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Ligo a TV, porque não tenho alternativa que não seja procurar por um filme
ou uma série, para tentar me distrair do tédio completo. Encontro, perdido
em minha lista, o “Rei Leão” e aperto o play.
Georgina: Estou assistindo ao Rei Leão! Acho que você deveria vir até aqui
para eu te ver chorar, quando o Simba encontra o Mufasa morto.
É engraçado pensar que não consigo me lembrar da minha vida sem Conrad
Lowe por perto. Ele, poucos meses mais velho do que eu, sempre foi meu
parceiro de brincadeiras e, depois de algum tempo, de crime também. E foi
em uma dessas, na qual ele disse que eu era a Nala e ele, o Simba, que, em
vez de irmos a um cemitério de elefantes, fomos parar em um ferro-velho,
para uma aventura incrível.
Georgina: Agora está na parte das hienas! Só consigo me lembrar da gente
perdido, no meio dos carros podres hahahah
São gritos desesperados de uma voz que é bastante familiar para mim.
Quase correndo, pelo corredor do segundo andar da casa dos meus pais,
desço as escadas de dois em dois degraus e encontro minha mãe, de joelhos
em frente a Pauline Lowe, que chora copiosamente.
No canto mais afastado, meu pai fala tão rápido ao telefone que sou incapaz
de compreender o que está sendo dito. Uma sensação estranha comprime
meu coração, mostrando-me que há algo muito errado.
— Giorgio, você… — A voz de Dona Alexandra, minha mãe, não sai mais
alta do que um murmúrio.
— Sim, converso.
Eles sempre tiveram uma estranha conexão, na qual um completa o que o
outro fala. Meu pai se aproxima de mim, passando um dos braços sobre
meus ombros, e faz com que eu saia da sala. Andamos quietos pelos
corredores, até chegarmos à biblioteca.
Não faz sentido algum o que meu pai acaba de falar. Pisco algumas vezes,
pegando meu celular do bolso de trás da calça jeans, e busco o contato do
meu melhor amigo. As mensagens enviadas continuam a não chegar aos
seus destinos.
— Gin — meu pai ergue meu rosto com a mão —, não posso deixar de
falar para você, meu amor, mas existe uma grande chance de Conrad estar
morto.
— Georgina…
Deixo meu pai para trás e volto para a sala, onde o meu olhar encontra o de
Pauline. Eles estão mentindo! Porque não existe a possibilidade de que meu
melhor amigo esteja desaparecido e, muito menos, morto.
Ignoro o fato de já estar escuro e apenas faço o caminho que sei de cor.
Minhas pernas ardem com o esforço físico, mas não diminuo a velocidade.
Conrad estará lá, me esperando, para contar sobre a merda que aconteceu
de verdade e falar que ninguém morreu.
Caio de joelho, no meio da grama.
Ser capitão do time de futebol tem muitas vantagens e uma delas é não se
esforçar para trazer alguém para cama, quando a noite finaliza, ou até
mesmo antes disso.
— Ow, acorda. — Não sei o nome dela, tenho apenas a vaga lembrança
dela comentar ser prima de uma garota da sala que estudo. — Você precisa
ir embora.
— Quê?
— Certo, mas…
Pego a primeira sunga que encontro em uma das gavetas e sigo para o
banheiro, para dar tempo a ela se vestir e ir embora. Não vou encarar a
academia hoje, porque sei que meu pai estará lá e não estou pronto para um
embate, antes das seis horas da manhã, em um sábado.
Quando saio, pronto para encarar uma hora inteira de natação, o quarto está
vazio. A garota fez exatamente o que pedi, sem qualquer tipo de estresse. O
melhor dos mundos.
Verifico o quarto uma ultima vez antes de jogar o roupão por cima. Apesar
da primavera estar quase na metade, as manhãs ainda são frias, me
obrigando a apertar o tecido felpudo ao redor do corpo.
O cheiro de colo invade meu olfato quando entro no espaço que abriga a
piscina aquecida semiolímpica. Aqui segue sendo um dos poucos locais em
que consigo ter paz e garantia de que estarei longe o suficiente de olhares
tortos. Ninguém, além de mim, costuma a nadar nessa casa
Detesto finais de semana, porque isso inclui não poder ir à escola e ser
obrigado a compartilhar momentos com a minha família, como, por
exemplo, o café da manhã, o almoço e, algumas vezes, até mesmo o jantar.
E fugir para o parque já não é mais tão fácil.
Não sei quanto tempo passa enquanto dou braçadas que vão, aos poucos,
alcançando a marca de centenas de metros nadados.
Vigésima quinta batida na parede da piscina e meus músculos reclamam
pelo esforço. Levanto o rosto para respirar um pouco e controlo o susto por
encontrar meu pai, parado a alguns metros da borda, com os braços
cruzados sobre o peito.
— Não.
Mas me recordo também das porradas e socos desferidos quando algo não
saía do jeito que ele queria. Não que isso seja raro, nos dias atuais.
— Filho?
Minha mãe, Pauline Santoro Lowe, é a mulher mais doce, zelosa e amorosa
que existe nesse mundo, mas também é a mais submissa que já conheci.
Com a feição preocupada, ela olha para os lados, atenta.
— Você sabe como ele é, Con. — Ela passa a mão em meu rosto. — Vá
tomar um banho rápido e se trocar. Levo algo para você comer no meio do
caminho.
Apenas aquiesço.
— Sim, ele e sua tia — responde, a feição ganhando uma ruga entre as
sobrancelhas.
— Vá logo! Não consigo segurar o humor do seu pai por muito tempo.
— Mãe, não — digo, cansado. — Sei lá quantas vezes já disse isso: mas eu
e Gió somos apenas amigos.
— Uma mãe pode sonhar.
Mães.
Essa merda toda vai ser minha um dia, então não preciso andar de um lado
para o outro, distribuindo sorrisos e cumprimentos para pessoas que nem
conheço. Estou praticamente escondido em um canto do espaço aberto,
evitando contato visual com qualquer um ao redor. Bato o dedo no copo e
observo as bolhas subirem, porque qualquer coisa é muito mais interessante
do que essa merda de evento. Já procurei Giorgina por todos os cantos, mas
nem sinal dela.
Lutz, irmão mais velho do meu pai e também CEO da Lowe Produtos
Alimentícios, vem em minha direção. Apesar de estupidamente parecido
com o irmão mais novo, seu semblante é carinhoso e seu olhar tranquilo.
Por diversas vezes, questionei-me o porquê de ele não ser meu pai.
— O que está fazendo aqui? — Meu tio apoia a mão em meu ombro.
— Isso é nítido, meu jovem padawan — ele diz, arrancando uma risada de
mim. — Quero te apresentar algumas pessoas hoje. Vai ser importante para
os próximos dias.
— Meu pai…
Ele nega com a cabeça, fazendo um gesto que diz que não devo me
preocupar com isso.
Entendi, alguns anos atrás, que o melhor jeito de não receber olhares
reprovadores e evitar as surras é se mantendo longe do centro das atenções.
Quanto mais nas beiradas, mais seguro é.
É de conhecimento geral que ele e minha tia Stella não podem ter filhos.
Lembro-me de que eles até tentaram adotar uma criança, mas desistiram
por algum motivo que eu nunca soube.
— Então quer dizer que passará suas férias de verão trabalhando com o seu
pai e tio? — Sr. John pergunta. — Nada de acampamento, então?
— Conrad vai ter muito tempo para se distrair à noite. — É meu tio quem
responde.
Sinto um aperto em meu ombro e vejo o orgulho nos olhos do meu tio,
mais uma vez me pergunto o porquê meu pai não me trata assim.
— Precisamos ir, John. — Os dois homens se cumprimentam de novo. —
Há muitas pessoas para Conrad conhecer hoje!
Agora, faltam alguns meses para que se inicie o processo de seleção dos
alunos para as poucas vagas existentes no curso de Administração da
Universidade do Reino de Emerald, também conhecida como URE. Todos
os homens, sem exceção, das últimas quatro gerações, estudaram e se
formaram com louvor lá, e é exatamente isso o que farei.
Olho para o lado e encontro meus dois melhores amigos, lado a lado.
Austin está com uma taça de algo alcoólico na mão, enquanto sou capaz de
apostar que Georgina bebe um suco de morango ou groselha.
— Claro que sim, Gió — digo, sério. — Dinheiro, status e mulheres. O que
mais eu poderia querer?
— Sei que o esforço é muito grande, mas não seja um babaca, Conrad. —
Ela revira os olhos e eu recito as palavras junto dela. — Você,
definitivamente, é um idiota.
Talvez seja uma mania do sexo feminino querer enxergar mais do que
realmente existe em uma simples resposta, mas, por fim, ela dá de ombros,
levando o copo à boca outra vez e eu acompanho todo o movimento. E eu
reparo, pela primeira vez, que os lábios de Gió são bonitos.
— Conrad.
— Você não devia ficar falando sobre a URE — ele diz, em um tom sem
emoção. — Até porque, duvido muito que seja capaz de entrar até mesmo
numa faculdade considerada de terceiro escalão. Sugiro que cale a boca,
para não passar vergonha quando for obrigado a admitir que não foi capaz
de ingressar.
Mais ao longe, vejo minha mãe com a feição preocupada, a atenção fixa em
mim enquanto Stella diz algo em seu ouvido.
— Sua intromissão em nossa vida ainda vai sair muito cara — meu pai diz,
alguns tons mais baixo.
— Sim, senhor.
Não saio do lugar, esperando que meu pai vá na frente, mas ele não se
mexe, mostrando que devo ficar ao seu lado. Meu tio gesticula, indicando
para que eu faça exatamente o que está sendo mandado.
— Conrad deve ficar ao meu lado. — Escuto meu pai dizer para a auxiliar
de fotografia, quando ela indica que meu lugar será outro. — Meu filho
ficará exatamente onde está.
Meu pai se acomoda em seu lugar, do lado direito do meu tio e eu ocupo o
esquerdo. É a primeira vez que estou em uma posição assim, em uma
imagem que será usada como a oficial da empresa no próximo período.
— Por que você trocou o lugar de Conrad? — meu pai questiona e vejo
manchas vermelhas em seu rosto.
— Como você mesmo disse agora a pouco, Linus — meu tio tem um
sorriso debochado no rosto —, eu comando essa maldita empresa, o que me
dá o direito de definir quem se sentará ao meu lado na porra de uma foto.
— Ele arregaça as mangas por pura mania. — Agora, preciso apresentar
você a mais algumas pessoas, Conrad. Por favor, venha comigo.
Apenas aquiesço.
Eu estou a seis passos do precipício e eu estou achando que
— Gin — olho para o lado e encontro meu amigo com o olhar fixo no
campo —, você acha que ele está tomando a decisão certa? Só temos
dezessete anos…
— O fato é que ele disse que existem vários olheiros que estão interessados
em Conrad. Inclusive, de faculdades dos Estados Unidos!
O cara que corre, dando instruções aos colegas de campo, é bom em muitas
coisas além do esporte. Monitor de idiomas há três anos, membro fixo no
time de debate e auxiliar no laboratório de química. E, claro, tudo isso deu
a ele a porcaria de um ego maior do que o mundo.
— Ninguém sabe o que quer na nossa idade — ele diz, sério. — Não sei se
vou fazer medicina, direito ou ser biólogo. Ontem falei para minha mãe que
quero abrir um petshop.
— Tenho certeza que você usou algo realmente pesado hoje de manhã para
estar falando esse monte de besteira.
— Nenhuma noção, mas tenho quase certeza que meu pai gostaria que eu
fosse para administração, mas, sei lá.
Volto meu olhar para o campo e vejo que os jogadores, agora, estão
reunidos no centro, todos sobre uma única pessoa. É estranho pensar que
tudo mudará nos próximos meses, quando seremos obrigados a escolher o
rumo que nossa vida irá tomar.
Não seremos mais nós três, andando por aí, e é bem provável que seja
apenas eu e o cara ao meu lado, que agora parece estar bastante
concentrado na tela do próprio aparelho celular.
— Tenho certeza de que você deve ter achado esse seu pinto no lixo. —
Faço cara de nojo e ele dá risada. — Além do mais, agora, mais do que
nunca, tenho certeza de que tomou um pé na bunda.
— Ok, Marie terminou comigo ontem a noite e sobre o meu pinto: lavou,
está novo. — Finjo ter ânsia — Mas a verdade sobre nós dois é que nunca
daríamos certo, porque eu não sou ele. — Austin faz um gesto, apontando
com a cabeça para o cara que vem em nossa direção.
Jogo o objeto para cima outra vez, mas ela não volta para minha mão.
Conrad a pegou no ar.
Tento pegar o objeto de novo, mas ele nega. Batendo com o dedo no meu
nariz.
— Mentiroso.
Conrad deposita seus olhos quase pretos sobre mim e eu disfarço, olhando
para os meus sapatos surrados por um momento.
— Certeza — digo, sem titubear. — Seu tio manja das coisas. Ele sabe o
que está fazendo.
Conrad joga o objeto que está em sua mão para o ar e reconheço como a
moedinha da sorte, que ele pegou de mim alguns dias atrás.
— Mais fácil chover no inferno do que você não passar — digo, sincera. —
Vai dar tudo certo.
— Obrigado.
Segurando o portão aberto, vejo minha avó, com o seu sorriso de sempre,
esperando o carro entrar para poder fechá-lo, em seguida.
Meu pai estaciona o carro no primeiro espaço que encontra e minha mãe
desce, abraçando minha avó com força. Consigo escutá-la pedindo para
passar um tempo com a gente na capital, mas ela nega.
— Não, filha. Vou ficar aqui, na minha casa. Quem vai cuidar das plantas?
E os passarinhos? Estou bem, aqui. — Dona Angelina me puxa para um
abraço. — Como está querida?
Antes de entrarmos na casa aconchegante, minha avó abraça meu pai com
carinho.
— Ainda não consigo vir aqui. — Meu pai murmura para mim, passando as
mãos nos olhos. — É estranho chegar e não encontrar seu avô fumando o
cachimbo.
Apenas aquiesço, porque sei exatamente o que ele está sentindo. Passo a
mão em sua cintura e apoio a cabeça em seu ombro, enquanto caminhamos
até a entrada. É engraçado como o relacionamento dos meus pais é meio
“invertido”, aos olhos dos outros. Alexandra Moretti é forte e decidida,
poucas vezes a vi chorar… já meu pai? Era engraçado chegar à sala e vê-lo
fungando, enquanto assistia aos filmes de drama que minha mãe escolhia
como “sessão da tarde” dos dois.
— Será que vamos nos acostumar algum dia? — sussurro, assim que
passamos pela bonita porta, feita a mão pelo meu avô, muitos anos antes de
eu nascer.
— Esse sentimento de perder alguém não tem fim, filha, mas a dor ameniza
com o tempo… aos poucos, vamos ajeitando as coisas e a rotina vai
voltando. Isso aconteceu quando perdi meu pai e agora com o seu avô
August— Ele beija o topo da minha cabeça. — Outro dia estava lendo que
não é o luto que diminui, mas, sim, a vida entorno dele que cresce. É um
bom jeito de ver a situação. E vou te falar: ainda hoje, depois de muitos
anos, sinto falta dos meus avós. Gostaria que você tivesse os conhecido. E,
se um dia você tiver filhos, vai sentir a mesma coisa… nós sempre
queremos um pouco mais de tempo com as pessoas que amamos.
Caminho para a cozinha e vejo que minha avó anda apressada, de um lado
para o outro. Abrindo e fechando armários freneticamente.
— Agora?
— Sim, por favor, querido — minha avó fala, em seu tom mais amável. —
Qualquer hora dessas, vou ter problemas lá… e você sabe, na minha idade,
não consigo mais subir na escada e tirar a sujeira que se acumula.
Meu pai nunca teve coragem de dizer “não” para os meus avós maternos,
de quem ele se sente mais filho do que dos próprios pais. Apesar de ter
pessoas para cuidar da chácara, meu avô sempre fez questão de realizar
praticamente tudo e isso foi passado para todos. Mesmo sendo um
empresário fodido, sempre vi meu pai e meu avô juntos, com a mão na
massa e, muitas vezes, na enxada também.
Sinto a empolgação crescer dentro de mim. Sempre soube que minha avó
lia a sorte para as pessoas, mas, sempre que eu perguntava sobre o assunto,
ela dizia que ainda não estava na hora...
— Mamãe…
— Por que meu pai não pode ficar? — pergunto, interrompendo uma
discussão que parecia querer surgir.
— Não sei como começou, mas foi há muitas gerações atrás… — Minha
avó fala de um jeito meio sonhador. — E esse dom foi passando de mulher
para mulher. A única coisa que sempre foi dita é que nenhum homem
poderia fazer parte do ritual, ou ter a sua sorte lida na borra do café.
— Isso quer dizer que minha mãe também sabe ler? — Encaro Dona
Alexandra, que apenas chacoalha os ombros, claramente incomodada. —
Por que nunca me contou?
— Como assim?
— Repare bem no café, ele está quase fervendo. — Dona Angelina aponta
pra as pequenas bolhas que sobem pela lateral do recipiente — Quando isso
acontece, sabemos que chegou a hora de desligar e partir para a próxima
etapa. Primeira coisa, coloque o líquido naquela xícara branca e beba um
gole, mentalizando a sua vida.
— Fique quieta.
Tento ignorar as duas cochichando atrás de mim e então sou capaz de fazer
o que a minha avó pediu. O líquido escuro desce quente e amargo pela
minha garganta, mas contenho a vontade de fazer cara feia.
— Por quê?
— Mais um mistério. — Ela pisca para mim. — Há coisas que não saberei
te responder.
— Bom — é minha avó quem começa —, você está vendo aqui? — Ela
aponta para um local em específico. — Parecem linhas paralelas, o que
indica que tem os caminhos abertos para a prosperidade, seguido de uma
âncora, que também mostra que terá muito sucesso no que escolher como
profissão. — O sorriso da minha avó vacila. — Querida, o que irei te dizer
agora pode mudar… como qualquer oráculo, as coisas ao nosso redor se
alteram conforme o livre arbítrio das pessoas, inclusive o nosso. Sei que
ainda é muito nova para pensar em romance, mas aqui tem uma escada, em
seguida, um quadrado… você terá um longo período de solidão.
— Eu acho melhor parar por aqui. — Minha mãe está séria e visivelmente
preocupada.
— Você sabe como funciona, Alexandra — minha avó diz, ainda mais
séria. — Devemos terminar a leitura. Se o café mostrou, é porque Georgina
deve saber.
Uma nova troca de olhares entre as duas mulheres faz com que o mesmo
arrepio frio percorra a minha coluna, alcançando todos os meus membros.
— Olha, querida, como eu te falei: isso é apenas uma previsão. — Ela sorri.
— Pode ser que não venha acontecer.
Ela está fugindo da pergunta. Igual a minha mãe, quando quer se desviar de
alguma coisa.
— Vó…
— Assim como minha mãe, minha avó e tantas outras, antes de nós, nunca
errei, mas sempre há uma primeira vez, certo? — Apenas aquiesço. —
Agora, quero a senhorita a cada quinze dias aqui, para eu poder te ensinar
tudo!
— Mãe.
Ignoro a garota, afastando-me. Ela é gostosa, transa bem pra caralho, mas
não vale a chatice do grude.
— Disse para você que estava vindo estudar. — Ela mexe nos cabelos,
achando que isso irá mudar alguma coisa.
Transar com qualquer garota da escola tem esse problema: elas acham que,
automaticamente, tornam-se namoradas.
Vejo que Nancy olha para o meu amigo e logo parece procurar outra
pessoa.
E, como eu esperava, a menina volta o olhar para mim direto, como duas
labaredas de fogo.
— Você não precisa nem estar no time de futebol para ser o rei dessa
escola.
— Vai tomar no cu, Austin. — Rolo os olhos enquanto ele ri. — Você e Gió
são insuportáveis com essas malditas frases do Rei Leão.
— Calma, Simba. — Ele solta uma risada debochada — Enfim, vai pra
casa jogar com a gente?
— Não vai rolar. — Bato no livro com a lapiseira. — Preciso terminar isso
aqui e meu tio pediu para que eu o acompanhe numa inspeção na fábrica,
de tarde e só estou esperando o carro chegar para ir.
— Não posso discutir com o futuro rei das Terras do Reino… quero dizer,
da Lowe!
— Uma festa nunca é uma festa sem você, ó todo poderoso capitão do time
de futebol.
Nem Austin e nem Georgina sabem o que acontece lá em casa, nem mesmo
a ponta do maldito iceberg. Se Linus Lowe fosse igual ao que é em frente
às outras pessoas, seria ótimo; o problema é que, dentro de casa, é ainda
pior. O que me fode real, é saber que, quando não estou por perto, quem
paga o preço é a minha mãe.
— Por quê?
— Conheço você há muito tempo para saber que não é isso que está te
incomodando. — Ele me olha pelo retrovisor. — Diga-me o que está
acontecendo.
— Primeiro dia longe do futebol. Você me disse que ser adulto tinha muitas
vantagens.
No momento, sei que pareço mais uma criança do que alguém que está
ridiculamente perto dos dezoito anos. O homem solta uma risada, olhando-
me através do retrovisor.
— Concordo, mas, ainda assim, é algo. Tente ver o copo meio cheio,
garoto.
— Chegamos, Conrad.
Com certa surpresa, vejo que já estamos do lado de dentro dos altos
alambrados que cercam a empresa.
— Não sei, mas posso pegar uma carona de volta com o meu tio ou, quem
sabe, com alguma estagiária gostosa.
— Que bom que não subiu, Conrad. — Ele bate em minhas costas. — Já
estamos saindo. Campbell, leve a mochila do meu sobrinho e deixe na sala.
— Claro, Sr. Lowe. Devo avisar ao seu irmão que está adiantado para a
inspeção?
— Perfeitamente.
— Com certeza.
Ele conversou com os funcionários, escutou o que eles tinham para falar,
sem parecer estar cansado ou entediado.
— São essas pessoas, Conrad, que fazem com que a nossa empresa gire.
Imagine se elas resolvem pedir demissão, de um dia para o outro?
— Você pode até ter razão em sua fala… mas não é como um líder deve
pensar. O que você está vendo aqui não são recursos e, sim, pessoas… e
essas são insubstituíveis.
— Concordo com você mais uma vez, porém o jeito como aquele homem
— meu tio aponta para um senhor a alguns metros de nós — trabalha não é
substituível. O seu posto de trabalho, sim, mas aquela pessoa ali, do jeito
que ela é, com as qualidades e defeitos, não.
— Com certeza e um pouco mais, até. Uma vez por mês ele passava o dia
em um dos setores daqui, como um funcionário qualquer. Tinha horário
para entrar, para almoçar… inclusive, comia a mesma comida que todo
mundo.
— É por isso que você faz questão de almoçar no refeitório?
— Como o mesmo que todo mundo, porque quero garantir que a qualidade
da comida, que está sendo feita para mim, será servida para os demais —
Lutz Lowe diz, sério.
— Se você fosse meu filho, talvez não fôssemos tão parecidos. — Ergo as
sobrancelhas., — Fiz os mesmos questionamentos para o meu pai quando
tinha a sua idade.
Não acho que mudarei meus pensamentos, mas prefiro ficar quieto do que
decepcionar meu tio, falando que não abrirei mão de comer em minha sala.
Se tenho dinheiro para comer todos os dias a comida do melhor restaurante
de Emerald, por que almoçaria junto com o povo, no refeitório da empresa?
Não faz sentido algum.
— Não se preocupe com isso hoje, padawan [3]— ele fala, com o seu
sorriso sempre acolhedor. Seu rosto fica sério em questão de segundos. —
Sei que é muito jovem para isso, mas preciso que saiba que, caso aconteça
algo comigo, existe um testamento guardado no Banco Nacional de
Emerald. Apenas eu, você e sua tia temos acesso.
— Sim. — Ele aperta meu ombro mais uma vez. — Caso precise, algum
dia, saiba que lá estão todos os meus documentos com firma reconhecida e
com as testemunhas necessárias.
Eu aquiesço, mesmo que a conversa não faça sentindo algum para mim. O
ar preocupado de seu rosto some e ele volta a ser o Lutz de sempre.
— Vou comer um lanche aqui perto, com o seu pai. O que acha de ir junto?
— Acho melhor não, tio. Tenho prova amanhã, no período da tarde, e vou
aproveitar para estudar.
— Achei que seria bom trazer Conrad, para que ele comece a entender
como as coisas funcionam.
— Claro, é ótimo que ele esteja com a gente hoje. O que acha de irmos
naquela lanchonete na estrada?
— Era nela que estava pensando.
— Vou verificar o ambiente e já volto — meu pai diz e meu tio concorda,
como se fosse algo normal.
Saímos do carro e meu tio dá a volta, ficando ao meu lado. Sinto o celular
vibrar dentro do bolso e pego para conferir a mensagem. É Georgina,
perguntando-me se está tudo bem.
— Não.
— Faça o que ele está pedindo. — A voz do meu tio sai baixa, mas não
consigo obedecer ao que ele está dizendo.
A adrenalina corre nas minhas veias, porque, claramente, sou maior e mais
forte. E então ele dá mais um passo em minha direção, tentando arrancar o
aparelho da minha mão e uma luta corporal é iniciada.
— Não… — murmuro. — Tio? Não, não… não pode ser! — São apenas
dois passos que nos separam. — Fala comigo, tio! FALA COMIGO!
Sua cabeça pende em um ângulo estranho, os olhos abertos, mas sem brilho
algum. Levanto minha mão, para colocar sobre a ferida, e então a vejo: a
arma está em minha mão.
— O que… O que você fez, Conrad? — É a voz do meu pai atrás de mim.
— CHAMEM UMA AMBULÂNCIA! SOCORRO!
— O que você fez com o meu irmão, seu desgraçado? — Não consigo falar,
meu corpo está pesado. — VOCÊ MATOU LUTZ!
Mexo meus dedos e sinto algo áspero em contato com a minha pele. Abro
os olhos e não reconheço onde estou. É quase um esforço sobre-humano
conseguir me sentar enquanto obrigo meu cérebro a registrar o que tem ao
redor; há terra, pedras, mato, árvores e uma estrada de asfalto de mão
simples.
A primeira coisa que consigo entender é que estou com uma sede infernal.
Minha língua está áspera e grossa, e não parece caber dentro da minha
boca.
Fico ali, no meio do nada, sentado por alguns instantes. Há um vazio dentro
da minha cabeça, e consigo formular nenhum tipo de pensamento, nada que
faça um real sentido. Passo a mão no rosto e sinto a sujeira arranhar a
minha pele.
Não sei por quanto tempo eu caminho, as imagens como um loop em minha
cabeça, revivendo cada momento, como CD riscado. E, por fim, quando o
céu começa a escurecer novamente, eu caio no chão, exausto.
Não achei que iria morrer com dezessete anos, mas não me parece tão ruim
agora. Na realidade, acho que partir dessa merda seria reconfortante.
~ 10 anos depois~
Beberico o café forte e sem açúcar que acabaram de me trazer,
enquanto analiso mais um balancete da empresa[4]. O faturamento está
caindo. Centenas de funcionários já foram mandados embora, o turno
reduzido para apenas dois, na tentativa de diminuir ainda mais os custos,
mas, ainda assim, sei que o problema está longe de ser solucionado.
O plano de fundo da minha tela do computador, com o grande L
estilizado da família Lowe, lembra-me de que tenho uma reunião, junto da
diretoria, em cinco minutos, na qual tentarei, mais uma vez, mostrar
soluções para nos tirar da crise.
Minha chefe, a Sra. Gallagher, nunca veio até a minha sala tantas
vezes quanto nos últimos dez dias. Inclusive, para minha completa surpresa,
até fez questão de revisar o material ao meu lado.
Busco meus scarpins, que estão espalhados sob a mesa e os encaixo
nos pés, sentindo meus dedos reclamarem ao serem espremidos dentro do
sapato de bico fino.
Aliso a calça preta de alfaiataria, na busca de algum fiapo de tecido,
mas está impecável. Caminho, com o notebook em mãos, pelo longo
corredor até a sala de reunião, que já está movimentada.
Todos estão agitados, aguardando os próximos números, e sei que,
mais uma vez, serei a portadora das más notícias. Nossa produção caiu, os
fornecedores já não querem mais trabalhar conosco pela falta de pagamento
e a qualidade do produto entregue para o consumidor só piora a cada dia
que passa. O mercado nacional quer distância da empresa e nem posso me
dar ao direito de questionar “o que estamos fazendo de errado?”, porque
está na cara.
Sento-me em uma das cadeiras vazias ao redor da mesa e puxo o
cabo HDMI, conectando-o ao meu notebook. A imagem é logo refletida na
televisão e espero que todos se ajeitem. Olho o relógio e seguro o suspiro
que está prestes a escapar da minha boca.
— Você revisou o material? — Sra. Gallagher me questiona,
sentando-se ao meu lado.
— Sim, mas não mudei mais nada desde ontem.
— Ótimo, temos boas informações. Só não são agradáveis de serem
ouvidas. — Apenas aquiesço, até porque, não há o que responder.
Bato o olho no relógio e Linus Lowe está atrasado. Como sempre.
Os cochichos ao redor são nervosos, mas sei que não há como ser
diferente. Faz cinco anos que estou aqui e não houve um mês, nesse tempo,
que o caixa tenha fechado no positivo.
Todos os dias, desde o momento em que aceitei o emprego na área
financeira, meu pai me pergunta por qual motivo estou trabalhando aqui. E
todos os meses, enquanto analiso o fluxo de caixa da empresa, faço essa
mesma pergunta para mim. Nesses momentos, consigo me ver como um
dos músicos naquela cena clássica de Titanic… eles tocam enquanto o
barco afunda.
— Estou aqui. — A voz grossa do CEO da empresa faz com que os
barulhos cessem. Nunca há um pedido de desculpas por ter deixado as
pessoas esperando. — Vamos começar logo essa apresentação, pois tenho
um compromisso importante a seguir e não posso me atrasar!
Meses atrás, em uma das poucas vezes que precisei entrar em sua
sala, após uma dessas reuniões, encontrei-o em seu assunto muito
importante: uma partida de mini-golfe dentro do próprio escritório. Passo as
unhas sobre o meu queixo, fingindo uma coceira para evitar revirar os
olhos.
Linus Lowe deposita seus olhos escuros em mim e, como sempre
foi, um arrepio frio percorre a minha coluna e um gosto amargo toma a
minha boca. Há algo nele que sempre me inquietou, incomodou-me, mas
sentir ou deixar de sentir não fará qualquer diferença agora.
Sinto-me como um papagaio que fala a mesma coisa todas as vezes.
Nada muda, nenhuma ação é tomada, mesmo com os números escritos em
caixa alta e vermelho. As ideias surgem, mas todas são barradas pelo dono,
que parece não se importar com o destino da empresa.
Não tenho acesso à movimentação completa do caixa da empresa,
mas tenho certeza de que o dinheiro dele do mês é retirado, sem falta e
nenhum peso na consciência. Na ponta da mesa, há um homem que sequer
chorou pelo desaparecimento do filho, ou na homenagem feita, sem o corpo
do meu melhor amigo presente.
Com os olhos fixos na tela, pego-me pensando, mais uma vez, como
seriam as coisas se Conrad estivesse vivo e à frente da Lowe Alimentos.
Talvez ele ainda não mandasse, mas, com certeza, estaria ao lado do tio,
pensando no que era não apenas melhor para a empresa, mas também para
todos os funcionários.
Respiro fundo e ajeito a postura, voltando a prestar atenção ao meu
redor. Pensar no meu melhor amigo, morto há uma década, não iria resolver
coisa alguma e eu só voltaria a visitar aquele maldito lugar escuro, no qual
me enfiei por meses depois de toda a tragédia.
— E o que vocês querem que eu faça? — Linus pergunta,
impaciente. — Não faço milagres. Está claro que são os funcionários que
estão fazendo corpo mole na produção.
— Como você pode dizer isso? — O gerente responsável pela
fábrica aumenta o tom de voz. — Todos estão trabalhando, dando o melhor
de si.
O CEO solta uma risada debochada.
— Todo o conselho quer que você tome uma atitude hoje ou
tiraremos você da presidência! — um dos acionistas diz.
— Sabe que não pode fazer isso — ele diz, tranquilo. — Além de
CEO, tenho setenta e cinco por cento de toda a empresa.
— Ache uma solução, Sr. Lowe — um outro homem diz, bastante
sério.
— Já disse que estamos pensando em maneiras de resolver. — Não
há qualquer tipo de emoção nele. — A situação será revertida e isso deve
ser o suficiente para vocês neste momento.
— Claro que não, Lowe — o Senhor Smith, o único que sei o nome,
diz com sua voz absurdamente grave. — Vai nos dizer agora qual o seu
plano de recuperação. Ninguém sairá daqui enquanto não tivermos essa
informação. Nem você!
Vejo-o revirar os olhos e confesso que gostaria de me enfiar sob a
mesa, tamanha a vergonha. Algum tempo atrás, conversando com a minha
avó, durante uma de nossas tardes regadas a chá, eu entendi que o homem,
que mexe a caneta de um lado para o outro, nunca amou este lugar. A
verdade é que ele gosta do poder, de ter o controle das coisas e fazer o que
bem entender.
— Isso jamais iria acontecer, se Lutz ainda estivesse vivo.
Um grito escapa da minha boca quando Linus Lowe bate com as
duas mãos na mesa, levantando-se de imediato e encarando a mulher idosa,
duas cadeiras para a minha esquerda.
— Meu irmão está MORTO e a empresa é MINHA! QUEM
MANDA NESSA MERDA, AQUI, SOU EU.
A mulher está com a boca aberta enquanto eu estou completamente
congelada no lugar. Já vi muita coisa do homem que ocupa a ponta da mesa,
mas nunca uma reação nesse nível.
— Já disse que não quero escutar o nome do meu irmão aqui dentro,
ou em qualquer lugar que eu esteja — Linus diz, agora em seu tom normal
de voz, como se nada houvesse acontecido segundos atrás. — Como estava
falando, nós temos um plano. Georgina irá visitar um cliente no Brasil,
daqui uma semana, e ficará lá por alguns dias, com o intuito de fechar um
importante contrato para nós. — Olho minha chefe de relance, que está
muito entretida com as próprias unhas. Minha boca se abre, mas com
apenas um olhar do próprio CEO, engulo tudo o que eu poderia falar. —
Um distribuidor ficou interessado em nossas carnes exóticas. É apenas o
começo para o plano de expansão para a América Latina.
Aos poucos, as cabeças vão se virando em minha direção,
aguardando algo que eu tenha para falar. Sou Gerente Financeira, e não
vendedora. Encho o peito para falar que talvez exista algum engano, mas
recuo no último instante.
— Georgina? — A Sra. Mitzy chama a minha atenção. — Quais os
planos que você fez para essa viagem?
— Estou terminando o roteiro e as propostas que irei fazer para o
cliente. Posso compartilhar com todos vocês assim que finalizar. Só não
mostro agora, porque ainda faltam ajustes de preço e alguns impostos que
preciso incluir no valor. Assim que realizar todas as alterações, e tiver a
aprovação da Sra. Gallagher, irei encaminhar a todos vocês. Podemos seguir
assim?
As respostas, apesar de positivas, são desconfiadas. Nunca passei
por algo assim, mas cansei de ver Linus fazer isso com outras pessoas e se
safar. Mais uma vez, pergunto-me o motivo de estar aqui, nessa empresa,
quando podia estar em um emprego muito melhor, ganhando bem mais.
Minha mãe diria que eu estou apegada ao passado, pensando de
forma emocional, achando que, de algum jeito, eu estaria perto do meu
amigo morto… enquanto minha avó falaria que é apenas o meu destino e
que eu devo seguir o fluxo, com um sorriso no rosto.
As pessoas começam a se dispersar e Linus para ao meu lado. Posso
contar nos dedos quantas vezes ele se dirigiu a mim, durante todos esses
anos, e em muitas delas, aconteceu porque não havia qualquer outra pessoa
por perto, além de mim, assim como hoje.
Tudo o que ele precisava sempre era enviado por seu secretário,
fosse por mensagem, durante o horário do almoço, ou até mesmo em um
encontro perto da máquina de café.
— Vou te encaminhar as informações por e-mail.
Nada é dito além disso.
Questiono-me, mais uma vez, por qual motivo eu ainda estou aqui
nessa empresa. Acordando cedo todos os dias, sabendo que milagres não
acontecem. A verdade é que, de algum jeito, me sinto presa a esse local.
Quantas vezes recebi uma proposta de emprego melhor, mas neguei sem
razão alguma?
Junto as minhas coisas e ando apressada em direção à minha sala,
para fugir de qualquer pessoa que queira perguntar mais detalhes sobre a tal
ida ao Brasil. Fecho a porta e peço ao Universo que ninguém venha me
incomodar com essa história, principalmente a minha chefe, porque estou
por um fio de pedir as contas. Inclusive, o que me impede de fazer isso
agora?
Assim que conecto meu notebook à fonte de energia, escuto o
barulho característico me avisando que um novo e-mail chegou à minha
caixa de entrada. Lá está, diretamente do secretário do CEO, meia dúzia de
explicações sobre o que acontecerá na próxima semana.
Srta. Romano, boa tarde.
Você ficará em São Paulo durante duas semanas, com o objetivo de
fechar o contrato com a rede de restaurante de luxo “Santoro”.
As reuniões já foram marcadas e estão em seu calendário. O
material para estudo encontra-se anexo.
O CEO mandou que faça o que for necessário para fechar esse
contrato, caso contrário, ele pede que esvazie sua mesa, assim que voltar.
Qualquer dúvida, estou à disposição.
Atenciosamente,
S.Müller
Secretário da presidência.
Estou deitada na cama, olhando Lizzie pela tela do celular. Ela está
em seu momento skin care matinal enquanto eu só preciso tomar um banho
e dormir, porque o jet lag está me matando.
— O cara saiu da reunião sem dizer nada?
— Exato — confirmo. — Ele ficou me encarando o tempo todo e,
assim que terminei de apresentar a empresa, simplesmente se levantou e foi
embora.
— Mas e aí?
— Eles remarcaram para amanhã. — Dou de ombros. — Não deram
explicações, apenas pediram desculpas e encerraram a reunião. Mas, para
ser sincera, não acho que esse cliente vá fazer uma grande diferença para a
Lowe. O rombo é grande demais!
— Então para que todo esse esforço? — minha amiga questiona,
enquanto passa um creme no rosto. — Numa dessas, eu pegava as minhas
coisas e iria embora. Inclusive, já fiz isso.
— A diferença é que a empresa da sua família pode escolher os
clientes, enquanto a Lowe precisa implorar por eles.
— Já cansei de dizer que não sei o que está fazendo lá. — Ela bufa de
indignação. — Você poderia trabalhar em qualquer lugar que quisesse,
inclusive na empresa dos seus pais, mas não… fica aí, se prestando a isso.
Chega a ser humilhante.
A verdade é que eu detesto admitir que o mundo está certo a respeito
de mim mesma. Apeguei-me à empresa, como se fosse meu bote salva-
vidas, como se fosse o remédio do qual preciso para lidar com o luto pelo
meu melhor amigo.
Entrei na Lowe logo que terminei a faculdade e era como se tudo
fosse se resolver. Minha meta era dar o melhor de mim para que, de algum
jeito, eu pudesse estar fazendo algo que Conrad não pôde. E, com o passar
do tempo, apenas me acomodei e não percebi que fui me quebrando aos
poucos, entrando em uma porcaria de depressão, da qual só tive ciência
meses atrás, quando criei coragem e busquei um profissional, para me
ajudar.
Nunca é apenas um aspecto da vida que nos enfia em um buraco
escuro e frio… eu tinha uma família incrível, com pais que se amavam e eu
estava sozinha, com vários relacionamentos fracassados para a conta. No
final, a borra do café nunca mentiu para mim: eu viveria em solidão. E,
contrário do que minha avó disse dias atrás, minha solidão será eterna, não
irá acabar, como o oráculo profetizou.
— Planeta Terra chamando Georgina! — Pisco algumas vezes. —
Escutou alguma coisa do que eu falei, nos últimos cinco minutos?
— Não — respondo, sincera. — Estou com muito sono! Detesto esse
período de adaptação… tudo parece estar errado e a única coisa que desejo
é uma cama quente e macia.
— Tá bom. — Ela revira os olhos. — Mas, antes de desligar, esqueci
de perguntar uma coisa muito importante.
— O quê?
— O louco… — Aquiesço. — Como era mesmo o nome dele?
Santiago? Savegnago?
— Santoro — corrijo.
— Ao menos, era hot ou só maluco mesmo?
Eu teria que ser cega para não olhar o homem, sentado à ponta da
mesa, com o semblante sério que beirava á indiferença. Os cabelos
castanhos, bem cortados. Os olhos escuros, que eu chutaria serem pretos. A
barba rente, de quem acordou e deixou para fazer somente no dia seguinte.
— Padrão — respondo.
— Isso não diz muita coisa. — Lizzie torce a boca. — Sempre te
descrevo um homem bonito quando vejo.
— Amanhã, vou reparar melhor, prometo! Agora, preciso mesmo
dormir.
Jogo o celular ao lado quando, finalmente, consigo me despedir dela.
Se deixar, ainda levaremos mais meia hora de conversa, depois do primeiro
“tchau”.
Deixo minha cabeça afundar no travesseiro, olhando para o teto,
impecavelmente branco do hotel luxuoso, no qual estou hospedada. O tal do
Santoro é bonito o suficiente para me fazer pensar em um homem e sentir
alguma coisa, depois de tanto tempo.
O último cara com quem eu transei, meses atrás, foi uma bosta e tive
que dar razão a Austin quando, uma vez, ele me disse: “depressão pós-gozo
é a pior coisa do mundo… você descobre que uma punheta teria resolvido
tudo”. O foda é que nem gozar eu tinha conseguido, de tão merda que havia
sido, e, desde então, meu vibrador, ou até mesmo meus dedos resolveram
muito bem o meu problema.
Só que hoje, quando eu vi aquele exemplar do sexo masculino
entrando na sala, a primeira coisa que veio na minha cabeça foi “eu daria
fácil para esse homem”. Naquele momento, sequer fui capaz de me
reconhecer, porque não me lembro de ter pensado assim algum dia.
Lembro-me ainda de ter olhado para o tal do Bernardo, COO da Santoro
para comparar. Era bonito? Maravilhoso, mas, ainda assim, não me causou
esse tipo de sensação. Santoro aqueceu meu corpo inteiro somente com um
olhar.
Precisei lutar para me concentrar no slide que aparecia na televisão,
em vez dos olhos escuros que não desgrudavam de mim, e isso aconteceu
até o momento em que ele se levantou e saiu da sala, sem nenhum tipo de
explicação. Foram segundos de silêncio completo, até que alguém dissesse
que seria necessário remarcar aquela reunião, para o dia seguinte.
Apago a luz e continuo na mesma posição, esperando que minha
mente vaguei para longe, mas o aviso da minha avó, dado um par de dias
atrás, ecoa.
***
Já estou com tudo pronto, apenas aguardando a reunião começar.
As pessoas vão chegando aos poucos, ocupando as cadeiras ao longo
da mesa. Elas cochicham na língua nativa, o que impede que eu
compreenda o que está sendo dito, mas, pelas feições, estão todas tensas.
Determinadas expressões faciais são universais, ainda mais no mundo
corporativo.
Remexo-me na cadeira, incomodada. O relógio indica que ainda
faltam cinco minutos para o horário marcado, mas isso não ameniza a
ansiedade de ver as duas cadeiras, no lado oposto, ainda vazias.
Acompanho, através do vidro fosco, duas figuras altas caminharem. E
o CEO e o COO entram, ainda conversando e se dirigindo ao fundo. Apenas
Bernardo olha para mim e acena com a cabeça, cumprimentando-me com
um sorriso cortês. O tal Sr. Santoro apenas ocupa seu lugar, seus olhos
escuros finalmente encontram os meus e um arrepio percorre a minha
espinha.
— Posso começar, senhores?
Todos aquiescem.
E quando, enfim, assumo o controle da situação, o nervosismo se
esvai e começo a fazer a apresentação com a tranquilidade de quem
conhece cada detalhe da empresa. Andando de um lado para o outro,
utilizando ferramentas visuais, pequenos vídeos de apresentação e dados a
respeito da Lowe, vou construindo a história dos motivos pelos quais a rede
Santoro deve nos ter como seu fornecedor de carne exóticas.
Enquanto eu falo, desligo a parte do meu cérebro que parece querer
me lembrar da real situação por baixo dos panos. Mas, como escutei em um
curso uma vez, um bom vendedor é aquele que sabe dizer a verdade, de um
jeito que vá agradar o cliente, por pior que ela seja. Tudo na vida pode ser
dito, desde que a gente saiba como irá dizer.
Distribuo o material impresso para todos os presentes e respondo com
tranquilidade a todas as perguntas levantadas, sabendo que estou sendo
avaliada em cada palavra usada, cada gesto feito. Bernardo Andrade é o
único que interage comigo, fazendo alguns questionamentos a respeito da
importação das peças e sobre o processo dentro da vigilância sanitária no
Brasil.
O homem me agradece e eu retribuo com um sorriso, que rezo para
que não esteja parecendo forçado. Meus olhos, inevitavelmente, passam
pelo CEO e ele está do mesmo jeito como quando comecei a apresentação:
a atenção focada no pequeno aparelho em uma de suas mãos.
É a primeira vez que algo assim acontece? Não, mas é a primeira que
me sinto estranhamente irritada. Não sei se as pessoas percebem, porém sou
enchida de perguntas o suficiente para não conseguir prestar atenção em
outras coisas. E quando, por fim, após uma hora e meia, finalizo a
apresentação e a reunião, o Sr. Santoro levanta o rosto e me encara, com a
mesma expressão impassível de ontem.
Ele se levanta devagar, parecendo ser mais alto do que realmente é.
Olha para o relógio, aperta alguma coisa e, por fim, volta a me encarar.
— Não faremos negócio com vocês. — Há algo de muito familiar na
voz grossa de Santoro. — Bernardo, precisamos conversar.
O tempo que levo para entender o que ele acabou de falar é o
suficiente para fazer com que o CEO saia da sala, acompanhado do sócio.
As pessoas olham uma para as outras e a irritação, que já estava me
cutucando, agora se soma com a indignação, por ter sido tratada com tanto
desrespeito.
Nunca, em toda a minha vida, havia sido tratada com tanta
indiferença. De forma mecânica, vou juntando tudo na minha mala. O
notebook no compartimento próprio, os cabos na lateral e o mouse logo à
frente.
Ninguém se aproxima, apenas acenam, conforme vão saindo.
Não, isso não vai ficar assim.
Eu quero que se foda se serei demitida, se nunca mais conseguirei a
porra de um emprego. Não me importo com a merda do que pode acontecer.
O fato é que esse cara, seja ele quem for, não tem o direito de me tratar
assim.
Vim da porra de outro país, horas dentro da merda de um avião e o
mínimo que espero é ele ter educação. E só porque é a merda do CEO, de
uma rede de restaurante de luxo, acha que pode tratar as pessoas dessa
maneira? Não, nem fodendo e vou mandar o ditado da minha mãe sobre o
Universo fazer justiça para a puta que pariu também, porque, no momento,
a justiça sou eu mesma.
Deixo a mochila de lado e saio apressada. Talvez, o cosmo esteja
girando a meu favor, porque, lá no final do corredor, vejo o arrogante entrar
por uma das portas, após se despedir do Sr. Andrade.
Passo em disparada pela recepção, que fica no meio do caminho, e
uma das moças vem atrás de mim.
— Srta. Romano, não pode ir nessa direção!
E existe uma grande diferença entre poder e querer, mas, no
momento, bater de frente com aquele homem é tudo o que desejo. Ele é tão
arrogante que não repara em nada e entra no que acredito ser a própria sala.
— Quem você pensa que é para me tratar dessa maneira?
Santoro não parece nem um pouco surpreso em me ver dentro da sua
sala, muito pelo contrário, ele até parecia estar esperando por algo assim.
— Sr. Santoro, me desculpe! — Uma das recepcionistas entra logo
atrás, o rosto lívido. — Não consegui segurá-la. Devo chamar a segurança?
Olho com indignação para a mulher, que fez questão de fazer a
pergunta em inglês. Quando abro a boca para responder, vejo o homem à
minha frente negar com a cabeça.
— Não precisa se preocupar — ele diz. — Feche a porta quando sair,
por favor.
A mulher não discute, apenas dá meia-volta e faz exatamente o que
ele acabou de mandar. Parece que essa interação entre os dois, como se eu
não estivesse presente, apenas serviu para aumentar a minha raiva.
— Eu quero que se foda o seu cargo — digo, tentando controlar a
raiva que borbulha dentro de mim —, porque nada te dá o direito de me
tratar com tanto desprezo e falta de educação.
— Dinheiro, status e mulheres. O que mais eu poderia querer?
Eu já escutei essa frase, mas foi há muitos anos. Uma espécie de caixa
de Pandora parece ter sido aberta dentro de mim.
As palavras vão sendo processadas pelo meu cérebro e uma enxurrada
de lembranças me atinge. Pisco algumas vezes, encarando o homem à
minha frente. E então a confirmação de que eu conheço aqueles olhos
escuros caem sobre mim, como uma bomba, e cambaleio até me sentar no
sofá.
Aos poucos, vou reconhecendo os traços. De um jeito diferente, estão
todos ali. A boca bem desenhada, o queixo quadrado, a cicatriz logo acima
da sobrancelha esquerda, devido ao choque com um jogador de futebol
durante uma partida amistosa, que arruinou uma das minhas blusas de frio
favoritas ao tentar estancar o sangue.
É ele e eu não tenho nenhuma dúvida quanto a isso.
Santoro dá um passo em minha direção, mas estendo a mão, fazendo
o gesto universal para que não se aproxime. Não pode ser verdade! Abro e
fecho a boca uma, duas, três vezes… mas nenhum som sai. Devo estar
sonhando, ou, quem sabe, tendo um pesadelo.
Meu melhor amigo está morto. Seu corpo, de acordo com todos os
veículos de notícia, nunca foi encontrado porque, provavelmente, está
perdido em algum lugar, no meio da floresta. O que estou vendo é uma
aparição, um fantasma ou, até mesmo, uma alucinação. É isso… estou tão
cansada que meu cérebro deu um curto e agora está travado em um mundo
paralelo.
Sinto-me estranha, o corpo parece estar cada vez mais pesado.
Obrigo-me a piscar, mas a minha visão não melhora e tudo ao meu redor vai
ficando cada vez mais escuro, até que, por fim, meu corpo cede e eu desligo
completamente.
Não é sua culpa eu estragar tudo
Não é sua culpa que eu não sou o que você precisa
Amor, anjos como você não podem voar para o inferno comigo
Eu sou tudo o que eles disseram que eu seria
(Angels like you - Miley Cyrus)
Aqui, do lado de fora, no rooftop [9]do prédio, sou capaz de ver uma
grande parte da cidade de São Paulo, estendendo-se diante dos meus olhos.
Daqui de cima, consigo escutar apenas o barulho de helicópteros e algumas
buzinas distantes que vêm lá de baixo, onde os carros continuam passando
de um lado para o outro, em movimento constante.
Fecho mais o casaco ao redor do corpo, quando o vento frio bate
contra mim. Há algumas peças espalhadas pelo local, ainda envoltas de
plástico bolha e panos, para serem protegidas contra o tempo.
Ao fundo, escuto um barulho um pouco mais alto e vejo que as luzes,
do lado de dentro, estão sendo ligadas pouco a pouco.
— O que achou? — A voz grossa de Conrad se perde um pouco em
meio ao vento, que assovia ao redor.
— Perfeito — digo, sincera. — Parece ser um ótimo local e, se eu
morasse aqui, seria uma frequentadora assídua do espaço.
— Nunca passou pela sua cabeça sair de Emerald e morar em outro
lugar? — Ele se posiciona ao meu lado.
— Acho que só vou pensar em algo assim quando minha avó partir —
respondo sinceramente.
— Vocês ainda tomam chá todos os finais de semana?
— Todos, infelizmente, não — afirmo, chateada. — A vida adulta
cobra algumas coisas, mas, a cada quinze dias, é obrigatório um café da
tarde com bolinhos somente para as meninas.
Conrad, ao contrário de Austin, havia ido muito na chácara da minha
avó. Não consigo sequer ter noção da quantidade de tardes que passamos,
brincando em meio às árvores frutíferas, mas, infelizmente, nunca por
muitas horas, porque Pauline Lowe nunca tinha permissão para se ausentar
por muito tempo de casa. Com o sumiço do homem ao meu lado, nenhum
amigo foi lá mais e o sítio se tornou um lugar tão meu que foram raras as
vezes em que quis compartilhar com mais alguém.
— O que acha de entrarmos? — pergunto, quando uma rajada de
vento mais forte bate contra mim.
— Ótimo, porque já separei os ingredientes.
— Você vai cozinhar? — Ergo uma das sobrancelhas.
— Claro. — Começamos a caminhar para dentro do local protegido
do frio. — O jantar é por minha conta, hoje.
Ele me guia para dentro da cozinha, já completamente montada, e
vejo que os ingredientes já estão separados em uma das bancadas. Farinha,
ovos, frutos do mar, cebola, alho e azeite.
— O que vai cozinhar?
— Surpresa.
Conrad já está sem o casaco e, agora, arregaça as mangas até a altura
do cotovelo, o que praticamente me obriga a ver a musculatura torneada de
seu antebraço. Engulo em seco. Neste momento, ele veste um avental por
cima da roupa e, de um momento para o outro, ele muda completamente,
relaxando não só a feição, mas como todos os movimentos.
— E se eu não gostar?
— Duvido. — Ele sobe apenas um canto da boca, em um meio-
sorriso. — Mas, antes de começarmos, vou pegar algo para bebermos.
Ele some por alguns instantes e volta com uma garrafa, contendo um
líquido cor-de-rosa, e duas taças nas mãos. Ele se serve primeiro, fazendo
toda a análise antes de encher as duas taças e, puta que pariu, preciso me
lembrar de como se respira.
Continuo em uma luta interna para me desvencilhar da imagem de
ontem, de um homem desconhecido, com a de hoje: meu amigo
desaparecido. Mas meu cérebro não parece querer associar essas
informações.
— Como eu não teria tempo de fazer tudo, pedi para deixarem alguns
queijos cortados para nós. — Conrad vai até a enorme geladeira e pega uma
tábua coberta com plástico filme. — Não vai combinar com o vinho…
— Juro que não falarei que você é um mau chef por isso.
— Agradeço. — Ele quase sorri dessa vez, colocando os petiscos
próximos a mim.
— Quando você descobriu que gostava de cozinhar? — pergunto,
antes de levar o primeiro pedaço de queijo à boca.
— O meu primeiro emprego, aqui, foi num bar, numa rua um tanto
alternativa na cidade, e o dono me ensinou a fazer uns lanches e umas
coisas para servir aos clientes — ele me diz, enquanto arruma a farinha na
bancada, pegando os ovos. — Inclusive, foi onde conheci o Bernardo.
Fiquei por lá alguns meses, até ir para um restaurante no Jardins, que
precisava de pessoas que falassem inglês. Nesse meio tempo, consegui uma
bolsa para estudar gastronomia, porque me pareceu algo que eu conseguiria
fazer, sem precisar de muita coisa. Estudei muito, trabalhei para caralho e,
em algum momento, meu sócio, que não tinha onde enfiar o dinheiro da
família, resolveu que seria legal abrir alguma coisa de comida… e me
chamou para ser o chef.
— E você foi?
— Exatamente. — Conrad começa a sovar a massa. — Não pensei
duas vezes, para ser sincero. Eu estava fodido… então não havia nada para
perder, naquele ponto que me encontrava na vida.
Vejo que ele aumenta a força que faz com as mãos, os olhos focados
no trabalho sendo executado. Mas, ao mesmo tempo que ele parece estar
sentindo toda a dor outra vez, Conrad parece estar completamente distante
da situação, como se fosse alguém contando a história de uma terceira
pessoa.
— A primeira unidade do Santoro, que fica próximo ao hotel no qual
está hospedada, foi aberta seis anos atrás. Com a divulgação certeira para as
pessoas certas, em pouco tempo, se tornou um sucesso. — Ele faz uma bola
com a massa, levemente amarelada, e a enrola em um plástico filme. —
Consegui comprar metade da empresa de Bernardo pouco mais de um ano
depois e assumi o posto de CEO.
— Você gosta? — Acompanho Conrad ir até a geladeira, com a
massa, e voltar. — De ser um executivo, digo.
— Não. — Ele solta uma risada sem humor. — Meu lugar é aqui, na
cozinha.
Há tantas coisas não ditas nessa frase curta. Deixo que o silêncio
confortável caia sobre nós, enquanto ele leva um pedaço de queijo à boca e,
em seguida, dá um demorado gole no vinho. Dentro de mim, travo uma
batalha para não reparar em cada detalhe do seu rosto, em cada pequena
expressão, enquanto degusta o líquido.
— E para você, Gió? Como foram esses anos?
— Quer que eu romantize ou posso ser literal? — Subo na bancada
que não está sendo utilizada, ficando com os pés suspensos.
— Você sempre foi sincera comigo.
— Naquela época, alguém precisava falar o quão babaca você era. —
Uso um tom de brincadeira, arrancando um meio-sorriso. — Foi uma
grande merda, Connie.
Ele volta sua atenção para os frutos do mar. Com as mãos hábeis, ele
começa a separá-los e a limpá-los.
— Vá em frente — ele diz, encorajando-me. — Não precisa me
poupar de nada.
— É só que…
Falar também é doloroso. Vou reviver, pela terceira vez, só hoje, tudo
o que aconteceu nos dias que seguiram, após o desaparecimento de Conrad.
Pego a taça ao meu lado e tomo um gole, respirando fundo, em seguida.
Frequentemente, o melhor que fazemos é arrancar o curativo de uma
única vez. Assim, não estenderemos o nosso sofrimento mais do que o
necessário, mas, hoje, não me sinto capaz de fazer isso.
— O que acha de não falarmos disso, hoje?
Me perdoe pelo jeito que te olho
Não há mais nada para comparar
Te olhar de relance já me deixa fraco
Não existem mais palavras pra dizer
(Can't take my eyes off you - Joseph Vincent)
Meu pai sempre teve medo de qualquer transporte que voe, mas
helicóptero era algo que realmente o aterrorizava. Perdi as contas de
quantas vezes encaramos longas viagens de carro, porque o outro meio de
transporte estava fora de cogitação.
Acompanho as mãos de Conrad, que puxam e prendem o cinto de três
pontas, atando o meu corpo ao banco da aeronave. Ele coloca os fones
sobre as minhas orelhas e logo consigo escutar o chiado do aparelho sendo
ligado.
— Consegue me escutar? — A voz de Conrad sai um pouco
metalizada, mas, ainda assim, totalmente compreensível.
Vejo o piloto se arrumar, checando informações e tirando dúvidas
com Conrad. Mesmo com o fone, o som das pás começando a girar é alto.
O helicóptero voa baixo até chegar ao início da pista de decolagem. Em
questão de poucos segundos, estamos a muitos metros do chão.
A cidade lá embaixo parece não ter fim. É um mar cinza, composto
por uma quantidade impressionante de prédios. Talvez seja parecido com
Nova York, mas não consigo afirmar, porque fiquei apenas dois dias aqui e
consegui conhecer um total de zero coisas, nem mesmo pela Times Square
pude andar. Graças a minha chefe, que me obrigou a segui-la, mesmo
sabendo que minha presença era totalmente desnecessária na última reunião
do primeiro dia.
Aos poucos, a paisagem vai mudando. O verde vai tomando conta e
vejo aqui e acolá algumas cidades no meio do caminho, mas nenhuma delas
chega nem próximo ao tamanho de São Paulo. Olho para o lado e Conrad
parece estar completamente perdido em seus próprios devaneios, 0 rosto
virado para o lado oposto.
Estou me obrigando a focar no presente, prestar atenção em cada
detalhe, porque sei que, no momento que entrarmos na espiral, vou me
esquecer do exterior. Seremos apenas eu e Conrad por dois dias inteiros, e
estou totalmente ciente de que não sairei ilesa, não tem como.
O piloto diz algo no comunicador em português e Conrad agradece.
"Obrigada" foi a primeira palavra que aprendi.
— Ele avisou que pousaremos dentro de cinco minutos. — Meu
amigo traduz para mim.
— Para onde você me trouxe, afinal?
— Nós estamos em Monte Verde, no estado de Minas Gerais. E é para
cá que eu fujo sempre que posso… o sinal de internet é péssimo, o que
dificulta me encontrarem.
— Você não tem Wi-Fi aqui?
— Até tenho — ele ri —, mas faço questão de deixar desligada.
Tenho um telefone fixo dentro da casa que apenas Bernardo e minha
secretária tem o número. Se ele tocar, é porque algo de muito importante
aconteceu.
— É estranho escutar algo assim vindo de você.
A verdade é que minha ficha ainda não caiu cem por cento. Talvez
leve bem mais do que um final de semana para assimilar tudo isso que vem
acontecendo nos últimos dias.
Meu corpo chacoalha, assim que a aeronave pousa. Sem que eu peça,
Conrad me auxilia a tirar no cinto e logo a porta é aberta para que possamos
sair. As pás ainda giram com força, causando um vento considerável ao
redor. Me surpreendo quando percebo que está bem mais frio aqui e, por um
momento, pergunto-me se estou mesmo no Brasil.
Há uma casa mais à, frente que lembra muito a arquitetura de algumas
cidades da Europa. A casa de madeira, com o telhado alto e pontudo, parece
ser aconchegante, mas requintada, ao mesmo tempo. Exatamente como o
dono, que conversa com um senhor após um abraço rápido.
Aproximo-me com cautela, para que Conrad perceba que estou
fazendo isso. O senhor sorri para mim e bate nas costas do meu amigo.
— Hanz, essa é Georgina, uma antiga amiga de infância. — Conrad
me apresenta, em alemão.
— É um prazer, para mim, conhecê-la. Tenho certeza de que é alguém
realmente especial para estar aqui.
— É um prazer conhecer o senhor também.
Tento não pensar no que ele quis dizer com essa frase, que talvez
tenha sido apenas por educação.
— Está tudo arrumado para vocês passarem o final de semana.
Inclusive, o estoque de geleia foi reabastecido essa tarde. O carro está com
o tanque cheio, caso queiram ir até a cidade.
— Obrigado, Hanz.
— Já liguei o aquecedor da casa. E a lenha para a lareira está na sala,
como me pediu.
Conrad gesticula com a cabeça e bate com uma mão no ombro do
senhor em forma de agradecimento. Um vento realmente gelado atravessa o
casaco que estou usando e por puro instinto passo as mãos nos braços.
— O que acha de entrarmos?
— Melhor sugestão até o momento.
Sem que eu possa prever, Conrad tira a própria jaqueta e joga sobre
meus ombros e seu cheiro invade meu sistema olfativo mais uma vez. Seu
perfume é ridiculamente bom. É o que Lizzie classifica como cheiro de
homem. Eu me sinto estranhamente confortável com ele… mesmo tendo
ciência de que não conheço mais o homem que anda ao meu lado.
Conrad posiciona o dedo na maçaneta e ela se abre. E exatamente
como imaginei instantes atrás, a casa é confortável e, sobretudo,
aconchegante. Os móveis escuros, as cortinas claras. Uma televisão enorme
está pendurada em frente ao sofá de couro marrom-escuro e, logo ao lado,
há uma lareira simples que combina com o estilo da casa.
Em conceito aberto, a cozinha está mais adiante. E apesar de seguir o
mesmo padrão, tenho certeza de que é composta por tudo o que há de mais
tecnológico.
— O que achou?
— É incrível! Simplesmente perfeita. Me lembra um pouco o sítio da
minha avó. Eu poderia, facilmente, morar num lugar assim.
— Já pensei nisso algumas vezes.
— Conhecendo um pouco desse novo Conrad, tenho certeza de que
sim. — Ele sorri para mim.
— Você quer que eu aumente a temperatura? — Percebo que continuo
com a jaqueta dele e me apresso a tirar, sentindo-me estranhamente
envergonhada. — Se quiser, pode ficar Gió.
— O clima aqui me pegou de surpresa.
— Monte Verde também é conhecido como a Suíça brasileira… não
só pelas construções e cultura, mas também porque o clima daqui lembra
muito o de lá.
— Você continua o mesmo sabichão de sempre, Connie.
Ele dá de ombros, com um sorriso de lado que fazem minhas pernas
bambearem. Se continuar assim, talvez eu peça para que ele diminua a
temperatura do aquecedor central. Com alguma chance até de desligar.
Nunca senti tanta falta de Tommy quanto agora. E meu sexto sentido
diz que vai piorar até no final do dia.
— Vou te mostrar o resto da casa.
Ele abre uma das portas da sala que nos leva a um corredor curto.
— Meu quarto é esse — Conrad aponta para a direita. — E o seu é
esse aqui. — Bem em frente ao dele, o que não faz diferença alguma.
Certo? — Achei melhor, porque, caso você precise de algo à noite, é só
bater.
O primeiro pensamento que surge dentro da minha cabeça chega
perto de ser imoral. Sinto meu rosto esquentar.
Conrad é meu amigo.
Vou repetir e repetir essa frase quantas vezes for necessário até que
minha mente e meus hormônios sejam capazes de entenderem.
— Você quer que eu diminua a temperatura? — A pergunta me pega
de surpresa.
— Não, por quê?
— Suas bochechas estão vermelhas.
É claro que ele iria perceber. Vejo um brilho diferente em seu olhar,
mas prefiro acreditar que é coisa da minha cabeça.
— É… bom… acho que é calor mesmo. — Estou gaguejando. Ótimo.
Conrad pega o celular e ajusta a temperatura pelo aplicativo. Não
terei cinco minutos para me recuperar.
— O pessoal preparou um café da manhã de boas-vindas. — Conrad
parece ficar encabulado. — É a primeira vez que eu trago alguém aqui. Eles
quiseram fazer algo especial, com algumas comidas típicas.
— Que bom! — Abro um sorriso. — Estou morrendo de fome.
— Depois, podemos conhecer a propriedade. O que acha?
— Perfeito.
Conrad Santoro é meu amigo. Somente isso.
Há uma rima e há uma razão
Para o mundo selvagem lá fora
Quando o coração deste viajante malfadado
Bate no mesmo compasso que o seu
(Can you feel the love tonight - Elton John)
Seis horas da noite. Faltam um pouco mais de cinco horas para pegar
o voo que me levará de volta a Emerald.
Depois que Conrad me deixou no hotel, dois dias atrás, nada mais foi
conversado, nem mesmo uma mensagem foi enviada. A volta no
helicóptero foi horrível, um silêncio completo pesou entre nós e, assim que
chegamos a São Paulo, apressei-me a chamar um carro por aplicativo, não
dando chance para Conrad me oferecer uma carona.
Eu sequer tenho motivo para ficar brava, ou até mesmo chateada. Ele
foi claro na primeira reunião, quando informou a todos que não faria
qualquer tipo de negócio com a Lowe. Connie não mentiu para mim e não
me deu falsas esperanças também. Foi sincero em todos os momentos.
Ontem, enquanto estava deitada na cama, logo após a janta, abri o
contato dele para mandar uma mensagem, mas não sabia o que escrever e,
por fim, desisti da ideia. A verdade é que uma parte… na realidade, uma
grande parte de mim, esperava que ele tomasse a iniciativa do diálogo.
Talvez o Conrad de antigamente o fizesse, mas, como ele mesmo disse: esse
cara estava morto.
O homem que encontrei aqui é alguém muito diferente daquele que
foi meu amigo de infância, e quase não há nada do adolescente expansivo,
cheio de si, capitão do time de futebol da escola, que sempre estava com
uma garota pendurada no pescoço, e caindo de bêbado nas festas
escondidas, que ele organizava junto do time. E, por tudo isso, eu não
poderia ter nutrido esperanças de que ele mudasse de ideia no momento em
que contasse tudo.
Sento-me na cama, apoiando a cabeça entre as mãos ao lembrar de
nós dois juntos e não é apenas meu coração que reage, é cada célula do meu
corpo. Coloco-me de pé, obrigando a minha mente a focar na pilha de roupa
que preciso dobrar e nas outras tantas que preciso separar, por estarem
sujas, mas meus pensamentos vagueiam, sem que eu tenha qualquer tipo de
controle. Constato que, para o meu desespero, não perdi somente o domínio
sobre meu corpo, como também sobre a minha mente.
Pego um papel que deixei sobre o móvel de cabeceira e verifico a lista
de coisas que não posso me esquecer de jeito nenhum. As lembrancinhas
para os meus pais, para a minha avó, Lizzie e Austin, já estão compradas.
Inclusive, penso na última mensagem que ele mandou, sobre tomarmos uma
cerveja na próxima semana para eu contar como foram as coisas. Como
serei capaz de esconder dele que Conrad está vivo? Simples, não serei.
Dou a última verificada, para ter certeza de que não estou me
esquecendo nada. Olho-me no espelho do banheiro uma última vez, com a
sensação de que estou deixando um pedaço de mim para trás. Como é
possível que minha vida tenha virado de ponta cabeça?
Foi difícil me concentrar no trabalho e só piorou quando, horas atrás,
precisei informar a minha chefe que o contrato não havia sido fechado,
porque a Santoro negou todas as tentativas de negociação. Ela crispou a
boca e apenas me disse que, assim que chegasse em Emerald, viesse direto
para a Lowe, pois haveria uma reunião junto do CEO.
Fecho o zíper da mala e a coloco no chão, subindo o puxador. Ajeito a
bolsa com o notebook nas costas e sigo o caminho em direção à saída do
hotel, onde o táxi já deve estar me esperando em uma hora dessas. Busco no
bolso do meu casaco, os fones de ouvido, para ser capaz de me desconectar
do mundo e tentar compreender tudo o que aconteceu nos últimos dias.
Sim, fiquei praticamente trancafiada por quarenta e oito horas dentro
de um quarto de hotel e não tive condições de pensar, de maneira clara, no
que aconteceu durante o final de semana, e nos dias anteriores.
Meus pais me ligaram, Austin e Lizzie também, mas fiz questão de
não atender nenhum deles, com a desculpa de que estava muito ocupada,
quando, na verdade, passei mais da metade do tempo comendo e, na outra,
dormindo. Considerei, na noite de ontem, ligar para a minha avó, mas então
eu me lembrei da leitura da borra do café e um arrepio subiu pela minha
coluna. Como sempre faço, empurrei para baixo de algum tapete que,
eventualmente, em alguma noite de bebedeira com Lizzie será revelado e eu
me verei falando sobre tudo, como um passarinho cantando. Uma merda.
As portas automáticas se abrem e arfo, quando percebo que não tem
um motorista me esperando e, sim, Conrad, vestido todo de preto,
encostado no carro.
— O que está fazendo aqui? — Minha voz sai tremida,
acompanhando todo o resto que há de mim.
Conrad fica em silêncio por um momento, a feição que não demonstra
nada, tão diferente de quando estávamos juntos…
— Vou te levar para o aeroporto.
— Não precisa, Conrad…
— Sei que não, mas eu quero. — Ele cobre a distância que existe
entre nós com dois passos. — Vou colocar sua mala no porta-malas.
Nossas mãos se tocam e o choque perpassa por todas as células que
existem nesse corpo que se arrepia.
Ele larga a mala, seus dedos se enroscam em meus cabelos soltos, e
apenas fecho os olhos, porque entendo que esse toque era tudo o que eu
queria antes de ir embora. Conrad me beija e eu me esqueço o resto do
mundo ao redor. Tudo se resume a esse momento.
— Nós estamos em público — murmuro, quando nos afastamos
alguns milímetros.
— Vamos entrar no carro, vou te levar até lá — ele sussurra.
Conrad abre a porta do veículo e espera que eu me ajeite lá dentro
para fechá-la. O que essa aparição dele significa? O que ele quer me dizer,
afinal? A mistura de medo, desejo e tensão se misturam dentro de mim,
nublando meus sentidos por completo, e só piora quando o perfume
amadeirado, misturado ao cheiro do sabonete, acerta-me como um soco.
— Você não…
— Sim, eu precisava. — Ele me interrompe, ao mesmo tempo que
coloca o carro em movimento. — A possibilidade de você ir embora sem
que eu pudesse me despedir simplesmente não existe.
E o rombo da distância se abre diante de mim, porque a realidade está
batendo bem na minha cara, antes mesmo de chegarmos ao portão de
embarque do Aeroporto Internacional de Guarulhos.
— Quero te pedir algo — ele diz, sério, os olhos grudados no trânsito
à frente.
— Se eu puder fazer…
— Saia da Lowe — declara, sem rodeios. — Não fique perto do meu
pai, Gió, e nem de ninguém que o ache um cara minimamente decente.
— Connie…
— Estou falando sério. — Olho para suas mãos, grudadas no volante,
e os nós de seus dedos estão brancos, tamanha a força que ele faz. — Vá
embora e não olhe para trás. Você arranja um outro emprego fácil…
Fico esperando que ele complete a frase, o coração saindo quase pela
boca, mas ele se cala. Seu peito sobe e desce em uma respiração profunda.
— Há tantas coisas que eu gostaria de dizer a você. — Ele retoma a
fala. — Outros tantos motivos que me fizeram não voltar a Emerald, além
da maldita culpa da morte do meu tio, mas, puta que pariu, não quero
remexer nessa merda de novo.
Mesmo depois desse tempo todo, ainda consigo identificar a raiva
contida em sua voz, quando se refere a Linus Lowe. Conrad nunca abriu a
boca para falar uma vírgula que fosse dele e, por muito tempo, achei que
eles fossem uma família no estilo comercial de margarina, até que um dia,
anos atrás, vi Pauline aparecer com um roxo no braço. Seus olhos se
arregalaram, quando percebeu que eu havia visto. Tarde demais.
— Não estou cobrando nada de você, Conrad.
— Sei que não — ele responde com a voz rouca.
Acompanho, em câmera lenta, quando sua mão sai do volante e pousa
sobre a minha coxa, em um gesto íntimo que ninguém até hoje havia
experimentado. Estou vivendo uma batalha interna. A emoção diz para eu
aproveitar os últimos instantes com Conrad, enquanto a razão me implora
para construir um muro de proteção, mas acho que é tarde demais para isso.
Como é possível que eu tenha me envolvido tão rápido assim? Lizzie
chamaria isso de falta de amor-próprio, enquanto minha avó chamaria de
destino. Para qualquer uma das definições, eu vou me foder no fim, porque
não existe um final bom. Na realidade, a conclusão está na minha cara. Não
haverá uma próxima vez.
— Talk to me, Goose[14].
Sou transportada imediatamente para uma época na qual tudo era
muito mais fácil. É engraçado como a vida gosta de dar risada da nossa
cara.
Nós começamos a dizer essa frase um para o outro, depois de assistir
“Top Gun”, que se tornou nosso filme predileto da adolescência. Para
Connie, por causa dos aviões e da moto do Tom Cruise, mas, para mim, foi
pelos homens gostosos da década de oitenta, com seus tanquinhos à mostra,
jogando vôlei na praia.
— Não sei o que dizer — respondo, colocando minha mão por cima
da dele.
Nossos dedos se entrelaçam e eu me esforço para guardar essa cena
em minha memória. Começo a considerar largar tudo em Emerald e vir
morar no Brasil, só para poder vê-lo sempre que quisesse.
Seguro a vontade de rir de mim mesma.
O que eu acho que iria acontecer? Enquanto olho para os carros ao
nosso redor na tal Marginal Tietê, de acordo com o GPS, a verdade absoluta
cai como uma bomba sobre a minha cabeça: o que rolou entre nós dois foi
uma foda. Uma mistura de choque, com atração física entre pessoas que não
se viam há anos… deve ter rolado um nó em alguma sinapse cerebral.
Deveria ser isso, mas, aqui dentro, eu sinto algo muito maior.
— Algum dia você pretende voltar a Emerald?
— Não há nada que me faça voltar aquele lugar, Gió.
Um soco no meu estômago teria sido bem menos doloroso do que
escutar isso. Respiro fundo, crispando a minha boca para evitar as lágrimas.
— Mas agora que nos reencontramos e tem Austin…
Ele nega com a cabeça, sem desviar a atenção do trânsito a frente.
— Sei que gostaria de escutar outra coisa, mas eu estaria mentindo…
acho que nunca fiz isso com você e não é agora que farei.
Engulo em seco, porque isso não muda nada do que estou sentindo. O
sentimento de rejeição vai continuar crescendo dentro de mim.
— Georgina…
— Está tudo bem, Connie. — Ele pode não mentir, mas eu, sim. —
De verdade. Entendo você.
Se eu tinha alguma esperança de que o final de semana havia sido
mais do que uma foda, agora estava claro que era apenas isso e nada além.
Conrad desliga o veículo logo que encontra a primeira vaga, dentro
do estacionamento. O silêncio é pesado entre nós e não há nada que eu
possa, ou até mesmo queira, fazer para o amenizar.
Sou a primeira a fazer o movimento e saio do carro. O porta-malas já
está aberto e começo a tirar a bagagem, mas Conrad não permite. Nossas
peles tocam mais uma vez, mas seguimos no mesmo silêncio pesado.
Andamos lado a lado, até o local em que preciso despachar a mala.
Na fila, é inevitável olhar para o lado e ver a animação das pessoas que
conversam; muitas estão indo passear, conhecer um novo destino, realizar
um sonho… enquanto eu, sinto que estou deixando o meu para trás.
Falo poucas palavras para o atendente que verifica meu passaporte,
passa a bagagem e, logo em seguida, despacha-a. Agora, só em Emerald
precisarei me preocupar em pegá-la.
Paramos em frente ao portão do embarque internacional e não há
outro jeito, além de nos encararmos. Mordo os lábios para tentar segurar as
malditas lágrimas, mas parece ser em vão.
— Conte a Austin que estou vivo. — É Conrad quem quebra o
silêncio. — Sei que faria isso de qualquer jeito, em algum momento…
— Que bom que você sabe. — Tento soar divertida, mas falho.
— Só quis deixar mais simples para você. — Aquiesço, forçando um
sorriso, mas Connie não retribui. Ele passa no rosto e suspira, por fim. —
Não conte a mais ninguém, por favor. Muito menos para minha mãe. Saber
que estou vivo seria trazer um novo pesadelo para ela. — Sua voz rouca
implora para que eu entenda sua decisão. — Minha mãe seria a que mais
sofreria e tudo por minha causa. Você entende?
Tento me colocar no lugar de Pauline, mas desisto quando vejo que
todos os conflitos, dentro de mim, pioram em uma escala exponencial.
— Não se preocupe quanto a isso.
— Só quero que saiba que, se as coisas fossem diferentes, nós dois…
— Conrad, não — eu o interrompo, porque, agora, sou eu quem tem
vontade de implorar. — Não faça isso comigo, ok? Encerrar por aqui é
melhor…
Ele me beija e sei que é a última vez. Há gosto de tristeza, saudades e
lágrimas. Suas mãos seguram o meu rosto com firmeza enquanto as minhas
agarram sua jaqueta.
Eu daria tudo para ficar presa nesse momento.
Uma lembrança surge em minha mente, assim que nos separamos, e
nossos olhares se encontram. As palavras da senhora que me parou em
frente ao Starbucks ressoam em minha cabeça, como se estivessem sendo
ditas agora, e sinto que preciso avisá-lo porque, de algum jeito, tenho
certeza de que é sobre o homem à minha frente.
— Connie, acabei de lembrar de algo — digo, próximo a um sussurro.
— Uma senhora me parou lá perto do hotel e disse que alguém perto de
mim sofreria um acidente, usando um transporte aéreo… toma cuidado, ok?
— Isso é um jeito de pedir que eu me cuide?
— É, acho que sim.
Dou um passo para trás, sentindo dificuldade até mesmo em respirar.
— Odeio despedidas.
— É um até logo — ele diz e há esperança em sua voz. — Você disse
que virá para as férias.
— Prometo que tentarei.
Ele aquiesce e eu me viro em direção ao portão de embarque. Não
olho para trás, apenas sigo em frente.
Estou quebrada.
Eu sou apenas mais uma alma à venda, oh, isso
A página está fora de impressão
Não somos permanentes
Somos temporários, temporários
(The Pretender - Foo Fighters)
Vou sufocar.
Olho para os lados e está tudo apagado, são poucas as luzes que
permanecem ligadas. A maior parte das pessoas ao redor está dormindo e
não vejo nenhum comissário de bordo por perto. Uma maldita bebida talvez
fosse me fazer dormir.
Algo me corrói, ao mesmo tempo que parece bloquear qualquer
sentido que possa me permitir fugir dessa dor. Só queria entender o motivo
disso tudo, quando minha consciência já sabia que o agora era inevitável.
Antes mesmo do final de semana, eu já sabia que esse seria o desfecho. O
nosso ponto-final.
O fim de algo que nunca existiu, na realidade.
— Você pode me trazer um copo de uísque, por gentileza? — Peço ao
comissário de bordo que passa pelo meu assento.
— Com gelo?
— Puro — complemento e ele anui. — Se for possível: uma dose
dupla.
Minha mãe sempre me diz que beber não resolverá meus problemas,
mas parece ser a única alternativa, para eu não surtar dentro de uma maldita
caixa de metal a muitos metros de altura.
Quando o copo é entregue em minha mão e eu sorvo o primeiro gole,
as lágrimas finalmente vêm. Travo a boca, para não deixar que ninguém
escute, e encosto a cabeça no assento, olhando para o teto branco.
Das outras vezes, eu apenas trinquei, pequenas rachaduras… mas,
agora, estou completamente quebrada. Há cacos por todos os lados e nem
sei por onde começar a colar.
Lavo o rosto novamente, com a água bem gelada que sai da torneira
do banheiro do aeroporto, na tentativa de desinchar um pouco. Seco o
máximo que consigo, abrindo minha necessaire de maquiagem, para tentar
fazer alguma espécie de milagre.
Passo o corretivo sobre as olheiras, mas a única coisa que vejo é um
panda meio desbotado. Tento corrigir o possível, passo um rímel, faço um
delineado bem fino e, com o blush, esforço-me para dar o mínimo de
aspecto saudável para a pele.
Dou uma olhada na tela do celular e o modo avião continua ligado.
Preciso desses últimos minutos longe do mundo, para tentar recompor pelo
menos o lado externo, já que o interno está ferrado.
“Ninguém morre de…”, interrompo o pensamento no mesmo
momento, porque não faz sentido algum. Ajeito tudo de volta no lugar,
devagar. Não quero ter que ligar a internet e estar disponível ao mundo
outra vez e, principalmente, de volta à Lowe, ciente de que precisarei
encarar o pai de Conrad ainda hoje.
Não dá para enrolar mais, até porque tenho certeza de que o filho da
puta do secretário do CEO deve estar acompanhando o meu voo minuto a
minuto. E só por isso faço a última coisa que desejo fazer: ligo a internet do
celular.
As notificações começam a aparecer aos montes, exatamente como
imaginei que seria. Respiro fundo e abro as do trabalho primeiro. Como
esperado, a minha chefe está no topo com um total de dezenove mensagens
não lidas, seguida do secretário do CEO, com quatorze e todas dizem
praticamente a mesma coisa: vimos que seu avião já aterrissou, mas você
ainda não deu sinal de vida. Respondo que tive um problema com a mala,
mas que, em breve, pegarei um táxi. Tenho me tornado uma boa mentirosa,
no fim das contas.
Faço o caminho sem pressa, o estômago embrulhado pela bebida de
horas atrás e por um sentimento que me diz que alguma merda irá acontecer
nas próximas horas. Minha avó chamaria essa sensação de sexto sentido, eu
só acho que é a conclusão de uma análise, até que simples, de uma situação
que vem se desenhando nos últimos meses. Linus Lowe apostou alto que
esse contrato iria dar certo e, agora, estou voltando com as mãos
completamente vazias.
Aqui dentro, dividindo o espaço com todos os outros pensamentos,
martela o meu coração quebrado. O último beijo que dei em Conrad antes
de vir embora concorre com o espaço dos demais itens que permeiam a
minha cabeça. Como é possível separar o profissional do pessoal, quando
tudo parece estar desmoronando?
Uma notificação, vinda do aplicativo da empresa, aparece, avisando-
me que tenho uma reunião às dezessete e trinta com o CEO em pessoa.
Como pode alguns dias longe mudar toda a nossa perspectiva das
coisas? Tudo ao redor parece estar estranho, até mesmo errado. Deixei a
bagagem na minha sala e já sai para conversar com a equipe e entender
como as coisas estavam, de fato, caminhando.
Gosto de ir em uma das copas que fica mais longe e mais perto da
sala de Linus Lowe. Normalmente, está mais vazia, porque todos evitam de
encontrar com o chefe dos chefes, mas, no meu estado atual, não me
importo com qualquer coisa que aconteça daqui por diante. Só preciso que
as horas passem rápido, para poder ir para casa e dormir por, pelo menos,
doze horas consecutivas.
Vozes chamam a minha atenção e sou incapaz de ignorá-las, mesmo
que a voz da minha avó esteja ecoando em meu ouvido “A curiosidade
matou o gato, Georgina!”.
Uma das pessoas é Linus Lowe, com certeza, mas não consigo
identificar a outra. Merda. Olho para os lados e está tudo vazio, por isso
dou mais um passo em direção à conversa.
— Você disse que tinha certeza de que a ida dela resolveria o
assunto. — É uma voz masculina.
— Sim, mas me enganei. Não foi o suficiente, talvez ele precise de um
empurrãozinho um pouco mais forte para se mostrar.
Barulhos, no fim do corredor, obrigam-me a voltar a andar em direção
à copa para pegar o meu café.
Sinto-me inquieta desde hoje de manhã e nada tem relação com o fato
de eu já ter acordado para vomitar. Ainda não tive coragem de contar sobre
a gravidez para mais ninguém além de Lizzie. Como vou falar para os meus
pais que serei uma mãe solo? E quando me perguntarem quem é o pai, vou
dizer o quê?
Levanto a camiseta e minha barriga já não é mais tão lisa, há uma
pequena protuberância ali, na qual o meu bebê com Conrad cresce
protegido. Coloco a mão sobre meu ventre e meu coração se aquece ainda
mais. Pelas minhas contas, estamos caminhando para o quarto mês.
Ontem à tarde, liguei para a Santoro na esperança de conseguir algum
milagre e falar com ele, mas disseram que o CEO estava indisponível e que,
assim que fosse possível, passariam o meu recado. Uma resposta padrão
que quer dizer: não vamos passar, pode esquecer.
Entrei no site da companhia aérea e fiquei olhando as passagens para
o Brasil. Poucos cliques e eu poderia ir para lá amanhã, mas não iria
arriscar uma viagem longa como essa sem passar por um obstetra, que me
garantisse que está tudo certo com o neném. A consulta está marcada para
dali dois dias e, até lá, serei obrigada a esperar, para tomar qualquer
decisão.
Sem nenhuma razão ou motivo, decido que preciso visitar a minha
avó. A sensação é que ela terá todas as respostas do mundo, quiçá do
Universo. Ela, mais do que ninguém nesse mundo, saberá me falar o que
devo fazer.
Troco de roupa em uma fração de segundos. Enfio minha bota nos
pés, jogo a bolsa no ombro e, por fim, confiro o horário. Com alguma sorte,
conseguirei almoçar com ela ainda.
Georgina se remexe sobre meu peito, seu rosto agora está virando
para mim, encarando-me com seus olhos observadores de quem irá fazer
uma pergunta e saberá se eu mentir.
— Você está bravo? — Sua voz chega carregada de incerteza e medo.
Ergo-me um pouco, para poder vê-la com detalhe. A mão protetora
sobre a barriga me diz exatamente do que ela está falando.
Trago o seu rosto para mim, com a mão livre, e selo os nossos lábios,
tentando passar tudo que me sinto incapaz de colocar em palavras.
— Como poderia? — Uma risada acaba por escapar da minha boca.
— Conrad — sua voz agora é soturna —, não é algo que você estava
planejando e está tudo bem se não quiser esse bebê. Eu consigo criar…
— Georgina, para com isso — digo, interrompendo-a. — Eu achei
que, depois de tudo o que aconteceu agora a pouco, você tivesse entendido
o quanto eu quero essa criança e o quanto eu quero você. Não existe uma
opção que me deixará longe de vocês.
Um filho, ou filha, não estava nos planejamentos. Na realidade,
sequer havia passado pela minha cabeça uma situação assim, mas agora,
simplesmente, parece ser a coisa mais certa que já fiz em toda a minha vida.
— Sua vida está no Brasil, Connie.
O tom de voz continua o mesmo e, de certa forma, não posso tirar a
razão dela estar se sentindo assim. Palavras são somente palavras até que se
prove o contrário. Ainda não tenho a mínima ideia do que irei fazer, mas
darei um jeito.
Espalmo a mão sobre o ventre da mulher ao meu lado e está
praticamente liso, a não ser por uma pequena protuberância. Acaricio ali, os
olhos focados. Eu quero estar com ela a cada momento, ver a barriga
crescer e sentir o neném chutar.
— Você é dono de uma empresa que está em expansão — ela
continua, parecendo falar mais para si mesma do que para mim. — Não
quero me iludir e não posso criar expectativas quando há uma terceira vida
envolvida.
Eu me sento e a puxo para fazer o mesmo. Seguro seu rosto com as
duas mãos e vejo que seus olhos estão mais brilhantes, há lágrimas se
formando neles.
— Eu não menti quando disse que estou apaixonado por você —
digo, sério. — Ainda não sei como farei, mas não se preocupe com isso.
Vou conversar com Bernardo, assim que for possível, e vejo o que dá para
ser feito quanto à empresa, mas tenha a certeza de que estarei aqui com e
para vocês.
As lágrimas caem dos olhos de Georgina e eu as limpo com o polegar,
beijando seus lábios, em seguida. Não sei explicar o que surgiu dentro de
mim, mas estou pronto para matar e morrer pela minha família. Será que
esse é o famoso instinto de proteção de que tanto falam?
E o entendimento cai com um peso de uma tonelada sobre os meus
pensamentos.
Caralho.
Minha família.
Eu serei responsável por uma vida além da minha. Existirão duas
pessoas que, de um jeito ou de outro, dependerão de mim.
— O que está acontecendo, Connie? — A voz de Gió agora é
preocupada.
— E se eu não for um bom pai? — Minhas mãos caem ao lado do
meu corpo. — E se ela, ou ele, não gostar de mim?
Agora, é a vez de Georgina segurar meu rosto e me obrigar a encará-
la. Em questão de um instante para o outro, os papéis estão invertidos.
— Não tem como… — sua voz falha — não tem como não gostar de
você, Conrad. Tenho certeza de que será um pai incrível.
O ponto é que não sei como um pai deve se comportar, a única
certeza que sempre tive é de que deveria ser muito diferente do meu. E
então meu estômago afunda quando me lembro do segundo motivo que me
trouxe aqui.
— Ei. — Ela chama a minha atenção. — Como cansei de escutar a
minha avó falar para minha mãe: filho não vem com manual de instruções.
Sei que faremos tudo o que estiver ao nosso alcance, Connie.
Deito-me novamente na cama, trazendo-a para cima do meu peito.
Ficamos em silêncio por longos minutos, nos quais a sinto passar a mão
sobre o meu peito, fazendo ora movimentos circulares, ora totalmente
aleatórios.
— O que aconteceu com a sua perna?
— Um acidente de helicóptero, do qual fui o único sobrevivente.
Ela se senta de imediato, os olhos arregalados, e sei que está se
lembrando da mulher que falou com ela. Eu a puxo de volta para o lugar, ao
qual ela se encaixa perfeitamente.
— Agora está tudo bem — garanto —, mas confesso que meu plano
de vir te encontrar acabou sendo atrasado por alguns meses. A recuperação
foi longa, só recebi alta alguns dias atrás e então vim o mais rápido
possível.
— Conrad…
— Acabei perdendo seu contato e descobri da pior forma que não o
tinha mais quando recebi uma mensagem, segundos depois de te enviar um
e-mail, que me informava de que aquele destinatário não existia mais.
— Eu saí da Lowe no mesmo dia que cheguei de viagem. — Gió uma
risada sem humor. — Seu pai confundiu meu cargo com o de uma
prostituta.
— Como? — Faço menção de me levantar, mas ela não me permite.
— Já passou, Connie. — Respiro fundo. — Agora que está aqui, o
que pensa em fazer?
— Nada — digo e vejo a decepção passar por seu olhar. — Eu só
voltei por você, Gió.
Ela puxa meu rosto, beijando-me profundamente e, em questão de
segundos, estou tão pronto para um segundo round como ela.
— Será que não tem risco toda essa nossa movimentação? —
pergunto, já trazendo-a para mim.
— Eu acho que não. — Georgina me encaixa em sua entrada e desliza
lentamente, soltando um gemido no final. — Só me fode agora, por favor.
— Seu desejo é uma ordem.
Sei que não estou acordado, mas também não consigo dizer com
certeza onde estou, ou até mesmo o que está acontecendo comigo. Olho
para os lados e reconheço o lugar: é uma parte da fábrica da Lowe, em que
estive apenas uma única vez, com o meu tio.
Imediatamente, sei que Lutz Lowe está em algum lugar ao redor e
começo a procurá-lo. É estranho estar aqui e não encontrar funcionário
algum. No final do corredor, está ele, com suas vestes típicas de quando
está trabalhando: um terno cinza-escuro.
— Demorou para chegar, Conrad. — Ele se vira, o mesmo sorriso
acolhedor. — Precisamos conversar. — Aquiesço. — Dê uma volta comigo.
E eu me aproximo, ficando lado a lado. Há tanto que eu gostaria de
contar a ele, tantas coisas aconteceram desde aquela maldita noite.
— Você se esqueceu de mim — ele diz, sério.
— Não! — Vejo-me respondendo, um estranho desespero tomando
conta de mim. — Nunca!
— Foi embora e deixou para trás o legado da nossa família. O mesmo
que você irá transmitir para o seu filho. — Ele me olha, como se pudesse
atravessar o meu corpo e chegar à minha alma. — Esqueceu-se de quem
você é e se esqueceu de tudo o que conversamos.
— Não posso…
— Você deve voltar de corpo e alma, Conrad. — Ele se vira para
mim. — Precisa assumir o seu lugar, antes que tudo o que eu e pessoas
antes de mim construímos suma para sempre.
— Não sei o que fazer.
— Lembre-se do que nós conversamos, Con. — Como ele sempre
fez, coloca a mão sobre o meu ombro e sou capaz de sentir o calor. — Seja
feliz, meu sobrinho. E não se sinta culpado, as coisas aconteceram como
tinham que acontecer. Esteja em paz.
Como se eu estivesse submergindo de um lago gelado, acordo
puxando o ar profundamente enquanto Georgina, agora sentada na cama,
olha-me, preocupada.
— Você está bem?
Obrigo-me a me sentar, a cabeça latejando pelo sonho recente. O
coração disparado e o suor escorrendo frio pela testa.
— Tive um sonho estranho.
— Você estava falando muito e se remexendo. — Suas mãos
acariciam meus cabelos. — Quer me contar?
As barreiras parecem não existir quando se trata de nós dois e
simplesmente conto tudo a ela, na esperança de que me diga que é apenas
algum tipo de externalização do meu inconsciente. Georgina me escuta com
atenção, suas mãos sempre grudadas na minha e, quando eu termino, ela
beija minha boca.
— O que tudo isso quer dizer? — pergunto.
— Você sabe. — Ela dá de ombros. — Independentemente se tem
uma explicação racional ou não, ainda assim, sabe o que significa.
— Não posso largar tudo o que construí no Brasil.
— E por que não trazer o Santoro para cá?
Seu questionamento me pega desprevenido, porque jamais considerei
essa opção, na realidade, voltar para Emerald não passou pela minha cabeça
nos últimos anos e, agora, parece que se torna cada vez mais real essa
possibilidade.
Olho para a mulher à minha frente e a verdade é que eu deixaria o
Brasil para trás, sim, para poder viver com Georgina e com esse neném que
chegará. Acima de qualquer coisa, eles são o meu futuro.
— Essa é uma possibilidade — digo e vejo a felicidade brilhar em
seus olhos. — De qualquer maneira, temos tempo.
— O que você acha de comermos alguma coisa? — Gió se levanta em
um pulo e eu a sigo, enlaçando-a pela cintura. — Estou morrendo de fome e
tenho que aproveitar que estou conseguindo colocar alguma coisa para
dentro sem vomitar!
— Posso fazer alguma coisa.
— Vai ser difícil não te agarrar enquanto cozinha. — Solto uma
risada. — Acho sexy ver você cortando as coisas.
— Você tem fetiche por chefs de cozinha, Srta. Romano?
— Acho que sim. — Ela se vira em meus braços, ficando de frente
para mim. — Essa tara começou lá no Brasil, sabe?
Beijo a ponta do seu nariz.
— Já disse o quão apaixonado por você eu sou?
— Hoje, ainda não.
Deixar Georgina, horas atrás, um pouco depois do sol nascer, foi algo
realmente complicado, mas disse a ela que precisava aproveitar para
resolver algumas coisas, já que estava no país. Prometi que voltaria mais
tarde com uma muda de roupa, para passar a noite com ela.
Há muitas coisas que preciso resolver, mas a principal delas é garantir
que Gió siga segura, sem saber de nada. Por algum motivo, acho que ela irá
surtar caso descubra que, na realidade, o meu acidente de helicóptero não
foi bem algo ao acaso e, sim, encomendado por alguém daqui de Emerald,
com quase certeza, ligado a Lowe.
Ando de um lado para o outro, no quarto do hotel, revivendo o sonho
com o meu tio, que parece estar bizarramente nítido, ainda que se passado
horas desde que eu acordei.
Sento-me no sofá, jogando a cabeça para trás, o olhar focado no teto
branco. A única certeza que eu tenho é de que a última conversa que
tivemos foi no dia da sua morte.
Nunca fui alguém que acredita que exista algo além da vida, ou
desses lances místicos, como a família de Gió, mas admito que estou
impressionado e, até mesmo, inclinado a acreditar no que Willian
Shakespeare quando falou “Há mais coisas entre o céu e a terra do que
pode imaginar a nossa vã filosofia”. Foi muito real, a nível de fechar os
olhos e ver novamente, como se meu tio estivesse à minha frente.
Fui capaz de escutar a sua voz e sentir o calor de sua mão em meu
ombro. Exatamente como ele fazia, desde que eu era pequeno.
Lembre-se do que nós conversamos, Con.
Essa merda de frase ecoa na minha cabeça em um looping, como um
disco riscado. Bato de leve na minha testa, na esperança de que a ardência
me faça pensar no que ele pode ter falado para mim. Porque, nesse
momento, parece ser a chave da minha vida inteira.
Pego meu notebook dentro da mala e abro, conectando a internet
disponibilizada pelo hotel. Vou começar do zero, como se nunca houvesse
visto nenhuma daquelas informações.
Google: Lutz Lowe
A vida inteira do meu tio está bem à minha frente, em detalhes. Bem
provável que eu vá conhecer coisas sobre ele, das quais nunca soube.
Leio dezenas de textos, entro em uma quantidade impressionante de
sites, mas nenhum traz a luz de que preciso. Até mesmo a nossa árvore
genealógica consegui encontrar, com mais de quatro gerações para trás de
mim.
Busco pela empresa, agora. E, mais uma vez, perco-me na leitura de
artigos, citações em matérias e alguns casos de sucesso, que foram expostos
em revistas mundialmente renomadas.
Respiro profundamente, deixando meus ombros caírem em derrota.
Caralho.
Levanto-me, vou até o banheiro e lavo o rosto com a água. Molho a
nuca e me observo no espelho. Os sentimentos são os mais controversos do
mundo. Por um lado, estou exultante em saber que eu e Georgina estamos
juntos, de algum jeito que ainda não conversamos e que teremos um filho
em alguns meses… mas, por outro lado, estou apavorado pelo mesmo
motivo, porque há uma grande chance de ela correr perigo por minha causa
e, agora, para fechar com chave de ouro, esse bendito sonho não sai da
minha cabeça.
Seco-me com a toalha de mão e verifico o horário na tela do celular.
Tenho algumas horas até me encontrar com Georgina.
Sento-me novamente em frente ao meu computador e peço ao
Universo para que me ajude, porque estou prestes a desistir de acreditar
nesse sonho, assumir que é só uma loucura do meu inconsciente e mandar a
frase de Shakespeare para a puta que pariu.
Tem um site que eu ainda não entrei e é o da própria empresa. Mais
uma vez, busco no Google, que me traz a resposta em questão de poucos
milésimos de segundo. É a primeira opção no retorno da pesquisa.
Abro a página e vou olhando tudo o que há disponível, até chegar na
sessão “Quem fez a nossa história”. Meu coração bate mais forte quando eu
vejo um logo e, a seguir, o nome “Banco Nacional de Emerald”.
O meu corpo inteiro se arrepia e eu me lembro de tudo, como se
tivesse acontecido apenas alguns dias atrás. Meu tio deixou documentos lá
que apenas eu, ele e minha tia poderíamos acessar.
Pego meu celular, encontro o contato de Lucca e abrevio o acabei de
me recordar. Ele me avisa que, assim que eu entrar naquele local, eu já não
poderei me esconder porque, com certeza, minha tia será acionada no
mesmo momento. E, quando tudo isso acontecer, eu precisarei assumir o
sobrenome Lowe novamente.
Não há outra alternativa, eu preciso saber o que tem naquela merda de
cofre e não vou conseguir esperar por muito tempo.
Digito rapidamente para Lucca que irei lá amanhã, assim que o
estabelecimento abrir, e peço para que ele destaque pessoas para segurança
de Georgina. Ele não faz questionamentos, apenas diz que colocará as
pessoas lá ainda hoje.
O que eu podia fazer, já fiz, agora vou ficar com Georgina e tentar
manter qualquer tipo de informação longe dela. Não posso permitir que
passe mal ou que algo aconteça com ela e com o bebê, por eu falar demais.
Eles são a minha prioridade e se, para protegê-los, eu preciso assumir
o Lowe, que assim seja.
E eu vou estar aqui para sempre
Eu cumpro cada promessa
Porque que tipo de cara que eu iria ser
Se eu te deixasse quando você mais precisa de mim
(What are words - Chris Medina)
Do mesmo jeito que minha mãe e minha tia foram avisadas sobre eu
estar no banco, tenho certeza de que outras pessoas também foram e, por
isso, decidi sair o mais rápido possível dali, depois que elas chegaram. Com
apenas uma ligação para Lucca, em questão de quinze minutos, estávamos
saindo escoltados através de uma das passagens subterrâneas do banco.
Dona Pauline e Stella não fizeram perguntas, apenas me
acompanharam. Durante todo o curto trajeto até o hotel, vi minha mãe com
as mãos torcidas sobre o colo, enquanto a esposa do meu tio seguia com a
sua postura reta e tensa de quem sabia bem o que estava acontecendo.
E, assim que chegamos aqui, no apartamento e a porta foi fechada, as
perguntas, que começaram, eram de todos os tipos e eu fui respondendo
uma a uma. Era estranho responder coisas tão básicas para a mulher que me
deu à luz e para a que esteve ao meu lado, desde o momento em que respirei
pela primeira vez.
Almoçamos juntos, demos risada e elas choraram. Hoje em dia, acho
que perdi essa capacidade em algum momento do passado, quando percebi
que minhas lágrimas não mudariam nada. Eu as abracei, consolei e prometi
que ficaria por perto daqui por diante, ao menos assim eu esperava, mesmo
com essa maldita nuvem escura parando sobre mim. Quando a tarde chega,
eu, Stella e Lucca nos focamos sobre os papéis resgatados do cofre
enquanto minha mãe cochila no sofá. Tudo será entregue a polícia e ao
advogado que encabeçará o processo na justiça de Emerald.
Espreguiço-me no exato instante que, sobre a mesa, o celular de
Lucca toca. Trocamos olhares rápidos e ele sai, deixando-nos sozinhos.
Pego meu próprio aparelho, na expectativa de encontrar uma mensagem de
Georgina, mas não há nada. Meu coração se aperta dentro do peito, e tento
ignorar, por medo de estar ficando paranoico. Minha mulher está sendo
escoltada por seguranças desde o momento em que deixou a clínica para
encontrar com a amiga e passar o dia caminhando pelas lojas.
Quando Lucca volta, seu celular segue em mãos e sua expressão é
tensa.
— A nossa inteligência, finalmente, conseguiu encaixar as últimas
peças do quebra cabeça e já temos todas as evidências necessárias — ele
diz. — O assalto que matou o seu tio e quase fez o mesmo que você, foi
encomendado pelo seu pai. E, como suspeitava, ele também é o mandante
do atentado ao helicóptero.
Achei que quando, enfim, escutasse a confirmação das minhas
suspeitas, algo se quebraria dentro de mim ou até mesmo fosse me causar
algum tipo de reação, mas não sinto nada. É estranho porque, em até certo
ponto, é como se me distanciasse.
— Do que ele está falando, Con? — É Dona Stella quem pergunta,
me fazendo voltar ao presente. — Que helicóptero?
Observo mais atentamente o semblante do homem à minha frente e há
uma vinco entre suas sobrancelhas que não existia, antes de ele sair para
atender a ligação. O coração bate forte contra o meu peito, o maldito sexto
sentido apitando em todas as direções.
— O que mais, Lucca?
— Achamos que foi o próprio Linus que vazou as informações. —
Ele segue, como se não houvesse sido interrompido. — Estamos em posse
de documentos, imagens, áudios. Há provas o suficiente para que ele seja
preso e já estamos encaminhando tudo para os órgãos competentes. — Viro-
me para minha mãe, que segue dormindo tranquila, alheia a tudo, enquanto
minha tia vem para o meu lado. — Mas acredito que isso foi um subterfúgio
para nos distrair…
— O que quer dizer?
— Ainda não sei como aconteceu — vejo quando ele engole em seco
—, mas fui informado de que Linus conseguiu passar pelos nossos
seguranças e fez Georgina de refém.
Preciso de apenas um segundo para processar o que acabou de ser
dito.
A raiva me cega e eu seguro o homem pelo colarinho, jogando-o
contra parece, mas Lucca não reage, apenas se mantém parado.
O maldito barulho é o suficiente para fazer a minha mãe acordar e
gritar ao ver a cena, mas eu não o solto, muito pelo contrário, aperto mais
meus dedos em sua camisa, forçando-o para cima.
— O que está falando? — rosno.
— Linus… — Ele ergue a cabeça para conseguir respirar. — Está na
praça central e disse que só soltará Georgina se você for para lá.
Eu o largo no mesmo instante, pegando o maldito casaco que tirei
horas antes.
— Preciso de um carro agora! — digo a Lucca.
— Conrad, o que está acontecendo? — minha tia pergunta, enquanto
tento pegar as minhas coisas.
— Linos está com a minha mulher e com o meu filho — respondo
mecânico, fechando o casaco. — E ele quer a minha vida em troca da deles.
— Mulher? Filho?
É a voz da minha mãe, mas já estou praticamente correndo pelo
corredor, enquanto Lucca segue em meu encalço.
— O motorista já está nos aguardando.
Como é possível sair de um estado de não sentir nada para o extremo?
Raiva, medo, ódio, pavor. Tudo ocupa o meu corpo ao mesmo tempo e só
consigo pensar em Georgina sob a mira de Linus.
Por um segundo, considero ir a pé, mas é longe demais.
— O que mais nós sabemos?
— Há uma quantidade enorme de pessoas na praça, inclusive a mídia
está lá, como urubus ao redor.
A recordação do que passei na Alemanha volta à minha memória,
como uma espécie de autoproteção. Eu resgato, lá do fundo da minha alma,
a maldita calma fria que desenvolvi enquanto via pessoas sendo
intimidadas, por não terem obedecido às ordens do chefe.
— Nós temos um sniper a postos, Conrad — Lucca diz. — Você sabe
que só precisa de um único comando.
— Meu desejo é que esse filho da puta apodreça na cadeia, mas faça o
que for necessário para proteger a minha mulher e meu filho.
É isso: acabei de dar permissão para que matem o cara que, por um
acaso do destino, acabou por ser meu pai nessa vida. Não tenho e sei que
não terei peso algum na consciência, seja qual for o destino de Linus Lowe
daqui para frente.
— Está tudo parado, senhor.
A frase sequer terminou e já me encontro fora do carro, correndo em
direção à praça, que sei estar alguns metros à frente. Apesar da quantidade
de adrenalina no corpo, a perna machucada no atentado arde, mas ignoro
completamente a dor. Não é isso que irá me parar agora.
É uma infinidade de pessoas que se amontoam para ver o que está
acontecendo. Não me importo em pedir licença, apenas vou empurrando as
pessoas até ver o que realmente está acontecendo.
Há um homem que se parece muito comigo e ele segura a minha
mulher em um mata-leão, enquanto mantém um revólver apontado para sua
cabeça. Ele gesticula e fala com os policiais.
Não me importo se hoje for meu dia de morrer, se eu tiver certeza de
que Georgina e nosso filho estarão seguros. Eu trocarei a minha vida pela
deles, sem sequer precisar parar para pensar. Talvez, pego-se pensando, seja
exatamente isso que se espera de um verdadeiro pai e homem.
— Estou aqui, Linus.
Ultrapasso a barreira humana feita e me revelo. Os olhos tão iguais
aos meus faíscam com um prazer doentio. Estamos a dez, no máximo,
quinze passos de distância um do outro, com apenas Georgina entre nós.
Mesmo que eu não seja capaz de escutar, sei que burburinho começa
a correr entre as pessoas que assistem a essa cena dantesca, como se fosse
um maldito teatro, e esse é o momento em que escolho me esquecer do
mundo ao redor, focando somente ali, naquele momento.
— Que prazer revê-lo, meu filho. — Sua voz soa alta o suficiente
para que eu e as pessoas próximas consigam escutar. — Estava ansioso pela
sua chegada.
— Vai embora, Connie! — Georgina grita.
Seus olhos estão apavorados, uma de suas mãos está sobre a barriga,
de forma protetora, e a outra segura o braço de Linus, que mantém a arma
apontada para a testa dela com firmeza.
— Cale a boca, sua cadelinha. — Consigo escutar Linus falando para
minha mulher e vejo que ele aperta mais o revólver. — Não quero ser
obrigado a estourar os seus miolos antes da hora. Você não irá estragar
meus planos outra vez, uma só foi o suficiente.
Faço menção de me mover, mas Gió me passa uma mensagem muda
de medo. Entendo que, qualquer movimento brusco, pode assustá-lo e ele
disparar a maldita coisa, que segue presa em seus dedos.
— Estou aqui, como você pediu — digo, me obrigando a ficar no
mesmo lugar. — Agora, solte a minha mulher.
— Ah, Conrad… — Ele dá um passo para frente, levando Gió
consigo, como escudo humano. — Achei que todas as minhas lições
houvessem te ensinado a ser humilde, mas vejo que não. — Ele estala a
língua. — Continua o mesmo arrogante de sempre, igual ao seu tio. EU sou
o seu pai, então as ordens são minhas e de mais ninguém, entendeu?
Agarro-me à calma com todas as minhas forças, mas ela parece se
esvair por entre meus dedos, como uma areia fina.
— Vamos, pai. Estou aqui exatamente como mandou.
Ele abre um sorriso.
— Gosto assim, Conrad!
— Me diga o que quer, e eu farei.
— Quero que passe tudo o que seu tio deixou para o meu nome e
garanta que sairei daqui com vida.
— Faço o que você quiser, da maneira como decidir. — Respiro
fundo. — Quem manda é o senhor, pai.
— É isso, Conrad. — Ele mostra os dentes, em uma imitação muito
ruim de um sorriso. — Podia ter sido sempre assim, meu filho.
Por um momento, me questiono se ele realmente acredita no que
estou falando, mas, pela sua expressão, digo que sim. Linus Lowe está tão
perturbado em sua própria loucura que realmente acha que estou sendo
sincero.
— Nós temos um acordo? — pergunto.
Ele parece considerar enquanto Georgina, em movimentos mínimos,
nega com a cabeça. As lágrimas escorrem por seu rosto, mas não consigo
escutar qualquer som sendo emitido dela.
— Você vem comigo, Conrad — ele diz, por fim. — Será meu
escudo! E eu só o libertarei quando todos os papéis forem assinados. —
Linus reflete novamente. — Quero um carro e escolta.
— Tenho tudo organizado — digo. — Quanto a isso, não se preocupe.
Tenho um carro que já está à nossa espera. — Viro-me para os policiais. —
Por favor, não atirem nele enquanto estivermos trocando!
— Ótimo! Gosto de proatividade. Se alguém fizer alguma coisa
comigo, eu atiro em um deles e, como é de conhecimento de todos, tenho
anos de curso de tiro para saber muito bem onde devo acertar. — Linus se
aproxima de Georgina e consigo ler seus lábios. — Sei o alvo perfeito para
matar você e essa criança, por tanto, não tente nenhuma gracinha.
Gió aquiesce e vejo quando meu pai a solta, a arma ainda apontada
para ela. Um passo dela, um passo meu.
O mundo parece ter silenciado completamente, nem mesmo há sons
de passarinhos. Um pé na frente do outro e nossa distância diminui um
pouco mais.
E tudo acontece rápido demais, mas, ao mesmo tempo, eu juro estar
vendo em câmera lenta. O dedo de Linus Lowe aperta o gatilho da arma e
eu não tenho tempo para pensar, apenas me jogo em frente à bala,
protegendo Georgina.
Naquele milésimo de segundo, a minha vida inteira passa diante dos
meus olhos e, se eu morrer, é com a certeza de que não me arrependo de
nada.
O impacto vem, mas, ainda assim, tenho tempo de ver o corpo de
Linus caindo, quando sua cabeça parece ser estranhamente jogada para o
lado. Aqui eu morro, com a certeza de que ele vai para o inferno comigo.
O escuro chega, mas de uma forma totalmente diferente.
Por um momento, questiono-me se é assim que a morte vem. A
sensação que tenho é de estar dentro de um aquário, no qual vozes estão
deformadas e o tempo parece ser estranhamente distorcido.
— Precisamos medir o pulso dele.
E, nesse momento, obrigo-me a abrir os olhos, assustando quem
acredito ser os paramédicos.
— Senhor, não pode…
Mas eu ignoro, sentando-me. As pessoas estão boquiabertas, tão sem
saber o que está acontecendo quanto eu. O fato é: eu deveria estar morto.
Tomei um tiro no peito, senti o impacto da bala.
Olho para o tecido e há um furo.
Por dentro do casaco, no bolso interno, tiro a minha velha carteira de
couro e lá está a maldita, que foi lançada para matar a minha mulher. Abro e
vejo que a bala, na verdade, foi parada por uma moeda, mas não por
qualquer uma.
— Onde está a minha mulher? — É a primeira coisa que pergunto.
— Senhor, nós precisamos…
— Vocês podem fazer o que quiser comigo depois, mas preciso ver
minha mulher!
Coloco-me de pé e, além da dor no peito, como se tivesse levado um
soco, minha perna arde como dois infernos, mas tudo isso vai ficar em
segundo plano.
— Cadê ela? — pergunto mais uma vez.
— Naquela ambulância, senhor. — Um dos paramédicos desiste de
me manter parado.
Quando eu a vejo, sentada em uma maca, conversando com uma
mulher, meu coração erra uma batida. Georgina está bem e viva.
Quando os nossos olhos se encontram, o peso do mundo sai das
minhas costas, como se uma mão invisível o houvesse retirado. Um passe
de mágica não seria tão rápido quanto isso.
— CONRAD!
Ela corre em minha direção e só tenho tempo de abrir os braços, antes
que seu corpo se choque contra o meu.
Faço tudo ao mesmo tempo; beijo-a, cheiro-a, aperto-a contra o meu
peito. Nossos lábios se conectam em um beijo desesperado e ela tem o
gosto das lágrimas que escorrem de seus olhos.
— Você está vivo! — Ela segura meu rosto com ambas as mãos. —
Por tudo o que há de mais sagrado nesse Universo! Como?
E então eu ergo a pequena moeda na qual a bala está presa.
— A moedinha da sorte… — ela murmura, colocando o dedo sobre
os meus.
— Você salvou minha vida duas vezes, Georgina Romano. — Meus
dedos afastam o cabelo que caem sobre o rosto da mulher mais bonita da
face da Terra. — A primeira, quando me resgatou da escuridão, mostrando-
me a luz e despertando algo que jamais pensei que pudesse sentir. E, agora,
a segunda. — Nossas mãos se fecham em torno do objeto. — Minha vida é
sua, Gió, para fazer o que bem entender.
— Então, Sr. Santoro Lowe, já que tenho tamanho poder, exijo que
passe o resto da vida ao meu lado.
— Seu desejo é uma ordem.
É o ciclo da vida
E ele move a todos nós
Através do desespero e da esperança
Através da fé e do amor
(Ciclo sem fim – Rei Leão)
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Volume 3: Um passado entre nós
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[1]
Moeda da sorte
[2]
Tradução: Fale comigo, Goose.
[3]
Significa aprendiz, iniciante. É um termo utilizado nos filmes da saga Star Wars.
[4]
Documento que traz todas as informações relativas a atual situação financeira do negócio
[5]
Cargo abaixo do chef É o segundo, na hierarquia de uma cozinha.
[6]
Significa “grande chefe”
[7]
C-Level são as pessoas que ocupam os cargos mais altos de uma empresa. CEO, COO,
CFO são alguns exemplos.
[8]
É um documento que serve como um guia. Ele contém uma série de informações como:
dados sobre a empresa, o mercado que ela atua, o público ao qual ela se direciona e etc.
[9]
Terraço moderno e sofisticado que tem o objetivo de proporcionar a pessoa que está ali um
momento de relaxamento com uma excelente vista.
[10]
Relatório.
[11]
Dispositivo que guarda documentos, fotos e outros itens. Um exemplo é o Google Drive.
[12]
Peça usada para manter o fondue aquecido.
[13]
Petisco tradicional para fogueiras. Consiste de um marshmallow assado no fogo e uma
camada de chocolate entre duas fatias de bolacha.
[14]
Tradução: Fale comigo, Goose. Frase usada pelo personagem “Maverick” nos filmes do
Top Gun