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Copyright © Agatha

Santos
Capa e Diagramação: Criativa TI
Revisão: Bah Pinheiro
Esta é uma obra de ficção. Seu intuito é entreter as
pessoas. Nomes, personagens, lugares e acontecimentos descritos
são produtos da imaginação da autora. Qualquer semelhança com
nomes, datas e acontecimentos reais é mera coincidência.
Esta obra segue as regras da Nova Ortografia da Língua
Portuguesa.
Todos os direitos reservados. São proibidos o
armazenamento e/ou a reprodução de qualquer parte dessa obra,
através de quaisquer meios — tangível ou intangível — sem o
consentimento escrito da autora.
Criado no Brasil. A violação dos direitos autorais é crime
estabelecido na lei n°. 9.610/98 e punido pelo artigo 184 do Código
Penal.
Sumário
Sinopse
Dedicatória
Agradecimentos
Prólogo
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Capítulo 38
Capítulo 39
Capítulo 40
Capítulo 41
Capítulo 42
Capítulo 43
Capítulo 44
Capítulo 45
Capítulo 46
Capítulo 47
Capítulo 48
Capítulo 49
Capítulo 50
Capítulo 51
Capítulo 52
Epílogo
Sobre a Autora
Sinopse
Emir sempre foi um homem sério e centrado. Suas
responsabilidades com a família vêm em primeiro lugar, mesmo que
isso o jogue, por diversas vezes, em caminhos que nunca almejou
trilhar.
Catarina está em um momento difícil da sua vida. Educada e
moldada para ser o que a mãe determinasse, nunca pensou que
seria obrigada a se casar para salvar o nome Mancini da falência.
Uma noite avassaladora, na boate WALAH, seus desejos
ditam as ações e um homem misterioso cruza seu caminho.
O calor das areias do deserto é sentido por ela através do
seu toque, um momento tórrido e latente que a faz agir sem pensar
e marca em definitivo o destino de ambos.
Dedicatória
A todas que se permitem enxergar o outro lado da moeda.
Agradecimentos
Com este livro realizo um desejo há muito distante. Escrever
meu primeiro mocinho com essa origem.
Sou apaixonada por aprender, principalmente o que se
relaciona a culturas diferentes, busco mostrar um pouco do que
pesquiso adequando a trama criada.
Agradeço a Deus a oportunidade de escrever esta obra de
forma tão rápida, aconteceu uma pausa na reta final do livro, a
primeira em mais de cinco anos de profissão, para me dedicar à
minha missão espiritual, o que só acrescentou positivamente
quando o retomei.
Às minhas queridas amigas, companheiras de profissão,
colegas de jornada, que incentivaram e estiveram ao meu lado
compartilhando dos processos.
A todas as leitoras, queridas, amadas e atrevidas, que
sempre estiveram comigo nas aventuras que proponho a cada livro.
Obrigada pela oportunidade de mostrar mais uma história
apaixonante para o mundo.
Prólogo
Entro na boate WALAH, um novo conceito de ambientes
com as músicas e DJs da atualidade, destinada à elite e muito
badalada na cidade. Toda sua decoração é inspirada na Turquia, ao
que parece, um dos investidores tem origem turca e resolveu
apostar no ramo do entretenimento no Brasil.
Uso um vestido preto Gucci, ajustado às minhas curvas
esguias, graças à genética da família, sou alta, magra, cabelos
levemente ondulados e claros ao natural.
Uma raridade no mundo de hoje, mas de fato não preciso de
muito para estar encaixada no estereótipo ditado pelo ramo da
beleza, completamente equivocado, na minha opinião.
Houve uma época que minha mãe tentou me forçar a seguir
carreira de modelo, mas neguei veemente e ameacei fugir de casa
para sempre. Exagero que nunca concretizaria, mas funcionou para
mantê-la longe e respeitar meu espaço.
Caminho entre corpos suados que se remexem ao ritmo de
uma batida eletrônica intensa, a escuridão do ambiente é
parcialmente iluminada por ondas de luz, os tons quentes lembram
as areias do deserto, faz a alusão de estarmos lá.
— Tequila? — Layla, minha melhor amiga, questiona alto
para que eu possa ouvir.
— Sim. — Balanço a cabeça e faço sinal de joia.
Depois de uma conversa tensa com a minha mãe sobre os
negócios da família, mandei mensagem para Layla e marcamos de
nos encontrar aqui.
Um ritmo sensual entra nos alto-falantes, começo a mover
os quadris no compasso, fecho os olhos e ergo uma mão. Giro e
rebolo com mais ênfase, amo as melodias que despertam meu lado
ousado, é como se o corpo falasse através dos movimentos e
mostrasse todo desejo que oprimo em meu íntimo.
Tanto tempo agindo dentro de padrões pré-estabelecidos,
algo primitivo e visceral, que oculta meu lado mais devasso, se
esconde por baixo das responsabilidades que fui obrigada a assumir
desde cedo por conta do comportamento de dona Elisandra.
Hoje, quero extravasar, colocar toda essa ânsia que me
consome para fora, vou achar um homem apto, quente e disposto,
para ser minha distração e válvula de escape.
Layla me entrega duas doses de tequila, temos um ritual
desde que começamos a beber, abrimos as noites com dois copos,
consecutivos, assim entramos no clima da festa, sendo boa ou ruim.
Batemos os copos ao mesmo tempo e viramos, uma e em
seguida a outra. Sinto meu palato e garganta queimarem, o
estômago protesta levemente, mas mantenho firme meu propósito.
Preciso de mais bebida e uma boa observação para
encontrar a presa certa.
Peço um Dry Martini, subimos para o mezanino, reservado
para elite da alta-roda, já que aqui não entra ninguém que não tenha
muitos dígitos na conta bancária.
Ao que parece, minha querida mãe tem um bom
relacionamento com a administração ou assessoria do lugar, não
entendi bem, só gravei a parte que poderia usar seu nome para ter
acesso ao ambiente exclusivo.
Uma sala ampla, bem-decorada, ainda na mesma temática,
sofás dispostos pelo lugar, algumas pessoas dançam, outras
sentadas conversam, miro no canto extremo e encontro o que
procuro para a noite.
Um homem sisudo, observador, tem os olhos atentos ao
salão, parece gravar milimetricamente cada um na pista, cabelos
curtos, uma barba espessa, tão grossa, que consigo medir seu
contorno alinhado daqui.
Usa uma camisa preta social de manga comprida, ajustada
a seu tronco, avanço alguns passos determinados, preciso analisar
melhor. Paro próxima à grade, balanço o corpo sutil, enquanto
circulo o dedo na borda do copo e finjo prestar atenção nas pessoas
dançando.
Aguardo tempo suficiente para virar na direção do homem
misterioso, meu ar sensual se dissipa ao encontrar o lugar vazio.
Bato o pé, feito uma criança mimada, irritada, ao girar, trombo de
frente com um peitoral firme, meu copo vira em cima de nós, mas
antes que me afaste, sinto duas mãos grandes segurarem meus
braços.
O calor que o contato passa faz minha pele se arrepiar e um
choque se alastrar por todo braço e descer a espinha, estremeço.
Ergo o olhar gradativamente, temerosa, sem saber o motivo.
Maxilar quadrado, coberto pela barba desenhada que
admirei à distância.
Era ele.
Chego a seus olhos, gemas negras me fitam com
profundidade, ao mesmo tempo que parece irradiar um calor
escaldante, que incendeia meu corpo e me torna cativa, em
instantâneo.

— Selam[1], senhorita.
— Eu... não... — Pigarreio, a fim de encontrar voz.
Seu cheiro é maravilhoso, não se parece com nada que já
tenha sentido, é fresco e ao mesmo tempo marcante, diferente e
estranho, mas não de modo ruim.
— Está sozinha? — Seus olhos finalmente deixam os meus
e percorrem por meu pescoço parando no decote do vestido que
uso.
Um modelo ousado e revelador, encaixa perfeitamente em
meus seios pequenos, não extravasa em nada na sensualidade que
pretendia exercer hoje.
— Quer me fazer companhia? — Ele ergue os olhos
rapidamente para os meus. — Preciso de alguém, para um objetivo,
talvez você seja o que procuro.
— É cedo para dizer, senhorita, mas tenho certeza de que
suas intenções são compatíveis aos meus anseios. A julgar pela sua
feição, quer esquecer o mundo e viver algo primal. — Surpresa,
sorrio com descaso. — Por sorte, também quero essa mesma
intensidade.
— Então, um brinde ao destino. — Ergo minha taça vazia.
Seus olhos correm do objeto vazio para minha roupa, ambos
estamos molhados pelo líquido derramado, então, segura meu pulso
apertado e marcha sentido contrário à entrada.
Enrugo as sobrancelhas, confusa, não há nada além de uma
parede e um segurança gigante parado para onde está nos levando.
Ao ver nossa aproximação, o homem aciona um botão
escondido e a parede simplesmente se abre, como num passe de
mágica, dá acesso a um cômodo oculto.
É provável que isso deveria me preocupar, apesar de hoje
meu objetivo ser a caçadora e me aventurar em algo lascivo, não
quero terminar em uma vala morta e estuprada.
Ele percebe minha relutância e arrisca um olhar, seus
passos estacam antes de entrar pela passagem, os dedos acariciam
com delicadeza minha bochecha e fecho os olhos com o contato.
Não sei o que deu em mim, esse homem está mexendo com
todos os sentidos do meu corpo, não consigo controlar.
— Acalme-se, flor do deserto. Só quero cuidar de você.
— Não preciso que... — engulo seco —... cuidem de mim.
— Cuidar e obrigar são duas palavras diferentes, com
significados opostos.
Abro os olhos e suas gemas escuras estão cravadas em
mim, aceno com a cabeça, consentindo que faça o que precisa,
mesmo que não entenda direito o que é.
Assim que a porta é fechada atrás de nós, luzes acendem e
o ambiente se torna mais claro, não muito, mas o suficiente para
enxergar ao redor. Minha atenção se volta para uma parede em L,
toda de vidro, que possibilita enxergarmos a boate inteira.
— Nós vemos, eles não. — Escuto sua voz grossa logo
atrás de mim, próximo o suficiente para seu calor atingir minha pele.
— Isso é bom. — Volto-me em sua direção, meus braços
correm para seus ombros, o contato é bem-vindo.

— O que você quer, qalbi[2]?


— Eu não sei...
— Há uma lenda sobre a rosa mais bela, e com o aroma
mais hipnotizante do mundo, que se encontra no deserto. Essa rosa
estaria lá sendo um sinal que Deus dá para todos aqueles que estão
perdidos no deserto, andando noites, exaustos com fome e sede, de
que por mais árdua que seja a caminhada, você sempre irá
encontrar forças nos belos momentos que existem em seu caminho.
— Então, você quer ser meu fôlego hoje. — Desço as mãos
no seu peitoral firme e volumoso.
— Acho que é o contrário, qalbi...
Suas mãos sobem, afoitas, uma captura a cintura e puxa,
unindo nossos corpos, a outra junta um punhado do meu cabelo ao
se entrelaçar nas mechas da nuca, que conduz minha cabeça a seu
bel prazer.
Nossos lábios se chocam, esfomeados, as línguas se
encontram e passam a se consumirem. Um gemido escapa da
minha garganta, que é engolida pela boca desse homem intenso.
Sou guiada alguns passos para trás, sinto o frio do vidro
tocar minhas costas, as mãos grandes escorregam pelo meu corpo
e ambas infiltram por debaixo do vestido e o ergue, expondo meu
sexo, devido à falta de uma lingerie.
Seus beijos cessam quando toca meu lugar úmido e
percebe a ausência da peça. Olhos questionadores me fitam,
surpresos, sorrio sacana e prendo o lábio inferior entre os dentes.
— Mash'Allah — rosna próximo ao meu rosto, sua mão
prensa meu maxilar entre os dedos. — Você veio aqui para isso,
qalbi.
Com a outra mão, esfrega meu ponto de prazer, minhas
pernas se contorcem, e, com rapidez, ele encaixa a sua, mantendo-
as abertas.
Os dedos continuam a me estimular, fecho os olhos e gemo
alto quando meu canal é invadido por eles.
Bombeia comedido, enquanto o polegar circula o clitóris, ele
vira meu rosto de lado e morde o ombro exposto, para em seguida
chupar e aliviar as picadas de dor.
Sinto o baixo ventre pesar, os músculos se contraem com o
prazer, estou próxima do ápice, ele percebe e se afasta por
completo.
Encaro seus olhos, raivosa, um sorriso discreto surge em
seu semblante tomado pela luxúria, então o vejo abrir a calça e
colocar seu membro para fora.
Grande, como desejei que seria, veias significativas o
contornam e a glande brilha, quando ele o segura e encapa com
uma camisinha que não sei de onde surgiu.
Ao retornar, seus lábios buscam os meus, beijos acalorados,
mãos escorregadias, ele alça minha perna. Sinto seu membro tocar
a entrada, encaixa com perfeição no canal, o beijo é interrompido e
aquela íris profunda me encara.
— Vai encontrar seu prazer junto comigo, qalbi.
Com uma única estocada firme me preenche, ambos
gememos, fecho os olhos ao sentir minhas paredes apertadas em
torno dele.
Seus movimentos começam devagar, sussurros com
palavras incoerentes, suspiros e chiados escapam de ambos. Suas
investidas ganham intensidade cada vez mais, meu corpo prensado
pelo seu naquela parede, chego ao limite e me entrego ao ápice.
O homem grunhe em meu pescoço quando sente meu canal
se apertar, suas investidas se tornam frenéticas, outra mordida em
meu ombro entrega seu momento e pulsa dentro de mim enquanto
alivia o aperto de nossa união.
Ofegantes, permanecemos por um longo tempo assim,
conectados, sua cabeça descansa em meu ombro, minha perna
ainda está alçada e a satisfação nos permeia.
Quando ergue seus olhos, parecem perdidos, diferente de
antes, não demonstram emoção alguma, parecem não me enxergar
de fato.
Ele se afasta com rapidez, tira a camisinha e descarta em
um lixo próximo. Recomponho meu vestido no lugar, quando o vejo
fazer o mesmo com a calça. O clima quente e envolvente está
perdido, sinto-me deslocada, como se tivesse culpa pelo que
acabou de acontecer.
— Eu... — Sou cortada pela sua voz fria:
— Já pode sair. Teve o que procurava — com as mãos no
bolso, ainda de costas para mim, profere.
Sinto como se um tapa estalado atingisse o rosto, um ardor
pela vergonha e ultraje me invade. Sem palavras, marcho para fora
da sala, que abre automático quando estou próxima.
Meu coração está acelerado, uma raiva misturada à
indignação. Estou ofendida, humilhada, mas a revolta é a maior de
todas.
É incoerente me sentir assim, afinal, vim a esta boate em
busca de sexo por uma noite, algo quente e carnal, ele me deu isso,
mas sua dispensa incomodou.
— Onde você estava? — Vejo Layla próximo à saída do
mezanino.
— Eu estava perdida... — respondo e desço as escadas.
Foi um momento, nada de mais. Algo para guardar na
memória, relembrar como uma rebeldia e que, provavelmente,
enlouqueceria minha mãe se soubesse.
Nós nunca mais nos veremos e isso é o conforto para a ira
que comprime meu peito.
Capítulo 1
“A honra é como uma longa estrada sem volta, como um
perfume com um cheiro inacessível.”
— Provérbio Turco.
Levanto mais tarde do que de costume, a esta hora já teria
cumprido boa parte da agenda matinal enquanto minha querida mãe
lixasse as unhas na sua redoma de vidro no último andar da
empresa.
Depois da nossa conversa nada amistosa de ontem, em
que, mais uma vez, discutimos o destino das filiais que ela insiste
em manter aberta, mesmo que não tenhamos mais recursos para
tal, resolvi sair da rotina e esquecer meus problemas.
Elisandra Mancini sempre foi geniosa, mãos de ferro, nunca
permitiu que ninguém ditasse uma vírgula fora a sua vontade nos
negócios da família, porém isso fez com que a empresa declinasse
gradativamente, até chegar ao ponto crítico que se encontra hoje.
Uma gestão travada e retrógrada colocou o império de
tecidos Mancini à beira da falência e, por puro despeito e
arrogância, minha mãe não permite que algumas empresas sejam
liquidadas para saldar as dívidas da matriz.
Sou formada em Moda e Design, não tenho experiência
acadêmica em gestão, mas sempre me interessei em aprender
sobre o que seria meu futuramente.
Após muita relutância da parte de dona Elisandra, consegui
me desvincular da área de criação conceitual e passar a
acompanhar de perto os fechamentos mensais de gastos, balanços
e entradas.
Estamos à beira do colapso, nenhum banco quer investir no
quadro atual da empresa, colocá-la no mercado de investimentos
não é opção e, os amigos que minha mãe julgava ter, não passam
de oportunistas e interesseiros.
— Sua mãe saiu cedo e estava com um humor péssimo. —
Layla passa pela porta logo que eu saio do closet pronta para
trabalhar.
Uso uma calça de alfaiataria estilo flare mostarda,
acompanhado com cinto no mesmo tecido e uma camisa de seda
creme levemente transparente, deixando à mostra meu top meio
corpo de renda branca.
Cabelo preso em um coque baixo, brincos de pérola
pequenos e o anel de rubi que meu pai me deixou no dedo
indicador.
— Nada fora do normal, então — comento com desdém.
Elisandra nunca foi conhecida por ser simpática, acredito
que grande parte da sua amargura se deu com a morte prematura
do meu pai, quando eu tinha cinco anos.
Não tenho muitas lembranças dele, mas os álbuns de foto
me ajudam a criar ilusões de um tempo em que éramos felizes,
dado ao olhar apaixonado que ambos têm nas imagens.
— Eu vou trabalhar antes que meu pai venha me buscar
pessoalmente — Layla declara, enquanto saímos pela porta e
descemos as escadas.
— Ele ainda quer que você vá para os Estados Unidos?
— Sim. Disse que preciso aprimorar meus estudos lá antes
de assumir um cargo na empresa.
— Duvido que pensaria a mesma coisa se fosse homem. —
Rolo os olhos com despeito.
Não entendo o conceito arcaico que ainda persiste em
perseguir as mulheres na atualidade. A imposição por provarmos
nosso valor a cada passo só mostra que a sociedade machista tem
muito que aprender.
— Já cansei de ter essa conversa com ele, mas nunca dá
em nada.
— Sei bem como é. Precisa de carona? — Paramos no hall
de entrada.
— Não. O motorista está a caminho, melhor você não
desviar o percurso ou corre o risco da sua mãe te excomungar.
— Não se preocupe com dona Elisandra. Ela ladra, mas não
morde.
Layla e eu nos conhecemos desde pequenas, nos
identificamos de imediato ao enfrentar as expectativas das nossas
famílias em relação ao futuro e legado deixado.
Filhas únicas, herdeiras de impérios, no meu caso de
tecidos, dela advocatícios, somos o retrato perfeito que a sociedade
tanto cobra.
— Nos falamos mais tarde. — Trocamos um beijo no rosto e
confiro o celular que apita com mais uma mensagem.
— Até mais, amiga. — Aceno enquanto saio disparada pela
porta.
Mais uma reunião de diretoria acontecendo e minha mãe
não fez a delicadeza de comunicar a assistente. Não sei o motivo de
tanta relutância em me deixar participar ativamente das decisões da
empresa, já que serei eu a comandá-la no futuro.
Aos poucos, tenho conseguido conquistar meu espaço com
mérito e competência, o problema está na nossa divergência com a
crise iminente que nos cerca.
Ela não aceita que não temos saída a não ser fechar as
duas filiais para garantir o funcionamento completo da matriz, disse
que isso soaria muito mal perante o mercado e a fábrica perderia o
prestígio que carrega há anos.
Entro na minha sala acompanhada da assistente, peço um
comprimido para dor de cabeça e um suco de laranja. Meu
estômago ainda protesta as doses a mais de tequila que consumi
depois de ser dispensada pelo homem misterioso.
Ocupo a cadeira com o tablet que ela me entrega, confiro as
pautas e assuntos urgentes de hoje e então fecho as pálpebras,
recostando a cabeça.
Os olhos profundos, um mar de escuridão afogueados pelo
ar devasso que exalava de nossos corpos, invadem meus
pensamentos.
Nunca senti tanta intensidade em um toque, apesar de não
ser uma mulher que costuma extravasar com sexo dessa forma, os
poucos parceiros que tive foram satisfatórios, salvo o garoto por
quem me apaixonei no ensino médio e com quem perdi a
virgindade.
Nós não sabíamos o que fazer, ambos inexperientes, foi
algo automático, sem jeito e meio atrapalhado, mas que alcançou
seu objetivo. Depois que terminamos, quando encerramos os
estudos, decidi que namorar seria segundo plano em minha vida.
Sempre quis mais do que viver em função de outra pessoa,
não sou avessa a relacionamentos, também não posso dizer que
tive grandes exemplos vindos deles.
Minha mãe se fechou em uma redoma, nunca mais se
envolveu com ninguém, sempre que bebe um pouco mais, declara
que seu amor, assim como sua vida, não habita mais este plano.
Ela sofre, calada em sua dor, nunca se permitiu ser feliz,
nem mesmo comigo, que acabei sendo criada por babás e escolas
de período integral.
Não a culpo, compreendo sua dificuldade, também sinto
falta do meu pai, as poucas lembranças que ainda tenho são
sempre regadas de amor, proteção e carinho.
Sem dúvidas, ele era um bom homem e cuidava de nós.
— Resolveu dar o ar da graça? — Giro a cadeira que mirava
a janela e vejo minha mãe.
— Bom dia para a senhora também. Se tivesse comunicado
minha assistente sobre a reunião de diretoria, certamente eu estaria
presente.
— Não é sua obrigação participar desse setor. Preocupe-se
com a nova coleção que lançaremos em breve.
— O quê? — Franzo o cenho, desinformada.
Não temos recursos para uma nova coleção de tecidos, isso
requer uma campanha nova de marketing, além de matéria-prima,
profissionais trabalhando em conceito e tendência.
— Isso mesmo que ouviu. Acabei de sair da reunião e
teremos uma ótima fase.
— Do que a senhora está falando, mãe? Mal conseguimos
nos manter em pé. Já cansamos de discutir o fechamento de duas
filiais.
— Nada disso será necessário, Catarina. Vamos lançar uma
linha com tendência turca
— O que... — balbucio antes de recuperar o raciocínio. —
Que loucura é essa, mãe?
— Seu tio chega à cidade semana que vem e você
entenderá tudo.
— Tio? Pensei que não tivéssemos mais contato com
nenhum parente Mancini.
— E não temos. Aqueles só querem nos ver pelas costas
desde que meu pai prosperou. — Ela torce o nariz.
Os Mancini não são conhecidos pelo grande afeto familiar.
Uma antiga briga entre os dois irmãos no passado separou a família
e nunca mais tivemos contato com eles.
Meu avô, movido pela raiva, trabalhou arduamente para ter
seu negócio, prosperou, e quando casou com minha avó, aprimorou
a fábrica com a herança dela. Todos diziam que foi um golpe da
parte dele, mas minha mãe afirma que sempre os viu felizes e em
harmonia.
— Já sei do desafeto familiar, mãe. Mas se não é um
Mancini, então...
— Osman Kartal.
— Parente do papai? — Meu tom sai tão alarmado quanto o
choque que sinto.
Ela nunca permitiu qualquer contato com meu lado paterno,
pela história resumida que conta, nosso pai rompeu os laços
familiares quando decidiu casar com uma estrangeira.
Nunca fomos aceitas como parte da família, nem um
telefonema recebemos quando ele faleceu acamado pela doença,
qualquer apoio ou palavra de consolo.
— Sim. É um tio distante ou coisa assim. — Ela abana a
mão em sinal de pouca importância.
— Até onde sei, meu pai só tinha uma irmã.
— Ele é o único parente mais velho vivo, irmão do marido de
sua tia, que também morreu. O que o torna seu tio também.
— Não torna, não. — Balanço a cabeça, enfatizando meu
ponto.
— É o costume, Catarina. Não discuta. O receberemos em
casa no começo da semana e é bom que você compre alguns
lenços, providenciarei alguns também.
— Nós não somos islâmicas, mãe. — Levanto-me da
cadeira ainda mais assustada.
De onde vem tudo isso? Qual o objetivo dela?
— Mas é sinal de respeito, algo que seu pai sempre falou.
— E nunca seguimos desde a morte dele. Eu mal conheço
os costumes turcos, nem mesmo a comida tenho familiaridade.
— Uma ótima oportunidade de se conectar com esse lado,
não acha? — Ela sorri de forma afetada e meus olhos estreitam.
— O que pretende com tudo isso?
— Não seja impertinente, Catarina. Só acho que chegou o
momento de deixar o passado onde pertence. Além do mais, ele
pareceu muito interessado em nós quando entrei em contato. — Ela
meneia a cabeça como se isso preenchesse todas as lacunas.
— Você entrou em acordo com esse tio? Por isso a visita e a
coleção. — Cruzo os braços e ergo o queixo.
Conheço minha mãe o suficiente para saber que ela nunca
faria contato sem algum interesse próprio. Sei que minha família
paterna é rica e poderosa, tem condições de comprar todas as
fábricas e reerguê-las sem qualquer dificuldade.
— Já disse que você estará a par de tudo quando ele
chegar. Por ora, cuide da coleção nova. Isso dará trabalho.
Ela sorri de forma que não alcança os lábios e sai da sala,
altiva, assim como entrou.
Solto meu corpo na cadeira e sinto que minha dor de cabeça
está longe de amenizar.
Capítulo 2
“O homem é mais duro que o ferro, mais forte que um touro e
mais ágil que uma rosa.”
— Provérbio Turco.
Ajeito o punho da camisa branca e termino de prender a
abotoadura dourada que compõe uma das lembranças físicas que
meu pai deixou antes de partir.
Acompanhar a alvorada sempre me deu a sensação de
pertencimento ao mundo, encaro os primeiros raios de sol surgirem
distantes, emergindo de trás da cidade que chamo de segundo lar.
As imensas janelas em arco e madeira branca permitem
contemplar a paisagem e saudosamente lembra um pouco da minha
terra. Escolhi este apartamento devido ao estilo neoclássico, uma
junção perfeita da modernidade ocidental com o toque sutil do
Oriente Médio.
Sinto saudade de casa, do cheiro das especiarias que só
pode ser encontrado em um ambiente turco, a família reunida para
ceia ou simplesmente tomar um chá.
Sempre fui matutino, mas só depois da morte dos meus pais
é que adquiri o hábito de observar o novo dia surgir. A linha tênue
entre o encerramento e o início, renovar a expectativa de fazer
diferente, deixar o que é passado onde pertence, são pensamentos
que conflituam em meu coração e cobram uma mudança que não
estou pronto a oferecer.
Apesar de perder meus pais ainda na pré-adolescência,
meu tio me acolheu como seu filho, tratou da minha educação,
cuidou dos meus interesses e passou os ensinamentos da nossa
tradição, cultura e modo de vida.
E ontem, depois de conversarmos ao telefone, fui para a
inauguração da nova boate, algo que não estava em meus planos,
mas os tormentos tomaram conta de mim e deixei a razão assim
que passei pela porta.
Esqueci minha educação, honra e aprendizado quando a vi
parada junto à grade da área reservada, sabia que a encontraria lá,
foi tudo premeditado, simplesmente deixei a curiosidade falar mais
alto e permiti que meus instintos mais primitivos tomassem as
decisões.
A primeiro momento, quis sondar, entender quem era e
como nunca havia ouvido falar dela, filha do irmão renegado,
assunto desconfortável e sigiloso, nunca mencionado pelos mais
velhos.
Nosso contato foi um acidente, ela não parece ter muita
noção de espaço e nos banhou com bebida, o que por si só, já
indicava um mau sinal. Deveria ter me afastado, mas quando seus
olhos, límpidos e claros, encontraram os meus, a escuridão tomou o
pouco de bom senso que ainda restava.
Enxerguei o reflexo da devassidão que carrego, esqueci por
completo quem ela era e o motivo de precisar preservá-la, então lhe
dei aquilo que ambos ansiávamos.
O prazer. Puro e carnal, sem cuidado ou delicadeza, nos
consumimos, fundimos nossa luxúria como única e, apesar da
experiência que carrego no sexo, nunca senti algo tão visceral.
Não tem uma explicação coesa, por mais que tenha sido
atormentado pelos meus demônios e a culpa se infiltrado um pouco
mais dentro de mim, ainda busco um entendimento para o momento
lascivo.
Nossos corpos pareciam saber o que fazer sem que
precisássemos pensar, o instinto ditou as ações, os sentimentos se
misturaram à confusão de entender o que tudo aquilo significava
com a necessidade de ter uma dose a mais do que já era insano.
Balanço a cabeça e esfrego o rosto com as palmas
dispersando o tormento que tem me acompanhado. Uma noite que
valeu por cem, exausto seria a definição correta para meu estado de
espírito, mas tenho um longo dia de trabalho.
A primeira reunião foi agendada, para que eu possa
conhecer, entender e estudar onde serão aplicados os fundos que
garantirão a sobrevivência da Mancini Tecidos.
Tio Osman informou que a presidente é minha tia, a esposa
estrangeira que desvirtuou tio Yussuf e manchou a honra da família
Sadik e Kartal e, ao que parece, o pedido dela por ajuda nos permite
a chance de corrigir todos os erros passados.
Encerro meu momento matutino quando Eda entra na sala e
anuncia que o Kahvaltı[3] está servido. Tive o cuidado de contratar
alguém de origem turca, para manter, pelo menos, minhas refeições
dentro dos costumes.
Ocupo a cabeceira da mesa de doze lugares, grande
demais para me lembrar todos os dias que estou sozinho, mas ao
mesmo tempo confortável com o silêncio, assim coloco os
pensamentos em ordem.
Uma pequena panela de ferro é colocada à minha frente,
sinto o salivar com o aroma das especiarias, pego um pão da
pequena cesta, enquanto Eda serve o çay[4], fumegante, como gosto
e é costume.
Pequenas coisas, como essas, representam tanto para
nosso povo, torna qualquer ato, por mais simples que seja, uma
devoção poética às origens.
Essa bebida, por exemplo, parece algo banal e corriqueiro, a
Turquia é famosa por seu chá, mas nas entrelinhas, existe um
significado importante para tal.
Ele é servido bem quente, de forma proposital, pois seu
intuito não é de sanar a sede ou aquecer seu interior, mas sim
preservar um tempo de qualidade para uma conversa produtiva,
seja com o outro, ou consigo mesmo.
Sua coloração vermelha representa o tom do país, servido
em uma xícara que tem o formato da flor nacional, a Tulipa,
presente nas bordas do lago Van. É servido e tomado de forma
simples e direta, características muito evidentes do povo turco, que
não deixa pontas desamarradas. O chá é democrático e acessível a
todos, independente da sua classe social.
Amanheci mais reflexivo que de costume, talvez seja a
necessidade de relembrar minha origem, já que a perdi por
completo quando toquei as curvas suntuosas da minha futura
esposa.
Cheguei a pensar que estava livre do carma de me casar, no
entanto, tio Osman acredita fielmente que um homem só pode se
considerar completo quando forma sua própria família.
Ele nunca desistiu da ideia de me desposar, deveria prever
que algo assim, cedo ou tarde, voltaria a confrontar minha vida e,
diferente do passado, teria que me esforçar para que desse certo.
Assim que entro na sala de reuniões da Mancini, vejo uma
senhora esguia e bem-alinhada na cabeceira da mesa, ela levanta
de forma elegante, e um sorriso discreto desponta nos lábios.

— Merhaba[5], senhora. Como vai?


— Sobrinho, seja bem-vindo — seu sorriso aumenta, —
sente-se, por favor. — Ela oferece a cadeira que ocupava, arqueio
levemente a sobrancelha, estranhando sua atitude.
— Apesar de não ser turca e pouco conviver com os
costumes, sei alguma coisa ou outra. Somos família, você é o chefe
dela, até onde sei.
— A senhora é minha tia e mais velha, além de dona da
empresa, não precisa manter as tradições aqui. — Ocupo a cadeira
ao meu lado e aponto para seu lugar. — Por favor.
— Muito bem — ela senta, aparenta certo desconforto —,
pedi esse encontro com você, antes mesmo de Osman chegar.
Precisava entender melhor a sua posição no acordo.
— O que tio Osman decidiu é o certo, não me oponho a
nada.
— Sim, mas você sabe que minha filha não foi criada dentro
dos costumes e, talvez, fosse melhor se conhecerem sem essa
pressão toda.
— Teremos tempo para isso assim que assinarmos o acordo
matrimonial.
— Osman mencionou isso, quero assegurar que nossa
empresa permaneça nas mãos de Catarina.
— E assim será, a empresa no nome dela e ela... em
minhas mãos. — Não tenho motivos para ser menos direto.
— O que isso quer dizer?
— Exatamente o que eu disse, senhora. Como esposa, ela
será cuidada, protegida, guiada e amparada por mim, seu marido.
— Ela terá um dono.
— Se prefere pensar dessa forma. — Dou de ombros. —
Fato é que, não vou me estender em tentar convencê-la das
tradições e costumes turcos. Somos o que somos, uma cultura
muito diferente do padrão brasileiro. Ao que você se refere como
propriedade, eu encaro como devoção.
— E será tão devoto a ela, quanto ela a você?
— Obviamente. Um casamento, para funcionar, precisa que
as duas partes saibam seu lugar. Nos tornamos um, coração e
razão caminham juntos e construímos nossa base a partir disso.
— Nunca almejei um casamento arranjado para Catarina.
Ela é muito mais do que uma esposa troféu. — A mulher torce os
lábios, descontente.
— Nem eu quero torná-la isso, senhora. Tem minha palavra.
— Palavra do chefe da família que repudiou o próprio
sangue.
— Devo lembrá-la que foi a senhora quem nos procurou? —
Não tinha a intenção de soar rude, mas seu discurso passou do
limite.
Foi ela quem procurou meu tio, não quer barganhar o futuro
da filha, mas aceitou negociá-la como mercadoria em uma
transação de negócios. Por mais avessa que seja a ideia, ainda
assim, optou por colocar a situação financeira que vive acima da
liberdade da filha.
— Não preciso ser lembrada de nada. Faço isso pelo bem
dela.
— Então não há com o que se preocupar.
A mulher avança com o tronco e agarra minha mão que
descansava sobre o vidro da mesa. Encaro o gesto com estranheza,
não costumo ser tocado quando não quero. É inconveniente.
— Prometa que a fará feliz. Mesmo que seja difícil lidar com
seu temperamento. Jure ser paciente com a minha menina.
Seguro seu punho com delicadeza e liberto minha mão do
seu agarre. Posso ver o medo rondar sua íris, não quero que se
sinta assim, não sou um lobo em pele de cordeiro.
— Não se preocupe. Catarina será meu bem mais valioso, a
tratarei sempre com o devido respeito.
Mal termino a frase e sinto o gosto amargo da mentira
invadir meu palato. O que fiz ontem não é exemplo de honra, muito
menos de cuidado com alguém importante.
O problema é conseguir explicar um ato que não consigo
compreender.
Capítulo 3
“O que se inflama rapidamente, extingue-se rapidamente.”
— Provérbio Turco.
É fim da tarde quando alongo o pescoço de um lado a outro,
retiro os óculos de leitura e coço os olhos, cansada e acompanhada
da dor de cabeça que começou por uma ressaca e permaneceu
pelo estresse.
De onde dona Elisandra tirou que teremos recursos para
uma nova linha de coleção turca, eu não sei, mas cada vez que me
questiono sobre, mais acredito que algo podre se oculta por baixo
da notícia.
A visita do parente da minha tia não veio por pura
coincidência, sei que tem algo ali, talvez ela queira reivindicar minha
herança por parte dele, ou simplesmente estreitar laços para facilitar
uma inserção no mercado têxtil turco.
Seria uma oportunidade única, já que os turcos lideram o
sexto lugar no ramo mundial e é referência em operação, estrutura,
tecnologia, criatividade e seguimento. No entanto, não temos
recursos e nem estrutura para abraçar uma proposta tão grande, o
que me leva a duvidar muito dessa teoria.
— Dona Catarina? — O interfone sobre a mesa me desperta
para o agora. — Sei que não gosta de ser incomodada durante o
processo criativo, mas sua mãe lhe deixou uma mensagem
importante.
— Deixou? E por qual motivo ela mesma não enviou ao meu
celular? — aciono o botão para questionar.
— Isso eu não sei dizer, senhora.
— Tudo bem. Qual o recado?
— Disse para estar às dezenove horas no Tangará, sem
falta. É um jantar importante, segundo ela.
— Jantar? Hoje? — Solto o ar com pesar. — Tudo bem.
Obrigada, Lídia. Já pode ir, estou encerrando o dia.
Minha mãe consegue se tornar ainda mais misteriosa do
que de costume, sei o quanto aprecia o restaurante, mas é raro
marcar algo tão em cima da hora. Confiro o relógio e concluo que
preciso me apressar ou nunca chegarei a tempo.
Passo pelo lobby do Palácio Tangará, é uma vista
esplêndida, por mais que já esteja familiarizada, é algo que nunca
cansa. Tão bem projetada e reformulada, com uma paleta em tons
cinzas que torna o ambiente tranquilo e sereno.
Sou direcionada à mesa reservada por minha mãe, que já a
ocupa, acompanhada de um homem. Franzo o cenho, não
imaginava que teríamos companhia, o que torna tudo ainda mais
intrigante.
Como hoje o dia está completamente atípico e revelador,
continuo o caminho sem dar grande importância ao fato, que acabou
sendo meu primeiro erro nesta noite.
Quando as gemas negras alcançam meus olhos, sinto o
desespero e a ausência de raciocínio invadir meu corpo. Estaco no
lugar, ainda distante da mesa, pela visão periférica vejo minha mãe
falar algo e rir, alheia à minha presença, no entanto, assim como eu,
o homem inabalável permanece cativo em nossa troca de olhar.
Mergulhei de cabeça no processo criativo para tentar
esquecer as lembranças do seu toque acalorado em meu corpo,
ofeguei algumas vezes, quando foi inevitável as sensações
causadas ainda serem tão vívidas e, ao mesmo tempo, amargar na
humilhação gratuita.
Ouço o pigarrear da hostess ao meu lado, viro o rosto em
sua direção com um aperto nos lábios e uma leve ajeitada na trança
lateral que fiz, seguimos o restante do caminho.
Os poucos passos que nos separam é o suficiente para
formar um aglomerado de perguntas, medo e curiosidade na
garganta, que obviamente garantem meu semblante assustado
quando paro diante da mesa.
Será que meu momento de loucura foi saciado por um
perseguidor doentio que quer me sequestrar?
— Aí está você. — Ambos levantam, minha mãe contorna a
mesa e vem me cumprimentar com dois beijos no rosto.
Uma saudação acalorada demais para dona Elisandra, uma
típica cena criada para impressionar o homem que não para de
encarar minha imagem nem por um segundo.
— Seja boazinha e depois explico tudo. — Ouço seu
sussurro e franzo o cenho, desconfiada.

— Iyi geceler[6], senhorita. Sou Emir Kartal. — Ele acena de


forma sutil com a cabeça.
Kartal? O mesmo Kartal de Osman?
Finalmente, descubro seu nome, como suspeitei, um turco.
Já tinha desconfiado devido ao estereótipo característico: traços
duros, sobrancelhas grossas, cabelo volumoso e barba cheia.
— Boa noite, sou Catarina Mancini. — Fico impressionada
por conseguir retribuir o cumprimento sem gaguejar.
— Vamos nos sentar, não há necessidade de tanta
formalidade. — Minha mãe acena para os assentos e tomamos os
lugares.
Ela se coloca ao lado dele no sofá em camurça acinzentado
com design meia-lua, eu na poltrona direita, bem em frente ao
homem que me levou à loucura e ódio ontem.
— Apesar de repentino, fico feliz que tenha aceitado o
convite, senhorita Mancini.
— Pode me chamar de Catarina, na realidade, não tinha
conhecimento de um jantar de negócios. — Corro o olhar para
minha mãe ao final da frase.
— Não tivemos tempo para detalhes, filha, mas este é Emir,
sobrinho de tio Osman e sobrinho de seu pai, por parte de mãe.
— Ah... — é a única coisa que consigo proferir.
As engrenagens na minha cabeça começam a formular o
que de fato está acontecendo aqui. Coincidências demais nunca
cheiram boa coisa.
— Estou de volta ao Brasil por negócios e calhou do tio me
comunicar sua vinda na semana que vem para visitar a família —
ele justifica como se isso bastasse para sanar a singularidade do
encontro.
— A boate que visitou ontem, Emir é um dos sócios. As
colunas sociais só falam da grande inauguração hoje. — Ela sorri de
forma afetada, uma simpatia forçada que quase me enoja.
— Foi um bom investimento.
— E por quais motivos quis nos ver antes de tio Osman?
Pelo pouco sotaque no português, mostra que não é rara sua
permanência no país.
— Catarina! Que rude — minha mãe ralha e pesca sua
costumeira taça de champanhe para bebericar.
— Não se preocupe, tia — arqueio as sobrancelhas com o
trato —, estou no Brasil há anos, investimentos, negócios, me fazem
migrar mais do que gostaria. Sinto falta de passar mais tempo na
minha terra com meu povo.
— Não conheço muito sobre o Oriente.
— Algo lamentável. Porém, sempre a tempo para novas
experiências. — A ênfase no fim da frase deixa claro no que ele
associa.
— Claro. É testando que descobrimos o que vale ou não a
pena.
— Com certeza — minha mãe intervém, alheia ao assunto
velado. — Você deveria ir para a Turquia, querida. Quem sabe essa
aproximação não permita a viagem em família.
— Difícil prever, mãe, já que tenho uma nova coleção em
mãos.
— A inspiração turca? — Emir questiona e a surpresa do
seu conhecimento me faz chicotear o olhar para minha mãe.
— Comentei com Emir mais cedo sobre nosso novo projeto.
— O sorriso amarelo denuncia seu desconforto.
Há muito mais aí do que consigo compreender.
— Nem começamos a fase de criação ainda e a senhora já
soltou a informação? Isso é arriscado. — Um garçom se aproxima e
serve um copo com água.
— Foi a meu pedido, Catarina. — Volto o olhar para ele. —
Vou acompanhar todo o processo e entender como funciona a
fábrica.
— Então, você é a carta na manga para manter a Mancini
Tecidos em pé? — direto e sem rodeios.
Se depender da minha mãe, continuarei a receber migalhas
de informações e confesso que estou cansada demais para esse
jogo.
— Sim.
— Isso é para ser um jantar em família, não uma reunião de
negócios — dona Elisandra protesta.
— Eu só preciso de informações que a senhora vem
escondendo. Desde quando temos contato com a família do papai?
Por que precisamos deles para salvar a fábrica? Já lhe dei opções
de fecharmos as duas filiais e reduzir os custos e demanda. Isso é
suficiente para...
— Não é — o homem austero torna a chamar a atenção
para si —, mesmo que feche as duas filiais, não é o suficiente para
salvar a empresa. A Mancini Tecidos está em queda livre e falta
muito pouco para falir.
— Como? Eu vi as planilhas e... — Busco na memória o
acesso que tive às informações financeiras e gerenciais há menos
de um mês.
Estamos mal, é verdade, mas não ao ponto de liquidar a
empresa da forma que ele fala.
— Relatórios superestimados. Um espelho de anos atrás.
— Eram falsos? — Minha boca abre em choque. — Mãe? —
suplico, desacreditada.
— Sim, querida. Ordenei que lhe passassem informações
mascaradas, não queria que se preocupasse. Eu daria um jeito.
— Entregando a empresa à família que nos chutou? —
Elevo a voz, indignada.
— Controle-se, Catarina. — Volto o olhar raivoso para ele.
— Você não manda em mim e tenho total direito de me
indignar com a situação.
— Eu preciso de um momento. — Minha mãe levanta em
disparada para o banheiro.
Encaro sua figura se afastar apressada, sinto os olhos
lacrimejarem, transbordando toda a frustração que me inundou.
— “O que se inflama rapidamente, extingue-se
rapidamente.” — Trocamos um olhar significativo. — Você precisa
manter a calma, Catarina.
— Não tem o direito de dizer o que posso ou não fazer, ou
sentir.
— De fato. Mas um conselho nunca será ordem e, sim,
direcionamento para os que sabem ouvir.
— Então, você quer dizer que é inteligente eu começar a te
ouvir a partir de agora? — Aproximo o tronco apoiando os
antebraços sobre a mesa. — Não sei o que você ou tio Osman
fizeram para convencer minha mãe, mas eu não serei facilmente
manipulada.
— Quanto mais cedo entender o seu papel nesta situação,
mais fácil será enxergar o caminho a trilhar.
— Quero que você e suas palavras cheias de ensinamentos
vão para o quinto dos infernos. — Levanto apressada e quando
passo ao seu lado sinto o agarre forte em meu punho.
As lembranças quentes do seu toque reavivam meu corpo,
solto um pequeno gemido, incontrolável, enquanto sua mão
incendeia minha pele.
Por que seu toque tem tanto poder sobre mim?
Capítulo 4
“Não fale sobre cordas na casa de um enforcado.”
— Provérbio Turco
O contato reverberou em meu peito, não sei se pela afronta
de suas palavras ou por simplesmente ter minhas mãos sobre sua
pele em tão pouco tempo.
A chama incandescente que percebi em sua íris ontem
julguei como algo momentâneo, a necessidade de extravasar por
uma noite, mas me enganei. Sua impulsividade faz parte do
temperamento que carrega e, talvez, seja mais difícil do que
pensava, construir uma relação harmoniosa com a garota.
— Sente-se. Agora. — O tom baixo não desabona a
imperatividade das palavras.
— Ou o quê? — A inclinação do queixo mostra o quão apta
está para uma batalha.
— Ou você será colocada de lado em qualquer plano, ação
ou decisão sobre o futuro da Mancini Tecidos.
— Está me chantageando? — Seu semblante se transforma
de raivoso para indignado.
— Estou lhe dando uma escolha, Catarina. O resultado de
suas ações que irão ditar seu futuro.
— Mais um conselho que pegou no podcast de autoajuda?
— Puxa seu braço do meu agarre e retoma o assento.
Apesar das atitudes grosseiras, a garota não consegue ser
menos encantadora em sua feição. O cabelo claro, igual ao da mãe,
trançado de lado, deixa seu pescoço livre para ser admirado.
A escolha de um vestido elegante, discreto, mas que
transpassa sua feminilidade e sensualidade de forma sutil. Curvas
esguias, marcadas pelo tecido rubro, as panturrilhas expostas e
sustentadas por um salto que exige firmeza e postura, maquiagem
leve, só acentuando os pontos certos no semblante.
Eu poderia passar um dia inteiro contemplando sua beleza
e, ainda assim, estaria encantado com o privilégio.
— Um homem inteligente sempre saberá ouvir mais do que
falar.
— Tudo bem. Chega de todo esse aprendizado e vamos ao
que interessa. O que pretende fazer com a minha empresa?
Ela sinaliza para um garçom enquanto apoia o cotovelo à
mesa e sustenta o queixo com o dorso da mão.
— Como sua mãe disse, hoje não é o momento para essa
conversa.
— Quero saber tudo que me foi escondido até agora. — O
garçom para ao nosso lado. — Uma dose de vodca, por favor — ela
faz o pedido sem tirar seus olhos dos meus. — Vai querer alguma
bebida?
— Não costumo beber por motivos banais.
— Acho que a situação pede algo mais forte.
— Prefiro manter a sobriedade.
— Turco não bebe? — Sua pergunta soa como deboche.
— A grande maioria não, por questões religiosas. Entende-
se que o Islam é chamado de “Deen-ul-Fitrah” ou religião natural do
homem e, assim deve ser mantido. O álcool é um desvio desse
estado, por isso é proibido. Mas, na Turquia temos o raki, uma
bebida típica e é mais forte do que a dose que acabou de solicitar.
— É proibido beber, mas tem uma bebida própria? — Ela
enruga as sobrancelhas.
— Legalmente não é proibido, mas existem restrições. É
mais uma questão religiosa e cultural.
— Entendi. E essa bebida é boa? Já se permitiu sair do seu
estado natural e centrado com ela? — Não me iludo com seu falso
interesse.
A garota está jogando, testando o campo para saber
exatamente onde está se metendo. É inteligente, confesso, mas
ainda detenho o poder da informação e isso a coloca em uma
desvantagem grandiosa.
— Raki é um licor, derivado da uva, tem o sabor
assemelhado ao anis. Conhecida como leite de leão, já que quando
servida é misturada à água gelada e sua coloração se torna branca
opaca.
— Interessante. Se não fosse um homem de negócios
poderia investir na carreira de guia turístico, senhor Kartal.
— Só gosto de conhecer minhas origens, senhorita.
O comentário provocativo atinge o objetivo quando suas
bochechas tomam uma coloração quente, mais leve que a de ontem
no meu escritório, mas ainda assim, marcante, denunciando sua
irritação instantânea.
Salvo de uma resposta pelo garçom que entrega sua
bebida, antes que possa rebater a reprimenda velada aos seus
conhecimentos sobre a cultura herdada por parte de pai.
Ela terá um longo caminho a percorrer, será mais árduo do
que imaginei, apesar de carregar o sangue turco, a jovem não sabe
absolutamente nada das nossas tradições e costumes.
Começo a questionar se tio Osman levou a questão cultural
em consideração, quando propôs o acordo para tia Elisandra. Pouco
provável que o tenha feito, apesar de ser um homem pacífico e de
grande sabedoria, ele nunca foi conhecido por ceder à
modernidade.
— Olá, crianças. — A senhora retorna à mesa, recomposta
da pequena discussão.
— Finalmente resolveu voltar, mãe. Estava aqui, apreciando
a aula sobre cultura turca, que o senhor Emir tão gentilmente
resolveu partilhar. — Voltamos ao tom jocoso e confesso que
começo a ficar incomodado com seu comportamento.
— Seu pai falava muito sobre os costumes turcos, confesso
que sempre me encantou aprender algo tão diferente.
— Engraçado que nunca me foram passados esses
ensinamentos.
Ambas se encaram de forma profunda, a tensão se instaura
no ambiente, vai além de uma provocação boba, existe um abismo
no assunto.
— Você sabe... depois que seu pai morreu, eu...
— Resolveu fingir que ele nunca existiu. Retirou qualquer
lembrança dele da casa e seguiu adiante. — A garota aperta os
lábios, um fraco sorriso surge, mas que não representa em nada
algum soar alegre.
— Águas passadas, filha. Agora você tem a chance de
aprender.
— Lembro-me muito pouco de tio Yussuf, não costumava
frequentar sua casa, ainda era jovem quando partiu. — Entro no
assunto no intuito de dissipar a nuvem densa entre elas.
— Sim, isso tem vinte e seis anos — a senhora responde.
— Eu tinha um pouco mais de sete anos, meus pais ainda
eram vivos e morávamos em Ancara.
— Yussuf falava da irmã de Ancara, Nadire, não é? — Ela
aperta os olhos buscando informações na memória.
— Sim. A sede da empresa ficava lá e tínhamos uma filial
em Istambul, que tio Osman cuidava, quando ainda podia. Hoje,
está velho e cansado demais, segundo ele, para ficar dentro de um
escritório.
— Então, você é quem cuida dos negócios da família? —
Catarina pergunta, interessada.
— Grande parte, sim. Fico mais a cargo de viagens para
verificar os investimentos que temos espalhados pelo mundo. Mas
Haydar, filho mais velho de tio Osman, cuida dos negócios na
Turquia. Assim como seu irmão, Cemil, que auxilia tanto a mim
quanto a ele.
— Ah, eu acho isso tão lindo. A família unida e prosperando
juntas, como deve ser — Elisandra comenta.
— E eu acho isso muito irônico, vindo de você, mãe.
— Catarina! — A mulher se ofende e para mim basta.
— O que sua mãe quer dizer, Catarina, é que uma família,
uma base, solidifica qualquer enlace ou obrigação. Seguir sozinho é
muito mais difícil do que contar com aqueles que defendem sua raiz.
— Não posso dizer que está certo, nem errado, já que por
aqui, sempre fomos ela, meu pai, por um curto espaço de tempo, e
eu.
— Remoer o passado te impede de enxergar as
oportunidades futuras.
— Talvez, resguardar, seja o caminho mais seguro. — Ela
sorri, amaneirada.
Voltamos ao campo dos sentidos dúbios das palavras, gosto
disso nela, sabe jogar com o que diz, passa seu recado sem
precisar expor suas reais intenções.
É contraditório imaginar uma vida ao seu lado, porém
continuo alimentando a fagulha da curiosidade que me faz querer
pagar o preço para tirar a prova.
Pode ser perigoso, para ambos, um tiro a esmo, capaz de
acertar qualquer um dos dois de forma fatal sem qualquer desvelo,
mudando por completo nosso destino.
Acredito que todos temos um caminho traçado, uma missão
maior para cumprir na Terra, nos cabe olhar para dentro de nós e
perceber quais escolhas são as corretas.
Havia um tempo que acreditei ter em meu destino a
construção de uma família, filhos, dar continuidade ao nome Kartal,
já que meu descendente herdaria o comando dos nossos negócios,
mas o destino ceifou a oportunidade e comprovou sua vontade de
forma fatídica.
Passei um tempo perdido, buscando entendimento onde não
existia, encharcando minha mente com o álcool e corpos vazios, a
fim de aplacar a culpa que caiu sobre os ombros.
Com o tempo, aceitei meu novo destino, oposto ao que
idealizei, segui com mãos de ferro nos negócios, prosperando e
angariando poder, fortuna e renome para a família.
Estava feliz com meu papel, até meu tio querer bagunçar
tudo que estava em equilíbrio e trazer uma brasileira para minha
vida.
Faz dois dias que recebi a notícia, mas sinto que já vivi anos
desde a ligação, sem trégua um segundo sequer, ponderando o que
o destino espera de mim agora.
Uma segunda chance?
A oportunidade dada só é válida quando suas dívidas
morais são pagas e, infelizmente, ainda não paguei a minha.
Continuo carregando o desprezo que sinto por mim mesmo, sem
vontade alguma de mudar meu estado.
Sou um hipócrita por usar o conselho de Cemil com
Catarina, deixar o passado onde ele pertence é mais fácil quando
você não é o responsável direto pela tragédia no caminho.
Catarina tem suas reservas, com certeza guarda rancor da
família por ter sido rechaçada e apontada como motivo de vergonha,
já que tio Yussuf foi expulso quando apresentou uma brasileira
grávida a eles.
— Cada um carrega o fardo que lhe convém, no fim das
contas.
— Brindemos a isso. — Ela ergue sua taça com água.
Repito o gesto, assim como sua mãe, tocamos as taças e
nossa troca de olhares tem um significado muito maior do que o
peso das palavras proferidas.
É provável que eu me arrependa em algum momento, mas a
tentação em desvendar e compreender essa brasileira vai além de
qualquer coerência que eu deveria ter.
Capítulo 5
“Um homem é muito sábio quanto à sua cabeça, não quanto
à sua idade.”
— Provérbio Turco
Encaro a tela do meu iPad por um tempo, o jantar de ontem
ainda ronda meus questionamentos, sem conseguir chegar a um
consenso aceitável, ou sequer, satisfatório.
O restante do encontro foi seguido em silêncio, salvo por
minha mãe, que tagarelava, como nunca vi, sua estadia na Turquia
e como conheceu meu pai. Por mais que o assunto me
interessasse, já que se tratava de um passado pouco compartilhado
depois da morte dele, não consegui permanecer atenta.
Aquelas gemas escuras me intimidavam com seu escrutínio,
atento a qualquer movimento meu, pareceu muito interessado na
forma que me alimentava, completamente oposto ao seu
comportamento da noite anterior.
Ainda não sei se nosso encontro foi mero acaso, muito
sarcástico por parte do destino, ou uma jogada pensada e
arquitetada, o que torna um dos pontos de maior distração para a
produtividade hoje.
Nós nos despedimos na porta do restaurante ontem com a
promessa de uma visita dele esta semana, para conhecer as
instalações da matriz, a princípio, precisa fazer levantamentos sobre
nossa situação real.
Esta é minha chance de também entender,
verdadeiramente, o que acontece bem debaixo do meu nariz e fui
privada de tomar conhecimento.
Minha mãe se trancafiou em seu quarto ontem, chegamos
em carros separados, não me deu brecha alguma para interpelar a
meia dúzia de perguntas que tenho sobre toda essa palhaçada.
Andreza e Gil passam pela porta da sala de criação, eles
auxiliam no setor e lidam com as coordenadas passadas para a
produção principal e segmentada para as filiais.
Cada fábrica é responsável por um tipo de tecelagem e,
principalmente, o setor que irá atender. A matriz detém o campo da
alta costura e padrões mais exclusivos.
A clientela é composta de grandes marcas, destinadas a um
público final seleto e que não se importa com os dígitos acrescidos
em suas peças, sejam de vestuário ou tapeçaria de móveis e
revestimentos.
Atendemos diversas áreas do setor têxtil e isso nos coloca
naquele âmbito exclusivo e diferenciado, que nos torna referência.
Isso é só um dos motivos para que eu relute na crença de que
estamos tão mal assim das pernas.
— Bom dia, chefa. Pela cara, a criação não vai como o
esperado. — Andreza coloca um copo descartável com a logo da
cafeteria que eu amo consumir.
— Consegui reunir o material que pediu sobre a Turquia,
podemos repassar algumas coisas, quem sabe isso te ajude a
inspirar — Gil complementa, ao tomar seu lugar no outro lado da
mesa redonda.
— Bom dia, isso é bom, Gil, mas não estou com cabeça
agora, respondendo à pergunta da Andreza, meu senso criativo está
abalado, mas por motivos alheios ao processo.
— Precisa de alguma ajuda? — Andreza se prontifica.
— Não. Só deem andamento no decurso de base, preciso
resolver alguns assuntos, mais tarde eu volto. — Levanto da
cadeira, determinada.
Se há algo que realmente me irrita é ficar à margem do
problema em questão, de ontem para hoje foram tantas estranhezas
que aconteceram, não posso continuar um trabalho que nem ao
menos sei se terá futuro.
Quando passo pelo hall da diretoria, vejo Edna levantar, a
pobre coitada não tem tempo de me impedir antes que eu irrompo
porta afora e encontre a sala da minha mãe vazia.
Franzo o cenho, confusa, ela saiu de casa antes mesmo de
mim, vi através do vidro da sacada, o carro guiado por seu
motorista. Giro em meus calcanhares, pronta para pedir uma ligação
para seu celular e a encontro.
Altiva e imponente, com um conjunto social uva, cabelo
preso em um coque baixo, tão loiro quanto o meus, os óculos de sol
ainda na face escondem seu olhar, provavelmente irado, já que
nunca admitiu que invadissem sua sala, assim como fiz.
— Bom dia, filha. Procurando a mim?
— Na verdade, sim. Onde estava?
— Resolvendo alguns problemas — menciona ao fechar a
porta e ocupar seu lugar na grande mesa.
Sempre achei exagerada a escolha da peça, mesmo que o
design da sala seja clássico e elegante, o desenho imperioso da
mesa em jatobá, somado ao tom marrom-avermelhado, limpa e
lustrada, traz a imposição que sempre permeou as decisões de
dona Elisandra.
— Continua na reserva?
— Acho que você está confundindo os papéis aqui, menina.
Eu sou a mãe. — Ela aponta para o próprio peito.
— Então pode começar me explicando os motivos dos
turcos estarem dentro da empresa.
— Eles são família.
— Da qual a senhora nunca fez questão de falar, muito
menos conviver. O que mudou?
— Os anos, minha filha. — Ela solta a respiração com pesar.
— Levei anos demais para compreender os costumes tão
arraigados deles.
— E o fato de a empresa estar praticamente quebrada —
complemento.
— Talvez esse tenha sido o gatilho, não nego. Nunca
imaginei que a fábrica chegaria a um ponto tão crítico.
— O que é muito estranho, diga-se de passagem. Por que
me manteve no escuro?
— Não queria te preocupar com isso. Você estava focada na
faculdade, achei que as coisas melhorariam no setor, já passamos
por situações assim diversas vezes, desde que meus avós
fundaram a Mancini Tecidos.
— Para quem herdou um império que sempre esteve
envolvida, você soa leviana demais, mãe. — Apoio os cotovelos no
braço da cadeira e cruzo os dedos sobre a barriga.
— Corrija a postura, Catarina — adverte, incomodada.
Sempre odiou me ver de forma displicente. De acordo com
as regras de dona Elisandra, uma mulher deve estar alinhada,
preparada e atenta. Para nunca ser pega de surpresa.
Isso soa tão irônico agora.
— Quero acesso a toda a situação da empresa, custo a
acreditar que estamos tão desesperados assim.
— É a verdade. Lide com isso. Com uma possível fusão à
Kartal, os problemas acabam.
— Mãe, a Kartal é uma multinacional, exportadora, ela nem
tem empreendimento no setor têxtil.
— Mais uma excelente oportunidade de expandir.
— Ou de ser comprada e desmantelada como peças de um
ferro-velho.
— Não seja derrotista, Catarina. Eu não te criei para isso. —
Ela abana a mão no ar, incomodada.
— Às vezes me pergunto para que exatamente eu fui criada.
A senhora sempre foi a face da soberania, referência na alta-
sociedade e admirada pelo mundo empresarial, enquanto eu,
sempre fui a filha de Elisandra Mancini, mas nunca entendi
exatamente o significado disso.
— Simples. Você é meu legado — seus olhos captam os
meus —, tudo que eu deixar, quando partir, é seu. Sua herança, sua
continuidade, tem por obrigação fazer melhor do que eu fiz.
— Há um tempo, julgaria esse pedido inalcançável.
— Exatamente. — Ela finalmente retira os óculos de sol e
me encara com a sobrancelha levemente arqueada. — Para você
ver que nem tudo é o que parece, querida. As pessoas
superestimam aquilo que mostramos a elas, nem sempre é a
realidade.
— Os turcos verão a verdade nua e crua da empresa. Está
preparada para isso?
— Já disse: eles são família.
— Por que insiste tanto nessa colocação? Você sabe que
não somos e nunca seremos família.
— Não cultive o mesmo rancor que eu, Catarina. Não vale a
pena. — Sua voz abranda e, por um curto espaço de tempo, vejo
minha mãe fragilizada.
O que está acontecendo com ela?
— Pelo visto, nossa conversa não será clara e límpida como
água, então voltarei aos meus afazeres.
— Faz bem. — Com um acenar de cabeça, sou dispensada.
A dor iminente na têmpora libera seu primeiro pulsar, levo a
mão e pressiono o lugar, na vã tentativa de aplacar a dor. Preciso de
um comprimido ou não sobreviverei até o fim deste dia.
Retiro os sapatos de salto ao deitar o tronco na namoradeira
em veludo texturizado cinza que tenho em minha sala. Apesar do
escritório ser pequeno, tinha ciência de que passaria longas horas
trabalhando e precisava de um lugar aconchegante para repousar.
Dona Elisandra achou de péssimo gosto, queria algo mais
clássico e parecido com sua sala para harmonizar o ambiente,
porém, ela não contava com o fato de termos só duas coisas em
comum: a aparência física e a teimosia.
Estou reclusa desde que deixei a presidência, perturbada
demais para focar em um novo projeto, que só Deus sabe a
finalidade, aos olhos da minha mãe.
Fecho os olhos e recordo-me das gemas escuras, fixas em
cada movimento meu, nubladas com o desejo da noite na boate e
curiosas no jantar de ontem.
Emir Kartal. Uma referência no ramo empresarial, já citado
diversas vezes em revistas conceituadas e, até mesmo, rodas de
conversas. Ora tido como um homem excêntrico e arrojado nos
negócios, ora caracterizado como um investidor impetuoso demais.
Não tinha conhecimento do nosso parentesco, minha mãe
não falava do nosso passado, muito menos da árvore genealógica
da família. Sadik vem por parte de pai, que no caso dele, era a mãe,
irmã e parente da família.
Sei que na cultura turca é normal esquecer o sobrenome da
mulher e carregar adiante somente o paterno, talvez esse seja o
motivo de nunca termos associado ele à nossa família.
De todos os adjetivos que já ouvi a respeito de Kartal, com
certeza, a dominação está presente. Não importa o ambiente,
particular ou empresarial, ele emana aquele senso de comando, em
que sua vontade se faz valer, independente da circunstância.
Começo a me questionar se foi eu que o escolheu na noite
da boate ou se fui sua presa, atraída para uma artimanha muito
bem-arquitetada e dispensada a tempo para que não surgisse
especulações.
Solto o ar com pesar e cansada. Só vou conseguir respostas
se mantiver a astúcia e, principalmente, o possível inimigo próximo.
Capítulo 6
“Deus dá uma pequena árvore para o pássaro que não pode
voar.”
— Provérbio Turco
Passo pela porta lateral do prédio, local destinado para
movimentação administrativa e discreta o suficiente para quando um
cliente peculiar precisar ocultar sua estadia no local.
Não é o primeiro investimento no ramo do entretenimento
que invisto, fato, mas confesso que a temática turca proposta
encheu meus olhos quando participei da reunião do projeto.
Quando tio Osman me informou sobre sua vinda ao Brasil e
o motivo, só constatei que nada acontece por acaso, já que minha
permanência em São Paulo seria mais demorada desta vez devido
aos negócios.
Mantenho um escritório em um prédio comercial aqui perto,
sendo a Matriz próximo ao porto de Santos, o qual gera a maior
movimentação de cargas. A Kartal é a ponte que transporta e
movimenta grandes carregamentos de um continente a outro.
Tenho uma equipe competente e especializada que trabalha
para mim, não necessita minha presença contínua em Santos, por
isso uso uma parte do meu tempo para trabalhar investimentos,
movimentando os fundos herdados por parte de mãe.
Meus negócios paralelos, como Haydar adora mencionar
com o máximo desprezo possível, vem da família Sadik, que teve o
comércio de especiarias administrado por meu pai assim que tio
Yussuf partiu.
Sei muito pouco da história, era novo demais para entender
na época e, depois da morte dos meus pais, o interesse foi
enterrado com eles. Lembro-me de ser avisado por meu tio, logo
após o sepultamento, que os negócios da família Sadik seriam
encerrados, uma parte doada aos necessitados e o restante
guardado em uma conta para mim.
Nunca mencionou o nome de tio Yussuf, mas tinha noção de
que havia uma família constituída que poderia reivindicar algo no
futuro.
Tiro o telefone do bolso que vibra insistentemente dentro do
paletó azul-marinho que uso. O calor da cidade me faz hiperventilar
com facilidade, ainda mais por sempre estar dentro de um terno três
peças e gravata.
Um homem poderoso se faz de sua imagem e atitudes,
assim aprendi e mantenho, mesmo que no mundo Ocidental,
procuro transparecer toda a influência, controle e aptidão que nosso
ramo exige.
— Alô — cumprimento sem entusiasmo.

— Abi[7], o que se passa? — Cemil, sempre gentil, se


preocupa do outro lado.
— Cemil, abi, do que precisa?
— Enviei para seu e-mail os relatórios das filiais portuárias
daqui e dos Emirados. Itália e Inglaterra ainda pendentes.
— Já disse que você é o responsável quando estou
ausente, Cemil. Não precisa me prestar contas a cada passo.
— Sei disso, mas prefiro mantê-lo informado.
— Haydar tem te dado trabalho? — Estaco os passos,
próximo da entrada reservada do escritório.
Custo para limpar a mente e manter o foco na conversa com
meu primo, mas é difícil não me lembrar daquele corpo cheio de
curvas e quente como lava, que queimou sob meu toque e
incendiou a besta que habita meu ser.
— Só seu discurso costumeiro sobre o quanto você se
ausenta da Turquia e deixa o trabalho difícil para ele.
— Não o deixe passar por cima de você, Cemil, lembre-se
que é meus braços e olhos na Kartal Exportações.
— Eu sei, mas desde que vocês discutiram sobre o
comando da matriz, as coisas pioraram.
— Sei disso, prometo tentar resolver tudo quando voltar.
— E isso vai acontecer quando, Emir? — Sei que não é uma
cobrança, Cemil de fato se preocupa com meu bem-estar.
Sempre que conversamos sobre a distância que me
mantenho da nossa família e cultura, ele atrela ao passado trágico
que vivi há alguns anos.
— No momento certo. Por agora, tenho muitas questões que
me prendem ao Brasil.

— Essas questões envolvem a ida do baba[8], não é?


— Cemil, se o seu baba não revelou seus motivos é porque
não deve ter o conhecimento.
— Eu sei. Sim. Mas vocês andam tão misteriosos que não
consigo parar as teorias na minha cabeça.
— Que seriam? — questiono, mesmo que desconfie de sua
resposta.
— Seu casamento, abi. Você sabe que enquanto você e
Haydar não casarem, tenho que me manter na reserva.
— Tudo tem seu tempo, Cemil. Lembre-se que o curso da
vida é divino e que “Deus dá uma pequena árvore para o pássaro
que não pode voar”.
— Por manter as minhas esperanças intactas é que acredito
que logo desposará uma linda noiva turca.
Acabo soltando um riso baixo, mais irônico do que
engraçado, ao imaginar o semblante de Cemil quando conhecer
minha noiva brasileira, loira e moderna.
Ainda preciso rever essas questões com tio Osman, isso
pode ser um problema para ambos os lados e não estou disposto a
enfrentar embates por questões culturais.
— Falei alguma piada? — Seu tom é muito curioso.
Aos vinte e oito anos, meu primo mais novo é o retrato de
um homem turco que segue suas raízes. Até onde sei se mantém
intacto para sua futura esposa, trabalha arduamente pela ocupação
na empresa, mesmo que seja seu lugar de direito.
Cemil tem um coração jovem, puro e muito bondoso, ainda
nem tem uma pretendente à vista, por sorte minha e de Haydar, ou
ele mesmo já teria nos amarrado a um enlace ou promessa de
casamento só para concretizar o seu.
— Nenhuma, Cemil. Preciso desligar, assim que possível
darei uma olhada nos relatórios. Continue de olho no Haydar, sei
que ele tem se intrometido no departamento financeiro da matriz e
não me agrada essa história.
— Ele quer ter controle de tudo.
— Mas esse não é seu lugar, é meu. Aceitei meu fardo e
legado há anos, está na hora do seu irmão entender isso.
— Sabe o que ele pensa sobre nosso baba ter dado o
controle a você, mesmo depois da morte dos seus pais. — Sua voz
entoa com pesar.
É um assunto difícil, mencionar a morte trágica dos meus
pais em uma viagem romântica de iate, a embarcação afundou e
não houve um sobrevivente.
Lembro-me de tio Osman bradar com a guarda costeira, as
autoridades locais, acionou até a polícia de Dubai, rota destino do
iate, no entanto, nada de concreto foi afirmado.
Uma tempestade foi a causa justificada para virar a
embarcação e afundar todos os tripulantes.
— O preço que pago pelo meu lugar de direito é muito alto,
Cemil. Haydar deveria ser um pouco mais compreensivo.
— Meu irmão tem o coração tomado por sentimentos
ordinários, Emir, você sabe disso. Desde que o baba lhe deu o
comando e escolheu sua noiva, Haydar se sentiu traído.
— Mas a decisão não foi minha! — Altero o tom,
inconformado.
Respiro fundo para reequilibrar meu humor roubado, já é
quase inexistente, no entanto, quando trazem à tona o ódio
infundado de Haydar sinto que uma sobrecarga recai sobre meus
ombros.
— Eu sei, abi. Acalme-se. Sinto muito por te atormentar com
assuntos que não valem ser ressuscitados.

— Tamam[9]. Nos falamos em breve.


Nós nos despedimos e ao retornar o telefone para o bolso
do paletó sinto a sobrecarga nos meus ombros arcar levemente
minha postura. Ajeito o botão do casaco e corrijo o tronco
continuando a caminhada até a entrada escondida.
O mesmo segurança da noite anterior está diante da porta,
posicionado antes de eu entrar para verificar o lugar.
Não me agrada o fato de andar com proteção e precisar
cumprir certos protocolos, que no fundo me deixam um tanto
paranoico, mas tio Osman sempre enfatizou a importância de cuidar
da nossa segurança, principalmente fora de casa.
Entro na sala e vejo um rapaz franzino, vestido em um jeans
largo, camiseta cheia de desenhos abstratos, óculos caídos sobre o
nariz e o cabelo preto que precisa urgentemente ser lavado.
— Conseguiu o que pedi? — sou direto.
— Claro. Enviei o arquivo para sua nuvem pessoal, deletei
do sistema de segurança, computadores e apaguei todos os rastros.
— Ótimo.
— Poderia ter me solicitado isso ao telefone.
— Prefiro resolver certas questões pessoalmente. — Ajeito
os punhos do paletó sem necessidade.
A verdade é que estar no mesmo ambiente que transei com
Catarina, há algumas noites, não é algo que me deixe confortável.
Já corri os olhos duas vezes para o vidro que ainda ostenta a marca
de uma mão pequena, espalmada.
— Já estou liberado? — O garoto ergue as mãos,
nitidamente cansado de ficar me esperando.
— Ainda não. Preciso que verifique o acesso da minha
matriz na Turquia, sigilosamente.
— Isso é fácil.
— Contratamos o melhor sistema de segurança virtual turca,
mas sei que consegue furar os protocolos e colher as informações
que preciso.
— Da sua própria empresa?
— Sim. Algum problema? — Ergo somente uma
sobrancelha.
Não gosto de ser questionado, principalmente, quando é um
subordinado a fazer isso. Satisfação é algo que só presto para quem
carrega mais sabedoria do que eu e, evidentemente, esteja trilhando
o caminho terreno por longos anos.
— Não, senhor. Só diga do que precisa e farei acontecer.
— É isso que espero de você. — Tiro um pequeno papel do
bolso e entrego a ele. — Memorize e depois queime. Eu nunca te
pedi isso. Manteremos contato pelo telefone não rastreável.
— Sim, senhor Kartal.
Retorno o caminho que percorri, sinalizo uma vez com a
cabeça para o segurança na porta que sabe o que fazer, garantir
que aquele papel seja incinerado.
Por mais que Cemil me assegure que tudo está bem na
Turquia, ainda desconfio que Haydar esteja tramando pelas minhas
costas. Meu primo é tolo o suficiente para prejudicar a empresa só
com o intuito de me atingir.
A posição que ocupo me ensinou a estar prevenido o
máximo possível, ser pego de surpresa dificilmente nos dá a
oportunidade de rebater com inteligência.
Capítulo 7
“Escute cem vezes, pondere mil e fale apenas uma vez.”
— Provérbio Turco
O cursor de texto pisca diante de mim há, pelo menos, vinte
minutos e ainda não consegui digitar uma linha que seja para o
discurso da cerimônia que acontece na próxima semana e é de
suma importância para a credibilidade da fábrica.
A associação regulamentadora do setor certificou a fábrica
na fase ouro, isso indica que, além de termos responsabilidade
trabalhista, social e ambiental com a comunidade que rodeia a
empresa, ainda estamos cientes da atuação e uso de recursos
naturais.
Graças a minha insistência, há dois anos, para a mudança
na técnica e reutilização da água, somado os processos com refibra
e o destino social dos retalhos e reciclagem, hoje a empresa sobe
um degrau importante no ramo têxtil.
O que antes era tido como o grande vilão do meio ambiente,
com as técnicas e procedimentos modernos aplicados, reduziu em
quase setenta por cento o uso de recursos naturais.
— Posso usar isso no discurso — penso alto demais e
percebo que Andreza e Gilberto me encaram da mesa criativa.
Não costumo trabalhar em questões burocráticas e sociais
aqui, mas dada a atual situação que meus pensamentos se
encontram, achei melhor manter companhia em torno, ao menos no
trabalho.
Mais um dia passou sem que minha mãe desse respostas
convincentes sobre essa aproximação repentina da família Kartal.
Eles nem são meus parentes de fato, salvo Emir, que é filho da
minha tia.
Deus, eu transei com meu primo!
Uso as mãos para impulsionar a cadeira para trás, solto o ar
e giro o estofado parando de frente para o vidro fumê que cobre
toda a parede da sala. Gosto da sensação de estar acima do
mundo, como se daqui nada pudesse me atingir.
— Filhota!
Ouço o baque da porta assim que sua voz elevada me tira
do momento de crise que estava prestes a cair. Giro mais uma vez e
encaro dona Elisandra caminhar a passos determinados até a
pequena mesa que utilizo.
— Mãe. Resolveu me dar o privilégio de uma conversa
sincera?
— Não sei do que está falando, Catarina. — Ela corre os
olhos para meus assistentes que mantêm a atenção voltada para a
mesa.
Minha mãe não é conhecida por ter simpatia ou
entrosamento com os funcionários, seja qual for o cargo que
ocupem na hierarquia, sempre será eles e nós.
— A senhora sabe, mas gosta de fingir que não.
— Só queria informar que na cerimônia, na semana que
vem, seu tio estará presente, junto de Emir, logicamente.
— Para quê? — Levanto da cadeira e cruzo os braços.
O selo é importante demais para a empresa, assim como o
prestígio que dará a nós, como proprietárias. Algo que nunca vi
minha mãe permitir é entregar os louros para quem não os merece.
— Eles são nossa família, querida. É natural estarem ao
nosso lado em um momento histórico desses.
— Menos, mãe. Quando automatizamos uma das filiais
tornando a tecelagem mobiliária ainda maior e com muito mais
campo de atuação, não me lembro de receber, sequer, um
telegrama parabenizando.
— Águas passadas, Catarina. Precisa pensar a partir de
agora.
— É tão mais fácil admitir que está interessada no capital
turco.
— Catarina! — ela repreende correndo os olhos para os
funcionários do outro lado da sala. — Não diga coisas infundadas.
Sabe como as fofocas correm por esses corredores.
— Bom, então quer que eu inclua os dois no discurso que
estou trabalhando? — ironizo a conversa, já que falar sério não é
seu intuito.
— O discurso é seu, você quem decide. Só esteja livre no
meio da tarde, Emir virá conhecer o operacional da fábrica.
— O chefe de setor pode fazer isso. — Franzo o cenho,
intrigada.
— Acho melhor você fazer, é mais pessoal. Ele não é um
investidor qualquer.
— Então, agora, Emir Kartal é investidor na Mancini
Tecidos? — Ergo as sobrancelhas.
— Mais ou menos por aí. — Ela abana as mãos da mesma
forma que faz quando quer desconversar algo.
— Mãe, pare de fugir do assunto e me diga como uma
fábrica gerida por você, há vinte anos, está quase fechando as
portas.
— Catarina, por favor. — Ela rola os olhos, enfatizando a
presença dos assistentes. — Agora não é o momento.
— E quando será?
— Mais tarde, depois que apresentar a fábrica a Emir.
Bufo, inconformada, mas antes que consiga tirar qualquer
outra informação dela, observo seu corpo miúdo se afastar e partir
dali o mais rápido que consegue.
Ainda não compreendo qual foi o caminho para chegarmos
a este ponto, mas obterei algumas respostas hoje, mesmo que para
isso tenha que enfrentar as gemas negras que me causam tanto
desconforto.
Se o discurso estava difícil de sair antes do aviso da minha
mãe, depois se tornou impossível pensar em algo objetivo,
imponente e confiante para proferir em frente a meia dúzia de
câmeras de canais de comunicação convidados para registrar o
momento.
Algo desnecessário, uma nota formal seria o suficiente para
repassar à mídia, mas minha mãe sempre quer fazer de tudo um
evento e, no intuito de amenizar as batalhas que travo com ela, não
me opus.

Estou sozinha na sala de criação, os assistentes foram


coletar mais pesquisas para definirmos nossa base para a coleção
turca. Uma ideia infundada, capricho de uma socialite que quer
agradar pessoas que não merecem um pingo da nossa
consideração.
Uma batida fraca na porta me faz despertar dos
pensamentos, encaro a figura do homem imponente passar por ela
e fita meus olhos com tamanha determinação que me faz desviar
em automático.
Quase solto um protesto baixo, inconformada por ceder tão
cedo, então disfarço pegando o lápis à minha frente e o uso para
prender o cabelo em um coque bagunçado.
Já perdi as contas de quantas vezes fui repreendida por
minha mãe por fazer algo tão deselegante, mas a verdade é que
não quero impressionar em nada esse turco.
— Merhaba Bayan[10].
— Boa tarde... eu acho. — Fico perdida em meio ao
cumprimento, ajeitando a frente do cabelo.
Emir termina de caminhar até próximo da mesa, a mão
esquerda no bolso enquanto a outra descansa ao lado do corpo. Os
cabelos curtos alinhados à barba bem-feita, o semblante com a
mesma confiança e mistério que sempre ostentou.
Ele é alto, se eu tenho quase um metro e setenta, ele deve
chegar aos um e noventa e cinco facilmente. Isso me faz lembrar
em automático o que falam sobre homens altos de corpo esguio,
sinto meu rosto aquecer ao perceber que constatei a veracidade da
informação.
— Espero não estar atrapalhando sua rotina, senhorita.
— Catarina, pode me chamar pelo nome. Por onde você
quer começar? — Apoio as mãos na alça da cadeira e levanto de
uma vez.
Escolhi usar hoje algo mais despojado, combinei uma calça
pantalona de linho branca, camiseta no mesmo tom e tênis
plataforma, claro. Para trazer um lado mais over escolhi adereços
pesados, em dourado, uma corrente ajustada no pescoço, pulseira
no mesmo estilo, anéis variados e um brinco de argola pequeno.
— Da forma que preferir, sou um espectador por hoje.
— Afinal, o que levou seu tio a querer investir na Mancini?
Somos os rechaçados da família, achei que não queriam contato
conosco. — Cruzo os braços sem conseguir segurar meus
questionamentos.
Não pretendia começar tão cedo, mas a realidade é que
estar perto dele me deixa desconfortável, tanto pelo que fizemos
como por quem somos. A maior preocupação que tenho é com o
destino do que trabalhei tão afinco para assumir, não permitirei que
alguém destrua o que nos sustentou até hoje.
— Essa é uma pergunta que deve fazer a ele, Catarina. Não
tenho direito de responder pelas intenções de ninguém.
— Então você é só o cão que abana o rabo quando ele
manda — deduzo com pura grosseria.
Ele solta um grunhido debochado, balança a cabeça ao
desviar os olhos para a parede ao lado e quando retorna a mim
quase recuo com a ferocidade em sua íris.
— “Escute cem vezes, pondere mil e fale apenas uma vez.”
— Sua voz é baixa e tranquila, tenta passar calmaria, mesmo que
seus olhos contradigam a intenção.
— Dispenso seus ensinamentos, Emir. Vamos logo com
isso, tenho muito o que fazer para ter que bancar a babá.
— Estou no seu tempo, qalbi.
Descruzo os braços ao relembrar a forma como ele me
chamou no clube, dentro daquele escritório, pouco antes de...
Balanço a cabeça e disperso as lembranças que se
formavam na minha mente, não quero reviver o que aconteceu, pelo
meu orgulho ferido e, principalmente agora, sabendo quem é o
homem misterioso e quente.
— A matriz detém a fabricação dos tecidos exclusivos da
alta costura, alguns processos são realizados nas filiais, enquanto
aqui só finalizamos. Deixamos a gestão concentrada na matriz, por
questões óbvias, então a visita será rápida na parte operacional.
— Por que não transferir tudo para um lugar só, onde obtiver
os maiores recursos? Isso pouparia muitos gastos desnecessários.
— Já falei sobre isso com minha mãe, mas ela quer manter
a sede na metrópole.
— Isso é insensato.
— Concordo — contorno a mesa e me direciono à porta —,
quem sabe você e seu tio possam convencê-la do contrário.
— Ou você e eu solicitaremos uma reunião com todos os
departamentos e apresentaremos uma proposta de mudança
emergencial.
Termino de abrir a porta e o encaro, surpresa, com sua
declaração. Uma proposta de aliança seria a última coisa que
cogitaria vinda de um turco. Não conheço a cultura a fundo, deveria,
já que carrego no sangue essa origem, no entanto, tenho certeza de
que ceder espaço a uma mulher não é algo corriqueiro entre eles.
Ele para seus passos, próximo demais de mim, sua boca
alinhada e contornada por aquela barba espessa e marcada chama
a atenção.
— Eu não sou seu inimigo, qalbi, acredite.
Engulo em seco enquanto ele se afasta e me deixa
desconfortável ao abalar parte das armaduras que ergui desde que
soube quem ele é.
Capítulo 8
“Não se fala de corda em casa de enforcado.”
— Provérbio Turco.
Em meus trinta e três anos de vida, já experimentei muitas
coisas das quais minha família condenaria, com certeza. Os
costumes ocidentais de fato me afastaram um pouco das raízes, ou
eu usei deliberadamente como desculpa para fazer o que bem
entendesse.
Dentro da família somos ensinados a ponderar as atitudes e
palavras, agir de forma calma e comedida é o melhor caminho para
as decisões certeiras.
Na formação de um homem é ensinado que ele só
encontrará a plenitude quando não precisar repensar suas atitudes,
nem as palavras jogadas ao vento.
Tantos anos viajando, conhecendo o mundo e suas culturas
acabei permitindo que alguns desses valores se distanciassem,
principalmente o que se referia à parte sexual.
Sou um homem ativo, apesar de discreto e, evitar ao
máximo uma exposição da minha intimidade, dentro dos clubes,
camarotes e festas particulares, nunca neguei a oportunidade de ter
uma bela mulher para saciar minhas necessidades mais primitivas.
E só repasso esse legado nada glorioso na minha mente
porque está difícil controlar meus olhos que não saem da bunda de
Catarina. Apesar da calça larga, seu traseiro avantajado preenche
bem o tecido e os quadris jogados de um lado a outro não estão
facilitando meu controle.
“Pense em algo abominável, Emir. Camelos! Vou pensar em
camelos. Bichos asquerosos e nojentos, nunca gostei de me
aproximar deles.”
— Como pode ver, trabalhamos com um grupo seleto na
matriz, bem diferente das filiais que cuidam da matéria-prima e
produção em grande escala, aqui nos preocupamos com a
qualidade e exclusividade do produto ofertado.
— Somente alta costura?
— Sim.
— De onde a gestão deduziu que manter um prédio deste
porte, funcionários, transporte e logística das filiais, para atender a
uma dúzia de clientes diferenciados é justificável?
Ela estaca os passos em um estreito corredor que contorna
um dos setores de finalização, um vidro nos protege do contato e
barulho do lado de dentro, meu corpo para rente ao seu, já que
estava em seu encalço.
Catarina olha sobre o ombro, ergue as sobrancelhas com
um semblante irônico na face, fica ainda mais linda do que já é. O ar
angelical e sério, substituído por uma impetuosidade nata que muito
se assemelha à mulher fatal da noite da boate.
Meu instinto aflora em automático, como se um botão
inconveniente fosse acionado, aperto os dedos em punho dentro da
calça no intuito de conter meu ímpeto descabido.
— Anote sua pergunta para dona Elisandra. Também estou
curiosa para saber o que ela dirá.
— Bom, qual o seu parecer, acompanhando a empresa há
anos em segundo plano?
— Que há meios mais viáveis e econômicos de manter
nossa qualidade e diferencial, o mercado têxtil expandiu demais
desde a criação. A Mancini já passou por uma revolução industrial
desde a sua criação, conceitos foram mudados, o capitalismo cada
vez mais tornando a massa alcançável, mas minha mãe ainda
mantém uma mente retrógrada em relação ao progresso. Ela se
preocupa demais em como certas mudanças irão impactar na
imagem da fábrica e de nosso sobrenome.
Sinto meus lábios repuxarem para um lado e luto
arduamente para conter o sorriso de satisfação em constatar que
minha futura esposa é alguém tão inteligente e perspicaz.
Sinceramente, tudo seria bem mais difícil de aceitar se me
fosse jogado uma dondoca que não entende nada de coisa alguma
e só se importasse com seu status perante a sociedade.
— Não tem nada a dizer? — Ela apoia uma mão na cintura,
impaciente por uma réplica.
— Sua mãe não está errada em prezar pelo nome de vocês.
— E isso justifica manter o barco afundando em prol de uma
imagem de prestígio? — A alteração em seu tom denuncia sua
irritação iminente, assim como os olhos afilados fuzilando os meus.
Inclino a cabeça para frente, estávamos próximos o
suficiente para tornar este pequeno gesto uma invasão do seu
espaço pessoal, mas pouco me importo. O cheiro exótico de romãs
invade minhas narinas e sou enfeitiçado por lembranças saudosas
da minha terra.
Em Istambul você é agraciado pelas mais lindas e robustas
romãzeiras, enquanto percorre as ruas, o cheiro Frutal adocicado,
com um leve fundo amadeirado que aplaca qualquer indício
enjoativo. Simplesmente perfeito e convidativo, idêntico ao cheiro
dela e isso torna meu tormento ainda maior.
Preciso manter minhas mãos rente ao corpo e uma distância
respeitosa da mulher que irei desposar em algum momento.
Mantenho uma reserva considerável do nível de conhecimento do
nosso destino traçado, ainda não sei até onde foi casual, de sua
parte, nosso encontro tórrido naquela noite.
— Nada justifica negligenciar o fruto de seu sustento. —
Meu tom é baixo e afetado.
Pigarreio e afasto um passo de imediato depois de encarar
sua boca carnuda por míseros segundos. O errado parece tão certo
que cada fibra do meu ser começa a vibrar com a intenção de
enlaçar seu corpo junto ao meu.
— Então acho melhor continuarmos o trajeto e finalmente
questionar a cabeça de tudo isso. — Ela gira o dedo no ar,
enfatizando o entorno.
Apesar de irônica e merecedora de uma resposta à altura,
resolvo recolher as armas e escolher o momento certo para
confrontar seu temperamento ousado.
Confesso que essa forma de agir, apesar de costumeira
para meu estilo de vida, difere demais quando comparado a uma
prometida em minha terra. A Turquia evoluiu, se modernizou em
muitos quesitos, até culturais, mas ainda existem raízes profundas
quanto a maneira de nos portarmos diante de um matrimônio.
Não seria surpreendente para mim, se não fosse o fato de
estarmos praticamente noivos, informação que talvez ela não tenha
conhecimento e prefiro manter assim até que tio Osman chegue ao
Brasil e tome a frente deste assunto.
Ainda acredito que teremos um problema grande quanto a
aceitação de Catarina, isso, claro, se ela realmente não sabe as
reais intenções na aproximação das famílias.
Sua mãe parece genuinamente preocupada com seu futuro
e o fato de sentir que a filha está cumprindo um papel em moeda de
troca, apesar da minha garantia de que o que pertence à Catarina
continuará nas mãos dela.
Só não sei como o arranjo funcionará com nossa vida
voltada para a Turquia, talvez deva diminuir as viagens para lhe dar
mais atenção, ao menos até estar adaptada à nova vida e alguns
costumes.
Não sou um grande tradicionalista, nem pretendo converter
Catarina, se não for de sua vontade, mas é fato que alguns hábitos
precisam ser mantidos, principalmente perante a comunidade que
vivemos.
Coisas demais para processar, melhor seguir um passo de
cada vez até chegar ao objetivo final: casado, com filhos, próspero e
uma vida harmoniosa ao lado da minha prometida.
Nada dará errado, cumprirei meu destino, ambos
resgataremos um elo perdido no passado devido à intransigência da
nossa raiz, tio Osman está esperançoso que tempos mais amenos
possam aplacar as tempestades de outrora.
Ainda tenho minhas dúvidas, mas é cedo para concretizar
algo. Deixarei o barco correr, mas manterei a mão firme no leme,
para não me perder no percurso, ou pior, naufragar de vez sem
meios de emergir.
Entramos na sala de reuniões onde tia Elisandra já nos
aguarda, acompanhada de dois senhores mais velhos, as
apresentações são feitas, diretor financeiro e o advogado da
empresa, tomo meu lugar de frente para Catarina, que mostra uma
ansiedade latente.
A moça parece realmente não saber a real situação dos
negócios, sua mãe soube mascarar bem as aparências, só não
consigo entender o motivo. Até querer manter o prestígio falso é
compreensível, fútil, no entanto, faz algum sentido, mesmo
deturpado.
— Espero que tenha gostado da tour pela matriz, Emir —
Elisandra fala, acolhedora, antes de aceitar uma pasta que está
sendo distribuída aos presentes.
— Foi reveladora e muito instrutiva. Catarina, como sempre,
impecável com suas observações. — É uma pequena alfinetada,
confesso, mas estou incomodado com seu nítido nervosismo.
— Ela sempre teve uma opinião clara e nunca fez questão
de esconder — Elisandra coloca com orgulho.
— É assim que se forma um bom gestor. Honestidade,
clareza e versatilidade ao lidar com as problemáticas de uma
empresa deste porte.
— Daniel está aqui para acompanhar a reunião e nos
orientar legalmente.
— Devo lembrá-la que este encontro é informal, Elisandra,
não firmarei qualquer compromisso, ainda.
— Estou ciente disso, Emir, temos muitas pontas soltas
antes de assinar qualquer papel.
— Vamos começar entendendo quais pontas soltas são
essas e de que forma a Kartal irá nos ajudar. — Catarina apoia os
antebraços sobre a mesa de vidro e une as mãos.
— Catarina....
— A Kartal não fará nada pela Mancini Tecidos.
— O quê? — Elisandra corre os olhos até mim, alarmada. —
Mas Osman me garantiu...
— Meu tio — a interrompo —, intermediou a intenção de
ajuda, mas como chefe da família, sou eu quem decido com qual
delas irei participar.
— Como assim? — Catarina mantém seus olhos vívidos
atentos a mim.
Respiro fundo antes de soltar a intenção que mantinha em
segredo desde que fui comunicado por tio Osman da aproximação.
— O comércio de especiarias Sadik foi findado quando
meus pais morreram, parte do valor foi destinado aos menos
afortunados e o restante guardado no banco para mim, para quando
atingisse a maioridade.
— Que interessante. Esqueceram por completo nesta conta
o filho mais velho chutado para outro continente — Catarina dispara,
indignada, como imaginei que agiria quando mencionasse nossa
herança.
— Catarina, deixe-o terminar — tia Elisandra repreende,
muito interessada no meu discurso.
— Quando assumi o controle dos negócios da família,
também tive acesso ao montante guardado da família Sadik. Foi
quando decidi investir em uma holding.
— Investiu minha herança em uma Amazon da vida?
— Não. Criei a nossa própria. Sadik Corporation é uma
empresa que detém controle de alguns negócios, em ramos
diversificados, entretenimento e gastronomia são seu principal foco.
— Inacreditável. — Ela bufa com descaso.
— O quê? O fato de eu quadruplicar a herança Sadik ao
criar uma empresa do zero, ou por ser essa empresa, que tem
origem do seu sangue, a responsável por salvar a Mancini de ser
extinguida?
— Eu não tenho que ouvir isso. — Catarina espalma as
duas mãos sobre a mesa e levanta de imediato.
Observo seus trejeitos coléricos guiarem seus passos para
fora da sala e concluo que esse é um sinal evidente da ponta da
tormenta que está prestes a cercar meu mundo tranquilo.
Capítulo 9
“Um estômago faminto não tem ouvidos.”
— Provérbio Turco
Escuto a porta da sala bater assim que passo por ela,
confesso que o som alto ajuda a alimentar ainda mais a raiva
instantânea que tomou conta dos meus sentidos na reunião.
Uma pequena parte de mim, a racional, sabe que deveria ter
mantido a linha, evitado falar, sequer piscar, para não atrapalhar a
enxurrada de informações verídicas que finalmente seriam
apresentadas, no entanto, ouvir o discurso presunçoso de Emir
ativou botões que nem fazia ideia de que existiam.
O semblante sóbrio, como se fosse o rei do mundo — e
talvez em algum ponto realmente seja —, sobre como foi perspicaz
em investir toda a herança, que tenho direito, em uma holding, foi
demais para aguentar.
Aquela sensação de ser invalidada e posta de lado me
tomou, um sentimento que trabalho há anos para me livrar, mas
acabou se tornando a válvula para atiçar meu temperamento difícil.
— Pode me explicar que palhaçada foi aquela? — Minha
mãe irrompe pela porta pronta para brigar. — Além de antiético,
você desrespeitou sua família, Catarina.
— Dane-se a família. — Jogo os braços para o ar, mais uma
vez pressionada pelo sentimento de abandono.
Não sei em que ponto a mulher altiva e com um brio gigante
no ego se vendeu em troca de prestígio, entretanto, a admiração
que carrego pelo sobrenome Mancini está se apagando a cada
passo e, confesso que não saberei o que fazer se até isso eu
perder.
Descendente de duas famílias conceituadas, mas sem
encaixe em qualquer uma delas.
— Não seja dramática, Catarina, nós temos que ser
práticas. Precisamos da família Kartal ao nosso lado agora.
— Podemos achar outra saída. Fechar as duas filiais,
concentrar o trabalho no lugar mais bem preparado para atender a
grande massa. Findamos contratos que geram maiores gastos,
reduzir pessoal, até jogar a empresa no mercado de ações — solto
as possibilidades, uma após a outra, sem dar tempo para que ela
rebata.
— Está louca? Eu nunca permitiria que a empresa fosse
para a mão de terceiros e não vamos parar de atender aos nossos
clientes seletos.
— É tão fútil, tão... tão... mesquinho, você não querer
renunciar a um prestígio que só alimenta seu ego.
— Prestígio esse que te deu uma boa vida e oportunidades
que poucos têm.
— A custo de quê? — grito ao bater os braços na lateral do
corpo.
— Fiz tudo que foi possível para manter o legado Mancini.
— Não o suficiente, já que a empresa está prestes a quebrar
e... mãe... — avanço dois passos para diminuir nossa distância —...
sua administração não foi tão eficaz assim, não é? Talvez não esteja
no seu sangue gerir algo deste porte. — Minha voz sai baixa e
carregada de desprezo.
O movimento é rápido, não percebo até que meu rosto gira
para o lado com o impacto da sua palma sobre a minha face. Levo
as mãos em automático ao rosto, chocada com a situação, nunca fui
agredida, nem quando criança e aprontava várias estripulias.
Sinto as lágrimas saltarem dos olhos quando volto o olhar
em sua direção e vejo o choque que sinto refletido nos seus. Ela
avança um passo, mas ao tentar me tocar, eu afasto.
— Está tudo bem? — Ambas encaramos a porta e Emir está
parado rente a ela sem saber como agir, com certeza presenciou a
cena.
— Não poderia estar melhor, senhor Kartal. — Repuxo os
lábios de um lado e baixo as mãos. — Infelizmente, surgiu um
imprevisto e não poderei acompanhar o restante da reunião.
Encaro minha mãe que parece sem saber como agir, ainda
presa na cena anterior.
Pego minha bolsa e celular, passo por Emir e evito ao
máximo tocar seu corpo que ocupa parte da passagem, com
sucesso sigo caminho até o elevador.
— Catarina? Espere! — Ouço sua voz elevada logo atrás de
mim.
— Qualquer dúvida, pode mandar um e-mail ou mensagem,
senhor Kartal. Minha assistente passará qualquer informação que
precisar.
— Você precisa de algo? Posso te ajudar de alguma forma?
— Seus dedos fortes e quentes fecham em torno do meu cotovelo
ao me virar para si.
As gemas negras que tanto mexem comigo fazem seu
trabalho mais uma vez, o semblante sério, com um toque pesaroso,
prende minha atenção por completo, mergulhada em uma sensação
de vazio acolhedor que só senti com ele.
É conflitante entender qual o sentido em tudo isso que ele
me causa. Poderia alegar atração, tesão pelo homem inalcançável,
a imponência quebrada com um toque fugaz, mas cada vez que o
encaro dessa forma, sinto que vai além.
É quase como um reconhecimento, mesmo que não
encontre nada pariforme a ponto de justificar essa identificação
instantânea.
Sinto as mãos formigarem, a comichão se alastra para os
braços que se movem sem racionalidade, toco seu terno impecável
e macio, subo as palmas até que apoio os dedos em sua nuca.
Cativa em seu olhar, o raciocínio perdido junto com o bom
senso, só deixo as coisas desenrolarem. Meus sentidos em alerta
guiam meu corpo para o desejo que não estou disposta a admitir,
mas acontece, em automático.
A ausência do salto me impede de agir com tamanha
rapidez, fico na ponta dos pés e puxo sua nuca de encontro aos
meus lábios, devidamente umedecidos pela expectativa.
Nossos olhos não perdem o contato nem por um segundo,
ao sentir o toque macio da sua pele sobre meus lábios, a avalanche
que carrego dentro do peito explode e então meu instinto toma a
frente.
Finalmente, fecho os olhos, gemo quando seus braços me
apertam em seu agarre, na mesma medida que sua língua invade
minha boca, sem qualquer reserva ou cuidado.
Quente, intenso e inquietante, assim é o beijo do homem
que mexe com meus sentidos de tantas formas que chego a notar
uma pontada de medo. Apesar de testar suas habilidades para algo
primal, não fazia ideia de como seu beijo é envolvente.
Agora só consigo pensar em como teria sido a noite no
clube se ao menos um beijo tivesse acontecido, antes ou durante,
do nosso momento tórrido. Em como agiria se passássemos a noite
em um quarto de hotel, nos consumindo com toques, beijos e
gemidos enquanto o dia raiava e desmaiaríamos, cansados e
suados, em compensação satisfeitos como nunca aconteceu em
nossas vidas.
Sua língua é habilidosa, consome meus pensamentos, nubla
os sentidos e tira a racionalidade de onde estou, transporta qualquer
dúvida para longe e entrega exatamente o que preciso.
Pertencimento, proteção e ânsia, por viver, por sentir, por
coexistir em um momento ínfimo de loucura.
Em alguma brecha do momento, ouço o sinal do elevador e
salto para trás, retornando à realidade, abro os olhos e encaro seu
semblante confuso e bagunçado.
Ele ergue o polegar e limpa o canto da boca enquanto a
outra mão se infiltra no bolso da calça, retornando à postura austera
tão comum.
Por sorte, o elevador está vazio, salto para dentro sem
mencionar uma palavra que seja, o vejo dar um passo e ficar no
meio das portas metálicas que se fecham, mais devagar do que
gostaria.
Vejo um fraco sorriso surgir em seus lábios, é quase
imperceptível, fico na dúvida se realmente acontece ou minha mente
aturdida me prega uma peça.
Não gostaria de ficar feliz com isso, mas é fato que em meio
ao turbilhão de sentimentos conflitantes dentro de mim, a alegria por
perceber que Emir gostou está entre eles.
É um caminho perigoso, sinto que o turco não é o tipo de
pessoa que age por impulso, bem contrário a mim, que tenho meus
rompantes vez ou outra.

— Você o quê? — Layla praticamente grita, mesmo que tão


próxima, na poltrona ao lado da sua.
Estamos em um pub a meio caminho das nossas casas.
Chamamos aqui de Marco Zero, uma referência particular para
absolutamente qualquer localização ou destino que incluímos em
nossos planos.
Isso só aconteceu depois de brigarmos feito loucas por qual
casa seria a referência das baladas e saídas que combinávamos na
época de faculdade. Foi quando encontramos este pub
aconchegante, com um toque irlandês que lembra a década de
cinquenta e toda a gloriosa rebeldia da época, e o denominamos
nosso Marco Zero.
O meio caminho para nossas casas e ponto de partida para
qualquer logística empregada em nossas saídas.
— Eu não sei o que me deu, Layla. Quando dei por mim, o
elevador apitou e eu saltei para trás, como se tivesse tomado um
choque.
— Você agarrou seu primo! Isso é tão esquisito.
— Nem tanto. Na cultura islã é normal casarem parentes.
— Você vai casar com ele? — Layla arregala aqueles olhos
claros na minha direção e acabo rindo da sua expressão exagerada.
Se eu sou uma pessoa emocionalmente instável, Layla é o
complemento na falta de tato para agir, falar e se comportar em
cenários, principalmente, críticos.
— Tá maluca? — Torço os lábios. — Eu preciso manter a
calma, Layla. Tem muita coisa que ainda não sei e estou a um
passo de descobrir. Tenho que manter o turco próximo.
— Bom... na horizontal fica mais fácil. — Arregalo os olhos e
acerto um tapa na sua perna.
Soltamos uma gargalhada juntas, é sobre esse tipo de coisa
que me preocupa quando Layla presencia algo importante. Ela faz
piadas para amenizar a situação, como também solta algumas
verdades que ninguém tem coragem de dizer.
— O que pretende fazer, amiga? — Ela toma mais um gole
do seu gin.
Preciso encerrar essa conversa antes que comecemos a
embriagar os sentidos e garantir uma ressaca horrível amanhã.
— Calar. Preciso ouvir, observar e manter a calma, acima de
tudo.
— Tá aí uma coisa que eu nunca vi você fazer.
— Eu sei — solto, pesarosa.
Será desafiador, mas eu preciso encontrar equilíbrio e
calmaria para salvar a empresa das garras da Kartal, ou Sadik, seja
como for, e ainda lidar com o comportamento incomum de dona
Elisandra.
Capítulo 10
“O dinheiro te leva para todos os lugares, exceto para o céu.”
— Provérbio Turco.
Retorno meus passos para o escritório de Catarina, encaro
sua assistente que tem um meio-sorriso no rosto devido à cena que
acabei de protagonizar.
Paro diante da mesa, coço o queixo enquanto encaro a
moça que parece murchar na cadeira, apreensiva.
— Você não viu nada, senhorita — aviso e ela acena com a
cabeça em afirmação. — Saberei recompensá-la por sua discrição.
Continuo meu caminho até a sala ao qual encontro
Elisandra sentada em um estofado elegante, ela segura a cabeça
com uma mão que apoia no braço da cadeira.
— Posso soar prepotente, mas acredito que este não é o
melhor caminho para convencer sua filha a fazer nada.
— Ela vai entender. — Ela corrige a postura e une as mãos
sobre o colo. — Sei que vai.
— Não me recordo de já ter feito essa pergunta, tia, mas há
algo que não se encaixa em tudo isso. — Tomo a cadeira em frente
a ela. — Como pretende convencer sua filha, criada para ser
independente e soberana em seu meio, a se unir em matrimônio
com a família que rechaçou seu pai?
Cruzo uma perna sobre a outra e apoio as mãos no colo,
intrigado com os motivos dessa mulher. Apesar de Elisandra deixar
claro o quanto preza por sua reputação, não parece o tipo que
sacrificaria a própria filha para tal.
— Dizem que o dinheiro te leva para todos os lugares,
exceto para o céu — ela cita um provérbio da minha terra e fico
surpreso.
— De fato, já vi muitos homens honrados se perderem pelo
poder e ganância que o dinheiro traz, mas custo a acreditar que a
senhora seja o tipo de pessoa que se corrompa dessa forma.
— Catarina precisa de base, apoio, espero que você possa
ser tudo isso para ela, Emir. Não quero que minha filha se sinta
sozinha, nunca.
— Já lhe garanti que irei protegê-la com minha vida. —
Encaro, com determinação, seus olhos, para que não reste dúvida
na veracidade das minhas palavras.
— Não é suficiente, rapaz. Você precisa amá-la. Desejar
que ela esteja sempre por perto. — A mulher avança para frente e
toma minhas mãos para si.
Sinto um incômodo irritante por ela me tocar sem permissão,
mas seu olhar suplicante só aumenta ainda mais minha curiosidade
em entender toda essa preocupação.
— O amor se constrói com o tempo, tia. Tenho certeza de
que Catarina e eu encontraremos juntos um caminho harmonioso.
— Catarina não é pacata. Tudo nela é latente, seu
temperamento é difícil, parece ser inatingível, mas a verdade é que
ela é permissiva para aqueles que são verdadeiros. Abra seu
coração, esteja disposto a enxergar por trás das aparências e se
deixe encantar pela minha menina.
Solto minhas mãos do seu aperto, inquieto com sua
declaração, levanto e limpo a garganta, formulando uma resposta
satisfatória para ambos. Não posso garantir que amarei Catarina se
nem ao menos tenho certeza de que sou capaz disso.
O único sentimento nobre e perto do sublime que cultivei foi
por meus pais, que me deixaram cedo demais e só eu sei o quanto
isso me quebrou por dentro. Apesar dos anos, ainda sinto a dor me
sucumbir e colocar minhas reservas elevadas demais para permitir
que alguém entre.
Já estive disposto uma vez e a única coisa que consegui foi
machucar outra pessoa. A negligência dos meus sentimentos nulos
a fez se perder da vida, do propósito e encerrar sua existência.
— Os turcos são diferentes, tia.
— Esqueceu que fui casada com um? — Encaro a
paisagem industrial envidraçada relapso quanto ao histórico dela.
— Não. E o resultado de tudo isso não favoreceu ninguém,
no fim das contas.
— Mas vivi anos gloriosos com Yussuf. Amada, protegida,
cuidada, ele me fez sentir como uma sultana do Império Otomano. E
é isso que quero para Catarina, nada menos.
— E o que ela quer, tia? Conta? — Giro o corpo em sua
direção.
O semblante pesaroso esquecido em meio às suas
palavras. Ela retornou à postura altiva e imponente de sempre,
como se suas declarações fossem decretos a serem cumpridos.
Não tenho dúvidas de que se ainda existisse o império, ela
seria consagrada como “Elisandra, a Magnânima”.
— Eu sei do que minha filha precisa, Emir. Não preciso que
me julgue.
— Longe disso, tia. Apesar de soar opressor, ainda acredito
que conheça sua filha a ponto de determinar seu futuro tão
incisivamente.
— Assim como tio Osman determina o seu. Apesar de ser
um homem crescido, empresário e chefe de duas famílias. — Seu
tom carregado de censura não passa despercebido.
— Sim. A diferença entre nós, é que eu vivo a cultura e
entendo os motivos. Catarina está familiarizada com isso? — Ergo
as sobrancelhas ao ver que atingi meu ponto.
Deixo a mulher sozinha com sua própria consciência, apesar
de concordar com o casamento por conveniência, sei que minha
vida não mudará muita coisa, exceto o fato de ser fiel à minha
esposa.
Algo que não julgo impossível, primeiro por honrar meu
caráter e honestidade nos votos e compromisso firmado, mas acima
de tudo, por ter certeza de que minha vida conjugal não será nada
entediante.
Sou informado pelo chefe da minha segurança que Catarina
está em um pub irlandês, tomando doses de gin com a amiga que
lhe acompanhou na boate naquela noite.
Layla, tão ou mais irreverente que Catarina, tem dificuldades
de lidar com os desmandos do pai, assim como minha prometida
com a mãe, são amigas desde a época de escola.
Formada em Direito Empresarial, trabalha como assistente
júnior na empresa do próprio pai, que ainda não promoveu a filha
por acreditar que ela tenha que provar seu valor assim como
qualquer outro funcionário.
A única coisa que ele não enxerga é que a capacidade
dessa mulher está acima de muitos engravatados experientes que
conhecemos no ramo.
Entro no pub e ajeito o paletó, um passo atrás, meu guarda-
costas acompanha o caminho até o canto discreto que tem uma
poltrona, convenientemente, vazia.
A alguns passos de surpreender Catarina e sua amiga, que
riem de algo que a própria disse, um corpo grande e truculento
passa por mim e toma o assento vazio.
— Quer que o tire de lá senhor? — Ergo a palma
sinalizando para o homem se conter.
— Catarina saberá resolver a questão. Não se preocupe. —
Enfio as mãos nos bolsos, meu paletó enruga nas laterais e abre um
pouco mais.
Encaro sua figura alegre que ainda não me viu, ela parece
melhor do que quando embarcou no elevador. Espero que nosso
beijo tenha contribuído para dissipar o episódio desagradável com
sua mãe.
— Então, vocês estão sozinhas, meu amigo e eu também.
— O homem aponta para o balcão do outro lado.
Olho por curiosidade e vejo outro tipo, um tanto desalinhado
para meu gosto, erguer sua garrafa em cumprimento. Volto a
atenção para a conversa e Catarina tem um olhar tão determinante
que qualquer um se intimidaria, mas acredito que o desavisado
sentado à sua frente está suficientemente alto para não perceber.
— Uma coincidência interessante e única, querido. — Ela
sorri sem que alcance os olhos, ironia pura. — Duas mulheres
podem ocupar um bar e querer simplesmente beber algo enquanto
lamentam seu dia de merda.
— Mais um motivo para nos acompanhar e esquecer a
chateação do dia — o pobre coitado insiste.
— Por acaso, vocês fazem stand-up? Porque meu único
interesse é rir de vocês.
— Qual é, garota? Só tô sendo legal, mas se querem bancar
as encalhadas, então, foda-se.
— Escute aqui seu machista do car...
— Com licença — intervenho quando a amiga, Layla, eleva
a voz em um xingamento nada discreto. — Agradeço por fazer
companhia às moças, mas acredito não ser mais necessário.
— E quem é você? — O homem estufa o peito, na tentativa
falha de mostrar autoridade.
Olho de relance sobre o ombro, meu segurança avança um
passo, mas o paro com um gesto de cabeça. Não quero uma cena
em local público, não é bom para os negócios, nem para conquistar
a confiança de Catarina.
Ela não é o tipo de mulher que se impressiona com
testosterona aflorada, a época das cavernas já foi e não preciso
mostrar força viril ou brutalidade para obter sua atenção.
— Sou primo delas — estendo a mão, em cumprimento, o
homem encara o gesto antes de aceitar, incerto — e vou garantir
que não ande por uma semana se não se desculpar agora e sumir
deste bar — aproximo meu rosto da sua orelha, sussurro em seu
ouvido e retorno com um sorriso conciliador.
O homem se solta com rapidez do contato, resmunga um
pedido de desculpas atropelado e sai disparado do lugar. Por
garantia, meu homem segue em seu encalço para certificar que não
trará problemas.
“Eu disse que não era um homem das cavernas, no entanto,
não permitiria uma ofensa à minha prometida.”
— Boa noite, garotas. — Ocupo a poltrona de frente para
Catarina.
Ambas mantêm um olhar curioso, interessado e até
desconfiado, mas é o toque impudico da loira, sutil, mas
intencionado a mim, que inquieta meus batimentos e faz repensar o
rumo da noite.
— Sabemos nos defender, senhor... — A amiga estende a
mão com um sorriso jocoso nos lábios.
— Kartal. Emir Kartal. — Aceito o cumprimento. — E sei que
sabem, por isso não permiti que meu segurança intervisse.
— E o que disse a ele, primo? — A ênfase no título, com
puro sarcasmo, me faz repuxar o lábio de leve.
— Só pedi que não criasse uma cena inconveniente.
— Deve ser por isso que o pobre coitado saiu correndo do
pub — Layla quem menciona e dou de ombros.
— Alguns homens temem mulheres desenvoltas como
vocês — rebato com gracejo e a forma como a amiga relaxa os
ombros, sei que baixou a guarda e ganhei sua atenção.
Quando se está em um jogo precisa saber escolher as
armas que usará, a abordagem feita e, principalmente, minar
qualquer possibilidade que reforce um apoio contrário à sua
intenção.
Ter a amiga a meu favor me ajudará no momento oportuno.
Capítulo 11
“Um lago é formado gota a gota.”
— Provérbio Turco.
Encosto na poltrona, atenta a cada trejeito de Emir, que
resolveu encantar minha melhor amiga com sua graciosidade rara,
aliás, nula, já que nunca vi seu lado charmoso em ação.
No pouco que presenciei, ele age com frieza, não demonstra
empatia, é cauteloso e inteligente e, na intimidade, domina a
situação com seu toque viril e imponente.
Essa é a leitura do homem que está agora, à minha frente,
sentado com a perna cruzada, seu copo de uísque seguro pela
ponta dos dedos enquanto a outra mão sustenta seu queixo.
Charmoso sem a intenção de ser, a elegância dele somado
à sua beleza natural faz com que todos no ambiente, em algum
momento, sejam atraídos por sua figura.
Emir está jogando, tenho ciência disso, ainda não sei como
descobriu onde estava, talvez algum segurança da sua equipe me
seguiu para se certificar de que eu não faria nada incoerente.
— E foi assim que eu deixei a reunião.
— Acabou com eles por uma pequena discrepância nas
cláusulas. Inteligente. Parabéns.
— Eu sou ótima no que faço.
— Chega de alimentar o ego dessa garota, ela está prestes
a se tornar mais insuportável do que já é. — Em resposta recebo
uma careta com a língua de fora.
— O assunto está interessante, você é encantadora, Layla.
— Emir acena com a cabeça em sua direção e se toma de
seriedade ao me encarar. — Mas preciso conversar com Catarina
um assunto delicado.
— Já entendi. Os primos querem um momento só deles. —
Layla levanta em um rompante. — Preciso parar de beber mesmo
ou amanhã não estarei disposta o suficiente para enfrentar uma sala
lotada de engravatados.
Ela estende a mão na direção de Emir, que levanta de
imediato e se despede dela com polidez.
— Espero vê-lo em breve, senhor Kartal.
— Com certeza, teremos outra oportunidade, senhorita.
Layla vem até mim, que não levanto para me despedir dela,
então se curva e beija meu rosto com exagero, que eu detesto, mas
tem ciência e faz pelo simples prazer em me provocar.
— Amiga, se você não trepar com ele logo, libera a fila,
porque eu estou disposta.
Eu riria do seu comentário se ela não tivesse praticamente
gritado em meu ouvido a ponto de quase me ensurdecer. Ouço um
pigarrear e quando ela se afasta, vejo um brilho divertido na feição
de Emir, comprovando que ele também escutou cada palavra.
— Boa noite, Layla — solto apertado, para que ela saiba
que não estou nada feliz com seu comentário descabido.
Percebo Emir sinalizar para o segurança que acompanha
Layla de longe, provavelmente, está incumbido de escoltar minha
amiga um tanto torpe pela bebida para casa.
— Finalmente, tem o que quer, senhor Kartal, minha total
atenção.
— Não vou fingir que não é verdade, Catarina. Realmente
estava ansioso para conversar com você, mas acima de tudo, queria
ver com meus próprios olhos que está bem.
Engulo em seco, giro a taça de gin devagar, foco no líquido
circundando o vidro, então volto a encará-lo com um riso
desgostoso.
— Ela não era assim. Minha mãe sempre foi vibrante, forte,
determinada, desde a morte do meu pai nunca a vi fraquejar, se
amedrontar diante de qualquer dificuldade.
— Vejo essas mesmas qualidades nela, apesar de não
conhecer o antes que você menciona.
— Não sei em que momento tudo mudou, quando ela se
tornou leviana com os negócios a ponto de pedir auxílio a quem ela
sempre detestou. Sem ofensas. — Ergo a palma em sinal de
lamento.
— Não ofendeu. Também fiquei surpreso quando soube do
contato dela com tio Osman. Ainda mais surpreso por ele querer
essa aproximação.
— Minha família é tão malvista assim pela sua? — Uma das
curiosidades que sempre carreguei se apresenta.
— Tio Yussuf sempre foi assunto proibido. Não citamos algo
inconveniente ou que é motivo de...
— Vergonha?
— Desconforto — ele complementa, brando. — Há coisas
que são difíceis de compreender a primeiro momento, Catarina. O
que costumo fazer é deixar o curso da vida guiar as tormentas e vou
me adequando, um passo por vez.
— Gosto de ter o controle do meu destino.
— Corajoso, porém utópico.
— Como assim?
— Ninguém tem controle de tal poder. Você pode planejar,
se organizar, almejar, trabalhar em torno, mas controle é algo
abstrato.
— Sinto que você sabe de mais coisas do que está falando,
e tem a audácia de jogar com as palavras.
— Já disse uma vez e torno a repetir, Catarina: eu não sou
seu inimigo.
— Então se é um aliado, está na hora de colocar as cartas
sobre a mesa, não concorda?
— Até poderia, se você garantir que não vai sair por essa
porta temperamental e desgovernada.
Estalo a língua, desacreditada que jogou na minha cara a
atitude que tive na reunião, no fundo, eu mereço, foi um
comportamento imaturo para a situação, mas não quer dizer que dói
menos no meu ego.
— Touché! — Ergo a taça em cumprimento.
— Quando assumi a posição de chefe da família, muitas
responsabilidades vieram junto, uma delas era decidir como lidar
com o montante guardado da família Sadik.
“Sem primos ou tios para me orientar, já que os Sadik estão
escassos na Turquia, sabia da existência do irmão renegado, mas
era um assunto delicado demais para tratar com tio Osman, o mais
velho e meu mentor por todos os anos que se passaram desde a
morte dos meus pais.
Minha função na empresa sempre foi mais externa, cuidava
da expansão da exportadora, queria aumentar nossa clientela,
assim como tornar o nome Kartal reconhecido mundialmente.
Consegui, através de contratos, sociedades e parcerias, o que
também me possibilitou pensar com cuidado em como investir a
herança.
Um dia, em algum momento, procuraria o descendente de
tio Yussuf e lhe daria a parte devida da família, mas queria fazer
isso com uma compensação, queria mostrar que, apesar de ser
impedido de gerir os negócios da família, alguém o fez e progrediu
com isso.”
Encaro o chão e limpo uma lágrima errante que escorre por
meu rosto. Pensar em como seria nossa vida, caso as famílias
estivessem unidas me faz crer que ele ainda pudesse estar vivo.
É irracional, já que sua morte era inevitável, no entanto,
passei tantos anos sonhando com diversos cenários diferentes que
é difícil conter a emoção quando alguém menciona certa
consideração pelo direito roubado dele.
— Sou um Kartal, Catarina, mas sou também metade Sadik,
fui ensinado desde pequeno a valorizar a família, as raízes e não
abandonar os meus. Confesso que demorei tempo demais, talvez
ansiando obter mais conquistas, antes de procurar vocês.
— Vocês souberam quando ele morreu? — Minha voz falha
me faz tomar um gole generoso da bebida e recuperar minha
postura.
— Sim. Minha mãe ficou desolada, quis vir ao Brasil na
época, mas tio Osman achou melhor manter o passado onde
pertencia.
— E o que o fez mudar de ideia agora?
— Essa é uma pergunta que não sei responder. A cabeça
de um homem é um labirinto confuso e tortuoso, Catarina. Nem ele
mesmo entende os meios até que os fins são justificados.
— Bom, pelo que entendi, você pretende usar a Sadik
Holding para salvar a Mancini, então qual a necessidade de esperar
seu tio, ou até, por que não entregar minha parte de direito? Assim,
vocês estão livres para seguir de volta para suas vidas turcas.
Eu sei que fui completamente rude, deixei claro que só
quero o dinheiro, que é direito meu, sem qualquer interesse em
manter contato ou parceria, mesmo que nos negócios.
— Há coisas que só podem ser decididas com todos
presentes, tio Osman chega no começo da próxima semana.
— Poderia lhe poupar a viagem.
— Ele ainda não sabe que usarei a holding para unificar a
Mancini Tecidos a nós, além do mais, não será suficiente.
— Como? — Inclino o corpo para frente.
— O buraco financeiro da Mancini é gigante, precisará de
um investidor de peso. Pode ser a Kartal, mas acredito que outra
empresa do mesmo ramo seja mais indicada. São muitas variantes,
Catarina, mas, de qualquer forma, você e sua mãe terão que estar
dispostas a abrir mão de algumas coisas.
— Eu estou disposta a tudo, já deixei claro meu desejo de
fechar as duas filiais e seguir com o ramo que nos poupar mais em
recursos.
— Sim, mas sua mãe quer manter tudo.
— Minha mãe... ela está louca, só pode.
— Ela se preocupa com seu futuro, Catarina.
— Ela quer manter o nome da empresa, o prestígio,
alimentar seu ego fragilizado — brado, indignada com as
informações que chegam a mim em conta-gotas.
— Podemos ser parceiros nesta empreitada. — Empertigo o
tronco, atenta. — Temos o mesmo objetivo, salvar a empresa ao
menor custo possível. Não quero envolver a Kartal ou uma terceira
empresa nesta equação, seremos só nós, família, a lidar com as
consequências do que está por vir.
— Ainda não sei o quanto posso acreditar em você, Emir.
Sinto muito, mas você oferece a galinha dos ovos de ouro sem dizer
o que quer de volta.
— Você saberá no momento oportuno e espero que tenha
sabedoria de agir com inteligência e frieza. Há coisas que são
destinadas, Catarina, tenha isso em mente para lidar com o que
está por vir.
Ele levanta da poltrona de forma elegante, prende o único
botão do seu terno sob medida, acena com a cabeça e parte, sem
se despedir.
— Maldito, turco! — brado, curiosa e pensativa.
Não sei quais suas intenções com todo esse discurso
enigmático, mas é claro que minhas defesas se armaram, pronta
para agir quando a bomba finalmente cair sobre meu colo.
Capítulo 12
“O dono da casa é o servo do hóspede.”
— Provérbio Turco.
Estou de volta ao clube, como cliente, já que a maioria não
sabe que minha holding controla esse empreendimento, estou no
mezanino reservado aos que têm poder, influência e muito dinheiro
nos bolsos.
Filhos de empresários, próprios empresários, juízes,
políticos, ou qualquer outra ocupação que te garanta um lugar cativo
na lista privativa do lugar.
Não estava com ânimo de vir aqui, principalmente, por
causa dos acontecimentos perturbadores de hoje, que envolvem
diretamente meu futuro, há tanto a se pensar e pouco tempo para
agir.
Ainda tenho algumas dúvidas em relação à mãe e filha, me
intriga o fato de Elisandra ofertar Catarina como moeda de troca e
ainda se preocupar com sentimentos que cultivarei junto à
prometida. Como também ainda não sei até que ponto Catarina está
vendida em toda essa trama.
O certo seria eu questionar meu tio, o que farei, obviamente,
mas não por telefone. Ele ainda nem sabe que já estou em contato
com a família Mancini, pensa que aguardo sua chegada na próxima
semana para que possamos seguir com os trâmites do
compromisso.
Outro ponto que não consigo compreender, anos tratando tio
Yussuf como o assunto vergonhoso e escondido da família Sadik,
para, de repente, tornar sua filha, fruto do pecado cometido, a dona
de tudo junto ao chefe da família.
É completamente contraditório, meu tio é um homem velho e
experiente, temente aos costumes e apegado às raízes, só algo
muito sério o faria mudar de ideia dessa forma.
— Boa noite, senhor Kartal. — Desapoio as mãos do gradil.
Estava tão imerso em questionamentos enquanto observava
a pista de dança em polvorosa animação com o Dj escolhido para a
casa hoje que não me atentei com a aproximação do principal
investidor do clube.
— Senhor Kant, como vai? — Estendo a mão e recebo um
aperto firme, sincero e imponente do associado.
Fui informado da sua presença no clube e resolvi passar
para checar como está sua satisfação com o empreendimento.
Quando fui convidado a participar da reunião de proposta, ele a
liderou e deixou claro seu interesse em empatar dinheiro.
Empreendimento nunca é demais, o homem é dono do
Império Luxury, uma rede de hotéis cassinos muito conceituados,
com base no Canadá, no entanto, espalhada pelo mundo com
diversas filiais. O que coloca em dúvida sua intenção com o projeto,
mas sou um negociante e não preciso saber sobre nada pessoal.
Aproveitar a oportunidade e criar situações e laços que me
favoreçam é o ponto principal para conseguir erguer ainda mais a
Sadik Corporation. Ele queria investir, eu queria controle e
autonomia, além de mais um negócio para somatizar a holding. O
enlace perfeito.
— Não direi que é uma surpresa boa, afinal, tenho certeza
de que foi avisado da minha presença. — É uma pequena
alfinetada, deixando claro que ele sabe o que eu sei.
No mundo em que vivemos o poder da informação é
primordial, saber a quem avisar e alertar, também é. Não somos
inimigos, longe disso, mas é claro que temos um limite
intransponível.
— Ótimo, isso poupa tempo de ambos, já que ele custa
muito caro. Vamos até o escritório, gostaria de trocar algumas
palavras com você. — Seu acenar sutil de cabeça é a confirmação
para que eu lidere o caminho.
O segurança que guarda a entrada aciona o botão e a
passagem é liberada, continuo o caminho a passos determinados,
me aproximo da mesa de vidro e ignoro por completo o espaço
próximo aos vidros, entre a poltrona e o aparador, onde deixei meu
instinto gritar e tive a melhor foda dos últimos tempos.
— Espaço interessante, sóbrio, discreto. Espero que
também esteja liberado a mim para algo sigiloso. — Aperto os
dedos na garrafa de uísque que pedi para que deixassem na sala.
Sirvo os dois copos e ignoro seu comentário, não devo
qualquer esclarecimento a ele, também não acho que isso seja uma
ameaça, além do alerta costumeiro sobre deter olhos e ouvidos em
todos os lugares.
— Seu dinheiro está em cada espaço do empreendimento,
sinta-se à vontade. — Sirvo os dois copos com uma dose generosa
do líquido âmbar.
Ele mantém a atenção ao clube, uma vista realmente
instigante de onde estamos, nos faz sentir senhores de nossa
própria vida.
“De volta à utopia.”
— Estou contente com a empreitada, Kartal, espero que
possa me incluir em mais projetos como este.
— Terei isso em mente, ainda que seja curioso o fato de
fugir do seu segmento principal.
— Só estou somatizando. Nada incomum.
Aceno com a cabeça em concordância, apesar de sentir que
algo é encoberto nos seus motivos, sei que Kant tem negócios
lícitos, mas é óbvio que esse investimento está atrelado ao que não
é fiscalizado pelos órgãos regulamentadores.
— Pretende diversificar ainda mais?
— Tem algo em mente? — Ambos temos a atenção para o
mar de corpos suados se movendo abaixo de nossos pés.
Volto a cabeça na sua direção que tem a atenção voltada
para mim, interessado demais no que vou dizer.
— Se interessa pelo ramo têxtil, senhor Kant? — O homem
enruga as sobrancelhas, fechando ainda mais o cenho, além do
comum.
Assim como eu, Emanuel Kant, é um homem de poucas
palavras, alto, forte e intimidante fisicamente, ainda mais com a
postura um tanto sisuda que mostra.
— Depende. É bem fora da minha curva.
— Mas se uma holding já conhecida pelo senhor
administrar, pode te garantir um negócio lucrativo.
— Tem uma proposta em mente, senhor Kartal?
— Ainda não. Muito cedo para falar, por isso quis o
encontrar aqui, ver com meus próprios olhos sua satisfação com o
investimento.
— Para manter a porta aberta.
— Sempre. — Aceno com a cabeça e elevo meu copo antes
de sorver um gole.
— Ganhou minha atenção, Emir. Quero saber mais sobre
quando o momento chegar. Agora, se me permite, pretendo testar
todo o potencial desta sala.
Entendo o recado e saio imediatamente dali. Espero que
sua acompanhante possa alegrar sua noite, já que eu estou louco
para chegar ao apartamento, tomar uma ducha fria e finalmente
descansar.
Há dias não tenho uma noite bem dormida, a última foi,
coincidentemente, quando estive na boate, que depois dos
pensamentos conflitantes e autojulgamento das escolhas que tomei,
desmaiei feito um bebê.
“Entro no pequeno corredor do hotel, desesperado, não dou
atenção para o lugar precário, o cheiro de mofo permeia o lugar, tão
próximo ao porto que concentra as atividades da Kartal.
Sinto meu coração disparado, tamborilando feito um puro
sangue em uma corrida contra o tempo. No telefone, sua voz era
sofrida, sem qualquer desejo de viver.
Subo um lance de escadas, pelas informações do hacker, a
chamada foi feita da linha que fica no primeiro andar, número 115. A
cada passo até aqui implorei a qualquer força divina que me desse
mais tempo, jurei que tudo seria diferente com uma nova
oportunidade.
Pensei tantas vezes em mudar meu jeito recluso, que nunca
colocaria os negócios acima do que é importante. Sempre soube
das suas tendências depressivas, um dos vários motivos que me
afastou ainda mais do que era certo.
Negligenciei uma vida, que gritava por um pouco de
atenção, optei por trancar meu coração em um lugar inalcançável,
para protegê-lo de qualquer dor, que no fim só causou mais
sofrimento.
Além da dor que já carregava, agora ainda somaria o peso
de qualquer coisa que pudesse ter acontecido a ela.
Toquei a maçaneta dourada, desgastada pelo uso, havia
vários pontos roídos pelo tempo, ofuscando o que um dia foi
brilhoso. Só percebi tudo isso, pois minha covardia impedia o
movimento de girar a peça e encontrar o pior cenário.
Respirei fundo e senti o filete de suor escorrer pela lateral da
têmpora, o ar brigava para entrar em meus pulmões e conseguir
aplacar um pouco da pressão que meus batimentos causavam.
Quando finalmente tomei coragem e abri a porta, caí de
joelhos, perdido no espaço-tempo, arrependido do que não fiz, com
remorso por não ter uma segunda chance, engolfado pelo fardo da
culpa, que carregaria até o fim da vida.”
Puxo o ar audível ao saltar na cama, sentado, meu corpo
encharcado de suor, mesmo que o ar-condicionado esteja em pleno
funcionamento, minha cabeça gira enquanto busco por um fôlego
apaziguador.
Levanto aos tropeços, a palma massageia o peito, tentando
acalmar os batimentos descompassados. Abro o chuveiro e entro na
água fria de cabeça.
O choque é bem-vindo para diminuir a temperatura da pele
febril, removo com dificuldade a calça de pijama preta, grudada no
corpo devido à água.
Acabo por rasgar o tecido no processo com dificuldade, mas
aliviado por estar finalmente liberto.
— Liberdade, mais um sonho inalcançável — solto, rouco.
Saio do chuveiro, enrolo uma toalha na cintura e não tenho
vontade de me secar. Eda terá um ataque quando vir a bagunça que
fiz, logo depois irá se preocupar e eu agirei da forma displicente de
sempre.
Ouço meu celular tocar, retorno para o quarto apressado, é
madrugada, só pode ser alguma chamada de emergência da
Turquia.
— Oi — atendo, sem ao menos conferir quem é.
— Abi, é Cemil.
— Abi. O que foi?
— Tenho notícias do porto de Haydarpasa. E não são boas.
— Você tem minha atenção, abi. Conte o que aconteceu.
Fecho os olhos e esfrego a testa com o polegar, minha noite
conturbada está mal começando.
Capítulo 13
“Uma mão não bate palmas. Duas mãos, sim.”
— Provérbio Turco.
Uma noite mal dormida justifica minha segunda caneca de
café preto, forte e sem açúcar. Percebo pela visão periférica Gil
fazer careta cada vez que tomo um gole da bebida.
Estamos desde cedo trabalhando no material coletado para
a nova coleção, ainda não consegui chegar a um caminho
satisfatório, afinal, isso foge por completo das tendências do
mercado, assim como dos pedidos exclusivos das grandes marcas.
O desejo de dona Elisandra só vai alimentar o afago que
quer dar no ego dos turcos, além, claro, de jogar a empresa em uma
situação ainda pior do que está.
Encaro o iPad à minha frente mais uma vez, duas linhas
traçadas, papéis espalhados por todos os lados, e uma dor de
cabeça iminente surgindo.
— Já chega! Vamos almoçar. — Gil levanta e recebe um
puxão de Andreza. — Ah, garota! Estou com fome — ele retruca e
volta a atenção a mim.
Cruzo os dedos sobre a barriga inclinando minha cadeira
para trás. Os dois formam uma dupla interessante, enquanto
Andreza é toda correta, fala baixo e atende a qualquer pedido, Gil é
a explosão, grita ao se comunicar, não aceita qualquer coisa, é
briguento e carrega um humor sutil, mas certeiro.
— Podem almoçar. Vou sair e volto mais tarde.
— Ou nem volte — ele responde contornando a mesa e
retira seu paletó roxo do respaldo da cadeira.
— Ele quis dizer que a senhora pode descansar, assim as
ideias irão fluir — Andreza tenta consertar a fala do colega.
— Talvez minha equipe precise se empenhar mais na base
— retruco, ácida.
— Tem um turco circulando pela matriz, poderia conversar
com ele e tirar algumas ideias. — Ele ergue as sobrancelhas,
sugestivo.
— Dê o fora daqui. — Aperto os olhos e solto em tom
ameaçador.
Andreza é a primeira a correr para a porta, pronta para
atender ao pedido só para se ver livre de mim. Apesar de ser uma
chefe bem-humorada e gostar do ambiente descontraído, Gil e eu já
nos desentendemos diversas vezes nos processos criativos.
Isso garantiu êxito nos trabalhos e uma qualidade
incomparável, o que me faz confiar ainda mais na sua teimosia. Ele
é meu contraponto e Andreza faz a ponte entre nós quando tudo se
torna demais.
É perfeito. O trio que funciona em uno, cada um em seu
papel e com o mesmo objetivo: entregar um trabalho excelente e
com a qualidade que a marca merece.
Pego minha bolsa pink de mão, grande o suficiente para
caber tudo que eu carrego, incluindo meu iPad, recolho os
pertences, enfio-a embaixo do braço e caminho até a sala da minha
mãe, atenta à tela do celular.
Respondo algumas mensagens importantes, aproveito para
verificar meus compromissos com Lídia e acertar minha agenda até
começo da semana que vem.
Para hoje, escolhi um short de alfaiataria amarelo, cintura
alta com um corte aberto, ele vai até o meio da coxa com uma dobra
grossa na barra. Uma camisa transparente preta, que mostra o top
rendado que uso embaixo.
Para completar, escolhi um blazer oversized, preto, que
termina rente a barra do short e mocassins tratorado. O cabelo
preso para cima com algum lápis que encontrei assim que cheguei à
sala de criação.
Não encontro a secretária no lugar de sempre e a porta
entreaberta da minha mãe me faz seguir adiante. Estaco no lugar ao
entrar e observar Emir sentado em uma das cadeiras em frente à
sua mesa.
— Boa tarde. A porta estava aberta e...
— Filha, não tem problema. Iria te chamar agora, de
qualquer forma. Emir propôs uma visita às filiais, para saber como
andam os processos e o que pode ser enxuto, e não extinto. — Ela
enfatiza a última parte encarando-o. — Limpe sua agenda, vocês
viajam amanhã.
— Como? — Balbucio algumas palavras, atordoada.
— É repentino, eu sei, Catarina — ele toma a palavra —,
mas gostaria de ter uma base fundamentada para a chegada de tio
Osman. Acho importante já ter um reconhecimento de todo o
processo, assim a reunião pode ser adiantada e somente os
detalhes serem acertados.
— E esses detalhes são... — Chego a girar o punho para
que ele continue.
— Detalhes, querida. Nada que valha debater agora. Faça o
que te pedi. O avião de Emir os levará até o Mato Grosso amanhã
bem cedo.
— A senhora não vai? Faz um bom tempo que não visita as
filiais.
— Tenho outros assuntos a tratar. Além do mais, alguém
precisa ficar na matriz.
— Na prática, a senhora tem mais experiência para explicar
os processos nas filiais do que eu. Na realidade, pouco acompanhei
sobre todos esses anos.
— Acho uma oportunidade ímpar de reparar este erro,
Catarina. Como herdeira da Mancini, deve estar familiarizada com
tudo — Emir intervém e direciono a ele um olhar mortal.
— Emir tem toda razão. Você sempre me cobrou uma
participação mais ativa, responsabilidades, funções na empresa,
pois bem, chegou o momento. Você tem até segunda pela manhã
para apresentar um panorama geral da filial em Mato Grosso. Minha
assistente lhe enviará os contatos que deve procurar lá.
— Que ótimo. Mais uma vez, minha vida é decidida por
vocês, sem que eu possa opinar minha vontade.
— Tente agir com profissionalismo, filha. Aqui você está na
condição de futura comandante da fábrica e Emir, apesar de família,
é um possível investidor.
— Que seja. — Torço os lábios, desgostosa.
— Tenho uma janela de horários, podemos almoçar agora e
combinar alguns detalhes. O que acha? — Emir levanta, elegante,
confere o relógio no pulso antes de me encarar.
— Sinto muito. Combine com a minha mãe, ela parece ter
tempo livre para cuidar da agenda de todo mundo. Voltarei para
minha sala atormentar os assistentes e a secretária para deixar tudo
pronto para a viagem.
Saio da sala sem aguardar pelo fim dos protestos da minha
mãe, que usa insolente como um dos xingamentos para minha
resposta.
Bato a porta da minha sala, solto a bolsa sobre a mesa
antes de caminhar de um lado a outro, acalmando meu
temperamento nada amistoso.
O pior é saber que toda essa raiva instantânea não tem a
ver com os desmandos de dona Elisandra, mas sim com a certeza
de que enfrentarei quatro dias difíceis pela frente.
Trabalhar e conviver exclusivamente com Emir, por todos
esses dias, sem ninguém que nos faça uma ponte, não será uma
tarefa fácil.
Ainda não esqueci o beijo que trocamos ontem, sinto os
lábios formigarem quando recordo da intensidade do seu aperto,
aquela língua habilidosa se apossando da minha com furor e certa
devoção.
O homem tem um toque perito, descobri isso na noite da
boate, e seu beijo ontem só comprovou que ele sabe exatamente
como agir com um corpo à sua disposição.
Nossas interações intrínsecas estão se acumulando e é aí
onde mora o problema. Se no meio da empresa, próxima da minha
assistente, eu ataquei o homem e o beijei, imagina o que pode
acontecer em quatro dias distante de tudo e todos?
Ainda não sei o que Emir pretende, sua vinda é misteriosa,
há algo escondido e isso vai atingir em cheio minhas expectativas.
O que aconteceu na boate não foi mero acaso, sei disso agora.
Ele tinha ciência da minha ida, sabia quem eu era, apesar
das coisas acontecerem de forma incomum, mas ainda assim,
natural, ele detinha uma vantagem absurda sobre mim.
Fui enganada uma vez, ainda sou, quando ele me propõe
ajuda sem dizer o que quer em troca, no entanto, a maldita
curiosidade, somado ao desejo de desvendar esse homem, me faz
sucumbir ainda mais em torno da teia perigosa que ele tece ao meu
redor.
— Você precisa respirar. Só isso. — Puxo o ar com força em
meus pulmões quando minha porta é aberta por ninguém menos
que o meu tormento encarnado.
— Estarei na sua porta amanhã às seis da manhã. Esteja
pronta, leve uma bagagem pequena e não se esqueça de sapatos
baixos e confortáveis — ele anuncia como se tudo, incluindo a mim,
fosse sua propriedade.
— Quanto ao horário, sem problemas. Sobre o sapato, não
sou burra, vamos para campos de plantio e coleta, é óbvio que
andaremos muito, então fique tranquilo quanto a isso. Acho mais
fácil o senhor se preocupar com a sujeira que irá impregnar em seus
ternos de grife.
— Nós não somos inimigos, Catarina — ele solta a mesma
frase que profere a cada encontro.
Já está ficando cansativo demais todo esse enigma que nos
circunda.
— Também não somos amigos. Da próxima vez, aguarde
minha secretária te anunciar.
— Ficaria feliz com isso se tivesse alguém no posto.
Abro a boca para retrucar, mas calo, lembrando que é hora
do almoço e Lídia saiu para seu intervalo. Meu estômago ronca ao
recordar que ainda não comi uma barra de cereal que seja e estou
faminta.
— Que tal uma trégua? Conheço um restaurante muito bom,
perto daqui.
— Você parece ser um homem muito ocupado para
dispensar tanto tempo a mim e à minha empresa. — Cruzo os
braços, relutante.
— Tem razão. Eu sou. Mas quero fazer as coisas da
maneira certa desta vez.
— O que quer dizer? — Tombo a cabeça de lado.
— Nada. Então? O que me diz?
— Tudo bem. Mas não vamos falar de negócios, senhor
Emir Kartal. Desta vez quero conhecer mais do homem por trás da
pose de CEO fodão.
— Gostei da definição. — Seus lábios erguem de lado,
sugestivo.
Uma má interpretação da minha intenção, no fundo quero
colher informações e entender melhor o que está por vir. Se terei
que lidar com algum pedido descabido no futuro por parte dele, é
bom eu conseguir uma ou duas informações que me favoreçam.
Capítulo 14
“Não importa o quanto você foi longe no caminho errado.
Volte para trás.”
— Provérbio Turco
Entramos lado a lado no restaurante que havia reservado
logo que amanheceu. Depois da conversa longa e cansativa com
Cemil, percebi que preciso acelerar as pendências no Brasil, devo
voltar o quanto antes à Turquia.
Bolei um plano emergencial na minha cabeça, não sei se ele
dará certo, mas arriscarei o tudo ou nada. Catarina é uma mulher
inteligente, forte e decidida, tenho certeza de que após sua irritação
inicial, irá ponderar a proposta com calma.
O correto seria eu deixar tio Osman chegar ao Brasil para
resolver as coisas de acordo com os costumes, mas a cada
momento que passo ao lado dela, mais acredito que é impossível
fazê-la ouvir um senhor arcaico.
Chegamos à mesa reservada, puxo a cadeira para Catarina,
que me encara de soslaio e meneia a cabeça com sutileza. Ela está
desconfiada, pudera, com a quantidade de informações que estão
caindo sobre sua cabeça, não me admira o seu receio.
— Não conhecia este restaurante.
— Ele serve a melhor comida brasileira que já provei.
— Interessante. Você é um apreciador da minha cultura?
— Um pouco. Depois de conhecer muitos lugares no mundo
e passar mais tempo fora do que dentro da Turquia, o Brasil foi o
país que mais me encantou e acabo passando longos períodos.
— Entendo. Temos um jeito muito particular de ser, deve te
chocar o desprendimento aqui.
— Um pouco, no começo, mas não tanto quanto o topless
europeu.
— Pois é. Uma liberdade longínqua.
— Imagine para um turco. — Ergo a lateral do lábio.
É impensável essa modernidade alcançar a Turquia, há
coisas que talvez nunca mudem por lá.
— Não consigo imaginar, senhor Kartal. Apesar de carregar
no sangue, não tenho qualquer familiaridade com a cultura.
— Sim, você mencionou. Mas isso é fácil de resolver. Nada
que uma visita ao país não te coloque a par de tudo.
— Quem sabe um dia? Até poderia pedir que fosse meu
guia turístico. — Encaro seus olhos e vejo um brilho provocador ali.
— Estou à sua disposição, senhorita. Sempre que quiser.
Entoo a voz para que saiba do que realmente estou falando.
Não tinha a intenção de flertar com Catarina, mas dado a nosso
histórico, minhas pretensões nunca se concretizam quando envolve
sua presença tão próxima assim.
Parece que meu juízo se fragmenta por completo e quase
extinto deixa o lado irracional falar alto e ditar os desejos que ela me
desperta.
Simples e carnal, mas igualmente inconveniente,
principalmente com as intenções desta viagem.
— Por agora, queria saber mais de você, Emir. Quem é e o
que pretende da vida?
— Perguntas profundas, Catarina. Sou um homem turco,
bem-sucedido e que vive um mundo de curiosidades. Gosto de
conhecer lugares e viajar, talvez por isso diversifique tanto nos
negócios. É estimulante.
— Interessante. Por isso, manteve duas empresas distintas:
Kartal e Sadik.
— Também, mas não foi o ponto principal. O que pretendo
da vida é algo vasto demais. Apesar de acreditar que temos um
destino traçado, também acredito no poder de fazermos o melhor de
nossas versões e isso gera um conflito existencial sempre que
penso demais no assunto: ser ou não dono da minha existência.
— Filosófico, mas sou prática quanto a isso. Acho que
temos sim controle, desde que tenhamos ciência das ações. Ação e
reação, é a base do universo.
— Só não esqueça que o mundo é um conjunto de seres e
coisas e cada ação e reação gera uma onda de propagação, que
reverbera em resultados alheios que impactam na sua vida,
dependendo do fato e onde ocorreu.
— Como assim?
— Atravessar uma rua na faixa de segurança, com o sinal
favorável a você, não garante que não será atropelada por algum
motivo.
— Entendi. Olhando dessa forma, você tem razão.
— Acho que estamos progredindo, senhorita Mancini.
— Não conte com isso, ainda não sei o que realmente
pretende comigo.
Minha mente é puxada para a noite da boate e tenho que
engolir a meia dúzia de cenários que formei na mente para retrucar
sua fala. Ainda não é o momento de jogar, preciso ter sua confiança
já que nosso destino estará em suas mãos.
— Sempre as melhores intenções, pode ter certeza.
— E quanto a visitar sua terra, terei que usar burca? — ela
muda o foco do assunto rapidamente.

— Não. No máximo um shayla[11], caso visite solo sagrado. E


a terra é “nossa”, por mais afastada que seja, sangue turco corre em
suas veias.
— Está certo. Shayla? É o quê?
— Um lenço grande que cobre a cabeça e parte do pescoço,
mas não é amarrado e nada do tipo.
— Graças a Deus. Não consigo me imaginar dentro
daquelas roupas pesadas, pretas, limitada.
— É uma questão de costume.
— Engraçado que homens não precisam se cobrir tanto
assim.
— Não entrarei em uma discussão de gênero relacionado ao
islã, Catarina. — Nossa comida é servida e isso dá tempo para ela
repensar sua fala.
É muito delicado discutir a questão religiosa e os costumes
que levaram as mulheres a cobrirem seu corpo. O entendimento de
vida entre os continentes é diferente demais, e isso é o que mais me
preocupa quando penso em um matrimônio.
— Desculpe. Eu não quis ofender.
— Eu sei e entendo. Não sou um seguidor tradicional dos
costumes, mas há coisas que fazem sentido para mim.
— O que, por exemplo?
— Quando a mulher cobre sua feição do mundo, ela está
dedicando o privilégio de sua beleza ao homem escolhido para ser
seu pilar e dividir a vida. O casamento não é só um contrato a ser
cumprido, não é sobre procriar e dar continuidade à família, mas sim
a união eterna de duas almas. O maior presente para o homem é ter
a confiança de sua prometida.
Vejo seus olhos aumentarem, interessados na história que
começo a formular, mas as lembranças do passado tortuoso que
carrego me fez recuar, pigarreio e tomo um gole da água servida.
É irônico e hipócrita trazer palavras tão lindas, românticas e
aceitáveis, quando, na verdade, não fiz metade do que deveria no
passado. Ignorei os sinais, achei que a distância seria boa para
acalmar o coração de alguém desesperado, minha maior falha.
— Interessante, mas não consigo me imaginar predestinada
a alguém que não conheço.
— Hoje as coisas evoluíram um pouco, os casamentos
ainda costumam ser aprovados pelos pais, afinal, a família faz parte
do pacote.
— Como assim?
— Muitos vivem juntos, compartilham casa, quintal,
negócios. A esposa de um homem se torna filha de seus pais, irmã,
prima, sobrinha, dos seus. É um renascer, em que se espera
harmonia.
— Viver com a sogra? Por Deus! — Catarina ri e solta os
talheres ao pegar os guardanapos e limpar a boca.
— É a cultura. Aqui isso é inviável. Apesar de muitas
famílias partilharem casas.
— É, acontece, mas não como uma regra ou tradição. As
condições financeiras forçam essas situações.
— Para um turco, isso sim é inadmissível. Como marido,
tenho que ser capaz de prover tudo que minha esposa precisa e
quer. Realizar cada desejo antes mesmo que seja proferido. Ela é a
peça-chave que gira toda uma engrenagem, a responsável por
gestar os futuros herdeiros e passar os ensinamentos e valores que
nos foram passados. Além de harmonizar o lar para o qual
retornarei.
Passamos tempo demais nos encarando, perdidos em
conflitos que não valem ser proferidos, pois enxergo nela uma dor
enraizada, assim como a existente dentro de mim.
— Vocês, turcos, realmente têm o dom da palavra ou isso é
uma característica sua, senhor Kartal?
— Quem sabe, um dia, eu a convide para uma temporada
em Istambul e poderá tirar suas próprias conclusões.
— Quem sabe? — Ela dá de ombros e pesca mais uma
porção do seu peixe no prato.
Por um breve momento, vislumbro um futuro no qual
Catarina usa um vestido em tom floral, o lenço cobre parte dos seus
cabelos claros como sol, os olhos delineados com kajal, ela estica
uma mão, me chamando, para desfrutarmos de uma refeição em
família.
— Você está bem? — Sinto o calor da sua palma atingir
minha pele e recuo a mão em choque.
— Claro. Muito bem. Sobre a viagem amanhã, acha que
consegue se organizar? Podemos partir mais tarde, se preferir.
— Consigo. A equipe de criação está patinando com a nova
coleção e, confesso, não estou com cabeça para coordenar nada.
— Acho que será possível atender a esse pedido da sua
mãe, mas antes precisamos decidir o que será feito com a empresa.
— É o que penso. Se alguns setores fecharem, não tenho
motivo para investir esforços em criação.
— Exato. — Repuxo o lábio de lado. — Sabia que
formaríamos uma bela dupla, Catarina.
— Ainda é cedo para cantar vitória, Emir.
Pela primeira vez, em muito tempo, solto um riso baixo e
sincero. Não me recordo quando me senti assim, leve e confortável
na presença de alguém.
Quem sabe, seja leviano da minha parte omitir informações
que mexem com a vida inteira de Catarina, no entanto, essa
conexão que permeia a ambos quando nossas armaduras estão
recolhidas, me faz querer muito mais.
Jurei que faria diferente da primeira vez, manteria minha
atenção e prioridade na prometida, mesmo que não almejasse um
enlace tão cedo, talvez nunca. É conflitante imaginar minha vida
seguir um curso próspero, a penitência amorosa era a única forma
de pagar em parte pelo que negligenciei em outra época.
Agora temo perder o que ainda nem é meu. O escudo
invisível trincou, abriu uma rachadura e desintegrou alguns pedaços,
e isso é ainda mais assustador que uma vida fadada à solidão.
Capítulo 15
“Boas palavras abrirão portões de ferro.”
— Provérbio Turco.
Não imaginei que em tão pouco tempo de convívio teria um
almoço amistoso com o turco que caiu de paraquedas na minha
vida, no entanto, foi exatamente o que aconteceu.
Nosso almoço foi regado de descontração, apesar de achá-
lo pensativo demais em alguns momentos, mas isso também pode
ser atribuído à sua personalidade reservada.
Emir Kartal é uma incógnita em forma de homem, isso é
fato, mesmo que seus olhos transmitam tanta intensidade, nada é
capaz de desvendar seus mistérios.
Não tocamos em assuntos delicados, como, por exemplo, a
noite da boate, ou até o beijo no escritório, apesar de acreditar que
teria uma resposta honesta sobre, ainda não é o momento.
Liguei para casa e pedi para a funcionária preparar uma
bagagem pequena somente com roupas confortáveis. Passei o
restante da tarde com a equipe de criação e minha assistente,
acertando detalhes e determinando tarefas até minha volta.
Consigo sentir em minhas veias que algo perturbador está a
caminho e isso envolve Emir de alguma forma. É incoerente me
sentir tão atraída por um homem que, possivelmente, me usou na
noite da boate, apesar de cumprir um desejo mútuo, eu fiquei em
desvantagem em relação à nossa identidade.
O que me consome é questionar qual o sentido em tudo
isso. Se os fins justificam os meios, até onde estou ferrada por ter
transado com meu primo, possível salvador da fábrica, naquela
noite?
Acordo na manhã seguinte em sobressalto, o despertador
acusa cinco da manhã, me arrasto para fora da cama, protestando
em pensamentos os motivos que me levaram a não reprogramar o
horário da viagem quando foi ofertado.
Caí na besteira de ficar ao telefone com Layla até tarde
trocando mensagens. Ela não pôde vir em casa, pois estava
estudando um caso complicado na empresa e preferia ficar em torno
da pilha de papéis, mesmo que eu a distraísse com a novela
mexicana que tenho vivido.
Coloco um conjunto jeans jogger com um cropped canelado
branco gola alta e sem mangas. Apesar dessa época ser amena no
Mato Grosso, aqui em São Paulo é úmido demais para eu sair sem
um agasalho.
Deixo meu cabelo solto, enfio meu nécessaire de higiene
dentro da mala e fecho, recolho meus pertences e rumo para a
cozinha. Ainda tenho um tempo para o café antes de Emir chegar.
— Bom dia, me diz que tem café... — Levanto os olhos da
tela do celular, onde digitava uma mensagem para Emir.
Tive o cuidado de trocar nossos números ontem para que
ficasse mais fácil nossa comunicação, ouço o apito do celular dele
notificar a mensagem que acabei de enviar.
Estou boquiaberta, parada na larga passagem da cozinha
com a mão firme na alça da mala e encaro o olhar convidativo do
turco, que ostenta seu terno sob medida, desta vez livre do colete e
gravata.
Um pouco mais informal, mas ainda suficientemente
elegante para manter sua postura inatingível.
— Bom dia, Catarina. Pronta para viajar?
— Não sem antes tomar minha dose de café reforçado. —
Recobro o controle do meu corpo e fecho nossa distância, apoio a
bolsa na bancada e sento na banqueta ao lado dele, que se mantém
de pé.
— Por que não avisou que chegou?
— Acabei de entrar, na verdade, e fui informado que você
estava se aprontando.
— Ah... — O homem parece sempre estar um passo à
frente, não importa qual a situação ou contexto.
Dina, que cuida da casa e de nós há anos, serve uma xícara
de café para mim e um líquido avermelhado para ele. Franzo o
cenho, confusa, enquanto pego a canela do porta-condimentos.
— O que é isso?
— Um típico chá turco. Estou impressionado com o
conhecimento da preparação, por sinal.
Não me admira que dona Elisandra tenha feito Dina decorar
como se prepara algo da Turquia, principalmente o chá, que é tão
consumido por eles.
— Minha mãe está abusando de você, Dina — comento.
— Não. Na realidade, sinto falta de preparar o chá. Seu pai
tomava todos os dias, pelo menos duas vezes.
— Lembro-me dele com esse tipo de copo nas mãos. —
Miro os dedos grandes e masculinos de Emir em torno do vidro
delicado em forma de tulipa.
O cheiro somado a lembrança faz meu coração saltar no
peito e uma saudade particular, que costumo guardar fundo dentro
de mim desperta como uma avalanche.

“— Hayatim[12], cuidado para não se machucar. — Solto


outra gargalhada ao contornar o gramado em minha bicicleta nova.
Ouço os protestos da mamãe, quando viu que papai me deu
de presente o que tanto pedi para o aniversário. Toda cor-de-rosa e
reluzente, minha bicicleta é a mais bonita que já vi, cheia de
adesivos de coração.
— Catarina, volte para cá. Yussuf, olha só o que você fez.
Essa menina vai se quebrar inteira.

— Não diga isso, caricigim[13]. As palavras ganham força


com o vento e retornam para nós como verdades decretadas.
— Mamãe, eu sou boa nisso. — Paro a bicicleta próximo a
eles.
Estamos nos fundos da mansão, uma área de lazer grande
que meu pai construiu para mim, com casa de boneca do meu
tamanho, parquinho, caixa de areia e vários outros brinquedos para
me divertir.
— Você é tudo que quiser ser, hayatim, não se esqueça
disso.”
Sinto a ponta do seu dedo encostar próximo ao maxilar e
limpar algo, recuo de imediato, de volta ao presente, percebo que
era uma lágrima errante, uso o dorso da mão para secar.
— Você está bem? — Fujo do olhar de Emir, não quero
mostrar minhas fraquezas, sucumbir diante da sua preocupação
intencional ou não, é tudo que não pode acontecer agora.
Viro meu copo de café, queimo a língua no processo e
recuo, assoprando para o ar.
— Vamos logo com isso. — Solto a xícara, recolho a alça da
mala e caminho em direção à saída.
Ouço-o se despedir apressado de todos e logo seus passos
estão ao meu encalço.

Por todo caminho até o aeroporto cultivamos um silêncio


ensurdecedor, ainda incomodada por me expor daquela forma,
preferi levantar a guarda, mesmo que o objetivo da viagem não seja
esse.
Somos direcionados para uma área reservada do aeroporto,
onde nossas documentações são verificadas, as bagagens
recolhidas e logo estamos diante do comandante que cumprimenta
Emir com familiaridade antes de embarcarmos.
— O tempo estimado de voo é de duas horas.
Desembarcaremos na pista de decolagem em Diamantino.
— Ótimo.
O fato de estar em um voo particular nos poupa muito tempo
e desgaste, já que de maneira convencional levaríamos mais de
duas horas até Cuiabá e ainda enfrentaríamos algumas horas de
carro até o destino.
— Peguei alguns relatórios da filial para analisarmos. Sua
mãe deixou agendado uma visita para o período da tarde na área de
colheita de algodão.
— Recebi o e-mail.
— A produção de seda vem de...
— Tupã. Importamos para a matriz, onde é trabalhado o
produto para clientes seletos.
— Acho que aí teremos maior problema.
— Concordo. — Aceno com a cabeça sem ao menos lhe
direcionar um olhar.
— As terras são da Mancini, pelo que vejo.
— Foi construída uma cooperativa, para os que já
produziam na região. A implantação foi feita por meu pai, para
baratear os custos na época e isentar a empresa de mais uma
demanda.
— Lidam com a fábrica e preparação da matéria-prima. O
que antecede fica a cargo dos agricultores.
— Exato. Esporadicamente, é feita uma vistoria para
garantir a qualidade e os selos da empresa.
— Se refere à cerimônia que ocorrerá no dia que
retornarmos a São Paulo?
— Exato. E eu ainda nem fiz o discurso. — A última parte é
um pensamento alto que escapa sem querer.
— Posso te ajudar com isso.
Viro o rosto para ele, Emir parece tranquilo e sereno, nada
de fato deve abalar esse homem, age como se estivesse sempre
pronto para encaixar a peça que falta em qualquer situação e
equilibrar o universo caótico que vivemos.
— Não preciso da sua ajuda. Além do mais, você não
conhece absolutamente nada sobre a empresa, as pessoas que a
construíram ou a minha família — ríspida e arrogante, desconto nele
a vergonha do meu momento de fraqueza.
Claro que ele não tem culpa de como minha vida foi por
todos esses anos, decisões que não foram tomadas por ele, mas
ainda assim, é sua figura que representa todo o abandono que senti.
Ser acolhedor e me tratar com cuidado não ajuda, pelo
contrário, me faz sentir ainda mais raiva, já que quando precisei,
que minha mãe quebrou por completo e me arrastou junto no
processo, não tivemos qualquer apoio.
— Tem razão, eu não conheço. — Sua mão quente cobre a
minha, que agarra o apoio da poltrona com força. — Mas quero
conhecer. Quero saber o que te formou a mulher forte que é,
Catarina.
— Como sabe que sou forte? — Arrependo-me da pergunta
antes mesmo de concluir.
Desvio de seus olhos e encaro minha perna, tomada pela
vergonha que despertou com aquele chá turco.
— Porque vejo em seus olhos determinação, vontade e
autonomia. Você carrega suas dores e não permite que elas te
enfraqueçam. Enfrentar os desafios, mesmo que não sejam claros
como água, faz de você alguém destemido.
— Eu... — Volto a encarar Emir, que mais uma vez
conseguiu derrubar parte das barreiras que imponho contra ele.
— Só vamos deixar tudo de lado, por quatro dias.
Conheceremos tudo que precisa, coletaremos dados, informações,
agiremos como meros turistas só para sentir a leveza do momento.
Quando retornarmos, voltamos a pensar como gestores. O que
acha?
Minha resposta é um sorriso, tímido e genuíno, começo a
esquecer quem somos e, principalmente, os mistérios que me fazem
não confiar por completo neste homem.
Capítulo 16
“O vento desejado pelo marinheiro nem sempre sopra.”
— Provérbio Turco.
Desembarcamos no horário previsto, o clima seco da região
faz minha garganta contrair, necessitando de uma hidratação. Abro
a porta de trás para Catarina enquanto o motorista contratado
coloca as bagagens no porta-malas.
Em menos de dez minutos, demos entrada no hotel, um
tanto pitoresco, assim como a cidade, que tem uma característica
rural própria, mesmo na área urbana.
— Senhor Kartal, dois dos melhores quartos separados para
vocês. — Uma senhora simpática coloca duas chaves sobre o
balcão. — Sejam bem-vindos a Diamantino, se precisarem de algo,
podem pedir. O café da manhã é servido até às nove horas.
— Muito obrigada. — Catarina recolhe a chave. — Vocês
têm piscina? — Ela enruga o nariz de um jeito gracioso.
— Piscina? — Ergo as sobrancelhas ao encará-la.
— Sim. Você disse que essa viagem tinha que ser leve,
quero um pouco de diversão depois de trabalhar. Ainda mais no
clima seco deste lugar.
— Infelizmente, não temos, mas há diversas cachoeiras na
região. Posso pedir para meu filho mostrar algumas a vocês.
— Isso será ótimo — ela agradece e caminha para o
corredor, munida da sua bagagem que já está na recepção.
Acompanho seu trajeto pelo corredor, admiro sua energia
irreverente, que sempre aflora quando Catarina recolhe as armas e
age sem estratégia. Ela é muito boa em um embate, mas é ainda
melhor ao natural.
Volto a atenção para a bancada e recolho minha chave, a
senhora que nos atendeu tem um olhar curioso direcionado a mim,
como se fosse capaz de ler todos os meus pensamentos.
Pigarreio e fecho ainda mais o cenho, recolho minha mala
pequena e rumo para o quarto. Eu só tenho quatro dias para provar
à Catarina que um casamento é o melhor caminho para nós,
profissionalmente e, agora, para o coração.
Talvez não curemos as dores que carregamos, mas
podemos ser o bálsamo um do outro quando tudo se tornar difícil
demais de suportar.

Troquei o terno por um jeans tradicional, camiseta preta e


uma camisa xadrez em cores escuras por cima, dobrei as mangas
até os cotovelos e tive o cuidado de passar protetor, pegar os óculos
de sol e boné.
Apesar de enfrentar temperaturas quentes em alguns
lugares da Turquia, o clima nunca é tão intenso e seco como aqui.
Pedi para a dona da pousada preparar um café da manhã
com frutas, sucos e alimentos leves, não sei quanto tempo
levaremos na fazenda e não quero Catarina debilitada por falta de
comida.
Saio do quarto no mesmo instante que ela, ambos nos
olhamos sobre o ombro, ela sorri de leve e eu amenizo a feição.
— Nossa, você está bem diferente.
— Vou levar como um elogio — falo, um tanto
entusiasmado.
Agrada meu humor saber que lhe causo uma impressão
positiva, mesmo que só na aparência.
— E é.
— Pedi algo leve para comer antes de sairmos.
— Que ótimo. Precisamos levar água, muita água.
— Já providenciei. — Caminhamos lado a lado até uma área
aberta.
Um jardim em torno é a decoração aconchegante para a
mesa reservada a nós. A senhora gentil que nos aguardava serve o
suco para ambos, Catarina toma o lugar ao meu lado.
— Estão aqui a passeio?
— Também. É trabalho, mas vamos nos divertir e aproveitar.
— Sua voz animada me contagia.
— Queremos otimizar o tempo que passaremos aqui —
complemento.
— Que ótimo. Vocês vão adorar a noite de Diamantino. É
sossegada, mas acolhedora. Um passeio de carro fará bem a vocês.
— Teremos isso em mente — agradeço e a mulher sorri
para mim.
— Mais uma admiradora conquistada — Catarina sussurra
ao se aproximar assim que a senhora se retira.
— Mais uma? E quem mais é? — Espeto um pedaço de
melão com o garfo e enfio na boca.
Giro o pescoço na sua direção, nossos rostos mais próximos
do que o normal, quase invadem o espaço um do outro, desço os
olhos para sua boca e retorno à sua íris vivaz.
Catarina é o fogo latente que queima de dentro para fora,
capaz de contagiar o mais gélido dos seres, eu sendo um homem
frio por natureza, sinto minhas barreiras gotejarem de bom grado.
— Qualquer uma que você dirija seu charme, senhor Kartal
— ela responde e recua de imediato.
— Na realidade, não tenho distribuído meu charme por aí.
Se acontece, não é intencional.
— Talvez esteja na sua essência.
— Pode ser. Algo de família.
— O que quer dizer com isso?
— Acho que você sabe, Catarina, mas posso ser claro. Seu
encanto é tão natural quanto meu charme, então encontramos o
legado Sadik.
Ela solta uma risada aberta e contagiante, jogando a cabeça
para trás, tenho a visão perfeita da sua beleza, o contorno do
pescoço, tapado pela blusa, mas ainda assim marcando cada curva
se arrasta por todo seu tronco.
— Talvez tenha razão.
— Eu sempre tenho.
Quando ela pensa em rebater, seu celular toca, ela verifica o
visor e pede licença, se afastando para o jardim a fim de obter
privacidade.
Aproveito o momento para ligar para o hacker que tem
trabalhado na tarefa que o incumbi e ainda não recebi notícias.
— Fala, chefe.
— Tem alguma novidade?
— Nada em sistema. Todas as atividades parecem normais,
porém, resolvi ir além e dar uma olhada nas câmeras da empresa.
— Para quê?
— A princípio, curiosidade, depois por desconfiança.
— De quê? Fale logo de uma vez — esbravejo, impaciente.
— Todos os dias, no meio da tarde, o alvo sai da empresa e
vai até uma loja de especiarias, do outro lado da calçada.
— Haydar? Isso não é típico dele.
— Acho que ele está usando outra pessoa, chefe. Uma
mulher uniformizada também vai até essa loja, porém mais cedo, na
hora do almoço.
— Quem é ela?
— Vou lhe enviar os dados de registro do cartão de entrada.
Também mandarei a ficha da portaria, com os acessos.
— Consegue separar as filmagens de ambos?
— Claro.
— Então faça — determino ao sentir meu maxilar tensionar,
irritado.
Haydar está escolhendo um caminho perigoso demais, não
quero ser o responsável por trazer ainda mais sofrimento para meu
primo, mas suas atitudes podem prejudicar um legado que nossos
ancestrais batalharam demais para construir, e como responsável
por tudo isso, não posso permitir que progrida.
— Era Layla, disse que está quase fazendo as malas e.... —
Catarina encara meu rosto. — Aconteceu alguma coisa? — Ocupa a
cadeira ao meu lado e sua mão afaga meu braço em automático.
— Não. Algumas divergências na Kartal.
— Parece sério.
— Um pouco. Talvez precise voltar à Turquia em breve.
— Ah... — Ela parece ainda mais curiosa, mas opta por não
se intrometer. — Recebi uma mensagem do responsável por nossa
visita às plantações, acho que minha secretária nos colocou em
contato, enfim, ele disse que já está à nossa disposição.
— Melhor irmos, então. Assim encerramos o trabalho mais
cedo.
— Pensei a mesma coisa.
Deixamos a mesa mal tocada, o motorista nos aguardava na
saída e abriu a porta com rapidez para embarcarmos. Logo estamos
na estrada, cercada por vegetação de ambos os lados, a poeira
avermelhada bate contra o vidro tingindo o veículo conforme
avançamos no percurso.
Um pouco mais de trinta minutos de estrada, chegamos à
porteira Cooperativa Mancini, o carro entra devagar pela área aberta
e vasta, alguns galpões abrigam o maquinário e equipamentos.
Estacionamos próximo a um rancho coberto, parece um
refeitório aberto, onde algumas pessoas circulam.
— Lembro muito pouco daqui — Catarina comenta ao abrir
a porta.
Desço e acompanho seus passos até um grupo de homens
que conversam animados.
— Bom dia, senhores, procuro por Tarso. — Ela veste uma
bolsa pequena transversal no tronco.
Os homens a medem dos pés à cabeça, alguns até deixam
um sorriso transparecer, interessados na beleza da mulher à sua
frente.
Pigarreio e avanço um passo, me coloco ao lado dela, meu
humor diminuindo ainda mais e a ideia de uma burca agora começa
a fazer mais sentido.
— Ele está no galpão de armazenamento.
— Poderia nos levar até ele? Por gentileza? — tomo à frente
e percebo, pela visão periférica, Catarina me encarar.
— E quem são vocês?
— Seu único cliente. Sou proprietária da Mancini Tecidos,
fábrica para a qual vocês produzem. — Os homens endireitam a
postura e recuam com seu descaso.
— Vou levar vocês até lá — o mais baixo deles anuncia e
lidera o caminho.
Deixo Catarina caminhar à frente e sigo seus passos, o
jeans ajustado que usa marca todas as suas curvas e isso só me faz
pensar que os homens deixados para trás estão babando tanto
quanto eu.
“De onde está vindo toda essa possessividade, Emir?”
Balanço a cabeça para dispersar a confusão de emoções
que batem de frente com a calmaria que sempre carreguei. Nunca
fui um homem possessivo, nem cheguei perto de situação parecida,
para agora agir feito um animal que mija em torno da sua fêmea.
— Uau! — Olho na direção que Catarina se atenta e um
homem forte sem camisa está diante de nós.
Estamos parados na entrada do balcão, assistimos por
algum tempo um peão bem afeiçoado usar os fardos de matéria-
prima como pesos de exercício. O suor brilha em sua pele, a calça
justa demais marca coisas que nem de longe eu gostaria de ver, um
chapéu na cabeça e o tom avermelhado nas maçãs do rosto mostra
que está nisso há um tempo.
— Bom dia, sou Tarso. — Um homem de meia-idade vem
até nós e finalmente desvia o foco.
— Olá, sou Catarina e esse é Emir Kartal. Viemos para a
visita.
— Tá certo. Vou pegar o carrinho e vamos começar com os
campos.
— Isso é ótimo — afirmo.
Catarina caminha despreocupada para próximo do homem
que exibe seu físico e dotes atléticos, afino o olhar, incomodado e
pronto para intervir de alguma forma.
— Oi, moça — o rapaz cumprimenta com uma voz firme.
— Olá. Você é empregado da cooperativa?
— Nada. Tô só exercitando. Tarso é um amigo de longa data
e aproveitei a visita na cidade e passei por aqui.
— E o que faz da vida? — Seu interesse me incomoda em
um nível que começa a me preocupar.
— Sou peão de montaria.
— Jura? — Ela quase salta no lugar de tão animada.
— Sim. Vou competir amanhã próximo da cidade. Se quiser
passar por lá...
— Com certeza, iremos. — Avanço dois passos e paro ao
lado dela.
Próximo o suficiente encaro o peão que entende o recado e
meneia com a cabeça. Posso parecer um babaca agora, mas nunca
permitirei que outro crie esperanças no que logo será meu.
— Já vou indo. Um bom dia, proceis. — O homem
musculoso toca a aba do chapéu e eu aceno em resposta.
Viro para Catarina que tem a atenção voltada a mim, abro a
boca para fazer um comentário provocador, mas uma buzina
estridente nos alerta para Tarso que estaciona o carro do lado de
fora do galpão.
— Você primeiro. — Eu estendo o braço à sua frente e
permito que lidere o caminho.
Depois da noite na boate, em que ela deixou claro sua
intenção, nunca mais vi Catarina flertar, nem mesmo comigo, depois
de tudo que aconteceu. Ela tem uma postura imperativa demais
para fazer jogos, o rapaz no pub bem soube disso.
As sensações que permearam e o incômodo que senti ainda
há pouco me fazem questionar onde foi parar a porcaria do meu
juízo. Nunca agi com emoção, nem mesmo quando meu mundo ruiu
por duas vezes no passado.
Entramos em um carrinho, parecido com aqueles modelos
usados nos campos de golfe, só um pouco mais rústico e sujo, a
terra avermelhada impregna em cada milímetro do ar e faz minha
garganta secar ainda mais.
Ou assim justifico para o bolo que se formou na passagem
de ar e fez meu peito se comprimir como nunca aconteceu.
Capítulo 17
“O pássaro que canta na hora errada morrerá.”
— Provérbio Turco.
Seguro o riso ao perceber a intenção do turco dentro do
galpão, corpo próximo ao meu, mas não o suficiente para tocar, algo
que reparei sobre ele, nunca me toca próximo de alguém, exceto na
boate e no dia que roubei um beijo seu na empresa.
Uma atitude quase banal em qualquer outro, mas o fato de
querer mostrar uma aproximação em frente ao peão, só deixa claro
seu intuito de marcar território.
Isso deveria me irritar, afinal, não somos nada um do outro e
detesto quando tentam me controlar de alguma forma, mas a
verdade é que só tenho vontade de rir.
Aguçar uma rivalidade masculina não é legal, nem maduro,
mas como nada ultimamente tem sido correto na minha vida, resolvi
me comprazer desse momento descabido.
Coloco meus óculos de sol, o calor faz minha pele transpirar
em excesso, ainda não sei como Emir não derreteu inteiro usando
duas camisas sobrepostas.
Tomamos uma estrada estreita ladeada por um tapete
branco que se perde por completo na imensidão. São cinco mil
hectares de terra plantada, quase cem trabalhadores, contando com
o administrativo e maquinário de ponta para atender a demanda.
— Estamos indo bem este ano, o clima tem colaborado para
as etapas do plantio, logo faremos a colheita.
— Qual tipo de maquinário usam? Eu li que isso interfere na
qualidade da fibra colhida.
— De fato. Há alguns anos, sugeri a mudança para o picker,
o sistema fuso coleta somente o necessário e mantém a fibra mais
limpa e intacta.
— E foi a melhor coisa que fizemos. As perdas diminuíram
muito e aumentou o valor da matéria-prima.
Emir olha sobre o ombro, apesar de não ver seu rosto por
completo, pois usa óculos de sol — que ficam ótimos nele —,
percebo certa satisfação à informação dada.
Paramos em um recuo no meio da plantação, Tarso desce
apressado em verificar uma tubulação de PVC.
Emir e eu saltamos do carrinho ao mesmo tempo, nos
encaramos antes de seguir caminho até o homem, que está de
cócoras analisando o cano.
— Algum problema? — Emir questiona.
— Só verificando as armadilhas. O período entressafra teve
baixa umidade relativa e temperatura elevada, os bicudos atacaram
com mais força desta vez. — Emir me encara com a sobrancelha
franzida.
— São pragas, controláveis, normalmente. É muito comum
nas plantações de algodoeiros.
— Se usássemos armadilhas mais eficazes no tempo de
uso, já teríamos lidado com o problema — o homem solta, um
pouco incomodado.
— Mas isso não garante a compra de mercadoria pela
Mancini. Temos que manter nossos padrões e regras ambientais, ou
perdemos todo o prestígio.
— Sugere usar inseticidas? — Emir questiona o homem que
levanta e leva as mãos à cintura.
— Sim. Essas medidas de hoje são eficazes, mas não o
suficiente.
— A Mancini tem a política de produção orgânica —
enfatizo, incomodada.
— Precisamos usar métodos eficazes, porém mais lentos
que outros usuais.
— E isso garante o valor que pagamos na matéria-prima
para vocês.
— E por isso tivemos que aumentar a mão de obra.
— Ter uma cooperativa é isso. Precisa saber lidar com a
gestão e necessidade do negócio.
— Se produzíssemos para fora, teríamos mais lucro — o
homem se altera e eu avanço um passo.
Estamos frente a frente em um nítido embate que pode não
acabar bem. Apesar do plantio ser administrado como uma
cooperativa, a Mancini detém a propriedade das terras e tem uma
pequena participação na gestão. Basta uma palavra minha para que
tudo seja reavaliado.
— Entendo suas preocupações, Tarso. Nosso intuito nesta
visita é só reconhecimento da filial, mas prometo que daremos
atenção ao problema.
— Não existe um problema — afirmo, categórica.
— É óbvio que existe e aproveitaremos nossa presença aqui
para resolver a questão, ou, pelo menos, colher informações para
levar à matriz.
Nós nos encaramos em um enfrentamento sigiloso, no fundo
sei que ele pode ter razão, mas é difícil dar o braço a torcer.
— Fico muito agradecido, senhor Kartal. A situação não está
boa há algum tempo e…
— Por que não notificaram a fábrica? — corto sua fala.
— Já falamos, pedimos reunião com a matriz, mas o
responsável aqui sempre alega falta de tempo, demandas,
ocupações e a cooperativa sofre. A terra é da Mancini, não
podemos fazer nada sem seu aval.
— Claro. Vamos averiguar isso.
Retornamos para o carrinho, introspectiva, começo a pesar
o quanto essa viagem pode ser esclarecedora e resoluta para as
decisões que tomarmos no futuro.
Encerramos a visita às plantações e rumamos direto ao
escritório da cooperativa, no qual temos uma sala exclusiva da
fábrica para fazer a ponte de uma empresa à outra.
Não tenho o cuidado de bater na porta com o letreiro da
fábrica estampado, encontro um homem sentado em uma cadeira
giratória e os pés apoiados no tampo da mesa, enquanto uma
garota, jogada em outra cadeira, parece entretida demais no celular.
Ambos saltam em seus lugares, alertas e curiosos com a
minha presença e de Emir, tiro a bolsa do entorno do corpo e solto
sobre a mesa do homem.
— Bom dia.
— Dia, quem é a senhora?
— Pelo visto, senhor Paulo, não tem conferido seus e-mails,
mas estou aqui para reparar esse erro.
— Luana, chegou algum e-mail para mim? — Ele encara a
garota, que não parece ter mais de dezoito anos e finalmente tira
seus olhos do celular e mexe o mouse para a tela do monitor
ascender.
— Ah… aqui. Chegou ontem.
— É… ontem não faz tanto tempo assim — o homem
justifica e eu bufo, indignada.
— Senhor Paulo, somos representantes da matriz e
estamos aqui para fazer diversos levantamentos. Já encontramos
algumas divergências nos campos de plantio e agora estamos a
caminho da fábrica para discutir isso junto à gestão.
— Mas que problemas? Não foi relatado nada a mim.
— Não é isso que o Tarso diz. — Levanto uma pasta arquivo
com diversos memorandos e cópias de e-mails enviados para a filial
e apresentadas a este setor.
— Esse Tarso é um enganador, não deveriam acreditar nele,
o homem é sujo e traidor…

— Dur[14]! — Emir ergue a palma, sua voz firme faz o tal


Paulo calar de imediato. — É muito vil falar da moral de alguém sem
que esteja presente. Deixe isso para a reunião que acontecerá em…
— ele encara seu relógio de pulso —... agora!
Com isso ele sai da sala me arrastando junto quando
envolve sua mão em meu pulso e puxa em direção ao carro, que
tem a porta aberta pelo motorista à nossa espera.
— Dá pra acreditar em tudo isso? — solto indignada assim
que bate a porta.
— Sim, é totalmente compreensível. Existe uma falha
gigante na administração e a responsabilidade é da matriz que não
regulamentou as visitas e fiscalizações. Pequenos problemas são
como ervas daninhas, Catarina, precisam ser periodicamente
observadas e arrancadas para que não se alastrem.
— Acha que pode haver roubo?
— Ainda não sei, mas é óbvio que o pessoal pago não
desempenha a função esperada. Para manter a cooperativa a favor
da fábrica, é preciso que os trabalhadores estejam, ao menos,
satisfeitos.
— Concordo.
— Quando entrar na reunião tenha em mente que calar é a
oportunidade de ouvir, isso te permite entender e ler melhor o que
está acontecendo de fato.
— Ok. — Aceno com a cabeça.
Apesar da vestimenta não fazer jus, Emir está em seu modo
empresário implacável e isso acarreta um charme inexplicável para
sua postura.
Devo estar maluca de pensar em como o homem é sedutor
em meio a esta confusão logo no primeiro dia aqui, no entanto, é
impossível não reparar.
•••
Uma coisa que não posso dizer sobre Emir é que não é
sábio. Faz exatos trinta minutos que estamos dentro de uma sala
elegante de reuniões no piso superior da fábrica, acompanhados do
representante da cooperativa; do Paulo, que deveria ser nossos
olhos lá dentro; e do diretor da fábrica.
Um senhor simpático que parece perplexo e desinformado
sobre as problemáticas apresentadas por Tarso.
Segui o conselho de Emir, tomei meu lugar ao seu lado na
mesa, um ponto estratégico, no qual podemos observar todos,
mantenho os braços descansando no apoio e cruzo os dedos diante
de mim.
Encaro cada um dos homens que debatem entre si
informações passadas, dados, cálculos, pedidos de reuniões
negadas, erros nos parâmetros apresentados, um pandemônio
completo que me desespera, mas toda vez que encaro de soslaio,
Emir mantém o semblante neutro.
— Como consegue se manter tão calmo? — não resisto e
sussurro em sua direção.
— Não consigo. É só uma máscara para esconder a
irritação que está sendo alimentada aqui dentro.
— Sério? Pois não deixa transparecer nada.
— Um homem tem que saber preservar seus anseios,
Catarina, ou deixar claro suas fraquezas.
Engulo em seco quando suas gemas negras tragam minha
atenção para dentro de si e começo a criar ideias totalmente fora de
contexto para a confusão diante de nós.
Respirar. Só preciso respirar e focar, mesmo que o turco
dificulte essa tarefa.
Capítulo 18
“Um lutador nunca é derrotado se não se cansa de lutar
contra nós.”
— Provérbio Turco.
Olho de relance para Catarina, que parece um pouco atônita
com o desenrolar catastrófico à nossa frente. Ergo uma
sobrancelha, com humor para ela, que sorri de volta e empertigo o
tronco para tomar controle do caos.
— Senhores... — falo mais alto para que a discussão entre
os três cesse. — É nítido que temos um problema grave de
comunicação e isso está atribuído à incompetência dos gestores da
fábrica, isento o senhor Tarso e a cooperativa de quaisquer
obrigatoriedades de contrato.
— As coisas não são bem assim, senhor — o diretor tenta
defender sua pele, que está diretamente na mira — Existem
inúmeras variantes a serem analisadas, a contabilidade, relatórios,
até mesmo o parecer da última vistoria...
— Por favor — ergo a palma da mão que cala o homem de
imediato —, não vamos rodar em círculos com algo muito claro.
Catarina, como representante dos interesses da matriz, irá relatar o
ocorrido e as medidas cabíveis serão tomadas. Por agora, estão
dispensados, mas fiquem atentos ao celular, provavelmente
entraremos em contato solicitando documentos — determino.
— Senhor Tarso — Catarina fica de pé quando o homem se
afasta em direção à porta —, gostaria de uma palavra.
Ele se aproxima da mesa enquanto os outros dois deixam a
sala aos sussurros, provavelmente arquitetando uma forma de
salvarem os próprios pescoços. Se tem algo que nunca tolerei como
administrador é incompetência, principalmente vinda de cargos no
comando.
— Gostaria de me desculpar pelo ocorrido no campo e dizer
que a matriz não tem conhecimento profundo das problemáticas
daqui.
— Eu entendo, senhora, mas as coisas estão complicadas
demais para esperar por mais tempo. Há famílias que dependem
dessa terra.
— Eu sei e estou completamente comprometida em resolver
tudo. Só peço um pouco de paciência.
— Não se preocupe, senhor Tarso. — Levanto e recolho os
óculos e boné nas mãos. — Até segunda-feira tudo será resolvido.
Ele acena com a cabeça e sai da sala, Catarina parece
soltar o ar que prendia, tensa com toda a situação.
— Como vou resolver tudo isso? Nunca me aprofundei
demais com as filiais, nem conheço todo o processo.
— Você vai agir como uma gestora. — Ela volta os olhos
para mim, preocupada. — Analisar os dados, ouvir as pessoas
certas, reportar a matriz, mas só com uma solução em mãos.
— Parece que a diversão da viagem acabou antes mesmo
de começar.
— Eu não diria isso. — Inclino a cabeça, sugestivo, fitando
seu semblante. — Teremos mais trabalho que o esperado,
concordo, mas acredito que resoluta as decisões sobre os
investimentos e futuro da Mancini.
— Minha mãe não quer fechar nada.
— Contra fatos não haverá argumentos, Catarina. Seja uma
mulher de fé.
Pisco os olhos devagar e acolhedor, entendo seu
desespero, uma novata gestora que não tem habilidade para lidar
com problemas emergenciais. Meu lado egoísta fica feliz em ter a
oportunidade de ensinar uma ou duas formas de resolver essas
questões.

É fim de tarde quando saímos da fábrica munidos de caixas


de documentos, acesso interino a todo o sistema e com uma
notificação enviada para a matriz.
Catarina já atendeu a três ligações de Elisandra que insiste
em mandar um supervisor ou alguém com experiência para tomar
as decisões, intervi e aleguei que daríamos conta, somente nós
dois.
Enviei uma mensagem particular para minha tia
tranquilizando seus temores e afirmei que essa oportunidade é
perfeita para resolver todas as questões que permeiam nossa
aliança.
Teríamos um panorama real da situação da empresa, isso
permitiria uma decisão mais precisa no investimento feito, assim
como cria a oportunidade ideal de Catarina e eu nos aproximarmos.
Ela pareceu acreditar nos meus argumentos e parou de
entrar em contato depois disso.
— No seu quarto ou no meu? — Catarina olha sobre o
ombro enquanto caminhamos para o corredor da pousada.
Sigo seus passos com duas caixas na mão, ela carrega uma
e o motorista mais três. Limpamos três setores coletando material
para uma análise panorâmica, não teremos tempo para nada
minucioso, por isso viraremos noite e dia aqui.
— No-no meu — ela titubeia e eu ergo um meio-sorriso.
Com certeza se o contexto fosse outro, nem me daria ao
trabalho de perguntar e ela já deveria saber disso.
Apesar de guardar minhas intenções devassas, nossa
conexão está presente, permeia cada passo, nos atrai feito uma
sinergia poderosa, que somente nós dois somos capazes de
identificar.
— Perfeito. — Paro logo atrás dela, que se atrapalha um
pouco para abrir a porta.
Dispenso o motorista logo que deixa as caixas em cima da
pequena mesa no quarto, informo que não precisarei dos seus
serviços até amanhã no final da tarde.
Estaremos enclausurados aqui pelo máximo de tempo
possível, ainda quero aproveitar um pouco da estadia com Catarina,
mas até termos uma visão mais clara das nossas suspeitas, temos
que nos concentrar.
— Vou buscar o notebook e meu carregador no quarto. Já
volto.
— Tudo bem. Vou trocar de roupa e deixar o banho para
depois. Estou tão tensa que se parar, vou desmoronar. — Catarina
apoia uma mão na cintura enquanto a outra esfrega um ponto
específico no tórax.
— Não se preocupe. — Corto nossa distância e toco seu
braço com gentileza. A pele macia e quente, convidativa demais,
quase dispersa minha intenção modesta. — Vamos resolver isso.
Estou com você.
— Não somos inimigos — ela repete a fala que sempre uso.
— Isso mesmo. — Aceno e com um meio-sorriso vou para
meu quarto.
Recolho tudo que preciso para enfrentar a maratona de
trabalho, aproveito para trocar a roupa, já que a minha está
empoeirada demais, coloco uma calça leve preta e uma camiseta
branca, o banho fica para depois, como Catarina mencionou.
Meu celular toca antes que eu saia do quarto, vejo o nome
de Cemil piscar na tela e atendo de imediato. Com toda a confusão
da Mancini, esqueci por completo que precisava retornar para meu
primo no dia de hoje.
— Abi, esqueceu da família?
— Desculpe, abi, estou atolado em serviço.
— As cargas chegam ao Brasil em cinco dias. Acha que dá
conta de cuidar de tudo pessoalmente, como combinamos?
— Sim, claro. Não estou perto de Santos, mas estarei lá no
dia.
— Como estão as coisas por aí? Baba, não para de falar
sobre a viagem até as terras tropicais.
— Quentes e úmidas ou quentes e secas. Depende de qual
estado estiver, abi.
— Só espero que volte casado, Emir. Não aguento mais
esperar os mais velhos dessa família saírem da solteirice.
— Já disse que o libero para desposar quando quiser, abi.
Não precisa seguir a tradição.
— Eu sei, mas baba acha que se eu desposar agora, as
pessoas irão pensar que tenho algum problema.
Não posso contradizer, de fato seria incomum demais o
mais novo dos Kartal desposar antes de todos. Apesar de não ter
uma relevância precisa, a reputação de Cemil pode ser colocada em
jogo, ou até mesmo de Haydar, o mais velho.
— Tio Osman ainda é o mais velho, não posso ir contra sua
sabedoria.
— Só termine logo as coisas por aí e volte casado. O resto
resolvemos.
— Pode deixar — respondo, animado demais e isso acende
o alerta do meu primo.
Nunca fui apto a trocar confissões amorosas, principalmente
depois do que aconteceu, apesar do caso ser abafado, afinal, ela
era filha de um homem importante, a mentira contada me
incomodava mais do que tudo.
Visto como um indivíduo sofrido e apaixonado, que perdeu
precocemente sua prometida, Cemil esteve ao meu lado e lamentou
meu infortúnio. Eu fui um crápula por não lhe contar a verdade, mas
não suportaria ver qualquer sinal de acusação em seus olhos.
— Tempos bons estão a caminho, abi. Sinto isso.
— Não até que resolvamos a tormenta de Haydar.
— Ele vai melhorar. Tenho fé.
— Alguém de nós precisa ter, abi. Preciso desligar, mande
mensagem caso precise, não poderei atender mais chamadas.
— Eu vou dormir, Emir. Tem ideia de que horas são aqui?
Confiro o relógio de pulso e percebo que um novo dia se
inicia na Turquia, um leve pesar toca meu peito ao constatar que
talvez esteja exigindo demais de Cemil.
Meu afastamento da Turquia sobrecarregou o rapaz que
ainda precisa servir de ponte entre o embate velado que seu irmão
mais velho e eu carregamos desde novos.
Nós nos despedimos com a promessa de um retorno em
breve, antes de viajar, recebi uma ligação preocupada de Cemil, no
meio da madrugada, com algumas suspeitas sobre cargas enviadas
para o Brasil.
Ele tem mantido um olho sobre Haydar, que nunca aceitou o
fato de eu assumir os negócios da Kartal e tenta de todas as formas
prejudicar a gestão para que minha imagem seja manchada perante
o tio Osman.
É cansativo e desnecessário, nunca quis um embate com
ele, se trabalharmos juntos, a Kartal tem meios de tornar todos nós,
herdeiros, homens poderosos e de autoridade no meio.
Mas Haydar sempre foi ambicioso, cultivando uma inveja
doentia de tudo que eu tinha. Quando pequenos eram os
brinquedos, depois as conquistas escolares e, a rivalidade se tornou
ainda maior.
Quando meus pais morreram e tio Osman me acolheu como
seu filho, Haydar encarou isso como uma traição e tornou a mim o
antagonista que envenenou a família contra ele.
É exaustivo, mas concordo com Cemil, algo está prestes a
mudar, e ao entrar pela porta em frente à do meu quarto, sinto a
esperança de que possa ser para melhor.
Capítulo 19
“Aquele que se levanta com raiva se senta em uma estaca.”
— Provérbio Turco.
Emir teve o cuidado de pedir algo leve para comermos, com
a quantidade de material em mãos para ser analisado, não
poderíamos correr o risco de sucumbir antes de terminar a primeira
caixa.
Estou sentada na cama, as pernas entrelaçadas e o tronco
inclinado para a pilha de papéis à minha frente. Separamos a
análise por setor, Emir ficou com os números e fechamentos, já que
tem facilidade com isso, eu fiquei com o controle e qualidade do
produto.
Para uma possível mudança de contrato, o que acredito a
cada página que leio ser o mais viável, preciso ter certeza de qual
dos lados errou e, ao que constato, a fábrica tem prejudicado a
cooperativa há um tempo considerável.
Estou com um copo de suco nas mãos, pedi um canudo
para facilitar, já que não tiro os olhos dos papéis nem por um
segundo. Minha boca revira para o lado do canudo, que dança de
um lado a outro, escapando dos meus lábios.
— Segure o canudo e sugue. — Ergo os olhos, surpresa,
para encontrar Emir sentado na cadeira que ocupa desde que
chegou.
Traseiro mais para frente, o que mantém suas costas
reclinadas além do normal, o pé direito sobre o joelho esquerdo,
balança frenético a todo momento. Está impaciente, mas ainda
consegue ostentar certo humor no rosto.
— Eu sei tomar suco — retruco e volto a encarar o
documento.
— Estou observando sua destreza.
— Deveria estar atento aos documentos, ou nunca sairemos
deste quarto.
— De fato, nunca cogitei que estaria louco para deixar um
quarto ocupado por você.
Volto os olhos de imediato para ele, o humor inocente se foi
e aquela expressão de dono do mundo voltou para seu semblante.
Solto o ar com força e saio da posição que estou.
Protesto ao esticar as pernas assim como as costas, que
estalam involuntárias quando empertigo o tronco.
— Já passam das duas da manhã. Vamos dormir e
retomamos cedo.
— Não estou com sono. — Ajeito os travesseiros junto à
cabeceira. — Posso me esticar aqui e continuar lendo. — Esmurro a
espuma do objeto.
— Uma boa noite de sono garante um dia de trabalho
satisfatório, Catarina. Aprenda a hora de parar e descansar.
— Você vai dormir agora? — Ergo as sobrancelhas.
— Durmo pouco. Mas confesso que preciso de um banho e
um lugar mais confortável para me alongar. — Vejo uma leve careta
quando ele tira a perna do joelho e estende à frente.
— Podemos dividir o espaço. — Encaro a cama de solteiro,
um pouco mais larga que o convencional, jogo um travesseiro para
o lado. — Garantimos mais uma ou duas horas de trabalho. — Volto
meu olhar em sua direção que analisa a cama como se temesse
algo.
— Se prometer não abusar de mim, senhorita Mancini,
aceito a oferta. — Emir levanta e caminha a passos vagarosos até a
cama.
— Isso é tão... — Bufo, indignada.
Uma breve reprise passa na minha mente e não posso dizer
que ele está de todo errado. Na boate, a primeiro momento, foi eu
que o cacei e, na empresa, também tomei a iniciativa do beijo.
— Você sabe que tenho razão. — Ele toma seu lugar na
cama, que de mediana, se tornou minúscula com seu tamanho.
Minha ideia foi péssima, agi por impulso, por estar elétrica
demais para ficar sozinha agora, sei que não conseguiria dormir,
sua presença, ao menos me acalma.
Emir ajeita o travesseiro nas costas, seu corpo fica
inclinado, uma perna é mantida no chão dobrada, ainda incerto se
foi uma boa ideia ficar tão próximo assim. Profissional, ambos
sabemos que não é, entretanto, já passamos dessa fase, dado a
nosso histórico.
Ocupo meu espaço, que se tornou quase inexistente, meu
ombro fica sobreposto ao seu e mesmo quando tento me encolher
quase caio da cama.
— Isso não vai dar certo. — Ajeito o travesseiro, de novo, e
tento recostar mais uma vez. — Acho que vou virar para os pés. —
Aponto e empertigo o corpo ao sentar.
— Espere — ele segura meu pulso com urgência o que me
faz encarar o toque —, deite aqui. — Ele transpassa o braço sobre o
travesseiro, que forma um lugar muito convidativo.
— Acho melhor não...
— Está com medo de mim, senhorita Mancini? — Suas
sobrancelhas erguem, ardilosas e cheias de provocação, caio feito
um patinho na sua artimanha.
Deito no lugar ofertado, a posição faz meu corpo projetar
ainda mais na sua direção, fico quase de lado e o cheiro incomum
do seu perfume invade meus sentidos.
“Como pode passar o dia inteiro embaixo de um sol a pino e
cheirar tão bem? Isso não é trivial, estar deitada aqui não é natural,
nossa relação por inteiro não é convencional.”
Solto uma lufada de ar e ergo o maço de papéis à minha
frente, preciso me concentrar nos dados e esquecer a quentura do
seu corpo forte, duro e másculo que serve perfeitamente como um
apoio confortável para dormir.
Minha testa está próxima do seu rosto, um movimento
errado e estaríamos a um suspiro de nos beijarmos. Sinto minha
boca aguar com a possibilidade e é por isso que mantenho minha
cabeça reclinada para baixo.
O ar quente da sua respiração atinge minha pele, de leve,
um arrepio discreto percorre o caminho e dissipa por meu sistema,
meu coração que já bate descompassado, desde que se aproximou,
é alimentado por cada nuance desse contato.
Leio o mesmo parágrafo três vezes, não tenho ideia do que
está escrito, finalmente, dou o braço a torcer e desisto de continuar
com essa tarefa inútil. Apoio o cotovelo no colchão e alço o corpo,
ao virar o rosto para Emir sou tragada por um momento único.
Sem barreiras ou empecilhos, vejo seu rosto sereno
descansar, a boca delineada, as pálpebras com cílios volumosos e
uma linha fraca, na testa, que mostra seu humor sisudo tão
característico.
Não resisto e levo o dedo indicador no contorno da barba,
espessa, pinica meu dedo ao mesmo tempo que formiga uma
vontade de mais. Preciso recuar antes que eu abuse de um homem
inconsciente.
Levanto da cama com cuidado, pesco um pijama da mala e
vou para o banheiro. Antes de fechar a porta, encaro sua imagem
serena na cama, o homem inatingível se foi e parece ter levado
parte da rigidez para longe.
Fecho a porta e recosto na madeira, levemente preocupada.
Nunca olhei para um homem com tamanho interesse, ainda não sei
os motivos, mas parece que Emir e eu somos metades de algo
maior e que não tem explicação.
Claro que a primeiro momento o que nos uniu foi o interesse
sexual, apesar de desconfiar que ele sabia quem eu era, não posso
negar que a atração foi latente para ambos.
Quando nos beijamos, senti toda a minha tristeza se esvair,
como se ele fosse capaz de sugar e transformar meus sentimentos
mais arraigados. O que torna tudo ainda mais assustador.
Abro o chuveiro no frio, apesar de não gostar muito de água
gelada, entro de cabeça e deixo o choque da temperatura restaurar
minha razão perdida por um momento quase inocente.
Estamos só no primeiro dia, há muito trabalho a ser feito e
ainda quero aproveitar um pouco do lugar. Uma oportunidade de
conhecer melhor o homem por trás da imagem de empresário,
talvez assim o acordo comercial seja mais aceitável.
A quem estou querendo enganar?
Só queria pular naquela cama e me perder no toque
inconfundível do turco, gemer seu nome enquanto ele possuía cada
espaço dentro de mim.
— Cabeça no lugar, Catarina. Você tem um problema
gigante em mãos — falo para mim mesma, visto o pijama e enrolo a
toalha no cabelo.
Detesto dormir com o cabelo molhado, amanhã ele acordará
todo revolto e não trouxe um kit decente para amansar o pobre
coitado.
Abro a porta decidida a dormir na cama de Emir, já que ele
ocupa mais da metade do que temos disponível, no entanto,
percebo que o turco já resolveu a questão por nós dois.
A cama está vazia, a colcha desalinhada e a marca do seu
peso marcando o colchão. Ele acabou de sair, nem se despediu,
talvez também ache tudo isso um pouco demais.
Temos que colocar um limite na relação confusa que
criamos, somos parentes, afinal de contas, e, pelo desejo da minha
mãe, nos tornaremos bem próximos.
Um investidor, acima de tudo, a figura que salvará a fábrica
da ruína. Não posso me esquecer mais disso ou corro o risco de
colocar tudo a perder por um caso sem importância.
Emir pode ser atraente, intenso e mexer como todo meu
sistema, mas não posso esquecer que ele vive em outro mundo,
costume e cultura. Em breve, partirá e raramente nos veremos,
assim espero.
Seria difícil conviver com um homem que mexe tanto com a
minha mente sem qualquer esforço.
Deito a cabeça no travesseiro, nem me dou ao trabalho de
remover a toalha, com o cabelo molhado, traria ainda mais umidade
ao travesseiro.
Fecho os olhos e em pouco tempo sou transportada para
um cenário quente, areias que se perdem de vista, o calor do lugar
me faz ofegar e então tenho uma miragem.
Distorcida pelas ondas térmicas, um cenário paradisíaco se
forma diante dos meus olhos, a sede seca minha garganta, mas
ainda consigo gritar o nome dele, assim que o vejo usando uma
roupa típica e turbante na cabeça.
— Emir...
Capítulo 20
“Um homem é julgado com base em seu trabalho.”
— Provérbio Turco.
Duas horas de sono terão que bastar, já que quando retornei
para meu quarto, obrigado pela coerência e respeito que devo
manter, não consegui pregar os olhos.
Meus pensamentos vagando no quão canalha posso estar
sendo por não ser honesto com Catarina e, ainda assim, alimentar
essa atração que nos chama e liga de forma inexplicável.
Além dos problemas que deixei na Turquia, anos de uma
rixa que só tende a ferir o seio familiar e, eu, como chefe da família,
preciso manter e zelar a todo custo.
Um preço alto para o prestígio tão almejado por meu primo,
que mantém suas garras afiadas no único objetivo de me destruir,
mesmo que isso leve a empresa Kartal para o buraco.
Uma grande e complicada confusão, é assim que posso
resumir minha vida, ainda mais agora, que meus olhos pousaram na
mulher de semblante angelical, radiante com os cabelos loiros, pele
clara e delicada, que toma uma xícara de café em um cenário
arborizado, que combina com ela.
É belo e tranquilo, o que não representa sua figura em si,
mas traduz o que sinto quando a tenho por perto. Catarina é
inquietante, no entanto, consegue me trazer paz, mesmo que se
esforce para causar meu caos particular.
Ela ainda não sabe, mas a cada olhar, toque e contato, sinto
ainda mais que somos feitos um para o outro. Talvez forjados pela
mesma dor, o abandono, mas ainda ligados pela vontade de se
encaixar em nosso mundo.
— Vai ficar parado aí até quando, senhor Kartal?
— Bom dia, Catarina. Acordei um tanto letárgico hoje.
— Achei que uma noite de sono bem aproveitada é o
ingrediente certo para um dia de trabalho eficaz — ela solta em tom
irônico, pega uma torrada da bandeja e despeja geleia sobre.
— Quando consegue dormir, sim, de fato é. No meu caso,
pensamentos inconvenientes atrapalharam na tarefa.
— Inconvenientes?
— Digamos que fiquei ansioso demais para concluir alguns
objetivos específicos, somado a uma curiosidade que incomoda
mais do que deveria, porém, ainda preciso manter uma linha
discernida para não perder a grande jogada.
— Uau. Parece importante.
— Algo para toda a vida.
— Nossa! — Ela arregala os olhos. — Boa sorte com isso,
senhor Kartal. Pelo tempo dedicado em pensamentos, parece que o
caminho não será tão fácil quanto gostaria.
— Você nem faz ideia. — Aperto os lábios para não soltar
mais do que deveria.
Hoje teremos um dia cheio na fábrica, finalizaremos a
análise dos documentos, entrevistaremos alguns funcionários, de
forma inesperada, não os quero preparados com discursos
decorados e, por último, uma conferência com a matriz.
— Acha que terminamos a tempo de ir ao rodeio? — Franzo
o cenho ao me lembrar do convite do peão.
— Claro — respondo com o semblante fechado.
“Afinal, o que ela tanto quer perto daquele homem?”
Sirvo meu chá e como algumas fatias de fruta, tenho o
hábito de fazer refeições turcas pela manhã, sinto falta das
especiarias, mas quando viajo tenho que me adaptar.
Confesso que o alimento desce atravessado, ainda não sei
se pelo gosto fora do habitual ou o incômodo de Catarina
possivelmente se interessar por outro e eu não ter o direito de dizer
nada.
Passamos a manhã e início da tarde debruçados nos
documentos, a sala de reuniões foi destinada para nós, o diretor,
temeroso, tentou sondar sobre os levantamentos, mas fui curto e
direto ao dispensá-lo.
Uma batida leve na porta tira minha atenção da tela do
computador e vejo uma mulher, um pouco mais velha, cruzar a sala
em nossa direção.
— Pois não... — Catarina se dispõe.
— Fui chamada aqui.
— Foi?
— Por mim, Catarina. Essa é Selma, secretária da diretoria.
Pode se sentar — aponto a cadeira vaga à sua frente —, quero
fazer uma entrevista rápida com a senhora. Tudo bem?
— Eu não quero problemas — ela se defende, prontamente.
— Se responder nossas perguntas com honestidade, não
haverá problema algum para a senhora.
— Mas...
— Não se preocupe, dona Selma, será rápido e indolor.
Catarina cutuca minha perna com a ponta da caneta por
baixo da mesa, olho de soslaio para seu semblante, que está tão
perdido quanto a mulher à nossa frente.
— Confie em mim — tombo a cabeça para o lado e sussurro
em sua direção.
— Ok — ela solta, apertado, incomodada por ser pega de
surpresa.
Pego uma pasta, separada ao meu lado, abro com algumas
informações importantes que coletei em meio aos arquivos. Nela
constam despesas administrativas sem esclarecimento, visitas não
programadas a lugares que não tem relevância para a fábrica, todas
feitas por ela.
— Pode nos explicar esses gastos? — Viro a pasta em sua
direção. — Todos os requerimentos foram feitos pela senhora,
porém, conferi a agenda de compromissos, assim como a
importância dos eventos, e não encontrei relevância para a
empresa.
— Eu-eu... bom... — a mulher balbucia e seu rosto é tomado
por uma tonalidade que só pode indicar o tamanho do nervosismo.
— Não queremos prejudicá-la, dona Selma, porém, se não
responder o que precisamos saber, a senhora será demitida por
justa causa. — Cruzo os braços com seriedade.
Em um processo de averiguação, os investigados precisam
entender que mentir, burlar, ou tentar enganar o representante, é
uma total perda de tempo, principalmente, se sou eu neste posto.
— A senhora está usando recursos da empresa para
benefício próprio? — Catarina eleva a voz.
— A troco de algum favor, suspeito — complemento e a
mulher perde a cor.
— O diretor... ele autorizou isso e... deveriam... ele que tem
que explicar... eu não sei...
— De nada? — Catarina, alterada, vira a pasta em sua
direção e confere os recibos e documentos anexados. — Engraçado
é que não existe assinatura dele aqui. O que acha que vai acontecer
quando apresentarmos isso ao RH? — Ela bate a pasta sobre a
mesa e toco seu braço, com sutileza.
— Tenho certeza de que dona Selma deve ter alguma
informação relevante para que esqueçamos esse pequeno deslize.
Catarina mira sua ira em mim, pronta para protestar o
acordo que ofereço, mas meu olhar incisivo a faz recuar, bufar e se
ajeitar na cadeira cruzando os braços.
Entendo sua indignação, afinal, a mulher está usando de
recursos da empresa para ter momentos de diversão e prazer na
região, no entanto, Catarina precisa entender que isso é muito
pouco, precisamos fisgar o peixe grande.
— Então, dona Selma, o que tem a dizer? — Volto meu
olhar intimidador para a mulher, que se encolhe na cadeira.
— Eu não quero problemas...
— Momento errado. A senhora já tem um bem grande —
Catarina afirma, categórica.
— O diretor tem o costume de receber amigos no horário de
expediente.
— Amigos?
— É... amigos... íntimos...
— Ele usa o escritório de motel? — Catarina praticamente
grita.
— Eu realmente não sei. É complicado afirmar qualquer
coisa. — Dona Selma baixa os olhos.
— São homens. Prostitutos, provavelmente — mato a
charada e a mulher esbugalha os olhos na minha direção.
— Essas coisas — ela aponta para a pasta sobre a mesa
—, são presentes. Ele diz que sou uma boa funcionária e que
mereço recompensas.
— Entrar mais tarde e sair mais cedo do seu horário
contratual já é uma grande recompensa. — Abro outra pasta com os
registros de horários da mulher.
— O que vai acontecer comigo? — Sua mão aperta a
beirada da mesa, nervosa com o desenrolar.
— Será informada pelo RH, mas com certeza o posto que
ocupa não será mais seu — determino. — Eles irão orientar como
será remanejado seu serviço, assim como a condição salarial e
benefícios.
— Só não me mandem embora, por favor, tenho três filhos
para criar. — Ela une as mãos em oração.
— Deveria ter pensado melhor antes de aceitar suborno —
Catarina responde, fria.
— A senhora já pode sair.
Assim que a mulher deixa a sala, Catarina levanta em um
rompante, bufa e esbraveja palavras incompreensíveis, extravasa
toda a raiva contida durante a conversa.
Vou até o carrinho disposto para nossa alimentação, pego
duas garrafas de água do suporte térmico e retorno até ela. Estendo
a garrafa, ela leva algumas voltas para me perceber e estacar no
lugar.
— Acredita nisso? Isso daqui é uma bagunça! Como a
matriz nunca soube?
— Mascarar dados e conduta é algo fácil quando não se tem
um controle rigoroso. Esse diretor está na empresa desde a época
do seu pai, provavelmente, sua mãe depositou confiança nele dado
o histórico.
— Eu quero essa mulher fora daqui! O diretor! Aquele tal
Paulo, até a secretária dele — ela esbraveja ao tomar a garrafa da
minha mão e voltar a caminhar de um lado a outro.
— Se não aprender a controlar seu temperamento, não vai
durar dez anos na direção da empresa e ainda ganhará uma úlcera
nervosa.
— Não me venha com seus conselhos de botequim, Emir —
ela solta e acabo sorrindo. — Por que sorri desse jeito?
— Só acho engraçada sua impetuosidade. A Selma agiu
errado, mas o problema da fábrica não é ela e sabemos bem disso.
As coisas estão críticas, precisamos finalizar os documentos e
chamar a videoconferência com a matriz.
— Acha que conseguiremos uma solução plausível?
— Diga você, gestora. É a cabeça nesta operação. —
Percebo o peito de Catarina inflar, sutil, ela adquire a postura de
responsável que se espera e caminha até a mesa.
— A cooperativa foi prejudicada, precisamos reparar isso,
financeiramente. — Ela aponta para os relatórios que analisava. —
A gestão daqui está defasada. A melhor coisa é fechar a fábrica,
terceirizar todo o serviço.
— O custo de mantê-la aberta ou de comprar os insumos
prontos para a matriz são quase os mesmos, com a vantagem que
um deles você só precisa lidar com nota fiscal e pagamento
bancário.
— Exato.
— Então... seu parecer é...
— Fecharmos a filial, manter a cooperativa, com uma
pequena participação pelo uso das terras e nos concentrarmos na
matriz.
— Perfeito, mas eu já sabia que seria assim.
Catarina fecha nossa distância com rapidez, não previ sua
intenção até que seus braços se fecham em torno do meu pescoço.
Abaixo a cabeça em sua direção e facilito a intenção do beijo.
Os rompantes dessa mulher me colocam à sua mercê, não
importa a circunstância.
Capítulo 21
“Uma pequena chave abre grandes portas.”
— Provérbio Turco.
Quando meus lábios se chocaram nos seus perdi qualquer
chance de recuperar o discernimento que deveria manter. Agi por
impulso, tomada pelo ímpeto de suas palavras, somado ao olhar
orgulhoso que me ofertou.
Apesar de saber da minha capacidade, nunca passei por
uma situação similar, ter a experiência e agilidade de Emir como
respaldo, fez toda a diferença.
Gostaria de dizer que somente isso me motivou a agir de
forma imprudente mais uma vez, mas não, assim como das outras
vezes, aquela energia irrevogável que permeia meu íntimo se
intensificou ao ponto de tomar o comando do meu corpo.
Nossas línguas brincavam com o desejo, a necessidade de
consumir cada gama ofertada pelo outro, sem reservas ou cuidado,
nos entregamos para o momento.
Emir aumenta seu aperto em torno da minha cintura,
tornando o ar, já escasso em meus pulmões, quase nulo. Interrompo
o beijo para buscar fôlego e recebo uma mordida no lábio inferior
como reprimenda.
— O que estamos fazendo? — questiono, no pequeno
momento de lucidez que sou tomada.
— O que nosso instinto implora a cada maldito segundo —
ele grunhe ao pinçar meus lábios com os seus.
— Um turco praguejando? Incomum — faço um gracejo e
recebo um apertão na cintura que me faz ofegar.
— Você consegue tentar a parcimônia do ser mais virtuoso.
— Acho sexy quando usa palavras difíceis na frase. Te faz
parecer mais experiente do que é.
— Posso mostrar mais do que falar, Catarina. — Sua mão
alcança minha nuca, pronto para me envolver em outra dose pujante
do seu contato.
O celular toca e nos fez despertar, ao menos a mim, que
salto para trás, encarando sua carranca imediata, nada feliz com o
afastamento.
— Sim, estamos prontos. Iremos começar em meia hora.
Não se preocupe, Elisandra, temos tudo em mãos e sua
representante irá relatar o ocorrido, junto a uma resolução cabível.
— Enrugo as sobrancelhas, intrigada.
“Por que raios ela não ligou direto para mim?”
Emir se despede pouco depois e caminha direto até a mesa,
no qual começa a repassar e separar vários documentos nas pastas
correspondentes.
Continuo parada, cruzo os braços na altura do seio e encaro
suas atitudes imediatas, ainda no aguardo de alguma explicação.
— Não irei te dizer nada, além do fato de que temos trinta
minutos para juntar todos os documentos necessários para a
videoconferência. — Ele bate um maço de papéis sobre a mesa,
enfia em uma pasta, junta mais duas e estende para mim.
— Consegue digitalizar isso e enviar para a matriz?
— Consigo, mas só farei quando me explicar o motivo da
minha mãe ligar para você e não para mim.
— Devo ser mais agradável. — Ele entorta, de leve, o lábio
para a esquerda. — Precisamos correr com isso, Catarina. Não
abrirei minha boca na reunião, então é bom pensar nos seus
argumentos para sua resolução.
— Você disse que me apoiaria. — Desfaço o nó dos braços,
minha feição mudando de provocadora para preocupada.
— Estarei. E é por isso que o comando será todo seu. Você
quer ser reconhecida, ter voz, eu entendo, mas para que sua mãe
enxergue, precisa assumir todas as responsabilidades.
Continuo encarando Emir por algum tempo, assimilando
tudo que disse e pesando os fatos, até que ele sacoleja as pastas
mais uma vez e me faz agir em seguida.
Pego meu celular da mesa, abro a câmera e digitalizo todos
os documentos em ordem e por setor, envio a sequência correta
para a pauta da reunião, aproveito para imprimir uma cópia para
nós.
Um minuto antes da reunião, ajeito minha blusa de botões
verde-claro pela terceira vez, solto o cabelo que estava preso em
um coque bagunçado, enfio os dedos entre os fios para discipliná-
los um pouco.
— Você está bem, não se preocupe. — Emir toma seu lugar
ao meu lado.
O homem mantém a elegância em uma camisa social
salmão-claro, jeans escuro e discreto e sapato social. Enquanto eu
sinto a cabeça latejar, estou desalinhada e com um semblante
acabado, Emir mantém seu alinhamento impecável.
Nada parece afetá-lo, nem a situação da empresa, nem o
fato de eu agarrá-lo ainda há pouco.
— Como consegue não se afetar?
— Quem disse que não me afeto? — Ele ergue as
sobrancelhas, um pouco irônico e provocativo, mas isso já é
característico em sua personalidade.
Uma batida na porta nos salva de aprofundar a conversa,
um assistente de TI veio para conectar o laptop de Emir ao sistema
de câmera e tela da sala, tornando a visibilidade de ambos os lados
mais eficaz.
Quando a solicitação do programa apita na tela, Emir leva o
dedo sobre a tecla, me encara e pisca um olho, charmoso, então
retorna sua habitual postura sisuda e aceita o convite da reunião.
Respiro fundo ao mirar minha mãe no painel, acompanhada
do advogado e mais dois diretores. Um deles é responsável por
averiguar as demandas dessa filial e preciso controlar todo meu
temperamento para não despencar meia dúzia de xingamentos
relacionados à sua incompetência.
— Boa tarde, senhores, senhora — encaro cada um com a
mesma impetuosidade que carrego desde pequena —, chegamos
ontem pela manhã nas dependências da cooperativa e constatamos
diversas discrepâncias preocupantes em relação à filial.
— Os documentos que nos enviou são…
— Todos recentes e averiguados de ontem para hoje por
mim e o senhor Emir. Utilizei a experiência e conhecimento dele
para algumas análises financeiras. E após o levantamento, o
parecer não é nada favorável — corto o diretor responsável que
tentou tomar a palavra.
— Pode nos detalhar a situação? — minha mãe incentiva e
passo a discursar sobre todo o desenrolar.
Deixo de lado a situação da dona Selma, como Emir
levantou, ela só foi uma pequena peça dentro da engrenagem podre
instalada aqui. Claro que ela terá sua penalidade pela falha
cometida, mas sua importância no problema maior é irrelevante.
Nas próximas duas horas debatemos, apresento todos os
arquivos que comprovam o quão prejudicada a cooperativa tem
sido, o comportamento relapso do diretor, assim como o setor
destinado a lidar com essas demandas.
Emir, como prometido, não move um músculo sequer,
mesmo quando recebe um olhar enviesado de dona Elisandra, que
busca confirmações do que relato. Ainda não sei qual é o intuito
nessa confiança recém-adquirida da minha mãe no sobrinho que
não vê desde novo, mas ainda vou descobrir.
— Então… o que o diretor responsável pelas demandas da
filial tem a dizer? — Ela vira o rosto na direção do homem que se
encolhe na cadeira.
— Preciso reunir informações, verificar algumas coisas, isso
é tudo muito recente… repentino, Elisandra. — Ele gesticula, em
busca de mais tempo para argumentar algo plausível.
— Acho que o senhor precisa de uma água e uma desculpa
melhor — rebato, sem conseguir me conter.
— Escute aqui, senhorita Catarina, eu administro esse setor
antes mesmo de você começar a engatinhar.
— Pelo que vejo, desaprendeu durante os anos.
— Catarina! — minha mãe repreende, então me levanto.
— Minha parte está feita, senhores. Amanhã continuarei a
visita com o senhor Kartal, seguindo o cronograma. Minha sugestão
é que fechemos a filial o quanto antes, assim estancamos boa parte
dos recursos empregados nela. Agora — confiro as horas no celular
—, tenho que me preparar para um compromisso. — Levanto-me,
determinada.
Nós nos despedimos de forma nada amistosa, minha mãe
parece pronta para comer o fígado do diretor errante e eu consegui
entregar a tarefa sem criar um embate desastroso com ela.
Emir, que não emitiu qualquer palavra ou gesto, se despede
e encerra a transmissão, só então me permito desmoronar na
cadeira, sinto a adrenalina agir em meu sistema tremulando meus
membros com nítido descontrole.
— Respire. — Ouço sua voz calma me alcançar e uma
garrafa de água surge diante dos meus olhos.
Obedeço a seu comando, inspiro algumas vezes antes de
tomar a garrafa e virar alguns goles, hidratando a garganta que
arranha de tão seca. Manter a postura diante deles foi automático,
instruída por Emir, segui seu conselho e me concentrei nos fatos a
serem apresentados.
Agir como uma relatora facilitou para manter a firmeza, por
mais que deseje muito que meu conselho seja acatado, ainda não
me cabe esse poder de decisão.
— Você foi muito bem, estou orgulhoso. — Ergo a cabeça
para encarar aquelas gemas escuras cativantes e brilhantes.
— Obrigada — falo sinceramente.
Emir agacha rente à cadeira, suas mãos se unem às minhas
e, seus olhos, nunca deixando os meus, transmitem muito mais do
que compreensão. É como se todo o equilíbrio que exerci fosse
reabastecido por sua energia.
— Nós não somos…
— Inimigos. — Sorrio, assim como ele. — Eu sei.
— Que bom. — Ele torna a levantar, rápido. — Agora pode
me dizer que compromisso ainda tem para hoje?
— A festa de rodeio.
— Quer mesmo encontrar aquele peão?
— Isso é ciúme, senhor Kartal? — Levanto e o encaro com
altivez.
Ele leva a mão até o queixo, aquela barba espessa tão
convidativa e que moldura tão bem suas feições, é coçado,
ponderando o que responder.
— Isso depende, senhorita Mancini.
— De quê? — Ele tomba a cabeça de lado com um sorriso
zombeteiro nos lábios.
— De até onde está disposta a ir comigo.
Pisco os olhos algumas vezes, processando as poucas
palavras de diversas formas, para ter a certeza de que entendi certo
e não cometer uma gafe.
O turco sorri, amplo, contente por me deixar sem palavras,
mais uma vez, então sai da sala com toda sua determinação e
arrogância.
— É… Catarina… uma questão perigosa.
Capítulo 22
“O que um homem tem aos sete anos também é o que ele
tem aos setenta.”
— Provérbio Turco.
Confesso que a brincadeira de morde e assopra com
Catarina é extremamente estimulante, mas tem tornado meu
autocontrole um fio fino e desencapado, prestes a soltar faíscas e
causar um incêndio preocupante.
Se eu somar essa dominação natural que despertou em
mim, ainda mais por saber que ela quer encontrar aquele homem
hoje, quase não consigo manter a racionalidade e agir como uma
raposa esperta e estrategista que fui ensinado.
Confiro minha imagem no reflexo, satisfeito, ajeito o punho
da camisa branca, alinhada, jeans escuros e uma bota no pé. Para
completar o figurino, pedi que a gentil senhora da pensão
providenciasse chapéus, um para mim e outro para Catarina.
Pesquisei no caminho para pousada, descobri como
funciona uma típica festa regional, com montaria, quermesse, shows
e muitas pessoas, trajadas em roupas como esta. Além do
acessório, também pedi um camisão xadrez em vermelho para ela
usar, tenho certeza de que acertei precisamente na medida.
Satisfeito com o que vejo, saio do quarto e dou de cara com
Catarina, mirando minha porta, pronta para me chamar para irmos.
Ela está incrível no camisão moldado em suas curvas que combina
perfeitamente com o jeans claro justo que escolheu.
Os cabelos loiros presos com duas tranças baixas que
moldam o contorno do rosto e pescoço, a deixam com um ar quase
angelical, se não fossem seus olhos desejosos mirando minha
calça.
— Está linda, Catarina.
— Você também não está nada mau.
Ergo as sobrancelhas, desafiador, ela consegue instigar
todo meu instinto com muito pouco, um verdadeiro perigo para
qualquer homem que busca agir com sabedoria e cautela na vida.
Por mim, neste momento, esqueceria qualquer
compromisso, a beijaria até roubar sua atenção para o quarto que
fica cada vez mais distante conforme caminhamos lado a lado.
Teríamos uma noite abrasadora, regada de carícias, com duração
suficiente para sanar parte dessa vontade louca que sentimos de
nos consumir.
No entanto, um homem deve ponderar cada ação, lembrar
que a vida segue um curso curioso e que as atitudes tomadas,
principalmente quando impulsivas, tornam as consequências
grandes demais para lidar.
Chegamos a um estacionamento confuso, carros viram para
todos os lados, manobram entre pessoas que transitam por ali, sem
qualquer cuidado. Crianças correm, acompanhadas de outros
maiores, aglomerados de pessoas com copos plásticos nas mãos,
um caos particular.
— Não se assuste, é sempre assim. — Catarina inclina o
tronco na minha direção.
— É minha primeira vez.
— Dá pra ver. — Ela abre a porta do seu lado. — Venha,
vamos aproveitar um pouco, senhor Kartal.
Contorno o carro e olho sobre o ombro para ver o motorista,
que também desempenha o papel de segurança, nos seguir, a certa
distância, para nos dar privacidade.
Não estou sob ameaça, nem nada parecido, mas o costume
em andar escoltado nunca me abandona, ainda mais aqui, em meio
a uma multidão com variantes instáveis.
Catarina engancha seu braço por baixo do meu, a primeiro
momento meu corpo tensiona, o costume de zelar pela imagem da
minha prometida grita, mas forço meu bom senso a compreender
que é uma situação normal e corriqueira deste lado do continente.
Passamos por diversas armações improvisadas, luzes
pequenas que transpassam de um lado para o outro no grande
corredor, que não parece ter fim, e ilumina todo o ambiente.
Brinquedos, de vários tipos, comidas típicas, cheiros
misturados, bebidas expostas como chamariz para os
frequentadores e muita gente caminhando de um lado para o outro.
Paramos próximo a uma arena, tapumes circulam a volta e
uma fila considerável controla o acesso ao lugar. Catarina solta meu
braço para unir nossas mãos e praticamente me arrastar até lá.
— Temos que comprar os ingressos para assistir ao rodeio.
— Ela aponta com a mão livre para uma bilheteria improvisada
próximo ao acesso.
— Deixe que eu cuido disso. — Estaco no lugar e sinalizo
com a mão.
— O que vai fazer? — Ela corre os olhos de mim para a fila,
intrigada.
— Você já vai ver. — O motorista surge à nossa frente. —
Providencie entradas para nós, verifique se tem um lugar mais
reservado.
Entrego uma nota alta nas mãos do homem que acena com
a cabeça e marcha em direção à missão dada, encaro Catarina que
cruzou os braços diante do tronco e não parece muito satisfeita.
— O senhor empresário não pode enfrentar uma fila, nem se
misturar com o povo?
— E por qual motivo eu faria isso? — Enrugo as
sobrancelhas.
— Emir, não seja presunçoso. Eu quase estava gostando da
noite com você. — Ela torce os lábios e caminha para o lado
contrário à arena.
— O que foi que eu fiz? — questiono a mim mesmo quando
sigo seus passos.
Catarina se afasta cada vez mais da multidão, entrando em
corredores improvisados com divisórias de metal e madeira, alguns
animais dispostos e baias temporárias, homens vestidos de forma
parecida comigo, com o adendo de uma sobreposição de franja nas
pernas, além de um colete por cima da camisa.
— Aonde vai? — Alcanço seu braço e a faço parar.
— Andar para longe da sua arrogância.
— Catarina, não seja ridícula, só facilitei as coisas. Qual o
problema nisso?
— O problema é você agir como dono do mundo, o
inatingível, estalar os dedos para ter o que tanto almeja.
— E isso é ruim por qual motivo? — continuo questionando
sem entender.
— Ah… esquece…
Ela vira para continuar seu caminho para longe e acaba
trombando em um homem, tipicamente trajado, que segura seus
braços para que não caia. Fecho a distância em dois passos e a
puxo para perto de mim.
— Desculpe… — ela solta, ainda atordoada.
— Uai, olha que coincidência boa. — Volto os olhos para o
homem e não acredito que é o peão do dia anterior.
— Lucio, não é? — Ela estende a mão e o cumprimenta.
— Sim. Vão assistir ao rodeio?
— Claro. Assim que o turco aqui arrumar um lugar especial
para ele e seu ego.
Abro a boca para responder à altura, mas opto por respirar
fundo e deixar essa discussão para quando estivermos a sós.
— Eita, lasqueira. Tu é arabiano?
— O quê? — Encaro o homem, atônito. — Se quer dizer
árabe — enfatizo a etnia, incomodado —, não. Aliás, é um grande
erro confundir turcos e árabes.
— É tudo povo do “are baba”, não é?
— Sim. É tudo a mesma coisa — Catarina incentiva o erro e
percebo seu olhar de soslaio me medir.
— Não se preocupem com nada. Vocês vão ficar no
palanque reservado. Por minha conta. São meus convidados.
— Muito gentil da sua parte, mas já temos um...
— Eu aceito — ela determina, cortando minha tentativa de
recusa.
— Maravilha! Arabiano, tu vai ver como se monta uma fera.
— O homem bate a mão no meu ombro e eu encaro o gesto com
incômodo.
— Quem sabe o arabiano aprenda algo como isso —
Catarina, provoca.
— Uma ótima ideia, ultimamente não tenho conseguido lidar
com uma em particular. — Meus olhos flamejam em sua direção,
provocadores. — Espere… acho que eu sei, sim… — Ergo um lado
da boca segurando o riso.
— Vambora! — O homem bronco lidera o caminho à minha
esquerda.
Catarina atravessa e segue os passos do anfitrião, mas não
sem antes pisar em cima do meu pé com tanta força, que sinto
meus dedos latejarem de imediato.
Fomos deixados por Lucio em um palanque bem localizado,
a visão privilegiada na saída das montarias, nunca vi uma de perto,
é uma oportunidade única.
Isso não existe na Turquia, já vi algo parecido nos Estados
Unidos, mas nunca prestei de fato atenção. Apesar de saber que se
trata de um esporte de alto risco, que movimenta milhões no
seguimento, ainda não encontro motivos para um ser humano
arriscar tanto da sua vida.
Catarina continua arisca e arredia, resolvi dar um tempo
para seu humor acalmar e processar os motivos da sua irritação.
Não fiz nada que pudesse ofender sua presença, poupei a ambos
de enfrentar uma fila entediante, solicitei um lugar seguro para que
ficássemos à vontade, cuidados básicos para nossa comodidade.
— Preciso de uma bebida. — Catarina debruça sobre o
gradil à procura de algo.
Tiro o celular do bolso e digito uma mensagem para o
motorista buscar algo que ela queira. Ergo os olhos para lhe
questionar o que deseja e a encontro com os braços cruzados e a
mesma postura defensiva de ainda há pouco me mirando.
— Vai tomar a frente e resolver tudo do seu jeito de novo?
— Ela me fuzila com os olhos.
— O que você quer, Catarina?
— Quero ser capaz de resolver minhas próprias
dificuldades.
— Isso não pareceu um problema quando a ajudei com as
questões da empresa. — Enfio as mãos nos bolsos, incomodado.
“O que há de errado com essa garota?”
Ela bufa e passa por mim, trombando seu braço no meu,
não me mexo, apesar da tentativa de tirar meu eixo.
Sento na cadeira, nada confortável do lugar, envio uma
mensagem para o motorista ficar de olho em Catarina e afundo os
pensamentos na porcaria de escolha que o destino despencou
sobre meu colo.
Se um ato de cuidado a deixa dessa forma, não quero nem
imaginar como será ao descobrir que precisamos nos casar para
que a Kartal salve os negócios Mancini.
Capítulo 23
“A ovelha separada de seu grupo é capturada pelo lobo.”
— Provérbio Turco.
Arrogante, presunçoso, que acha que seu dinheiro é capaz
de comprar qualquer coisa, esse turco consegue superar o ego
inflado de um narciso e isso me joga direto para a margem de
desconfiança iminente.
Marcho feito um soldado determinado a mostrar sua pompa
no desfile da independência, confesso que se alguém atravessar
meu caminho agora, não terei piedade quando o atropelar.
Contorno um aglomerado de tapumes, meu senso de
direção foi comprometido com o furor pelo turco, destemida,
caminhei, sem um objetivo final, só para me manter longe e agora
estou perdida.
Chego a uma bifurcação, ambos os caminhos parcos, sem
qualquer indício de onde daria, dei de ombros e segui à direita.
Virei uma esquina apertada e várias baias improvisadas
surgiram, algumas com cavalos, mas a maioria guarda touros com
chifres grandes e assustadoramente inquietos.
— A moça tá perdida? — Salto ao me assustar com a voz
tão próxima.
Olho para o lado e vejo um homem alto, forte, com um
sorriso dissimulado, um conquistador nato, que toca a aba do
chapéu e mede meu corpo dos pés à cabeça.
— Não. Estou exatamente onde gostaria de estar.
— Não sabia que muié bonita cuidava do trato dos animais.
— Ele avança um passo e eu recuo um.
— Você não parece saber lidar com a capacidade de uma
mulher, nem que quisesse — respondo ríspida e empino o nariz.
— Oxe. Essa é braba. — Ele sorri de lado.
— Para de mexer com a minha convidada, Maldonado. —
Lúcio, o peão bonito, apoia a mão no ombro do homem que parece
murchar com a notícia.
— Ela que é a loira gost... quer dizer, formosa, que tu falou?
— O amigo aponta o dedo para mim, surpreso, ergo as
sobrancelhas ao mirar o peão, que tem a decência de parecer
constrangido.
— Fica quieto, caboco. — O peão acerta um tapa amistoso
na nuca do tal Maldonado que faz uma careta para o amigo.
— Posso acompanhar a moça de volta para o palanque?
Aqui não é um lugar muito seguro.
— Percebi. — Torço o nariz ao observar Maldonado de
soslaio.
— Ele não é, de longe, perigoso, acredite. — Lucio acena
com a mão para uma passagem entre dois suportes de ferro para
que eu entre.
Um corredor mais apertado, capaz de suportar um por vez
em sua largura, caminho diversos passos até sair de frente para a
quermesse, que formiga de pessoas transitando de um lado para o
outro.
— Preciso de uma bebida — solto, assim que ele está ao
meu lado.
— Seu acompanhante a deixou sozinha?
— Não. Eu que não quis ficar perto dele mesmo.
— Isso é estranho. — Com o cenho franzido, o homem toma
o caminho em direção à arena.
— Estranho por quê?
— Porque ele não consegue ficar longe de tu. Uai.
— Do que está falando, peão? Nem sabe o que nos trouxe
até aqui. — Balanço a cabeça, desacreditada.
— Tem razão. Não sei nada de vocês dois, só que o jeito
que o homem te olha é como se só existisse tu na Terra.
— Nossa. O peão tem um coração romântico.
— Sofrido, talvez. — Ele meneia a cabeça. — Romance não
é algo que faça mais parte da minha vida, mas tenho que confessar:
já estive no lugar daquele arabiano.
— É turco.
— Tanto faz. — Ele dá de ombros e ambos sorrimos. —
Estar tão próximo da pessoa que te faz ter aquele olhar e ainda não
poder chamá-la de sua, não é algo fácil de lidar.
— Aquele olhar?
— Sim. Pura e simples necessidade, não só de pele, moça,
mas algo que vai além. Posso apostar que isso acontece contigo
também, mas o medo que ronda seus olhos te impede de se
entregar.
— Eu... isso é loucura. — Sacudo a cabeça e tento dissipar
o peso que suas palavras causaram dentro de mim.
— Tá entregue, moça. — O peão estaca no lugar, olho para
o lado e vejo a escadaria de acesso ao palanque.
No topo dela, Emir acena para Lúcio, como se uma
conversa velada discorresse entre eles, quando seu olhar pousa em
mim, sou tragada para o mar de emoções que aquelas gemas
escuras sempre fazem com que me afogue.
Afinal de contas, por qual motivo resisto tanto a vontade de
me jogar nos braços dele?
Subo os degraus, apressada, a cada passo meu coração
martela mais rápido no peito e tenho a sensação de que ele vai
saltar para fora se eu não controlar minha respiração.
Vejo os lábios de Emir subirem de lado, sua expressão
suaviza conforme o alcanço, minhas mãos sobem pelo tecido macio
da sua camisa e enlaçam sua nuca.
— Desculpe por sair feito uma maluca mimada. — Dou o
primeiro passo.
Por esta noite, somos somente duas pessoas, livres de
obrigações e compromissos, isenta das travas que carregamos e
dos motivos de resguardarmos tanto nossas reais intenções.
— Sinto muito por agir de forma tão dominante. — Sua mão
circula minha cintura, juntando nossos corpos ainda mais. — Se
quiser, podemos ir buscar sua bebida, ou ficar na maior fila
disponível para comprar algo inútil e perder um tempo precioso.
Jogo a cabeça para trás, uma gargalhada explode em minha
garganta, o homem consegue fazer piadas provocativas mesmo
quando tenta se desculpar por algo.
— Prefiro aproveitar o tempo aqui com você e posso beber
qualquer coisa que seu cão de guarda tenha comprado.
— Ótimo, pois ele providenciou uma caixa refrigerada cheia
até a borda com um pouco de tudo. — Meu queixo cai, espantada,
bato com a palma em seu peitoral firme.
— Você não tem jeito.
— Tudo para te manter confortável e segura.
— Deveria fazer terapia, turco. Isso está a um dedo
mindinho de ser considerado obsessão. — Aliso onde acertei o tapa
e a parede de músculos percebida é impressionante.
Ainda não tive o prazer de desfrutar da imagem do turco nu,
mas o pouco que vi e senti, me faz ter certeza de que a visão é um
presente divino.
Não gosto de objetificar uma pessoa, mas não serei
hipócrita em dizer que um corpo bem-cuidado, malhado e com os
gomos nos lugares certos, não despertam ainda mais a devassidão
que guardo dentro de mim.
— Acho bom tomarmos nossos lugares ou... — As palavras
morrem quando ele resvala os lábios na ponta do meu nariz.
Uma brincadeira romântica para a vista de todos, mas que
causa um alvoroço tão ardente dentro de mim, que minha intimidade
lateja, ansiando por um momento privado com ele.
— Ou o que, arabiano?
O encanto provocativo se quebra quando o homem se
afasta de súbito e segura meus braços ao recuar. Seus olhos estão
humorados mesmo que tente manter sua carranca costumeira.
— Sou um turco e você sabe bem disso.
Antes que eu possa rebater, sou puxada pelo punho em
direção aos assentos, não trocamos mais carícias, apesar dele se
assegurar próximo o suficiente.
A medida exata para me manter desperta e alerta à sua
presença, um lado do seu corpo constantemente roçando o meu,
toque sutis, quase inocentes, se não fosse o repuxar de lábios que o
denuncia.
Ainda não sei por que ele não me beijou e, sinceramente,
estou ficando incomodada. Qualquer encontro, mesmo que por uma
noite, tem mais proximidade.
— Ainda não entendi o sentido de tudo isso. — Emir tomba
a cabeça na minha direção enquanto aponta para a arena. —
Enfrentar um animal que pesa uma tonelada só para provar sua
capacidade.
— E não é isso que os homens amam fazer
constantemente?
— Isso soa um tanto misândrico.
— Eu? — Aponto para meu próprio peito. — Não tenho
problema algum com o sexo oposto.
— Além de nunca aceitar qualquer comando vindo dele.
— Isso não é uma questão sexista. É natural em mim,
independente do gênero.
Seu rosto finalmente gira na minha direção, os olhos atentos
e interessados, quase suplicantes por mais informações. Emir coça
a barba, antes de espalmar as mãos nas coxas.
— Explique.
— Odeio a sensação de ser controlada.
— Nem sempre é para o mal. — Sinto um pesar incomum
no seu tom.
— Se eu, como indivíduo, não posso decidir o que é bom ou
não para mim, qual o sentido de ser independente? — Dou de
ombros.
Quase rio de o teor da conversa ter tomado proporções tão
sérias no meio de uma festa de rodeio. O problema é que são
nesses momentos que sinto uma particularidade verídica nas
palavras de Emir, mesmo que ele não seja claro em seus discursos.
Parece que em toda oportunidade, quer dizer mais do que
realmente profere, e eu aguardo, um pequeno deslize, uma gama de
informação, qualquer gesto ou palavra que encaixe no enorme
quebra-cabeça que tenho na mente destinada ao turco.
— Há coisas que vão além do nosso controle, acho que já
falamos sobre.
— Sim, e você fez questão de mencionar discursos vazios e
destinos utópicos — solto, provocante.
— A liberdade só existe para aquele que compreende seu
lugar no mundo. — Uma dúvida perpassa seu semblante.
— Eis aí um ponto interessante, senhor Kartal. O senhor
compreende o seu lugar no mundo?
— Ainda não, mas estou em constante busca e movimento.
— E como pode dizer que suas escolhas são corretas, se
ainda não se entende como ser único? — Tombo a cabeça, irônica.
— Por sentir aqui. — Sua palma cobre o lado esquerdo do
peito, o dedo indicador e do meio batem sobre o coração. —
Quando ele fala, não existe margem de dúvida ou erro.
Engulo em seco, suas palavras adentram uma a uma em
minha mente, processando o quão verdadeiras podem ser e,
principalmente, se o termômetro que carrego no peito está
funcionando direito, corro o risco de mergulhar sem reservas em
direção ao turco.
Capítulo 24
“Quem hesita entre duas mesquitas, ficará sem oração.”
— Provérbio Turco.
Levanto da cadeira assim que leio a mensagem do
incompetente contratado como meu motorista e segurança para a
viagem. Ele conseguiu perder de vista uma mulher de um metro e
sessenta, loira e furiosa em uma multidão de pessoas.
Sinto meus batimentos acelerarem imaginando a imensidão
de cenários possíveis que possam acontecer com Catarina. Algum
abusador espreitando, um acidente com um animal enfurecido, até
sequestro relâmpago.
Gancho o dedo na abertura da camisa, desfaço mais uma
casa devido ao calor súbito e a sensação de sufocamento que
começou a permear meus sentidos.

— Bok! [15]— praguejo alto.


Pouco me importa o decoro ou bom comportamento agora,
preciso encontrá-la antes que algo aconteça. Penso em descer as
escadas e eu mesmo vasculhar a área, mas alguém precisa, ficar
caso retorne.
Disco o celular que vai direto para a caixa-postal, solto mais
meia dúzia de xingamentos em turco, algumas pessoas que estão
em volta me olham com estranheza, não me preocupo em suavizar
a carranca que ostento.
Reconheço o perfil do peão caminhando despreocupado
próximo do palanque, assovio alto, ao dobrar a língua sob os lábios
e sua atenção chicoteia até mim.
Aceno chamativo, desço em cada dois degraus, até alcançá-
lo na base da escada. O sorriso do homem morre aos poucos,
conforme escaneia meu semblante preocupado.
— Ela sumiu.
— Quem? A loira?
— Sim. Ela saiu brava daqui e meu motorista a perdeu na
multidão.
— Arabiano, respire. — O peão apoia as mãos nos meus
ombros dando um tranco leve, isso ajuda a ritmar os batimentos. —
Ela com certeza está bem, tua mulher não é uma menina indefesa.
Vou achar ela pra tu. — Sua mão encaixa entre minha mandíbula e
pescoço, reforçando sua promessa.
— Vou dever minha vida a você — prometo em um fôlego
antes que troquemos nossos números para nos comunicarmos
durante a busca.
Crio um grupo com o segurança desatento, Lucio e eu,
assim fica mais fácil de compartilhar localização e informações.
Caminho de um lado para outro, aflito, ansioso, os cenários
mais aterrorizantes continuam martelando em minha mente sem que
eu possa evitar. Uma crise paranoica completa, mas enquanto não
colocar os olhos em seu semblante impetuoso, não vou conseguir
acalmar essa irracionalidade.
Dez longos, inquietantes e tensos minutos se passaram e
uma mensagem simples no grupo entorpece todos os meus nervos.
Encosto na grade na saída da escada, respiro devagar e fecho os
olhos.
“Ela está comigo.”
Sinto o incômodo com a umidade que se juntou na linha
d’água, puxo o ar algumas vezes ao curvar o corpo para frente,
esfrego as mãos no rosto e recupero parte do equilíbrio que nunca
perdi antes.
Um gatilho clássico para meu passado, no entanto, ainda
mais assustador, já que não me recordo de vivenciar tanto medo
assim quando tudo aconteceu.
É irracional o que nossa mente pode causar quando temos
um histórico culposo de ações. Catarina tem a cada dia se tornado
algo muito maior do que uma reparação entre as famílias.
Um coração que não é capaz de amar, ao menos sempre
fora o que acreditei, agora bate descompassado ao olhar do alto da
escada e ver sua figura tranquila ao lado do peão.
Agradeço à providência divina que a fez correr até mim, seu
toque quente e reconfortante dissipando o momento de terror que
passei ainda há pouco.
A vontade de devorar seus lábios é gritante, quase dolorida,
mas sei que quando acontecer, dificilmente irei me frear e não quero
expor minha prometida na frente de todos.
Porque sim, agora mais do que antes, sei que Catarina é
muito mais que um meio para um fim. Ela tomou um lugar que
nunca foi ofertado, nem sabia da existência, para ser sincero, mas
que tem a medida perfeita para ela.
Depois da confusão, aproveitamos a noite como havia
planejado, assistimos às apresentações na arena, o peão foi o
vencedor e fez questão de se gabar sobre isso diante do público.
Quando já estávamos satisfeitos de diversão e, eu,
particularmente por um fio de agarrar Catarina perante todos,
encerramos a noite e voltamos o caminho em silêncio completo.
Desembarcamos na porta da pousada, pedi que entrasse
antes, pois ainda teria uma palavra com o motorista.
Catarina não pareceu satisfeita, mas por um milagre
obedeceu, sem pestanejar.
— Senhor, eu sinto muito...
— Peça à sua agência para mandar outra pessoa amanhã
— corto suas desculpas, impaciente.
— Por favor, não me dispense. Eu preciso do emprego e...
— o homem choraminga ainda mais e eu ergo a palma.
— Apesar do desapontamento da noite, a senhorita Mancini
está bem e nada aconteceu. Só por isso você manterá sua posição
de motorista, mas quero mais um homem na função de segurança.
Entendeu?
— Sim, senhor.
— Ótimo! Enviarei uma mensagem pela manhã informando
nosso itinerário.
Ele acena com a cabeça e eu encerro o assunto ao me
afastar. Apesar de não tolerar erros com facilidade, principalmente,
algo tão grave quanto a segurança de quem tenho sob meus
cuidados, o homem não merece minha ira.
Pessoas erram, é humano, perdoar é divino, ao menos
dizem isso, mas a verdade é que só quero ofertar o que anseio
receber quando minhas falhas vierem à tona.
Uma troca que parece justa, só espero que o julgador das
minhas ações veja da mesma forma quando a necessidade se
apresentar.
Paro diante da porta de Catarina, retiro o chapéu e aperto a
aba entre os dedos ao erguer a mão livre para bater à porta. Antes
que consiga realizar o feito, ela é aberta e um par de olhos
brilhantes e vivaz me encaram.
— Oi...
— Merhaba...
— Turco, estou cansada desse morde e assopra e...
Enlaço sua cintura ao juntar seu corpo no meu e caminhar
determinado para dentro do quarto, jogo o chapéu a esmo, uso a
mão livre para prender sua nuca sob meu comando.
Encaro seus olhos surpresos, as pupilas dilatam conforme
toma consciência do que farei a seguir, os lábios carnudos e
deliciosos abertos parcialmente deixam escapar uma lufada de ar.
Sorrio de lado antes de ir de encontro ao sabor mais viciante
que já tive o prazer de provar em toda a vida. O cheiro de romãs
preciosas, que provocam meu olfato sempre que estou próximo o
suficiente e tornam minha mente ainda mais dependente da
familiaridade.
Passo a língua por sua pele. Quente. Como já sabia que
seria.
Repito o gesto, ela abre um pouco mais, ofertando a
passagem e eu entro. Impiedoso, faço minha língua explorar seu
interior, provando do gosto peculiar, degustando da textura
convidativa e sugando cada fôlego externado.
Nunca fui um homem de vícios, é verdade, mas sinto, pela
primeira vez, que Catarina é a droga particular, criada e moldada
para entorpecer meu juízo e tornar o vício irreparável da minha
existência.
Avanço alguns passos até sentir a cama nos barrar, inclino o
corpo para frente e uso uma mão para baixar Catarina sobre a
maciez do colchão pequeno.
Por sorte, para o que faremos, não precisamos de muito
espaço, já que estaremos um sob o outro, em momentos alternados,
em movimento constante e ritmado, por longas horas, assim espero.
— Qalbi... você enlouquece meu bom senso — solto ao
buscar por fôlego.
Suas mãos voam para o botão da camisa para desnudar
meu tronco o quanto antes.
A urgência crepita em meu tato, puxo sua camisa que está
presa por dentro da calça, exponho sua barriga, marcada feito as
areias do deserto, por curvas e ondas pecaminosas que me tornam
um nômade queimando pelo contato.
— Não somos inimigos... — ela solta com um riso agoniado.
— Droga de botões. — Ela puxa minha camisa ao perder a
paciência na terceira casa.
Bufo, afável, ciente da pressa em seus atos, mas há tanto
escondido, que não consigo agir com a mesma impulsividade da
noite da boate.
Não conhecia Catarina direito, muito menos, quais eram as
reais intenções dela e da mãe, até que ponto sua participação era
ou não intencional.
Fui presunçoso e arrogante, quis mostrar que poderia ser
qualquer coisa, até o homem para uma escapada furtiva de uma
noite abnegada.
— Qalbi... espere. — Seguro suas mãos e estaco nossos
movimentos.
— O que foi? Desistiu? — Seu olhar preocupado me faz
desanuviar a sensação conflitante.
— Primeira coisa: eu nunca desistiria de você, a menos que
não fosse de sua vontade. — Ela parece satisfeita com a
informação. — Segundo: eu sabia quem você era naquela noite da
boate.
— Eu sei. — Ela abre um sorriso genuíno.
— Sabe?
— Claro, Emir. Só juntei dois mais dois e percebi que você
sabia quem eu era e foi até o fim naquele jogo particular.
— Foi errado e eu sinto muito.
— Não seja tolo. Claro que não gostei de ser enganada
sobre sua identidade, mas a verdade é que realmente não nos
conhecíamos. Somos livres, descompromissados, afinal.
— Quero que saiba de uma coisa, Catarina. Tudo que nos
envolveu, desde a boate até hoje, é verdadeiro. Cada gesto,
contato, um simples respirar mais acentuado, eu realmente me sinto
muito atraído por você.
Procuro entre as palavras soltar meias-verdades, feito um
covarde, articulo uma maneira de ainda poupar tudo que está por
vir, ao menos até sentir a confiança de que não abalará nossa
relação.
— Fico feliz em saber, turco, mas no momento estou mais
propensa a reviver essas sensações na prática.
— Seu desejo é uma ordem, qalbi.
Capítulo 25
"Uma brasa é queimada onde cai."
— Provérbio Turco.
Desde que permiti que meus olhos cruzassem com as
gemas escuras cativantes do turco, nunca mais consegui ficar
tempo suficiente distante. A miríade de sentimentos intensos, que
engolfam minha alma toda vez, me tornou viciada na sensação.
Emir pressiona a perna no vão das minhas e abre espaço
para se aconchegar mais, estamos transversais na cama, um
espaço limitado para dois corpos, no entanto, conveniente para o
que tenho em mente.
Ele usa a boca para pinçar meus lábios mais uma vez,
provocativo, sorri de lado a cada investida e, quando se cansa, suga
o lábio inferior de forma quase dolorosa e solta.
Existe um prazer particular em sua expressão com o ato,
como se desfrutasse de uma fantasia não compartilhada.
Aproveito a chance de finalmente colocar minhas mãos
sobre seu oblíquo marcado, sinto o formigamento na ponta dos
dedos ao encontrar as entrâncias que se perdem para dentro da
calça.
O sorriso de Emir aumenta ao perceber o interesse nítido
em meu tato, toma ciência que estou mais do que satisfeita com o
que consigo conferir.
Mas como não estar? O que confirmei até aqui é muito
agradável.
Sua boca cobre a minha com avidez, nossas línguas
passam a duelarem com prazer e ritmo envolvente, sugando o
fôlego ao transpor de um lado para o outro.
Só interrompemos o beijo quando finalmente consigo erguer
sua camisa com pressa e ele afasta para retirar a peça pela cabeça,
o que me permite alguns segundos de admiração.
Gomos, nuances, entrâncias e todo o parque de diversão
adulto para quem aprecia um abdômen definido. Uma estátua grega
que contempla a beleza física masculina não seria tão verídica para
descrever o que vejo.
Emir não é musculoso demais, nada nele é fora do normal
para um homem esguio, mas muito bem-definido e trabalhado. É
nítido que ele cuida do bem-estar físico e faz uso de exercícios para
tal.
Quando voltamos a nos beijar, minhas mãos escorregam
pelas laterais até as costas, também onduladas, conforme se mexe
e usa os braços para sustentar seu peso sobre mim, consigo sentir
cada movimento com relevância no tato.
Já sei que o homem é bom no que faz, nos conhecemos
assim, afinal, no entanto, confesso que desembrulhar Emir tem
superado todas as verdades que já carregava sobre ele.
Sua virilha cava em meu vão, o atrito é ansiado e solto um
gemido que Emir engole com prazer antes de afastar de súbito me
deixando um tanto perdida.
— Acho que não vai se importar, não é? — ele questiona ao
ganchar os dois lados da minha camisa xadrez nova.
Antes que eu consiga processar o intuito, um puxão e o
barulho de tecido partido acompanha alguns botões que estouram
com a pressa de Emir. Abafo um riso surpreso ao mirar seus olhos
famintos sobre meus montes cobertos de uma renda pink.
— Gosta do que vê, turco? — fomento ainda mais ao
pressionar os braços nas laterais para que meus seios empinem em
sua direção.
— Errei feio quando disse a você, naquela noite da boate,
que eu seria seu fôlego. Acabei de perder o meu e vou resgatá-lo
em seu corpo.
— A recíproca é verdadeira. — Lasciva derrama das minhas
palavras e o homem grunhe antes de morder meu lábio com
agilidade.
— Descobri que sou o eremita do deserto, ávido pela rosa
mais cheirosa que já tive o prazer de sorver. — Sua língua desliza
pelos lábios e ele se move devagar, saindo de cima de mim. —
Quero desembrulhar você por inteira, mas antes, preciso admirar
sua lingerie.
— Garotas gostam dessa atenção — brinco para dissipar a
tensão sexual que se intensificou.
Apesar de adorar a atenção dispensada, ver a fome em
seus olhos, tornando a mim total objeto de seu desejo puro e carnal
me deixa encabulada.
Emir pousa as mãos sobre o botão da minha calça cintura
alta, a lateral da sua mão resvala em meu umbigo e um arrepio
discreto surge ali, eriçando a pele.
Nossos olhares se cruzam, um pedido silencioso para
prosseguir, ou simplesmente parar, dando a mim a escolha de como
a noite pode transcorrer. Com a ânsia gritando em minha garganta
para tirar o máximo proveito de tudo, concordo com a cabeça,
entusiasmada demais, o que arranca um sorriso dele.
Emir remove minha calça com destreza, impressionada,
quase o parabenizo pelo feito, se não fosse a atenção dispensada à
minha calcinha, que o faz engolir em seco.
— Perfeição. — O dorso da sua mão resvala na renda, de
leve, mas o suficiente para que eu estremeça. — Úmida e desejosa.
— Seu polegar pousa sobre um ponto muito específico e quase
enlouquecedor, gemo e movo os quadris, ele recua. — Sabe o
quanto me faz perder o bom senso vendo seu tesão aflorado assim?
— Ele enruga o cenho ao mirar meus olhos, perdido em um prazer
quase doloroso.
— Não espero por controle hoje, turco. Só quero sua
entrega.
O homem cai de joelhos no mesmo instante, suas mãos
transpassam por minhas pernas e alçam meu quadril para mais
perto da beirada. Os braços fortes parecem uma prensa, mantendo
meu corpo no lugar desejado.
— Seu cheiro... — ele inspira tão próximo do meu canal que
coro de imediato —... é afrodisíaco. A tentação de qualquer virtuoso.
— Seu hálito quente atinge minha pele formigando o lugar.
— Só me chupa, Emir... — solto, desesperada.
Por uma graça divina, o homem obedece sem pestanejar,
sua língua perpassa por toda minha fenda, explorativa, se infiltra
entre os lábios e ao chegar ao cume, suga, enviando choques
prazerosos pelo meu ventre.
Enrijeço as pernas ao alçar mais o quadril com o contato,
mas o homem recua, sacana, mostra a quem pertence o controle de
cada ato.
Seus lábios chupam, com um estalo, ele abandona a carne
pulsante e vai mais abaixo se banquetear com um beijo molhado e
embrenhado, explorando minha intimidade como se fosse a boca,
até enfiar sua língua em meu canal.
Ele geme, contido, já eu, alto, minhas mãos que seguravam
o lençol sob os dedos com desespero voam para os seios, baixo o
bojo do sutiã e Emir interrompe o que faz no mesmo momento.
— Continue... — imploro ao beliscar os bicos e ele praguejar
algo ininteligível.
— Qalbi, assim você vai acabar comigo antes de começar.
— Seu tom sofrido me faz erguer a cabeça para presenciar uma
cena bastante instigante.
Um turco arrogante e pomposo, que mede mais de um
metro e oitenta, forte e atlético, de joelhos, os cabelos espatifados,
olhos tomados pela luxúria, a boca brilhosa com meu prazer,
encaixado com perfeição no vão das minhas pernas.
Até parece que o homem nasceu com o único propósito de
estar ali, o molde forjado para servir aos meus planos mais
despudorados.
Sua língua projeta para fora e desce, com os olhos fincados
nos meus, sobre meu ponto de prazer e, tremula, frenético, fazendo
um grito sufocado escapar da minha garganta ao jogar a cabeça
para trás.
A tarefa imperiosa aumentando meus manifestos, as pernas
se contraem e ele as força, abertas com seus braços, gemo cada
vez mais alto até que um tremor envia o choque certeiro para meu
canal, que pulsa descontrolado e percorre todo meu sistema.
O gozo toma conta dos sentidos, sussurro seu nome em
meio aos gemidos, os olhos apertados não me permitem vê-lo se
afastar e quando os abro, estou diante do pecado encarnado.
Emir está completamente nu, encontro a motivação certa
para apoiar meu tronco sobre os cotovelos e contemplar a obra de
arte privada à minha frente.
Pernas compridas e torneadas, o tronco talhado para
deliciar a oportunidade alheia, aquelas duas entradas, o indicativo
perfeito para seu membro teso e vigoroso.
A glande brilha, demonstra sua necessidade com o fluído
que escorre discreto da ponta, um leve pulsar o move e isso
desperta minha atenção para o rosto de Emir.
Tomado pela luxúria e devassidão, seus olhos estão escuros
de uma forma que nunca vi, quase perigoso demais para me fazer
recuar, no entanto, causa o efeito contrário e quando dou por mim,
estou sentada diante dele.
Ergo a cabeça e fito seu semblante, sua mão pousa
delicado em minha bochecha e eu inclino, aceitando o carinho.
— Você não precisa...
— Eu quero. Quero beber do seu prazer também.
Emir inclina e beija meus lábios com delicadeza, ao
empertigar o corpo de novo, a mão livre segura a base do seu eixo e
ele oferece a mim.
Com ambição, passo a língua por toda a glande antes de
abocanhar a cabeça, seu gosto particular inunda meu palato e os
gemidos estrangulados se tornam a trilha sonora para o momento.
Abro espaço entre as arcadas para acomodar o máximo
possível dele no interior, espesso e grande, restrinjo o ar na
garganta ao relaxar os músculos, é ilusório sequer imaginar que
caiba por inteiro.
Movo a cabeça em um vaivém contido, uso a língua para
circundar por onde passo e quando recuo o suficiente, sugo sua
cabeça formando uma pressão que o faz rugir.
— Qalbi... — Volto a encará-lo, Emir está perdido no ato,
entregue às sensações.
Tomo a base de sua mão e detenho o controle entre
ordenhar e masturbar, seus quadris se empolgam, auxiliando no
movimento, mas ainda mantenho o ritmo conforme quero.
Sugo a ponta e aperto os lábios ao deslizar cada vez mais
afinco, a saliva se mistura com seu prazer furtivo e a respiração
engatada me faz perceber que está a caminho do nirvana.
— Quero que goze na minha boca, Emir — solto com
rapidez e retomo a tarefa.
Meu único desejo para a noite é marcar e ser marcada por
esse turco, para que a lembrança nunca se perca no decorrer de
nossas vidas.
Capítulo 26
“Você colhe o que planta.”
— Provérbio Turco.
Meu corpo inteiro crepita, impelido por um ponto específico
que trouxe o mar de sensações mais devastadoras para que
pudesse lidar. Sua boca aveludada acariciando toda a extensão que
lateja, ávido, por mais.
Impulsiono os quadris para frente, com cautela, mesmo
depois da sua declaração, ainda apegado ao fio de racionalidade,
questiono o quão perigoso e arriscado é continuar com o ato.
Com os olhos semicerrados encaro a figura abaixo,
engolindo meu prazer com uma satisfação tamanha que me faz
latejar, aumentando o desejo. O fio tênue da excitação tecendo seu
caminho até o inevitável.
Infiltro as mãos pelas têmporas, os fios se entrelaçam nos
dedos, as madeixas loiras brilham no reflexo da luz do abajur. Jogo
a cabeça para trás e puxo o ar pela boca, buscando uma forma de
manter o controle.
“Quão vergonhoso seria eu gozar com tamanha rapidez?”
Catarina bombeia a base e aplica ainda mais pressão na
boca, as veias saltam com a corrente sanguínea intensa nesta
região, um latejar pulsante transcorre da cabeça até as minhas
bolas e percebo que fui vencido.
Um choque percorre da base para a coluna e então todo o
corpo. Sinto as pernas fraquejarem, me esforço para não puxar sua
cabeça de encontro a minha libertação, mesmo com Catarina
empenhada o suficiente.
Aperto os olhos e solto um rosnado em meio às pulsações
que me fazem jorrar dentro da sua boca. Abaixo a cabeça com
rapidez para ver seus olhos cravados em mim, um humor
debochado, enquanto engole cada gota do que lhe é ofertado.
— Qalbi... — grunho, a garganta seca e o tom rouco me
fazem pigarrear. — Vou te foder até meu pau esfolar na sua boceta
deliciosa. — Qualquer chance de controle ou limite se esvai.
Sinto a devassidão tomar conta de mim, como poucas vezes
aconteceram na vida, empurro seu tronco de volta para a cama, ela
escala rumo à cabeceira ao se ajeitar e logo estou sobre seu corpo.
Encaixo meu quadril junto ao seu, sua intimidade sedenta
molha a cabeça do meu pau, que não está nem perto de amolecer,
mesmo depois do orgasmo.
Ela consegue atiçar minha libido com tanta facilidade que
temo situações constrangedoras em público, em que um de nós
precisa manter o controle. É pouco provável que conserve meu
discernimento na linha depois de hoje.
Seu quadril inclina mais na minha direção, a ponta entra
com facilidade, gememos juntos, contudo, me mantenho parado.
Catarina age com pressa, incentivando o movimento que, para seu
azar, é custoso.
— Não vai cumprir a promessa, turco? — Seu tom está mais
para desespero do que provocação.
Ela não quer implorar, o problema é que também não
entende o quão bom sou em fazer alguém se dobrar às minhas
vontades.
— Vou. Só não disse quando. — Passo a língua sobre seus
lábios que tenta capturar com uma mordida.
Solto um riso abafado ao trilhar um caminho vagaroso de
beijos e sucções pelo queixo, mandíbula e pescoço. Subo a mão
livre para seu seio, já liberto da renda de forma displicente.
Acaricio um bico, ela arca as costas, desço o rosto até
abocanhar o cume entumecido, seu gemido baixo me incentiva e
sugo, igual a um faminto desesperado.
A maciez da pele, o arrepio e o ponto duro, onde ela mais
sente prazer quando dou a atenção necessária, todo o conjunto me
faz querer enterrar fundo o pau dentro dela, mas retardar o
momento é tão, ou mais prazeroso, que o ato.
— Pare de enrolar turco... — Sua voz falha no final e as
unhas cravam em minhas costas, quando pinço um bico e aperto o
outro entre os dedos. — Ahhrrr...
Meu riso reverbera em sua pele quando ela impulsiona o
quadril para cima, na tentativa de aprofundar ainda mais a
penetração. Recuo e ela bufa, indignada.
— Só estou criando um pouco de antecipação, Qalbi...
— Eu quero ser fodida. — Ela segura as laterais do meu
rosto, seu olhar esfomeado e o semblante determinado.
— Então... que sua vontade seja feita.
Aumento o aperto em torno da sua cintura, a mão que
estimulava seu seio desce e engancha sua perna para cima, o
encaixe, que era perfeito, se torna sublime quando arremeto com
precisão em seu interior.
Catarina engole a fala e o ar, sua boca forma um grande e
gigante círculo ao apertar os olhos, tomada pela satisfação.
Faço um esforço hercúleo para manter os olhos abertos e
me extasiar da visão do seu prazer sendo construído. Recuo e
arremeto mais uma vez, desfrutando da mesma expressão.
Ritmado e, ainda, espaçado, mantenho os movimentos até
ela mirar meus olhos e buscar meus lábios em um beijo
desesperado. Sinto que meu fôlego é roubado, nossas energias
entram em simbiose completa, transpassando entre os corpos todo
o prazer germinado.
Giro o quadril para um lado, alço ainda mais sua perna no
processo e um gemido estrangulado escapa de Catarina que finca
suas unhas nas minhas costas.
Amanhã terei que lidar com os arranhões que ela está me
causando. Por hoje, quero aproveitar cada arroubo seu e sentir
verdadeiramente o que essa mulher me proporciona.
Aumento o ritmo das estocadas, ela morde meu lábio inferior
com força, eu gemo e seu canal se aperta. As pernas firmes
mostram que o caminho do seu prazer não terá volta, por isso a
acompanho.
Afasto a cabeça em tempo suficiente de ver seus olhos
nublarem, as bochechas adquirirem um tingimento específico e
acalorado e o canal pulsante ordenhando meu pau me faz liberar.
Gozamos juntos, corpos estremecidos, a fadiga
compartilhada, equilibro meu peso para não despencar sobre ela,
acaricio a lateral da sua perna sentindo o arrepio se formar ali.
— Uau, turco — ela solta em uma lufada.
— Eu sei. — Repito seu gesto e deito a cabeça entre seus
seios.
Fecho os olhos por um instante e quando seus dedos tocam
meus cabelos, sou jogado para um mundo perfeito e particular, onde
não existe o medo nem a dor da perda.

Sobressalto na cama, encaro os dois lados, identificando


onde estou, a iluminação vem da fresta entre as cortinas blecaute, o
ambiente vazio.
Espreguiço e bocejo ao relembrar a noite passada, com um
meio-sorriso encaro o chão, com nossas roupas dispersas, sua
camisa rasgada, o que me faz criar uma nota mental para repor a
peça, na mesa de cabeceira um papel dobrado chama minha
atenção.
“Bom dia, dorminhoco.
Você dormia tão tranquilo que não achei viável te acordar.
Fui até a empresa verificar o andamento das coisas, descanse o
quanto quiser e depois me encontre.
Beijos,
Da sua qalbi.”
Levanto da cama, animado, vou para o banheiro sorrindo,
lavo os vestígios da noite escandalosa que passamos, enxugo meu
corpo e tenho cuidado com as costas sensíveis pelos arranhões
causados.
Só quando entro pelo portão da fábrica é que percebo a dor
nos músculos da bochecha, ao procurar o motivo é fácil de
entender. O sorriso não deixou meus lábios, não até entrar na sala
de reuniões que utilizamos há dois dias e dar de cara com
Elisandra, Catarina e tio Osman.
Engulo em seco, visto rapidamente o manto frio e impessoal
que costumo usar como armadura, irritado por ser pego de
surpresa.

— Yeğen[16]. — Tio Osman abre os braços, amistoso.


Retomo os passos, mais determinados, vou até meu tio que
segura minha cabeça com as duas mãos e puxa para beijar as
bochechas. Sorrio afetado, peço sua bênção e só então consigo
olhar em direção à Elisandra e Catarina.
A primeira detém um semblante animado, apesar da
situação discutida ontem sobre a filial, parece feliz demais com
nosso reencontro. A chegada de tio Osman com certeza contribuiu
para seu humor.
A segunda, mulher impetuosa e determinada que conheço,
que partilhou um momento único ontem e tornou as possibilidades
da minha mente verdades absolutas tem um olhar distante e
indiferente.
— Sobrinho. Como vai? — Elisandra estende a mão para
mim e obriga minha atenção se voltar a ela. — Tio Osman chegou
esta manhã, olha que surpresa maravilhosa.
— De fato, muito boa — concordo com um aceno.
— Não consegui esperar mais dois dias que fosse para
discutir o contrato nupcial. Precisamos agilizar os trâmites no Brasil
o quanto antes. A família está animada para festejar um casamento
tradicional turco.
Abro a boca, no entanto, nada sai. Nem uma palavra,
balbucio ao vento, encaro Catarina que injeta uma carga irada para
mim, tomada por completo de raiva e indignação.
— O senhor não avisou que vinha.
— Fiz surpresa para todos. Cemil deve estar arrancando os
cabelos ao perceber que não estou mais na Turquia.
— Um homem dono das suas vontades, isso é muito
inspirador — Elisandra comenta e sorri para meu tio.
Ela não parece incomodada com a revelação do casamento,
em momento algum encara Catarina, como se a descoberta da filha
sobre seus planos não mudasse em absoluto o curso de tudo.
— Ao que parece, isso não cabe a uma mulher. — Sua voz
gélida me atinge em cheio, volto os olhos para ela, que nos encara
como seus rivais. — Vou solicitar um chá e café. Espero que esteja
de seu agrado, tio... Osman — ela engole em seco antes de
pronunciar seu nome.
[17]
— Süper, sevgili Catarina yeğenim. — Ela enruga as
sobrancelhas diante da língua desconhecida.
— Ele quis dizer...
— Tanto faz.
Catarina marcha determinada para fora, seu perfume de
romã, tão convidativo e saudoso, se torna uma brisa dolorida com a
tempestade que enfrentarei para convencê-la das minhas intenções.
Só espero que não esteja tudo perdido.
Capítulo 27
“O que se inflama rapidamente logo se extingue.”
— Provérbio Turco.
Traição é um sentimento que se forma a partir de outros,
ligado à indignação, revolta, raiva, ira, desprezo, o misto é tão difuso
que fica difícil discernir qual deles é mais evidente.
Caminho determinada em direção à copa, controlo a
respiração enquanto cantarolo minhas ações, cada passo, desde
que encontrei minha mãe acompanhada de um senhor com olhar
enigmático.
Algo dentro de mim gritou, deixou claro de quem se tratava
e, por algum motivo, achei melhor agir com cuidado e cautela, até
entender a razão por estarem ali.
Peço à dona Selma, que ainda ocupa o cargo de secretária
da direção, para providenciar chá preto, café e algum biscoito para
servir na sala de reuniões.
A mulher age com receio, só não sei se pelo episódio de
ontem na conversa que tivemos, ou pelo semblante assombroso
que provavelmente demonstro.
— Sirva imediatamente e avise que vou demorar um pouco
a retornar. — Seu aceno confirma que entendeu e eu disparo para a
saída.
Preciso me acalmar de algum jeito, recobrar o discernimento
e entender tudo que está acontecendo. A bile sobe até minha
garganta, uma ânsia seca, o contragolpe do estômago me faz parar
e pressionar a região.
— Tá tudo bem? — Olho para cima e encaro Tarso,
responsável pela cooperativa.
— Sim. Está. — Afirmo com a cabeça. — Precisa de alguma
coisa?
— Só vim trazer uns documentos para o pessoal do fiscal, já
tô de saída.
— Que ótimo. Vou para a cooperativa também.
Ele acena com a cabeça, incerto, de certo pensa que vou
desmaiar, ou pior, surtar e atacar alguém. Minha raiva deve estar
mais evidente do que imagino.
Caminhamos lado a lado, o silêncio bem-vindo me faz
pensar sobre tudo que ouvi desde que encontrei com minha mãe e
tio esta manhã.
Um dia que começou glorioso, feliz, acordei leve, depois de
muito tempo não me sentir assim, acreditei que as coisas seriam
mais fáceis, até pensei que o envolvimento com o turco poderia
prosperar.
De fato, evoluiria de qualquer maneira, para a merda de um
casamento arranjado, no qual sou a moeda de troca para salvar os
bens Mancini e dona Elisandra manter seu posto de soberana.
“Será que em algum momento, eles pensavam em me
contar ou simplesmente apresentariam um contrato em uma
reunião?”
Balanço a cabeça, na tentativa de dispersar a raiva, que
ainda me faz bufar, o grito indignado entalado na garganta e não sei
até quando aguentarei segurar.
— A senhora já montou? — Chicoteio a cabeça em direção
a Tarso, que se encolhe com meu olhar.
— Já. Há muito tempo.
— É igual andar de bicicleta. Nunca mais se esquece.
— Deve ser. — Dou de ombros sem entender em que ponto
quer chegar.
O percurso é maior do que imaginei, o que não torna ruim, já
que andar tem ajudado a manter o fio de controle que preciso.
Quando finalmente passamos pelo portão alambrado da
cooperativa, vejo um garanhão, marrom, pelo brilhoso e crina escura
trançada, amarrado próximo de uma cobertura.
— Acho que a senhora precisa espairecer, sozinha. Fique à
vontade. O nome dele é Alfa. — Bufo, desacreditada.
— Nome interessante.
— Desde pequeno, ele nunca se adaptou com outros da
mesma raça. Independente, largou cedo da mãe e trilhou seu
caminho sozinho.
— Conheço alguém que é exatamente assim. — Apoio as
mãos na cintura.
— Ele é manso para cavalgar, não se preocupe.
— Tá sugerindo que eu suba nele? Faz uns dez anos que
não pratico.
— Finja que é uma bicicleta. — Tarso dá de ombros e ruma
para o galpão.
Encaro o bicho por um tempo, contorno seu corpo grande e
forte, ao parar de frente para ele, elevo a mão e toco seu nariz. Seu
fuço tremula e ele balança de um lado a outro com rapidez, mas
permite o contato.
— Alfa, preciso de um amigo agora. Você pode ser um?
Eu poderia jurar que o animal entendeu toda minha angústia
e necessidade, sua pata direita bate no chão duas vezes e ele
solavanca a cabeça para cima, em sinal de concordância.
Ou é assim que entendo, já que contorno seu corpo, solto a
corda que o prendia, coloco o pé esquerdo no estribo e impulsiono.
O animal dá dois passos para trás, o que me faz transpassar a
perna com rapidez e assentar na sela.
— Calma, Alfa. Eu não me lembro de muita coisa. —
Acaricio seu lombo, o animal bufa. — Também não precisa
desdenhar de mim. — Bufa mais uma vez e resolvo ignorar.
Seria demais acreditar que o cavalo está desdenhando da
minha destreza e insegurança em cavalgar.
Dou um leve toque na barriga e ele vira a caminho das
plantações, com certeza, treinado para o percurso desde sempre.
Passo em frente ao galpão e vejo Tarso com alguns homens, ele
acena e eu retribuo com a cabeça.
Entramos na mesma estrada que percorremos dois dias
antes no minicarro, o calor queimando minha pele com força, é
quase hora do almoço, vou ficar vermelha se demorar demais neste
passeio.
Em pouco tempo, ganho confiança, de fato Alfa é um animal
dócil e fácil de cavalgar, transmite segurança, algo que acabei de
perder e, talvez seja por isso, que uma lágrima errante escapa e rola
pelo rosto.
— Mentirosos desgraçados. — Bufo, recordando a conversa
reveladora que tivemos naquela sala.
“— Mãe? O que faz aqui? — Levanto-me da cadeira com
meio-sorriso e caminho até ela para um abraço.
— Querida, que roupa é essa? — ela sussurra em meu
ouvido.
Seu olhar de reprovação mede minha calça wide leg,
customizada por mim, com tinta preta e rasgos estratégicos nos
joelhos, a regata canelada branca e o tênis preto.
Completamente casual, escolhi a primeira coisa que estava
por cima da mala, só queria sair o quanto antes do quarto para
processar todos os sentimentos que invadiram meu peito assim que
abri os olhos.
— Ótimo te ver também, mãe. — Sorrio, afetada, volto o
olhar para o senhor. — Olá, bom dia.
— Ele é turco, querida, seu tio Osman. Use o inglês, sim? —
minha mãe esclarece para que ambos entendam.
— Claro. Olá, tio Osman. Que surpresa boa, esperávamos o
senhor no começo da próxima semana.
Sinto meu coração disparar, como um alerta do prelúdio de
tudo que pode vir a seguir, quando finalmente o homem abrir a
boca.
— Memnum oldum, yeğen.[18] Não contive a ansiedade de
um homem que tem pouco da vida para ver.
— O senhor aparenta estar muito bem. — Sorrio, amistosa
— Sentem-se, por favor. — Aponto para as cadeiras.
Diferente da atitude que tomei quando tive ciência de quem
é Emir e as intenções da minha mãe com essa aproximação, opto
em manter a cautela para compreender o que este senhor pretende.
Emir cansou de verbalizar que não somos inimigos e,
apesar de titubear diversas vezes, hoje acredito em suas palavras.
Talvez a noite maravilhosa que passamos tenha contribuído para tal,
mas ainda não estou pronta para admitir sentimentos recém-
despertos.
— Tio Osman chegou esta manhã na matriz e quando
soube da viagem para a filial, achou que seria adequado virmos
também.
— Adequado? Todos os relatórios apresentados ontem na
reunião são as informações que precisam para tomar as decisões
necessárias. — Encolho os ombros sem entender o que o velho
pretende.
Sinceramente, chegar suspeitando da minha capacidade
com os levantamentos não vai ajudar no processo da parceria entre
as empresas.
— Querida. Você foi criada longe dos costumes, e apesar de
velho e tradicional, sei que a modernidade deste lado do continente
é muito mais flexível que na Turquia, no entanto, o nome da família
Kartal e Sadik precisa manter o respeito.
— Ok... — Ergo as sobrancelhas, corro os olhos da minha
mãe para ele, sem entender aonde quer chegar.
— Quando vocês assinarem o termo do noivado, tudo fica
mais aceitável, até viagens particulares. Mas enquanto não firmarem
nada, oficialmente, é inviável essa intimidade.
— Como? — Torço a cabeça de lado, presa em uma única
palavra que ele mencionou.
— Aqui vocês agem de forma diferente, mas nós
precisamos firmar o compromisso no papel para que possam
desfrutar mais da companhia um do outro. Se é que me entende. —
O homem mostra desconforto.
— Mãe, o que ele quer dizer? — pergunto na nossa língua,
mantenho o tom cauteloso.
— Eu esperava que a esta altura Emir tivesse contado
alguma coisa.
— Contado o quê? — Elevo o tom.
— Uma das cláusulas do acordo para a Kartal ajudar a
Mancini é o casamento entre o líder da família e você.
— Isso é algum tipo de piada, não é? — Solto um riso,
desacreditada.
— Não. É muito sério. O destino da empresa depende disso.
— Mas... ele disse que... não acredito. — Passo as mãos
pelo cabelo solto.
— Aconteceu alguma coisa? — tio Osman questiona em
inglês, perdido com nossa conversa.
— Nada, tio, é só uma questão de mãe e filha — minha mãe
justifica.
Um turbilhão quente se forma no fundo da minha barriga e
irradia por todo o corpo, meu coração bate tão forte que até meus
tímpanos ensurdecem e quando penso em gritar, extravasar todas
as sensações, encaro a porta ao encontrar aquelas gemas escuras
e intensas.”
O cavalo aumenta o trote e passa para um galope leve, meu
coração disparado se compraz com a adrenalina, toco com os pés a
anca e o animal aumenta o ritmo para uma cavalgada.
Nem lembro como faço para frear a corrida, mas a verdade
é que não tenho vontade alguma de parar ou voltar para minha vida.
Capítulo 28
“A mosca é pequena, mas grande o suficiente para adoecer.”
— Provérbio Turco.
Tomei o lugar de costume dos últimos dias, a secretária
entra com um carrinho elegante, cheio de louças, aperitivos e
garrafas térmicas, meus olhos alcançam a porta na espera de ver
uma loira entrar por ali.
— Dona Catarina pediu para avisar que vai demorar um
pouco para retornar. — Volto a atenção para a mulher que serve tio
Osman.
— Por que não me avisou da vinda? — Encaro Elisandra,
tenho certeza de que meus olhos transmitem exatamente o que
sinto.
Uma ira fria e desprezível que seria capaz de matar alguém
por ousar atravessar meu caminho.
— Falem em uma língua que entenda — tio Osman,
protesta. — A garota pareceu assustada demais quando mencionei
o casamento.
— Ela não sabia, tio — respondo e solto o ar cansado. —
Por qual motivo não fui comunicado da sua vinda antecipada ao
Brasil? Por que não avisaram que viriam à filial?
— Não devo satisfações dos meus atos, rapaz. — O senhor
recolhe a xícara na mão ao mirar meus olhos com determinação.
— Desculpe, não foi minha intenção.
— Achei que você já tinha dito a ela. — Elisandra dá de
ombros, como se a situação fosse uma falha simples de
comunicação.
— Não é fácil explicar como a mãe se aliou à família, que
sempre desprezou sua existência, para arquitetar um casamento
arranjado com o intuito de salvar a empresa da falência.
— Emir Kartal! — Tio Osman bate com a palma sobre a
mesa. — Sus![19]
— Falei alguma mentira? — Ergo as sobrancelhas para
ambos.
— Não. É exatamente isso — Elisandra concorda ao elevar
o nariz, soberba.
— Nem sempre os caminhos mais diretos são os corretos,
meu filho. Elisandra está sacrificando muito para o bem-estar da
filha.
— Uma preocupação genuína — desdenho.
— Emir, não deixe sua raiva falar alto em momentos críticos.
— Ele muda o dialeto para que somente eu compreenda. — Achei
que estivesse feliz com esse arranjo.
— Eu estou, mas... Só acho que ela precisa concordar com
tudo isso.
— Mas ela irá, Emir. Acalme-se. Tem medo de perder a
prometida? — Volto meus olhos para ele, assustado.
Engulo a saliva que se formou na boca, buscando uma
resposta inteligente para rebater a sagacidade do meu tio, mas, pelo
visto, não a terei. De fato, um medo aterrorizante de Catarina fugir
dos meus braços se instalou assim que coloquei os olhos sobre ela
na sala.
— Preciso conversar com Catarina antes de qualquer
andamento. Só isso.
— Isso pode ser arranjado, mas vocês só poderão ter
certas... liberdades — ele gesticula com a mão, desconcertado —,
quando assinarem os contratos. Você sabe que não é certo expor
sua prometida, Emir.
— Não se preocupe, tio. Aqui as coisas funcionam de forma
diferente. Catarina não está exposta a nada.
— Mas na Turquia não é assim e já que vão se casar, cabe
a você mostrar à sua esposa como são os costumes.
— Tio, sobre isso...
— Ficarei de fora da conversa até quando? — Ambos
encaramos Elisandra que sorve um gole do seu café.
— Desculpe. Estamos falando sobre como proceder. Preciso
conversar com Catarina antes de dar andamento ao acordo.
— Concordo. Não acho que ela irá me ouvir agora. — A
postura determinada da mulher vacila, por alguns segundos, até se
recompor.
[20]
— Allahalla! Como uma filha não vai ouvir a mãe? — tio
Osman questiona, com tom lamentoso.
Um dos valores que carregamos fortemente na Turquia é
sempre acatar os mais velhos, por mais que não seja de seu
agrado. Respeitar o caminho que o outro já trilhou lhe garante
aprendizados valorosos.
— Os costumes são diferentes, tio.
— Mais um motivo para procurar sua prometida e alertá-la
sobre esse comportamento.
— Não é necessário, tio. — A porta, que estava aberta,
ocupa uma figura empoeirada de Catarina.
Os cabelos revoltos e displicentes fortificam a determinação
em seu olhar, que em momento algum alcança o meu. Ela parece
armada para uma guerra, velada e sutil, no entanto, carregada de
frieza para travar a batalha.
— Filha? O que aconteceu?
— Fui até a cooperativa resolver uma questão. Desculpe
meu rompante, tio, mas eu não tinha conhecimento da outra parte
do acordo, minha mãe e o... — ela quase engasga —... meu futuro
noivo não informaram. — Ela aperta os lábios ao tomar seu lugar na
ponta da mesa.
— Catarina, as coisas...
— Mas — ela eleva a voz, interrompendo minha tentativa de
argumentar —, tenho certeza de que o senhor será sincero em cada
ponto e me colocará a par do que preciso saber.
Distante demais para que possa tocá-la, não que faria isso
na presença dos mais velhos, porém dói, muito mais do que eu
gostaria, sua indiferença ao meu apelo por atenção.
— Claro, criança. Vim para o Brasil para isso. Emir é o chefe
de nossa família, a frente dos negócios e protetor de nossos bens,
uma esposa é necessária para dar continuidade à linhagem Kartal.
— E Sadik — ela sorri com escárnio —, afinal, somos os
únicos herdeiros deste lado da família.
— Evet! Quem poderia ser mais apropriada para esse
papel? — Ele bate as palmas e sorri, alegre.
— Uma esposa. Entendo. — Os olhos dela flamejam toda a
ira que é contida nas palavras. — A Mancini precisa passar por um
processo de reestruturação severo, conforme informado ontem. O
senhor Kartal está a par dos pormenores.
— Não precisa se preocupar com esses assuntos, yeğen.
Tudo será acertado. — Ela ergue as sobrancelhas, pronta para
rebater.
— Tio, Catarina está cuidando dos trâmites, sua função na
empresa é primordial para isso.
— Bom, então sugiro que acelerem os processos. Em uma
semana, assim que você voltar do porto de Santos, embarcamos
todos para a Turquia.
— Como? — perguntamos em uníssono.
— Ficarei no Brasil cuidando dos detalhes da empresa, mas
Catarina precisa conhecer mais da cultura vinda do pai.
— Está empenhada em despachar sua única filha, mãe. —
Não é uma pergunta e o sarcasmo atinge em cheio Elisandra.
Catarina tem o cuidado de usar o português para que tio
Osman não saiba do que se trata, mas o semblante de ambas
entrega muito mais do que gostariam.
— Como sabe que estarei em Santos? — questiono tio
Osman, em turco.
— Cemil comentou sobre um problema, antes de viajar.
Quero que resolva a questão e me apresente um relatório com o
ocorrido.
— Eu sou o CEO da empresa, tio — reitero minha posição.
— E eu ainda sou o mais velho — ele determina com um
tom que encerra o assunto.
Minha pretensão nunca foi entregar Haydar para o próprio
pai, entretanto, está nítido o conhecimento de tio Osman com o
comportamento que o filho vem exercendo.
— Acho que o principal já foi discutido. Retorno hoje para a
capital. — Catarina levanta da cadeira, determinada.
— Já? Achei que fosse acompanhar o processo inicial da
fábrica. Faremos algumas reuniões, ajustaremos os ponteiros com a
cooperativa e talvez não precisemos fechar a filial.
— Com o capital da Kartal, de fato não precisa, mas ainda
acho uma tolice manter o funcionamento. Não precisam de mim
para isso. Prefiro voltar a São Paulo e finalizar alguns projetos antes
da viagem à Turquia. — A voz mansa e cálida, quase angelical,
seria verídico, se os punhos apertados de Catarina não delatassem
sua revolta.
— Retorno com você — informo.
— Você ainda fica, Emir. Precisamos discutir diversas coisas
antes da sua partida para o porto. — Olho para meu tio, nada
satisfeito. — Faça uma boa viagem, menina. — Ele a dispensa com
um aceno de mão.
Catarina marcha direto para a saída, parece um touro
enfurecido, seus passos ecoam pela sala, então faço a única coisa
que tenho vontade, corro ao seu encontro e seguro seu cotovelo.
— Precisamos conversar. — Um solavanco a faz se soltar
de mim.
— Uma ova! Não acredite nem por um minuto que estou
feliz com o plano arquitetado à minha custa. O que mais me deixa
revoltada, nem é a traição da minha mãe, ou o fato de vocês usarem
de algo tão retrógrado e machista para manter os negócios da
Mancini, mas sim sua tentativa patética de me ludibriar.
— Do que está falando, Catarina?
— Transou comigo na boate, sabendo quem eu era. Depois
se aproximou com aquele discurso ridículo de que não somos
inimigos. Então demonstrou sentir atração, até que fôssemos para a
cama de novo. Para quê?
— Não foi bem assim.
— Não? — Ela eleva a voz, sua íris vívida, inundada de
decepção e mágoa. — Por todo esse tempo, você sabia que
estamos “prometidos” — ela faz aspas no ar —, um ao outro. Tem
conhecimento que a Mancini será salva mediante a um contrato de
compromisso. Que eu sou a porra de uma mercadoria sendo
vendida por um preço bem alto — ela grita no final, extravasando
parte da raiva acumulada.
— Você me atraiu desde a noite da boate. — Ela bufa,
desacreditada. — Sei que foi errado deixar as coisas acontecerem
dessa forma, só buscava uma maneira mais branda de te contar.
— Que sou moeda de troca?
— Não! Catarina — avanço um passo e ela recua —, depois
de te conhecer, minhas intenções mudaram.
— Por que eu acho difícil de acreditar, senhor Kartal? — Ela
cruza os braços, se fechando ainda mais.
— Sei que tudo parece incoerente e até desrespeitoso,
Catarina, mas ontem... o que aconteceu entre nós, vai além de
qualquer acordo.
— Bom, eu só vejo como um experimento para o futuro, já
que como esposa, preciso te dar um herdeiro. — Ela sorri,
sarcástica.
— Acho que não conseguiremos tirar nenhum proveito
dessa conversa. É melhor nos falarmos quando eu retornar de
Santos.
— Concordo. Pela primeira vez, límpido e claro. Nos vemos
em breve, querido noivo.
Sou deixado no corredor por sua figura altiva, impertinente e
cheia de si. A casca da armadura que protege seu coração por
todos os ferimentos que lhe causei.
Ainda não sei como, mas preciso provar a ela que tudo
mudou.
Capítulo 29
"Quando o machado entrou na floresta, as árvores disseram:
O cabo é dos nossos!"
— Provérbio Turco.
Desembarco em São Paulo, um voo comercial que, por
milagre, consegui um encaixe sem perder mais tempo naquele fim
de mundo. Ficar quinze minutos no ambiente que baixei todas as
minhas barreiras para o turco se tornou sufocante demais.
Melhor coisa que eu fiz foi correr para um lugar seguro, pedi
um carro e desci no apartamento dos pais de Layla, que conversou
comigo por mensagem desde que a avisei sobre a volta repentina.
Eu sou uma bagunça emocional completa, por sorte, o
porteiro do prédio já me conhece o suficiente para autorizar minha
subida sem qualquer aviso prévio.
A porta é aberta pela funcionária que me cumprimenta com
um sorriso conciliador, com certeza avisada por Layla da minha
chegada. Seus pais estão viajando, um evento fora da cidade, mais
um ponto a favor para me esconder aqui.
Subo direto para o segundo andar, entro no quarto de Layla
e me jogo na cama king, enorme e macia, com uma colcha de
partner colorida, muito a sua cara.
Só permiti o choro irromper do meu peito agora, nem a
lágrima errante durante a cavalgada passou disso. Não permitiria
que vissem o quanto fui destruída com a descoberta do plano.
Eu sou privilegiada financeiramente, tenho oportunidades
que a maioria não tem, conheço lugares, adquiro o que sinto
vontade, isso é fato, porém não paga o preço da solidão que me
habita.
Há anos, carrego o sentimento do abandono familiar, após a
morte do meu pai, o véu do luto recobriu nossa casa e nunca mais
se ergueu. Minha mãe se tornou alguém fria e distante, presente em
ações físicas, mas muito longe do afeto.
Perguntar sobre a família turca era buscar por briga,
semblante desgostoso e ainda mais afastamento de sua parte.
Então, aceitei crescer sozinha.
Com o tempo, a dor se abrandou, cresci afundando um
bocado dela por vez, bem fundo, em algum lugar da minha alma, ao
ponto de não mais me lembrar.
Essa porta foi chacoalhada com a vinda do turco,
sentimentos que pensei estarem superados retornaram e com eles
também veio uma esperança indesejada.
A centelha necessária para facilitar a fresta que escancarou
as reservas que tentei manter quando conheci o homem de olhar
misterioso. Sempre achei que escondesse algo, mas nunca pensei
que fosse sobre mim.
Sou praticamente sua propriedade. Uma posse adquirida em
troca de manter a Mancini Tecidos em pé e, ainda pior, nem sei se
poderei comandar a empresa quando minha mãe se aposentar.
— Dona Elisandra... — Bufo, indignada.
Mãe, sangue do meu sangue, uma missão que deveria
incluir zelo, proteção, direcionamento e muito amor, mas que depois
da revelação de hoje, entendi que sempre fui um meio para um fim.
Ainda não sei dizer se sinto raiva, indignação ou
simplesmente desprezo, mas fato é que estou ansiosa para
embarcar para a Turquia o quanto antes e ficar longe dela e tudo
que envolve a vida que conheci até aqui.
Emir Kartal terá a esposa que comprou, terá o herdeiro tão
almejado para a família, será o soberano das empresas Kartal,
Sadik e Mancini, um magnata de renome mundial.
Mas jamais exercerá controle sobre meus sentimentos,
nunca verá minha guarda baixa o suficiente para que possa jogar
em atitudes tão vis e mesquinhas.
Se é uma esposa troféu que almeja, é isso que terá, nem
uma vírgula a mais.

Apaguei o restante do dia, acordei com o furacão Layla que


entrou pela porta quando o sol se punha, exigindo todos os detalhes
acontecidos, já que passei o breve resumo por mensagem.
Jantamos no quarto, um caldo de galinha, como se eu
estivesse doente, mas segundo minha amiga, pela minha cara
parecia que um trator havia me atropelado.
Insensível, mas bem a cara dela.
— Acho que deveríamos ir àquela boate. Qual o nome
mesmo?
— Walah. — Faço um floreio e emendo em um girar de
olhos. — Não estou no clima para sair.
— Acho que você deveria aproveitar o pouco tempo de
solteirice que tem. Logo vai assinar papéis que te amarram ao turco
para sempre. — Abro a boca e puxo uma lufada de ar.
Layla é tão verdadeira que às vezes parece que suas
declarações são socos bem no meio do estômago, que me fazem
querer deitar em posição fetal.
— Sou maluca demais por aceitar tudo isso?
— Não. Mas tudo isso é uma loucura. — Ela dá de ombros.
— Tem alguma lei que me proíba?
— De forma alguma. A não ser que se sinta coagida. É o
caso?
Meus olhos desfocam quando repasso toda a trajetória na
minha mente, como um filme, cenas e flashes, sensações somadas
a ações realizadas, tudo parece confuso, revoltante em vários
níveis, mas coação não.
Emir e eu não conversamos, não quero contato agora,
teremos a chance de esclarecer algumas coisas e espero que minha
raiva tenha abrandado até lá, para que eu possa agir com coerência
e discernimento.
— Não. Por mais que eu sinta vontade de estapear a cara
do turco, não posso dizer que ele foi abusivo ou impositivo.
— Até porque foi você que atacou o pobre coitado na boate.
— Acerto um tapa no seu braço que a faz recuar. — Estou
mentindo?
— Eu não sabia quem ele era.
— A pergunta é: faria diferença se soubesse? — Layla torce
os lábios, provocativa, aquela perspicácia que toma seu semblante
sempre que está no modo advogada fodona.
— Eu... isso não importa. Só queria que você fosse comigo
para a Turquia — mudo o foco rapidamente.
Responder à pergunta geraria milhares de outras dentro de
mim que, definitivamente, não estou pronta para responder, muito
menos lidar.
— Tá doida? Eu tenho um trabalho e uma viagem para
planejar.
— Você pode passar uns dias comigo na Turquia e depois
embarcar direto para os Estados Unidos. O que acha? — Balanço
as sobrancelhas. — Vamos lá, Layla? Imagina eu ter que lidar com
um bando de gente que não sei a língua, me julgando a cada passo
e só o Emir para conversar. Eu nem quero olhar para ele, que dirá
manter um diálogo.
— Chantagem emocional é um meio muito baixo para um
fim. — Ela aperta os olhos em minha direção e eu abro um sorriso
do gato da Alice.
— Por favor? — Uno as mãos projetando um bico ridículo.
— Vamos à Walah hoje e depois pensamos em viagens e
planos. — Ela salta da cama, como se um choque tivesse ativado
suas ações. — Direto para o banho enquanto escolho sua roupa.
— Melhor maneirar na escolha, sou uma mulher
praticamente casada. — Solto uma gargalhada enquanto caminho
para o chuveiro.
O riso morre em meus lábios ao pensar na verdade
proferida, muitas coisas em meu comportamento terão que mudar
devido aos costumes, ou assim esperam de mim.
Acho que será divertido infernizar meu marido com uma ou
duas indiscrições e esquecimentos de alguns costumes. Ninguém
mandou ele escolher uma brasileira para se casar.

A boate fervilha com o mar de pessoas se movendo, corpos


suados e próximos, balançam ao ritmo do eletrônico que estoura
pelo sistema de som e leva todos à loucura.
Layla não brincou em serviço, escolheu um vestido, mais
parece um pedaço de tecido mole e brilhoso, alças de cristais,
decote folgado e bem cavado, contorna meus seios, as costas
completamente nuas, me obriga a usar um liebe para me sentir
segura.
O tecido abraça minhas curvas e para no alto das coxas, as
laterais com pequenas fendas, ousadas demais para uma rebolada
mais intensa. Definitivamente, ela quis me tornar o destaque do
lugar, já que todos, independente da orientação sexual, corre os
olhos para mim.
Os cabelos soltos em cachos moldados, uma maquiagem
marcante, estamos no bar à espera da tradicional tequila, mas meus
olhos traidores não deixam o mezanino que estive há algumas
semanas.
— Quer subir? — Ela sinaliza com a cabeça.
— Não! Claro que não! — Empino o nariz e ela ri.
Finjo não entender sua cutucada, Layla é uma excelente
amiga, mas sua sinceridade às vezes me irrita demais e não é o
momento para eu perder a única aliada que me restou.
Não estou no clima para balada e curtição, mas aceitei a
proposta com o único objetivo de conseguir sua ida para a Turquia.
— Finalmente. — Ela retorna o tronco para frente ao me
entregar um copo. — Ao futuro que nos aguarda e às peças que o
destino prega. — Ela ergue a mão com a bebida.
— Aos traidores que passam por nossas vidas. — Bato meu
copo no dela e viro de uma vez.
Sinto o líquido queimar por todo caminho até formar um bolo
fumegante em meu estômago. Pesco meu drink do balcão e sorvo
um gole generoso.
— Vamos dançar! — Ela ergue a mão e me puxa para a
pista.
Tento me desvincular do seu aperto, mas basta um olhar
enviesado para entender que Layla quer realmente aproveitar a
noite.
No fundo, acho que minha amiga não quer me distrair da
roubada que fui colocada, mas sim livrar a própria mente de seus
tormentos.
Nossos pais são muito parecidos em algumas questões,
então sei que seu sofrimento é tão válido quanto o meu. A diferença
é que eu falo, esperneio e desabafo, já Layla, guarda tudo para si e
estampa um sorriso no rosto.
— Preciso beijar na boca, já volto — ela avisa e antes que
eu possa contestar, some entre o mar de pessoas dançando.
Tento sair pela tangente, voltar para o bar e ter mais espaço,
mas a multidão espremida me obriga a remexer o corpo e
permanecer no meio, sozinha e chateada.
— Está perdida, qalbi? — a voz sussurra próximo à minha
orelha e eu fecho os olhos, convicta de que é um delírio.
Capítulo 30
"O homem é mais duro que o ferro, mais forte que a pedra e
mais frágil que uma rosa."
— Provérbio Turco.
Assim que a figura raivosa de Catarina sumiu no corredor da
fábrica, saquei o celular e ordenei que o segurança seguisse seus
passos de longe.
Finalizei a chamada e disquei para o responsável por meus
voos e deixei claro que deveria encaixar a senhorita Mancini em
uma viagem comercial, além de garantir que o assento ao seu lado
fosse vazio, para que tivesse mais conforto.
Retornei para a sala de reuniões, encarei Elisandra, com o
mesmo semblante imparcial que ostenta em qualquer conflito. A
mulher parece sustentar um coração de gelo.
— Sua filha precisa de mais explicações.
— Ela as terá, no momento oportuno. — Ela toma sua
xícara nas mãos.
— Você não se importa como ela saiu daqui? Não te
machuca saber que ela está se sentindo uma peça dentro de uma
transação comercial? Catarina é adulta, forte, determinada, mas
ainda é arredia devido a toda essa frieza — pontuo, firmando o dedo
indicador no tampo da mesa, indignado e um pouco desesperado,
confesso.
— E agora cabe a você, Emir — tio Osman levanta da
cadeira —, mostrar que será o apoio que ela precisa. Ela é sua
prometida, a faça ver que a vida ao seu lado vale essa chateação
momentânea.
— Ela não foi criada dentro dos costumes, tio. Não é
submissa, nem acata decisões dos outros. Catarina pensa por si.
— Isso é tolice. Viajar para a Turquia antes do casamento é
a melhor maneira de mostrar como as coisas devem ser. — Ele
retorna ao seu lugar. — Agora vamos resolver algumas questões
burocráticas. Precisamos pensar na papelada do compromisso e o
que será feito dos negócios Mancini.
— A resolução de Catarina é a melhor, ela tem meu apoio
para tal, como CEO da Kartal prezo pelo dinheiro investido.
— Mas Elisandra quer manter o patrimônio intacto.
— Isso não importa agora. As coisas chegaram a um ponto
irreversível. Vou para São Paulo no final da tarde, depois rumo para
Santos resolver alguns problemas. Quero acompanhar as decisões
tomadas e, espero, realmente, que o apontamento da minha
prometida seja levado em conta — determino, vestido da máscara
fria e calculista de costume.
Giro nos calcanhares pronto para sumir daquela sala
sufocante, mas quando estou próximo da porta, escuto a voz
imperiosa de tio Osman me chamar.
— O que significa tudo isso, menino? — questiona em turco.
— Estou tomando as rédeas da situação e protegendo
minha prometida.
— Mas você é o chefe da família e quem deve decidir o
melhor para os negócios.
— Exato. Sou eu quem decido e a opinião da minha futura
esposa é fundamental para o andamento — gesticulo com a mão ao
mostrar o ambiente —, seja lá do que for esse arranjo.
Desembarquei há uma hora, tive tempo de tomar um banho
e comer algo leve preparado por Eda, antes de receber uma ligação
do segurança que fiz viajar e proteger Catarina quando não pude.
As informações me fizeram levantar no mesmo momento,
recolher a chave do carro, carteira e marchar para a garagem
subterrânea.
— Se minha prometida precisa extravasar a tensão, será
comigo por perto.

Fui direto para o mezanino da boate, convicto de que ela


estaria lá, como a conheci, vestida de forma provocante, com um
drink nas mãos, próxima à grade e um olhar que deixa claro ser a
caçadora.
Pensei em diversos discursos para abordá-la, não quero que
se sinta pressionada ou perseguida, última coisa que deve
acontecer é Catarina se sentir presa comigo.
Apesar das circunstâncias deixarem claro que essa é a
intenção do acordo, preciso que ela entenda que não me sinto
assim. Nunca senti, ao menos até colocar meus olhos em seu mar
de vivacidade e sonhos.
Ela destoa por completo de uma mulher turca, encara de
frente, os olhos desafiadores, a imposição no andar, aquela
inquietação natural que borbulha em sua íris sempre que possível.
Gosto demais disso, me instiga a superar qualquer uma das
artimanhas que já tenho aprendido para seduzir ou conquistar uma
mulher.
— Senhor Kartal, como vai? — Viro o rosto na direção do
arquiteto italiano que foi um dos responsáveis pelo projeto da boate.
— Matteo Guerra. Quanto tempo? — Estendo a mão e o
cumprimento.
Um homem temperamental e explosivo que protagonizou
uma cena interessante com sua rival, na reunião que Kant anunciou
que ambos deveriam trabalhar juntos no projeto da boate.
— Uns bons meses. Como tem passado, senhor?
— Seguindo o curso da vida. Um pouco surpreso com as
demandas do destino, mas ainda assim, satisfeito. — Nem sei o
porquê fui tão emblemático.
— Fico feliz em saber. Já eu, não sei dizer se tirei ou não a
sorte grande. Acho que o destino tem sido um caralho de uma pedra
gigante no meu sapato. — Arregalo os olhos para sua escolha de
palavras. — Desculpe. — Ele passa a mão sobre o rosto.
— Espero que a senhorita Berinatti não tenha lhe causado
tantos problemas. — Lembro-me da interação nada amistosa de
ambos.
— O quê? Quem? Não... — O homem pigarreia. — Aquela
louc... quero dizer, ela não foi um problema. Longe disso. — A
última parte soa mais como uma reflexão em voz alta.
— A um homem é reservado o direito de escolher e o dever
de agir — pronuncio a reflexão e volto meus pensamentos para o
que realmente me interessa.
Apoio as mãos na grade, escaneio o aglomerado de
pessoas que se movem, unidas pelo ritmo quente que toca. Meus
olhos são tragados para um brilho particular, no meio da pista, ela
se mistura com graciosidade e ganha a atenção de cada um que
cruza seu caminho.
Despeço-me de um Matteo reflexivo e desço as escadas,
apressado, dou a volta na pista e contorno para que ela não me
veja, ainda não sei como abordá-la. Sinto que estou no meio de uma
caçada, espreitando um cervo para que não se assuste e fuja antes
de capturá-lo.
Layla me vê, dois metros atrás, faço sinal para que não diga
nada, então ela sorri de lado, confidencia algo à Catarina e some no
meio da multidão.
Escrutino minha prometida, as pernas expostas de forma
indecente, o tecido do vestido parece compor sua pele, deixa
evidente cada curva, entrância e me faz pensar se ela usa
realmente uma calcinha.
Suas costas, a pele macia e quente, sinto a boca encher
d’água ao lembrar todos os lugares que ela escorregou e se deliciou
em seu corpo. Por impulso, avanço, até colar meu corpo no seu e
sussurrar em seu ouvido sobre estar perdida.
Ela gira no lugar, a vivacidade do olhar cravado em minha
escuridão, trazendo um pingo de luz que serve para alimentar e
aplacar a necessidade que rodeia essa ânsia enlouquecedora que
me causa.
— Perdida? Longe disso. Você está um pouco fora dos
planos, acredito eu. — Ela ergue uma sobrancelha e sorve um gole
da bebida.
— Estou exatamente onde deveria estar.
— Acho que nosso tio deixou claro que deve ir para Santos.
Como um bom cão adestrado, deveria obedecer.
— Sou dono das minhas ações, Catarina.
— Uma sorte, para poucos. Já eu, tenho que aproveitar a
escassa liberdade que me resta.
— Nosso casamento não precisa ser uma prisão.
— Não? Mudar minha vida por completo, me levar para
outro país e ainda tirar meu direito de comandar a fábrica que meus
pais ergueram, é um pouco restritivo. Não acha? — Engulo em
seco, sem ter uma resposta imediata.
— Vamos subir, precisamos conversar. — Seguro seu braço
e ela solavanca.
— Não toque em mim — seu riso de escárnio morre ao
proferir as palavras.
Ela marcha liderando o caminho, só isso é motivo em meu
país para mostrar a má conduta de uma mulher, exagerado, eu sei,
por isso tenho dificuldades em compreender a aceitação de tio
Osman com o enlace.
Tenho uma vontade inexplicável de arrancar os olhos
cobiçosos alheios direcionados a ela. Na escada, a mulher faz
questão de jogar os quadris de forma provocante e quase lhe acerto
um tapa em reprimenda.
Ou desejo, já que meu pau resolveu despertar com o
maldito parque de diversões que sacoleja bem em sua frente.
Catarina está literalmente atiçando a selvageria que mantenho
enjaulada em um lugar bem escondido.
Aceno com a cabeça para o segurança que libera a porta
oculta e revela o escritório sóbrio, de iluminação parca e
particularmente tentador.
Meus olhos miram o mesmo lugar que a tive naquela noite,
as mãos espalmadas no vidro, o desejo ditando cada estocada
enlouquecedora em sua boceta sedenta.
— Aqui estamos, querido. O que temos para conversar que
ainda não tenha sido falado? — Ela gira no meio do lugar,
provocativa.
— Sente-se. — Aponto para o sofá em couro preto.
— Ainda não assinei nada, então não preciso obedecer. —
Encaro seus olhos desafiadores por um breve momento, e caminho
até o aparador com as bebidas.
Sirvo uma dose de uísque, algo raro no meu cotidiano, mas
extremamente necessário para a conversa que teremos. Preciso
encontrar alguma forma de conter minhas mãos para mim e não a
atacar feito um animal.
“Será possível que ela é tão imparcial assim à minha
presença?”
— Sempre soube quem você é e o que seremos no futuro.
— Isso eu já descobri e não foi por sua honestidade
exemplar.
— Na Turquia, temos o costume de acatar os mais velhos,
principalmente quando relacionado ao matrimônio. Ainda estava na
dúvida da ligação de tio Osman falando sobre você, mas achei ser
um sinal do destino para enfim me aproximar.
— Por conta da Sadik?
— Exato. No primeiro momento, quis avaliar vocês, entender
os motivos de sua mãe, que ainda não são claros para mim, mas
principalmente, queria conhecer minha prometida.
— Por isso, resolveu transar comigo no dia que nos
conhecemos? — Um sorriso debochado surge em seu lábio.
— Não. Aquilo era o que você queria e, como seu futuro
noivo, me achei no direito de cumprir o papel — rebato, uso a frieza
treinada de uma vida para manter o semblante imparcial.
— Seu desgraçado! — Ela avança um passo. — Eu tinha o
direito de escolher! Esse é um direito meu!
— Não discordo. Você tem o poder ainda, Catarina. Pode
dizer não.
— E perder a fábrica que meus pais tanto lutaram para
manter? Destruir a única coisa que restou dele? — ela desvia os
olhos para a parede de vidro.
O olhar, antes vivaz, agora está perdido e triste,
assemelhado ao meu quando pondero sobre meu passado. Avanço
um passo, mas paro, respeitando seu limite.
— Eu disse que usaria a Sadik Holding e investidores para
salvar a fábrica.
— Mas seu tio...
— Eu sou o chefe da Kartal e decido como investir nossos
fundos. Recebi um e-mail, sua sugestão foi acatada, fecharão a filial
no Mato Grosso e a outra passará por avaliação.
— Ah... — sua boca abre em choque.
— Você conquistou isso, Catarina. Estou orgulhoso. — O
momento de introspecção se esvai e dá lugar à sua postura altiva.
— Quer dizer que não vai me obrigar a casar com você para
salvar os negócios Mancini? Estou livre dessa corrente?
Cauteloso, avanço mais um passo, isso nos deixa a alguns
centímetros de distância, ela não recua, o que me faz soltar o ar,
aliviado.
— Quero fazer um acordo entre nós.
— Estou ouvindo.
— Venha para a Turquia comigo, conheça a cultura que foi
impedida de desfrutar, enxergue o mundo através dos meus olhos e
então decida se quer ou não esse enlace.
— Emir... — ela balbucia e eu arrisco mais um passo.
Sinto seu calor emanar, aqueles olhos expressivos
convidando minha escuridão para próximo, pronto para extinguir
qualquer racionalidade que deveria manter.
— Se você não gostar, se não se sentir pertencente, se
perceber que não tolera minha presença... eu a libero de qualquer
compromisso e salvo a Mancini. Tem minha palavra.
Uma última chance para minha alma descobrir um caminho
mais leve nesta vida.
Capítulo 31
“O vinagre amargo danifica apenas o seu recipiente.”
— Provérbio Turco.
Estou diante de um pequeno aglomerado na porta da matriz,
hoje a Mancini Tecidos receberá um certificado de produção
primária vegetal, por toda a manufatura orgânica realizada nas
filiais.
Escolhi um terno convencional preto, uso os cabelos presos
em um coque alto e pouca maquiagem. A imagem perfeita da
empreendedora séria e herdeira capacitada da fábrica, ao lado de
tio Osman e minha mãe, que parece tão feliz, acenando para os
fotógrafos, que tenho vontade de gritar.
Não nos falamos depois da sua ida para a filial, o buraco
que nos separa se tornou quase um abismo e só retornei para casa,
pois tenho trabalho demais para colocar em dia até a viagem.
Outra coisa que não me deu paz e é um grande indicativo
de que a insônia é culpa dele, o turco. Aceitei seu acordo, pelo
simples fato de confiar completamente que nunca me adaptarei aos
costumes da sua terra.
Apesar de carregar sangue turco nas veias, isso não
garante que vou aceitar tão fácil uma mudança radical de vida.
Construí planos muito sólidos no decorrer dos anos para jogar tudo
no lixo por conta de uma promessa de casamento.
Dou duas batidas no microfone colocado à minha frente,
algo bem exagerado, mas dona Elisandra fez questão desse circo e
eu resolvi poupar cada palavra dirigida a ela.
— Boa tarde a todos. Serei breve para que possamos
aproveitar do coquetel ofertado. Ninguém precisa passar tanto calor,
não é? — Sorrio e alguns deles acompanham a piada.
Especialmente hoje, o ar em São Paulo está abafado e
sufocante, um filete de suor escorre em minhas costas e agradeço
por usar um terno escuro e discreto.
— A Mancini vem se reinventando a cada década, forjada
no esforço sonhador de uma família que não tinha muito e investiu
cada gama de suor para construir esse império. Sempre à frente do
mercado e zelando pelo cuidado com as demandas ambientais,
hoje, recebemos o certificado que garante o uso absoluto de matéria
orgânica para a confecção dos tecidos. — Faço uma pausa quando
minha mãe puxa uma salva de palmas.
“Nossos esforços se manterão convictos na busca de
aprimoramentos, este certificado se junta a tantos outros selos já
adquiridos, provando a idoneidade, responsabilidade e cuidado que
a família Mancini dedica à sociedade.
Agradeço a presença de todos e aproveitem o coquetel.”
Uma salva de palmas ovaciona o momento, minha mãe se
aproxima, junto de tio Osman, e posamos para os flashes que
pipocam em nossa direção.
Emir não pôde estar presente, já que sua ida para Santos
era inadiável. Depois do nosso acordo selado, deixei o escritório
sem olhar para trás, apesar da raiva que ainda sinto, aquela maldita
fagulha me fez fraquejar.
— Senhorita Mancini, uma pergunta — um dos jornalistas
chama entre o grupo.
— Pois não.
— A vinda do senhor Osman Kartal tem algo a ver com o
fechamento recente da filial de Mato Grosso? — Levo mais tempo
que o seguro para articular uma resposta inteligente.
— Nosso tio veio visitar a família. Como é de conhecimento
público, sou viúva de Yussef Sadik — minha mãe toma à frente ao
transpassar a mão por minhas costas.
— E qual a justificativa para a visita de todos na fábrica de
Mato Grosso? A cooperativa também sofrerá consequências como a
filial? — Continuo atônita e minha mãe solta um riso baixo.
Conheço bem essa artimanha, que a faz vestir a máscara da
senhora Mancini, inalcançável e resoluta, no qual o mundo pode
desabar em torno de si, mas ainda a manterá de pé.
— Sem mais comentários. Aproveitem o coquetel. — Ela
nos guia para a saída do palanque improvisado.
— Como ele sabe disso? — sussurro quando estamos de
costas.
— Sorria e acene, querida. Esses abutres têm olhos em
todos os lugares — devolve, entredentes.
Por um minuto, sinto orgulho da firmeza dela, apesar de
acompanhar seu desempenho por toda uma vida, ainda tenho muito
para aprender até igualar essa soberania nata.
Ainda não foram divulgados os trâmites para o fechamento
da filial, a ação corre em sigilo junto a diretoria da matriz, não sei
como o homem descobriu tantos detalhes sobre nossa rotina.
Tio Osman nos segue com olhar curioso e analítico, o
homem age feito um animal à espreita, esperando que
escorreguemos só uma vez para que possa apanhar o flagra.
Quinze minutos de interação social foi o suficiente para me
levar de volta à fábrica, precisamente à sala de criação, onde deixei
os assistentes trabalhando sobre os esboços especulados.
Dona Elisandra provavelmente terá um chilique grande
quando perceber minha falta na recepção, mas essas convenções
sociais nunca foram meu forte, não há motivos para mudar agora.
Encontro a sala vazia, aqueles dois devem estar na área
aberta, fofocando com toda a equipe, o que é conveniente, já que
preciso de alguns minutos de silêncio para coordenar os
pensamentos.
— Yeğen, aqui está você. — Giro no lugar para encontrar tio
Osman. — Gostei da sua apresentação, apesar de não
compreender tudo.
— Foi só um discurso simplório, nada importante.
— Toda conquista é importante, yeğen. Precisa ser
comemorada.
— Não estou no clima de comemorações.
— A empresa será salva e ainda tem prestígio, qual o
motivo de não comemorar?
— É uma pergunta retórica? Ou o senhor simplesmente
ignora a situação como um todo? — soo cínica.
— Vocês ocidentais veem o casamento de forma muito
deturpada. Até parece que será abatida.
— É como me sinto. — Sinto uma pontada de raiva aflorar.
— Estou admirada de Emir, como chefe da família, acatar suas
decisões tão pacificamente.
— Emir é um homem crescido, dono de seus atos, viajado e
estudado, mas sabe o valor das palavras dos que o antecederam.
— Está dizendo que eu não sei? — Subo uma oitava, agora,
irritada.
— Acalme-se, yeğen. Eu não disse nada disso. Mas você
não conhece nada de nossos costumes.
— E a culpa disso é de vocês — acuso, mesmo que seu tom
permaneça calmo e inabalado.
— Há tanta raiva dentro de você, criança. Precisa se libertar
disso.
— Bom, eu estava muito bem antes do senhor ou Emir
chegarem.
— Acredito que a comodidade era conveniente, assim como
para Emir.
— O que quer dizer? — Cruzo os braços, intrigada.
— O passado foi responsável por mudar o ciclo de vida de
ambos, levei muito tempo, menina, para enxergar algumas coisas e,
esse é o motivo de hoje estar apto a aconselhar vocês.
— O erro independe de idade, senhor. — Tento soar branda,
minha resposta não é um ataque.
Na realidade, estou muito interessada no passado de Emir e
suas falas só incentivam ainda mais minha ida à Turquia.
— Tem toda razão, mas os já cometidos por esse velho
tendem a não se repetir mais e ainda posso alinhar o destino de
vocês.
— Do que está falando?
— No momento certo, saberá. Agora vou me retirar, sou um
velho cansado. — Nos encaramos por um longo tempo até que
aceno com a cabeça em despedida.
O grande quebra-cabeça que compõem a vinda de Emir se
tornou ainda maior, meias-verdades somadas a um jeito polido de
falar, só me instigam mais na direção dele.
Talvez essa seja a intenção do velho.
Preciso manter minha mente limpa de emoções, a raiva
tende a afunilar demais o que devo enxergar de fato.
Meu objetivo com o acordo que fizemos é garantir a
estabilidade da fábrica e aproveitar para encontrar algumas
respostas, até curiosidades sobre meu pai.
Emir é o menos importante dentro das prioridades, no fim
das contas, um casamento por conveniência é ridículo, além de
desobrigado devido ao acordo.
Aceitar uma vida de clausura está fora de qualquer
cogitação.
Pesco o celular da bolsa para conferir as horas, encaro a
notificação de mensagem que Emir enviou, pouco antes do meu
discurso e ignorei por completo para não perder o foco.
“Iyi şanslar.”
Um boa-sorte, puro e simples, mas que fez meu coração
palpitar tanto que cheguei a hiperventilar.
Não respondi, nem caberia resposta, apesar da sua oferta
de paz, ainda acho uma tolice que tenha feito o acordo se tem a
intenção de me levar ao altar.
Está claro que não vou ceder a essa situação ridícula, ser
ludibriada foi o suficiente para mostrar que não posso acreditar nas
palavras de Emir. Ainda cogito a possibilidade desse acordo ser
uma armadilha e só lá na Turquia ele revelar suas verdadeiras
intenções.
Um homem ambicioso que almeja comandar três impérios,
dominar negócios em diversas áreas, tornar seu sobrenome Kartal
ainda maior ou, quem sabe, terminar de bater o prego no caixão da
vergonha que somos para os Sadik.
— Quem de fato é você, Emir Kartal? — solto alto e
pensativa.
— Quem? — Olho para trás assustada e vejo Layla parada
na porta do escritório.
— O que faz aqui?
— Tentei chegar mais cedo, mas meu pai me fez reconferir
uma petição que já estava certa, só para mostrar que ainda é o
chefe.
— Ai, amiga, sinto muito. — Abro os braços, pronta para
acolhê-la.
— O que tá fazendo? — Ela para alguns passos de me
alcançar. — Deixa de besteira e vamos beber.
— Você nunca consegue ser afetuosa, não é?
— Nem você. Ficou sentimental depois de noivar.
— Eu não estou noiva. — Rolo os olhos e recolho minha
bolsa.
— Uma questão de tempo. Você embarca quando?
— No final da semana Emir retorna e partimos
imediatamente.
— Sua mãe realmente não vai?
— Não. Disse que alguém precisa cuidar dos negócios,
principalmente com o fechamento da filial.
— Ótimo. Assim você terá mais oportunidades.
— De quê? — Encaro seu semblante com curiosidade.
— De viver o que foi impedida.
Antes que eu responda que a culpa é dos Sadik e Kartal,
Layla dispara para a porta alegando que está morta de fome e não
quer perder o tempo precioso longe do escritório do pai enfiada em
outro ambiente igual.
Capítulo 32
“Existem amores para serem vividos de perto e outros para
serem vividos de longe o diferencial está em sabermos reconhecer
qual é qual.”
— Dito Turco.
O maior complexo portuário da América Latina, composto
por terminais públicos e privados, com movimentação de cargas e
passageiros, faz alguns anos que consegui uma brecha e contatos
aqui.
A Kartal, conceituada no Oriente Médio e Europa, galga
cada vez mais espaço nas Américas, quando nos tornamos grandes
em Santos, foi a confirmação do renome da empresa.
Quando verifiquei a ficha da funcionária que tem mantido
contato com Haydar, automaticamente liguei com o problema de
carga em Istambul que Cemil mencionou.
Temo que seja algo maior que falta de documentação no
porto de Haydarpasa, a mesma empresa solicitou envio de dry
box[21] para a América, apesar de nosso navio ser um graneleiro.
A mulher é usada como uma peça dentro do jogo do meu
primo, já que ela é nova na empresa e trabalha nas documentações
de exportações deste cliente que teve problema na Europa.
Chego à área que o graneleiro passa pelos trâmites de
retirada dos fertilizantes. A equipe trabalha com afinco, já que a
carga sofreu dois dias de atraso para sair da origem.
— Bom dia, senhor Kartal.
— Bom dia, senhor Ramos. Como está o processo? —
Varro os olhos em torno, procurando sabe-se lá o quê.
— Tudo dentro do previsto. Aumentei a equipe para agilizar
a demanda e finalmente colocar essa carga fora do porto.
— Sei que estou exigindo muito e o erro é do nosso cliente,
mas se a carga não chegar no prazo estipulado, terei um problema
gigante.
— Sim, senhor, compreendo.
— Observou algo incomum no cargueiro? Fora do costume?
— Não existe uma forma sutil de averiguar as suspeitas.
— Por enquanto, tudo normal.
— Ótimo. Estarei no escritório, caso apareça algo, quero ser
informado imediatamente.
— Sim, senhor.
Entro no carro e dirijo até a base da Kartal, são poucos
quilômetros de distância, mas caminhar pelo porto, o sol a pino e o
terno três peças escuro que escolhi para hoje, não são uma boa
combinação.
Minha mente gira dentro das possibilidades do que Haydar
tenha feito. Nada aparece no sistema da Kartal, o hacker não
conseguiu interceptar nenhuma movimentação, nem ligação entre
eles.
Só gostaria de entender o real motivo de Haydar me
detestar tanto ao ponto de prejudicar a própria empresa. E o fato de
não poder investigar tudo às claras, ou terei que expor seu nome, dá
a impressão de que ele se aproveita da situação.
Em breve, estarei de volta a Istambul, após meses fora da
Turquia, de novo à frente dos negócios e poderei lidar com a
situação de Haydar olho no olho.
Pisco com lentidão ao pensar na loira impetuosa que estará
comigo em casa. Apesar de rodar o mundo, conhecer diversas
culturas, a Turquia sempre será meu lar e, espero, do fundo do
coração, que convença Catarina a ficar comigo.
Temos um turbilhão de coisas erradas que aconteceram,
antes mesmo de nos encontrarmos pela primeira vez, já que nossas
famílias erraram feio ao afastar tio Yussuf, mas pretendo consertar
todas elas e garantir um sorriso genuíno em seu rosto.
Seu silêncio após a mensagem que enviei só aumentou
ainda mais minha ansiedade que está difícil de conter.
Quem conhece a frieza de Emir Kartal estranharia me ver
em expectativa à espera de qualquer sinal de uma mulher. O único
relacionamento que estive foi tão distante que nem cheguei a tocá-
la, ao menos não como homem.
“Estou na sala ampla e exótica da casa dos meus futuros
sogros. Retornei de mais uma das viagens, cansado e necessitando
de um banho, mas tio Osman me fez prometer que viria aqui antes
mesmo de respirar o ar turco.
Faz algum tempo que a mãe de minha prometida saiu em
sua busca, cheguei de surpresa, ainda em dúvida se viria aqui ou
não. Achei melhor por liquidar a tarefa de uma vez antes do
descanso merecido.
O cheiro de laranjas frescas chama minha atenção na
direção da parede de muxarabi[22], que decora todo o lado oposto a
entrada e dá uma parca visão do maravilhoso jardim externo.
Vejo sua figura miúda caminhar vagarosa entre alguns
arbustos e canteiros, volto o olhar para o ambiente e, incerto,
obedeço ao meu instinto e sigo ao seu encontro.
Vestes largas e suaves, uma bata que vai até quase o pé,
sem marcar o corpo, calça pantalona no mesmo tom, hijab de
nuances mais fortes, um contraponto para a suavidade da roupa.
— Merhaba... — solto baixo, no entanto, não impede que ela
se assuste.
— Você... — Seus olhos grandes e expressivos, tingidos
com o contorno preto e marcante.
Ela é uma mulher linda, perfeita, os olhos correm para o
chão e sua postura endurece, típico comportamento esperado de
uma turca. Apesar de toda a beleza, ainda a acho apagada,
principalmente, depois que nossas famílias firmaram o
compromisso.
— Cheguei há pouco.
— Ficará de vez?
— Ainda não, tenho alguns negócios na Europa, mas estarei
livre na semana do casamento.
— Isso é bom... — Ela cruza os braços diante do corpo e
encara o céu.
Repito o gesto me dando conta de que a noite está linda e
estrelada, tão clara que a luz dos postes é desnecessária para
iluminar o ambiente.
— Não tinha reparado que a noite está tão linda.
— Gosto de caminhar no jardim à noite, o silêncio, a luz
azulada e emblemática do céu, a imensidão que abraça tudo em
volta. É reconfortante.
Passo tempo demais encarando o nada, processo suas
palavras e reúno coragem para fazer a pergunta que ronda minha
mente desde que fomos prometidos.
— Acha que seremos felizes? — Giro no lugar, pela primeira
vez em muito tempo, tenho uma visão clara e próxima da sua figura.
— A questão é se estamos dispostos a tal.
— O que quer dizer?
— O que é felicidade se não um momento ínfimo dentro de
um todo denso e confuso. Acho que não importa com quem
estamos, mas sim o que fazemos para melhorar nossa condição.
Finalmente seus olhos se voltam para mim, apesar do
diálogo, seu discurso parece muito mais uma reflexão particular do
que a tentativa de se fazer entender.
— Podemos trabalhar nisso juntos quando nos casarmos. —
É sincero meu desejo de tornar nossas vidas uma harmonia
aceitável.
Meus pais construíram um relacionamento sólido,
respeitável, harmonioso. Nunca os vi discutir, nem se
desentenderem. Um era a extensão do outro e é isso que almejo
com esse enlace.
— Para que tenhamos uma chance, senhor Kartal, é preciso
que os dois estejam presentes. Não só fisicamente.
Um tapa nada sutil na minha falha cometida. Meses
comprometidos e esta é a quinta vez que nos vemos, a primeira que
estamos de fato sozinhos e não por um pedido meu, mas a
oportunidade acontecida.”
Acredito que aquela noite foi a única vez que tivemos uma
conversa sincera. Em meu papel como o noivo, deveria ter me
dedicado muito mais, sei disso, mas optei por fugir, de novo.
Se ao menos eu tivesse a ideia de que aquela seria a última
vez que nos falávamos, teria a chance de fazer diferente. Ou não.
Na tentativa egoísta de blindar minhas emoções e não sofrer
mais, rejeitei a mulher que deveria proteger, aquela conversa foi
claramente um pedido de atenção e cuidado, mas preferi elevar a
importância das minhas feridas ao invés das suas.
Chego ao escritório com uma demanda grande de serviço,
apesar da equipe competente que trabalha aqui, quando o chefe do
chefe está presente, todas as demandas se tornam de seu
interesse.
Retiro o paletó e o dispenso em uma poltrona no canto, a
secretária serve um çay, como de costume, arregaço as mangas da
camisa e tomo meu lugar.
O trabalho sempre foi a válvula de escape perfeita para
resguardar qualquer emoção à margem de sair. Funcionou muito
bem, ao menos até conhecer a brasileira.
Ela é o único gatilho que ainda não sei como contornar e
fazer a racionalidade funcionar. Nosso acordo selado onde tudo
começou só me faz hiperventilar ainda mais.
Pareço um garoto ansioso por um presente que há muito
espera e ainda não teve a chance de obter.
Já cogitei a hipótese de reunir alguns colegas, ir a uma
boate com serviços discretos, experimentar algo novo, só para
aplacar a quase obsessão que sinto em relação à Catarina.
No entanto, trair minha prometida e, principalmente, meus
sentimentos, não é um preço que estou disposto a pagar. Sexo por
sexo foi tudo que tive até hoje, já conheço todo o enredo de diversas
formas, não vai aplacar um terço da chama que culmina aqui dentro.
É ela. Tem que ser ela.
Irreverente, desbocada, escandalosa e até fora de mão,
muitas vezes, mas esse temperamento impetuoso é que me faz
caminhar ainda mais em sua direção, pronto para atiçar ou aplacar,
seja qual for sua demanda.
Tarde da noite entrei no quarto de hotel, joguei meu paletó
na cama e me despi a caminho do chuveiro. Estou exaurido de tanto
trabalhar, ao menos o cansaço me garante uma noite de sono
completa.
Quando deito a cabeça no travesseiro, pronto para me
entregar aos sonhos, ouço o celular apitar com uma mensagem,
uma rápida olhada joga meu estado fatigado para longe.
Um sorriso inevitável surge em meus lábios quando o
coração começa a bater cada vez mais rápido. As pálpebras
despertas me fazem ler e reler a curta mensagem, sem qualquer
significado evidente, mas que muito quer dizer só pelo fato de ser
enviada.
“Deu tudo certo hoje.”
Ela ainda não sabe, mas minha intenção é tornar todos os
dias, a partir de hoje, os mais dignos, perfeitos e felizes de sua vida.
Capítulo 33
"Caçado e caçador confiam em Deus."
— Provérbio Turco.
A semana seguiu intensa com os preparativos da viagem,
que somado à necessidade de deixar meu trabalho em ordem, só
ajudou a sobrecarregar cada hora do meu dia.
Infelizmente, não consegui convencer Layla de viajar
comigo, as exigências de seu pai com a empresa foi a desculpa
perfeita para escapulir da tarefa de me acompanhar.
Encaro a mala ao meu lado, na área vip do aeroporto, onde
aguardamos para o embarque no jato da empresa Kartal, tive um
cuidado redobrado ao escolher cada peça que levaria para a
Turquia.
A vontade de montar meus looks com croppeds e saias
curtas foi tentadora demais, mas não quero afrontar a cultura de um
país, eu sou a intrusa, mesmo carregando o sangue de lá.
Calças mais folgadas, camisões variados, vestidos e saias
compridos, lenços de vários tamanhos e cores, tentei manter uma
linha comfy, pelo uso de tecidos mais confortáveis, tamanhos
oversize, misturado a boho que são peças mais leves, tecidos
naturais e itens feitos à mão.
Tio Osman está sentado ao meu lado, ocupado com um
jornal internacional nas mãos, enquanto eu tamborilo a ponta dos
dedos sobre a maciez da calça pantalona que escolhi para viajar.
— Acalme seu coração, ele já está chegando. — Tiro os
olhos da entrada do reservado e miro o senhor. — Você está tão
agitada que está me deixando também.
— Isso não tem a ver com Emir. É só ansiedade por voar.
— Claro que é.
O homem mantém a atenção no jornal, desdenhoso com a
mentira contada, já que a verdade é difícil demais de explicar.
Depois da mensagem enviada, fiquei me remoendo por
todos esses dias por dar uma brecha equivocada às suas intenções.
Ponderei entre ser cordial ou não e até onde seria má interpretada.
Enviei a bendita mensagem e seu silêncio incomodou muito
mais do que deveria.
É um jogo e eu preciso lembrar que Emir está apostando em
sua vitória.
Meus olhos são puxados em direção à porta mais uma vez,
não por querer averiguar sua chegada, mas sim por ser despertada,
com um arrepio que percorreu da nuca até a espinha, com o
magnetismo que ele exerce.
Vestido em um jeans escuro e elegante, camisa preta por
dentro da calça, dobrada os punhos até o meio do antebraço, óculos
escuros e uma pequena mala na mão.

— Günaydin[23] — ele cumprimenta tio Osman, que levanta


para trocar beijos nas bochechas e abraços.
— Já não era sem tempo, meu filho. O que aconteceu?
— Amo o Brasil, tio, mas é irritante o trânsito que peguei ao
chegar de Santos.
— Que bom que chegou a tempo.
— Bom dia, Catarina. — Ergo os olhos em sua direção e ele
estampa um sorriso convidativo.
“Maldito turco lindo.”
— Bom dia — respondo sucinta ao desviar os olhos.
— Com licença — encaramos uma funcionária que se
aproxima —, o jato está liberado, só preciso da documentação de
vocês para embarque.
Abro minha bolsa e pesco o passaporte com meus
documentos e o termo de dupla cidadania. Pela primeira vez, terei
meu passaporte carimbado com minha origem paterna e não posso
esconder a emoção que me causa.
Abro a carteira e encaro a foto dos meus pais, há muitos
anos, eu estava presente, ainda invisível na barriga da minha mãe.
Foi tirada no dia em que desembarcaram no Brasil, o sorriso que
nunca mais vi nos lábios dela e um orgulho infindável nos olhos
dele.
— Você se parece muito com sua mãe. — Fecho a carteira
de imediato ao encarar a figura de Emir tão próxima de mim.
— Sim. É o que dizem.
— Você está particularmente sucinta hoje.
— Não existem motivos para tagarelar.
— Achei que estivesse disposta a cumprir nosso acordo.
— Estou aqui, não estou? — O encaro com desafio.
— Sim, está.
— Então, não pode dizer que não estou disponível.
— Veremos isso em Istambul.
Engulo a resposta com uma lufada de ar quando tio Osman
se aproxima e troca algumas palavras com Emir em turco,
reservando a conversa e claramente me excluindo do assunto.
Vejo os dois debaterem e gesticularem, acredito que por um
momento se esquecem da minha presença, o senhor estala a língua
e abana a mão ao me olhar de soslaio e dizer algo que tenho
certeza de que se relaciona a mim.
A funcionária nos libera e conduz até a área de embarque,
tio Osman é o primeiro a entrar e se acomodar na primeira poltrona.
Sigo logo atrás e escolho a última, com Emir logo atrás de mim, que
tem a decência de ocupar o lugar ao lado do seu tio.
Serão dezesseis horas mofando neste cubículo, por sorte,
trouxe um remédio para me ajudar a relaxar. Longas viagens
sempre me deixam impaciente e tensa.
Peço uma garrafa de água para a comissária de bordo
assim que os procedimentos de segurança são revisados, tiro o
headfone da bolsa, conecto no celular e ligo uma playlist para
leitura.
Pesco meu e-reader e o ligo na página que parei de ler há
umas duas semanas. Com a loucura que minha vida se
transformou, não tive tempo e nem disposição de continuar a leitura
desse livro maravilhoso.
Chefe do Crime, da autora brasileira Márcia Lima, uma
trama intrincada, personagens fortes e destemidos, nada
convencionais, é verdade, mas extremamente tentador. Gostaria
muito de ser a raposinha da vida desse lobo mau.
Não sei dizer em que momento acontece, mas acordo com
uma coceira incômoda no nariz, esfrego o dorso, que não resolve,
então estalo a língua ao abrir os olhos em busca da garrafa de água
que deixei no suporte.
Por sorte, tapei a boca e abafei o grito assustado que
rompeu da garganta ao perceber a figura grande e altiva sentada ao
meu lado e em posse do meu leitor de livros.
— O que faz aqui? — sussurro como se escondêssemos um
segredo.
— Você realmente acha atraente um homem apontar uma
arma para uma desconhecida? — Encaro seu rosto confuso e miro
a página iluminada de sua leitura.
— É falta de educação mexer nas coisas dos outros. —
Tomo o aparelho das suas mãos.
— Estava largado na poltrona, achei que não tivesse
problema.
— Pois tem. Odeio que invadam minha privacidade, se não
percebeu ainda.
— E se eu fosse um mafioso caçando você? Espreitando a
escuridão do seu apartamento e te surpreender com um fio de
abajur no pescoço? — Abro a boca em choque.
— Bem... eu... isso é só nos livros.
— Pode ser... ou você gosta de ser subjugada na intimidade,
qalbi, e, confesso, estou muito ansioso para testar essa teoria.
“Deus, se pode me ouvir, agora é o momento de me
arrebatar.”
— Acho melhor você retomar seu lugar, senhor Kartal.
Tenho certeza de que tio Osman não aprova esse comportamento.
— Pigarreio para abrandar a rouquidão na voz.
— Tio Osman não entende uma palavra do que falamos. —
Ele inclina o tronco aproximando ainda mais de mim.
Meu coração dispara, os olhos escorregam, sorrateiros, até
sua boca delineada pela barba espessa que é tão convidativa. Volto
a mirar seus olhos e o humor provocador me faz recobrar a razão.
— Isso não importa. Eu não quero — soo o mais firme que
consigo.
— Claro que não quer. — O sorriso aumenta de um lado da
boca e, pela primeira vez na vida, sinto uma vontade súbita de socar
a cara de um homem.
Solto uma bufada em meio a um xingamento ininteligível.
Fomentar essa provocação só nos levaria ainda mais para o
caminho contrário ao que pretendo seguir.
— Eu vou dormir, se quiser continuar a leitura, fique à
vontade. — Solto o e-reader sobre seu colo, viro o corpo para a
janela, que mantenho fechada com o pânico de encarar a vista.
Uma coisa é saber que estou a quilômetros do chão, outra é
ver com meus próprios olhos que uma carcaça de ferro é sustentada
por nada menos que ar.
Volto o fone, que havia saído da cabeça, no lugar, aumento
o volume e conto de cem a zero, na tentativa de apagar, mais uma
vez. Nem sei quantas horas se passaram, mas tenho certeza de que
ainda falta um bocado para desembarcar em solo turco.
Desta vez, o sono demora a chegar, então transito entre
momentos passados e sonhos distantes. Uma criança feliz e alegre
que brinca com seu pai, uma mulher chorando sobre um caixão
fechado e um quarto grande, enfeitado, cheio de brinquedos, porém
tomado de solidão.
Resmungo em protesto, então vejo um homem grande e
forte, em cima de um cavalo preto, a pelagem brilha contra o sol
escaldante. Suas roupas são próprias para enfrentar o deserto, usa
um turbante que tapa seu rosto.
Corro em sua direção, não estamos distantes, posso ver
cada detalhe da sua figura, consigo enxergar aquelas gemas
escuras e profundas, que clamam por mim cada vez que o olho.
Grito seu nome e estico a mão, pronta para alcançá-lo, no
entanto, ele move a rédea para o lado e dispara, longe demais para
que eu possa segui-lo. Só então olho para os lados e me vejo
cercada das areias do deserto, em movimento, sopradas por um
vento forte, sou engolfada por uma tempestade.
Uso o antebraço para tapar o rosto e caminho em frente, na
esperança de sair daquele mar caótico de poeira incômoda, mal
consigo enxergar além de um palmo, até que um ponto iluminado
chama a atenção.
Uma flor, linda e delicada, não parece se afetar com os
eventos naturais, sua cor rosada vibra e me chama para mais perto.
Caminho a passos determinados até abaixar diante dela e tudo em
volta parar.
Um relinchar me faz olhar para cima, a tempestade se foi e
estou diante do garanhão que carrega Emir. Suas gemas me
engolfam e eu sorrio, feliz por me sentir em casa, finalmente.
Capítulo 34
“Pelo amor de uma rosa, o jardineiro é servo de mil
espinhos.”
— Provérbio Turco.
Eu teria ficado ao seu lado, velando o sono profundo ao qual
se entregou não muito tempo depois de virar em direção à janela.
Fui ignorado por minha prometida, isso deveria, no mínimo, me
ofender, mas só fez o sorriso idiota em meu rosto aumentar.
— Emir! — O tom autoritário de tio Osman me faz levantar.
Tenho certeza de que quer retomar a conversa que
começamos diante de Catarina, ainda no aeroporto, que ele teve o
cuidado de interromper, mesmo ela não entendendo uma palavra
que fosse.
— O que precisa, tio? — Ocupo a poltrona ao seu lado.
— Ainda não me disse o que resolveu em Santos.
— Negócios, tio. O senhor bem sabe que precisamos
manter o olho aberto para que tudo corra bem.
— Está mentindo. Cemil estava preocupado quando deixei a
Turquia, disse que te colocou a par do ocorrido. O que aconteceu?
Exijo saber — o senhor brada como fazia quando eu era
adolescente e aprontava alguma traquinagem com meus primos.
— Um erro de documentação no graneleiro. Cemil
identificou um dry box registrado na carga. Só isso.
— Mas nosso graneleiro não faz transporte misto. Como
isso aconteceu?
— Provavelmente, alguma falha burocrática, que irei
resolver assim que desembarcarmos.
— Uma carga não sai do porto sem conferência rigorosa,
Emir. Não tem como despachar dez dúzias de romãs da Turquia e
chegarem nove no Brasil. — Ele usa um exemplo bobo para mostrar
que não engoliu minha justificativa.
— Só teremos respostas quando chegarmos em casa, até
lá, trabalho com suposições.
— Se houve um desvio, alguém grande, do lado de dentro,
que o fez.
— É uma possibilidade. — Esfrego a palma direita por todo
o rosto, cansado e no limite.
Passei a semana inteira debruçado sobre a investigação da
carga desaparecida, o hacker continua monitorando o sistema da
Kartal, assim como as câmeras, não conseguindo nada de novo.
Os encontros com a funcionária cessaram depois do envio
da carga ao Brasil, provavelmente Haydar a dispensou, já que não
tem mais serventia alguma.
Meu primo e eu temos desavenças desde sempre, um
histórico muito conhecido por toda a família, tio Osman já findou
inúmeras discussões, isso torna muito difícil explanar qualquer
desconfiança que eu tenha em relação a Haydar.
É complicado para qualquer um entender minha
imparcialidade na situação, imagina para o pai do suposto acusado?
— Assim que sua prometida estiver acomodada em casa,
marque uma reunião com Cemil e Haydar. Discutiremos isso em
família.
— Sim, senhor — concordo, mais cansado do que
imaginava.
Retorno para a poltrona do outro lado do jato que ocupo,
não por querer me afastar de tio Osman, mas para monitorar
Catarina, que ainda dorme tranquila.
Ainda teremos longas doze horas de voo pela frente, preciso
revisar documentos da Sadik, mantenho um representante à frente
da empresa, mas monitoro todo o andamento.
Solicitei, logo após a reunião na filial da Mancini, um
levantamento de fundos e investimentos para aplicar na matriz. Kant
respondeu meu e-mail para um encontro na Europa, quero levar
Catarina comigo, como representante da fábrica.
Meu tio ainda não faz ideia de que a Kartal não
disponibilizará um recurso que seja para a Mancini. Com tudo que
tem acontecido e a forma estranha de lidar com essa aproximação
da família, prefiro agir com cuidado e cautela.
Abro o notebook sobre a mesa embutida para ler os
diversos relatórios enviados pela holding, limpo a mente do
emaranhado de problemas que me cercam e me concentro.
Não sei quanto tempo se passa ao certo, mas sou
interrompido pela comissária de bordo que avisa sobre a refeição
que será servida, quando ela tenta caminhar até Catarina, a impeço,
e aviso que eu mesma lidarei com minha prometida.
Recolho tudo de qualquer jeito, tomo o lugar vago ao seu
lado, ela ainda dorme na mesma posição que a deixei e isso irá
garantir uma bela dor no pescoço e lombar.
— Emir... volta... — Ouço seu sussurro e arregalo os olhos.
— Qalbi, está sonhando comigo? — É impossível segurar o
sorriso presunçoso que surge junto com o ardor no peito.
Ela gira o corpo, devagar, ergue a cabeça piscando diversas
vezes e ao encontrar meu rosto, torna a desabar no encosto e bufa.
— Quanto tempo até chegarmos? — sua voz grossa
questiona baixo.
— Algumas horas. Irão servir a refeição. Sugiro que
desperte, lave o rosto no banheiro.
— Você não manda em mim. — Ela senta devagar, parece
uma criança impertinente.
— De fato. Por isso sugeri, mas se quer manter um bafo de
leão em seu palato, fique à vontade.
— Eu não... — ela quase grita, mas cobre a boca em
seguida. — Não tenho bafo — determina, os olhos afunilados em
minha direção.
— Bom, ainda não tive a chance de tirar a prova.
Ela solta um grunhido misturado a um xingamento, é
engraçado a ponto de uma gargalhada escapar sem que eu queira e
tio Osman olhar sobre a poltrona em nossa direção.
Catarina levanta de súbito, pega sua bolsa, com a mão
ainda protegendo a boca, solta um pedido de licença apertado e
atravessa na minha frente.
Continuo da mesma forma, uma perna dobrada sobre o
joelho, engancho os dedos sobre a barriga e a observo. Ela foi
respeitosa em sua escolha de roupas, apesar de manter seu toque
moderno, nenhuma das peças marca seu corpo, o que dá mais
espaço para minha imaginação pervertida.
Ajeito a postura na poltrona, visto a máscara da seriedade e
ignoro todas as lembranças íntimas para um momento mais
oportuno.
Ao retornar, Catarina demonstra menos irritação, toma seu
lugar e baixa o suporte para aguardar a comida.
— Mantenha a mente aberta para experimentar.
— O que quer dizer? — A comissária de bordo para o
carrinho ao nosso lado, auxilio ao aceitar os pratos e repassando
um para Catarina.
— A cozinha turca é rica em especiarias e temperos
marcantes, além de comermos muito cordeiro. Algo menos
apreciado no Brasil.
— Já comi cordeiro.
— Não da forma turca. Isso é kofte, um misto de carne de
boi e cordeiro, grelhados com especiarias e temperos para carne. É
forte, mas muito saboroso. A salada tem molho de iogurte e hortelã,
vai refrescar seu paladar.
Observo Catarina mirar o prato, cautelosa, fecha os olhos ao
inspirar o cheiro convidativo, desembala os talheres e corta um
pedaço da carne. Assisto, fascinado, enquanto ela ingere uma
porção e mastiga devagar.
— É bom, tem que concordar — incentivo ao provar um
pouco do meu.
— Sim... — Ela fecha a mão em punho em frente à boca
enquanto mastiga. — Bem diferente da comida brasileira.
— Aqui. — Corto um pedaço do cordeiro e mergulho no
molho da salada. — Experimente assim. — Faço uma concha com a
mão, abaixo do garfo cheio de comida e direciono para ela.
— Espere, eu... — Não dou tempo de recusar e enfio o garfo
na sua boca que aperta os lábios e fecha os olhos no mesmo
momento.
Ela saboreia a explosão de intensidade, o tempero forte,
contrastado com o frescor do molho, sua língua passa do lado de
fora, limpando o resquício nos lábios e quando seus olhos me fitam,
sou desarmado.
Nós nos encaramos por tempo demais, meu instinto grita,
implorando por mais contato, por sentir toda aquela energia que
emana do seu corpo, consumir sua boca em um beijo que nos tire
da posição que ocupamos hoje.
Dois seres resguardados pelo medo de se entregar e perder
a segurança que viveu até aqui.
— É muito bom. — Ela engole e exala o ar que prendia nos
pulmões.
Volto a mirar meu prato, certo de que revelei todas as
minhas intenções nos últimos segundos, então busco recuperar o
controle e agir com a cautela que me foi ensinada.
— Terá oportunidade de experimentar tudo que a Turquia
oferece. Você vai gostar.
— Assim espero.
Pode ser só uma impressão, ou talvez o sonho tolo de um
pobre iludido, mas senti, a gama de esperança que proferi, no tom
de Catarina.
Começamos errado e isso me faz sentir o amargor do
arrependimento toda vez que reflito um pouco mais. No entanto,
essa viagem é a oportunidade de recomeçar, de mostrar o outro
lado e deixá-la entrar onde ninguém mais habitou.
Apesar de sentir o dever de fazer diferente gritar em minhas
veias, sinto que com Catarina vai além. Realmente quero que ela
conheça minha vida, meus desejos, anseios, o que move minha
determinação, até minhas dores.
Muitas dessas aflições já vi refletidas em seus olhos, somos
semelhantes, compartilhamos algo profundo, que palavras ainda
não foram capazes de transmitir.
Um homem que sempre agiu com a racionalidade treinada,
hoje se vê divagando em uma refeição simples sobre sentimentos
arraigados.
— Sempre quis conhecer a Capadócia — ela solta, me
tirando dos devaneios que afundei.
— É linda.
— Pode me levar até lá? — Giro a cabeça na sua direção,
sinto meus lábios erguerem de lado, discretos.
— Eu posso te levar até o fim do mundo, se for de sua
vontade, Catarina. — Ela tenta segurar um sorriso e falha por
completo.
— Por enquanto, até a Capadócia é o suficiente. — Aceno
com a cabeça e volto a atenção ao prato.
Espero realmente que seja o suficiente para mantê-la perto
de mim. A cultura será um choque muito grande de realidade,
apesar de não manter tanto conservadorismo, ainda há hábitos
muito enraizados que estão longe de afrouxarem as rédeas.
Só preciso que, caso me aceite como seu prometido, saiba
que nosso lar será o bálsamo e conforto em qualquer lugar que
escolhermos para viver.
Capítulo 35
“Uma pessoa excessivamente protetora sempre tem
infortúnios.”
— Provérbio Turco.
Emir parece outro homem quando começa a falar sobre a
Capadócia, Istambul, Ancara e outra cidade que não consegui
gravar o nome.
Estamos a caminho de Istambul, que não é o lar oficial da
família, já que residem em Ancara, onde fica a matriz.
Um problema com cargas entregues nos fez desviar o
destino, ficaremos poucos dias na cidade, mas Emir prometeu que
me mostrará, pessoalmente, alguns lugares interessantes.
Não admiti, mas no fundo acho vantajoso chegar à Turquia
como uma estrangeira, sem o olhar crítico da família, que deve ter
ciência da vinda de uma suposta prometida.
Terei tempo de me habituar a alguns costumes, como se
fosse um laboratório, para enfrentar todos no momento certo.
Apesar da confiança de que voltarei para o Brasil sozinha,
solteira e com a solução dos problemas financeiros da Mancini em
mãos, não quero soar desagradável aos olhos de ninguém. Nem de
Emir.
Logo após a refeição, meu prometido — ainda acho muito
engraçado esse termo —, retornou para seu lugar, pegou alguns
papéis e ligou o notebook, se concentrando em alguma tarefa.
Eu aproveitei que estava desperta o suficiente para retomar
a leitura do livro e ignorar por completo o alvoroço que é constante
desde que embarcamos.
Posso até fingir que tudo não passa da ansiedade por voar e
tudo mais, no entanto, no fundo, sei que o turco tem grande parcela
no misto de sentimentos que carrego.
Raiva por ser enganada, mágoa por me fazer imaginar algo
diferente, um tanto humilhada pela moeda de troca que represento,
mas ao mesmo tempo, expectativa sobre tudo que oferece, uma
escolha sobre meu destino e a vontade de realmente conhecer a
terra que me foi proibida antes mesmo de nascer.
O restante da viagem foi silencioso, consegui me concentrar
no livro e esquecer por algumas horas tudo que está em jogo nesta
peregrinação.
Desembarcamos na Turquia de manhã, estou exausta, no
limite das minhas condições físicas e psicológicas, um carro preto
grande nos aguarda e rapidamente embarcamos.
Tio Osman à frente, Emir e eu em lados opostos do banco,
distantes o bastante para eu estranhar.
— Bem-vinda ao ponto de encontro entre o Ocidente e o
Oriente, yeğen — tio Osman chama minha atenção. — De um lado
Ásia, do outro Europa, banhados por dois mares. — Seu tom
orgulhoso faz minha curiosidade aumentar. — Tenho certeza de que
Emir será um ótimo guia turístico pelos dias que ficaremos aqui.
— Farei o meu melhor, tio. — Encaro Emir de soslaio que
mantém o olhar para fora da janela, um pouco disperso.
Escorrego a mão até seu lado e toco seus dedos, que se
retraem e sua cabeça gira, assustada, em minha direção.
Realmente estava longe, perdido em algum pensamento distante.
— Está tudo bem? — sibilo e ele acena uma vez com a
cabeça e retorna à atenção para a janela fumê.
Tenho vontade de me aproximar, questionar por que seu
humor mudou tanto, o que o tornou tão introspectivo de repente,
mas seguro a intenção. Estou aqui para cumprir um acordo, nada
mais, só preciso manter a linha receptiva, colher informações
necessárias até a minha volta ao Brasil.
Observo através do vidro um mundo de cores, pessoas,
ruas, placas e anúncios que não tenho ideia do que querem dizer, já
que estão em turco. Imaginei que veria algo muito diferente,
pessoas vestidas de maneira mais tradicional, mas não.
Existe uma parcela que se atenta às túnicas masculinas e
mulheres com os cabelos cobertos, mas fora isso, nada tão
contrário a uma grande metrópole.
— Estamos em Sisli, lado europeu, antigamente uma área
de caça, hoje considerado o epicentro da moda, contemporâneo e
bastante comercial, apesar de ainda dispor de muitas residências.
— Acho que vou gostar daqui.
— Tenho certeza de que vai. — Emir continua distante,
apesar de disposto a me situar da nossa localização.
— Temos um apartamento aqui, apesar do escritório ficar do
lado asiático de Istambul, próximo ao porto de Haydarpasa.
— E por que se manter do outro lado do mar? — questiono,
intrigada.
— As mulheres, yeğen. Elas decidiram o lugar há muitos
anos. — Abro a boca espantada, alternando o olhar entre Emir e tio
Osman. — Pode parecer uma cultura dominante, Catarina, mas
valorizamos muito a opinião de nossas mulheres.
Torno a olhar pela janela, várias palavras rudes para rebater
seu comentário vêm à ponta da língua, mas nenhuma delas valem a
pena ser proferidas.
Discutir costumes e cultura é pura burrice, ou você está
aberto a conhecer algo diferente do seu habitual ou é melhor nem
se atrever.
O carro diminui a velocidade e entramos em uma portaria
grande, bonita e elegante. Busco olhar para cima, através do vidro e
não enxergo o limite da torre.
Quando entro no apartamento fico encantada com a
elegância, modernidade e sobriedade do lugar. Todo decorado em
tons claros de bege e cinza, um contraponto perfeito terroso, em
alguns detalhes, como, por exemplo, peças em cobre.
As paredes à frente cobertas por cortinas translúcidas, que
trazem total claridade ao lugar, sofás em tom cinza-claro, charmosos
e parecem confortáveis, dividindo espaço com uma mesa de jantar
relativamente grande, redonda, em mármore escuro.
— Tire os sapatos — Emir avisa em português e mantém o
tom baixo.
Encaro tio Osman, à frente, realizando a tarefa, um pequeno
suporte ao lado da entrada, que guarda alguns chinelos, na
realidade, parece pantufas, são de tecido acolchoado. Ele descalça
o sapato e as veste, caminhando para dentro do ambiente.
— A mulher que cuida daqui já deixou tudo pronto, temos
uma refeição quente nos aguardando assim que nos instalarmos. —
O homem esfrega as mãos.
Continuo mirando o suporte, muito parecido com o que
tínhamos na entrada de casa e que meu pai, por diversas vezes,
tirou e colocou seus calçados.
Tínhamos esse costume até ele morrer. Foi a primeira coisa
que minha mãe deu fim após o velório, disse que não precisávamos
respeitar uma cultura que nunca nos acolheu.
— Está tudo bem? — Emir toca meu braço e me tira da
lembrança que vivenciava.
— Sim.
— Nos vemos em uma hora — tio Osman continua falando
sem perceber nossa interação. — Aliás, Emir, você fica no quarto
aqui embaixo e Catarina ocupará a suíte ao lado da minha.
— Tio, isso é desnecessário — Emir protesta, incomodado.
— Não me importam os costumes brasileiros, enquanto
Catarina estiver aqui, viverá como uma turca em adaptação. — Ele
infla o peito, convicto.
— Não se preocupe, tio, não pretendo chegar um passo
mais próximo de Emir — declaro, direta e objetiva, só para ganhar
um olhar desafiador do meu prometido.
— É ótimo que concordemos com isso, yeğen. Agora, vão
se instalar e logo nos encontraremos para uma bela refeição.
O humor do homem parece ter mudado da água para o
vinho depois de chegarmos ao apartamento. Ele mesmo faz questão
de me acompanhar até o segundo andar e mostrar meu quarto, com
a decoração muito parecida da sala.
Cama grande, colcha elegante com desenhos em dourado,
a cortina cobre parte das janelas, um armário embutido, o branco
predomina o ambiente.
Fecho os olhos por um momento, inspiro o cheiro frutal
peculiar, familiarizada com as lembranças há muito escondidas da
minha memória. Coloco a bolsa sobre uma poltrona enxuta no
canto, ornamentada com um abajur de pé.
— O banheiro. — Corro até a porta à esquerda e agradeço
aos céus por ser um modelo ocidental.
Ninguém merece o tradicional banheiro turco, seria demais
lidar com aquilo todos os dias.
Minha mala chega ao quarto, jogo-a sobre a cama e
encontro o vestido perfeito para usar. Um modelo longo, boho,
verde-água, com pequenas flores em tons claros, de manga curta e
decote V, em nada ousado. A parte de baixo em evasê o torna leve
e delicado, o barrado é todo em caramelo, com os mesmos
desenhos de cima.
Tomo um banho demorado, lavando o cansaço das horas
naquele avião, aplico meu creme de romã e uma maquiagem
delicada. Coloco a roupa, com uma sandália baixa, confiro a bolsa,
documentos e o lenço para cobrir os cabelos.
Uma hora cravada, alguém bate à minha porta e quando
abro, não estou preparada para encarar a representação turca à
minha frente. Vestido em uma camisa de manga comprida em linho
bege, sem gola e com amarração frontal na parte de cima, uma
calça ocre ajustada, Emir parece o homem do deserto pronto para
uma aventura quente.
“E Deus sabe o esforço que tenho feito para não pensar nos
livros árabes que já li.”
— Pronta? — Sua cabeça tomba sutil para o lado quando
completa seu escrutínio por todo meu corpo.
Não vou verbalizar uma reprimenda, pois acabei de fazer a
mesma coisa.
— Sim. — Ele abre espaço para que eu caminhe à frente.
Sei que não é costume aqui a mulher andar na frente do
homem, até mesmo ao lado, o que me leva a crer que o maldito
turco só fez isso para poder conferir meu traseiro sem qualquer
testemunha.
Prevejo dias complicados pela frente, além do choque
cultural, preciso lembrar a todo momento do acordo e o quanto não
posso cair mais na teia perigosa que Emir tece constantemente.
— Pretende sair depois da refeição? — Ouço sua voz e paro
no alto das escadas.
— Sim. Não estou com sono e prefiro descansar a noite
para me adaptar ao jet lag.
— Irei lhe acompanhar.
— Por que é meu prometido e não posso sair sozinha? —
ironizo cada palavra.
— Sim, mas vai além. Quero lhe mostrar tudo através dos
meus olhos. Lembra-se?
A forma que ele me encara me faz engolir em seco e um
arrepio inquietante percorre minha espinha.
“Ele é só um meio para um fim, Catarina.”
Capítulo 36
“Paciência é a chave para o paraíso”
— Provérbio Turco
Quando alcançamos a sala, tio Osman ocupa seu lugar de
costume à mesa, Berna, quem cuida do apartamento, caprichou na
refeição, servindo um pouco de tudo que a Turquia oferece em
gastronomia.
É quase um banquete para um sultão, provavelmente, a
pedido de tio Osman, que avisou sobre a convidada que nos
acompanha do Brasil, foi hospitaleira e cuidadosa de colocar uma
diversidade de pratos para que Catarina possa experimentar.
— Sentem-se, vamos comer em paz — tio Osman oferece,
animado.
Se tem algo que melhora o humor de qualquer turco é uma
boa refeição em casa. Apesar de não virmos aqui com tanta
frequência, temos o cuidado de manter pessoas próximas que
conhecem nossos gostos.
Assim como fiz no Brasil, com Eda, Berna é uma parente
distante em algum ponto da gigantesca árvore genealógica da Kartal
e Sadik, que mora em Istambul e sua família trabalha para nós.
Já com Eda, que foi para o Brasil com o marido há alguns
anos, quando ramifiquei os negócios Kartal naquele continente,
busquei por sua família para que pudesse trabalhar comigo.
— Teremos convidados? — Catarina arregala os olhos ao
tomar seu lugar à mesa.
O cheiro das especiarias e comida fresca me faz salivar,
ocupo o outro lado da mesa, ficando de frente para ela e ao lado de
tio Osman.
— Não. Acabamos de chegar de viagem, menina, nada de
visitas por hoje.
— Mas toda essa comida...
— Aconselho a pegar um pouco de tudo e em pequenas
porções, ou corre o risco de ofender tio Osman e, ainda mais,
Berna, que teve o cuidado de preparar essa variedade para sua
chegada.
— Eu nem estou com fome. — O jeito espantado de
Catarina é engraçado.
— Podem manter a conversa no idioma que eu entenda? —
tio Osman reclama ao servir uma porção de salada fresca, queijo de
ovelha e suas queridas dolmas de cordeiro.
— Só estou espantada com a variedade de comida.
— Experimente um pouco de tudo, vai gostar. — Ele
gesticula com a mão que segura uma dolma.
— Não conheço quase nada do que está aqui. — Ela encara
os pratos.
— Aqui é a salada de folhas escuras e azeitonas, as dolmas
são folhas de uva feitas no vapor, com recheios de cordeiro ou
vegetais. Inclui também especiarias e pasta de pimenta, então tome
cuidado. — Catarina presta atenção em cada detalhe do que
explico. — Queijo de ovelha, berinjelas assadas, pão pita e o tão
tradicional brochete de kebab com vegetais.
— Tudo parece muito bom. — Catarina demonstra um olhar
animado, encaro tio Osman que parece satisfeito.
— Então coma. Coma. — Ele aponta para os alimentos.
Repuxo os lábios de lado, lamento por Catarina que
enfrentará uma maratona alimentícia agora, caso não siga meu
conselho, duvido que levante da mesa quando a refeição encerrar.
Se tem algo que agrada um turco, além de comer, é
alimentar seu convidado o tempo todo. Que os céus sejam
testemunha de que nossa casa tratou bem um hóspede e o
alimentou o suficiente.
Já a minha satisfação se resumiu em observar Catarina
imitar a mim e tio Osman, comendo com a mão os itens mais
sólidos, saboreando e degustando, enquanto separa no prato o que
agrada ou não seu paladar.
É tão natural o pensamento de normalidade que essa
ocasião pode se tornar, chega a ser uma esperança inquietante, que
bate contra o peito, a cilada perfeita para uma frustração.
Eu sei que essa trégua com Catarina só aconteceu para que
ela pudesse se afastar do Brasil, de sua mãe e se ligar com o lado
paterno. Suas intenções de aceitar nosso noivado são nulas, apesar
de toda a chama que crepita entre nós, duvido que ela baixe a
guarda.
— Não gostou da berinjela? — Aponto para seu prato.
— Nunca foi meu legume preferido.
— Existem milhares de receitas com ela, alguma você há de
se afeiçoar.
— Pode ser que eu simplesmente não queira.
— Claro. Um direito seu. As papilas gustativas tendem a
preferir o que é de costume, porém, quando desafiadas a algo novo,
sempre descobre uma parte oculta que ansiava por um sabor
diferente.
Óbvio que não estou falando de comida, assim como ela.
Quando propus o acordo, arrisquei tudo, ciente de que poderia
perder, o que para mim está tudo bem, mas não deixarei a luta
enquanto não extinguir qualquer esforço possível em minhas mãos.
— Em inglês — tio Osman chama nossa atenção, mais uma
vez.
— Só falávamos sobre berinjelas, tio — justifico.
— Ah... uma delícia. Amo berinjelas. O melhor moussaka já
feito foi por minha anne. — Catarina franze o cenho e ele explica: —
Mãe. — Então ele emenda em histórias da época em que era
criança e minha avó preparava seus pratos prediletos.
Sinto o celular vibrar no bolso, discretamente o pego e
confiro por baixo da mesa que é Cemil. Praguejo baixo sabendo da
bronca que estou prestes a tomar.
— Tio — interrompo seu discurso —, preciso atender essa
ligação.
— Estamos no meio de uma refeição, Emir. Onde está o
respeito com o alimento, com as pessoas que comem? — Ele
mostra um semblante sério. — Quem é?
— Cemil.
— Taman! Taman! — Ele acena com a mão. — Seja breve.
Levanto rapidamente da mesa e caminho em direção ao
escritório, não por Catarina, afinal, a conversa acontece em turco,
mas quero filtrar as informações que tio Osman pode captar.
O homem é uma raposa velha e esperta, deve saber até
mais coisas que eu, mas faz questão de testar minha honestidade
sempre que possível.
— Abi — solto assim que atendo. — Já estou em Istambul.
— Abi, ainda bem. Agendei uma reunião amanhã com o
cliente e uma antes com o pessoal responsável pelos trâmites
internos.
— Estarei na empresa no aguardo.
— Haydar está em Istambul. — Fecho os olhos por um
momento, pressiono o polegar e o dedo indicador sobre as
pálpebras.
— Imaginei que ele estaria em Ancara.
— Deveria, assim como foi passado, mas quando soube da
sua chegada em Istambul, disse que ficaria para receber você e o
baba.
— Eu... bok. Isso não deveria acontecer. Não agora.
— Ele não sabe das reuniões, abi, pode ficar tranquilo.
— Não é isso que me preocupa. — A imagem da loira vem à
minha mente.
— O que pode ser então? Quer que eu vá até Istambul?

— Lok[24]! Lok! Não é necessário. Nos vemos em uma


semana, em Ancara.
— Tudo bem, abi. — Cemil hesita, mas acaba perguntando:
— Baba resolveu o que pretendia no Brasil? Eu o achei ansioso e
animado demais nos dias que precederam a viagem.
— Sim. Parece que sim. — Dói meu peito ser evasivo, mas
ainda não estou pronto para a enxurrada de perguntas e
comentários do meu primo mais novo.
Melhor que descubra por si quando o momento chegar, até
lá pretendo já ter conquistado mais da afeição da minha prometida.
Retorno para a mesa com o olhar aguçado de tio Osman em
minha direção.
— O que Cemil queria? — ele questiona em turco.
— Só informar alguns procedimentos para amanhã na
empresa. Ele foi para Ancara ontem.
— Haydar está em Istambul, me admira ainda não ter
entrado por essa porta.
— Acredito que permitiu um fôlego antes de enfrentá-lo —
respondo, nada surpreso por ele saber o paradeiro do filho e
convenientemente esconder de mim.
— Precisa agir com cuidado e cautela, Emir. Vocês são
família.
— Eu sei bem disso, tio, mas parece que ele não.
— Podem manter a conversa no inglês? — Catarina
questiona, alternando seu olhar entre mim e tio Osman.
— Está certo, yeğen. Vamos manter a conversa da forma
que todos entendam.
Apesar do tom otimista, meu tio me direciona um último
olhar questionador antes de voltar a atenção para o seu prato. O
silêncio permeia o restante da refeição, quase pedi licença para me
retirar, mas não quis deixar Catarina desconfortável.
Quando estamos mais do que satisfeitos e Berna sorri
alegre ao servir o chá e constatar que nos derrubou pelo estômago,
tio Osman pede licença para descansar.
— Se forem sair, levem Berna.
— Tio... — tento argumentar.
— São assim que as coisas devem ser. Quando chegarmos
a Ancara, resolveremos os trâmites legais do compromisso de
vocês, então terão mais liberdades.
Ele sobe as escadas sem dar o direito de qualquer rebate,
por mais que vivamos os costumes de maneira mais relaxada,
quando se trata de casamentos, todos ficam nervosos, apressados
e cheios de regras.
— O que ele quer dizer? — Catarina me encara.
— Que para sairmos sozinhos, temos que assinar o termo
de compromisso.
— Assinar? Como assim? Nós temos um acordo, Emir...
— Eu sei e não falharei com minha palavra. Nossa cultura
ainda é muito rígida com o que se relaciona a compromisso,
Catarina. Como minha prometida, não podemos ficar sozinhos.
Estar sob o mesmo teto já é um risco e uma concessão que tio
Osman resolveu fazer.
— Eu não vim até a Turquia para me casar. — Ela fecha o
semblante, irredutível.
— Eu sei, mas ele não sabe. Para termos liberdade de sair
sozinhos, até viajar, teremos que seguir com os costumes, até o
noivado.
— Como é que é? — Ela abre a boca, em choque.
— É assim que as coisas funcionam aqui.
— Pois bem. Eu viajo sozinha. Pronto.
— É tão ruim assim ser atrelada a um compromisso
comigo? — A intenção era provocar, mas a nota de mágoa em
minha voz fica evidente.
— Ruim é ser escolhida como moeda de troca e enganada.
— Ela aponta o dedo, desafiadora. — Nem pense em me forçar a
nada, Emir, ou você vai se arrepender.
— Não somos inimigos, Catarina. — Engulo em seco.
Como ela não consegue ver em meus olhos a verdade
sobre o que digo? Quando nos conhecemos, minhas desconfianças
eram grandes, mas bastou um pouco de convívio para conhecer a
mulher por trás da couraça que exibe.
— Também não somos amigos. É isso. — Ela ajeita uma
mecha do cabelo atrás da orelha. — Estou cansada, não quero sair.
Ela passa por mim, apressada, o cheiro de romãs
acompanha seu rastro e quase sou puxado por ele em sua direção.
— Tempos difíceis, Emir... — solto, cansado. — Tempos
difíceis.
Capítulo 37
“Mil amigos são poucos; um inimigo é demais.”
— Provérbio Turco.
A vontade de turistar se perde por completo com a alegação
de tio Osman e seu cuidado exagerado com a honra da família. Sei
que ele não sabe do acordo entre Emir e eu, mas ainda é um pouco
demais querer colocar um contrato no meio desse arranjo bizarro.
Solto o corpo sobre a cama, exausta demais para ponderar
todas as vertentes do assunto, aceito o cansaço somado à refeição
farta que acabei de comer, para fechar os olhos e esquecer tudo.
“— Já vou — anuncio na porta do escritório de dona
Elisandra.
Mal trocamos uma palavra desde que tio Osman chegou
com as novidades do Oriente. Ela sequer se dignou a explicar o
motivo de vender sua filha, que treinou tão duramente para assumir
seu lugar e agora tira até o direito de escolher com quem passar o
resto da vida.
Minha mãe se tornou outra pessoa depois da morte do
papai, nunca mais vi um sorriso sincero em seus lábios, em datas
comemorativas estava sempre em algum evento social que
beneficiasse a fábrica, ou trancada em seu quarto.
— Que bom. Faça uma boa viagem, querida. Comporte-se
bem, mostre respeito com a cultura de seu pai. — Solto um riso
apertado que faz ela me encarar.
— É só isso? Agir feito uma cadela treinada para garantir o
investimento da fábrica?
— Estou garantindo seu futuro, Catarina. Deveria ser mais
grata.
— Grata? Você me vendeu para quem pagasse o preço
mais alto. Se aliou a quem nunca quis saber de nós.
— O que isso importa? — Ela levanta da mesa, alterada, e
apoia as pontas dos dedos sobre a madeira. — No fim das contas, a
empresa continuará em pé, o sonho de seu pai não morrerá e você
se casará com alguém que ele aprovaria.
— É disso que se trata, então! Honrar a memória de um
homem que nem ao menos expressou esse desejo.
— Sei que ele gostaria disso, Catarina. Qual o mal em
conhecer mais sua família daquele lado? Conviver com Emir fará
com que desenvolvam sentimentos e...
— Mãe! Pare com isso, por favor! — suplico, o nó se forma
em minha garganta e luto bravamente para não esmorecer em sua
frente. — Não crie um ideal romântico que só existe na sua cabeça.
Eu não sou você e Emir não é o papai.
Ela mantém o queixo erguido e percebo que sua postura
enrijece — a única coisa que mostra seu desconforto com o que
digo —, não vacila no olhar determinado e incisivo, tão característico
dela.
— Pelo contrário, Catarina. Estou sendo prática, assim
como a vida foi comigo e não estava preparada quando aconteceu.
A empresa vai mal e medidas emergenciais foram tomadas, mas
ainda reduzirá muito nossa potência e não temos em quem confiar
aqui. Ao menos, a Kartal será segura para os negócios e para você.
Eu não vou durar para sempre, você precisa dar continuidade a tudo
isso.
— E casamento é a solução que encontrou para mim?
— Tem uma opção melhor por agora? — Seu tom
provocador demonstra o quão retórica foi sua pergunta. — Foi o que
pensei.
Dona Elisandra retoma seu lugar, ignorando por completo
minha presença, uma nítida dispensa que acato no intuito de não
desabar bem ali.
Um meio para um fim, foi o que me tornei e é exatamente
como tratarei minha ida para a Turquia.”
Ergo o tronco da cama, assustada, puxo o ar para preencher
os pulmões que buscam desesperados por um fôlego, corro os
olhos para a porta do quarto que está aberta e Emir paira ali, sem
ação.
— O que você quer? — questiono ao deslizar para a beira
da cama e levantar.
— Vim convidá-la para um passeio... Você está bem? — O
cenho franzido, olhos atentos e curiosos.
— Estou. Só tive um sonho ruim.
— Sobre o quê? — Ele avança um passo, cauteloso.
— Nada importante. Onde pretende me levar?
— Conhecer um pouco da noite de Istambul, se estiver
disposta.
Olho de um lado para o outro, pronta para recusar mais
interação com o turco, que consegue despertar e aflorar meu lado
mais temperamental, mas depois da lembrança no sonho, não quero
ficar trancada no quarto sozinha.
— Aceito, mas vou trocar de roupa.
— Tudo bem. Te espero lá embaixo.
Antes de sair, Emir encara o ambiente, interessado, parece
querer desvendar algo oculto, como se um perigo estivesse à
espreita.
Um banho rápido para despertar, escolho uma calça preta
de pantalona com botões laterais, uma blusa mostarda de gola e
manga três quartos ajustada ao corpo e um par de tênis. Completo a
vestimenta com um blazer oversize, os cabelos em um coque alto e
bagunçado.
Despojado, moderno e nada ofensivo, sigo para a sala onde
Emir me aguarda. Ouço vozes acaloradas em outro idioma,
identifico o turco em uma delas, parecem discutir algo pela rapidez
que falam.
Chego à sala e ergo as sobrancelhas ao fitar o homem
controlado e alinhado que conheço segurando a lapela do casaco
de outro, com traços parecidos, talvez a mesma idade.
Tio Osman se coloca entre os dois, empurrando um para
cada lado, brada algumas palavras no idioma nativo e se cala ao
mirar meus olhos.
— Yeğen, aí está você.
— Tio... olá — respondo sucinta e o homem tenta sorrir.
— Este é Haydar, meu filho mais velho, seu primo também.
— Ele aponta para o homem que alinha o casaco no corpo.
Os olhos do homem parecem querer perfurar Emir e
quando, finalmente, os pousa em mim, um arrepio incômodo
percorre da nuca por toda a espinha. Uma brasa latente queima em
sua íris, um toque malicioso e bastante maldoso que o faz sorrir com
escárnio.

— Kuzen[25]! — a voz grossa do homem cumprimenta ao


abrir os braços e caminhar até mim.
Emir entra no meu campo de visão, seu tamanho bloqueia
toda a sala e impede que o rapaz chegue até mim.
— Ei. Deixe-me cumprimentar seu primo — falo em
português e recebo um olhar de advertência sobre o ombro.
— Não precisa disso — Emir responde sucinto e aperto os
olhos ao desviar do seu corpo e me colocar à frente.
— Muito prazer, Haydar, sou Catarina Mancini Sadik, filha de
Yussuf Sadik. — Estendo a mão em cumprimento.
Apesar de saber que não é o costume daqui, ainda acho
estranho não usar o jeito tradicional que conheço para ser cordial.
— Estou tão feliz de saber que meu priminho finalmente
encontrou uma noiva para chamar de sua. — Ele encara minha mão
antes de aceitar o cumprimento e, confesso, seu toque não é
confortável.
— Haydar — tio Osman solta em advertência, o que me faz
franzir o cenho.
— Bom, isso ainda não está definido. Emir e eu resolvemos
nos conhecer melhor antes de firmar qualquer compromisso. Não é?
— Tento soar o mais tranquila possível, mas o olhar assustado de
tio Osman não esconde sua opinião.
— Como assim? Emir? — o senhor chama a atenção do
turco ao meu lado.
— Depois conversamos, tio. Marquei um passeio com
Catarina.
— Uma pena não desfrutarmos de uma refeição, prima. Mas
teremos outra oportunidade.
— Com certeza. — Sorrio, educada.
— Berna! Vamos — Emir praticamente grita, outra ação que
nunca o vi fazer.
Ele lidera o caminho para a porta sem se importar com
despedidas. Sorrio e aceno para os dois que ficam, o mais velho me
devolve um sorriso cúmplice, mas o segundo só me encara, como
um felino à espreita da caça.
Logo a mulher simpática que nos recebeu se aproxima e
ambas caminhamos ao encalço de Emir, que sumiu porta afora.
Paramos próximo a uma marina, Emir permaneceu calado
por todo o caminho ao lado do motorista, Berna que me acompanha
no banco de trás também não disse qualquer coisa.
Minha cabeça fervilha com a cena que presenciei, nunca vi
o turco perder a linha, apesar de nos conhecermos pouco, sei bem
que não é comum ele sair do juízo dessa forma.
Acredito que os primos não se deem muito bem, preciso
saber mais, só tenho que escolher a melhor forma de abordar Emir
sem que pareça evidente. Qualquer informação sobre um ponto
fraco dele, pode ser muito favorável a mim.
— Por aqui. — Ele indica com a mão e, desta vez, me
espera.
Berta nos segue a uma distância respeitável atrás. Quem vê
sabe que nos acompanha e isso garante a tal honra que tio Osman
tanto se preocupa.
— Faremos um passeio de barco?
— Um cruzeiro de três horas, com jantar, show e a
paisagem do Bósforo e monumentos ribeirinhos.
— Você deveria abrir uma agência de viagens. — Ele sorri
de lado.
— Quem sabe a holding não invista em algo assim.
Somos guiados por um funcionário até a área aberta do
convés onde várias mesas estão dispostas, varais de luzes circulam
acima de nossas cabeças, um clima íntimo e muito agradável
permeia o lugar.
Emir puxa a cadeira para mim, que ocupo e enrugo o cenho
ao ver que é pequena o suficiente para dois lugares somente.
— Berna ficará em outra área. — Ergo as sobrancelhas.
— Tenho certeza de que tio Osman não aprova isso.
— Tio Osman não aprovaria muita coisa que já fizemos,
qalbi.
Desvio os olhos para o ambiente, cheio, a maioria turistas, o
inglês predomina as conversas. Fico feliz pela pouca normalidade
de uma viagem comum e turística, apesar de ansiar por ver algo, de
fato, através da sua perspectiva.
— Sei que não é o que você espera da viagem, mas
estaremos muito pouco tempo em Istambul. Gostaria que
aproveitasse o máximo.
— Contanto que você seja um guia melhor do que os
disponíveis por aqui, ficarei satisfeita.
Emir sorri de lado, enigmático, a cólera presente em sua
postura quando saímos do apartamento parece ter dissipado, ou
conseguiu controle suficiente para esconder de mim em suas gemas
profundas e escuras.
— Catarina... eu preciso confessar uma coisa...
Por um momento, meu coração falha, para logo em seguida
me fazer inspirar e relaxar à espera de ouvir o que lhe deixou
subitamente triste.
Capítulo 38
“Não há montanha sem neblina, assim como não há homem
de mérito sem calúnia.”
— Provérbio Turco
O mar azul e límpido de seus olhos é capaz de arrancar
qualquer informação de mim sem muito esforço, por isso, engulo
com dificuldade e organizo as palavras que irei soltar sem causar
ainda mais perguntas.
— Pode começar... — Ela sorri, na tentativa de dissipar a
energia densa que paira sobre mim.
— Há alguns anos, eu tive uma noiva. Ela se chamava Sevil.
— Sinto minha garganta se apertar, há tanto tempo que não
menciono seu nome, o gosto ruim cresce na boca evidenciando
minha indignidade em proferi-lo.
— Mesmo? Existiu uma prometida antes de mim? Uau! —
Apesar do gracejo nas palavras, Catarina chega a dilatar as pupilas,
interessada em tudo que estou disposto a compartilhar.
— Sim. Ela tinha vinte anos de idade, uma jovem quieta,
submissa aos costumes, deixou o mundo cedo demais, sem de fato
conhecê-lo.
— Emir... — Catarina estica a mão para tocar a minha, mas
eu recolho.
Nas poucas vezes que falei sobre esse assunto, a sensação
de sujeira e culpa invade meu sistema, não quero que se aproxime
desse lado que trabalho tanto para esconder do mundo.
— Nosso enlace foi firmado entre as famílias, a sua tem
negócios no ramo de joias preciosas, na época, o compromisso foi
anunciado em toda a Turquia.
— Eu sinto muito. Não digo que entendo sua dor, mas sei
que não é fácil perder alguém. — Seus olhos nublam com a tristeza
do luto que carrega.
— Haydar, ele era apaixonado por Sevil antes de seu pai
anunciar o acordo matrimonial. Nossa relação nunca foi boa, desde
adolescentes, depois disso tudo piorou muito. Brigamos feio quando
retornei à Turquia, uma das inúmeras viagens longas que fiz, para
concretizar o compromisso.
— Seu tio não sabia do amor dele por ela?
— Sabia, mas como herdeiro do império Kartal, era certo eu
desposar Sevil e não ele.
— Você aceitou isso, mesmo sabendo dos sentimentos dele.
— Catarina abre ainda mais os olhos, espantada.
— Sim. — Desvio a atenção para o mar ao nosso lado.
A água tranquila que destoa totalmente do turbilhão que
emerge cada vez mais dentro de mim. Escolhi este passeio, longe e
limitado, para que não pudesse fugir da conversa quando se
tornasse difícil até respirar.
— Você... gostava da garota? — Sua pergunta sai baixa,
corro os olhos de volta para ela, que parece preocupada com meus
sentimentos.
Difícil explicar uma situação assim, ainda mais quando fui
canalha o suficiente para negligenciar os sentimentos de todos
envolvidos, assim como eu fazia, julgava, arrogantemente, que
ninguém precisava alimentar emoções frágeis.
— A respeitava como minha prometida.
— Isso não responde à pergunta, Emir.
— Mas é a verdade. — Ela acena uma vez em
concordância.
Um silêncio desconfortável permeia a mesa, somos salvos
pelo garçom que se aproxima com a comida, luzes coloridas
iluminam o espaço destinado à pista de dança e um grupo o
preenche com suas roupas de estampas vivazes, cheias de fitas
vibrantes, típica do folclore turco.
— Uma apresentação de dança? — Catarina se anima com
a pista.
O assunto parece ter morrido por ora e, sinceramente,
agradeço, mesmo que pareça covarde, ainda não estou pronto para
revelar toda a minha participação fria no triste fim de Sevil.
— Sim. São ciganos que carregam a cultura do antigo
império. Hoje as apresentações se disseminaram em forma de
espetáculos, mas ainda carregam significado em cada movimento.
Ela assiste, fascinada, ao grupo sincronizado nas
coreografias, as luzes alternadas, destacando cada membro no
ápice de seu papel nos passos.
Os convidados são incentivados a bater palmas e interagir
com a apresentação, Catarina é uma das primeiras a se prontificar,
seu sorriso aumenta e por um breve momento esqueço todas as
aflições que me permeiam para me concentrar nela.
Se ao menos tivesse sentido por Sevil um terço do que senti
quando cravei meus olhos sobre Catarina na boate, com certeza
minhas atitudes seriam bem diferentes, ao ponto de renunciar ao
compromisso para sua felicidade.
Tentei agir com racionalidade e seguir a ordem dos mais
velhos, que por sabedoria, tinham o conhecimento do melhor para
todos, Haydar, Sevil e a mim.
— Aceitou o compromisso por obrigação, assim como
agora? — Catarina solta direto e sem titubear.
Volto os olhos para ela e vejo uma determinação que há
pouco não habitava. Ela se fechou dentro de sua concha mais uma
vez, pronta para ligar fatos e tirar suas conclusões.
Quem sabe, suas teorias falsas sejam melhores do que a
verdade crua que escondo.
— Na época, eu era um homem diferente de hoje. Por isso,
lhe procurei antes mesmo da ida de tio Osman ao Brasil.
— Um meio para um fim, já que sabia a intenção ao se
aproximar.
— Somos diferentes, Catarina. Você bem sabe disso.
— Eu sei que sou a segunda prometida e que você roubou a
pretendente do seu primo. — Um tapa certeiro no meio do meu
rosto.
Baixo os olhos na tentativa de esconder minha vergonha.
Ainda é preferível que pense assim do que saiba o quão negligente
fui com toda essa história.
— Esse é um dos mais variados motivos que verá Haydar e
eu nos estranhando.
— Tem medo de que ele me roube de você? — Direciono
um olhar ameaçador em sua direção.
— Isso nunca vai acontecer. — Minha voz é baixa, mas solta
o alerta que espero.
Ela sorri de lado, em desafio, a música finda e uma ovação
começa, nos obrigando a desviar a atenção para os dançarinos que
agradecem ao público.
Um medo impertinente surge em meu íntimo, Catarina é
inconsequente o suficiente para se aproximar de Haydar só para
provocar meu humor, visto que já percebeu o quanto meu primo e
eu não nos damos bem.
— Então, Emir Kartal, seja um bom guia turístico e me
mostre os monumentos e as histórias que acompanham a tão
diversificada Istambul.
Ela usa um tom comedido e educado, como se nos
víssemos agora, pela primeira vez. Tenho vontade de puxar sua
nuca sobre a mesa e unir nossos lábios só para mostrar que somos
muito mais que meros conhecidos, mas tomo o caminho mais
inteligente e entro em seu jogo.
Convido Catarina, diversas explicações depois, sobre os
pontos turísticos que passamos no Bósforo, para uma caminhada a
estibordo sentido à popa.
Uma área mais reservada, longe dos olhos de todos, íntimo
o suficiente para que nada nos atrapalhasse, nem Berna, que ocupa
um lugar discreto em algum lugar do convés.
— O que está achando do passeio? — Deslizo os braços
para trás unindo os dedos.
— Informativo, interessante e meio revelador.
— Meio?
— Sim. Já aprendi que com você a verdade vem a conta-
gotas.
— Mereci essa. — Sacudo a cabeça em aceitação.
— Sejamos honestos, Emir. — Ela estaca no lugar e me
encara de uma forma que me incomoda. — Não existem motivos
para nada disso. Se você realmente tem a intenção de colocar a
holding e um investidor externo para salvar a Mancini, poderia ter
cortado as intenções de seu tio no Brasil.
— Tem razão, eu poderia.
— E por que não fez?
— Porque não consegui — solto, antes mesmo que ela
termine de falar. — Chame-me de egoísta, louco, ou um pobre
solitário, mas não estava pronto para voltar à Turquia sem você. —
Dou um passo em sua direção, ergo a mão e toco seu rosto com
suavidade.
— Sou um desafio, então? — Sua pergunta é baixa,
temerosa.
— Não... Você é minha esperança. — Levo a outra mão ao
seu rosto, emoldurando a obra-prima que rouba meu fôlego toda vez
que me encara, como faz agora.
Ela inclina mais o queixo, pronta para receber o que
estamos desejosos que aconteça. Resvalo meus lábios nos seus,
postergando o momento, meros segundos que se tornam eternos
com a expectativa.
Catarina toma a iniciativa e fica na ponta dos pés, chocando
nossos lábios, minha língua pede passagem ao mesmo tempo que
uma mão escorrega em sua volta e a puxa para mais perto.
Arriscado demais deixar que um momento íntimo seja
exposto dessa forma, além do desrespeito com minha prometida,
um paparazzo qualquer poderia nos fotografar e estamparmos os
jornais amanhã.
Como manter a racionalidade quando provo o puro néctar
do sublime, que me engolfa de tal forma que torna meus sentidos
torpes e, sempre um viciado, disposto a qualquer coisa para sentir
um pouco mais desse prazer.
— Temos... — solto ao puxar seu lábio inferior —... que...
nos... comportar. — Finalizo os beijos intercalados com uma
pequena mordida.
— Podemos ser presos? — Ela corre os olhos para os lados
à procura de uma ameaça à espreita.
— Não, mas é desrespeitoso.
— O quê?
— Tomar liberdades assim em público é um sinal de
desrespeito com sua prometida ou esposa.
— Tá brincando, né? — Ela se solta de mim, desacreditada.
— Não.
— Então demonstrações de carinho é ofensivo?
— Existem diversas formas de demonstrar carinho, amor e
cuidado, qalbi.
Tombo a cabeça de lado, uma promessa velada de que se
ela permitir, serei capaz de ser o mais romântico dos homens, à
nossa maneira, é claro, mas nunca a deixarei pensar que não é
querida.
— Não importa — ela pigarreia —, eu moro em outro
continente mesmo.
— Sim, claro — concordo no automático.
Discutir onde moraríamos é um passo longe demais,
primeiro preciso convencer Catarina de que podemos funcionar,
apesar da cultura, do passado e da forma deturpada que
começamos.
Capítulo 39
“Eu encontrei hoje, vou comer hoje. Amanhã? Bem… Deus é
ótimo.”
— Provérbio Turco.
Doeu mais do que eu gostaria de admitir, lembrar Emir de
que minha vida é do outro lado do mundo, dando pouca importância
para o que o costume turco prega.
Não posso me encantar por este lugar, que se tornou o
passeio de barco mais lindo que já presenciei. A dança turca me
deixou tão animada, mesmo com a história conturbada de Emir, não
consegui deixar de lado o ritmo contagiante e o sorriso alegre dos
dançarinos.
Agora, deitada na cama, as cortinas abertas para que eu
pudesse ver parte do céu estrelado, consigo pensar melhor sobre o
que me contou.
Uma desavença sobre amor proibido, em que o homem
sóbrio e elegante que conheci é responsável por afastar dois
corações apaixonados. Assim, ao menos, deduzo.
Ele foi evasivo quanto aos pormenores, percebi seu
desconforto, arrisco dizer até vergonha, por isso tentei tratar do
assunto de forma sucinta, como se fosse algo banal.
Uma noiva morta. Como isso poderia ser banal?
Senti minha língua coçar com a quantidade de perguntas
sobre ela, mas seria desconfortável demais. Emir sentiu a
necessidade de partilhar algo do seu passado comigo e é isso.
Quem sabe, foi uma tentativa de me manter afastada do
primo sombrio, que não me enganou em nada com sorriso
convidativo e palavras aveludadas com que me cumprimentou.
A reação de Emir com a provocação sobre ele só confirmou
o quanto as diferenças de ambos são profundas, provando que a
situação com a noiva falecida é bem mais complexa do que ele
realmente revelou.
Pego o celular na cabeceira, respondo a uma mensagem da
minha mãe, avisando que cheguei bem e até fiz um passeio com
Emir. Apesar de não merecer qualquer consideração minha, ela
ainda é a única família que tenho, porque, nem por um decreto,
consigo associar os turcos ao meu sangue.
Ouvi o áudio de mais de cinco minutos de Layla, primeiro
reclamando o quanto sou uma péssima amiga por não mandar
notícias. Alegou que descobriu que cheguei bem em Istambul, pois
viu um site de fofocas turco com uma nota sobre o desembarque
dos Kartal acompanhados de uma estrangeira loira misteriosa.
A filha da boa mãe mandou o print da matéria em inglês,
uma foto desfocada de algum paparazzo despreparado, minha
atenção paira em Emir que parece ainda mais sério na imagem.
— Sevil... — testo o nome da falecida.
Abro uma página de pesquisa, digito o nome dos dois e clico
na lupa. Uma série de matérias, a maioria em turco, imagens de um
hotel simplório, um quarto ainda mais precário, fotos de Emir se
esquivando de câmeras e um mar de repórteres em volta.
Encontro uma foto dela, de fato muito bonita, vestida como
manda o costume do Islã. Usa um véu na cabeça, uma túnica larga
e comprida, abaixo dos joelhos e calça no mesmo tom.
Os olhos marcados com uma maquiagem bem-feita, traços
delicados, ombros levemente curvados e um semblante triste. A
garota não parece ter mais de vinte anos, uma falta de vivacidade
completa, chego a pesquisar mais fotos, todas dão a mesma
impressão.
Abro uma matéria de um jornal local, traduzo a página, levo
a mão à boca quando o relato da morte é descrito.
Suicídio.
— Deus... o que aconteceu com ela?

Desperto com a batida suave na porta, levanto a cabeça ao


pegar o celular e constatar que já passou metade da manhã, salto
da cama e tropeço no lençol.
Abro a porta para encontrar Berna e seus olhos alarmados,
virando o rosto com rapidez, encaro meu corpo e solto um
xingamento ao constatar que uso um pijama revelador demais.
Uma camisola preta curta em renda e transparência, nada
tradicional ou discreto. Na realidade, quando escolhi minhas peças
para dormir pensei em duas situações: dormirei sozinha e ninguém
verá o que uso e, o fato de sempre poder acontecer uma visita
noturna inesperada.
“Me julgue, consciência, mas duvido que não faria igual.”
— Senhora, o senhor Emir pediu para que a acordasse.
— Emir? E por que ele mesmo não fez isso? Poderia ter me
ligado.
— Não sei dizer, senhora. Quer que eu traga seu café da
manhã ou prepare um banho?
— Não, Berna, mas agradeço. Vou tomar um banho e desço
daqui a pouco.
— Sim, senhora. — Ela acena com a cabeça e vira, partindo
dali o mais rápido que pode.
A mulher não olhou para mim uma vez sequer, achei
engraçado, no fundo, mas depois irei me desculpar pelo
comportamento. Preciso me lembrar de que as coisas por aqui são
bem diferentes, até entre mulheres.
O fuso ainda está mexendo um pouco com meu sistema
biológico, preparo um banho de banheira, uso meu kit de romãs que
trouxe do Brasil, vi algumas pétalas rosas em um pote ao lado,
cubro a água e finalmente me dispo deixando a quentura relaxar
meus músculos.
Depois de passar metade da noite desvendando as matérias
dos sites, desde os sensacionalistas aos mais sérios, a história
praticamente se repete.
Emir, herdeiro da Kartal e noivo de Sevil, filha de um
empresário renomado no ramo de joias, encontra a garota de
apenas vinte anos em um quarto de hotel duvidoso, próximo às
docas do porto, envenenada.
Uma investigação foi feita, perícia, testemunhas,
depoimentos, para no fim constatar que a mulher ingeriu veneno e
se matou, mas antes ligou para Emir e pediu que ele fosse até o
hotel.
As informações tendenciosas sugerem que Emir tenha
matado a noiva para não se casar, chegaram até a mencionar sobre
o comportamento ocidental do CEO da Kartal.
Apesar de não encontrar nenhum escândalo ou foto
comprometedora de Emir com qualquer outra mulher, algumas
matérias sugerem que o turco não tratava o relacionamento com o
comprometimento correto.
Durante o período de noivado, que durou quase um ano,
sua permanência na Turquia foi escassa. Cinco visitas de períodos
curtos, nada mais.
Um quebra-cabeça confuso demais, não sei até onde as
informações são verídicas. Nenhuma palavra sobre Haydar e o
amor interrompido, caso chegasse à imprensa seria o prato cheio
para os abutres.
Agora entendo melhor o que Emir falou sobre nosso beijo
em público. Nem posso imaginar o quão cruéis poderiam ser com a
reputação dele.
Pego um sabonete de ervas e passo por todo meu corpo, a
mente fervilhando com teorias e curiosidades que, de alguma forma,
preciso descobrir se são reais ou não.
Escuto meu celular tocar no quarto, levanto apressada e
visto um roupão correndo até o aparelho. O nome de Emir pisca na
tela e faço um charme até atender.
— Não escuta o telefone? — ele questiona sem ao menos
me cumprimentar.
— Olá, bom dia para você também, turco mandão. — Um
riso baixo do outro lado.
— Esteja pronta em uma hora, roupa confortável e sapato
baixo. Vou te levar a um lugar.
— Você não tem mais o que fazer na Kartal Exportações,
não? — provoco.
— Nada é mais importante do que mostrar à minha
prometida a Turquia através dos meus olhos.
— Poético, mas ainda é uma aposta.
— Não, qalbi. É um acordo. No meu caso, uma promessa.
— De quê? — Sei que não deveria perguntar, o turco
sempre tem palavras doces como mel para enfeitiçar minha
determinação.
— Que sua vida nunca será sem cor, sem vida, sem
aromas, caso aceite ser minha.
— Talvez o preço seja alto demais, turco.
— Mas a recompensa, definitivamente, vale a pena, qalbi. —
Solto o ar, presa em seu tom, ao mesmo tempo provocador, mas
com a promessa mencionada. — Esteja pronta.
A linha fica muda e eu solto meia dúzia de xingamentos com
sua falta de educação ao encerrar a chamada dessa forma, no
entanto, quando retorno para o banho, não consigo desfazer o
sorriso idiota que grudou nos meus lábios.

Tiro os óculos escuros e engancho na gola do vestido


mostarda de poá branco, até o pé, largo e com uma pequena
abertura na lateral que termina antes dos joelhos.
Sandálias rasteiras de pedraria, uma bolsa de palha média e
o toque especial que resolvi me aventurar: um lenço cobrindo a
cabeça, solto, sem apertar ou esconder por completo meus cabelos
soltos, mas ainda firme o suficiente para testar o adereço.
— Bem-vinda ao Grand Bazaar. — Emir abre os braços ao
meu lado.
Seu terno elegante e sob medida destoa bastante do
ambiente, cheio de pessoas transitando de um lugar a outro, a
língua cantada para todos os lados, um mundo colorido e quase
caótico que me ganha por completo.
— As cores. — Rodopio no lugar, embasbacada.
— Venha! São mais de sessenta ruas para visitar e uma
infinidade de itens para escolher.
Salto no lugar feito uma criança que acabou de ganhar o
melhor presente do mundo. Sou alguém curiosa por natureza,
principalmente, ao que se refere à cultura e diversidade.
Emir sorri, aberto e animado, o homem sisudo de ontem foi
esquecido em algum ponto que não percebi. Encaro Berna, que nos
acompanha mais uma vez, ela também sorri, animada.
Começamos a visitação e logo de início um vendedor se
aproxima, gesticulando, chamando e quase me tocando para que
entre na sua loja de especiarias.
Berna, que está ao meu lado, esbraveja em turco, ambos
parecem discutir e quando Emir se aproxima o suficiente de mim, o
homem recua, a voz baixa e autoritária do acompanhante ao meu
lado pronuncia poucas palavras e o vendedor invasivo some para
dentro da loja.
— Desculpe por isso. Às vezes eles passam do limite.
— Tudo bem — respondo, ainda um pouco assustada.
Emir se mantém perto, não me toca, suas mãos estão
recolhidas atrás do corpo, mas sempre que paramos em algum
lugar e ele começa a explicar, em português, sobre algo incomum,
seu braço esbarra no meu, a mão resvala na minha e então se
afasta.
Berna pede licença para entrar em uma loja de especiarias,
Emir aproveita para me puxar pelo braço até um beco menos
movimentado, uma travessia improvisada de um corredor para o
outro.
— Desculpe, mas eu preciso fazer isso. — Então suas mãos
capturam meu rosto e sua boca encontra a minha.
Capítulo 40
“Há duas coisas que não podem ser encaradas: o sol e a
morte.”
— Provérbio Turco.
Errado. Errado. Errado
Alguma parte da minha cabeça gritava a todo momento,
mas ignorei, assim como fiz com o bom senso, ao puxar Catarina
para a viela mal iluminada que enxerguei à certa distância de onde
estávamos.
Ela não resistiu, nunca o fez, parece que somos dopados
pela mesma droga quando nos tocamos. Sua boca esfomeada
devora a minha em recíproca às minhas mãos que apertam seu
corpo junto ao meu.
— Isso é errado. — Ela ofega no intervalo de um beijo.
— Eu sei — respondo ao pinçar seu lábio inferior com os
meus.
Ela solta uma lufada de ar, desperta da energia lasciva que
nos envolve e apoia as mãos no meu peitoral, seu olhar se torna
mais frio e distante.
— O que foi?
— Você precisa saber que isso não muda nada, Emir. Não
quero me casar por contrato ou acordo.
— Eu sei. Nem eu.
— Ainda vou manter o combinado, mas a chance de você
me convencer a algo é...
— Nula. — Afasto um passo e o amargor toma meu palato
ao constatar a verdade. — Estou ciente do risco, Catarina. Não se
preocupe.
— Quando perceber que esse jogo é perigoso demais, vai
entender meus motivos.
— Curioso, de fato, porque para mim nunca foi um jogo.
Ela desvia os olhos dos meus, sem uma réplica aceitável,
tomo à frente e saímos do beco para encontrar Berna andando no
extenso corredor, desesperada.
Seguimos o restante do passeio, paramos sempre que
Catarina vê algo que lhe interessa, o que é praticamente todas as
lojas, mas é um prazer, apesar do golpe duro sofrido, vê-la desfrutar
e descobrir coisas que para um turco é tão corriqueiro.
“Não somos inimigos.”
Gostaria de lembrá-la da frase que sempre proferi, mas é
fato que também não somos amigos. O que torna meu acordo com
ela, algo de alto risco e talvez a minha maior burrice.
Seria fácil manter o curso dos fatos, tio Osman lidando com
o compromisso, Catarina aceitando o enlace e, quem sabe, com
mais tempo, depois de casados, eu a convenceria de que
poderíamos viver harmoniosamente.
O problema é que o caminho racional mais acertado é o
mais distante do coração dela. Catarina é latência e sentimento
puro, não faz nada pela metade e muito menos por ser aceitável, ou
o mais fácil.
Como eu poderia viver anos ao lado dela sem saber se
realmente a conquistei?
Na volta do passeio, me enfiei no escritório para analisar
alguns relatórios e documentos que exigiam minha atenção no
período em que decidi sair com minha prometida ao invés de
trabalhar.
Não sei em que mundo Emir Kartal seria um homem
negligente com o trabalho, porém, antes que pudesse imaginar,
aconteceu. O CEO frio e implacável, deixou os negócios de lado
para dar atenção à sua prometida, que fez o favor de esclarecer sua
intenção em rechaçar qualquer compromisso com ele.
— Você está realmente ferrado, Emir...
— Deu para falar sozinho, sobrinho? — Encaro a porta
aberta, não percebi sua entrada.
— Tio, entre. Como passou o dia?
— Bem, apesar de me perguntar por que você e Cemil
fazem questão de esconder tantas coisas de mim.
—Tio... — Esfrego as palmas no rosto, cansado.
— Não sou bobo, menino. Lembre-se que estive em seu
lugar por anos antes de entregar a você. E ainda fui o braço direito
de seu pai, por um bocado de tempo antes disso. — Ele toma a
poltrona à minha frente.
— Tio, estou resolvendo tudo da melhor forma.
— Já sei que encontraram o dry box perdido em Chipre, um
barco caindo aos pedaços, arrombado e sem nada dentro.
— Quem lhe passa essas explicações? — Franzo o cenho,
admirado com a capacidade de tio Osman em obter informações.
— Essa eu arranquei de Cemil. Nada que meias-verdades
não complementem as lacunas.
— Bom, já sabe onde foi parar o contêiner, então.
— Sim, mas não explica a confusão, muito menos o que
tinha dentro.
— Roupas, segundo a contratante. O seguro cobriria os
gastos se não estivesse tudo tão errado e nebuloso quanto às
documentações.
— Um prejuízo enorme. — Ele cruza os dedos sobre a
barriga.
— Sim. Abri uma investigação interna, todos serão
interrogados, tanto no escritório quanto no porto.
— Haydar está incluso nas investigações?
— Por que estaria? Ele não tem responsabilidade alguma
nisso.
— Não precisa me poupar, filho. Sei bem a cobra que
mantenho em meu ninho.
— Tio, Haydar e eu temos um histórico complicado.
— Eu sei e é por isso que te dou meu aval para investigá-lo.
Com a vinda da sua prometida à Turquia, as coisas tendem a piorar.
— Catarina irá embora em breve.
— Que acordo é esse sobre se conhecerem melhor, Emir?
Demorou bastante para que ele finalmente entrasse no
assunto que o alarmou quando Catarina declarou em sua frente
sobre nosso acordo.
— Antes de embarcar para a Turquia, procurei por ela e fiz
uma proposta: conhecer a Turquia através dos meus olhos e decidir
se quer ou não ficar comigo.
— Está louco? Dessa forma, ela vai rejeitar o compromisso
e a Kartal nunca poderá investir na Mancini.
— Isso também não está nos planos, tio.
— Emir! Você enlouqueceu de vez? Dei minha palavra à
Elisandra de que a fábrica será salva e sua filha ficará segura.
— A fábrica sobreviverá, tio, não se preocupe. A Sadik
Holding irá cuidar dos interesses da fábrica com um investidor de
peso atrelado ao acordo.
— É muito mais arriscado, Emir, e sabe disso.
— Eu sei, mas é a coisa certa a fazer. A holding é tão minha
quanto de Catarina, tio. Uma forma confusa, mas ainda válida, de
corrigir o passado.
— O passado será reparado com a união de vocês. — Ele
levanta da cadeira. — Tudo será resolvido com o enlace de vocês.
— O que quer dizer, tio?
Ele parece recobrar a razão depois de falar demais. Com
trejeitos nervosos, caminha para a saída e mesmo quando chamo
seu nome, sou ignorado.
Contorno a mesa e vou a seu encalço, até hoje não entendi
os motivos de Elisandra procurar nossa família com todo o abismo
criado há anos. Tio Osman nunca lamentou o acontecido com minha
família por parte de mãe, nem mesmo depois da morte dos meus
pais.
— Tio, vamos terminar nossa conversa.
— Tenho um compromisso.
— Já é noite. Aonde vai? — Continuo o seguindo pelo
apartamento.
— Ora, vejam só, nem parece que sou o mais velho daqui.
— Com todo respeito, tio, acho que está fugindo de mim.
— Como ousa? — ele praticamente grita ao estacar no lugar
e voltar a cabeça em minha direção. — Posso lhe garantir uma surra
que nunca lhe dei, menino.
— Por que Elisandra te procurou depois de tanto tempo? O
que aconteceu realmente? Qual o motivo de oferecer um casamento
que sabia que eu não tinha interesse algum?
— E ainda não tem?
— Não é essa a questão.
— Minha conversa com Elisandra é particular, não diz
respeito a ninguém. Sobre o casamento, é bom que sua prometida
esteja disposta a assinar o contrato de compromisso, ou você terá
sérios problemas em “mostrar a Turquia através dos seus olhos para
ela”. — Ele faz aspas com a mão, enfatizando.
— Não pretendo persuadir Catarina a nada.
— Eu assino. — Ambos encaramos o topo das escadas. —
Se isso garantir que Emir e eu possamos sair sozinhos para que eu
conheça o país do meu pai.
— Pois bem. Amanhã será o dia. — Ele esfrega as palmas,
animado demais.
A tensão de seus ombros dissipou, aliviado por sermos
interrompidos por Catarina, que encerrou o assunto dando tudo que
ele quer em uma bandeja. Sua submissão e obediência.
O senhor sobe as escadas, animado, enquanto Catarina
desce, cautelosa, seus olhos buscam os meus, que desvio e giro o
corpo pronto para me afastar.
Desde sua sinceridade súbita no mercado, minha
determinação esmoreceu bastante, quase a mandei embora, mas a
covardia me impediu. Imaginar meus dias entediantes de trabalho
sem sua presença quando voltasse para casa não parece certo.
— Emir, espere. — Estaco, ainda de costas. — Gostaria de
me desculpar por mais cedo.
— Não há necessidade disso. — Aperto os lábios,
incomodado.
— Eu realmente quero viver sua proposta, não menti sobre
isso. Aceito assinar qualquer papel que tio Osman queira, assim
teremos mais... liberdade.
— Precisa estar ciente de que o termo é um compromisso
firmado. Além disso, tenho certeza de que não parará por aí. Deve
estar arquitetando uma cerimônia de noivado em Ancara.
— Noivado?
— Sim. Como disse, quando se trata de casamento, os
turcos são muito tradicionais ainda.
— Mas e quando eu voltar... quer dizer... podemos
desmanchar esse compromisso, certo?
— Sim. Não ficarei tão bem-visto, mas isso não importa.
— Dado ao seu histórico, isso não parece ser muito bom
para a imagem da Kartal. — Empertigo o tronco, preocupado.
— Andou lendo matérias a meu respeito? — Minha voz sai
mais fria do que pretendia.
— Não pode me culpar pela curiosidade.
— E o que achou? Acredita que realmente matei minha
noiva? Que fui negligente o suficiente a ponto de não enxergar seu
sofrimento? Ou que não sou o bom partido que todo mundo julga, o
que a fez preferir tirar a própria vida a se unir a mim?
— Não acho nada. Meias-verdades não merecem respostas.
— Talvez a verdade inteira esteja diante de você, qalbi.
Sinto meu coração apertar quando seus olhos se tornam
assustados e sua fala some por completo.
Saio da sala a passos determinantes.
O aval de Catarina para o documento de compromisso só
torna nossa situação ainda mais complicada do que já é. E me faz
questionar como vou lidar com a ilusão de que alguma parte dela
quer o enlace tanto quanto eu.
Capítulo 41
“Desejo bem ser bom.”
— Provérbio Turco.
Não fiquei espantada na manhã seguinte quando tio Osman
solicitou minha presença no escritório, no qual encontrei Emir e mais
um senhor, que ele explicou ser o advogado da família, com uma
pasta preta sobre a mesa.
Confesso que a cor da pasta pareceu uma piada fúnebre
bem particular sobre tudo que penso dos papéis que
cuidadosamente li e reli, antes de assinar e ouvir as palmas de um
senhor animado.
Na linha, abaixo da assinatura da minha mãe, que já havia
rubricado o contrato no Brasil, em segredo, constatando por parte
dos pais que concordam com o enlace.
Legalmente, não faria diferença, já sou bem crescidinha,
para ambos os países, mas ter o aval dos pais é primordial,
principalmente quando se refere a casamentos.
Em nenhum momento olhei para Emir enquanto tio Osman
tagarelava feliz sobre o contrato. Ao que parece, o homem só
concentrou suas energias no lado positivo e esqueceu que meu
acordo com Emir é diferente disso.
— Faremos uma foto para as colunas mais importantes.
— Tio... — Emir lamenta.
— É preciso, Emir. Quando as pessoas virem vocês saindo
sozinhos aqui ou em Ancara, precisamos de uma prova do
relacionamento.
Quase rolo os olhos com tamanho exagero, respiro fundo
mais uma vez e uso o mesmo mantra de sempre: é a cultura deles,
respeite.
É bastante egoísta da minha parte aceitar esse contrato com
a certeza de que partirei em algum momento, mas se Emir, que é o
mais interessado, não se importa em preservar sua imagem, eu é
que não devo me preocupar.
— Fiquem de pé. Um ao lado do outro — tio Osman orienta.
Emir pigarreia ao levantar e se colocar ao meu lado, sem
toques, sem uma aproximação íntima, posamos para a foto.
Permaneço séria, com o semblante tranquilo, tive o cuidado de
descer com um lenço nas mãos e o coloquei na cabeça.

— Super![26] — O senhor aplaude e acabo por sorrir.


Quando subo o olhar ao lado para a figura parada ali, sou
tragada pelas gemas escuras e profundas, um brilho incomum
dança em sua íris e isso faz o mundo à nossa volta parar.
A ponta dos seus dedos toca minha bochecha com cuidado,
sutil e quase inexistente, sinto a ansiedade aumentar com o desejo
de uma aproximação maior.
— Qalbi... — Um flash dispara e ele recua de imediato.
Encaramos o fotógrafo, que troca algumas palavras com
Emir em turco e então deixa a sala, acompanhado do advogado e
de tio Osman.
— Agora estamos oficialmente comprometidos? —
questiono, assim que estamos sozinhos.
— Sim.
— E o que podemos fazer? Sair para jantar? Passear?
— Qualquer coisa que queira, porém terei dias atribulados
demais no escritório para que possamos viajar no final da semana.
— Acho que terei que turistar sozinha.
— É provável, mas Berna será uma boa companhia.
— A mulher mal fala, não entende o inglês tão bem. — Ele
solta um riso apertado e se aproxima, fechando nossa distância.
— Prometo te recompensar quando chegarmos a Ancara.
— Não se esqueça que me prometeu a Capadócia.
— Não esquecerei. — Sua mão torna a tocar meu rosto,
agora com mais intimidade.
Eu sei que não deveria ceder, muito menos criar esperanças
vazias para Emir, mas é difícil resistir a essa sensação do proibido,
ao seu toque que se tornou tão íntimo na memória.
— Kuzen! — Uma voz firme e ardil nos interrompe.
— Haydar. — O tom de Emir sai baixo, porém muito
ameaçador.
— Olá, bom dia — respondo, sucinta.
— Não poderia faltar diante de um momento tão importante.
Agora são oficialmente um casal, quero parabenizar a ambos.
Espero que consiga ser mais presente na vida desta noiva, Emir,
correr o risco que ela se mate por tédio, é inadmissível.
Antes que eu possa soltar o ar dos pulmões, Emir voa em
cima do primo, grunhindo algum xingamento em turco, suas mãos
apertam a lapela do paletó de Haydar, que segura os punhos do
primo.
Ambos discutem e esbravejam, prontos para se atracarem
feito animais, chamo o nome de Emir algumas vezes, mas o homem
demonstra estar alheio a qualquer coisa que não seja acabar com o
primo.
— Dur! Dur! — Tio Osman entra no ambiente acompanhado
de um homem mais novo e ambos separam os dois búfalos
briguentos. — Já chega! Vocês agem feito dois abasis[27].
— Abi, acalme-se — o homem mais novo chama Emir à
razão. — Não vale a pena essa briga.
— Eu sou seu abi — Haydar vocifera para o rapaz ao se
soltar do pai. — Não ele.
— Sus! Nem uma palavra, Haydar, ou te darei uma surra
que nunca esquecerá.
— O que faz aqui? — Emir se solta do mais novo. — Era
para ambos estarem em Ancara.
— Vim para ajudar na empresa, abi, sei que as coisas estão
atribuladas — o rapaz responde com calma e respeito.
— E eu fiquei porque posso. Você não manda em mim,
Emir. Pode ser o chefe da empresa, mas não é meu dono. —
Haydar enfia as mãos no bolso e encara o primo com superioridade.
— O que Catarina vai pensar da família que acabou de
entrar?
— Como assim? — O jovem arregala os olhos ao encarar
Emir e o tio. — Foi isso que fez no Brasil, baba, buscar uma noiva
estrangeira para meu primo? — Apesar de mais baixo, ele enlaça o
pescoço de Emir e o puxa em sua direção.
Eu teria gargalhado se Emir não tivesse grunhido algo
incompreensível e se soltado o mais rápido possível do rapaz.
— Seja educado, Cemil — ele esbraveja. — Esta é Catarina,
filha do meu tio Yussuf Sadik, portanto, minha prima. Estamos
comprometidos. — Seus olhos escolhem este momento para
encarar os meus em busca de aprovação.
Eu sorrio, branda, e aceno com a cabeça. Depois da cena
caótica entre os primos, prefiro me abster o máximo possível e
tentar compreender como realmente funciona a relação deles.
— Cemil é meu filho mais novo, irmão de Haydar, juntos
eles trabalham na Kartal sob o comando de Emir, chefe legítimo dos
negócios e da família — tio Osman discursa e encara o filho rebelde
com dureza no olhar. — Portanto, se ele diz que é necessária sua
presença em Ancara, é para lá que você vai.
— Baba...
— Sus! Eu estou falando — tio Osman xinga e leva o dedo
indicador à boca com ferocidade. — Somos uma família e agiremos
como tal. Agora que Emir desposará Catarina, você será o próximo
e, por último, Cemil.
— Baba... até lá estarei velho — o jovem lamenta e faço um
esforço para conter o riso.
— Não seja exagerado, Cemil, você tem vinte e oito anos.
— Já estou com o pé fora da maioria das propostas
matrimoniais, abi. As mulheres acham que os Kartal têm algum tipo
de problema. — O sangue drena do rosto do rapaz assim que solta
o comentário. — Desculpe, eu...
— Já vou embora — Haydar se manifesta. — Estarei em
Ancara como ordenado. — O desgosto em seu tom pesa ainda mais
o clima na sala.
— Vamos para a mesa, o jantar está servido — tio Osman
disfarça e apazigua a situação, mas é o olhar perdido de Emir, por
onde seu primo acaba de passar, que me deixa incomodada.
Aguardo enquanto tio Osman e Cemil saem pela porta,
conversam algo animado em turco, fecho a distância entre Emir e
eu, resvalo meus dedos nas pontas dos seus e isso finalmente o
desperta de alguma lembrança ruim.
— Você está bem? — É claro que não está, mas a situação
é tão delicada que não sei como abordá-lo sem parecer invasiva
demais.
— Para um homem amaldiçoado, estou no limite do
aceitável.
— Não diga isso, Emir.
— Haydar não mentiu, Catarina. Minha prometida deu vários
sinais, quis minha ajuda, mas eu escolhi ignorar.
— Você não pode se responsabilizar por uma escolha que
foi dela.
— Mas cabia a mim dar o basta. E eu não fiz. No fundo, fui
arrogante, achando que fazia um favor aos dois.
— Todos somos arrogantes em algum momento da vida.
— E isso justifica carregar uma morte nas costas. — Seus
ombros cedem e meu coração se aperta. — Fui egoísta e mereço
esse fardo, assim como mereço o ódio de Haydar.
— Não. — Seguro seu rosto entre as minhas mãos. A
escuridão ainda mais latente, como nunca vi. — Você merece ser
feliz, todos merecemos.
— O que é a felicidade se não um momento e nada mais. —
Ele sorri com descaso. — Há pessoas que não nasceram para isso,
Catarina, e você será inteligente o suficiente se partir o quanto
antes.
Emir cobre minhas mãos com as suas e desfaz nosso
contato. O vejo sair do escritório a passos largos, determinado a se
manter longe o bastante de mim.
No fundo, ele pode ter razão, não quero um casamento por
obrigação ou contrato, gostaria de viver um amor, assim como meus
pais viveram, mas nunca me permiti sentir.
Emir é o mais próximo que conheço de um interesse
genuíno, mas o abismo que nos separa, seja pela cultura, pela
situação ou pelas barreiras que erguemos ao longo da vida, torna
tudo complicado demais.
Eu deveria aceitar seu conselho, partir o quanto antes, não
ter assinado aquela porcaria de papel, meu objetivo já foi alcançado,
confio na promessa de Emir, mas o acordo é o fio de esperança que
reluto em largar.
Ver a Turquia por seus olhos, conhecer o mundo particular
do turco sisudo e distante que omitiu informações importantes de
mim, sobre mim e nossa situação, mas foi igualmente verdadeiro em
ofertar ajuda quando mais precisei de apoio.
— Nós não somos inimigos...
Capítulo 42
“Quem você não continua vendo, você vai perder.”
— Provérbio Turco.
A enxurrada de matérias sensacionalistas caiu feito
avalanche logo após a nota divulgada no jornal local sobre o enlace
entre Catarina, a estrangeira turca, como a chamam agora, e eu.
Chegamos aos assuntos mais comentados nos dias em que
permanecemos em Istambul. Revistas, jornais, sites, meios de
comunicação em redes sociais, todo e qualquer paparazzo ansiava
por um vislumbre nosso.
Um dia foi o suficiente para ressuscitar todas as matérias,
abafadas na época da morte de Sevil, e agora ganham ainda mais
peso e malícia. A ficha completa minha e de Catarina, herdeira da
Mancini Tecidos, à beira de fechar às portas.
Eles pintaram o cenário perfeito para Catarina sair como a
golpista interesseira, eu ser o elo que une duas famílias mais uma
vez, já que na época de nossos pais, as coisas eram mais
comedidas, mas ainda malvisto nos dias de hoje.
Caótico será o mínimo a dizer, cada vez que saio do
apartamento a caminho da empresa, desvio de meia dúzia de
paparazzi que esperam encontrar Catarina junto de mim.
Qualquer saída, passeio ou exposição foi vetada, tanto por
mim quanto por tio Osman, que pareceu, no mínimo, surpreso com
a repercussão da nossa união.
— Senhor, sua reunião será em vinte minutos. Quer algo
para comer antes?
— Não, obrigado. — Continuo com as mãos no bolso da
calça e encaro a vista que a parede de vidro me proporciona.
— Quem sabe um çay?
— Não preciso de nada, além de silêncio. — Sei que soa
grosseiro, mas meu humor tem oscilado tanto que prefiro manter a
solidão por perto.
Recluso em minha própria mente, busco formas de resolver
as questões da Kartal sem levantar mais alardes, já tenho holofotes
demais em minha mira.
Catarina tentou conversar comigo apenas uma vez, mas eu
a mandei sair, sem qualquer consideração, aleguei que ela estava
ciente sobre o que aconteceria quando assinasse o papel, uma
meia-verdade, já que nem eu tinha ideia da repercussão tamanha.
O celular toca sobre a mesa, abaixo dele uma pilha de
papéis, relatórios, contatos, algumas provas, tudo que possa e vai
comprometer Haydar em algum momento.
Funcionários manipulados a fazer pequenos desvios de
cargas, jogando tudo para os clientes e seguradoras, isentando a
Kartal de responsabilidades. As documentações fantasmas,
assinadas por ele, que erroneamente achou que havia dado fim.
Só preciso saber quem é o laranja usado para receber os
montantes, para onde as cargas eram enviadas, alguém cuida das
contas fantasmas já que Haydar está limpo. Ao menos, foi isso que
o hacker alegou.
— Emir — viro o corpo ao ver tio Osman entrar pela porta
—, Catarina está com as malas prontas e disse que volta ao Brasil
hoje.
— O quê? — Arregalo os olhos ao sentir um solavanco
sobressaltar o peito. — Como assim, tio?
— Já tem passagem comprada em seu nome no aeroporto.
Acabei de checar e é verdade.
— Ela não pode partir agora. — Confiro o celular e vejo seu
nome piscar na tela.
— Claro que não pode. Vá, menino. — Ele acena para a
porta. — Leve sua prometida para Ancara. A convença a ficar, já
que inventou essa baboseira de acordo.
— Não posso sair, tio. Tenho coisas demais a resolver aqui,
por pelo menos mais dois dias.
— Eu tomo à frente.
—Tio...
— Eu saberei lidar, seja com o que for.
— Tudo bem. Vou direto para o aeroporto — aviso ao
atender o telefone. — Catarina, onde está?
— Vou embora, Emir. As coisas se complicaram demais e...
— Estou a caminho do aeroporto. Vamos para Ancara.
— Mas, Emir, eu...
— Não vai manter sua palavra? — Sinto meu peito
tamborilar com a hipótese de partir sem ao menos uma despedida.
Apesar de saber que suas intenções não são favoráveis ao
nosso enlace, ainda quero lutar, preciso mostrar que me importo,
talvez mais do que deveria, isso pode deixar um vazio ainda maior
do que habitava meu peito, mas a cada dia me interesso menos.
Nunca quis tanto cumprir minha palavra como quero com
nosso acordo. Mostrar meu mundo a ela, os costumes, tradições, a
vida e a sensação de ser turco, tudo que lhe foi tirado quando ainda
nem havia nascido.
— Claro que vou.
— Ótimo. Nos vemos no aeroporto. — Encerro a chamada e
parto, pronto e armado para lutar com todas as minhas forças para
cumprir o que prometi a ela.

Esperar que nosso encontro fosse tranquilo em um lugar


público seria um pouco demais, porém, a quantidade de paparazzi
em torno de Catarina faz um senso protetor rugir em minhas veias.
Corto caminho entre eles, pouco me importando com
educação, por sorte, tio Osman enviou dois seguranças ao meu
encalço, inteligente para deduzir que isso aconteceria.
Flashes de anos atrás surgem em minha mente, a
perseguição comigo, todos querendo um vislumbre do noivo
infortunado, ou amaldiçoado por Deus, que vagaria como um
solitário a partir de então.
Nenhuma família que se preze daria a mão de sua filha a
um homem com a fama que eu havia conquistado.
Apesar de nossos costumes tão contrários ao mundo, ainda
se espera que um turco seja a melhor pessoa para sua futura
esposa, quando a maioria delas temem a ele, se torna difícil pensar
na possibilidade de um casamento.
— Qalbi... — Catarina relaxa os ombros ao me ver e
caminhar até mim.
Berna mantinha guarda à sua frente, pronta para defender
minha prometida contra os abutres da imprensa.
— Que loucura, Emir. — Seus olhos arregalados fazem o
resto do mundo inexistir.
Contorno seu rosto com a palma das minhas mãos, em
busca de confortar e diminuir a confusão em seus olhos. É
pretensioso, até egoísta, mas quero ser o único remédio capaz de
apaziguar seu incômodo.
— Não se preocupe. Vamos para uma área reservada. O
avião está sendo preparado.
— Para onde vamos?
— Ancara. Nossa casa.
— Não acha melhor eu voltar ao Brasil e sair de vez da sua
vida? Acho que fomos longe demais.
— Um caminho nunca retrocede, qalbi, no máximo toma um
novo curso. Vou cumprir minha palavra a você, irá conhecer tudo
sobre a Turquia e como seu pai viveu. Depois, poderá partir.
— Obrigada. — Finalmente sinto seu corpo relaxar.
— Senhor Kartal! Senhor Kartal! — Gradativo, ouço o som
em volta retornar, as dúzias de repórteres que nos cercam e são
barrados pelos seguranças e Berna.
— Boa tarde a todos. Peço que se afastem e nos deixem
seguir com nossa viagem. Senhorita Sadik e eu estamos
comprometidos, como já foi divulgado. Não há mais nada que
queremos partilhar.
— Onde será o casamento? — Ouço uma voz feminina
vinda do meio.
— Ainda não foi decidido.
— Ela seguirá os costumes? Será um casamento
tradicional?
— Tudo que pudermos partilhar será feito no momento
certo. — Seguro a mão de Catarina ao desviar para um corredor
que nos levará à área vip do aeroporto.
— Sevil será homenageada em algum momento? — Estaco
no lugar.
Catarina corre os olhos para mim, percebo seu rosto
alarmado quando solto sua mão e peço que fique onde está.
Quando retorno para o aglomerado de repórteres, respiro fundo e a
máscara fria e impassível que sempre mostrei está intacta.
— Minha noiva morta é assunto encerrado. Sevil tinha
problemas psicológicos sérios, que a levaram a tirar a própria vida.
Deveriam respeitar a dor e o luto de seus familiares.
— Então o senhor já superou o luto?
— Ela sempre fará parte da minha história, mas a vida
segue seu curso e preciso continuar em frente.
— Dizem que não era a você que ela amava realmente. É
verdade? — outro homem pergunta, os olhos ardilosos sobre mim.
— Cuidado com o que diz, homem. Se manchar a reputação
de uma moça de boa índole e costumes, como ela era, terá que
arcar com as consequências disso perante a família dela e a minha.
Giro as costas e caminho até Catarina que se mantém
próxima da entrada vip, os olhos curiosos atentos a mim. Quando a
alcanço, entrelaço nossos dedos mais uma vez, algo que nunca um
casal turco faria, mas nós somos diferentes.
Sempre fomos.
— Pronta para conhecer a Turquia por meus olhos?
— Estou ansiosa por isso. — Um sorriso fraco, mas que
enche meu peito de esperança.
Sou um tolo, eu sei disso.
Não consigo evitar a alegria que invade meu peito em
preencher todas as lacunas e aquele maldito vazio, que se instalou
quando enterrei meus pais, sem ao menos um último olhar ou
palavra.
Acreditei que na adolescência havia blindado meu coração
de sentimentos apegados, achei que seria possível passar a vida
mantendo cada um a um braço de distância e funcionou por um
tempo.
Cemil foi o mais próximo que permiti, eu o protegia das
maldades de Haydar, que adorava tripudiar no irmão quando ele
descobria coisas, que nós mais velhos, já sabíamos.
O humor cruel de Haydar nos aproximou, mais um motivo
para meu primo fomentar o ódio que sente por mim.
Ainda assim, nada se compara ao que sinto toda maldita vez
que olho para Catarina. A sensação de posse que me tomou na
noite da boate, aquela chama desafiadora, que instigava todos os
meus instintos a mostrar que somos bons juntos.
Pois bem, finalmente terei minha chance de mostrar o todo
para ela. O quão perfeito tudo pode ser, mesmo que tenhamos
começado por caminhos tão tortuosos.
É o fio de esperança que me faz sorrir de lado e entregar
tudo de mim a seu dispor.
Capítulo 43
“O amor é ousado.”
— Provérbio Turco.
Algo mudou, é sutil, talvez uma pequena rachadura na
muralha que tento a todo custo manter em pé, mesmo que o turco
dificulte demais o feito, estamos mais próximos, mais conectados,
até protetores.
Senti meu coração apertar com o semblante sofrido de Emir
quando entramos na área vip, não sei o que aquele repórter disse,
mas tem algo a ver com a morte de Sevil.
Quando acordei esta manhã, estava determinada a voltar ao
Brasil e encerrar de uma vez nosso acordo. Apesar daquele puxão
incômodo que permeava meu peito cada vez que afirmava ser o
melhor, ainda tinha esperança de um milagre acontecer.
Nenhum de nós ponderou a repercussão, nem imaginei o
quanto todos ficariam interessados na vida particular de Emir Kartal
e a comoção do anúncio só me deixou ainda mais ansiosa por dar
fim à mentira.
Tudo se esvaiu quando vi Emir abrir caminho no mar de
repórteres, interessados demais em qualquer comentário meu,
fotografia, alguns até falavam em inglês, pedindo declarações sobre
meu relacionamento com ele.
A turca estrangeira e interesseira, foi assim que pintaram
minha imagem pública, o que não me importou em nada. A
realidade é outra e as pessoas interessadas sabem da verdade.
Desde que embarcamos, Emir se mantém ao meu lado,
calado, os dedos ainda entrelaçados aos meus, firmes e apertados,
não parece disposto a afrouxar o contato.
— Emir, eu sinto muito — solto, consegui permanecer por
quase quinze minutos em silêncio, um limite aceitável para o
alvoroço em meu peito.
— Você não tem culpa de nada, qalbi. Sabemos que, no fim,
eu te arrastei para essa confusão.
— Por que eles estão fazendo tanto alarde com isso? Afinal,
todos se casam em algum momento nesta droga de país. — Ele me
encara de soslaio. — Desculpe.
— A morte de Sevil sempre foi uma incógnita para todos,
principalmente quanto à minha participação nela. Você viu as
matérias, na época a Turquia se dividiu em opiniões e eu fiz o que
sei de melhor, parti. Viajei e foquei no trabalho, quase um ano sem
pisar em solo turco e quando finalmente cheguei, mantive a
máscara imparcial e inacessível.
— Você abraçou o fardo do julgo. Aceitou o que cada um
quis acreditar. Isso não é correto, Emir. Não é justo com você.
— Não diga isso, qalbi. Você não sabe como tudo
aconteceu. — Ele leva nossas mãos unidas até a boca e beija o
dorso. — Agora preciso te explicar sobre algumas coisas que nos
aguardam em Ancara.
— O quê?
— Nossa família desse lado é um pouco mais tradicional,
vivemos em uma espécie de vilarejo, habitado pela maioria dos
Kartal, no qual quase todos trabalham na matriz da empresa.
— Uma vida simples campestre? — Enrugo o cenho e isso
garante uma risada aberta de Emir.
— Aguarde e verá, prometida. — Seus olhos mudam o tom,
algo quente afogueia aquelas gemas escuras, que brilham, me
hipnotizando.
Levo a mão livre e moldo o contorno da barba marcada de
Emir, apesar dos dias turbulentos com a empresa, seu primo
ardiloso e nosso acordo incomum, ele continua inabalado, lindo e
cativante.
Sem precisar de uma palavra que seja, Emir solta minha
mão para puxar meus quadris para seu colo. Sento de lado e sinto a
dureza se esfregar contra meu traseiro e um gemido baixo escapa
dos lábios.
— Você consegue desalinhar minha civilidade.
— Isso soa ameaçador, arabiano. — Suas gemas se
incendeiam, sua mão voa para minha nuca imobilizando qualquer
tentativa de afastar.
— Há mais privacidade nas poltronas no fundo. — Ele
resvala os lábios nos meus.
— E só diz isso agora? — Arregalo os olhos, alarmada, e
uma risada baixa escapa de seus lábios.
— Sempre tão afoita, qalbi. — Ele toca sua boca na minha e
mando a antecipação para o espaço.
Seguro seu rosto com as mãos e aprofundo nosso contato,
exijo a passagem da minha língua apressada, que é recebida pela
umidade e quentura que mensurou meus sentidos.
Uma necessidade reverbera em meu peito, sinto a garganta
comichar com o desejo expansivo, remexo os quadris criando ainda
mais atrito com sua dureza.
Em resposta, recebo um aperto na bunda e um gemido
rouco escapa de Emir, nossas línguas continuam a sincronia perfeita
de se entrelaçarem, causando redemoinhos desconexos na mente.
— Vá para os fundos, agora — Emir ordena ao interromper
o beijo e mais do que depressa aceito o comando.
Praticamente corro em direção à última poltrona no canto,
aciono a alavanca que a desce, quase por completo, o que nos
mantém escondidos de olhares curiosos.
Emir demora alguns minutos para finalmente aparecer em
meu campo de visão, carrega uma manta no braço, que atira para
mim antes de se livrar do paletó carvão.
— Silenciosa, qalbi. Você precisará ser silenciosa.
Concordo com a cabeça sem ter condições de pronunciar
uma palavra ao engolir em seco. Ele puxa a camisa azul-claro para
fora do cós, arregaça as mangas, seus olhos não deixam os meus e
ali vejo a promessa da devassidão.
— Posso usar o hijab como mordaça. — É a vez de Emir
estacar o movimento e engolir com dificuldade.
Um rosnado baixo o faz acelerar em seguida a tarefa com
as mangas e logo está prensado sobre mim na poltrona confortável,
suas mãos infiltram por baixo do meu camisão verde-escuro.
O destino foi sortudo em me fazer escolher roupas leves,
maleáveis e de elástico. A calça é um moletinho claro e confortável
que é facilmente puxado pelas mãos hábeis do meu prometido.
Sua boca encontra a minha em um beijo feroz e apressado,
meus dedos tremulam ao tatear os botões da sua camisa e desfaço
as casas com dificuldade.
Ele se afasta com tempo de tirar meu tênis do pé direito e
passar a perna da calça por ali. Sua pressa é tanta que não se dá
ao trabalho de remover as peças por completo, visto que minha
camisa subiu até a altura dos seios, expondo a renda branca do
sutiã que escolhi.
— Gostaria de tempo para fazer isso com calma.
— Assim está perfeito — gemo ao alcançar seu pescoço e
puxar sua cabeça para o vale dos meus seios.
Emir baixa as copas da renda com rapidez antes de
abocanhar um, solto um gemido que é interrompido por sua mão
grande e forte que pressiona contra a boca.
Encaro seus olhos por baixo, uma advertência explícita, sem
interromper as sugadas nos bicos entumecidos, Emir intercala a
atenção entre eles e eu continuo com a respiração afobada e restrita
por suas mãos.
— Vou chupar sua boceta, qalbi. Se achar que não
consegue ficar quieta, é melhor usar o hijab para suprimir os sons.
— Concordo com a cabeça.
Sua mão deixa meus lábios, que aproveito para puxar uma
lufada de ar considerável, ele desce mais o tronco até afastar a
renda da minha calcinha e lamber toda a extensão.
— Puta... — Tapo a boca com a mão enquanto tiro o lenço,
desajeitada, dos cabelos.
Emir não dá trégua ou tempo para me adaptar, a fome em
seus olhos devora minha alma, enquanto sua boca faz um trabalho
impecável e disciplinado a caminho do meu prazer.
O calor aquece meu canal e se alastra por todo sistema,
quando uma explosão de satisfação toma meu corpo, convulsiono,
aperto os olhos com força e uso o hijab para inibir qualquer som.
— Você tem o sabor mais viciante que já experimentei,
qalbi. — Ele limpa o canto da boca que brilha com meu prazer.
Um dedo invade meu canal, arquejo sem conseguir tomar
um segundo fôlego, então outro dedo se une ao primeiro e os
movimentos cálidos mantêm meu corpo em alerta, mesmo após o
orgasmo.
Somente com uma mão Emir consegue se desvencilhar da
braguilha e feixe, seus dedos trabalham habilidosos em minha
intimidade, eu continuo uma massa mole e entregue ao prazer de
qualquer ato libidinoso do turco.
— Eu não quero parar, qalbi, mas estou sem camisinha.
— Não tem problema, por mim. Pode continuar.
— Nunca fiz assim... — Ele solta e encara minha intimidade.
— Se for ainda melhor, sinto muito, mas nunca mais serei
encapado. — Solto um riso baixo diante do desespero do homem.
Ele abre mais minhas pernas e encaixa seu quadril no meu,
seu pau, brilhoso, sedento e firme, entra devagar, preenchendo
cada músculo do canal sensível.
Gememos baixo quando ele está completamente dentro,
seu corpo pende para frente, sou envolvida por seu peso e a boca
procura a minha em um beijo calmo e contido.
Movimentos cálidos destoam de nossas respirações a cada
intervalo das nossas bocas sedentas, Emir aperta minha anca com
força, marcando meu corpo com sua necessidade contida.
As estocadas aumentam a potência, mas ainda mantém um
ritmo comedido, tornando a tortura prazerosa quase um tormento.
Ofego e ele engole meus sons lamuriosos com sua boca, suprimida
por completo dentro do nosso momento de luxúria e entrega.
Quando finalmente chegamos ao ápice juntos, nossos
corpos tremulam e Emir faz questão de manter seus olhos nublados
de prazer nos meus. Cativos por um momento de entrega que ficará
marcado pelo resto dos meus dias.
Apesar de furtivo, sorrateiro e quase indecente, nosso ponto
de entrega foi além. Terminou de abrir a fenda, o escudo
esmoreceu, cedido pelo prazer que transcendeu o limite carnal.
Eu estou ferrada e apaixonada pelo turco.
Capítulo 44
“Aquele que nunca se queimou ao sol não sabe o valor da
sombra.”
— Provérbio Turco.
A comissária de bordo avisa através do sistema de som que
devemos afivelar os cintos, pois em breve começaremos a descer
no aeródromo na região mais afastada de Ancara, próximo à vila da
família.
O tradicional atrelado ao moderno, meus antepassados
criaram a Kartal Exportações com trabalho suado e esforço coletivo,
mantivemos o costume de empregar os nossos, sendo de perto ou
longe, o sangue sempre teve prioridade nos negócios.
Por isso, meu tataravô deu início a uma vila particular nas
terras da família e construiu nossa casa no alto da colina,
evidenciando o lugar do chefe, no qual eu ocupo hoje, apesar de
dividir a casa com tio Osman e sua família.
Mesmo com a união dos irmãos, quando meus pais eram
vivos nós morávamos na casa, sempre com alguma visita, o
movimento era intenso, já que meu pai era o chefe e responsável,
sempre estavam aptos a ajudar os menos afortunados.
Até hoje, muitos falam sobre a benevolência de Nadire,
minha mãe, que nunca negou tempo para ouvir outras mulheres da
vila, auxiliar da melhor forma e levar problemas mais sérios ao
conhecimento do marido.
Quando tudo desabou, tio Osman ocupou a casa e o
comando da empresa, até que eu tivesse idade suficiente para lidar
com a responsabilidade, com isso minha tia e primos vieram morar
conosco.
No começo, foi estranho ver outras pessoas exercendo a
função que sempre fora dos meus pais, por isso aprendi com o
tempo a bloquear o que era indesejado e ser prático.
Foquei nos estudos, me especializei, estudei fora por um
tempo e quando tomei meu lugar na empresa, tinha claro o desejo
de continuar me movimentando.
Sempre em frente e nunca me permitindo olhar para trás,
principalmente quando o noivado com Sevil findou daquela forma
sombria.
— Está tudo bem? — Catarina toca meu braço e sou
despertado das lembranças.
— Evet. A maioria não sabe falar inglês, às vezes um pouco
arrastado, mas, no geral, é difícil — lembro-me da informação.
— Tudo bem. Daremos um jeito.
Desembarcamos com o sol a pino, Catarina tem o cuidado
de voltar o hijab para o cabelo, sem prender de forma ajustada, mas
ainda respeitando o costume.
Em Istambul, até na área urbana de Ancara, as mulheres
têm costumes mais contemporâneos, mas na vila Kartal, ainda
existe uma tradição arcaica que se mantém fiel a antigos hábitos.
Entramos no SUV preto, sigo no banco de trás ao lado de
Catarina. Devido à viagem repentina, duvido que tia Kara tenha
tempo de alarmar a vila toda sobre minha chegada.
Passamos pela parte urbanizada, mostro uma coisa ou outra
para Catarina que admira tudo com atenção e curiosidade. Prometo
trazê-la para passeios em breve, como a Mesquita Kocatepe, ou
Kaeli, a cidadela de Ancara, que dispõe de ruas no bairro antigo, tão
obsoletas, que a deixarão encantada, tenho certeza.
Não muito adentro da área rural, chegamos aos portões de
ferro preto, ladeado por muralhas de pedra antiga, cerca de dois
metros de altura, um lugar quase pretérito, no entanto, guarda uma
magia ancestral que sempre me atinge em cheio quando chego.
Tenho o costume de ficar longe daqui quando estou em
Ancara, algo raro nos últimos anos, mantenho um apartamento
próximo da empresa no coração metropolitano da cidade, ao qual
me refugio em qualquer oportunidade.
— É incrível, Emir. É algum sítio arqueológico? — Catarina
baixa o vidro para olhar através do fumê.
— Aqui é a vila Kartal. — Ela volta os olhos para mim,
alarmada. — Vê a o pássaro fundido no meio do portão? — Aponto
e ela volta o olhar para frente. — É uma águia, o significado do
nosso nome.
— Eu... uau. — Ela está petrificada, os olhos brilham ao
adentrarmos a rua principal, ladeado por campos verdes, casas
modestas com acabamento em madeira e pedra, nada coloridas,
mantendo o natural da paisagem.
— Algumas coisas aqui são bem diferentes, você vai se
surpreender muito. — Deixo que ela absorva o clima campestre
enquanto me acostumo também.
É difícil deixar o saudosismo de fora ao olhar para cada
pedra empilhada nos muros e não me lembrar das conversas que
tinham com meu pai.
“— Emir, cada pedra erguida nesta vila contém história. Ela
é o nosso bem mais sagrado, sobreviveu por séculos, por
transformações que o país precisou sofrer, mas nosso sangue
preferiu se resguardar.
— Somos donos de tudo isso, baba? — Encaro a vila
abaixo, estamos na sacada do terraço, onde costumamos tomar çay
todos os finais de tarde.
— Só temos direito de possuir a nós mesmos, meu filho. O
que fazemos aqui é zelar pela tranquilidade dos menos afortunados.
— Mas e se algum deles desobedecer?
— Imposição só funciona para tiranos, Emir. Não somos
isso. Com o tempo, você aprenderá que o laço que nos une é o
respeito que mantemos. Seja justo, gentil e ponderado, assim
manterá o curso e o equilíbrio da vida.”
— Por que algumas pessoas estão jogando flores em
direção do carro?
— Bok! Eles sabem que estou aqui — lamento ao ver as
tulipas serem atiradas em nossa direção. Catarina continua
alternando o olhar entre mim e as pessoas lançando flores. — É
uma maneira de festejar o retorno de um líder. As tulipas são as
flores preferidas da minha mãe.
— Ah... — Catarina parece preocupada e quando sua mão
se aproxima da minha, recuo.
— Há muito tempo que não piso aqui, eles estão animados.
Disfarço o incômodo, convencida ou não, Catarina volta a
olhar pela janela, algumas pessoas chegam a apontar e acenar, ela
retribui, com um sorriso contido.
Nunca cheguei a pensar como Sevil se portaria na vila da
águia, meus planos sempre foram cumprir com o trato entre as
famílias, mas cogitar o depois, era algo que nem me preocupava.
Talvez os sinais tenham sido claros demais sobre nosso
enlace, eu fui tolo o bastante para ignorar qualquer indício e seguir
arrogante em uma crença falida.
Ver Catarina agora, empolgada com algo nunca visto, faz a
fagulha de esperança aumentar, uma pequena brasa, que ainda
pode me queimar de forma determinante se não tomar cuidado.
O carro segue o percurso até o topo da colina, onde uma
casa abrangente ocupa o espaço, brindada com o sol, os tons claros
se iluminam conforme crescem com a aproximação.
— Quantas pessoas moram nessa casa?
— Várias. Aqui funciona como uma central, sempre
entrando e saindo gente para os mais variados motivos. Por isso,
prefiro ficar no meu apartamento próximo da empresa. — Ela aperta
os lábios na minha direção.
— Então você pode muito bem me levar para lá, caso
precisemos fugir do caos que nos espera. — Um humor lascivo na
voz me faz alcançar seus dedos e apertá-los em minha palma.
— Eles deduziram muitas coisas, seguiram os costumes,
Catarina, sei que tudo é muito fora da sua realidade, mas procure
manter a mente aberta.
— Não se preocupe, Emir. Ficará tudo bem. — Aceno com a
cabeça em concordância.
— E sobre fugir, bom, tenho um ou dois esconderijos ótimos
por aqui. — Pisco um olho e Catarina sorri de lado.
O carro para em uma área coberta, dentro de um arco de
pedra, a porta lateral de acesso a casa é escancarada por um
sorriso enrugado e genuíno de tia Kara.
Ela bate as palmas e logo meia dúzia de pessoas surgem,
com tulipas nas mãos, sorrisos abertos e palavras prósperas para
me receber. Contorno o carro e abro a porta para Catarina, que
segura minha mão e logo está ao meu lado ajeitando o hijab, um
pouco tensa.
— Essa é a prometida? — Os olhos de tia Kara brilham. —
É uma preciosidade de linda. — Ela estende as mãos em direção à
Catarina, que não entende uma palavra do que diz.
— Vamos tentar o inglês, tia, Catarina não sabe nada em
turco. — Ela solta um riso sem graça e atinge minha lateral com o
cotovelo.
— Kuzen! — Samia surge pela porta, animada e
escandalosa como sempre foi e, consequentemente, coleciona
olhares repreensivos dos mais velhos.
— Samia, kuzen! — Abro os braços para receber seu corpo
miúdo em um abraço apertado.
— Senti sua falta. — Ela acerta um tapa no meu peitoral
quando se afasta. — Essa é sua prometida? — Seus olhos
aumentam ao observar Catarina.
— Sim e comporte-se — advirto antes que a garota respire.
— Mas eu não disse nada.
— Samia! — O tom de advertência de tia Kara a faz olhar
sobre o ombro. — Comporte-se. — Ela estala a língua, impertinente,
e se aproxima de Catarina.
— Sou Samia, prima dos Kartal por parte de mãe. Espero
que goste da vila da Águia e que seja muito próspera em seu
casamento. — O inglês perfeito da minha prima me faz erguer as
sobrancelhas, espantado.
— Agradeço a estima, Samia. Sou Catarina Mancini e
espero que possamos ser amigas. — Catarina encolhe os ombros,
ainda atordoada com a recepção.
— Amigas? — Seu tom sobe, animado demais. — Seremos
mais que isso. Praticamente irmãs.
— Não quero nem imaginar o quanto isso pode ser perecível
à minha saúde — comento e ganho um olhar sinuoso de ambas.
— Vamos, entrem. Tem uma mesa farta à espera de vocês
— tia Kara oferece.
Cumprimento as pessoas com um aceno de cabeça e
aceitos as flores ofertadas. Achei que passaria despercebido por
essa comoção, mas a notícia do compromisso já deve ter chegado a
todos e, obviamente, irão exigir um vislumbre da futura senhora
dessas terras.
Sinto um aperto no peito, Catarina caminha à minha frente,
elegante e cautelosa, ela procura manter sua postura quieta, em
respeito ao lugar e até para entender como todos se portam na
prática.
Ela seria uma perfeita senhora, tão boa e inteligente como
minha mãe foi, talvez ainda mais amada que ela.
Um sonho tolo, que só alimenta o golpe sofrido para quando
partir.
Capítulo 45
“Não são as coisas que um homem tem que o tornam fraco,
mas as coisas que ele deseja.”
— Noyan, série Ertugrul.
Tiro o sapato na entrada, junto dos demais, Emir quem
lidera o caminho até uma ampla sala cheia de sofás, tradicionais e
alguns de piso, almofadas no chão coberto por tapeçaria turca da
mais alta qualidade.
Tons terrosos, fortes e concisos, misturados a peças em
madeira escura, poucas, na verdade, o ambiente parece criado para
relaxar em um grande número de pessoas.
Uma lateral é preenchida por um desenho interessante de
treliças que formam pequenos losangos por onde a luz entra e
clareia o ambiente. Do outro lado, consigo ver um jardim florido e
minha curiosidade aguça ainda mais.
— Mandei preparar comidas deliciosas, Catarina. Tenho
certeza de que vai amar — Kara informa, sorridente.
— Deixe Catarina se instalar primeiro, tia. Tivemos uma
manhã conturbada em Istambul.
— Aqueles abutres sensacionalistas adoram uma carne
fresca. Assim que se casarem, tudo isso acaba. — Emir e eu
trocamos um olhar significativo.
— Temos tempo ainda, tia. Não se apresse.
— Claro que temos. Dez dias é mais que suficiente para
organizar a festa de noivado. Sua mãe chega quando? — Balbucio,
sem saber o que responder.
Corro os olhos dela para Emir, que ergue os ombros em
sinal de lamento, relembrando os avisos dados sobre a intensidade
da família com os trâmites matrimoniais.
— A viagem de Catarina para cá tem outro objetivo, tia.
Vamos com calma — Emir intervém e ganha um olhar repreensor da
senhora.
— O que pensa, menino? Sua prometida não pode ficar
esperando a boa vontade de um turco descuidado. Vocês assinaram
o termo de compromisso, agora precisam noivar. É a tradição.
— Tia, só queremos um pouco de tempo...
— Tempo para quê? — Ela coloca as mãos na cintura. — A
vida passa como um sopro, Emir, se não aproveitar cada momento,
não terá outra chance. — Sinto minha garganta oscilar.
Emir endurece a postura e aquela máscara fria e inabalável
cobre suas feições, blindando qualquer sentimento desperto pelo
comentário da tia, que tem a decência de parecer arrependida.
— Sei bem o quanto a vida pode se findar a qualquer
momento, tia.
— Não foi isso que quis dizer, filho.
— Samia, mostre à Catarina onde ela dormirá. — Ele dá as
costas para todos e marcha para um corredor à frente.
— Eu e minha língua.
— Não se preocupe, senhora. Emir está sobrecarregado
com o trabalho. — Sinto a obrigação de desanuviar o peso da culpa
dos ombros da mulher.
— Evet. Depois falaremos sobre o noivado, vá com Samia,
ela mostrará seu quarto. — Aceno com a cabeça e caminho logo
atrás da menina sorridente.
Samia usa um tipo de túnica comprida, comum na
vestimenta mais tradicional, um tecido leve e arejado para aplacar o
calor do meio do dia, toda em rosa-claro, parece uma criança
crescida.
— Este é seu quarto. — Ela abre a última porta no fim do
corredor. — O meu fica ao lado e do Cemil um pouco mais à frente.
— E Emir e seus tios?
— Do outro lado da casa. Vocês não podem nem pensar em
ficarem próximos, as pessoas poderiam pensar coisas que não
devem.
— Ah...
— Emir ocupa seu antigo quarto, desde que os pais
morreram, ele cedeu o lugar a tio Osman e tia Kara, Haydar ficou
com o outro quarto daquele lado.
— Eles dividem o mesmo lado da casa? — Preocupo-me ao
pensar sobre isso.
— Sim. Parecem dois búfalos quando se esbarram no
corredor. — A menina chega a estremecer o corpo e compreendo o
motivo.
— Agradeço a ajuda, Samia. — Estendo a mão para a
saída, mas ela continua parada. me encarando. — Faltou alguma
coisa? — pergunto, incerta.
— Acho que não. Suas malas já estão aqui, então vou te
ajudar a desembalar suas coisas.
— O quê?
— Somos família, agora, quero conhecer tudo sobre você.
Serei uma ótima companhia, vou te ensinar tudo sobre nossos
costumes, rapidinho você será uma turca nativa. — Ela bate palmas
animadas e eu ergo as sobrancelhas, impressionada. — Ah, mas
você tem que me contar como são as coisas no Brasil. Sempre tive
vontade de conhecer a América, é tudo tão mais...
— Liberal? — complemento.
— Eu ia dizer incomum, mas essa também serve.
A garota parece ligada em uma tomada potente, caminha
até a mala e puxa, com dificuldade, para cima da cama que, por
sinal, é grande e linda. Com a turbulência de Samia, não reparei na
decoração e agora me perco na paleta de cores sutil do quarto.
Paredes pintadas em pêssego, a cama com uma guarda
trabalhada em madeira escura, tralhada em arabescos delicados, a
colcha camurça sobreposto aos lençóis brancos.
Uma pequena penteadeira com um espelho oval ao lado, à
frente uma reentrância que faz a base da janela alta em arco. A
base tem um sofá embutido, delicado com tecido claro, alguns rolos
e almofadas coloridas dão cor ao peculiar ambiente de descanso.
Cortinas de voil complementam com delicadeza, caminho
até lá e encaro a vista para um jardim ornamentado, delicado, com
um pomar estruturado pouco mais à frente.
— É lindo, né? Alguns quartos têm esse cantinho e confesso
que amo passar horas com meus livros sob o sol da manhã ou do
fim de tarde. — Olho sobre o ombro para Samia.
— Gosta de ler?
— Eu sou uma devoradora de livros, romances, apesar de
consumir alguns títulos de não-ficção. A maioria são em inglês e
digitais, mais fácil de carregar e exige menos explicações. — Franzo
o cenho. — Gosto de romances adultos e tenho certeza de que tio
Osman não aprovaria o conteúdo.
— Tipo... chicotes e amarras...? — pergunto, incerta.
— Ah, você também lê? — Faço sinal positivo com a cabeça
e ela parece ter ganhado na loteria. — Eu amo leituras adultas, não
só essas exóticas, mas qualquer temática do gênero, posso te
indicar algumas.
— Claro, tenho uma lista enorme que já li. — Retorno até a
cama e abro o cadeado da mala. — Se tiver outra coisa para fazer,
eu consigo me virar por aqui.
— Ah, não. Estou desobrigada de qualquer tarefa por tia
Kara, só para te ajudar a se sentir em casa.
— Jura? — Tento manter o rosto amigável, mas a verdade é
completamente outra.
Não quero parecer uma pessoa desagradável com o
empenho deles, no entanto, mal cheguei e sinto falta da privacidade
do apartamento em Istambul, mesmo irritada por ser mantida
trancafiada, quando o mar de repórteres queria uma foto minha e de
Emir juntos.
— Você vai amar a vila, deve ser bem diferente do que está
acostumada, mas a beleza daqui é incomparável. Apesar que eu
não sei que tipo de paisagem está habituada, mas duvido muito que
no Brasil tenha pomares ou jardins como aqui. — A menina tagarela
sem parar e eu opto por simplesmente ouvir.
Para todos os efeitos, e ouvidos desta vila, Emir e eu
seguimos um acordo de casamento tradicional, não tenho espírito
para começar a explicar em que pé estamos na confusão do nosso
enlace.
Primeiro eu fui enganada, depois descobri o acordo, a
maldita moeda de troca que me irrita toda vez que penso sobre, aí
ele resolveu propor um acordo entre nós, que obviamente eu não
aceitaria, ser sua esposa.
Mas agora, depois de estar aqui, de conhecer mais da sua
vida, dos costumes e, principalmente, suas dores, as muralhas que
ergui contra seu ego gigante ruíram e a cada minuto que passo em
terras turcas mais me encanto por ele.
— Que linda... já está sonhando acordada com seu amado?
— Desperto dos pensamentos e encaro Samia que sustenta uma
blusa nas mãos, hipnotizada por minha dispersão.
— A última coisa que Catarina faz é sonhar acordada,
Samia. — Ambas nos viramos, assustadas, para a porta e
encaramos a figura de Emir.
Ainda usa o terno que mantém sua imagem inabalável de
sempre, mas seus olhos não contêm mais o gelo frio de quando saiu
da sala. Sorrio de lado ao deslizar os olhos admirando seu corpo
relaxado contra o batente e o pé cruzado sobre o outro.
— O que faz aqui? Você não pode entrar no quarto de sua
prometida, Emir. Esta nem é sua ala — Samia esbraveja feito um
cão enfurecido.
— Para início de conversa, eu não entrei — ele mira os pés
que se mantêm na entrada do ambiente —, segundo, foi tia Kara
que me mandou até aqui para chamá-las para comer.
— Um çay seria ótimo agora. Vamos, Catarina, depois
continuamos a arrumar suas coisas. — Olho sobre o ombro, quando
Samia segura minha mão e praticamente me arrasta corredor afora,
Emir mantém um olhar satisfeito e ganha um mostrar de língua em
resposta.
Passamos por outro corredor, do lado de fora das treliças
que emparedam a sala, agora consigo ter um vislumbre, muito
rápido, do jardim. É realmente lindo e florido, um lugar ótimo para
pensar.
Talvez se torne um ambiente muito frequentado por mim, já
que só tenho feito isso desde que o turco aterrissou na minha vida.
— Devagar, Samia — tia Kara chama a atenção da menina
que termina de me arrastar até a mesa grande e realmente farta de
comida. — Está com pressa do quê?
— Samia reivindicou Catarina como seu novo experimento,
tia. — Emir surge, preguiçoso, tomando o lugar à cabeceira da
mesa. — Talvez minha prometida fuja antes que o noivado
aconteça.
— Não diga isso, menino! — A mulher ergue as mãos.
— Catarina será sua esposa por toda a vida, kuzen. Deixe-
me aproveitar um pouco. Até porque, uma noiva em casa traz boa
sorte.
Emir e eu cruzamos outro olhar, sinceramente, me sinto
como uma vigarista traidora, apesar de não ter culpa na situação.
Sabemos que, em algum momento, partirei e retomarei minha vida
no Brasil e, de alguma forma, terei que suprimir os sentimentos
recém-descobertos pelo turco.
Uma vida de liberdade, independência, salvar a Mancini e
seguir o curso do que sempre sonhei ou viver um destino traçado
pela escolha de outro. Não é muito difícil imaginar o certo a se fazer.
Capítulo 46
“O galho da árvore deve dobrar quando é jovem.”
— Provérbio Turco.
— Ah, sim, Samia. Aproveite para pedir por seu noivo. — Tia
Kara bate as mãos, animada.
— Já pedi, tia. E logo ele será meu prometido. — Os olhos
da menina brilham tanto que chego a me espantar.
— Onde está Cemil? — Emir pigarreia e muda de assunto
drasticamente.
— Bem aqui. — O rapaz entra no ambiente indo direto à sua
mãe e lhe beija a mão antes da bochecha. — Como vai, Catarina?
— Ele acena com a cabeça.
— Muito bem, e você? — Sorrio, feliz.
Cemil é de longe uma figura muito mais agradável aos olhos
e ouvidos do que Haydar, com seu veneno e provocações.
Sinceramente, não sei por que Emir ainda tolera tanto do primo mais
velho.
— Atarefado, mas feliz.
— Não vai me cumprimentar, Cemil? — Samia cruza os
braços na altura dos seios, parece irritada.
— Te vejo todos os dias, garota. — Ele não lhe dá crédito e
ocupa a mesa ao lado do primo.
— Ainda vai se arrepender de me tratar assim, Cemil — ela
solta baixo, mas ainda é ouvida por todos.
Corro os olhos de um para o outro, o leve rubor nas
bochechas da garota condena o quanto lhe incomodou o tratamento
do primo mais novo. Se alguém tem alguma dúvida que ela nutre
sentimentos por ele é um tolo, de fato.
Emir encara a cadeira ao seu lado e volta os olhos na minha
direção, um nítido comando para que eu ocupe o lugar e, só para
mostrar que posso, sento do outro lado da mesa, junto de seu primo
mais novo.
— Seu tio disse que chega em alguns dias, Emir. — Dona
Kara ocupa o lugar que Emir destinou a mim.
— Sim, tia, alguns assuntos urgentes o prenderam em
Istambul.
— Aquele velho não sabe o significado de aposentadoria. —
Ela gesticula com as mãos e todos riem à mesa.
Apesar do tom repreensivo, ela traz humor no semblante, o
que me faz acompanhar a piada interna.
Samia ocupa o lugar ao lado da tia, de frente para mim, mas
seus olhos não deixam o primo mais novo que parece
completamente alheio à atenção dispensada.
— Deve levar sua prometida para um passeio em Selcuk
para o festival, abi — Cemil comenta ao se servir de um pão, partir
ao meio e oferecer metade a mim.
Aceito e sorrio, encaro Emir que mantém o semblante
fechado, escrutina o primo com raiva nos olhos, quase tão latente
quanto a direcionada a Haydar no apartamento em Istambul.
— Há muito que mostrar na vila e na Turquia, não
precisamos ir a um festival idiota. — Ele solta algo em turco e
recebe um olhar reprovador de dona Kara.
— Emir morre de medo de camelos — Cemil tomba o corpo
para o lado e confidência.
Chicoteio os olhos para meu prometido, que parece
constrangido, mas ainda mantém uma carranca severa, direcionada
ao primo.
— Deixe Emir em paz, Cemil. Camelos são de fato animais
asquerosos — Samia se pronuncia em defesa do primo. — Ao
menos, ele não teme pessoas. — Ela ergue as sobrancelhas de
forma insinuante.
— O que quer dizer, menina? — A mais velha corre os olhos
de um para o outro, curiosa.
— Nada, anne. Samia é intrometida e não tem noção das
coisas que fala.
— Eu, particularmente, não tenho interesse em estar
rodeada de camelos — intervenho quando a menina abre a boca
para devolver uma réplica que, pelo seu semblante, não seria nada
educada.
— Fico feliz em saber disso. — Emir pisca um olho para
mim. — Preciso cuidar de algumas coisas da empresa agora à
tarde, no fim do dia estarei disponível para lhe mostrar a vila.
— Tudo bem.
Todos à mesa cultivam um olhar admirado que dança entre
mim e o chefe da família, parecem absortos em uma admiração
velada e não tenho ideia do motivo.
— Aproveitaremos o tempo livre para programar sua noite
de noivado, Catarina. Temos muito o que decidir, principalmente por
sua mãe não estar presente. Allahalla! Temos que fazer algo digno
de uma sultana.
— Já disse que nossa visita tem outros objetivos, tia — Emir
intervém.
— Não tente fugir dos costumes, Emir. Catarina merece toda
a glória de uma noiva. Além do mais, você ainda precisa se provar
merecedor de seu afeto.
— Merecedor? — Encaro a senhora, intrigada.
— Tia... — Emir lamenta e isso só aumenta minha
curiosidade.
— Emir terá que provar que a merece e tomar um café muito
especial na noite do noivado.
— Especial?
— Única coisa que me amedronta é esse café. — Cemil
estremece o tronco.
— Pois que sua noiva não se compadeça e encharque seu
café com muito sal — Samia rebate e Cemil solta algumas palavras
em turco.
— Sal? — Arregalo os olhos — Vocês colocam sal no café?
— Somente do noivo, Catarina, na noite do noivado. É a
maneira da noiva testar o comprometimento do homem para o
enlace.
— E ele precisa beber tudo?
— Sim — é Emir quem responde.
— Interessante. — Tombo a cabeça, sutil, de lado, um
sorriso satisfeito cresce nos lábios.
— Vejo que ficou feliz com a tradição, qalbi. — Seu tom é
provocador.
— Muito.
— Será uma noite especial, uma pena sua mãe não estar
aqui.
Sinto uma pontada atingir meu coração, por um mísero
momento me permitir desfrutar da expectativa de uma noite que
nunca acontecerá.
— Falarei com ela, quem sabe consiga vir. — Sorrio
apertado ao encarar o olhar esperançoso da senhora.
— Isso será uma bênção. — Ela une as mãos em
agradecimento enquanto Samia festeja a notícia.
Ignoro deliberadamente o olhar de Emir, que sinto aquecer
minha pele, tamanho o escrutínio. Depois explicarei que a mentira
só tem o intuito de ganhar mais tempo para que não apressem
nenhuma cerimônia.
Enquanto comemos um pouco de cada comida que chega à
mesa, escuto dos presentes as histórias sobre a vila e como foi
crescer e viver ali. Conheci um pouco mais sobre o garoto Emir,
valente e disposto, sempre foi inquieto e gostava de viver entre os
moradores.
A tia também menciona a rixa de Haydar e ele, de forma
bem mais branda, como se não passasse de uma rusga
adolescente. Um olhar discreto na direção de Emir e Cemil percebo
que a senhora só tem conhecimento da parte tola do histórico de
ambos.
Depois de tomar um çay, apesar da tentativa de recusa não
funcionar, volto para o quarto, me despeço de todos com um aceno
de cabeça e alego um cansaço excessivo para me livrar da
companhia de Samia.
Entro no quarto e pego meu celular da mesa de cabeceira,
onde deixei carregando, confiro as mensagens, respondo Layla que
exige fotos e vídeos do lugar, tiro dúvidas da equipe de criação e
finalmente abro a conversa com dona Elisandra.
* Oi, mãe.
** Filha! Como está tudo na Turquia? Vi as notícias
sobre o compromisso.
* Estão conturbadas, mas sob controle.
** Espero que possa resgatar seu lado turco e dar uma
chance a Emir, filha. Ele é um bom homem e a fará feliz.
* Você não me criou para ser uma esposa, mãe. Por que
essa preocupação agora?
** Percebi tarde demais que não podemos viver à
margem, filha. Fechei meu coração para o mundo depois que
seu pai morreu e, por consequência, te arrastei para essa
reclusão.
* E por que o turco?
** Porque só um turco te amará e devotará a vida a você.
* Não consigo entender.
** Um dia fará sentido, só mantenha a mente aberta.
Penso em insistir, mas conheço dona Elisandra bem o
suficiente para saber que entregou demais nas mensagens, apesar
de suas palavras soarem saudosas e confusas.
Deito na cama, fecho os olhos e logo sou jogada para um
sonho confuso, no qual Emir vem me buscar, festejando e
dançando, junto de sua família que bate palmas e se move ao som
de instrumentos musicais típicos daqui.
Estamos felizes, ele une nossas mãos e me puxa em
direção à grande sala, todos nos parabenizam e desejam
felicidades, é nosso casamento, parece tão certo e real.
De um momento para o outro o que era colorido se torna
sem vida, cinza e desbotado. Olhamos em direção à entrada e
Haydar entra acompanhado de Sevil, ambos parecem nervosos e
inconformados.
Emir se afasta de mim, clamo seu nome diversas vezes,
mas ele não me olha, nunca. Tento caminhar em sua direção e sou
impedida por minha mãe, que segura meu pulso com força.
Protesto, inconformada, todos parecem absortos pela
tristeza, minha mãe me puxa para a saída, eu não quero partir, mas
não consigo lutar contra sua vontade.
Chamo o nome de Emir diversas vezes, mas ele parece não
ouvir, ninguém se importa com meu desespero. Ouço um choro
baixo, vindo da sala e um último olhar antes da porta me fechar do
lado de fora, enxergo Emir ajoelhar e cobrir o rosto com as mãos.
— Não! — Acordo assustada e ergo o tronco da cama. —
Não! Não!
— Catarina, você está bem? — Olho em direção à porta e
vejo Samia entrar, apressada.
— Onde ele está?
— Quem? Emir? — Sacudo a cabeça em concordância.
— No escritório com Cemil.
Levanto em um rompante, ajeito o hijab na cabeça conforme
caminho porta afora ouvindo Samia protestar em turco e correr para
me alcançar.
— O que vai fazer, mulher?
— Assumir alguns riscos.
Capítulo 47
"Os verdadeiros perdedores são aqueles cujos corações e
almas são cegos.”
— Ibn Arabi, série Ertugrul.
Depois de repassar várias pendências da matriz com Cemil,
o assunto delicado e nebuloso finalmente ganha nossa atenção.
Com tio Osman em Istambul se inteirando de todos os pormenores
no caso, temo que nossa reunião particular não acabará bem.
— Já passou da hora do baba saber de tudo, abi. Não se
preocupe.
— Não quero minar ainda mais o ódio do seu irmão por
mim, Cemil.
— Haydar tem cavado a própria cova há um bom tempo.
— Só quero dar um basta nisso tudo.
— Bons tempos estão a caminho, abi. Agora que vai se
casar, as coisas mudarão, baba vai encontrar uma noiva para
adoçar o coração amargurado de Haydar.
— Catarina foi uma grata surpresa, abi, mas ainda é cedo
para dizer o que o futuro nos reserva. — Suas palavras diretas
sobre nosso enlace invadem minha mente e fazem o amargor da
rejeição me inundar.
— Não seja pessimista, homem. Você é comprometido —
meu primo bate as palmas, animado —, não há melhor sorte para
um homem, chefe da família mais importante de Ancara, quiçá da
Turquia, bem-sucedido, tem seu charme e ainda ganha uma
preciosidade daquelas como noiva.
— Acha minha pretendida atraente, Cemil? — Ergo as
sobrancelhas para a empolgação do rapaz.
— Seria um tolo em dizer que não. Ela é linda e tem uma
vivacidade no olhar que complementa a frieza dos seus.
— Devo agradecer por isso? — Tento soar irônico apesar de
engolir com certa dificuldade.
— A ela, sim, a mim só coube a honestidade.
— Deixemos nas mãos do destino, Cemil. Expectativa pode
ser uma bela maneira de ceifar a vida se depositada de forma
errada.
— O destino entrou por sua porta, abi. Acredite.
Uma batida imponente nos desperta da conversa e me
intriga ao ver Catarina surgir na fresta aberta, com um sorriso
acanhado, que em nada parece a mulher que conheci no Brasil.
O hijab oculta seus cabelos claros e volumosos, uma beleza
incomparável, agora ocultada para a vista de quem a merecer. Sinto
meu peito inflar em expectativa e esperança de que eu seja esse
sortudo.
— Desculpe a intromissão, mas o fim de tarde se aproxima
e eu gostaria muito de conhecer a vila com meu prometido. — A
submissão na voz, o olhar baixo e discreto.
Por um momento, fico perdido em busca de entendimento,
até que ela ergue o olhar e pisca um olho para mim, segura os
lábios para não sorrir em deboche e uma fisgada na região baixa
desperta um desejo inconveniente.
Ela está jogando comigo, montou uma cena perfeita da
típica turca obediente, minha mente se inunda com as inúmeras
possibilidades de subjugação, dentro e fora da cama, um desafio à
altura que estou louco para enfrentar.
— Acho mais do que justo que o façam.
— Mas eles não podem ir sozinhos, Cemil. Podemos
acompanhá-los. — Samia surge de trás de Catarina.
Até parecia aguardar a oportunidade perfeita de se
manifestar e colocar nosso primo em uma situação que não teria
como escapar.
— Eu... preciso...
— Vamos lá, Cemil. Já trabalhamos demais por hoje. Vamos
aproveitar a vila. Há muitos anos que não caminhamos por essas
ruas juntos. — Levanto da cadeira, entusiasmado.
O olhar do rapaz que tenho como irmão me encara com
saudosismo, lembranças da nossa infância e parte da adolescência,
ao qual aproveitamos com intensidade e nos divertimos entre
brincadeiras e aprendizados para uma vida.
— Tudo bem, vamos. — Ele levanta e lidera o caminho para
a saída.
Aproveitamos para fazer um tour rápido pela casa, Catarina
ficou encantada e espantada com o tamanho da cozinha e a
quantidade de pessoas que trabalham nela.
Tomamos a saída dos fundos, mais próxima ao pomar e
hortas, praticamente tudo que consumimos vem da vila, cultivamos
em nossa terra o alimento que nos sustenta.
Soa um pouco poético, mas também foi a forma de unir e
manter uma vida decente em tempos de escassez do passado. A
necessidade se tornou hábito e tradição, então cada família assumiu
seu papel e juntos aprendemos a conviver e perseverar.
— É tudo tão organizado — Catarina comenta quando
passamos pelo último canteiro de leguminosas.
— Cada um entende seu papel na vila e cuida para que não
haja brechas.
— Mas e se a família que cuida das galinhas não tiver
descendentes que queiram exercer a tarefa?
— Isso raramente acontece, mas nunca negamos a
oportunidade de alguém crescer e sonhar com algo diferente. Outro
assume o lugar.
— Interessante.
Subimos uma pequena colina, Catarina caminha ao meu
lado, enquanto Samia e Cemil tagarelam alguma divergência de
opiniões. Os dois não conseguem permanecer na companhia um do
outro sem que troquem alfinetadas.
— Faz muito tempo que não tenho essa visão. — Paramos
no cume, terras a perder de vista, ruas, casas e pessoas transitam
ao se prepararem para encerrar o dia.
— Por que se manteve distante disso tudo? É lindo. É o seu
legado. — Observo o perfil da minha prometida, que parece absorta
na paisagem.
— Acho que a morte me afastou de tudo que contém vida.
Só recentemente voltei a ter esperanças de cultivar um futuro.
Permanecer aqui sempre me lembrou dos meus pais e da
responsabilidade de cuidar de todos.
— Sinto muito que tenha perdido tanto, Emir. — Volto os
olhos e encontro os seus pesarosos.
— Acho que nós dois perdemos demais, qalbi. — Não
resisto e ergo o dorso, acariciando de leve sua bochecha.
— Uhum... Acho que devemos entrar. — Escuto Samia, um
pouco distante, nos interromper.
— Pode ir com Cemil, Samia. Ainda tem um lugar que quero
mostrar à Catarina.
— Mas vocês não podem...
— Samia. Ouviu, Emir. Venha. — Cemil é enérgico e alguns
protestos são ofertados pela garota.
— Acho que isso pode ser um problema. — Catarina corre
os olhos por onde meus primos partem e volta a me olhar. — Não
quero ficar mal falada na vila.
Jogo a cabeça para trás e solto uma risada alta e sonora,
essa mulher não tem ideia do quanto é prazeroso vê-la se
comportar como uma turca típica.
— Não se preocupe, qalbi. Não roubarei sua virtude.
— Disso não tenho dúvidas. Já minha calcinha... — Ela
tomba a cabeça de lado e sorri provocadora.
Em resposta, me aproximo um passo e nossos corpos estão
unidos, passo os braços em sua cintura e a aperto ainda mais.
— E hoje você está usando uma? — Desço os lábios até
sua mandíbula, resvalo e traço um caminho até o pescoço, que
percebo estar arrepiado.
— Só há uma maneira de saber, arabiano. — Rosno para o
apelido descabido.
Um dia aquele peão irá me pagar por dar de bandeja a essa
mulher uma forma de fazer minha irritação surgir sem grande
esforço.
Afasto de imediato e entrelaço nossos dedos, praticamente
arrasto Catarina para o outro lado da colina em direção a um
estábulo pouco utilizado. Descobri o lugar depois que meus pais
faleceram, passei a frequentá-lo diariamente e várias noites o fiz de
morada.
A porta de madeira range quando a abro, Catarina ao meu
lado não menciona uma palavra, acho a caixa de luz e aciono a
alavanca para cima, iluminando o lugar.
A velha escada de madeira está no mesmo ponto, próximo
do canto esquerdo, nos encaminho até lá e a faço subir os degraus.
O ambiente parece menor do que me lembro, um colchonete
de palha, limpo e um jogo de lençol novo, alguém teve o cuidado de
aprontar o lugar para mim.
— O que é tudo isso?
— Meu refúgio. Passei muitas noites aqui depois da morte
dos meus pais.
Estamos sentados, já que a altura para o teto não nos
permite esticar o corpo, Catarina engatinha até mim, seus olhos
calorosos me cativam de imediato e quando ela monta meu colo,
fico paralisado.
— Não quero que se sinta sozinho, Emir. Nunca.
— Você sabe bem o que é isso, não é, qalbi? — Levo uma
mão até o hijab e desfaço o aperto.
Ela ajuda na tarefa e logo suas madeixas loiras moldam seu
rosto e consigo sentir o perfume que exala. Romãs, calor e Catarina,
a combinação afrodisíaca para me fazer suspirar.
— Sim, eu sei, mas não quero mais sentir. — Suas mãos
quentes seguram meu rosto e um beijo carinhoso é ofertado.
Aceito, de bom grado, tudo que ela me entrega, sem
palavras ou explicações, Catarina nitidamente está diferente, parece
mais receptiva, como se nenhuma barreira mais existisse entre nós.
O desejo aumenta e a calmaria se esvai dando lugar à
excitação, seguro sua cintura e a tombo para frente, escalamos o
pequeno colchão, mal cabe um corpo, mas para o que está prestes
a acontecer, será ideal.
Acho que adotamos um padrão peculiar com a escolha de
lugar que transamos. Boate, cama de solteiro, poltrona de avião e,
agora, um colchonete fino e desconfortável.
Com destreza e rapidez nos livramos da roupa, minhas
mãos passeiam pelas curvas perigosas do seu corpo, as suas
cravam em minhas escápulas, o que me incentiva a ir adiante.
Quando finalmente estou dentro dela, sinto uma calmaria
retornar em minha alma, a selvageria acalma, o sentimento de
posse abranda e tudo em volta parece se encaixar. Como se o
mundo fosse perfeito quando estamos conectados.
A madeira rangendo sob o colchonete, nossos quadris se
chocando e o barulho úmido do prazer audível é a trilha sonora para
todas as palavras que declamo, em turco, para os ouvidos da minha
prometida.
Ela não pode entender com a audição, mas o lúdico
esperançoso em mim espera, do fundo do coração, que sua alma
capte cada apelo feito para que nunca permita que nos afastemos.
Capítulo 48
“Pegue uma agulha e fure antes de furar as outras.”
— Provérbio Turco.
Dois dias depois da nossa chegada e não param de deixar
presentes, agrados, flores e mensagens de prosperidade e
felicitações ao futuro casal Kartal.
Até parece que Catarina e eu somos os sultões prestes a
ocupar o império e liderar a grande massa por um caminho próspero
e abastado. Se eu sinto e enxergo as atitudes, por mais afetuosas
que sejam, como uma grande pressão sobre os ombros, nem posso
mensurar o que minha prometida pensa.
Depois da noite no celeiro, onde fui corajoso de admitir tudo
que sinto quando a toco, ou simplesmente pouso os olhos em sua
figura, mas covarde o bastante para não expressar para seus
ouvidos, não tivemos mais oportunidade alguma de ficarmos a sós.
Cemil me arrastou para a empresa, me colocou a par de
todos os acontecimentos e mantivemos contato com tio Osman, que
parecia um búfalo selvagem nas teleconferências que realizamos.
Por outro lado, Samia, minha querida prima impertinente,
não deixou Catarina sozinha nem por um decreto. Acho que nossa
demora no passeio e o fato de Catarina estar com o hijab mal
colocado ao retornar, deixou a garota zelosa demais.
Estou finalizando mais um dia de trabalho árduo, pronto
para enfrentar alguma comoção ao retornar à vila, antes de
finalmente pousar os olhos sobre a vivacidade clara e límpida da
minha prometida.
É tão fácil nos acostumarmos com aquilo que faz bem para
a alma. Ignoro, deliberadamente, qualquer angústia pelas
declarações já feitas por Catarina, prefiro a ilusão de um tolo, que
sua visita é nada menos que a premissa do meu futuro.
Ouço meu celular apitar com uma mensagem, encaro a tela
e meu rosto se divide em dois com tamanho sorriso e alegria.
** Hoje você vai me mostrar Ancara por seus olhos e,
quem sabe, uma visita ao seu apartamento na cidade.
* Exigente demais, não acha?
** Duvido que já não estivesse em seus planos me levar
para uma visita reservada.
* Devo me preocupar com seus dons de adivinhação?
** Não, se não estiver escondendo nada.
* Nunca mais esconderei nada de você, qalbi. Juro por
minha vida.
Meu sorriso diminui com a sinceridade expressa na
mensagem. Uma leve pontada acelera os batimentos, necessitado
do reconhecimento dela.
— Emir — Cemil adentra a sala sem ao menos bater, o
semblante preocupado me coloca em alerta —, temos um problema
em Istambul, devemos partir imediatamente.
— O que aconteceu?
— Haydar.
— Bok! Ele não está em Ancara?
— Não. Bem que estranhei ele não dar as caras, mesmo
depois de alguns dias da sua chegada. Ao que parece, ele voltou a
Istambul no dia que você veio para Ancara.
— O que ele fez?
— Está preso. — Levo o indicador e polegar entre as
sobrancelhas e aperto aquela região em específico.
— Seu pai...
— Já sabe e diz que não fará nada para ajudar meu irmão.
— Bok! Vamos. — Recolho meus pertences da mesa e sigo
um Cemil determinado.
A caminho do aeródromo, cancelo o compromisso com
Catarina, não entro em detalhes, deixo a promessa de uma
recompensa quando nos vermos novamente.
Levamos mais tempo que o esperado para embarcar, uma
viagem não programada requer o dobro de cautela e preparativos.
Aproveito para chamar nossos advogados em Istambul e colocá-los
à disposição de Haydar na delegacia.
Por sorte, a notícia ainda não vazou, mas Cemil está em
contato com as relações-públicas da Kartal para estarmos
precavidos, caso alguma informação chegue à imprensa.
Quase quatro horas depois, madrugada adentro, chegamos
ao distrito onde Haydar está detido, os advogados o acompanham
em um depoimento. Conseguimos falar com um dos responsáveis
pelo caso e parece que foi uma denúncia anônima feita ao porto de
Haydarpasa.
Haydar estava em uma pequena reunião com alguns
contrabandistas e ladrões de carga que, por coincidência,
equipavam alguns dry box sob responsabilidade da Kartal com
mercadorias sem nota fiscal.
— Onde está tio Osman? — questiono assim que finalizo
uma chamada.
— No apartamento. Já falei com Berna e ele parece
tranquilo.
— Acho pouco provável. — Cemil acena em concordância.
— Quanto tempo até o liberarem? — O olhar cansado do
meu primo me faz segurar sua nuca e dar um aperto reconfortante.
— Vá para casa, eu fico e vejo o que posso fazer.
— De jeito nenhum. Meu irmão escolheu passar por tudo
isso, Emir, não permitirei que você viva seu martírio.
— Cemil, está tudo bem.
— Não, não está.
— O que fazem aqui? — Ambos olhamos assustados em
direção ao corredor da sala de interrogatórios, por onde Haydar
caminha, altivo e imponente, ajeitando a manga do blazer.
— Acho que essa pergunta cabe a nós, abi — Cemil toma a
frente, irritado.

— Não entendi. Já expliquei aos advogados e às


autoridades o que aconteceu. Os responsáveis foram presos e eu
sou o homem que os capturou.
— Como? — Avanço um passo, desacreditado.
— Enquanto você passeia pelo mundo e brinca de casinha
com sua prometida estrangeira — Haydar tomba a cabeça de lado,
irônico —, alguém faz o que deve ser feito. Cuidar dos nossos
interesses.
— Haydar, chega! — Cemil ralha com o desrespeito do
irmão.
— Você pode ser um cachorrinho adestrado do chefe da
família Kartal, irmãozinho, mas não eu.
— Engraçado ser capaz de heroísmo usando o mal que
você mesmo causou.
— Prove. — Ele avança um passo na minha direção e em
resposta replico o movimento.
— Chega vocês dois. Vamos para o apartamento. Lá
poderemos conversar sobre tudo isso.
— Não tenho nada a dizer a nenhum de vocês. Queriam os
responsáveis pela confusão de carga de Istambul e Santos, pois
bem, eles estão detidos agora em uma cela e pagarão pelos crimes
cometidos.
— Você não vai se safar tão fácil assim, Haydar — declaro,
uma promessa firmada no tom de voz.
— É mesmo? E vai fazer o quê? Colocar a Kartal em mais
um escândalo?
— Isso chegará aos ouvidos da imprensa assim que
amanhecer.
— Claro. Porém só vai colocar em dúvida a capacidade de
gestão do atual CEO e não a honra da família.
Avanço outro passo, pronto para unir meu punho no maxilar
audacioso do meu primo, mas Cemil intervém e me empurra,
apontando o caminho da saída.
Uma rápida olhada em volta constato a quantidade de
pessoas e testemunhas, prontas para criar e especular
possibilidades sobre a presença de três figuras majoritárias da
Kartal em uma delegacia.
Chegamos ao apartamento e nenhum sinal de tio Osman ou
qualquer empregado, vou direto para meu quarto, o mesmo que
Catarina usou no período em que estivemos aqui.
Dispo minha roupa e tomo uma ducha refrescante, deixo a
água lavar toda minha irritação e quando estou na cama, pronto
para descansar algumas horas, vejo as notificações de notícias com
o nome Kartal.
A enxurrada começou, acusações de uma teia de armações
que a Kartal é acusada e eu, como líder, supostamente sou o
mandante de tudo. Haydar aparece em uma fotografia, ao deixar a
delegacia, como o homem que desmascarou toda a tramoia.
Jogo o celular na parede quando leio uma nota
sensacionalista, na qual vinculam a vinda da turca estrangeira para
cá a fim de gerir os negócios obscuros cultivados por Emir Kartal.
A chance de descanso vai para o espaço e a única coisa
que consigo fazer é pensar em como toda a merda que Haydar
armou para me prejudicar, no fim, afetou a única que jurei proteger e
cuidar.
Pouco me importa o que pensam de mim, isso não foi
relevante quando Sevil se matou e não será agora. Podem me julgar
da pior forma, acusar dos crimes mais horrendos e desonrosos, mas
nunca permitirei que falem qualquer coisa de Catarina.
Quando o primeiro raio de luz ilumina as cortinas fechadas,
estou de pé, vestido em um terno adequado e ocupo o escritório, no
qual não paro de atender a ligações da nossa equipe e de alguns
parceiros de negócios mais próximos.
Ameaças veladas de findar os contratos para que não
manchem ou liguem suas empresas aos serviços deturpados da
Kartal. Haydar conseguiu arrumar uma grande dor de cabeça para
tudo que levou tempo demais a ser construído.
— Bom dia, abi. — Cemil entra pela porta, vestido e
alinhado, mas com o semblante tão cansado quanto o meu.
A prova nítida que nenhum de nós teve o descanso
merecido e, ao que parece, estamos longe de obter.
— Seu pai?
— Na sala, nos aguarda para o café.
— Não estou com fome.
— Haydar o acompanha, é melhor não contrariar. — Solto
uma lufada de ar, cansado.
Acompanho Cemil até a mesa, onde tio Osman ocupa a
cabeceira e Haydar sentado à sua direita, nos dá um sorriso
cúmplice e descansado. Sinto o sangue bombear com mais afinco
nas veias e faço um esforço para manter a máscara irredutível da
quietude.
— Günaydin[28]! Que bênção os homens da família
finalmente se reunirem para desfrutar de uma refeição juntos —
Haydar comenta irritantemente alegre.
— Seria uma bênção muito boa, meu filho, se a desgraça
não batesse à nossa porta.
— Não se preocupe, baba. Tenho certeza de que nosso
competente CEO Emir Kartal tem a solução certa para todo o
problema.
— Já basta, Haydar! — Tio Osman eleva a voz o suficiente
para calar a dissimulação do homem.
— O que faremos, baba? — Cemil questiona, preocupado.
— Provaremos que não somos vis e nunca nos aliaríamos a
uma corja baixa e imoral.
— Difícil isso acontecer, já que as pessoas envolvidas têm
ligação direta com a matriz e presidência — Haydar comenta ao
cortar um pedaço de pão.
O homem é o único que tem apetite à mesa, a comida
fresca e intocada só revira ainda mais meu estômago enquanto
racionalizo sua declaração.
— Então foi isso? Você teve o cuidado de escolher a dedo
para manipular pessoas que estavam ligadas a mim. Clientes,
funcionários, contatos do porto, tudo para me responsabilizar?
— Haydar, você fez isso? — Tio Osman deixa a mágoa
transparecer em seu semblante.
— O que adianta argumentar, baba? Se com todas as
provas contra Emir, você ainda dá crédito às palavras venenosas
que ele profere.
— O que te fiz de tão sério para minar tanto rancor, primo?
— Finalmente tomo a iniciativa de perguntar o que nunca tive
coragem.
Colocar à mesa todas as cartas, motivos e acusações,
deixar límpido como água todos os sentimentos conflitantes que ele
cultiva contra mim.
— Você não a salvou. Por cinco, longos, minutos, que
resolveu priorizar sua reunião, o coração dela parou de bater.
Abro a boca, em choque, não fazia ideia de que ele tinha
conhecimento de tal fato. Nunca imaginei que Haydar soubesse da
maior vergonha que carrego desde que Sevil tirou a própria vida.
Capítulo 49
“Todo infortúnio é uma lição.”
— Provérbio Turco.
Esse maldito aperto no peito não me deixou em paz desde
que li a mensagem de Emir na noite anterior, cancelando os planos.
Alegou ter uma emergência em Istambul e minha intuição não falhou
quando abri os sites de notícias essa manhã e vi a enxurrada de
reportagens sensacionalistas.
Já é almoço e ainda não consegui contato com meu
prometido. Depois das matérias que li sobre o caso que estourou na
Kartal, nem consigo imaginar em como Emir está se sentindo.
Não preciso de mais tempo ao seu lado para saber que
essas informações são errôneas e maldosas, só ainda não entendi o
intuito de pejorar tanto a imagem de um empresário.
— Tia Kara disse que no fim do dia tio Osman e os meninos
estarão de volta.
— Estou quase pegando minha mala e embarcando para
Istambul.
— Hayir! Nem pense nisso. — Ambas viramos ao mesmo
tempo para encontrar a senhora que caminha cautelosa até o meio
da sala.
— Por quê? Devo ser a quase noiva obediente que abaixa a
cabeça e acata a qualquer desmando? Até os absurdos que esses
repórteres inventaram sobre minha vinda à Turquia?
— Não seja tola, criança. Isso não tem nada a ver com
machismo ou obediência. A situação está delicada para a empresa
e, em particular, para seu noivo. O melhor que tem a fazer é não
preocupar Emir.
— Tia Kara tem razão, Catarina. Já imaginou se você
aparece no aeroporto de Istambul com esse escândalo agora? Eles
a devorariam viva e Emir ficaria louco. — A garota segura meu
antebraço em sinal de apoio.
— Está bem, vocês devem estar certas, mas eu não fico
outra noite aqui, caso Emir não regresse.
— Gosto da sua determinação, menina, lembra muito
Nadire, mãe de Emir.
Aceno com a cabeça somente uma vez, rumo para o quarto
e pego meu iPad, na tentativa de distrair a mente até que Emir
retorne.
Ainda não sei o quão verdade as notícias podem ser, mas
tenho dúvidas que se envolve Haydar, com certeza boa coisa não
vem daí.
Abro minha caixa de e-mail e começo a responder a
quantidade exorbitante de questionamentos do setor de criação, o
projeto turco foi interrompido por minha mãe, que preferiu focar na
reestruturação da fábrica antes de dar um próximo passo.
Fico feliz com sua sensatez, aproveito para olhar os e-mails
administrativos com as atualizações e processos de encerramento
das duas filiais. A remodelagem da matriz será mais complicada e
levará alguns meses até que seja concluída.
Ainda manteremos o atendimento aos clientes seletos, com
um reajuste considerável nos preços, já que nosso prestígio nos
permite elevar o padrão.
Tudo que eu sempre quis para nos negócios Mancini tem
acontecido, ver o legado ressurgir do buraco é como perpetuar a
existência do meu pai, ao menos fora, até pisar em solo turco.
A familiaridade com o lugar, esta vila encantadora, apesar
de não descender dos Sadik, sinto em cada fibra do meu ser um
pertencimento incomum, algo que só acontecia ao pensar na
sobrevivência da fábrica.
Horas mais tarde, sou chamada por uma das ajudantes na
casa para comparecer até a sala, pois há uma visita me
aguardando. Enrugo a testa e ajeito minha roupa um tanto
amarrotada, estava jogada na cama, displicente, julgando cedo para
me banhar e aguardar pelos homens da família.
Acelero os passos pelo corredor, curiosa ao extremo em
saber quem poderá ser neste fim de mundo, até que estaco no lugar
ao ver minha mãe e Layla paradas de pé na sala, com lenços na
cabeça e bolsas nas mãos.
— Ah, meu Deus! O que fazem aqui? — praticamente grito
ao correr até Layla e a abraçar.
— Cuidado, garota. Vai bagunçar meu look diferenciado. —
Afasto ao segurar seus braços.
— O que faz aqui, mulher?
— Sua mãe me convidou para acompanhá-la em uma
visitinha.
— Mãe... — Vou até ela e de maneira muito comedida,
seguro seus antebraços e beijo suas bochechas.
— Olá, querida.
— Acabei de passar a tarde debruçada nos e-mails e
apontamentos sobre as mudanças.
— Sim, a primeira etapa para a reestruturação foi dada.
— E por que não está lá?
— Porque é tudo chato demais e não quero ficar me
explicando para cada amigo ou parceiro que se acha no direito de
saber mais do que divulgamos na imprensa. — Ela abana a mão no
ar com desdém.
— Dona Elisandra deixou alguém muito competente em seu
lugar — Layla solta, enigmática.
— Quem?
— Meu pai, oras. — Ela ergue os ombros e todas rimos.
— Bom, sentem-se. Vou pedir um çay. — Aponto para o
sofá confortável atrás delas.
— Não se preocupe, uma senhora simpática junto de uma
mocinha espirituosa, já foram buscar. — Percebo que ela fala de
Kara e Samia.
— Queria ficar em um hotel no centro de Ancara, mas seu
quase noivo foi incisivo com nossa permanência na vila que, por
sinal, é pitoresca e indescritível.
— Emir sabe que estão aqui?
— Claro. Quem mais nos arrastaria para este continente
com tamanha rapidez? — Minha mãe ocupa o sofá com elegância e
graciosidade que sempre lhe foi característica.
— Por qual motivo?
— Bom, segundo ele, uma lista interminável. Uma reunião
na próxima semana com um possível investidor canadense para a
Mancini, caso os fundos da Sadik não cubram a proposta de
remodelagem da fábrica. Seu noivado, que pela tradição necessita
da presença da futura sogra e, para lhe apoiar com a imprensa
carniceira da Turquia. — Pelo visto, meu querido pretendente tem
angariado aliados para lhe apoiar em nosso enlace.
Depois da noite no celeiro, algo realmente mudou entre nós,
aquela energia sexual ainda existe e é latente, porém agora ela
acompanha uma calmaria emocional e pertencente, como se fosse
inevitável estarmos na vida um do outro.
Sinto Emir mais receptivo, até esperançoso e, confesso,
minhas intenções de encerrar nosso acordo e voltar para o Brasil
estão diminuindo a cada momento que permaneço aqui.
— Allahalla! Espero que tenham feito uma boa viagem. —
Dona Kara surge com Samia em seu encalço e uma bandeja
enorme nas mãos. — Devem estar famintas.
— Na verdade...
— Estamos — minha mãe interrompe a tentativa de negar
de Layla que a olha com estranheza. — Sabemos que as delícias
turcas não têm comparação quando vindas das mãos nativas.
— Pois você tem razão, Elisandra. Vamos, comam e tomem
o çay, está bem quente e forte.
Samia toma um lugar ao meu lado, empolgada, seus olhos
brilham em direção às estrangeiras diferenciadas à nossa frente.
Minha mãe imponente com sua graciosidade e trejeitos ocidentais e
Layla, que sempre nos olha com interesse e curiosidade.
A conversa flui tão bem que qualquer mal-estar sobre o
passado ficou de lado, dona Elisandra parece muito melhor do que
no Brasil, aquele ódio pela Turquia completamente esquecido.
— Acho que o quarto de vocês está pronto. Por que não as
acompanha, Catarina? Ficarão nos aposentos ao lado do seu,
Samia saberá indicar.
Todas nos levantamos, Samia e Layla emendam em um
papo sobre novelas turcas e o quanto isso faz sucesso no Brasil —
algo que sinceramente desconhecia até então —, minha mãe
caminha ao meu lado, retardando os passos para ficarmos sozinhas
no corredor.
— Filha, você está bem com tudo isso? Vi as notícias sobre
a Kartal e o seu futuro noivo. Não imaginei que ele pudesse estar
envolvido em algo desse porte, ou nunca concordaria com qualquer
relacionamento entre vocês.
— Emir é inocente, mãe. Acredito nele. — Apoio a mão
sobre a sua que segura meu antebraço.
— Que bom.
Deixo ambas se instalarem nos quartos e retorno para o
meu a tempo de tomar um banho de banheira perfumado e
cheiroso, meus pensamentos tomados por Emir e os problemas que
permeiam a Kartal.
Saio do banho e me enrolo em uma toalha, vou para o
quarto e salto, assustada, ao encontrar duas figuras curiosas e
displicentes, jogadas na minha cama.
— A porta estava fechada, sabiam?
— E o que tem isso? — Samia é a primeira a se manifestar
ao deixar meu e-reader de lado. — Seus títulos são todos
brasileiros, uma pena eu não saber ler.
— Nada que umas aulas não te ajudem — Layla menciona
ao tirar os olhos do celular. — Parece que seu futuro noivo está bem
ferrado, Catarina.
— Ele saberá lidar com isso.
— Deveria entregar o comando para o primo mais velho e
sumir por uns tempos, isso sim.
— De jeito nenhum! — praticamente brado ao pescar a
roupa que vou usar e caminhar de volta ao banheiro. — Emir é
inocente das acusações e não há motivo algum para fugir.
— Concordo com você, prima — Samia solta antes que eu
feche a porta.
Coloco o vestido longo de manga três quartos, penteio o
cabelo e prendo em um rabo baixo, pego o lenço e o encaro por
alguns segundos antes de vestir.
Olho minha figura no espelho e uma segurança familiar
permeia meu coração. Sinto como se estivesse resguardada e
protegida, uma armadura encaixada para lidar com qualquer embate
e feliz por guardar a particularidade da minha essência para quem
merece.
Passo um delineador nos olhos, um batom claro, quase um
brilho, e saio do banheiro para encarar uma antiga e uma nova
amiga satisfeitas com o que veem.
— Você está uma típica turca, amiga — Layla menciona e
acho até que está emocionada.
— Que bom, pois é exatamente assim que me sinto.
Capítulo 50
"Um homem é tão sábio que faz sua cara, não sua idade."
— Provérbio Turco.
Blindei meu semblante da feição mais fria e intransponível
possível, os olhares reprovadores de todos quase me colocam ao
limite de uma linha que segurei com firmeza, anos atrás.
“— Alô? — atendo ríspido sem reconhecer o número no
identificador de chamadas.
— Emir? É você? — Uma voz sussurrada ao telefone.
— Sim. Quem é? — Tiro os olhos das planilhas que analiso,
intrigado.
— Sevil. — Todos os alertas se acendem em minha mente.
— Por que está me ligando? O que aconteceu?
— Gostaria de conversar com você, em particular. Antes que
nosso noivado siga adiante, tem algo que preciso lhe contar.
— Agora?
— Sim.
— Sevil, estou ocupado com o trabalho, além do mais, seus
pais não aprovariam essa ligação, caso soubessem.
— Meus pais são o que menos importa agora, Emir. Por
favor, venha.
— Onde você está?
— Vou mandar o endereço por mensagem, você tem cinco
minutos.
A chamada é encerrada e eu encaro o aparelho sem saber o
que pensar. Estou na base do porto, avaliando algumas papeladas a
pedido de tio Osman, não há nada perto, a não ser algumas
hospedagens de baixo valor.
— Senhor... — A assistente entra na sala após uma batida
rápida na porta. — Ligação da matriz, parece urgente.
— Pode transferir. — Aceito de imediato o retorno que
aguardava havia mais de duas horas.
Por poucos minutos, me esqueço da minha noiva e seu
pedido, no mínimo, estranho, foco no trabalho e não se passa muito
tempo até que sou chamado para atender a uma emergência.
O mesmo endereço dado por ela por mensagem, porém
tarde demais para fazer algo significativo e mudar seu destino.”
— Não imaginei, nem por um segundo, que Sevil pudesse
atentar contra a própria vida, Haydar.
— Ela era frágil demais, não sabia lidar com a realidade,
mas no fundo, eu sabia — ele bate o punho fechado sobre a mesa
— que com o incentivo certo, ela teria uma vida decente.
— Deveria ter falado mais, já que a conhecia tão bem. —
Não é uma acusação, mas sim o lamento por seu silêncio.
— Não me responsabilize pelo seu descaso, Emir. — Ele
aponta o dedo na minha direção.
— Acalmem-se — Cemil intervém.
— Olhe a que ponto você chegou, meu filho. — Todos
encaramos tio Osman que mantém um tom neutro. — A culpa tem
corroído a ambos por escolhas que couberam a mim no passado.
— O que está dizendo, baba? — Cemil quem profere a
pergunta.
Sinto que minha garganta mal passa uma lufada de ar em
expectativa.
— A decisão de unir Sevil e Emir coube somente a mim,
ainda assim, você, Haydar, age como se seu primo o tivesse
roubado algo precioso.
— Ele sabia do meu interesse, poderia ter rechaçado o
compromisso, o senhor encontraria outra esposa para ele.
— Sim, mas os pais daquela moça não aceitariam ninguém
menos que o chefe da família para desposar a única filha, e esse
não era o seu papel. Mesmo que Emir não acatasse minha decisão,
ainda assim, você e ela não teriam um futuro.
— Não tem como saber disso — Haydar brada, irritado.
— Você sabe como as coisas funcionam na Turquia, meu
filho. Uma família rechaçada corta qualquer vínculo com o ofensor.
O pai de Sevil era ambicioso demais para aceitar menos.
— Ela ainda poderia estar viva, se ele não tivesse priorizado
o precioso trabalho — Haydar torna a acusar e baixo minha cabeça.
Não há nada que eu possa argumentar quanto a isso, ela
pediu por socorro e eu simplesmente ignorei, não uma, mas várias
vezes. Cada sinal, que fui arrogante demais para enxergar, sua
tristeza com o enlace foi tratada com tamanho descaso que resultou
nessa tragédia.
— Isso não é de toda verdade, meu filho, e você sabe bem.
— Tio Osman encara seu primogênito com lamento. — Ela te
chamou também, naquele mesmo dia, uma ligação antes, no qual
pretendia revelar, a ambos, para quem pertencia o dever com a
família e o sentimento do coração. Sevil ingeriu uma dose grande de
veneno, mesmo que chegassem àquele quarto, não teriam tempo
hábil de salvá-la.
Vejo uma lágrima escorrer pelo rosto transfigurado de
Haydar, ódio e culpa dançando em sua íris, revela cada nuance do
tormento que o acompanha, nitidamente maior que o meu.
— Isso é verdade? — Minha voz é uma lamúria.
— Evet! Quando ela me ligou, eu estava irritado, tínhamos
brigado um dia antes, propus que fugíssemos, mas o medo de
manchar a honra da família impediu Sevil de seguir comigo. A
acusei de não me amar, disse coisas das quais me arrependo, mas
nunca imaginei que ela teria coragem de atentar contra a própria
vida. — Ele levanta e segue até o meio da sala, então faço o
mesmo, incapaz de me manter parado.
— Você me fez sentir culpa e remorso por anos, sendo que
foi seu comportamento que a empurrou para essa tragédia? —
Minha voz eleva, a raiva dando lugar à penitência que autoimpus
por todo esse tempo.
— Eu fui imediatamente quando ela chamou, mas estava no
apartamento, levaria no mínimo meia hora para chegar ao destino.
Você estava perto, a miseráveis cinco minutos de fazer algo por ela.
— Nada mudaria o quadro da garota, Haydar — tio Osman
intervém.
— Isso não diminuiu meu ódio por ele. — O homem
amargurado limpa a lágrima do rosto e torna a me encarar. — Posso
carregar essa culpa, grande parte dela, mas você também tem sua
parcela.
— Não... — Balanço a cabeça e recuo um passo. — Você
sempre me odiou por ser quem sou, almejou meu lugar tantas vezes
que deixou sua inveja ditar suas ações. Pois hoje te dou como fardo,
aquilo que cobiçou como glória.
— Do que está falando?
— Estou deixando a cadeira da Kartal para que assuma,
Haydar. Nunca gostei de me sentir preso a um lugar só, Cemil tem
se sobrecarregado desde que resolvi fugir de tudo que me lembrava
dor, tristeza e uma culpa, que nunca me coube.
“Sevil morreu, tirou a própria vida por não saber lidar com a
pressão das responsabilidades. Não digo que você a forçou, mas foi
egoísta demais com seu amor para não permitir que ela agisse por
conta própria e isso resultou em algo irreversível.
Sempre carregarei o remorso de não ter me aproximado
mais quando tive a chance, mas a culpa de sua morte, não me
pertence.
Nem a você, se quer saber.
Foi uma escolha única dela e, por mais impertinente que
pareça, sigo em paz a partir de agora.”
— O que você está fazendo, abi? — Cemil se aproxima e
segura meu ombro.
— Libertando minha alma para seguir adiante, abi. — Cubro
sua mão com a minha e dou um aperto reconfortante.
Haydar não diz nada, seu semblante derrotado se mantém
firme, chocado demais para rebater tudo que acabei de dizer.
— Emir... — Encaro tio Osman que tem os olhos marejados.
— Sinto muito que tudo tenha chegado a esse limite.
— Não se preocupe, tio. As coisas acontecem como devem
ser, o destino sempre dá um jeito de colocar cada indivíduo no
caminho correto.
— Sim, filho. Por isso, quando Elisandra me procurou, vi a
oportunidade de corrigir tantos erros pregressos.
— Vou libertar Catarina do compromisso, tio. Ela merece ser
feliz.
— Elisandra acredita que só um turco poderia amar sua filha
como ela merece.
— Catarina merece ser amada por qualquer um que seja
digno deste amor, tio. Pedi que Elisandra viesse à Turquia para
encerrar o compromisso de forma legal e correta. Assim que chegar
a Ancara, a liberarei.
— Emir, você vai perder tudo que um homem de bem
almeja. — Cemil me olha preocupado e eu sorrio, complacente.
— Pelo contrário. Finalmente viverei como um homem
ajustado com seus valores, vontades e escolhas. — Encaro Haydar
uma última vez. — Espero que resolva o problema que criou na
empresa e mantenha o legado Kartal intocado. Finalizarei meu
trabalho em algumas semanas e estarei fora.
Marcho a passos decididos para fora do apartamento, o dia
claro me presenteia com um calor aconchegante, vou para a
empresa, aciono os advogados e começo os trâmites para deixar a
presidência da Kartal Exportações.
Entro em contato com Kant, o canadense deixa claro o
interesse na parceria com a fábrica Mancini, aproveito para marcar
uma reunião na Europa para a próxima semana.
Ainda manterei a promessa de mostrar a Turquia para
Catarina através dos meus olhos, será o presente de despedida e
nosso encerramento.
Apesar de doer como o inferno a decisão tomada, ela é
preciosa demais para ser intencionada a qualquer compromisso.
Catarina é inteira e não metade de algo qualquer, não precisa sentir
subjugação para resolver qualquer questão da sua vida, profissional
ou não.
Fim de tarde, tio Osman, Cemil e eu embarcamos para
Ancara, a vila nos aguarda em festa, todos cientes da presença de
Elisandra e comemoram o noivado que nunca se concretizará.
Haydar ficou em Istambul, por motivos óbvios, meu primo
resolverá as questões dos contrabandos, nada mais justo, já que foi
um problema criado por ele. A imprensa se mantém polvorosa por
notícias, meu afastamento ainda não foi anunciado, tio Osman
prefere resolver a questão primeiro.
Apesar de não me importar, meu tio disse que nunca
permitirá que os erros de Haydar recaiam sobre mim.
Pensei que seria fácil cumprir a última etapa das decisões
que tomei em Istambul, mas ao encarar Catarina, com um vestido
azul-turquesa elegante, um hijab no mesmo tom, a casa enfeitada e
animada em música, sinto minha determinação esmorecer.
— Bem-vindo de volta, arabiano. — Seu sorriso provocativo
é a última coisa que vejo antes de unir nossos corpos e buscar seus
lábios para um beijo cheio de significados.
Capítulo 51
"A morte de outro não nos salva."
— Provérbio Turco.
Algo está diferente, desde que coloquei os olhos em sua
figura altiva entrando pela porta, eu sabia, a postura mais rígida que
o normal, mãos nos bolsos, como se quisesse se resguardar, e o
olhar distante.
Fecho nossa distância sem me importar com a educação ou
os costumes, que me obrigariam a cumprimentar primeiro tio
Osman, que é o mais velho, vou direto para ele, uma necessidade
súbita de fazê-lo enxergar minhas intenções.
A casa está em festa, apesar de todos saberem sobre as
notícias escandalosas do contrabando de cargas nos negócios da
Kartal, ninguém duvida da idoneidade de Emir ou da cúpula familiar.
Sou pega de surpresa quando provoco e Emir responde de
forma tão íntima e completamente inadequada perante a família.
Gritos e lamúrias em outras línguas são proferidos, algumas
provocações em português vindas de Layla e muitas risadas.
O beijo é rápido, discreto, mas cheio de significados, alguns
deles que me recuso a qualquer custo compreender. O toque de
despedida desespera o meu peito e quando nos afastamos, apoio
as mãos em seus braços, em busca de respostas.
— Qalbi... — Ele acaricia minha bochecha. — Você é o
fôlego necessário no meu mundo caótico.
— O que aconteceu?
— Em breve saberá.
— Emir, bem-vindo de volta — minha mãe se aproxima —,
agradeço a hospitalidade e carona.
— Disponha, tia Elisandra. Tudo isso é tão seu quanto de
Catarina.
— Sei que o momento é delicado, pela empresa e tudo que
envolve o enlace de ambos, mas chegou a hora de conversarmos.
— Mãe? — Enrugo o cenho para sua seriedade.
— Claro, senhora. Podemos ir até o escritório.
— O que está acontecendo, mãe? — questiono e ela não
responde nada ao seguir Emir, que lidera o caminho.
Tio Osman também nos acompanha, seu semblante não é
melhor que o de minha mãe e uma pontada de preocupação
desponta em meu íntimo.
Ocupo a poltrona ao lado de Emir, tio Osman e minha mãe
ficam no sofá de três lugares, no amplo escritório da casa. Ainda
não havia reparado na seriedade do lugar, ao menos agora é sóbrio
demais, principalmente com o semblante dos mais velhos,
direcionados a nós.
— Você vem me questionando há semanas o que me levou
a procurar a família que nos rechaçou há anos, minha filha. Pois
bem. Chegou o momento de falar.
— O mesmo vale para você, Emir. Antes que tome mais
atitudes drásticas, como deixar a presidência da Kartal — tio Osman
solta em tom de reprovação.
— Você fez isso? — Chicoteio a cabeça em sua direção que
ostenta um sorriso cúmplice.
— Não se preocupe, fiz o que era certo. — Ele cobre minha
mão no braço da cadeira com a sua.
— Esperei até que vocês estreitassem laços para revelar
meus planos. Quando procurei tio Osman, foi com o intuito de lhe
ofertar a oportunidade de ser amada, amparada e querida no meio
familiar de seu pai, querida. Sei que sente falta dele, tanto quanto
eu. — Ela limpa o canto dos olhos com discrição.
— Já tinha a intenção de procurar vocês, há muito
culminava o desejo de resolver as rusgas passadas, mas não sabia
como. Quando Elisandra me contatou, a ideia surgiu como um
Oásis, límpido e brando diante do deserto que nossa família vivia —
tio Osman toma a palavra. — Queria livrar você da culpa que não
era sua, meu filho, ao mesmo tempo que Elisandra não queria
deixar a filha desamparada no mundo, foi então que tive a ideia de
uni-los em matrimônio.
— Como assim, mãe? Por que eu ficaria desamparada? Os
negócios iam mal, mas isso não me impediria de ter uma vida digna.
— O pretexto para justificar foram os negócios, filha, mas a
realidade é que eu só queria mascarar os prognósticos da minha
doença.
— O quê? — Sinto um aperto na minha mão e olho de
relance para Emir. — Você sabia disso? — Ele sacode a cabeça em
negativa, tão surpreso quanto eu.
— Emir desconhece meus motivos, Catarina. Desconfiei que
algo não ia bem quando parei de tomar decisões assertivas na
presidência da fábrica. Demorei mais de um ano para procurar um
especialista e começar os exames. Quando o diagnóstico foi
positivo para Alzheimer, resolvi procurar sua família turca.
— Mãe...
— Eu errei demais ao longo do caminho, Catarina, fechada
em minha dor, não vi o quanto isso prejudicou você
emocionalmente. Quando tio Osman deu a ideia de um casamento
para unir novamente os Sadik e Kartal, só consegui pensar no
quanto seu pai me fez feliz e meu único desejo a partir dali era que
você soubesse, na pele, como é ser amada por um turco.
Minha mãe interrompe a fala quando um soluço escapa de
seus lábios, meu rosto molhado por lágrimas traiçoeiras, que
fizeram transbordar todo lamento de uma vida.
— Por que a senhora não me falou? — solto a pergunta com
dificuldade, já que minha garganta está com bolo atravessado que
dificulta até respirar.
— De que adiantaria, filha? Terei que lidar com a doença e
ela não vai melhorar, por mais que o prognóstico seja estável,
Alzheimer progride de modo gradual, mas pode se estabilizar por
períodos.
— Eu jamais teria viajado se a senhora dissesse... se
tivesse falado sobre a doença... eu... — Levanto da cadeira, incapaz
de me conter.
— Sua mãe só quer que seja feliz, criança. Assim como
espero que Emir encontre alegria no caminho. Vocês perderam
muito ao longo da vida, carregavam sentimentos pesados e
desnecessários. Por que não recomeçarem e findarem o que não
importa mais?
— Eu vim para Ancara com o objetivo de findar nosso
compromisso — Emir solta a bomba que me faz parar e encará-lo
com estranheza. — Por isso pedi que viesse, Elisandra. Quero
garantir que o documento assinado será anulado assim que
possível, viajaremos na próxima semana para uma reunião com o
investidor da Mancini e, depois disso, estão livres de mim e da
Kartal. — O tom determinado de Emir atinge em cheio meu peito.
— Você prometeu que a protegeria — minha mãe o cobra.
— E cumpri com a promessa. A empresa continua de pé,
vocês ficarão bem e Catarina será inclusa nos direitos sobre a Sadik
Corporation.
— Não é disso que estou falando, Emir, e sabe bem —
minha mãe se irrita.
— Chega! — chamo a atenção de todos. — Se Emir quer
findar o compromisso, que assim seja. Em nosso acordo, já
estávamos resolvidos quanto à minha intenção na Turquia. Ninguém
será forçado a nada e, agora, meu único objetivo é buscar na
medicina uma forma de retardar o progresso desta doença.
Sinto o gosto amargo invadir meu palato, nada do que digo
é real, minha intenção quando o vi passar por aquela porta hoje era
jogar tudo para o alto e dizer que seria sua esposa, de livre e
espontânea vontade.
— Emir... — tio Osman chama o homem que levanta e
encara a todos com determinação.
— O que está feito, está feito. São convidadas a
permanecerem o quanto quiserem aqui, assim que acontecer a
reunião com o investidor, tomo meu caminho e não mais nos
veremos. — Ele acena uma vez com a cabeça antes de sair.

— Eşek oğlu eşek![29] — tio Osman pragueja alto antes de


sair porta afora.
Abraço meu corpo, incomodada, um vazio tão conhecido,
mas há pouco esquecido, volta a habitar meu íntimo. De certa
forma, é reconfortante, algo familiar para me apegar, no entanto,
desesperador quando penso em quem perdi.
— Deveria falar com ele. Emir não foi sincero em uma
palavra de seu discurso.
— A senhora parece entender muito de honestidade, não é
mesmo? — alfineto, amargurada.
— Justo. Como também entendo mais de turcos do que
você. Fui casada com um. Fico feliz em perceber a forma que ele a
olha, esse homem venera o chão que você pisa, Catarina, mas algo
o impede de seguir adiante. Talvez seja válido saber o motivo.
Sem resposta ou vontade de pensar sobre qualquer coisa
que não seja o buraco que arrombou meu peito, saio do escritório
direto para o meu quarto. Layla e Samia entram um minuto depois
de mim nos aposentos e eu choro, como nunca fiz na frente de
ninguém, deixo minha alma ser lavada pelo lamento do turbilhão de
emoções que venho cultivando dentro de mim.
Entre soluços, conto tudo o que aconteceu, minha amiga
mais antiga xinga e protesta conforme descobre os motivos que
levaram minha mãe a agir dessa forma e me tornar moeda de troca.
Samia, romântica e com uma base cultural muito diferente,
acha linda a atitude, mesmo quando tento explicar como as coisas
são no Brasil.
Só quando revelo o desarranjo da promessa feita por Emir, é
que ambas se revoltam e praguejam em três línguas diferentes
palavras ofensivas ao turco sem coração.
Em algum momento dos murmúrios, acabo dormindo e
sonhando com Emir, o Oásis mais lindo que já vi e a rosa do
deserto. Formosa e solitária, no aguardo de alguém que a alimente
de água e cuide para que não morra.
Talvez nosso destino seja este, estar tão próximo de algo
belo e duradouro, mas ainda distante ao ponto de morrer aos
poucos por não ser regado e cuidado com carinho.
Capítulo 52
"O amor é uma flor de primavera entre duas pessoas que se
desenvolve no verão e não murcha no inverno"
— Provérbio Turco.
Perder meus pais foi a dor mais terrível pela qual passei, por
isso escolhi fechar meus sentimentos em um casulo bem protegido
e escondido dentro do peito e jamais permiti que qualquer um
adentrasse.
Funcionou com perfeição, quando o infortúnio de Sevil se
abateu sobre todos, o julgo alheio e maldoso colocado sobre meus
ombros, a culpa por um comportamento mesquinho e egoísta me
corroer até o âmago, ainda fui capaz de manter o coração blindado.
Eu estava quebrado. Permaneci assim por longos anos,
vivendo a esmo de uma felicidade familiar, nunca ousando sonhar
com mais do que já obtinha, crente de que a sorte de um homem
não se estendia para todos os âmbitos da sua existência.
Foi quando a vi, naquela boate, liberta e selvagem, pronta
para assumir riscos e sentir intensamente, mesmo que por um
momento tórrido, o que é estar viva.
A necessidade foi instantânea, assim como a conexão,
almejei tão fortemente sentir o mesmo e ser aquele que a fez
regozijar, que simplesmente me joguei e no processo abri a maldita
porta do coração.
Uma pequena fresta, que foi escancarada e, como um tolo
arrogante, nem ao menos me dei conta, até agora, que giro na
cadeira da empresa, sufocado com a quantidade de papelada para
resolver até a Kartal não ser mais minha responsabilidade, e não
paro de sentir um aperto no peito ao pensar nela.
Daqui a dois dias estaremos na Europa para a reunião com
Kant, já consegui reunir as informações da Sadik Corporation, que
está apta para assumir setenta por cento do investimento
necessário na Mancini.
Faz quase uma semana desde que seus olhos cruzaram
com os meus e a saudade desse pequeno contato tem me corroído
a cada passo que dou.
Ela viajou na manhã seguinte, Capadócia foi o destino
escolhido, protestei alguns xingamentos ao me lembrar da
promessa que fiz, mas depois de tantas quebradas, mais uma não
faria diferença.
— Aí está você. — Cemil entra na sala sem bater.
— Onde mais estaria? Ainda sou o CEO da Kartal, se bem
me lembro.
— E o humor azedo continua imperando. — Ele ajeita o
paletó ao ocupar o assento à minha frente. — Falei com Samia,
ainda há pouco, parece que as mulheres têm se divertido bastante.
— Que bom. Ao menos lembranças agradáveis as
acompanharão de volta ao Brasil.
— Dur! Dur! Pare de agir como um tolo, Emir. — O tom
acusatório de Cemil, algo que nunca o vi proferir antes, me choca.
— Ainda sou o chefe e responsável pela família, Cemil —
repreendo.
— Pouco me importa. Você e Haydar são duas mulas
empacadas, que não percebem o quanto da vida estão perdendo
por preferirem se afogar em dor e culpa. — Ele dá de ombros. —
Meu irmão, até compreendo, já que a mulher que amou não está
mais nesta terra, mas você? A única pessoa que te tirou da couraça
que se enfiou quando seus pais morreram, que o fez sorrir de
verdade, que você ama, está fazendo passeios de balão na
Capadócia e não é com você.
Engulo em seco, chego a abrir a boca para responder, mas
o olhar incisivo e desafiador do meu primo mais novo me obriga a
calar. Há um limite muito delicado na quantidade de vergonha que
um homem pode se prestar a passar.
Pego no bolso interno do paletó, próximo ao coração, a
fotografia que foi tirada no dia do nosso enlace. Uma particularidade
registrada no qual acaricio o rosto de Catarina e a forma como ela
me olha, aquele brilho confidencial, deve significar mais do que
mereço.
— Eu vou atrás dela. — Levanto em um rompante.
— Ah, Allahalla! Finalmente algumas lamparinas se
acenderam em seu juízo.
Saio porta afora ainda escutando sua risada alta e gritos de
felicitações do meu primo, ignoro os olhares curiosos pelo corredor
e ao trombar com Haydar, que sai do elevador, um leve aceno de
cabeça é o que nos basta.
Temos um longo e tortuoso caminho a seguir, não sei se um
dia ainda teremos harmonia em uma mesa posta em casa, mas, ao
menos agora, conseguimos respeitar a tristeza mútua.
A Capadócia é, sem dúvida, uma das belezas mais
estonteantes da Turquia, rica em história e paisagens naturais,
graças às formações vulcânicas, o cenário ofertado é de tirar o
fôlego.
Claro que eu admiraria muito mais tudo que me cerca se eu
já não estivesse há mais de três horas dentro do carro, dirigindo
feito um desesperado prestes a perder a própria vida.
O que não é uma mentira, se levar em conta que se
Catarina não perdoar minha tolice, serei um eremita vagando ao
longo da minha existência.
O GPS me deixa na porta do hotel em que as mulheres
estão hospedadas, cortesia de Cemil, que praticamente ameaçou a
vida de Samia ao telefone para obter a informação.
Descubro que todas saíram para um passeio de balão, pego
o endereço e rumo em minha busca desenfreada pela loira que tirou
minha vida do eixo. Engraçado como quando admitimos algo óbvio,
paramos de lutar contra, tudo parece se encaixar e fazer sentido à
nossa volta.
Eu pareço um tolo ridículo e apaixonado, mas pouco me
importa, principalmente quando meus olhos pousam em seu perfil,
de costas, já dentro de um grande balão, que se prepara para
zarpar.
— Posso? — Seguro a borda do cesto ao encarar as
mulheres ali dentro.
— Com certeza — Elisandra é a primeira a se manifestar e
sair do cubículo.
— Acho que isso cabe a Catarina decidir. — Samia
empertiga o tronco, toda cheia de si.
— Cai fora daqui, garota. — Layla empurra minha prima que
protesta em turco.
Finalmente, encontro o conforto no olhar de Catarina, a
saudade inunda meu peito, quase salto em sua direção unindo
nossos corpos, mas jurei que desta vez todas as decisões caberão
a ela.
Para o bem ou para o mal, Catarina é a única com o poder
sobre o meu futuro.
— Eu prometi mostrar a Turquia a você, por meus olhos. —
Mantenho as mãos firmes na beirada do cesto.
— Você tem quebrado algumas promessas, então resolvi
agir por mim mesma.
— Como sempre, afoita, qalbi... — Seu olhar afogueado
aquece meu corpo.
— A vida é curta demais para ficar parada no tempo,
arabiano. Quero viver, sentir e me jogar em cada oportunidade.
— Será que você tem um lugar vago ao seu lado para uma
aventura que levará toda uma vida para acabar?
— Não. — Por um momento, meu coração para, o mundo
em volta se extingue e acredito que tenha morrido. — Só aceito
essa aventura se ela for além da vida, se me prometer a eternidade.
— Um sorriso discreto desponta em seus lábios.
Contenho o riso e salto para dentro do cesto, estou próximo
o suficiente para tocá-la, mas retardo o máximo desse prazer,
principalmente por não confiar em meu controle quando o fizer.
— Pois bem. Eu lhe prometo, Catarina Mancini Sadik, que
se aceitar ser minha prometida, por livre e espontânea vontade,
estarei ao seu lado, sempre que precisar, a protegerei, cuidarei e
ouvirei todas as suas vontades, por toda essa vida e a eternidade.
Ela toma a iniciativa de avançar um passo, seus braços
apoiam em meu peito, que é capaz de sentir a quentura da sua
palma, mesmo através do tecido do casaco.
Levo o dorso até sua bochecha e acaricio, sua cabeça
inclina para o contato e uma resiliência nunca sentida por mim antes
me invade, arrancando-me um suspiro.
— Eu amo você, Emir. Amei desde que coloquei os olhos
em suas gemas escuras e profundas naquela boate.
— E eu a você, qalbi. O destino pode ter cruzado nossos
caminhos de forma tortuosa, mas não tenho dúvidas de que somos
predestinados. Que toda a dor sofrida seja adubo para o amor que
germina e cresce em nossos corações.
Catarina puxa minha nuca em sua direção e quando nossos
lábios se chocam, jogo para o alto o pouco controle que ainda
mantinha e a beijo. Com fervor e amor, entregando todo o meu
coração no ato, quero que ela sinta, mais do que saiba, tudo que me
comprometi a fazer.
Parei de contar o tempo desde que meus olhos recaíram em
sua figura, apesar da eternidade parecer ser pequena para tudo que
desejo viver ao seu lado, quando findamos o beijo já estamos no
céu límpido e claro da Capadócia.
Abraço Catarina por trás, o cheiro de romãs tão
característico de seu perfume permeia meus sentidos e passo a
contar um pouco sobre o lugar, as vezes em que estive aqui e nos
planos que podemos fazer para o futuro.
O amor não tem forma certa, não existe um jeito ou maneira
de tudo ser perfeito, mas ele precisa ser sentido. No fundo, naquele
lugar reservado somente para as grandes coisas que nos
acontecem, esse sentimento tem que calar e fazer todo o sentido.
Como a rosa do deserto, que tem sua beleza reservada aos
poucos corajosos e afortunados, sinto o privilégio de viver um amor
único e capaz de curar todas as feridas que alimentei até aqui.
Epílogo
Olá, queridas leitoras, como estão?
Acharam realmente que o tão famoso casamento passaria
despercebido na minha história com o arabiano? Nunca nesta vida!
Eu sou uma aficionada por cultura diferentes, aprendizado
de costumes e tudo que é belo, o que foi um presente meu
prometido ser um turco e sua raiz valorizar tanto o ato casamenteiro.
Quando retornamos da Capadócia, segundo Emir, ainda não
comprometidos de fato, percebi que fazia questão de seguir os
costumes turcos e pedir minha mão, novamente em enlace, para
minha mãe.
Planejou um jantar para toda a família, usei um vestido
típico turco, com pedrarias e seda pura, ofertado por tia Kara, para
que eu estivesse digna de uma sultana.
Foi divertido ver Emir entrar pela sala, acompanhado de tio
Osman, seu parente mais velho, uma caixa grande de chocolates
nas mãos e buquês de flores para todas as mulheres.
Os chocolates servem para adoçar as palavras e as flores
para alegrar os olhos, assim poderiam discutir nosso compromisso
em harmonia.
Foi nessa noite que enchi uma xícara de sal e ofertei a Emir,
confesso que segurei o riso, enquanto o pobre coitado sorvia em
pequenos goles a bebida horrível.
Sem uma careta sequer, o homem se provou digno de fazer
tudo o que estiver ao seu alcance para agradar sua futura noiva.
Por último, foi servido o sorbet — bebida fria, não alcoólica,
geralmente com base em um suco de frutas e adoçado —, para criar
uma doce harmonia entre as famílias e o consentimento final do
enlace.
Claro que não seguimos todas as regras nos mínimos
detalhes, afinal, na calada da noite, quando a vila dormia o sono dos
justos, Emir e eu escapamos pela colina e passamos horas
prazerosas no celeiro particular, onde nossos gemidos não
poderiam ser ouvidos por ninguém.
Durante a semana seguinte, até a noite do noivado, todos os
dias algum mimo ou flor foi deixado na porta do casarão para
alegrar a noiva Kartal. Apesar de Emir deixar o cargo de CEO da
empresa, ele sempre será o chefe da família.
— Olha essa preciosidade, Catarina — tia Kara grita através
das treliças do muxarabi, enquanto Samia, Layla e eu tomamos um
pouco de sol.
Corremos feito adolescentes para a senhora que segura um
vestido rosa belíssimo, todo cravejado em pedrarias escuras e um
hijab no mesmo tom.
— Catarina, que riqueza. Você será a noiva mais linda de
toda a Turquia. — Samia bate palmas, animada.
O certo seria o noivado acontecer na casa da noiva, mas
como estamos na Turquia e minha mãe não tem propriedade aqui,
ficamos com uma ala reservada para nós e os preparativos.
Correntes de flores enfeitando cada pilastra, cheiro de
essências frutais no ambiente, minha mãe, assim como eu, vestida
tipicamente para a ocasião.
Sou orientada por Samia a não colocar joia alguma, seu
sorriso conspiratório faz as borboletas no meu estômago se
revirarem em expectativa.
Ocupo meu lugar ao lado de Emir, no centro da sala,
sentados sobre almofadas grandes e macias, ali começam as
canções animadas e o Taki — colar, pulseiras, brincos e joias no
geral —, são dadas a mim pela família dele.
Emir sussurra a importância do momento, para que eu não
me sinta uma intrusa na família, nem malquerida. Sinto algumas
lágrimas nublarem minha visão, principalmente ao mirar os olhos da
minha mãe.
Tio Osman se aproxima em dado momento, uma fita
vermelha nas mãos com duas alianças, cada uma amarrada em
uma ponta, então ele coloca em nossos dedos anelares e profere
algumas palavras em turco.
Quando uma tesoura corta o meio da fita, separando a
ligação, a sala fica em polvorosa e todos começam a cantar e
dançar, convidando a nós para ficarmos de pé.
Se há algo que um turco sabe fazer é festejar com animação
e ostentação.
Samia está eletrizada em torno de mim, exigindo um pedaço
da fita, que segundo ela, só é dado aos melhores amigos para que
também encontrem sua alma gêmea.
Finalmente, a noite que antecede o casamento chegou,
apesar de ser pouco comum, opto por usar um vestido todo branco,
cravejado de swarovski e bordados finos e delicados.
Fui colocada em um quarto maior na ala, antes ocupada por
Emir, que foi expulso pela família logo após a festa de noivado,
ocupando uma casa do vilarejo para sua preparação.
Hoje acontece a Kina Gecesi, ou noite da henna, um tipo de
despedida de solteira para as mulheres turcas, no qual serei
preparada para deixar o posto de filha e me tornar esposa.
Ululações e cânticos antigos são proferidos em torno de
mim enquanto Samia prepara a henna ofertada por tia Kara, que
aqui representa a mãe do noivo.
Minhas mãos, braços e pernas são pintados com arabescos
delicados, uma grossa camada de tinta seca em minha pele e uma
mulher, que nunca vi na vida, é chamada para quebrar a henna e
separar as cinzas em uma bandeja de prata.
— Basi Bütün, que significa um "cuja cabeça é completa", foi
escolhida por mim para lhe trazer boa sorte — tia Kara profere.
Samia, que tem agido como minha intérprete cultural,
explica que a mulher escolhida para esse ato precisa ser casada,
com filhos e com pais ainda vivos, tudo para que a prosperidade
esteja presente na nova etapa que se inicia.
Com um véu vermelho sobre o rosto, que combina com mais
um vestido extravagante na mesma cor, sou levada até a sala e meu
noivo logo está ao meu lado.
Mulheres segurando pratos de prata com a henna e velas
acesas, cantam canções, e a Basi Bütün tira um pouco da henna e
passa ao redor do dedo mindinho do noivo.
Em seguida, tia Kara pega um pouco de henna do prato e
tenta colocá-la na palma da minha mão, porém, instruída por Samia,
eu rejeito. Em seguida, ela coloca uma moeda de ouro, que
simboliza riqueza e boa sorte, na minha palma, então aceito de bom
grado.
Logo depois, tanto minhas mãos como as de Emir são
cobertas por um pano vermelho. A henna é a representação do solo
celestial puro do paraíso e o véu vermelho é para desviar olhares
malignos.
Uma vez feito, a henna é passada para os convidados, a
mancha tem a duração de cerca de uma semana e é para mostrar a
todos, depois da cerimônia, que há uma nova noiva ou que houve
recentemente um amigo íntimo ou casamento na família.
A canção cantada a partir daí é especial, marca a transição
da minha vida, de filha para mulher, encaro minha mãe que chora
emocionada e sorri, como há muito não via.
Meu noivo é levado junto dos homens e é aí que a festa
realmente começa. Comida, bebida e muita música, mulheres
dançam, festejam e proclamam discursos de felicidade e harmonia.
Nem preciso mencionar que acordo na manhã seguinte com
a sensação de que um caminhão sem placa me atropelou em algum
momento da noite. Por sorte, as comemorações não envolvem
álcool, ou eu estaria destruída.
— Acorde, noiva! — Samia entra feliz e saltitante como tem
feito nas últimas duas semanas em meu quarto.
— Como ela consegue ser tão ativa? — Layla cobre a
cabeça com o lençol ao meu lado.
— Não tenho a menor ideia. — Arrasto minha bunda para
fora da cama. — O que temos para hoje?
— Ah! Hoje finalmente é o casamento, a casa está sendo
preparada e temos uma ala especial para as mulheres se
aprontarem.
Gemo, cansada ao pensar na gritaria feminina de todas as
moças do vilarejo que foram chamadas para partilhar o momento e
ganhar seu quinhão de sorte.
Vou para o banheiro cuidar da minha higiene matinal e
quando saio, puxo o lençol de cima de Layla, que rola para o lado e
cai da cama. Antes que ela possa me alcançar, corro desesperada
pelo corredor até a sala reservada para nossos preparativos.
Enquanto meu cabelo é lavado, esticado, enrolado e mais
um monte de coisas que nem vejo sentido, já que usarei um hijab,
confiro as notícias sobre nosso casamento.
A Turquia simplesmente parou para montar guarda nos
portões da vila e conseguir um vislumbre que fosse da noiva turca
estrangeira. As maledicências sobre os contrabandos em navios de
responsabilidade da Kartal foram esquecidas, por ora, para focarem
em cada detalhe partilhado dos festejos casamenteiro.
Uma notificação do aplicativo do banco apita na tela, abro
por curiosidade e quase grito com o valor exorbitante transferido
para mim. Confiro o remetente, Emir Sadik Kartal, abro a aba de
mensagens no mesmo instante e digito, furiosa:
* O que significa isso, arabiano?
** É seu.
— Ah, que lindo. Seu mahr é muito valioso. — Samia parece
um papagaio de pirata sobre meu ombro.
— O que isso significa?
— Mahr é a negociação que favorece a noiva, para que ela
não entre de mãos vazias no casamento. Esse montante pertence
somente a você, é seu tesouro — é tia Kara quem esclarece.
— Acho que vou adotar alguns costumes desses para
quando eu me casar. — Layla surge do outro lado do meu ombro.
— Hora de colocar o vestido, filha. — Minha mãe vem até
mim e estende a mão.
Encaro meu semblante pelo espelho, toda de branco, uma
maquiagem marcante nos olhos e um brilho que nunca vi ali. As
joias exageradas, que me foram dadas na noite do noivado,
enfeitam meu entorno, mas o anel vermelho no dedo indicador, que
minha mãe acaba de colocar em mim, é o que mais me emociona.
— Seu pai ficaria tão feliz de vê-la assim.
— Mãe... eu...
— Não diga nada, não pode estragar a maquiagem. —
Ambas sorrimos. — Quero que saiba que sempre te amei, mesmo
quando me fechei para a vida.
— Vamos! Vamos! O noivo já está pronto! — Samia nos
desperta do momento e sou colocada à frente de uma procissão de
mulheres com espelhos nas mãos.
Segundo os costumes, os espelhos expressam que a família
deseja a ela uma vida brilhante. Samia me orienta a não tocar o
batente entre um cômodo e outro, pois eles foram devidamente
regados com manteiga e mel para que haja doce harmonia entre
mim e a casa de meu noivo.
Do lado de fora, em uma planície ladeada por um lago
imenso, uma tenda foi montada, gigante e ostentosa, música alta é
ouvida quando paro próximo à entrada e Emir vem até mim.
Ao contrário do Brasil, aqui é o noivo quem conduz a noiva
até o altar, que, no caso, são duas cadeiras opostas, colocadas a
uma distância considerável, com um pequeno tapete na metade que
nos separa.
Ele está lindíssimo em um smoking tradicional, os cabelos
brilhosos e a barba alinhada, seus olhos fazem promessas que só
me deixam ainda mais ansiosa para estarmos sozinhos, o quanto
antes.
Sou deixada na minha cadeira, Emir ocupa a sua e minha
única preocupação a partir daqui é focar em Samia, que sinalizará o
momento exato que devo correr até o pequeno tapete e pisar, antes
de Emir, no sapato enfeitado ali.
Dizem que o primeiro a pisar sobre o sapato é que detém o
controle e domínio da família.
Preciso dizer a vocês qual de nós foi o felizardo em
conquistar a façanha?

Dez anos depois

Olho pela janela da biblioteca e sorrio ao ver dois corpos


miúdos e franzinos correrem pelo alto da colina. Fecho o livro que lia
e caminho determinada de encontro a eles.
Já se tornou costume Emir ir com eles até lá e passarem o
pôr do sol brincando e aprendendo mais sobre a cultura que corre
em suas veias.
— Baba, o Yussuf não me deixa brincar. — A voz impositiva
de Sevil me faz balançar a cabeça de um lado para o outro.
Pouco antes de minha mãe falecer, me lembro dela alertar a
mim e Emir sobre o gênio tempestuoso da gêmea mais nova.
Dez anos casada, tanta coisa aconteceu, retornamos ao
Brasil e eu toquei por cinco anos a fábrica, a doença da minha mãe
piorou, drasticamente, então abdiquei da cadeira da presidência
para lhe dar atenção.
Calhou de engravidar dos gêmeos, Emir sugeriu que
vivêssemos na Turquia, a família unida seria uma ajuda e bálsamo
para quando minha mãe partisse.
Isso aconteceu há um ano, agora ela descansa feliz ao lado
do meu pai, que tive o cuidado de exumar o corpo e o trazer
conosco quando nos mudamos.
— Filho, sua irmã é uma menina, delicada como uma flor,
precisa cuidar dela.
— Sevil tem mais espinhos que pétalas perfumadas,
arabiano — chamo a atenção deles.
— Anne! — Meus filhos correm até mim e abraçam minha
perna.
Meu marido, o turco arrogante e frio que um dia conheci,
levanta, sua camisa desajustada sob o suspensório da calça, os
cabelos, agora um pouco mais compridos do que quando nos
conhecemos, é bagunçado pelo vento frio do outono.
— Qalbi. Nós já íamos descer.
— Sei bem o quanto demoram para sair daqui e o estado
que essas crianças ficam para tomar banho.
— Ouviram a anne, hora do banho — Emir proclama,
determinado.
Ambos protestam, mas um olhar determinado meu os faz
descer, sem mais pestanejar, o caminho de casa.
Olho sobre o ombro e vejo meu pequeno lorde, Yussuf, dar
a mão para a irmã e orientar o caminho mais seguro até a casa.
— O que seria dessa família se eu não fosse a voz firme
nela? — Sinto os braços fortes do meu marido enredarem minha
cintura.
Volto a cabeça em sua direção e sou presenteada com um
sorriso aberto e dissimulado, típico das provocações que ele sempre
começa, mas nunca consegue terminar.
— Foi por isso que eu pisei no sapato conjugal, arabiano.
Sobre a Autora

Ágatha Santos, casada, sem filhos, umbandista na alma e


no coração. É natural de Taubaté, interior de São Paulo.
Formada em Administração de Empresas, ex-gerente
administrativa no ramo de varejo de combustíveis e atualmente
trabalha como escritora.
Sempre gostou de leitura, mas sua paixão se enraizou com
a Série Cinquenta Tons. É uma devoradora de romances eróticos e
há algum tempo descobriu o encantamento pela escrita.
Suas obras trazem uma temática leve e regada de comédia,
hoje conta com diversos títulos publicados, todos disponíveis na
Amazon.
A frase que leva para a vida: “Se você sonha, você pode
fazer.”
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[1]
Selam — Oi.
[2]
Qalbi — meu coração.
[3]
Kahvaltı — café da manhã.
[4]
Çay — chá.
[5]
Merhaba — Olá.
[6]
Iyi geceler — Boa noite, em turco.
[7]
Abi - irmão
[8]
Baba – pai.
[9]
Tamam — Tá bom.
[10]
Merhaba Bayan — Olá senhorita
[11]
Shayla - lenço grande e retangular, é enrolado no pescoço e é cruzado na altura dos
ombros.
[12]
Hayatim — minha vida.
[13]
Caricigim — minha esposa.
[14]
Dur - Pare com isso!
[15]
Bok – merda.
[16]
Yeğen – sobrinho.
[17]
Süper, sevgili Catarina yeğenim. — Ótimo, querida sobrinha Catarina.
[18]
Memnum oldum, yeğen – Prazer em te conhecer, sobrinha.
[19]
Sus – calado.
[20]
Allahalla – ô, meu Deus.
[21]
Dry box – tipo de contêiner para carga seca.
[22]
Muxarabi – espécie de treliça em madeira.
[23]
Günaydin – Bom dia.
[24]
Lok – não.
[25]
Kuzen – prima.
[26]
Super – o mesmo que “que bom, que legal”
[27]
Abasi – demônio.
[28]
Günaydin - Bom dia.
[29]
Eşek oğlu eşek – filho de um burro.

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