoven & Chopin &
Vivaldi estampados — pelo menos isso
o faz parecer o garoto de sempre —, sua
calça jeans preta tem um rasgo nos
joelhos, os tênis e os headphones
brancos arrematam o visual que me
deixa um tanto zonza.
— Terminou? — ele pergunta,
erguendo a sobrancelha de um jeito
irritante, depois parece notar o silêncio
da casa. — Onde está todo mundo?
— N-no terraço — consigo dizer
enfim, evitando encará-lo.
— Temos uma festa? —
especula, apontando para a minha roupa,
ao mesmo tempo em que seu olhar
percorre novamente cada parte do meu
corpo e isso me tira do prumo. — Ou
tudo isso é apenas para esperar por
mim?
— O que está fazendo aqui? —
Uso um tom baixo, porém, carregado de
mágoa.
— É a minha casa também, sabe
disso, não é? — Sua resposta vem
acompanhada de uma dose de ironia,
quando finge olhar as fotos espalhadas
no aparador.
— Infelizmente. — Reviro os
olhos, sentindo o controle fugir. — Mas
isso não responde a minha pergunta...
— Não preciso de motivos para
visitar meu pai e minha irmã, se é isso
que quer saber. — Romeu levanta o
rosto, me encarando diretamente e quase
posso ver o carinha por quem me
apaixonei, mas então ele se fecha. —
Ah, e não vim aqui por você, pode tirar
essa fantasia da cabeça.
Suas palavras ressoam pelo
cômodo e tento disfarçar a decepção,
por um mísero momento cogitei a ideia
de que ele poderia ter vindo para
concertar as coisas entre nós. Porém não
se trata disso. Existe uma parte minha
que quer pular em seu pescoço e beijá-
lo ardentemente, já a outra quer apenas
lhe dar uns bons tapas por ele ter me
ignorado todos esses meses.
— Eu não esperaria isso de
você, Romeu — consigo dizer, por fim,
seu olhar se prende ao meu. — Alguém
que ignora o outro por tanto tempo, não
deve mesmo querer resolver as coisas.
Quem foge quando tudo se complica,
não é nem digno de ser ouvido.
Seu corpo estremece ao ouvir as
palavras tão cheias de rancor, viro-me
na direção da porta respirando
profundamente, lutando contra todas as
emoções que ele despertou desde que
apareceu diante de mim agora há pouco.
Então sinto sua mão segurar meu pulso e
me viro relutante.
— Eu senti sua falta, patricinha.
— Um sorrisinho de canto brinca em
seus lábios quando ele desliza os dedos
pelo meu rosto, fazendo com que o meu
coração bata descompassado no peito.
— Feliz aniversário! Juro que esperava
uma recepção mais calorosa...
Não consigo respirar direito com
ele tão próximo de mim, a máscara de
indiferença agora caiu por completo, o
seu cheiro me entorpece. Não deveria,
mas me derreto quando seu braço
envolve a minha cintura, puxando-me
para mais perto, nos encaramos sem
dizer absolutamente nada. Ele vai me
beijar e eu... bem, quero muito que faça
isso, pois sempre fui incapaz de resistir
a esse Romeu fofo.
Seus lábios quase tocam os
meus, quando a porta se abre de uma vez
e nos afastamos como se tivéssemos
levado um choque, quebrando a nossa
conexão. Seu rosto muda
completamente.
— Romeu — Ana Júlia grita,
assim que vê o irmão. — Você veio para
o aniversário da Lety, eu sabia!
O rapaz faz uma careta desgostosa
quando a irmã se pendura em seu
pescoço, esmagando-o em um abraço
apertado. Sorrio involuntariamente,
então, no fundo ele realmente veio por
mim, apesar de toda essa encenação.
Droga! Não era para isso me deixar
assim, tão emocionada.
Romeu
“Eu fiz uma maldita promessa e
vou cumpri-la.” Digo a mim mesmo ao
subir as escadas até o terraço, os sons
das risadas conhecidas que tanto senti
falta me trazem uma onda repentina de
alegria. Aqui é o meu lar e é muito
injusto que papai ache que eu precise
estar longe deles agora, mesmo que os
seus motivos pareçam nobres.
Passada a euforia de Aninha, ela
saiu puxando Lety pelo braço porque os
convidados estavam à sua espera,
deixando-me sozinho com os meus
dramas internos. Devia ter ficado na
casa da minha mãe e lidado com toda a
frustração que estava sentindo por não
estar com a patricinha no dia da sua
festa, mas não. O que eu fiz? Obriguei a
secretária da mamãe achar um voo às
pressas para mim e despenquei para o
outro lado do país movido pela saudade
que sinto de casa e principalmente de
Letícia, ninguém pode me culpar por ser
impulsivo.
Odiei ver o que causei na minha
ex-namorada, juro por Deus que não
queria machucá-la quando disse que não
tinha vindo por ela e ver a decepção nos
seus olhos acabou comigo. Papai foi
muito claro quando o avisei da minha
chegada: “Mantenha suas mãos longe
da Lety, não faça nenhuma besteira ou
te mando de volta num piscar de
olhos.”
Quase descumpri o trato na
primeira oportunidade, pois é, sou um
péssimo filho. Em minha defesa, essa
garota tem um estranho poder de
despertar em mim uma parte que prefiro
esconder do resto do mundo. Soa clichê,
porém, é inevitável. Ficar sob o mesmo
teto que ela sem tocá-la como desejo,
durante os próximos dois dias, não vai
ser uma tarefa muito fácil.
Deslizo as mãos pelo topete,
arrumando-o, endireito a coluna, visto
minha máscara de bad boy irritante e
abro a porta. Não há muitas pessoas,
reconheço minha avó conversando
animadamente com papai e tia Ari, mais
à frente Isis tira fotos de minha irmã em
um espaço que parece ter sido decorado
para isso, vovô Manuel e Maya sorriem
de alguma coisa na mesa do bufê, do
outro lado há um grupo pequeno em
volta de Letícia, três garotas e dois
garotos.
Sinto um nervosismo repentino.
E se ela tiver encontrado uma pessoa?
Balanço a cabeça, retomando as rédeas
da situação.
— Família, cheguei! — falo alto
o suficiente para que todos olhem para
mim e exibo um sorriso presunçoso
quando me aproximo do grupinho. — Eu
sei que morreram de saudade, mas estou
de volta. — Meus olhos se encontram
aos de Lety e papai pigarreia. — Por
tempo limitado, infelizmente ou
felizmente... ainda não decidi.
Vovó me abraça calorosamente.
— Ah, seu menino levado. —
Ela me dá um beliscão na bochecha. —
Por que não me contou que viria?
— A senhora conhece o conceito
de surpresa, não é, vovó? — A aperto e
beijo o topo de sua cabeça.
— Esse palhaço gosta de causar,
isso, sim! — tia Ari diz logo atrás de
mim. — Olha só, uns meses com aquela
loira aguada e já volta assim, todo
pomposo. Ariel, traga nosso bebê
chorão de volta para casa, nunca te pedi
nada.
— De jeito nenhum. — Papai
usa um tom brincalhão, mas me olha
sério. — Parece que ele não
compreendeu a lição, ainda.
— Ah, que maldade! — Minha
tia se agarra ao meu pescoço e me enche
de beijos, como seu eu fosse um
bebezinho. — Ele é irritante, mas gosto
desse garoto aqui, pertinho de mim.
— Talvez ele aprenda a lidar
com toda essa impulsividade, vivendo
com a mãe — papai insiste e sua irmã
revira os olhos.
— Blá-blá-blá... — responde
ela, fazendo um gesto engraçado com as
mãos, demonstrando que ele fala
demais.
— Então, cadê a sua namorada
gata? — mudo de assunto, porque sinto
certa tensão no ar.
— O que tem eu? — Maya surge,
segurando uma bandeja de docinhos e
roubo um.
— Uau! Quando a minha tia
desistir de você, quero estar na lista de
prioridades — brinco, ainda com a boca
cheia e acabo ganhando um tapa do
ombro.
— Respeita a polícia, rapaz, vá
procurar na sua turma. — Tia Ari me faz
uma careta.
— Aí está o meu neto. — Vovô
Manuel se aproxima com um prato
recheado de petiscos. — Que roupas
esquisitas são essas?
— Gostou, vovô? — Dou uma
voltinha, abrindo os braços.
— Tá parecendo um malandro
de rua — O velho senhor não hesita,
fazendo todos rirem. — Você se vestia
bem melhor quando era o Ariel que
escolhia suas roupas.
— Obrigado! Me sinto em casa
agora, depois de tantos elogios — Faço
uma reverência exagerada e o abraço em
seguida.
— Ah, olha só o meu modelo
preferido, como está gato. — Ouço o
flash disparar quando Isis se aproxima,
exibindo um sorriso largo, segurando
sua câmera e depois me agarra em um
abraço apertado. — Você faz uma falta
danada aqui em casa, vou puxar suas
orelhas depois, por não ligar para mim.
— Pelo menos algumas pessoas
sentiram a minha falta — digo, um
pouco mais alto. — Quer dizer, todo
mundo aqui mente bem para cacete!
— Seu pirralho bocudo — papai
ralha.
— Não pode mais me chamar
assim, tenho 18 anos. — Dou de ombros
e me sento ao lado de vovó, roubando
alguns dos salgadinhos de seu prato.
— Grande bosta, eu continuo
sendo pai. — Ele sorri quando cruza os
braços. — Posso te chamar do que
quiser.
Papai foi o único da família que
não me abraçou, queria não me sentir
incomodado com isso, mas é quase
impossível. Ele não pareceu muito feliz
quando liguei hoje cedo, um pouco antes
do avião decolar, concluí que estava
certo em não o avisar sobre a minha
chegada antes disso.
Fico um pouco com eles, Aninha
se senta no meu colo e desatina a fazer
perguntas sobre um milhão de coisas da
viagem, depois é a vez de vovó saber se
estou me alimentando bem e vovô quer
saber quem é o responsável pelo meu
novo guarda-roupa, pois pretende
convencer a pessoa a jogá-las fora.
Deus me livre de contar que mudança
faz parte do conceito da minha mãe de
dar a volta por cima. Enquanto
converso, meus olhos procuram o tempo
todo por Lety, que me atrai feito um ímã.
Para o meu alívio — ou não —
conheço os dois rapazes presentes na
festa, um deles é Breno, melhor amigo
dela e o outro... bem, ele costumava ser
meu amigo, até uma noite antes de eu ir
embora e não tenho a menor ideia do
que Ivan faz aqui, mas pretendo
descobrir em breve.
Depois de algum tempo, levanto-
me para pegar alguma bebida quando
passo pelas colegas de Letícia acabo
notando os olhares lascivos e
sorrisinhos bobos. Eu sempre chamei
atenção das garotas, porém, faz um
tempinho que tenho olhos apenas para
uma e isso é péssimo, porque eu caguei
com tudo.
— Sua irmãzinha postiça está
uma gata. — Meu corpo enrijece quando
ouço Ivan falar comigo.
— Ela não é minha irmã — digo,
entredentes.
— Ah, qual é, cunhadinho — ele
tira onda, sinto meu estômago revirar. —
Não precisa me olhar como se quisesse
me estripar, só estava brincando. Você
perdeu o senso de humor nesses meses
que ficou fora?
— Vá à merda, Ivan — retruco,
amassando o copo e jogando-o no cesto
de lixo. — O que faz aqui?
Ele não me responde de cara,
mas tem um sorriso idiota no rosto, que
me faz querer quebrar os seus dentes
perfeitos.
— Bom, outra noite eu, a
patricinha e Breno acabamos nos
esbarrando novamente em uma festa e
demos uns amassos... — O modo como
ele fala me deixa possesso.
Um grunhido irritado escapa e
quando dou por mim, estou segurando-o
pelo colarinho, por sorte, as pessoas
estão entretidas demais umas com as
outras e já escureceu o suficiente para
que ninguém note o meu rompante.
— Diz para mim que não
encostou essas mãos nojentas de
punheteiro na Letícia? — digo, em uma
voz baixa e terrivelmente ameaçadora.
O cara começa a rir
descontroladamente, o que me irrita
ainda mais e o encosto na parede com
mais força do que o necessário.
— Responda a porra da
pergunta que te fiz. — O desgraçado
está se divertindo à minha custa.
— Meu Deus, Romeu! — Ele
levanta as duas mãos em rendição. —
Eu estava brincando, só queria ver a sua
cara, ainda tenho muito amor à minha
vida e sei que é amarradão na
patricinha. Até quebrou a cara do Leon,
por conta dela.
— Não me lembre desse idiota
— digo, entredentes e faço uma ameaça,
caso não tenha sido claro. — Se você
tiver tocado em um fio de cabelo dela,
não vou responder por mim.
— Acha mesmo que sou um
talarico? — Ivan parece ofendidíssimo.
Solto-o, passando as mãos pelos
meus cabelos, respirando devagar, eu
não deveria ser um surtado, mas não é
fácil controlar essa coisa em mim,
depois de tanto tempo sem vê-la.
— Essa menina mexe mesmo
contigo, hein?! — Ivan diz, ainda rindo.
— E o que você tem a ver com
isso?
— Nadica de nada.
— Ainda não me respondeu. —
Massageio a têmpora e o encaro, sério.
— O que está fazendo aqui?
— O Ariel me convidou hoje
cedo. Achou que você gostaria de ter um
amigo para conversar ou meter a
porrada, já que tu é um babacão
imprevisível — revela e me sinto menos
tenso. — Seu pai me fez prometer que ia
me comportar, depois do que o Leon
aprontou, pensei que ele nunca mais ia
olhar na cara do seu aluno favorito, mas
aparentemente, seu pai sabe separar o
joio do trigo.
Ao que parece, papai está
tentando aliviar um pouco a tensão entre
nós e isso parece bom.
Minha família é festeira e isso é
algo que sempre me irritou um bocado,
mas hoje olhando-os conversar rindo
espalhafatosos sinto uma estranha
felicidade. Depois da minha ceninha
com Ivan, acabei me enturmando com os
outros convidados, já que ele está muito
familiarizado com todos.
Lety tem me evitado a noite
inteira, nossa conversa oficial se resume
a um “olá” muito contido por parte dela
e um “feliz aniversário, patricinha!” da
minha. Agora estamos sentados no sofá
do terraço junto de seus amigos, as
meninas tentam de algum modo me
impressionar com histórias e falham,
porque estar aqui me traz lembranças da
aniversariante montada em meu colo e
devorando a minha boca, como se eu
fosse a única coisa que importava, entre
outras.
— Romeu, está ouvindo alguma
coisa do que a Dalila disse? — Ivan me
dá um cutucão.
— Ah, claro — digo,
balançando a cabeça e ensaiando um
sorriso sem graça. — É alguma coisa
sobre a última apresentação da
academia, não é?
— Isso foi o que a Patrícia falou,
agora há pouco — Dalila parece
desapontada quando explica. — Queria
saber se vai ficar por muito tempo, quem
sabe podemos sair todos juntos amanhã?
— Não posso, tenho que fazer o
trabalho de Anatomia, o último prazo é
segunda-feira. — Letícia se apressa em
dizer e faço uma careta.
— Ah, você é estraga-prazeres.
— A garota baixinha que não gravei
nome parece um tanto chateada. — Sabe
quando vamos ter a chance de sair com
o filho de uma cantora famosa outra vez?
Isso mesmo, nunca.
— Aproveite hoje, então. Tire
muitas fotos e poste nas redes sociais —
Lety retruca e sinto uma pontada de...
Ciúme? — Ah, mas não se esqueça de
que é a mãe que é famosa, ele é só um
bad boy que se acha dono do mundo.
— Nunca perde esse costume de
ferir meu ego? — Coloco a mão sobre o
coração. — Poxa vida, patricinha, me dê
algum crédito.
— Você não merece. — Ela dá
de ombros.
— Isso aqui é uma festa ou um
velório? — Breno se levanta de uma
vez, desviando o rumo da conversa. —
Lety, você me prometeu música boa,
dança e cerveja. — Ele ergue o copo de
bebida. — Cadê a música e a dança?
— Não está ouvindo? — Ela o
olha como se fosse louco, apontando o
próprio aparelho celular conectado ao
sistema de som.
— Vamos lá. — Seu amigo a
segura pela mão, fazendo-a ficar de pé
como se estivessem coreografando o
momento, pegando o aparelho dela. —
Queremos músicas que façam o corpo
inteiro vibrar e a pele arrepiar.
Alguns cliques depois, a voz de
Zoe Wees ecoa pelo terraço cantando
Girls Like Us, Breno joga o aparelho no
sofá e as meninas se levantam,
começando a dançar em volta dele, mas
Letícia hesita. Provavelmente, porque
sabe o que causa em mim, sua indecisão
dura pouco e no minuto seguinte ela está
imersa em uma coreografia que me deixa
vidrado.
Sou um péssimo dançarino e
recuso cada convite que as meninas
fazem, ao contrário de Ivan, que parece
ter nascido com talento para tudo nesta
vida. Ver Lety dançando é como uma
droga e desejo cada vez mais, me pego
sorrindo feito um bobo, olhando-a se
mexer conforme a música.
And the worst part is
(E a pior parte é que)
When they smile like this
(Quando eles sorriem desse
jeito)
And it hits me hard
(Isso me magoa tanto)
Hits me hard
(Tanto mesmo)
Try to play it cool
(Tento parecer calma)
But inside I’m bruised
(Mas por dentro estou
machucada)
And it breaks my heart
(E isso parte meu coração)
Breaks my heart
(Parte meu coração)
Sinto uma pontada no peito, é
como se a letra falasse sobre ela e seu
coração partido por todas as coisas que
lhe aconteceram. Odeio fazer parte da
lista das pessoas que a magoaram, fecho
os olhos, apertando-os com o indicador
e polegar. Caramba! Como as pessoas
podem achar que estar longe dessa
garota é a melhor coisa para nós?
Passo o resto da noite nessa
espécie de purgatório, uma vontade de
enfrentar o meu pai e correr atrás dela,
ao mesmo tempo que tenho medo de
estragar ainda mais as coisas entre nós.
Quando cantamos os parabéns, Isis nos
obriga a uma sessão de fotos com a
aniversariante.
— Agora, só os amigos da Lety!
— ela diz.
— Então sai daqui, Romeu —
Ivan me enxota. — Ex-namorado não é
amigo.
— Ah, mas somos arqui-
inimigos e pode ter certeza de que deve
ter um lugar de destaque nas fotos para
mim — digo, piscando para ele,
enquanto o agarro e faço uma careta
engraçada para a câmera.
— Nossa, não precisava estragar
a pose — minha tia reclama.
Isis faz mais alguns cliques
divertidos, outros nem tanto.
— Agora só Romeu, Ana Júlia e
Lety — a mulher diz, com um sorriso
divertido.
— Oba! — Minha irmã me
arrasta até a mesa do bolo outra vez. —
Vou ficar no meio, porque sou muito
pequena.
— Vem aqui, Aninha me deixa
arrumar seu cabelo — Maya chama a
garota.
— Pelo amor de Deus, Romeu!
— Isis ralha. — Encosta mais na Lety,
ela não dá choque.
— Você que pensa — digo
baixinho.
Acabo ganhando um cutucão na
costela da menina ao meu lado.
— Garoto metido! — ela
resmunga ao se aproximar e isso me faz
rir.
Click. A câmera dispara sem
aviso prévio, capturando o momento e
num rompante agarro sua cintura,
puxando-a para mim, nossos olhos se
encontram. Click. Outro momento
eternizado. Ouço um pigarreio que
presumo vir de papai e recobro a razão,
há muitas coisas em jogo e ainda tenho
um longo caminho a percorrer.
Deitado no chão do terraço, após
fugir do mutirão de limpeza do
apartamento antes dos meus parentes
irem para casa, encaro o céu estrelado
colocando os fones, aumentando o
volume para o máximo em um álbum
Vivaldi: The Four Seasons tocado pelo
Luka Sulic, tentando relaxar um pouco
antes de dormir. A primeira faixa de “La
primavera” começa e tenho a sensação
de que estou em um campo verdejante
observando uma revoada de pássaros
voarem alegremente.
Meus dedos simulam o deslizar
do arco nas cordas do instrumento, é
algo que não consigo controlar. A tensão
se esvai aos poucos quando chega a
primeira parte “L’Estate”, contudo ainda
sigo pensando na garota lá embaixo, na
promessa que preciso cumprir e no
abismo entre nós.
“Olha para você, Romeu. Um
adolescente revoltado com o mundo,
com raiva da sua mãe, não consegue
seguir regras simples. Veja para o que
arrastou ela hoje, acha que a Lety
merece isso, depois de todas as coisas
ruins que já viveu?”
As palavras do meu pai voltam à
minha cabeça, infelizmente ele tinha
razão em algumas coisas e não consigo
me livrar da maldita culpa, eu devia ter
pensado direito nas consequências de ir
atrás do Leon. Entretanto, ainda estou
magoado com a forma que tentou
resolver tudo, muito mais por parecer
que não se importa com os meus
sentimentos e mal falou comigo a noite
toda.
A melodia vai ficando lenta e
melancólica como o meu estado de
espírito, enfio os dedos no topete, solto
um suspiro longo e então sinto um toque
leve no ombro. É meu pai. Ele se senta
no chão, encostando-se ao sofá,
encarando o céu, tiro os fones e espero
que fale qualquer coisa, mas isso
demora a acontecer.
— Como estão as coisas com a
sua mãe? — pergunta, sem me olhar.
— Bem, eu acho. — Sento-me
de frente para ele, descansando os
braços nos joelhos.
— Eu disse que ia se acostumar.
— Papai exibe um olhar saudoso.
— Não me acostumei. — Dou de
ombros e as próximas palavras soam um
tanto magoadas. — Lá não é e nunca
será a minha casa, papai.
— Precisa ser.
— Não, vou voltar e o senhor
sabe tão bem quanto eu. — Encaro os
sapatos.
— Fiz o que era necessário, não
me arrependo — afirma e sinto seus
olhos sobre mim. — Aquilo doeu muito
mais em mim. Acha que quero ficar
longe de você, Romeu? Eu te amo. É
meu filho, sempre estive aqui nos
momentos bons e ruins. Só quero evitar
que se machuque ainda mais.
— Tudo bem — assinto,
sentindo um pouco da mágoa diminuir.
— Só não me trate como uma criança
mimada, já sou adulto. Sei que a Lety
passou por coisas terríveis nos últimos
anos, juro que não queria piorar as
coisas e me sinto um merda por tê-la
colocado em perigo, pai...
— Sei que sim, é meu filho e um
fruto não cai muito longe do pé. —
Absorvo suas palavras aos poucos.
— Continuo gostando dela, de
verdade, não aguento mais fingir o
contrário — admito, olhando para o céu.
Ele fica em silêncio e o encaro
por fim, seus olhos estão cheios de
compreensão, mas tenho um
pressentimento de que não vou gostar do
que sairá da sua boca.
— Então se mantenha longe, até
que vocês dois possam ser capazes de
colocar a cabeça no lugar e tomar
decisões que não sejam baseadas nos
hormônios adolescentes. — Solto um
suspiro, balançando a cabeça. — Ela
voltou à terapia, acho que você devia
começar a levar a sério a sua também.
Se curar, filho, de toda essa mágoa que
carrega no peito. Desse medo que tem
do abandono e, sobretudo, precisa parar
de culpar a música por tudo que
aconteceu comigo e sua mãe.
— Eu fiz anos de terapia e não
resolveu, pai. — Ele se aproxima um
pouco mais e aperta meu ombro.
— Talvez porque não estava
dando a devida importância. Quem sabe
agora seja a hora de tentar algo novo,
voltar a fazer o que ama. Por mais que
negue, te conheço muito bem e sei que
tem a mesma paixão que eu tenho pela
música. — Sua voz está carregada de
emoção. — Me sinto culpado por não te
mostrar que poderia lutar pelo seu
sonho, fiquei parado no tempo, achando
que a minha vida se resumia a vocês e
acabei não sendo um bom exemplo.
— Não parei de tocar por sua
culpa, sabe disso — asseguro,
encarando-o. — Eu só não queria ficar
tão obcecado pelo sucesso, como achei
que a mamãe estava.
— Isso não me faz menos
culpado, enquanto esteve aqui comigo,
eu deveria ter mostrado que era
importante que corresse atrás dos seus
objetivos sem deixar de viver toda a
experiência de ser um adolescente. —
Papai parece tão seguro no que diz, é
como se ter voltado a focar na própria
carreira tivesse acendido algo nele. —
Não quis te pressionar por medo, mas
talvez devesse ter feito isso vez ou
outra.
— Mas o senhor me pressionou.
— Ergo uma sobrancelha, lógico que
suas brincadeiras nunca chegaram a ser
uma pressão, mas não quero que se sinta
mal por mim.
— Não do jeito certo, Romeu.
— Ele ri, balançando a cabeça.
— Nunca quis ter uma carreira
como músico. — Ah, eu minto tão mal.
— É claro que sonhou, só não
era o momento ainda. Sabe de uma
coisa? — É uma pergunta retórica, mas
faço um gesto para que prossiga. —
Será um músico incrível, meu filho!
— Não serei, não — retruco.
— É claro que sim! Pare de
tentar se enganar, já se olhou no
espelho? — Papai aponta minhas
roupas. — Você nasceu para isso. Seu
jeito de se vestir, o modo como anda,
fala, as coisas que assiste... tudo em
você mostra para quem está à sua volta
que a música é a sua alma, Romeu. Acha
que não sei o que tanto escuta nesses
fones de ouvido?
— Rock pesado, sertanejo
universitário, pop. — Dou de ombros e
o vejo rir.
— Pode até enganar os seus
colegas, mas a mim, não. — Ele tem um
olhar cúmplice agora. — Você escuta
Bach, Vivaldi, Chopin, 2 Cellos, The
Piano Guys, Leandro e Natasha, além de
outros músicos modernos.
— Como sabe?
— Quantas vezes fui ao seu
quarto, antes de dormir, e te vi
assistindo aos seus vídeos antigos, com
os olhos tão vidrados que nem percebia
a minha presença ou adormecido com a
playlist clássica rodando nos fones. —
Papai aperta meu ombro. — Está mais
do que na hora de abraçar sua
verdadeira vocação.
— Nunca fiz isso — digo,
referindo-me aos vídeos, sem encará-lo.
— Aposto que agora mesmo
estava ouvindo algo relacionado a
Vivaldi, se não estiver equivocado,
pelos movimentos que fazia com as
mãos de olhos fechados ainda há pouco,
tenho quase 90% de certeza que ouvia
“As quatro estações”. — Exibo um
sorriso sutil, concordo balançando a
cabeça levemente. — Seu gosto musical
é muito requintado, precisamos aceitar
isso.
Dou de ombros, penso um pouco
no que ele disse, mas não sei se estou
preparado para assumir novamente essa
paixão pela música, nem tenho ideia de
como isso poderá mudar as coisas em
mim.
— Ah, pai, não sei se é o
momento... — falo, incerto. — Já se
passaram muito anos desde que deixei
as aulas de música e a orquestra, pode
ser tarde para voltar a isso.
— Não existe momento certo
para fazer o que amamos, Romeu —
insiste, como se fosse muito fácil
decidir. — O seu amor pela música está
por toda parte, batendo insistentemente à
porta e você se recusa a aceitá-lo, nem
consegue lidar com o que isso te causa.
Como vai conseguir ter maturidade
suficiente para enfrentar todos os
desafios que aparecem quando está
apaixonado por alguém, se não consegue
admitir para si mesmo essa outra paixão
que te acompanha desde criança?
— É complicado demais, papai.
— Tento justificar. — São coisas
diferentes...
— Se parar para pensar, vai
descobrir que são semelhantes —
afirma, convicto. — Se não consegue
dar o seu melhor para algo que emana de
você, acha que fará isso por uma garota
que está tão quebrada, que mal consegue
distinguir carência emocional de uma
paixão adolescente? Saiba de uma coisa,
filho, nenhum de vocês merece ter
apenas partes do coração partido um do
outro e era isso que estava acontecendo.
Um silêncio se instala entre nós,
me peito parece pesado demais.
— Eu só quero voltar para casa
— sussurro, com a voz entrecortada e
ele encosta a cabeça a minha.
— Sei que sim, Romeu —
responde suavemente. — Não tem ideia
do quanto eu sinto sua falta, mas às
vezes precisamos tomar decisões
difíceis em prol das pessoas que
amamos. Ainda não é a hora certa para
voltar, aqui sempre vai ser o seu lar,
nunca se esqueça disso. Porém preciso
que você explore todo o potencial que
carrega aqui dentro — ele aponta para a
minha cabeça — e exorcize todos os
seus demônios ou a maior parte deles,
antes entrar em uma relação pelos
motivos errados, porque sei que será
exatamente isso que irá fazer no
momento que voltar para casa.
— Tudo bem, papai.
— Promete que não vai fazer
nenhuma bobagem enquanto estiver
aqui?
— Prometo.
Minha vida se resume em fazer
promessas que não quero cumprir, mas
desta vez, não me sinto tão culpado e
acredito que meu pai tem razão. Preciso
colocar para fora todos os meus
sentimentos reprimidos por tanto tempo,
me encontrar de verdade para não
precisar ficar usando essa máscara de
garoto rebelde pelo resto da vida.
Quero merecer a Letícia e o que quer
que sinta por mim, porque ela é especial
demais para receber alguém pela
metade. Embora tenha demorado
admitir, é assim que tenho me sentido
desde que mamãe foi embora e
abandonei a música.
Letícia
Enquanto caminho pela trilha
entre as árvores ouvindo o som dos
pássaros acima de mim, chego à
conclusão de que eu devia ter ficado em
casa finalizando meu trabalho de
Anatomia, ao invés de vir passar o
domingo na fazenda com a família de
Ariel, eles decidiram no fim da festa por
conta da chegada repentina de Romeu.
Gosto bastante daqui, das
pessoas, de respirar o ar puro entre
tantas outras coisas, mas hoje não estou
legal para ficar interagindo como se
tudo fosse muito simples, por isso fugi
para caminhar um pouco por aí e ficar
longe da bagunça que fazem quando
estão juntos. Todos os membros dessa
família são expansivos, intrometidos e
invasivos, não de um jeito ruim, mas de
modo que me sinta parte deles.
É engraçado que, justo eu, a
garota que sempre reclamou da solidão
tenha se esgueirado sorrateiramente pela
propriedade dos pais de Ariel, apenas
para ficar sozinha. Chego até a clareira
da cachoeira e fico um tempo
hipnotizada encarando a queda d’água,
depois tiro o chinelo e me sento no
tronco de uma árvore.
Tento afastar a lembrança das
fotos do meu pai com Sara que vi ontem
à noite nas redes sociais, antes de
dormir, aniversários lembram a minha
mãe, ela adorava comemorá-los e
acabava envolvendo o marido nas
comemorações, mas agora é quase como
se eu tivesse morrido para ele. Não
devia doer tanto, mas não consigo evitar.
Tia Isis diz que é melhor essa ausência
do que conviver com a toxidade dele,
que dia após dia a minha alegria estava
sendo sugada, ela tem razão, só que
ainda assim dói.
Admiro Ariel por nunca ter
permitido que ninguém interferisse no
seu relacionamento com os filhos; a
Carla que, no final nem era a megera que
imaginei, ela ama Ana e Romeu de um
jeito doido, às vezes tenho inveja desses
dois por terem pais presentes, que se
importam de verdade. Nunca vou
esquecer como o namorado de tia Isis
me acolheu em um dos piores momentos
da minha vida, ele é bem exagerado em
algumas coisas, mas aos poucos está se
tornando uma referência paterna para
mim com toda a sua preocupação e
cuidado.
Preciso ser honesta comigo
mesma e admitir que a fuga de hoje não
tem muito a ver com o barulho todo
dentro do casarão, mas sim com rapaz
rebelde que peguei me olhando diversas
vezes durante o trajeto de casa até aqui,
como se estivesse em uma espécie de
conflito interior. Só quero que o fim de
semana acabe para que ele volte para
sua mãe e leve junto todos esses
sentimentos que estão bagunçando a
minha cabeça, desde que abri a porta
ontem e o vi, as coisas ficaram confusas
demais.
Odiei ver minhas colegas se
jogando para cima dele, também detestei
o fato de querer abraçá-lo e beijá-lo a
cada vez que nos aproximávamos, como
se ele não tivesse me ignorado esses
meses todos. Por Breno, eu teria pulado
no pescoço do garoto ali mesmo e não
largaria nunca mais, só que tenho
princípios e não vou me humilhar para
um cara que nem teve a decência de se
desculpar por ter ido embora, sem antes
terminar o que tínhamos e pisar no meu
coração depois de tudo que vivemos.
Não quero pensar em nada disso,
mas é uma tarefa homérica, ao mesmo
tempo que quero mandá-lo à merda
também quero descobrir os motivos para
ele ter fugido desse jeito. Ontem custei a
dormir, não consegui sequer ler a carta
de mamãe, fiquei segurando a vontade
de correr para o terraço, porque sabia
que o encontraria lá e estou adiando
esse momento a sós com ele, a qualquer
custo. Inspiro profundamente, deixando
que o farfalhar das folhas, o som da
cachoeira e o canto dos pássaros
carreguem para longe toda a tensão que
estou sentindo.
— Que esconderijo péssimo,
patricinha. — A voz do garoto que andei
evitando me causa um sobressalto e
quase caio de cara na água. — Conheço
lugares menos óbvios.
Ouço seus passos se
aproximando devagar, mas luto contra a
vontade de virar para olhá-lo.
— Não estou me escondendo, só
queria ficar sozinha. — Dou de ombros.
— Inclusive, já pode voltar por onde
veio.
— Eu quero falar com você —
ele diz, sentando-se
despretensiosamente ao meu lado, como
se isso não fosse causar um reboliço em
mim. — Só que está tornando isso meio
impossível.
— Ah, agora quer conversar? —
Me viro para encará-lo, percebo tarde
demais que não deveria ter feito isso,
porque seus olhos mostram um
arrependimento tão genuíno, que não
quero acreditar que seja real.
Ele parece ter noção do que
causa, enquanto brinca com a plaquinha
de metal do cordão em seu pescoço, a
regata e o short preto que lhe dão um ar
sombrio, ao mesmo tempo maravilhoso,
o que me deixa irritada.
— Sobre o que exatamente quer
falar? Sobre você ser um covarde e fugir
quando as coisas se complicam ou a
maneira como tem me ignorado esse
tempo todo? — esbravejo, sem controle
das palavras saindo da minha boca.
Noto uma nuvem de tristeza
passar por seu rosto.
— Não foi assim que aconteceu,
Lety.
— E como foi? — Minha voz
soa trêmula e carregada de rancor. —
Porque tudo que me lembro é de dormir
achando que as coisas iam ficar bem,
mesmo que tivesse todo arrebentado, eu
estava disposta a te defender para Ariel,
mas então você não voltou da maldita
viagem e ficou em silêncio até agora,
Romeu. Custava ter ao menos terminado
de forma decente?
Ele desvia o olhar, massageando
a têmpora, como se enfrentasse alguma
guerra interna idiota e fico possessa com
a ausência de argumentos concretos.
— Confiei em você, contei
coisas que não costumo dizer a ninguém,
achei que era diferente e tudo que fez foi
provar que todo mundo estava certo,
sobre a sua fama de bad boy. — Agora é
a mágoa falando por mim. — Acreditei
que estávamos vivendo algo verdadeiro,
eu te entreguei meu coração sem medo e
você não teve coragem o suficiente para
encarar as consequências de termos ido
até àquela festa que acabou mal. Além
de fazer com que me sentisse culpada
todo esse tempo, com esse silêncio
idiota.
Romeu fecha os olhos, cruzando
os braços sobre o peito e suspira
longamente.
— Acha mesmo que não
enfrentei nenhuma consequência daquela
noite? — indaga, sem me olhar.
— Morar com sua mãe não é
uma punição, você está curtindo muito
bem a sua vida cheia de regalias ao lado
dela. — Acabo deixando-o perceber que
o andei espionando.
— Não te ocorreu que posso ter
ficado em silêncio por outras razões? —
Ele comprime os lábios em uma linha
reta.
— Quando alguém não se
defende, para mim, é uma declaração de
culpa — afirmo, sentindo a raiva
voltando com tudo.
— Que droga, patricinha! Posso
ter sido um covarde, mas não ache que a
minha vida foi um mar de rosas depois
que fui embora. Não acredite muito no
que vê nas redes sociais — Romeu diz,
magoado. — Acha mesmo que eu
partiria o seu coração por vontade
própria, depois de tudo que
conversamos, das coisas que a gente
viveu, do meu medo de decepcionar as
pessoas que gosto e pior, acredita que eu
brincaria com os seus sentimentos?
— Você não me deu escolha —
justifico, porque tudo que fez até agora,
apenas o tornou em alguém que não se
importa comigo.
— Sabe que não sou assim —
Romeu argumenta, melancólico, sem me
encarar. — De todas as pessoas do
mundo, pensei que soubesse que você
seria a última com quem eu brincaria e
jamais quis te magoar.
— Mas ainda assim o fez. Por
quê? — Não quero acreditar em nada do
que diz, mas preciso de respostas.
— Tive meus motivos. — Ele
enfia a mão nos cabelos, puxando os fios
nervosamente.
Há um silêncio pesado entre nós,
o ódio em mim aumentando cada vez
mais por suas atitudes ambíguas. Como
ele pode parecer tão arrependido
quando não me procurou uma única vez
nesses meses todos? Que motivos tão
fortes seriam esses? Tudo parecia tão
bem entre a gente, duvido existir alguma
coisa que possa justificar a dor que me
fez sentir quando partiu.
— Foi por esses “motivos” que
nunca respondeu a nenhuma das minhas
mensagens? — indago, tentando
entender toda essa bagunça que nos
enfiamos.
Ele balança a cabeça
afirmativamente e exibe um sorriso
sarcástico.
— Provavelmente. — Sua
resposta não soa muito segura.
— Às vezes, acho que aquela
noite foi um pesadelo horrível e que
ainda não acordei dele, Romeu — digo,
puxando um fio do meu short, sentindo o
nó se formando em minha garganta. —
Passei meses tentando entender por que
não me procurou ao menos para acabar
tudo, e tentando descobrir o que fiz de
errado, porque acreditava que o que
estava rolando entre a gente era real.
— Foi real, Lety — afirma
baixinho. — Eu só não sabia o que fazer
depois de ter te colocado em perigo e
traído a confiança do meu pai, estava
confuso.
— ENTÃO, SIMPLESMENTE
VOCÊ FUGIU? — esbravejo, sentindo a
raiva cada vez mais crescente.
— Fiz isso porque não a mereço,
patricinha — solta, de repente, e acabo
rindo de sua desculpa esfarrapada.
— Isso é patético — resmungo,
com o ego ferido. — É tão simples e
você fica dando voltas. Bastava dizer
que não dava mais e que ia se afastar,
tinha maturidade o suficiente para
entender isso.
— A questão é que eu queria e
continuo querendo você, Letícia. —
Agora ele me encara, sério.
Inclino a cabeça para trás e bufo
alto, sem paciência para entender sua
dualidade.
— Assim fica difícil, Romeu.
Uma hora não me merece e, um segundo
depois, me quer. Qual a diferença disso?
— Existe um enorme abismo
entre querer e merecer alguém —
declara, segurando a minha mão e
mesmo que eu tenha vontade de puxá-la,
não o faço. — Você é o tipo de garota
que merece ser amada por inteiro e sou
apenas fragmentos de todas as coisas
que passei quando meus pais se
separaram, não é justo. Eu não a mereço.
Ele parece tão sincero no que diz
e acabo baixando as minhas defesas,
ignorando todo e qualquer bom senso
que tive até agora, deixando que meu
coração fale o que quer de verdade,
assumir que a minha raiva nada tem a
ver com o fato de ele nunca ter
respondido as mensagens, mesmo que
usasse sempre essa desculpa para odiá-
lo.
— E se eu quisesse juntar os
seus pedaços? — digo, sentindo as
lágrimas quentes inundarem meus olhos.
— Você não quer isso, está tão
quebrada quanto eu. É injusto. — Ele
entrelaça nossos dedos, me encarando
fixamente. — Sabe qual a pior parte de
ficar longe de você? Não poder ver o
seu sorriso todos os dias, não sentir o
seu cheiro, seu toque e não poder beijá-
la.
Romeu encosta a testa na minha,
inspirando profundamente, como se
estivesse fazendo um esforço enorme,
nossos lábios se tocam levemente, mas
ele recua antes que possamos avançar.
— Sinto sua falta todo maldito
dia, Lety — revela, arrumando uma
mecha de cabelo atrás da minha orelha,
sem desgrudar os olhos dos meus. —
Espero que em algum momento possa me
perdoar por ter partido seu coração, não
acredite nem por um minuto que não é
importante para mim, porque é.
As palavras soam tão honestas
que decido acreditar só por hoje,
embora não compreenda totalmente as
razões de seu afastamento. Coloco a
mão sobre seu peito, sentindo as batidas
ritmadas das quais tive tanta saudade.
— Está me dispensando
oficialmente? — Tento soar brincalhona
ao mesmo tempo que sinto o nó em
minha garganta.
— Parece que sim. — Sua mão
repousa sobre a minha, apertando-a e
inclino a cabeça para encará-lo.
— Então é assim que terminam
as coisas entre nós? — digo baixinho,
com um aperto no coração.
— Podemos ser amigos —
sugere, fazendo uma careta.
— Acho que não... Não vou
conseguir ser sua amiga, Romeu. —
Avalio nossa conexão e não sei se
conseguiríamos. — Podemos trocar
mensagens vez ou outra, nada além
disso.
Ele assente e meu coração dói
quando digo essas palavras, mas será
melhor assim, já nos machucamos
demais.
— É justo — Romeu fala, sem
esconder a tristeza, depois de um tempo
deslizando o polegar pela minha
bochecha. — Não pensei que fosse
concordar com isso.
Nós nos afastamos lentamente e
ele vai caminhando para trás.
— Um dia eu vou te merecer,
patricinha. — Suas palavras ecoam pela
floresta um pouco antes de ele me dar as
costas, deixando-me sozinha.
As lágrimas correm sem controle
pelo meu rosto, nunca imaginei que o
nosso fim seria assim, tão doloroso. Não
é como se quiséssemos isso, soa errado
estarmos separados e parece uma
decisão idiota, mas Romeu parece ter
certeza do que quer e, por mais que eu
queira correr atrás dele e argumentar,
não vou fazer isso.
Passei parte da vida vendo
minha mãe mendigar amor e afeto de um
homem que não a amava, não quero e
não vou repetir essa história.

“Querida filha,
Feliz aniversário!
Se está lendo esta carta, é
porque as coisas não saíram como o
planejado, sinto muito por não estar aí
nessa data tão importante. Mal consigo
acreditar que finalmente atingiu a
maioridade, parece que foi ontem que
peguei nos braços pela primeira vez
aquele pacotinho fofo e chorão que me
exigia tanta atenção.
Quero que saiba que foi o
melhor presente que Deus poderia me
dar e aonde quer que eu vá, sempre
estarei do seu lado mesmo que não seja
fisicamente. Tenho certeza de que se
tornou uma linda mulher,
provavelmente uma ótima bailarina,
embora acredite que seu talento será
mais aproveitado na dança
contemporânea, mas isso é algo que só
irá perceber com o tempo.
Espero que você tenha
conseguido seguir em frente depois que
eu parti. Que consiga se livrar da
toxidade do seu pai e não se sinta um
fardo, como tenho notado em suas
últimas visitas. Ele não faz ideia da
filha incrível que tem e isso é problema
dele.
A essa altura já deve ter se
apaixonado algumas vezes, ter o
coração partido é necessário para a
nossa evolução. Aproveite cada minuto,
chore, ame, beije e viva todas as
experiências como se o mundo fosse
acabar amanhã, porque para algumas
pessoas ele realmente acaba.
Como não terei a oportunidade
de te dar conselhos amorosos
pessoalmente, quero deixar alguns bem
importantes nesta carta. Antes de
entrar em um relacionamento sério ou
algo parecido, gostaria que soubesse
que toda mulher merece ser amada por
inteiro, merece alguém que saiba
valorizá-la por quem é embaixo de
todas as suas camadas, ande ao seu
lado e seja antes de qualquer coisa, um
amigo com quem você possa contar
sempre.
Que essa pessoa demonstre com
ações o quanto é importante para ela,
alguém que não a coloque em uma
gaiola de ouro como seu pai fez
comigo, então o meu conselho é que só
entregue seu coração para quem provar
merecê-lo.
Desejo que seja feliz, minha
filha! Eu te amo do tamanho do
universo.
Com amor,
Mamãe.”

Não consigo conter as lágrimas


ao terminar de ler a carta pela centésima
vez, apertando-a contra o peito, faz duas
semanas que tia Isis me entregou e eu
não poderia me sentir mais grata por ela
ter cumprido o desejo de minha mãe.
Demorei um pouco a ter coragem de ler,
mas quando chegamos da fazenda,
acabei lendo e as palavras dela me
acalmaram diante de tudo que estava
acontecendo comigo.
Fiquei arrasada depois da
conversa com Romeu. Os conselhos da
minha mãe pareciam se relacionar
diretamente a esse momento e ela tinha
razão, eu não posso entregar o meu
coração a alguém que não o merece.
Nossa despedida foi dolorosa, mas
necessária e eu precisei aceitar que
colocamos um fim em tudo que vivemos
no último ano.
Parece haver algo muito maior
por trás do afastamento dele, o modo
como me olhava, o jeito que falava,
corroborou para que eu pense isso. Não
é como se a decisão seja realmente dele,
isso reforça a minha teoria de que Ariel
tem algum peso nessa decisão. De
maneira alguma, eu preciso me impor,
mesmo morrendo por dentro e desejando
que ele voltasse para continuarmos de
onde paramos, sei que não posso fazer
isso, é a vida e as escolhas dele.
Já ouvi muitas conversas entre
tia Isis e o noivo dela, até mesmo de
Ana Júlia sobre como ele era diferente
quando tocava, que a separação dos pais
o mudou completamente e, de certo
modo, eu entendo como essas coisas
podem mudar o curso da nossa vida em
um piscar de olhos. Se Romeu precisa
se encontrar para conseguir finalmente
se tornar a pessoa que quer ser, tudo
bem, só não sei se poderemos ficar
juntos em algum momento no futuro.
Ele foi embora na segunda-feira
cedinho, não voltamos a conversar, o
clima entre nós parecia estranho demais.
A raiva que sentia dele já não era tão
grande e as palavras de minha mãe,
mesmo escrita há tantos anos, me
fizeram compreender que nem sempre as
pessoas se encontram nos momentos
certos da vida.
Limpo meu rosto, dobro o papel
colocando-o no envelope e o guardo na
gaveta da penteadeira, encaro a pulseira
que retornou ao meu braço, deslizando
os dedos sobre os berloques, parando no
mais recente. Um globo terrestre que,
quando aberto, revela um coração de
prata, sorrio involuntariamente.
Acaricio o metal, suspirando ao me
lembrar de como encontrei esse presente
no dia que Romeu foi embora.
A manhã havia sido intensa na
aula com as crianças, cheguei exausta
em casa para almoçar quando encontrei
a embalagem elegante sobre a minha
cama e, ao abri-la, o cartão com uma
frase curta, que me deixou encabulada.
“Você é e sempre será o meu mundo,
patricinha.” Ele não assinou, mas nem
era preciso, porque ninguém mais me
chama por esse apelido bobo. Eu
preciso aprender a conviver com essa
ausência, com o buraco que Romeu
deixou quando partiu, só que eu não faço
a menor ideia de como será daqui para
frente.
Letícia, 22 anos
Estou exausta! Me jogo na cama
assim que saio do banho, sentindo o
corpo reclamar depois de mais de dez
horas trabalhando direto. Não sei bem o
que estava pensando quando escolhi o
curso de Fisioterapia, mas o que veio
depois foi feito no automático em busca
de estabilidade financeira e uma vida de
“uma velhinha de oitenta anos”, como
Breno costuma jogar na minha cara.
Confesso que tive influência de
uma profissional — uma fofa — que
acompanhou mamãe em seus últimos
momentos, depois quando voltei a
dançar e querer seguir a carreira,
comecei a ouvir meu pai repetir
incansavelmente por anos que era perda
de tempo, isso ficou grudado na minha
mente e provavelmente é a razão para eu
ter optado por prestar concurso público,
mas o local que escolhi tem mais a ver
com a minha fuga das lembranças que
morar na casa onde vivi um tórrido
romance com Romeu me causavam.
Ariadne e Maya acharam um
exagero sem tamanho, eu me mudar para
uma cidade do interior do Tocantins, a
alguns quilômetros da capital, mas não é
assim que penso. Depois de um ano
longe de todos, estou arrependida de ter
feito isso. Devia ter escutado o meu
coração e escolhido a dança, só que
agora fico com medo de abandonar tudo
que conquistei e me jogar na incerteza
que é a carreira de um dançarino.
Parei de dar aulas para crianças
no último ano da faculdade, quase na
mesma época que Breno passou nas
audições de uma ótima companhia de
dança no Nordeste, e com sua partida
acabei deixando essa parte da minha
vida em suspenso outra vez, embora
ainda dance algumas vezes por semana,
quando não estou morta de cansaço
como hoje, para não perder a prática.
Sandra, a colega de trabalho que
divide o aluguel comigo, fica fascinada
toda vez que me pega fazendo alguma
performance e sempre questiona as
razões para eu continuar insistindo nessa
profissão, longe das pessoas que se
importam comigo e sem estar feliz de
verdade. Geralmente desconverso, mas
faz algum tempo que tenho pensado em
largar essa estabilidade toda, voltar
para casa ou, sei lá, tentar entrar em uma
boa companhia de dança.
Breno não ajuda muito e fica
colocando pilha. Mandando vídeos
antigos nossos dançando, vídeos dos
seus ensaios e isso faz a bailarina dentro
de mim querer conhecer o mundo. Só
que ao mesmo tempo fico imaginando se
não seria loucura abandonar tudo que
lutei com tanto esforço e voltar a dançar,
seguir os passos do meu melhor amigo.
O medo sempre vence e volto à
realidade, a qual estou cansada demais e
só quero dormir.
Pego o meu celular para olhar as
mensagens de tia Isis, eles viajaram para
a apresentação do Romeu, que acontece
daqui a dois dias e, apesar de saber que
é um momento importante, decidi não ir
para o bem da minha sanidade mental. Já
bastam as fotos de suas redes sociais me
atormentando desde que eles formaram o
trio, detesto o jeito que ele está sempre
sorrindo para as garotas que posam ao
seu lado.
“O voo teve um atraso e
tivemos que dormir em BH, só vamos
chegar amanhã em SP. Dê notícias no
grupo, não some.” Eu quis tanto ter o
meu cantinho e agora que tenho — ao
menos tecnicamente — não sinto a
liberdade que pensei que teria. Apesar
de não ter uma casa própria, moro em
uma casa confortável, tenho um carro
novo, me visto razoavelmente bem,
tenho minhas economias e manter tudo
isso é extremamente cansativo. A vida
adulta não é nada como os livros e
filmes nos dizem, pagar boletos e se
sustentar é um saco!
Às vezes, tenho saudade de casa,
do carinho da tia Isis, da preocupação
do Ariel, de maratonar horas e horas de
filmes com Ana Júlia e até das noites
das meninas com Ari e Maya. Tia Isis
não gostou muito quando contei meus
planos de prestar concurso em uma
cidade tão longe de tudo, mas acabou
aceitando. No fundo, ela sabe que isso
faz parte do meu plano para fugir de
todas as lembranças que estar perto
deles me trazem. Depois que me mudei,
só voltei uma vez para visitá-los e fiquei
poucos dias, porque soube que Romeu
viria.
Minto para mim mesma que não
vou até lá porque estou guardando
dinheiro para fazer uma viagem pela
Europa, ano que vem, mas no fundo sei
que só estou evitando as lembranças que
estão por toda parte. Minha tia é tudo
que tenho, agora que está grávida sei
que não vou poder continuar inventando
desculpas para não a visitar.
“Oi, bandida!” Abro as
mensagens de Breno, que não deixa de
falar comigo mesmo morando tão longe.
“Adivinha onde estou esse fim de
semana?” Percebo que enviou há quase
meia hora e como não respondi, me
deixou na curiosidade. É bem a cara
dele mesmo.
“Onde?” Digito e assim que
envio, recebo uma notificação de
Romeu.
“Boa noite, patricinha! Tudo
bem por aí? Ainda dá tempo de vir, se
quiser.” Sinto um aperto no peito.
É um momento importante da
carreira dele, o primeiro show do trio
que formou com Ivan e Matias, um
colega que fez no conservatório, depois
de uma apresentação que fizeram no
aniversário de casamento dos pais de
Ariel, viralizar na internet.
Desde a nossa conversa na
cachoeira, nos vimos muito pouco, eu
sempre tinha um compromisso inadiável
quando ele vinha para casa e acabava
fugindo dele. Ainda assim, a parte minha
que nunca o esqueceu queria com todas
as forças vê-lo depois desse tempo todo,
sentir seu cheiro, ter certeza de que o
meu coração ainda bate mais forte
quando Romeu está perto, contudo, a
minha parte racional sabe que não devo
ir.
“Desculpe, não vai dar.”
Acrescento um emoji tristinho à frase,
mas já recusei esse convite no dia em
que o recebi.
“Que pena! Ivan e Matias já
tinham todo um roteiro de turismo
planejado para você.” Os garotos são
divertidos e já falei com eles uma vez
por chamada de vídeo, assim que
formaram o trio. Fico muito feliz por
Romeu ter se encontrado na música ao
lado de pessoas tão talentosas.
Romeu está diferente do garoto
confuso que foi para a casa da mãe aos
17 anos, aparentemente resolveu seus
problemas com a Carla e se dão
superbem. Tia Isis contou que ele se
entendeu com o pai e deixou no ar que
foi por causa do pai que o garoto me deu
um pé na bunda, mas isso não importa
agora.
A mudança que mais gosto nele é
o fato de ter assumido sua paixão pela
música. É estranho, mas fui a primeira
pessoa a saber que ia abandonar a
faculdade de Administração e entrar no
conservatório, ele me mandou mensagem
no meio da noite, depois do show de
Leandro e Natasha, para contar sua
decisão. Anos depois, fiz a mesma coisa
quando passei no concurso público,
geralmente conversamos quando
estamos prestes a fazer algo importante.
Acompanhei à distância cada
parte da evolução dele, observando sua
vida através das fofocas de Ana Júlia,
tia Isis, Ari ou nas redes sociais. Me
mordo de ciúme dos comentários das fãs
emocionadas em seus vídeos, assisti a
cada uma das entrevistas que deu no
último mês para divulgar a apresentação
e fiquei morrendo aos poucos todas as
vezes que o perguntavam por que um
cara tão gato estava solteiro e ele dava
um sorrisinho sem graça, desviando do
assunto.
Sei que ele não esteve sozinho
esses anos, sua irmã sempre fez questão
de me deixar a par das aventuras dele,
que nunca duravam mais que uma noite,
Aninha fazia isso com uma cara de nojo.
Para a garota, eu era a mulher certa para
o seu irmão e não adiantava tentar
argumentar.
Óbvio que tive meus momentos,
mas nem preciso dizer que a minha vida
amorosa é um desastre, não vai muito
além de uma noite e dois ou três dias de
conversa fiada. Ninguém quer namorar
uma garota que não abre o seu coração,
então as coisas nunca avançam muito.
Por mais que finja ter superado e lembre
constantemente que foi melhor as coisas
terem terminado entre nós, sei que
Romeu é o amor da minha vida.
Enquanto estou sonhando
acordada com o meu ex-namorado,
recebo outra notificação.
“Estou em São Paulo. Vi que
sua família está aqui.” Acho bonitinho
como ele se refere a eles, mesmo que
não sejam de sangue, mas eles se
tornaram muito importantes para mim e
fico um pouco culpada por ter me
afastado deles. Ariel não diz nada, mas
sei que ficou triste com a minha decisão
de morar tão longe.
“Não era para você estar a
caminho também?” Outra mensagem
chega em seguida.
Sinto uma onda de frustração ao
responder um “Não vou” insosso, mal
envio a mensagem e o celular começa a
tocar.
— Amiga, sua bandida — Breno
diz, do outro lado. — Por que não vem?
Achei que o “encontro” finalmente
aconteceria.
Solto uma gargalhada, ele ainda
acredita que Romeu e eu vamos ficar
juntos em algum momento.
— Não vai — respondo, sem
empolgação.
— Qual a desculpa da vez? —
especula e reviro os olhos.
—Ah, tô cheia de trabalho, não
posso deixar o meu trabalho e ir curtir o
fim de semana, só porque o enteado da
minha tia ficou famoso. — Uso um tom
debochado e ele ri. — Ser assalariado é
foda, viu?!
— Devia era largar de ser
trouxa, Lety. — Quase posso vê-lo
fazendo uma careta desgostosa. — Nem
gosta desse trabalho tanto assim, a
quem está tentando enganar? Você
nasceu para dançar pelos palcos da
vida e não para ficar presa nessa
cidade no fim do mundo, conformada
com esse desfecho, quando nós dois
sabemos que pode fazer muito mais que
isso...
— Sou concursada e é esse
emprego que paga os meus boletos —
refresco sua memória, encarando o teto.
— Então, é assim que você se
engana?
— Não estou me enganando, só
estou falando a verdade, Breno. —
Mordo o lábio, como se isso fizesse a
mentira ser real. — Por que me ligou?
— Saudade, né, minha filha —
ele brinca, mas sei que há algo mais.
— O que foi? — O conheço a
tempo suficiente para saber que ele está
só preparando o terreno para algo. — O
que está fazendo em São Paulo?
— Vamos participar de uma
apresentação no domingo — diz,
empolgado. — Vou ser a estrela do
espetáculo. Coisa chique, sabe?!
— Parabéns, amigo...
— Não fique tão felizinha, o
meu par torceu o pé agora à noite no
ensaio e provavelmente vão ter que
cancelar a nossa apresentação. — Sua
voz soa dramática demais. — Se ao
menos encontrássemos alguém que
pudesse dançar comigo e aprender a
coreografia em dois dias...
Sinto uma euforia estranha me
dominando, sei o que ele está sugerindo,
mas não posso fazer isso. Parei de
dançar há tempos e isso nunca daria
certo.
— Que pena! — respondo,
fazendo um muxoxo.
— Você sabe que nós dois
conseguiríamos com certeza tirar isso
de letra. — Breno tenta me convencer.
— Não tem nada que nunca fizemos
juntos, Lety. Por favor!
— Amigo, não é assim que a
banda toca — argumento, começando a
encontrar as razões pelas quais isso não
daria certo. — Não tem como eu ir, não
sou bailarina profissional e não vão
permitir isso, Breno. Tá doido?
— Já permitiram — ele diz, em
um sussurro.
— Isso é loucura, não tem o
menor sentido. Essas pessoas nem me
conhecem...
— É aí que você se engana,
Lety; — Eu sabia que esse resgate dos
nossos vídeos nas últimas semanas
devia ter algum significado. — Tem
noção de que as pessoas aqui estão
encantadas pelo seu talento, essa é a
sua chance, amiga.
— Não vai me convencer a fazer
isso, Breno — afirmo, incisiva,
ouvindo-o rir do outro lado do telefone.
— Ah, eu vou sim! — O
descarado continua rindo, enquanto
procuro mil razões pelas quais ele está
errado em achar que posso me
apresentar assim, do nada.
— Não posso fazer isso. —
Balanço a cabeça, já nem achando a
ideia tão absurda. — E se der tudo
errado?
— Não vai, eu vou estar lá com
você, Lety — Breno me encoraja. —
Seremos nós dois no palco outra vez,
como nos velhos tempos.
Ouço a porta da quitinete se
abrir e Sandra aparece no quarto,
segurando seu jaleco.
— Tudo bem aí? — pergunta,
analisando-me.
— Sim, é o Breno — informo,
eles já se conhecem por telefone e se
dão muito bem.
— Sandra chegou? — O ouço
dizer. — Coloca no viva-voz, que
vamos resolver a sua vida agora.
Hesito por um momento, mas a
mulher baixinha parece ter escutado o
meu amigo e se senta no tapete ao lado
da cama com um sorriso largo no rosto.
Coloco o celular em cima do colchão e
aperto no ícone.
— Oi, Breno — ela diz,
encostando a cabeça na cama. — O que
está pegando?
— A Lety foi convidada para
dançar em uma apresentação
importante este fim de semana, em São
Paulo. — Sandra me olha admirada e
balanço a cabeça, como quem diz “estou
ferrada”. — Acha que ela deve perder
essa oportunidade?
— De jeito nenhum! — Pronto!
Era só o que faltava. — Ela vai sim, que
horas ela tem que estar no aeroporto?
— Eu já disse que não vou. —
Cruzo os braços, feito uma criança
mimada.
— Ninguém liga, Lety. Não
vamos te deixar perder a oportunidade
da sua vida, só porque está com medo
de tentar. — Agora ele fala como um
daqueles coaches que estão fazendo
sucesso na internet. — Cheque o e-mail
que acabei de te enviar, o seu voo sai
às duas da manhã...
— Mas são oito da noite, Breno!
— protesto, enquanto Sandra ri, já se
levantando e abrindo as portas do meu
guarda-roupa. — Trabalho amanhã.
— Pode ficar tranquila, tô de
folga, posso te levar e cobrir você até
segunda, não mais que isso — minha
amiga diz, numa calma de quem está
arrumando a bolsa para ir à esquina.
— Mas eu nem tenho dinheiro
para viajar — continuo.
— Te empresto! — Ouço Breno
gritar.
— Não dá para fazer mala
assim?! — Coloco as mãos na cabeça,
percebendo que vou mesmo ser
ludibriada por esses dois.
— Fique calma, que eu te ajudo.
— Sandra coloca uma pilha de roupa
sobre a minha cama.
— Mas daqui para Palmas é
mais de uma hora de viagem — Dou a
última cartada.
— Se sairmos às nove,
chegamos lá com tempo de sobra — Ela
pisca para mim. — O tanque do meu
carro está cheio.
Então, me conta de que já
estavam tramando isso há dias, viro-me
para o celular sobre a cama.
— Seu par realmente torceu o
pé? — Estreito os olhos na direção do
aparelho.
— Sim, é claro! — Não acredito
no que diz. — Anda, Lety, pare de
arrumar desculpas. A gente se vê
amanhã!
Não tenho tempo de dizer
qualquer coisa, porque meu amigo
encerra a chamada e Sandra começa a
rir da minha repentina falta de
argumentos.
— Amiga, tá pensando no que
ainda? — Me sento na cama sem reação
e a mulher se abaixa na minha frente. —
É isso que sempre quis fazer da vida,
tudo bem que é só uma apresentação,
mas pode te abrir portas, acho que
precisa ir e tentar.
Não estou muito certa disso,
apesar de não querer transparecer, a
notícia me faz ter esperanças de mudar o
meu futuro.
— Acredita mesmo nisso,
Sandra? — Procuro algum apoio nela e
encontro.
— Lety, você não está feliz aqui.
— Segura as minhas mãos. — Vá fazer o
que faz o seu coração palpitar, é muito
jovem para viver no automático. Eu
tenho trinta anos e não consigo
compreender como uma garota da sua
idade se conforma com uma vida tão
pacata, com tantas possibilidades ao seu
redor.
Assinto, talvez seja isso que me
falte, um pouco de loucura. Ainda estou
tentando assimilar a informação e o
celular notifica uma mensagem de
Breno.
“Não invente desculpas. Não
pense muito. Apenas confie em mim,
vou te esperar no desembarque.”
Pressiono o aparelho contra o peito,
respiro profundamente decidindo
embarcar nessa maluquice, só espero
não me arrepender depois.

Breno me encontra no aeroporto


como o combinado, mandei uma
mensagem para minha tia, informando
que estou em São Paulo, assim que o
avião pousou, e pedi que não contasse a
ninguém. Chegamos ao hotel já passam
das oito e vamos tomar o café da manhã.
— Conversei com a coreógrafa e
precisamos estar no estúdio para o
ensaio ao meio-dia — meu amigo diz,
assim que nos sentamos. — Ah, tô tão
feliz que está aqui, Lety!
— Você é maluco, sabe disso,
não é? — Faço uma careta, fingindo
estar com raiva, mas a verdade é que
durante a viagem, me dei conta de que se
não fosse assim, no susto, eu passaria a
via inteira conformada com a vida que
estou levando.
— Sou nada. — Ele dá de
ombros, espetando uns pedaços de
mamão e levando à boca. — Você... me
ama... — Faz uma pausa para engolir e
depois continua: — E então, preparada
para ver o Romeu amanhã?
Engasgo com o café, lógico que
pensei nisso — o voo inteiro, para ser
mais exata —, mas não sei se irei a essa
apresentação dele, o fato de estar na
mesma cidade que ele no mesmo dia do
show, não quer dizer nada.
— Eu não vou — sou sucinta.
— Do mesmo jeito que não viria
para cá? — Ele ergue a sobrancelha. —
Ah, qual é, Lety? Já tem anos desde que
vocês se separaram e tá na cara que
ainda se gostam, tem medo de não
sobreviver, se ele quebrar seu coração
outra vez?
— É exatamente isso que pode
acontecer — afirmo, contornando a
borda da xícara. — Não há nada entre
nós, aquilo ficou no passado, éramos
adolescentes bobos e ele quebrou meu
coração quando foi embora, sem hesitar.
— Conta outra, né, sua sonsa?!
— Breno rebate, picando um melão, que
duvido muito que irá comer. — Olha só,
querida, você está perdendo tempo
pensando assim. Sua terapeuta já devia
ter alertado para isso.
Obviamente esse tem sido um
tema frequente em nossas sessões de
terapia quinzenais, consegui superar
muitas coisas ao longo desses anos, mas
ainda não fui capaz de enfrentar o que
realmente sinto por Romeu, por medo de
ser rejeitada outra vez, sempre tem uma
parte minha que fica sussurrando que se
me entregar, vai acontecer tudo
exatamente como da primeira vez.
— O que quer que eu faça,
Breno?
— Que reaja, Lety! De um tempo
para cá, tenho a sensação de que está
perdida na vida e não consigo acreditar
nisso. — Ele suspira profundamente,
como se estivesse cansado. — Você
costumava ser uma pessoa diferente,
gostava daquela sua versão que queria
dançar pelo mundo e viver umas
loucuras ao lado do seu melhor amigo e
daquele bad boy gostoso.
— Cresci, né?! E os adultos se
tornam pessoas chatas.
— Uma ova, olha eu acho
sinceramente que tu deveria enfrentar os
seus sentimentos pelo Romeu — ele diz,
me encarando sério. — E amanhã será o
dia perfeito para isso, aproveita esse
seu tempo aqui, Lety.
Breno parece muito preocupado
comigo e fico pensando se é por isso
que tia Isis tem insistido tanto para que
volte para casa. Será que todo mundo
acha que eu parei no tempo?
— Pensa um pouco no que o seu
coração realmente quer, e se for o que
estou pensando, se joga. — Agora sua
fala é eloquente enquanto coloca açúcar
no café. — Vai viver, você não é uma
velha de oitenta anos, para estar
concursada, enfiada em uma cidadezinha
no fim do mundo, vendo a vida passar.
Precisa de mais do que isso para ser
feliz, eu te conheço, amiga!
— Não preciso disso... —
sussurro, incerta, sem olhá-lo.
— Ah, conta outra. — Breno
parece ter perdido a paciência enquanto
beberica o seu café. — Garanto que se
der um passo para fora dessa vidinha
pacata que se enfiou, vai descobrir que
pode ser muito mais que uma
fisioterapeuta de uma cidade interiorana.
Nada contra esses profissionais, mas
você, minha amiga, nasceu para brilhar
nos palcos e ninguém pode tirar isso de
ti.
— Acho que você vê o mundo de
um jeito estranho e fantasioso —
retruco, ainda repassando suas palavras
na mente.
— Não, vejo as coisas como são
e você tem um potencial incrível
guardado aí dentro, Lety. Só precisa ter
coragem de levantar e fazer o que seu
corpo, mente e coração pedem. —
Reviro os olhos, essa versão coach do
meu melhor amigo costuma me deixar
entediada, mas ele me surpreende. —
Que tal começar resolvendo a sua vida
amorosa, tem quanto tempo que você
não vê aquele de bad boy delícia?
— Mais de dois anos. — Dou de
ombros. — O que isso tem a ver?
— Olha, vocês dois podem
enganar a si mesmos, mas a mim, não.
— A segurança com que fala isso é
invejável. — Já tem um tempão que
estão morando cada um de um lado do
país, fingindo que não se gostam o
suficiente para terem uma relação. Todo
mundo sabe que isso tá errado, mas
ninguém diz ou faz nada. Precisam
admitir que sempre foram apaixonados
um pelo outro e já são maduros o
suficiente para assumir isso, sem a
interferência de ninguém, Letícia.
— Não temos certeza disso,
Breno — argumento, um tanto
incomodada. — Até onde sabemos, foi o
Romeu que decidiu terminar e até que
me provem que não foi isso que
aconteceu, vou continuar acreditando na
minha versão.
Meu amigo fica calado,
digerindo as palavras, mas é como se
soubesse de algo mais e não quisesse me
contar. Não vou pressioná-lo, essa
história já me machucou demais.
— Faz tanto tempo — ele diz,
por fim. — Não acha que merecem uma
nova chance?
— Ele não me escolheu e não há
garantia nenhuma de que fará isso desta
vez — lamento, chateada demais com os
meus sentimentos por Romeu, que
seguem inalterados. — Não existe uma
chance para nós, além do mais, ele está
em um momento importante da carreira e
com várias garotas disponíveis, não
quero atrapalhar nada. — Sinto um nó na
minha garganta ao dizer isso.
— Eu vou te bater, Lety! É
oficial! — Breno usa um tom um pouco
mais alto, que acaba chamando atenção
de um casal ao nosso lado, então ele
abaixa o tom de voz e continua: — Te
garanto que a última coisa que aquele
bad boy fake pensaria de você neste
momento é que vai atrapalhar a vida
dele e, sobre garotas, meu Deus! É sério
isso, Letícia? — Meu amigo parece
ultrajado. — Por que acha que o Romeu
nunca assumiu um relacionamento todo
esse tempo? Sua tonta, ele só tem olhos
para você, para com essa bobagem.
— Como tem tanta certeza? —
pergunto, desconfiada.
— Só sei, Lety — Ele balança a
cabeça, exibindo um sorrisinho
misterioso. — Só sei, tá bom?!
— Aham... — Ainda não
acredito nele, mas ele me ignora.
— O que vocês dois tiveram foi
lindo, apesar daquela treta toda. No seu
lugar, amanhã eu estaria na primeira fila
assistindo àquele cara brilhar. — Meu
amigo suspira dramaticamente. — Não
tem nada a perder, amiga. Já está aqui
mesmo, só se joga e deixa as coisas
acontecerem.
Não tenho a menor ideia do que
dizer a Breno, mas sei que há muita
verdade no que diz.
— Lety, você ama aquele cara e
nem adianta negar. — Ele segura a
minha mão por cima da mesa. — E uma
coisa que descobri sobre o amor é que
precisamos apoiar as pessoas que
amamos nos momentos importantes.
Nós nos fitamos por um instante
e fico me perguntando quando foi que o
meu melhor amigo se tornou especialista
em amor, será que eu estive ocupada
demais tentando levar uma vida normal
nos últimos anos e perdi algo
importante?
— Está apaixonado — constato
e ele desvia os olhos. — É por isso que
está em São Paulo e não no Nordeste, o
que você fez, Breno?
Ele pressiona os lábios e sorri
sem me olhar.
— Uma loucura, talvez — revela
francamente. — Eu me apaixonei, Lety,
faz algum tempo já, mas assim como
você, eu tive medo. Só que a vida me
deu uma segunda oportunidade e eu
agarrei com todas as forças. Fui
convidado para dirigir um espetáculo
em uma nova companhia e para ficar
perto do cara que eu amo, resolvi
aceitar.
— Por que não me contou? —
questiono, boquiaberta.
— Por inúmeros motivos e o
principal deles é que não achei que me
entenderia. — As palavras doem, tenho
sido uma péssima amiga.
— Esse espetáculo é seu? — Me
dou conta de repente de que estar aqui é
uma armação dele em todos os sentidos.
— Existia mesmo uma garota que
dançaria com você?
— Não, Lety — admite, me
encarando. — A apresentação oficial
nem é neste fim de semana. Em minha
defesa, haverá uma demonstração
amanhã, mas você não precisa
participar, se não quiser.
Aos poucos, as peças vão se
encaixando, só não quero acreditar que é
realmente o que estou pensando.
— Este hotel, o seu par para
apresentação... — Analiso os
acontecimentos das últimas horas. —
Tudo é uma grande mentira?
— Me desculpe, mas eu
precisava encontrar um jeito de te trazer
até aqui e te fazer ver o que estava
perdendo. — Ele não parece
arrependido do que fez. — Este hotel é
só um lugar para que eu e você
possamos ter um tempo juntos, como nos
velhos tempos.
A revelação me deixa pasma,
terminamos o café da manhã em
silêncio. Subimos ao quarto sem trocar
uma palavra. Talvez eu esteja
exagerando um pouco, mas ele fez com
que eu viesse até aqui, deixasse a minha
vida para socorrê-lo e tudo não passava
de um teatro.
Deito-me na cama sentindo o
corpo cobrar pela noite acordada e
Breno se deita ao meu lado.
— Vai me perdoar por ter
mentido? — indaga, segurando a minha
mão. — Juro que se tivesse outra
maneira de trazê-la aqui, eu teria
tentado, mas não vi opção.
— Talvez outro dia eu te perdoe,
Breno. — Solto a respiração devagar.
— Hoje eu só quero dormir.
— Tem outra coisa — ele diz,
hesitante. — A demonstração de amanhã
é no show de Romeu.
— Vocês armaram tudo isso
juntos? — Me viro para ele com um
olhar acusador.
— Não, Romeu nem sabe que
você está aqui — Breno revela, com um
olhar culpado. — Olha, eu só queria que
as coisas se acertassem entre vocês, não
pode me culpar por querer o seu bem,
amiga.
Sei que ele pode ter feito isso na
melhor das intenções, mas não estou
pronta para encontrar Romeu em um
palco, com centenas de pessoas
observando.
— Não vou participar dessa
apresentação, posso até aceitar fazer
parte do seu espetáculo quando
acontecer — massageio a têmpora —,
mas não conte comigo para amanhã...
— Ao menos vai ao show?
— Preciso de um tempo para
processar tudo isso — admito, com os
olhos fechados.
Há um silêncio reconfortante
entre nós.
— Acho que deveria aproveitar
a oportunidade, vai lá e agarra logo esse
homem — Breno fala, em um tom
divertido que me faz rir, mesmo estando
chateada com ele.
— A vida não é assim tão simples —
resmungo, quase cochilando.
Letícia
Apesar das mentiras que Breno
contou, havia um pouco de verdade no
enredo que criou para me trazer até aqui
e decidi aceitar a proposta de participar
do seu espetáculo, desde que não me
obriguem a dançar amanhã.
Nós nos encontramos com a
coreógrafa, passamos a tarde no estúdio
discutindo algumas coisas que poderiam
mudar na apresentação e ensaiando.
Quase no fim do dia recebo uma ligação
de Carla, porque a minha tia deu com a
língua nos dentes e, depois de muita
insistência e cutucões de Breno, aceito
ir jantar com ela, tia Isis e Ariel.
Peço um carro pelo aplicativo,
me despeço de Breno e passo o caminho
inteiro pensando no que dizer a eles,
porque tenho a sensação de que o
assunto vai girar em torno da
apresentação do Romeu.
Faz meses desde que vi minha tia
e o marido, estou um pouco ansiosa para
esse reencontro. Apesar de nos falarmos
sempre por telefone, isso não aplaca a
saudade que sinto deles, que de certo
modo são o meu lar.
Quanto a Carla, nunca fomos
próximas, conversamos poucas vezes
depois do episódio da fazenda, uma
delas quando tentou me convencer a ir a
um show de Leandro e Natasha com o
filho, mas recusei veementemente.
Outras vezes, nos falamos quando estava
em chamada de vídeo com a Aninha.
Desço na frente do restaurante,
dou meu nome ao Hostess e ele me
indica o local onde os três conversam,
distraídos. Ariel sorri de alguma coisa
que a esposa diz, tocando a barriga dela,
em seguida Carla confidencia alguma
coisa para tia Isis, que faz uma careta
engraçada.
Um viva ao mundo moderno!
Quase sorrio do meu pensamento
também, contra todas as probabilidades,
as duas mulheres não se tornaram
inimigas mortais.
Tia Isis costuma dizer que a mãe
de seus enteados só fez o que a maioria
dos homens faz e a sociedade passa
pano, e não existe razão nenhuma que a
impeça de ter a sua chance de provar
que pode ser uma pessoa boa, apesar de
tudo. Ariadne diz que a minha tia é uma
santa, ela nunca perdoou a ex-cunhada e
isso é motivo de várias chacotas entre as
duas amigas.
— Olha só, quem chegou. —
Carla nota a minha presença e se levanta
junto com os outros. — Seja bem-vinda,
Lety!
Cumprimento Ariel, que me
abraça calorosamente.
— Ah, garota você não pode
sumir assim. — Ele beija meus cabelos.
— Está um pouco magra, não acha, Isis?
Tem se alimentado direito?
— Estou me alimentando bem,
Ariel — garanto, com um sorriso e
juntando as duas mãos. — Juro?!
— Vem aqui, meu amorzinho. —
Tia Isis entra na frente do marido, me
agarrando desajeitadamente por conta da
barriga. — Sua tia está grávida, não seja
ingrata e vá nos visitar qualquer dia
desses.
A gestação deixou minha tia
ainda mais bonita, ela está radiante e,
particularmente, acho que ela é aquele
tipo de mulher que nasceu para ser mãe.
Acaricio sua barriga que já está bem
aparente no sexto mês de gestação. Nos
acomodamos, conversamos um pouco
sobre como está a minha vida, fazemos
os pedidos, enquanto aguardamos a
comida chegar o assunto começa a andar
para onde imaginei.
— Por que não nos contou que
viria para o show dos meninos? — tia
Isis especula, fingindo desinteresse,
passando a mão na barriga arredondada.
— Se tivesse avisado, teria
organizado para ficar com a gente —
Ariel emenda, sem esconder o
incômodo. — Faz tanto tempo que não
ficamos juntos, essa era uma boa
oportunidade, mesmo assim, estou feliz
por ter vindo.
— Não vim para o show —
informo e vejo o desapontamento nítido
nos três rostos.
— Mas você vai, não é? —
Carla finge não ter entendido as
entrelinhas da minha resposta. — Aliás,
depois do show terá uma comemoração
na minha casa e é óbvio que está
convidada.
— Não pretendo ir — digo
rápido demais e ela faz uma careta.
— O Romeu ficaria muito feliz
com a sua presença — Ariel fala, se
arrumando na cadeira.
— É um momento importante
para ele — Carla insiste.
— Eles estão certos, acho que
deveria ir. — Tia Isis trata de apoiar os
dois. — Já está aqui mesmo e acho que
isso é um sinal do destino, meu amor.
Balanço a cabeça, rindo sem
jeito, sabendo que estamos entrando por
um caminho perigoso e não vou ter como
controlar isso.
— O destino não tem nada a ver
com isso. — Endireito a coluna e
beberico a água que o garçom me serve.
— Breno me convenceu a dançar com
ele em uma apresentação e armou para
que eu viesse, não acho que isso possa
ser considerado destino.
As duas olham acusadoras para
Ariel e isso não me passa despercebido,
ele engole em seco.
— Lety, acho que está na hora de
saber o motivo por trás do término de
você e do meu filho — Carla começa,
cautelosa. — O Romeu não fez aquilo
por ser um bad boy malvado...
— Ah, não? — Ergo a
sobrancelha ao falar. — Por acaso,
alguém o obrigou a partir o meu coração
na primeira oportunidade, indo embora
para o outro lado do país?
— Foi quase isso — Ariel
revela, sem me olhar e lembro que certa
vez tia Isis deixou isso no ar, mas eu não
levei muito a sério.
— Ariel fez o Romeu prometer
que ia desistir de você — minha tia joga
as palavras de uma vez, me deixando
sem ar por um momento.
Solto a respiração devagar e
inspiro tentando pensar racionalmente,
deve haver alguma explicação, mas não
consigo entender por que estão me
contando isso agora.
Eu sempre respeitei Ariel e
apesar das suspeitas, nunca quis
acreditar nessa versão que o colocava
como vilão da minha história. O encaro
em busca de qualquer sinal que diga que
isso seja só uma brincadeira de mau
gosto, mas o jeito que me olha só
confirma o que acabaram de contar.
— Por favor, não me odeie, Lety
— o homem pede, quando o fito,
chocada. — Naquela época, eu
acreditava que você estava vulnerável e
que Romeu estava se aproveitando da
situação. Quando cheguei à delegacia e
vi o seu estado, me senti culpado pelo
meu filho ter te colocado em perigo.
— Não foi culpa do Romeu —
digo a mesma coisa que falei anos atrás.
— Eu quis ir, ninguém me obrigou.
— Eu acreditava que o estava
defendendo, pessoas apaixonadas fazem
bobagens e achei que era o caso de
vocês — Ariel justifica, fazendo com
que uma raiva cresça em mim.
— Ele é seu filho — uso um tom
de acusação —, devia ter confiado nele.
— O comportamento de Romeu,
até aquele momento, o colocava como
culpado — Carla intervém. — Nós
adultos acabamos julgando muito os
adolescentes pela parte superficial que
nos mostra.
Preciso admitir que meu ex-
namorado não facilitava as coisas para
os pais, mas eles deveriam conhecê-lo,
saber que jamais me colocaria em
perigo por vontade própria.
— Isis e eu queríamos muito ter
contado isso antes, mas entendemos o
que o Ariel estava tentando fazer — a
mulher argumenta, me deixando irritada.
— Lety, o Romeu não conseguia
lidar com os sentimentos e isso me
preocupou demais — Ariel explica e
não consigo acompanhar seu raciocínio.
— Fiquei com medo que de repente, ele
acabasse afundando cada vez mais nas
próprias atitudes e a levasse junto. Você
já tinha passado por coisas demais, Lety.
Não era justo, para nenhum dos dois.
— E para isso teve que nos
afastar? — digo, sem conseguir conter o
escárnio ou a mágoa que sinto.
Sou mais madura hoje do que era
antes e sei que consigo, ou posso ao
menos tentar entendê-lo, mas algo aqui
dentro, a parte do meu coração que
morreu junto à ida de Romeu naquele
dia, não está disposta fazer isso agora.
— Em parte, sim, porque quando
somos adolescentes, acabamos fazendo
coisas das quais nos arrependemos e eu
só queria evitar que se machucassem
mais — continua e não consigo acreditar
que passei todos esses anos, pensando
que Romeu não me escolheu por motivos
banais. — Espero que possa me
perdoar...
— Não posso — respondo, sem
pensar, porque estou muito chateada com
tudo isso. — Vocês nos tiraram o direito
de viver a nossa história, porque
“achavam que” não estávamos prontos.
Pode ter sido na melhor das intenções,
Ariel, mas nesse momento tudo que sinto
é raiva.
— Compreendo. — Ele passa as
mãos pelo rosto. — Preciso que saiba
que fiz isso para protegê-la. Você
precisava ser cuidada e protegida,
Letícia. Meu filho, apesar de ser um
ótimo garoto, naquela época, estava
confuso e cheio de incertezas que
poderiam machucá-la.
— Você não precisava ter
decidido por nós — cuspo as palavras,
sentindo as lágrimas quentes inundando
meus olhos.
Ninguém fala nada e só consigo
sentir uma dor horrível transpassando
pelo meu peito.
— Ariel tomou uma decisão
complicada, achando que estava fazendo
o melhor por você e por Romeu. — Tia
Isis acaricia a minha mão por cima da
mesa. — De certo modo, ele estava
certo, olha só como evoluíram
profissional e emocionalmente?
— Ah, sim. — Estou cansada
demais para fingir que isso não me
machucou. — Agora preciso agradecer
ao seu marido por ter me separado do
cara que eu amava?
— Que você ama — o homem
corrige, me fitando com um olhar
carregado de culpa. — Está na sua cara,
Letícia, ou acha que não sei que foi
morar naquele fim de mundo para se
afastar de tudo que lembra o Romeu?
— Funcionou, não foi? — Dou
de ombros, ignorando a culpa no olhar
de Ariel.
— Não... — Minha tia se arruma
na cadeira. — Nenhum de nós aguenta
mais ver vocês dois sofrendo com essa
situação. Não precisa nos perdoar
agora, sei que está com muita raiva, mas
acho que meu enteado merece uma
chance.
— Então o que querem que eu
faça agora? — indago, magoada,
tentando parecer indiferente. — Anos se
passaram e não há garantias de que se
for atrás dele, as coisas vão voltar a ser
como antes.
— Não há garantias no amor,
garota — a mãe de Romeu diz, com um
olhar cheio de compaixão. — Apenas se
permita ter uma chance, vocês são
jovens e te digo com toda certeza, o meu
filho pagou muito caro por ter acatado o
pedido do pai, mas acho que já é hora
de esquecerem o passado e olharem
para o futuro.
Fico olhando de um para o outro,
pensando em como as coisas ficaram
confusas para mim em um único dia, a
minha vidinha pacata estava tão boa, por
que essas pessoas tinham que se meter?
Agora, estou aqui de frente a eles,
cogitando correr atrás de um homem que
acreditei ter me abandonado, quando, na
verdade, só estava cumprindo uma
promessa que fez ao pai.
— Olha, tudo isso é muito
comovente, mas eu não vou correr atrás
de ninguém. Ele me deixou! — relembro
aos três, que me encaram, sem
esperanças.
Talvez Romeu não me ame o
suficiente como eles acreditam, foram
quatro anos e ele nunca me procurou de
verdade, parece que não lutou por nós.
Nos livros, com enredos de amores
impossíveis, o herói é capaz de qualquer
coisa pela mocinha, mas o cara que eu
amo, simplesmente parou de tentar por
uma maldita promessa? Isso sim, não é
justo. Ele deveria ter me contado por
que foi embora... quatro anos de um
silêncio ensurdecedor de sua parte, tudo
bem que eu disse que não poderíamos
ser amigos, mas se realmente me
amasse, teria dado um jeito.
— Só vá ao show amanhã — tia
Isis insiste, passando as mãos em meu
rosto. — Não será nenhum sacrifício
para você, meu amor.
— É, Lety, não queremos que vá
atrás dele — Carla apoia a amiga. — Só
que esteja lá e se acontecer algo mais, é
o destino.
Ariel não diz nada, consumido
em sua própria culpa. A comida chega
convenientemente quando estou prestes a
dar uma resposta, tem uma parte minha
que está gritando para que aceite a
proposta, mas não sei se devo.

É sábado, são duas da tarde e


faltam seis horas para o show dos
meninos e estou deitada no quarto do
hotel, olhando para o teto, ainda
tentando assimilar os acontecimentos de
ontem. Depois do jantar desastroso com
os pais dele e minha tia, acabei
discutindo com o meu amigo sobre todos
serem mentirosos, inclusive ele.
Breno saiu cedo para resolver
algumas coisas da apresentação que vai
fazer na abertura e estou sozinha, ouço a
porta se abrir e nem me dou o trabalho
de virar para ver quem é.
— Pelo amor de Deus, Letícia!
— meu amigo exclama, ao perceber o
meu estado. — Levanta dessa cama,
você não veio a São Paulo para se
afundar na autopiedade.
— Ainda não estou falando
contigo — retruco, entediada.
— Problema seu, porque eu
estou falando com você e se não se
levantar dessa cama, tirar esse pijama
horroroso, juro por Deus que vou te tirar
daí a pontapés — Breno fala de um jeito
tão eloquente, que me sento na cama, por
via das dúvidas.
— Eu quero ir para casa — o
informo da decisão que acabei de tomar.
— Não posso ficar aqui...
O cara se senta ao meu lado e
segura as minhas mãos.
— Não quer fazer isso de
verdade, Lety.
— Eu preciso, Breno. — Fungo,
limpando uma lágrima que escorre pelo
meu rosto. — Não posso ir a esse show.
Não posso ver o Romeu, sabendo que
ele me deixou por causa dessa promessa
ridícula que fez ao pai.
Os braços do meu amigo me
envolvem e encosto a cabeça no seu
peito.
— Ele poderia ter me contado
— digo, chorando baixinho. — Mas não,
se manteve fiel a essa merda esse tempo
todo.
Breno segura meu rosto entre as
mãos, fazendo-me encará-lo.
— Vou te fazer uma pergunta e
quero que seja sincera, amiga. — Seu
polegar acaricia minha bochecha. —
Tudo bem?
Assinto.
— Você ama o Romeu? — diz,
sem me deixar desviar os olhos dos
seus.
Não há o que pensar, eu sei a
resposta dessa pergunta há mais de
quatro anos.
— Amo — sussurro, entre
lágrimas. — É por isso que dói tanto,
Breno. Porque parece que eu amei esse
tempo todo sozinha, preciso ter amor-
próprio.
— Entendo você, amiga, mas já
percebeu que o Romeu não foi cem por
cento culpado nessa história?
— Não pode defender ele agora
— reclamo e Breno ri.
— Não estou fazendo isso, só
acho que ele merece ao menos uma
chance de se defender. — O que ele diz
parece fazer sentido. — Precisam
conversar francamente, Lety. Sem
segredos. Sem mentiras. Apenas você e
ele.
Fico pensando na lógica de tudo
isso, a possibilidade de vê-lo depois de
tanto tempo me deixa nervosa e não
parece ruim. É só o Romeu, o cara por
quem sou apaixonada desde a
adolescência. Breno me aperta entre
seus braços e beija meus cabelos.
— Acho que o amor de vocês
merece essa chance e acho que deve ir
ao show. — Ele se afasta para me
encarar. — Se não for por Romeu, vá
por mim, afinal, eu vou me apresentar
também e depois vamos à recepção na
casa da mãe dele, preciso ficar perto
daquela mulher, para ver se o glamour
dela passa um pouquinho pra mim, não
seja uma amiga ingrata.
Acabo rindo, ontem, no auge da
raiva, quando cheguei do jantar, vomitei
toda a conversa que tivemos e pode ser
que tenha escapado sobre o convite da
Carla. Estou muito tentada a ir, as
minhas certezas já não parecem as
mesmas de meia hora atrás, talvez eu
precise dar uma chance ao nosso amor,
uma chance para recomeçarmos. Limpo
as lágrimas, faço um coque frouxo e
olho para Breno, que me encara,
desconfiado.
— Eu vou — digo baixinho e ele
se anima. — Mas saiba que estou indo
por você.
— Sei. — Meu amigo ergue a
sobrancelha. — Não tem nada a ver com
o fato de que o seu bad boy gostoso vai
se apresentar?
— De jeito nenhum. — Faço um
olhar inocente.
Romeu
Abandonar a faculdade de
Administração e entrar em um
conservatório acabou sendo uma
decisão acertada, meus pais tinham
razão e admitir isso foi libertador.
Depois da conversa no terraço, após a
festa de Letícia, as palavras de papai
ficaram martelando na minha cabeça.
“O seu amor pela música está
por toda parte, batendo insistentemente
à porta e você se recusa a aceitá-lo,
nem consegue lidar com o que isso te
causa. Como vai conseguir ter
maturidade suficiente para enfrentar
todos os desafios que aparecem quando
está apaixonado por alguém, se não
consegue admitir para si mesmo essa
outra paixão que te acompanha desde
criança?”
Comecei levar a sério as sessões
com a psicóloga, ao invés de cochilar
por uma hora inteira, passei a
compartilhar os meus medos, bloqueios
e dores que faziam com que eu não
conseguisse seguir em frente sem tanta
mágoa. Mas o que me fez aceitar a
música como uma parte minha foi a
conversa que tive com Leandro e
Natasha.
Mamãe realmente falou com a
Isis sobre Letícia me acompanhar, ela
deixou a escolha para a sobrinha depois
de convencer o meu pai que eu não tinha
nada a ver com o tal pedido, Letícia se
recusou a vir, como eu imaginei que
faria, depois da nossa última conversa.
Ainda assim, Carla Cardoso conseguiu
me convencer a ir ao concerto e foi o
ponto de virada para mim.
“Os seus olhos não negam que
o Cello é sua paixão.” Leandro disse no
camarim após a apresentação, enquanto
eu admirava o instrumento que
repousava no case sobre o sofá. “Não
desperdice o seu talento trabalhando
em algo que não te traz felicidade,
garoto. A vida é imprevisível demais
para gastarmos fazendo coisas que não
gostamos.”
Foi ali, quase dois meses após a
conversa com meu pai, depois de
assistir a uma apresentação que me
deixou extasiado e falando sobre como a
música inquestionavelmente fazia parte
de mim, que decidi enfrentar o meu
maior medo: voltar a tocar e controlar a
ambição desmedida pelo sucesso.
— Cara, o espaço está lotado!
— Ivan fala, empolgado, entrando no
camarim de repente e tirando-me dos
pensamentos, quase fazendo com que
derrube o Cello entre as minhas pernas.
— Sua mãe veio com o Pedro. Seu pai,
Isis e Ana Júlia estão na primeira fila
também.
Meu coração dispara recebendo
uma descarga de adrenalina e sorrio
involuntariamente, apenas por pensar na
possibilidade de Lety ter vindo. As
coisas entre nós nunca voltaram ao
normal, nos últimos quatro anos, dá para
contar nos dedos de uma mão as vezes
que nos encontramos. Entretanto, vez ou
outra acabamos conversando por
mensagem, como há dois dias.
Leticia passou em um concurso
público em uma cidade próxima à
capital do Tocantins, assim que terminou
a faculdade e se mudou para lá, a vi
pessoalmente há quase dois anos. Isso
não significa que ela deixou de ser
importante para mim, mas a sinto cada
vez mais fora do meu alcance, como se
estivesse fugindo de nós.
— Nem precisa ficar
animadinho, porque não vi a sua
amiguinha em nenhum lugar. — Matias,
que entra em seguida, me joga um balde
de água fria, enquanto coloca
cuidadosamente o contrabaixo encostado
no sofá. — Espero que isso não afete a
nossa primeira apresentação com
plateia.
Eu sabia que não viria desde que
enviei o convite, mas uma parte minha
acreditava que Lety poderia aparecer
mesmo assim, talvez porque Breno vai
abrir o show com uma apresentação de
dança e isso me fez criar uma fantasia
em que ela estaria na primeira fileira
quando eu entrasse no palco.
— Infelizmente, não teremos a
ilustre presença da patricinha nesse
momento histórico da nossa carreira —
Ivan lamenta, ajustando o som do
violino, dedilhando as cordas como se
fosse um violão. — Vou acabar
namorando com aquela garota, o que
acha, Matias?
Começo uma tosse fajuta
misturada a uma crise de riso, esses dois
idiotas vivem para me aporrinhar o juízo
por conta de Letícia. Segundo eles, cedo
ou tarde acabaremos juntos, fizeram até
uma aposta, mas o tempo passou e
preciso assumir que perdi a minha
oportunidade com ela. Matias só a
conhece por chamada de vídeo, isso não
o impede de pegar no meu pé cada vez
que me flagra vagando pelas suas redes
sociais.
— Se o Romeu não tomar
coragem e fizer isso logo, eu é que vou
fazer esse pedido — o outro filho da
puta que se diz meu amigo retruca, só
para me irritar sentando-se ao meu lado
e em troca recebe um tapa na cabeça. —
Ei, vai estragar meu penteado?
Ele passa as mãos no coque
samurai intacto, depois arruma as
abotoaduras douradas no terno de gala
azul-marinho e a gravata borboleta de
cor igual, que destoam totalmente da
imagem que as pessoas têm dele ao ver
as tatuagens de chamas em seu pescoço
que escapam pela gola da camisa branca
e o alargador preto em suas orelhas.
— Ninguém liga, a estrela desse
show sou eu, não vocês. — Dou de
ombros, fingindo arrumar o sapato e eles
caem na risada. — Não riam, essa é a
verdade.
— Nos seus sonhos, só se for —
Matias rebate, levantando-se e
encarando o grande espelho de frente ao
sofá. — Porque, até onde me lembro, o
trio é aclamado pelos fãs e não apenas
você, seu projeto de bad boy metido à
besta. — Ele aponta para a minha roupa.
Os figurinistas levaram muito ao
pé da letra o nome do trio, apesar de
usarmos basicamente as mesmas cores,
cada um se veste de forma
completamente diferente do outro. Ao
contrário de Matias, eu uso uma calça de
brim azul-marinho, com uma parte da
camisa branca enfiada no cós e uma
gravata vermelha um tanto torta para ser
considerada um item formal, meu topete
foi desarrumado, me dando um ar
rebelde e passando um pouco essa
imagem que cultivei a vida toda.
— Ele tem memória curta. —
Ivan coloca o violino sobre uma
poltrona ao lado do sofá.
Viro-me para encará-lo, dos três
figurinos o dele é o mais “normal”, ele
usa uma camisa de seda azul-marinho e
uma calça jeans clara com rasgos nos
joelhos.
— A cabeça dele só funciona
direito quando a patricinha gata manda
mensagem, na madrugada — finaliza,
fazendo-me fuzilá-lo com os olhos.
— Mais respeito com a Lety —
resmungo, rabugento, fazendo ambos
rirem.
A troca de farpas entre nós nunca
acaba, apenas tem uma trégua vez ou
outra, pelo menos isso diminui a tensão
pré-show que estamos sentindo.
Conheci Matias no primeiro ano
de conservatório, quando me inscrevi
para a orquestra sinfônica como uma
atividade obrigatória do curso e, desde
então, passamos a treinar juntos. Ele foi
comigo para a fazenda, no aniversário
de casamento dos meus avós, ano
passado, e improvisamos uma
apresentação com Ivan, já que o meu pai
se recusou a participar dando uma
desculpa boba.
Uma sobrinha da vovó gravou e
postou nas redes sociais uma
performance emocionada que fizemos no
evento e nós viralizamos, de início não
tínhamos a menor intenção de formar um
trio, Ivan tinha um emprego estável em
uma prestadora de serviços para a
mineradora da cidade. Matias e eu
estávamos em nosso último ano de
conservatório, participávamos da
orquestra e não queríamos misturar as
coisas.
O assédio dos nossos recém-
adquiridos fãs foi muito intenso, então
há oito meses recebemos uma proposta
de uma famosa loja para postarmos
vídeos em seu canal do Youtube testando
seus instrumentos, Ivan veio para São
Paulo e aproveitamos as férias do
trabalho dele para gravar conteúdos,
inspirado em outros canais do gênero.
A coisa tomou uma proporção
que não conseguimos controlar, em
cinco meses estávamos sendo
disputados por duas grandes gravadoras,
nossas performances com milhões de
visualizações nas plataformas digitais.
Conversamos com meus pais, que
entendem sobre esse universo
burocrático, e assinamos um contrato
milionário.
Hoje será o nosso primeiro show
ao vivo, depois de uma campanha de
marketing intensa nas redes sociais,
finalmente vamos conhecer de perto as
pessoas que nos colocaram nessa
posição de artistas aclamados em
pouquíssimo tempo. Ainda não
conseguimos assimilar direito o fato de
que os três mil ingressos foram
esgotados em 72 horas. Nunca toquei
para tantas pessoas, nem mesmo quando
estava na orquestra sinfônica do
conservatório.
— Bom, gente é o que não falta
para assistir a essa apresentação — Ivan
diz, quando estamos prestes a entrar no
palco, ouvimos os aplausos na plateia
após a apresentação de dança. O
apresentador começa a contar a nossa
história.
— Ensaiamos para cacete, vai
dar tudo certo — Matias recita como um
mantra, quando damos as mãos
formando um círculo no meio do
camarim.
— Vamos mostrar para eles
como é que fazemos música — digo, um
pouco antes de levantarmos as mãos
para o alto e dizermos juntos o nome que
o público batizou os três caras
esquisitões que começaram a tocar
juntos: — Strange trio!

Quando entramos no palco,


segurando nossos instrumentos ao som
dos aplausos da plateia animada, toda a
incerteza de embarcar nessa loucura
acaba. Estar neste teatro lotado, com os
meus amigos, fazendo a nossa música do
nosso jeito louco que foge à regra
tradicional é algo incrível.
Nós nos sentamos nas cadeiras
que formam um semicírculo, Ivan e eu
começamos a mover o arco e o som
reverbera pelo ambiente com a melodia
de Hallelujah, Matias entra no refrão
com as notas graves no contrabaixo.
Fecho os olhos sentindo a música como
parte minha e aos poucos a tensão
inicial vai sumindo. Ao final, temos
rostos marcados por lágrimas e aplausos
emocionados.
— Boa noite, São Paulo! —
digo, me levantando assim que os
ânimos se acalmam. — Preparados para
uma noite inesquecível?
Coloco a mão em concha no
ouvido, como se não estivesse escutando
os gritos animados e o volume das vozes
vai aumentando.
— Um ano atrás, tocar para
tantas pessoas parecia algo surreal —
Matias confidencia, com sua voz grave
ao microfone, abraçando o contrabaixo.
— Mas vocês tornaram isso
possível — Ivan arremata, piscando
para a plateia.
— Aproveitem o show! —
finalizo, voltando a atenção para o meu
Cello.
Começo a tocar as notas de
Oblivon e a melodia vai dominando
cada parte de mim, todo o meu corpo
parece responder a esse momento, as
expressões do meu rosto acompanham a
melodia. A plateia lá embaixo parece
tão vidrada no ápice quando o som dos
três instrumentos se mistura, quase como
se não conseguissem respirar e essa
sensação de poder causar isso através
da música é arrebatadora.
Passamos por Beethoven's 5
Secrets, nós três interpretarmos com
eloquência cada parte da música. Esse é
um dos nossos toques pessoais que nos
fizeram conquistar tantos fãs ao longo
dos últimos meses. Há uma coisa que
preciso fazer antes de irmos para a parte
que as pessoas tanto esperam, então
quando os aplausos cessam, começo a
falar.
— Agora, vou pedir licença aos
meus amigos para tocar uma música que
me lembra uma garota por quem me
apaixonei, alguns anos atrás. — As
mulheres dizem um “oh!” acompanhado
de um suspiro. — Eu gostaria muito que
ela estivesse aqui hoje, mas infelizmente
não foi possível. Caso esteja vendo essa
apresentação de algum lugar, só quero
que saiba que eu ainda me lembro de
nós, todos os dias.
Arrumo o Cello entre as pernas,
fecho os olhos e a melodia de Lovely
preenche cada espaço do ambiente, o
meu coração parece se lembrar da
sensação de vê-la dançar e sorrio
involuntariamente, quase consigo sentir
o seu cheiro e o gosto do seu beijo.
A música fala sobre uma garota
quebrada quem tem medo de enfrentar o
mundo, mas quer se sentir viva, era
exatamente assim que eu a via quando
nos conhecemos, e parece que agora a
minha patricinha voltou a ser essa
menina. Finalizo o solo com os olhos
molhados e uma chuva de aplausos
eufóricos.
Essa parte não foi um improviso,
meus amigos sabiam que eu faria isso,
aliás é um dos motivos para que tirem
tanto sarro. Voltamos a formação e
pouco a pouco ficamos à vontade para
fazer a outra coisa que sabemos de
melhor: misturar o clássico com o rock e
pop.
Viva La Vida começa tirando o
ar melancólico da apresentação;
Anunciação diz que a nossa música não
se restringe; Rolling in the Deep mostra
aos espectadores boquiabertos que não
viemos a passeio; Cheap Thrills foi
ensaiada incansavelmente para dar aos
ouvintes a sensação de que nós três
conseguimos tirar som de qualquer parte
dos nossos instrumentos.
É como se Ivan, Matias e eu
tivéssemos nascido para este momento,
não existe nenhuma palavra no mundo
capaz de explicar as emoções que
sentimos a cada performance que
entregamos, paramos em alguns
momentos para conversar com a plateia,
que parece em êxtase.
— A música que vamos finalizar
o show é uma homenagem ao cara
responsável pela formação do Stranger
Trio — digo, com um sorriso no canto
da boca, procurando o rosto na fileira
mais próxima do palco, encontro o
homem com o peito inflado, uma
expressão orgulhosa no rosto. — Pai,
essa é para você!
Matias agora dedilha um violão,
o Cello e o violino entram com as notas
de Evidências, arrancando suspiros e
sorrisos emocionados, essa música
marcou toda uma geração e é
praticamente impossível pensar em um
encerramento dessa apresentação sem
ela. Ouvir o coro dos espectadores
cantando enquanto tocamos foi a coisa
mais perfeita que já vivi, sinto o
coração disparado no peito, os pelos
eriçados e uma sensação de completude
incomparável.
Nós nos despedimos do palco
com a sensação de que é isso que vamos
fazer pelo resto da vida.
Deixamos os instrumentos aos
cuidados da equipe responsável pelo
show e vamos receber os cumprimentos
de alguns patrocinadores, amigos e
familiares. Ana Júlia corre na minha
direção assim que me vê, ela não é mais
a garotinha que me enchia o saco, agora
é uma adolescente desengonçada, que é
mais forte do que aparenta — as
medalhas e troféus expostos em seu
quarto são prova disso.
— Romeu, vocês AR-RA-SA-
RAM! — diz, orgulhosa, me abraçando
pela cintura, sem se importar com as
pessoas que nos olham. — Foi
emocionante, fiquei toda arrepiada
quando começaram a tocar.
— Ei, pirralha, vá com calma,
respira. — Retribuo seu gesto, rindo. —
Vai puxar o meu saco só porque sou
famoso agora?
— Seu irmão é um bestão que
não sabe agradecer, mas a gente sabe,
não é, Ivan? — Matias passa o braço
pelo pescoço do nosso amigo, que sorri
todo bobo. — Obrigado, Aninha.
Queremos pelo menos uma centena de
fãs empolgadas feito você.
— Tem milhares delas lá fora —
ela diz, se afastando de mim e apontando
na direção da saída.
— Então, Romeuzinho, nós
vamos procurar nossas fãs. — Ivan
pisca, puxando Matias para ir com ele.
— Os seus fãs estão vindo aí e não
queremos atrapalhar.
Eles começam a caminhar,
passando pelo meu pai, que os
cumprimenta calorosamente sem
esconder o orgulho do seu ex-aluno e se
aproxima de mim, acompanhado da
esposa, minha mãe e Pedro vêm logo
atrás. Ver o orgulho estampado no rosto
dos meus pais faz tudo valer a pena.
— Eu disse que você e a música
eram uma coisa só, Romeu — papai
fala, com admiração, abraçando-me
apertado e dando tapinhas amistosos no
meu rosto. — A apresentação foi
impecável, quase não reconheci o garoto
rebelde que não queria nem saber do
Cello, se não fossem essas roupas
esquisitas.
— Pai! — ralho e ele abre um
sorriso faceiro.
— Ele está um gato, papai —
Aninha me defende.
— O quê? Não me olhe assim.
Estou aqui para te fazer vergonha,
mesmo. — Bagunça meus cabelos.
— Tá bom, Ariel. Agora é a
minha vez de fazer isso — mamãe
reclama, me agarrando, depois aperta
minha bochecha. — Filho, parabéns!
Estou tão orgulhosa de você e dos seus
amigos.
Não me arrependo de ter dado
uma chance a essa mulher, nos últimos
quatro anos ela tem se mostrado uma
mãe incrível e nem sei como agradecer
tudo que tem feito por mim.
— Obrigado, mamãe! — Beijo
sua testa, acariciando a franja platinada.
— Parabéns, Romeu! — Pedro
diz, apertando a minha mão do seu jeito
polido, ele é um cara bacana, mas é bem
na dele e já me acostumei com isso. —
Vocês foram demais!
— É meu filho e do Ariel, né,
Pê?! — Ela toca meu rosto
carinhosamente quando olha para o
namorado. — Talento aqui transborda
pelos poros.
Olho para o nosso pequeno
grupo, é engraçado como para alguns
reunir essas pessoas no mesmo ambiente
seria quase um crime, mas eles fazem
tudo parecer simples. Mamãe me agarra
pela cintura, encostando a cabeça no
meu peito, como sempre ela está
impecável, o vestido preto de manga
longa cheio de pedras brilhantes vai até
o meio das coxas, a sandália de salto
altíssimo lhe dá o ar de diva que carrega
consigo aonde quer que vá.
É incrível como Carla Cardoso
faz tudo ser um evento hollywoodiano
com sua presença, sorrio ao notar os
flashes dispararem quando ela me dá um
beijo estalado na bochecha.
— Obrigada — sussurro outra
vez, antes que se afaste.
— Não foi nada — diz,
arrumando meus cabelos daquele jeito
que as mães fazem e acabo rindo. —
Isis, não se acanhe, querida! Esse garoto
é um pouquinho seu, aproveita as raras
oportunidades que ele deixa que a gente
o mime.
Isis alisa a barriga que está bem
aparente agora aos seis meses de
gestação e me encara com os olhos
brilhando, sem conseguir conter a
emoção.
— Vem aqui, seu garoto metido
— ela chama, limpando as lágrimas com
as pontas dos dedos e me envolve entre
seus braços. — Tirei um monte de fotos
lindas de vocês. Meu Deus, Romeu!
— Tô com ciúme, tia Isis. —
Ana Júlia cruza os braços e bate o pé
teatralmente.
— Garota, você tem uma sessão
de fotos por semana. — Nossa madrasta
usa um tom divertido. — Pare de
reclamar.
— Assim, eu que fico com ciúme
— brinco, fazendo-a rir. — Gostou
mesmo da apresentação?
— Lógico! Tem noção que sua
irmã ficou saltando na minha barriga a
apresentação inteira?
— O sangue grita, não é,
Gabizinha?! — Faço uma voz infantil
tocando a barriga de Isis timidamente.
— Tô tão orgulhosa que o meu
ex-modelo ficou famoso. — Ela coloca
a mão no meu rosto, emocionada. —
Esse bad boy metido só enche a gente de
orgulho, não é, Carlinha?
As duas mulheres me abraçam
juntas e me sinto um sortudo, por ter
pessoas que acreditaram em mim,
mesmo quando eu me sentia perdido.
— Obrigado por virem! —
agradeço, olhando para cada um deles.
Jamais teria chegado tão longe
sem o apoio deles. Sinto o celular vibrar
no bolso e o pego rapidamente.
“Eu também me lembro de nós
todos os dias. Você foi perfeito, Romeu.
Parabéns!” Fico rindo para a tela feito
um bobo apaixonado, enquanto digito um
“Obrigado, patricinha”, a apresentação
foi exibida simultaneamente nas redes
sociais.
Ouço um pigarreio e quando
levanto a cabeça, não consigo acreditar
em quem está de pé na minha frente.
— Patricinha? — consigo falar,
assim que recupero a capacidade de
raciocinar direito.
O vestido verde de seda com
alças finas se ajusta perfeitamente ao
seu corpo, o decote em “V” com o
tecido dando volume aos seios, o corte
da peça destaca as curvas que ficaram
mais acentuadas ao longo dos anos e ela
nunca pareceu tão perfeita como agora.
— Será que posso cumprimentá-
lo pessoalmente? — Lety pergunta,
exibindo um sorriso tímido que me deixa
zonzo.
O som das pessoas conversando
e os olhares à nossa volta vão se
tornando um borrão quando nos fitamos,
só existem nós dois e todas as palavras
não ditas ao longo dos últimos quatro
anos. Perdi as contas de quantas vezes
quis jogar para o alto a promessa que fiz
ao meu pai, a maldita sensação de culpa
que me consumiu esse tempo todo e
correr atrás dela cada vez que via suas
fotos nas redes sociais, me dando conta
do quanto ainda mexia comigo.
Estamos há anos usando a
máxima de que o que os olhos não veem
o coração não sente, mas olhando-a
agora, tenho certeza de que não
funcionou como deveria. Mantivemos
contato por mensagens, nada pessoal
demais, com intervalos longos o
suficiente para que me martirizasse
imaginado se ela finalmente havia
encontrado alguém, por isso havia
parado de me dar notícias, então, do
nada voltávamos a nos falar, e
novamente a ter esperanças de que
poderíamos ter um final feliz.
Ainda não tenho certeza de que
sou o cara que ela merece, entretanto,
vendo-a tão linda e quase me causando
uma taquicardia, acho que está mais do
que na hora de assumir que ela é a
mulher que eu amo e isso nunca irá
mudar.
Ficamos parados na frente um do
outro, um pouco tímidos, porque faz
muito tempo desde que nos vimos
pessoalmente e então ela me envolve em
um abraço caloroso, que faz o meu
mundo voltar ao eixo.
— Você veio... — sussurro,
apertando-a contra mim, sentindo o meu
coração disparar com o seu cheiro
gostoso me invadindo.
Letícia
Decidi dar uma última chance ao
que sinto por Romeu, mas fiz isso sem
me sentar perto da família ou avisá-los
da minha presença, não fiquei na
primeira fileira, escolhi um lugar onde
pudesse me misturar às pessoas e ver
tudo como um mero espectador.
A apresentação de Breno me
surpreende, não estava preparada para
vê-lo interpretando uma versão
instrumental de Someone You Loved que
tenho quase certeza ter sido tocada pelos
meninos do trio, para a abertura do
evento. Os movimentos contam uma
triste história de amor que acabou mal.
O casal que parecia se amar demais, se
vê envolto a dores e incertezas que os
levam por caminhos diferentes, no fim a
mulher acaba sozinha em seu sofrimento.
Não consigo evitar as lágrimas quando
tudo termina.
“I was getting kinda used to
being someone you loved.” Recito
baixinho a última estrofe da música.
Sim, eu estava mesmo me acostumando a
ser alguém que Romeu amava quando
ele se foi, mesmo que não tivéssemos
assumido um ao outro, era algo real
demais para terminar daquela maneira.
Quando o show começa, acho
que meu coração vai saltar do peito, as
pernas falham e fico o tempo todo com
os olhos grudados no rapaz com o Cello.
Eu nunca havia visto Romeu tocar
pessoalmente e esse momento ficará
marcado para sempre em mim, ele toca
com a alma, seu corpo responde a cada
vibração do instrumento, deixando-o
imerso em sua interpretação intensa.
Quando eles fazem uma pausa,
após a terceira música, não passa pela
minha cabeça que, a essa altura, Romeu
me fará acreditar que ainda há tempo
para consertarmos tudo que quebramos.
“Caso esteja vendo essa
apresentação de algum lugar, só quero
que saiba que eu ainda me lembro de
nós, todos os dias.” Suas palavras
penetram fundo meu coração.
Fecho os olhos para ouvir o que
quer que ele tenha preparado, a melodia
de Lovely começa, lembrando-me da
garota quebrada que chegou à casa de
Ariel, anos atrás, e encontrou no filho
dele uma fuga para sua realidade
dolorosa. Não me tornei uma adulta
muito diferente daquela menina, quando
ele termina a câmera exibindo-o no telão
foca em seu rosto no exato momento em
que abre os olhos e uma lágrima
solitária escorre pela sua bochecha.
A multidão aplaude, emocionada
com a apresentação, depois o show
continua e me perco um pouco nas
nossas lembranças: o primeiro beijo no
terraço, nossos encontros às escondidas,
as brigas bobas, as escapadas na
fazenda, a pulseira guardada no fundo do
meu porta-joias, a nossa primeira vez na
cabana... Lembro-me da conversa que
tivemos na cachoeira, a forma dolorosa
como tudo aquilo soou.
“A questão é que eu queria e
continuo querendo você, Letícia.”
Agora a dor em seus olhos ao revelar
isso começa a fazer algum sentido.
“Eu não a mereço.”
“Um dia eu vou te merecer,
patricinha.”
Passei boa parte dos últimos
quatro anos tentando entender por que
Romeu achava que não me merecia,
apesar de sua partida e de ter
concordado com o fato de que eu não
conseguiria ser sua amiga, sempre tive a
sensação de que ele queria ficar.
As peças finalmente se
encaixam, Romeu nunca quis me deixar,
mas preciso ouvir isso de sua boca.
Como Breno disse, acho que nós
merecemos uma conversa franca depois
de todos esses anos longe.
Volto a atenção ao palco quando
percebo a plateia cantando empolgada o
refrão de Evidências, e eu nunca tinha
reparado no quanto essa música tem a
ver com a minha história com Romeu,
mesmo que uma senhora ao meu lado
diga que ele dedicou a música ao pai.
Acabo sussurrando a letra embalada
pela melodia contagiante.
Chega de mentiras
De negar o meu desejo
Eu te quero mais que tudo
Eu preciso do seu beijo
Eu entrego a minha vida
Pra você fazer
O que quiser de mim
Só quero ouvir você dizer que
sim
Quando a apresentação chega ao
fim, não consigo esconder o orgulho por
vê-lo tão entregue a algo que faz parte
de sua vida desde sempre. Ele e seus
companheiros de palco deram o melhor
de si e tenho certeza de que esta noite
foi incrível, não só para os três garotos
e seus familiares, como para os fãs que
parecem muito mais encantados do que
quando entraram.
Breno vem me buscar para o
brunch que os organizadores oferecem
para uns poucos convidados e
patrocinadores. Fico nervosa durante o
caminho todo, com a expectativa de
estar tão perto de Romeu, estou em um
canto, meio escondida, observando-o
receber os cumprimentos de seus
familiares orgulhosos.
Digito a mensagem e envio, um
pouco antes de criar coragem para
caminhar até ele. O modo como seus
olhos brilham e as reações naturais de
seu corpo quando se dá conta da minha
presença apenas confirma o que todos
me dizem desde ontem: ainda podemos
ter a nossa chance.
Não há nada que impeça de me
jogar em seus braços e assim o faço,
sem pensar em todas as mil questões
entre nós. Abraçá-lo é como estar em
casa depois de uma longa temporada
longe. É Romeu aqui, o garoto rebelde
que conquistou meu coração ainda na
adolescência, o homem que eu continuo
amando, apesar de tudo.
— Você veio... — Seu sussurro
emocionado ao me apertar contra si, faz
cada parte minha vibrar. Nossos corpos
se reconhecem, seu coração bate
disparado junto ao meu e não quero
soltá-lo.
Nós nos afastamos, hesitantes, os
olhares se prendendo um ao outro,
contando segredos, por um breve
momento o mundo à nossa volta deixa de
ser importante.
— Foi perfeito, eu sabia que
seria — falo, recobrando a consciência
de onde estamos, colocando uma
distância segura entre nós. — Parabéns!
— Não — ele diz, com os olhos
grudados nos meus. — Perfeito ficou
agora, com você aqui, patricinha.
Nem tenho tempo de argumentar,
pois sou puxada pelo braço por alguém
logo atrás de mim.
— Por que não me avisou que
estava aqui, Lety? — Aninha tem os
braços cruzados contra o peito e me
fuzila com os olhos. — Achei que
fôssemos amigas, eu sei guardar
segredo. Você disse que não viria!
— Ela mudou de ideia! — Breno
me salva, aparecendo logo atrás de mim,
segurando meus ombros. — Digamos
que os meus métodos de persuasão são
infalíveis.
Reviro os olhos, ainda não o
perdoei completamente pela mentira que
contou para me trazer até São Paulo.
Ana Júlia o encara, desconfiada, e a
puxo para um abraço apertado.
— Ainda somos amigas, Aninha
— digo, apertando suas bochechas e ela
faz uma careta desgostosa. — Só não
deu para avisar, foi isso.
— Não parece. — Ela finge
estar emburrada, mas tem um sorrisinho
de canto no rosto. — Então veio ver o
Strager Trio arrasando?
— Acho que sim. — Pisco para
ela.
Todos começam a falar ao
mesmo tempo, tia Isis me abraça
agradecendo por ter vindo, Carla me
apresenta seu namorado e diz que eu
poderia ter avisado que viria ao show
para me colocarem com eles e
desconverso. Ariel me cumprimenta com
um aperto de mão, não faço muita
questão de esconder que ainda estou
magoada com ele.
Finalmente conheço Matias que,
em alguns minutos de conversa, parece
que me conhece de uma vida inteira.
Ivan não demonstrou surpresa com a
minha presença, o que me deixa
intrigada. Conversamos um pouco sobre
a apresentação, todos muito empolgados
com o sucesso do show.
Sinto os olhos de Romeu o
tempo todo em mim, até mesmo quando
se afasta para cumprimentar algumas
pessoas, há uma tensão no ar e não
consigo me concentrar em nenhuma das
conversas paralelas.

A casa de Carla tem aquele ar


sofisticado, mas não deixa de ser
aconchegante, a recepção que ela
preparou é para poucos convidados,
alguns amigos e familiares. Vou até o
jardim, na esperança de fugir dos
olhares curiosos em minha direção,
sento-me no banco de balanço afastado
de toda a movimentação.
Romeu parece ter se adaptado
muito bem à nova vida, eu já havia
percebido isso através de suas redes
sociais, só que olhando de perto isso me
causa uma pontada de frustração. Parece
que apenas eu tive dificuldades com
isso, porque a verdade é que nunca me
acostumei com a sua ausência na minha
vida, mesmo que o nosso
relacionamento tenha sido curto.
— Está fugindo de alguém,
patricinha? — A voz do cara que tem
dominado meus pensamentos nas últimas
horas me traz de volta à realidade. —
Posso me sentar aqui com você?
Não ouso olhá-lo, apenas aceno
afirmativamente, afastando-me para o
lado, inspirando o seu cheiro que me
desperta memórias de um tempo em que
éramos felizes.
— Nós precisamos conversar...
— ele começa, encostando os cotovelos
nos joelhos e olhando para algo à nossa
frente. — Existem muitas palavras não
ditas entre a gente e já estou cansado
disso, patricinha. Não somos mais dois
adolescentes problemáticos.
— Tem razão — respondo,
entrelaçando os dedos nervosamente. —
Pode começar me contando o verdadeiro
motivo para ter partido meu coração,
porque passei esses anos todos me
perguntando o que havia feito de errado,
para você achar que não me merecia.
Pela visão periférica, o vejo
massagear a têmpora e soltar a
respiração devagar.
— Não fez nada de errado, Lety,
fui eu que fiz. — A forma como diz isso
me faz virar o rosto para encará-lo. — A
pessoa que estragou tudo entre a gente
não foi você, patricinha. — Seu olhar
cheio de culpa encontra o meu. — Ainda
não consegui me perdoar por ter partido
seu coração e muito menos aceitar que o
que fiz foi certo, só que ter colocado
você em perigo aquela noite disparou
um alerta em mim de que você também
pagaria o preço das minhas atitudes
inconsequentes, se continuássemos
juntos.
As palavras ficam pairando entre
nós, mesmo que ele não tenha dito nada
sobre o pai, sei que o que acaba de me
dizer também contribuiu para o nosso
fim.
— Está me dizendo que foi
embora porque se sentiu culpado pelo
que aconteceu aquela noite? — indago,
sem entender.
— Também, houve outro motivo.
— Ele puxa os fios do topete em um
gesto muito familiar. — Mas esse foi o
principal. Eu precisava me afastar
enquanto ainda era capaz de fazer isso.
— Não foi culpa sua, Romeu —
digo, ainda sem encará-lo diretamente.
— Eu fui com você, eu tentei separar a
confusão e tudo que veio depois disso
foram consequências de decisões que eu
tomei.
— Mas que poderiam ter sido
evitadas, se eu não estivesse tentando
ajudar o Leon. — Suas mãos passeiam
pelo rosto nervosamente. — Meu pai
sempre alertou para o perigo que era
levar adiante aquela amizade, contudo,
eu acreditava que conseguiria controlar
tudo e você se machucou, Lety.
Ele parece carregar uma culpa
enorme tanto pelo que aconteceu na festa
do ex-amigo, quanto o que veio depois e
nada que eu diga agora pode aliviar
isso. O rapaz ao meu lado parece
distante quando volta a falar.
— Quando minha mãe foi
embora, eu tornei bem complicada a
vida do meu pai, apesar de reconhecer
todo o esforço dele por mim e Ana Júlia
— admite, fazendo uma careta. —
Queria projetar uma imagem que não
condizia com quem eu era de verdade,
porque queria que sentissem pelo menos
um pouco da minha dor e por um tempo
isso funcionou. Aposentei o meu Cello,
encontrei alguns amigos de índole
duvidosa, tinha uma garota para cada dia
da semana e havia as festas de péssimo
gosto.
— Você era adolescente e a
gente faz muita bobagem achando que
está abafando, mas isso não o tornava
alguém que não me merecia. — Fito as
mãos, tentando evitar o seu olhar.
— No fundo, eu sei disso, mas
não pensei muito na época. — Ele
aperta a viga de madeira que sustenta o
balanço no chão. — Só que todas essas
coisas inconsequentes que fiz, cobraram
um preço quando você entrou na minha
vida. De repente, eu queria ser o garoto
que eu era antes da mamãe ir embora,
estava cansado de todo o meu teatro de
rebeldia, que no fundo era apenas uma
maneira de dizer as pessoas à minha
volta que estava sofrendo pra caralho...
— Um sorrisinho torto surge em seus
lábios, um pouco antes de voltar a falar:
— E o principal, comecei a acreditar
que o amor podia fazer algo além de
machucar as pessoas, ele podia ajudar a
curar as feridas.
— Isso não parece um problema,
Romeu — argumento.
— E não era, até eu me dar conta
de que meu pai não acreditava na
mudança que havia acontecido comigo
após a sua chegada. — Seus ombros
caem e ele me encara. — E, de certo
modo, ele tinha razão, porque eu estava
há anos cultivando uma imagem
diferente...
— Seu pai não tinha esse
direito... — sussurro, ainda me sentindo
magoada pelas atitudes de Ariel.
— Talvez não, mas ele achava
que você merecia de mais do que um
namorado problemático. — Romeu
segura a minha mão com os olhos presos
aos meus. — Papai estava certo,
patricinha. Doeu pra caralho ir embora
e fingir que uma parte minha não estava
morrendo por deixá-la.
— Você nem se despediu, Romeu
— reclamo, com um nó se formando em
minha garganta.
— Eu sabia que se
conversássemos uma última vez, não ia
conseguir fazer o que precisava, porque
fiz uma droga de promessa — admite,
dando um suspiro longo. —Prometi ao
meu pai que me afastaria, que não te
daria nenhuma esperança de um futuro
juntos, mas teve uma coisa que não
consegui prometer, Lety...
— O quê? — pergunto, com o
coração disparado no peito.
— Te esquecer. — A frase soa
estranha em sua voz. — Ele queria que
eu esquecesse você, patricinha. Doeu
tanto vê-lo acreditar que tudo que
aconteceu entre nós não passava de uma
brincadeira da minha parte.
— E não era? — Ergo a
sobrancelha e Romeu toca meu rosto
delicadamente.
— Eu te amava demais para
brincar com os teus sentimentos, Lety.
— Estremeço ao ouvir sua declaração
tão sincera. — Você sempre foi
importante demais para mim, achei que
isso tivesse ficado entendido. Me afastei
para que não se machucasse ainda mais
do que já estava, depois do que teve que
enfrentar com a morte da sua mãe e com
os abusos do seu pai. Vir para cá foi a
coisa mais difícil que já fiz na vida,
acredite.
— Já passou bastante tempo
desde a nossa última conversa. —
Encaro nossas mãos juntas. — Poderia
ter me procurado...
Romeu abaixa a cabeça e aperta
os olhos com a mão livre.
— Eu poderia, Lety... — Ele
solta um suspiro longo, ainda sem me
olhar. — Poderia tanta coisa, mas eu
tive medo de quebrar a confiança do
meu pai outra vez, depois de demorar
tanto tempo para conquistá-la e sei o
quanto você é importante para ele, o
quanto o velho Ariel tem medo de te ver
quebrada como quando chegou em nossa
casa, a primeira vez.
— E por isso você abriu mão de
viver a nossa história? Isso não é justo,
Romeu.
— Não abri mão da nossa
história, patricinha — afirma,
encarando-me e sinto toda a verdade
contida em cada palavra através dos
seus olhos. — Nunca faria isso, apesar
do que pareceu, esse tempo todo eu me
preparei para ser o homem que você
merece e, quem sabe assim, conseguir o
seu perdão por toda a dor que causei.
Solto o ar devagar sem conseguir
dizer nada, acho que nunca conversamos
tão abertamente sobre os nossos
sentimentos como agora.
— Ah, e pelo que me lembro,
você disse que não poderíamos ser
amigos. — Ele ri descarado, enquanto
brinca com uma mecha solta do meu
cabelo. — Confesso que passei algum
tempo pensando que se estivéssemos
longe um do outro, se não te procurasse
mais, que se eu te fizesse pensar que
tinha desistido de nós, você seria feliz,
mas depois de anos de terapia, descobri
que isso não funcionaria.
— Por que agora, Romeu?
— Quando te vi ali, parada na
minha frente, depois de tanto tempo, me
dei conta do quão covarde fui por deixar
você escapar entre os meus dedos nos
últimos anos... — Seu polegar acaricia a
minha bochecha. — Não consigo ficar
longe de você fingindo que está tudo
bem, porque não está tudo bem,
patricinha.
— Achei que você estava muito
bem com sua carreira, sua família, seus
amigos, suas fãs... — Deixo que o ciúme
fale um pouquinho por mim.
Ele sorri, balançando a cabeça,
como se o que acabei de falar fosse uma
ideia inconcebível. Apesar dessa
ceninha, me sinto tão cansada quanto
Romeu de fingir que segui com a vida e
consegui superar os meus sentimentos
por ele.
— Pensou errado. — As costas
de sua mão direita acariciam a minha
bochecha. — Lógico que,
profissionalmente, a minha vida vai bem
e resolvi meus problemas com meus
pais, mas eu preciso de você aqui
comigo para tudo isso ter um
significado, patricinha.
Pisco algumas vezes, pensando
ter entendido errado, seu indicador e
polegar seguram meu queixo, forçando-
me a encará-lo.
— O que eu disse na
apresentação é verdade, Letícia, me
lembro de nós todos os dias e não quero
cometer o mesmo erro dos meus pais —
declara baixinho.
Sua testa se encosta à minha, sua
respiração quente toca os meus lábios, o
nariz desliza pelo meu e ele continua a
falar, com a voz carregada de emoção:
— Quando penso em construir
um futuro ao lado de alguém, esse
alguém tem o seu rosto. Quando
acontece algo muito bom na minha vida,
é para você que eu quero contar,
patricinha. Quando me perguntam a
definição de felicidade, a única resposta
que me vem à mente é nós dois juntos,
perdidos um no... — Não espero que
conclua a frase e colo os lábios nos
seus.
Romeu pareceu surpreso no
início, depois enfia as mãos pelos meus
cabelos, puxando-me para mais perto,
seu gosto causa um frenesi de emoções
em mim. Eu tive tanta saudade de nós, o
seguro pela camisa, sentindo o seu
coração batendo loucamente e
simplesmente me entrego a todas as
sensações que senti tanta falta. Por um
tempo não existe nada além da nossa
saudade, do seu cheiro me embriagando,
das verdades contidas em suas
declarações, a pele arrepiada com o seu
toque e o nosso amor.
— Eu amo você, patricinha —
ele sussurra nos meus lábios, quando se
afasta em busca de ar. — Não sei como
fez isso, mas o meu coração sempre foi
seu e, se não for muito tarde, acha que
consegue me perdoar?
Li certa vez em um livro que
perdoar não é sofrer de amnésia, mas
sim dar uma chance para viver sem tanta
mágoa. Eu amo Romeu e depois de ouvir
tudo o que ele tinha a dizer, estou
inclinada a deixar o nosso passado para
trás, mas as coisas não são tão simples
assim.
Sei que nossa família espera que
nos acertemos em algum ponto da nossa
vida, mas será que esse é realmente o
momento para vivermos esse amor?
Demoro um pouco pensando se
realmente vale a pena deixar nossas
mágoas para trás e descobrir se ainda
funcionamos bem juntos.
Deslizo as mãos pelo seu rosto
bem-barbeado, absorvendo as mudanças
que os anos fizeram nele, que já não tem
mais aquela aparência adolescente.
Agora ele se tornou um homem moldado
por suas próprias cicatrizes, assim como
eu e, apesar de sermos jovens, acredito
que podemos ter a nossa chance de
recomeçar, de provar que o que
sentimos um pelo outro foi mais forte do
que a distância que nos separou todo
esse tempo.
Ele se posiciona no encosto do
balanço, me puxando para si, enfiando o
nariz no meu pescoço, inalando meu
cheiro e depois deposita um beijo ali.
— Posso esperar a vida toda —
sussurra, arrumando meus cabelos atrás
da orelha. — Mas se agilizar a resposta
para esta noite, ficarei agradecido.
— Você me magoou, foi embora
e passou meses sem me dar uma
explicação — acuso e ele faz uma
careta. — Depois, quando eu achei que
poderíamos resolver as coisas, fui
dispensada. Tem ideia do que isso
causou em mim?
— Desculpe. — Romeu beija
meu ombro, fazendo-me perder a
concentração por um momento.
— Eu quis fugir de tudo que me
lembrava você — revelo, admitindo a
verdade pela primeira vez, em muito
tempo. — Morar com seu pai, sua irmã,
dormir no quarto que foi seu... nada
disso me ajudava a esquecer o que nós
vivemos, o que eu sentia quando você
me tocava. Então eu bolei um plano
engenhoso para apagar essas
recordações, fui embora para um lugar
que nada tinha a ver com a gente...
— E funcionou? — Seu queixo
está encostado em meu ombro e sinto
sua respiração no pescoço, fazendo a
pele arrepiar.
— Depois de alguns meses,
percebi que não era a casa, a cama, as
fotos, o terraço ou a cidade que me
ligavam a você. — Faço uma pausa,
sentindo o coração quase saindo pela
boca. — Havia algo muito maior que
todas as lembranças que eu queria
sufocar: o amor, Romeu. Não importava
o quanto eu desejasse não te amar, o
sentimento simplesmente não ia embora
e, como você, estou cansada de lutar
contra isso.
Encosto o rosto no seu, entrelaço
nossos dedos e suspiro longamente.
— Eu te amo, Romeu — falo,
num sussurro. — E gostaria de tentar
mais uma vez, porque acredito muito que
o nosso amor merece uma segunda
chance. Pode ser que desta vez tenhamos
o final feliz que merecemos.
Romeu cobre os meus lábios com os
seus, mesmo depois de todo esse tempo,
com todas as mudanças que nossas vidas
tiveram, o amor entre nós resistiu e está
mais do que na hora de seguir adiante,
escrevendo o próximo capítulo da nossa
história.

Romeu
Seis meses depois
Abro os olhos, tentando me
acostumar com a claridade, o cérebro
demora processar o ambiente até
lembrar que estou no quarto do hotel. A
garota de pé na janela vestindo uma das
minhas camisas sorri para mim ao notar
que estou acordado e não consigo
acreditar que ela realmente está aqui.
— Bom dia, Sr. Bad Boy
gostoso. — A voz dela ainda está
sonolenta.
— Uau! Acordei no paraíso, é
isso mesmo? — Passo as mãos pelo
rosto, inclinando-o para o lado, tentando
ver um pouco mais do bumbum durinho
quando ela se espreguiça, o tecido da
camisa sobe e acaricio a minha ereção
matinal.
— Depende da sua concepção de
paraíso, Romeu! — A mulher caminha
até a cama, engatinhando sobre ela e une
nossos lábios em um beijo. — Dormiu
bem?
— De jeito nenhum. — Faço
uma careta. — Sonhei que tinha uma
dançarina gostosa roncando no meu
ouvido. Foi horrível!
Ela ri mordendo, meu lábio
inferior.
— Não quero saber de
dançarinas gostosas nos sonhos do meu
namorado — reclama e a envolvo entre
meus braços. — E eu não ronco!
— Ronca, sim, nunca te
contaram isso, patricinha? — Aperto seu
nariz e beijo seus lábios. — Está nervosa
para apresentação hoje?
— Demais... — Letícia diz,
fazendo círculos no meu peito nu.
Fito seus olhos, que hoje
parecem duas esmeraldas e percebo o
medo escondido lá dentro.
— Vai dar tudo certo, lindinha
— a encorajo, depositando um beijo em
sua testa. — Você é boa no que faz, esse
medo é normal. Tenho certeza de que
essa apresentação vai ser um sucesso.
Breno convenceu Lety de que
precisava voltar aos palcos e neste fim
de semana eles foram convidados para
uma apresentação em um festival de
dança importante de Joinville. Minha
namorada é perfeccionista demais
quando se trata de dança e não a julgo,
ao longo dos últimos meses ela e o
amigo ensaiaram incansavelmente para
que tudo saísse perfeito.
— Faz muito tempo desde que
participei de algo assim, Romeu — ela
diz, pensativa. — Não sei se acredito
em você, Breno e Sandra, afinal, gostam
de tudo que eu faço.
— A gente tem razão. — Pisco
faceiro, brincando com uma mecha do
seu cabelo. — Fique sabendo que a sua
família vem em peso ver a apresentação,
até a vovó vem. Todo mundo acredita
em você, vai arrasar, tenho certeza.
Quando anunciamos nosso
namoro, há cinco meses, foi uma
comoção só e desde então a nossa vida
mudou um pouco. Letícia decidiu
investir na carreira de dançarina, abriu
mão do concurso público e veio para
São Paulo morar com o melhor amigo,
há três meses.
Com a minha agenda de trabalho
intensa e sua maratona de ensaios, nos
vemos muito pouco, entretanto,
aproveitamos cada pequeno espaço de
tempo para estarmos juntos. Ainda
somos muito jovens, precisamos
aproveitar as oportunidades
profissionais que surgem e isso não
precisa ser um impedimento para que o
nosso relacionamento evolua.
O Stranger Trio agora se
prepara para uma turnê internacional,
depois de todo o sucesso nas redes
sociais com os nossos shows de estreia,
nem nos meus sonhos mais distantes eu
conseguiria prever esse futuro e sou
extremamente grato por tudo que temos
conquistado.
— Ah, eu falei para tia Isis que
não precisavam vir. — Lety faz uma
careta. — A Gabi está tão novinha para
essas viagens.
— Acha mesmo que eles vão
perder esse momento? — Ergo a
sobrancelha, rindo. — Nem a tia Ari
resistiu, e olha que ela nem foi à minha
estreia.
— Ela teve seus motivos, mô. —
Ela sai em defesa da tia preferida. —
Ari foi a mais da metade dos shows que
vocês fizeram nos últimos meses, nem o
Breno fez isso, o Ivan faz questão de
lembrá-lo sempre.
Esse dois são um caso à parte,
meu melhor amigo e o dela assumiram o
namoro publicamente, graças aos céus,
porque eu não aguentava mais guardar
esse segredo. A história deles era meio
complicada feito a nossa, mas os dois
haviam contornado tudo e foram os
grandes responsáveis pela minha volta
com Letícia, já que descobrimos outro
dia que foram eles dois que armaram
todo um plano mirabolante para trazer a
patricinha ao nosso show de estreia
— Vou começar a anotar as suas
idas às nossas apresentações também —
brinco, cutucando sua costela. — Já
mencionei que você está uma coisinha
gostosa com essa camisa?
— Ainda não, mas sou toda
ouvidos. — Letícia inclina a cabeça
para me olhar, beijo seus lábios,
girando-a para o lado e seu corpo ficar
embaixo do meu.
Prendo suas mãos acima da
cabeça, beijo seu pescoço, mordo o
lóbulo de sua orelha, abro os botões da
camisa em seu corpo, roço a palma da
mão pelos bicos dos seios arrebitados,
depois seguro, abocanhando e
chupando-o.
— Ah, Romeu... A gente não...
Ah... — Ela arfa, perdendo-se em seu
argumento.
— O que a gente não pode,
patricinha? — Mordisco o bico e chupo,
apertando-o levemente, ela enlaça as
pernas em mim, esfregando a virilha na
ereção em busca de alívio. — Tá me
dizendo que eu não posso te chupar até
gozar na minha boca, é isso?
— Ah... Isso você... pode. —
Sua voz carregada de tesão me incentiva
a continuar.
Letícia e eu somos como fogo e
gasolina quando estamos juntos, não
conseguimos manter as mãos longe um
do outro. Deslizo o nariz pelo seu
pescoço, deixando a pele arrepiada,
termino de abrir os botões da camisa
desajeitadamente, aperto seu bumbum
enquanto beijo seus lábios
demoradamente, deslizando a língua
para dentro de sua boca, explorando seu
gosto.
Desço devagar até o colo,
deixando chupadas por onde passo,
dedico um tempo aos seios, lambendo,
chupando, mordiscando e fazendo-a
gemer em resposta. Enfio as mãos entre
suas coxas e aperto a renda encharcada
da calcinha, afasto o tecido para o lado
deslizo os dedos pela carne macia
sentindo o pau latejar dentro do short.
Beijo a pele da barriga, traçando
o caminho até a virilha, inspiro seu
cheiro carregado de tesão, que é como
uma droga para mim. Seguro as laterais
da lingerie branca, tirando-a do
caminho, beijo a lateral da coxa e ela se
inclina, abrindo-se toda.
Sou incapaz de manter qualquer
compostura diante dessa boceta
depilada e molhada, caio de boca,
sentindo seu gosto, deslizando a língua,
sugando os lábios, circulando o clitóris
com o polegar e me deliciando com seus
gemidos de prazer, enquanto segura os
seios, mordendo a boca.
— Ahhhhhhh... Romeu...
Ahhhhh... — murmura, se inclinando
para mim, enfiando as mãos em meus
cabelos, esfregando-se na minha cara.
Seguro sua bunda, me banqueteio
em sua boceta ouvindo seus gemidos,
gritinhos, sussurros e palavras
desconexas. O seu gosto é a melhor
coisa que já provei e me deixa maluco,
querendo dar tudo a essa mulher, sinto o
seu corpo estremecer anunciando o
orgasmo, enfio dois dedos dentro dela,
estimulando-a ainda mais.
— Isso... Romeuuuu... Issooo...
— Letícia desaba, sussurrando meu
nome.
Vê-la gozando é uma cena
extremamente erótica da qual nunca vou
me cansar, bebo cada gota do seu prazer,
embriagando-me com o sabor
afrodisíaco enquanto ela sorri em
êxtase.
— Você ainda vai me matar, Sr.
Bad Boy gostoso... — diz, deslizando os
dedos pelos meus cabelos.

Letícia
— A dupla que vou chamar
agora tem uma química incrível. —
Ouço o apresentador, que em seguida faz
uma pausa dramática. — O palco é de
vocês, vêm pra cá, Breno e Letícia!
Solto a respiração devagar,
Breno segura a minha mão, sussurrando
um “vamos arrasar”, coloco um sorriso
no rosto, ignoro o meu coração batendo
loucamente no peito e entramos ao som
dos aplausos da plateia. Enquanto nos
posicionamos no centro do palco,
identifico a família de Ariel na segunda
fileira de cadeiras, com sorrisos
orgulhosos, não localizo Romeu e sinto
uma pontada de frustração.
Essa apresentação é muito
importante para mim, pois marca o
início de um novo ciclo e sinto que
finalmente estou seguindo os conselhos
de mamãe. Hoje, mais do que qualquer
outro dia, sinto sua presença, quantas
vezes sonhamos juntas esse momento e
ela não está aqui para dividi-lo comigo.
Sinto um nó se formar na
garganta, os olhos ardem quando as
luzes se apagam. Breno e eu ficamos de
costas um para o outro, a introdução de
Lovely começa baixinho e vai
aumentando. Um foco de luz paira sobre
nós, minhas mãos estão suadas, sinto um
frio na barriga.
Apesar de ter ensaiado
incansavelmente nos últimos meses,
ainda me sinto insegura. Será que as
pessoas vão gostar? Será se consigo
fazer tudo certo até o final? Por que o
meu namorado não está aqui, quando ele
prometeu que estaria ao meu lado? É um
momento importante, poxa!
O som grave do Cello começa,
com a luz focando na gente não consigo
ver quem está tocando. Damos início à
coreografia, me curvo para trás com
nossos corpos em sincronia e após
alguns movimentos, corremos pelo palco
como se fugíssemos um do outro, não
consigo me concentrar direito com
tantos questionamentos na minha cabeça.
Inspiro profundamente, tentando me
acalmar.
“Não importa o que o seu pai
ou qualquer outra pessoa diga, você é
forte e capaz de conquistar tudo o que
desejar.” As palavras de mamãe, em
nossa última conversa, surgem dando-
me um estalo.
— Eu consigo! — sussurro para
mim mesma.
Vou fazer isso por mim, por
mamãe, por tia Isis e por todas as
pessoas que estão ali embaixo
esperando que eu dê o meu melhor.
Ando de costas até o centro,
incorporando a garota assustada que a
melodia representa e um novo foco de
luz se acende na parte oposta a nós,
revelando o músico com o Cello, me
concentro nos movimentos e quando dou
um salto, reconheço quem é a pessoa
tocando de forma tão expressiva.
Romeu, ele está no palco conosco.
Noto o sorrisinho de canto em
seus lábios ao deslizar o arco sobre as
cordas do instrumento e quase posso
ouvir suas palavras sussurradas um
pouco antes de nos despedirmos mais
cedo: “confie em você mesma,
patricinha, se preparou a vida toda
para esse momento”.
Minha família está aqui, as
pessoas que se importam realmente
comigo vieram para me dar forças e é
nisto que vou focar. Eu consigo! Volto a
me concentrar enquanto giro nos braços
de Breno, fazemos movimentos
espelhados, saltos, nos entregando de
corpo e alma à interpretação que mistura
balé clássico e hip-hop.
Torno-me a garota da letra, que
se esconde em seu casulo sem encontrar
uma saída depois de ter o seu coração
partido, mas que deseja se sentir viva de
algum modo e por isso vaga pelo mundo,
procurando sempre por um lugar melhor.
Breno é o rapaz que a partiu e tenta
colar seus pedacinhos, contudo, o
coração dela permanece em um vazio
que ninguém é capaz de preencher.
Aos poucos, ela vai percebendo,
enquanto luta seus conflitos internos, que
precisa alimentar a esperança de que um
dia ela conseguirá ser feliz, mesmo que
demore. Nas notas finais, repetimos os
movimentos iniciais como se
estivéssemos em um looping e
finalizamos frente a frente, nos olhando
como se houvesse alguma solução para
o dilema do casal que interpretamos.
Estou suada e ofegante quando as
luzes se apagam, Breno segura a minha
mão direita e Romeu entrelaça os dedos
na esquerda, assim que tudo fica claro
outra vez. A plateia nos aplaude de pé,
dá para ver nos olhos das pessoas que
conseguimos passar tudo que
imaginávamos.
— Você estava maravilhosa
naquele palco, patricinha! — meu
namorado elogia, passando os braços
em meu ombro ao caminharmos até os
bastidores e depois sussurra: — Acho
que te amo um pouquinho mais, depois
dessa apresentação.
— Bobo! — Dou um tapa em seu
peito. — Obrigada, por estar lá comigo.
Foi muito importante.
— Mas olha, e eu que dancei
contigo? — Breno ergue a sobrancelha
em uma ceninha bem típica de ciúme. —
Eu vim antes desse projeto de bad boy
fake que você chama de namorado.
— Uou... Eu tô bem aqui. —
Romeu finge estar ofendido. — Essa
garota é minha, aceita que dói menos!
— Ah, sem brigas. — Puxo o
braço do meu amigo para que se
aproxime um pouco mais. — Tem
Letícia para todo mundo. — Dou um
beijo na bochecha de cada um deles. —
Eu amo vocês, de maneiras bem
diferentes. Obrigada por não desistirem
de mim!
— Jamais — eles dizem juntos,
me envolvendo em um abraço esquisito.
— O mundo é seu, amiga! —
Breno diz, emocionado, tocando meu
rosto quando nos afastamos.
Eu nunca achei que me sentiria
tão feliz fazendo o que gosto e tendo o
apoio de gente que me ama,
independentemente da profissão que
escolhi exercer ou da roupa que estou
vestindo. Isso é libertador!
Letícia
Sete anos depois
“Só entregue seu coração para
quem provar merecê-lo.” Lembro-me
das palavras da carta de minha mãe
quando fiz dezoito anos, enquanto olho
para o homem de joelhos à minha frente,
exibindo um elegante anel de brilhantes.
— Você quer se casar comigo,
patricinha? — Romeu repete a pergunta,
como se eu não tivesse escutado da
primeira vez.
Suspiro, abrindo um sorriso, é
quase meia-noite e estamos na varanda
de um hotel em Gramado, oficialmente
de férias, após uma temporada intensa
de trabalho. Nós moramos juntos há
cinco anos, nossa vida não poderia estar
mais perfeita e sem sombra de dúvidas
Romeu já provou inúmeras vezes que
merece o meu coração.
— Não sou mais um adolescente
flexível e se puder responder de uma
vez, ficaria muito grato — ele reclama,
fazendo uma careta.
— Eu aceito, Romeu —
respondo, finalmente, acariciando seu
rosto. — É claro que vou me casar com
você.
Ele coloca o anel exuberante
beijando o dorso de minha mão, como
os mocinhos dos filmes de época, se
bem que os seus trajes nada tem a ver
com um. De camisa branca e moletom
cinza, o meu — agora — noivo está
igualmente perfeito.
— Por um momento, achei que
estava me dispensando — ele sussurra,
me agarrando pela cintura, encostando a
testa na minha. — Você é a coisa mais
importante que tenho na vida, patricinha,
e quero passar o resto da minha vida ao
seu lado — afirma, encostando os lábios
nos meus. — Mesmo que você adore
roubar as minhas camisas.
Acabo rindo de sua gracinha.
— É que eu adoro acordar e
dormir com o seu cheiro, mô —
justifico, colocando a mão sobre seu
ombro, é um costume que adquiri ao
longo dos anos, quando as nossas
agendas estavam tão lotadas, que mal
conseguíamos passar uma ou duas noites
juntos.
— Prometo que vamos organizar
direito esses compromissos e ter mais
tempo para nós. — Romeu beija meus
lábios calorosamente, enfiando a língua
na minha boca e deixando-me com as
pernas bambas.
— Ei, vá com calma, estamos em
uma sacada com vista para a cidade —
o lembro e Romeu sai me puxando
quarto adentro, fechando a porta da
varanda com o pé.
— Vai mesmo se casar comigo?
— ele diz, já com as mãos nos botões da
minha camisa.
— Óbvio que sim. — Mordo seu
lábio inferior, enfiando as mãos por
baixo da sua camisa. — Acha que eu
não deveria?
— Ah, penso que deveria, sim.
— Romeu desliza o tecido da camisa
pelo meu braço, beijando meu ombro
deixando-me apenas com a calcinha
preta rendada. — Eu sou um gato,
músico, beijo bem, bom de cama, te
levo às nuvens sempre e...
— E muito modesto —
completo, rindo.
Tiro a sua camiseta, deslizando
as mãos pelos músculos de sua barriga,
encostando o nariz em seu pescoço,
enquanto ele massageia meus seios,
beliscando os bicos.
— Mas... eu te amo, mesmo
assim — sussurro, vendo sua pele ficar
arrepiada.
— Que bom... — Fecho a mão
no volume do seu moletom, fazendo-o
praguejar. — Ai, porra! Por que você
faz isso comigo?
Ignoro sua pergunta fingindo
inocência e beijo o pescoço, mordo o
lóbulo de sua orelha, deslizo a mão pelo
tórax, beijando a pele, suas mãos
pressionam a minha bunda e deslizam
pelas minhas costas, se infiltrando nos
meus cabelos.
— Ah, eu bem que mereço essa
boca no meu pau depois de colocar esse
anel magnífico no seu dedo. — Adoro
quando seu lado safado surge. — Não
acha, patricinha?
Coloco um dedo na sua boca,
enquanto enfio a mão dentro da sua
calça, acariciando o membro grosso,
fazendo-o emitir um xingamento.
— Você fala demais e vai ser
punido por isso. — Ajoelho-me em sua
frente, abaixando a sua calça, salivando
ao ver o pau saltar quase batendo em
meu rosto, o masturbo com a mão e ele
inclina a cabeça para trás, soltando um
gemido.
— Caralho! Pode me punir do
jeito que quiser, patricinha gostosa —
diz, com a voz carregada de tesão.
Abocanho o membro com os
olhos grudados nos dele, coloco o que
consigo dentro da boca, massageio suas
bolas, chupo-o devagar, aumentando o
ritmo aos poucos, ouvindo-o gemer.
Lambo o pau grosso, sugo a glande
rosada, seu gosto me invadindo e sinto
minha calcinha molhada. Volto a chupá-
lo gostoso, em um ritmo que o leva à
beira da insanidade.
— Que boquinha deliciosa, Lety
— ele rosna, um pouco antes de perder
o controle. — Ahhhh... Letíciaaa...
Romeu goza em minha boca e
engulo tudo, limpo o canto dos lábios,
lhe exibindo um sorriso quando fico de
pé, o homem me puxa para si, devorando
meus lábios ainda com o seu gosto, a
língua dançando junto à minha de uma
maneira obscena.
Caímos no colchão, com ele por
cima beijando meu pescoço,
abocanhando meus seios, esfregando o
pau entre minhas pernas, voltando a me
beijar e repetindo tudo em um ritmo
quase selvagem.
Ele se livra da calcinha,
afastando-se por um momento para
vestir seu membro com o preservativo,
então volta abrindo minhas pernas,
massageando a carne molhada e se
inclinando para me chupar.
— Romeu! — sussurro seu
nome, puxando seus cabelos e ele
interrompe o que está fazendo, como se
lembrasse de algo mais importante.
Sua boca devora a minha e emito
um grunhido ao senti-lo deslizando para
dentro de mim, estocando em um ritmo
que começa lento e aos poucos vai se
tornando uma dança insaciável.
— Você gosta, não é, sua safada?
— A voz sexy me deixa ainda mais
excitada.
— Adoro... — Empurro-o para o
lado, sem desfazer a nossa conexão. —
Mas agora eu vou me sentar nesse pau e
gozar do meu jeito, entendeu, Romeu?
Ele ri, apertando meu seio.
— Isso, patricinha, goza para
mim, goza — O homem apoia as mãos
na minha cintura, enquanto cavalgo em
busca de prazer.
Esfrego, sento, rebolo, subo e
desço em seu pau, fazendo uma
coreografia obscena que nos leva a um
mundo só nosso. Cheio de sensações
indescritíveis, gemidos e sussurros.
— Assim eu não vou aguentar,
Lety — Romeu diz, quando apoio as
mãos em seu peito.
Intensifico os movimentos, estou
quase tocando as estrelas.
— Ahhhhhhh, Romeuuu. —
Desabamos juntos, queimando como
sempre, ofegantes, com o coração
batendo desenfreado.
Encosto a cabeça em seu peito,
esperando o mundo ao nosso redor parar
de girar, seus dedos traçam linhas
imaginárias nas minhas costas, observo
o anel em meu anelar esquerdo e só
consigo pensar em uma coisa, esse cara
incrível vai ser meu marido muito em
breve. Eu devo ser a pessoa mais
sortuda deste mundo.
— Amo você, patricinha —
Romeu diz, depois de algum tempo. —
Prometo que vou te fazer feliz como
merece.
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[1]
profissional especializado na construção e
no reparo de instrumentos de corda com caixa
de ressonância (guitarra, violino etc.), mas não
daqueles dotados de teclado.

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