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Esta é uma obra de ficção. Esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com nomes, pessoas,
fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro poderá ser reproduzida ou transmitida, sejam
quaisquer forem os meios empregados: eletrônicos, mecânicos, fotográficos, gravação ou quaisquer
outros, sem autorização por escrito da autora.
Para toda leitora que sonha em
viver um clichê de natal,
a gente te entende!
Índice
Lívia
Samuel
Lívia
— Puta merda! — exclamei, assim que desci, com Olaf ao meu lado,
sentindo o vento gelado batendo em meu rosto.
— Olha essa boca, Lívia — a voz familiar da minha avó falou em
inglês, me trazendo uma certa felicidade assim que me virei e vi a mulher de
cabelos tão branquinhos quanto a neve parada ao lado do carro.
Eu odiava o frio? Com toda certeza! Mas eu amava minha avó e
estava com saudades. Talvez fosse a única parte positiva de toda aquela
viagem.
— Oi, vovó! — exclamei em português, ignorando a pequena
repreensão que eu tinha recebido.
— Vou mandar colocarem suas malas para dentro — vovó Anne
avisou em francês, me lembrando o caos que sempre eram nossas conversas
em três idiomas, embora ela não soubesse falar muito a língua do país em
que nasci.
Mesmo que minha avó se chamasse Jeanne, eu me dirigia a ela como
vovó Anne quando era criança e isso acabou virando algo do cotidiano,
porque nunca mudei.
— Por que não vai dar uma volta com esse pulguento? — ela
questionou e eu franzi o cenho.
— Ele não tem pulgas, vovó — reclamei e a senhora apenas revirou
os olhos, conversando com o homem que tinha sido meu motorista e pedindo
para que colocasse minhas malas dentro da casa, aparentemente eles
realmente eram conhecidos.
— Toma — vovò disse em inglês novamente, colocando uma touca e
um par de luvas na mão que estendi em sua direção, além do que parecia
uma roupinha de cachorro. — Você precisa se esquentar e esse bicho peludo
não pode passar frio também.
Apenas dei um sorriso para a mulher, que me deu as costas, voltando
a prestar atenção no que o senhor dizia. Coloquei a touca — que acabou
servindo bem, porque os meus cachos estavam pedindo socorro depois de eu
ter dormido quase a viagem toda — e as luvas, sentindo certo alívio por
parecer minimamente quentinha pelo menos. E vesti a roupinha verde e
amarela que minha avó tinha dado para o meu cachorro, achando engraçado
a forma como parecia que Olaf estava indo assistir um jogo da copa.
Comecei a caminhar até a avenida principal, que ficava a menos de
uma quadra da casa da vovó e meu cachorro foi ao meu lado. Treinei Olaf
desde filhote e como ele era bonzinho, eu nem precisava me preocupar com
guias.
Cumprimentei algumas pessoas que passavam e me davam oi,
parando para fazer carinho em Olaf, ou apenas sorrindo para ele, e continuei
andando, tentando aproveitar a parte boa daquela cidade e não pensar tanto
em como eu odiava aquele clima. Meu cachorro pelo menos parecia estar
gostando, se eu considerasse a língua de fora e o sorriso estampado em sua
carinha.
— Vamos até o café, Olaf? — perguntei para o animal, mesmo que
ele não pudesse nem me responder e muito menos tomar qualquer coisa
vendida lá. — Fica meio longe, acho que dá umas dez quadras, mas nós
conseguimos chegar.
Atravessei a rua quando percebi que nenhum carro estava vindo e
imaginei que meu cachorro estivesse junto, até olhar para o lado e notar que
ele tinha ficado na calçada.
— Olaf — chamei, batendo na minha perna, mas o animal continuou
parado, olhando para algum outro lugar, como se me ignorasse. — Olaf!
Vem aqui — eu pedi.
Dei um suspiro longo, antes de colocar o pé na rua para atravessar
para o lado que ele estava e tentar descobrir o que tinha acontecido, porém,
assim que cheguei na metade do caminho, Olaf começou a correr para a
direção que olhava.
Arregalei os olhos, sentindo o desespero me preenchendo, porque ele
nunca tinha feito algo assim. Durante alguns segundos, foi como se meu
corpo travasse, até eu escutar uma buzinada que me trouxe de volta a
realidade, além de fazer minhas pernas reagirem, correndo para o mesmo
sentido que o cachorro.
— Olaf! — gritei, o mais alto que consegui, enquanto ainda
enxergava os pelos do cachorro balançando com seus movimentos. Algumas
pessoas me observavam como se eu fosse maluca, mas não faziam nada para
ajudar. — Olaf!
Porém, não consegui segui-lo por mais do que três quadras, sentindo
meu ar faltando e minha respiração pesando. Não, não, não, agora não. Tive
vontade de chorar, me sentando na calçada e mexendo nos meus bolsos em
busca da bombinha. Eu precisava do meu cachorro, não de uma crise de
asma. Um aperto no peito começou a me sufocar e eu não conseguia
encontrar o que precisava para melhorar em lugar nenhum. Era só o que
faltava, meu cachorro fugindo e meu remédio desaparecido. Uma mulher se
aproximou de mim, perguntando em inglês:
— O que está acontecendo com você? — ela se abaixou do meu lado,
segurando meus ombros.
— Asma — consegui murmurar com o resto de ar que se mantinha
comigo, mas foi o bastante para que eu ficasse ainda mais sufocada e
começasse a sentir minha garganta trancando.
— Querido! — ela gritou e um homem se aproximou, se abaixando
do nosso lado e remexendo os bolsos, antes de me estender o que eu tanto
precisava. Nossa, eu poderia pular em seu pescoço como agradecimento,
mas achei melhor usar o medicamento antes.
Coloquei a bombinha na boca, seguindo os passos de uso e só desejei
que não estivesse ingerindo veneno e eles não quisessem me matar, ou retirar
meus orgãos, porque com o desespero eu só parei para pensar em
possibilidades depois de já ter puxado o medicamento para dentro.
Alguns minutos foram precisos para eu conter minha crise e concluir
que eles pelo menos não queriam me envenenar.
— Você está melhor? — a mulher questionou e eu assenti,
devolvendo o medicamento e agradecendo, enquanto ela me ajudava a
levantar.
Talvez cidades pequenas fossem realmente pacatas demais, porque se
aquilo rolasse em Monte Sul, eu já teria ficado, no mínimo, sem meu celular.
— Eu me chamo Alessandro e minha esposa é a Andrea. Seu nome é
Lívia, não? — o homem, que não parecia muitos anos mais velho do que eu,
assim como a mulher, perguntou e eu arregalei os olhos, cogitando que
talvez tivesse abaixado a guarda rápido demais.
— Como você sabe? — indaguei, ficando um pouco na defensiva.
— Sua avó está comentando a semana toda que você chegaria hoje.
Bom, aquela sim era uma informação interessante, considerando que
eu só tinha sido informada quinta-feira.
— Como me reconheceu? — tive que fazer essa pergunta, pelo
simples fato de que não tinha como sair falando para qualquer um na rua que
era neta de alguém.
— Cidade pequena — Andrea respondeu, sorrindo. — Conhecemos
todo mundo.
Eu assenti, imaginando que fazia sentido, mas logo arregalei os olhos
ao me lembrar o que tinha desencadeado minha crise de asma.
— Olaf! — exclamei.
— O que?! — Alessandro questionou e eu apontei para o lado que eu
tinha corrido.
— Meu cachorro saiu correndo para lá, eu estava atrás dele —
expliquei e os dois assentiram.
— Vou enviar uma mensagem no grupo da cidade, você pode
descrever ele?
Grupo da cidade, meu Deus, eu já tinha ouvido de tudo.
— É um Golden Retriever, ele está usando uma roupa verde e
amarela — falei, observando enquanto a mulher digitava que o cachorro da
neta recém-chegada da Jeanne tinha sumido, o que, particularmente, achei
informações demais, porém estava aceitando qualquer ajuda. — Seu nome é
Olaf.
— Como o boneco de neve de Frozen? — Alessandro perguntou e eu
assenti, abrindo um sorriso. Pelo menos aquele povo era simpático até onde
eu tinha notado.
— Enviei as informações, agora elas vão ser repassadas, ele deve
aparecer logo, por que não volta para casa e espera? — Andrea sugeriu e eu
senti certo receio, porque a ideia de não continuar procurando por Olaf me
parecia absurda.
— Eu só ia dar mais uma olhada… — fui interrompida.
— Ah, não, querida, aqui está frio e você já teve uma crise de asma,
por sorte Alessandro sempre carrega o remédio, vamos te levar em casa —
ela afirmou, enganchando seu braço no meu e enquanto eu tentava
argumentar sobre como queria pelo menos dar mais uma olhava, eles
ignoraram tudo que eu dizia, me levando até em casa.
Acho que cidades pequenas também forneciam pessoas bastante
persuasivas — para não dizer intrometidas.
4 - Cachorro Sem Dono É Algo Preocupante
Samuel
Lívia
Samuel
Lívia
Samuel
Lívia
Samuel
Lívia
Samuel
Lívia
Samuel
Eu estava dando mais uma volta com Gato de Botas, quando uma
silhueta cor de rosa parada em frente ao estábulo chamou a minha atenção.
Apenas uma pessoa poderia estar usando uma jaqueta colorida combinando
com a calça daquela forma, o que me fez sorrir, enquanto direcionava meu
cavalo até a cerca em que Lívia estava apoiada, me observando atentamente.
— Preciso dizer que você cavalgando é um colírio para os olhos.
Quando for verão, por favor, faça isso sem camisa, grave e me mande — ela
falou assim que eu desci do Gato de Botas.
— Você é muito cara de pau, coelhinha — eu afirmei e foi o bastante
para ela fazer uma careta como se estivesse ofendida.
— Não sou cara de pau, apenas sei o que quero.
Lívia definitivamente não deveria sair falando aquele tipo de coisa.
— E o que você quer é me ver sem camisa andando a cavalo?
— Exatamente, acho que é o mais perto que chegarei da visão do
paraíso.
— Você é tão boba! — exclamei, rindo. Se parasse para analisar
todos os meus últimos dias, acho que eu tinha passado mais da metade deles
rindo com ela.
Gato de Botas se inclinou um pouco para frente e foi o bastante para
que Lívia desse um pulinho para trás.
— Quer andar também? — eu sugeri, vendo os olhos dela se
arregalarem. — Você vai estar comigo, juro que é seguro.
— Não sei se estou colocando muita fé nisso — ela afirmou,
analisando o cavalo.
— Se andar, posso até cogitar o vídeo — eu brinquei, vendo um
sorriso sacana tomar conta dos lábios de Lívia.
— Eu não sou do tipo que esquece fácil — a garota disse, como se
estivesse me avisando.
— Vem logo — pedi, segurando sua mão e a levando para perto do
cavalo.
Foi perceptível seu nervosismo e eu achei melhor pedir para ela
fechar os olhos, enquanto a colocava em cima do Gato de Botas, subindo
atrás dela logo em seguida.
— Pode olhar — falei, assim que segurei as rédeas, a abraçando para
que se sentisse segura.
— Puta merda! — ela exclamou, parecendo um pouco tensa e eu
falei perto do seu ouvido:
— Relaxa, você pode confiar em mim.
Lívia apenas assentiu e eu fiz o cavalo começar a trotar, indo devagar
para que a garota não se assustasse mais. Porém, assim que senti que ela
estava um pouco confiante, passamos a galopar e os cabelos cacheados dela
voaram com o vento, enquanto a jovem soltava um gritinho animado.
— Meu Deus, isso é incrível! — ela gritou e eu apenas sorri, bastante
satisfeito.
Ficamos andando por mais um longo tempo e eu só queria que
durasse para sempre, porque a ideia de que já era dia quinze e em breve
meus dias com ela chegariam ao fim me deixava apreensivo.
15 - Melhores Amigos Costumam Ser Linguarudos
Lívia
Samuel
Lívia
Samuel
Lívia
Samuel
Lívia
Samuel
Lívia
Samuel
Quando se é diagnosticada com uma doença rara e letal, você não sabe
bem se quer aproveitar seu curto tempo de vida ou jogar tudo pelos ares.
Bem, uma vez John Lennon disse que “a vida é aquilo que acontece
enquanto estamos ocupados fazendo planos”. Para alguém que vai viver
apenas seis meses, não havia muitos planos para se idealizar.
Minha mãe sempre dizia que Deus escolhia os fardos que cada um
deveria carregar, mas para mim eu era apenas uma garota que nasceu
danificada. Aos vinte e três anos fui diagnosticada com amiloidose cardíaca,
uma doença que afeta em grande maioria homens acima de quarenta anos,
mas podemos dizer que eu fui o bilhete premiado nas estatísticas. Também
conhecida como Síndrome do Coração Rígido, ela é caracterizada por um
acúmulo de proteínas nas paredes do coração, impedindo que ele bata
decentemente. Um dia meu coração vai literalmente parar de bater, e a única
forma de isso não acontecer é fazendo um transplante.
E aí você se pergunta: Então é só trocar de coração que tudo se resolve?
A resposta é sim, se não houvesse uma fila para transplante tão grande que
se fosse uma loja, eu estaria a cinco quadras de distância. A estimativa de
espera ultrapassava anos, coisa que eu não tinha.
Foi por isso que decidi seguir o que Lennon disse, viver minha vida sem
planos. Ok, talvez tivesse alguns, mas nada muito substancial. Assim, acabei
indo parar em Liverpool, a cidade onde surgiu os Beatles, vulgo a melhor
banda já existente. Eu não pensei muito quando decidi me mudar para lá
sozinha, só que queria passar meus últimos tempos em um lugar que tanto
ouvi falar enquanto escutava as músicas e assistia os documentários sobre a
maior banda da história da música.
Meus pais no início não aceitaram muito bem a ideia de eu morar
sozinha a trezentos e cinquenta e cinco quilômetros de Londres, onde nasci e
cresci. No entanto, meus poderes de persuasão ultrapassavam a razão
humana. Consegui convencê-los a me deixarem morar lá, com a única
condição de que eu continuasse meu tratamento com um cardiologista. Eu
não tinha motivos para negar, embora soubesse que a única forma de
continuar viva era ser transplantada.
E era por isso que eu estava no Liverpool Waterfront bebendo um
chocolate quente em um dia frio de outono enquanto observava
curiosamente as estátuas de Paul, George, Ringo e John. Eu passava por
aquela praça quase todos os dias, mas nunca tinha realmente parado para
observar as estátuas. Deviam ter um pouco mais de dois metros, feitas
inteiramente de bronze e incrivelmente semelhantes aos quatro músicos.
— Para o que você acha que ele estava olhando?
Meu corpo teve um pequeno espasmo de susto, eu nem percebi que
alguém estava parado ao meu lado. Com olhar voltado na direção do falante,
descobri ser um garoto. Ele vestia roupas de inverno compostas por uma
jaqueta de couro preta, calça jeans escura e botas cano alto que pareciam ser
pesadas. Seu cabelo castanho claro estava demasiadamente bagunçado, o
que me fazia pensar que ele nem o penteou antes de sair de casa. Sobre seu
ombro, carregava um violão coberto por uma capa preta de tecido. Aquele
cara parecia ter saído da capa de um disco de rock do século passado.
— Como? — questionei, um pouco intrigada com sua pergunta.
Ele apontou para a estátua de John Lennon.
— Lennon. Me pergunto o que ele estava olhando — explicou.
Acabei dando de ombros.
— Acredito que seja algo que jamais saberemos.
— Mas pelo menos dá asas à imaginação.
Meneei a cabeça, concordando.
O olhar de John parecia distante naquela estátua, como se observasse
distraidamente algo um pouco acima do seu campo de visão. Poderia ser um
pássaro, ou alguém no alto de um prédio. As possibilidades eram infinitas.
Olhei para o garoto, mas algo que ele segurava me chamou a atenção.
Em suas mãos estava um amontoado de folhas rosa que eu precisava entortar
a cabeça para conseguir ler o que estava escrito. Identifiquei as palavras
"show" e "club".
— O que é isso? — Apontei para as folhas.
Ele demorou o olhar nelas e então sorriu, me encarando nos olhos
pela primeira vez, os dele eram castanhos.
— Minha banda vai se apresentar amanhã à noite no Cavern Club. —
Ele me entregou um dos panfletos.
— Você está brincando né? — Praticamente arranquei o papel de sua
mão.
Lá dizia claramente, em letras estilizadas e com alguns desenhos sem
sentido:
"Black Roulettes
no Cavern Club
Sexta-feira - 9 p.m”
Saí do trabalho cedo naquele dia. Minha chefe foi super compreensiva
quando falei que queria conhecer o Cavern Club naquela noite. Talvez o fato
de ela saber da minha doença tenha ajudado na decisão. Enfim, o importante
era que cheguei em casa com bastante tempo para me arrumar devidamente.
Eu nunca fui de me preocupar com a roupa que estava usando,
normalmente optava por algo confortável, como calça de moletom e casacos
largos. Naquela noite seria diferente. Vesti um cropped vermelho que,
sinceramente, eu nem lembrava de ter, e uma jaqueta preta de couro que
ganhei de aniversário alguns anos atrás. Me maquiei como não fazia há anos.
Tentei me convencer de que estava me arrumando daquela forma por ser
um bar e todos irem arrumados nesse tipo de lugar, mas cá entre nós, estava
bem óbvio o motivo. Eu era patética por querer ficar bonita para um garoto
com quem troquei meia dúzia de palavras na rua.
— Que se dane, eu não vou viver muito mais mesmo — murmurei para
meu reflexo no espelho do meu quarto.
Essa era a ironia que eu vinha vivendo, se fizesse algo vergonhoso, não
ficaria remoendo esse acontecimento para o resto da minha vida, pois ela era
extremamente curta.
Terminei colocando um par de brincos de brilhinho que encontrei no
fundo da minha caixa guarda-tudo, que ficava escondida por pilhas de
cobertores dentro do armário.
Com a bolsa pendurada no ombro, eu estava mais do que pronta.
Fui a pé até o Cavern Club, pois ficava perto de casa. O local tinha uma
fila para entrar, mas nada do que um pouco de espera não resolvesse.
Enquanto aguardava, me peguei observando o letreiro vermelho que
nomeava o bar. Era bem clássico, compondo a vibe retrô que aquele lugar
trazia. A construção de tijolos não era a original, mas uma réplica muito bem
feita.
Era inacreditável imaginar que eu estava finalmente indo no bar que os
Beatles tocaram no início da carreira. Poderia fingir por alguns segundos que
eu estava lá em 1960 curtindo o som de uma banda desconhecida, que
ninguém sabia que mudaria a história do rock para sempre.
Assim que entrei, me surpreendi com a pouca iluminação do ambiente.
Era totalmente imersivo. O bar era comprido e estreito, com mesas e
cadeiras preenchendo espaço até a beirada do palco, que ficava um metro
mais alto que o térreo. Os instrumentos já estavam dispostos lá, mas nem
sinal dos músicos que se apresentariam naquele dia. Acabei chegando um
pouco mais cedo para conseguir entrar, então teria que esperar até o show
começar, mas eu realmente não me importava.
Fui até o bar, ainda vazio pelo horário, e me sentei em um dos
banquinhos. O bartender estava de costas, mas se virou com o barulho que
fiz. Ele era novo, talvez um pouco mais do que a minha idade, e tinha os
cabelos loiros bagunçados. O sorriso que me lançou comprovou que fazia
sucesso com as mulheres, e homens, daquele lugar.
— Pela sua cara, acho que um sex on the beach seria perfeito.
Franzi o cenho.
— O quê?
Ele deu uma risada, claramente se divertindo com minha confusão.
— Você não entende muito de drinks, né?
Ah, então ele estava falando de uma bebida.
— É tão óbvio assim? — acabei rindo também.
O homem deu de ombros.
— Te garanto que é uma bebida ótima, e está com vinte porcento de
desconto nessa noite — falou, apontando para uma plaquinha disposta na
bancada.
— Tem como ser sem álcool?
— Não vai ter muito o que colocar no copo.
Dei um sorrisinho.
— Não posso beber nada alcoólico, ordens médicas.
— Assim fica difícil, deixe-me pensar.
Ele entortou a boca e olhou para cima, buscando em sua mente drinks
que eu pudesse beber.
— Posso fazer um Pink Lemonade, é basicamente suco de limão,
morango e açúcar.
— Perfeito.
Eu não podia beber álcool, mas ninguém disse que açúcar também estava
vetado da dieta.
O homem se virou para preparar a bebida, e foi então que percebi que
estava sentado em um banco alto parecido com o meu. Ele não se levantou
para preparar meu drink, pois as bebidas, também notei, estavam ao seu
alcance sem que precisasse se esticar muito. Aquilo era, no mínimo, curioso.
Esperei alguns minutos, aproveitando para dar uma boa analisada no bar.
Tinha várias decorações que lembravam do século 20, algumas referências
aos Beatles também.
O bartender voltou a se virar para mim e estendeu um copo de vidro com
um líquido cor-de-rosa dentro.
— Aqui está. Modéstia à parte, ficou muito bom.
Peguei o copo e o levei até perto dos lábios.
— Vou confiar em você — disse antes de tomar um gole.
Era doce e azedo ao mesmo tempo, uma combinação perfeita. Dava pra
sentir o gosto do limão e do morango, o que realmente me surpreendeu, pois
normalmente esse tipo de bebida era puro açúcar.
— Confesso que realmente está. — Acabei bebendo mais alguns goles.
Eu terminaria aquele copo em segundos.
— Aliás, sou o Thomas. — Ele me estendeu o braço.
Apertei sua mão.
— Daisy.
As sobrancelhas dele se arquearam, durou poucos segundos, mas
percebi que algo tinha acontecido. Eu provavelmente nunca descobriria o
que era, pois ele logo foi chamado por outra cliente.
— Até depois, Daisy. — Sorriu antes de se afastar, empurrando seu
banco, que agora percebi ter rodinhas, para o lado, se segurando na bancada
do bar.
Com meu copo em mãos, levantei do banquinho e fui mais para perto
do palco. Várias pessoas já se acumulavam na frente, mas consegui me
encaixar em um canto mais afastado, que dava para visualizar perfeitamente
os instrumentos esperando seus músicos.
Mais alguns minutos se passaram até que algumas luzes se apagaram
e outras diminuíram de intensidade. As conversas cessaram, todos ansiosos
para ver a banda subir no pequeno palco.
Uma movimentação no palco começou, mas estava escuro demais
para vermos quem era. Consegui ver uma das pessoas colocar a guitarra
sobre o ombro, mas o resto era apenas vultos.
Ouvimos alguém arranhar algumas notas na guitarra, o que levou o
público a loucura. Eram eles, e o show estava prestes a começar.
— Boa noite, Liverpool — a pessoa nas sombras disse ao microfone.
Era a voz de Dick.
Alguns gritos femininos foram escutados por todo o bar.
— Nós somos a The Black Roulettes e hoje preparamos uma
apresentação especial para vocês. — Ele fez uma pausa e então começou
uma contagem. — 1, 2, 3, 4!
No último número, as luzes do palco se acenderam e as primeiras
notas de “You Really Got Me” da The Kinks preencheu o ambiente.
Finalmente consegui ver Dick. Ele vestia uma jaqueta jeans azul
escuro com uma blusa dos Beatles por baixo, o cabelo estava ajeitado para
trás com gel. Sua voz era linda, me lembrando um pouco do Alex Turner, da
Arctic Monkeys. Dick era um verdadeiro astro do rock.
A segunda música começou mais calma, eu logo reconheci
“Yesterday”, uma das minhas músicas preferidas da The Beatles. Ela ficou
tão boa na voz de Dick, que pensei até mesmo em gravar para poder escutar
mais vezes.
Cantei a letra junto com o público, chegando a fechar os olhos para
imergir no clima que tomava o lugar. Era uma atmosfera inebriante.
Quando a música acabou, bati palmas mais do que o necessário.
Tinha sido, no mínimo, lindo.
Dick agradeceu e logo em seguida a próxima música começou.
Enquanto eles tocavam, percebi o olhar de Dick varrer o público. Ele
parecia procurar por alguém, e confesso que meu coração deu um pequeno
salto em resposta. As chances de ele estar me procurando eram baixas,
considerando que ele provavelmente entregou aqueles panfletos para
dezenas de garotas ontem, mas não pude evitar que meu subconsciente
acreditasse no contrário.
Seu olhar pousou em mim, e Dick sorriu.
Me virei para as pessoas ao meu redor, julgando se ele poderia estar
olhando para outra pessoa, mas ninguém parecia estar ligando para aquilo.
Tinha que ser para mim.
Ele lançou uma piscadela antes de voltar para o público, me deixando
com o coração na garganta. Também tinha a chance de eu estar tendo um
infarto, mas, de qualquer forma, estava sendo um momento extremamente
desconcertante.
Tentei me focar nos outros integrantes da banda no intuito de fazer
meus batimentos cardíacos desacelerarem. O baixista acabou me chamando
a atenção, era o bartender de alguns minutos atrás. Ele estava sentado em
uma cadeira de rodas e movimentava o tronco para frente e para trás
enquanto tocava empolgado o baixo.
Assim que a música acabou, eu e o público gritamos eufóricos
pedindo por mais.
Dick encostou os lábios no microfone e falou com a voz levemente
rouca pelo esforço:
— Vamos finalizar com “Come Together”.
Outra música dos Beatles.
As pessoas pediram que eles tocassem mais, mas Dick apenas deu
um sorrisinho e sinalizou para que a banda começasse a tocar.
Ele deu tudo de si, atingindo as notas certas, seguindo o ritmo da
música. No final, os aplausos foram os mais altos da noite.
— Muito obrigado por terem vindo nos escutar esta noite — ele
agradeceu — É uma honra podermos nos apresentar no mesmo lugar em que
os Beatles começaram.
A frase “mais um” tomou conta do bar.
Dick balançou a cabeça, rindo.
— Sinto muito, pessoal. Tenho um encontro daqui a pouco, prometi
levar uma garota conhecer a cidade. — Ele olhou para mim. — Ela é
londrina, acreditam? Eu preciso mostrar para ela o que é diversão de
verdade.
Algumas pessoas deram risada, enquanto outras lamentaram pelo fim
do show. Eu não fiz nem um nem outro. Na verdade, permaneci estática no
meu lugar, tentando processar o que acabou de acontecer.
O cantor desceu do palco por uma entrada que eu nem tinha
percebido antes, os outros integrantes da banda o seguiram.
Decidi voltar para o bar, ver se conseguia alguma bebida sem álcool,
mas que pudesse fazer algum efeito sobre o meu cérebro, pois eu
definitivamente precisaria de coragem para encarar Dick se ele viesse até
mim.
— Fugindo de mim, loirinha?
Me virei rápido, apenas para encontrar Dick com as mesmas roupas
de antes, mas com suor brilhando na testa e pescoço. Tive a capacidade de
achar um homem suado sexy.
— Apenas vim pegar uma bebida. — Aquela era uma meia verdade.
Ele olhou para o bar vazio e depois para mim.
— Sei.
Seu sorriso convencido me causou uma leve irritação, mas não pude
impedir minhas bochechas de corarem.
— Então você acha que vamos sair para um “encontro”? — Fiz aspas
com a mão.
Ele riu.
— Dar em cima de uma garota e depois chamar ela para sair. Se isso
não é um encontro, então não sei o que é.
“Dar em cima de uma garota”. O meu cérebro repetiu essa frase
constantemente enquanto eu o encarava atordoada.
Desviei o olhar.
— Certo.
Dick me olhou zombeteiro.
— Está planejando me dar um fora, loirinha? — Ele não parecia
acreditar que eu fosse fazer isso.
E eu não ia.
— De forma alguma. Só não achei que fosse considerar isso um
encontro.
— E o que mais seria?
Torci os lábios em um biquinho, pensativa.
— Hum… dois estranhos caminhando juntos à noite? Talvez eu deva
me preocupar em você roubar meus órgãos, mas já aviso que o coração vai
ser inútil.
Ele pareceu achar graça do que eu disse.
— Porque? É feito de pedra? Gelo?
Ah, se ele soubesse.
— Está mais para danificado — me limitei a dizer.
As sobrancelhas dele se uniram, a expressão confusa, mas meu
sorrisinho suavizou seu rosto. Dick deve ter pensado que eu estava
brincando.
— Bem, danificado ou não, posso garantir que não irei roubá-lo.
— Que gentil da sua parte.
O garoto revirou os olhos.
— Fiz um roteiro à la Beatles que você não poderá recusar. O que
me diz, pronta para a noite de Liverpool?
Olhei para sua mão estendida, e então para meu celular. A tela se
acendeu com uma mensagem da minha mãe perguntando se eu já estava na
cama.
Respirando fundo, guardei o celular na bolsa e coloquei a minha mão
sobre a de Dick.
— Pronta.
Capítulo 3
— O que achou?
A garota de pele preta clara e cabelos crespos balançou a cabeça em
discordância na videochamada que estávamos fazendo no computador.
— Você não vai usar esse suéter surrado em uma festa — Abigail disse
incrédula.
Olhei para meu suéter amarelo queimado. Ele era quentinho e
confortável, tudo que eu mais prezava.
— Não tenho nada melhor — argumentei.
— Ah, você tem sim.
Encarei minha melhor amiga por alguns segundos, tentando entender do
que ela falava. Meus olhos se arregalaram quando lembrei.
— Não! Eu não vou vestir aquilo.
— Você vai sim! — Ela veio para frente da tela, provavelmente
desejando atravessá-la para vir me obrigar a vestir a roupa.
— Eu não gosto… daquilo. Você me obrigou a comprar, mas eu nunca
concordei em vestí-lo.
— Pois está mais do que na hora.
Suspirei, sabendo que não teria como contrariar Abigail Starkey.
Fui até meu armário de roupas e procurei na pilha mais escondida, onde
ficavam as roupas que eu não usava, mas que estavam lá por algum motivo.
Tirei um pedaço de tecido preto e o estendi na frente da câmera do
computador.
Abigail deu um gritinho quando viu o vestido.
— Você vai ficar tão linda.
— Eu vou ficar ridícula.
— Deixa de ser boba e veste ele logo.
Soltando um longo suspiro, fui para um canto do quarto onde a câmera
não pegava e troquei de roupa.
Me olhei no espelho antes de mostrar o resultado para Abigail.
O vestido era lindo. Tinha mangas compridas e a barra ia até um pouco
acima dos joelhos, o tecido era inteiramente preto e se ajustava ao corpo. Eu
me sentia tão ridícula quanto no dia em que o vesti no provador da loja.
— Eu quero ver! — Abigail gritou na videochamada.
Voltei para a frente do computador.
Minha amiga fingiu ter um ataque cardíaco e caiu para trás na cama.
— Isso foi meio ofensivo considerando que eu realmente tenho problema
de coração — brinquei.
A garota deu risada e voltou a me encarar.
— Você está simplesmente maravilhosa. Aquele tal de Dick vai surtar
quando te ver.
— Ele vai rir de mim, isso sim.
— Daisy Shields, você é a londrina mais gostosa que esse garoto já viu.
Ele vai se ajoelhar aos seus pés no segundo em que te ver nesse vestido.
Ela dizia aquilo porque era minha amiga, mas eu sabia que as coisas
eram diferentes na realidade. Eu seria apenas uma lembrança passageira,
uma garota doente apaixonada por The Beatles. Essa seria a minha posição
na vida dele.
— Está um grau lá fora, eu vou congelar.
— É só colocar uma meia-calça e um casaco. Você ainda tem aquela cor
mais grossa, não? A que usou no aniversário da sua mãe.
Se eu ainda a tivesse, provavelmente estaria soterrada na gaveta de
meias.
— Vou procurar.
Perdi alguns minutos até encontrar a maldita meia-calça. Ela era mais
grossa que uma normal, mas ficava bem disfarçada na perna. Vesti ela,
ajeitando embaixo do vestido, e peguei um casaco no armário para completar
o look.
— O que acha desse? — Mostrei um casaco vermelho felpudo que fazia
parecer que eu tinha uma ovelha colorida pendurada no cabide.
— Ah, eu adoro esse casaco. Veste aí para a gente ver como fica.
Fiz o que Abigail pediu e dei uma voltinha para ela me analisar.
— Tá perfeito, amiga!
Eu realmente esperava que ela estivesse falando a verdade, pois não
queria passar vergonha na frente de tanta gente desconhecida.
— Você tomou seus remédios? — minha amiga pediu, voltando a tornar
a voz em um tom sério.
Assenti.
— Minha mãe estaria me ligando nesse exato momento para me xingar
se eu não os tivesse tomado. Ela tem uma espécie de telecinese bizarra. Às
vezes penso que instalaram câmeras no meu apartamento sem eu saber.
Olhei ao meu redor, fingindo procurar por uma câmera.
— Ela só está preocupada com você morando sozinha.
Sentei na minha cama.
— Eu sei, e entendo ela. Mas estar aqui… eu precisava disso. Tenho tão
pouco tempo. Preciso compensar, preciso… viver.
Precisava fazer o que nunca tinha feito antes, essa era a verdade.
— Então vai lá e vive, garota. Sei que você está interessada no Dick, dá
para ver na sua cara, e olha que a resolução de imagem nem é tão boa. Dá
uma chance para esse garoto, você se privou tanto desde que descobriu a
doença. Está na hora de ir atrás do que você quer.
— Sim, você está certa.
— Eu sempre estou certa, querida — ela se gabou.
A tela do meu celular brilhou, revelando a mensagem de uma pessoa
bem conhecida.
— Amiga, tenho que ir. Dick vai me dar uma carona e ele já está aqui na
frente.
Abigail mandou um beijo para a câmera.
— Amanhã quero saber de tudo!
— Tá bom, tá bom — falei rindo e desliguei a chamada.
Peguei minha bolsa, guardando o celular dentro, e dei uma última olhada
no espelho, ajeitando minha franja para os lados.
Saí rápido de casa para não deixar Dick lá fora esperando.
O encontrei escorado no carro, mexendo no celular.
— Oi — chamei sua atenção.
Dick levantou o olhar para mim e então paralisou.
Eu não sabia dizer se aquela reação era boa ou ruim, só que me
deixou com vontade de sair correndo mesmo sabendo que eu ficaria com
falta de ar antes de chegar na esquina.
— Você está realmente linda — disse por fim.
Eu achei que já tivesse atingido o nível mais alto de vermelhidão que
meu rosto poderia aparentar, mas aquele ultrapassou todos os limites. Me
tornei uma pimenta por inteiro, e meu coração disparou como quando era
saudável, o que talvez pudesse vir a ser um problema mais tarde.
— É… obrigada — murmurei, colocando uma mecha de cabelo atrás
da orelha.
Dick sorriu, aquele sorriso que poderia desestabilizar qualquer um.
Aquele sorriso que me fazia querer beijá-lo sem parar.
— Vamos?
Assenti, um sorriso bobo tomando meus lábios.
Entramos no carro e Dick dirigiu por alguns minutos. Ele explicou
que o garoto morava em uma parte mais rica de Liverpool. Eu
definitivamente nunca tinha ido para aqueles lados antes.
Observei as casas pelo vidro do carro. Não chegavam a ser mansões,
mas definitivamente custavam mais do que meu rim no mercado negro,
talvez os dois.
Dick estacionou na frente de um belo portão, que tinha o metal todo
retorcido em arabescos, o que combinava perfeitamente com o muro alto e
branco que protegia a casa.
Saímos do carro e ele tocou uma campainha que eu nem tinha
percebido na parede.
Não demorou muito para que o portão abrisse e nós finalmente
entrássemos.
Contornamos a casa, que era maior do que eu esperava, e
caminhamos por uma estrada de pedra até os fundos, onde percebi ter uma
garagem realmente grande, com dois portões, sendo que um deles estava
aberto. Foi para lá que Dick me levou.
Algum rock antigo tomava conta do ambiente enquanto as pessoas
conversavam e bebiam em seus copos de plástico. Tinha muita gente lá,
principalmente garotas.
— Isso parece mais um show do que um ensaio — sussurrei.
Dick apenas deu uma risada.
— As pessoas gostam de nos ver ensaiar. — Deu de ombros.
— Você quer dizer as garotas.
Ele me olhou com as sobrancelhas arqueadas.
— Ciúmes, loirinha?
Foi a minha vez de rir.
— Até parece.
Dick manteve um sorriso convencido no rosto enquanto desviávamos
das pessoas para chegar nos fundos da garagem, onde os instrumentos já
estavam instalados.
Vi Thomas na sua cadeira de rodas conversando com um garoto. Ele
sorriu quando nos viu e veio na nossa direção empurrando as rodas com as
mãos.
— Eu estava quase achando que não viriam.
— Eu precisava buscar a londrina aqui para que ela não se perdesse
no caminho — disse apontando com a cabeça para mim.
Dei um tapa em seu braço.
— Bom te ver de novo, Thomas — falei, sorrindo.
— Você também, Daisy.
Eu pretendia continuar a conversa, puxar assunto sobre o ensaio, mas
um garoto chegou por trás de Dick e envolveu seus ombros com o braço.
— Dick Norris, eu tenho uma gata para te apresentar — disse ele.
Thomas limpou a garganta, e então o intruso olhou para ele, e depois
para mim.
— Quem é ela?
O garoto era mais alto que Dick e tinha a pele em um tom alaranjado
escuro, seu cabelo era preto e bagunçado. Ele vestia roupas amarrotadas,
como se tivesse recém acordado.
— Essa é a Daisy — Thomas me apresentou. — Ela veio com o
Dick.
— Ah. — Ele deu um sorriso culpado. — A gente conversa outra
hora, campeão. — disse dando dois tapinhas no peito de Dick e saiu de
perto.
— Aquele idiota é o Russel — Thomas explicou —, nosso baterista.
— É ele o dono dessa casa?
Dick assentiu.
— E adora se gabar por isso.
Dei mais uma olhada no garoto, que agora estava do outro lado da
garagem conversando com duas mulheres. A primeira impressão que ele
deixou não foi das melhores, mas decidi não julgá-lo por isso.
— Vou cumprimentar alguns conhecidos.
Assenti e deixei que Dick saísse da rodinha também, restando apenas
Thomas e eu.
— Legal Dick ter te trazido.
Olhei para Thomas, não esperando que fôssemos conversar sobre o
meu interesse amoroso, mesmo que eu guardasse essa informação apenas
para mim.
— Ele me convidou ontem — comentei. — Achei que seria legal
assisti-los mais uma vez. Eu adorei o show que fizeram no Cavern Club.
— Bom saber que gostou. — Ele sorriu. — Mas fiquei surpreso que
vocês dois mantiveram contato depois daquele dia.
Franzi o cenho.
— Por que diz isso?
Thomas deu de ombros.
— Ele é o tipo de cara que não fica com a mesma garota mais de uma
vez. Dick e Russell até disputavam para ver quem ficava com mais mulheres
em uma noite. Mas desde aquele dia, Dick só tem andado com você. Isso me
deixa aliviado, se quer mesmo saber. Ele passou por coisas demais e merece
alguém realmente bom.
Decidi deixar para escanteio minha curiosidade em saber mais sobre
a vida de Dick e apenas desfiz o mal entendido, pois definitivamente não
existia um futuro em que nós dois ficávamos juntos.
— Nós somos apenas amigos — garanti.
Thomas me olhou cético.
Se ele soubesse da minha doença, entenderia do que eu estava
falando.
— Você vai na festa depois? — resolvi mudar de assunto antes que
eu acabasse falando algo que estragasse o clima.
Thomas negou.
— Embora eu ache extremamente divertido atropelar os pés das
pessoas com minha cadeira, combinei de sair com minha namorada.
— Ela está aqui?
Ele apontou para uma garota sentada em um sofá mais na entrada da
garagem.
Ela era linda. Tinha a pele preta clara em um tom oliva quente e os
cabelos volumosos e castanho escuro, não conseguia ver a cor dos seus olhos
daquela distância, mas tinha certeza que eram claros.
Infelizmente, na minha rota em voltar o olhar para Thomas, acabei
me deparando com uma cena que sabia que uma hora ou outra iria acontecer.
Dick estava conversando com uma garota. Ele sorria enquanto ela deslizava
a mão por seu braço, pareciam estar em uma conversa animada, e íntima.
Desviei o olhar tão rápido quanto pude.
— Me apresenta ela depois? — Adotei um sorriso falso nos lábios,
eu não tinha a menor vontade de sorrir.
— Claro — ele disse contente.
Thomas olhou para além de mim, e eu me virei para ver o que
acontecia.
Um garoto de cabelos escuros e compridos até um pouco acima dos
ombros estava conectando o teclado na tomada. Ele tinha uma expressão
séria, de poucos amigos.
— Aquele é o Alex. Se ele começou a arrumar os instrumentos, é
porque já vamos começar.
Assenti.
— Vou arrumar um lugar para sentar. A gente se fala depois.
Me despedi momentaneamente de Thomas e fui para um sofá que
tinha ali perto, um pouco mais para a lateral do palco improvisado, pois na
frente tinha um amplo espaço aberto para as pessoas ficarem de pé e
curtirem a música.
Thomas estava certo quando disse que logo o ensaio iria começar.
Dick e Russell também foram em direção aos seus instrumentos, e não levou
muitos minutos para que estivessem a postos.
— O que acham de começarmos com “Bloody Valentine”?
As pessoas gritaram animadas, loucas para ouvir a banda começar a
tocar.
As primeiras notas da música do Machine Gun Kelly tomaram conta
da garagem. O alvoroço do público aumentou quando Dick começou a
cantar.
Eu adorava o Machine Gun, mas tinha que admitir que a música
ficava melhor na voz de Dick. Ele conseguia transmitir sensações de um
jeito sem igual, fazendo com que sua voz tocasse as pessoas de várias
formas. Era inebriante.
Bati palmas com as pessoas ao final da música, enquanto ele repetia
uma sílaba no mesmo ritmo.
— Vocês são demais — ele murmurou no microfone antes de tocar a
última nota na guitarra.
Enquanto batíamos palmas, Dick bebeu um gole de água da sua
garrafa, se preparando para a próxima música.
Eles tocaram mais três músicas, uma melhor que a outra. Naquela
noite não teve Beatles, mas o ensaio não deixou de ser incrível por causa
disso. A The Black Roulettes tinha tudo para se tornar famosa um dia, eles
eram demais.
Dick veio na minha direção assim que o ensaio terminou e sentou ao
meu lado no sofá.
— Já temos um item para riscar da sua lista.
— Um item que você escolheu — o lembrei.
Ele empurrou meu ombro com o seu, fazendo com que meu corpo
tombasse para o lado.
Soltei uma risada e apontei para Thomas, que estava com a
namorada.
— Ela é bem bonita.
— Não diga isso para Thomas, ele vai tomar duas horas do seu
tempo para dizer como a namorada é incrível.
Eu não sabia o porquê, mas tinha a impressão de que isso realmente
poderia acontecer. Pelo jeito que ele olhava para ela, quase dava para ouvi-lo
latir.
— Thomas e Samantha tiveram um início bem conturbado — contou
—, mas agora são o casal mais meloso que já vi na minha vida.
Observei o casal por alguns segundos. Eles pareciam perfeitos um
para o outro, sorrindo como duas pessoas que realmente se amavam. Aquele
era o tipo de relacionamento que eu sempre sonhei em ter e, mesmo sabendo
que agora isso nunca aconteceria, esse sonho ainda não tinha se apagado por
completo.
— Fico feliz pelo Thomas, de verdade.
— Eu também. Sei que você deve estar curiosa para saber como ele
acabou em uma cadeira de rodas.
Meu rosto corou na mesma hora, entregando minha curiosidade.
— As pessoas costumam ter medo de falar com ele sobre isso por
achar que é um assunto sensível, mas Thomas sempre foi aberto sobre sua
condição. Ele teve uma encefalite quando éramos crianças e perdeu o
movimento e sensibilidade completa de uma das pernas, mas isso nunca o
abalou. É a pessoa mais alegre que conheço e eu, bem… eu admiro isso nele,
essa positividade toda.
Do pouco que consegui conhecer Thomas, vi exatamente o que Dick
estava me descrevendo. Ele emanava luz. As pessoas deviam ser mais como
ele, foi o que constatei.
— Dick — uma voz feminina o chamou.
Era a mesma garota que estava com ele antes.
Ela se aproximou e apoiou a mão no ombro dele.
— Você vai no Avenue, não vai? — A garota fez um biquinho pidão.
Dick concordou com a cabeça.
— Esse é o plano.
O sorriso contente dela me deu calafrios.
— Então te vejo lá. Eu e as garotas já estamos indo.
— Sim, a gente se encontra lá.
Ela deu um leve aperto no ombro de Dick e se afastou, indo para o
grupo de pessoas que deixava a garagem.
— Tem certeza que quer que eu vá nessa festa? Não quero te
atrapalhar.
Dick revirou os olhos.
— Você nunca atrapalha, loirinha. — Ele se levantou e puxou minha
mão. — Vem, vamos também. A entrada antes das onze tem desconto.
— Que pão duro — brinquei.
— Não finja que não é igual — argumentou.
Nós dois rimos.
Eu definitivamente era igual.
Capítulo 6
Dick me levou até meu apartamento para que eu pudesse trocar de roupa.
Minha vizinha foi muito atenciosa em abrir o portão e me dar a chave
reserva que eu deixava com ela para situações como aquela.
Troquei rápido de roupa e logo estava de volta dentro do carro.
— Onde é?
— Naquele hospital do centro.
— Ah — foi o único som que saiu da sua boca.
Ele dirigiu o resto do caminho em silêncio, com uma expressão séria no
rosto.
Não entendi a mudança repentina de humor, mas decidi não questioná-lo.
A última noite tinha sido… intensa, mas eu temia que as coisas entre nós
fossem ficar estranhar a partir daquele momento. Talvez tenha sido um erro
e eu percebi tarde demais.
O carro parou na frente do hospital, exatamente como pedi.
Dick continuou a olhar para frente.
— Obrigada pela carona — falei já tirando meu cinto.
Ele deu um sorriso de lado e finalmente olhou para mim.
— Sem problemas — murmurou, a voz mais fraca do que o normal.
— Está tudo bem, certo? Digo… entre nós.
Não consegui evitar soar insegura, principalmente vendo ele agir daquela
forma.
Dick inclinou a cabeça, seu olhar sondando meu rosto.
— Por que diz isso?
Olhei para minhas mãos, não conseguindo sustentar seu olhar.
— Não sei, você está estranho. Achei que pudesse ter se arrependido de
ontem.
Senti suas mãos envolverem meu rosto, exatamente como na noite
anterior. Fui obrigada a encará-lo.
— Nunca mais repita isso — impôs. — Eu não me arrependo de um
segundo sequer que passei com você desde que te conheci. Se estou agindo
estranho, pode ter certeza que a culpa não é sua. É só que… não gosto de
hospitais.
Pisquei algumas vezes, desnorteada.
— Daisy, é melhor você ir. Vai perder sua consulta.
Assenti.
— Sim, você está certo.
Me virei para abrir a porta, mas Dick segurou meu braço.
— O que foi?
Ele se inclinou, me dando um selinho demorado.
— A gente conversa mais tarde, tudo bem?
Novamente só consegui movimentar a cabeça em concordância.
Saí do carro de Dick e me despedi com um aceno, observando
enquanto ele arrancava para longe.
Dick não gostava de hospitais, e eu já tinha uma boa ideia de o
porquê, mas mesmo assim ele me trouxe até um. Talvez ele realmente não
fosse tão indiferente a mim quanto eu imaginava, ainda mais depois do que
disse sobre não se arrepender de nada do que fizemos. Eu também não me
arrependia.
Respirei fundo, tentando colocar os pensamentos em ordem, e entrei
no hospital.
Minha consulta foi rápida, apenas um check-up para ver como estava
o meu coração. O resultado era sempre o mesmo, eu precisava de um
transplante urgente. Ouvir isso nem me desanimava mais, já tinha aprendido
a conviver com o fato de que talvez eu não fosse durar muito mais tempo.
Decidi voltar para casa a pé. Eu não morava longe e Dick realmente
não precisava ter me dado carona, mas aceitei de bom grado.
No caminho, vi que as lojas já estavam prontas para o Natal.
Guirlandas e sinos dourados enfeitavam fachadas, com as clássicas
poinsétias vermelhas completando o toque natalino. Também tinham papais
noéis de tecido nas mais diversas poses, e bonecos de neve que sorriam
contentes por finalmente chegar a época do ano em que as pessoas podiam
fazê-los de verdade.
Uma loja de roupas me chamou a atenção. Nela estavam expostos
suéteres natalinos, misturando o verde e o vermelho com estampas de flocos
de neve e renas. Era o lugar perfeito para eu riscar mais um item da lista,
comprar suéteres natalinos cafonas.
Entrei na loja, sendo delatada por um sino preso à porta. Uma mulher
de cabelos já grisalhos veio na minha direção com um sorriso grande no
rosto.
— Bom dia, querida.
— Bom dia — a cumprimentei de volta. — Vi aqueles suéteres nos
manequins e queria saber se você teria outros modelos.
— Claro, vou te mostrar o que temos.
A mulher pegou uma pilha de suéteres dobrados em um dos armários
expositivos e estendeu um por um em cima de uma mesa de vidro bem ao
centro da loja.
— Procura alguma estampa em especial?
— Na verdade, queria dois que combinassem. Vou dar um de
presente.
Ela me lançou um olhar confidente.
— Para o namorado?
— Ah, não, não — tratei de negar —, é só um amigo.
— Hum, sei. — Ela não parecia muito convencida da minha resposta.
— Se me disser a numeração que ele veste, podemos achar algo que
combine com algum desses aqui.
Eu não tinha certeza do tamanho, mas poderia dar um bom palpite
pela memória que eu tinha de seu corpo.
A atendente foi me mostrando várias opções, até que por fim acabei
escolhendo dois suéteres verde escuro com detalhes em vermelho e uma
faixa de renas bordadas na altura do peito. Era cafona, e eu estava louca para
ver Dick vestindo.
Paguei pelas peças e agradeci a mulher, saindo da loja com minha
sacola pendurada no braço.
Durante meu trajeto de volta para casa, senti meu celular vibrar no
bolso do casaco. Quando o peguei para ver quem estava me ligando,
descobri que era minha mãe. Atendi na mesma hora, pois sabia que ela
surtaria se eu não respondesse.
— Oi, mãe.
— Querida, onde você está? Já foi na consulta com o cardiologista?
Vi na agenda que era hoje de manhã.
Era claro que essa seria a primeira pergunta dela.
— Acabei de sair de lá — garanti. — Estou voltando para casa,
minha chefe me liberou o resto da manhã.
— Ah, que bom. Aproveite para descansar bastante. Mas e então, o
que ele disse?
Suspirei.
— O de sempre. As proteínas estão impedindo o meu coração de
bater direito e logo logo ele vai parar de funcionar.
Ouvi um fungado do outro lado da linha.
— Vou tentar falar com seu médico de Londres de novo, ver se ele
consegue fazer alguma coisa para adiantar seu nome na lista.
Aquilo era muito improvável de acontecer, mas eu não tiraria as
esperanças da minha mãe.
— Certo, mãe. Tem mais alguma coisa que queira falar comigo?
— Já comprou sua passagem de ônibus?
— Sim, chego dia vinte e três.
Eu tinha prometido que voltaria para casa no Natal. Era a minha
época do ano preferida, e nada me faria perder a oportunidade de passá-lo
com minha família. Aquele seria meu último Natal, ele tinha que ser
especial.
— Ótimo. Se precisar de qualquer coisa me ligue, está bem? Você
sabe que eu só quero o seu bem.
— Eu sei, mãe. Você é a melhor.
— Um beijo, querida.
— Beijos — falei antes de desligar.
Eu amava minha mãe, mas desde que fui diagnosticada com
Amiloidose Cardíaca, ela passou a ter essa obsessão em me ver curada,
mesmo sabendo que as chances eram mínimas. Era cansativo ter que lidar
com ela.
Assim que voltei para casa, aproveitei para dar uma geral no
apartamento, que estava precisando de uma boa faxina. Descansei o restante
do tempo até a hora do almoço, quando preparei alguma coisa rapidinha e
logo depois fui para o trabalho.
O dia foi tranquilo, com um pouco mais de movimento por causa do
Natal se aproximando. As pessoas tinham a mania de comprar presentes de
última hora, o que acabava exigindo demais dos lojistas, que precisavam
suprir as necessidades dos clientes em encontrar o presente perfeito quando
praticamente tudo que era bom já estava esgotado. Para a minha sorte,
trabalhar em uma livraria não demandava tanto quanto em uma loja de
brinquedos, por exemplo. Sempre teríamos livros sobrando, já que eram
poucas as pessoas que gostavam de ganhar algo assim de presente.
No final do dia, decidi dar uma passada na Lady Madonna para
tomar um chocolate quente, que era delicioso demais para eu nunca mais
provar de novo.
Martha me recebeu com um grande sorriso quando me viu entrar na
cafeteria.
— Daisy, que bom vê-la mais uma vez. Dick não está com você?
Neguei.
— Vim sozinha dessa vez. Sonhei com seu chocolate quente e decidi
que precisava vir tomá-lo mais uma vez.
A mulher riu, enganchando o braço no meu e me guiando até a mesa
do outro dia.
— É a nossa especialidade. Dick vinha todos os dias com a mãe
apenas para tomá-lo, e ainda comia uma fornada de biscoitos de manteiga.
Eu conseguia visualizar perfeitamente o pequeno Dick bebendo uma
grande xícara de chocolate quente, com farelos de biscoito por toda a roupa.
— Ele me contou que vinha aqui com a mãe. Me parece que era o
lugar preferido deles.
— Com certeza. Lisandra era minha sócia.
Arqueei as sobrancelhas, surpresa com a revelação.
— Eu não sabia — admiti. Dick tinha omitido essa parte quando
viemos aqui.
Martha apontou para as fotos penduradas na parede.
— Ela tinha uma câmera fotográfica velha e adorava tirar fotos das
pessoas. Praticamente todas são de sua autoria.
Analisei as fotografias.
A maioria parecia ter sido tirada na cafeteria, e até consegui
reconhecer a Martha quando mais jovem. Tinha uma com dois homens
apertando as mãos, e outra com uma mulher de cabelos escuros e lisos, que
sorria apaixonada para a câmera.
— Essa é ela — Martha disse, apontando para a última foto que
analisei.
A mãe de Dick era linda. Ele não era muito parecido com ela, talvez
o sorriso e o brilho nos olhos. Demonstrava ser uma mulher cheia de vida, o
que era irônico de se pensar considerando como foi o seu fim.
— Dick era muito apegado à mãe. Ela morreu quando ele tinha
apenas doze anos.
Levei uma mão à boca.
Dick perdeu a mãe muito cedo, era de se entender por que ele não
gostava de falar do assunto. Talvez nunca tivesse realmente superado a
morte dela.
— Deve ter sido um baque e tanto.
Martha assentiu.
— Dick nunca mais foi o mesmo. Se afastou do pai e quase repetiu
de ano no colégio por faltas. Nós ficamos muito preocupados na época, mas
depois ele pareceu mostrar interesse em tocar guitarra, formou até uma
banda, e isso ajudou um pouco, mas ainda é perceptível que a morte da
Lisandra afeta muito ele.
— Eu imagino. É difícil se recuperar de algo tão traumático.
Eu bem sabia como era lidar com uma doença, mesmo que estivesse
mais na pele da pessoa que vai morrer do que da que vai ficar para trás.
— Eu me preocupo tanto com esse garoto. — Martha suspirou. —
Ele é como um filho para mim, e não gosto de vê-lo afastado da família, das
pessoas que o amam. Fiquei surpresa quando apareceu aqui com você, fazia
muito tempo que eu não o via sorrir genuinamente.
Martha provavelmente estava exagerando, pois já vi várias vezes
Dick sorrindo, e a maioria delas não me envolvia. Ela e Thomas por algum
motivo enfiaram na cabeça que eu era a solução na vida de Dick, quando na
verdade era o contrário. Era ele quem estava me ajudando.
— Vou parar de tagarelar antes que você decida fugir — Martha
brincou, voltando ao seu tom alegre habitual. — Já volto com seu chocolate
quente.
— Certo, obrigada.
Aproveitei para dar uma olhada em meu celular enquanto esperava
por meu pedido. Tinha uma mensagem não lida de Dick.
"Loirinha, vou ter que ficar até mais tarde no trabalho. Te ligo à
noite para planejarmos o próximo item que vamos cumprir da lista”.
Respondi dizendo que não tinha problema e que à noite
conversávamos.
A minha próxima hora consistiu em me deliciar com um saboroso
chocolate quente e conversar com Martha sobre Londres, que ela disse já ter
visitado algumas vezes.
Já estava escuro do lado de fora quando voltei para casa.
Tomei um longo e quentinho banho, perdendo mais tempo do que o
necessário apenas porque eu podia. Vesti o pijama mais confortável que
encontrei e me joguei no sofá da sala, ligando a televisão e procurando por
algo interessante para assistir.
Eu já estava no segundo episódio de uma série quando meu celular
tocou.
Peguei o aparelho de cima da mesa de centro e o levei ao ouvido sem
olhar na tela o nome da pessoa que estava ligando.
— Alô?
— Vai dizer que não salvou meu número? Estou desapontado.
— Ah. Oi, Dick.
Era claro que seria Dick que estaria me ligando, ele tinha avisado que
faria isso.
— Como foi a consulta?
Revirei os olhos, mesmo sabendo que ele não tinha como ver.
— É sério que me ligou para perguntar disso?
— Na verdade não, eu só queria ouvir sua voz mesmo — disse sem
escrúpulos.
— Engraçadinho. Minha expectativa de vida não diminuiu, se é isso
que quer saber.
— Ótimo, pois ainda temos uma lista para completar. O que me leva
ao tópico principal dessa ligação. Vou te levar no Casbah Club amanhã.
Topa?
— Claro, a que horas?
— Pensei em você ir no meu trabalho depois que sair do seu. Não vai
demorar muito, e depois disso vamos direto para o bar.
— Por mim pode ser.
— Então está combinado.
Eu estava louca para conhecer o Casbah Club. Foi o primeiro lugar
que os Beatles tocaram, mas a banda tinha outro nome na época. Era um dos
itens da lista de coisas para fazer antes de morrer. Embora ele não
funcionasse mais como um bar, ainda tinha seu valor e se tornou uma
espécie de museu, expondo um pouco da história dos integrantes da banda
quando jovens.
— Eu fui no Lady Madonna hoje — acabei comentando.
— Sério?
— Sim, conversei um pouco com a Martha. Ela me contou que sua
mãe era sócia da cafeteria.
A linha ficou silenciosa por alguns segundos. Cheguei até a pensar
que a ligação pudesse ter caído, mas Dick voltou a me responder.
— Sim, ela adorava aquele lugar.
— Isso me fez perceber que eu sei muito pouco sobre você.
Dick soltou o indício de uma risada no outro lado da linha.
— E o que quer saber sobre mim, Daisy Shields?
— Ah, não sei. Suas bandas preferidas? Quando começou a gostar de
Beatles? Se já teve algum animal de estimação com um nome bizarro. Esse
tipo de informação que é super relevante de saber sobre outra pessoa.
— Bem, minhas bandas preferidas são The Beatles, obviamente, Pink
Floyd, Blondie e The Who. Comecei a ouvir Beatles por causa da minha
mãe, e não, nunca tive um animal de estimação com um nome bizarro, a não
ser que você considere chamar um hamster de Lennon como algo bizarro.
— Blondie? — Dei uma risada. — Pensei que você era mais da vibe
Rolling Stones e Guns.
— Também gosto muito deles, mas a Deborah Harry foi minha
primeira crush. É difícil esquecer o videoclipe de “Heart Of Glass”.
— É verdade que ela era uma gata naquela época.
— Mas e você?
Era difícil escolher minhas bandas favoritas, pois eu gostava de
muitas.
— Acho que as que eu mais gosto são Green Day, The Kinks e The
Runaways, além de Beatles, é claro. Eu me apaixonei por Beatles quando
tinha quatorze anos, vi uma apresentação do coral do colégio em que
cantaram “Let It Be” e foi amor à primeira vista. Quanto ao animal de
estimação, eu na verdade nunca tive um, então não posso responder essa
pergunta.
— Deixa eu adivinhar, você passou a adolescência escutando
“Cherry Bomb”?
Soltei uma exclamação surpresa.
— Como você sabe?
Dick riu.
— Você tem cara de ser aquelas adolescentes que ouviam artistas
revolucionárias feministas, como Bikini Kill e Joan Jett.
— Você me pegou — admiti.
Toda adolescente que curtia rock teve sua fase punk rebelde, a minha
foi aos quinze anos.
Nós conversamos por mais algum tempo, falando sobre nossas
músicas preferidas, sobre como odiávamos o frio, mas queríamos muito que
nevasse naquele inverno. Dick contou que tinha uma irmã mais nova, mas
que acabava não a vendo muito. Eu contei que era filha única, mas cresci
com Abigail, que considerava praticamente como uma irmã.
Eu só percebi que já era tarde da noite quando senti meus olhos
começarem a pesar.
Dei meu primeiro bocejo quando Dick estava contando sobre uma
viagem que fez com os amigos da banda.
— Está com sono, loirinha?
— Um pouco — admiti.
— Vou deixá-la dormir. Não se esqueça do nosso encontro amanhã.
— Por que você insiste em chamar nossos passeios de encontros?
Desde a primeira vez, ele sempre dizia que íamos a um encontro.
— O que são para você se não encontros?
— Dois amigos curtindo a noite?
Da última vez, falei que éramos estranhos. Agora, já não poderia
mais nos considerar assim. Dick era muito mais do que um mero estranho.
— Amigos não se beijam, e nem tr…
— Tá bom! — o cortei. — Já entendi. É um encontro, nós vamos a
um encontro.
— Te vejo lá, loirinha.
Me despedi e desliguei a chamada antes que ele pudesse falar mais
alguma bobagem.
Dick Norris era a minha perdição.
Capítulo 8
Aquele era o grande dia, pelo menos foi o que Dick disse na mensagem
que me mandou às oito da manhã.
Sim, era o dia em que eu finalmente tiraria uma foto com o Papai Noel
que estava em uma exposição no centro da cidade.
Combinei com Dick de nos encontrarmos lá na hora do almoço.
Teríamos uma hora, mas era mais do que suficiente para fazermos o que
pretendíamos.
O parque em que estava tendo a exposição de Natal estava lotado,
com crianças correndo e pais desesperados atrás delas. Um coral cantava
músicas natalinas, fazendo com que só faltasse nevar para completar o
clima. Eu ainda tinha fé que isso aconteceria enquanto eu estivesse em
Liverpool.
Encontrei Dick sentado no banco que usamos como ponto de
referência para nos achar, ele vestia o suéter cafona que comprei no outro
dia, com uma jaqueta jeans por cima.
Cheguei por trás dele e tapei seus olhos com as mãos.
Dick deu um sobressalto, mas não tentou afastar meus braços.
— Eu sei que é você, loirinha.
Suspirei frustrada.
— Como descobriu? — perguntei dando a volta no banco e me
sentando ao seu lado.
— Conheço essas suas mãozinhas como ninguém, já que elas
tocaram boa parte do meu corpo.
Ele pegou uma das minhas mãos, e eu tentei me soltar, sem sucesso.
— Você consegue passar um dia inteiro sem me lembrar do que
fizemos?
— Hum… — ele fingiu pensar. — Não, definitivamente não. Preciso
lembrá-la todos os dias da melhor transa da sua vida.
Arqueei as sobrancelhas.
— Quem disse que foi a melhor?
— Dúvido que tenha gemido o nome de outro cara como gemeu o
meu.
Meu rosto tomou todas as colorações de vermelho possíveis de uma
só vez.
— Você é insuportável, sabia?
Dick piscou para mim e sorriu.
— Não finja que não gosta quando sou descarado assim. Eu te
conheço mais do que imagina, Daisy Shields.
Revirei os olhos.
Era claro que eu gostava. Quem não iria gostar de alguém como Dick
Norris dando em cima de você?
— É melhor a gente ir na fila, porque o Papai Noel está disputado
hoje. — Apontei para o amontoado de crianças que esperavam ansiosas para
sentar no colo do Papai Noel e fazer um pedido, torcendo para que
ganhassem de Natal algum brinquedo novo, que no fim seria comprado pelos
pais.
Dick suspirou alto, claramente relutante em realizar esse item da
minha lista.
— A gente precisa mesmo fazer isso?
Assenti.
Peguei a lista do bolso e balancei na sua frente.
— Você prometeu cumprir todos os meus desejos.
Ele murmurou algo incompreensível e levantou em um rompante.
— Vamos lá então — disse a contra gosto.
Sorri contente e o puxei pelo braço até a pequena fila improvisada
em um dos cantos do estande.
A decoração estava muito linda, com renas infláveis e pinheiros
cobertos de neve falsa nas laterais, e um grande poltrona vermelha onde o
Papai Noel atendia as crianças. Duas pessoas vestidas de elfo organizavam a
sessão de fotos.
Enquanto esperávamos, Dick tirou a jaqueta e me obrigou a vesti-la
com o pretexto de que estava muito frio para eu ficar apenas de suéter. Não
reclamei, pois realmente sentia minhas mãos congelando. As abriguei nos
bolsos do casaco.
Levou cerca de vinte minutos para que fosse a nossa vez de ter uma
sessão particular com o dono do Pólo Norte.
O tal Papai Noel sorriu quando me aproximei.
— Os jovenzinhos vieram fazer um pedido de Natal?
Ele realmente tinha uma certa idade, e a barba branca e comprida era
real, diferente dos muitos papais noéis por aí que usavam uma sintética presa
ao rosto. Fiquei até com pena do pobre velhinho quando lembrei o que
pretendíamos fazer.
— Na verdade, queremos apenas tirar uma foto com o senhor —
expliquei.
— Pois bem, podem se aproximar.
Dick entregou o celular para um dos elfos e nós nos ajeitamos um de
cada lado da cadeira.
— Sorriam!
Nossos sorrisos foram largos, como duas crianças contentes e
secretamente prontas para aprontar.
O elfo devolveu o celular para Dick, que foi a deixa para nos
encararmos e finalmente colocarmos nosso plano em ação.
— Corre — ele disse antes de tirar a touca da cabeça do Papai Noel e
disparar para longe.
Eu corri atrás dele, que no meio do caminho se virou para segurar
minha mão.
Nós corremos poucos metros, mas meus pulmões já protestavam por
sossego.
— Dick — o chamei —, para.
O garoto não ouviu de início, me obrigando a repetir a frase.
Minhas pernas já não aguentavam mais e eu sentia que iria desmaiar
se não parasse de fazer tanto esforço.
Ele desacelerou o passo e se virou para mim.
Praticamente caí em seus braços.
— Me desculpe, eu esqueci que você não conseguia correr tanto.
Ergui a mão tentando sinalizar que estava tudo bem.
A culpa não era dele, mas sim do meu maldito coração com os dias
contados.
Dick me ajudou a chegar até o banco mais próximo, onde tirei seu
casaco e me sentei, esticando a cabeça para trás para puxar o máximo de ar
que conseguia para dentro dos pulmões e normalizar minha respiração.
Mantive meus olhos fechados durante todo o processo.
— Sinto muito, mesmo — ele voltou a se desculpar.
Quando eu já estava melhor, apenas com um leve formigamento nos
braços e uma dorzinha nas costas, abri os olhos e o encarei.
— Está tudo bem, sério. Eu só precisava descansar um pouco. Tenho
estado mais cansada nesses últimos dias, não é culpa sua.
Ele balançou a cabeça.
— Vou tomar mais cuidado. Não quero tirar dois meses da sua
expectativa de vida.
Consegui soltar uma fraca risada.
Eu adorava o fato de sermos tão próximos a ponto de ele achar
confortável fazer piadas com a minha possível morte precoce. Era o tipo de
coisa que eu queria ouvir, e não como era triste que eu morreria jovem. As
pessoas achavam que eu merecia a pena delas, sempre se lamentando pela
minha doença e me desejando forças para encará-la, quando o que eu mais
queria era uma descontração, um motivo para rir. Dick sabia disso, e estava
sendo meu melhor remédio.
— Talvez eu tenha perdido uma semana — brinquei — Você vai
conseguir viver sabendo que adiantou a minha morte?
— Será para sempre um fardo na minha vida — seu tom de voz foi
um pouco sério demais para quem a princípio deveria estar entrando na
brincadeira.
— Que tal você me pagar um chocolate quente em troca? — sugeri,
tentando desviar do assunto.
Dava para notar que Dick não lidava bem com a morte,
principalmente por ter perdido a mãe tão novo. Ele brincava comigo, mas
não a ponto de rir de todas as piadas que eu fazia. Talvez eu estivesse
forçando demais a barra e o deixando desconfortável.
— Isso eu posso fazer.
Devolvi sua jaqueta e ele se levantou, a vestindo antes de ir até uma
tenda do outro lado do parque, que estava vendendo café e chocolate quente.
Não tinha muita fila, mas Dick levaria alguns minutos para voltar.
Olhei ao meu redor, aproveitando para observar as famílias que
estavam curtindo os dias que antecediam o Natal. A maioria carregava
sacolas coloridas, provavelmente cheias de presentes que iriam parar
embaixo de uma árvore bem decorada. Eu acabei não montando uma no meu
apartamento, pois voltaria para Londres dia vinte e três, mas nos anos
anteriores ajudei minha mãe a montar a nossa lá em casa. Era um dos meus
passatempos natalinos preferidos.
Suspirei.
Aquele seria meu último Natal.
Pisquei algumas vezes, afastando uma lágrima que tentava se formar
no canto do meu olho. Esfreguei a região com uma das mãos e quando a
afastei, vi um pontinho branco se chocar contra ela e sumir.
Ergui a cabeça e encarei o céu. Não era possível.
Devagar, mais pontinhos brancos foram caindo, se chocando contra
minha roupa e derretendo no mesmo segundo.
Um largo sorriso se abriu no meu rosto.
Estava nevando.
Capítulo 10
Dick
Tive que esperar poucos minutos na fila para conseguir comprar os
chocolates quentes.
Eu particularmente adorava a bebida, principalmente a feita pela tia
Martha. Ela tinha um toque especial que conseguia deixar tudo o que
preparava incrivelmente bom.
Fazia muito tempo que eu não voltava no Lady Madonna, mas por algum
motivo quis que Daisy conhecesse aquele lugar. Mostrar para ela onde passei
boa parte da minha infância foi, de certa forma, gratificante. Eu queria que
Daisy conhecesse aquela parte de mim, e não apenas o Dick Norris
guitarrista e apaixonado por Beatles.
The Beatles. Era engraçado pensar que foram eles que nos uniram.
Eu estava passando pela Liverpool Waterfront para distribuir panfletos
do nosso show no The Cavern Club quando me deparei com uma garota
loira encarando fixamente as estátuas dos quatro integrantes da banda. Ela
estava com a cabeça inclinada para o lado, como se analisasse a cena, talvez
se questionando o contexto da foto que usaram de modelo para as estátuas.
Aquele era o questionamento que eu me fazia toda vez que passava por lá,
por isso decidi me aproximar dela.
Foi a melhor decisão que tomei em toda minha vida.
Conhecer Daisy foi quase como um presente de Natal, embora eu nunca
o comemorasse, pelo menos não desde que perdi minha mãe. Mas Daisy
tinha esse poder de fazer com que eu quisesse passar meu tempo com ela e
realizar todos seus desejos, que incluíam vestir um suéter ridículo e tirar uma
foto com o Papai Noel, coisas as quais fiz de bom grado. Por ela, tudo era
por ela.
Peguei os dois copos de isopor e agradeci a moça que me atendeu.
Quando me virei para voltar, vi Daisy encarando o céu. Em poucos
segundos, a neve começou a cair.
O sorriso no rosto dela era impagável.
Daisy ergueu as mãos e deixou que os flocos de neve caíssem nelas. Seu
cabelo começou a ficar salpicado de pontinhos brancos, mas ela não parecia
se importar, absorta demais em ver a neve que tanto desejou que aparecesse.
Nós tínhamos completado mais um item da lista.
De repente, tudo pareceu ficar em câmera lenta.
Daisy engoliu em seco e fez uma careta de dor, levando uma das mãos ao
peito. Ela levantou em um supetão e deu alguns passos para frente,
cambaleante.
Derrubei os copos no chão e saí correndo no momento em que a vi
começar a cair.
Algumas pessoas já se amontoavam ao redor dela quando cheguei. Eu os
empurrei sem nem me importar, precisava chegar nela a qualquer custo.
Me agachei na frente dela e puxei sua cabeça para o meu colo. Ela estava
desmaiada, não tinha reação a estímulo algum.
— Alguém chama uma ambulância! — gritei a plenos pulmões. —
Daisy. — Balancei seus ombros, mas ela nem se mexeu.
Pânico começou a dominar o meu peito, a mesma sensação que tive
quando assisti minha mãe morrer na cama de hospital há treze anos.
Impotente, era o pior sentimento de todos.
Alguém se abaixou ao meu lado e pegou o pulso dela.
Eu estava pronto para virar e xingar seja lá quem estivesse a
incomodando, mas a mulher ergueu uma mão com calma.
— Eu sou médica.
Assenti, tranquilizado, e deixei que ela tocasse em Daisy.
— Ela tem pulso — explicou —, e não parece ter sinais de choque. Isso
é bom. Sabe me dizer se ela tem alguma doença?
— Sim, ela tem problema de coração. Não lembro direito o nome da
doença, mas era grave.
A mulher assentiu e levou uma mão à testa de Daisy.
— Sabe me dizer se ela estava sentindo alguma coisa antes de desmaiar?
Pisquei repetidas vezes, ainda atordoado. Onde estava a maldita
ambulância?
— Eu não sei! — exclamei alto, meu tom de voz começando a acelerar.
— Eu saí para comprar um chocolate quente e quando estava voltando a vi
desmaiar. Ela parecia estar com dor no peito.
Aquilo tudo era culpa minha. Eu não deveria tê-la forçado a correr. Daisy
estava daquele jeito por minha causa e de mais ninguém.
Eu era um completo idiota.
— Se acalme, tudo bem? A ambulância está vindo e nós vamos levá-la
direto para o hospital — a médica garantiu. — Com base no que você
contou, eu acredito que ela tenha tido um infarto, muito provavelmente por
insuficiência cardíaca.
— Ela vai ficar bem? — não consegui esconder o pânico em minha voz.
— Farei o possível para que sim.
Ela conferiu mais uma vez o pulso e a respiração de Daisy, concordando
satisfeita quando viu que ainda estavam presentes.
A neve ainda caía ao nosso redor, mas era a menor das preocupações
naquele momento.
Um barulho alto de sirene se sobressaiu sobre os murmúrios das pessoas
que estavam ao nosso redor.
A médica suspirou aliviada e se virou para mim.
— Qual o seu nome mesmo?
— Dick.
— Certo. Dick, eu preciso que você se afaste dela, tudo bem? Os
paramédicos vão precisar de espaço para trabalhar.
Olhei uma última vez para Daisy e assenti, voltando a deitar sua cabeça
no chão gelado.
— Nós vamos cuidar dela.
— Daisy — proferi. — O nome dela é Daisy.
Ela apoiou uma mão no ombro.
— Nós vamos cuidar da Daisy.
Duas pessoas vestidas com macacões azul escuro vieram correndo com
uma maca rígida amarela em mãos.
Eu levantei e me afastei, deixando que eles fizessem o seu trabalho.
Observei atento enquanto tomavam todas as medidas, repetindo o que a
médica fez e muito mais. Quando eles levantaram ela na maca, os segui até a
ambulância.
— Você é parente dela? — um dos paramédicos perguntou depois que
colocaram Daisy para dentro da ambulância.
— Um amigo. Ela não tem família em Liverpool.
— Pode me passar o nome completo dela?
— É Daisy Shields.
Ele anotou em uma prancheta que nem vi que estava segurando e me fez
mais algumas perguntas. Eu respondi tudo o que sabia, que não era muito.
— Estamos prontos para ir — a médica de antes gritou de dentro da
ambulância.
— Você vem junto? — o paramédico perguntou.
Olhei para a ambulância, ela era grande e imponente. Eu sabia qual seria
o seu destino final. O hospital.
Tentei dizer que sim, que eu queria acompanhá-los para saber como
Daisy ficaria, mas minha língua travou.
Não, eu não podia entrar no hospital. Não podia correr o risco de perder
outra pessoa importante para mim.
Foi por isso que balancei a cabeça de um lado para o outro e dei dois
passos para trás.
— Não posso.
O homem apenas assentiu e fechou a porta de trás do veículo, logo
entrando no lado do motorista e ligando a ambulância.
Eles foram embora com as sirenes tocando em alto som, e eu
observei Daisy ir sem a certeza de que ela ficaria bem.
Capítulo 11
Daisy
1 aNO DEPOIS
— Quem vai querer batata assada? Acabaram de sair do forno.
Caminhei com cuidado até a mesa de jantar e coloquei a forma sobre um
suporte de metal.
— Parece delicioso, Daisy.
— Não mais do que o peru que o senhor cozinhou, senhor Norris.
O pai de Dick me olhou divertido.
— Quantas vezes terei que pedir que me chame de Roger?
— Mais algumas.
Nós dois rimos.
Terminei de colocar os pratos na mesa com a ajuda de Roger, que se
mostrou também um cozinheiro de mão cheia. O peru estava com um cheiro
delicioso.
— Ei, vocês dois. Venham comer.
Dick e Ava nem prestaram atenção em mim.
Os dois estavam absortos em uma conversa sobre Beatles, discutindo
qual lado do disco que Dick segurava era melhor. Ele acha que era o “A”, ela
o “B”.
Ava era a irmã mais nova de Dick, tinha catorze anos e morava com o
pai. Esse ano ela e o irmão se reaproximaram depois que ele percebeu como
sua família era importante. Dick apresentou os Beatles à irmã, da mesma
forma que sua mãe apresentou à ele. Os dois agora passavam horas falando
sobre isso, o que chegava até a ser irritante.
— Dick — chamei mais uma vez.
Ele se virou para mim de onde estava sentado e balançou a mão no ar.
— Já vai, amor. Estou tentando convencer a Ava de que “Yesterday” não
precisava ser mais longa.
— Tem só dois minutos! — a garotinha protestou.
— E são os melhores dois minutos de todos! Se acrescentar mais,
estraga.
Revirei os olhos ao ver que os dois começariam mais uma discussão.
— Eles são impossíveis.
Roger riu.
— São, sim, mas é tão bom vê-los juntos. Ava não admitia, mas ela
sentia falta do irmão. Eu também. Nunca vou te agradecer o suficiente por
trazer Dick para casa.
— Ah, eu não fiz nada. Foi Dick quem finalmente se ligou que precisava
de vocês na vida dele.
O homem sorriu enquanto encarava os filhos.
— A morte de Lisandra foi difícil para todos nós, mas Dick foi o que
mais sentiu. Ele era muito apegado à mãe. Vê-lo se afastar de nós,
principalmente da Ava, foi doloroso, mas eu sabia que ele precisava de
espaço, então deixei que fosse embora. Você entrar na vida dele foi o que
Dick precisava para tomar as rédeas da vida, quer acredite ou não. Meu filho
se tornou uma pessoa muito melhor depois que te conheceu.
— Ele também me ajudou muito — admiti.
Dick e eu começamos a namorar pouco tempo depois do Natal, e desde
então meus dias vinham sendo os melhores. Tivemos altos e baixos ao longo
do ano, como qualquer casal, mas nada conseguia superar o amor que
cultivamos e fortalecemos.
Eu era muito grata a ele, por tudo.
— Do que estão falando? — Dick perguntou ao se aproximar de mim e
me abraçar por trás.
— Estávamos comentando que “Yesterday” precisava de um minuto a
mais.
— Eu não disse?! — Ava gritou da cozinha.
Dick suspirou alto.
— Ah, de novo não! — exclamou inconformado.
Nós todos começamos a rir.
Recostei a cabeça no peito do meu namorado.
— Beatles e Natal, o que mais eu poderia pedir?
Dick apoiou a testa sobre a minha cabeça.
— Quer fazer uma lista de desejos?
Sorri, sabendo que ele também o fazia, mesmo eu não conseguindo ver.
— É uma ótima ideia.
FIM
Agradecimentos
Essas duas novelas vieram de um surto sobre fazermos algo juntas e quando
nos tocamos, estávamos com uma capa, duas ideias e uma meta: terminar
tudo antes do Natal. Conhecer Lívia, Daisy, Samuel e Dick nos últimos
meses foi uma experiência que citaremos minimamente como mágica e
poder finalmente estar mostrando eles para vocês é simplesmente tudo o
que queríamos, porque não esperávamos que essas duas histórias fossem se
tornar tão importantes para nós, e como seria doloroso nos despedir dos
personagens que construímos com tanto carinho ao longo dessa trajetória.
Bruna Souza
nasceu em Curitiba, Paraná. Estava conectada com a leitura desde muito
nova, já que seu principal hobbie era ler para os mais novos. Aos 11 anos,
começou a colocar no papel o que normalmente ficava guardado em sua
cabeça e descobriu o amor pela escrita.
Sempre foi apaixonada por romances, tanto nas telas como nos livros, e
ama escrever sobre isso, já que vê como uma forma de compartilhar com
outras pessoas os mundinhos que ficam em sua mente.
Instagram/Tiktok/Twitter: @bsouzaautora
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envolver em problemas.
M. Victoria Spido
Os livros sempre foram seu refúgio.
É uma leitora voraz, com menos tempo para ler do que gostaria. Estuda
medicina na sua cidade natal e tem planos de ser uma neurologista "muito
fod*". Começou a escrever aos 14 anos, pois precisava colocar sua
criatividade para fora de algum jeito. Gosta de pensar que todas as pessoas
tem um propósito, e o dela é ajudar seja da forma que for, curando doenças
ou tocando corações.
Você pode encontrá-la nas redes sociais, onde passa seu tempo falando
sobre livros, séries e filmes.
Instagram/TikTok/Twitter: @euvilivros
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