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Copyright © 2023 Danielle Camponello

Todos os direitos reservados

Capa: Vasilhas Editorial


Revisão: Laila Nascimento
Diagramação: Danielle Camponello

Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e


acontecimentos descritos são produtos da imaginação da autora. Qualquer
semelhança com nomes, datas e acontecimentos reais é mera coincidência.

É proibida a reprodução total e parcial desta obra de qualquer forma


ou quaisquer meios eletrônicos, mecânico e processo xerográfico, sem
autorização por escrito dos editores.

A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na lei nº


9.610/98 e punido pelo artigo 184 do Código Penal.
SUMÁRIO
PLAYLIST
SINOPSE
NOTA DA AUTORA
AVISO
PRÓLOGO- GEORGINA ROMANO
CAPÍTULO 1 – CORAD LOWE
CAPÍTULO 2 – GEORGINA ROMANO
CAPÍTULO 3 – CONRAD LOWE
CAPÍTULO 4 – GEORGINA ROMANO
CAPÍTULO 5 – CONRAD SANTORO LOWE
CAPÍTULO 6 – GEORGINA ROMANO
CAPÍTULO 7 – CONRAD SANTORO
CAPITULO 8 – GEORGINA ROMANO
CAPÍTULO 9 – CONRAD SANTORO
CAPÍTULO 10 – GEORGINA ROMANO
CAPÍTULO 11 – CONRAD SANTORO
CAPÍTULO 12 – GEORGINA ROMANO
CAPÍTULO 13 – GEORGINA ROMANO
CAPÍTULO 14 – CONRAD SANTORO
CAPÍTULO 15 – CONRAD SANTORO
CAPÍTULO 16 – GEORGINA ROMANO
CAPÍTULO 17 – GEORGINA ROMANO
CAPITULO 18 – CONRAD SANTORO
CAPÍTULO 19 – GEORGINA ROMANO
CAPÍTULO 20 – CONRAD SANTORO
CAPÍTULO 21 – GEORGINA ROMANO
CAPÍTULO 22 – GEORGINA ROMANO
CAPÍTULO 23 – CONRAD SANTORO
CAPÍTULO 24 – CONRAD LOWE
CAPÍTULO 25 – CONRAD SANTORO LOWE
CAPITULO 26 – GEORGINA ROMANO
CAPÍTULO 27 – CONRAD SANTORO LOWE
EPÍLOGO
AGRADECIMENTOS
SOBRE A AUTORA
ENTRE EM CONTATO
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1. Abra o app do Spotify;
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3. Toque sobre o ícone da câmera;
4. Aponte para o código abaixo.
Todo herdeiro tem seus desafios, mas os de Conrad Lowe
ultrapassaram todos os limites.
Aos 16 anos, ele recebe a notícia que deveria ser treinado para ser o
próximo CEO da Lowe, a empresa da família. Em meio a essa nova fase de
adaptação, uma tragédia acontece, obrigando o garoto a fugir do país,
deixando tudo para trás, inclusive seu grande amor.
Dez anos se passam quando Georgina Romano recebe a missão de
fechar o contrato que salvaria a Lowe da falência, e para isso, ela não
deveria medir esforços para conquistar o misterioso CEO, conhecido apenas
como Santoro.
Na primeira reunião, Conrad reconhece a mulher que sempre amou
e, sem conseguir evitar, a antiga amizade dá lugar ao desejo, que esteve
sempre guardado, e a paixão renasce, como uma fênix.
Uma noite é o suficiente para mudar tudo. Agora, Conrad precisa se
decidir entre manter o anonimato ou salvar a vida de sua amada.
Desenvolver um livro é gratificante, uma das coisas mais legais que
eu faço na vida e poucas coisas se comparam à sensação de colocar a
palavra “Fim” na última página. O coração aquece e o sentimento de
“missão cumprida” aparece.
E, sim, isso é um trabalho para mim, e eu fico muito feliz em poder
pagar uma parte das minhas contas com ele. É saber que tanto trabalho e
dedicação está dando frutos.
Então se você estiver lendo essa história através de algum outro
meio, que não seja o oficial, saiba que está me prejudicando. Não só a mim,
mas a todas as outras autoras independentes, que fazem da escrita sua fonte
de renda.
Reconheçam isso, através da compra do livro (que, em sua grande,
parte tem um valor bastante acessível) ou da assinatura do Kindle
Unlimited, os autores nacionais. Não contribuam com a pirataria, não
apenas por ser crime, mas também por ela nos prejudicar muito.
Espero que vocês se apaixonem por essa história, assim como eu me
apaixonei durante toda a sua escrita! Compartilhem com suas amigas e
amigos e, quando chegar lá no fim, não se esqueça de avaliar. Isso é muito
importante não só para mim, mas também para outras leitoras que se
interessarem em conhecer a história do Conrad e da Georgina.
Oi, minhas gatas e meus gatos!
Como sempre, preciso avisar que esse livro é recomendado para
maiores de 18 anos por conter cenas de sexo, violência e abordar assuntos
que podem ser sensíveis para algumas pessoas.
O livro faz menção a uma situação que, infelizmente, é algo muito
mais comum do que gostaríamos de acreditar: a violência doméstica. Se
você é vítima, ou sabe de alguém que esteja passando por uma situação
assim, não hesite em denunciar. Existem canais de denúncia anônima, que
irão garantir seu anonimato, e para casos de emergência, ligue para a polícia
no número 191.
Espero que você se divirta!
Àqueles que gostam que o fogo arda.
De dentro para fora.
Até que não sobre mais nada além
dos dois amantes.
Agora o dia sangra no anoitecer

E você não está aqui

Pra me ajudar a passar por tudo isso

(Someone you loved - Lewis Capaldi)

Todas as minhas amigas, neste momento, estão na festa da piscina de


Lionel Evans, mas meus pais não me deixaram ir, alegando um jantar
qualquer com alguém da empresa, aqui em casa. Agora, resta-me ficar
dentro do quarto, olhando para o teto branco em uma sexta-feira, em pleno
período de férias.

Ligo a TV, porque não tenho alternativa que não seja procurar por um filme
ou uma série, para tentar me distrair do tédio completo. Encontro, perdido
em minha lista, o “Rei Leão” e aperto o play.

Os primeiros acordes da música aquecem meu coração, lembrando-me de


quantas vezes estive em frente à televisão, para assistir ao desenho, com o
meu melhor amigo. Pego o celular e busco o contato dele, em meio às
muitas mensagens que estão pendentes de serem lidas e respondidas.

Georgina: Estou assistindo ao Rei Leão! Acho que você deveria vir até aqui
para eu te ver chorar, quando o Simba encontra o Mufasa morto.

É engraçado pensar que não consigo me lembrar da minha vida sem Conrad
Lowe por perto. Ele, poucos meses mais velho do que eu, sempre foi meu
parceiro de brincadeiras e, depois de algum tempo, de crime também. E foi
em uma dessas, na qual ele disse que eu era a Nala e ele, o Simba, que, em
vez de irmos a um cemitério de elefantes, fomos parar em um ferro-velho,
para uma aventura incrível.
Georgina: Agora está na parte das hienas! Só consigo me lembrar da gente
perdido, no meio dos carros podres hahahah

É completamente diferente dos filmes; continuamos amigos, mas sem o


lance de amor envolvido. Inclusive, não entendo por que todas as meninas
correm atrás de Conrad. Cansei de ter que mediar as ficadas dele, com as
dezenas de garotas que sempre ficavam atrás do capitão de futebol do time
da escola.

Olho para o aplicativo de mensagem, estranhando que ainda não tive


resposta dele, quando noto que, apesar do texto ter sido enviado, ele não
chegou no aparelho do meu melhor amigo.

Um barulho, ao final do corredor, chama a minha atenção, alto o suficiente


para me obrigar a pausar o filme e abrir a porta, para verificar o que está
acontecendo.

São gritos desesperados de uma voz que é bastante familiar para mim.
Quase correndo, pelo corredor do segundo andar da casa dos meus pais,
desço as escadas de dois em dois degraus e encontro minha mãe, de joelhos
em frente a Pauline Lowe, que chora copiosamente.

No canto mais afastado, meu pai fala tão rápido ao telefone que sou incapaz
de compreender o que está sendo dito. Uma sensação estranha comprime
meu coração, mostrando-me que há algo muito errado.

— O que está acontecendo?

Minha mãe se vira em minha direção e a mãe de Conrad se curva,


encostando a cabeça entre os joelhos. O corpo pequeno da mulher se
sacode em soluços. Meus pais agora trocam olhares cheios de significado.

— Giorgio, você… — A voz de Dona Alexandra, minha mãe, não sai mais
alta do que um murmúrio.

— Sim, converso.
Eles sempre tiveram uma estranha conexão, na qual um completa o que o
outro fala. Meu pai se aproxima de mim, passando um dos braços sobre
meus ombros, e faz com que eu saia da sala. Andamos quietos pelos
corredores, até chegarmos à biblioteca.

— Filha — ele para à minha frente e parece escolher as palavras —, Linus


acabou de me ligar… Ele, Conrad e Lutz saíram para jantar. Parece que
houve um assalto, numa lanchonete perto da sede. Não temos muitos
detalhes, mas Lutz está morto e Con está desaparecido.

Não faz sentido algum o que meu pai acaba de falar. Pisco algumas vezes,
pegando meu celular do bolso de trás da calça jeans, e busco o contato do
meu melhor amigo. As mensagens enviadas continuam a não chegar aos
seus destinos.

— Gin — meu pai ergue meu rosto com a mão —, não posso deixar de
falar para você, meu amor, mas existe uma grande chance de Conrad estar
morto.

— Mentira. — Nego com a cabeça.

— Georgina…

Deixo meu pai para trás e volto para a sala, onde o meu olhar encontra o de
Pauline. Eles estão mentindo! Porque não existe a possibilidade de que meu
melhor amigo esteja desaparecido e, muito menos, morto.

Saio correndo da casa, em direção ao parquinho que fica ao lado fora do


condomínio, onde passamos incontáveis tardes brincando, quando éramos
crianças, e, ainda hoje, sempre que uma merda muito grande acontece,
vamos até os balanços para conversar.

Ignoro o fato de já estar escuro e apenas faço o caminho que sei de cor.

Minhas pernas ardem com o esforço físico, mas não diminuo a velocidade.
Conrad estará lá, me esperando, para contar sobre a merda que aconteceu
de verdade e falar que ninguém morreu.
Caio de joelho, no meio da grama.

Não há ninguém me esperando nos balanços.


Quando todos os seus sonhos fracassam

E aqueles que aclamamos

São os piores de todos

E o sangue para de correr

Eu quero esconder a verdade

(Demons - Imagine Dragons)

O relógio sobre o móvel de cabeceira apita e me obrigo a levantar, mesmo


sabendo que não dormi direito. Minha cabeça pesa e, ao meu lado, uma
garota ressona baixinho, completamente nua.

Ser capitão do time de futebol tem muitas vantagens e uma delas é não se
esforçar para trazer alguém para cama, quando a noite finaliza, ou até
mesmo antes disso.

— Ow, acorda. — Não sei o nome dela, tenho apenas a vaga lembrança
dela comentar ser prima de uma garota da sala que estudo. — Você precisa
ir embora.

A menina pisca algumas vezes, tentando entender o que está acontecendo.

— Quê?

— Isso mesmo — digo, já de pé. — Quando você chegar do lado de fora da


casa, o motorista estará esperando, para te levar aonde você quiser.

Ela se levanta, carregando o lençol consigo para tampar os seios.

— Certo, mas…
Pego a primeira sunga que encontro em uma das gavetas e sigo para o
banheiro, para dar tempo a ela se vestir e ir embora. Não vou encarar a
academia hoje, porque sei que meu pai estará lá e não estou pronto para um
embate, antes das seis horas da manhã, em um sábado.

Quando saio, pronto para encarar uma hora inteira de natação, o quarto está
vazio. A garota fez exatamente o que pedi, sem qualquer tipo de estresse. O
melhor dos mundos.

Verifico o quarto uma ultima vez antes de jogar o roupão por cima. Apesar
da primavera estar quase na metade, as manhãs ainda são frias, me
obrigando a apertar o tecido felpudo ao redor do corpo.

Caminho pela casa completamente silenciosa. Grande parte dos


empregados ainda não chegou ou está dormindo nos quartos, mas sei que é
por pouco tempo. Quando eu voltar, tudo estará em sua movimentação
normal, de pessoas andando de um lado para o outro, ocupadas em seus
afazeres diários.

O cheiro de colo invade meu olfato quando entro no espaço que abriga a
piscina aquecida semiolímpica. Aqui segue sendo um dos poucos locais em
que consigo ter paz e garantia de que estarei longe o suficiente de olhares
tortos. Ninguém, além de mim, costuma a nadar nessa casa

Arrumo os óculos de natação sobre os olhos e me posiciono na beirada,


olhando a água que reflete o azul claro do fundo da piscina. Respiro
profundamente e salto, sentindo o calor envolver minha musculatura.

Detesto finais de semana, porque isso inclui não poder ir à escola e ser
obrigado a compartilhar momentos com a minha família, como, por
exemplo, o café da manhã, o almoço e, algumas vezes, até mesmo o jantar.
E fugir para o parque já não é mais tão fácil.

Tento esvaziar a minha cabeça enquanto dou braçadas, mas só a perspectiva


do dia me causa um embrulho no estômago.

Não sei quanto tempo passa enquanto dou braçadas que vão, aos poucos,
alcançando a marca de centenas de metros nadados.
Vigésima quinta batida na parede da piscina e meus músculos reclamam
pelo esforço. Levanto o rosto para respirar um pouco e controlo o susto por
encontrar meu pai, parado a alguns metros da borda, com os braços
cruzados sobre o peito.

O olhar de desgosto está estampado em sua feição enquanto me encara por


um minuto inteiro, em silêncio. Vejo quando observa o relógio, antes de
voltar a me encarar.

— Sabe que horas são?

— Não.

— Como sempre, irresponsável — ele diz. — Saia da piscina agora e vá


tomar um banho rápido. O almoço no clube de campo com os acionistas
começará ao meio-dia e meia em ponto.

— Já estou saindo. — me limito a dizer.

Acompanho enquanto Linus Lowe deixa o local, a passos firmes, e só


assim faço o primeiro movimento, nadando até a escada.

Enquanto me seco, tento me lembrar de quando começou esse amor todo


que meu pai sente por mim, mas não consigo me recordar. Sempre que
penso sobre isso, as primeiras coisas que vêm à minha mente são seu olhar
desaprovador e os gestos frios e impessoais, que aconteciam apenas quando
estávamos em público.

Mas me recordo também das porradas e socos desferidos quando algo não
saía do jeito que ele queria. Não que isso seja raro, nos dias atuais.

Passo a toalha sobre os cabelos com raiva, terminando de enxugar o corpo,


e, por fim, prendo o tecido na cintura. Faço o caminho de volta, apenas
cumprimentando com um acenar de cabeça as pessoas que passam por
mim. Somos em três pessoas, para ao menos vinte empregados que cuidam
de toda a propriedade.

— Filho?
Minha mãe, Pauline Santoro Lowe, é a mulher mais doce, zelosa e amorosa
que existe nesse mundo, mas também é a mais submissa que já conheci.
Com a feição preocupada, ela olha para os lados, atenta.

— Está atrasado, querido — ela diz, quase em um cochicho. — Seu pai


está impaciente.

— Tem um roxo em seu braço. — Dona Pauline coloca a mão sobre o


local. — Você deveria denunciar ele, mãe.

— Não fale besteira, Conrad. Bati na maçaneta da porta quando estava


saindo. Sabe como sou distraída! — Ambos sabemos que não sou idiota. —
Vamos, querido. Ele está com pressa.

— Linus Lowe sempre está, mãe.

— Você sabe como ele é, Con. — Ela passa a mão em meu rosto. — Vá
tomar um banho rápido e se trocar. Levo algo para você comer no meio do
caminho.

Apenas aquiesço.

— Meu tio estará lá?

— Sim, ele e sua tia — responde, a feição ganhando uma ruga entre as
sobrancelhas.

Espero que diga alguma coisa, mas ela apenas sorri.

— Vá logo! Não consigo segurar o humor do seu pai por muito tempo.

— E Georgina? — pergunto, antes de voltar a andar.

Dona Pauline tenta esconder um sorriso cúmplice que nasce e apenas


balanço a cabeça em uma negativa.

— Mãe, não — digo, cansado. — Sei lá quantas vezes já disse isso: mas eu
e Gió somos apenas amigos.
— Uma mãe pode sonhar.

— Estou te poupando de uma ilusão. — Dou de ombros.

Seu sorriso se abre um pouco mais, como se soubesse toda a verdade do


mundo.

Mães.

— Conversei com Alexandra agora há pouco e eles já estão a caminho.

Nesse almoço, como em tantos outros, sou completamente desnecessário.


Pego uma taça de espumante, ignorando o olhar avaliativo do garçom, e
dou um longo gole na bebida.

Essa merda toda vai ser minha um dia, então não preciso andar de um lado
para o outro, distribuindo sorrisos e cumprimentos para pessoas que nem
conheço. Estou praticamente escondido em um canto do espaço aberto,
evitando contato visual com qualquer um ao redor. Bato o dedo no copo e
observo as bolhas subirem, porque qualquer coisa é muito mais interessante
do que essa merda de evento. Já procurei Giorgina por todos os cantos, mas
nem sinal dela.

Lutz, irmão mais velho do meu pai e também CEO da Lowe Produtos
Alimentícios, vem em minha direção. Apesar de estupidamente parecido
com o irmão mais novo, seu semblante é carinhoso e seu olhar tranquilo.
Por diversas vezes, questionei-me o porquê de ele não ser meu pai.

— O que está fazendo aqui? — Meu tio apoia a mão em meu ombro.

— Me escondendo, mestre Jedi — respondo, sincero.

— Isso é nítido, meu jovem padawan — ele diz, arrancando uma risada de
mim. — Quero te apresentar algumas pessoas hoje. Vai ser importante para
os próximos dias.

— Meu pai…
Ele nega com a cabeça, fazendo um gesto que diz que não devo me
preocupar com isso.

Entendi, alguns anos atrás, que o melhor jeito de não receber olhares
reprovadores e evitar as surras é se mantendo longe do centro das atenções.
Quanto mais nas beiradas, mais seguro é.

— Pode deixar Linus comigo, Con! Quero você trabalhando na empresa


durante as férias… quando falo que será o meu sucessor, é bastante sério.
Meu pai, no caso, seu avô, começou a me preparar ainda na sua idade.

É de conhecimento geral que ele e minha tia Stella não podem ter filhos.
Lembro-me de que eles até tentaram adotar uma criança, mas desistiram
por algum motivo que eu nunca soube.

— Finalmente te encontrei, Lutz!

Um homem grisalho, bem mais velho do que meu tio, aproxima-se,


estendendo a mão, e os dois se cumprimentam com um aperto firme.

— Há quanto tempo não te vejo, John. — Sinto um braço envolvendo meus


ombros. — Que bom que nos encontramos, porque vou aproveitar para te
apresentar ao meu sobrinho, Conrad, que será, em um futuro não muito
distante, se depender de mim, CEO da nossa corporação.

— Muito prazer, jovem! Sou um dos acionistas da empresa e estou muito


feliz em saber que Lutz já está preparando um sucessor. Como sempre, um
homem prevenido.

— E começará, ainda nessas férias, a trabalhar para conhecer como


funciona cada uma das etapas de produção.

— Me lembro de quando seu pai nos contou sobre seu treinamento! — O


homem solta uma risada. — Acho que estou ficando velho, Lutz. — Vejo
meu tio negar com a cabeça e bater nos ombros do idoso. — Logo mais,
serei eu a passar a cadeira para o meu primogênito.
Aqui, ao lado do meu tio, vejo o meu futuro: CEO da maior produtora de
carne de Emerald, uma das mais importantes da Europa, e fazer o que ele
faz é o que quero para minha vida. Conversar com pessoas, fechar negócios
em jantares e participar de uma quantidade infinita de festas.

Lembro-me de ir, de vez em quando, ainda criança para o escritório com a


minha mãe, só para ver o meu pai, não que fosse algo de que ele gostasse.
Mas eu gostava de observar as pessoas andando de um lado para o outro,
com celulares e notebooks resolvendo problemas. Foi ali, com uns dez ou
onze anos, que decidi que queria ser como eles, mais especificamente como
meu pai e meu tio.

— Então quer dizer que passará suas férias de verão trabalhando com o seu
pai e tio? — Sr. John pergunta. — Nada de acampamento, então?

— A partir de agora meu foco é aqui — respondo.

— Essa é uma grande escolha para um garoto de dezessete anos — o


senhor responde. — Na sua idade, eu só pensava em pegar garotas e, às
vezes, em jogar rugby.

Eu consigo pegar mulheres em qualquer lugar, não preciso de uma viagem


de férias para isso, e, além do mais, sei que existe muitas estagiárias dentro
da Lowe dispostas a ter um pouco de diversão. Acho que serei totalmente
capaz de conciliar o dever com a diversão.

— Conrad vai ter muito tempo para se distrair à noite. — É meu tio quem
responde.

— Nós homens somos capazes de nos divertir em qualquer lugar, não é


mesmo? Basta termos a oportunidade — o senhor finaliza. — Tenho
certeza de que esse garoto será tão bom quanto você e seu irmão.

— Será ainda melhor.

Sinto um aperto em meu ombro e vejo o orgulho nos olhos do meu tio,
mais uma vez me pergunto o porquê meu pai não me trata assim.
— Precisamos ir, John. — Os dois homens se cumprimentam de novo. —
Há muitas pessoas para Conrad conhecer hoje!

— Com certeza. Conte comigo, garoto! Ah! — Escuto o homem falando


ainda. — Olhe quem chegou: Sandor, um dos gerentes do Banco
Nacional…

Apenas aquiesço e meu tio segue me apresentando às pessoas, falando


sobre meus próximos passos dentro da empresa, até mesmo sobre a
faculdade. Existe um plano traçado para os próximos anos da minha vida,
que faz total sentido com o que sempre quis. Quando me sentar na cadeira
do meu tio, daqui alguns anos. Terei status, poder, dinheiro, e,
principalmente, não precisarei mais me submeter ao meu pai.

Agora, faltam alguns meses para que se inicie o processo de seleção dos
alunos para as poucas vagas existentes no curso de Administração da
Universidade do Reino de Emerald, também conhecida como URE. Todos
os homens, sem exceção, das últimas quatro gerações, estudaram e se
formaram com louvor lá, e é exatamente isso o que farei.

— É sério o que escutei?

Olho para o lado e encontro meus dois melhores amigos, lado a lado.
Austin está com uma taça de algo alcoólico na mão, enquanto sou capaz de
apostar que Georgina bebe um suco de morango ou groselha.

— Depende — respondo. — O que escutou?

— O acampamento de férias do futebol rodou. — Austin diz e sei que está


chateado.

— É isso aí — confirmo. — Vou ficar para começar a trabalhar na Lowe.

— Você quer mesmo isso, Connie? — Georgina pergunta.

— Claro que sim, Gió — digo, sério. — Dinheiro, status e mulheres. O que
mais eu poderia querer?
— Sei que o esforço é muito grande, mas não seja um babaca, Conrad. —
Ela revira os olhos e eu recito as palavras junto dela. — Você,
definitivamente, é um idiota.

— Não tenho culpa que você sempre usa as mesmas frases.

Talvez seja uma mania do sexo feminino querer enxergar mais do que
realmente existe em uma simples resposta, mas, por fim, ela dá de ombros,
levando o copo à boca outra vez e eu acompanho todo o movimento. E eu
reparo, pela primeira vez, que os lábios de Gió são bonitos.

Que caralho de pensamento foi esse?

Pisco algumas vezes e encontro Georgina me encarando, como se pudesse


ver através da minha alma.

— O treinador já está sabendo? — Austin questiona.

— Desde o mês passado, quando ele falou sobre o começo do próximo


período. Não vai dar para jogar e ainda manter as notas altas…

— Por que não contou pra gente? — Meu amigo questiona.

— Conrad.

A voz grossa do meu pai tensiona meus músculos imediatamente e tanto


Austin quanto Georgina me lançam um olhar preocupado, mas pedem
licença, deixando-nos sozinhos.

— Você não devia ficar falando sobre a URE — ele diz, em um tom sem
emoção. — Até porque, duvido muito que seja capaz de entrar até mesmo
numa faculdade considerada de terceiro escalão. Sugiro que cale a boca,
para não passar vergonha quando for obrigado a admitir que não foi capaz
de ingressar.

— Qual é o seu problema comigo? — Arrependo-me no mesmo momento.

Meu pai dá um passo em minha direção e, por instinto, recuo como um


animal acuado.
— Não fale assim comigo, Conrad. — Seu tom de voz não aumenta. —
Ainda tenho modos de te fazer abaixar esse seu ego, caso seja necessário…
Você pode até ser maior do que eu, mas ainda tenho força o suficiente para
te quebrar ao meio, se for preciso.

— Está acontecendo alguma coisa? — Meu tio se aproxima, os olhos fixos


no meu pai.

Mais ao longe, vejo minha mãe com a feição preocupada, a atenção fixa em
mim enquanto Stella diz algo em seu ouvido.

— Estou educando Conrad — ele responde.

— Não acho que aqui…

— Não tem que achar nada, Lutz.

— Só quero te lembrar de que estamos em um evento.

— Sua intromissão em nossa vida ainda vai sair muito cara — meu pai diz,
alguns tons mais baixo.

— Isso é uma ameaça?

— Só quero te lembrar de que você comanda somente a maldita empresa,


Lutz… Na educação do meu filho, quem manda sou eu — meu pai
interrompe, voltando o olhar frio para mim novamente. — Estamos
entendidos, Conrad?

— Sim, senhor.

— Ótimo, então vamos tirar essa merda de foto logo.

Não saio do lugar, esperando que meu pai vá na frente, mas ele não se
mexe, mostrando que devo ficar ao seu lado. Meu tio gesticula, indicando
para que eu faça exatamente o que está sendo mandado.

Minha mãe se aproxima, em um passo acelerado, e enrosca seu braço no


meu. Há preocupação em seu olhar, mas desvio, voltando a fitar o
horizonte. Sim, nós vivemos um terror dentro daquela maldita casa, mas ela
nunca teve coragem de denunciar o próprio marido. Medo? Vergonha? Não
sei e nem quero saber. Não vai fazer diferença para mim.

— Conrad deve ficar ao meu lado. — Escuto meu pai dizer para a auxiliar
de fotografia, quando ela indica que meu lugar será outro. — Meu filho
ficará exatamente onde está.

— Sinto muito, Sr. Lowe — a moça responde, em um fiapo de voz — Mas


foram ordens diretas do CEO.

Meu pai se acomoda em seu lugar, do lado direito do meu tio e eu ocupo o
esquerdo. É a primeira vez que estou em uma posição assim, em uma
imagem que será usada como a oficial da empresa no próximo período.

Os flashes estouram e, pelos próximos dez minutos, tiramos as fotos


necessárias para o site oficial e outros meios de comunicação.

Quando somos dispensados, meu pai se levanta, no mesmo instante que o


meu tio. Vejo que minha mãe se aproxima e tenta tocá-lo, mas ele a repele.

— Por que você trocou o lugar de Conrad? — meu pai questiona e vejo
manchas vermelhas em seu rosto.

— Porque faz sentido em relação ao futuro dele.

— Isso deveria ter sido discutido comigo antes.

— Como você mesmo disse agora a pouco, Linus — meu tio tem um
sorriso debochado no rosto —, eu comando essa maldita empresa, o que me
dá o direito de definir quem se sentará ao meu lado na porra de uma foto.
— Ele arregaça as mangas por pura mania. — Agora, preciso apresentar
você a mais algumas pessoas, Conrad. Por favor, venha comigo.

Sigo ao lado de Lutz , calado, porque sei o que me espera quando


chegarmos naquela maldita casa.

— Não entendo qual é o problema do seu pai — Lutz resmunga, indignado.


— Vou te dar um conselho, Con: não escute o que ele fala, porque nada de
bom anda saindo daquela boca ultimamente.

Apenas aquiesço.
Eu estou a seis passos do precipício e eu estou achando que

Talvez seis passos

Não sejam tão distantes assim

(One last breath - Creed)

Sentada na arquibancada, ao lado de Austin, assisto ao último treino de


Conrad como capitão do time de futebol da escola. Ele está no meio do
campo, os olhos atentos à bola, que está com o time “adversário”. Brinco,
distraída, com a moeda de um centavo de dólar, que saiu da máquina de
refrigerante em forma de troco.

— Gin — olho para o lado e encontro meu amigo com o olhar fixo no
campo —, você acha que ele está tomando a decisão certa? Só temos
dezessete anos…

— Não sei — respondo, sincera.

— Estava escutando o treinador falar esses dias. — Austin rola os olhos


quando arqueio as sobrancelhas. — Sim, estava com uma garota no
vestiário masculino, mas esse não é o ponto.

— Definitivamente, não — respondo.

— O fato é que ele disse que existem vários olheiros que estão interessados
em Conrad. Inclusive, de faculdades dos Estados Unidos!

O cara que corre, dando instruções aos colegas de campo, é bom em muitas
coisas além do esporte. Monitor de idiomas há três anos, membro fixo no
time de debate e auxiliar no laboratório de química. E, claro, tudo isso deu
a ele a porcaria de um ego maior do que o mundo.
— Ninguém sabe o que quer na nossa idade — ele diz, sério. — Não sei se
vou fazer medicina, direito ou ser biólogo. Ontem falei para minha mãe que
quero abrir um petshop.

— Na realidade, você e Conrad deviam ser sócios e comprar uma fazenda,


considerando o quanto vocês curtem vacas, galinhas e algumas piranhas. —
Digo irônica, e ele gargalha

— O nome disse é ciúmes, viu? — Apenas dou risada — E não estou


falando de mim.

— Tenho certeza que você usou algo realmente pesado hoje de manhã para
estar falando esse monte de besteira.

Austin apenas ri, passando a mãos nos cabelos.

— Você já sabe o que quer cursar? — Me pergunta.

— Nenhuma noção, mas tenho quase certeza que meu pai gostaria que eu
fosse para administração, mas, sei lá.

— Será estranho quando formos só nós dois por aqui.

Volto meu olhar para o campo e vejo que os jogadores, agora, estão
reunidos no centro, todos sobre uma única pessoa. É estranho pensar que
tudo mudará nos próximos meses, quando seremos obrigados a escolher o
rumo que nossa vida irá tomar.

Não seremos mais nós três, andando por aí, e é bem provável que seja
apenas eu e o cara ao meu lado, que agora parece estar bastante
concentrado na tela do próprio aparelho celular.

— Mas olha só — ele levanta o rosto, os olhos castanhos brilhando —,


quando formos só nós dois, poderemos sair…

— Eu? Sair com você? Um encontro? — Austin aquiesce, como se fosse a


coisa mais normal do mundo. — Nem fodendo.
— Qual o problema comigo, Georgina? — Ele pisca com seus cílios
enormes e olhos escuros.

— Tenho certeza de que você deve ter achado esse seu pinto no lixo. —
Faço cara de nojo e ele dá risada. — Além do mais, agora, mais do que
nunca, tenho certeza de que tomou um pé na bunda.

— Ok, Marie terminou comigo ontem a noite e sobre o meu pinto: lavou,
está novo. — Finjo ter ânsia — Mas a verdade sobre nós dois é que nunca
daríamos certo, porque eu não sou ele. — Austin faz um gesto, apontando
com a cabeça para o cara que vem em nossa direção.

— Aus, tem certeza que tem água nessa sua garrafa?

Austin se levanta em um pulo, com muito mais no olhar do que seria


possível colocar em palavras. Não faz sentido algum o que ele acabou de
falar, até porque eu e Conrad somos amigos desde sempre; nunca houve
qualquer tipo de espaço para outros sentimentos.

— Já estava querendo desistir de esperar você para comer — digo, assim


que Conrad está perto o suficiente para escutar.

— Você é perigosa quando está com fome. — É o recém-chegado que


responde. — O que é isso na sua mão?

— Recebi como troco da máquina de refrigerante. — Jogo a pequena


moeda para cima.

— Uma lucky penny[1] — Austin resmunga, o rosto focado no celular.

Jogo o objeto para cima outra vez, mas ela não volta para minha mão.
Conrad a pegou no ar.

— Se tem um negócio de que estou precisando é sorte.

Tento pegar o objeto de novo, mas ele nega. Batendo com o dedo no meu
nariz.

— Fica como pagamento por ter roubado o meu óculo aviador.


Conrad está sentado em um dos balanços, nosso local de encontro desde
que nos conhecemos por gente. Com os pés apoiados no chão, ele vai para
frente e para trás, enquanto observa algo em sua mão.

— Talk to me, Goose[2] — digo, assim que me sento ao seu lado.

Roubamos a frase usada pelo personagem do Tom Cruise em Top Gun e a


usamos sempre que percebemos que o outro não está bem.

— Não tenho nada para falar.

— Mentiroso.

Conrad deposita seus olhos quase pretos sobre mim e eu disfarço, olhando
para os meus sapatos surrados por um momento.

— Será que tenho capacidade para isso?

— Certeza — digo, sem titubear. — Seu tio manja das coisas. Ele sabe o
que está fazendo.

Conrad joga o objeto que está em sua mão para o ar e reconheço como a
moedinha da sorte, que ele pegou de mim alguns dias atrás.

— E se eu não passar na faculdade?

— Mais fácil chover no inferno do que você não passar — digo, sincera. —
Vai dar tudo certo.

— Tem meu pai...

— Pau no cu dele — respondo, e Conrad ri.

— Obrigado.

— Amigos são para isso.


Vir para o sítio da minha avó materna é como sair por completo da
realidade de Emerald e entrar em um reino totalmente diferente. Quando eu
era pequena, acreditava que nas pequenas tocas moravam fadas, que
cuidavam dos jardins e faziam as flores crescer, quando ninguém estava
olhando.

Eu costumava a chamar esse local como: “Reino encantado da vovó


Angelina e do vovô August”. Na casa dos meus pais, sempre houveram
muitas regras, uma porção de rotina e uma lista de responsabilidades,
enquanto aqui, sempre foi o oposto. Fazer pão? Pode. Sujar a roupa com
terra brincando no quintal? Pode também. Ajudar a colher morango no pé e
comer sem lavar? Não tem problema algum. Lembro-me de que dava risada
quando chegava na casa dos meus pais e minha mãe precisava me esfregar
com bucha, para tirar toda a sujeira.

E mesmo agora, já mais velha, segue sendo o melhor lugar do mundo,


mesmo que já não pareça mais tão colorido agora que meu avô se foi.

Segurando o portão aberto, vejo minha avó, com o seu sorriso de sempre,
esperando o carro entrar para poder fechá-lo, em seguida.

Meu pai estaciona o carro no primeiro espaço que encontra e minha mãe
desce, abraçando minha avó com força. Consigo escutá-la pedindo para
passar um tempo com a gente na capital, mas ela nega.

— Não, filha. Vou ficar aqui, na minha casa. Quem vai cuidar das plantas?
E os passarinhos? Estou bem, aqui. — Dona Angelina me puxa para um
abraço. — Como está querida?

Antes de entrarmos na casa aconchegante, minha avó abraça meu pai com
carinho.

— Ainda não consigo vir aqui. — Meu pai murmura para mim, passando as
mãos nos olhos. — É estranho chegar e não encontrar seu avô fumando o
cachimbo.
Apenas aquiesço, porque sei exatamente o que ele está sentindo. Passo a
mão em sua cintura e apoio a cabeça em seu ombro, enquanto caminhamos
até a entrada. É engraçado como o relacionamento dos meus pais é meio
“invertido”, aos olhos dos outros. Alexandra Moretti é forte e decidida,
poucas vezes a vi chorar… já meu pai? Era engraçado chegar à sala e vê-lo
fungando, enquanto assistia aos filmes de drama que minha mãe escolhia
como “sessão da tarde” dos dois.

— Será que vamos nos acostumar algum dia? — sussurro, assim que
passamos pela bonita porta, feita a mão pelo meu avô, muitos anos antes de
eu nascer.

— Esse sentimento de perder alguém não tem fim, filha, mas a dor ameniza
com o tempo… aos poucos, vamos ajeitando as coisas e a rotina vai
voltando. Isso aconteceu quando perdi meu pai e agora com o seu avô
August— Ele beija o topo da minha cabeça. — Outro dia estava lendo que
não é o luto que diminui, mas, sim, a vida entorno dele que cresce. É um
bom jeito de ver a situação. E vou te falar: ainda hoje, depois de muitos
anos, sinto falta dos meus avós. Gostaria que você tivesse os conhecido. E,
se um dia você tiver filhos, vai sentir a mesma coisa… nós sempre
queremos um pouco mais de tempo com as pessoas que amamos.

A poltrona do meu avô continua no mesmo lugar, exatamente igual. A


diferença é que hoje, Boris, o gato laranja que minha avó encontrou anos
atrás, em meio a uma tempestade, dorme tranquilamente, não passando de
uma grande e gorda bola de pelos, que ronrona alto.

Quando me aproximo, ele cheira o ar e se levanta, dando espaço para que


eu me sente, mas não tenho coragem, apenas afago sua cabeça, ganhando
uma lambidinha áspera como presente.

Caminho para a cozinha e vejo que minha avó anda apressada, de um lado
para o outro. Abrindo e fechando armários freneticamente.

— Hoje é o grande dia!

— Mãe… — Um gemido escapa da boca de Dona Alexandra.


— Você também teve a sua vez, Xandra — minha avó interrompe.

— O que está acontecendo? — pergunto, curiosa, e meu pai eleva as duas


mãos, virando a palma para cima. O clássico gesto de quem está
entendendo nada.

— Sua avó quer ler a sua sorte na borra do café.

— Esse é o seu problema, Alexandra. — Dona Angelina assume um tom de


voz, claramente, chateado. — Sempre negou as nossas origens, a herança
das mulheres da nossa família! Mas ainda bem que Gin é diferente de você
nesse aspecto. — O olhar da minha avó cai sobre o meu pai. — Georgio,
você pode verificar, lá no fundo, a calha do galinheiro?

— Agora?

— Sim, por favor, querido — minha avó fala, em seu tom mais amável. —
Qualquer hora dessas, vou ter problemas lá… e você sabe, na minha idade,
não consigo mais subir na escada e tirar a sujeira que se acumula.

Meu pai nunca teve coragem de dizer “não” para os meus avós maternos,
de quem ele se sente mais filho do que dos próprios pais. Apesar de ter
pessoas para cuidar da chácara, meu avô sempre fez questão de realizar
praticamente tudo e isso foi passado para todos. Mesmo sendo um
empresário fodido, sempre vi meu pai e meu avô juntos, com a mão na
massa e, muitas vezes, na enxada também.

Sinto a empolgação crescer dentro de mim. Sempre soube que minha avó
lia a sorte para as pessoas, mas, sempre que eu perguntava sobre o assunto,
ela dizia que ainda não estava na hora...

— Só acho que Gin é muito nova ainda — minha mãe argumenta.

— Li para você na mesma idade. — Minha avó pega o potinho marrom, no


qual sei que guarda o pó de café. — E só irá aparecer o que ela for capaz de
entender. Sabe como funcionam as coisas, mesmo ignorando.

— Mamãe…
— Por que meu pai não pode ficar? — pergunto, interrompendo uma
discussão que parecia querer surgir.

— Não sei como começou, mas foi há muitas gerações atrás… — Minha
avó fala de um jeito meio sonhador. — E esse dom foi passando de mulher
para mulher. A única coisa que sempre foi dita é que nenhum homem
poderia fazer parte do ritual, ou ter a sua sorte lida na borra do café.

— Isso quer dizer que minha mãe também sabe ler? — Encaro Dona
Alexandra, que apenas chacoalha os ombros, claramente incomodada. —
Por que nunca me contou?

— Você vai aprender também! — minha mãe se defende. — Fora que,


filha… bom, nunca fui muito fã.

Escuto a minha avó bufar sonoramente enquanto coloca as coisas à minha


frente: caneca branca, água fria, pó de café, uma panela e, por fim, uma
colher.

— Vamos começar do início — Dona Angelina diz. — Primeira coisa: a


água deve estar fria. A quantidade varia, mas sempre faço um pouco mais
do que meia xícara, para não sobrar muito. — Aquiesço. — Agora, coloque
duas colheres de café na água e mexa bem, até que esteja tudo muito bem
misturado. — Quando faço o primeiro movimento, ela para a minha mão.
— Sempre mexa no sentido horário, não queremos que o passado, seja ele
qual for, volte.

— Como assim?

— Mexer no sentido anti-horário não é natural, querida. A natureza sempre


segue em frente. A hora sempre anda para frente, nunca para trás.

Balanço a cabeça positivamente e me concentro em deixar a mistura


homogênea dentro do copo.

— Agora, coloque na panela e vamos levar ao fogo. Não podemos mais


mexer até que esteja no ponto ideal.
Não desgrudo da panela e tento absorver o máximo de informações que a
minha avó passa, enquanto me acompanha. Espero por esse momento desde
que soube que isso, um dia, iria acontecer.

— Repare bem no café, ele está quase fervendo. — Dona Angelina aponta
pra as pequenas bolhas que sobem pela lateral do recipiente — Quando isso
acontece, sabemos que chegou a hora de desligar e partir para a próxima
etapa. Primeira coisa, coloque o líquido naquela xícara branca e beba um
gole, mentalizando a sua vida.

— Ela só tem dezessete anos. — Escuto a voz da minha mãe.

— Fique quieta.

Tento ignorar as duas cochichando atrás de mim e então sou capaz de fazer
o que a minha avó pediu. O líquido escuro desce quente e amargo pela
minha garganta, mas contenho a vontade de fazer cara feia.

— Devolva quase tudo à panela, só deixando um dedinho no final da


xícara. — Cumpro à risca a instrução. — Agora, pegue o pires e coloque
sobre a borda. O anel que está usando, sobre o fundo do pratinho. E,
segurando com as duas mãos, gire quantas vezes achar necessário. Só
lembre-se: sempre no sentido horário.

Ignoro a sensação de me achar meio boba de estar girando meus braços em


frente a uma parede branca. Sinto a necessidade de parar e minha avó sorri.

— Agora, vire e coloque a xícara junto do pires, sobre a mesa. — Um


pouquinho de café sai no pratinho. — Temos que esperar dezesseis
minutos.

— Por quê?

— Mais um mistério. — Ela pisca para mim. — Há coisas que não saberei
te responder.

E ficamos as três ali, sentadas ao redor da mesa, aguardando o tempo


passar. Em alguns momentos, tenho a impressão de que o relógio anda dois
segundos para frente e três para trás. Uma merda.

A sensação é de que estou tendo alguma espécie de rito de passagem. Algo


que me torna uma adulta, perante a minha família materna.

Dona Angelina pega a xícara e a vira para cima. Surpreendo-me ao ver


desenhos se formando por toda a superfície branca. Minha avó está
totalmente concentrada, movendo o objeto por vários ângulos, e, por fim,
entrega para minha mãe, sem emitir qualquer palavra.

— O que está dizendo? — pergunto, ansiosa.

É a vez de Dona Alexandra olhar com cuidado. As duas trocam um olhar


cheio de significados, que me causa um tremor gélido na espinha.

— Bom — é minha avó quem começa —, você está vendo aqui? — Ela
aponta para um local em específico. — Parecem linhas paralelas, o que
indica que tem os caminhos abertos para a prosperidade, seguido de uma
âncora, que também mostra que terá muito sucesso no que escolher como
profissão. — O sorriso da minha avó vacila. — Querida, o que irei te dizer
agora pode mudar… como qualquer oráculo, as coisas ao nosso redor se
alteram conforme o livre arbítrio das pessoas, inclusive o nosso. Sei que
ainda é muito nova para pensar em romance, mas aqui tem uma escada, em
seguida, um quadrado… você terá um longo período de solidão.

— Eu acho melhor parar por aqui. — Minha mãe está séria e visivelmente
preocupada.

— Você sabe como funciona, Alexandra — minha avó diz, ainda mais
séria. — Devemos terminar a leitura. Se o café mostrou, é porque Georgina
deve saber.

A feição da minha mãe se fecha.

— Eu não tenho um namorado — digo. — E nem gosto de ninguém.

— Ou talvez só não tenha percebido — minha avó responde. — Mas olhe


aqui — ela aponta para o meio —, está vendo essa espiral? Isso significa
que essa pessoa vai estar pensando em você durante muito tempo, mesmo
estando separado… mas nem tudo é ruim, querida. Olhe aqui, na borda: Há
uma ponte ligando o desenho da caixa e um castelo, seguido de um
coração. Isso significa que você e sua alma gêmea voltarão a se encontrar
durante uma viagem e que, mesmo com todos os obstáculos, serão felizes.

— Alguma vez a senhora já errou, vó?

Uma nova troca de olhares entre as duas mulheres faz com que o mesmo
arrepio frio percorra a minha coluna, alcançando todos os meus membros.

— Olha, querida, como eu te falei: isso é apenas uma previsão. — Ela sorri.
— Pode ser que não venha acontecer.

Ela está fugindo da pergunta. Igual a minha mãe, quando quer se desviar de
alguma coisa.

— Vó…

— Assim como minha mãe, minha avó e tantas outras, antes de nós, nunca
errei, mas sempre há uma primeira vez, certo? — Apenas aquiesço. —
Agora, quero a senhorita a cada quinze dias aqui, para eu poder te ensinar
tudo!

— Mãe.

— Conhece as regras, Alexandra. — Minha avó se levanta da mesa,


recolhendo as coisas. — Gin tem um dom, assim como todas nós. Deixe
que ela ocupe a cabeça com isso também.

Sinto meu coração pesado dentro do peito, como se eu já sentisse falta de


alguém que nem sei quem é.
O tempo é uma coisa valiosa

Assista-o voar como o balançar de um pêndulo

Observe a contagem regressiva até o fim do dia

O relógio faz a vida passar

(In the end - Linkin Park)

Aqui, da arquibancada, vejo a galera treinando para o próximo jogo de


futebol, que será em duas semanas, contra o time de um outro colégio. É
estranho não estar lá, mas faz parte do plano. Até porque, não seguiria a
carreira no futebol, de qualquer maneira.

— Ai, Con, você podia me dar um pouco de atenção — Nancy protesta,


quando me agacho e abro a mochila. — Poxa, agora que não é mais o
capitão do time, sobra mais tempo para mim.

Ignoro a garota, afastando-me. Ela é gostosa, transa bem pra caralho, mas
não vale a chatice do grude.

— Disse para você que estava vindo estudar. — Ela mexe nos cabelos,
achando que isso irá mudar alguma coisa.

— Você vai na festa hoje à noite, lá em casa? — Sua voz é quase um


gemido. — Sabe, podemos brincar muito no meu quarto.

— Talvez eu vá — digo, tentando encerrar o assunto.

Transar com qualquer garota da escola tem esse problema: elas acham que,
automaticamente, tornam-se namoradas.

Abro a apostila de álgebra, indo direto para os exercícios que,


provavelmente, cairão na prova de quinta-feira. Conhecendo bem o quão
filho da puta aquele professor é nas provas finais de bimestre, as questões
serão as mais complicadas que ele conseguir arranjar.

— Sabia que ia te encontrar aqui. — Reconheço a voz de Austin e o vejo


subindo os degraus. — Estou indo lá pra casa com os moleques, jogar
videogame. Bora?

Vejo que Nancy olha para o meu amigo e logo parece procurar outra
pessoa.

— Cadê a Gin? — pergunto.

E, como eu esperava, a menina volta o olhar para mim direto, como duas
labaredas de fogo.

— Estou indo, Con — Nancy diz, levantando-se, e sou capaz de escutá-la


resmungar a respeito de Georgina, algo como “a vadia não veio dessa vez”.

— O que você disse? — questiono, sem pensar duas vezes.

— Eu? — Ela se volta, um sorriso debochado no rosto. — Apenas


pensando nas provas de amanhã. Tchauzinho. — Sacode os dedos.

Austin se joga ao meu lado, quando a garota desce as arquibancadas.

— Você não precisa nem estar no time de futebol para ser o rei dessa
escola.

— Só tenho um interesse: ser o rei da empresa da minha família, nada além


disso. — Dou de ombros. — Foda-se essa merda de escola. Preciso apenas
passar na porra da faculdade.

— Tudo isso que o sol toca é nosso reino…

— Vai tomar no cu, Austin. — Rolo os olhos enquanto ele ri. — Você e Gió
são insuportáveis com essas malditas frases do Rei Leão.

— Calma, Simba. — Ele solta uma risada debochada — Enfim, vai pra
casa jogar com a gente?
— Não vai rolar. — Bato no livro com a lapiseira. — Preciso terminar isso
aqui e meu tio pediu para que eu o acompanhe numa inspeção na fábrica,
de tarde e só estou esperando o carro chegar para ir.

Austin abre a boca, mas, por fim, parece desistir.

— Não posso discutir com o futuro rei das Terras do Reino… quero dizer,
da Lowe!

— Puta que pariu… — digo, irritado.

— No sábado, vai rolar a festa na piscina. Você se lembra, certo?

— Certo. — Apenas aquiesço. — Vou tentar, mas não garanto.

— Uma festa nunca é uma festa sem você, ó todo poderoso capitão do time
de futebol.

— É claro que não!

— Ow, se o rolê com o seu tio acabar cedo, cola lá em casa.

— Beleza, pode deixar.

Nem Austin e nem Georgina sabem o que acontece lá em casa, nem mesmo
a ponta do maldito iceberg. Se Linus Lowe fosse igual ao que é em frente
às outras pessoas, seria ótimo; o problema é que, dentro de casa, é ainda
pior. O que me fode real, é saber que, quando não estou por perto, quem
paga o preço é a minha mãe.

O celular, sobre o estojo, vibra e vejo a mensagem do motorista, avisando


que está me esperando no portão principal. Recolho todo o material,
colocando na mochila, para jogá-la sobre os ombros em seguida.

Enquanto caminho, um grupo de garotas passa por mim, soltando risinhos,


e apenas ignoro. São uma parte do grupo de líderes de torcida e me pego
pensando que, bem provavelmente, já transei com todas elas, menos, é
claro, com Georgina, porque seria quase que como transar com Austin.
— Boa tarde, Conrad. — Wilson Willis, o motorista que me leva para cima
e para baixo desde pequeno me cumprimenta, assim que entro. —
Aconteceu alguma coisa?

— Estava pensando que preciso ir logo para a faculdade. — Encosto a


cabeça no banco.

— Por quê?

— Já transei com quase todas as garotas disponíveis — digo, desanimado.

— Conheço você há muito tempo para saber que não é isso que está te
incomodando. — Ele me olha pelo retrovisor. — Diga-me o que está
acontecendo.

— Primeiro dia longe do futebol. Você me disse que ser adulto tinha muitas
vantagens.

No momento, sei que pareço mais uma criança do que alguém que está
ridiculamente perto dos dezoito anos. O homem solta uma risada, olhando-
me através do retrovisor.

— Mas tem — ele responde. — Só que, como tudo na vida, há


desvantagens também. Achei que estaria feliz em poder, enfim, começar a
carreira dentro da empresa.

— Estou — digo no mesmo instante. — A bosta é que eu quero continuar


jogando futebol também.

— Você poderá, mas agora como uma brincadeira.

— Não será a mesma coisa.

— Concordo, mas, ainda assim, é algo. Tente ver o copo meio cheio,
garoto.

Apenas aquiesço. A decisão de estar aqui é minha e eu sabia, até porque


havia sido alertado, pelo meu próprio tio, de que deixaria para trás coisas
que eu gostava, para ganhar outras. Inclusive, foi durante essa conversa que
descobri que ele também havia deixado uma carreira no esporte para trás,
optando pela empresa.

— Chegamos, Conrad.

Com certa surpresa, vejo que já estamos do lado de dentro dos altos
alambrados que cercam a empresa.

— Que horas devo estar aqui? — Wilson pergunta.

— Não sei, mas posso pegar uma carona de volta com o meu tio ou, quem
sabe, com alguma estagiária gostosa.

— Estou com o celular. — O homem ignora meu comentário. — Só me


mandar uma mensagem que venho pegá-lo.

Anuo e sigo em direção ao grande prédio branco, onde fica a administração


de todo o complexo.

Passo pela recepção, sendo cumprimentado pelas pessoas. Todos sabem


quem eu sou e o que estou fazendo aqui. Vejo uma movimentação e meu tio
está acompanhado por três outras pessoas, que estão com celulares em
mãos, enquanto ele passa instruções.

Um dia, serei eu em seu lugar e é por isso que estou aqui.

— Que bom que não subiu, Conrad. — Ele bate em minhas costas. — Já
estamos saindo. Campbell, leve a mochila do meu sobrinho e deixe na sala.

— Claro, Sr. Lowe. Devo avisar ao seu irmão que está adiantado para a
inspeção?

— Não precisa. — ele diz, sério. — É um procedimento informal, não há


necessidade de avisá-lo. Vou apresentar tudo a Conrad, assim como meu
pai apresentou.

— Perfeitamente.

— Está pronto? — meu tio pergunta para mim agora.


E, dessa vez, sinto a empolgação tomar conta do meu corpo.

— Com certeza.

Foram horas caminhando pela fábrica, conhecendo cada processo nos


mínimos detalhes e, aparentemente, meu tio sabia fazer cada uma das
coisas que estava me mostrando.

Ele conversou com os funcionários, escutou o que eles tinham para falar,
sem parecer estar cansado ou entediado.

— Por que você escuta todas essas reclamações? — questiono.

— São essas pessoas, Conrad, que fazem com que a nossa empresa gire.
Imagine se elas resolvem pedir demissão, de um dia para o outro?

— Contratamos outras — digo, simplesmente.

— Você pode até ter razão em sua fala… mas não é como um líder deve
pensar. O que você está vendo aqui não são recursos e, sim, pessoas… e
essas são insubstituíveis.

— Mas eu posso contratar outra pessoa para operar aquela máquina. —


Aponto para um instrumento enorme mais à frente.

— Concordo com você mais uma vez, porém o jeito como aquele homem
— meu tio aponta para um senhor a alguns metros de nós — trabalha não é
substituível. O seu posto de trabalho, sim, mas aquela pessoa ali, do jeito
que ela é, com as qualidades e defeitos, não.

— Meu avô também escutava as pessoas?

— Com certeza e um pouco mais, até. Uma vez por mês ele passava o dia
em um dos setores daqui, como um funcionário qualquer. Tinha horário
para entrar, para almoçar… inclusive, comia a mesma comida que todo
mundo.
— É por isso que você faz questão de almoçar no refeitório?

— Como o mesmo que todo mundo, porque quero garantir que a qualidade
da comida, que está sendo feita para mim, será servida para os demais —
Lutz Lowe diz, sério.

— Mas nós temos dinheiro para comprar a melhor comida…

Meu tio dá risada.

— Se você fosse meu filho, talvez não fôssemos tão parecidos. — Ergo as
sobrancelhas., — Fiz os mesmos questionamentos para o meu pai quando
tinha a sua idade.

— O que quer dizer?

— Que bem provável estou ficando velho. — Ele dá de ombros. — E


também me mostra que nós mudamos. É uma questão de tempo para que
você entenda tudo isso que estou falando para você…

Não acho que mudarei meus pensamentos, mas prefiro ficar quieto do que
decepcionar meu tio, falando que não abrirei mão de comer em minha sala.
Se tenho dinheiro para comer todos os dias a comida do melhor restaurante
de Emerald, por que almoçaria junto com o povo, no refeitório da empresa?
Não faz sentido algum.

— Não se preocupe com isso hoje, padawan [3]— ele fala, com o seu
sorriso sempre acolhedor. Seu rosto fica sério em questão de segundos. —
Sei que é muito jovem para isso, mas preciso que saiba que, caso aconteça
algo comigo, existe um testamento guardado no Banco Nacional de
Emerald. Apenas eu, você e sua tia temos acesso.

— Eu? — pergunto, confuso.

— Sim. — Ele aperta meu ombro mais uma vez. — Caso precise, algum
dia, saiba que lá estão todos os meus documentos com firma reconhecida e
com as testemunhas necessárias.
Eu aquiesço, mesmo que a conversa não faça sentindo algum para mim. O
ar preocupado de seu rosto some e ele volta a ser o Lutz de sempre.

— Vou comer um lanche aqui perto, com o seu pai. O que acha de ir junto?

— Acho melhor não, tio. Tenho prova amanhã, no período da tarde, e vou
aproveitar para estudar.

— Faça isso da meia-noite às seis. Preciso que você acompanhe nossas


conversas, são sempre sobre a empresa. — Ele ignora a minha resposta
enquanto checa o celular. — Inclusive, ele já está nos esperando do lado de
fora. Tenho conversado muito com ele… tenho certeza de que vocês estão
passando por um período normal de estresse, afinal, você é um adolescente
e sei como pode ser as coisas. — Ele bate em meus ombros. — Ele
comentou que viu uma garota sair do seu quarto esses dias.

Acompanho meu tio, tentando pensar em qualquer tipo de desculpa, para


escapar desse maldito jantar com o meu pai. É claro que o homem ao meu
lado, e todo o resto da sociedade, não sabe o tipo de pessoa que o irmão
dele é dentro de casa. Surra a mulher e o filho, apenas por esporte ou, quem
sabe, por tédio.

Engulo em seco, obrigando as minhas pernas a continuarem se movendo,


ao lado do meu tio, que volta a falar sobre coisas da empresa. Tento focar
em suas palavras, mas perco completamente a concentração quando vejo
meu pai ao volante do carro. Sua expressão é tranquila, um sorriso no rosto
que sequer reconheço, mas então me lembro de que ele está em público.

Entro no banco de trás do carro, atrás de Linus, e ele apenas me encara


através do retrovisor. A porta do lado do passageiro abre e meu tio entra,
atando o cinto em seguida.

— Achei que seria bom trazer Conrad, para que ele comece a entender
como as coisas funcionam.

— Claro, é ótimo que ele esteja com a gente hoje. O que acha de irmos
naquela lanchonete na estrada?
— Era nela que estava pensando.

Pegamos a estrada vazia e apenas escuto os dois homens conversarem a


respeito de novos contratos, que serão fechados nos próximos quinze dias.
De tempos em tempos, vejo que meu pai me encara pelo retrovisor, a
expressão neutra que não me diz absolutamente nada. De qualquer maneira,
nunca consegui o ler.

Sinto o carro desacelerar e entramos em um recuo. O pequeno restaurante


está relativamente vazio, há poucos veículos parados. Escuto as pedras,
vindas do chão de terra, baterem no fundo do carro e fico surpreso que o
CEO e o COO da Lowe Alimentos frequente esse tipo de lugar para comer.

— Vou verificar o ambiente e já volto — meu pai diz e meu tio concorda,
como se fosse algo normal.

— Vamos ficar do lado de fora, esperando o seu sinal.

Saímos do carro e meu tio dá a volta, ficando ao meu lado. Sinto o celular
vibrar dentro do bolso e pego para conferir a mensagem. É Georgina,
perguntando-me se está tudo bem.

Abro a conversa, mas a luz de um farol, direto no meu rosto, cega-me e


semicerro os olhos, tentando enxergar o que está acontecendo. O barulho de
um veículo derrapando e parando à nossa frente, a porta abrindo, faz meu
coração disparar.

— PERDEU! PERDEU! — À minha frente, agora, tem um homem alto,


com o que imagino ser um revólver em mãos. — PASSA O TELEFONE,
MOLEQUE!

— Não.

Parece que todo o barulho ao redor cessa de um momento para o outro,


nem mesmo a minha respiração sou capaz de escutar. Os meus dedos estão
travados em volta do aparelho e vejo, como em câmera lenta, o homem se
aproximar de mim.
— EU MANDEI PASSAR A MERDA DO CELULAR!

— Faça o que ele está pedindo. — A voz do meu tio sai baixa, mas não
consigo obedecer ao que ele está dizendo.

A adrenalina corre nas minhas veias, porque, claramente, sou maior e mais
forte. E então ele dá mais um passo em minha direção, tentando arrancar o
aparelho da minha mão e uma luta corporal é iniciada.

Tudo acontece rápido demais. O cara se desvencilha de mim ao mesmo


tempo que o barulho alto de um tiro reverbera. Ao meu lado, vejo que meu
tio dá dois passos para trás, batendo o corpo na lataria do carro.

O celular é tomado da minha mão e algo frio é colocado no lugar, mas só


sou capaz de ver a mancha de sangue se espalhar pela camisa clara social
que Lutz Lowe está usando. Ele pisca duas vezes, os olhos grudados em
mim, e vai escorregando na lataria do carro que estávamos até instantes
atrás.

— Não… — murmuro. — Tio? Não, não… não pode ser! — São apenas
dois passos que nos separam. — Fala comigo, tio! FALA COMIGO!

Sua cabeça pende em um ângulo estranho, os olhos abertos, mas sem brilho
algum. Levanto minha mão, para colocar sobre a ferida, e então a vejo: a
arma está em minha mão.

— O que… O que você fez, Conrad? — É a voz do meu pai atrás de mim.
— CHAMEM UMA AMBULÂNCIA! SOCORRO!

Sou pego pelo colarinho e colocado de pé. Vejo uma movimentação ao


redor, pessoas se aproximando.

— O que você fez com o meu irmão, seu desgraçado? — Não consigo falar,
meu corpo está pesado. — VOCÊ MATOU LUTZ!

— Não… eu não o matei, foi um acidente!

— VOCÊ MATOU O SEU TIO!


— Foi um acidente, pai...

— MATOU O MEU IRMÃO!

— ASSASSINO! — alguém grita.

Minhas mãos, agora vazias, estão manchadas de sangue. Olho ao redor e


não consigo distinguir nada além do corpo do meu tio e do meu pai
gritando.

As pessoas começam a se aproximar e então eu corro, embrenhando-me na


mata próxima.

Minha cabeça dói profundamente. Na realidade, não há uma parte do meu


corpo que esteja livre de dor.

Mexo meus dedos e sinto algo áspero em contato com a minha pele. Abro
os olhos e não reconheço onde estou. É quase um esforço sobre-humano
conseguir me sentar enquanto obrigo meu cérebro a registrar o que tem ao
redor; há terra, pedras, mato, árvores e uma estrada de asfalto de mão
simples.

A primeira coisa que consigo entender é que estou com uma sede infernal.
Minha língua está áspera e grossa, e não parece caber dentro da minha
boca.

Fico ali, no meio do nada, sentado por alguns instantes. Há um vazio dentro
da minha cabeça, e consigo formular nenhum tipo de pensamento, nada que
faça um real sentido. Passo a mão no rosto e sinto a sujeira arranhar a
minha pele.

Tento me levantar e desabo de joelho. Um gemido de dor escapa pelos


meus lábios, quando sinto uma pedra se afundar em minha pele. Respiro
fundo, mais uma vez. Meu corpo pesa uma tonelada, mas me esforço e
coloco o peso sobre as pernas, que tremem.
E uma enxurrada de memórias volta com força. A visita à fábrica, a
conversa com o meu tio, a luz do farol, os gritos e o barulho. Lutz Lowe
estava morto e eu era o responsável por isso. Um assassino.

Continuo andando, as lágrimas escorrendo no canto dos olhos e o nada à


minha frente. Uma vez escutei que o vazio era capaz de preencher e, agora,
parece que sei exatamente o que isso significa.

Não sei por quanto tempo eu caminho, as imagens como um loop em minha
cabeça, revivendo cada momento, como CD riscado. E, por fim, quando o
céu começa a escurecer novamente, eu caio no chão, exausto.

Não achei que iria morrer com dezessete anos, mas não me parece tão ruim
agora. Na realidade, acho que partir dessa merda seria reconfortante.

A primeira coisa que encontra o chão é meu joelho, já muito machucado.


Não tenho forças sequer para proteger meu rosto na queda. O escuro vence,
por fim, e me deixo levar. Vai ser muito melhor, a dor vai acabar.
Encontrei meu coração e o parti aqui
Fiz amigos e os perdi ao longo dos anos
E há muito tempo não vejo aqueles vastos campos, eu sei, eu cresci
(Castle on the hill - Ed Sheeran)

~ 10 anos depois~
Beberico o café forte e sem açúcar que acabaram de me trazer,
enquanto analiso mais um balancete da empresa[4]. O faturamento está
caindo. Centenas de funcionários já foram mandados embora, o turno
reduzido para apenas dois, na tentativa de diminuir ainda mais os custos,
mas, ainda assim, sei que o problema está longe de ser solucionado.
O plano de fundo da minha tela do computador, com o grande L
estilizado da família Lowe, lembra-me de que tenho uma reunião, junto da
diretoria, em cinco minutos, na qual tentarei, mais uma vez, mostrar
soluções para nos tirar da crise.
Minha chefe, a Sra. Gallagher, nunca veio até a minha sala tantas
vezes quanto nos últimos dez dias. Inclusive, para minha completa surpresa,
até fez questão de revisar o material ao meu lado.
Busco meus scarpins, que estão espalhados sob a mesa e os encaixo
nos pés, sentindo meus dedos reclamarem ao serem espremidos dentro do
sapato de bico fino.
Aliso a calça preta de alfaiataria, na busca de algum fiapo de tecido,
mas está impecável. Caminho, com o notebook em mãos, pelo longo
corredor até a sala de reunião, que já está movimentada.
Todos estão agitados, aguardando os próximos números, e sei que,
mais uma vez, serei a portadora das más notícias. Nossa produção caiu, os
fornecedores já não querem mais trabalhar conosco pela falta de pagamento
e a qualidade do produto entregue para o consumidor só piora a cada dia
que passa. O mercado nacional quer distância da empresa e nem posso me
dar ao direito de questionar “o que estamos fazendo de errado?”, porque
está na cara.
Sento-me em uma das cadeiras vazias ao redor da mesa e puxo o
cabo HDMI, conectando-o ao meu notebook. A imagem é logo refletida na
televisão e espero que todos se ajeitem. Olho o relógio e seguro o suspiro
que está prestes a escapar da minha boca.
— Você revisou o material? — Sra. Gallagher me questiona,
sentando-se ao meu lado.
— Sim, mas não mudei mais nada desde ontem.
— Ótimo, temos boas informações. Só não são agradáveis de serem
ouvidas. — Apenas aquiesço, até porque, não há o que responder.
Bato o olho no relógio e Linus Lowe está atrasado. Como sempre.
Os cochichos ao redor são nervosos, mas sei que não há como ser
diferente. Faz cinco anos que estou aqui e não houve um mês, nesse tempo,
que o caixa tenha fechado no positivo.
Todos os dias, desde o momento em que aceitei o emprego na área
financeira, meu pai me pergunta por qual motivo estou trabalhando aqui. E
todos os meses, enquanto analiso o fluxo de caixa da empresa, faço essa
mesma pergunta para mim. Nesses momentos, consigo me ver como um
dos músicos naquela cena clássica de Titanic… eles tocam enquanto o
barco afunda.
— Estou aqui. — A voz grossa do CEO da empresa faz com que os
barulhos cessem. Nunca há um pedido de desculpas por ter deixado as
pessoas esperando. — Vamos começar logo essa apresentação, pois tenho
um compromisso importante a seguir e não posso me atrasar!
Meses atrás, em uma das poucas vezes que precisei entrar em sua
sala, após uma dessas reuniões, encontrei-o em seu assunto muito
importante: uma partida de mini-golfe dentro do próprio escritório. Passo as
unhas sobre o meu queixo, fingindo uma coceira para evitar revirar os
olhos.
Linus Lowe deposita seus olhos escuros em mim e, como sempre
foi, um arrepio frio percorre a minha coluna e um gosto amargo toma a
minha boca. Há algo nele que sempre me inquietou, incomodou-me, mas
sentir ou deixar de sentir não fará qualquer diferença agora.
Sinto-me como um papagaio que fala a mesma coisa todas as vezes.
Nada muda, nenhuma ação é tomada, mesmo com os números escritos em
caixa alta e vermelho. As ideias surgem, mas todas são barradas pelo dono,
que parece não se importar com o destino da empresa.
Não tenho acesso à movimentação completa do caixa da empresa,
mas tenho certeza de que o dinheiro dele do mês é retirado, sem falta e
nenhum peso na consciência. Na ponta da mesa, há um homem que sequer
chorou pelo desaparecimento do filho, ou na homenagem feita, sem o corpo
do meu melhor amigo presente.
Com os olhos fixos na tela, pego-me pensando, mais uma vez, como
seriam as coisas se Conrad estivesse vivo e à frente da Lowe Alimentos.
Talvez ele ainda não mandasse, mas, com certeza, estaria ao lado do tio,
pensando no que era não apenas melhor para a empresa, mas também para
todos os funcionários.
Respiro fundo e ajeito a postura, voltando a prestar atenção ao meu
redor. Pensar no meu melhor amigo, morto há uma década, não iria resolver
coisa alguma e eu só voltaria a visitar aquele maldito lugar escuro, no qual
me enfiei por meses depois de toda a tragédia.
— E o que vocês querem que eu faça? — Linus pergunta,
impaciente. — Não faço milagres. Está claro que são os funcionários que
estão fazendo corpo mole na produção.
— Como você pode dizer isso? — O gerente responsável pela
fábrica aumenta o tom de voz. — Todos estão trabalhando, dando o melhor
de si.
O CEO solta uma risada debochada.
— Todo o conselho quer que você tome uma atitude hoje ou
tiraremos você da presidência! — um dos acionistas diz.
— Sabe que não pode fazer isso — ele diz, tranquilo. — Além de
CEO, tenho setenta e cinco por cento de toda a empresa.
— Ache uma solução, Sr. Lowe — um outro homem diz, bastante
sério.
— Já disse que estamos pensando em maneiras de resolver. — Não
há qualquer tipo de emoção nele. — A situação será revertida e isso deve
ser o suficiente para vocês neste momento.
— Claro que não, Lowe — o Senhor Smith, o único que sei o nome,
diz com sua voz absurdamente grave. — Vai nos dizer agora qual o seu
plano de recuperação. Ninguém sairá daqui enquanto não tivermos essa
informação. Nem você!
Vejo-o revirar os olhos e confesso que gostaria de me enfiar sob a
mesa, tamanha a vergonha. Algum tempo atrás, conversando com a minha
avó, durante uma de nossas tardes regadas a chá, eu entendi que o homem,
que mexe a caneta de um lado para o outro, nunca amou este lugar. A
verdade é que ele gosta do poder, de ter o controle das coisas e fazer o que
bem entender.
— Isso jamais iria acontecer, se Lutz ainda estivesse vivo.
Um grito escapa da minha boca quando Linus Lowe bate com as
duas mãos na mesa, levantando-se de imediato e encarando a mulher idosa,
duas cadeiras para a minha esquerda.
— Meu irmão está MORTO e a empresa é MINHA! QUEM
MANDA NESSA MERDA, AQUI, SOU EU.
A mulher está com a boca aberta enquanto eu estou completamente
congelada no lugar. Já vi muita coisa do homem que ocupa a ponta da mesa,
mas nunca uma reação nesse nível.
— Já disse que não quero escutar o nome do meu irmão aqui dentro,
ou em qualquer lugar que eu esteja — Linus diz, agora em seu tom normal
de voz, como se nada houvesse acontecido segundos atrás. — Como estava
falando, nós temos um plano. Georgina irá visitar um cliente no Brasil,
daqui uma semana, e ficará lá por alguns dias, com o intuito de fechar um
importante contrato para nós. — Olho minha chefe de relance, que está
muito entretida com as próprias unhas. Minha boca se abre, mas com
apenas um olhar do próprio CEO, engulo tudo o que eu poderia falar. —
Um distribuidor ficou interessado em nossas carnes exóticas. É apenas o
começo para o plano de expansão para a América Latina.
Aos poucos, as cabeças vão se virando em minha direção,
aguardando algo que eu tenha para falar. Sou Gerente Financeira, e não
vendedora. Encho o peito para falar que talvez exista algum engano, mas
recuo no último instante.
— Georgina? — A Sra. Mitzy chama a minha atenção. — Quais os
planos que você fez para essa viagem?
— Estou terminando o roteiro e as propostas que irei fazer para o
cliente. Posso compartilhar com todos vocês assim que finalizar. Só não
mostro agora, porque ainda faltam ajustes de preço e alguns impostos que
preciso incluir no valor. Assim que realizar todas as alterações, e tiver a
aprovação da Sra. Gallagher, irei encaminhar a todos vocês. Podemos seguir
assim?
As respostas, apesar de positivas, são desconfiadas. Nunca passei
por algo assim, mas cansei de ver Linus fazer isso com outras pessoas e se
safar. Mais uma vez, pergunto-me o motivo de estar aqui, nessa empresa,
quando podia estar em um emprego muito melhor, ganhando bem mais.
Minha mãe diria que eu estou apegada ao passado, pensando de
forma emocional, achando que, de algum jeito, eu estaria perto do meu
amigo morto… enquanto minha avó falaria que é apenas o meu destino e
que eu devo seguir o fluxo, com um sorriso no rosto.
As pessoas começam a se dispersar e Linus para ao meu lado. Posso
contar nos dedos quantas vezes ele se dirigiu a mim, durante todos esses
anos, e em muitas delas, aconteceu porque não havia qualquer outra pessoa
por perto, além de mim, assim como hoje.
Tudo o que ele precisava sempre era enviado por seu secretário,
fosse por mensagem, durante o horário do almoço, ou até mesmo em um
encontro perto da máquina de café.
— Vou te encaminhar as informações por e-mail.
Nada é dito além disso.
Questiono-me, mais uma vez, por qual motivo eu ainda estou aqui
nessa empresa. Acordando cedo todos os dias, sabendo que milagres não
acontecem. A verdade é que, de algum jeito, me sinto presa a esse local.
Quantas vezes recebi uma proposta de emprego melhor, mas neguei sem
razão alguma?
Junto as minhas coisas e ando apressada em direção à minha sala,
para fugir de qualquer pessoa que queira perguntar mais detalhes sobre a tal
ida ao Brasil. Fecho a porta e peço ao Universo que ninguém venha me
incomodar com essa história, principalmente a minha chefe, porque estou
por um fio de pedir as contas. Inclusive, o que me impede de fazer isso
agora?
Assim que conecto meu notebook à fonte de energia, escuto o
barulho característico me avisando que um novo e-mail chegou à minha
caixa de entrada. Lá está, diretamente do secretário do CEO, meia dúzia de
explicações sobre o que acontecerá na próxima semana.
Srta. Romano, boa tarde.
Você ficará em São Paulo durante duas semanas, com o objetivo de
fechar o contrato com a rede de restaurante de luxo “Santoro”.
As reuniões já foram marcadas e estão em seu calendário. O
material para estudo encontra-se anexo.
O CEO mandou que faça o que for necessário para fechar esse
contrato, caso contrário, ele pede que esvazie sua mesa, assim que voltar.
Qualquer dúvida, estou à disposição.
Atenciosamente,
S.Müller
Secretário da presidência.

Estar em uma mesa de um pub qualquer, no centro de Emerald, com


Austin à minha frente, é um alívio. Antes, de algum jeito, nossa amizade só
existia porque Conrad estava presente, mas, quando ele se foi, entendemos
que seríamos os únicos a dividir aquela dor e então realmente nos tornamos
amigos de verdade.
— Se meus pais ainda tivessem a empresa, certeza de que você teria
um emprego lá — Austin diz, olhando para a tela do meu celular enquanto
lê o e-mail pela terceira vez. — Sabe disso, certo?
Os pais de Austin perderam tudo quando a Lowe começou a demitir
os funcionários e romper contrato com empresas prestadoras de serviço. O
que era uma grande empresa, responsável por lavar todas as roupas dos
funcionários dos três turnos, tornou-se uma pequena lavanderia de bairro.
— Claro que sei — sorrio para o meu amigo, cúmplice —, mas acho
que se eu sair de lá, vou tentar trabalhar com o meu pai.
— Não recomendo trabalhar com família.
Atualmente, o cara à minha frente, toca o pequeno negócio ao lado
da mãe. O pai morreu um pouco depois que a merda toda explodiu. Um
infarto fulminante durante o banho foi o responsável por tirar a vida do
patriarca da família do meu amigo.
— Eu acho que tem uma vaga…
— Não, Gin — ele me interrompe. — Preciso ficar ao lado da Dona
Elza, ela precisa de mim na administração.
Apenas aquiesço, tomo mais um gole da cerveja gelada em meu
copo e Austin me acompanha.
— Quer uma novidade? — ele questiona, desanimado.
— Sempre.
— Minha mãe disse que vai ter uma festa no clube que ela está
frequentando para os solteiros. E advinha? — Ergo as sobrancelhas. — Ela
me inscreveu, na esperança de que eu encontre a minha alma gêmea. —
Austin solta uma risada desanimada.
— Tenho uma fanfic pronta!
— Ah, não, Gin!
— É perfeita! Escute: você chegará lá, então seu olhar vai cruzar
com o dela e vai ser amor à primeira vista; aí sua amada vai comer um
queijo, mas, como ela é intolerante a lactose, terá uma dor de barriga e sairá
correndo. — Seguro-me para não rir da cara de desgosto do meu melhor
amigo. — E a única coisa que ficará para trás é um tênis com chulé. E você
vai atrás de todas as mulheres…
— Chega — ele me interrompe. — Como roteirista, você é uma
ótima administradora de empresa.
— Só quis ajudar. — Dou risada. — Mas quem sabe você não
encontre seu amor nessa festa?
— Achei que não acreditasse nessas merdas — ele diz, amargo.
— Tudo depende do dia. — Levanto o copo de cerveja na direção
dele e nós brindamos. — Minha avó, às vezes, me influencia demais!
— Dona Angelina é engraçada — meu amigo diz. — Será que ela
mudou de ideia e vai ler a borra do café para mim?
— Vale tentar a sorte.
— Você deveria ler para mim!
— Estou mais para ler espuma de cerveja! — Nós damos risada.
— Não seja por isso! — Ele me entrega o copo. — O que você vê
aí, Georgina Romano?
Passo a mão no rosto, fingindo me concentrar nas bolhas que
estouram.
— Você vai encontrar o amor da sua vida na festa — digo com a voz
rouca, imitando uma mulher mística que vi em um comercial, anos atrás —
e ao badalar da meia-noite, ela vai fugir e você só encontrará o seu All Star
surrado e fedido.
— Porra, você é péssima!
— Nunca disse o contrário.
— Essa viagem será do caralho — Austin diz, sério. — Mesmo que
você não feche a porra do contrato, aproveita que tudo está sendo pago.
— Já que eles querem me foder, que ao menos paguem o meu hotel
e todas as minhas despesas.
— É assim que se fala.
Nós brindamos, batendo nossos copos. Tomo um gole generoso de
cerveja, em seguida. Com a cabeça um pouco leve do álcool, deixo que as
frases de efeito da minha avó tomem conta de mim. Talvez essa viagem seja
a oportunidade ideal para colocar a minha cabeça no lugar e, quem sabe,
decidir o que quero da minha vida.
O que eu fiz
Eu vou enfrentar a mim mesmo
Para apagar o que me tornei
Apagar a mim mesmo
E deixar ir embora
(What I’ve done - Linkin Park)

Sentado no ônibus, em direção à Avenida Paulista, observo os carros


parados, enquanto aproveito uma das vantagens do transporte público de
São Paulo: o corredor de ônibus. Sete anos atrás, nesse mesmo horário, eu
estaria de pé, dentro de um trem da CPTM, lutando por um espaço para
manter os dois pés no chão e sonhando com o que, hoje, é a realidade.
Quando cheguei a São Paulo, quase uma década atrás, não fazia
sentido algum a definição de “cidade que nunca dorme”, ainda mais de
alguém que veio de um pequeno país no norte da Europa, mas, hoje,
compreendo bem. Olho o relógio em meu punho, vejo que passa um pouco
das sete horas da manhã e há uma quantidade impressionante de pessoas
entrando e saindo do ônibus, enquanto os ambulantes oferecem capinha
para documento e fones de ouvido que “não” quebram, quando os carros
param no semáforo. Aqui e agora, sou apenas mais um cara na multidão,
com o celular guardado dentro do bolso e um livro sobre liderança em
mãos.
Dou o sinal e, depois de um pouco mais de trinta minutos dentro do
ônibus, desço no primeiro ponto da Avenida Paulista, bem próximo ao
prédio espelhado, que é meu destino final, na manhã desta segunda-feira.
Ajeito melhor a mochila simples nas costas e sigo pelo meio quarteirão de
distância que preciso vencer.
Subo as escadas, entrando na recepção quase vazia, pelo horário.
Cumprimento as poucas pessoas que andam por ali, passando meu cartão na
catraca em seguida. As portas do elevador se abrem, assim que seleciono o
andar que irei, ainda do lado de fora. Gosto de chegar mais cedo, para ter
tempo de ler os e-mails, antes que a correria do começo da semana se inicie
e as reuniões me engulam até o final do dia, quando poderei, de fato,
exercer a função que eu mais amo: chef de cozinha.
Logo na entrada, em alto relevo, está o sobrenome materno que
assumi, assim que pisei no Brasil: Santoro. Não é apenas a minha marca
como chef, mas também o meu recomeço longe de Emerald.
Passo pelas mesas ainda vazias e sigo para a minha sala, no outro lado
do escritório. A claridade, apesar do dia nublado, é o suficiente para que
não haja a necessidade de acender as luzes. A janela, do chão ao teto,
permite que eu veja a avenida, que é símbolo de São Paulo, enchendo-se a
cada minuto.
— Achei que fosse chegar mais tarde hoje. — Viro-me e encontro
meu melhor amigo e sócio, Bernardo, na porta. — É seu rodízio hoje, não?
— Vim de ônibus. — Volto meu corpo em direção à paisagem que se
estende por quilômetros em tons de cinza.
Conhecemo-nos por acaso, em um bar duvidoso na Rua Augusta,
onde eu estava trabalhando para ganhar algum dinheiro que me ajudasse a
pagar o aluguel no final do mês. Tinha conseguido uma grana durante o ano
que morei e trabalhei na Alemanha, mas aquela quantia já estava no fim. O
que eu ganhava como professor de alemão e inglês não era o suficiente.
Lembro-me de que servi bebida para ele e os caras que estavam na mesa,
para depois encontrá-lo jogado, no meio da rua, completamente bêbado e
sozinho. Eu podia ser um fodido da cabeça, mas, ainda assim, não deixaria
alguém no estado que ele estava.
Chamei a porra de um táxi, que comeu todo o dinheiro que eu havia
ganho nas últimas horas, levei o desconhecido até o Hospital das Clínicas e
esperei até que ele tivesse, ao menos, recobrado a consciência. E foi aí que
eu e o cara sentado no meu sofá, agora, viramos amigos.
Bernardo de Andrade, na época, era o cara rico da Zona Sul. Pai
empresário, mãe socialite e ele, um completo fodido. Nossa amizade tinha
tudo para dar merda, mas aqui estamos. Meu sócio, melhor amigo e o único
que sabe o porquê imigrei para o Brasil.
— Você está com uma cara péssima para quem, provavelmente,
transou a noite inteira — meu amigo comenta. — Achei que Milie fosse dar
um jeito em você.
Milena é minha foda fixa há algum tempo já e é algo prático, sem
perguntas ou conversas. Ela chega em casa, tiramos a roupa e eu a faço
gritar, como uma gata no cio. Normalmente, quando eu acordo, ela já foi
embora. Simples e sem nenhum tipo de problema.
— Hoje, faz oito anos que cheguei no país.
Acho que essa informação é mais do que o suficiente para resumir o
meu mau humor. Cheguei até aqui praticamente sozinho, cada um dos meus
movimentos foram calculados na base do ódio. Só há uma única coisa que
ganha o meu sentimento oposto até hoje: estar dentro de uma cozinha.
Só não passei fome, porque Bernardo não deixou que isso
acontecesse. O dinheiro que eu ganhava mal dava para pagar a porra do
muquifo que eu morava, praticamente no meio da favela. E aprender o
português passou a ser mais do que uma necessidade, tornou-se requisito
fundamental para a minha sobrevivência.
Lembro-me muito bem do dia em que decidi que seria alguém e
pararia de chafurdar na autopiedade de ter sido enxotado do meu próprio
país, sem sequer saber o motivo. Resolvi usar a raiva e o ódio que estavam
ali, dentro de mim, alimentei-os com tudo o que eu tinha, e foi quando eu
descobri a minha paixão pela culinária.
Fui atrás de cursos profissionalizantes. Passei a trabalhar em
restaurantes e corri atrás de uma bolsa de estudo, em uma faculdade
renomada, na qual me formei como chef de cozinha clássica, com honras.
Abri um pequeno restaurante e as coisas foram escalando, sem que eu
tivesse uma real noção de onde havia chegado, até o dia em que, já com
Bernardo como sócio, alugamos esse andar inteiro para administrar todas as
unidades do que, agora, era uma rede de restaurantes.
— Você criou o seu próprio império e é o CEO. — Bernardo resume
toda a minha trajetória até aqui, em poucas palavras. — Exatamente como
me disse que iria fazer, quando nos conhecemos.
— Arrogante para caralho.
— Estratégia de autodefesa — ele diz. — Você sente falta de
Emerald?
— Não — respondo, depois de alguns segundos.
De fato, não sentia falta do país, mas sentia saudades das pessoas. De
três, especificamente: Austin, Georgina e minha mãe. No começo, os
sonhos eram constantes, porém, aos poucos, foram parando até que só
restou minha melhor amiga. De tempos em tempos, vinha alguma imagem
de conversas que tínhamos na arquibancada, após um jogo, ou de seu olhar
julgador, quando eu estava fazendo alguma merda apenas para chamar
atenção. No entanto, de todos os cenários, o único que nunca aparecia era o
parque e o balanço, no fim dele.
— Nenhuma curiosidade para saber o que aconteceu? — Bernardo
me traz de volta para o presente.
— A resposta para essa pergunta também é não. — Ajeito a gravata
por puro costume. — Emerald não tem nada para me oferecer. Minha vida
está aqui e é onde pretendo morar até o final dela.
Mesmo que eu quisesse voltar, não poderia. Eu era o assassino do
meu tio e ninguém poderia dizer o contrário. Se ele estava morto hoje, a
culpa foi e continua sendo exclusivamente minha. As palavras que li no
jornal, de uma reportagem que encontrei, ficaram marcadas em minha
memória: “Conrad, herdeiro da bilionária família Lowe, está desaparecido.
O corpo carbonizado encontrado na floresta não é do rapaz e as buscas
continuarão. Foi descartada a hipótese do adolescente ter envolvimento
com o crime”. Eles me inocentarem nunca fez diferença alguma, porque eu
sei a verdade.
— Tenho uma reunião em dez minutos. — Bernardo se levanta. —
Antes que me esqueça, na próxima semana, teremos uma reunião com um
representante de carnes exóticas. O convite já está no seu e-mail.
— Não acho que exista necessidade da minha presença.
— Sei que não gosta de se expor, Conrad, mas você ainda é o chef
dessa rede de restaurantes. — Ele faz questão de me lembrar. — Qualquer
decisão envolvendo a matéria-prima é por sua conta.
— Estarei nessa maldita reunião — digo, a contragosto.
— Que bom, porque não sou capaz de diferenciar uma carne de
coelho de uma de jacaré. — Ele dá de ombros. — Meu negócio são os
cifrões que caem em nossa conta. Inclusive, hoje à noite, não conte comigo
para nada.
— Por quê?
— Estarei muito ocupado, mostrando a cidade para uma inglesa.

Entro pelos fundos da primeira unidade que abri, quando o Santoro


surgiu, anos atrás. Lembro-me de estar andando pelo bairro e encontrar essa
casa por acaso, com a placa de “venda-se” pendurada. Tudo era velho e,
literalmente, estava caindo aos pedaços. E foi em uma conversa, enquanto
jogávamos sinuca, que Bernardo decidiu que iria investir na ideia.
O local, situado em uma das ruas paralelas à Avenida Paulista, do
lado do Jardins, foi comprado. Depois de meses de reforma, a primeira
unidade foi aberta.
— Chef Santoro, com licença. — A recepcionista do restaurante,
Luna, entra com seu habitual tablet em mãos.
— Claro, pode entrar. — De dentro do meu armário, pego o dólmã, a
calça e o avental que irei utilizar e os coloco sobre a mesa. — Algum
problema?
— Não, senhor. A sous chef [5]apenas me pediu para avisá-lo de que
estaremos com a casa em lotação máxima. Inclusive, há um grupo de
executivos que virá e, provavelmente, vai querer conhecê-lo.
Eu evito aparecer, não quero que ninguém saiba quem era o chef por
trás do Restaurante Santoro. Continuo negando entrevistas e todos os meus
funcionários são obrigados a assinar um termo, no qual concordam que
jamais tirarão fotos minhas ou falarão sobre mim. Eu gosto do anonimato e
me sinto seguro na escuridão que ele me traz. As pessoas têm a crença de
que as feridas fecham com o tempo, mas, hoje, vejo que nem todos os
corpos têm a capacidade de se recuperar e eu, provavelmente, sou um deles.
Os pesadelos daquele dia ainda me perseguem. O barulho do tiro, o
corpo caindo ao meu lado e a sensação de morte, quando desmaiei no meio
da estrada. A memória de acordar, completamente desnorteado, dentro de
uma cabana é vívida demais para ser esquecida. Eu havia sido resgatado por
dois senhores que tinham uma fazenda nos arredores. O Senhor e a Senhora
Schmidt me acolheram, mesmo não sabendo quem eu era, e cuidaram de
mim por seis meses, nos quais permaneci mudo por completo. E nas poucas
vezes que precisei falar com eles, escrevi no papel e foi o suficiente.
Trabalhei incansavelmente para eles e, quando estava recuperado, fui
embora, seguindo para a capital da Alemanha.
Viver nas ruas de um país ajuda a conhecer todo o tipo de gente, até
as piores. Principalmente, as piores. Parei no submundo, trabalhei como um
filho da puta, levantei uma grana do caralho. Não paguei apenas com o
dinheiro, mas também com a minha alma.
Fiz o que precisava ser feito e conquistei o big boss[6] das ruas de
Berlim. Fui espião, levei cartas, tirei fotos e juntei cada porra de moeda que
foi entregue, como pagamento pelos meus serviços.
Em uma conversa, o big boss disse que me ajudaria a sair do país e
deu o preço. No dia seguinte, entreguei o saco com o dinheiro que ele pediu
e, semanas depois, um passaporte verdadeiro estava em minhas mãos.
Conrad Santoro existia e lutava todos os dias, para se perdoar pelo
que havia feito naquela maldita noite. Não importava o tanto de tempo que
iria passar, jamais colocaria o pé novamente em Emerald. Como iria encarar
a minha tia? Como olharia para os olhos do meu pai, sabendo que matei o
irmão dele? Não, eu ficaria aqui, do outro lado do oceano.
— Não irei conversar com ninguém — respondo, por fim. — Diga
que a sous chef irá recebê-los. Amanda tem total capacidade de me
substituir nesse caso e, muito em breve, ela assumirá o meu lugar nessa
unidade.
— Claro, chef.
— Mais algum ponto?
— Era só isso mesmo.
Nos últimos tempos, Bernardo vem tentando me convencer a largar a
cozinha e atuar apenas como CEO da Santoro. Porque o correto, para
alguém com o meu cargo, é confiar nos funcionários contratados e
acompanhar o andamento, através dos gráficos gerados e da opinião de
grandes influenciadores. Ele acha que meu lugar é sentado naquela porra de
cadeira de couro, olhando a cidade, metros acima da rua. Exatamente como
ele faz. Não acho que esteja errado, só não faz sentido para mim.
Não me vejo largando a cozinha para ficar, em tempo integral, como
executivo. Meu amor está no meio das panelas, nos barulhos de fritura, do
vapor que sobe de uma panela, que está com o caldo em ebulição. Dos
cheiros que ocupam a cozinha conforme os temperos frescos são cortados
Começo a me trocar, substituindo a roupa social pela vestimenta
esperada de um chef de cozinha. Os sapatos com proteção, as calças largas e
grossas, a camiseta por baixo do meu dólmã branco, com o meu nome
bordado em preto sobre o peito. Amarro o avental na cintura e estou pronto
para encarar as próximas horas, no intenso calor de uma cozinha.
Entro no espaço e a movimentação já é considerável. O restaurante irá
abrir em meia hora e o principal deve estar pronto para os pratos. Temos um
cardápio diferenciado, porque, a cada semana, servimos apenas seis pratos e
três tipos de sobremesas, sendo que todas as receitas são de minha autoria.
— Alguém limpe essa bancada, agora! — digo para ninguém em
específico, ao ver cascas de legumes espalhadas. — Está uma vergonha!
Até mesmo o caos deve ser organizado.
Experimento o caldo, que será usado em um dos risotos da semana, e
peço para que adicionem um pouco mais de alho-poró na composição.
Passo em um por um, dando as instruções necessárias para que tudo seja
executado com perfeição. Eu não admito falhas aqui dentro, principalmente
quando o jogo é para valer.
Conheço cada um dos meus cozinheiros, suas histórias e sei bem do
que eles são capazes, então o que peço não é nada além do que eles foram
contratados para fazer.
Ando de um lado para o outro, grito ordens e checo, um número
incontável de vezes, os pratos que estão saindo. Acompanho Amanda nas
checagens dela e a instruo. De algum jeito, sei que Bernardo está certo,
porque não dá para ser um anônimo quando se é responsável pela cozinha
de um dos restaurantes mais importantes da cidade. A hora de escolher está
cada vez mais perto e não terei como escapar.
— Isso está uma merda! — grito, quando vejo uma das carnes ser
empratada. — Refaçam esse prato agora!
— Sim, chef — respondem, em uníssono.
Odeio os que romantizam o trabalho dentro de uma cozinha. Não há
nada de glamuroso, muito pelo contrário. Enquanto as pessoas comem, nós
trabalhamos sob a pressão constante de entregar uma comida perfeita.
— Ótimo, muito bom — digo, sobre um prato, em seguida. — É isso
que eu espero de vocês.
É assim que eu mantenho minha cozinha e meu império rodando com
mãos de ferro, porque a mesma mão que bate é aquela que também afaga.
Eu consigo ver a dor por trás de seus olhos
Está aí há algum tempo
Eu só quero ser aquele que te lembrou o que é sorrir
Eu gostaria de te mostrar o que o verdadeiro amor pode fazer
realmente
(Let me love you – Ne-Yo)

Paro com o carro em frente ao portão da chácara que foi,


recentemente, reformado e é automático agora. Meu pai fez o trabalho
completo, deixando o mais fiel possível ao que meu avô fez, há mais de
trinta anos, e instalando toda a parte elétrica, para que minha avó não
precisasse mais sair para abrir ou fechar.
Aperto o botão do controle remoto e, segundos depois, consigo entrar.
Estaciono o carro sob a árvore, agora completamente florida em tons de
rosa. Minha avó já está na porta, com o sorriso de sempre no rosto e os
braços abertos, aguardando um abraço apertado.
Ser envolvida pelo calor da minha avó é um dos melhores
sentimentos do mundo.
— Vem, vamos entrar! — Ela me puxa para dentro. — Sua mãe
contou que irá embarcar depois de amanhã, para uma viagem a trabalho.
— Pois é, vó.
— Por que esse desânimo, querida?
— Acho que é muito esforço para nada.
Dona Angelina me olha por alguns segundos, como se fosse capaz de
ver através de mim e chegar até minha alma. Um sorriso brota em seus
lábios.
— Acho que devemos tomar um café.
— Café às sete horas da noite? — Ergo uma das sobrancelhas e ela ri.
— Só um gole não vai fazer mal, querida. — Dona Angelina começa
a me puxar pela mão, em direção à cozinha. — Vamos! E depois, eu
prepararei um jantar para nós duas.
Quando vejo minha avó pegar a xícara branca, entendo o que será
feito a seguir e, como da primeira vez, sinto meu coração disparar no peito.
— Você sabe o que tem que ser feito.
Depois daquele dia, anos atrás, nunca mais minha avó leu a borra de
café para mim. Cansei de ler para as minhas amigas, para as mães delas e
por aí em diante, mas fugi todas as vezes em que a senhora, que pega as
coisas e coloca na bancada ao lado do fogão, fez qualquer menção de olhar
o meu futuro. Só que hoje, por algum motivo, não consigo fugir e nem
mesmo pensar em uma desculpa boa o suficiente, para impedir que a leitura
aconteça.
Faço todo o passo a passo com cuidado e atenção, porque minha
esperança é de que a resposta, do que devo fazer com a minha vida
profissional, seja mostrada ali.
Enquanto mexo o objeto na minha mão, em sentido horário mentalizo
o que preciso saber. Conecto meu coração a esse momento e me percebo
estranhamente frágil aqui, neste local que é meu ponto de equilíbrio.
— Eu sabia que esse momento chegaria — minha avó diz, em um
tom doce quando termino. — Tenho certeza de que você terá suas respostas,
querida.
A verdade é que nem sei por quais respostas estou procurando. Lizzie,
uma das poucas amigas que tenho, disse que todos esses sentimentos estão
muito conectados ao retorno de Saturno, que, de acordo com a astrologia,
começa na minha idade e vai até um pouco depois dos trinta anos. Não sou
uma pessoa que acredita nisso, mas, ainda assim, vou me permitir culpar
um planeta por todo esses questionamentos que estão surgindo e por esse
vazio também, que anda me consumindo aos poucos.
— É difícil sentir falta de algo que nem sabemos o que é, não é
verdade, Gin?
Apenas aquiesço, sem coragem alguma de refutar o que Dona
Angelina acabou de falar. Minha avó sempre teve esse lado místico, essa
capacidade de olhar através, de ver muito mais do que está sendo dito. Não
estou nem um pouco surpresa por ela ser capaz de colocar em palavras algo
que eu jamais conseguiria externalizar.
Acompanho quando ela vira a xícara para cima e começa a olhar os
desenhos que se formaram no pó, que ficou preso nas paredes brancas da
porcelana.
— É, minha querida, a espiral ficou para trás. — Há um sorriso no
rosto da minha avó. — Você se lembra daquela ponte que apareceu? —
Aquiesço. — Então a viagem chegou e ele estará te esperando do outro
lado.
Mesmo tendo passado todos esses anos, lembro-me com uma clareza
absurda de todas as palavras que minha avó proferiu naquela tarde, em
frente à minha mãe. E elas foram, em grande parte, as responsáveis pelas
tantas decisões que tomei e por ter me focado tanto no meu lado
profissional. O lógico nunca tem o poder de nos ferir, enquanto o
emocional... Ah! Esse sim, tem uma capacidade destrutiva incrível.
— Não quero ninguém me esperando — digo, firme. — Não tenho
espaço para um relacionamento na minha vida. Todo mundo sabe que a
minha carreira é a prioridade.
— Está tudo bem, querida. — Minha avó repousa a mão sobre a
minha. — Você é dona da sua vida, pode selecionar o caminho que quiser.
E, independentemente de qual for a escolha, você será feliz.
— Não diz nada sobre o meu trabalho?
— O oráculo nos mostra o que é preciso para o momento em que
estamos vivendo, nem sempre é o que queremos. — Dona Angelina volta a
se concentrar, seu semblante ficando sério. — Vocês enfrentarão muitos
obstáculos, mas sei que valerá a pena, pois o caminho é cheio de luz e amor.
Tomem cuidado com o que parece ser, mas não é, porque as respostas para
o passado estarão nessa caminhada.
— Nada sobre o trabalho?
A senhora mexe o objeto de um lado para o outro, a feição séria e
compenetrada no que está vendo.
— Está intimamente ligado ao seu coração, querida.
Por fim, minha avó deposita a xícara sobre o pires e me olha, o
semblante preocupado. Sua mão pousa novamente sobre a minha e a aperta,
cheia de carinho.
— Não se feche para o amor, Gin.
— Tenho dedo podre para homens, vó. — Dou de ombros. — E isso
ficou bem claro com o meu último relacionamento.
— Minha querida, vou te dizer algo que escutei da minha avó um
pouco antes de conhecer o seu avô: “há pessoas que são viagem, mas não o
destino”.
— Não sei se acredito nesse clichê.
— Depois você me conta, o que acha? Porque, agora, vamos jantar.
Estou morta de fome.
Dona Angelina se levanta e vai até o forno, ligando-o em seguida. Em
poucos instantes, o cheiro de comida caseira toma conta de todo o
ambiente. Foco nisso e jogo, no fundo da minha mente, tudo o que minha
avó acabou de ler. Se fosse possível, passaria o cadeado para, em seguida,
jogar a chave fora.
Coloco minha mala de mão no bagageiro, acima da minha cabeça.
Serão quatorze horas de voo direto, até desembarcar no Aeroporto
Internacional de Guarulhos, no Brasil.
Sento-me na cadeira espaçosa do avião, ao lado da janela. Para essa
bendita viagem fiz apenas duas exigências: que eu fosse e voltasse de
primeira classe e que o hotel fosse o mais perto possível do local onde as
reuniões seriam feitas, para que eu pudesse ir e voltar a pé, sem depender de
motorista.
Confesso que me senti particularmente feliz quando o Sr. Müller foi
obrigado a correr atrás de outro hotel para satisfazer o meu pedido.
Meu celular vibra e vejo que minha chefe acabou de enviar uma
mensagem para o meu telefone particular. Jogo a notificação para o lado e
defino que as mensagens enviadas por ela estarão no modo silencioso pelos
próximos dias. Ela será obrigada a se comunicar comigo apenas pelos
meios oficiais da empresa, porque eu cansei de ser otária na mão daquela
mulher.
Acomodo-me e pego meu tablet de dentro da bolsa, que sempre
carrego comigo, e a caneta para fazer algumas anotações.
Tenho poucas informações a respeito do cliente para o qual vou
apresentar a proposta. Apenas sei que será o COO quem irá liderar essas
reuniões, com o intuito de garantir a melhor escolha para a empresa,
visando um bom negócio e também cuidando para que a operação não seja
afetada. Enquanto o avião não decola, aproveito para fazer pesquisas sobre
o futuro cliente.
Busco no Google informações sobre o C Level[7], mas só encontro
fotos de um dos sócios, que é com quem meus encontros estão marcados:
Bernardo Andrade. Sobre o outro não há quase nada, apenas dizem que é
alguém recluso, que não dá entrevistas e também não aparece em público,
mesmo assinando o cardápio dos restaurantes da rede Santoro.
Busco documentos públicos na internet, mas encontro apenas a
assinatura e o nome do CEO abreviado como C.Santoro. De algum jeito, ele
ganhou na justiça o direito de não precisar expor o próprio nome, por
questões de segurança, de acordo com as informações que consegui obter.
Escuto a aeromoça começar a falar sobre os itens de segurança e as
instruções, em caso de problemas durante a viagem. Olho o horário e
suspiro, são pouco mais de oito horas da noite e devemos decolar em trinta
minutos. Só quero jantar e dormir, para amanhã estar bem o suficiente para
uma primeira reunião, caso seja possível.
Desligo a internet do aparelho, quando o avião começa a se
movimentar pela pista, indo em direção à cabeceira. Ajeito-me melhor,
verificando se estou corretamente presa ao cinto e aguardo.
Por mais que eu tente evitar, penso na conversa que tive com a minha
avó ontem, e é impossível não me relembrar de todos os relacionamentos
fracassados que tive anteriormente. Em todas as vezes acontecia a mesma
coisa: eu me apaixonava, tinha certeza de que seria para sempre, mas depois
de alguns meses, as coisas começavam a desmoronar, e então o fim era
inevitável e a solidão, mais uma vez, se tornava minha fiel companheira
O meu namoro mais longo durou um ano e quatro meses e, bem
provavelmente, porque foi à distância e nos víamos apenas a cada três
semanas, quando ele voltava para visitar os pais e me ver, mas quando achei
que seria pedida em casamento, Ronald me disse que havia conhecido outra
pessoa… e lá estava eu, sozinha mais uma vez. Ele foi a minha última
tentativa e isso já faz uns bons meses. Desde então, o meu vibrador tem
sido o suficiente e me garante bons orgasmos, sem que eu precise passar por
mais um rompimento ou pela frustração com alguém do sexo masculino.
— Srta. Romano, boa noite. — A comissária de bordo se aproxima.
— Gostaria de algo para beber?
— Tem vinho?
— Claro, temos algumas opções: Cabernet Sauvignon, Sauvignon
Blanc e Merlot.
— Pode ser uma taça do primeiro, por favor — digo.
— Em breve, trarei o cardápio da janta para que possa escolher o que
irá querer comer.
— Certo, obrigada.
Minha mãe sempre ficava preocupada quando um término acontecia,
enquanto minha avó, bom, ela abria os braços, acalentava-me e garantia que
isso iria passar, em algum momento. Meu pai apenas concluía a situação
com a típica frase: “ele não era para você”. A verdade é que, talvez,
ninguém fosse para mim. Existiam pessoas que eram frigideiras e não
panelas, e admito que aceitei esse destino assim que Ronald levantou do
pequeno café, no qual estávamos lanchando no sábado à tarde, e sumiu,
para nunca mais aparecer ou mandar mensagem.
Assim que a taça de vinho é colocada à minha frente, dou um gole e
fecho os olhos, respirando profundamente. Volto a olhar para o tablet e abro
alguns documentos que preciso reler, para ter certeza de que as principais
informações estarão na ponta da minha língua, quando chegar o momento.
Janto um salmão ao molho de ervas finas, em meio à leitura, e quando
todas as luzes do avião se apagam, eu opto por deitar a cadeira e tentar
dormir.
Demoro para pegar no sono, mas quando isso acontece, enfim, as
imagens que surgem são desconexas; ainda assim, tem um rosto que me
parece ser familiar no meio delas, mesmo que eu não seja capaz de
reconhecê-lo. Acordo, sobressaltada, com o coração acelerado e uma
saudade que há muito tempo não sinto.
É isso, não serei mais capaz de dormir, até que o avião pouse em terra
firme.

Se tem algo que eu amo quando chego de viagem é poder tomar um


banho longo de banheira no hotel.
O frio de São Paulo, em comparação ao de Emerald, é agradável e
fazia um pouco mais de quinze graus celsius quando saí do avião, algumas
horas atrás. Passar por toda a burocracia foi mais tranquilo do que havia
pensado e o motorista contratado pela empresa para me levar até onde eu
ficaria hospedada já estava me esperando, com a típica placa, na área de
desembarque.
A cidade é completamente diferente de tudo o que conheci,
aproximando-se muito de Nova York. Os prédios altos, as pessoas andando
apressadas e o trânsito completamente caótico. O motorista fez questão de
falar sobre alguns pontos turísticos e, quando ele disse que estávamos na
famosa “Avenida Paulista”, soube que me aproximava de onde eu ficaria
nos próximos dias.
Assim que fiz o check-in, pedi ao concierge que tentasse fazer uma
reserva no restaurante Santoro, para essa noite ainda. Eu precisava estar
preparada para a reunião de amanhã e nada melhor do que conhecer a
culinária do local que usaria as nossas carnes. O modo como uma empresa é
direcionada diz muito sobre os tipos de pessoas que estarão no C Level.
Estou enrolando a toalha no cabelo quando o telefone do quarto toca.
Em poucas palavras, avisam-me que a reserva está confirmada e que o
restaurante me espera às oito horas para jantar.
Escolho uma roupa na mala e faço uma maquiagem leve. Coloco o
casaco por cima e vou para a rua. Há pessoas, de todos os estilos, andando
de um lado para o outro. Uma moça, de cabelos pintados de cor-de-rosa,
passa por mim acompanhada de um rapaz de cabelos verdes e piercings
pelo rosto inteiro. Ao mesmo tempo, um homem engravatado anda
apressado com o celular em mãos.
É uma realidade completamente diferente da que estou acostumada,
mesmo no centro comercial de Emerald. O restaurante fica apenas a duas
quadras e aproveito para olhar com calma as coisas ao redor. É estranho
andar por um lugar em que não tenho a mínima noção do idioma.
Um pouco mais à frente, vejo o letreiro clássico e elegante,
informando-me que cheguei ao meu destino.
Santoro
Não é por acaso que o chef que dá o nome a rede de restaurante esteja
cotado para ganhar uma estrela Michelin. Nunca, em toda a minha vida,
comi algo tão perfeito quanto hoje.
Tudo estava cuidadosamente harmonizado e o atendimento foi
personalizado. Se tudo isso, que me foi apresentado até aqui, refletir o
posicionamento do COO amanhã, então preciso ter ainda mais cuidado
durante a apresentação do nosso produto.
Pago a conta e me levanto para seguir. Fecho melhor o casaco ao
redor do corpo porque, de acordo com o meu celular, a temperatura caiu
mais um pouco do lado de fora.
Um vento sopra, ao mesmo tempo que percebo uma movimentação
do lado direito. Meu cérebro registra duas coisas ao mesmo tempo: a
imagem de um homem saindo pelo que acredito ser um portão lateral do
restaurante e um perfume amadeirado que, há anos, não sinto. Meu coração
dispara. A figura fica parada por um segundo, escondida pelas sombras,
antes de continuar a sua caminhada e entrar em um carro que parece o
esperar.
— Aconteceu alguma coisa, senhorita? — Olho para o lado e,
aparentemente, é o segurança do restaurante.
— Não, nada — respondo. — Boa noite.
É consequência do jet lag.
Memórias consomem
Como se abrissem a ferida
Eu estou me criticando de novo
(Breaking the habit - Linkin Park)

Chegar em casa após uma noite exaustiva no restaurante é algo que


me traz tranquilidade. Peço para a assistente virtual do apartamento acender
as luzes do ambiente e respiro aliviado, por estar sozinho e no silêncio.
O espaço amplo, integrado, permite que eu veja a cozinha à minha
esquerda e a sala à minha frente, estendida de forma que vira um ambiente
só com a varanda. O estádio de um clube brasileiro de futebol faz parte da
minha vista de São Paulo, uma verdadeira selva de pedra.
Apesar do cansaço, minha mente está ligada e cada célula do meu
corpo está acelerada. Caminho até meu quarto, trocando de roupa. Uma
camiseta, um shorts, tênis de corrida, fone de ouvido sem fio e rumo para a
academia, que fica no andar de cima do prédio.
Subo um único lance de escada e encontro o local vazio, como
sempre. Já passa, e muito, da meia-noite e ninguém, além de mim, vem
malhar durante a madrugada. Vou direto para a esteira, ajustando a
velocidade.
E quando dou os primeiros passos da corrida, olhando a cidade que
pisca lá embaixo, a memória do perfume que senti, há uma hora, volta com
força e imagens de anos atrás tomam conta de mim. Até hoje, só conheci
uma pessoa que usasse um perfume que misturava notas cítricas de limão
com a suavidade do jasmim.
De tudo que precisei deixar para trás, Georgina e Austin, sem dúvida,
fazem parte do que foi mais dolorido. Considerei, por incontáveis vezes,
entrar em contato com eles, dizer que estava vivo e que havia recomeçado a
vida longe de Emerald… mas o medo impediu que eu tomasse qualquer
decisão, que pudesse me foder depois ou, até mesmo, colocar a vida deles
em risco, por algum motivo qualquer.
Lembro-me, perfeitamente, de quando abri o envelope pardo e
encontrei nele os meus novos documentos, com um novo sobrenome.
Enquanto checava os papéis, decidi que o melhor que podia fazer era
começar do zero e foi exatamente o que fiz.
Mas, mesmo totalmente ciente de cada decisão tomada, as perguntas
inevitavelmente surgiam: como será que estaria a Gió? Será que, a essa
altura da vida, já estaria casada? E Austin? Presidente na empresa da
família dele? Aumento a velocidade do aparelho, sentindo o suor escorrer
pela lateral do rosto.
Fugir desses pensamentos e do “e se” haviam mantido a minha
sanidade nos últimos anos. Quando penso no Conrad adolescente, sequer
sou capaz de encontrá-lo dentro de mim ou, até mesmo, de me reconhecer
nele. É como se fôssemos duas pessoas completamente diferentes.
Conrad Lowe foi o capitão do time de futebol, um moleque arrogante
para caralho, alguém que acreditou na promessa de que seria o CEO que
iria revolucionar a empresa da família e levaria o império para outro
patamar. Era também o cara que pegava todas as meninas, sem precisar de
muito, apenas um tapa em uma das pernas para ter alguma delas sentada em
seu colo.
Esse cara morreu junto do tio, naquele maldito estacionamento. Há
noites em que eu ainda sonho com isso e acordo gritando, desesperado,
enquanto a voz do meu pai soa em meus ouvidos.
Penso novamente no cheiro que senti e decido que foi uma maldita
peça pregada pelo meu cérebro cansado.
Bato o olho no visor da esteira e vejo que superei a minha marca.
Completei dez quilômetros em quarenta e quatro minutos. Desligo o
aparelho e volto para o meu apartamento, o corpo dolorido pelo esforço,
mas a mente organizada e focada.
Abro a porta e encontro Milena sentada em meu sofá cinza-chumbo,
as pernas abertas, vestida apenas com uma lingerie que não deixa muita
coisa para a imaginação. O sutiã é de um tecido verde profundo, mas
totalmente transparente e a calcinha segue o mesmo padrão.
— Acho que você está muito cansado para mim hoje. — Ela se
levanta, rebolando a bunda enquanto caminha até o sobretudo e o joga por
cima. — Volto quando estiver descansado, Santoro.
Quando ela se aproxima, para passar por mim, seguro-a pelo punho,
juntando nossos corpos.
— Tenho energia o suficiente para foder você, pelo menos, duas
vezes.
— Ótimo, porque é isso que eu preciso — ela diz.

— Não vou participar dessa reunião — digo, pela terceira vez em


menos de cinco minutos. — Você é totalmente apto a tomar as decisões da
empresa, sejam elas quais forem.
— Conrad, estou falando sério. — Bernardo puxa uma das cadeiras à
frente da minha mesa, sentando-se. — É uma decisão importante que
envolve a qualidade de um produto importado, que iremos colocar nos
restaurantes. Não estou falando de uma beterraba ou um chuchu e, sim, de
carne, o principal insumo dos nossos pratos.
Olho para a tela do computador e sequer posso usar a desculpa de
uma reunião qualquer agendada, porque minha agenda tem um intervalo de
duas horas até o próximo compromisso. Provavelmente, foi meu sócio
quem garantiu essa brecha, considerando que disse, na semana anterior, que
participaria junto dele.
— Ok. — Limito-me a dizer. — Só não espere que fique duas horas
dentro daquela maldita sala, quando há várias outras coisas que demandam
a minha atenção.
A verdade não tem relação alguma com outras tarefas, muito pelo
contrário. Não gosto de grandes reuniões, ou aglomerações, nas quais sinto
que estou sendo avaliado e observado constantemente. No começo, parecia
que a qualquer momento alguém se viraria para mim e falaria que eu era o
culpado… e, ainda hoje, parece esse começo.
Foi um acidente, você não é o culpado. Minha mente faz questão de
me lembrar. Recordo-me de ver as capas dos jornais da época estampando
notícias de que a polícia havia fechado a investigação sobre a situação,
concluindo que havia sido um latrocínio, que é definido como um roubo
seguido de morte… mas a verdade é que, se eu não tivesse reagido, meu tio
ainda estaria aqui e, bem provavelmente, minha vida seria completamente
diferente.
— Começaremos em cinco minutos — ele diz, levantando-se e
abotoando o terno. — Será na Sala Um. Está tudo pronto, inclusive, a
representante já chegou.
— De onde a empresa é?
— Não sei. — Ele dá de ombros, já quase fora da sala. — Foi o
pessoal do setor de compras que encontrou a empresa e organizaram tudo.
Eles nos mandaram o material para dar uma olhada, mas confesso que não
tive tempo e, ao que tudo indica, você também não.
— Não é a primeira vez que entrarei numa reunião sem ter lido o
briefing[8]…
— E também não será a última — ele complementa. — Até daqui a
pouco.
Bloqueio meu notebook e vou até o banheiro adjunto da minha sala,
para verificar se estou apresentável o suficiente para uma reunião. Terno
cinza-chumbo, camisa branca e gravata. Algumas pessoas dizem que a
roupa de um cozinheiro é incômodaincomoda, mas nada se compara a estar
vestido com algo que parece estar tão distante da própria essência
atualmente.
Fecho minha sala e sigo pelo corredor. As pessoas me cumprimentam
com gestos discretos e, quando estou passando pela recepção, a caminho do
outro lado do escritório, sinto o mesmo perfume da noite anterior. Ele me
lembra muito de alguém do passado, que usava exatamente essa
fragrância… uma mistura muito específica de limão e flores.
— O senhor precisa de algo?
E, assim como ontem, estou parado no meio do caminho, olhando
para o nada enquanto sou inundado de lembranças.
Uma das recepcionistas está ao meu lado, a feição claramente
preocupada.
— Não, obrigado.
Ela não diz mais nada, apenas dá meia-volta e retorna para o próprio
posto que é atrás do balcão de recepção. Sigo o meu caminho e, mesmo ao
longe, posso ver a movimentação das pessoas ao redor de onde será
realizada a reunião, dentro de alguns poucos minutos.
Como eu esperava, todas as cadeiras estão ocupadas, com exceção da
que me espera. A escolha de um novo fornecedor para carne importada é
sempre algo que merece atenção de toda a empresa, considerando que
haverá uma alteração no cardápio e, por consequência, todos os setores
serão envolvidos.
Sento-me no assento ao lado de Bernardo, que parece estar
concentrado na conversa com Maria Eduarda, nossa diretora de Marketing.
Vejo quando ela deixa escapar um risinho e olho para a televisão, ainda
preta, na qual provavelmente será apresentado o material visual do novo
possível fornecedor em potencial.
Bernardo sempre foi um maldito conquistador barato e, apesar de ter
seus limites muito bem estabelecidos, não há regras quando o assunto é uma
nova conquista. E a mulher, ao seu lado, recém-separada, é sua nova vítima.
Não acreditar no amor é mais uma coisa que eu e meu melhor amigo temos
em comum. Uma boa foda consensual e sem complicações é melhor do que
qualquer relacionamento.
Volto minha atenção para o celular, mas é por pouco tempo, pois o
aumento da movimentação na sala chama a minha atenção. Uma mulher,
que provavelmente é a representante do cliente, entra na sala e uma
sensação estranha de reconhecimento me percorre. Ela é claramente mais
alta do que a maioria. Os cabelos escuros estão um pouco abaixo dos
ombros, os olhos são claros, mas não consigo distinguir a cor. A boca está
pintada de um vermelho-escuro, que mostra sua confiança no que veio fazer
e, quando ela sorri, todos os homens ao redor param para olhar.
Ela usa uma camisa preta social, com um decote em V, profundo o
suficiente para atrair meu olhar ao pingente delicado, que fica em seu colo.
Não consigo obrigar meus olhos a pararem a inspeção, que chega à saia
lápis bem ajustada ao corpo. As pernas longas, cobertas por uma meia calça
sexy, e o scarpin preto, de saltos finos, deixam muito para minha
imaginação e isso é sempre perigoso demais.
O perfume que toma conta da sala, e dos meus sentidos também, é o
mesmo da noite passada, assim como o que estava na recepção agora há
pouco.
Travo o maxilar, incomodado com a reação involuntária do meu
corpo. Só a possibilidade de perder o controle me aborrece. Remexo-me,
incomodado na cadeira, olhando o relógio para verificar o horário.
— Qual o nome dela? — pergunto baixo, e Bernardo me olha com
uma interrogação no olhar. — Da representante da empresa.
— Não sei — ele diz. — Lembra-se de que eu também não vi o
material?
Ela tem alguma coisa que me é familiar, apenas não consigo saber
exatamente o quê. Tento não ficar encarando, mas é difícil. Tento desviar o
olhar, para no segundo seguinte, estar focado outra vez.
— Bom dia! — Ela se levanta. — É um enorme prazer estar aqui com
vocês hoje. Meu nome é Georgina Romano e estou aqui representando a
Lowe…
Como se tivesse entrado em um aquário, sou incapaz de escutar
qualquer coisa que vem a seguir.
Passo as mãos sobre os olhos e pisco várias vezes, porque é
impossível que seja ela à minha frente, mostrando o logo da empresa da
qual, um dia, eu seria o CEO, de acordo com os planos do meu tio. Sua
boca se mexe, mas não consigo entender palavra alguma que é dita em seu
inglês perfeito e, praticamente, sem sotaque.
Tento encontrar a menina que foi minha melhor amiga, mas não há
mais resquícios da Georgina adolescente na mulher linda e confiante que
fala na frente de, ao menos, dez executivos. Seus gestos graciosos, agora,
apresentam algo e reconheço a foto do meu pai, estampada na tela e o título
de CEO em negrito, logo abaixo de seu nome.
É uma descarga de emoções que não consigo entender. Meu cérebro
parece sofrer uma espécie de curto-circuito e toda a noção de realidade está
estranhamente distorcida. As paredes se fecham sobre mim e, dentro do
meu peito, o coração está disparado, como se quisesse encontrar um jeito de
sair.
Obrigo-me a respirar fundo e conter a ânsia, que traz um gosto
amargo à minha boca. Conheço bem essa sensação: é um maldito ataque de
ansiedade.
— O que está acontecendo? — Bernardo me cutuca, trazendo-me, por
um momento, de volta ao presente.
Levanto-me, pegando todos de surpresa. Estou sem nenhum tipo de
condição de me manter dentro da sala, preciso me afastar.
Pela primeira vez, desde o momento em que a apresentação começou,
os olhos de Georgina caem sobre mim, mas não encontro aquela luz de
reconhecimento por parte dela, apenas a confusão estampada em seu
semblante bonito. E o que eu experimento é um misto de alívio e mágoa.
Como pode sentimentos, que são completamente antagônicos, estarem me
habitando ao mesmo tempo?
Saio da sala sem falar nada, nem mesmo uma única palavra. Apresso
meus passos em direção ao meu escritório, precisando pegar minhas coisas
e sair daqui, antes que a merda toda desabe sobre a minha cabeça.
Ninguém, além de mim, precisa lidar com essa merda.
Chego ao final do corredor, do lado oposto e entro na minha própria
sala, batendo a porta, em seguida. Pego minha mochila, coloco o notebook
lá dentro e a fecho com pressa. Vou precisar dar uma maldita explicação,
mas, definitivamente, não será agora.
— Você está bem?
Não fui rápido o suficiente, para sair antes de Bernardo chegar. Ele
me encara com as sobrancelhas arqueadas, querendo uma resposta, e sei que
não poderei ser evasivo.
— Não podemos fechar negócio com a Lowe.
— A Srta. Romano apenas começou a apresentação. É muito cedo
para recusarmos qualquer proposta, até porque não temos nenhum motivo
para isso.
— Eu tenho, pode acreditar.
— E qual seria?
— Santoro é o sobrenome da minha mãe — digo para o meu sócio. —
Antes de vir para o Brasil e conseguir os novos documentos, meu nome
completo era Conrad Santoro Lowe… e é por esse maldito motivo que te
digo que não podemos ter nada com essa empresa.
Fotografias em tons sépia, está tão parado
O fogo mal está lutando contra o frio, sozinho
Tem hora que eu posso sentir seu fantasma
Justo quando estou quase te deixando ir
(Overpass Graffiti - Ed Sheeran)

Estou deitada na cama, olhando Lizzie pela tela do celular. Ela está
em seu momento skin care matinal enquanto eu só preciso tomar um banho
e dormir, porque o jet lag está me matando.
— O cara saiu da reunião sem dizer nada?
— Exato — confirmo. — Ele ficou me encarando o tempo todo e,
assim que terminei de apresentar a empresa, simplesmente se levantou e foi
embora.
— Mas e aí?
— Eles remarcaram para amanhã. — Dou de ombros. — Não deram
explicações, apenas pediram desculpas e encerraram a reunião. Mas, para
ser sincera, não acho que esse cliente vá fazer uma grande diferença para a
Lowe. O rombo é grande demais!
— Então para que todo esse esforço? — minha amiga questiona,
enquanto passa um creme no rosto. — Numa dessas, eu pegava as minhas
coisas e iria embora. Inclusive, já fiz isso.
— A diferença é que a empresa da sua família pode escolher os
clientes, enquanto a Lowe precisa implorar por eles.
— Já cansei de dizer que não sei o que está fazendo lá. — Ela bufa de
indignação. — Você poderia trabalhar em qualquer lugar que quisesse,
inclusive na empresa dos seus pais, mas não… fica aí, se prestando a isso.
Chega a ser humilhante.
A verdade é que eu detesto admitir que o mundo está certo a respeito
de mim mesma. Apeguei-me à empresa, como se fosse meu bote salva-
vidas, como se fosse o remédio do qual preciso para lidar com o luto pelo
meu melhor amigo.
Entrei na Lowe logo que terminei a faculdade e era como se tudo
fosse se resolver. Minha meta era dar o melhor de mim para que, de algum
jeito, eu pudesse estar fazendo algo que Conrad não pôde. E, com o passar
do tempo, apenas me acomodei e não percebi que fui me quebrando aos
poucos, entrando em uma porcaria de depressão, da qual só tive ciência
meses atrás, quando criei coragem e busquei um profissional, para me
ajudar.
Nunca é apenas um aspecto da vida que nos enfia em um buraco
escuro e frio… eu tinha uma família incrível, com pais que se amavam e eu
estava sozinha, com vários relacionamentos fracassados para a conta. No
final, a borra do café nunca mentiu para mim: eu viveria em solidão. E,
contrário do que minha avó disse dias atrás, minha solidão será eterna, não
irá acabar, como o oráculo profetizou.
— Planeta Terra chamando Georgina! — Pisco algumas vezes. —
Escutou alguma coisa do que eu falei, nos últimos cinco minutos?
— Não — respondo, sincera. — Estou com muito sono! Detesto esse
período de adaptação… tudo parece estar errado e a única coisa que desejo
é uma cama quente e macia.
— Tá bom. — Ela revira os olhos. — Mas, antes de desligar, esqueci
de perguntar uma coisa muito importante.
— O quê?
— O louco… — Aquiesço. — Como era mesmo o nome dele?
Santiago? Savegnago?
— Santoro — corrijo.
— Ao menos, era hot ou só maluco mesmo?
Eu teria que ser cega para não olhar o homem, sentado à ponta da
mesa, com o semblante sério que beirava á indiferença. Os cabelos
castanhos, bem cortados. Os olhos escuros, que eu chutaria serem pretos. A
barba rente, de quem acordou e deixou para fazer somente no dia seguinte.
— Padrão — respondo.
— Isso não diz muita coisa. — Lizzie torce a boca. — Sempre te
descrevo um homem bonito quando vejo.
— Amanhã, vou reparar melhor, prometo! Agora, preciso mesmo
dormir.
Jogo o celular ao lado quando, finalmente, consigo me despedir dela.
Se deixar, ainda levaremos mais meia hora de conversa, depois do primeiro
“tchau”.
Deixo minha cabeça afundar no travesseiro, olhando para o teto,
impecavelmente branco do hotel luxuoso, no qual estou hospedada. O tal do
Santoro é bonito o suficiente para me fazer pensar em um homem e sentir
alguma coisa, depois de tanto tempo.
O último cara com quem eu transei, meses atrás, foi uma bosta e tive
que dar razão a Austin quando, uma vez, ele me disse: “depressão pós-gozo
é a pior coisa do mundo… você descobre que uma punheta teria resolvido
tudo”. O foda é que nem gozar eu tinha conseguido, de tão merda que havia
sido, e, desde então, meu vibrador, ou até mesmo meus dedos resolveram
muito bem o meu problema.
Só que hoje, quando eu vi aquele exemplar do sexo masculino
entrando na sala, a primeira coisa que veio na minha cabeça foi “eu daria
fácil para esse homem”. Naquele momento, sequer fui capaz de me
reconhecer, porque não me lembro de ter pensado assim algum dia.
Lembro-me ainda de ter olhado para o tal do Bernardo, COO da Santoro
para comparar. Era bonito? Maravilhoso, mas, ainda assim, não me causou
esse tipo de sensação. Santoro aqueceu meu corpo inteiro somente com um
olhar.
Precisei lutar para me concentrar no slide que aparecia na televisão,
em vez dos olhos escuros que não desgrudavam de mim, e isso aconteceu
até o momento em que ele se levantou e saiu da sala, sem nenhum tipo de
explicação. Foram segundos de silêncio completo, até que alguém dissesse
que seria necessário remarcar aquela reunião, para o dia seguinte.
Apago a luz e continuo na mesma posição, esperando que minha
mente vaguei para longe, mas o aviso da minha avó, dado um par de dias
atrás, ecoa.
***
Já estou com tudo pronto, apenas aguardando a reunião começar.
As pessoas vão chegando aos poucos, ocupando as cadeiras ao longo
da mesa. Elas cochicham na língua nativa, o que impede que eu
compreenda o que está sendo dito, mas, pelas feições, estão todas tensas.
Determinadas expressões faciais são universais, ainda mais no mundo
corporativo.
Remexo-me na cadeira, incomodada. O relógio indica que ainda
faltam cinco minutos para o horário marcado, mas isso não ameniza a
ansiedade de ver as duas cadeiras, no lado oposto, ainda vazias.
Acompanho, através do vidro fosco, duas figuras altas caminharem. E
o CEO e o COO entram, ainda conversando e se dirigindo ao fundo. Apenas
Bernardo olha para mim e acena com a cabeça, cumprimentando-me com
um sorriso cortês. O tal Sr. Santoro apenas ocupa seu lugar, seus olhos
escuros finalmente encontram os meus e um arrepio percorre a minha
espinha.
— Posso começar, senhores?
Todos aquiescem.
E quando, enfim, assumo o controle da situação, o nervosismo se
esvai e começo a fazer a apresentação com a tranquilidade de quem
conhece cada detalhe da empresa. Andando de um lado para o outro,
utilizando ferramentas visuais, pequenos vídeos de apresentação e dados a
respeito da Lowe, vou construindo a história dos motivos pelos quais a rede
Santoro deve nos ter como seu fornecedor de carne exóticas.
Enquanto eu falo, desligo a parte do meu cérebro que parece querer
me lembrar da real situação por baixo dos panos. Mas, como escutei em um
curso uma vez, um bom vendedor é aquele que sabe dizer a verdade, de um
jeito que vá agradar o cliente, por pior que ela seja. Tudo na vida pode ser
dito, desde que a gente saiba como irá dizer.
Distribuo o material impresso para todos os presentes e respondo com
tranquilidade a todas as perguntas levantadas, sabendo que estou sendo
avaliada em cada palavra usada, cada gesto feito. Bernardo Andrade é o
único que interage comigo, fazendo alguns questionamentos a respeito da
importação das peças e sobre o processo dentro da vigilância sanitária no
Brasil.
O homem me agradece e eu retribuo com um sorriso, que rezo para
que não esteja parecendo forçado. Meus olhos, inevitavelmente, passam
pelo CEO e ele está do mesmo jeito como quando comecei a apresentação:
a atenção focada no pequeno aparelho em uma de suas mãos.
É a primeira vez que algo assim acontece? Não, mas é a primeira que
me sinto estranhamente irritada. Não sei se as pessoas percebem, porém sou
enchida de perguntas o suficiente para não conseguir prestar atenção em
outras coisas. E quando, por fim, após uma hora e meia, finalizo a
apresentação e a reunião, o Sr. Santoro levanta o rosto e me encara, com a
mesma expressão impassível de ontem.
Ele se levanta devagar, parecendo ser mais alto do que realmente é.
Olha para o relógio, aperta alguma coisa e, por fim, volta a me encarar.
— Não faremos negócio com vocês. — Há algo de muito familiar na
voz grossa de Santoro. — Bernardo, precisamos conversar.
O tempo que levo para entender o que ele acabou de falar é o
suficiente para fazer com que o CEO saia da sala, acompanhado do sócio.
As pessoas olham uma para as outras e a irritação, que já estava me
cutucando, agora se soma com a indignação, por ter sido tratada com tanto
desrespeito.
Nunca, em toda a minha vida, havia sido tratada com tanta
indiferença. De forma mecânica, vou juntando tudo na minha mala. O
notebook no compartimento próprio, os cabos na lateral e o mouse logo à
frente.
Ninguém se aproxima, apenas acenam, conforme vão saindo.
Não, isso não vai ficar assim.
Eu quero que se foda se serei demitida, se nunca mais conseguirei a
porra de um emprego. Não me importo com a merda do que pode acontecer.
O fato é que esse cara, seja ele quem for, não tem o direito de me tratar
assim.
Vim da porra de outro país, horas dentro da merda de um avião e o
mínimo que espero é ele ter educação. E só porque é a merda do CEO, de
uma rede de restaurante de luxo, acha que pode tratar as pessoas dessa
maneira? Não, nem fodendo e vou mandar o ditado da minha mãe sobre o
Universo fazer justiça para a puta que pariu também, porque, no momento,
a justiça sou eu mesma.
Deixo a mochila de lado e saio apressada. Talvez, o cosmo esteja
girando a meu favor, porque, lá no final do corredor, vejo o arrogante entrar
por uma das portas, após se despedir do Sr. Andrade.
Passo em disparada pela recepção, que fica no meio do caminho, e
uma das moças vem atrás de mim.
— Srta. Romano, não pode ir nessa direção!
E existe uma grande diferença entre poder e querer, mas, no
momento, bater de frente com aquele homem é tudo o que desejo. Ele é tão
arrogante que não repara em nada e entra no que acredito ser a própria sala.
— Quem você pensa que é para me tratar dessa maneira?
Santoro não parece nem um pouco surpreso em me ver dentro da sua
sala, muito pelo contrário, ele até parecia estar esperando por algo assim.
— Sr. Santoro, me desculpe! — Uma das recepcionistas entra logo
atrás, o rosto lívido. — Não consegui segurá-la. Devo chamar a segurança?
Olho com indignação para a mulher, que fez questão de fazer a
pergunta em inglês. Quando abro a boca para responder, vejo o homem à
minha frente negar com a cabeça.
— Não precisa se preocupar — ele diz. — Feche a porta quando sair,
por favor.
A mulher não discute, apenas dá meia-volta e faz exatamente o que
ele acabou de mandar. Parece que essa interação entre os dois, como se eu
não estivesse presente, apenas serviu para aumentar a minha raiva.
— Eu quero que se foda o seu cargo — digo, tentando controlar a
raiva que borbulha dentro de mim —, porque nada te dá o direito de me
tratar com tanto desprezo e falta de educação.
— Dinheiro, status e mulheres. O que mais eu poderia querer?
Eu já escutei essa frase, mas foi há muitos anos. Uma espécie de caixa
de Pandora parece ter sido aberta dentro de mim.
As palavras vão sendo processadas pelo meu cérebro e uma enxurrada
de lembranças me atinge. Pisco algumas vezes, encarando o homem à
minha frente. E então a confirmação de que eu conheço aqueles olhos
escuros caem sobre mim, como uma bomba, e cambaleio até me sentar no
sofá.
Aos poucos, vou reconhecendo os traços. De um jeito diferente, estão
todos ali. A boca bem desenhada, o queixo quadrado, a cicatriz logo acima
da sobrancelha esquerda, devido ao choque com um jogador de futebol
durante uma partida amistosa, que arruinou uma das minhas blusas de frio
favoritas ao tentar estancar o sangue.
É ele e eu não tenho nenhuma dúvida quanto a isso.
Santoro dá um passo em minha direção, mas estendo a mão, fazendo
o gesto universal para que não se aproxime. Não pode ser verdade! Abro e
fecho a boca uma, duas, três vezes… mas nenhum som sai. Devo estar
sonhando, ou, quem sabe, tendo um pesadelo.
Meu melhor amigo está morto. Seu corpo, de acordo com todos os
veículos de notícia, nunca foi encontrado porque, provavelmente, está
perdido em algum lugar, no meio da floresta. O que estou vendo é uma
aparição, um fantasma ou, até mesmo, uma alucinação. É isso… estou tão
cansada que meu cérebro deu um curto e agora está travado em um mundo
paralelo.
Sinto-me estranha, o corpo parece estar cada vez mais pesado.
Obrigo-me a piscar, mas a minha visão não melhora e tudo ao meu redor vai
ficando cada vez mais escuro, até que, por fim, meu corpo cede e eu desligo
completamente.
Não é sua culpa eu estragar tudo
Não é sua culpa que eu não sou o que você precisa
Amor, anjos como você não podem voar para o inferno comigo
Eu sou tudo o que eles disseram que eu seria
(Angels like you - Miley Cyrus)

Tudo acontece em câmera lenta, diante dos meus olhos. O joelho da


mulher à minha frente bambeia. Seu braço, que até instantes atrás estava em
riste, agora cai ao lado do corpo. Não tenho muito tempo para pensar,
porque Georgina desfalece diante dos meus olhos.
Não sei como, apenas consigo vencer a distância e impedir que ela
colida diretamente com o chão. De um jeito completamente desengonçado,
consigo colocá-la de volta ao sofá, deitando sua cabeça sobre uma das
almofadas decorativas.
A porra do passado voltando para me assombrar e, para me foder de
vez, está bonito para caralho.
Trabalhar no submundo de Berlim me obrigou desenvolver a
capacidade de manter a calma, mesmo diante do caos. Perdi as contas de
quantas pessoas precisei acordar após desmaiarem, devido ao tratamento
recebido.
Busco ao redor algo com um odor mais intenso e me recordo do
perfume que mantenho em meu banheiro. Em poucos segundos, estou com
a embalagem sob o nariz de Georgina. O resultado é quase instantâneo.
Até cinco minutos antes de começar a merda da reunião, não sabia se
iria aparecer ou não, mas, por fim, a curiosidade de ver a mulher, que foi
minha melhor amiga, novamente venceu qualquer barreira. E quando
percebi, estava caminhando em direção à sala onde ela falaria sobre a Lowe
e me obrigaria a trazer à tona, mais uma vez, tudo o que eu tento enterrar,
desde o dia em que coloquei os pés no Brasil.
Observo quando Georgina se senta, a feição completamente confusa.
Como ela mudou! Transformou-se por inteiro… deixou de ser a garota, que
tenho em minhas lembranças, para ser a mulher estonteante que está à
minha frente.
Quando sua atenção foca em mim, seus olhos se arregalam e ela
coloca a mão sobre o coração.
— Conrad? — pergunta, a voz trêmula.
Faz tanto tempo que ninguém me chama pelo nome que é até estranho
escutá-lo. Ela me encara, com seus olhos grandes e vivos.
Confirmo, fazendo um gesto afirmativo com a cabeça. Georgina se
ajeita melhor, assumindo uma postura mais ereta. Em algum momento do
passado, até me permiti imaginar como seria se um dia eu encontrasse
alguém do passado, mas jamais pensei que fosse realmente ocorrer.
— Você não está morto. — Não é um questionamento e, sim, uma
afirmação.
— Definitivamente, não.
Ela abre a boca e fecha a boca algumas vezes. Por fim, decide se
levantar, aproximando-se. A atenção completamente focada em mim.
Acompanho uma de suas mãos se erguer e pousar sobre o meu rosto, mas
ela se afasta no mesmo momento, como se tivesse levado um choque.
Existe uma grande chance de termos sentido a mesma coisa, porque o
local em que seus dedos estavam, segundos atrás, está quente.
— Caralho, é você mesmo — ela murmura.
— Sim.
E o que vem a seguir me pega totalmente desprevenido. Georgina me
envolve com os seus braços e me aperta contra si. E eu percebo que talvez
eu não ganhe um abraço pelo mesmo tempo que não escuto meu nome.
Ela me abraça mais forte, trazendo-me de volta para a realidade. Gió
está aqui e isso é a realidade. E então sou capaz de retribuir. Sinto seu corpo
se sacudir um pouco e posso escutar fungadas leves. Minha amiga está com
o rosto encaixado entre a curva do meu pescoço e meu ombro.
Apoio meu queixo em sua cabeça, respirando fundo e então ligo os
pontos. O perfume que senti dias atrás, saindo do restaurante, era o da
minha amiga. O destino, esse filho da puta do caralho, gosta de pregar
peças.
Quando vemos uma pessoa todos os dias, não reparamos nas
pequenas coisas, nos gestos ou, até mesmo, nos cheiros… mas quando isso
some, de um dia para o outro, você se pega desejando sentir aquilo que te
traz a sensação de lar, de segurança. O Conrad de dezessete anos nunca
parou para prestar atenção nesses pequenos detalhes e, só quando os perdeu,
deu-se conta do quanto eles faziam falta.
Tantas coisas passam pela minha cabeça. Uma quantidade infinita de
perguntas, de querer saber tudo em poucos segundos, mas eu não posso
entrar nessa armadilha. Porque querer saber seria dar um passo em direção a
uma estrada para a qual virei as costas há muito tempo.
Georgina se afasta e passa as mãos embaixo dos olhos vermelhos,
limpando as lágrimas que escorrem. Se eu tivesse um chute para dar,
arriscaria que ela está tão sobrecarregada de pensamentos como eu.
— Alguém sabe que está aqui?
— Não, ninguém.
— Nem seus pais? — ela pergunta, em um fio de voz.
Apenas nego com a cabeça.
— Austin não vai acreditar quando eu contar a ele!
Gió abre o primeiro sorriso desde que nos vimos, e eu me recordo de
quando meu melhor amigo, na época da escola, disse que havia percebido
que estava apaixonado por nossa amiga quando ela havia sorrido para ele,
depois de uma piada idiota.
— Não conte a ele. — Ela ergue as duas sobrancelhas. — Por favor!
— Por quê, Connie?
Nenhuma outra pessoa já me chamou por esse apelido, além de
Georgina, e, por um momento, parece que o tempo não passou. Vejo-me
sendo jogado para o passado, tempo no qual minha preocupação era
conseguir o máximo de atividades possíveis para estar longe de casa, ou dar
um jeito de me enfiar na casa de Austin e ficar lá o máximo de tempo
possível.
Dou meia-volta, indo em direção à janela. Ela jamais entenderia todos
os meus motivos para ficar longe. Se soubesse de toda a verdade, não me
olharia dessa maneira.
— Bom, vou te dar um tempo — ela diz, quando o silêncio se torna
incômodo. — E respeito a sua vontade.
Observando-a, me obrigo a fazer um exercício rápido de empatia.
Surpreendo-me ao notar que, se a situação fosse o contrária, talvez eu
estivesse completamente surtado nesse momento, mas Georgina, não. Ela
está relativamente tranquila, apesar do rosto vermelho pelo choro.
— Obrigado.
— Posso fazer uma pergunta?
Volto a me aproximar e apenas aquiesço. Não estou mais acostumado
a manter conversas assim… íntimas. O máximo são as que mantenho com
Bernardo, porque ele não me dá alternativa. Sou capaz de manter um
diálogo no âmbito profissional por horas, mas totalmente incapaz quando
entra na esfera pessoal.
— Posso? — ela questiona novamente.
— Claro.
— Por que “Santoro”?
De todas as perguntas que ela poderia fazer, essa é, com certeza, a
mais tranquila de responder. É navegar em águas seguras, nas quais posso
dizer sem ter que tomar cuidado em expor algo que não devo. Nunca, desde
que coloquei os pés nesse país, senti-me tão alerta quanto agora.
— É o sobrenome de solteira da minha mãe — respondo
simplesmente. — Pareceu ser um bom jeito de recomeçar.
Falei mais do que ela perguntou, o que parece deixá-la contente, mas,
no instante seguinte, sua expressão muda e ela parece ficar deslocada,
olhando ao redor.
— Connie, eu preciso ir embora. — Gió passa as mãos sobre os
cabelos — Sabe, foi muita informação… ainda tenho que trabalhar. Enfim,
preciso respirar um pouco.
— Te levo até o hotel.
— Não precisa — ela fala no mesmo instante. — É perto e posso ir a
pé, sem problema algum.
— Faço questão.
— Você deve ter seus compromissos e não precisa se incomodar.
— Tenho mais uma hora, até a próxima reunião. — Vou até a minha
mesa e pego o celular, colocando-o dentro do bolso. — Vamos lá, te
acompanho.
— Connie…
— Vou ficar mais tranquilo ao saber que estará segura.
— Tudo bem, só preciso pegar as minhas coisas na sala de reunião —
ela diz.
— Sem problemas, estarei te esperando na recepção.
Gió sai na frente, quase correndo na direção oposta, e eu apenas a
observo. Apesar de ser uma calça social, ela está bem ajustada ao corpo,
dando noção das pernas longas que estão sob o tecido preto. A camisa cinza
deveria deixá-la sem graça, mas o que acontece é tudo, menos isso.
Ontem, antes que soubesse quem ela é, eu a olhei de cima a baixo e,
caralho, nunca vi uma mulher tão sexy quanto ela, ou talvez nunca tenha
reparado o suficiente nas outras. Milena é gostosa, mas eu não enxergo nela
o mesmo que vi ontem em Georgina.
Amiga.
— Está de saída? — Bernardo parece confuso. — Precisamos acertar
alguns detalhes antes da próxima reunião, e faltam — ele olha para o
relógio no punho — uma hora.
— Volto em pouco tempo — respondo, sucinto.
Ele olha em direção à recepcionista, que parece estar muito
interessada na página inicial de um jornal qualquer, tão absorta que a
propaganda está ocupando metade da tela, mas, mesmo assim, ela não faz
nada.
— Pela primeira vez, é você o centro das fofocas aqui nessa empresa
— Bernardo comenta em alemão, com um sorriso cínico no rosto. — Esses
corredores ficarão agitados nos próximos dias.
Odiava pensar que as pessoas iriam especular sobre a minha vida,
mas, neste momento, não há como evitar.
— Sempre me questiono como isso nunca aconteceu com você.
— Conheço as pessoas com quem me envolvo… — Somos
interrompidos pela chegada de Georgina. — Nós vemos por aí, Srta.
Romano.
— Humm… certo — Ela responde, no mesmo idioma, claramente
confusa. — Vamos?
Indico o caminho do elevador e aguardamos em silêncio, até escutar o
aviso de que podemos entrar. É uma situação esquisita, que quase beira o
constrangimento. Somos dois estranhos que, ao mesmo tempo, se
conhecem.
— Achei que seu sócio fosse brasileiro. —Ela quebra o silêncio.
— E é.
— Então a conversa em alemão era somente para ninguém saber o
que estavam falando?
— Exatamente.
O vento frio da manhã bate contra o nosso rosto, assim que saímos do
prédio. O céu está nublado e não duvido que a famosa garoa de São Paulo
caia sobre a cidade, até o fim do dia.
Atravessamos a avenida, que, a esse horário, ainda não está tão cheia.
— Você fala muito bem português… quase não tem sotaque.
— Confesso que faz alguns anos que já até sonho em português —
admito. — Outro dia, encontrei um alemão em um evento e, quando
precisei falar, notei que tinha me esquecido de algumas palavras.
Caímos em um silêncio incômodo mais uma vez, porque sei que
qualquer pergunta que eu faça será como abrir uma comporta. E não apenas
de dúvidas e curiosidades, mas para tantos outros aspectos, que evitei olhar
por todos esses anos.
Sinto como se estivesse sob uma nuvem densa, que ameaça a chover a
qualquer momento soltando raios e trovões, com a certeza de que o
resultado será catastrófico não apenas para mim, mas para Georgina que
segue caminhando ao meu lado.
— Talvez eu não devesse voltar para Emerald, então — ela diz, por
fim. — Aqui parece ser um bom lugar para morar, considerando que foi
aqui que se refugiou.
— Como todos os lugares, tem prós e contras — digo. — Mas aqui
tem uma coisa que até então eu desconhecia: calor humano. — Ela me olha
de esguelha. — É meio estranho no começo, mas, com o tempo, você se
acostuma e até mesmo sente falta. As pessoas se preocupam com as outras
aqui.
— Notei isso. — Georgina ri. — As recepcionistas me
cumprimentaram com um beijo e me perguntaram se eu estava bem.
— Gió, sei que… — Ela ri e vejo um brilho diferente em seus olhos.
— O que foi?
— Nunca pensei que, um dia, voltaria a ser chamada assim. — Vejo
que ela trava os lábios, enrugando-os em um bico. — Você sabe…
— É muito para assimilar — completo e ela aquiesce.
— Me sinto anestesiada agora, como se fosse acordar a qualquer
momento e… — Sua voz embarga mais uma vez. Noto como seus ombros
se mexem e sei que está respirando fundo. — Caramba…
Ela sobe um lance de escadas, entrando em um dos hotéis mais
conhecidos da região da Avenida Paulista, e eu a acompanho. Paramos no
meio do saguão e sei que o próximo passo precisa partir de mim, porque, de
alguma maneira, eu me revelei para ela.
— Quando você for dar o report, diga que ainda estamos avaliando
— digo, sem entender o porquê meu coração resolve acelerar. — Fale que
precisará ficar mais alguns dias no Brasil, enquanto deliberamos a respeito
da decisão.
— E isso é verdade? — Ela me encara e trava a boca, por saber qual é
a minha resposta. — Não posso fazer isso, Connie. É errado com a empresa
e…
— Janta comigo essa noite? — eu a interrompo, sem pensar.
Ela pisca algumas vezes, tentando entender a repentina mudança de
assunto.
— Hoje?
— Sim.
Ela parece considerar, por um momento, se retoma o assunto anterior,
mas por fim vejo que ela apenas balança a cabeça. Por hora, parece ser algo
a ser deixado para lá.
— Vou poder saber um pouco sobre a sua vida? — Georgina ergue as
sobrancelhas em desafio, colocando-me contra a parede. — Porque se for
para falar sobre o tempo de São Paulo, com alguém que não vejo há dez
anos, prefiro ficar no hotel.
— Vamos conversar de verdade, Georgina Romano.
— Olhe só, ele ainda sabe sorrir.
— Às vezes, acontece. — Vejo quando ela abre a boca para falar
alguma coisa, mas desiste no meio do caminho. — Que horas posso te
pegar?
— Estarei pronta às oito horas — ela responde. — Aonde vamos?
— É segredo, mas esteja bem agasalhada.
— Outro segredo?
— Só mais um entre tantos — digo, e ela nega. — Estarei aqui no
horário combinado então.
Gió se aproxima, beijando meu rosto e seguindo em direção ao
elevador. Ela se vira uma última vez e acena.
E, assim que me viro, as cenas do passado voltam para me atormentar.
Para os outros e para a justiça, a morte do meu tio foi um acidente, mas sei
que sou o único culpado por isso, até porque, somente eu vi o que
aconteceu. Apesar de ter certeza de que não fui eu quem disparou aquela
merda, ainda assim, reagi ao assalto que poderia ter acabado apenas com os
dois arrombados levando a bosta do meu celular. Independentemente se a
arma estava, ou não, em minhas mãos, eu ainda sou um assassino. Como é
que eu vou falar isso para Georgina?
A vantagem é que eu posso escolher o que falar, ou deixar de falar
para ela.
Não deixarei nada levar embora
O que está à minha frente
Cada suspiro
Cada momento nos trouxe aqui
(A thousand years - Christina Perri)

Ontem, quando pensei no CEO da Santoro como um cara gostoso


para caralho, a quem eu daria sem pensar duas vezes, jamais poderia
imaginar que era o meu amigo que, supostamente, estava morto.
Apesar da polícia ter definido o status de Conrad como desaparecido,
para nós, ele havia morrido. Homenagens foram feitas, até mesmo uma
lápide foi colocada no mausoléu da família dele. Nunca passou pela minha
cabeça, ou pela de qualquer outra pessoa, que ele poderia estar vivo em
algum outro lugar.
E, aos poucos, sinto que vou processando a informação e, até mesmo,
relembrando-me de coisas do passado, que pareciam ter sido apagadas, mas
que, na verdade, estavam apenas bloqueadas por uma questão de
autopreservação. Seis meses depois do desaparecimento, a mãe de Conrad
havia feito um tributo ao seu filho único e morto. A foto estampada no
cavalete, contendo centenas de assinaturas de amigos, era o semblante de
um adolescente feliz, muito diferente da feição do homem que vi hoje.
Conrad não era o mesmo, nem sequer o sobrenome havia ficado. Se
antes eu falava que meu amigo era um babaca convencido, que estava
sempre parecendo com um político em época de eleição, agora seu olhar e
sua postura eram frios e rígidos. Ele impunha um distanciamento forçado de
tudo e de todos à sua volta. Não havia nada daquela típica malícia, que ele
carregava aos dezessete anos, andando com o seu college de capitão do time
de futebol do colégio para cima e para baixo e com garotas penduradas em
seu pescoço.
Suspiro, sentando-me.
Olho para o notebook aberto na mesa que há no quarto, mas não tenho
vontade de ir até lá e responder os e-mails que chegaram, porque minha
cabeça só consegue se concentrar em Conrad e em nosso encontro, que
acontecerá dentro de um par de horas.
Quantas vezes disse para Austin que, se eu pudesse desejar algo para
o Universo, seria que Conrad estivesse vivo? Porque um trio era composto
por três pessoas e não somente duas… éramos incompletos sem ele. Eu era
incompleta sem meu melhor amigo.
É inevitável pensar em como será a reação das pessoas, quando
souberem que Conrad está vivo. Como será que os pais dele vão reagir?
Fecho os olhos quando me lembro de que ele pediu para que eu não
contasse a ninguém. Como eu vou fazer isso? Como olharei para Pauline
Lowe e não falarei que seu único filho está bem e saudável, em um país do
outro lado do oceano? Como esconderei isso dos meus pais?
O despertador toca para me avisar de que tenho pouco mais de uma
hora para me arrumar. Estou ansiosa para vê-lo novamente, para ter certeza
de que não foi apenas uma loucura da minha cabeça e que, de fato, ele é tão
real quanto eu e esse colchão que está sob mim.
Tomo um banho, tentando controlar a ansiedade que parece deixar
meus nervos em frangalhos. É difícil me concentrar em tarefas básicas,
como lavar o cabelo ou ensaboar o meu corpo, quando a única coisa que
quero é que o tempo passe logo.
Passo uma maquiagem leve e troco de roupa pelo menos três vezes,
antes de me decidir por uma calça de alfaiataria, um casaco preto, que vai
até a altura do joelho, e sapatos de salto fechados.
São Paulo não é tão frio quanto Emerald no inverno, mas, ainda
assim, o vento castiga um pouco quando bate no rosto. Pego minha bolsa e
confiro se está tudo lá dentro, pela enésima vez. Passaporte, carteira,
dinheiro e qualquer outra coisa de que possa precisar.
Fecho a porta do quarto e sigo para o elevador, tentando me organizar.
Enquanto vejo os andares diminuírem, conforme vou em direção ao térreo,
percebo que talvez não esteja realmente preparada para esse encontro. O
melhor seria desmarcar e, quem sabe, esperar alguns dias, até que eu fosse
capaz de colocar as coisas no lugar.
Assim que pego meu celular, percebo que não tenho o número do
telefone de Conrad e então sinto um certo desespero. Uma parte de mim
quer descobrir quem é esse homem, enquanto a outra quer ficar somente
com a lembrança do amigo que morreu.
Assim que coloco o pé no átrio do hotel, eu o vejo parado, através das
portas de vidro levemente escurecidas. Vou andando. As portas automáticas
se abrem e consigo enxergá-lo com clareza. Apoiado em um carro preto,
com as roupas da mesma cor, ele está concentrado no aparelho em sua mão,
os dedos se movem ágeis pela tela. Quando levanta o rosto para falar
alguma coisa, no que parece ser uma mensagem de voz, nossos olhares se
encontram e Conrad interrompe o que estava fazendo.
E eu paro, já do lado de fora do hotel, completamente travada no
mesmo local. Os cabelos escuros penteados para trás, o rosto sério e a barba
que está despontando na pele, fazendo com que surja uma sombra leve no
rosto, deixam-no ainda mais… bonito.
— Faz tempo que está me esperando? — digo, enfim, conseguindo
enviar os comandos necessários para as minhas pernas se moverem.
— Acabei de chegar — Conrad diz, aproximando-se. — Pronta?
Apenas aquiesço, sem ter o que dizer. Antigamente, tudo fluiria para
uma conversa qualquer e teríamos horas de assunto pela frente,
provavelmente com Austin no banco de trás, falando as merdas de sempre,
mas agora tudo era diferente.
Conrad tem um Porsche preto e ele faz questão de abrir a porta, para
que eu possa entrar. Jamais o imaginei dirigindo um veículo assim, mas o
fato é que também nunca imaginei que ele fosse ressurgir dos mortos,
algum dia.
— Aonde estamos indo?
— Testar as instalações de um novo restaurante que iremos abrir
daqui um mês, se tudo der certo.
A conversa morre novamente e, de soslaio, vejo o quanto ele está
tenso atrás do volante. Os nós dos dedos chegam a estar brancos, devido ao
esforço. Estou longe de ser a única que não está sendo capaz de lidar com a
situação.
— Posso te pedir uma coisa? — Connie pergunta, sem tirar os olhos
das ruas movimentadas.
— Claro.
— Podemos deixar o assunto “trabalho” longe, hoje à noite?
Falar sobre a Lowe está em último lugar na lista de assuntos que
quero conversar com Conrad, hoje à noite.

Aqui, do lado de fora, no rooftop [9]do prédio, sou capaz de ver uma
grande parte da cidade de São Paulo, estendendo-se diante dos meus olhos.
Daqui de cima, consigo escutar apenas o barulho de helicópteros e algumas
buzinas distantes que vêm lá de baixo, onde os carros continuam passando
de um lado para o outro, em movimento constante.
Fecho mais o casaco ao redor do corpo, quando o vento frio bate
contra mim. Há algumas peças espalhadas pelo local, ainda envoltas de
plástico bolha e panos, para serem protegidas contra o tempo.
Ao fundo, escuto um barulho um pouco mais alto e vejo que as luzes,
do lado de dentro, estão sendo ligadas pouco a pouco.
— O que achou? — A voz grossa de Conrad se perde um pouco em
meio ao vento, que assovia ao redor.
— Perfeito — digo, sincera. — Parece ser um ótimo local e, se eu
morasse aqui, seria uma frequentadora assídua do espaço.
— Nunca passou pela sua cabeça sair de Emerald e morar em outro
lugar? — Ele se posiciona ao meu lado.
— Acho que só vou pensar em algo assim quando minha avó partir —
respondo sinceramente.
— Vocês ainda tomam chá todos os finais de semana?
— Todos, infelizmente, não — afirmo, chateada. — A vida adulta
cobra algumas coisas, mas, a cada quinze dias, é obrigatório um café da
tarde com bolinhos somente para as meninas.
Conrad, ao contrário de Austin, havia ido muito na chácara da minha
avó. Não consigo sequer ter noção da quantidade de tardes que passamos,
brincando em meio às árvores frutíferas, mas, infelizmente, nunca por
muitas horas, porque Pauline Lowe nunca tinha permissão para se ausentar
por muito tempo de casa. Com o sumiço do homem ao meu lado, nenhum
amigo foi lá mais e o sítio se tornou um lugar tão meu que foram raras as
vezes em que quis compartilhar com mais alguém.
— O que acha de entrarmos? — pergunto, quando uma rajada de
vento mais forte bate contra mim.
— Ótimo, porque já separei os ingredientes.
— Você vai cozinhar? — Ergo uma das sobrancelhas.
— Claro. — Começamos a caminhar para dentro do local protegido
do frio. — O jantar é por minha conta, hoje.
Ele me guia para dentro da cozinha, já completamente montada, e
vejo que os ingredientes já estão separados em uma das bancadas. Farinha,
ovos, frutos do mar, cebola, alho e azeite.
— O que vai cozinhar?
— Surpresa.
Conrad já está sem o casaco e, agora, arregaça as mangas até a altura
do cotovelo, o que praticamente me obriga a ver a musculatura torneada de
seu antebraço. Engulo em seco. Neste momento, ele veste um avental por
cima da roupa e, de um momento para o outro, ele muda completamente,
relaxando não só a feição, mas como todos os movimentos.
— E se eu não gostar?
— Duvido. — Ele sobe apenas um canto da boca, em um meio-
sorriso. — Mas, antes de começarmos, vou pegar algo para bebermos.
Ele some por alguns instantes e volta com uma garrafa, contendo um
líquido cor-de-rosa, e duas taças nas mãos. Ele se serve primeiro, fazendo
toda a análise antes de encher as duas taças e, puta que pariu, preciso me
lembrar de como se respira.
Continuo em uma luta interna para me desvencilhar da imagem de
ontem, de um homem desconhecido, com a de hoje: meu amigo
desaparecido. Mas meu cérebro não parece querer associar essas
informações.
— Como eu não teria tempo de fazer tudo, pedi para deixarem alguns
queijos cortados para nós. — Conrad vai até a enorme geladeira e pega uma
tábua coberta com plástico filme. — Não vai combinar com o vinho…
— Juro que não falarei que você é um mau chef por isso.
— Agradeço. — Ele quase sorri dessa vez, colocando os petiscos
próximos a mim.
— Quando você descobriu que gostava de cozinhar? — pergunto,
antes de levar o primeiro pedaço de queijo à boca.
— O meu primeiro emprego, aqui, foi num bar, numa rua um tanto
alternativa na cidade, e o dono me ensinou a fazer uns lanches e umas
coisas para servir aos clientes — ele me diz, enquanto arruma a farinha na
bancada, pegando os ovos. — Inclusive, foi onde conheci o Bernardo.
Fiquei por lá alguns meses, até ir para um restaurante no Jardins, que
precisava de pessoas que falassem inglês. Nesse meio tempo, consegui uma
bolsa para estudar gastronomia, porque me pareceu algo que eu conseguiria
fazer, sem precisar de muita coisa. Estudei muito, trabalhei para caralho e,
em algum momento, meu sócio, que não tinha onde enfiar o dinheiro da
família, resolveu que seria legal abrir alguma coisa de comida… e me
chamou para ser o chef.
— E você foi?
— Exatamente. — Conrad começa a sovar a massa. — Não pensei
duas vezes, para ser sincero. Eu estava fodido… então não havia nada para
perder, naquele ponto que me encontrava na vida.
Vejo que ele aumenta a força que faz com as mãos, os olhos focados
no trabalho sendo executado. Mas, ao mesmo tempo que ele parece estar
sentindo toda a dor outra vez, Conrad parece estar completamente distante
da situação, como se fosse alguém contando a história de uma terceira
pessoa.
— A primeira unidade do Santoro, que fica próximo ao hotel no qual
está hospedada, foi aberta seis anos atrás. Com a divulgação certeira para as
pessoas certas, em pouco tempo, se tornou um sucesso. — Ele faz uma bola
com a massa, levemente amarelada, e a enrola em um plástico filme. —
Consegui comprar metade da empresa de Bernardo pouco mais de um ano
depois e assumi o posto de CEO.
— Você gosta? — Acompanho Conrad ir até a geladeira, com a
massa, e voltar. — De ser um executivo, digo.
— Não. — Ele solta uma risada sem humor. — Meu lugar é aqui, na
cozinha.
Há tantas coisas não ditas nessa frase curta. Deixo que o silêncio
confortável caia sobre nós, enquanto ele leva um pedaço de queijo à boca e,
em seguida, dá um demorado gole no vinho. Dentro de mim, travo uma
batalha para não reparar em cada detalhe do seu rosto, em cada pequena
expressão, enquanto degusta o líquido.
— E para você, Gió? Como foram esses anos?
— Quer que eu romantize ou posso ser literal? — Subo na bancada
que não está sendo utilizada, ficando com os pés suspensos.
— Você sempre foi sincera comigo.
— Naquela época, alguém precisava falar o quão babaca você era. —
Uso um tom de brincadeira, arrancando um meio-sorriso. — Foi uma
grande merda, Connie.
Ele volta sua atenção para os frutos do mar. Com as mãos hábeis, ele
começa a separá-los e a limpá-los.
— Vá em frente — ele diz, encorajando-me. — Não precisa me
poupar de nada.
— É só que…
Falar também é doloroso. Vou reviver, pela terceira vez, só hoje, tudo
o que aconteceu nos dias que seguiram, após o desaparecimento de Conrad.
Pego a taça ao meu lado e tomo um gole, respirando fundo, em seguida.
Frequentemente, o melhor que fazemos é arrancar o curativo de uma
única vez. Assim, não estenderemos o nosso sofrimento mais do que o
necessário, mas, hoje, não me sinto capaz de fazer isso.
— O que acha de não falarmos disso, hoje?
Me perdoe pelo jeito que te olho
Não há mais nada para comparar
Te olhar de relance já me deixa fraco
Não existem mais palavras pra dizer
(Can't take my eyes off you - Joseph Vincent)

Estudo o seu rosto por um momento, vendo o sofrimento estampado


em seus bonitos olhos castanho-esverdeados. Há muito mais ali do que ela
poderia expressar em palavras… e talvez eu também não esteja pronto para
escutar o que ela tem a dizer.
— Sei que quer saber o que aconteceu…
— Sim, mas não precisa ser hoje — eu a interrompo. — Há mais
coisas para conversarmos, certo?
— Acho que sim. — Seus ombros caem de leve e ela assume,
novamente, um tom de voz tranquilo. — Você estava me falando sobre ser
cozinheiro. Quem monta os cardápios?
— Eu. — Jogo a cebola e o alho na frigideira para refogá-los. —
Cada uma daquelas receitas foram feitas e aprovadas por mim. Algumas são
releituras de pratos clássicos, que eu quis dar o meu próprio toque, ou até
mesmo adaptar para o Brasil. Outras, são de minha autoria.
— Em que momento você arranja tempo para cozinhar? — Gió pula
da bancada, vindo para o meu lado. — Isso está cheirando muito bem!
— Só tem dois ingredientes aqui. — Sorrio.
— Então acho que estou com fome! — Ela ri.
O clima pesado de instantes atrás some completamente, e Gió está ao
meu lado, prestando atenção em cada movimento que faço.
— Quero ajudar! — Ela me empurra de leve. — O que posso fazer?
— Ótimo, porque todo chef precisa de um auxiliar. Inclusive, pode
começar com a louça.
— É sério? — Ela ergue as sobrancelhas. — Vai me colocar na pia?
Achei que iria colocar a mão na massa!
— Muito novata ainda.
Ela dá risada, pegando as vasilhas sujas e indo em direção à pia.
Nunca gostei de ninguém por perto enquanto estou cozinhando, mas é
diferente com Georgina. Na realidade, ela sempre foi a exceção, desde que
nos conhecemos, quando ainda éramos bebês que usavam fralda. Gió podia
brincar com os meus carrinhos; depois, com o videogame e, até mesmo,
usar minhas fantasias de super-herói em alguma festa besta do jardim de
infância.
— Me diz que você não faz seus encontros lavarem a louça também.
— De soslaio, vejo-a colocando alguns talheres no escorredor. — Isso não é
nem um pouco romântico, Connie!
— Do que está falando?
— Você sabe. — Ela me encara e noto que seu olhar ganha um tom
de malícia. — Trazer mulheres para cozinhar, jantar e, bom… depois fazê-
las de comida. — Não consigo conter a gargalhada e ela ri, claramente, sem
entender a minha reação. — Você ainda sabe dar risada.
Tiro a massa do plástico filme, colocando-a sobre a bancada, na qual
há farinha já espalhada.
— Enxugue as mãos, porque vou te ensinar a abrir o macarrão —
digo — e para sua informação: nunca cozinhei para nenhuma mulher com
quem saí.
— Mentira! — Ela está claramente chocada. — Como não? Que
mulher seria capaz de dizer “não” a você?
— Você conseguiria?
Ela para no meio do caminho, analisando-me e suas bochechas
assumem um tom rosado, que não me lembro de ter visto, mas rapidamente
Gió volta à sua postura relaxada.
— Desde quando flerta comigo?
Sorrio de lado, mas não respondo, até porque nem sei o que dizer. Eu
estou flertando com ela? Caralho, sim. Estou flertando com a garota que foi
minha melhor amiga.
— O que você quer que eu faça? — ela pergunta, agora próxima e
vejo que o rubor em suas bochechas aumentaram.
— Primeira coisa, vou te ensinar a abrir a massa. — Georgina se
posiciona e entrego o rolo de macarrão em suas mãos. — Você precisa
posicionar a mão de maneira firme, em ambos os lados, e forçar a massa
para frente. Vou te mostrar.
Coloco minhas mãos sobre a dela e tento ignorar o quão perto nós
estamos, mas é difícil, para não definir como impossível. O perfume do seu
cabelo entra por meu nariz, nublando meus sentidos e trazendo à tona coisas
que jamais considerei, tratando-se da mulher à minha frente.
Tento ignorar, mas é impossível não reparar na pele arrepiada dos
braços de Georgina.
— E agora? O que devo fazer?
Poderia dizer algo como “mudar o perfume”, ou “impedir que esses
malditos pensamentos, que não fazem sentido algum, apareçam”.
— Vamos abrir a massa até que ela esteja bem fina. — Enfim,
consigo encontrar as palavras. — Só imitar os meus movimentos.
Eu poderia ter me afastado no segundo, ou até mesmo no terceiro
movimento, que Gió fez, mas continuo aqui, no mesmo lugar, com as
minhas mãos sobre as dela, ajudando-a na abertura da massa.
Minha mente diz para me afastar, cessar essa pseudo-atração que
começou ontem e me agarrar ao fato de que ela é apenas alguém do
passado; uma amiga e nada além disso. Um vislumbre dela, em meio aos
meus lençóis, passa diante dos meus olhos e eu chacoalho a cabeça,
tentando focar no que estamos fazendo.
— Agora, vamos enrolar as pontas da massa, até que elas se
encontrem.
Os cabelos castanhos, que estão presos em um coque solto agora,
roçam em meu rosto e seguro a respiração que estava prestes a soltar. Tão
diferente e tão igual a Georgina da minha adolescência… Engulo em seco,
tentando culpar o vinho por essa situação sem sentido.
Fecho os olhos por um instante, tentando organizar as coisas dentro
de uma perspectiva aceitável e encontrar um fio desse emaranhado que
justifique todas essas reações.
— E agora? O que preciso fazer?
Ela se vira, entre meus braços e, assim, ficamos um de frente para o
outro, poucos centímetros nos separando. A boca de Georgina está
entreaberta e os olhos castanho-esverdeados me encaram com uma
intensidade desconhecida.
Por que nunca pensei em beijá-la? Ela sempre foi uma das garotas
mais bonitas da escola e, agora, é uma mulher estonteante… Qual será a
sensação de emaranhar meus dedos em seus cabelos e trazê-la para mim?
A música, típica de celular tocando, invade o ambiente, ecoando por
todos os lugares e nos assustando. Quase que em um pulo, afasto-me de
Gió, respirando profundamente. Sinto como se houvesse saído de um transe
insano, no qual minha mente estava mergulhada em um estranho lugar onde
só existia nós dois, essa cozinha e nada além.
Georgina se apressa em direção ao aparelho, enquanto eu vou acender
o fogo, que irá ferver a água para a massa.
— Oi, mãe… — escuto Gió falar — estou no meio de um jantar. Sim,
de negócios… está indo tudo bem. — Ela se apoia na bancada mais
distante, o dedo indicador passando sobre o dedão. — Super tranquilo! Te
ligo assim que chegar no hotel, ou amanhã cedo. Claro que prometo.
O clima de minutos atrás desapareceu junto do toque do celular. Ela
se aproxima, deixando o aparelho um pouco mais perto de nós, desta vez.
— Você ainda faz a mesma coisa quando está mentindo — comento,
verificando a água, que está quase fervendo. — Cutuca o cantinho do
dedão.
— Nem tudo muda, Conrad.
— É, acho que não. — Sou obrigado a concordar. — Agora, venha
cortar o macarrão, porque logo mais ele vai para a panela.
Gió se posiciona ao meu lado e joga seu quadril contra o meu, na
lateral, empurrando-me.
— Acho que eu consigo cortar sozinha — ela diz, com um sorriso no
rosto. — Essa largura está boa?
— Perfeita.

Ela enrola o macarrão com ajuda de uma colher e, a cada mastigada,


solta um muxoxo de satisfação.
— Isso é muito bom! Se eu soubesse, tinha pedido esse prato no dia
em que fui no seu restaurante.
— Não está no cardápio.
— Por quê? — Gió está claramente chocada outra vez. — É o melhor
macarrão que já comi na minha vida.
— A ideia é abrir um restaurante especializado em frutos do mar e
colocar essa receita como carro chefe da casa.
— Vai ser um sucesso! — diz, com firmeza. — É uma das melhores
coisas que já comi em toda vida toda.
Levo a taça de vinho à boca e tomo mais um gole.
— O que Austin tem feito? — Ela passa o guardanapo sobre a boca,
demorando um tempo para entender a mudança brusca de assunto. — Você
não falou nada dele até agora.
— A família de Austin acabou perdendo muito dinheiro nos últimos
anos e, agora, eles têm uma lavanderia perto do centro, a qual ele
administra junto da mãe.
Essa informação me pega completamente desprevenido. A família do
meu amigo era próspera, com várias unidades da empresa espalhadas não
apenas na capital, como em algumas cidades do interior.
Sei que perguntar o que aconteceu irá entrar em um ponto que
nenhum de nós quer falar hoje, então, por hora, sigo curioso, mas há outra
coisa que quero saber, desde o momento em que a reconheci.
— E vocês dois?
— Nós dois? — Ela ergue as sobrancelhas.
— Austin sempre foi apaixonado por você. Achei que ficarem juntos
seria um caminho natural.
— Definitivamente, não! — Ela ri, como se eu tivesse falado a maior
besteira do mundo. — Ele nunca foi apaixonado por mim. No máximo,
talvez, na ideia de ficar comigo… nós demos um beijo, uns anos atrás, e
vimos que não tínhamos nada em comum, muito menos química.
O que vem a seguir é contraditório, porque é um misto de alívio com
algo amargo que desconheço. Lembro-me do incômodo na boca do
estômago que sempre me atingia, quando escutava Austin falar sobre Gió
por horas e horas, enquanto a acompanhávamos nos treinos de vôlei, mas
sempre achei que era porque não aguentava mais escutá-lo falar a mesma
coisa.
Que diferença isso faz, agora? Nenhuma.
— Estou surpreso, porque tinha certeza de que vocês iriam casar.
— Meu Deus, Conrad! — Ela ri. — Eu, casada com Austin? Um dos
dois sairia num caixão. Somos ótimos como amigos e é mais do que o
suficiente! Não tenho paciência para os dramas românticos dele.
Georgina boceja, jogando a cabeça de um lado para o outro, em
seguida, em um movimento lânguido que me obriga a olhar para cima,
tentando pensar em qualquer outra coisa que não seja puxá-la, para sentir
seu perfume na curva de seu ombro.
— O que acha de irmos? — pergunto, para tentar finalizar o que está
se tornando uma tortura inesperada.
— Você ficaria chateado de terminarmos o nosso jantar, agora?
— Claro que não — digo, já me levantando. — Quando volta para
Emerald?
— Daqui uma semana. — Gió me acompanha. — Ainda temos alguns
dias para colocar o papo em dia. — Assinto. — Só vou lavar a louça…
— Amanhã o pessoal estará aqui, não há necessidade. — Ela
concorda. — Inclusive, como bebi, vou chamar um Uber para nós.
— Sua casa é caminho para o hotel?
Definitivamente, não é, mas ela não precisa saber disso.
— É, sim, fique tranquila.
— Porque se não for, peço um daqui, sem problema algum, e você
chega mais rápido para descansar. Ser CEO deve ser cansativo — solto uma
risada — e não quero atrapalhar suas poucas horas de sono.
— Já estou acostumado. — Dou de ombros. — Vou chamar o carro
por aqui e, antes que diga qualquer coisa, essa viagem é por minha conta.
— Se você insiste. — Ela pega a bolsa, colocando-a no ombro. —
Esse lugar vai ser um sucesso, Connie. Não que isso possa te surpreender,
considerando tudo o que já alcançou. Prometo que, assim que eu conseguir
férias, venho para cá, só para poder vê-lo funcionando.
— É o mínimo que espero! — O aplicativo avisa que o motorista está
a poucos minutos de distância de nós. — Vamos?
Assim que entramos no veículo, pedi ao motorista para que
fizéssemos um caminho um pouco mais longo, para que eu possa mostrar
alguns pontos turísticos perto de onde estávamos.
Não me lembro de qual foi a última vez que reparei em São Paulo,
com olhos de alguém de fora, tentando absorver o máximo de informações
presentes. Apesar do cansaço, Georgina observa tudo com atenção e, a cada
minuto, ela me faz perguntas sobre a cultura brasileira, que é tão diferente
da europeia, de modo geral.
Quando o carro entra na Rua Augusta, em direção à Avenida Paulista,
ela se choca com a quantidade de pessoas andando de um lado para o outro,
mesmo com a proximidade da meia-noite, em um dia de semana.
— O que eles estão fazendo, sentados no meio da calçada?
Agora, parados no semáforo, consigo ver os pequenos grupos
bebendo e dando risada, enquanto dividem uma garrafa com algum
conteúdo alcoólico qualquer.
— Eles estão se divertindo.
— O máximo que a gente fazia era beber escondido na casa de
alguém. — Ela apoia a mão em meu ombro. — Você tem saudades disso?
— Pra caralho — digo. — A nossa maior preocupação era conseguir
contrabandear alguma bebida para a casa do Austin na quarta-feira, à tarde.
Cinco minutos de um silêncio confortável e o motorista para o carro
em frente à entrada do hotel.
— Fico por aqui — ela diz, abrindo a porta. — Obrigada pela noite
incrível, Connie! Fazia muito tempo que eu não me divertia assim.
— Você está mentindo.
— Não estou. — Ela se aproxima e dá um beijo estalado em minha
bochecha, que parece queimar, instantaneamente.
— Planos para o final de semana? — pergunto em um ímpeto.
— Pensei em explorar a cidade.
— Vou para minha chácara, no interior. — Começo a falar, tentando
não pensar no que irei propor a seguir. — Quer ficar lá comigo? Acho que
será um bom lugar para conversarmos sobre os assuntos pendentes…
Gió pensa por alguns instantes e, por fim, abre o sorriso que já fez
tantos garotos e, tenho certeza que homens também, apaixonarem-se por
ela.
— Tem lareira?
— E marshmallows também — complemento.
— Vou com você, então. — Ela pisca e estende a mão. — Me dá seu
celular.
E eu o faço, sem questionar. Georgina digita rápido e vejo que seu
número está salvo em minha agenda de contatos, agora.
A única Gió.
— Nos vemos no sábado, Connie. — Ela pisca e fecha a porta.
Acompanho-a caminhar, com calma, em direção à entrada do hotel e,
antes de passar pelas portas automáticas, ela se vira para me dar um último
aceno.
Não preciso de permissão
Tomei a decisão de testar meus limites
Porque é da minha conta
Deus é minha testemunha, vou começar o que terminei
(Dangerous woman - Ariana Grande)

Pela terceira, ou quarta vez, desde que me sentei na frente desse


computador, menos de uma hora atrás, pego-me pensando na noite de
ontem, quando Conrad estava com os braços ao meu redor. O perfume
amadeirado, as mãos grandes e firmes me ajudando a abrir a massa do
macarrão, e então o telefone tocando quando achei que… claro que não.
Que pessoa que gosta do sexo masculino poderia ser indiferente a
Conrad Santoro Lowe? Eu sou capaz de colocar a minha mão no fogo de
que isso não existe. Ele é tão estupidamente bonito! O rosto sempre sério,
os olhos escuros focados, o nariz reto que dá uma altivez, que poucas vezes
vi em alguém, e a simples postura confiante de quem pode conquistar o
mundo e não terá nada que o impeça de alcançar seu próximo objetivo. E a
cereja do bolo fica pelo ar de mistério que envolve o CEO da Santoro.
O aplicativo de comunicação da empresa toca e um arrepio frio corta
a minha espinha, quando identifico o nome do secretário particular de Linus
Lowe. Desde o momento em que coloquei os olhos nesse homem, eu o
detestei e depois descobri que havia motivo. O cara é um grande filho da
puta, que puxa o tapete das pessoas ao redor pelo simples prazer de fazê-lo.
— Bom dia, Sr. Müller! — O esforço para ser simpática com o
homem, que aparece na imagem, beira ao impossível.
— Aqui é boa tarde, Srta. Romano.
— Que coisa interessante. — Sorrio forçado. — Não parei para fazer
as contas referente ao fuso horário, mas acredito que a saudação não vá
interferir, não é mesmo?
— Claro, claro. — Ele transparece a infelicidade em estar falando
comigo. — Faz três dias que você não nos dá nenhum report[10]. Sabe que
está aí a trabalho, certo?
— Estou totalmente ciente sobre a minha missão, Sr. Müller. Quanto
a isso, não há motivos para ficar preocupado. — Respiro fundo. —
Inclusive, tenho uma reunião marcada com a minha chefe daqui quinze
minutos. O senhor gostaria de participar?
Ao contrário dos demais, não tenho medo e nem fico puxando o saco
dele. Até porque, o que ele vai fazer? Convencer o CEO a me demitir?
Apenas alguns dias longe daquele lugar, vejo que talvez fosse um favor a
me fazer.
— É óbvio que não participarei — diz, seco. — Só preciso que me
passe um resumo, em poucas palavras, sobre o que aconteceu. O restante,
sua chefe vai fornecer na próxima reunião da diretoria.
Seguro a vontade de fazer cara de deboche, e, em vez disso, coloco
um sorriso falso no rosto. Mal sabe ele que todos os relatórios, que minha
chefe fornece, quem faz sou eu, porque ela não tem tempo e nem sabe fazê-
los.
— A Santoro pediu uma semana para considerar a nossa proposta e
nos dar um posicionamento final. — Mentira, até porque eu tenho quase
certeza de que, independentemente do que eu falei para Conrad, ele não irá
mudar de opinião. — Estou apenas aguardando um retorno. Entretanto,
pediram para que eu esteja disponível na próxima semana, caso seja
necessária uma nova reunião.
— Aguardo… quero dizer, o CEO aguarda o relatório completo.
Avise a Sra. Gallagher.
— Tenho certeza de que ela enviará, assim que possível.
Ele desliga, sem nem se despedir. Acabo de encontrar mais uma
vantagem de estar há milhares de quilômetros de distância da empresa: não
há a possibilidade de cruzar com esse homem em algum corredor.
E, novamente, a música característica do comunicador interno da
empresa começa a tocar. Tenho vontade de me esconder sob as cobertas e
fingir que não há ninguém me chamando e, principalmente, que não estou
escondendo algo dessa magnitude, mesmo da minha chefe que, na maior
parte das vezes, mais me prejudica do que me ajuda.
Passo as mãos sobre as têmporas, esfregando-as para tentar aliviar a
dor de cabeça, que parece escalar depressa.
E, ao mesmo tempo que o computador toca incansavelmente, vejo
uma mensagem de Austin aparecer na tela de bloqueio do celular.
Ótimo.
Tudo do que eu precisava.

Olho para a tela do aparelho e vejo as duas notificações que passei o


dia ignorando. Uma, porque serei obrigada a mentir, e outra, porque sempre
que penso em abrir, meu coração acelera.
São sete horas aqui no Brasil e, de acordo com os meus cálculos, por
volta da meia-noite em Emerald. Abro primeiro a mensagem de Austin,
pedindo ao Universo para que ele já esteja dormindo.
Georgina: Acabei de encerrar meu dia de trabalho. Está acordado?
Impressionante como estou sendo capaz de mentir com tanta
tranquilidade, desde o momento que coloquei os pés neste país. Menti para
minha mãe, para o secretário do CEO, para minha chefe (sem peso na
consciência) e, agora, para o meu melhor amigo.
Austin: Ainda estou jantando. Vou te ligar!
Merda.
No mesmo instante, o aparelho toca e vejo que é uma chamada de
vídeo. Aceito e o rosto sorridente do meu amigo entra em foco. Ele parece
estar muito mais cansado do que dias atrás, quando estávamos bebendo no
bar.
— O que aconteceu? — pergunto, ajeitando-me.
— Estou buscando novos clientes. — Ele suspira pesadamente. —
Precisamos fechar com alguma empresa, qualquer coisa que nos dê um
valor fixo por mês… do jeito que está, serei obrigado a fechar a empresa em
uns seis ou oito meses.
— Vai dar certo — murmuro.
— Eu odeio tanto o arrombado do seu chefe — ele diz, desgostoso.
— Esse filho da puta acabou com a nossa empresa.
— Tenho pensado muito sobre sair de lá.
Durante boa parte da tarde, entre um e-mail e outro, fiz uma lista de
prós e contras em permanecer na Lowe e, inclusive, estou olhando para ela,
sobre o móvel de cabeceira.
— Isso é sério?
— Estar aqui no Brasil foi a gota de que precisava para o meu copo
transbordar. Preciso encerrar esse capítulo da minha carreira.
A realidade não tem nada a ver com o país, mas, sim, com quem
encontrei aqui. O questionamento sobre como irei encontrar o CEO da
Lowe volta à minha mente com força. Como posso olhar na cara daquele
homem e esconder que o filho está vivo? Por mais que ele seja uma péssima
pessoa, ainda assim, é pai de Conrad… mas, por outro lado, jamais poderia
“trair” meu amigo.
— Você está bem? — Austin pergunta e vejo que está preocupado
comigo. — Parece estar mais estranha do que o normal.
— Obrigada pelo elogio. — Crispo os lábios. — Só estou cansada
mesmo.
— Mas, enfim, como te disse: estou considerando. Vou aproveitar
esses dias para atualizar meu currículo e dar uma olhada nas vagas de
emprego, antes de falar com o meu pai sobre a possibilidade de ir para a
empresa da família.
— Só não espere tomar no cu para se decidir — ele diz, sério. — Faça
isso o quanto antes… porque aquela merda de empresa vai implodir e você
vai se foder por ser uma das gerentes. É capaz ainda de ser indiciada, por
qualquer merda que aquele filho da puta esteja fazendo.
— Você acha que eu me foderia?
— Caralho, Gin… não é possível que seja tão inocente assim. — Ele
revira os olhos. — Se vai se foder, não dá para ter certeza, mas que estaria
no meio do rolo e teria que prestar depoimento, não tenho dúvidas quanto a
isso. Mas vamos mudar de assunto: como está a viagem? Já encontrou
algum homem para te fazer feliz?
— Claro que não! — digo rapidamente. — Sem tempo, por
enquanto… mas o final de semana está aí para isso.
E então eu me lembro de que passarei dois dias inteiros com Conrad e
sinto meu estômago afundar até o pé. O olhar especulativo de Austin não
ajuda em nada, porque a culpa de estar escondendo algo tão sério dele me
acerta em cheio, como um soco no nariz.
Ele boceja, passando a mão nos olhos.
— Acho melhor ir dormir, Tin — digo, aproveitando a deixa. — Vou
caçar algum lugar por aqui para jantar.
— É, acho que tem razão… estou dormindo em pé já. Amanhã te
mandarei uma mensagem.
— Ah! — Chamo a sua atenção e ele volta a olhar para tela. —
Quando vai ser o tal baile dos solteiros?
Ele abre um sorriso, claramente contente.
— Foi cancelado. — Sua boca treme e eu solto uma risada. — Ok, foi
adiado para o mês que vem. Você bem que podia se passar por minha
namorada.
— Sua mãe não iria acreditar. — Pisco. — Ela sabe que um de nós
dois sairia morto no mesmo instante, e até comentei isso…
Paro abruptamente.
— Com quem?
Meu coração parece bater na minha garganta, agora. Quase fodi com
tudo.
— Com Lizzie, claro. — Cutuco a pele do meu dedão com força. —
Acredita que ela me perguntou isso, uns dias atrás? Deve estar ficando
louca.
— Ela não é normal. — Vejo que ele dá de ombros. — Até amanhã,
Gin! Vamos nos falando.
Ele encerra a chamada e eu me jogo para trás, batendo a cabeça
contra os travesseiros.

Caminho em direção a um Starbucks que, de acordo com o Google


Maps, não fica muito longe de onde estou. Uns trezentos metros, apenas.
É estranho ver as pessoas usando roupas pesadas com cachecol e
touca, quando estou apenas usando um casaco corta-vento para me proteger.
Chego à avenida e, mesmo depois de todos esses dias, ainda me surpreendo
com a quantidade de carros passando e todos os sons que acontecem ao
mesmo tempo.
Muito mais parecido com Nova York do que poderia imaginar. Os
prédios altos, as pessoas correndo de um lado para o outro enquanto tentam
ganhar tempo. Sempre morei na capital de Emerald, e a vida é mais
tranquila lá.
O sinal fecha e me apresso a atravessar a faixa de pedestre, tomando
cuidado com a ciclovia e com o meu celular, que está no bolso interno do
casaco, como me avisaram para fazer, no momento que saí do hotel.
Entro no estabelecimento e está tão barulhento como o lado de fora.
As pessoas conversam nas mesas, falam em direção aos computadores à sua
frente. Peço uma das bebidas que mais amo, o famoso Caramelo
Macchiato. A atendente sorri e pede para que eu espere ao lado.
É estranho estar em um local onde não entendo nada do que as
pessoas ao redor falam. O português é uma língua muito difícil, que não
tem nada parecido com o inglês, e muito menos com o alemão. É óbvio que
penso em Conrad no mesmo momento e me lembro de ele falando um
português impecável, que, aos meus ouvidos, não parece ter sotaque algum.
— Georgina! — um moço, com o meu copo em mãos, grita meu
nome.
Pego a bebida e dou um longo gole. As pessoas dizem que não é
possível ficar feliz de uma hora para outra… nesse momento, posso dizer o
contrário. É tudo do que eu precisava, para ser capaz de colocar a minha
cabeça no lugar e pensar de maneira clara.
Tomo mais um gole enquanto penso na minha lista de prós e contras,
que se mistura com as perguntas que quero fazer sem filtro para Conrad, em
algum momento do final de semana.
Serão apenas dois dias entre pessoas que se conhecem desde que são
bebês. Nada além disso. Repito isso em silêncio, como se fosse uma espécie
de mantra.
Sou interceptada por alguém que para à minha frente, impedindo que
eu continue a caminhada até a faixa de pedestre.
Uma mulher de cabelos muito brancos e olhos de um azul profundo
me encara. Meu primeiro pensamento é fugir, mas não consigo. Minhas
pernas viraram chumbo, de um segundo para o outro, e ninguém ao redor
parece notar o que está acontecendo, ou talvez seja algo muito comum para
chamar atenção.
— Você me entende? — ela pergunta em alemão, e eu arregalo os
olhos. — Claro que sim, foram eles que me mandaram falar com você!
— E… e… eles quem?
A mulher apenas sorri para mim. Os dentes estranhos, parecendo estar
muito gastos.
— Eles — responde, como se tudo fizesse sentido. — São sempre
eles que me contam as coisas e pedem para que eu as diga.
Minhas malditas pernas resolvem não funcionar agora. Olho para
frente e vejo a contagem regressiva do semáforo de pedestre. Só preciso
correr para parar na ilha que divide as duas pistas, mas nada acontece.
— Ele está em perigo. Nenhum lugar é seguro enquanto o verdadeiro
herdeiro não retornar e tomar o que é seu por direito. Cuidado com a
máquina dos ares. É nela que tudo pode explodir! A maldade do ser
humano é infinita e obscura, e não há laços que sejam fortes o suficiente
para impedir. Tome cuidado com aquele que será gerado, porque é ele quem
trará o selo de paz.
A mulher abre mais uma vez seu sorriso amarelo e sai da minha
frente, misturando-se entre as pessoas, que andam de um lado para o outro.
Dou dois passos em direção ao caminho que ela seguiu, mas já não a
vejo mais. Sumiu, como fumaça. Meu corpo treme e meu cérebro parece
estar prestes a entrar em curto.
O semáforo de pedestre fica verde e eu corro, agarrada ao meu
Caramelo Macchiato, em direção ao hotel. De segundo em segundo, olho
para trás, mas não há ninguém.
Foi um surto, um delírio do cansaço e do estresse dos últimos dias.
Talvez eu devesse ir ao hospital amanhã.
Você me fez ver outra manhã após minha noite mais escura
Sim, o mundo dói menos quando estou do seu lado
(Collide - Ed Sheeran)

Seis horas da manhã de sábado e eu estou acordada, de banho tomado


e já arrumada, apenas esperando a mensagem de Conrad chegar, para que
eu o encontre no estacionamento do hotel.
Abro a mala de mão pela terceira vez, para conferir se peguei tudo
que irei precisar para o final de semana: roupa de frio, calcinha, sutiã, um
conjunto de banho para entrar na piscina, meias, um par de chinelos e um
tênis, dentro do saco de transporte. Repasso as coisas de higiene pessoal
dentro da minha frasqueira e está tudo organizado.
E, como uma boa mulher de listas que sou, abro o celular e faço uma
checagem dupla para ver se está tudo certo. Minha mãe sempre diz que
peguei essa mania do meu avô, que sempre estava com um papel na mão,
no qual havia tudo anotado para o dia inteiro. Como vovó diz, “uma fruta
não cai muito longe do pé”.
Na barra de notificações, uma mensagem aparece.
Estou aqui embaixo.
O coração, dentro do peito, falha uma batida para, em seguida,
acelerar e parecer que irá sair pela minha boca.
Conrad é só meu amigo. Quantas vezes será que vou precisar repetir a
mesma coisa para mim mesma?
Subo o puxador da minha mala de mão e saio do meu quarto, dando
uma última olhada para ver se não deixei nada para trás. Pela janela, posso
ver que o tempo está aberto, com o sol brilhando e poucas nuvens no céu,
mesmo o termômetro marcando nove graus centígrados. Totalmente o
oposto do que acontece em Emerald, com o tempo sempre cinza durante a
época mais fria do ano, com o sol disponível em uma quantidade reduzida
de horas.
Diferente dos outros horários nos quais transitei pelo corredor, tudo
está absurdamente silencioso. Por ser sábado, acho que a maior parte das
pessoas ainda está descansando. Arrasto a mala até em frente ao elevador,
até ele parece fazer um barulho alto em meio a esse silêncio completo.
Nada de música ambiente quando entro e seleciono o térreo. E, como
dias atrás, tudo parece acontecer muito mais lento do que realmente é.
Maldita distorção de tempo, quando estamos ansiosos para algo que nem
sabemos o que é.
Mas, diferentemente de dias atrás, Conrad está com as mãos no bolso
da calça jeans, um óculos escuro no rosto e os cabelos bagunçados, como se
tivesse acordado há pouco tempo. Totalmente diferente do homem
engravatado que veio me buscar para jantar.
Muito mais parecido com o rapaz que foi o meu melhor amigo e isso
só faz com que meu coração bata ainda mais forte, porque, de algum jeito,
sei que Conrad Lowe ainda existe, mesmo sob todas essas cicatrizes que
Conrad Santoro tem.
— Te arranquei da cama? — A voz grossa, e um pouco rouca
também, é de quem tirou a cabeça do travesseiro há pouco tempo.
— Um pouco mais cedo do que o normal. — Ele abre o porta-malas
do carro e me ajuda a colocar a bagagem nele.
— Você ainda fica mal-humorada quando está com fome?
Solto uma risada.
— Claro que sim! Como não ficar?
E, me pegando totalmente de surpresa, Conrad abre a porta do
passageiro para que eu entre.
— Você se tornou um cavalheiro — digo, com a mão na porta.
— Sempre fui. — Conrad pisca.
E eu me sento, com o corpo repentinamente quente em muitos
lugares. Sinto vontade de cruzar as pernas mais forte, mas me contenho.
Tento mentalizar o meu melhor amigo da época de escola, mas isso também
não me ajuda, porque a Georgina daquela idade sabe que, se tivesse tido
algum tipo de oportunidade, teria caído nas garras de leão de Conrad.
Merda.
Ele entra, em seguida, e o perfume amadeirado, junto do cheiro do
banho recém-tomado, invade o carro. Preciso de todo meu autocontrole
para não suspirar e roçar as minhas pernas. É isso, estou parecendo uma
tarada e me arrependo de não ter trazido o meu vibrador em formato de
batom para o Brasil.
— Quanto tempo para chegarmos lá? — pergunto, assim que ele se
acomoda no banco do motorista.
— Se fôssemos de carro, por volta de duas horas... mas, de
helicóptero, algo em torno de meia hora.
— Nunca andei em um.
Conrad se vira para mim e vejo um sorriso brotando no canto
esquerdo de sua boca.
— Que bom que a primeira vez será comigo então.
E, puta que pariu, não sei como reagir a isso. Conrad está flertando
comigo e, definitivamente, não é coisa da minha cabeça.
— Você foi primeiro em outras coisas também. — Tento usar o
mesmo tom, mas minha voz parece sair um pouco mais fina.
— Não estou lembrando…
— A primeira vez que bebi cerveja estava ao seu lado.
— Sério? — Apesar de ele manter os olhos nas ruas, ainda com
pouco movimento, consigo ver suas sobrancelhas se levantarem, pela lateral
dos óculos.
— Sim! Numa das festas que você e Austin organizaram, após o time
da escola ganhar um torneio municipal.
— Aquela que voltou carregada para casa?
— Essa mesmo. — Reviro os olhos, mesmo sabendo que ele não
poderá ver. — A que tiramos aquela foto da qual Austin fez questão.
— Sério? Você tem essa foto? — Ele se vira rapidamente para mim e
eu aquiesço. — Me mostra?
— Acho que a tenho em algum lugar do meu drive[11]. Tenho outras
também…
— Vou querer ver tudo! — ele exclama, com a voz grave.
— O bom de termos o final de semana inteiro é que poderei te contar
todas as fofocas da última década. — Essa é a minha tentativa de deixar as
coisas mais leves.
— Estou feliz por saber que será você quem vai me atualizar de tudo.

Meu pai sempre teve medo de qualquer transporte que voe, mas
helicóptero era algo que realmente o aterrorizava. Perdi as contas de
quantas vezes encaramos longas viagens de carro, porque o outro meio de
transporte estava fora de cogitação.
Acompanho as mãos de Conrad, que puxam e prendem o cinto de três
pontas, atando o meu corpo ao banco da aeronave. Ele coloca os fones
sobre as minhas orelhas e logo consigo escutar o chiado do aparelho sendo
ligado.
— Consegue me escutar? — A voz de Conrad sai um pouco
metalizada, mas, ainda assim, totalmente compreensível.
Vejo o piloto se arrumar, checando informações e tirando dúvidas
com Conrad. Mesmo com o fone, o som das pás começando a girar é alto.
O helicóptero voa baixo até chegar ao início da pista de decolagem. Em
questão de poucos segundos, estamos a muitos metros do chão.
A cidade lá embaixo parece não ter fim. É um mar cinza, composto
por uma quantidade impressionante de prédios. Talvez seja parecido com
Nova York, mas não consigo afirmar, porque fiquei apenas dois dias aqui e
consegui conhecer um total de zero coisas, nem mesmo pela Times Square
pude andar. Graças a minha chefe, que me obrigou a segui-la, mesmo
sabendo que minha presença era totalmente desnecessária na última reunião
do primeiro dia.
Aos poucos, a paisagem vai mudando. O verde vai tomando conta e
vejo aqui e acolá algumas cidades no meio do caminho, mas nenhuma delas
chega nem próximo ao tamanho de São Paulo. Olho para o lado e Conrad
parece estar completamente perdido em seus próprios devaneios, 0 rosto
virado para o lado oposto.
Estou me obrigando a focar no presente, prestar atenção em cada
detalhe, porque sei que, no momento que entrarmos na espiral, vou me
esquecer do exterior. Seremos apenas eu e Conrad por dois dias inteiros, e
estou totalmente ciente de que não sairei ilesa, não tem como.
O piloto diz algo no comunicador em português e Conrad agradece.
"Obrigada" foi a primeira palavra que aprendi.
— Ele avisou que pousaremos dentro de cinco minutos. — Meu
amigo traduz para mim.
— Para onde você me trouxe, afinal?
— Nós estamos em Monte Verde, no estado de Minas Gerais. E é para
cá que eu fujo sempre que posso… o sinal de internet é péssimo, o que
dificulta me encontrarem.
— Você não tem Wi-Fi aqui?
— Até tenho — ele ri —, mas faço questão de deixar desligada.
Tenho um telefone fixo dentro da casa que apenas Bernardo e minha
secretária tem o número. Se ele tocar, é porque algo de muito importante
aconteceu.
— É estranho escutar algo assim vindo de você.
A verdade é que minha ficha ainda não caiu cem por cento. Talvez
leve bem mais do que um final de semana para assimilar tudo isso que vem
acontecendo nos últimos dias.
Meu corpo chacoalha, assim que a aeronave pousa. Sem que eu peça,
Conrad me auxilia a tirar no cinto e logo a porta é aberta para que possamos
sair. As pás ainda giram com força, causando um vento considerável ao
redor. Me surpreendo quando percebo que está bem mais frio aqui e, por um
momento, pergunto-me se estou mesmo no Brasil.
Há uma casa mais à, frente que lembra muito a arquitetura de algumas
cidades da Europa. A casa de madeira, com o telhado alto e pontudo, parece
ser aconchegante, mas requintada, ao mesmo tempo. Exatamente como o
dono, que conversa com um senhor após um abraço rápido.
Aproximo-me com cautela, para que Conrad perceba que estou
fazendo isso. O senhor sorri para mim e bate nas costas do meu amigo.
— Hanz, essa é Georgina, uma antiga amiga de infância. — Conrad
me apresenta, em alemão.
— É um prazer, para mim, conhecê-la. Tenho certeza de que é alguém
realmente especial para estar aqui.
— É um prazer conhecer o senhor também.
Tento não pensar no que ele quis dizer com essa frase, que talvez
tenha sido apenas por educação.
— Está tudo arrumado para vocês passarem o final de semana.
Inclusive, o estoque de geleia foi reabastecido essa tarde. O carro está com
o tanque cheio, caso queiram ir até a cidade.
— Obrigado, Hanz.
— Já liguei o aquecedor da casa. E a lenha para a lareira está na sala,
como me pediu.
Conrad gesticula com a cabeça e bate com uma mão no ombro do
senhor em forma de agradecimento. Um vento realmente gelado atravessa o
casaco que estou usando e por puro instinto passo as mãos nos braços.
— O que acha de entrarmos?
— Melhor sugestão até o momento.
Sem que eu possa prever, Conrad tira a própria jaqueta e joga sobre
meus ombros e seu cheiro invade meu sistema olfativo mais uma vez. Seu
perfume é ridiculamente bom. É o que Lizzie classifica como cheiro de
homem. Eu me sinto estranhamente confortável com ele… mesmo tendo
ciência de que não conheço mais o homem que anda ao meu lado.
Conrad posiciona o dedo na maçaneta e ela se abre. E exatamente
como imaginei instantes atrás, a casa é confortável e, sobretudo,
aconchegante. Os móveis escuros, as cortinas claras. Uma televisão enorme
está pendurada em frente ao sofá de couro marrom-escuro e, logo ao lado,
há uma lareira simples que combina com o estilo da casa.
Em conceito aberto, a cozinha está mais adiante. E apesar de seguir o
mesmo padrão, tenho certeza de que é composta por tudo o que há de mais
tecnológico.
— O que achou?
— É incrível! Simplesmente perfeita. Me lembra um pouco o sítio da
minha avó. Eu poderia, facilmente, morar num lugar assim.
— Já pensei nisso algumas vezes.
— Conhecendo um pouco desse novo Conrad, tenho certeza de que
sim. — Ele sorri para mim.
— Você quer que eu aumente a temperatura? — Percebo que continuo
com a jaqueta dele e me apresso a tirar, sentindo-me estranhamente
envergonhada. — Se quiser, pode ficar Gió.
— O clima aqui me pegou de surpresa.
— Monte Verde também é conhecido como a Suíça brasileira… não
só pelas construções e cultura, mas também porque o clima daqui lembra
muito o de lá.
— Você continua o mesmo sabichão de sempre, Connie.
Ele dá de ombros, com um sorriso de lado que fazem minhas pernas
bambearem. Se continuar assim, talvez eu peça para que ele diminua a
temperatura do aquecedor central. Com alguma chance até de desligar.
Nunca senti tanta falta de Tommy quanto agora. E meu sexto sentido
diz que vai piorar até no final do dia.
— Vou te mostrar o resto da casa.
Ele abre uma das portas da sala que nos leva a um corredor curto.
— Meu quarto é esse — Conrad aponta para a direita. — E o seu é
esse aqui. — Bem em frente ao dele, o que não faz diferença alguma.
Certo? — Achei melhor, porque, caso você precise de algo à noite, é só
bater.
O primeiro pensamento que surge dentro da minha cabeça chega
perto de ser imoral. Sinto meu rosto esquentar.
Conrad é meu amigo.
Vou repetir e repetir essa frase quantas vezes for necessário até que
minha mente e meus hormônios sejam capazes de entenderem.
— Você quer que eu diminua a temperatura? — A pergunta me pega
de surpresa.
— Não, por quê?
— Suas bochechas estão vermelhas.
É claro que ele iria perceber. Vejo um brilho diferente em seu olhar,
mas prefiro acreditar que é coisa da minha cabeça.
— É… bom… acho que é calor mesmo. — Estou gaguejando. Ótimo.
Conrad pega o celular e ajusta a temperatura pelo aplicativo. Não
terei cinco minutos para me recuperar.
— O pessoal preparou um café da manhã de boas-vindas. — Conrad
parece ficar encabulado. — É a primeira vez que eu trago alguém aqui. Eles
quiseram fazer algo especial, com algumas comidas típicas.
— Que bom! — Abro um sorriso. — Estou morrendo de fome.
— Depois, podemos conhecer a propriedade. O que acha?
— Perfeito.
Conrad Santoro é meu amigo. Somente isso.
Há uma rima e há uma razão
Para o mundo selvagem lá fora
Quando o coração deste viajante malfadado
Bate no mesmo compasso que o seu
(Can you feel the love tonight - Elton John)

Já recapitulei, até mesmo, as aulas que tive com um sushiman


japonês, anos atrás, para tentar disfarçar o quanto Georgina mexe comigo.
O sorriso fácil, os gestos tranquilos, mas o olhar decidido que não sobra
dúvida do que quer e para onde vai.
Depois do café da manhã, ela pediu para descansar um pouco e eu
acabei pegando um livro e cochilando no sofá da sala. Foi algo que parecia
dolorosamente familiar, mesmo nunca tendo acontecido algo assim antes.
— Você tem cavalos? — ela pergunta, interrompendo meu raciocínio.

Sem que eu percebesse, havíamos caminhado até os estábulos, mais


ao fundo da propriedade. A temperatura estava baixando rapidamente e,
logo mais, o sol iria se pôr ao horizonte.
— Todos são animais de resgate — digo —, que estão em
recuperação.
Uma das éguas aparece, assim que colocamos os pés no estábulo.
Kitty foi a primeira que consegui salvar e trazer para cá. Aproximo-me com
cautela, levantando a mão em direção ao seu focinho, para segundos depois,
ela aceitar o carinho.
— Essa é a Kitty. — Esfrego a lateral do animal, — Faz dois anos que
está aqui com a gente. No começo, não queria que ninguém se
aproximasse…
— Ela é perfeita. — Georgina fica onde está.
Estendo a minha mão em um convite mudo, e Gió não parece pensar
duas vezes antes de aceitar. Apesar do frio, o seu toque é quente e o choque
entre a temperatura de nossas peles é inevitável. Seus olhos encontram os
meus e sinto um reconhecimento primitivo, que ultrapassa qualquer
explicação lógica. Se eu acreditasse, até diria que era algo mais antigo do
que o começo dos tempos.
Kitty faz um barulho, rompendo o momento, e não sei se a agradeço
por isso, ou não.
— Qual a chance dela me morder? — Gió fala baixo, quase em um
sussurro.
— Nenhuma… — digo, tranquilo, mantendo a mão na égua. —
Inclusive, ela está esperando que você faça carinho nela.
Quando, enfim, Georgina toca em Kitty, o animal se mexe contente.
Totalmente relaxada.
— Ela é linda!
— Sim, muito.
Definitivamente, não estou falando do cavalo.
Desde o momento em que a vi, sem ter noção nenhuma de quem era,
algo chamou a minha atenção. E quando descobri sua identidade, tudo
parece ter ganhado outra proporção.
Por diversas vezes, durante esses últimos dias, me peguei olhando
para o seu contato, abrindo a foto de perfil e analisando cada traço, para ver
de quais eu me lembrava e quais eram novos. Deixei de prestar atenção em
algumas reuniões com diretores, o que gerou muitos olhares cheios de
malícia vindos de Bernardo.
Eu até poderia negar de pés juntos para o meu amigo, mas a verdade é
que estava ansioso pelo final de semana. Aqui e agora, assim como todos os
dias anteriores, estou curioso para saber mais sobre a mulher estonteante,
que conversa com Kitty com tanto amor.
— Não sabia que gostava tanto de cavalos.
— Você se lembra do Vento? — Nego com a cabeça. — Foi um
cavalo que ganhei do meu avô quando eu tinha uns dez anos. Ele morreu de
velho, uns anos atrás… e, desde então, nunca mais me aproximei de outro
cavalo.
Ela se afasta um pouco e vejo que abraça o próprio corpo. Barulhos
chamam a nossa atenção e vemos que é o pessoal chegando, para cuidar dos
animais. Do lado de fora, a cerração começa a cair e a visibilidade começa a
diminuir.
Assim como fiz mais cedo, tiro o casaco que estou usando,
colocando-o sobre os ombros de Georgina. E, como um flash, a imagem de
ela nua, usando nada além da peça de roupa, passa pela minha mente.
— O que acha de voltarmos para a casa agora? — Preciso fugir dos
meus próprios pensamentos.
— Quer dizer que comerei a comida do chef mais aclamado da cidade
novamente?
Não consigo evitar de rir e, sem pensar, passo meu braço sobre os
ombros dela, como se uma década não houvesse passado. Minha
musculatura enrijece no segundo seguinte, porque, diferentemente de antes,
eu a vejo como mulher eu quero.
— Posso saber o que vamos comer? — ela insiste.
Ao contrário de mim, Gió está relaxada. Andamos lado a lado, e ela
faz questão de manter a conversa fluindo, obrigando-me a contar detalhes
do fondue de queijo com pão de fermentação natural que iremos jantar.
A mão esquerda de Georgina envolve a minha cintura e seu corpo se
aproxima um pouco mais do meu, enquanto caminhamos morro acima, em
direção à casa que fica no topo. Nunca estive assim com alguém durante
todo esse tempo, nem mesmo com Milena, que é minha foda fixa dos
últimos anos.
Aperto seus ombros e ela deixa a cabeça cair, encaixando-a na curva
do meu pescoço, e beijo seus cabelos em um movimento impulsivo.
Aparentemente, não tenho mais controle nem sobre os meus gestos e muito
menos sobre meus pensamentos.
— Senti sua falta — Gió murmura. — Foi uma grande merda não ter
você por perto.
— Foi uma bosta não estar por perto também — respondo.
Enquanto caminhamos, a sensação que me toma é de que esse tempo
todo longe de Georgina foi um longo dia que, enfim, parece estar
terminando.
Quando colocamos o pé dentro da casa, ela se afasta, mas, assim
como eu, parece estar relutante em fazer isso. De frente para mim, Gió abre
a boca, mas a fecha por fim, colocando um sorriso no lugar. Seus olhos são
o que chamam de “janela da alma”, porque sou capaz de ver todas as
perguntas contidas neles.
— Vou tomar um banho... — digo, quebrando o silêncio.
— Farei o mesmo! — ela afirma, sem quebrar o contato visual.
Seguimos lado a lado, até ficarmos de frente para as nossas próprias
portas.
— Até daqui a pouco, Connie — ela diz, antes de sumir dentro do
próprio quarto.
Enquanto vou me despindo, a caminho do banheiro, a cena vai se
montando em minha cabeça e não sou capaz de frear minha imaginação.
Tirar a cueca é um alívio para mim, porque meu membro já salta duro e sei
que, mesmo que eu tome um banho gelado, não irá resolver. O fato é que
preciso bater uma punheta enquanto penso em Georgina Romano tomando
banho, do outro lado do corredor.
Fecho os olhos e entro sob o jato quente de água, apoiando a cabeça
na parede logo à frente, enquanto minha mão envolve meu pau. A imagem é
quase real para mim… ela tira a roupa lentamente. Primeiro, as blusas para
logo em seguida tirar a calça, ficando apenas com um conjunto simples de
lingerie.
Ela solta os fechos que prendem o sutiã, libertando os seios firmes
que, com certeza, encaixam-se perfeitamente em minhas mãos. Agora, é a
vez da calcinha, que ela abaixa com as duas mãos, empinando a bunda e por
algum motivo, tenho certeza de que minha imaginação jamais fará jus à
realidade.
Aumento a pressão dos meus dedos e a velocidade com a qual vou e
volto. Quando o clímax chega, só deixo os espasmos tomarem o meu corpo
e a liberação acontecer, enquanto a imagem de Georgina, completamente
nua, esvai-se da minha mente aos poucos.
Enquanto tomo meu banho, a verdade cai sobre mim: uma punheta
nunca será o suficiente, não fará com que a minha atração por ela acabe.
Será que se eu a experimentar, se a tiver entre meus braços, vai acabar?
Algo lá no fundo da minha mente ressoa, como um alarme, mas ouço
apenas o silêncio.

Quando Gió aparece, já está tudo arrumado. A mesa posta com o


rechaud [12]cheio de queijo borbulhante e pedaços de pão em cubos, já
torrados. Nós comemos em meio a conversas sobre lembranças do passado,
mas ainda fugindo do assunto que, uma hora ou outra, precisaremos
conversar.
Foi um acordo mudo, mesmo sabendo que não iremos escapar.
Georgina tem a incrível capacidade de me fazer sorrir com uma frequência
que me impressiona.
Afasto a cadeira para ela se sentar e recebo uma mesura em troca,
arrancando-me uma nova risada. Tem sido fácil rir nos últimos dias, o que
me obriga a dar razão para Bernardo, quando ele diz que, até a chegada de
Georgina, eu tinha desaprendido essa função básica que vem com todo ser
humano.
— Preciso guardar espaço para o doce! — Gió raspa o pedaço de pão
no fundo da panela. — Se morássemos perto, seria difícil manter o peso.
— Você acha que eu cozinharia para você todos os dias? — Ergo as
sobrancelhas.
— Claro que sim! — Ela dá um gole no vinho. — Você jamais teve
coragem de dizer não para mim e duvido muito que começará a fazer isso
agora. — É, isso é verdade e jamais seria capaz de negar. — Sabe o que
acho? — Nego com a cabeça. — Que deveríamos começar a assar os
nossos marshmallows.
Ela se levanta, pegando a garrafa de vinho e as duas taças, indo em
direção à lareira, que já está acesa. Gió se senta no chão, sobre o tapete
felpudo, e agarra o saco, nos quais estão os doces brancos, que deixei ali
mais cedo. Os espetos que iremos usar também já estão na posição, apenas
nos esperando.
— Acho que posso melhorar! — digo, indo em direção à dispensa.
Encontro um pacote de bolachas e uma barra de chocolate meio
amargo que vai servir para o propósito.
— S’mores[13]? — Aquiesço. — Nunca comi!
— É uma adaptação, considerando que não tenho a bolacha… —
digo, mas paro de falar quando ela bate com a mão ao seu lado, pedindo
para que eu me sente ali.
— Você acha que me importo?
— Não, nem um pouco.
Ajeito-me no tapete, pegando um dos espetos e já colocando um doce
na ponta. Gió faz a mesma coisa. Nós ficamos em silêncio, vendo o
marshmallow começar a tostar no fogo.
— Me conte um segredo — digo.
Seus movimentos se tornam lentos, colocando o doce junto do
chocolate e, depois, levando-os aos lábios. Meu pau, dentro da calça, salta
ao ver seu rosto de prazer, enquanto degusta o que está dentro da boca.
— Tenho pensado muito em você — ela diz, sem rodeios, quase em
um murmúrio.
Georgina se vira totalmente para mim, o rosto a poucos centímetros
do meu. Nós estamos no mesmo barco.
— Agora, é a sua vez — Gió sussurra, a respiração batendo em minha
pele. — Me conte algo que eu ainda não sei.
— Você não sai da minha cabeça, Georgina Romano. — Aproximo o
rosto um pouco mais do dela. — Desde o momento que te vi na sala de
reunião, dias atrás, sem ter a mínima noção de quem você era.
Envolvo o rosto dela com as duas mãos, trazendo-a para mim de uma
vez. Nossas bocas se chocam e minha língua pede passagem através de seus
lábios. Ela ri, nos afastando por um breve momento e eu acompanho,
porque o Conrad de anos atrás jamais imaginou beijar sua melhor amiga
algum dia.
É o fogo que arde sem se ver.
Georgina sobe em meu colo e se encaixa, colocando as pernas uma de
cada lado do meu quadril. Seus dedos se enroscam em meus cabelos,
puxando-os enquanto meus lábios exploram seu pescoço, que tem o que já
defini como o melhor perfume do mundo.
O quadril de Gió me pressiona, arrancando um gemido sofrido de
mim. Busco a barra do moletom que ela está usando e sob ele, encontro a
pele quente, que se arrepia sob meu toque. Eu preciso explorar cada pedaço
dela, cada detalhe de seu corpo…
— Caralho, Gió…
Não há sutiã por baixo da roupa e escuto um riso rouco sair por sua
boca, chegando em meus ouvidos. Seu hálito quente me causa um arrepio e
minhas bolas se contraem um pouco, quando ela encontra um ponto
particularmente sensível na curva do meu pescoço.
Quando minha mão pressiona seus seios, ela geme sem pudor. Brinco
com os mamilos duros entre meus dedos, ora puxando-os de leve, ora
beliscando, mas sentir não é o suficiente. Eu quero vê-los para ter certeza de
que minha imaginação está muito longe da verdade.
Georgina ergue os braços, me dando a permissão muda de que
preciso. Desenrolo, sem pressa alguma, as duas peças que ela está usando
para se proteger do frio. Aos poucos, a pele imaculada vai se revelando e
meu pau pulsa, ainda preso dentro dessa maldita calça.
Jogo as peças para longe, tendo uma visão completa dos seios
empinados, que me provocam. Georgina os empina oferecendo para mim e
eu aceito, tomando um deles na boca e o que recebo em troca é um gemido
de satisfação vindo dela, que percorre todo o meu sistema nervoso. Eu a
quero como nunca quis nenhuma mulher em toda a minha vida.
Agora, é a minha vez de ter a camisa tirada, mas, diferentemente de
mim, ela tem pressa. Seus olhos me encaram com atenção, olhando cada
uma das marcas que, hoje, não passam de pequenas linhas finas ao longo do
meu peito. Seus dedos as percorrem e eu fecho os olhos, deixando que ela
faça o que bem entender.
As mãos percorrem meu peito, e as unhas arranham a pele de leve,
causando novos arrepios que se espalham por todo meu corpo de maneira
assíncrona. Minha batalha interna acaba quando percebo que Georgina está
abrindo no botão da minha calça, enredando a mão por dentro da minha
cueca, tirando meu pau para fora, logo em seguida.
— Porra, Gió, não faz…
Tarde demais!
Ela me coloca em sua boca, sem pudor algum. Língua, lábios e mãos
trabalham em conjunto, subindo e descendo.
— Tire a roupa. — Minha voz sai grossa.
Ela levanta o rosto, mas a boca segue a centímetros do meu pau. Sua
língua passa nos lábios, no gesto mais sensual que já vi na vida. E Georgina
se afasta, ficando lentamente de pé. A calça de moletom preta vai
escorregando pelas pernas, revelando uma calcinha também preta e simples.
Acompanho cada movimento, sentindo minhas bolas apertarem e meu pau
pulsar.
Georgina é muito mais perfeita do que qualquer imagem que criei. Os
seios pequenos e empinados, a cintura firma, o quadril largo e o triângulo
perfeito entre as pernas que não vejo a hora de me enterrar.
Desajeitado, como um adolescente prestes a ter sua primeira vez, tiro
a roupa de qualquer jeito, jogando-a em um canto qualquer, porque meu
único e exclusivo foco é a mulher à minha frente, que agora se abaixa, um
joelho de cada lado do meu corpo novamente. Posiciono-me em sua entrada
e meu pau escorrega até o fundo, unindo nossos corpos de uma única vez.
Estar dentro dela é muito além do que eu poderia imaginar.
O primeiro movimento me faz ir até próximo a lua e voltar. Caralho.
Respiro fundo a cada sentada dela e fecho os olhos com força, quando suas
unhas passam pelo meu peito.
Eu a puxo para mim, colocando nossos corpos. Com as mãos, seguro
firme sua bunda e sou eu quem faço os movimentos agora. Com força,
certeiros e ritmados. E a próxima coisa que escuto é um gemido mais alto,
seguido de uma mordida em meu ombro.
— Porra, Gió…
É difícil falar, mas principalmente pensar.
Com um dos braços, seguro firme a cintura dela, trocando nossas
posições, trazendo-a para baixo de mim. Nossos olhos se encontram e tenho
a sensação de que estou perdido, e não poderia me importar menos.
Beijo cada parte do seu corpo. Até chegar aonde eu quero, no centro
do prazer dela. Seu quadril vem de encontro ao meu rosto e eu solto uma
risada ao perceber que estamos totalmente rendidos a esse momento.
E então eu encontro exatamente o ponto que faz ela arquejar e soltar
um gemido longo. Georgina tem o melhor gosto do mundo, em todos os
sentidos. Uso tudo o que posso para senti-la se derretendo para mim,
entregando-se completamente.
— Connie…
Ela diz meu nome incontáveis vezes, enquanto a chupo e a penetro
com os dedos. Um grito de puro êxtase escapa pela boca dela, seguido pelos
tremores que tanto estava buscando.
— Eu quero você.
Consigo distinguir entre suas falas. Entro nela de uma vez só,
juntando-me ao ritmo de seus espasmos, entregando-me para aquele
momento e me livrando da consciência. Nenhum pensamento coerente é
capaz de se formar enquanto me enterro cada vez mais fundo nela.
Suas pernas me travam quando um novo orgasmo a atinge e eu me
enterro ainda mais profundamente dentro de seu corpo. É nesse momento
que eu chego no ápice e tudo ao redor some.
Eu fui derrubado,
queimado,
voltei vitorioso da morte
Afinado, ligado
Lembrei das coisas que você disse
(I’ll be - Goo Goo Dolls)

Tento me mexer, mas não consigo. Aos poucos, a consciência vai


voltando e o cheiro de jasmim, misturado a limão, vai tomando conta do
meu olfato. Pisco algumas vezes e reconheço meu quarto, na penumbra,
devido a cortina fechada. Georgina dorme sobre o meu peito, os cabelos
espalhados e a respiração profunda e tranquila.
Explorei cada canto do corpo perfeito durante a noite e, por fim,
quando já estávamos exaustos, viemos para o meu quarto. Nunca, durante
todos esses anos, literalmente dormi com uma mulher. Elas sempre saem no
meio da noite ou eu vou embora, assim que tudo está terminado, mas foi
diferente com Gió. Adormecer com ela foi tão natural quanto o nascer do
sol em um novo dia.
Não consigo me recordar a última vez que dormi tão tranquilamente,
sem precisar de remédios controlados para isso. Apenas adormeci, com o
corpo exausto e a mente estranhamente tranquila.
— O que são essas marcas?
A voz dela chega rouca em meus ouvidos e eu sinto, logo em seguida,
seus dedos percorrerem as cicatrizes em meu peito.
— Algumas brigas que me meti nas ruas de Berlim — respondo.
— O que aconteceu, Conrad?
Levo minhas mãos até os cabelos dela, mexendo nas mechas
castanhas, enquanto tento me lembrar de algo que parece ter acontecido em
outra vida, com outra pessoa. As pernas de Gió se entrelaçam mais nas
minhas e ela aguarda, paciente.
— Fui acolhido por um casal numa fazenda por alguns meses, até me
recuperar. Por incrível que pareça, eles não me reconheceram e, quando me
senti bem, esperei uma noite para ir embora, apenas deixando um bilhete de
agradecimento por tudo o que fizeram. — O ar sai pesado dos meus
pulmões. — Recentemente, eles ganharam um prêmio em um sorteio do
qual não estavam participando, inclusive… mas, bom, quando fugi dali,
peguei uma carona com um caminhoneiro na estrada que me deixou na
capital da Alemanha. Procurar parentes estava fora de cogitação, então
fiquei nas ruas. Tornei-me um deles e tudo o que compete a essa situação.
— Como veio parar no Brasil?
— Conheci um cara fodido, que me prometeu uma grana igualmente
fodida, caso eu fizesse alguns serviços para ele. Em vez do dinheiro, pedi
um passaporte e uma passagem para o primeiro país que veio à minha
mente e que ficava em outro continente. Nada de especial, apenas uma
decisão aleatória, no final das contas. — Fiz uma quantidade incontável de
merdas que poderia muito bem me levar à cadeia, mas se há algo no qual
penso é que paguei por todos os meus pecados, durante aqueles malditos
meses que estive em Berlim. — Essa cicatriz, em que você está passando o
dedo, foi o corte de uma faca… a outra, mais embaixo, um canivete que me
perfurou. — Sinto que ela prende a respiração. — Tem outras que sequer
me lembro de como ganhei. Bom, no fim das contas, o chefe, como ele
costumava ser chamado, entregou-me um passaporte e uma quantia
considerável de dinheiro, que me manteve por algum tempo aqui.
— Connie…
— Já passou. — Beijo seus cabelos. — Chegar, aqui, ao Brasil foi um
bálsamo. Era o que eu precisava para começar uma nova vida e batalhei
para isso. Conheci Bernardo por acaso, enquanto trabalhava como
garçom… ele estendeu a mão para mim e não passei fome, porque ele
nunca permitiu que isso acontecesse. Consegui uma bolsa de estudos para
Gastronomia e, quando terminei a faculdade, o atual CFO da Santoro
resolveu investir num restaurante. Começamos a ganhar dinheiro muito
rápido e eu aprendi algo muito importante: dinheiro faz dinheiro. Me matei
de trabalhar, consegui entrar como sócio dele e aqui estamos, sete anos
depois.
Georgina segue muda, seus dedos continuam a exploração em minha
pele, mas ficar aqui, nesse silêncio, começa a me incomodar, como se o
mundo estivesse fechando ao meu redor.
— Vou fazer algo para comermos. — Ela sai de cima de mim e eu me
sento no mesmo momento.
— Certo… — Seus olhos me analisam, mas não há julgamento neles.
— Só vou ao banheiro e já te encontro lá, pode ser?
Apenas aquiesço e pego a primeira calça de moletom que encontro,
no guarda-roupa que mantenho com algumas peças para emergência.
Apenas a visto, saindo do quarto, em seguida.
Não consigo esperar que ela diga qualquer coisa e não quero ver o
olhar de pena em seu rosto. Nunca precisei desse tipo de sentimento e,
agora, muito menos, quando tenho uma vida sólida construída. O que me
fode, mas que ninguém sabe, além da minha terapeuta, é essa maldita
insegurança que me assola e me obriga a aparentar que nada me atinge. É
um caralho mesmo. Que eu sou um fodido mentalmente, todos que tem
contato comigo sabem… mas eu não queria que ela percebesse.
Abro os armários da cozinha e eles estão abastecidos, como sempre.
Vou separando as geleias, torradas, chás e os grãos de café, para triturar na
hora. Cozinhar ainda hoje é a minha terapia principal, é onde consigo me
focar plenamente e me auto-organizar.
— Conrad…
A voz suave de Gió me faz virar. Ela está vestindo a mesma camisa
que usei no dia anterior. A barra bate no meio das suas coxas, os pés estão
descalços e os cabelos presos em um coque solto, que faz com que alguns
fios saiam desordenados. O sentimento de posse surge instantaneamente,
mas me seguro para não ir até ela e reclamar sua boca para mim.
Como sempre, faltam-me palavras. Ela caminha até mim, um passo
na frente do outro, sem pressa alguma. E, como instantes atrás, não há
julgamento algum em seus olhos. Ela para a poucos centímetros de mim,
distante o suficiente para que a gente não se toque.
— Não me importo com o seu passado — ela diz, séria. —
Independentemente do que aconteceu, sei que fez o que precisava para
sobreviver e está vivo, aqui e comigo. Com algumas cicatrizes, sim, mas
inteiro. — Ela estica a mão e toca no meu rosto. — Não tenho pena de você
e prometo que nunca terei…
Eu quero que se foda o resto do mundo.
Puxo para mim, mais uma vez, pegando-a no colo. Nossa harmonia é
perfeita, porque ela entrelaça as pernas em minha cintura, enquanto eu a
seguro pela bunda. A primeira superfície disponível, que encontro para
colocá-la, é a bancada ao lado da pia. Encaixo-me nela, puxando sua blusa
para cima e agarrando sua cintura com força.
A urgência dela é a mesma que a minha e, mais uma vez, estamos em
sintonia completa.
Eu a mordo no ombro e recebo um gemido de satisfação em troca. É
primitivo e sem controle algum, mas parece que é algo que existe entre nós.
Quando me afasto, vejo a marca ali… mas não tenho tempo para processar,
porque seus dedos envolvem meu pau e eu reclamo sua boca para mim.
Sim, irei transar com Gió sobre o balcão da minha cozinha.
É uma confusão sincronizada de mãos, beijos e línguas. Afasto sua
calcinha, deslizo para dentro e ela grita, arrancando o que há de mais
ancestral dentro de mim. É sem lógica… porque sou eu e Georgina aqui,
contra todas as probabilidades. Minha melhor amiga de infância e
adolescência está nos meus braços, a cabeça jogada para trás, gemendo meu
nome.
E eu vejo os sinais no corpo dela, que treme, a boca aberta, os dedos
se afundando em meus cabelos. Tudo no meu corpo indica que estou tão
próximo do êxtase quanto ela e deixo minha consciência vagar. Nossos
corpos se conectam em mais um orgasmo. Tão poderoso quanto todos os
outros que tivemos juntos.
Apoio a cabeça no ombro dela, a respiração pesada e o coração
acelerado. E só então percebo algo que gela o meu estômago.
— Nós não usamos camisinha nenhuma vez — digo, afastando-me.
— Nunca transei sem camisinha e meus exames estão em dia… — Sinto o
desespero tomar conta de mim. — Se acontecer alguma coisa…
— Conrad — ela estende a mão em minha direção, puxando-me de
volta para seus braços —, tomo anticoncepcional há anos e tive três
parceiros até hoje. Sempre usei preservativo também. Está tudo sob
controle, OK? — Eu aquiesço, tomando-a nos braços. — Não me lembrava
de que você era tão controlador assim!
Solto uma risada, porque não há uma reprimenda em sua voz, apenas
diversão e uma tentativa clara de aliviar a tensão do momento.
Por algum motivo desconhecido, sinto-me repentinamente
incomodado ao pensar que outros homens já a viram assim. E, mais uma
vez, empurro a sensação para baixo de um tapete na minha própria mente,
até porque, em poucos dias, não precisarei mais lidar com isso. Gió voltará
para Emerald e seguiremos conversando por aplicativo de mensagem.
Isso que rolou entre nós foi algum tipo de loucura, algo relacionado à
nossa adolescência, um motivo que provavelmente minha terapeuta consiga
me explicar de forma racional.
— Preciso tomar um outro banho…
— Vou com você! — eu a interrompo, e ganho uma gargalhada em
troca. — Tenho certeza de que irá precisar de alguém para lavar as suas
costas.

Estamos na hidromassagem, curtindo os últimos momentos antes de


precisarmos partir de volta para São Paulo. Georgina está com as pernas
sobre as minhas, os olhos fechados, completamente relaxada.
Pego o meu celular na beira e verifico o horário. Talvez esse seja o
último momento para perguntar o que aconteceu com a minha família,
durante todos esses anos. Foi relativamente fácil não ter notícias deles,
afinal Emerald não é um país digno de nota no Jornal Nacional ou em
qualquer outro meio de comunicação. E eu também nunca fui atrás, nem
mesmo pela internet. O passado estava morto e enterrado, até Georgina
aparecer dentro da Santoro.
— O que aconteceu?
Gió abre os olhos, ajeitando-se de maneira a ficar com as costas retas
à minha frente.
— Muitas coisas, mas algumas são obscuras para mim.
— Conte o que você souber.
Ela bate os dedos na água e crispa os lábios, suspirando em seguida.
— Depois que você sumiu, tudo se tornou um verdadeiro caos. Minha
mãe passou dias ao lado da sua, auxiliando nas buscas… lembro-me de uma
noite, em que estava vendo as principais notícias do dia com o meu pai e
disseram que um corpo havia sido encontrado carbonizado, numa floresta
bem próxima da capital. Sua mãe surtou completamente e precisou ficar um
tempo internada no hospital para se recuperar. Foram momentos de
desespero, até que fosse descartada a possibilidade de ser você ali, mas
Pauline nunca mais foi a mesma. Inclusive, faz muito tempo que não a vejo.
Escutar o nome da minha mãe, depois de tantos anos, era estranho.
Obrigo-me a respirar, sentindo todos os meus músculos tensos, mas, mesmo
não querendo saber mais, eu iria até o final.
— Quanto a mim e Austin, no começo, éramos parados por jornalistas
que queriam saber sobre você… quais eram seus sonhos de vida, se você
tinha algum relacionamento escondido e, até mesmo, qual era a sua marca
de cueca favorita. Nessa mesma época, um cara totalmente aleatório nos
parou, na porta de saída do colégio, para perguntar se você era usuário de
drogas e nós demos risada… — Ela nega com a cabeça. — Mas, logo em
seguida, começou um boato de que você havia encomendado a morte do seu
tio, para ter acesso ao dinheiro que ele havia destinado a você…
— O quê?
— Olha, só sei que levantaram essa hipótese quando foi descoberto
que seu tio havia feito uma série de investimentos no seu nome e era um
valor considerável… — Ela me olha atenta. — Mas que você só teria
acesso ao completar dezoito anos e, claro, tinha todo o negócio de assumir a
empresa…
— Nunca soube dessa grana! — defendo-me, mesmo sabendo que
não tenho motivo para isso.
— Eu acredito em você! — Georgina se apressa a dizer e noto que
meu corpo está todo tenso. — Foi aberta uma investigação e nenhuma
acusação foi provada. Só não sei de muito além disso porque correu em
segredo de justiça e ninguém falava nada para mim… muito do que
descobri foi me esgueirando pelos cantos…
— Quem assumiu a Lowe?
— Seu pai. — Não me surpreende, até porque, não era segredo para
ninguém o quanto ele sonhava com isso. — Eu entrei lá ainda como
estagiária e fui subindo. Hoje, estou como gerente do financeiro e, mesmo
assim, fui mandada para cá. — Ela dá de ombros. — A empresa está muito
ruim, Connie… abandonada, sabe? Não há mais nada daquilo que era
antigamente. Ninguém mais quer trabalhar lá ou fazer negócios com a
Lowe. Talvez, se você voltasse, tudo poderia ser como antigamente, ou
muito melhor. Não digo para abandonar a Santoro…
— Essa opção não existe, Gió — digo no mesmo momento,
interrompendo sua fala. — O Conrad que deveria assumir aquela empresa
morreu há muito tempo.
— Mas Connie, não estou falando para deixar os restaurantes de
lado…
— Tenho certeza de que meu pai faz o melhor que pode para manter o
legado da família, ao qual eu não pertenço mais. Estou morto e é assim que
irei permanecer.
— Você não está compreendendo a gravidade da situação, Conrad. —
A expressão séria dela chama a minha atenção. — A última esperança era
fechar o contrato com a Santoro, porque daria a oportunidade de entrar na
América do Sul e recuperar um pouco do dinheiro.
— Isso não vai acontecer. Como já te disse, a Santoro não comprará
nada da Lowe.
— Seu pai está afundando a empresa. Não acho que ele se importe
com o redor. Centenas de pessoas foram mandadas embora e tem pelo
menos trinta, no momento, com o aviso que os contratos serão encerrados
nos próximos vinte e cinco dias. — Ela se levanta da hidromassagem e não
consigo evitar de seguir seu corpo nu com os olhos. Ela pega uma toalha,
enrolando-a no corpo. — Uns anos atrás, quando a situação apertou de vez,
várias empresas que prestavam serviços tiveram os contratos quebrados,
inclusive a empresa dos pais de Austin… — Ela não me encara. — O pai
dele não aguentou a situação e se matou alguns meses depois.
Aquela informação me pega totalmente de surpresa. Georgina parece
ficar completamente perdida em seus próprios pensamentos, o olhar
desfocado.
— Não há nada que eu possa fazer, Gió — digo, após alguns
segundos de silêncio. — Sinto muito.
— Tudo bem, Conrad. — Ela anui, calçando os chinelos. — Eu
entendo você… pelo menos, eu acho que sim. Vou me arrumar, porque acho
que está quase na hora de irmos.
Apesar de todos os anos de terapia, sinto um gosto amargo tomar
conta da minha boca ao falar para minha melhor amiga que minha decisão
seguia a mesma. Só que ela jamais irá entender que, sim, sou o único
culpado pela morte do meu tio.
Como você pode simplesmente se afastar de mim?
Quando tudo o que posso fazer é assistir você partir?
Porque nós compartilhamos o riso e a dor
(Against all odds - Phil Collins)

Seis horas da noite. Faltam um pouco mais de cinco horas para pegar
o voo que me levará de volta a Emerald.
Depois que Conrad me deixou no hotel, dois dias atrás, nada mais foi
conversado, nem mesmo uma mensagem foi enviada. A volta no
helicóptero foi horrível, um silêncio completo pesou entre nós e, assim que
chegamos a São Paulo, apressei-me a chamar um carro por aplicativo, não
dando chance para Conrad me oferecer uma carona.
Eu sequer tenho motivo para ficar brava, ou até mesmo chateada. Ele
foi claro na primeira reunião, quando informou a todos que não faria
qualquer tipo de negócio com a Lowe. Connie não mentiu para mim e não
me deu falsas esperanças também. Foi sincero em todos os momentos.
Ontem, enquanto estava deitada na cama, logo após a janta, abri o
contato dele para mandar uma mensagem, mas não sabia o que escrever e,
por fim, desisti da ideia. A verdade é que uma parte… na realidade, uma
grande parte de mim, esperava que ele tomasse a iniciativa do diálogo.
Talvez o Conrad de antigamente o fizesse, mas, como ele mesmo disse: esse
cara estava morto.
O homem que encontrei aqui é alguém muito diferente daquele que
foi meu amigo de infância, e quase não há nada do adolescente expansivo,
cheio de si, capitão do time de futebol da escola, que sempre estava com
uma garota pendurada no pescoço, e caindo de bêbado nas festas
escondidas, que ele organizava junto do time. E, por tudo isso, eu não
poderia ter nutrido esperanças de que ele mudasse de ideia no momento em
que contasse tudo.
Sento-me na cama, apoiando a cabeça entre as mãos ao lembrar de
nós dois juntos e não é apenas meu coração que reage, é cada célula do meu
corpo. Coloco-me de pé, obrigando a minha mente a focar na pilha de roupa
que preciso dobrar e nas outras tantas que preciso separar, por estarem
sujas, mas meus pensamentos vagueiam, sem que eu tenha qualquer tipo de
controle. Constato que, para o meu desespero, não perdi somente o domínio
sobre meu corpo, como também sobre a minha mente.
Pego um papel que deixei sobre o móvel de cabeceira e verifico a lista
de coisas que não posso me esquecer de jeito nenhum. As lembrancinhas
para os meus pais, para a minha avó, Lizzie e Austin, já estão compradas.
Inclusive, penso na última mensagem que ele mandou, sobre tomarmos uma
cerveja na próxima semana para eu contar como foram as coisas. Como
serei capaz de esconder dele que Conrad está vivo? Simples, não serei.
Dou a última verificada, para ter certeza de que não estou me
esquecendo nada. Olho-me no espelho do banheiro uma última vez, com a
sensação de que estou deixando um pedaço de mim para trás. Como é
possível que minha vida tenha virado de ponta cabeça?
Foi difícil me concentrar no trabalho e só piorou quando, horas atrás,
precisei informar a minha chefe que o contrato não havia sido fechado,
porque a Santoro negou todas as tentativas de negociação. Ela crispou a
boca e apenas me disse que, assim que chegasse em Emerald, viesse direto
para a Lowe, pois haveria uma reunião junto do CEO.
Fecho o zíper da mala e a coloco no chão, subindo o puxador. Ajeito a
bolsa com o notebook nas costas e sigo o caminho em direção à saída do
hotel, onde o táxi já deve estar me esperando em uma hora dessas. Busco no
bolso do meu casaco, os fones de ouvido, para ser capaz de me desconectar
do mundo e tentar compreender tudo o que aconteceu nos últimos dias.
Sim, fiquei praticamente trancafiada por quarenta e oito horas dentro
de um quarto de hotel e não tive condições de pensar, de maneira clara, no
que aconteceu durante o final de semana, e nos dias anteriores.
Meus pais me ligaram, Austin e Lizzie também, mas fiz questão de
não atender nenhum deles, com a desculpa de que estava muito ocupada,
quando, na verdade, passei mais da metade do tempo comendo e, na outra,
dormindo. Considerei, na noite de ontem, ligar para a minha avó, mas então
eu me lembrei da leitura da borra do café e um arrepio subiu pela minha
coluna. Como sempre faço, empurrei para baixo de algum tapete que,
eventualmente, em alguma noite de bebedeira com Lizzie será revelado e eu
me verei falando sobre tudo, como um passarinho cantando. Uma merda.
As portas automáticas se abrem e arfo, quando percebo que não tem
um motorista me esperando e, sim, Conrad, vestido todo de preto,
encostado no carro.
— O que está fazendo aqui? — Minha voz sai tremida,
acompanhando todo o resto que há de mim.
Conrad fica em silêncio por um momento, a feição que não demonstra
nada, tão diferente de quando estávamos juntos…
— Vou te levar para o aeroporto.
— Não precisa, Conrad…
— Sei que não, mas eu quero. — Ele cobre a distância que existe
entre nós com dois passos. — Vou colocar sua mala no porta-malas.
Nossas mãos se tocam e o choque perpassa por todas as células que
existem nesse corpo que se arrepia.
Ele larga a mala, seus dedos se enroscam em meus cabelos soltos, e
apenas fecho os olhos, porque entendo que esse toque era tudo o que eu
queria antes de ir embora. Conrad me beija e eu me esqueço o resto do
mundo ao redor. Tudo se resume a esse momento.
— Nós estamos em público — murmuro, quando nos afastamos
alguns milímetros.
— Vamos entrar no carro, vou te levar até lá — ele sussurra.
Conrad abre a porta do veículo e espera que eu me ajeite lá dentro
para fechá-la. O que essa aparição dele significa? O que ele quer me dizer,
afinal? A mistura de medo, desejo e tensão se misturam dentro de mim,
nublando meus sentidos por completo, e só piora quando o perfume
amadeirado, misturado ao cheiro do sabonete, acerta-me como um soco.
— Você não…
— Sim, eu precisava. — Ele me interrompe, ao mesmo tempo que
coloca o carro em movimento. — A possibilidade de você ir embora sem
que eu pudesse me despedir simplesmente não existe.
E o rombo da distância se abre diante de mim, porque a realidade está
batendo bem na minha cara, antes mesmo de chegarmos ao portão de
embarque do Aeroporto Internacional de Guarulhos.
— Quero te pedir algo — ele diz, sério, os olhos grudados no trânsito
à frente.
— Se eu puder fazer…
— Saia da Lowe — declara, sem rodeios. — Não fique perto do meu
pai, Gió, e nem de ninguém que o ache um cara minimamente decente.
— Connie…
— Estou falando sério. — Olho para suas mãos, grudadas no volante,
e os nós de seus dedos estão brancos, tamanha a força que ele faz. — Vá
embora e não olhe para trás. Você arranja um outro emprego fácil…
Fico esperando que ele complete a frase, o coração saindo quase pela
boca, mas ele se cala. Seu peito sobe e desce em uma respiração profunda.
— Há tantas coisas que eu gostaria de dizer a você. — Ele retoma a
fala. — Outros tantos motivos que me fizeram não voltar a Emerald, além
da maldita culpa da morte do meu tio, mas, puta que pariu, não quero
remexer nessa merda de novo.
Mesmo depois desse tempo todo, ainda consigo identificar a raiva
contida em sua voz, quando se refere a Linus Lowe. Conrad nunca abriu a
boca para falar uma vírgula que fosse dele e, por muito tempo, achei que
eles fossem uma família no estilo comercial de margarina, até que um dia,
anos atrás, vi Pauline aparecer com um roxo no braço. Seus olhos se
arregalaram, quando percebeu que eu havia visto. Tarde demais.
— Não estou cobrando nada de você, Conrad.
— Sei que não — ele responde com a voz rouca.
Acompanho, em câmera lenta, quando sua mão sai do volante e pousa
sobre a minha coxa, em um gesto íntimo que ninguém até hoje havia
experimentado. Estou vivendo uma batalha interna. A emoção diz para eu
aproveitar os últimos instantes com Conrad, enquanto a razão me implora
para construir um muro de proteção, mas acho que é tarde demais para isso.
Como é possível que eu tenha me envolvido tão rápido assim? Lizzie
chamaria isso de falta de amor-próprio, enquanto minha avó chamaria de
destino. Para qualquer uma das definições, eu vou me foder no fim, porque
não existe um final bom. Na realidade, a conclusão está na minha cara. Não
haverá uma próxima vez.
— Talk to me, Goose[14].
Sou transportada imediatamente para uma época na qual tudo era
muito mais fácil. É engraçado como a vida gosta de dar risada da nossa
cara.
Nós começamos a dizer essa frase um para o outro, depois de assistir
“Top Gun”, que se tornou nosso filme predileto da adolescência. Para
Connie, por causa dos aviões e da moto do Tom Cruise, mas, para mim, foi
pelos homens gostosos da década de oitenta, com seus tanquinhos à mostra,
jogando vôlei na praia.
— Não sei o que dizer — respondo, colocando minha mão por cima
da dele.
Nossos dedos se entrelaçam e eu me esforço para guardar essa cena
em minha memória. Começo a considerar largar tudo em Emerald e vir
morar no Brasil, só para poder vê-lo sempre que quisesse.
Seguro a vontade de rir de mim mesma.
O que eu acho que iria acontecer? Enquanto olho para os carros ao
nosso redor na tal Marginal Tietê, de acordo com o GPS, a verdade absoluta
cai como uma bomba sobre a minha cabeça: o que rolou entre nós dois foi
uma foda. Uma mistura de choque, com atração física entre pessoas que não
se viam há anos… deve ter rolado um nó em alguma sinapse cerebral.
Deveria ser isso, mas, aqui dentro, eu sinto algo muito maior.
— Algum dia você pretende voltar a Emerald?
— Não há nada que me faça voltar aquele lugar, Gió.
Um soco no meu estômago teria sido bem menos doloroso do que
escutar isso. Respiro fundo, crispando a minha boca para evitar as lágrimas.
— Mas agora que nos reencontramos e tem Austin…
Ele nega com a cabeça, sem desviar a atenção do trânsito a frente.
— Sei que gostaria de escutar outra coisa, mas eu estaria mentindo…
acho que nunca fiz isso com você e não é agora que farei.
Engulo em seco, porque isso não muda nada do que estou sentindo. O
sentimento de rejeição vai continuar crescendo dentro de mim.
— Georgina…
— Está tudo bem, Connie. — Ele pode não mentir, mas eu, sim. —
De verdade. Entendo você.
Se eu tinha alguma esperança de que o final de semana havia sido
mais do que uma foda, agora estava claro que era apenas isso e nada além.
Conrad desliga o veículo logo que encontra a primeira vaga, dentro
do estacionamento. O silêncio é pesado entre nós e não há nada que eu
possa, ou até mesmo queira, fazer para o amenizar.
Sou a primeira a fazer o movimento e saio do carro. O porta-malas já
está aberto e começo a tirar a bagagem, mas Conrad não permite. Nossas
peles tocam mais uma vez, mas seguimos no mesmo silêncio pesado.
Andamos lado a lado, até o local em que preciso despachar a mala.
Na fila, é inevitável olhar para o lado e ver a animação das pessoas que
conversam; muitas estão indo passear, conhecer um novo destino, realizar
um sonho… enquanto eu, sinto que estou deixando o meu para trás.
Falo poucas palavras para o atendente que verifica meu passaporte,
passa a bagagem e, logo em seguida, despacha-a. Agora, só em Emerald
precisarei me preocupar em pegá-la.
Paramos em frente ao portão do embarque internacional e não há
outro jeito, além de nos encararmos. Mordo os lábios para tentar segurar as
malditas lágrimas, mas parece ser em vão.
— Conte a Austin que estou vivo. — É Conrad quem quebra o
silêncio. — Sei que faria isso de qualquer jeito, em algum momento…
— Que bom que você sabe. — Tento soar divertida, mas falho.
— Só quis deixar mais simples para você. — Aquiesço, forçando um
sorriso, mas Connie não retribui. Ele passa no rosto e suspira, por fim. —
Não conte a mais ninguém, por favor. Muito menos para minha mãe. Saber
que estou vivo seria trazer um novo pesadelo para ela. — Sua voz rouca
implora para que eu entenda sua decisão. — Minha mãe seria a que mais
sofreria e tudo por minha causa. Você entende?
Tento me colocar no lugar de Pauline, mas desisto quando vejo que
todos os conflitos, dentro de mim, pioram em uma escala exponencial.
— Não se preocupe quanto a isso.
— Só quero que saiba que, se as coisas fossem diferentes, nós dois…
— Conrad, não — eu o interrompo, porque, agora, sou eu quem tem
vontade de implorar. — Não faça isso comigo, ok? Encerrar por aqui é
melhor…
Ele me beija e sei que é a última vez. Há gosto de tristeza, saudades e
lágrimas. Suas mãos seguram o meu rosto com firmeza enquanto as minhas
agarram sua jaqueta.
Eu daria tudo para ficar presa nesse momento.
Uma lembrança surge em minha mente, assim que nos separamos, e
nossos olhares se encontram. As palavras da senhora que me parou em
frente ao Starbucks ressoam em minha cabeça, como se estivessem sendo
ditas agora, e sinto que preciso avisá-lo porque, de algum jeito, tenho
certeza de que é sobre o homem à minha frente.
— Connie, acabei de lembrar de algo — digo, próximo a um sussurro.
— Uma senhora me parou lá perto do hotel e disse que alguém perto de
mim sofreria um acidente, usando um transporte aéreo… toma cuidado, ok?
— Isso é um jeito de pedir que eu me cuide?
— É, acho que sim.
Dou um passo para trás, sentindo dificuldade até mesmo em respirar.
— Odeio despedidas.
— É um até logo — ele diz e há esperança em sua voz. — Você disse
que virá para as férias.
— Prometo que tentarei.
Ele aquiesce e eu me viro em direção ao portão de embarque. Não
olho para trás, apenas sigo em frente.
Estou quebrada.
Eu sou apenas mais uma alma à venda, oh, isso
A página está fora de impressão
Não somos permanentes
Somos temporários, temporários
(The Pretender - Foo Fighters)

Vou sufocar.
Olho para os lados e está tudo apagado, são poucas as luzes que
permanecem ligadas. A maior parte das pessoas ao redor está dormindo e
não vejo nenhum comissário de bordo por perto. Uma maldita bebida talvez
fosse me fazer dormir.
Algo me corrói, ao mesmo tempo que parece bloquear qualquer
sentido que possa me permitir fugir dessa dor. Só queria entender o motivo
disso tudo, quando minha consciência já sabia que o agora era inevitável.
Antes mesmo do final de semana, eu já sabia que esse seria o desfecho. O
nosso ponto-final.
O fim de algo que nunca existiu, na realidade.
— Você pode me trazer um copo de uísque, por gentileza? — Peço ao
comissário de bordo que passa pelo meu assento.
— Com gelo?
— Puro — complemento e ele anui. — Se for possível: uma dose
dupla.
Minha mãe sempre me diz que beber não resolverá meus problemas,
mas parece ser a única alternativa, para eu não surtar dentro de uma maldita
caixa de metal a muitos metros de altura.
Quando o copo é entregue em minha mão e eu sorvo o primeiro gole,
as lágrimas finalmente vêm. Travo a boca, para não deixar que ninguém
escute, e encosto a cabeça no assento, olhando para o teto branco.
Das outras vezes, eu apenas trinquei, pequenas rachaduras… mas,
agora, estou completamente quebrada. Há cacos por todos os lados e nem
sei por onde começar a colar.

Lavo o rosto novamente, com a água bem gelada que sai da torneira
do banheiro do aeroporto, na tentativa de desinchar um pouco. Seco o
máximo que consigo, abrindo minha necessaire de maquiagem, para tentar
fazer alguma espécie de milagre.
Passo o corretivo sobre as olheiras, mas a única coisa que vejo é um
panda meio desbotado. Tento corrigir o possível, passo um rímel, faço um
delineado bem fino e, com o blush, esforço-me para dar o mínimo de
aspecto saudável para a pele.
Dou uma olhada na tela do celular e o modo avião continua ligado.
Preciso desses últimos minutos longe do mundo, para tentar recompor pelo
menos o lado externo, já que o interno está ferrado.
“Ninguém morre de…”, interrompo o pensamento no mesmo
momento, porque não faz sentido algum. Ajeito tudo de volta no lugar,
devagar. Não quero ter que ligar a internet e estar disponível ao mundo
outra vez e, principalmente, de volta à Lowe, ciente de que precisarei
encarar o pai de Conrad ainda hoje.
Não dá para enrolar mais, até porque tenho certeza de que o filho da
puta do secretário do CEO deve estar acompanhando o meu voo minuto a
minuto. E só por isso faço a última coisa que desejo fazer: ligo a internet do
celular.
As notificações começam a aparecer aos montes, exatamente como
imaginei que seria. Respiro fundo e abro as do trabalho primeiro. Como
esperado, a minha chefe está no topo com um total de dezenove mensagens
não lidas, seguida do secretário do CEO, com quatorze e todas dizem
praticamente a mesma coisa: vimos que seu avião já aterrissou, mas você
ainda não deu sinal de vida. Respondo que tive um problema com a mala,
mas que, em breve, pegarei um táxi. Tenho me tornado uma boa mentirosa,
no fim das contas.
Faço o caminho sem pressa, o estômago embrulhado pela bebida de
horas atrás e por um sentimento que me diz que alguma merda irá acontecer
nas próximas horas. Minha avó chamaria essa sensação de sexto sentido, eu
só acho que é a conclusão de uma análise, até que simples, de uma situação
que vem se desenhando nos últimos meses. Linus Lowe apostou alto que
esse contrato iria dar certo e, agora, estou voltando com as mãos
completamente vazias.
Aqui dentro, dividindo o espaço com todos os outros pensamentos,
martela o meu coração quebrado. O último beijo que dei em Conrad antes
de vir embora concorre com o espaço dos demais itens que permeiam a
minha cabeça. Como é possível separar o profissional do pessoal, quando
tudo parece estar desmoronando?
Uma notificação, vinda do aplicativo da empresa, aparece, avisando-
me que tenho uma reunião às dezessete e trinta com o CEO em pessoa.
Como pode alguns dias longe mudar toda a nossa perspectiva das
coisas? Tudo ao redor parece estar estranho, até mesmo errado. Deixei a
bagagem na minha sala e já sai para conversar com a equipe e entender
como as coisas estavam, de fato, caminhando.
Gosto de ir em uma das copas que fica mais longe e mais perto da
sala de Linus Lowe. Normalmente, está mais vazia, porque todos evitam de
encontrar com o chefe dos chefes, mas, no meu estado atual, não me
importo com qualquer coisa que aconteça daqui por diante. Só preciso que
as horas passem rápido, para poder ir para casa e dormir por, pelo menos,
doze horas consecutivas.
Vozes chamam a minha atenção e sou incapaz de ignorá-las, mesmo
que a voz da minha avó esteja ecoando em meu ouvido “A curiosidade
matou o gato, Georgina!”.
Uma das pessoas é Linus Lowe, com certeza, mas não consigo
identificar a outra. Merda. Olho para os lados e está tudo vazio, por isso
dou mais um passo em direção à conversa.
— Você disse que tinha certeza de que a ida dela resolveria o
assunto. — É uma voz masculina.
— Sim, mas me enganei. Não foi o suficiente, talvez ele precise de um
empurrãozinho um pouco mais forte para se mostrar.
Barulhos, no fim do corredor, obrigam-me a voltar a andar em direção
à copa para pegar o meu café.

As pessoas cochicham, conforme eu passo pelos corredores em


direção à principal sala de reunião de todo o complexo da Lowe. A essa
altura, todos estão cientes de que não há um contrato assinado e de que as
nossas finanças continuarão indo de mal a pior, até que o momento da
abertura de falência se torne a única opção viável.
Mas, contrário do que imaginei, a maior parte das cadeiras estão
vazias. Só há cinco pessoas ali dentro, todas claramente me esperando. O
CEO, a Sra. Gallagher, o secretário detestável e dois dos principais sócios
da Lowe me olham cheios de expectativa.
Caminho com os passos firmes, a cabeça ereta para tentar passar uma
calma que não existe dentro de mim. Os pensamentos, durante todo o
trajeto do aeroporto até aqui, giraram sobre como eu seria capaz de falar
sobre as reuniões sem mencionar Conrad e, principalmente, sem expor tudo
isso que está aqui dentro.
— Boa tarde, senhores.
Eles apenas acenam com a cabeça e escolho pela cadeira ao lado da
minha chefe, mesmo sabendo que ela jamais levantaria um dedo para
defender a mim ou a qualquer pessoa da equipe.
O ar dentro de mim trava quando, enfim, encaro o rosto de Linus, que
está sentado na ponta da mesa. Horas mais cedo, apenas escutei sua voz…
Há tanto em comum entre ele e o Conrad que encontrei no Brasil. As
feições muito parecidas, os rostos com traços marcantes. A mandíbula
quadrada, o nariz reto, a boca bem desenhada… acho que, até aí, hoje em
dia, eles se passariam por irmãos, mas há algo que os diferencia
completamente: o olhar díspar do filho. O CEO da Lowe tem uma maldade
velada no olhar, algo que sempre me incomodou, mas que, com o tempo,
apenas aceitei ser o jeito dele.
— Queremos saber o motivo das negociações não terem dado certo,
Srta. Romano. — É o próprio CEO quem me pergunta, não dando espaço
para outra pessoa.
— O e-mail que encaminhei…
— Não estou interessado no que enviou para nós — Sr. Lowe me
interrompe e sou obrigada a respirar profundamente. — Quero saber como
foram as reuniões. Os relatos foram pouco detalhados. Esperava algo mais
substancial da sua parte, Srta. Romano.
É até irônico ele falar algo assim, considerando que nunca lê
documento algum enviado e sempre chega às reuniões, deixando claro que
acha tudo uma perda de tempo.
Talvez ele tenha compreendido a gravidade da situação apenas agora,
mas receio ser tarde demais.
— A primeira reunião foi cancelada de última hora, pois o CEO, o Sr.
Santoro, teve um problema…
A imagem de Conrad, levantando-se de supetão, faz com que eu me
questione como não percebi a semelhança dele com o chefe da minha chefe.
— E então? — A Sra. Gallagher chama a minha atenção.
— Bom — dou uma tossida para ganhar alguns segundos, para
reorganizar os pensamentos —, no dia seguinte, nos reunimos de novo e fiz
a apresentação. Eles pediram alguns dias para avaliar a proposta e o retorno
é o que vocês têm conhecimento.
— Você não jantou com nenhum dos executivos? — um dos sócios
presente pergunta, com a voz carregada de malícia.
— Não entendi a sua pergunta, Sr. Grunt.
Ele sorri para mim, deixando bem claro que ele sabia que eu estava
me fazendo de desentendida.
— Eu mandei você para lá com o único objetivo de fechar essa merda
de contrato. — É o Sr. Lowe que fala, a voz baixa, os olhos me encarando,
frios e raivosos.
— Fiz tudo que estava ao meu alcance. — Ele não vai me intimidar.
— Fui contratada para trabalhar na área financeira, senhor. Não sou
vendedora, mas, ainda assim, dei o meu melhor para convencê-los de que
nosso produto seria a escolha perfeita para eles.
Sua boca se crispa até ser apenas uma linha fina no rosto e há um
brilho estranho em seu olhar, como se soubesse que existe mais por detrás
da minha fala. As pessoas olham uma para as outras, preocupadas com o
que vem a seguir, mas eu não me importo.
É estranho pensar que conheço esse homem o mesmo tanto de tempo
que conheço Conrad, ou seja, minha vida inteira, mas, mais impressionante
do que isso, é o fato que só falei com ele depois que comecei a trabalhar
aqui.
— Não mandei você para o Brasil pelas suas competências, que, diga-
se de passagem, não me interessam nem um pouco.
— O que o senhor quer dizer com isso?
— Acho interessante…
— Eu gostaria de entender, Senhor Lowe — digo, ignorando a
tentativa da minha chefe de mudar o assunto.— Poderia me explicar?
— Acho que seus pais não te explicaram como funciona 0 mundo
corporativo, Georgina. — É primeira vez que ele diz o meu nome e eu me
sinto humilhada com o seu tom de voz. — Falei para o seu pai que bastava
te educar bem, mas ele ignorou o meu conselho. Se sua ida ao Brasil não
ficou clara até agora, então farei questão de esclarecer. Uma mulher só deve
abrir as pernas para um homem quando tem um objetivo, principalmente
quando se está numa posição de gerência ou acima. — Não posso acreditar
que estou escutando um absurdo desses. — O que eu esperava é que você
tivesse usado o seu rostinho bonito e corpo perfeito para convencer um
deles a assinar os malditos papéis. Entendeu agora, Senhorita Romano?
Nenhum dos presentes fez questão de abrir a boca, ou até mesmo
olhar para mim. Com a cabeça abaixada estavam, quando Linus começou a
falar, e assim permanecem até agora. Inclusive, minha chefe parece estar
muito interessada em seu bloco de notas em branco.
— Não sou sua prostituta, Sr. Lowe. — Escuto alguém arfar, mas não
consigo distinguir quem foi, tampouco me importa. — Se havia alguma
dúvida quanto a isso, espero ter esclarecido.
— Você é funcionária desta empresa e tem obrigação de fazer o que
for necessário.
Não sou capaz de definir todos os sentimentos que me atingem, mas o
ódio, com certeza, é o que mais se destaca no momento.
— No meu contrato de trabalho não existe nenhuma cláusula falando
que devo comercializar meu corpo pelo bem da empresa. Sou a gerente
financeira e não uma garota de programa de luxo. Inclusive, aproveito para
me demitir nesse exato momento.
— Você não pode…
— Tanto posso como vou — interrompo o CEO. — Minha carta de
demissão estará na mesa da Sra. Gallagher em uma hora, no máximo.
Obrigo minhas pernas a funcionarem, levantando-me da cadeira e
seguindo em direção à porta. Cada parte do meu corpo treme e a cabeça
parece que vai explodir a qualquer momento. Só pode ser um maldito
pesadelo, mais uma piada de mal gosto que o Universo resolve me pregar.
— Bom dia! — Paro um dos funcionários que costumam limpar o
local. — Consegue me arranjar, por gentileza, uma caixa de papelão
grande?
O homem apenas aquiesce, com a expressão confusa, e eu sigo o
caminho em direção à minha sala o mais rápido que consigo.
Não vou ficar aqui nem mais um segundo.
Abro a porta da sala e bato o olho na mochila, na qual está o notebook
que precisarei deixar para trás, por ser da empresa. Pego o aparelho na mão
e subo a tela, suspirando aliviada por ele estar ligado, mas, principalmente,
por ainda estar logada em tudo da empresa, mas é apenas uma questão de
tempo.
Eu sei.
Estou correndo contra o tempo.
Abro a caixa de e-mail, encontrando a pasta que fiz anos atrás, com
todos os e-mails que eu jamais poderia deletar, e que mantive sempre
atualizada. Compacto tudo e envio para o meu pessoal, porque sei que, em
algum momento, serei obrigada a usá-los.
Meu dedos tamborilam contra a mesa de madeira enquanto o arquivo
é enviado através da internet. Só consigo ficar um pouco aliviada quando
noto que a caixa de entrada está atualizada e que todos os arquivos foram
devidamente enviados.
O celular vibra em minha cintura e vejo, através da barra de
notificação, que já chegou; está tudo lá. Posso respirar aliviada agora,
porque, o que quer que venha acontecer daqui por diante, estou protegida.
— Srta. Romano, a caixa que pediu…
— Muito obrigada. Pode deixar sobre o sofá.
O moço faz o que pedi e sai rapidamente, dando-me uma última
olhada antes de sumir. Sim, a notícia já deve ter se espalhado. O
computador à minha frente reinicia sozinho e é isso: estou fora da Lowe.
Agora, não há mais como voltar atrás e também não quero.
Eu tentei ser outra pessoa
Mas nada pareceu mudar, eu sei agora
Esse é quem eu realmente sou por dentro
Finalmente me encontrei
(The Kill - Thirdy Seconds to Mars)

A cozinha está mais caótica do que o normal quando entro. A sous


chef está gritando, tentando colocar ordem, mas vejo todos confusos,
exatamente como eu me sinto, desde o momento em que vi Gió entrar pelo
portão de embarque.
— O que está acontecendo aqui?
Todos param no mesmo momento, a maioria com os olhos
esperançosos de que eu ajude a resolver a confusão que se formou. Eu
gostaria de ter alguém que fizesse isso por mim, que tivesse o dom de me
dar a solução para a bagunça que se instaurou aqui dentro.
Em meio a dezenas de panelas, facas e etc., não tenho tempo para
pensar que estou me sentindo um lixo e é exatamente por isso que tenho
vindo para cá dia após dia, para manter a minha cabeça ocupada o tempo
inteiro. Vou para casa apenas quando o restaurante fecha e me sinto cansado
o suficiente para tomar apenas um banho, deitar-me e dormir até o dia
seguinte.
Tenho levantado com os primeiros raios de sol e seguido direto para a
academia. Depois, tomo um café e sigo para o escritório. Tenho muito
pouco tempo para ficar abrindo o contato de Georgina e ensaiando uma
mensagem que sei que jamais devo enviar.
Não há um futuro para nós, por mais que Bernardo diga o contrário.
Eu não voltarei para Emerald e jamais pediria que ela deixasse a família
para trás… Além do mais, só transamos, não é como se existisse algo mais.
Olho ao redor e tudo está caminhando como deve ser, mais uma vez.
Crises acontecem e precisamos controlá-las, nem que seja com alguns
gritos. Penso em ir até minha sala, mas desisto, quando entendo que estarei
com a cabeça vazia. Meu lugar é aqui, em meio ao calor com toda a equipe.
— Onde estão os maços de salsinha fresca? — pergunto para um dos
auxiliares.
— Dentro da geladeira, chef.
— Obrigado.
Pego um punhado do tempero e vou para a pia lavar. Desde que me vi
novamente sozinho, tenho pegado coisas aleatórias para fazer no meio do
expediente. No começo, eles até estranharam, mas agora apenas olham. Os
mais corajosos até se aproximam para perguntar se preciso de ajuda, o que
eu prontamente recuso. Só quero ficar perto das pessoas, escutando seus
problemas, para não precisar pensar nos meus.
— Chef. — Reconheço a voz da sous chef, mesmo de costas.
— Não preciso de ajuda.
— O Sr. Bernardo está na sua sala, esperando para conversar. — Viro-
me e encontro Amanda, arrumando o avental na cintura. — Ele pediu para
avisar que não adiantará arranjar desculpas, porque só irá embora depois
que conseguir conversar com o senhor.
Até o momento, eu tenho me esquivado com sucesso do meu sócio,
mas, ao que tudo indica, ele se cansou e, agora, encurrala-me no único lugar
do qual não conseguirei fugir.
Seco as mãos, avisando que voltarei para terminar o que comecei,
assim que possível.
Entro na minha sala, encontrando meu sócio deitado no sofá, olhando
para o teto.
— O que está fazendo aqui, numa sexta-feira à noite?
— Você me obrigou — Bernardo responde, sentando-se. — Passei a
semana tentando falar com você e não consegui. Aí, me vi obrigado a
cancelar a minha foda para ver como você está.
— Estou muito bem, obrigado pela preocupação.
— Mentiroso do caralho.
— Não sei o porquê acha isso. — Fecho a porta. — Os dias têm sido
corridos, mas, se não estou enganado, temos uma reunião na semana que
vem…
— Caralho, Santoro! Foda-se a porra do trabalho, quero saber como
você realmente está.
Suspiro, jogando-me na cadeira de espaldar alto.
— Vou me recuperar — digo, por fim. — Não estava esperando que
meu passado voltasse dessa maneira.
— Você quer dizer: gostosa pra caralho?
Vejo-me irritado de uma hora para outra, um calor incômodo na parte
superior subindo pelo pescoço, e então percebo que estou com vontade de
socar a cara do meu melhor amigo, que segue me encarando com um
sorriso debochado no rosto.
— E então?
— Não fale assim dela.
— Você nunca se importou que eu chamasse Milena de gostosa. — O
sorriso de Bernardo aumenta um pouco mais.
— São pessoas completamente diferentes. — Limito-me a dizer.
— Por qual motivo?
Crispo a minha boca, sentindo todos os meus músculos tensos. Eu sei
exatamente o que meu sócio está querendo fazer.
—Bom, já que você não vai responder, faço questão de te contar:
você está apaixonado pela Srta. Romano.
— Ela foi minha melhor amiga. Nos conhecemos desde sempre.
— E só por isso você não pode ter se apaixonado por ela? — Ele dá
risada. — Você foi abatido, soldado.
— Não fale besteira, Bernardo.
— Quando foi a última vez que você viu a Milena?
— Não sei.
Ele ri da minha cara, deixando-me mais irritado ainda.
— É isso que você queria?
— Acho que sim. — Ele caminha em direção à porta. — Só mais uma
pergunta: vai atrás dela?
— Não.
— Espero que não se arrependa.
— Não costumo ter esse problema. — Nem eu acredito em mim
mesmo. — Desde quando você acredita nessas coisas?
— Sempre acreditei, só acho que não sou bom o suficiente para que
aconteça comigo.
Bernardo vai embora com o mesmo sorriso debochado de sempre.
Trabalhar duas semanas seguidas, sem descanso, não me ajudou em
nada. Entro no helicóptero, atando o cinto de três pontas e colocando o
comunicador sobre os ouvidos. Preciso passar uns dias longe da capital, dos
restaurantes, das reuniões e de qualquer outra coisa que tenha relação com a
Santoro.
Preciso deixar tudo isso um pouco de lado e cuidar dos cavalos. Abro
meu celular e busco a foto de dois potrinhos resgatados pelos meus
funcionários, apenas um par de dias atrás. No fim, eles foram a desculpa
perfeita para eu me isolar. Estar no meio dos animais, cuidando,
alimentando e ajudando na reabilitação deles, faz com que eu me sinta um
ser humano um pouco menos pior.
Lembro-me de que estar com os animais era apenas parte do meu
tratamento, jamais havia cogitado atuar nesse tipo de causa. Mas, hoje,
tenho certeza de que parte do meu dinheiro tem um destino realmente bom,
recuperando os animais e dando uma real qualidade de vida a eles.
— Sr. Santoro, recebemos a permissão da torre para decolar.
— Ótimo.
Encosto a cabeça no banco, tentando esvaziar a minha mente e focar
apenas na minha respiração. Meditar é uma das coisas mais difíceis que já
fiz na vida, ainda mais com uma mente inquieta, como a minha.
Aos poucos, consigo acalmar a minha mente, focando apenas na
inspiração e expiração. Como se já não fosse o suficiente, os pesadelos
voltaram. As cenas que presenciei, enquanto estava no submundo que existe
em Berlim, pareceram estar mais vívidas do que nunca. Simplesmente,
acordei gritando às três e quarenta e um da manhã e não consegui mais
fechar os olhos.
Um barulho estranho quebra a minha concentração e, mesmo que o
piloto esteja de perfil, consigo ver sua expressão preocupada. Algo muito
errado está acontecendo. Olho ao redor e vejo que só há árvores sob o
helicóptero e que estamos muito mais baixo do que deveríamos.
— Carlos, o que está acontecendo?
— Não sei, Sr. Santoro — ele me responde, sério. — Os motores
estão falhando… vamos precisar fazer um pouso de emergência.
Travo os meus dedos no banco, porque sei que o impacto será
inevitável. E, como dizem, quando estamos na iminência de algo que coloca
nossa vida verdadeiramente em risco, vejo um filme passando diante dos
meus olhos e descubro que tenho apenas um único arrependimento: não ter
dito a Georgina o quão apaixonado por ela estou e que, sim, se ela quisesse,
eu seria capaz de voltar para Emerald. Que eu faria tudo o que fosse
possível para tê-la em meus braços.
Se eu pudesse pedir ao Universo alguma coisa, seria vê-la uma última
vez para dizer tudo o que está aqui dentro do meu peito. Tocar sua pele,
beijar sua boca.
O último som que escuto são as árvores batendo na fuselagem com
força e o impacto vem forte. Antes da inconsciência me pegar, a última
coisa que penso é que gostaria de ver Georgina mais uma vez.

Abro os olhos, totalmente atordoado. A visão está embaçada, turva.


Tento identificar as coisas, mas não consigo ao certo. Sei que há galhos e
folhagens por todos os lados. Tento me mexer e a dor vem, lancinante. Olho
para baixo e encontro minha perna esquerda em um ângulo estranho,
totalmente fora do normal.
— Carlos? — chamo o piloto, mas ele não responde.
Tento ir um pouco à frente, para enxergar algo a mais além de metal e
galhos, mas desisto quando a dor se torna ainda mais forte. A escuridão
vem novamente e eu só a abraço, como uma boa e velha amiga.

Há vozes por todos os lados. Pessoas gritando e barulho de metal


sendo serrado.
— Temos um sobrevivente! — Consigo distinguir alguém falando,
mas não sei se é homem ou mulher, e pouco me importa.
A consciência briga com o inconsciente, para me manter acordado, e
é um esforço grande demais. Forço-me a abrir os olhos, mas não consigo,
estão pesados demais.
— Sr. Santoro, está tudo bem. Te encontramos e vamos levá-lo para o
hospital.
Não estou morto.
Talvez seja o Universo me dando uma nova oportunidade afinal.

Visão embaçada novamente, mas, ao contrário da minha última


lembrança, estou em um ambiente bem iluminado e não há galhos, nem
barulho de metal sendo serrilhado. O cheiro é típico de hospital, uma
mistura de produtos de limpeza e remédios, e o barulho constante de
máquinas também.
Levo a mão até o rosto, e parece que meu braço pesa uma tonelada,
mas, mesmo assim, esforço-me. Preciso coçar os olhos, tentar ajustar a
minha vista para conseguir identificar o local com mais precisão.
Estou em um quarto branco, espaçoso. Há um acesso em minha mão e
estou com uma das pernas engessadas, mas não sinto dor alguma. Do pouco
de pele que consigo ver, há escoriações por todos os lados e alguns cortes
com pontos à vista.
Caralho, estou realmente vivo.
O Universo, Deus, Energia Suprema… não sei quem foi, mas ganhei
uma nova chance e o primeiro pensamento concreto que vem à minha
mente é Georgina. O bip da máquina, que monitora meus batimentos
cardíacos, aumenta e rapidamente a porta do meu quarto é aberta, quando
uma enfermeira aparece, com os olhos atentos, notando que estou acordado.
— Que bom que o senhor está acordado! — Ela parece estar
genuinamente aliviada. — Sou a enfermeira Dulce e sou a responsável por
esse turno.
— Certo…
— Vou chamar o médico para examiná-lo.
— Há quanto tempo estou desacordado?
— Quase quatro dias — ela me informa. — O senhor teve muita
sorte.
— E Carlos?
— Quem?
— O piloto que estava comigo.
Sua feição muda drasticamente e já sei a resposta, mas, mesmo assim,
espero ouvi-la.
— Ele não resistiu aos ferimentos, sinto muito. — Sua voz é baixa.
Engulo em seco. Não conhecia Carlos muito bem, na realidade,
havíamos voado juntos apenas duas vezes antes.
— Você sabe se ele tinha família?
— Não, senhor — ela diz. — Na realidade, a única informação que eu
tenho é essa que passei.
Aquiesço, o nó se formando dentro do meu peito. Eu sou um filho da
puta sortudo por estar vivo. Quantas pessoas conseguem sair de um
acidente como esses com, ao que tudo indica, apenas com a perna
quebrada?
— Vou chamar o médico para vir visitá-lo, tudo bem?
— Claro. De qualquer maneira, muito obrigado.
— Ah, sim… — ela volta para perto do meu leito novamente — o seu
amigo, Sr. Bernardo, pediu para avisar que estará aqui hoje à noite.
Agora, ela sai, deixando-me sozinho. Olho para os lados e não há
flores ou qualquer outra coisa que possa indicar que alguém esteve por
aqui… melhor assim, eu acho.
Os pensamentos vão novamente para Georgina sem que eu perceba.
Eu quero vê-la de novo, sentir seu cheiro, beijar sua pele, escutar sua voz
gemendo o meu nome, mas, principalmente, pedir desculpas. Dizem que a
experiência de quase morte tem o poder de nos mudar, de mostrar o quão
frágil a nossa vida pode ser e, deitado nesta cama, torno-me uma prova viva
disso.
A porta se abre novamente e a enfermeira Dulce entra, acompanhada
de um homem que acredito ser o médico.
— Boa tarde, Sr. Santoro — o homem me cumprimenta. — Sou
Murilo, o médico que está acompanhando a sua evolução. Que bom que
está acordado.
— É realmente bom — digo, sincero. — Achei que me sentiria
grogue, mas estou completamente acordado.
— Isso é um bom sinal. Sente alguma dor?
— Nenhuma — respondo. — Quão grave é a minha situação?
— O senhor está estável. — Dr. Murilo sorri, satisfeito. — Num
primeiro momento, classificamos como muito grave, mas teve uma ótima
recuperação, desde a cirurgia em sua perna.
— Vou ter sequelas?
— Espero que não. O senhor foi operado pelos melhores especialistas
na área de trauma, mas só o tempo nos dirá como será a recuperação do seu
corpo.
Sinto-me aliviado, mas, agora, preciso da resposta para a minha
próxima pergunta. Porque ela, sim, vai permitir que eu defina como serão
meus próximos dias.
— Quando terei alta?
O homem, que não deve ter muito mais do que a minha idade, solta
uma risada, como se já esperasse receber essa pergunta.
— Acredito que em dois ou três dias — ele diz. — O importante é
que não tenha dor. Seus exames estão ótimos e não haverá motivos para
prendê-lo aqui por mais tempo do que isso.
— Ótimo.
— Mas preciso avisar que tem uma longa recuperação pela frente.
Sua perna precisou ser operada e a previsão é de dois a três meses de
fisioterapia diária até que consiga voltar a andar, mas com ajuda de muletas.
— Preciso viajar — digo, sério. — O quanto antes.
— Entendo, mas acho válido que o senhor se lembre de que o
acidente que sofreu foi gravíssimo e que, por sorte, saiu com alguns poucos
cortes e uma perna quebrada. Precisará ficar de repouso até estar liberado e,
principalmente, seguir todas as nossas instruções. Não podemos correr o
risco de ter uma complicação.
Fecho os olhos de maneira contundente, afundando a minha cabeça
um pouco mais no travesseiro.
— Claro que isso pode mudar — o médico diz. — Vai depender
muito mais de você do que dos profissionais envolvidos em sua
recuperação.
— Poderei fazer mais de uma vez por dia, por exemplo?
— No começo não, mas, dentro de duas semanas, se aguentar, com
certeza. — Ele diz.
— Obrigado, doutor.
— Sei que ficar aqui é horrível, mas tente manter a calma, Sr.
Santoro. Logo mais estará em casa.
Eu não quero estar em casa, quero estar dentro de um avião a
caminho de Emerald.
Presa em círculos
Confusão não é nada de novo
Recordações de noites quentes, quase esquecidas
Uma mala de lembranças
(Timer after time - Cyndi Lauper)

Estou há mais três meses fugindo de conversar com as pessoas,


fingindo que está tudo bem, que, como uma menina de família rica que sou,
estou tirando apenas um sabático para decidir o que irei fazer da minha
vida.
O aluguel do meu apartamento segue sendo pago com as minhas
próprias economias, assim como todo o resto. E a única coisa que faço é
ficar em casa, assistindo a filmes e séries turcas e chorando como uma
descompensada, acabando com um pote de sorvete atrás de outro.
Batidas fortes à porta chamam a minha atenção e, pela voz aguda, sei
que é Lizzie quem está esmurrando a madeira. O pior é saber que não vou
conseguir despistá-la dessa vez. Trago minha coberta junto, arrastando-a no
chão, e deixo que ela entre no local.
— Porra, Gin! — Escuto a batida seca e ela vem atrás de mim. —
Uma semana inteira que você não responde a porra das minhas mensagens!
— Só estava sem cabeça.
— Por quê? — Ela me olha com atenção. — O que aconteceu nessa
merda de viagem que você não contou?
— Não aconteceu nada.
Não tive coragem de contar a ninguém. Talvez seja por esse motivo
que estou me afundando um pouquinho a cada dia que passa e não vejo
motivo para sair desse lugar.
— Porra, você está mentindo para mim.
— Olha, eu só não quero contar. Ok? — digo, por fim.
— Por qual motivo, Georgina? — Lizzie parece estar totalmente fora
de si, consigo ver a preocupação em seus olhos. — Sua mãe me ligou
ontem à noite dizendo que está super preocupada, que não te vê faz um
tempão…
— Exagero dela — rebato, aconchegando-me novamente no sofá. —
Ela me liga todos os dias e nós conversamos.
— Mas você tem arranjado uma desculpa para não encontrá-la, assim
como estava fazendo comigo.
— Só não quero ver pessoas, Lizzie. — Dou de ombros. — Isso
acontece, ok? Estou usando esse tempo para tentar descobrir o que quero
fazer da minha vida.
— As pessoas normalmente vão viajar para se redescobrirem…
— Bom, comigo está sendo diferente — digo sem rodeios. — Quero
ficar trancada na minha casa, aproveitando o espaço que quase não utilizei
nos últimos anos, porque estive muito focada naquela merda de lugar.
— Esse é outro ponto: também não contou a ninguém o que
aconteceu para pedir demissão.
— Linus Lowe achou que eu era uma prostituta que ele podia usar
como “mercadoria” para conseguir contratos para a empresa — digo, sem
nenhuma emoção.
Minha melhor amiga pisca algumas vezes, claramente chocada com o
que eu tinha acabado de dizer. Tive tempo o suficiente para não me chocar
e, bom, Conrad… caralho, eu não quero pensar nele.
— Isso é passível de processo, Gin — ela diz, com a voz quase em
um fiapo.
— Como? Quem seria minha testemunha? — Solto uma risada sem
humor. — A minha ex-chefe, aquela escrota, que está mais preocupada em
chupar as bolas do Linus, ou o secretário pau no cu, que quer foder com
todo mundo à sua volta? Ainda tinham os dois sócios que escutaram toda a
conversa…
— Por que quis passar por tudo isso sozinha? — ela me pergunta,
sentando-se mais próxima, segurando as minhas mãos.
— Não sei, só não estou ainda preparada para compartilhar essa
história com outras pessoas. Principalmente com a minha mãe, que é
alguém próximo a família Lowe. Tenho medo de que isso interfira na
amizade dela com Pauline.
— Mas seus pais têm o direito de saber com quem eles se relacionam
e com quem a empresa de vocês faz negócio — Lizzie diz, séria.
Talvez meus pais soubessem e, por isso, faziam tanta questão de que
eu saísse de lá, mas não é algo que eu precise externalizar para manchar a
reputação deles com o que é apenas uma possibilidade.
— Falei com Austin hoje à tarde. — Ergo as sobrancelhas, porque sei
que eles nunca se deram muito bem, mas Lizzie apenas negou com a
cabeça. — Não comece a inventar uma de suas fanfics, estou muito bem
ficando com a Miley e quero distância de homens nesse momento,
principalmente dele. — Solto uma risada. — Mas ele disse que vai passar
amanhã aqui, para te levar para almoçar.
— Porra, Lizzie…
— Sem reclamar. — Ela se acomoda melhor ao meu lado. — O que
você está vendo?
— Um filme turco chamado “Amor em foco”. Água com açúcar
total… definitivamente, não é um daqueles filmes cults que você me obriga
a assistir.
— Tudo isso por causa do “Fabuloso destino de Amélie Poulain”? —
Ela ri, negando com a cabeça.
— Se fosse só esse, estava bom.
— Dá o play e para de reclamar, Gin.

Eu, definitivamente, não deveria ter ingerido aquele tanto de porcaria


ontem à noite. Estou enjoada, com o estômago embrulhado desde o
momento que acordei, em um nível que sequer consegui comer alguma
coisa de café da manhã.
O outono em Emerald é lindo e com temperaturas que caem
rapidamente. Ainda não tivemos as primeiras nevascas, mas acho que, a
essa altura, já não deve demorar mais tanto assim.
Estaciono o carro em uma das vagas disponíveis para os clientes da
lavanderia de Austin e entro depressa, para fugir do vento gelado. Vejo meu
amigo do outro lado do balcão, conversando com a mãe.
— Boa tarde, Sra. Scheffer! — digo, aproximando-me.
— Quanto tempo que eu não a vejo, Georgina! — Ela dá a volta no
filho, aproximando-se de mim. — E como está bonita!
Ela sempre dava um jeito de me elogiar e lançar olhares para o meu
amigo. O sonho da mãe de Austin sempre foi nos ver juntos e nunca fez
questão de ser discreta quanto a isso, mesmo que agora estivesse
incentivando o filho a ir às festas de solteiros do clube às quais ela
frequentava.
— Obrigada! — Forço um sorriso.
— Austin me disse que vocês irão almoçar! Acho ótimo isso! Ele não
tem saído para nada, ultimamente! Não sei como vai arranjar uma
namorada desse jeito.
Meu amigo ergue as sobrancelhas para mim e eu apenas dou risada,
concordando com a mãe dele. No fim, somos dois fodidos.
— Qualquer coisa, me ligue, mãe.
— Como se precisasse de você para me ensinar a fazer o meu serviço,
garoto — ela diz, revirando os olhos. — Bom almoço e não se preocupem
em acabar rápido. Não tenho nada para fazer durante a tarde.
Despeço-me dela e saímos para a rua, encarando o vento frio.
— Sua mãe não cansa de tentar nos juntar — digo, rindo. — Mesmo
depois de todos esses anos e sabendo o quão incompatíveis nós somos.
— Ela acha que você é a única pessoa do sexo feminino na minha
vida — Austin diz com um suspiro e vejo a fumaça sair de sua boca. — É
meio impossível conhecer outras mulheres quando a vida se resume a
trabalhar para ganhar dinheiro e manter a casa…
— Não melhorou nada?
— Nem um pouco — ele diz, sério. — Estou fazendo o possível, mas,
ainda assim, não é o suficiente. Preciso pensar em algo para ganhar dinheiro
e tentar reerguer o negócio.
— Nós vamos achar uma solução.
Austin segue me contando tudo o que aconteceu nos últimos meses e
deixo que desabafe, porque, ao menos assim, consigo pensar em outra coisa
além dos meus problemas que, ao lado do meu amigo, parecem ser
ridiculamente pequenos.
Estou apenas a alguns passos do restaurante que vamos comer,
quando percebo que algo está muito errado com o meu corpo. Não sei se é
fraqueza pelas horas em jejum, mas minhas pernas parecem pesar meia
tonelada cada uma. Olho para o lado e vejo que meu amigo está falando
comigo, mas já não consigo entender o que ele diz. Tudo ao meu redor
parece girar e, aos poucos, ficar preto.
— Acho que não estou…
Escuridão.

O cheiro é de hospital e o barulho também.


Abro os olhos e estou deitada em uma maca, com uma cortina em
volta. Austin se senta em uma cadeira simples ao meu lado, com um
semblante preocupado, enquanto olha para um papel.
— O que aconteceu?
Ele toma um susto e se levanta, ficando ao meu lado na mesma hora.
— Não fica brava, por favor! — É a primeira coisa que ele me diz.
— Por que eu ficaria?
— Porque eu disse que era seu namorado. — Vejo suas bochechas
corarem. — Foi a primeira coisa que consegui pensar para me deixarem
ficar com você.
Levanto-me depressa e minha visão escurece levemente, obrigando-
me a deitar de novo. Que merda que está acontecendo comigo?
— O médico disse que daqui a pouco vai voltar com o seu exame de
sangue. — Só nesse momento noto um pequeno curativo em meu braço. —
Garantiu que era coisa rápida.
A cortina se abre e uma médica com um sorriso no rosto se aproxima
de nós dois.
— Que bom que acordou, Srta. Romano! — ela diz, aproximando-se.
— Os resultados do seu exame chegaram e não há nada com o que ficar
preocupada. Você e seu bebê estão bem, foi apenas uma queda de pressão,
mas sugiro…
A médica fica muda, talvez pela minha feição de choque, ou pela de
Austin. Difícil falar ao certo.
— Vocês sabiam da gravidez? — Sua voz é comedida.
Não consigo responder, simplesmente não sou capaz de abrir a minha
boca para falar qualquer coisa.
— Nós não sabíamos, doutora. — A voz do meu amigo parece estar
muito longe.
— Sinto muito em falar dessa maneira, vou dar privacidade para
vocês — ela diz. — Fiquem aqui pelo tempo que precisarem, mas saibam
que já estão de alta. Só peço para que a Srta. Romano procure um obstetra o
quanto antes, para fazer o acompanhamento.
— Claro, pode deixar.
Acompanho a médica sair e fechar a cortina novamente. Respiro uma,
duas, três vezes. Por fim, consigo me virar e olhar para o meu amigo, que
parece estar tão em choque quanto eu.
— Me tira daqui? — peço, em um fiapo de voz.
— Com certeza.

O caminho até a minha casa foi em um silêncio opressor. Estamos


lado a lado, dentro do elevador, ainda mudos.
Estou grávida e esse neném que cresce dentro de mim é de Conrad.
Coloco a minha mão na barriga, ainda sem acreditar que havia alguém ali
dentro que seria um pouco de nós dois.
Austin tira a chave da minha mão, quando percebe que não estou
sendo capaz de abrir a porta. Quase me arrasto para dentro, tirando meu
casaco e jogando em qualquer lugar.
Sento-me no sofá e bato no lugar ao lado, para que meu amigo se
aproxime. Não tenho mais como esconder dele, ainda mais quando ele
esteve presente no momento que descobri estar esperando essa criança.
— Eu posso assumir esse neném, Gin — ele diz, sério.
— Como?
— Isso que escutou. Sabia que tinha algo a mais do que a demissão da
Lowe... — Austin se levanta, andando de um lado para o outro. — Eu tinha
certeza! Para você estar assim, o cara deve ser um escroto e seu filho não
precisa ter alguém desse tipo na certidão de nascimento dele.
— Tin, agradeço por isso! — interrompo meu amigo e respiro fundo,
tentando controlar as lágrimas que surgem em meus olhos. — Mas não seria
certo nem com você e nem com o pai desse neném.
— Como você pode ter consideração por esse cara?
— Você está sendo totalmente precipitado, Austin. Me escute antes de
continuar falando merda. — Não sei onde encontro calma para conversar
com o meu amigo, que parece estar à beira de um surto. — Eu devia ter te
contado sobre isso assim que voltei do Brasil — Austin senta-se outra vez,
o corpo totalmente ereto —, mas me enfiei nesse maldito poço e nem
reparei que minha menstruação estava atrasada. — Passo as mãos pelo
rosto. — Não tenho outra maneira de falar isso para você, até porque, nunca
fomos de ficar dando voltas, não é? — Ele aquiesce. — O CEO do grupo
Santoro é Conrad.
— Co… como?
— Ele nunca esteve morto — digo, o coração dentro do peito
acelerado. — Muito pelo contrário, ele fugiu para o Brasil e está lá desde
então. E, bom, nós nos encontramos… e enfim — digo, envergonhada.
Ele abaixa a cabeça, os olhos voltados para o chão, imóvel. O tempo
passa devagar e o silêncio parece que irá nos esmagar a qualquer momento.
Nunca, em todos esses anos, tivemos segredos um para o outro… e, se ele
estivesse puto, teria toda a razão. Escondi que seu melhor amigo estava
vivo.
— Eu sempre soube que vocês nasceram um para o outro — ele diz,
finalmente. — Não me surpreende nem um pouco que algo assim tenha
acontecido.
Há uma tristeza enorme, que não consigo entender, em sua voz.
— Depois de um tempo que Con foi embora, eu achei que nós
poderíamos ter uma chance, que você me veria como um cara em
potencial… mas, agora, vejo que essa possibilidade nunca existiu, porque
você sempre foi a garota do Conrad.
— Nós éramos apenas amigos, Austin. Você esteve lá o tempo todo,
sabe disso tão bem quanto eu…
— Olha, Gin, até poderia ser para vocês, mas, para nós que estávamos
de fora, nunca houve dúvida alguma de que o destino de vocês era ficar
juntos, casar… ter uma família de comercial de margarina. — Ele dá de
ombros. — Depois que aquele primeiro momento passou e a nossa dor
começou a amenizar, achei que poderia ocupar esse espaço, mas você nunca
me deu abertura…
Eu puxo meu amigo para um abraço apertado, entendendo a dor dele
pela primeira vez. Acho que nunca tivemos uma conversa tão sincera
quanto agora e eu me sinto mal por não ter notado quão verdadeiro eram
seus sentimentos para comigo.
— Austin…
— Está tudo bem, Gin! — Ele beija minha testa. — Antes de
qualquer coisa, não estou bravo que você não tenha dito que Conrad está
vivo… eu meio que te entendo, eu acho. — Ele força um sorriso. — Mas o
que quero saber é: quando vai contar a ele sobre essa criança?
— Acho que assim que a minha ficha cair — digo, sincera. — Mas o
mais tardar no final da semana. — Vejo que ele respira aliviado. — O que
foi?
— Por um momento, pensei que você fosse esconder a gravidez dele.
— Sem chance. — Dou uma risada. — Cinquenta por cento é culpa
dele.
Austin ri de verdade, puxando-me para um novo abraço. Não consigo
imaginar a dor do meu amigo e, mesmo assim, ele está aqui, do meu lado,
dando-me todo apoio do mundo.
— Você o ama? — A pergunta vem à queima-roupa.
Foram meses fugindo dessa pergunta, desviando-me para não pensar
nela, e agora não posso mais fazer isso. Meu melhor amigo nos últimos dez
anos está aqui à minha frente, olhando no fundo da minha alma, esperando
uma resposta. E, muito diferente das outras pessoas, ele sabe exatamente
quando estou mentindo.
Meu coração acelera quando penso em Conrad, meu corpo reage à
mínima menção dele. Minha pele se arrepia só de lembrar do seu cheiro,
dos seus beijos.
— Amo.
Me deixe ir para casa
Estou tão longe
De onde você está
Eu quero ir para casa
(Home - Michael Bublé)

Antes de começar a fisioterapia, achei que seria tranquilo. Que seriam


alguns movimentos de alongar, mas eu não podia estar mais enganado. Nos
primeiros dias, eu chorei e, nos últimos, achei que eram os primeiros.
A dor me acompanhou em todos os momentos durante os últimos
meses, porque não era apenas a perna operada que precisava de atenção e,
sim, todo o meu corpo com seus machucados. Quanto mais consciência eu
tinha, de tudo o que havia acontecido, maior era o meu entendimento sobre
o tamanho do milagre que foi eu ter sobrevivido aquele acidente com
poucas sequelas.
Laser, choques para estimular a musculatura da coxa, muitos
exercícios de fortalecimento e alongamento. Por várias vezes, eu acordei e
pensei em pular aquele dia, em deixar para depois, mas então Bernardo
aparecia e fazia a sua parte: quando eu fazia menção de desistir, ele fazia
questão de me lembrar do porquê eu estava fazendo aquilo, de todos os
motivos para estar me levando quase ao limite e acelerar a minha
recuperação. Não que Georgina saísse da minha cabeça em algum
momento.
— Sr. Santoro, o porteiro acabou de interfonar e avisou que tem dois
policiais na portaria que gostariam de conversar com o senhor.
— Pode pedir para subir, Marlene.
Já havia prestado depoimentos outras vezes e haviam me deixado em
alerta de que era possível que novas conversas fossem necessárias.
Aparentemente, hoje era um dia desses.
Pego a bengala, que está encostada na lateral do sofá, e me apoio para
conseguir levantar. A dor continua aqui, presente, mas muito menor do que
uma semana atrás e, dando tudo certo, eu teria alta para viajar dentro de
poucos dias.
— Por aqui. — Escuto Marlene falar. — O Sr. Santoro está
aguardando por vocês na sala.
Uma mulher e um homem se aproximam, os rostos sérios. Ela estende
a mão primeiro, cumprimentando-me com um aperto forte.
— Sou a Detetive Joseane e esse é o Sargento Mathias. Estamos
trabalhando no seu caso, Sr. Santoro.
— Muito prazer — digo, formal. — Por favor, sentem-se.
Eles se acomodam nas poltronas, que há em frente ao sofá no qual
estou, e trocam olhares rápidos.
— Não queremos tomar muito do seu tempo — é ela quem começa
—, mas foram realizadas novas análises no helicóptero e elas ficaram
prontas recentemente. O resultado nos mostra que há fortes indícios de que
a pane do veículo não foi um acidente e, sim, algo premeditado, causado
por um terceiro.
— Vocês estão me dizendo que alguém tentou me matar? — A voz
sai um tanto engasgada da garganta.
— Sim. — É ela que responde mais uma vez. — Nós estamos aqui
para saber se o senhor tem algum desafeto em mente ou alguém que tenha
sido prejudicado em algum momento pelo seu negócio, até mesmo pelo
senhor, e que teria motivos para fazer algo assim.
— Para ser sincero, não consigo pensar em ninguém. Nossos
negócios são sempre cuidadosamente feitos com empresas idôneas,
envolvendo advogados e um processo rigoroso de auditoria.
— Sim, tudo isso foi verificado — o sargento responde. — Mas
gostamos de conferir para ter certeza de que nada passou despercebido por
nós.
— Claro, com certeza. — Sinto que minha cabeça poderia explodir a
qualquer momento. — Mas, no que eu puder ajudar, sigo à disposição.
— Sabemos disso, Sr. Santoro — a detetive responde outra vez. —
Vamos iniciar uma nova linha de investigação e, caso surja qualquer
novidade, entraremos em contato o quanto antes. O senhor tem alguma
pergunta?
— Gostaria de saber se existe algum empecilho em sair do país?
— Não, nenhum — a mulher responde. — Só peça para que seu
advogado notifique e está tudo certo. Nosso trabalho continuará sendo feito
e nosso objetivo é descobrir quem fez isso, para levá-lo à justiça, como
deve ser.
— Muito obrigado.
Em menos de quinze minutos, estou sozinho novamente, mas, dessa
vez, com a mente explodindo com o que acabei de ser informado. Mas
quem poderia querer me matar em um lugar no qual sou tão pouco
conhecido?
Penso no período que estive na Alemanha, mas me certifiquei de ter
saído sem dívidas, ou qualquer outro elo que pudesse vir a me cobrar mais
tarde. Um mapa mental começa a surgir com as diversas hipóteses, mas há
um caminho que não quero percorrer, que minha mente parece ignorar
completamente, mesmo sabendo que, provavelmente, seja ali que devo
entrar.
Escuto vozes vindas da porta de entrada, e reconheço a voz de
Bernardo conversando com Marlene, que dá uma risada.
— Achei que estivesse com a fisioterapeuta — ele diz, assim que
entra na minha sala.
— Dois policiais acabaram de sair daqui — respondo, sem responder
sua frase anterior. — Coisa de cinco minutos antes de você aparecer.
— O que eles queriam?
— Me contar que não foi um acidente o que aconteceu comigo.
Alguém tentou me matar, Bernardo.
Meu amigo se joga na poltrona, antes ocupada pelo sargento. Ele
desafrouxa a gravata, as sobrancelhas tão arqueadas que quase tocam o
começo a linha do seu couro cabeludo.
— Quem poderia fazer isso, cara? — questiona. — Você nunca
aparece em lugar nenhum, sua cara é pouco conhecida…
— Eles me fizeram uma pergunta que estou pensando agora: alguém
que eu tenha prejudicado com o meu negócio.
— Você está falando… — Ele está com receio de pronunciar, e eu
entendo.
— Lowe? — Ele aquiesce. — Sim.
— Você acha que eles seriam capazes?
— Meu pai batia na minha mãe com um cinto. Às vezes, com um
pedaço de pau — digo, frio. — Apanhei algumas vezes de fio e ele fazia
questão de falar que meu nascimento havia sido um erro, que ele preferia
que eu estivesse morto. Isso responde à sua pergunta?
— Conrad…
— Tenho um favor para cobrar, da época em que eu morei na
Alemanha. Nunca pensei que fosse precisar entrar em contato com essas
pessoas novamente, mas se for o preço a se pagar, para descobrir o que
aconteceu, que seja. — Meu amigo apenas aquiesce, apesar de estar
claramente preocupado. — O mais importante nessa história toda é o que a
Flávia me disse, mais cedo, que tudo indica que terei alta na próxima
semana. Então, no mais tardar, em quinze dias, estarei partindo para a
minha terra natal, a fim de resolver a minha vida, em todos os sentidos —
digo, determinado.
— O que vai fazer se descobrir que foi alguém da sua família, por
exemplo, o seu pai?
— Vai para a cadeia, como qualquer outro criminoso — digo,
tranquilo. — Aquele homem nunca foi meu pai, Bernardo… no máximo,
foi o doador de esperma e nada além. Quanto às coisas da Santoro,
podemos deixar marcado reuniões diárias de acompanhamento. Vai dar para
organizar, mesmo com o fuso horário.
— Não, Conrad — Bernardo me interrompe. — Você irá tirar férias e
ficará ausente o tempo que precisar.
— A expansão…
— Eu me viro aqui — interrompe-me mais uma vez. — Tudo o que
precisava da sua assinatura já foi resolvido, então está tudo encaminhado, e
agora são questões que consigo resolver sozinho, sem problemas. Vá
recuperar a sua garota, porque eu não aguento mais você choramingando
por causa de Georgina. E, se tiver um tempo, descubra quem tentou te
matar.
— Certo, você tem razão.
— Claro que eu tenho, por isso que eu nunca passo frio. — Ergo a
sobrancelha, sem entender. — Porque estou sempre coberto de razão.
— Vocês, brasileiros, têm algumas colocações bastante estranhas —
digo e ele apenas ri. — Mesmo depois de todo esse tempo morando aqui,
ainda me surpreendo com essas coisas. — Ele dá outra risada. — Mas
afinal, o que veio fazer aqui? Não tem nem uma hora que vi sua cara por
uma chamada de vídeo.
— Vim te buscar para tomarmos uma cerveja e comemorar tudo isso
aí que conversamos agora.
— Mentira.
— Só preciso escutar outra coisa que não seja meus pais me
informando que irão buscar um casamento para mim, com alguma mulher
da alta sociedade.
Levanto-me, com a ajuda da bengala e, quando estou firme o
suficiente, bato no ombro do meu amigo.
— Então vamos beber.

O estranho não é pisar em um aeroporto, mas, sim, caminhar por esse


saguão sabendo que estou indo em direção ao país no qual jurei nunca mais
colocar os pés, enquanto estivesse vivo.
Mas, ainda assim, sinto que estou indo para casa.
Com a ajuda da minha inseparável bengala, vou em direção ao lado
em que acontece o embarque em jatos particulares. Bernardo fez questão de
disponibilizar um dos jatos de sua família, para que eu fosse o mais
confortável possível. Ganhei dinheiro? Sim, mas ainda não o suficiente para
ter um avião à minha disposição.
Além do detetive particular que estará me esperando, não há mais
ninguém. O contato de Georgina eu perdi, junto de todas as minhas contas,
após uma cuidadosa análise por parte dos especialistas da polícia. Eu ainda
podia estar com pessoas me vigiando, por isso foi o mais prudente a ser
feito.
Acomodo-me na cadeira de couro claro, com a pequena janela à
minha direita. Do lado de fora, já no escuro da noite, vejo os outros aviões
prontos para decolar. Serão oito horas de voo na primeira etapa, iremos
parar para abastecer e, depois, seguiremos direto para Emerald, em um
trajeto de mais três horas.
Como Bernardo disse para mim, alguns dias atrás: estou indo para
encontrar Georgina e, se der tempo, descobrir quem tentou me matar, mas
eu sei que não serei capaz de ficar longe da Lowe e nem de esconder da
minha família que estou de volta.
Puxo o tablet da mochila, conecto com a Wi-Fi do avião e, enfim,
tomo coragem para pesquisar sobre a empresa da minha família. Tudo o que
Gió me contou está escancarado na minha cara, agora. São dezenas e mais
dezenas de reportagens sobre as demissões em massa e os incontáveis
processos trabalhistas.
— Senhor, podemos servir a janta? — Uma das comissárias de bordo
se aproxima.
— Sim, por gentileza.
Há a parte dos empréstimos negados por vários bancos em toda a
Europa e os boatos que giram sobre a falência iminente de uma empresa
com mais de duzentos anos de existência.
Será que eu realmente poderia fazer alguma coisa para reverter a
situação? Balanço a cabeça em uma negativa, porque esse não é um
problema meu. Meu objetivo principal em Emerald é encontrar Georgina,
declarar-me e acompanhar um pouco das investigações, nada além disso.
O Conrad Lowe ficou no passado.

Pedi ao motorista, que estava me esperando na saída do aeroporto,


que pegasse o caminho mais longo até o hotel. Queria ver as mudanças que
aconteceram na cidade, o que foi criado, o que deixou de existir.
Estou hospedado bem no centro e, aqui, pouca coisa mudou, até
porque foi tombado como patrimônio nacional, algo que eu me recordo bem
das aulas de história.
Abro as cortinas, para ver o templo nublado do lado de fora. Ao
contrário do Brasil, que estamos no final da primavera, aqui o inverno está
batendo à porta e as temperaturas já estão negativas. Os dias, aos poucos,
estão se tornando cada vez mais curtos, dando espaço para mais horas de
escuridão. É surpreendente notar que meu corpo já não está mais
acostumado a esse clima frio.
Batidas à porta do quarto indicam que a única pessoa que sabe que
estou aqui, e foi autorizada a subir direto, chegou. O Sr. Ricci me
surpreende por ter a minha estatura e, ao que tudo indica, uma idade
bastante próxima da minha. Ele estende a mão e o nosso aperto é firme.
— Prazer em conhecê-lo, Sr. Santoro.
— Conrad, por favor.
— Chame-me por Lucca, então. — Aquiesço. — Sinto muito pelo
que aconteceu.
— Esse acidente atrasou um pouco os meus planos. — Vou em
direção à pequena saleta do apartamento em que estou hospedado. — Tem
alguma notícia?
— A polícia do Brasil conseguiu, através das câmeras, identificar os
suspeitos que mexeram no helicóptero e estão à caça deles, mas nós fomos
por um outro caminho e conseguimos identificar quem contatou eles.
— Alguém conhecido por mim? — Não tenho paciência e pergunto,
provavelmente atropelando a narrativa do homem à minha frente.
— Provavelmente não, porque acreditamos ser um laranja, mas já
encontramos um elo entre essa pessoa e Emerald. — A respiração sai
pesada pela minha boca. — Bem como você suspeitou, Conrad.
— Algum nome já?
— Ainda não, mas estamos investigando a pessoa que mandou fazer
isso. Falta pouco para conseguirmos descobrir quem é e acreditamos que, a
partir desse momento, chegar no real mandante do crime será fácil.
— Essas informações vão parar na mão da polícia?
— O chefe diz que sim, mas que devemos aguardar, principalmente
porque você ainda é considerado como uma pessoa desaparecida. —
Aquiesço. — Quando chegar aos noticiários que está de volta, é bem
provável que precisará prestar depoimentos e tudo ficará um pouco mais
complicado. É importante que o advogado já esteja com todas essas
informações na mão quando esse momento chegar. — Lucca se levanta e
caminha pelo local. — Desde que comecei a trabalhar para o chefe, tinha
curiosidade de conhecer você.
— Por quê? — Mesmo eu sabendo que é um mundo no qual os
espertos sabem pouco, a curiosidade fala mais alto.
— Ele disse que você era um cara verdadeiramente corajoso — há
uma certa admiração quando ele volta a olhar para mim — e que sempre
será eternamente grato a tudo o que fez para ele. E pediu para eu lhe avisar
que, caso precise de qualquer coisa, não hesite em contatar, pois nada que
ele faça pagará o favor que você fez a ele.
— Agradeça ele por mim, então. — Ele aquiesce. — Não é seguro
contatá-lo estando na Europa.
— Sim, ele sabe disso. De qualquer maneira, achou melhor colocar
seguranças, caso algo aconteça. Um deles é o hóspede do quarto em frente e
os demais estão espalhados pela rua, à paisana. Caso precise de algo, só
avisar.
— Você conseguiu o endereço de Georgina?
— Que bom que lembrou. — Ele tira um papel de dentro do bolso da
calça. — Boa tarde, Conrad.
— Para você também.
— Nos encontraremos em breve.
Quanto tempo vou te querer?
Enquanto você me quiser
E com certeza mais que isso
(How long will I love you - Ellie Gouding)

Sinto-me inquieta desde hoje de manhã e nada tem relação com o fato
de eu já ter acordado para vomitar. Ainda não tive coragem de contar sobre
a gravidez para mais ninguém além de Lizzie. Como vou falar para os meus
pais que serei uma mãe solo? E quando me perguntarem quem é o pai, vou
dizer o quê?
Levanto a camiseta e minha barriga já não é mais tão lisa, há uma
pequena protuberância ali, na qual o meu bebê com Conrad cresce
protegido. Coloco a mão sobre meu ventre e meu coração se aquece ainda
mais. Pelas minhas contas, estamos caminhando para o quarto mês.
Ontem à tarde, liguei para a Santoro na esperança de conseguir algum
milagre e falar com ele, mas disseram que o CEO estava indisponível e que,
assim que fosse possível, passariam o meu recado. Uma resposta padrão
que quer dizer: não vamos passar, pode esquecer.
Entrei no site da companhia aérea e fiquei olhando as passagens para
o Brasil. Poucos cliques e eu poderia ir para lá amanhã, mas não iria
arriscar uma viagem longa como essa sem passar por um obstetra, que me
garantisse que está tudo certo com o neném. A consulta está marcada para
dali dois dias e, até lá, serei obrigada a esperar, para tomar qualquer
decisão.
Sem nenhuma razão ou motivo, decido que preciso visitar a minha
avó. A sensação é que ela terá todas as respostas do mundo, quiçá do
Universo. Ela, mais do que ninguém nesse mundo, saberá me falar o que
devo fazer.
Troco de roupa em uma fração de segundos. Enfio minha bota nos
pés, jogo a bolsa no ombro e, por fim, confiro o horário. Com alguma sorte,
conseguirei almoçar com ela ainda.

Com o controle remoto, abro o portão da chácara e minha avó logo


aparece, curiosa para saber quem chegou na hora do almoço no meio da
semana. Quando ela me reconhece, um sorriso surge em seu rosto e era tudo
o que estava precisando, hoje.
Estaciono o carro no gramado, que agora está ficando escurecido,
com o frio. As copas das árvores estão completamente peladas, a essa altura
do campeonato, e não lembram em nada de como eram no começo da
primavera.
— Não estava esperando por você, querida. — Dona Angelina se
aproxima, já com os braços abertos.
Saio do carro e me jogo no abraço que sempre esteve ali,
independentemente do momento. Sempre cresci ouvindo a minha mãe falar
que nada na vida supera o colo de vó e, hoje, já adulta, entendo
perfeitamente o que ela falava.
— Vou atrapalhar a senhora?
— Nem um pouco. — Ela passa a mão em meu rosto. — Por acaso,
acabei fazendo comida a mais… bom, mas como sabemos, nada no
Universo acontece sem ter um motivo, certo?
Apenas concordo, porque, no momento, não consigo ver a situação
dessa maneira tão positiva.
— Quer dizer que você resolveu fazer algo fora do planejado? —
Dona Angelina pergunta com um sorriso no rosto.
— Estou sem listas ultimamente, vó. — Mostro as mãos vazias.
— Seu avô que te ensinou isso. — Nós entramos dentro da casa e
respiro aliviada ao encontrar o aconchego de que estava precisando. — Ele
também era cheio de papéis com os afazeres. O secretário dele ficava louco
com isso!
— Eu ainda tenho um desses papéis — digo, sorrindo. — Sinto falta
do vovô.
— Ele faz muita falta mesmo! Às vezes, olho para as poltronas e nem
acredito que já se passaram doze anos desde que ele viajou até o outro lado.
— Ela segue pelo corredor, em direção à cozinha. — Me ajuda com as
coisas?
— Com toda a certeza.
Parece que toda a coragem que eu tinha antes de sair de casa
evaporou, no momento que vi minha avó. Como é que vou contar a ela que
estou grávida? Respiro fundo, tentando controlar o coração, que bate tão
forte que parece querer cavar um buraco dentro do meu peito.
Juntas, arrumamos a mesa para podermos almoçar e tento, nesse
pequeno espaço de tempo, organizar meus pensamentos. Coloco as panelas
fumegantes sobre os protetores e me sento na cadeira, em frente à minha
avó.
— O que está acontecendo, querida? — É ela quem toma as rédeas da
situação.
— Não sei como falar isso…
— O jeito mais fácil costuma ser com a boca — ela graceja,
arrancando um sorriso de mim. — Você nunca teve rodeios para contar as
coisas para mim.
— Só que agora é diferente.
Minha avó abre a panela, o cheiro de comida fazendo com que minha
boca se encha de saliva e um rombo surja no meu estômago, como há dias
não sinto.
— Estou grávida — digo de uma vez.
Ao contrário do que imaginei, o choque não passa por seu rosto,
muito pelo contrário. Ela apenas abre um sorriso e se serve da panela.
— Já sabia.
— Como? — pergunto, chocada.
— O café me contou — diz, matreira. — Estava apenas esperando a
notícia chegar.
Ela se levanta, rodeia a mesa e eu me jogo em seus braços mais uma
vez. Só que, dessa vez, o choro que estava entalado na minha garganta vem
com tudo. Aos poucos, vou me acalmando até que sejam pequenos
espasmos.
— O que acha de comermos agora? — ela me pergunta com carinho.
— Aí, podemos ir conversando e você me conta tudo.
— Si-sim — Fungo e ela ri.
Para algumas pessoas, pode ser algo pequeno, mas, para mim, que
nada parece ficar no meu estômago nos últimos dias, comer e se sentir
saciada é uma das melhores coisas da vida. Conto para minha avó tudo e,
como já esperava, ela também não ficou chocada quando contei que Conrad
estava vivo e que era o pai desse bebê.
— Não é sem graça saber tudo o que vai acontecer? — pergunto a ela,
com curiosidade.
— Mas não sei de tudo, só as coisas que permitem que eu veja —
Dona Angelina diz. — Você acha que eu permitiria que você sofresse, se
soubesse que o menino Conrad estava vivo?
— Eu acho que não — digo, um pouco incerta.
— Desconfiei quando li a sua última borra de café, mas não tinha
certeza, até porque parecia ser surreal demais, até mesmo para essa velha,
que já viu muita coisa nessa vida.
Enquanto coloco um pouco de comida no meu prato, a lembrança da
mulher, que me parou em frente ao Starbucks, volta à minha mente, e o
mesmo arrepio frio atinge a base da minha coluna.
— Aconteceu algo bizarro durante a viagem: uma senhora me parou e
falou coisas estranhas em alemão, sobre tomar cuidado com aquele gerado,
pois ele selará o elo de paz. No dia, eu fiquei com medo, mas agora me
sinto ainda mais assustada.
— Você se lembra de quando te expliquei que o destino é mutável? —
A voz da minha avó agora está um pouco mais grave, o semblante
preocupado. — Às vezes, até pode parecer que é algo escrito na pedra,
porque o que apareceu no oráculo de fato aconteceu, mas não é. —
Aquiesço. — Tente não pensar muito sobre o que foi dito a você e deixe que
as coisas aconteçam.
— Tenho tentado não pensar muito no assunto e, nas últimas
semanas, fui bem-sucedida — digo em um tom um pouco sarcástico. —
Meu mundo está de cabeça para baixo, como a senhora pode notar.
Minha avó me olha por cima do seu óculos, antes de tomar um gole
do seu suco de frutas vermelhas.
— Quando você fala dessa maneira parece que tudo está dando
errado. — Apenas concordo com um gesto mínimo da cabeça e Dona
Angelina nega. — Mas e se esse for o caminho, certo? E se as coisas apenas
estão se ajeitando para, de fato, ficarem no melhor lugar para você? — Fico
sem saber o que responder. — Nem parece minha neta com essa ansiedade
toda. Deve ter herdado do seu avô ou da família do seu pai.
Solto uma risada antes de levar o garfo à boca novamente. Sinto que a
minha energia aumenta a cada minuto que passo aqui, ao lado da minha avó
e dentro da casa que sempre foi sinônimo de segurança para mim. E, aqui,
comendo à mesa que foi feita pelo meu bisavô, me pego desejando que meu
filho ou filha possa ter a mesma coisa que eu.
Assim que terminamos de comer, arrumamos tudo. Apesar dos
empregados, minha avó faz questão de arrumar a cozinha e o próprio
quarto, deixando tudo impecável.
— O que você acha de assistir a um filme com a sua velha avó?
— Perfeito. O que a senhora quer assistir?
— Sua mãe me disse que eu vou gostar de um filme chamado "Diário
de uma Paixão".
— Ele é perfeito!

Quando o filme acaba, estou com o rosto inchado de tanto chorar e


minha avó parece ficar pensativa.
— Georgina, as pessoas dizem que devemos deixar o passado para
trás e que não devemos olhar para ele, mas, às vezes, é necessário. Visitar é
importante e nos traz muitas respostas que não teríamos. Sei que veio aqui
esperando uma resposta, mas, dessa vez, eu não a tenho querida.
E, mais uma vez, minha avó sabe mais de mim do que eu mesma.
— Um conselho?
— Acho que está perdendo tempo ficando aqui com essa velha,
enquanto a vida passa lá fora — diz, sincera. — Se eu fosse você, iria curtir
um pouco de ar livre. Vai fazer bem para ambos!
— Será?
— Confie nessa sua avó! — Ela se levanta e eu faço o mesmo. — O
frio do outono tem o poder de nos ajudar a pensar com mais clareza e trazer
as resoluções de que tanto precisamos. — Abaixo a cabeça e ela beija a
minha testa. — Depois volte aqui, para me contar como foi.
— Combinado. — Pego a minha bolsa, mas não posso sair sem fazer
uma última pergunta. — A senhora não está com vergonha de mim?
Ela segura meu rosto com ambas as mãos e nossos olhos se
encontram.
— Nunca — diz, firme. — Eu estou absurdamente feliz por essa
criança estar vindo! Meu primeiro bisneto! Como poderia ser diferente
disso? O último nenê que tivemos na família foi você, querida. Quando
tiver coragem de contar aos seus pais, faremos uma grande festa.
Abraço minha avó mais forte e vou em direção ao carro. O ar já está
mais frio do que na hora que eu cheguei, com a proximidade do pôr do sol,
que acontece cada vez mais cedo.
Ligo o aquecedor, assim que giro a chave na ignição, e sinto o motor
ganhar vida. Manobro e, antes de sair pelo portão, vejo minha avó pelo
retrovisor, acenando com um grande sorriso no rosto.
Agora, na estrada, minha cabeça viaja pelos lugares do passado, mas
no meio de tantos, um surge com força: o parquinho no qual eu e Conrad
brincávamos quando éramos crianças e, depois, passamos a usar só para
conversar. A última vez em que estive lá foi quando soube que ele havia
sumido e, após desse dia, nunca mais tive coragem de me aproximar, como
se ali fosse o seu túmulo.
Não demoro muito tempo para chegar. Dou seta para a direita e entro
no pequeno estacionamento. Engraçado pensar que, na última vez que
estive aqui, era uma adolescente que não tinha habilitação para dirigir. Ao
mesmo tempo que passou rápido, muitos momentos parecem ter se
arrastado a algo próximo ao infinito.
Assim que saio do carro, quase me arrependo de ter vindo até aqui
com essa temperatura. Fecho melhor o casaco em torno da cintura e ajeito a
gola mais para cima do pescoço.
Vou caminhando entre os brinquedos de ferro, com alguns flashes de
brincadeiras voltando à memória. O tempo parece ter parado aqui, porque
está tudo exatamente igual ao que eu me lembro. O gira-gira, em que já
vomitei por estar rápido demais, e o trepa-trepa, agora pintado de amarelo,
no qual um Conrad pré-adolescente caiu e quebrou o braço, ficando com o
gesso por intermináveis três meses.
É um espaço grande que, com esse frio, está completamente deserto.
Mas o que estou esperando está na outra ponta. Por um momento,
vislumbro o futuro. Sou eu, de mãos dadas com uma criança que pula,
enquanto as mãozinhas estão agarradas à minha. Sim, independentemente
do que aconteça, ela vai brincar aqui.
Lá está o balanço, bem no limite entre o parquinho e a rua, mas, ao
contrário do que imaginei, não está totalmente vazio, existe alguém tão
louco quanto eu para ficar em um lugar aberto, em um horário como esse.
Aproximo-me mais um pouco e consigo identificar um homem vestido com
roupas pretas, que parece ser muito grande para estar sentado na banqueta.
Ele vai para frente e para trás, com os pés apoiados no chão e a
cabeça baixa. Eu fico observando aquela cena por alguns instantes, até que
o mundo para de girar.
Tudo ao meu redor cai em um silêncio completo, quando o
desconhecido ergue a cabeça e seus olhos encontram os meus.
O coração para por um átimo de segundo, para bater descontrolado
logo em seguida, ameaçando sair pela minha boca.
Obrigo-me a piscar várias vezes, passando a mão nos olhos, para ter
certeza do que estou vendo. O medo diz que é uma miragem, algum tipo de
ilusão, mas o tempo passa e ele continua parado, no mesmo lugar.
Contra todas as probabilidades e estatísticas, Conrad está ali, de pé.
Serei sua esperança, serei o seu amor,
serei tudo o que você precisa
Eu irei amá-la mais a cada respiração,
verdadeiramente, loucamente, intensamente
(Truly, Madly, Deeply - Savage Garden)

Não sou capaz de me mover, nem mesmo um único centímetro. E


então Conrad vem em minha direção, a passos largos, mas, mesmo assim,
cobrindo a distância em uma quantidade mínima de passadas.
Ele está aqui, bem diante de mim. Os olhos fixos nos meus, a
incredulidade estampada. Dessa vez, não espero que ele dê o primeiro
passo. Coloco-me na ponta dos pés, segurando seu rosto com as duas mãos,
e trago sua boca em direção à minha.
O seu perfume amadeirado invade meu olfato, ao mesmo tempo que
sua língua pede passagem por entre meus lábios, e, pela primeira vez desde
que voltei, sinto que meu mundo encontrou o eixo correto. Como é possível
que uma única pessoa seja capaz disso?
Aqui, onde passamos a nossa infância inteira e uma grande parte da
adolescência, agarro-me a ele, agradecendo ao Universo, ao Destino e a
qualquer ser superior por ter me trazido até aqui hoje.
— Como? — pergunto, quando nos separamos.
— Não me importo com o "como", só com o fato de que estou
loucamente apaixonado por você. — Minhas pernas bambeiam nesse
momento, porque nem em meus sonhos mais românticos algo assim
aconteceu. — Te quero como jamais pensei que fosse possível, Georgina
Romano.
As lágrimas invadem meus olhos e nós nos beijamos novamente.
Algo gelado toca na pele da minha bochecha e me afasto apenas o
suficiente para ver que a neve, enfim, chegou a Emerald.
— Eu também estou apaixonada por você, Connie — confesso em um
fio de voz.
Eu queria falar de amor, mas ficou entalado na garganta. Conrad me
puxa para o seu corpo, colando nossas bocas. Passo a mão por seus cabelos
e pelo rosto, cuja a barba o deixa levemente áspero.
— Acho melhor sairmos daqui — Conrad fala e noto que ele esfrega
as mãos, na tentativa de se aquecer. — Eu realmente gostaria de relembrar
os velhos tempos e ficar conversando com você ali nos bancos do balanço,
mas admito que não estou mais acostumado ao frio.
Dou risada, porque o inverno que ele encarou nos últimos anos é
quase que o frio que temos no fim do nosso verão. Vejo vários flocos de
neve presos em seu cabelo. O rosto bonito está levemente avermelhado e
pequenas baforadas saem de sua boca.
— Você está de carro? — pergunto.
— Não, mas posso pedir um carro de aplicativo. — Conrad tira o
celular do bolso.
— Fica tranquilo porque o meu está no estacionamento — digo. — O
que acha de ir lá em casa? Sei que não tenho os mesmos dotes culinários
que você, mas sei fazer um chocolate quente gostoso.
— Eu ia oferecer uma cafeteria, para não te deixar desconfortável. —
Conrad parece ficar envergonhado.
Apenas nego com a cabeça, selando nossos lábios. Quantas vezes
sonhei com isso? Suspiro e ele me acompanha.
— Precisamos conversar e acho que um lugar mais privado é melhor.
— Nossas testas estão coladas e, por isso, sinto quando ele aquiesce. —
Meu carro está do outro lado — murmuro.
Ele se afasta um pouco e minha vontade é agarrá-lo, para que não vá a
lugar algum. É um desespero estranho, como se ele pudesse sumir a
qualquer momento.
— Só preciso pegar a minha bengala.
E então reparo que ele caminha mancando em direção ao balanço.
Uma de suas pernas parece estar mais travada. Conrad pega o objeto e volta
se apoiando, um caminhar mais lento, sua feição é de alguém que está com
dor.
— O que aconteceu?
— Longa história. Posso te contar quando estivermos na sua casa?
Concordo.
Sua mão livre passa pela minha cintura e nós caminhamos sem
pressa. Ainda parece surreal demais que ele esteja aqui, do meu lado. São
tantas coisas passando por minha cabeça, tantas emoções. Encosto meu
nariz em sua roupa e inspiro profundamente, sentindo seu cheiro… é a
verdadeira sensação de lar, de uma estranha certeza de que estarei segura,
independentemente do que aconteça, mas então é meu próximo movimento
que parece quebrar as minhas certezas.
Ergo minha mão para colocar sobre a barriga e paro no meio do
caminho. O pai do meu bebe está ao meu lado. Um medo avassalador
parece tomar conta de mim de uma hora para outra.
Sinto os lábios de Conrad sobre a minha cabeça e me aproximo um
pouco mais de seu corpo. E se ele não quiser esse bebê? Meu cérebro
parece estar entrando em curto-circuito. Será que vou ter um ataque de
ansiedade bem agora? Lembro-me da técnica de respiração que uma das
psicólogas, que cuidou de mim durante o processo de luto, ensinou-me, mas
sou incapaz de reproduzi-la.
— O que está acontecendo? — Conrad para à minha frente e qualquer
tentativa de concentração vai pelos ares
— Acho que estou ansiosa — digo, forçando uma risada. — Acho
que não estava…
Connie me puxa para seus braços, apertando-me em um abraço forte.
— Eu estou aqui com você e não irei a lugar nenhum — ele diz no
meu ouvido, a voz firme. — Vamos respirar juntos. Me acompanhe, ok?
E, mesmo que tenha tentando, a crise vem, mas ele não sai de perto e
nem me solta. Sua respiração é calma e sei que ele conversa comigo,
mesmo que não consiga entender nesse momento.
O tempo passa estranho enquanto meu cérebro parece tentar voltar ao
normal e, em algum momento, sou capaz de voltar a ouvir e o primeiro som
que capto é a respiração de Conrad tranquila e ritmada. Estou com o ouvido
encostado em seu peito, que some e desce. Minhas mãos agarram a sua
roupa e seus braços me prendem no lugar.
— Você está melhor? — pergunta, em um cochicho.
Afasto-me um pouco e nossos olhos se encontram novamente.
— Obrigada por isso — sussurro.
— Tontice a sua me agradecer por isso. — Ele sorri e beija minha
testa, deixando-me encabulada. — Seu carro é automático?
— Sim.
— Então me passa a chave, que consigo dirigir. — Penso em
protestar, mas ele nega com a cabeça. — Vou te levar em segurança para
sua casa, onde poderemos conversar. O que acha?
Entrego o objeto em sua mão e abraçados, caminhamos em direção ao
meu carro.
Meu apartamento não é pequeno, mas com Conrad, no meio da sala,
parece ficar simplesmente minúsculo.
Ele olha com atenção os objetos ao redor, enquanto tiro o meu casaco,
garantindo que a camiseta que estou usando aqui dentro seja larga o
suficiente para cobrir a minha barriga, que apesar do pouco tempo de
gestação, já tem todas as características que poderia ter.
— Eu me lembro dessa foto. — Connie pega um porta-retrato no qual
estamos eu e ele no mesmo parquinho que estivemos instantes atrás. —
Tínhamos o quê? Uns dez anos?
— Acho que sim! — Aproximo-me e aponto para a foto do lado, na
qual está ele, eu e Austin. — Essa foi no seu primeiro jogo como capitão.
— Me lembro bem. — Ele ri. — Saí com o tornozelo inchado porque
tomei um carrinho de um filho da puta.
— E não quis ir ao hospital. — Conrad aquiesce.
Ele continua olhando tudo com atenção. As borboletas dentro do meu
estômago fazem uma enorme revoada e sei que preciso contar tudo de uma
vez, antes de perder a coragem. Logo eu, que nunca tive medo de falar as
coisas, agora estou aqui, pela segunda vez no dia, tensa.
— Connie… — Ele se vira para mim e eu respiro fundo. — Estou
grávida.
E como sempre acontece, quando se trata de nós dois, o tempo ao
nosso redor se torna relativo. Talvez, do lado de fora, tenham se passado
dias enquanto estamos parados, olhando um para o outro.
— Grávida? — Ele dá um passo em minha direção. — Um filho
meu? Nosso?
Sua expressão é indecifrável e o coração se aperta com o medo da
rejeição, mas o que vem a seguir arranca todo e qualquer sentimento
negativo. Conrad passa o braço pela minha cintura, puxando-me em sua
direção, e nossas bocas se chocam com vontade.
Há desespero, paixão e muita saudade no beijo, que se aprofunda
rapidamente, e eu estou entregue. O calor sobe por todo meu corpo, fazendo
morada em cada parte que encontra, libertando-me do medo que havia se
incrustado aqui dentro.
Suas mãos buscam a barra da minha camiseta e eu levanto os braços,
dando uma permissão muda para ele seguir. Quantas noites sonhei com
isso? Quantas vezes usei o chuveirinho para lidar com a minha necessidade
de Conrad? Um suspiro escapa, quando o tecido passa pela minha pele.
Ele dá um passo para trás e meus braços caem na lateral do corpo,
minha respiração acelerada faz com que os seios, presos em meu sutiã preto
e simples, subam e desçam de forma acentuada, mas, nos olhos de Conrad,
há uma devoção que nunca vi. Observa-me com atenção e um sorriso brota
em seu rosto, um daqueles genuínos que vi poucas vezes desde que nos
reencontramos no Brasil.
Como se estivesse em câmera lenta, vejo sua mão se erguer e pousar
sobre a minha barriga. Se antes eu estava com calor, agora sinto que posso
entrar em combustão a qualquer momento. O homem à minha frente tem o
poder de me arrancar do mundo e me trazer para um lugar no qual só existe
nós dois, nada além.
Mesmo com as mãos trêmulas, vou tirando sua blusa, subindo aos
poucos, e cada pedacinho da pele firme do seu abdômen vai se mostrando
até o ponto em que sou obrigada a roçar uma perna na outra. Tudo em mim
é fogo e sei que só ele é capaz de controlar tudo isso.
Passo as unhas sobre os quatro pequenos quadrados que ele tem na
barriga e vejo que seus pelos se arrepiam, mandando novas ondas para o
meu corpo. A próxima coisa que sinto são seus dedos entrando nos meus
cabelos e os puxando para trás. Só me resta fechar os olhos e me entregar
de vez.
Estou à completa mercê de Conrad Santoro.
Ele dedilha as minhas costas até encontrar o fecho que mantém o
sutiã preso em meu corpo e, em seguida, sinto a peça se soltar, deslizando
pelos meus braços. Suas mãos tocam meus seios sensíveis e um gemido
escapa por minha boca.
Perco-me em suas carícias e o próximo movimento que sinto é um
solavanco. Como se eu não pesasse muito mais que uma pluma, ele me
levanta e, como da outra vez, passo minhas pernas por sua cintura.
— Onde é o quarto? — É quase um rosnado que sai de sua boca.
— A sua perna… — digo, lembrando-me.
— Foda-se. Onde é?
— À direita, no final do corredor.
Como consigo falar, enquanto seus lábios beijam o meu pescoço e
sugam minha pele de leve, é um grande mistério. Seguro seus cabelos
enquanto pequenas lufadas de ar saem por meus lábios.
A próxima coisa que sinto é o frio do meu cobertor, em contato com a
pele nua das minhas costas. Abro o botão da minha calça jeans e Conrad
puxa o tecido para baixo, levando minha calcinha junto.
Estou completamente nua na frente dele, e não digo apenas de roupa,
mas de muito mais do que isso. Acompanho os movimentos dele ao
desafivelar o cinto, abrir o zíper e baixar a calça, junto da cueca box. E não
há máscaras entre nós.
Eu o quero dentro de mim, sem nenhuma demora ou preliminares.
Cru e instintivo, simples assim. Abro minhas pernas, convidando-o, e seus
olhos caminham por cada parte exposta do meu corpo.
Ele se ajoelha e, em um movimento brusco, enterra o rosto em meu
centro. Sua língua me explora e um grito que mal reconheço escapa por
minha garganta. Os choques passam pelo meu corpo, e eu me contorço,
segurando o lençol.
— Eu quero você.
Acho que é a única frase coerente que consigo formular, enquanto sua
língua brinca com o meu clitóris. Conrad ergue a cabeça, os olhos
brilhando, e me cobre, preenchendo-me por completo de uma única vez.
Meu corpo se contrai e eu mergulho no abismo sem pensar duas
vezes. Meus gemidos ecoam pelo quarto enquanto os tremores passam por
cada músculo meu, mas ele não para.
A urgência primitiva que existe entre nós está em cada toque, em cada
olhar, cada respiração entrecortada. Em cada gemido que escapa da boca
dele, cada vez que estoca fundo dentro de mim.
Conrad me traz para a beira da cama, colocando-me de bruços. Suas
mãos exploram toda a pele amostra. Seus dedos entram e saem de mim, em
uma doce tortura que eu não me importaria viver pelo resto da vida.
As mãos grandes apoiam em minha cintura e quando ele me preenche
mais uma vez, pulo no precipício, jogando-me em um lugar no qual só
existe nós dois. Connie estoca firme e forte, possuindo-me em cada
centímetro. Quando um tapa estala em minha bunda, envergo as costas.
Seus dedos enroscam em meu cabelo, trazendo-me para ele.
— Você é minha, Gió.
O orgasmo chega violento, sem pedir licença. Meu corpo treme, os
gemidos saem alto e Conrad me acompanha. Nós, mais uma vez, somos um
só.
Eu caio na cama, exausta, mas não me lembro da última vez que me
senti tão em paz e segura de algo. Engatinho até meu travesseiro e ele se
deita ao meu lado, puxando-me para cima do peito.
Sua respiração, assim como a minha, é descompassada e seu coração
bate acelerado dentro do peito, mostrando-me que foi tão intenso para ele
quanto foi para mim. Eu amo esse homem, profunda e verdadeiramente.
As pessoas se apaixonam de maneiras misteriosas
Talvez apenas com o toque de uma mão
Bem, eu, eu me apaixono por você a cada dia
E eu só quero te dizer que estou apaixonado
(Thinking out loud - Ed Sheeran)

Georgina se remexe sobre meu peito, seu rosto agora está virando
para mim, encarando-me com seus olhos observadores de quem irá fazer
uma pergunta e saberá se eu mentir.
— Você está bravo? — Sua voz chega carregada de incerteza e medo.
Ergo-me um pouco, para poder vê-la com detalhe. A mão protetora
sobre a barriga me diz exatamente do que ela está falando.
Trago o seu rosto para mim, com a mão livre, e selo os nossos lábios,
tentando passar tudo que me sinto incapaz de colocar em palavras.
— Como poderia? — Uma risada acaba por escapar da minha boca.
— Conrad — sua voz agora é soturna —, não é algo que você estava
planejando e está tudo bem se não quiser esse bebê. Eu consigo criar…
— Georgina, para com isso — digo, interrompendo-a. — Eu achei
que, depois de tudo o que aconteceu agora a pouco, você tivesse entendido
o quanto eu quero essa criança e o quanto eu quero você. Não existe uma
opção que me deixará longe de vocês.
Um filho, ou filha, não estava nos planejamentos. Na realidade,
sequer havia passado pela minha cabeça uma situação assim, mas agora,
simplesmente, parece ser a coisa mais certa que já fiz em toda a minha vida.
— Sua vida está no Brasil, Connie.
O tom de voz continua o mesmo e, de certa forma, não posso tirar a
razão dela estar se sentindo assim. Palavras são somente palavras até que se
prove o contrário. Ainda não tenho a mínima ideia do que irei fazer, mas
darei um jeito.
Espalmo a mão sobre o ventre da mulher ao meu lado e está
praticamente liso, a não ser por uma pequena protuberância. Acaricio ali, os
olhos focados. Eu quero estar com ela a cada momento, ver a barriga
crescer e sentir o neném chutar.
— Você é dono de uma empresa que está em expansão — ela
continua, parecendo falar mais para si mesma do que para mim. — Não
quero me iludir e não posso criar expectativas quando há uma terceira vida
envolvida.
Eu me sento e a puxo para fazer o mesmo. Seguro seu rosto com as
duas mãos e vejo que seus olhos estão mais brilhantes, há lágrimas se
formando neles.
— Eu não menti quando disse que estou apaixonado por você —
digo, sério. — Ainda não sei como farei, mas não se preocupe com isso.
Vou conversar com Bernardo, assim que for possível, e vejo o que dá para
ser feito quanto à empresa, mas tenha a certeza de que estarei aqui com e
para vocês.
As lágrimas caem dos olhos de Georgina e eu as limpo com o polegar,
beijando seus lábios, em seguida. Não sei explicar o que surgiu dentro de
mim, mas estou pronto para matar e morrer pela minha família. Será que
esse é o famoso instinto de proteção de que tanto falam?
E o entendimento cai com um peso de uma tonelada sobre os meus
pensamentos.
Caralho.
Minha família.
Eu serei responsável por uma vida além da minha. Existirão duas
pessoas que, de um jeito ou de outro, dependerão de mim.
— O que está acontecendo, Connie? — A voz de Gió agora é
preocupada.
— E se eu não for um bom pai? — Minhas mãos caem ao lado do
meu corpo. — E se ela, ou ele, não gostar de mim?
Agora, é a vez de Georgina segurar meu rosto e me obrigar a encará-
la. Em questão de um instante para o outro, os papéis estão invertidos.
— Não tem como… — sua voz falha — não tem como não gostar de
você, Conrad. Tenho certeza de que será um pai incrível.
O ponto é que não sei como um pai deve se comportar, a única
certeza que sempre tive é de que deveria ser muito diferente do meu. E
então meu estômago afunda quando me lembro do segundo motivo que me
trouxe aqui.
— Ei. — Ela chama a minha atenção. — Como cansei de escutar a
minha avó falar para minha mãe: filho não vem com manual de instruções.
Sei que faremos tudo o que estiver ao nosso alcance, Connie.
Deito-me novamente na cama, trazendo-a para cima do meu peito.
Ficamos em silêncio por longos minutos, nos quais a sinto passar a mão
sobre o meu peito, fazendo ora movimentos circulares, ora totalmente
aleatórios.
— O que aconteceu com a sua perna?
— Um acidente de helicóptero, do qual fui o único sobrevivente.
Ela se senta de imediato, os olhos arregalados, e sei que está se
lembrando da mulher que falou com ela. Eu a puxo de volta para o lugar, ao
qual ela se encaixa perfeitamente.
— Agora está tudo bem — garanto —, mas confesso que meu plano
de vir te encontrar acabou sendo atrasado por alguns meses. A recuperação
foi longa, só recebi alta alguns dias atrás e então vim o mais rápido
possível.
— Conrad…
— Acabei perdendo seu contato e descobri da pior forma que não o
tinha mais quando recebi uma mensagem, segundos depois de te enviar um
e-mail, que me informava de que aquele destinatário não existia mais.
— Eu saí da Lowe no mesmo dia que cheguei de viagem. — Gió uma
risada sem humor. — Seu pai confundiu meu cargo com o de uma
prostituta.
— Como? — Faço menção de me levantar, mas ela não me permite.
— Já passou, Connie. — Respiro fundo. — Agora que está aqui, o
que pensa em fazer?
— Nada — digo e vejo a decepção passar por seu olhar. — Eu só
voltei por você, Gió.
Ela puxa meu rosto, beijando-me profundamente e, em questão de
segundos, estou tão pronto para um segundo round como ela.
— Será que não tem risco toda essa nossa movimentação? —
pergunto, já trazendo-a para mim.
— Eu acho que não. — Georgina me encaixa em sua entrada e desliza
lentamente, soltando um gemido no final. — Só me fode agora, por favor.
— Seu desejo é uma ordem.
Sei que não estou acordado, mas também não consigo dizer com
certeza onde estou, ou até mesmo o que está acontecendo comigo. Olho
para os lados e reconheço o lugar: é uma parte da fábrica da Lowe, em que
estive apenas uma única vez, com o meu tio.
Imediatamente, sei que Lutz Lowe está em algum lugar ao redor e
começo a procurá-lo. É estranho estar aqui e não encontrar funcionário
algum. No final do corredor, está ele, com suas vestes típicas de quando
está trabalhando: um terno cinza-escuro.
— Demorou para chegar, Conrad. — Ele se vira, o mesmo sorriso
acolhedor. — Precisamos conversar. — Aquiesço. — Dê uma volta comigo.
E eu me aproximo, ficando lado a lado. Há tanto que eu gostaria de
contar a ele, tantas coisas aconteceram desde aquela maldita noite.
— Você se esqueceu de mim — ele diz, sério.
— Não! — Vejo-me respondendo, um estranho desespero tomando
conta de mim. — Nunca!
— Foi embora e deixou para trás o legado da nossa família. O mesmo
que você irá transmitir para o seu filho. — Ele me olha, como se pudesse
atravessar o meu corpo e chegar à minha alma. — Esqueceu-se de quem
você é e se esqueceu de tudo o que conversamos.
— Não posso…
— Você deve voltar de corpo e alma, Conrad. — Ele se vira para
mim. — Precisa assumir o seu lugar, antes que tudo o que eu e pessoas
antes de mim construímos suma para sempre.
— Não sei o que fazer.
— Lembre-se do que nós conversamos, Con. — Como ele sempre
fez, coloca a mão sobre o meu ombro e sou capaz de sentir o calor. — Seja
feliz, meu sobrinho. E não se sinta culpado, as coisas aconteceram como
tinham que acontecer. Esteja em paz.
Como se eu estivesse submergindo de um lago gelado, acordo
puxando o ar profundamente enquanto Georgina, agora sentada na cama,
olha-me, preocupada.
— Você está bem?
Obrigo-me a me sentar, a cabeça latejando pelo sonho recente. O
coração disparado e o suor escorrendo frio pela testa.
— Tive um sonho estranho.
— Você estava falando muito e se remexendo. — Suas mãos
acariciam meus cabelos. — Quer me contar?
As barreiras parecem não existir quando se trata de nós dois e
simplesmente conto tudo a ela, na esperança de que me diga que é apenas
algum tipo de externalização do meu inconsciente. Georgina me escuta com
atenção, suas mãos sempre grudadas na minha e, quando eu termino, ela
beija minha boca.
— O que tudo isso quer dizer? — pergunto.
— Você sabe. — Ela dá de ombros. — Independentemente se tem
uma explicação racional ou não, ainda assim, sabe o que significa.
— Não posso largar tudo o que construí no Brasil.
— E por que não trazer o Santoro para cá?
Seu questionamento me pega desprevenido, porque jamais considerei
essa opção, na realidade, voltar para Emerald não passou pela minha cabeça
nos últimos anos e, agora, parece que se torna cada vez mais real essa
possibilidade.
Olho para a mulher à minha frente e a verdade é que eu deixaria o
Brasil para trás, sim, para poder viver com Georgina e com esse neném que
chegará. Acima de qualquer coisa, eles são o meu futuro.
— Essa é uma possibilidade — digo e vejo a felicidade brilhar em
seus olhos. — De qualquer maneira, temos tempo.
— O que você acha de comermos alguma coisa? — Gió se levanta em
um pulo e eu a sigo, enlaçando-a pela cintura. — Estou morrendo de fome e
tenho que aproveitar que estou conseguindo colocar alguma coisa para
dentro sem vomitar!
— Posso fazer alguma coisa.
— Vai ser difícil não te agarrar enquanto cozinha. — Solto uma
risada. — Acho sexy ver você cortando as coisas.
— Você tem fetiche por chefs de cozinha, Srta. Romano?
— Acho que sim. — Ela se vira em meus braços, ficando de frente
para mim. — Essa tara começou lá no Brasil, sabe?
Beijo a ponta do seu nariz.
— Já disse o quão apaixonado por você eu sou?
— Hoje, ainda não.

Deixar Georgina, horas atrás, um pouco depois do sol nascer, foi algo
realmente complicado, mas disse a ela que precisava aproveitar para
resolver algumas coisas, já que estava no país. Prometi que voltaria mais
tarde com uma muda de roupa, para passar a noite com ela.
Há muitas coisas que preciso resolver, mas a principal delas é garantir
que Gió siga segura, sem saber de nada. Por algum motivo, acho que ela irá
surtar caso descubra que, na realidade, o meu acidente de helicóptero não
foi bem algo ao acaso e, sim, encomendado por alguém daqui de Emerald,
com quase certeza, ligado a Lowe.
Ando de um lado para o outro, no quarto do hotel, revivendo o sonho
com o meu tio, que parece estar bizarramente nítido, ainda que se passado
horas desde que eu acordei.
Sento-me no sofá, jogando a cabeça para trás, o olhar focado no teto
branco. A única certeza que eu tenho é de que a última conversa que
tivemos foi no dia da sua morte.
Nunca fui alguém que acredita que exista algo além da vida, ou
desses lances místicos, como a família de Gió, mas admito que estou
impressionado e, até mesmo, inclinado a acreditar no que Willian
Shakespeare quando falou “Há mais coisas entre o céu e a terra do que
pode imaginar a nossa vã filosofia”. Foi muito real, a nível de fechar os
olhos e ver novamente, como se meu tio estivesse à minha frente.
Fui capaz de escutar a sua voz e sentir o calor de sua mão em meu
ombro. Exatamente como ele fazia, desde que eu era pequeno.
Lembre-se do que nós conversamos, Con.
Essa merda de frase ecoa na minha cabeça em um looping, como um
disco riscado. Bato de leve na minha testa, na esperança de que a ardência
me faça pensar no que ele pode ter falado para mim. Porque, nesse
momento, parece ser a chave da minha vida inteira.
Pego meu notebook dentro da mala e abro, conectando a internet
disponibilizada pelo hotel. Vou começar do zero, como se nunca houvesse
visto nenhuma daquelas informações.
Google: Lutz Lowe
A vida inteira do meu tio está bem à minha frente, em detalhes. Bem
provável que eu vá conhecer coisas sobre ele, das quais nunca soube.
Leio dezenas de textos, entro em uma quantidade impressionante de
sites, mas nenhum traz a luz de que preciso. Até mesmo a nossa árvore
genealógica consegui encontrar, com mais de quatro gerações para trás de
mim.
Busco pela empresa, agora. E, mais uma vez, perco-me na leitura de
artigos, citações em matérias e alguns casos de sucesso, que foram expostos
em revistas mundialmente renomadas.
Respiro profundamente, deixando meus ombros caírem em derrota.
Caralho.
Levanto-me, vou até o banheiro e lavo o rosto com a água. Molho a
nuca e me observo no espelho. Os sentimentos são os mais controversos do
mundo. Por um lado, estou exultante em saber que eu e Georgina estamos
juntos, de algum jeito que ainda não conversamos e que teremos um filho
em alguns meses… mas, por outro lado, estou apavorado pelo mesmo
motivo, porque há uma grande chance de ela correr perigo por minha causa
e, agora, para fechar com chave de ouro, esse bendito sonho não sai da
minha cabeça.
Seco-me com a toalha de mão e verifico o horário na tela do celular.
Tenho algumas horas até me encontrar com Georgina.
Sento-me novamente em frente ao meu computador e peço ao
Universo para que me ajude, porque estou prestes a desistir de acreditar
nesse sonho, assumir que é só uma loucura do meu inconsciente e mandar a
frase de Shakespeare para a puta que pariu.
Tem um site que eu ainda não entrei e é o da própria empresa. Mais
uma vez, busco no Google, que me traz a resposta em questão de poucos
milésimos de segundo. É a primeira opção no retorno da pesquisa.
Abro a página e vou olhando tudo o que há disponível, até chegar na
sessão “Quem fez a nossa história”. Meu coração bate mais forte quando eu
vejo um logo e, a seguir, o nome “Banco Nacional de Emerald”.
O meu corpo inteiro se arrepia e eu me lembro de tudo, como se
tivesse acontecido apenas alguns dias atrás. Meu tio deixou documentos lá
que apenas eu, ele e minha tia poderíamos acessar.
Pego meu celular, encontro o contato de Lucca e abrevio o acabei de
me recordar. Ele me avisa que, assim que eu entrar naquele local, eu já não
poderei me esconder porque, com certeza, minha tia será acionada no
mesmo momento. E, quando tudo isso acontecer, eu precisarei assumir o
sobrenome Lowe novamente.
Não há outra alternativa, eu preciso saber o que tem naquela merda de
cofre e não vou conseguir esperar por muito tempo.
Digito rapidamente para Lucca que irei lá amanhã, assim que o
estabelecimento abrir, e peço para que ele destaque pessoas para segurança
de Georgina. Ele não faz questionamentos, apenas diz que colocará as
pessoas lá ainda hoje.
O que eu podia fazer, já fiz, agora vou ficar com Georgina e tentar
manter qualquer tipo de informação longe dela. Não posso permitir que
passe mal ou que algo aconteça com ela e com o bebê, por eu falar demais.
Eles são a minha prioridade e se, para protegê-los, eu preciso assumir
o Lowe, que assim seja.
E eu vou estar aqui para sempre
Eu cumpro cada promessa
Porque que tipo de cara que eu iria ser
Se eu te deixasse quando você mais precisa de mim
(What are words - Chris Medina)

— Connie… — Gió diz, assim que entro no apartamento — preciso


te contar uma coisa.
— Está tudo bem? — Uma porção de alarmes soam dentro da minha
cabeça.
— Calma! —Ela se apressa a dizer. — Na realidade, não sei se devia
ter feito isso sem conversar com você, mas enfim… hoje, enquanto estava
fora, Austin me ligou e eu contei que você estava em Emerald… não pude
esconder isso dele, ainda mais sabendo o quanto está preocupado comigo.
Georgina faz a típica pausa dramática e não sou capaz de evitar que o
sorriso surja, mesmo tendo ficado preocupado para caralho.
— Seu sorriso me deixa um pouco mais tranquila. — Reviro os olhos
e ela joga os braços sobre meus ombros. — O caso é que Austin virá jantar
conosco hoje. Achei que seria o momento ideal para vocês se
reencontrarem.
Há tanta empolgação na sua voz que não consigo ter outra reação que
seja diferente de beijá-la, no meio da sala. Aprofundo o beijo, porque
entendo que não consigo me controlar quando a tenho grudada assim em
meu corpo.
Escuto a bengala cair ao mesmo tempo que ela se afasta, em busca de
fôlego.
— Isso tudo é frio? — brinco ao observar que a pele dela está toda
arrepiada. — Se for o caso, posso aumentar a temperatura no termostato,
ou, quem sabe, te levar para o quarto e resolver esse problema de um outro
jeito.
— Você é tonto, Connie! — Gió bate de leve no meu ombro. —
Espero que não esteja chateado comigo.
— Nem um pouco. — Beijo seus lábios. — Que horas Austin irá
chegar?
A campainha toca assim que termino de falar e ela dá de ombros,
apontando para a entrada do apartamento. Meu estômago afunda e a saliva
desce quadrada pela minha garganta.
Georgina não espera que eu fale alguma coisa e vai até a porta,
abrindo-a de uma vez e eu não reconheço o homem um pouco mais baixo
que eu, vestido com um pesado casaco de inverno, os cabelos bagunçados
por causa da toca. O Austin que me encara é completamente diferente do
meu melhor amigo e é bem provável que, se tivéssemos nos cruzado, eu não
o reconheceria.
Não sei por quanto tempo ficamos parados, como duas estátuas, até
que ele faz o primeiro movimento, diminuindo nosso espaço. O que vem a
seguir não é um abraço e, sim, um soco que atinge a lateral esquerda do
meu rosto. Cambaleio para trás, até bater na mesa de jantar.
Georgina faz menção de vir até mim, mas nego com a cabeça e ela
permanece no lugar, a mão tampando a boca.
Meu maxilar dói para uns dois caralhos.
Definitivamente, não estou mais acostumado a levar um murro no
meio da cara, ainda mais de surpresa, mesmo que ser filho de Linus Lowe
significasse tomar um desses quase todos os dias.
— Eu mereci — digo, assim que consigo recuperar o mínimo da
minha dignidade. — Você sempre teve um bom gancho de esquerda.
Vou até meu amigo e o puxo para um abraço apertado. Batemos um
nas costas do outro.
— Caralho, é verdade. — Escuto-o dizer. — Quando Gin contou, eu
não quis acreditar. Precisei ver com os meus próprios olhos.
— Como acho que não há mais perigo de destruírem o meu
apartamento, vou pegar uma pizza para gente aqui ao lado e aí vocês podem
colocar um pouco do papo em dia — Gió diz, já abrindo a porta. — Até
daqui a pouco, meninos.
Entre ela sair do apartamento e eu escutar o clique, que informa que a
porta está trancada, meu cérebro trabalhou o suficiente para que eu saiba
exatamente o que preciso fazer. Eu e Austin, nesse momento, somos algo
próximo a "conhecidos", mas, ainda assim, confiaria a minha vida em suas
mãos.
Sento-me no sofá, a perna doendo mais do que o normal.
— Preciso da sua ajuda — digo, sem rodeios.
— Porra, já que é chef de cozinha, podia, ao menos, me fazer um
jantar antes de querer me foder.
— Não sei por quanto tempo Gió ficará fora, mas o que irei te contar,
agora, ela não pode saber. — Ele abre a boca para protestar. — Só me deixa
te contar e, depois, você decide.
E sem omitir nenhum detalhe, conto a Austin o que aconteceu nos
últimos meses e tento resumir, de forma bem rápida, o que aconteceu
comigo, assim que cheguei na Alemanha. Ele aquiesce, fazendo algumas
perguntas pontuais ali e acolá, às quais respondo da forma mais crua e
sincera possível.
— Quem você acha que foi? — ele me pergunta.
— Gostaria de responder outra coisa, mas acredito que Linus foi o
mandante.
— Não parece estar muito chocado.
— Como eu poderia? — Dou de ombros. — Como disse a Gió, no
máximo, ele foi o doador do esperma. Mas o ponto principal — olho no
relógio e sei que não demorará muito para Georgina voltar — é que vou
precisar da sua ajuda para mantê-la em segurança. Não contei nada por
medo de ela ficar nervosa e acontecer algo com a gravidez. Enfim…
— O que espera que eu faça?
— Caso aconteça algo comigo, cuide dela para mim. Sei que esteve
do lado de Gió todo esse tempo, mas…
— Não se preocupe quanto a isso — ele diz, sério.
— Alguns anos atrás, fiz um testamento — ele ergue as sobrancelhas,
mas apenas dou de ombros — e, hoje pela manhã, entrei em contato com o
meu advogado. Pedi para alterar. Caso aconteça algo, está tudo lá. — Tiro
do bolso da minha calça um papel. — Aqui está o telefone dele e do
Bernardo, meu sócio na empresa.
— Conrad, isso é idiotice da sua parte.
— Não é, Austin — respondo seriamente. — Tenho uma cicatriz
horrível na minha perna e ainda sinto dores para provar que não posso
arriscar. Georgina e essa criança são a minha prioridade.
— Você a ama?
— Com tudo o que há dentro de mim.
Ele aquiesce.
— Caso algo assim aconteça, você tem a minha palavra de que jamais
deixarei que algo aconteça a ela ou a criança.
— Sei que não tenho direito de te pedir algo, mas é a única pessoa a
quem posso confiar que irá cuidar deles.
Com algum esforço, levanto-me e nos abraçamos mais uma vez. O
peso do mundo ainda está nas minhas costas, mas sei que Gió e o neném
estarão protegidos.
A porta abre nesse instante e Georgina nos encontra assim. Há duas
caixas de pizza em suas mãos e o rosto está levemente avermelhado,
provavelmente pelo frio do lado de fora.
— Acho que tudo se acertou! — diz, alegre. — Acho que temos pizza
o suficiente para nós, considerando que agora tenho licença poética para
comer por dois.
— Estou feliz por vocês — Austin diz e sei que há sinceridade em sua
voz. — Mas convenhamos que era óbvio que vocês ficariam juntos.
Passo a mão pela cintura de Georgina. No meio da sala deste
apartamento, com ela ao meu lado e meu amigo à minha frente, sinto que
estou em casa. Só falta realmente Bernardo por aqui, para eu deixar de
sentir que tudo está complicado.
— É tipo a Nala e o Simba! — Austin começa a dar risada sozinho.
— Você é um idiota. — É Georgina que responde, batendo no ombro
do amigo, mas já dando risada.
— Nem lembrava disso — confesso, entrando na risada.
— Um lance meio reverso… — Austin continua.
— Tinha me esquecido do quanto o seu humor pode ser peculiar —
digo, ainda rindo.
— Gente, vamos comer? — Georgina coloca a mão sobre a barriga e
meu peito se aquece. — Estamos com fome.
— Não quero que meu sobrinho nasça com cara de pizza.
— Porra, você consegue não entender nada — diz a minha… o que
Georgina é? — Estou com fome e não com desejo.
— Pra mim, é tudo a mesma coisa — ele responde, implicando.
— Connie, você não vem?
— Vou, claro.
Se horas atrás só conseguia pensar no sonho que tive com o meu tio,
agora só consigo ruminar o fato de que eu e Gió não conversamos sobre o
nosso relacionamento, por mais claro que esteja para mim, talvez não seja a
mesma coisa para ela.
E tem um outro ponto que sequer parei para considerar: os pais dela.
Até o momento, eu não havia escutado falar sobre eles. Será que já sabiam
da gravidez? Será que não querem mais falar com ela, por não estar casada
com o pai do bebê? Que merda será que aconteceu?
— Você está acordada? — pergunto baixo e ela se move em meu
peito, sua cabeça movimentando em um gesto típico positivo. — Quanto?
— Completamente — responde em um sussurro.
Passo minhas mãos de cima até a parte de baixo das suas costas,
fazendo o mesmo movimento repetidas vezes. Cheiro seu cabelo, e lá estão
as notas cítricas misturadas com jasmim. O meu sinônimo de casa, mais do
qualquer um outro.
— Gió — chamo e ela se ajeita, o rosto virado para mim agora.
Nossos olhares se encontram e estamos em nosso próprio universo. —
Estou exatamente onde eu quero estar, ao seu lado, com o nosso neném a
caminho. Sei que não foi o que nós planejamos, mas acho que não há nada
na nossa história que tenha seguido um roteiro, não é mesmo? — Vejo as
lágrimas brotarem em seus olhos. — Não… por favor, não chore. — ela
sorri, secando as lágrimas. — Jamais, em toda minha vida, pensei que
minha melhor amiga pudesse me completar nesse nível tão… — tento
encontrar a palavra, mas nada parece realmente fazer jus ao sentimento —
atômico. Eu estou muito mais do que apaixonado por você, Georgina
Romano, e acho que percebeu isso antes mesmo do que eu. — Ela beija
meu pescoço. — O que quero dizer é que quero você como minha mulher,
como a pessoa que irá passar o resto da vida comigo, se assim quiser. Você
aceita ser tudo isso? Minha mulher, minha melhor amiga, minha
companheira…
— Conrad — sua voz falha —, é sério?
Eu me sento e ela acompanha o movimento. Envolvo o seu rosto com
as mãos e, em um gesto supremo de confiança, ela fecha os olhos. Ela é tão
minha quanto eu sou dela.
— É difícil resistir quando você fala assim, sabe? Nem sabia que
Conrad Santoro, ou até quando era Lowe, podia ser romântico e falar coisas
tão bonitas assim — Georgina fala, nossas testas encostadas. — Quero ser
tudo isso para você e também desejo que você seja todas essas coisas para
mim. No final das contas, você é meu Simba e eu sou sua Nala. É claro que
eu aceito.
Solto a respiração que sequer sabia estar segurando, acompanhada de
uma risada de alívio. Eu a puxo para um beijo profundo, trazendo-a para o
meu colo. Nos meus braços, eu tenho a minha família, a minha vida inteira.
Não há desespero em nossos gestos, sinto que nunca estive tão
entregue como agora, em toda a minha vida. Eu deito Georgina na cama e
olho para o seu corpo completamente nu. Os seios perfeitos e relativamente
maiores, se comparados à primeira vez em que os vi. A cintura já não é
mais tão marcada e a barriga, apesar de pequena, está mais redonda.
Ela é, com toda a certeza, a mulher mais linda que eu já vi em toda a
minha vida.
Beijamo-nos sem pressa e eu me perco em cada curva do seu corpo.
Em cada detalhe que encontro. Sugo o mamilo sensível e mais escuro.
ganhando um gemido em troca e olhos fechados com força. As costas
arqueadas, a boca aberta, a respiração entrecortada de Georgina é uma das
visões mais bonitas que já tive o prazer de ver.
Eu a penetro com os dedos primeiro e ela está tão pronta para mim,
quanto estou para ela. Caralho, estar dentro de seu corpo é a melhor
sensação que já provei. E quando, finalmente, nossos corpos se unem e o
gemido escapa de sua boca, eu me perco dentro de nosso próprio mundo e
nunca foi tão bom perder o controle quanto agora.
Suas unhas ora puxam os fios do meu cabelo, ora fincam na pele das
minhas costas. Eu chupo, mordisco e provo tudo o que ela me oferece sem
nenhum pudor. Sinto as paredes de Georgina se fecharem sobre o meu pau,
quando um primeiro tremor anuncia que ela está muito perto de chegar lá.
Mas eu quero mais, muito mais.
Ela me mostra do que gosta e, como um bom aluno, eu aprendo e
replico. E quando o orgasmo a atinge, eu me permito mergulhar de cabeça
na mesma sensação, acompanhando-a.
Deito-me na cama, exausto, o coração acelerado, o suor escorrendo
pela têmpora, mesmo que, do lado de fora, os termômetros marquem
temperaturas negativas.
— Será que algum dia isso mudará? — ela me pergunta, enroscando-
se em mim, como estava antes de começarmos mais esse round.
— Tenho certeza de que não. — Beijo seus cabelos bagunçados.
— Você não tem como me garantir isso.
— Tenho, sim.
— Como?
— Eu amo você.
Preso muito antes das luzes se apagarem
Por que respiro?
Oh, eu sei
(Boat - Ed Sheeran)

Desde que acordei, quando o sol ainda não havia nascido no


horizonte, fiquei lendo sobre gravidez com suas centenas de nuances e
curiosidades. Eu precisava focar em outra coisa, além da ida ao banco e de
todos os riscos que irei assumir no momento que colocar meus pés lá
dentro.
Será uma questão de horas, sendo o mais otimista possível, para que
meu anonimato termine e então todos os veículos de imprensa passem a
noticiar que o herdeiro da Lowe está vivo e bem. Minha vida ao Brasil será
escrachada, e tanto eu quanto todos à minha volta, estarão não apenas
cercados pela mídia, mas também por suposições e uma infinidade de
fofocas.
— Você está parecendo aquele CEO sério e misterioso que encontrei
no Brasil — Gió graceja, sem tirar os olhos do trânsito.
— Sério até posso concordar, mas misterioso? — Georgina consegue
arrancar uma risada de mim.
— O que está acontecendo?
É a terceira, ou quarta vez, que ela me faz a mesma pergunta e sei que
ela não sossegará enquanto não tiver uma resposta que considere
satisfatória.
— E não adianta vir me falar que é pelo ultrassom, porque sei que não
é só isso.
— Não vou conseguir me esconder por muito mais tempo. — O que
não deixa de ser parte do problema. — Vou precisar encarar a minha mãe,
minha tia e, até mesmo, o filho da puta do Linus. — Ela concorda. — E
ainda tem algo que me assusta mais do que tudo isso.
— Que seria?
Fisguei ela.
— Falar para o seu pai que eu te engravidei e que estamos numa
mistura de namoro e noivado. Sem mencionar que não pedi a sua mão em
casamento para ele. Não sei se ele vai deixar…
Para minha sorte, o semáforo fecha e ela vira para me encarar, os
olhos semicerrados. Sou um bosta por ter manipulado a situação? Sim. Mas
a minha preocupação com ela e com o neném superam o peso na
consciência.
— Conrad, tenho vinte e oito anos, sou independente, me sustento há
muitos anos e, definitivamente, não preciso da permissão do meu pai para
me casar.
— Certo. — Ergo as mãos em rendição. — Já está decidido: não
falarei nada com eles.
Mesmo se passando tantos anos, eu ainda sei como tirar o foco da
minha eterna melhor amiga. Coloco a mão sobre sua coxa e vejo um sorriso
meio de lado brotar.
A clínica que Georgina escolheu para fazer esse primeiro exame é
bem próxima ao centro da cidade. Deixamos o carro dentro do pequeno
estacionamento do prédio e subimos até o terceiro andar.
Dazemos todo o percurso de mãos dadas. Até mesmo no momento de
preencher a ficha, estou ao lado dela. Não demora muito e somos chamados
para o local do ultrassom. Aqui dentro, tudo o que está acontecendo do lado
de fora parece ser pequeno demais, até mesmo irrelevante.
O coração bate acelerado dentro do peito, parecendo que sairá pela
minha boca a qualquer momento. Ajudo minha mulher a se deitar na maca e
a médica que irá fazer o exame se aproxima.
— Papais de primeira viagem? — ela pergunta.
— Sim! — Gió responde.
Enquanto a ansiedade dela transborda e explode, a minha implode,
consumindo-me. A mulher liga o aparelho e meus olhos grudam na
imagem, mesmo sabendo que não entenderei nada do que irá aparecer.
Georgina procura a minha mão, entrelaçando nossos dedos.
— É gelado — ela comenta, assim que o gel entra em contato com a
pele.
— Vocês fizeram o exame de sexagem?
— Não. — É ela quem responde mais uma vez. — Cescobrimos a
gestação faz poucos dias.
— E querem saber o que é?
Ela me olha cheia de expectativa e eu aquiesço, mas, ainda assim, a
decisão está nas mãos dela.
— Sim, queremos.
— Então parabéns, é um menino muito forte que vem por aí.
Em vários momentos, vi-me pensando sobre ser um filho ou uma
filha, mas só agora, nesse exato momento, que a ficha realmente cai. Todo
aquele sentimento de proteção parece intensificar de forma exponencial. É
algo que jamais saberei colocar em palavras.
Um som alto, forte e ritmado preenche o ambiente. É o coração do
meu filho que está batendo dentro do corpo da mulher que eu amo.
— Ei. — A voz de Gió sai baixa, e ela levanta a mão, passando no
meu rosto. Nesse momento, percebo que estou chorando também. — O
nosso menininho, Connie.
Eu me levanto, beijando seus lábios de leve, em seguida.
— Já terminei o exame. — A médica desliga a tela do aparelho. —
Fiquem à vontade. Deixarei vocês sozinhos agora.
Assim que a médica fecha a porta, puxo Gió para um beijo profundo e
apaixonado.
— Vai dar certo, não é? — A voz pertencente à mulher da minha vida
sai incerta, cheia de medos.
— Sim.
— Promete que não vai me abandonar?
— Nunca.
Ao menos, não pela minha vontade.

Caminho em direção ao Banco Nacional de Emerald a passos lentos.


Em cada passada dada, xingo-me um pouco mais por não ter pegado a
maldita bengala antes de sair.
Ninguém me olha duas vezes enquanto ando pelas ruas. Até porque, a
história do meu sumiço é antiga e já caiu no esquecimento da maior parte
das pessoas. Só que isso não vai durar muito mais tempo, é questão de
horas agora.
Avisto o imponente prédio, que abriga a sede do único banco estatal
do país. Tudo em branco, com pilares altos, feitos para impressionar.
Apesar de ser cedo ainda, há um movimento considerável de pessoas indo e
voltando.
— Bom dia. O senhor necessita de ajuda? — Um rapaz com crachá
de identificação se aproxima, enquanto tento decidir para onde eu vou,
considerando as placas que falam dos serviços oferecidos.
— Sim, por favor. Preciso retirar documentos de um cofre.
Stuart, de acordo com o nome escrito na identificação, ergue as
sobrancelhas, claramente confuso.
— Não temos esse tipo de serviço.
— Faz tempo que trabalha aqui? — pergunto e ele nega. — Acho que
pode ser isso. Não se preocupe, só me mostre alguém que possa tirar a
minha dúvida.
— Claro, senhor.
Ele começa a andar à minha frente e eu apenas sigo, em direção ao
fundo do enorme salão com mesas, cadeiras de espera e caminhos que
levam para outros setores.
Stuart para em uma primeira mesa e fala rapidamente com uma
mulher, que me olha por cima do ombro do rapaz. Eles cochicham, para
segundos depois, voltar com o mesmo sorriso ensaiado no rosto.
— Ela me disse para levá-lo até o gerente geral, ele saberá como te
instruir sobre isso, senhor…
Sei que é a deixa para eu me identificar, mas há muitas pessoas ao
redor e me limito a concordar. Pegamos um corredor, que termina em uma
nova recepção, bem menor do que a anterior.
Há duas portas e Stuart escolhe a da esquerda.
— Sr. Sandor, desculpe interrompê-lo. — O homem do lado oposto
da mesa não levanta a cabeça para ver quem está falando com ele. — Mas o
Senhor…
— Lowe — digo. — Conrad Lowe.
Com um movimento brusco de tronco, ele se levanta e um par de
olhos arregalados me encara, como se estivesse vendo uma assombração. O
sobrenome do gerente geral dito pelo rapaz que me recepcionou não é
estranho, muito pelo contrário, até mesmo soa um pouco familiar.
— Impossível — ele resmunga. — Conrad está morto.
— A definição correta é desaparecido — digo, tranquilo, mas firme,
entrando na sala. — Estou vivo e aqui estão meus documentos para
comprovar a minha identidade.
Lucca havia conseguido tudo em um tempo que eu julguei
impossível. Ele precisou de apenas um par de horas para me entregar, em
um envelope pardo, tudo o que eu coloco em poder do senhor à minha
frente.
— Como isso é possível?
Ignoro a pergunta, mantendo-me em silêncio, até porque sei que não
demorará muito para que eu precise dar explicações para a polícia.
Considerando não apenas a minha situação, como a da minha mulher
e do meu filho, a última coisa de que precisaremos será o surgimento de
mais boatos, apenas por eu ter falado além do que o necessário.
— Stu-Stuart — ele gagueja —, muito obrigado pelo seu apoio até o
momento. Sigo com o atendimento daqui para frente. Caso perguntem por
mim, diga que estou ocupado.
O rapaz vai embora, fechando a porta atrás de mim. Esse é o exato
momento em que tomo conta da situação.
— Sr. Sander, quero os documentos que estão no cofre do meu tio. —
O homem abre a boca e, pela expressão, poderia apostar que ele dirá que
estou enganado, mas nunca vou saber, pois não darei essa chance. — Sei
que tenho autorização, porque foi o próprio Lutz que me contou.
Mantenho-me de pé, sentindo uma dor filha da puta na minha coxa,
mas, ainda assim, não faço menção alguma de me sentar. Quanto mais
desconfortável ele se sentir, mais rápido conseguirei o que quero.
— Vamos precisar validar a sua digital com a que temos em nosso
banco de dados.
— Perfeitamente. Onde e como faremos isso?
Sinto-me como um fantasma, porque o homem continua pálido e, vez
ou outra, passa a mão sobre os olhos, na esperança de que eu evapore a
qualquer momento.
— Sr. Sander? — chamo novamente, quando vejo que ele permanece
travado no mesmo lugar. — Preciso fazer mais alguma coisa?
— Não. — Ele se levanta, enfim, parecendo acordar. — Por favor, me
siga.
Em vez de voltar pelo mesmo corredor do qual vim, seguimos na
direção oposta, chegando a uma porta com a famosa frase "Somente
pessoas autorizadas".
Todo o processo de coleta das digitais é rápido e, agora, estamos
apenas aguardando a confirmação de que as digitais eram as mesmas. De
acordo com o especialista, seria coisa de poucos minutos de espera até ter o
resultado e eles poderem acionar a polícia, sem que eu "percebesse".
Ninguém aqui é idiota.
E aqui estou eu, em uma sala composta por mesa, cadeiras, sofá e
uma estante cheia de livros, sozinho, com o meu celular em mãos, mas sem
conexão alguma com a internet ou, até mesmo, com a rede de telefonia.
— Sr. Lowe, sinto muito tê-lo feito esperar. — É o próprio Sander
que reaparece. — Sua digital foi confirmada e recebi a autorização de levá-
lo até o cofre.
Apesar de calado, minha mente está o completo oposto. Os
pensamentos se sobrepõem, sem qualquer tipo de ordem. Sensação que
senti apenas uma única vez, mas há uma grande diferença agora: Georgina e
nosso filho.
Sander abre a primeira porta, logo à nossa frente. Ao contrário da
outra, há apenas uma mesa de ferro simples, uma cadeira e uma porção de
compartimentos, que sei serem cofres. Há dezenas deles ao credor.
Sander vai até um deles, gira a combinação e a porta se abre. O gesto
seguinte é de se afastar e permitir o meu acesso ao conteúdo. Há menos
coisas do que imaginei. Um envelope, que já foi branco, amarelado pelo
tempo, uma pequena caixa e mais nada.
— Quero ficar sozinho — digo, colocando tudo sobre a mesa. —
Quando terminar, o chamarei.
O senhor apenas dá meia-volta, fazendo exatamente o que pedi. Achei
que seriam mais folhas, talvez estivesse esperando centenas de páginas para
ler, mas o que tenho em mãos é bem diferente.
O documento é simples e objetivo: sou o único herdeiro direto do
meu tio e da minha tia e, como testemunha, está a assinatura dos meus pais
e da mãe de Georgina. Há algumas cláusulas e uma delas me chama
atenção: é explícito que o desejo do meu tio era que eu assumisse o cargo
de CEO ao completar vinte e sete anos.
Solto uma risada sem humor ao pensar que estou atrasado um ano.
Bato o envelope e cai mais dois itens. O primeiro é uma foto, em
preto e branco, que faz meu coração disparar. Eu reconheceria aquele carro
em qualquer lugar do mundo, até porque foram incontáveis noites de
pesadelo, sempre do mesmo jeito. Aquele é o veículo dos homens que
chegaram e mataram o meu tio. Mas tem algo em específico que chama a
minha atenção… um homem, muito parecido com… não.
Não! Ele não seria tão baixo assim, tão criminoso.
Sinto o coração disparar dentro do peito, o ar faltar ao pulmão e um
suor frio brotar nas mãos.
A outra coisa que caiu é um papel dobrado em três. Ao abrir, me
deparo com uma carta escrita a próprio punho.
Con,
Infelizmente, meu jovem padawan, se você estiver com essa carta em
mãos é porque fui cedo demais.
As coisas não estão saindo como previsto e talvez não exista tempo o
suficiente para te treinar, assim como o meu pai fez comigo e tentou fazer
com o meu irmão.
Infelizmente, Linus, em algum momento da vida, perdeu-se em sua
própria ambição, achando que poderá comandar a Lowe sozinho, como um
rei em seu trono, mas saiba que não é assim que funciona.
Nós somos todos codependentes. Cada um faz o próprio papel e
assim somos capazes de fazer a máquina rodar, mas, às vezes, não sei
exatamente o motivo, algumas pessoas saem desse ciclo e ele se deforma.
Talvez seja isso que esteja acontecendo agora.
Por mais que seja difícil, para mim, escrever algo assim, por favor,
tome cuidado com o seu pai. Não sei ao certo o que ele está planejando,
mas coisa boa não é, padawan. Saiba que, se algo acontecer comigo, há
uma grande chance de ter sido a mando dele.
Deixei uma foto nesse envelope. Há mais detalhes no verso e nos
outros papéis que coloquei. Sinto muito por estar fazendo isso, mas se meu
irmão fez alguma coisa, então ele deve pagar na justiça. E não alimente
qualquer sentimento negativo por ele… porque só há uma única pessoa que
irá sofrer: você.
Jovem padawan, use a Força para o bem. Não permita que a
escuridão do seu pai transforme sua alma.
Meu maior desejo, no momento, é que essa carta não tenha chegado
em suas mãos e que eu possa queimá-la.
Um último pedido: cuide de sua tia para mim. E sempre a lembre do
quanto eu a amo, porque, mesmo que eu já não esteja mais de corpo
presente, isso que eu sinto por ela vai além da vida.
Então, já que fiz um pedido, eu anseio que você, Conrad, encontre um
amor como o meu. Você, meu sobrinho, tem um coração de ouro e tenho
certeza de que será imensamente amado. Desejo que você tenha a mesma
sorte que eu.
Que a força esteja com você, Con.
Seu mestre Jedi, Lutz Lowe.
No exato momento que termino a carta, a porta da sala se abre e eu
dou de cara com a minha tia, logo atrás dela, vem a minha mãe.
Levanto-me em um pulo, a folha apertada na mão, enquanto os olhos
não saem das mulheres, que me observavam com a expressão de choque.
— Conrad, é você? — A voz da minha mãe não passa de um fiapo.
Minha mãe corre e me abraça com força. Seus braços me envolvem,
e, por um momento, sinto que tenho dez anos novamente.
— Você está vivo, meu menino! — Ela quase não consegue falar em
meio aos soluços.
Minha garganta está comprimida, nem mesmo a saliva consigo
engolir. Sinto meus olhos lacrimejarem. Minha tia, Lucinda Lowe, enxuga o
rosto, um pouco afastada de nós.
— Mãe — eu a afasto um pouco —,teremos muito tempo para
conversar, mas agora preciso resolver algo muito importante. — Viro-me
para minha tia. — Você sabia de todos esses documentos?
— Como "todos"?
Aponto para a mesa, na qual há os papéis espalhados, e ela me olha,
confusa.
— Você está falando do testamento?
— Na realidade, há muito mais do que isso. — Volto-me para minha
mãe. — Por que ainda está casada com esse monstro?
— Seu pai não é isso, Con. Ele mudou muito depois… — Sua voz
volta a embargar.
— Eu queria que a minha volta fosse mais tranquila, que vocês
descobrissem de outra maneira… bom, não saiu como planejei.
— Do que está falando, Conrad? — Lucinda pergunta, aproximando-
se da mesa e começando a olhar os documentos.
— Há fortes indícios de que a morte do meu tio foi encomendada.
— Por quem? — minha mãe pergunta, afeição completamente tensa,
antecipando o que irei dizer.
— Pelo seu marido.
Eu posso te amar
Será a melhor coisa que eu farei
Eu posso te amar
É uma promessa que faço a você
(I get to love you - Ruelle)

Conforme eu e Lizzie vamos entrando nas lojas infantis, minha ficha


vai caindo de verdade. Passei todos esses dias pensando e falando sobre a
gravidez, mas ainda não parecia ser real, até hoje de manhã, quando
ouvimos o coração do nosso neném batendo firme e forte dentro de mim. A
vida sendo gerada dentro de mim é a prova de que amores, que nem
sabemos que existem, podem surgir ou, como Austin deu a entender, ser
revelados.
— Também concordo com ele — Lizzie diz, viro-me em sua direção,
com as sobrancelhas erguidas. — Você estava falando em voz alta.
— Não faz sentido essa teoria. — Dou de ombros.
— Quando Austin me contou, eu fui obrigada a concordar e olha que
não costumo dar razão para ele.
Até o momento em que Conrad sumiu, todas as minhas lembranças,
de um jeito ou de outro, envolviam-no, mas isso não prova nada e… bom, a
essa altura, também não faz muito sentido ficar buscando provas no
passado. O importante é que estamos juntos aqui e agora.
— Por tudo o que há no Universo — ela fala, dando risada —, você
está completamente apaixonada por ele! Olha essa sua risadinha só de
pensar no bonitão.
— Você é péssima, Lizzie.
Ela dá de ombros e volta em direção à arara repleta de micro
roupinhas.
— Acho que é perfeito para ele sair da maternidade!
Minha melhor amiga se vira, mostra-me um pequeno macacão escrito
“Campeão do papai” e meu coração se aquece. Será que ele se parecerá
com Conrad? Ou comigo? E os olhos, serão claros ou escuros?
— Sonhando acordada de novo! — Lizzie estala os dedos em frente
ao meu rosto. — O que acha?
— Perfeito. — Tento pegar da mão, mas ela o tira do meu alcance. —
Serei a responsável por dar o primeiro presente para o meu sobrinho!
Enquanto caminhamos em direção ao caixa, no fundo do
estabelecimento, sinto que estou sendo observada. Olho para trás, uma,
duas, três vezes, mas não vejo nada estranho.
— E quando pretende conversar com os seus pais?
— Em breve! Assim que eu e Conrad formos capazes de uma
conversa completa sobre o que iremos fazer…
— Até imagino o porquê não tiveram tempo. — Ela me lança um
sorriso malicioso. — Não precisa ficar vermelha, até porque, poderia
apostar que o seu prédio inteiro deve saber o quão agitada está a sua vida.
— Deselegante.
Nós duas damos risada e ela me entrega a sacola com o primeiro
presente do meu neném.
— Mas agora é sério, Gin, o que você está pensando em fazer? —
Lizzie me pergunta quando chegamos à rua. — Não pense que quero
estragar sua felicidade, mas existe toda aquela parte chata e prática que nós,
adultos, não podemos ignorar.
— Que seria?
— A vida de Conrad não está em Emerald. E se ele decidir voltar para
o Brasil, o que fará?
— Connie disse que está pensando na possibilidade de trazer uma
parte da Santoro para cá — digo. — Ele apenas quer resolver as coisas
primeiro, para depois pensar nisso. — Respiro fundo, afastando um
pensamento que parece querer emergir. — Nós conversamos por cima e
vamos pensar num dia de cada vez.
— Georgina, entre nós duas, você sempre foi a pé no chão. A garota
das listas, a que controlava cada passo para chegar no objetivo traçado. Só
estou preocupada e nós não sabemos quem ele foi durante esse tempo.
— Lizzie, está tudo bem. Conrad jurou para mim que não irá me
abandonar — afirmo para minha amiga. — E fica tranquila, se o seu medo é
de que eu te abandone, isso não irá acontecer.
— É bom mesmo, porque quero acompanhar meu sobrinho crescer.
Puxo minha melhor amiga para um abraço.
Continuamos a andar pelas lojas, olhando roupas, brinquedos para
crianças, berços, carrinhos e tantas outras coisas, que eu sequer tinha noção
que seriam necessárias ter para cuidar bem de um neném recém-nascido.
A verdade é que não vejo a hora de poder caminhar com Conrad por
aqui e sair cheia de sacolas com coisas que compramos juntos para o nosso
filho. Tento não pensar nos questionamentos que surgem toda vez que olho
um novo modelo de moisés, ou quando penso se aquele bebê conforto
ficaria bom no local… até porque, não sei como será amanhã.
O medo de Conrad ir embora continua aqui, pressionando o meu
peito, mesmo que ele tenha jurado que não iria me abandonar. Ele pode
mudar de ideia, pode descobrir que nós dois não seremos o suficiente para
ele.
— Vem, vamos entrar na livraria. — Lizzie me puxa pela mão.
Novamentem sinto que estou sendo observada. Olho ao redor, mas
tudo parece estar normal, ninguém está olhando para mim. As pessoas
continuam seguindo a própria vida, falando em seus celulares ou mandando
mensagem.
— Acho que devia comprar alguns livros sobre gravidez. —
Andamos direto para a sessão específica, — Qual será que é bom?
— Você sabe que alguém que conhece os meus pais pode estar por
aqui, certo? — sussurro. — Por enquanto só você, Austin, minha avó e o
próprio pai da criança sabem dessa gravidez.
— Qualquer coisa, estou comprando para mim. — Ela pisca. — Até
consigo imitar uma barriguinha. — Vejo quando ela estufa a barriga.
— Ridícula! — Reviro os olhos. — Sério, eu não preciso de tudo
isso!
— Claro que sim! — Tem, pelo menos, cinco livros em seus braços.
— Vou parir e não terei terminado de ler tudo.
— Exagerada!
Compramos, pelo menos, uns dez títulos diferentes sobre gravidez,
puerpério e as primeiras semanas de vida de um bebê.
Sentamo-nos na cafeteria e ficamos ali, por algum tempo. Eu
tomando um chocolate quente e ela no mesmo chá com leite de sempre.
— Você não fica chateada por eu te deixar agora? — Lizzie me
pergunta, olhando o horário. — Preciso resolver algumas coisas antes de
sair para jantar com o boy que estou conhecendo.
— Quero comprar umas coisinhas ainda e, depois, vou para casa.
Ela beija minha testa.
— Nem vou perguntar que tipo de coisinhas, porque deve ser para se
divertir com o Connie. — Apenas nego com a cabeça, não conseguindo
evitar um sorriso, — Nem vou falar sobre juízo, porque ele já está aí dentro
da sua barriga.
— Um bom ponto! Divirta-se hoje à noite!
Enrolo mais um pouco e não resisto a comer mais um brownie, cheio
de chocolate. Minha vontade é comer uma barra do doce por refeição e
outras duas no intervalo. Levo a xícara cheia do líquido grosso e fumegante
aos lábios e me lembro de que minha mãe me contou uma vez que, quando
engravidou de mim, ela só queria comer figos e tudo o que viesse dele.
Doce, compota, geleia… qualquer coisa e, bom, eu não suporto nem pensar
na fruta.
Pego as duas sacolas que Lizzie deixou na cadeira ao meu lado e sigo
para fora da livraria. Consigo ver, através dos vidros, que o vento aumentou
um pouquinho e que as pessoas já subiram a gola de seus casacos. Eu faço o
mesmo para me prevenir.
— Não faça nenhum movimento brusco, Srta. Romano.
Eu reconheço a voz mesmo, sem precisar me virar para ver quem é.
Linus Lowe agora passa um dos braços sobre os meus ombros,
enquanto o outro empunha algo em minha direção e não é preciso ser um
gênio para saber o que é.
— Sr. Lowe…
— Ande comigo e nada de ruim vai acontecer a você.
E sem me surpreender, a primeira pessoa em que penso é no neném
que carrego dentro de mim. Preciso ficar calma por ele e pelo homem que
parece estar completamente transtornado.
— O que está acontecendo?
— Não se faça de desentendida — ele diz e me cutuca com a arma,
que está por baixo de seu casaco. — Acha que te mandei por acaso para o
Brasil? — Ele solta uma risada. — Claro que não. Quando descobri que
Conrad estava naquele fim de mundo, sabia que você seria a chave para
fisgá-lo.
Meu coração podia ter saído pela minha boca nesse exato momento.
Ele segue me guiando pela rua, como se fôssemos um casal, ou talvez bons
amigos. De soslaio, consigo ver que está usando uma touca e um óculos de
sol, para não ser reconhecido
— Quero um show — ele murmura. — Que todo mundo veja o que
irá acontecer.
— Não sei do que está falando.
— Acha que não monitorei cada passo que Conrad deu desde que
chegou em Emerald?
— Não está feliz por saber que seu filho está vivo?
Ele solta uma risada macabra em meu ouvido, enquanto continuamos
a andar. Agora, eu sei onde está me levando. A praça central, onde ficam os
principais prédios do centro de Emerald, está a poucos metros de nós.
— Feliz? Tsc. — Reconheço o barulho como um estalar de língua. —
Já que estamos só nós dois aqui, vou te contar um segredinho, Srta.
Romano. — Ele aperta meus ombros. — Mas vai ficar entre nós, hein? —
Ele me cutuca com a arma na cintura. — Não escutei.
— Sim! — respondo, a voz saindo engasgada. — Entre nós, Sr.
Lowe.
— Ótimo! Até porque, não sei se a deixarei viva depois de hoje, mas
nunca se sabe… Onde parei, mesmo? Humm… — Faz barulhos pensativos.
— Eu só queria matar o meu irmão naquele dia, mas quando soube que
Conrad iria jantar conosco, era o destino me dando a oportunidade perfeita
de ficar com tudo.
— Você… você matou…
O choque passa por todo o meu corpo enquanto meu cérebro processa
o peso daquela revelação.
— Meu irmão fez um maldito testamento — ele diz, irritado. —
Falando que tudo o que era dele, quando morresse, iria passar para Conrad.
Mas, Srta. Romano, aquele moleque nunca teve o necessário para ser dono
da empresa. Sempre foi uma grande decepção, devo admitir.
Ele nos faz parar no meio da praça e as pessoas passam por mim sem
imaginar o que está acontecendo. Estão, em sua grande parte, distraídas
com os próprios celulares, pensamentos ou coisas da própria vida.
Minhas pernas pesam uma tonelada cada uma, meu coração parece
querer pular fora do peito e minha única preocupação consiste no neném
que cresce em meu ventre. Penso em falar para o homem que mantém a
arma apontada para mim, por baixo do casaco, mas não faria diferença, e
até mesmo poderia piorar tudo. Ele matou o irmão e tentou fazer o mesmo
com o filho.
— E você imagina a minha decepção quando descobri que o filho da
puta estava vivo no Brasil? — Mais um estalar de língua. — A Lowe é
minha, como deveria ter sido desde o começo, e eu não pude admitir que o
desgraçado estivesse vivo, mesmo do outro lado. Então, Srta. Romano, você
me pareceu ser a isca perfeita, mas, como alguém da mesma laia que ele,
não foi capaz de fazer o serviço direito e ele não voltou com você. E então
precisei tomar uma medida mais drástica, que não surtiu efeito… o
desgraçado sobreviveu ao helicóptero.
Meu corpo estremece com mais essa revelação.
— Mas acho que já contei demais para a senhorita… porque eu quero
que o show comece.
— Por favor, Sr. Lowe. — O que me resta é implorar. — Me deixe ir
embora! Juro que não vou contar nada…
— Eu quero que o mundo saiba — Linus me interrompe. — Quero
que meu filho — ele cospe as palavras com nojo — venha até mim por
vontade própria.
— Então me solte, por favor. — Minha voz sai ainda mais baixa. —
Tenho certeza de que nós podemos fazer isso de forma civilizada.
— Apenas cale a boca, Srta. Romano. — A voz de Linus é baixa. —
Com alguma sorte, mudarei de ideia e deixarei que saia viva depois de hoje,
mas, ainda assim, vai depender do quanto Conrad vai querer cooperar
comigo.
Com um movimento brusco, Linus sobe para o alto o braço que
estava pressionando a minha cintura, e o barulho típico de um tiro reverbera
pela praça. Eu solto um grito e sei que é a reação de todas as pessoas que,
agora, começam a correr desesperadas, após identificar de onde veio o
barulho.
As sacolas que, até então, estavam presas em minha mão, caem no
chão. A arma que, até segundos atrás, estava escondida sobre o casaco,
pressiona a lateral da minha testa.
— Ora, ora. — Linus chuta os itens e eles são revelados. — Será que
você está carregando um bastardinho?
Sou incapaz de responder.
— Será ainda melhor do que eu podia imaginar. — Ele ri. — É, Srta.
Romano, talvez eu não vá mudar de ideia sobre a sua vida. Não é nada
pessoal, não me entenda mal, mas preciso garantir que a Lowe seja somente
minha. E, olha só que curioso — ele solta uma nova risada sem humor —,
nossa plateia começou a se formar, mas a linha de frente é um tanto curiosa.
Há vários homens que agora nos rodeiam, as armas apontadas em
nossa direção e nenhum deles se parece com a polícia.
— Conrad sabia que eu podia ser uma ameaça e olha só quantos
seguranças ele mandou para cuidar de você — nós giramos trezentos e
sessenta graus —, mas nenhum deles foi páreo para a minha inteligência, e
aqui estou eu, com você em meu poder. Agora, mais do que nunca, sei que
ele vai querer cooperar comigo, não é mesmo?
— Essa criança é seu neto. — Talvez seja o único argumento que
possuo.
— De jeito nenhum. — Sua voz é fria, impessoal. — Para ser isso, eu
precisaria ter um filho, coisa que não tenho. Conrad sempre foi muito fraco
para assumir esse posto, assim como meu irmão.
Obrigo meus joelhos a se manterem firmes, enquanto o cano da arma
bate em minha cabeça todas as vezes que Linus se mexe.
Ao redor, a quantidade de pessoas só aumenta e consigo escutar, de
longe, as sirenes da polícia se aproximando. Estou vivendo um filme de
terror, um pesadelo real. Minhas pernas insistem em amolecer, mas eu as
obrigo a ficarem firme. Minha mente tenta fugir, mas eu a mantenho aqui
no presente. Preciso estar no aqui e no agora, porque preciso fazer o que for
possível para proteger a criança, que segue no meu ventre.
Ao longe, vejo policiais correndo em nossa direção. Os possíveis
seguranças contratados por Conrad permanecem no mesmo lugar, fazendo
uma corrente humana para que ninguém se aproxime de nós.
— Sr. Lowe, por favor, solte a moça. — Alguém fala através de um
alto falante.
— Você só pode estar brincando — ele responde com sua voz grossa.
Alto o suficiente para que os mais próximos consigam escutar. — Só irei
liberá-la quando Conrad chegar aqui.
As pessoas trocam olhares e vejo um sentimento de pena surgir em
seus rostos. Eles estão achando que Linus enlouqueceu pela falta do filho!
— Não! — grito, desesperada quando entendo. — Conrad…
— Cale a boca! — Ele empurra o cano com força e eu gemo de dor.
— Senhor, o seu filho está desaparecido há mais de dez anos — o
policial fala no megafone. — Abaixe a arma e vamos conversar…
— Estou aqui, Linus.
Meu coração dispara quando Conrad fura a corrente humana e se
apresenta em frente a todo mundo.
Mais que uma história pra viver
O tempo parece dizer
Não, não me deixe mais
Nunca me deixe
(Inesquecível - Sandy & Junior)

Do mesmo jeito que minha mãe e minha tia foram avisadas sobre eu
estar no banco, tenho certeza de que outras pessoas também foram e, por
isso, decidi sair o mais rápido possível dali, depois que elas chegaram. Com
apenas uma ligação para Lucca, em questão de quinze minutos, estávamos
saindo escoltados através de uma das passagens subterrâneas do banco.
Dona Pauline e Stella não fizeram perguntas, apenas me
acompanharam. Durante todo o curto trajeto até o hotel, vi minha mãe com
as mãos torcidas sobre o colo, enquanto a esposa do meu tio seguia com a
sua postura reta e tensa de quem sabia bem o que estava acontecendo.
E, assim que chegamos aqui, no apartamento e a porta foi fechada, as
perguntas, que começaram, eram de todos os tipos e eu fui respondendo
uma a uma. Era estranho responder coisas tão básicas para a mulher que me
deu à luz e para a que esteve ao meu lado, desde o momento em que respirei
pela primeira vez.
Almoçamos juntos, demos risada e elas choraram. Hoje em dia, acho
que perdi essa capacidade em algum momento do passado, quando percebi
que minhas lágrimas não mudariam nada. Eu as abracei, consolei e prometi
que ficaria por perto daqui por diante, ao menos assim eu esperava, mesmo
com essa maldita nuvem escura parando sobre mim. Quando a tarde chega,
eu, Stella e Lucca nos focamos sobre os papéis resgatados do cofre
enquanto minha mãe cochila no sofá. Tudo será entregue a polícia e ao
advogado que encabeçará o processo na justiça de Emerald.
Espreguiço-me no exato instante que, sobre a mesa, o celular de
Lucca toca. Trocamos olhares rápidos e ele sai, deixando-nos sozinhos.
Pego meu próprio aparelho, na expectativa de encontrar uma mensagem de
Georgina, mas não há nada. Meu coração se aperta dentro do peito, e tento
ignorar, por medo de estar ficando paranoico. Minha mulher está sendo
escoltada por seguranças desde o momento em que deixou a clínica para
encontrar com a amiga e passar o dia caminhando pelas lojas.
Quando Lucca volta, seu celular segue em mãos e sua expressão é
tensa.
— A nossa inteligência, finalmente, conseguiu encaixar as últimas
peças do quebra cabeça e já temos todas as evidências necessárias — ele
diz. — O assalto que matou o seu tio e quase fez o mesmo que você, foi
encomendado pelo seu pai. E, como suspeitava, ele também é o mandante
do atentado ao helicóptero.
Achei que quando, enfim, escutasse a confirmação das minhas
suspeitas, algo se quebraria dentro de mim ou até mesmo fosse me causar
algum tipo de reação, mas não sinto nada. É estranho porque, em até certo
ponto, é como se me distanciasse.
— Do que ele está falando, Con? — É Dona Stella quem pergunta,
me fazendo voltar ao presente. — Que helicóptero?
Observo mais atentamente o semblante do homem à minha frente e há
uma vinco entre suas sobrancelhas que não existia, antes de ele sair para
atender a ligação. O coração bate forte contra o meu peito, o maldito sexto
sentido apitando em todas as direções.
— O que mais, Lucca?
— Achamos que foi o próprio Linus que vazou as informações. —
Ele segue, como se não houvesse sido interrompido. — Estamos em posse
de documentos, imagens, áudios. Há provas o suficiente para que ele seja
preso e já estamos encaminhando tudo para os órgãos competentes. — Viro-
me para minha mãe, que segue dormindo tranquila, alheia a tudo, enquanto
minha tia vem para o meu lado. — Mas acredito que isso foi um subterfúgio
para nos distrair…
— O que quer dizer?
— Ainda não sei como aconteceu — vejo quando ele engole em seco
—, mas fui informado de que Linus conseguiu passar pelos nossos
seguranças e fez Georgina de refém.
Preciso de apenas um segundo para processar o que acabou de ser
dito.
A raiva me cega e eu seguro o homem pelo colarinho, jogando-o
contra parece, mas Lucca não reage, apenas se mantém parado.
O maldito barulho é o suficiente para fazer a minha mãe acordar e
gritar ao ver a cena, mas eu não o solto, muito pelo contrário, aperto mais
meus dedos em sua camisa, forçando-o para cima.
— O que está falando? — rosno.
— Linus… — Ele ergue a cabeça para conseguir respirar. — Está na
praça central e disse que só soltará Georgina se você for para lá.
Eu o largo no mesmo instante, pegando o maldito casaco que tirei
horas antes.
— Preciso de um carro agora! — digo a Lucca.
— Conrad, o que está acontecendo? — minha tia pergunta, enquanto
tento pegar as minhas coisas.
— Linos está com a minha mulher e com o meu filho — respondo
mecânico, fechando o casaco. — E ele quer a minha vida em troca da deles.
— Mulher? Filho?
É a voz da minha mãe, mas já estou praticamente correndo pelo
corredor, enquanto Lucca segue em meu encalço.
— O motorista já está nos aguardando.
Como é possível sair de um estado de não sentir nada para o extremo?
Raiva, medo, ódio, pavor. Tudo ocupa o meu corpo ao mesmo tempo e só
consigo pensar em Georgina sob a mira de Linus.
Por um segundo, considero ir a pé, mas é longe demais.
— O que mais nós sabemos?
— Há uma quantidade enorme de pessoas na praça, inclusive a mídia
está lá, como urubus ao redor.
A recordação do que passei na Alemanha volta à minha memória,
como uma espécie de autoproteção. Eu resgato, lá do fundo da minha alma,
a maldita calma fria que desenvolvi enquanto via pessoas sendo
intimidadas, por não terem obedecido às ordens do chefe.
— Nós temos um sniper a postos, Conrad — Lucca diz. — Você sabe
que só precisa de um único comando.
— Meu desejo é que esse filho da puta apodreça na cadeia, mas faça o
que for necessário para proteger a minha mulher e meu filho.
É isso: acabei de dar permissão para que matem o cara que, por um
acaso do destino, acabou por ser meu pai nessa vida. Não tenho e sei que
não terei peso algum na consciência, seja qual for o destino de Linus Lowe
daqui para frente.
— Está tudo parado, senhor.
A frase sequer terminou e já me encontro fora do carro, correndo em
direção à praça, que sei estar alguns metros à frente. Apesar da quantidade
de adrenalina no corpo, a perna machucada no atentado arde, mas ignoro
completamente a dor. Não é isso que irá me parar agora.
É uma infinidade de pessoas que se amontoam para ver o que está
acontecendo. Não me importo em pedir licença, apenas vou empurrando as
pessoas até ver o que realmente está acontecendo.
Há um homem que se parece muito comigo e ele segura a minha
mulher em um mata-leão, enquanto mantém um revólver apontado para sua
cabeça. Ele gesticula e fala com os policiais.
Não me importo se hoje for meu dia de morrer, se eu tiver certeza de
que Georgina e nosso filho estarão seguros. Eu trocarei a minha vida pela
deles, sem sequer precisar parar para pensar. Talvez, pego-se pensando, seja
exatamente isso que se espera de um verdadeiro pai e homem.
— Estou aqui, Linus.
Ultrapasso a barreira humana feita e me revelo. Os olhos tão iguais
aos meus faíscam com um prazer doentio. Estamos a dez, no máximo,
quinze passos de distância um do outro, com apenas Georgina entre nós.
Mesmo que eu não seja capaz de escutar, sei que burburinho começa
a correr entre as pessoas que assistem a essa cena dantesca, como se fosse
um maldito teatro, e esse é o momento em que escolho me esquecer do
mundo ao redor, focando somente ali, naquele momento.
— Que prazer revê-lo, meu filho. — Sua voz soa alta o suficiente
para que eu e as pessoas próximas consigam escutar. — Estava ansioso pela
sua chegada.
— Vai embora, Connie! — Georgina grita.
Seus olhos estão apavorados, uma de suas mãos está sobre a barriga,
de forma protetora, e a outra segura o braço de Linus, que mantém a arma
apontada para a testa dela com firmeza.
— Cale a boca, sua cadelinha. — Consigo escutar Linus falando para
minha mulher e vejo que ele aperta mais o revólver. — Não quero ser
obrigado a estourar os seus miolos antes da hora. Você não irá estragar
meus planos outra vez, uma só foi o suficiente.
Faço menção de me mover, mas Gió me passa uma mensagem muda
de medo. Entendo que, qualquer movimento brusco, pode assustá-lo e ele
disparar a maldita coisa, que segue presa em seus dedos.
— Estou aqui, como você pediu — digo, me obrigando a ficar no
mesmo lugar. — Agora, solte a minha mulher.
— Ah, Conrad… — Ele dá um passo para frente, levando Gió
consigo, como escudo humano. — Achei que todas as minhas lições
houvessem te ensinado a ser humilde, mas vejo que não. — Ele estala a
língua. — Continua o mesmo arrogante de sempre, igual ao seu tio. EU sou
o seu pai, então as ordens são minhas e de mais ninguém, entendeu?
Agarro-me à calma com todas as minhas forças, mas ela parece se
esvair por entre meus dedos, como uma areia fina.
— Vamos, pai. Estou aqui exatamente como mandou.
Ele abre um sorriso.
— Gosto assim, Conrad!
— Me diga o que quer, e eu farei.
— Quero que passe tudo o que seu tio deixou para o meu nome e
garanta que sairei daqui com vida.
— Faço o que você quiser, da maneira como decidir. — Respiro
fundo. — Quem manda é o senhor, pai.
— É isso, Conrad. — Ele mostra os dentes, em uma imitação muito
ruim de um sorriso. — Podia ter sido sempre assim, meu filho.
Por um momento, me questiono se ele realmente acredita no que
estou falando, mas, pela sua expressão, digo que sim. Linus Lowe está tão
perturbado em sua própria loucura que realmente acha que estou sendo
sincero.
— Nós temos um acordo? — pergunto.
Ele parece considerar enquanto Georgina, em movimentos mínimos,
nega com a cabeça. As lágrimas escorrem por seu rosto, mas não consigo
escutar qualquer som sendo emitido dela.
— Você vem comigo, Conrad — ele diz, por fim. — Será meu
escudo! E eu só o libertarei quando todos os papéis forem assinados. —
Linus reflete novamente. — Quero um carro e escolta.
— Tenho tudo organizado — digo. — Quanto a isso, não se preocupe.
Tenho um carro que já está à nossa espera. — Viro-me para os policiais. —
Por favor, não atirem nele enquanto estivermos trocando!
— Ótimo! Gosto de proatividade. Se alguém fizer alguma coisa
comigo, eu atiro em um deles e, como é de conhecimento de todos, tenho
anos de curso de tiro para saber muito bem onde devo acertar. — Linus se
aproxima de Georgina e consigo ler seus lábios. — Sei o alvo perfeito para
matar você e essa criança, por tanto, não tente nenhuma gracinha.
Gió aquiesce e vejo quando meu pai a solta, a arma ainda apontada
para ela. Um passo dela, um passo meu.
O mundo parece ter silenciado completamente, nem mesmo há sons
de passarinhos. Um pé na frente do outro e nossa distância diminui um
pouco mais.
E tudo acontece rápido demais, mas, ao mesmo tempo, eu juro estar
vendo em câmera lenta. O dedo de Linus Lowe aperta o gatilho da arma e
eu não tenho tempo para pensar, apenas me jogo em frente à bala,
protegendo Georgina.
Naquele milésimo de segundo, a minha vida inteira passa diante dos
meus olhos e, se eu morrer, é com a certeza de que não me arrependo de
nada.
O impacto vem, mas, ainda assim, tenho tempo de ver o corpo de
Linus caindo, quando sua cabeça parece ser estranhamente jogada para o
lado. Aqui eu morro, com a certeza de que ele vai para o inferno comigo.
O escuro chega, mas de uma forma totalmente diferente.
Por um momento, questiono-me se é assim que a morte vem. A
sensação que tenho é de estar dentro de um aquário, no qual vozes estão
deformadas e o tempo parece ser estranhamente distorcido.
— Precisamos medir o pulso dele.
E, nesse momento, obrigo-me a abrir os olhos, assustando quem
acredito ser os paramédicos.
— Senhor, não pode…
Mas eu ignoro, sentando-me. As pessoas estão boquiabertas, tão sem
saber o que está acontecendo quanto eu. O fato é: eu deveria estar morto.
Tomei um tiro no peito, senti o impacto da bala.
Olho para o tecido e há um furo.
Por dentro do casaco, no bolso interno, tiro a minha velha carteira de
couro e lá está a maldita, que foi lançada para matar a minha mulher. Abro e
vejo que a bala, na verdade, foi parada por uma moeda, mas não por
qualquer uma.
— Onde está a minha mulher? — É a primeira coisa que pergunto.
— Senhor, nós precisamos…
— Vocês podem fazer o que quiser comigo depois, mas preciso ver
minha mulher!
Coloco-me de pé e, além da dor no peito, como se tivesse levado um
soco, minha perna arde como dois infernos, mas tudo isso vai ficar em
segundo plano.
— Cadê ela? — pergunto mais uma vez.
— Naquela ambulância, senhor. — Um dos paramédicos desiste de
me manter parado.
Quando eu a vejo, sentada em uma maca, conversando com uma
mulher, meu coração erra uma batida. Georgina está bem e viva.
Quando os nossos olhos se encontram, o peso do mundo sai das
minhas costas, como se uma mão invisível o houvesse retirado. Um passe
de mágica não seria tão rápido quanto isso.
— CONRAD!
Ela corre em minha direção e só tenho tempo de abrir os braços, antes
que seu corpo se choque contra o meu.
Faço tudo ao mesmo tempo; beijo-a, cheiro-a, aperto-a contra o meu
peito. Nossos lábios se conectam em um beijo desesperado e ela tem o
gosto das lágrimas que escorrem de seus olhos.
— Você está vivo! — Ela segura meu rosto com ambas as mãos. —
Por tudo o que há de mais sagrado nesse Universo! Como?
E então eu ergo a pequena moeda na qual a bala está presa.
— A moedinha da sorte… — ela murmura, colocando o dedo sobre
os meus.
— Você salvou minha vida duas vezes, Georgina Romano. — Meus
dedos afastam o cabelo que caem sobre o rosto da mulher mais bonita da
face da Terra. — A primeira, quando me resgatou da escuridão, mostrando-
me a luz e despertando algo que jamais pensei que pudesse sentir. E, agora,
a segunda. — Nossas mãos se fecham em torno do objeto. — Minha vida é
sua, Gió, para fazer o que bem entender.
— Então, Sr. Santoro Lowe, já que tenho tamanho poder, exijo que
passe o resto da vida ao meu lado.
— Seu desejo é uma ordem.
É o ciclo da vida
E ele move a todos nós
Através do desespero e da esperança
Através da fé e do amor
(Ciclo sem fim – Rei Leão)

O ar gelado de Monte Verde é tudo o que precisamos, depois da longa


temporada que ficamos em Emerald. Passou-se quase um ano até podermos
voltar ao Brasil para recarregar as energias e apresentar a Gianlucca ao
nosso cantinho preferido em todo o mundo.
Estou sentada sobre uma manta quadriculada, no meio do gramado da
nossa chácara, com o estábulo ao fundo, imersa na missão de manter um
neném de sete meses entretido. Não consigo conter a risada quando ele faz
força com os bracinhos, no intuito de engatinhar, mas ainda não tem força o
suficiente para sustentar o corpo inteiro e acaba ficando no mesmo lugar.
Vejo quando as perninhas rechonchudas se agitam. Conrad vem
caminhando, com a égua Kitty ao lado. Ele tem as roupas completamente
sujas da lida com os cavalos, mas um ar tranquilo e relaxado, bem diferente
do homem sério, que está sempre tomando sérias decisões com o objetivo
de manter a empresa secular da família de portas abertas.
— Papapapapa. — Escuto Gianlucca balbuciar.
— Sim, ele está vindo! — respondo, pegando meu filho no colo. —
Vamos ver a Kitty?
Como se fosse capaz de entender, ele solta uma série de barulhinhos
engraçados, fazendo bolinhas de saliva com a boca enquanto pula
empolgado no meu colo.
Meu agora, oficialmente, marido, vem se aproximando devagar.
Sempre suspeitei que os animais fossem mais inteligentes do que nós
e, em momentos como esse, tenho certeza. Kitty, com todo o cuidado do
mundo, roça sua cabeça em meu braço, avisando-me de que me reconheceu
e agora cheira Gian, que está imóvel, parecendo esperar o término da
inspeção com um cuidado redobrado. Ela esfrega o nariz no bebê, que solta
um novo gritinho de felicidade.
— Como foi o reencontro de vocês? — pergunto, passando a mão no
focinho da égua.
— Achei que ela fosse virar a cara, tentar me morder, mas a
reconquistei com um torrão de açúcar.
— Você tem jeito com as mulheres, Sr. Lowe. Independentemente da
espécie, como podemos ver. — Ele ri e me beija. — Como você me
aguenta?
— Porque eu te amo! — Continuo me derretendo ao escutar isso,
como se fosse a primeira vez. — Achei que, a essa altura do nosso
relacionamento, já soubesse disso.
— Sei disso, Sr. Lowe… mas gosto de escutar você dizendo.
Um dos tratadores se aproxima de nós. Ele e meu marido conversam
rapidamente em português e Kitty é levada embora, ficando apenas nós três.
— Estou pensando em fazer uma massa fresca ao molho de tomate
rústico. O que acha? — Connie passa o braço sobre meus ombros. — De
acompanhamento, pensei em polpetone recheado com muçarela…
Conrad continua falando sobre os planos para o nosso jantar e eu fico
"tranquila" em notar que ele está bem, que talvez até tenha se esquecido de
que dia é hoje.
Exatamente há um ano, eu estava na mira da arma que Linus segurava
contra a minha têmpora, com o intuito de me matar. Como não me lembrar
dos pesadelos que me atingiam quase todas as noites, não importando tanto
de chá, orações e sessões terapia? Foram longos meses até que, aos poucos,
foram cessando até parar completamente, assim que Gianlucca deu seu
primeiro choro.
Mas, com Conrad, tudo foi e permanece sendo diferente. Ele segue
com terrores noturnos, com alguns remédios para dormir e para a ansiedade.
Ele está melhor? Com certeza, mas, mais uma vez, ele mudou. Linus,
mesmo morto, foi e continua sendo capaz de impactar meu marido.
— Me sinto tão, ou mais, em casa aqui do que em Emerald — digo,
colocando nosso filho no chiqueirinho. — Estive pensando sobre mudar
para o Brasil…
Conrad, que mexe nos armários, para e me observa. Nossa vida aqui
seria muito mais fácil, bem mais tranquila. Mesmo agora, depois de todos
os esclarecimentos, os olhares ainda existiam.
Nós enfrentamos o julgamento não apenas da Justiça, mas também
das pessoas de Emerald. Os questionamentos eram milhares, que
começavam com o fato de Conrad ter um passaporte legítimo em posse, até
a acusação de ser o responsável pela morte do próprio pai. A verdade é que
ninguém sabia de onde havia partido o tiro que matou Linus. Polícia?
Alguém que queria se vingar? Nunca saberei e, para ser sincera, não é algo
que fará diferença na minha vida. A verdade é que agora, com aquele
homem morto, meu marido tinha uma chance de realmente viver.
Às vezes, a cena de Linus morto, com o tiro na cabeça, volta para me
assombrar e então pego meu filho no colo e cheiro seu pescoço; depois, vou
até meu marido, beijando seus lábios em seguida. Nós estamos vivos e é
isso que importa.
Como minha avó me disse, há algum tempo atrás: "A ignorância, às
vezes, é uma benção". Talvez eu esteja errada e bem provavelmente, se
soubessem, eu seria ainda mais julgada do que já sou, mas ainda bem que
ele morreu. É um alívio para todos, incluindo a minha sogra.
— Você acha que Austin virá? — Conrad me traz de volta ao
presente.
Ele já organizou, sobre a bancada, todos os ingredientes de que
precisaremos para o jantar.
— Ele disse que sim, mas, para ser bem sincera, só irei acreditar
quando eu o vir saindo pelo portão de desembarque do aeroporto de
Guarulhos.
Conrad tira a camisa, ficando apenas com sua calça jeans surrada e
novamente perco minha linha de raciocínio, mas por um motivo totalmente
diferente.
— Gió, você tá me escutando?
— Fica complicado quando você resolve tirar a roupa na minha
frente.
— Você é terrível!
Conrad pega Gian no colo, que agora cochila tranquilamente.
Fazemos uma parada no quarto da frente, deixamos nosso pequeno
dormindo no berço e seguimos para o nosso.
— O nosso gato borralheiro precisa se tornar uma Cinderella. — Uma
ideia começa a surgir. — Podíamos organizar uma festa a fantasia aqui no
Brasil… e quem sabe Bernardo também não arranje alguém? Seria
maravilhoso se eles se casassem! Seria o motivo ideal para trazer meus pais,
sua mãe e tia.
— Meu amor, você está lendo muito livro de romance. — Conrad
abre o chuveiro. — Além do mais, ele disse que, depois da última, quer
distância.
— Claro que não! — A empolgação cresce dentro de mim. — Será
perfeito! Confia.
— Esse é o meu medo! — Ele já está completamente sem roupa. —
Quase trinta anos e ainda acredita em conto de fadas.
— E como não acreditar? — pergunto, inconformada.
Essa não é uma conversa que possa terminar assim. Garanto que a
babá eletrônica está funcionando e a levo para o banheiro, que começa a
ficar cheio de vapor.
— Não acontecem na vida real. Eles se resumem a livros e filmes.
Tiro a minha própria roupa e entro no box, pegando-o de surpresa.
— Claro que acontecem! — respondo, exasperada, aproximando-me
de seu corpo.
— Quero um exemplo que me faça mudar de ideia, Sra. Lowe.
— Nós dois — digo, e ele ergue a sobrancelha. — Você é meu Simba
e eu sou sua Nala. Se não somos a maior prova de que contos de fada
existem, então não sei.
Vejo o rosto do meu marido ruborizar, por ter sido pego desprevenido,
e eu o puxo para um beijo, sob água quente do chuveiro. Ele beija meu
pescoço e já sou capaz de senti-lo duro, roçando em minha barriga.
— Não há nada melhor do que saber o que acontece depois do "E
viveram felizes para sempre".
Já está se tornando padrão nessa seção, mas eu adorei escrever essa
história, ainda mais por ela ter sido baseada em um dos meus filmes
prediletos de toda a vida. Você já descobriu qual é?
Esse livro é apenas o primeiro de uma trilogia que surgiu de uma
daquelas conversas despretensiosas com o meu maior apoiador: meu
marido. E, em homenagem a ele, digo a vocês que nenhum gnu foi ferido
durante o desenvolvimento desse livro rss.
Às amigas, que a vida me deu nesse mundo literário, Pri Averati e Isa
Silveira: amo vocês. Obrigada por cada palavra de apoio, carinho e por
nunca me deixarem desistir. Vocês são incríveis.
Às minhas betas maravilhosas (Lari, Greicy e Ana), muito obrigada
por embarcarem em mais uma aventura comigo! Vocês são maravilhosas e
sei que jamais seria capaz de concluir essa história sem vocês! Muito
obrigada por tudo.
E não poderia faltar o agradecimento às vozes da minha cabeça, afinal
nada disso seria possível se elas não existissem.
Nos veremos no próximo livro, minhas gatas e meus gatos!
Dani Camponello (nada de Danielle, só a Dona Renata a chama
assim), é natural de Caraguatatuba, litoral norte de São Paulo. Caiçara só no
RG, porque viveu a maior parte da vida em São Paulo. Habita essa Terra
desde 1990.
Formada em Análise e Desenvolvimento de Sistemas, descobriu a
paixão pela leitura ainda na infância, através das fábulas de Esopo. A
escrita chegou na adolescência, para dar asas à imaginação. Foram muitas
fanfics e diversos diários até então.
Ariana, casada com um cara incrível, moradora de uma cidade no
interior de São Paulo, tutora de dois pets (um cachorro velho e ranzinza e
um gato adolescente) e, agora, autora. Ama cozinhar, fazer esportes e tem
um grande problema em ver séries até o final.
Dizem por aí que é a própria ariana encarnada, mas o coração é do
tamanho do mundo.
Instagram: @dani_camponelloautora

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[1]
Moeda da sorte
[2]
Tradução: Fale comigo, Goose.
[3]
Significa aprendiz, iniciante. É um termo utilizado nos filmes da saga Star Wars.
[4]
Documento que traz todas as informações relativas a atual situação financeira do negócio
[5]
Cargo abaixo do chef É o segundo, na hierarquia de uma cozinha.
[6]
Significa “grande chefe”
[7]
C-Level são as pessoas que ocupam os cargos mais altos de uma empresa. CEO, COO,
CFO são alguns exemplos.
[8]
É um documento que serve como um guia. Ele contém uma série de informações como:
dados sobre a empresa, o mercado que ela atua, o público ao qual ela se direciona e etc.
[9]
Terraço moderno e sofisticado que tem o objetivo de proporcionar a pessoa que está ali um
momento de relaxamento com uma excelente vista.
[10]
Relatório.
[11]
Dispositivo que guarda documentos, fotos e outros itens. Um exemplo é o Google Drive.
[12]
Peça usada para manter o fondue aquecido.
[13]
Petisco tradicional para fogueiras. Consiste de um marshmallow assado no fogo e uma
camada de chocolate entre duas fatias de bolacha.
[14]
Tradução: Fale comigo, Goose. Frase usada pelo personagem “Maverick” nos filmes do
Top Gun

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