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O NATAL ME LEVOU A VOCÊ

Direitos autorais © 2022 Bruna de Souza Moraes e Maria Victoria Spido

Capa: Eduarda Oliveira (@arda.arts)


Diagramação: Bruna Souza

Esta é uma obra de ficção. Esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com nomes, pessoas,
fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro poderá ser reproduzida ou transmitida, sejam
quaisquer forem os meios empregados: eletrônicos, mecânicos, fotográficos, gravação ou quaisquer
outros, sem autorização por escrito da autora.
Para toda leitora que sonha em
viver um clichê de natal,
a gente te entende!
Índice

O NATAL ME LEVOU A VOCÊ


Direitos autorais
Dedicatória
PLAYLIST
DEZEMBRO NÃO ERA ASSIM
SINOPSE
1 - Neve Não É Para Mim
2 - Teremos Um Dezembro Gelado
3 - Uma Crise Nunca É Uma Boa Opção
4 - Cachorro Sem Dono É Algo Preocupante
5 - O Bonitão Foi De Grande Ajuda
6 - Encontros Em Parques Sempre Trazem Oportunidades
7 - Caras Gatos Com Moto São Um Perigo
8 - Feiras Natalinas São Agradáveis
9 - Desconhecidos Podem Ser Melhores Do Que Muita Gente
10 - Romances Natalinos Sempre São Interessantes
11 - Um Falso Namorado Eficiente É Tudo Que Uma Garota Poderia
Pedir
12 - Patinação No Gelo É Uma Boa Prova De Equilíbrio
13 - Críticas Familiares São Parte Da Rotina
14 - Era Para Ser Fofo Ter Medo De Cavalos?
15 - Melhores Amigos Costumam Ser Linguarudos
16 - Corações Deveriam Apenas Bombear Sangue Ao Invés De Causar
Dor
17 - Apelidos Repentinos Mexem Com O Coração
18 - Namoros Falsos E Sentimentos Reais Não Combinam
19 - Ex-Quase Namoradas São Um Porre
20 - Toucas De Coelho São Uma Das Minhas Coisas Preferidas
21 - Novo Ano, Mas Sem Namoro
22 - Doente… De Amor
23 - Comédias Românticas Precisam De Finais Felizes
Epílogo
ROCK E ALGUMAS OUTRAS DROGAS
SINOPSE
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Epílogo
Agradecimentos
Sobre o autor
Livros deste autor
Sobre o autor
Livros deste autor
PLAYLIST
DEZEMBRO NÃO ERA ASSIM
SINOPSE

Quando tudo o que você ama sobre dezembro é poder aproveitar o


calor, as férias da faculdade e uma boa praia com seus amigos, a coisa que
você menos deseja é ser obrigada a passar o mês inteiro em uma
cidadezinha friorenta com a sua avó, principalmente considerando o seu
quase recente coração partido.
Talvez por esses motivos, Lívia nem poderia cogitar que logo estaria
em um avião indo diretamente para a neve do Canadá, perdendo todas as
festas, o sol do Rio de Janeiro e tendo que aguentar um bando de vizinhos e
parentes intrometidos.
Porém, quando o destino — ou melhor, um cachorro — acaba
fazendo seu caminho se cruzar com o de Samuel, o único objetivo de Lívia
se torna não permitir que o rapaz bonito, o falso relacionamento e o clima
natalino afetem a sua noção de como ela não serve para o amor.
1 - Neve Não É Para Mim

Lívia

Quinta-feira, 01 de dezembro de 2022


Dezembro. Nossa, como eu amava esse mês simplesmente com todas
as minhas forças. Motivos? Bem, eu poderia citar uma lista enorme, mas
entre os principais acho que dava para ser considerado as férias da
faculdade, o clima delicioso e perfeito para eu perder horas na praia e na
piscina, além do meu aniversário. A única parte negativa era o Natal em
família e todo mundo querendo saber da minha vida, como quando eu iria
fazer uma faculdade de verdade — porque para eles eu estar cursando Artes
Visuais era como ter cavado minha própria cova e em “eles” estava incluído
meus pais — e o principal de todos: se eu tinha desencalhado, o que eu já
não acreditava que aconteceria algum dia, mas para meus tios, primos e todo
o resto fazia total sentido, porque uma mulher solteira era mil vezes pior do
que uma desempregada.
Meu telefone tocou e eu apalpei a cama tentando me lembrar onde
exatamente tinha o deixado na noite anterior, antes de cair no sono, o que me
fez me recordar vagamente de ter colocado o aparelho embaixo do
travesseiro. Abri apenas um dos meus olhos, dando uma espiadinha e vendo
o nome de Maya brilhando na tela, o que me obrigou a atender a ligação.
— O que foi? — perguntei, a voz recheada de preguiça ficando
bastante evidenciada.
— Pode atender o interfone e me liberar? O porteiro disse que não
tem como me deixar subir sem autorização.
— Minha mãe não atendeu? — questionei, me remexendo um pouco
e sentindo a preguiça me dominando.
— Estou te ligando porque ninguém atendeu, Lívia.
— Passa o telefone para ele.
Demorou apenas um segundo para eu escutar a voz do homem de
meia idade:
— Bom dia, Lívia.
— Bom dia, seu Afonso, pode liberar a Maya para mim?
— Com certeza! — ele afirmou. — Quarto andar, apartamento 403.
Escutei Maya agradecendo e logo em seguida o telefone desligou.
Embora eu estivesse morrendo de preguiça e nem soubesse que horas eram,
minha melhor amiga já ter chegado só poderia significar que era tarde e eu
tinha dormido demais. Ah, o poder das férias.
Com muito esforço me levantei da cama, caminhando até o corredor
para chegar ao banheiro. Provavelmente mal daria tempo de lavar o rosto
antes que Maya estivesse tocando a campainha, mas tudo bem, ela que
esperasse um pouco.
Quando terminei tudo o que precisava e caminhei até a sala, abrindo
a porta, me deparei com a minha melhor amiga com um sorriso enorme no
rosto, o que era meio surpreendente considerando que eu a tinha deixado
esperando por quase dez minutos.
— De onde veio essa animação toda? — questionei, erguendo uma
das sobrancelhas, como se isso me permitisse examiná-la melhor.
Maya era alguns consideráveis centímetros mais baixa do que eu e
para uma quinta-feira sem aula, ela estava bastante arrumada, usando um
vestido xadrez de mangas bufantes.
— E por que está tão arrumada?
— Bom dia para você também, Lívia — ela retrucou, passando por
mim para entrar no apartamento.
Fechei a porta e voltei a olhá-la no momento exato em que Maya
ajeitava os cabelos compridos e castanhos, como se eles estivessem
despenteados, embora fosse completamente o contrário.
— Vai sair com alguém? — perguntei, permitindo que um bocejo
saísse dos meus lábios logo em seguida.
— Que eu saiba com você junto — minha melhor amiga murmurou,
se sentando no sofá e colocando a bolsa no colo. Ela às vezes era tão fofinha
que eu ficava até surpresa. — Vai sair desse jeito?
Sinceramente, eu nem lembrava que tínhamos combinado de sair e se
dependesse de mim, continuaria dormindo, mas Maya já estava ali toda
arrumada e não tinha como eu falar não.
— Não me diga que está nessa situação decadente porque ficou mais
uma noite vendo filmes tristes até tarde e pensando na Denise. — Seus
olhos, que já eram finos, revelando toda a sua descendência asiática, se
estreitaram ainda mais naquele momento.
Maya realmente não precisava tocar naquele assunto, porque, embora
fosse difícil, aos poucos eu vinha superando toda a situação ridícula com
aquela garota. Afinal, já fazia dez meses desde que terminamos.
— Não, eu só sou uma jovem universitária acabada que está de férias
da faculdade e queria dormir para caramba.
— Se servir de consolo, nós vamos encontrar o Enzo naquele café do
atendente gatinho que você sempre fica admirando.
Enzo era o atual ficante/quase namorado de Maya e nem mesmo o
atendente gatinho poderia aliviar o fato de que eu tinha sofrido uma
desilusão, mas ainda saía com quase casais para ficar segurando vela.
— Nessas horas eu queria tanto que o Christiano morasse aqui —
pensei alto, e Maya enrugou o nariz.
Chris era o meu melhor amigo desde pequena, mas quando não
estava estudando em Montreal, ele vivia em Souciville, cidadezinha do
Canadá, próxima de Quebec, onde a minha mãe tinha crescido — e onde eu
passei grande parte dos meus natais quando era criança —, até conhecer meu
pai e fugir para o Brasil com ele. Uma das histórias preferidas sobre jovens
sem juízo da minha família, mas, obviamente, eles consideram o final feliz,
porque pelo menos minha mãe tinha casado e tido uma filha.
— Por que não toma um banho? Vou avisar o Enzo que vamos nos
atrasar.
Dei uma rápida cheiradinha em mim mesma, ficando feliz ao notar
que eu estava cheirosinha, até porque tinha tomado banho antes de dormir.
Era possível que minha situação estivesse tão decadente a nível que parecia
que eu não tinha nem tomado banho? Considerando que eu usava um shorts
laranja fluorescente que fazia parte do meu pijama de blusa estampada com
bolinhas coloridas e ainda não tinha passado creme no cabelo,
provavelmente a resposta era sim.
— Eu realmente preciso ir? Vocês podiam fazer um encontro só de
vocês, não acha? Você está até arrumada. Seria romântico.
— Liv, eu e o Enzo somos amigos…
— O quê? — a interrompi. — Olha aqui, não estou aguentando esse
garoto há quatro meses para agora você vir me dizer que são só amigos.
— Ok — ela concordou, balançando a cabeça para reafirmar. — Mas
nós vamos combinar tudo para o festival, lembra que é o Enzo que vai levar
a gente, né?
Foi o suficiente para que a minha vontade de sair aparecesse. Teria
um festival com vários DJs e artistas justo no dia do meu aniversário, que
estava bastante próximo e nós já tínhamos até comprado os ingressos, mas
como nada podia ser perfeito, Enzo se enfiou no meio do meu momento com
a minha melhor amiga. Pelo menos teríamos carona até o Rio de Janeiro, não
que levasse muito tempo para atravessar a ponte que separava Monte Sul de
lá, porém, pelo menos o garoto havia ganhado uma utilidade.
Brincadeira, eu realmente gostava do Enzo, só me irritava um pouco
ele querer estar presente em todos os momentos, mesmo quando não era
convidado.
— Vou só tomar um banho e saímos — avisei, vendo Maya sorrir,
provavelmente feliz pelo feito quase impossível: me fazer sair de casa sem
ser para ir à praia.
— Maya! — minha mãe exclamou, assim que a porta se abriu e ela
ganhou toda a minha atenção, me fazendo parar no caminho que já tinha
traçado mentalmente até o banheiro. — Como você está linda, vão sair?
Maya se levantou para cumprimentar minha mãe, a dando um abraço
apertado antes de responder:
— Vamos tomar um café com o Enzo.
— Graças a Deus, essa menina precisa mesmo sair de casa — minha
mãe apontou para mim e eu revelei uma expressão ofendida, enquanto ela
jogava os cabelos cacheados e compridos para trás. — Nossa, Lívia, você
vai tomar um banho antes, certo? Por que ainda está usando esse pijama
estranho?
— Mãe! Ele não é estranho — reclamei, cruzando os braços e vendo
a mulher revirar os olhos.
Entre meus pais, com toda certeza eu tinha puxado a dona Julie,
porque além de nossos cabelos terem o mesmo tipo de curvatura, a pele dela
também era preta em um tom amendoado, assim como a minha.
A porta da entrada se abriu novamente e um sorriso gigante tomou
conta dos meus lábios, enquanto eu me abaixava para que Olaf, meu
cachorro, pudesse chegar perto, não que realmente precisasse, porque ele era
enorme.
— Olaf, tinham levado você de mim — eu lamentei para o golden,
que já me lambia, ao mesmo tempo em que eu o abraçava.
— Olá para você também, Lívia — meu pai murmurou, fechando a
porta.
— Oi, pai!
— Você não estava indo tomar um banho? — minha mãe perguntou e
eu revirei os olhos, ficando em pé e assentindo.
— Eu já volto — avisei Maya, que sorriu, chamando o meu cachorro
para se sentar ao lado dela.

— Não sei porque eu ainda vou na sua onda! — reclamei e Maya


revirou os olhos, em seguida sorrindo.
— Qual é a reclamação da vez? — minha melhor amiga questionou,
enquanto eu abria a porta do meu apartamento e ela segurava para poder
passar.
— Básico, eu acabei de passar duas horas segurando vela.
— Você não tava segurando vela! — ela disse, sem nenhuma verdade
sendo estampada em sua voz.
— Minha filha, ele tava te dando donut fazendo aviãozinho, aquilo
foi o cúmulo para mim. Só faltou mastigar e cuspir na sua boca igual as
mães de passarinho.
— Primeiro: que nojo! Segundo: para de ser fresca — Maya
murmurou e eu notei minha mãe, que estava sentada no sofá com um monte
de produtos de cabelo espalhados ao seu lado.
— Meu Deus, mãe, onde você vai para ter tirado todos esses
negócios do armário?
— Eu e seu pai decidimos uma coisa — minha mãe explicou, ainda
muito focada nas embalagens.
— Nós vamos viajar — meu pai anunciou, chegando com as duas
malas grandes de viagens deles.
— Perdão?! — Arregalei os olhos, tentando entender toda aquela
situação. — Do nada?
— Eu já tinha comprado, mas só contei para a sua mãe hoje — papai
falou, mostrando duas passagens de avião. — Era uma surpresa.
Aquela situação toda era um pouco confusa, mas seu Michel era um
homem romântico e eu apoiava qualquer loucura que eles quisessem, seria
até legal ficar sozinha por alguns dias.
— Quantos dias vão ficar fora?
— Voltamos depois do ano novo — minha mãe afirmou, finalmente
escolhendo quais cremes colocar na bolsa. Eu só esperava que não tivesse
sido nenhum dos meus.
— Vão ficar mais de um mês fora? — perguntei, um pouco assustada
com a ideia de ficar tanto tempo sozinha, porque eu nunca tinha passado
mais do que uma semana e Lívia e cozinha não eram exatamente uma boa
combinação. O jeito seria sobreviver de Ifood e comida da casa da Maya.
— Sim, por isso eu comprei uma coisa para você — meu pai falou,
bastante animado, enquanto caminhava até a mesa e pegava um envelope, o
entregando para mim.
Encarei Maya antes de abrir e ela parecia tão curiosa quanto eu.
Assim que puxei a aba, notei uma passagem de avião para o Canadá, NO
DIA SEGUINTE.
— Que porra é essa? — questionei, mesmo já imaginando o que
poderia ser.
— Lívia, a boca — papai me repreendeu e eu bufei. — Não
queríamos que você passasse o Natal sozinha, então decidimos que seria
uma ótima oportunidade para você ir para Souciville passar o mês com sua
avó.
Uma risada esquisita saiu da minha garganta e eu tive que respirar
fundo.
— Eu não vou passar meu aniversário lá, vocês sabem que eu já até
comprei o ingresso do festival, estou há mais de um mês falando disso.
— Não está em discussão, Lívia — minha mãe falou, cruzando os
braços na frente do corpo. — Você vai para lá sim, venda o ingresso e fique
com o dinheiro se quiser.
— Mas, mãe… — fui interrompida.
— Chega! — ela exclamou. — Ainda sou eu quem te banca,
inclusive fui eu que paguei esse festival, então não me estresse. Compramos
o transporte para o Olaf ir com você, isso não vai mais ser discutido.
Engoli a raiva que se acumulou e apenas andei para o meu quarto,
batendo a porta como uma adolescente irritada, ignorando a infantilidade da
atitude e o fato de que tinha deixado Maya para trás.
Eu amava meus pais, porém, todas as vezes que eles ignoravam o
fato de que eu já tinha vinte anos e me tratavam como uma criança acabava
me deixando exausta e, inevitavelmente, eu agia de alguma forma que logo
me arrependia, o que só piorava a minha situação.
Me obrigarem a ir para o Canadá só porque iriam viajar era o cúmulo
do ridículo, principalmente quando passei um tempo considerável dizendo
quão animada estava para poder passar meu aniversário de uma forma
diferente.
No final das contas, realmente seria diferente, só que de um jeito
negativo e no fim do mundo.
Eu ainda tentaria argumentar com eles, porque a possibilidade de ser
obrigada a ir para lá era simplesmente inexistente, eu não aceitaria.
2 - Teremos Um Dezembro Gelado

Samuel

Quinta-feira, 01 de dezembro de 2022

Passar a semana em Vila dos Anjos tinha simplesmente sido incrível.


Já conseguia sentir falta dos meus anos de faculdade morando ali — mesmo
que tivessem acabado há pouco tempo —, apenas Mathias e eu dividindo um
apartamento e fazendo muita merda. Estar me mudando para viver em
Monte Sul novamente era ótimo, mas seria melhor se eu tivesse dinheiro o
suficiente para comprar um apartamento e não precisasse morar na casa do
meu pai depois de seis anos longe.
— Já se arrependeu da mudança e decidiu voltar a morar comigo? —
Mathias perguntou, bebendo um pouco de sua cerveja e ganhando minha
atenção.
Os fios compridos do cabelo castanho claro dele estavam penteados
para trás, de uma forma que o deixava com uma cara absurda de
playboyzinho.
— Você sabe que quero ficar em Monte Sul — eu falei, a mesma
coisa que vinha dizendo há dias.
— Mas não quer morar com seu pai, então até conseguir juntar uma
grana você poderia continuar no meu apê, meus dias não são os mesmos sem
você e olha que você começou a levar suas coisas só há duas semanas — ele
dramatizou.
— Sem me ter para limpar a casa você quer dizer, aquele lugar estava
um chiqueiro — exclamei, agradecendo a atendente que tinha me entregue
meu terceiro copo de chopp.
— Organização não é meu forte — ele afirmou, suspirando. — Você
pode trabalhar na clínica do meu pai, eu peço para ele te contratar.
— Não — neguei rapidamente. — Eu quero me virar e não pegar um
emprego porque meu melhor amigo é riquinho — brinquei.
Mathias revirou os olhos. Para ele as coisas tinham funcionado bem.
Seu pai era dono da maior clínica veterinária de Vila dos Anjos e meu
melhor amigo tinha apenas decidido continuar com o legado. Eu fiz estágio
na clínica durante a faculdade e fiquei trabalhando lá até dois meses atrás,
porém sempre soube que precisaria seguir meu rumo e que no fundo, meu
destino não era ficar naquela cidade, mas sim voltar para Monte Sul, onde
meu pai passou a morar desde que ele e a minha mãe se separaram.
Porém, um jovem recém-formado e desempregado não estava com
muita facilidade para se virar sem a ajuda do pai.
— Seu telefone está tocando — Mathias avisou, me tirando de meus
pensamentos e apontando para o aparelho em cima da mesa que mostrava o
nome da minha mãe.
— Oi, mãe — falei, assim que atendi.
— Oi, Sammy!
— Mãe, já pedi para não me chamar assim, eu não sou criança — a
lembrei e consegui escutar a risada baixa da mulher do outro lado da linha.
— Seu pai falou com você?
— Não falo com ele há uns dois dias, estou em Vila dos Anjos —
expliquei, logo ficando preocupado. — Aconteceu alguma coisa?
— Aquele velho vai viajar — ela falou e eu revirei os olhos com o
jeito que chamou ele, mesmo que fosse um pouco engraçado a falsa
implicância. — Então eu pensei que seria uma boa ideia você vir antes para
Souciville, eu decidi passar o mês inteiro por aqui para tirar umas férias.
— Mas eu já comprei a passagem para ir no Natal — argumentei,
mesmo que não fosse me importar de ficar lá mais tempo, eu amava quando
dezembro chegava e eu finalmente poderia aproveitar a neve e aquele
friozinho gostoso.
— Não tem problema, eu pago outra para você — minha mãe
afirmou. — Se o Mathias quiser vir, compramos para ele também. Um voo
amanhã fica bom? Vocês podem pegar de Curitiba.
— Espera um segundo — pedi, olhando para Mathias. — Quer ir
para Souciville comigo?
— No natal? — ele perguntou, desviando a atenção que estava
focada em uma garota sentada na mesa logo atrás de nós dois.
— Não, amanhã.
— Você vai antes?
— Sim. Vem comigo, você estava reclamando que provavelmente
ficaria sozinho aqui o mês inteiro de qualquer jeito — pedi, tendo que
mostrar meu olhar de súplica, porque eu sempre tentava convencer Mathias a
ir comigo, mas ele nunca aceitava.
— Ok, estou sem nada para fazer e meu pai já me dispensou da
clínica até janeiro mesmo. — Ele deu de ombros, me deixando realmente
surpreso, não esperava convencê-lo tão facilmente. — Compra minha
passagem e te faço o pix.
— Não precisa, eu pago para ele — minha mãe, que escutava a
conversa, falou.
— Minha mãe vai pagar — expliquei.
Embora eu fosse um recém-formado desempregado, minha mãe tinha
bastante dinheiro, graças ao seu sucesso como escritora de Webtoon na
Coreia do Sul. Ela se mudou para Bucheon há uns quatro anos atrás e
quando conseguiu um contrato grande foi para Seul — a capital —, nessa
época ela começou a ganhar um certo reconhecimento no ramo. Eu já nem
tinha noção de quão bem a mulher tinha se saído, mas sabia que recebia
milhões de leituras.
— Logo te envio as passagens, já estou ansiosa para ver vocês
amanhã — ela afirmou e eu sorri, mesmo que minha mãe não pudesse ver.
Nossa relação não era exatamente perfeita, mas eu sabia que nos
últimos meses estava existindo um certo esforço a mais da parte dela.
— Até amanhã.
Desliguei o telefone e encarei Mathias, que tinha voltado a secar a
garota da mesa próxima.
— Se sua intenção não for deixá-la desidratada, eu aconselharia parar
— falei e ele me fitou, fazendo uma careta engraçada.
— Espero que lá no Canadá tenha várias garotas bonitas.
— E eu espero que você não me faça passar vergonha — murmurei,
focando em terminar de beber e pensando sobre como teria que arrumar
minhas malas rápido e ainda fazer compras, porque não tinha nada para o
frio de Souciville.
3 - Uma Crise Nunca É Uma Boa Opção

Lívia

Sábado, 03 de dezembro de 2022


Talvez minhas técnicas de argumentação fossem absurdamente falhas
— e meus pais deveriam dar graças aos céus por eu não ter escutado todo
mundo e ido cursar direito —, o que eu acabei meio que comprovando
quando me sentei no banco do carro alugado pelos meus pais para eu poder
levar o Olaf, saído diretamente do Aeroporto Jean Lesage — após um longo
trajeto de quase vinte horas —, em Quebec, há cerca de quarenta minutos da
cidadezinha que minha avó morava.
Discutimos muito na quinta-feira à noite depois que Maya me
convenceu a conversar e foi embora, mas a única conclusão que tivemos
tinha sido que me enviar para Souciville era uma ótima opção. Eu estava
congelando, mesmo usando duas blusas e mais uma jaqueta, o que só me fez
ter ainda mais certeza de quão horrível tinha sido aquela decisão. Era para eu
estar na praia com a Maya, torrando a minha bunda no sol e não em outro
país, aguentando 1° de temperatura. Clima de merda.
Olaf colocou as patas em meu colo, se esticando no banco como se
estivesse se espreguiçando, enquanto mantinha a língua para fora, em um
quase sorriso para mim.
— O que foi, Olaf? — perguntei, acariciando seu pelo macio e
fofinho.
O cachorro latiu, deitando a cabeça em cima das patinhas — que de
inhas não tinham nada —, que naquele momento estavam no meu colo, e eu
continuei fazendo carinho.
— Seu cachorro está nervoso? — o motorista me perguntou em
francês e eu quis desaparecer, porque fazia bastante tempo que eu não
praticava a língua, o que provavelmente significava que eu estava
absurdamente enferrujada.
— Provavelmente cansado — respondi no mesmo idioma da
pergunta, percebendo que meu sotaque se encontrava um pouco marcante
demais. — A viagem foi longa.
Embora eu tivesse aprendido francês desde criança, já que em
Souciville todos falavam e minha mãe era nascida lá, eu acabava usando o
idioma apenas quando visitava minha avó e considerando que os últimos
natais passei no Brasil com a família do meu pai, a prática parecia
praticamente inexistente.
— Você é a neta brasileira da Jeanne, não é? — ele questionou e eu
suspirei, aquele era o mal de cidades pequenas, todos acabavam se
conhecendo.
— Sim — afirmei.
Não dei muita corda para que aquele senhor continuasse falando e
peguei meu celular, mexendo no Instagram e ficando irritada assim que vi o
storie do meu pai na porra de uma gruta, em Bonito no Mato Grosso do Sul,
embaixo de um sol de rachar, enquanto eu sofria. Sim, eles mereciam ter
uma viagem feliz só os dois, mas eu já tinha vinte anos, meus pais poderiam
muito bem ter me deixado ficar em casa numa boa. Bloqueei o aparelho e
cruzei os braços, decidindo apenas observar a vista até chegar.

— Puta merda! — exclamei, assim que desci, com Olaf ao meu lado,
sentindo o vento gelado batendo em meu rosto.
— Olha essa boca, Lívia — a voz familiar da minha avó falou em
inglês, me trazendo uma certa felicidade assim que me virei e vi a mulher de
cabelos tão branquinhos quanto a neve parada ao lado do carro.
Eu odiava o frio? Com toda certeza! Mas eu amava minha avó e
estava com saudades. Talvez fosse a única parte positiva de toda aquela
viagem.
— Oi, vovó! — exclamei em português, ignorando a pequena
repreensão que eu tinha recebido.
— Vou mandar colocarem suas malas para dentro — vovó Anne
avisou em francês, me lembrando o caos que sempre eram nossas conversas
em três idiomas, embora ela não soubesse falar muito a língua do país em
que nasci.
Mesmo que minha avó se chamasse Jeanne, eu me dirigia a ela como
vovó Anne quando era criança e isso acabou virando algo do cotidiano,
porque nunca mudei.
— Por que não vai dar uma volta com esse pulguento? — ela
questionou e eu franzi o cenho.
— Ele não tem pulgas, vovó — reclamei e a senhora apenas revirou
os olhos, conversando com o homem que tinha sido meu motorista e pedindo
para que colocasse minhas malas dentro da casa, aparentemente eles
realmente eram conhecidos.
— Toma — vovò disse em inglês novamente, colocando uma touca e
um par de luvas na mão que estendi em sua direção, além do que parecia
uma roupinha de cachorro. — Você precisa se esquentar e esse bicho peludo
não pode passar frio também.
Apenas dei um sorriso para a mulher, que me deu as costas, voltando
a prestar atenção no que o senhor dizia. Coloquei a touca — que acabou
servindo bem, porque os meus cachos estavam pedindo socorro depois de eu
ter dormido quase a viagem toda — e as luvas, sentindo certo alívio por
parecer minimamente quentinha pelo menos. E vesti a roupinha verde e
amarela que minha avó tinha dado para o meu cachorro, achando engraçado
a forma como parecia que Olaf estava indo assistir um jogo da copa.
Comecei a caminhar até a avenida principal, que ficava a menos de
uma quadra da casa da vovó e meu cachorro foi ao meu lado. Treinei Olaf
desde filhote e como ele era bonzinho, eu nem precisava me preocupar com
guias.
Cumprimentei algumas pessoas que passavam e me davam oi,
parando para fazer carinho em Olaf, ou apenas sorrindo para ele, e continuei
andando, tentando aproveitar a parte boa daquela cidade e não pensar tanto
em como eu odiava aquele clima. Meu cachorro pelo menos parecia estar
gostando, se eu considerasse a língua de fora e o sorriso estampado em sua
carinha.
— Vamos até o café, Olaf? — perguntei para o animal, mesmo que
ele não pudesse nem me responder e muito menos tomar qualquer coisa
vendida lá. — Fica meio longe, acho que dá umas dez quadras, mas nós
conseguimos chegar.
Atravessei a rua quando percebi que nenhum carro estava vindo e
imaginei que meu cachorro estivesse junto, até olhar para o lado e notar que
ele tinha ficado na calçada.
— Olaf — chamei, batendo na minha perna, mas o animal continuou
parado, olhando para algum outro lugar, como se me ignorasse. — Olaf!
Vem aqui — eu pedi.
Dei um suspiro longo, antes de colocar o pé na rua para atravessar
para o lado que ele estava e tentar descobrir o que tinha acontecido, porém,
assim que cheguei na metade do caminho, Olaf começou a correr para a
direção que olhava.
Arregalei os olhos, sentindo o desespero me preenchendo, porque ele
nunca tinha feito algo assim. Durante alguns segundos, foi como se meu
corpo travasse, até eu escutar uma buzinada que me trouxe de volta a
realidade, além de fazer minhas pernas reagirem, correndo para o mesmo
sentido que o cachorro.
— Olaf! — gritei, o mais alto que consegui, enquanto ainda
enxergava os pelos do cachorro balançando com seus movimentos. Algumas
pessoas me observavam como se eu fosse maluca, mas não faziam nada para
ajudar. — Olaf!
Porém, não consegui segui-lo por mais do que três quadras, sentindo
meu ar faltando e minha respiração pesando. Não, não, não, agora não. Tive
vontade de chorar, me sentando na calçada e mexendo nos meus bolsos em
busca da bombinha. Eu precisava do meu cachorro, não de uma crise de
asma. Um aperto no peito começou a me sufocar e eu não conseguia
encontrar o que precisava para melhorar em lugar nenhum. Era só o que
faltava, meu cachorro fugindo e meu remédio desaparecido. Uma mulher se
aproximou de mim, perguntando em inglês:
— O que está acontecendo com você? — ela se abaixou do meu lado,
segurando meus ombros.
— Asma — consegui murmurar com o resto de ar que se mantinha
comigo, mas foi o bastante para que eu ficasse ainda mais sufocada e
começasse a sentir minha garganta trancando.
— Querido! — ela gritou e um homem se aproximou, se abaixando
do nosso lado e remexendo os bolsos, antes de me estender o que eu tanto
precisava. Nossa, eu poderia pular em seu pescoço como agradecimento,
mas achei melhor usar o medicamento antes.
Coloquei a bombinha na boca, seguindo os passos de uso e só desejei
que não estivesse ingerindo veneno e eles não quisessem me matar, ou retirar
meus orgãos, porque com o desespero eu só parei para pensar em
possibilidades depois de já ter puxado o medicamento para dentro.
Alguns minutos foram precisos para eu conter minha crise e concluir
que eles pelo menos não queriam me envenenar.
— Você está melhor? — a mulher questionou e eu assenti,
devolvendo o medicamento e agradecendo, enquanto ela me ajudava a
levantar.
Talvez cidades pequenas fossem realmente pacatas demais, porque se
aquilo rolasse em Monte Sul, eu já teria ficado, no mínimo, sem meu celular.
— Eu me chamo Alessandro e minha esposa é a Andrea. Seu nome é
Lívia, não? — o homem, que não parecia muitos anos mais velho do que eu,
assim como a mulher, perguntou e eu arregalei os olhos, cogitando que
talvez tivesse abaixado a guarda rápido demais.
— Como você sabe? — indaguei, ficando um pouco na defensiva.
— Sua avó está comentando a semana toda que você chegaria hoje.
Bom, aquela sim era uma informação interessante, considerando que
eu só tinha sido informada quinta-feira.
— Como me reconheceu? — tive que fazer essa pergunta, pelo
simples fato de que não tinha como sair falando para qualquer um na rua que
era neta de alguém.
— Cidade pequena — Andrea respondeu, sorrindo. — Conhecemos
todo mundo.
Eu assenti, imaginando que fazia sentido, mas logo arregalei os olhos
ao me lembrar o que tinha desencadeado minha crise de asma.
— Olaf! — exclamei.
— O que?! — Alessandro questionou e eu apontei para o lado que eu
tinha corrido.
— Meu cachorro saiu correndo para lá, eu estava atrás dele —
expliquei e os dois assentiram.
— Vou enviar uma mensagem no grupo da cidade, você pode
descrever ele?
Grupo da cidade, meu Deus, eu já tinha ouvido de tudo.
— É um Golden Retriever, ele está usando uma roupa verde e
amarela — falei, observando enquanto a mulher digitava que o cachorro da
neta recém-chegada da Jeanne tinha sumido, o que, particularmente, achei
informações demais, porém estava aceitando qualquer ajuda. — Seu nome é
Olaf.
— Como o boneco de neve de Frozen? — Alessandro perguntou e eu
assenti, abrindo um sorriso. Pelo menos aquele povo era simpático até onde
eu tinha notado.
— Enviei as informações, agora elas vão ser repassadas, ele deve
aparecer logo, por que não volta para casa e espera? — Andrea sugeriu e eu
senti certo receio, porque a ideia de não continuar procurando por Olaf me
parecia absurda.
— Eu só ia dar mais uma olhada… — fui interrompida.
— Ah, não, querida, aqui está frio e você já teve uma crise de asma,
por sorte Alessandro sempre carrega o remédio, vamos te levar em casa —
ela afirmou, enganchando seu braço no meu e enquanto eu tentava
argumentar sobre como queria pelo menos dar mais uma olhava, eles
ignoraram tudo que eu dizia, me levando até em casa.
Acho que cidades pequenas também forneciam pessoas bastante
persuasivas — para não dizer intrometidas.
4 - Cachorro Sem Dono É Algo Preocupante

Samuel

Sábado, 03 de dezembro de 2022


Entrei na casa da minha mãe, agradecendo por finalmente chegar,
porque um voo de vinte horas era capaz de acabar com qualquer um.
— Puta que pariu! — Mathias exclamou, soltando sua mala e se
jogando no sofá cinza e enorme da sala de estar. — Como você aguenta essa
viagem infernal duas vezes por ano? O tanto de conexões que fizemos…
Que coisa desumana.
— Nem todos temos jatinho particular — provoquei, porque sim, a
família do meu melhor amigo tinha um jatinho.
— Se tivesse tocado nesse tópico ontem, nós poderíamos ter vindo
com ele e economizado horas.
— Para de reclamar — pedi, revirando os olhos.
— Cadê sua mãe? — Mathias perguntou, se sentando no sofá e
olhando em volta.
— Não está em casa porque precisou ir até Quebec fazer umas
compras, pelo que entendi, ela vai voltar lá por quarta.
— Ela te fez vir antes para te largar aqui sozinho?
— Bom, eu não odeio essa ideia, porque posso aproveitar a casa em
paz, curtir a cidade e ficar com meu cavalo — listei as principais coisas que
queria fazer. — Você sabe que ela é meio difícil, então podemos considerar
esses dias como um preparo.
— Claro — ele concordou, fazendo um sinal de beleza com a mão e
se jogando para trás novamente, para deitar.
— Vamos até o centro tomar um café? — sugeri e Mathias fez uma
careta para mim.
— Pede um Ifood, cara, não quero me mexer pelas próximas doze
horas, no mínimo.
— Aqui não tem essas coisas — murmurei. — Se não quiser ir, eu
trago para você.
— Ótimo, você é incrível, vai lá. — Ele fez um sinal como se
estivesse me varrendo da casa com a mão e eu revirei os olhos, conferindo se
a carteira estava no meu bolso e saindo assim que notei que sim.
Caminhei até o estábulo que ficava ao lado da casa, vendo a crina
branca do Gato de Botas, meu cavalo desde que eu tinha cinco anos. Shrek
tinha lançado há pouco tempo quando ganhei o animal, então o nome
pareceu genial para o pequeno Samuel.
— Oi, amigão — cumprimentei o cavalo que eu não via há quase um
ano.
— Sr. Chung, não sabia que chegaria hoje — Marcel, o homem que
era responsável por cuidar do meu animal há cerca de seis anos, falou em
inglês.
— Acabei vindo antes esse ano — expliquei no mesmo idioma que
ele tinha falado comigo, logo sorrindo e perguntando: — Como vai a
família, Marcel?
— Pierre fez oito anos e minha esposa está grávida, descobrimos mês
passado.
— Meus parabéns — eu falei, dando um tapinha no ombro dele. —
Me conte quando descobrir o que vai ser.
— Pode deixar!
Eu sorri novamente, porque se tinha uma coisa que eu gostava era de
crianças.
— Vou até o centro pegar um café, você precisa de alguma coisa?
— Não, está tudo tranquilo por aqui.
— Cuide bem do Gato de Botas! — brinquei, logo me lembrando
que ele poderia me ajudar. — Sabe se minha moto está na garagem?
— Sim, o mecânico veio ontem a pedido da sua mãe para revisar e
deram até uma limpada nela. A chave está na bancada.
Agradeci e acenei para ele e para o cavalo, antes de andar até a
garagem, que ficava do outro lado e estava aberta, com a minha Yamaha XJ6
N preta reluzindo, apenas esperando por mim. O centro nem era tão longe da
casa, eu não levaria nem dez minutos andando, mas não me importava,
porque eu poderia dar uma voltinha nela e matar a saudade, já que no Brasil
eu estava sem moto e sem carro até ter dinheiro para isso, porque meu pai
não decidiu me dar algum deles de presente.
Vi a chave no lugar em que Marcel tinha dito e a peguei, antes de
subir na moto, colocar o capacete e ligá-la, partindo para o centro da cidade.
Uma das coisas que eu mais sentia falta de poder pilotar era sentir o vento no
meu rosto, mesmo que com a temperatura dali eu nem aguentasse ficar
muito tempo com o visor do capacete levantado. Estacionei a moto na
quadra anterior do café e desci, colocando o capacete ali mesmo e apenas
guardando a chave no bolso. As vantagens de uma cidade pequena realmente
me agradavam.
Comecei a caminhar, já conseguindo sentir o gosto de um café
quentinho na boca, quando escutei um latido e notei um golden prestes a
atravessar a rua. Olhei para conferir se nenhum carro estava vindo e vi o
cachorro atravessar na maior calmaria do mundo, com a língua para fora. Ele
parou ao meu lado, se sentando e me encarando.
— Oi, garotão — cumprimentei, esperando que realmente fosse
macho, o que comprovei ao conferir. — Está perdido? — perguntei, me
abaixando e dando uma olhada.
Ele usava uma roupa verde e amarela, o que me fez pensar que seria
engraçado se seu dono fosse brasileiro, além de uma coleira escrita Olaf,
mas sem nenhum endereço ou telefone.
Olhei em volta, na esperança de ver alguém procurando pelo
cachorro, mas ninguém parecia preocupado o suficiente para ter acabado de
perder um animal tão precioso.
— Acho que vou te levar lá para casa e depois tentamos encontrar
seu dono — falei para Olaf, fazendo carinho em sua cabeça. — Você deve
estar com fome e frio.
Encarei a moto há poucos metros de nós dois, imaginando como eu
poderia transportar o animal sem que nós dois corrêssemos perigo. Depois
de algumas análises já percebi que não tinha como.
— Minha casa fica até perto, será que você consegue andar? —
perguntei e o cachorro inclinou a cabeça de lado. — Você não tem guia —
eu disse mais para mim mesmo. — Será que é treinado?
Me levantei, dando alguns passos e Olaf fez o mesmo que eu.
— Vamos tentar assim então, aí depois eu volto buscar minha moto
— sugeri e ele deu um latido, me fazendo achar engraçado.
Começamos a caminhar em direção a minha casa e fiquei
impressionado com como ele seguia meus passos, quase como se soubesse
que podia confiar em mim. Seu dono deveria estar preocupado por perder
um cãozinho tão inteligente e eu esperava ser capaz de encontrar quem quer
que tivesse deixado Olaf acabar sozinho.
5 - O Bonitão Foi De Grande Ajuda

Lívia

Domingo, 04 de dezembro de 2022


A ligação só tocou duas vezes antes que Maya atendesse, já me
fazendo começar a chorar.
— Para de chorar agora! — ela mandou. — Logo vão achar ele.
Desde que aquele casal que salvou minha vida tinha me deixado em
casa, eu esperei por notícias do meu cachorro, porém não apareceu nem
sequer um sinal, como se Olaf tivesse sido abduzido.
— Eu já não queria vir para cá, Maya — relembrei, enquanto
atravessava a rua de onde eu tinha perdido Olaf, o que me fez
automaticamente ficar com mais lágrimas nos olhos. — Agora meu cachorro
sumiu em um lugar que eu nem conheço direito mais.
As pessoas me olhavam com curiosidade enquanto eu caminhava,
provavelmente por eu estar falando em português.
— Sei que a situação é triste e tudo mais, mas, Liv… — Ela fez uma
pausa. — Que droga de touca é essa?
Ou talvez esse fosse o motivo para os olhares curiosos, considerando
que eu usava uma touca com enormes orelhas de coelho.
— Eu estava com pressa para sair e peguei a primeira que achei, acho
que é do meu priminho — expliquei, fazendo um beicinho. — Mas, relaxa, o
resto do meu look está lindo — afirmei, apontando a câmera para a minha
jaqueta branca que tinha formas geométricas rosas, roxas e verdes.
— Você parece um carro alegórico — Maya exclamou.
— Obrigada. — Sorri, adentrando a cafeteria e sentindo o cheiro
delicioso de grãos triturados na hora. Eu não tomava café porque me dava
dor de estômago, mas o aroma era maravilhoso. — Voltando ao que eu dizia,
estou realmente preocupada, porque o Olaf nunca ficou mais de um dia
longe de mim desde que era filhote. Além desse frio infernal, como posso ter
certeza de que ele não está congelando e com fome? Aquela quase bandeira
do Brasil não conseguiria esquentá-lo o suficiente.
Dei uma olhada em volta, notando algo que realmente não tinha
como deixar de reparar. Além dos idosos e casais, tinha um cara bonito
sentado sozinho em uma mesa, tomando uma xícara de café com uma
paciência absurda, como se tivesse todo tempo do mundo.
— Cacete, eu estou muito triste, mas preciso dizer que pelo menos
tem um cara bonitão aqui para eu admirar — falei para a minha melhor
amiga, vendo ela revirar os olhos, antes de rir.
Eu não precisava me preocupar com o que falava naquela cidade,
porque a maioria dos habitantes só entendia inglês e francês, então podia
conversar com Maya em português com toda a tranquilidade do mundo, sem
nem precisar de fones. Me sentei em uma mesa que ficava quase de frente
para o rapaz bonitão e vi seu Hector, o dono do café se aproximando. Ele
não tinha mudado nada mesmo nesses anos em que eu deixei de ir para lá.
— Lívia, como você está bonita — o senhor falou em francês.
— Ah, obrigada, seu Hector — respondi na mesma língua. — Como
o senhor está?
— Muito bem, o que vai querer? — ele questionou, logo levantando
um dedo para me interromper. — Deixa eu adivinhar… Chocolate quente
com muita canela.
— Sim! Nenhum supera o que o senhor faz.
— Já trago para você — seu Hector afirmou, dando dois tapinhas no
meu ombro e saindo.
— Nossa, eu não entendo nenhuma palavra, mas adoro tanto seu
francês — Maya disse, fazendo minha atenção voltar para o celular.
— Ele está péssimo, eu não praticava há anos — eu falei, soltando
um suspiro cansado.
— Oi, Liv — Enzo cumprimentou, aparecendo na câmera e me
fazendo dar um sorriso sugestivo, já que mesmo Maya afirmando que não
tinha nada com o coitado, eles viviam grudados. — Já teve notícias do Olaf?
Mesmo que eu implicasse um pouco com o quase namorado da
minha melhor amiga, não era como se ele fosse uma pessoa ruim, na
verdade, totalmente o contrário. Enzo era extremamente bonzinho, além de
bonito, com aquele cabelo castanho liso e ajeitadinho, os olhos escuros e
várias pintinhas pelo rosto.
— Ainda não — lamentei, jogando minha cabeça na mesa de uma
forma que as orelhas de coelho se espalharam, antes que eu apoiasse o
queixo na mão. — Não sei como vou continuar vivendo se ele não aparecer
logo.
Observei o garoto que eu tinha discretamente admirado se
levantando, ele era bastante alto — embora considerando a minha altura,
provavelmente teríamos poucos centímetros de diferença — e seu cabelo
castanho escuro acompanhou seus movimentos, parecendo tão absurdamente
sedoso e soltinho que quase dava para sentir a maciez apenas de olhar, além
de ter um contraste lindo com sua pele clarinha, como se ele estivesse todo
minimamente em uma paleta de cores.
— Por que parece que você está prestes a babar? — Maya
perguntou, me tirando daquele transe e notando que no momento o rapaz
estava no caixa.
— O bonitão vai embora, ou seja, minha única alegria vai
desaparecer.
— Para de drama, logo o Olaf aparece.
— Sim, Maya… — interrompi minha própria fala quando o bonitão
saiu do caixa e começou a caminhar, parecendo estar indo na direção da
minha mesa, antes de se sentar na minha frente, me deixando com os olhos
arregalados.
— Liv? — Maya chamou.
— Você fala inglês? — ele questionou na língua e eu assenti,
observando que até o nariz dele era certinho e bonito, combinando com o
restante daquele rosto simétrico.
— Quem está falando com você? — minha melhor amiga perguntou.
— Já falo contigo — eu disse para ela. — O moço aqui tá querendo
falar comigo, espera.
Continuei na ligação, mas deixei Maya no mudo.
— Me desculpe pelo incomodo, mas escutei você dizendo algo sobre
um Olaf — ele falou e eu estranhei por um segundo, mas suspirei assim que
me toquei que eu estava naquela droga de cidade onde todo mundo era
enxerido.
— Sim, é meu cachorro.
— Qual é a raça dele?
Meu Deus, até isso iam começar a me questionar.
— Um golden.
O garoto puxou o celular do bolso da jaqueta puffer preta que usava,
clicando em alguma coisa e virando o aparelho para mim. Por um segundo
me perguntei se ele ia pedir meu número, mas assim que olhei para a tela,
soltei um grito, ficando automaticamente em pé e fazendo o rapaz pular na
cadeira.
— Cacete, é o meu cachorro! — eu exclamei em português, não
conseguindo me conter, antes de pegar meu celular e falar, alto: — Maya, o
cara gato achou o Olaf.
Ela pronunciou algo que eu não escutei porque minha melhor amiga
estava sem som e voltei a prestar atenção no cara quando ele disse em inglês:
— Posso te encontrar no parque aqui em frente em vinte minutos
para te devolver ele? — Ele me fitou com uma certa concentração, me
fazendo reparar naqueles olhos de um tom tão escuro que lembrava
chocolate quente, mas ainda conseguiam reluzir, além de ter os cantinhos
externos puxadinhos e uma leve dobrinha no canto interior.
Ele parecia ter saído diretamente do protagonismo de um dorama.
— Sim, vou te esperar lá — afirmei, balançando a cabeça
positivamente, não contendo a minha animação.
O rapaz sorriu e se levantou, saindo pela porta e nesse momento
Hector trouxe meu chocolate quente. Agradeci, tomando a bebida o mais
rápido que eu consegui, enquanto tirava Maya do silencioso.
— Ele vai levar o cachorro para você? — ela perguntou. — Meu
inglês está enferrujado.
— Sim, ele até me mostrou uma foto do Olaf sentado em um sofá.
— Deus abençoe o cara gato! — Maya exclamou.
— Amém, bonitão! — concordei, rindo, enquanto tomava mais um
pouco da minha bebida. — Vou desligar para tomar mais rápido e ir lá
encontrar com ele, depois te ligo, beijos.
— Beijos, se cuida — ela acenou e eu fiz o mesmo, desligando a
ligação e focando em beber meu chocolate.
6 - Encontros Em Parques Sempre Trazem Oportunidades

Samuel

Domingo, 04 de dezembro de 2022


— Ei, coelhinha — chamei a garota que eu não sabia o nome e vi o
momento em que seus cachos castanhos que não estavam presos pela touca
se movimentaram, mesmo com pouca parte exposta, era possível notar quão
bonito era o cabelo dela.
Ela olhou diretamente para Olaf, se abaixando e abrindo os braços,
de forma que o golden correu na sua direção, a derrubando na neve,
enquanto recebia carinho.
Eu apenas sorri com a situação.
— Nunca mais suma, seu maluco! — ela exclamou para ele. — Tem
noção de quão preocupada eu fiquei?
A garota se sentou, ainda mexendo no pelo do animal e me
encarando.
— Onde você encontrou o Olaf? — a jovem perguntou e eu expliquei
rapidamente:
— Eu estava indo tomar um café e ele correu até mim.
— Você fala português! — ela observou e eu cerrei os olhos, fazendo
uma careta.
Tinha tentado fingir que não falava na cafeteria, porque escutei a
conversa dela com a amiga e ter me segurado para não rir já tinha sido um
grande esforço.
— Droga! — falei, me abaixando perto dela e notando como a pouca
luz de sol reluzia em sua pele. — Eu tentei não te deixar constrangida —
admiti.
— Por quê? — a jovem questionou, fazendo um beicinho, que tornou
possível notar suas bochechas fofinhas, que combinavam com o seu nariz
arrebitadinho, antes dela dar uma risadinha. — Por eu ter dito que você é
gato? Aposto que tem um espelho em casa.
Aquela resposta me pegou desprevenido.
— Obrigada por ter cuidado do meu cachorro — ela agradeceu e eu
passei a mão em Olaf.
— Foi um prazer, esse garotão é muito bonzinho — eu admiti e o
cachorro olhou para mim, mais uma vez com a língua para fora.
— Bom, Olaf, agora já podemos ir para casa — a garota disse,
ficando em pé e eu fiz o mesmo, limpando a neve da minha calça e sentindo
minha bunda um pouco úmida. A jovem era pouca coisa menor do que eu,
chutaria que mais ou menos uns cinco centimetros. — Quero dizer, para a
casa da vovó, ainda temos mais uns dias de tortura.
— Você não é daqui, certo? — perguntei e ela negou.
— Sou brasileira e não moro aqui também, mas fui obrigada a ficar
até o ano novo.
— Obrigada?! — indaguei, franzindo o cenho e vendo ela assentir.
Talvez a energia da cidade tivesse me contagiado, porque eu estava fazendo
a linha enxerido.
— Eu acho esse lugar deprimente. É frio, todo mundo é intrometido e
até o meu cachorro fugiu de mim.
Eu poderia discordar apenas sobre o clima, porque eu amava frio, e
sobre a cidade, mas aquela jovem tinha razão nos outros pontos.
— Acho que você só está observando com os olhos errados — eu
falei, porque a ideia de que aquele lugar não fosse lindo para alguém parecia
um pouco absurdo.
— Infelizmente esses são os únicos que eu tenho.
Dei uma risada consideravelmente alta. Ela não estava equivocada.
Porém, uma ideia passou pela minha cabeça, porque já queria bancar o guia
turístico com Mathias, não me custaria nada levar aquela jovem junto.
— Se quiser, posso tentar te ajudar a ver tudo com um pouquinho
mais de cor, até acho que vai combinar mais com você — eu sugeri,
apontando para a roupa dela.
— Está julgando minhas roupas? Porque se for isso, acabamos de nos
conhecer e meio que só ter encontrado meu cachorro não te dá esse direito.
— Ah, não, eu não faria isso. — Eu sorri, negando. — Na verdade,
eu achei divertido.
— Divertido?
— É, você é toda colorida, seu cabelo é lindo, parece até que eu
estou olhando para uma pintura.
— Eu sou estudante de Artes Visuais, deu uma olhada em cantadas
boas para esse tipo de gente? — Ela ergueu uma das sobrancelhas, que eram
tão bem desenhadas que deixavam os olhos castanhos claros ainda mais
bonitos, enquanto fingia que estava séria, mas o meio sorriso formado em
seus lábios entregavam tudo.
— Se eu soubesse, teria arriscado dizer que você era algo como…
uma obra renascentista — brinquei, rindo e a garota revirou os olhos.
— Vai cagar.
— Mas saiba que a oferta foi sincera, tem muitas coisas por aqui que
eu acho que você iria gostar e falo como alguém que sempre passa metade
de dezembro nesta cidade.
— Certo, senhor guia, onde exatamente você sugere que eu comece?
— ela perguntou, cruzando os braços e eu notei Olaf se sentando, como se
esperasse que nossa conversa terminasse.
— Ah, não, eu só faço visitas guiadas.
— Parece mais que você está arrumando uma desculpa para passar
um tempo comigo, bonitão.
Talvez eu estivesse.
— Bom, se fosse o caso e considerando que você acabou de admitir
mais uma vez que me acha bonitão, acho que podemos arriscar a tentativa.
— Você pode sair morto! — a jovem afirmou. — E se eu for maluca?
— Eu tenho o péssimo hábito de confiar muito em pessoas com
cachorros fofos e ter uma queda pelas doidinhas.
Acho que eu deveria calar a boca.
— Então tudo bem, me encontre aqui meio-dia amanhã — ela
afirmou, parando ao meu lado e dando um tapinha no meu ombro, antes de
sorrir.
— Quer que eu te leve para almoçar? — perguntei e a garota
rapidamente negou.
— Eu estou de férias, estava pensando em um café da manhã — ela
disse com tanta convicção que eu ri mais uma vez.
— Você é uma peça rara, coelhinha — falei, sorrindo e a garota
sorriu também.
— Até amanhã.
Observei enquanto ela saía do parque com Olaf ao seu lado e as
orelhas de coelho da touca balançando, só então me tocando que nem tinha
perguntado seu nome.
7 - Caras Gatos Com Moto São Um Perigo

Lívia

Segunda-feira, 05 de dezembro de 2022


Quando acordei já eram quase onze horas, o que seria perto de uma
da tarde no Brasil e eu me sentia realmente descansada. Saí do banho e notei
que meu cachorro continuava deitado na cama.
Folgado.
Uma das coisas que eu mais odiava sobre o frio — além dele em si
— era ter que lavar o cabelo, porque considerando que eu tinha esquecido o
difusor em Monte Sul, eu teria que deixar secar naturalmente, coisa que
levava horas e provavelmente me daria um resfriado assim que saísse de
casa.
— Lívia! — minha avó exclamou assim que entrou no meu quarto.
Embora eu mal fosse para lá há anos, ela sempre manteve o quarto
que antigamente era da minha mãe para mim. Todo pintado de rosa e com
uma cama enorme, além dos armários, a escrivaninha e um sofá. Vovó tinha
deixado alguns bichos de pelúcia por lá também, mesmo que não tivesse
muita utilidade, porque meu priminho mais novo não gostava.
— Oi, vovó — falei, olhando para a mulher enquanto passava creme
no meu cabelo.
— Vai sair? — ela questionou em francês, me olhando de uma forma
avaliativa.
— Sim, vou dar uma volta — respondi, sem muitos detalhes, porque
se eu citasse o bonitão, provavelmente perderíamos um longo tempo falando
disso. — Vovó, sabe se o Christiano está na cidade? Não vi ele desde que
cheguei.
— Esqueceu que ele está estudando em Montreal, querida? Só vai
voltar quando começarem as férias.
— É que já estou de férias, pensei que talvez ele pudesse estar
também.
— Não é o caso, mas ele deve voltar logo — ela afirmou e eu esperei
que fosse verdade, porque eu sentia saudades dele e nós nem conversávamos
já faziam meses. — Sábado vamos fazer um jantar para comemorar seu
aniversário, seu tio Louis disse que vai trazer a churrasqueira que sua mãe
deu de presente e em sua homenagem vai ser bem brasileiro.
Ótimo! Era para eu passar meu aniversário em um festival com meus
amigos, mas claro que eu iria amar um churrasco com a minha tia implicante
dizendo a cada minuto: Lívia, vinte e um anos solteira, fiquei sabendo que
até a sobrinha de quatorze do seu pai já tem um namorado. Cacete, eu não
estava nada preparada para a tia Ella, o Natal já seria suficientemente
traumatizante.
— Mesmo, vovó? Acho que não precisa incomodar o tio, imagine ele
sair de Quebec só para isso.
— Você vai fazer vinte e um anos, é um dia importante — vovó
afirmou e eu soube que não adiantava tentar discutir, ela não me escutaria
nem em francês. — Vai trazer alguém?
Tive que segurar a risada, porque só poderia ser piada.
— Sim, vovó, eu trouxe meu namorado escondido e ele vai aparecer
sábado.
— Sério? — ela perguntou com tanta animação que só consegui
fazer uma careta. — Fico tão feliz, finalmente você desencalhou.
Pelo amor de Deus! Eu esquecia as vezes que ela não entendia
sarcasmo.
— Vovó! — a repreendi, balançando a cabeça e me lembrando que
ainda não tinha finalizado o que faltava do meu cabelo. Quando olhei no
relógio e notei que eram onze e quarenta, concluí que precisava me apressar.
— Olha, não estou com tempo para discutir, tenho que sair.
— Vai encontrar seu namorado? — Eu poderia jurar que os olhos
dela brilhavam.
— Claro, vovó! — respondi com todo o sarcasmo possível
estampado em minha voz, nem ligando se ela não entenderia, porque não
fazia sentido nenhum vovó Anne realmente achar que eu tinha levado um
namorado escondido, isso era simplesmente absurdo.
— Se divirta, querida — ela afirmou, sorrindo ainda mais e saindo do
quarto.
Puta merda, eu realmente precisava ter paciência.

Exatamente meio-dia eu cheguei no parque com Olaf ao meu lado,


tão pontual que até me surpreendi, e não demorou para eu ver o rapaz
sentado em um banco. Assim que andei para mais perto ele notou minha
presença, abrindo um sorriso enorme.
— Bom dia, coelhinha — ele disse, me fazendo revirar os olhos com
aquele apelido. — Vejo que esqueceu suas orelhas em casa hoje.
— Tive que deixá-las lavando — justifiquei, observando Olaf se
sentar ao lado do rapaz, pedindo carinho.
Embora meu cachorro fosse bastante sociável, ele não era exatamente
do tipo que fazia tanta amizade assim, mas talvez por conta do bonitão ter o
encontrado, Olaf tivesse ficado agradecido.
— Que tipo de feitiço você fez nele? — perguntei para o garoto, sem
tirar os olhos do golden.
— Eu diria que é meu talento natural com cachorros — ele afirmou.
— Ser veterinário meio que pede isso.
Tinha ainda menos sentido, porque Olaf odiava qualquer veterinário,
sempre era um parto para levá-lo tomar vacina, ou fazer consulta.
— Bom, então acho que você precisa urgentemente começar a
atender esse daí, porque ele é inimigo de todos os veterinários que já tentei
levá-lo — falei, apontando para o cachorro e vi o rapaz sorrir. — Onde nós
vamos, senhor guia?
— Samuel — o garoto disse, me fazendo erguer uma sobrancelha. —
Meu nome é Samuel.
— Ah, claro, eu esqueci que não nos apresentamos. — Dei uma
risada baixa. — Sou a Lívia.
— É um prazer, coelhinha!
— Por que está insistindo tanto nesse apelido?
— Bom, eu raramente vejo a páscoa em dezembro.
— Engraçadinho.
— Nós vamos até a feirinha de Natal — Samuel avisou e eu fiquei
curiosa.
— Eu nem me lembro se já fui nessa feirinha, faz anos que não
venho para cá.
— Possivelmente não foi, eles começaram há dois anos atrás, dura
dezembro inteiro. — O garoto fez um sinal para que eu o seguisse assim que
levantou e concordei, com Olaf indo conosco. — Eu imaginei que você
traria o Olaf, então peguei uma coisa.
— O que exatamente? — questionei, enquanto íamos para fora do
parque.
Samuel sorriu e se aproximou da moto parada logo na entrada do
parque, estendendo uma mochila para cachorro.
— Vamos nessa belezinha, precisamos deixar ele em segurança.
Olaf nunca gostou muito dessas bolsas de transporte, o que me
deixou um pouco preocupada, considerando que iríamos naquela moto.
— Também trouxe um capacete para você, Olaf — Samuel disse para
o cachorro e em seguida deu uma rápida olhada para mim, antes de voltar a
prestar atenção nele. — E um para a sua dona.
O rapaz pegou a mochila da minha mão e se abaixou perto do
cachorro, tudo que eu conseguia imaginar era como aquilo seria um desastre,
Olaf não ficaria feliz, ainda mais tendo que colocar alguma coisa na cabeça.
— Você precisa entrar aqui para passearmos, amigão, pode ser? —
Samuel disse para o golden, que rapidamente entrou na mochila, ficando
com as duas patinhas da frente de fora e sorrindo.
Fala sério, que tipo de encanto aquele garoto tinha?
— Agora só falta o seu capacete — ele avisou, pegando o capacete
pequeno e colocando na cabeça do cachorro e em seguida levantando a
mochila, olhando para mim. — Consegue carregar ele, certo?
— Eu… acho que sim — concordei e Samuel fez um sinal para que
eu virasse de costas, posicionando a mochila para eu passar os braços e
ajudando Olaf a ficar com as patas nos meus ombros.
— Vou soltar o peso, se prepara — ele avisou e eu assenti, já
imaginando que iria pesar.
Porém, quando Samuel soltou, apenas pareceu que eu estava
carregando uma mochila normal. Talvez ser estudante de Arte e precisar
levar novecentos tipos de materiais para a faculdade fosse útil no final das
contas.
— Até que não é tão pesado — admiti, me virando de frente para o
garoto que já segurava outro capacete.
— Acho que seus cachos serão meus inimigos agora — ele disse e eu
tive que assentir.
— Eles vão te odiar para sempre, principalmente porque ainda estão
um pouco úmidos e vão ficar horríveis.
— Isso é impossível, mas peço desculpas para todos antecipadamente
— Samuel falou, colocando o capacete na minha cabeça e se abaixando um
pouquinho para fechar no meu queixo, parecendo concentrado, antes de se
afastar. — Prontinho, vamos?
E eu apenas assenti, subindo na moto logo depois dele. Talvez eu
estivesse ficando doida e com certeza se eu dissesse para Maya que estava
prestes a andar com um cara aleatório para um lugar desconhecido… Bom,
gostaria de dizer que minha amiga era mais ajuizada do que eu, mas estaria
mentindo, ela apoiaria totalmente e ainda narraria os acontecimentos futuros,
como se estivesse prevendo plots de uma fanfic.
8 - Feiras Natalinas São Agradáveis

Samuel

Segunda-feira, 05 de dezembro de 2022


Chegamos na feira em uma questão de quinze minutos, porque com
Olaf nas costas de Lívia eu não poderia acelerar muito a moto. Tiramos o
cachorro da mochila de transporte, eu troquei o capacete dele por uma touca
apropriada e começamos a andar.
— Você não está com frio? — perguntei para a garota, que usava
uma jaqueta puffer roxa e uma blusa de lã vermelha, mas sem nenhuma luva,
touca ou cachecol, além do cabelo ainda estar um pouco úmido.
Embora no dia anterior ela estivesse de touca o tempo todo, naquele
instante eu pude observar seus cachos livres, me permitindo prestar atenção
em como eles iam perfeitamente até seus ombros e a forma que a franja
quase cobria as suas sobrancelhas.
— Só um pouco, mas considerando que eu deveria estar na praia
nesse momento, posso dizer que estou congelando — ela disse com certa
sinceridade evidente.
Tirei o cachecol do meu pescoço e parei na frente dela, colocando o
tecido preto em volta do seu pescoço e notando a garota parecer surpresa.
— Como seu guia, preciso manter você viva — expliquei.
— Bom, vou recomendar seu trabalho na avaliação final — Lívia
brincou, sorrindo. — Não vai passar frio?
— Não, eu ainda estou de touca e luva, vai ficar tudo bem — falei, o
que realmente era verdade. — Vem, vamos para a parte de alimentação,
imagino que você esteja com fome.
— Estou mesmo, tive que fugir da minha vó, porque ela criou um
namorado imaginário para mim na cabeça dela, então nem comi nada.
Eu a encarei enquanto andávamos, notando que a neve que tinha
acabado de começar a cair já deixava rastros em seu cabelo.
— Posso perguntar o motivo para ela criar um namorado imaginário?
— Bom, porque eu sou a encalhada da família segundo todos os
meus parentes — ela explicou, revirando os olhos e eu assenti, mantendo
minha expressão séria e segurando a risada, porque o jeito que Lívia falava
era divertido.
— Ninguém conquistou esse coração, coelhinha?
— Conquistou até demais — Lívia murmurou. — Tanto que eu saí
quebrada.
Parei de andar, olhando para a garota e vendo ela balançar a cabeça,
como se afastasse a energia meio pesada, não que fosse muito possível ela
ficar com uma vibe assim, porque era como se Lívia carregasse um conjunto
de cores e alegria.
— Relaxa, agora já faz uns meses, vamos dizer que sou uma obra em
reparos.
— Quer falar sobre? — perguntei, voltando a caminhar ao seu lado,
enquanto passávamos por algumas barraquinhas com vendas, mas nada de
comida ainda.
— Gosto mais de você como guia do que terapeuta, vamos deixar
nossa sessão de desabafos para mais tarde, ou talvez em algum momento em
que eu já esteja com algum teor de álcool no corpo, ou só linguaruda — ela
brincou, dando um sorriso enorme e eu assenti.
— Você quem sabe, coelhinha — afirmei e em seguida apontei para
algumas barracas e lojinhas à nossa frente. — Chegamos na parte boa.
— Finalmente! — Lívia quase gritou, me fazendo rir.
Andamos até algumas barraquinhas, onde eu já conseguia ver vários
biscoitos natalinos.
— O que você quer comer? — perguntei, encarando Lívia com
curiosidade, enquanto parecia que os olhos dela brilhavam com as opções.
— Tudo! — ela admitiu, parando em um dos lugares que vendia
comida.
A garota falou várias coisas em francês e eu não consegui
acompanhar, exceto quando disse tourtière, o que eu tinha consciência de
que era o nome da torta de carne que vendiam. Lívia me olhou depois de
dizer mais alguma coisa na língua e eu fiquei apenas piscando e a encarando.
— Samuel?
— Eu não entendi nada do que você disse, não sei francês — tive que
explicar e a jovem sorriu.
— Um guia de uma cidade onde praticamente todos os habitantes
falam francês, mas não sabe francês. Curioso — ela falou e eu revirei os
olhos. — Bom, perguntei se você também quer — Lívia explicou, apontando
para a torta e eu assenti.
Ela disse mais algumas coisas para a vendedora, que inclusive
apontou para mim e a garota apenas negou, pagando e pegando os dois
pedaços, entregando um para mim.
— Ah, obrigado, eu poderia ter pago — eu afirmei, enquanto voltava
a andar do lado dela, assim como Olaf.
— Relaxa, seu pagamento por ser meu guia.
Balancei a cabeça, virando para o lado para não rir mais uma vez e
comecei a comer.
— Cacete, isso está muito gostoso — ela exclamou, saboreando. —
Eu comeria uns dez pedaços.
— É bom mesmo — eu concordei.
Andamos mais um pouco na parte de comida da feira e Lívia comeu
quase metade das coisas que serviam. Eu até tentei acompanhá-la, mas
depois de um tempo concluí que era melhor eu apenas pagar, ou logo meu
estômago estaria pedindo socorro.
— Meu Deus! Eu acho que nunca na minha vida comi tanta coisa
gostosa de uma vez — a garota falou, colocando a mão na barriga como se
sinalizasse que estava cheia. — Você é realmente um guia e tanto, eu nunca
teria encontrado essa feira.
— Você deu sorte, nós iriamos apenas no restaurante da cidade hoje,
mas meu amigo decidiu de última hora que ainda estava muito cansado para
sair do sofá.
Mathias era um preguiçoso, do tipo que eu nem entendia como tinha
se formado, porque metade do tempo em que eu olhava para ele, meu melhor
amigo estava com a bunda colada em algum lugar, a coluna completamente
torta e apertando loucamente os controles do videogame. E aparentemente
não viajar de jatinho tinha sido uma experiência muito cansativa para ele, em
um nível que o garoto só saia do sofá para ir ao banheiro e comer, não tinha
nem se dado ao trabalho de subir as escadas para dormir no quarto.
— Tem um amigo seu na cidade? — ela perguntou, enquanto tomava
um pouco do chocolate quente do copo que estava em sua mão.
— Sim, ele veio comigo para cá, mas desde sábado não saiu da
merda do sofá, nem mesmo para ver o Gato de Botas.
— Você tem um gato que usa botas? — Lívia parecia um pouco
assustada, o que me fez rir.
— É o nome do meu cavalo.
— Puta merda, você tem um cavalo?! — A garota deu um gritinho.
— Eu acho cavalos tão lindos. Acredita que nunca vi um de perto?
— Quer conhecer ele amanhã? — sugeri, vendo Lívia erguer uma
sobrancelha.
— Está me convidando para ir na sua casa?
— Acho que estou.
— Bom, eu adoraria conhecer o Gato de Botas.
— De brinde você conhece o Mathias também, embora eu ache o
cavalo mais interessante — brinquei.
— Aposto que sim.
Nós demos risada e voltamos para a parte da feira em que vendiam
coisas, caminhando durante horas e parando em algumas para dar uma
olhada, o que fez Lívia grudar em um globo de neve de uma forma que seus
olhos até brilhavam. Comprei para ela, mesmo quando a garota insistiu que
não precisava, e nos preparamos para voltar a moto.

— Eu me diverti bastante — Lívia falou, assim que desceu da moto


em frente a sua casa e eu ajudei a tirar Olaf da mochila.
— Eu também — admiti, segurando o capacete embaixo do braço.
— Ah, seu cachecol — ela disse, já colocando no tecido a mão que
não segurava a sacola com seu presente, mas eu segurei seu pulso com
delicadeza.
— Relaxa, você me devolve amanhã.
— Nossa, você está mesmo doido para me ver — a garota debochou,
me fazendo revirar os olhos, antes de rir e soltá-la.
— O Gato de Botas vai estar te esperando. Posso passar te buscas às
duas?
— Pode ser — ela concordou e eu peguei meu celular no bolso,
estendendo em sua direção.
— Me passa seu número, posso precisar entrar em contato.
— Que desculpinha esfarrapada, Samuel. — Lívia balançou a cabeça
em negação, como se desaprovasse, antes de pegar o celular e digitar
rapidamente, me entregando.
Salvei o contato como coelhinha.
— Nos vemos amanhã — eu disse, subindo na moto e colocando o
capacete.
— Até amanhã.
Fiz um sinal para a garota entrar e esperei que ela fizesse isso, antes
de dar partida e sair dali.
9 - Desconhecidos Podem Ser Melhores Do Que Muita Gente

Lívia

Terça-feira, 06 de dezembro de 2022


— Acho que você está ficando maluca — Maya afirmou da ligação
de vídeo, enquanto eu terminava de lixar minhas unhas, deitada de bruços de
frente para o celular com Olaf ao meu lado.
— Por qual motivo exatamente?
Bom, seria verdadeiramente surpreendente se minha amiga tivesse
ganho um pouco de juízo e fosse me dar uma bronca sobre ficar andando
com caras desconhecidos, que, na verdade, já não eram mais tão
desconhecidos assim.
— Como você deixa sua avó achar que você está namorando? — ela
questionou, um pouco exasperada.
Fazia bem mais sentido aquela ser a preocupação de Maya.
— Vovó não entende sarcasmo, não é minha culpa — admiti, me
concentrando em lixar a unha. — Mas relaxa, no dia ela descobre que não
existia e tudo fica bem, não é como se eles não fossem falar sobre eu não ter
um relacionamento de qualquer jeito.
— Quem vai aí?
— Bom, o tio Louis é meu único tio por parte de mãe — falei,
fazendo uma careta quando lixei para o lado errado. — Graças aos céus eu
pelo menos me dou bem com o Bastien e a Beatrice.
Bastien era meu primo mais novo, de oito anos e Beatrice era só um
ano mais velha do que eu, então sempre foi a pessoa da família que eu mais
me entendi, porque o resto dos meus primos por parte de pai faziam questão
de me encher o saco assim como meus tios. Tio Louis era o mais tranquilo e
normalmente não falava muito, diferente da tia Ella, esposa dele e uma
grande chata.
— A Beatrice ficou bonitona né, eu sigo ela no Instagram — Maya
disse, se remexendo na cama para colocar o celular mais perto do rosto. — E
a namorada dela é outra gata, acha que vai aparecer aí no natal?
— Não falei com ela ultimamente, mas eu acho que sim, todo mundo
aceitou bem tranquilamente. Provavelmente é porque a Beatrice sempre foi a
queridinha, queria só ver se fosse eu.
— O lado bom da Denise ter te dado um pé na bunda é que com
certeza por enquanto você não vai descobrir.
Até parei de olhar para as minhas unhas nesse momento, encarando
Maya, que arregalou os olhos.
— Não quis dizer que foi bom… Me desculpa, me expressei mal. —
Ela mostrou uma feição triste e eu só balancei a cabeça em negação.
— Ei, não esquenta, eu sei. E não é mentira também.
— Que horas você marcou com o bonitão? — Maya mudou de
assunto, abrindo um sorriso enorme. Eu sabia bem que ela ficou com a
consciência pesada, mesmo que eu não tivesse realmente levado em
consideração o que disse.
— O bonitão tem nome, é Samuel. Ele disse que vem me buscar duas
horas, mas ainda não mandou mensagem, então não sei.
— Você tem noção que são dez para as duas aí, né?
— O quê? — questionei, olhando para o relógio e ficando surpresa.
— Puta merda, eu nem me vesti.
— Onde vocês vão?
— Na casa dele.
— Como?! — Maya se exasperou, arregalando os olhos enquanto eu
me levantava, carregando o celular comigo e colocando em cima da
prateleira que era exatamente na altura da minha cabeça. — O que vai fazer
na casa dele?
— Vou conhecer o cavalo — expliquei, mexendo na minha mala e
procurando algumas roupas quentes. — E o amigo que está lá.
— Compartilhe a sua localização — ela pediu e eu tive que dar
risada.
— Você está no Brasil, o que vai adiantar?
— Não é minha culpa se minha melhor amiga decidiu se enfiar na
casa de um desconhecido.
— O Olaf gosta dele, eu confio no meu cachorro.
— Claro, Lívia, a opinião do seu cachorro é extremamente confiável.
Ele gostava da Denise, então talvez nem tanto, mas tinha alguma
coisa no Samuel que me fazia acreditar que tudo ficaria bem.
— Bom, aguardo updates da fanfic e do boy dos sonhos.
— Credo, Maya, para de viajar — reclamei, enquanto vestia minha
calça verde bandeira. — Eu acho ele legal, nos entendemos de uma forma
engraçada e posso até considerar que quase o vejo como um amigo.
— E ele não te atrai nem um pouquinho?
— Lívia está off para o amor — falei em terceira pessoa, desviando
da câmera para colocar minha segunda pele e a blusa térmica com meu tricô
amarelo de gola alta por cima.
— Não precisa amar para dar uns beijos — Maya afirmou e eu
voltei na direção do celular, olhando diretamente.
— Meu Deus, Maya! — Balancei a cabeça em negação, calçando
minha meia e pegando o tênis branco.
— Aí, falou a senhorita inocência, quem vê assim pensa que até ano
passado não beijava metade da cidade.
— Sou uma nova mulher — eu disse, pegando minha jaqueta que era
da mesma cor da calça e vendo Maya fazer uma careta assim que eu vesti.
— Por que você parece uma espiga de milho?
— Decidi sair bem brasileira — expliquei, ajeitando meu cabelo pela
câmera da ligação com a ajuda de um creme, deixando Maya pequena na
tela.
— Está mais para o Visconde de Sabugosa.
— Troco a jaqueta para a azul claro?
— Se eu falar que não, você vai fazer do mesmo jeito e ainda parece
minimamente melhor do que a combinação atual.
— Um minuto — pedi, terminando de ajeitar a última mecha fora do
lugar do meu cabelo e indo até a mala que estavam minhas outras jaquetas,
logo encontrando a puffer azul.
Eu tinha tantas jaquetas puffers que até ficava surpresa, talvez elas
fizessem parte da minha personalidade atualmente.
Voltei para a frente da câmera e Maya fez um sinal positivo.
— Bem melhor — ela afirmou. — Ah, se ver meu primo por aí de um
oi, ele comentou que ia estar na cidade.
— Maya, eu nem sei como seu primo é.
— É verdade — a garota murmurou.
— Lívia — vovó disse quando abriu a porta e eu a encarei, esperando
que continuasse em francês: — Tem um garoto te esperando lá fora.
— Meu Deus, ele já chegou — avisei Maya. — Até depois, amiga.
Vi a minha melhor amiga acenar e desliguei a ligação, guardando o
celular no bolso da jaqueta e chamando Olaf, que já usava sua roupinha
verde e amarela. Estávamos combinando.
— É o seu namorado? — vovó perguntou, me fazendo dar uma
risada alta.
— Com certeza, vovó. — Revirei os olhos, pegando minha bolsa. —
Estou indo, acho que volto a noite.
— Se divirta.
Assenti, enquanto deixava o quarto com Olaf me seguindo. Notei que
vovó começou a arrumar minha bagunça. Eu iria organizar assim que
voltasse, só não tinha tempo no momento, mas ela era bastante exigente com
esse tipo de coisa. Desci as escadas para sair da casa e assim que passei pela
porta já vi Samuel parado ao lado da moto com o capacete embaixo do braço
e usando uma jaqueta quase igual a minha.
— Olha só, coelhinha, parece que estamos combinando — ele disse,
se aproximando e dando um sorrisinho antes de me entregar o capacete que
era para mim e se abaixando para colocar o de Olaf. — Está sem touca e
cachecol novamente? Não vai passar frio?
— Não vou — neguei, me lembrando do que tinha esquecido. — Ah,
seu cachecol! Esqueci ali em cima — eu falei, já me preparando para voltar,
mas Samuel segurou meu pulso, ficando de pé.
— Relaxa, você me entrega depois — o garoto afirmou, pegando o
capacete da minha mão e olhando por alguns segundos para o meu cabelo.
— Seus cachinhos precisam me perdoar novamente.
— Acho que eles já se acostumaram a essa altura.
Ele sorriu e nós colocamos Olaf na mochila de transporte, nos
ajeitando para poder partir. Subi na moto com meu cachorro nas costas,
abraçando Samuel antes que ele ligasse, e logo estávamos indo.
10 - Romances Natalinos Sempre São Interessantes

Samuel

Terça-feira, 06 de dezembro de 2022


Vi Mathias na porta da minha casa logo que comecei a andar com
Lívia e Olaf para lá. Meu melhor amigo tinha ficado estranhamente animado
em conhecer a garota que perdeu o cachorro.
— Suponho que você seja a famosa Lívia — ele disse quando
paramos em sua frente e fui obrigado a revirar os olhos assim que o sem
noção segurou a mão dela e deixou um beijo.
Galinha.
— Sim, é ela — falei, apontando para ele em seguida e encarando a
jovem. — Esse é o Mathias, meu melhor amigo.
— É um prazer te conhecer — Lívia afirmou, sorrindo.
— Nós vamos ver o Gato de Botas e já entramos — eu avisei e
Mathias concordou.
— Vou com vocês, ainda não fui dar oi para esse cavalo.
O analisei por um instante, com a sobrancelha erguida. Estava
bastante claro que o interesse não era no Gato de Botas.
— Você quem sabe — resmunguei, chamando Olaf que foi para o
meu lado, me seguindo até o estábulo enquanto Mathias puxava assunto com
Lívia logo atrás.
— Onde você mora no Brasil? — escutei ele perguntando.
— Monte Sul, no Rio de Janeiro — Lívia respondeu, me fazendo
olhar na direção com certo interesse.
— Olha só, o Sammy está se mudando para lá — Mathias disse,
apontando para mim. — Teremos muitas oportunidades de nos encontrarmos
quando eu for visitá-lo.
Puta merda, definitivamente meu melhor amigo era um sem noção.
— Deixa ela quieta, Mathias — pedi, vendo o garoto rir, antes que eu
me virasse para frente, agradecendo aos céus por já conseguir enxergar
Marcel ao lado do Gato de Botas.
— Estou só conversando com a minha nova amiga — ele afirmou. —
O que anda fazendo nessa cidade parada, Lívia?
— Sinceramente, só perdi meu cachorro, fiz muitas ligações de vídeo
com a minha melhor amiga e conheci o Samuel, o que também me fez sair
de casa.
Chegamos ao estábulo e eu virei completamente para os dois,
enquanto Olaf já se sentava, com a língua para fora. Apenas nesse momento
notei quão alta Lívia era, considerando que embora Mathias fosse bem
menor do que eu, meu melhor amigo ainda tinha 1,72 e ela era alguns
centímetros maior do que ele.
— Quanto você tem de altura? — perguntei para ela, vendo as
sobrancelhas da garota se curvarem de uma forma curiosa, antes que
sorrisse.
— 1,78 — Lívia disse rapidamente, o que fez Mathias a encará-la
com certa surpresa em sua feição, talvez só então percebendo a diferença. —
Isso foi meio aleatório.
— É que só reparei direito quão alta você é agora que te vi do lado
do Mathias — expliquei, apontando para o meu melhor amigo.
— Ei! — ele reclamou, cruzando os braços.
— Não se ofenda — pedi.
— Sr. Chung — Marcel chamou e eu direcionei minha atenção para
o homem, que dava uma cenoura para o Gato de Botas.
— Oi, Marcel, trouxe eles para verem o Gato de Botas — falei em
inglês. — Esses são Mathias e Lívia.
— É um prazer te conhecer — Lívia disse na mesma língua,
acenando para o homem, que sorriu como comprimento.
— Sua namorada? — ele perguntou para mim, enquanto apontava
para a garota e eu neguei com a cabeça rapidamente.
— Minha amiga! — exclamei rapidamente e Marcel deu um sorriso
sugestivo, como se não acreditasse, o que era bastante irônico considerando
que eu conhecia Lívia há pouco mais de dois dias.
— Vocês querem dar uma volta com ele? — o homem questionou e
eu rapidamente assenti.
Senti quando Lívia tocou no meu braço, mesmo por cima da jaqueta,
antes de dizer em português:
— Eu nunca andei a cavalo, na verdade, meio que nunca nem
cheguei perto de um.
— Está tudo bem, eu vou ficar junto com você, coelhinha.
— Sinto que estou sobrando aqui — Mathias falou, enfiando a
cabeça entre Lívia e eu. — Talvez seja minha deixa para brincar com o Olaf,
nos demos bem no sábado.
— Certo, então brinque com ele e vou levar a Lívia para andar no
Gato de Botas — apoiei sua ideia, porque ele era meu melhor amigo, mas
quando se tratava de garotas bonitas era um fato que costumava não pensar
direito.
Mathias foi até o cachorro, se abaixando e fazendo carinho antes de
chamá-lo para procurar uma bola e eu notei que Lívia ainda segurava meu
braço, observando atentamente enquanto Marcel colocava a sela no cavalo.
— Está com medo? — perguntei e ela rapidamente negou.
— Claro que não — disse, antes de engolir em seco.
— Não precisa mentir — afirmei e a garota balançou a cabeça,
reforçando sua negação.
— Eu sei que ele tem mais medo de mim do que eu dele, só preciso
me acostumar com a ideia — ela explicou e Marcel fez um sinal para que eu
me aproximasse.
Dei um passo para frente, imaginando que Lívia me soltaria, mas a
garota não soltou, segurando com ainda mais força.
— Tem certeza que está tudo bem? — questionei mais uma vez, na
tentativa de garantir de que ela não estava desconfortável. Jamais a obrigaria
a fazer algo que estivesse incomodando.
— Sim, continue andando — Lívia afirmou e eu sorri pelo jeito
como parecia prestes a se esconder, era bastante adorável e eu não tinha
visto outro momento em que ela não demonstrasse estar totalmente
confiante.
Obedeci o que tinha dito e andei até o cavalo, agradecendo a Marcel,
antes de segurar a rédea e ver que os olhos da garota tinham se arregalado.
— Quer tentar passar a mão nele antes? — sugeri. — Talvez você
sinta mais confiança.
— É uma boa ideia — ela confirmou e eu segurei a mão que estava
no meu braço, tentando levar para perto do Gato de Botas, mas assim que
estava bem próxima, o cavalo deu uma leve movimentada na cabeça,
fazendo Lívia gritar e pular em cima de mim, colocando as pernas ao redor
da minha cintura e me dando um susto, enquanto seus braços rodeavam meu
pescoço.
Mesmo tentando me equilibrar ao segurar suas coxas, foi impossível
e nós caímos na neve. Observei o cavalo continuar parado como se nada
tivesse acontecido, enquanto eu me encontrava quase totalmente afundado
na camada alta de neve, já Lívia estava praticamente sentada em mim,
abraçando meu pescoço. Ela levantou a cabeça, firmando as mãos ao lado da
minha, fazendo os cachos se direcionarem para o meu rosto, uma vez que a
garota permanecia em cima de mim.
— Talvez devêssemos fazer as coisas com mais calma — eu sugeri e
Lívia arregalou os olhos.
— Eu não quis pular em cima de você, nem ficar sentada em você,
sinto muito. Juro que não sou tarada, só me assustei… — ela falou, tentando
se mexer para levantar, antes que eu a interrompesse, dando uma gargalhada.
— Estava falando do Gato de Botas, podemos andar nele outro dia,
você pode se acostumar com ele aos poucos.
— Ah, claro — a garota disse, rindo também ao perceber a situação.
— Vamos levantar — falei, segurando sua cintura com um braço,
enquanto apoiava o outro para conseguir me sentar, já que as pernas de Lívia
estavam presas embaixo de mim.
— Sammy? — Escutei alguém me chamando e levei cerca de um
segundo para associar a quem aquela voz pertencia, arregalando os olhos
quando meu cérebro processou a informação.
Ok, eu provavelmente estava fodido.
Confirmei minha suspeita por cima do ombro de Lívia e assim que vi
que estava certo, apenas levantei com a maior agilidade do mundo,
colocando a garota no chão, do lado oposto ao do cavalo para garantir que
não se assustasse.
— O que está fazendo aqui? — perguntei em coreano e notei as
sobrancelhas de Lívia quase se juntarem de tanta confusão. — Achei que
você ia voltar amanhã.
— Por isso trouxe uma menina para cá? — minha mãe devolveu a
pergunta no mesmo idioma que eu, ganhando a atenção da garota, que
arregalou os olhos assim que a encarou.
Eu teria levado Lívia ali se soubesse que a mulher estava chegando?
Com toda certeza não, mas no momento já não tinha o que fazer. Eu tinha
vinte e cinco anos, mas talvez em partes pela forma como foi criada, minha
mãe era bastante… Rigorosa quanto à figuras femininas dentro da casa dela,
o que provavelmente me fez entrar em pânico, considerando que durante
todos os anos em que a visitei eu nunca apresentei nenhuma.
— É minha namorada! — eu exclamei, nem pensando na frase antes
que tivesse deixado meus lábios e minha mãe arregalado os olhos.
Lívia estava quase paralisada e eu não sabia dizer ao certo se tudo
aquilo era medo da mulher. Será que ela também nunca tinha passado por
uma situação assim? Principalmente considerando que as chances dela estar
entendendo nossa conversa eram baixas.
— Ela fala coreano? — minha mãe perguntou e eu olhei para Lívia
procurando algum sinal de que falasse, porque considerando que eu tinha
dito que ela era minha namorada, eu provavelmente teria ciência se soubesse
minha língua materna.
— Não — respondi com a maior confiança que consegui. — Mas
fala francês, português e inglês.
— Você é brasileira? — ela questionou Lívia em português.
— Sou sim, senhora — a garota quase gaguejou e eu a encarei com
curiosidade.
Isso a deixou tão tensa assim?
— Se organizem e entrem para conversar, quero saber mais da
namorada do meu filho — minha mãe falou e eu quis enfiar minha cara na
neve assim que Lívia me fitou com curiosidade.
Acenei para a mulher que nos dava as costas, sustentando um sorriso
falso no rosto, antes que focasse na garota.
— Me perdoa, eu entrei em pânico — expliquei e Lívia apenas
balançou as mãos.
— Como assim a sua mãe é a Chung Eun-ji? — ela perguntou e eu
ergui uma sobrancelha.
— Como exatamente conhece a minha mãe?
— Dã, eu leio webtoon! — a garota exclamou. — Eu amo as
histórias dela. Isso é uma informação que deveria ser comunicada, sabia?
Certo, por esse motivo ela ficou tão tensa.
— Então o fato da minha mãe achar que você é minha namorada é
irrelevante? — questionei, um pouco curioso com sua falta de interesse
nesse ponto bastante importante.
— Perdão?
— Lívia! — falei com um tom um pouco sério. — Certo, me perdoe
por não imaginar que você seria uma fã da minha mãe, porque praticamente
ninguém que eu conheço lê Webtoon, mas será que podemos focar no
problema atual? Depois até arrumo um autógrafo para você.
— Por que ela acha que sou sua namorada?
— Porque eu entrei em pânico e falei isso.
— Mas que porra você está dizendo? — Lívia questionou e eu
segurei seu rosto com as duas mãos, vendo a garota arregalar os olhos.
Talvez assim ela prestasse atenção.
— Minha mãe é extremamente conservadora, eu nunca levei uma
mulher para dentro de casa e literalmente ela viu você sentada em cima de
mim — eu expliquei e a garota assentiu, parecendo entender. — Ela ia surtar
demais, então falei que você é minha namorada para aliviar a situação, mas
minha mãe é esperta.
— Você pode soltar meu rosto? — ela perguntou e sua boca fez um
beicinho enquanto falava já que eu estava apertando um pouco suas
bochechas. Soltei assim como tinha pedido e a garota coçou um pouco a
cabeça, como se estivesse pensando. — Está me dizendo que em uma
questão de cinco minutos eu arranjei um namorado e a minha sogra é a
Chung Eun-ji? — Eu poderia jurar que os olhos dela quase brilhavam.
— Você está entendendo o problema que temos aqui? — questionei
só por segurança, vendo a garota sorrir.
— Ué, eu só preciso fingir ser sua namorada, já estudei teatro por um
tempo, consigo atuar. — Lívia deu de ombros, me deixando de queixo caído.
— Você realmente está aceitando isso numa boa?
Aquilo era um pouco surpreendente, mas eu com certeza não
reclamaria, porque caso contrário eu teria que aguentar um surto gigante, o
que seria ridículo demais para lidar considerando minha idade.
— Eu meio que tenho uma condição.
Claro que tinha.
— Qual exatamente?
— Você precisa ser meu namorado de mentirinha também — ela
falou, com um sorriso diabólico tomando conta daquele rosto bonito. Eu
estava perto demais para não me sentir assustado, o que me fez dar um passo
para trás.
— Bom, meio que namoros são uma coisa mútua — eu a lembrei,
porque não estava entendendo onde queria chegar.
— Oh, meu lindo, eu quis dizer que vou fingir para a sua mãe e vou
fazer isso muito bem, mas você precisa fingir para a minha família.
— O quê?! — Eu nem sabia se aquilo tinha sido uma pergunta, só
fiquei totalmente confuso e automaticamente uma das minhas sobrancelhas
se ergueram.
— Sammy, querido, minha família é absurdamente intrometida e eu
vou ser obrigada a aguentar todos eles reclamando sobre o fato de eu ser
solteira a vida inteira e tentando me empurrar pessoas que não tenho o
menor interesse, mas também não posso explicar que não estou afim porque
meu coração foi partido, já que a responsável por esse tragico fim foi uma
mulher e me assumir bissexual durante o meu jantar de aniversário meio que
não está nos meus planos — ela terminou a frase com um sorriso no rosto e
sinceramente era tanta informação que eu só consegui ficar com a boca
aberta. — Eu nunca na vida te pediria isso, mas já estamos tendo a
oportunidade, então por que não?
— Eu só preciso fingir ser seu namorado igual você vai fingir ser a
minha?
Espera, eu estava realmente cogitando aquilo?
— Exatamente! — Lívia exclamou, dando dois passos na direção do
cavalo, mas assim que percebeu, voltou para o ponto inicial. — Certo, se
vamos fazer isso precisamos de regras.
— Coelhinha, eu mal concordei com essa ideia e você quer me enfiar
regras? — questionei, um pouco indignado.
— Bom, é isso ou sua mãe descobrir a verdade.
— Você está me ameaçando?
— Nunca faria isso, Sammy. — Já era a segunda vez que ela usava
aquele apelido bobo.
— Não me chama assim.
— Sua mãe chamou, eu achei fofo.
— Lívia… — tentei falar seriamente, mas fui rapidamente
interrompido por um beicinho e as mãos de Lívia nos meus ombros.
— Ah não, sem tom sério para o meu lado. As regras nem são tão
graves.
— Ok, diga.
Eu estava ficando louco. Maluco. Completamente sem sanidade. Não
tinha outra explicação para realmente aceitar escutar aquilo.
— A primeira é que você vai ter que passar o meu aniversário e o
Natal lá, porque se você aparecer dia dez, mas sumir no natal, o efeito vai ser
horrível e ainda pior. Não quero ter levado um pé na bunda entre meu
aniversário e dia vinte e cinco.
— Vou ser seu holidate? — perguntei, fazendo uma referência ao
filme da Netflix.
— O que é isso? — Lívia parecia realmente não fazer a menor ideia.
— Você não vê Netflix?
— É um filme?
— Sim e você vai ter que ver — proclamei, quase como se aquilo se
tornasse uma lei naquele instante.
Eu era levemente viciado em assistir filmes de natal, talvez por culpa
da minha única prima, que ainda conseguia ter influência sobre mim nesse
ponto.
— Me parece uma comédia romântica — Lívia sugeriu e eu
rapidamente confirmei.
— Natalina.
— Credo, Samuel! Nem fodendo — ela exclamou, tirando as mãos
de mim.
— Considere assistir comédias românticas natalinas comigo como
minha regra. — Se fôssemos mesmo fazer aquilo acho que eu estava no
direito de pedir alguma coisa.
— Se você me falasse para ver filmes de terror e segurar sua
mãozinha eu até aceitava.
— Acho que alguém não vai ter um namorado para o Natal —
sussurrei, fingindo que também não precisava dela para não aguentar um
chilique da minha mãe.
— Puta que pariu! Ok, eu vejo a bosta do filme.
— Ótimo — afirmei, me sentindo vitorioso.
— Regra número dois: ninguém pode saber que isso é mentira além
da minha melhor amiga e do Mathias, porque imagino que queira contar para
alguém.
— Só para os dois me parece mais do que suficiente.
— Acho que a três é a mais importante.
— Fala, coelhinha — pedi, apenas aceitando que aquilo realmente
estava acontecendo. Me sentia em um filme.
— Você não pode se apaixonar por mim, em hipótese nenhuma, nem
minimamente, nem um crush, porque eu não quero te magoar, você parece
legal demais para fazer isso e não estou nada pronta para amar alguém — ela
afirmou aquilo tudo com um tom tão sério que eu só concordei, sem fazer
piada sobre como definitivamente aquilo parecia um romance natalino.
— Combinado — eu murmurei e Lívia sorriu.
— Acho que temos um acordo — a garota estendeu a mão e eu dei
risada antes de apertá-la.
— Isso parece loucura.
— Porque é — ela afirmou, rindo também. — Você tem alguma
regra além dos filmes?
— Você não pode me beijar na frente da minha mãe.
— O quê?! — Lívia arregalou os olhos. — Quero dizer, eu não iria te
beijar, já disse que pular em cima de você foi pelo susto…
— Relaxa, coelhinha — pedi, rindo mais uma vez. — É que se isso
acontecesse, ela provavelmente surtaria. Repito… Mãe conservadora.
— Ah, pode deixar! Não vou te beijar perto da sua mãe — ela falou
com muita convicção, logo em seguida arregalando os olhos. — Quero dizer,
não vou te beijar em lugar nenhum, mas muito menos perto da sua mãe.
— Por que não entramos? — eu sugeri, achando engraçado a forma
como Lívia estava se atrapalhando. — O Marcel logo volta para colocar o
Gato de Botas de volta no lugar.
— Sim, vamos entrar — ela concordou, me dando as costas e
começando a andar quase como se estivesse correndo, o que me fez ter que
acelerar um pouco o passo para ficar ao seu lado.
Fiz um sinal para Marcel ir até o cavalo e o homem rapidamente foi,
dando um sorrisinho sugestivo e aprovador assim que eu segurei a mão de
Lívia, ignorando o fato de que a garota parecia surpresa. Se era para fingir,
eu fingiria direito.
11 - Um Falso Namorado Eficiente É Tudo Que Uma Garota Poderia Pedir

Lívia

Quarta-feira, 07 de dezembro de 2022


Contei o que tinha acontecido para a Maya, mal acreditando em cada
palavra que saia da minha boca, porque tudo aquilo não parecia nada além
de um delírio.
— Então basicamente você arrumou um cara para fingir ser seu
namorado? — minha amiga questionou e eu assenti. — Liv, você chegou no
seu auge de maluquice.
— Fala sério, foi uma ideia brilhante e a oportunidade estava bem ali.
Tem noção de quão foda vai ser do nada chegar com um cara absurdamente
gato e jogar na cara da tia Ella que estou com alguém?
— De mentira — ela lembrou.
— E daí? Ninguém vai saber dessa parte — afirmei, me jogando na
cama, deitando a cabeça em Olaf e segurando o celular logo acima do rosto.
Deveria agradecer aos céus por vovó ter saído para fazer compras e
não ter risco de escutar aquilo.
— Vocês precisam pelo menos combinar as histórias então, você nem
sabe nada direito sobre ele, como vai fingir bem?
— Usarei minhas práticas de teatro — expliquei e vi minha melhor
amiga revirando os olhos.
— Você fez seis meses de teatro, Lívia, e foi quando estava no
fundamental pelo que sei.
— Samuel não precisa saber disso e eu tenho um talento nato —
afirmei, vendo a notificação de mensagem dele aparecendo. — Preciso
desligar.
— Ok, boa sorte com isso, depois me conte mais dessa loucura.
Concordei e desliguei a ligação, abrindo a conversa de Samuel, que
eu só salvei o número no dia anterior.
Sammy: Boa tarde, coelhinha.
Lívia: Boa tarde, Sammy.
Sammy: Você precisa arranjar um apelido novo, já te disse que é
perturbador uma falsa namorada me chamar igual MINHA MÃE me chama.
Lívia: Ok, aceito sugestões.
Sammy: O que acha de Sam?
Lívia: Blé!
Lívia: Nada inovador e nada revolucionário.
Lívia: Eu poderia continuar te chamando de bonitão.
Sammy: Só faz parecer que você não sabe meu nome, é bastante sem
graça.
Lívia: Eu não sabia o seu nome.
Sammy: Exatamente, esse é o ponto.
Lívia: Ok, quer que eu te chame de amor?
Extremamente clichê, mas bastante eficiente, eu poderia chamar
qualquer um de amor, sem muito apego.
Sammy: Não.
Lívia: Para de ser chato!
Sammy: Você quem disse que deveria ser algo inovador e
revolucionário.
Lívia: Posso te chamar de Mon Lapin.
Mais pessoal, mas era fofinho e ele já me chamava de coelhinha de
qualquer maneira.
Sammy: O que é isso?
Lívia: Meu coelhinho.
Sammy: Não, você é minha coelhinha, vai ser sem graça
Lívia: Estou quase voltando para Sammy.
Sammy: Sem chances, use algo genérico, mas não Sammy.
Lívia: Ok, então vou aceitar Sam até algo melhor aparecer.
Sammy: Ótimo!
Sammy: E mude esse contato, eu sei que salvou como Sammy.
Lívia: Como sabe?
Sammy: Conheço minha namorada.
Ele quase era irritante quando queria.
Lívia: Vai cagar kkkk.
Lívia: Mudei, chato.
Namorado Mandão: Como tá agora?
Lívia: Sam, até eu pensar em algo melhor.
Samuel não precisava da verdade e no momento ele realmente era
um namorado mandão. Falso, mas ainda mandão.
Namorado Mandão: Precisamos combinar nossas histórias, temos sorte
da minha mãe não ter perguntado ontem.
Realmente tínhamos, embora minha nova sogrinha tivesse me
avaliado bastante com aquele olhar de gavião, Samuel não deu espaço para
muitas perguntas e logo levou eu e Olaf para casa, avisando Mathias que a
partir daquele momento nós viramos namorados, o que deixou o garoto bem
confuso.
Lívia: Onde você mora?
Lívia: Lembro que o Mathias comentou que está se mudando para
Monte Sul, certo?
Namorado Mandão: Eu morava em Vila dos Anjos, fiz faculdade lá, mas
agora que terminei estou voltando para Monte Sul.
Lívia: Você ia para Monte Sul com frequência?
Namorado Mandão: Uma vez por mês.
Lívia: Ótimo! Nos conhecemos em uma festa há cinco meses atrás e
começamos a conversar desde então, nos apaixonamos e faz dois meses que
decidimos namorar.
Aquilo era ótimo, um relacionamento recente, sem muito
envolvimento, mas ao mesmo tempo paixão suficiente para eu ter o arrastado
até essa cidadezinha só para passar dezembro comigo. Excelente.
Namorado Mandão: Eu daria uma nota quatro para o roteiro.
Namorado Mandão: Achei raso.
Será que não acreditariam? Bom, duvidava que Samuel fizesse
melhor de qualquer jeito.
Lívia: Vai cagar, garoto.
Namorado Mandão: Te vi andando no calçadão nove meses atrás e eu
me encantei logo de cara, porque você usava uma saída de praia roxa cheia
de bolinhas coloridas e seus cabelos estavam acompanhando o vento, o Olaf
caminhava do seu lado. Eu me aproximei de uma forma nada discreta,
perguntei o seu nome e você me olhou como se estivesse achando aquilo
estranho, até que o Olaf pulou na minha perna pedindo carinho e nós dois
rimos da situação.
Namorado Mandão: Isso foi em uma sexta, mas mesmo que você tivesse
contado seu nome, eu não tinha nenhuma informação e imaginei que nunca
mais te veria, até que um mês depois te encontrei em uma festa, não tinha
como não notar você, considerando que estava usando um shorts laranja
com uma regata branca e um quimono amarelo cheio de formas em verde,
roxo e vermelho, o tipo de roupa doida que me fez ficar ainda mais
interessado. Você me reconheceu quando me aproximei e nós conversamos
tanto que trocamos nossos números.
Namorado Mandão: Eu te pedi em namoro dia quatro de maio, que
também é meu aniversário, e começamos nosso relacionamento, mas nós
tínhamos medo de que a distância fizesse as coisas não funcionarem, por
isso não contamos nada por meses, esperando para testar se rolaria até eu
me formar e ir para Monte Sul. Como somos um casal incrível, tudo deu
certo e estamos mais apaixonados do que nunca.
Sinceramente, até eu acreditaria naquela história e isso que estava
fazendo parte da farsa. Mesmo as roupas que ele criou seriam algo que eu
usaria. Samuel tinha me deixado no chinelo.
Lívia: Cacete, você arrasou!
Lívia: Quero ver eu decorar tudo isso.
Namorado Mandão: Se souber as datas já está tudo bem, eu foco nos
detalhes como um bom homem apaixonado faria.
Um bom falso homem apaixonado, mas ainda fofo.
Namorado Mandão: Sou formado em medicina veterinária, caso tenha
esquecido, acho que é importante você saber também.
Namorado Mandão: Moro atualmente com meu pai, seu sogrinho que
você ainda não conheceu.
Namorado Mandão: Preciso de mais informações sobre você, não sei
nem a sua idade, só que faz Artes Visuais.
Eu esperava que as coisas dessem certo, mesmo que não nos
conhecêssemos bem o suficiente para realmente termos um relacionamento.
Será que se usássemos o fato da distância para justificar alguma falta de
informação funcionaria?
Lívia: Tenho vinte anos, faço vinte e um no dia dez.
Lívia: Moro com meus pais e não trabalho por enquanto, o que meio
que faz eles quererem comandar tudo na minha vida.
Lívia: Esse também é o motivo para eu estar aqui e não em Monte
Sul.
Namorado Mandão: Eu também estou sem emprego, pedi demissão da
clínica que eu trabalhava em Vila dos Anjos.
Lívia: Olha só, parece que estamos na mesma nesse ponto.
Lívia: Se não considerar que eu nunca trabalhei.
Lívia: Eu sei, pode me chamar de folgada
Namorado Mandão: Não te acho folgada, coelhinha.
Namorado Mandão: Na verdade, você é incrível.
Namorado Mandão: Mesmo que desempregada.
Namorado Mandão: KKKKKKKKKKKK
Lívia: Vou considerar como um elogio.
Lívia: Quanto a minha família… A única parte relevante e que eu
teria citado é a minha vó.
Lívia: Eu chamo ela de vovó Anne, mas o nome dela é Jeanne.
Lívia: Ah e eu tenho uma prima preferida, a Beatrice, você vai
conhecer ela dia dez. Beatrice é desconfiada, você vai ter que atuar muito
bem na frente dela.
Beatrice realmente se tornava um ponto bastante crucial, porque era a
pessoa que mais me conhecia da minha família e eu não queria ser pega em
uma mentira desse tipo por ela, não quando a admirava tanto.
Lívia: Minha vó vai acreditar em tudo, ela vai achar incrível e nem
vai ligar se parecer falso.
Namorado Mandão: Não se preocupe, serei o namorado mais
apaixonado que você já viu.
Lívia: Só fique focado na regra três, bonitão.
Namorado Mandão: Me chame até de vida, mas para com esse bonitão.
Lívia: Vai pra merda.
Namorado Mandão: Eu sinto que somos aquele tipo de casal onde um
sempre fica xingando o outro.
Namorado Mandão: No caso, eu recebo os xingamentos.
Lívia: Para de drama.
Namorado Mandão: Coelhinha, você deveria tratar seu namorado
melhor.
Lívia: Ok, lindo, tô ocupadíssima indo tomar um chocolate quente,
então até depois.
Namorado Mandão: Vai no café do seu Hector?
Lívia: Sim, por quê?
Namorado Mandão: Vou com você, já estava querendo um café e vai ser
bom se virem nós dois juntos.
Lívia: Ótima ideia, falso namorado.
Namorado Mandão: Boba.
Namorado Mandão: Até daqui a pouco.
Lívia: Até, vou levar seu cachecol.
Soltei meu celular, pensando sobre como tínhamos ficado muito
tempo conversando e apenas focando em calçar meu sapato. Talvez Samuel
fosse realmente ser eficiente em todo aquele lance de namoro falso, o que
era meio surpreendente, considerando que eu parecia ser a parte mais
interessada naquilo.
12 - Patinação No Gelo É Uma Boa Prova De Equilíbrio

Samuel

Sábado, 10 de dezembro de 2022


Lívia já tinha me pedido para repassar toda a história do nosso
relacionamento tantas vezes nos últimos três dias que eu estava prestes a
gravar um podcast e dar para ela escutar só para poder parar de repetir. Mas
me mantive tranquilo, porque percebi que a garota estava bastante tensa
sobre esse meu encontro com a família dela.
Evitei reuniões entre Lívia e a minha mãe desde terça, porque sabia
que a jovem se encontrava suficientemente nervosa com esse aniversário e
ela não precisava de mais estresse até que isso passasse. O que me fez
apenas contar para a mulher a história que inventei e ela pareceu bastante
convencida. Mathias até me perguntou se aquilo tinha realmente rolado,
porque parecia muito real e eu fiquei feliz por ter inventado uma boa farsa.
Assim que vi Lívia correndo até a minha moto, sem Olaf, conforme
eu tinha pedido para que não tivéssemos problemas no lugar em que iríamos,
notei que ela estava parecendo extremamente nervosa, fiquei pensando se
alguma coisa tinha acontecido e já me alarmei, enquanto observava seus
cachos se movimentarem com a corridinha que a garota dava.
— O que foi, coelhinha? — perguntei, assim que parou na minha
frente.
— Vovó está muito ansiosa para te conhecer, porque ela está te vendo
com muita frequência aqui na frente e mesmo assim eu nunca apresento
vocês.
— E isso é ruim?
— Não sei, mas meu tio está chegando em dez minutos, então
precisamos sair daqui porque não estou pronta ainda — ela explicou, já
pegando o capacete que eu segurava. — Para onde vamos?
— Bom, primeiro eu queria te desejar um feliz aniversário — falei,
estendendo a caixa que tinha escondido atrás do corpo. — É só uma
lembrancinha.
Lívia pegou com uma certa animação, abrindo rapidamente e eu vi o
momento exato em que seus olhos brilharam. Ela segurou o cachecol de
linhas coloridas e o ergueu para observar melhor, sorrindo.
— Eu amei! — ela exclamou e eu peguei da sua mão, me
aproximando e colocando no seu pescoço.
— Você nunca está usando e como de guia eu passei para falso
namorado, preciso continuar cuidando de você — eu brinquei, embora a
parte sobre cuidar fosse verdade. Eu gostava da forma como tínhamos ficado
amigos e isso me fazia querer tomar conta dela. — Combinou com a sua
jaqueta — me referi a verde que ela usava com a calça rosa.
— Combinou mesmo — ela afirmou e eu coloquei a caixinha na
lixeira próxima. — Obrigada.
— A segunda parte do seu presente é o lugar que vamos — falei,
colocando meu capacete e subindo na moto, o que fez Lívia me seguir,
abraçando minha cintura assim que se sentou.
— O que tem em mente, vida? — a garota vinha me chamando assim
com frequência, porque, segundo ela, precisava se acostumar com a
pronúncia para não parecer estranho quando estivéssemos com seus
parentes, mas ainda era diferente todas as vezes que eu escutava.
— Você vai ver.

Parei a moto no estacionamento da pista de patinação no gelo e Lívia


encarava o lugar de uma forma engraçada, como se realmente estivesse
surpresa por estarmos ali.
— Nossa, eu não venho aqui desde criança — ela disse, com os olhos
brilhando, e eu fiquei satisfeito por ter feito uma boa escolha.
É claro que quando eu encontrei um cachorro no meio da rua jamais
imaginei que a dona dele seria uma garota bonita e muito menos que eu
acabaria me oferecendo para mostrar essa cidade a ela. Porém, de todas as
possibilidades, jamais imaginei que acabaríamos entrando em um falso
relacionamento.
— Esse é um dos meus lugares preferidos para esvaziar a cabeça e eu
imaginei que você merecia relaxar um pouco no seu aniversário.
Lívia sorriu, como se concordasse, e me entregou o capacete que
tinha acabado de tirar. Apenas pendurei na moto e segurei sua mão enquanto
caminhamos até a entrada. Ok, talvez eu até gostasse de fazer o papel de
namorado.
Retirei os patins para nós dois na entrada e fui com os dois pares até
a garota, que já me esperava sentada, pronta para calça-los.
— Nossa patinação vai ser um pouco diferente — avisei e pude notar
Lívia inclinando a cabeça para mim, esperando por uma explicação,
enquanto eu amarrava os patins. — Você sabe patinar, certo?
— A Lívia de cinco anos sabia, mas considerando que isso já faz
dezesseis… Provavelmente não — ela falou e eu achei a expressão em seu
rosto engraçada, assim que me virei para observá-la.
Fiquei em pé, estendendo a mão para a garota que aceitou e eu
precisei lhe dar firmeza, porque assim que se levantou ela já conseguiu se
desequilibrar.
— Ok, acho que eu não sei nem ficar em pé — ela admitiu e eu tive
que rir, enquanto segurava seu braço, pronto para guiá-la. — Você vai
explicar como exatamente isso será diferente além do fato de que
provavelmente a minha bunda e a pista de gelo irão se tornar melhores
amigas?
— Simples — murmurei, começando a deslizar até a pista, levando
Lívia comigo. — Eu quero saber mais de você.
— Perdão? — Lívia tinha as duas sobrancelhas erguidas, o que
acabou sendo engraçado. Passei a mão levemente pelo seu cabelo e segurei
seu pulso, entrando na pista e lhe ajudando a se manter em pé.
— Nós tecnicamente namoramos, coelhinha, mas no geral eu só sei
coisas superficiais. Quem é a Lívia além da neta da vovó Anne, estudante de
Artes Visuais, usuária assídua de roupas coloridas, viciada em chocolate
quente e mãe do Olaf?
Se eu não estivesse muito focado na pista, poderia jurar que os olhos
de Lívia se arregalaram. Eu prestava bastante atenção em tudo que ela me
dizia, mas não era como se em questão de uma semana eu tivesse
conseguido conhecê-la bem o bastante para interpretar corretamente um
papel na frente de tantas pessoas. Uma coisa era a minha mãe, que já deveria
estar grata demais por eu não estar levando garotas que não tinha um
compromisso para casa para se importar, principalmente considerando que
na cabeça dela, Lívia e eu só faltávamos marcar o casório.
— Já é uma lista bastante extensa — ela resmungou e eu deslizei
com um pouco mais de velocidade propositalmente para que Lívia segurasse
meu braço com mais força.
— Série preferida? — questionei e já que olhei em sua direção
naquele momento, consegui enxergar completamente a careta que ela fazia
Lívia murmurou algo quase inaudível e precisei me dar ao trabalho
de pedir para que repetisse.
— Gossip Girl! — a garota exclamou. — Não me julgue, eu tenho
apego emocional.
— Está me dizendo que não gosta de comédias românticas, mas sua
série preferida é Gossip Girl?
— Eu preciso ser equilibrada.
E ela realmente era, em vários sentidos, porque mesmo que tivesse
dito que não tinha prática e em um primeiro momento de fato parecesse que
não possuía, Lívia estava realmente mandando muito bem na patinação e eu
quase não precisava mantê-la firme.
— Você comentou que tem uma prima — falei, me lembrando que
ela disse que era a pessoa que tinha mais chances de descobrir nossa farsa.
— Sim — ela murmurou e eu não soube dizer ao certo se era por não
querer falar do assunto ou o que. — Sempre fomos bastante próximas, mas
quando eu entrei na faculdade o tempo para ficar fazendo ligações diminuiu
e nos afastamos um pouco.
— Sua família toda é daqui?
— A Beatrice, o Bastien e os pais deles moram em Quebec — Lívia
disse, soltando meu braço e tentando se manter em pé, abrindo um sorriso
gigante assim que conseguiu. — Depois que minha mãe conheceu meu pai e
foi para o Brasil só a minha vó ficou por aqui.
— Você não falou muito dos seus pais.
— Estamos quites nisso — ela afirmou e eu fui para a frente dela,
patinando de costas enquanto a avaliava. — Tirando o fato de que eu
conhecia sua mãe, de uma forma superficial, obviamente, não sei nada sobre
eles.
— Bom, vamos resolver isso então — sugeri e notei que Lívia
parecia avaliar a situação. — Eles se separaram quando eu tinha doze anos e
minha mãe decidiu viver a vida dela, rodando o mundo e eu fiquei com meu
pai. Nós moramos por um tempo na casa que você conheceu, mas como era
da família da Eun-ji, meio que ele não queria ficar. Meus avós são coreanos,
mas meu pai nasceu no Brasil, então decidiu que era a hora de voltar para lá
e nos mudamos para Monte Sul, eu tinha uns quinze anos e minha mãe
começou a vir para cá sempre em dezembro e me fazia passar o mês com ela
para dizer que estava cumprindo bem seu papel.
— Sua relação com o seu pai deve ser boa. — Precisei segurar uma
risada com aquela afirmação.
— Minha relação com os dois é horrível — expliquei. — Meu pai
viaja muito e eu só vejo minha mãe em dezembro e isso há mais de dez anos.
Relações não podem continuar ótimas só pelos laços sanguíneos.
— Deve ser muito difícil para você, digo, não ter eles tão presentes
— Lívia segurou minha mão, me dando um certo tipo de apoio. — Você tem
outros parentes?
— Meus avós já faleceram, os quatro, e depois disso nunca nos
reunimos, mas eu tenho uma tia que é irmã do meu pai e ainda mora em
Monte Sul com a filha. Eu tenho conversado com a minha prima às vezes,
seria legal ter pelo menos um parente próximo, mas é meio estranho, porque
eu nunca mais tive contato depois que minha avó faleceu, há uns nove anos.
Era um pouco esquisita a forma como eu estava simplesmente
contando tudo para ela. Sim, nós estávamos em um relacionamento falso e
eu precisava dar informações básicas para que a farsa tivesse um pouco de
realidade, mas nem com Mathias eu conseguia falar tão tranquilamente sobre
meus avós e a maneira como ter uma família disfuncional me afetava.
Lívia parou de patinar, me olhando com uma certa intensidade que
até me assustou e sua mão foi até o meu rosto.
— Sinto muito por você ter passado por tudo isso, mas quero que
saiba que mesmo sendo loucura, considerando que nos conhecemos há uma
semana, vou estar aqui se precisar.
Ela me abraçou, se encaixando no meu corpo perfeitamente e eu
fiquei surpreso por um segundo, antes de abraçar de volta, o que fez a garota
deitar a cabeça no meu ombro. Acho que até aquele instante não tinha
percebido como mesmo sendo alta, Lívia ainda era pequena, porque eu
conseguia segurá-la completamente.
— Parece que eu te conheço há anos, coelhinha — admiti e a jovem
afastou um pouco o rosto, me encarando.
— Meio que sinto o mesmo — ela disse, sorrindo e me soltando. —
Acho que é a minha vez, porém, eu preciso de um lanchinho e já vi tantas
pessoas passando com batata frita que só quero comer enquanto falo.
— Então vamos comer — eu afirmei, estendendo a mão para Lívia,
que aceitou e nós saímos da pista, parando para colocar os tênis novamente e
ir à lanchonete.
Andamos de mão dadas até o lugar e isso simplesmente parecia
muito natural. Tudo era muito natural com ela e eu só torcia para que
conseguisse manter o nosso acordo e não falhasse na regra três.
— O que vai querer, meu amor? — perguntei em inglês quando
paramos na frente do caixa. Se existia uma vantagem em se encontrar em
uma cidade pequena e fofoqueira, era poder espalhar rapidamente como a
neta da Jeanne estava com um garoto na pista de patinação.
Lívia rapidamente entrou na onda, abrindo um sorriso enorme e
olhando para o cardápio.
— Um hambúrguer, uma porção de batatas fritas, um milkshake
grande de morango e um cupcake — ela respondeu rapidamente e eu assenti,
conferindo se a mulher tinha anotado tudo.
— Para mim pode ser um hambúrguer e um milkshake de chocolate
— falei e a atendente ficou apenas me encarando, o que me fez erguer uma
sobrancelha. Será que ela só entendia francês? Isso parecia pouco provável.
— Algum problema? — perguntei gentilmente.
— Achei que o pedido da sua namorada era para vocês dois — ela
disse baixinho e eu rapidamente mudei minha expressão para uma mais
séria.
Não tinha gostado do comentário, mas eu também não arrumaria
confusão com a mulher, então apenas paguei pela comida e nós sentamos em
uma das mesas com sofá, lado a lado para esperar a comida.
— Por que você parece bravo? — Lívia questionou, me avaliando.
— Não gostei do que a mulher falou — admiti e a garota riu, antes de
apertar minha bochecha. Senti meu rosto queimando e eu poderia jurar que
estava vermelho.
— Você é um ótimo falso namorado — ela afirmou. — E fica fofo
vermelho assim.
— Não me provoca — pedi, segurando seu pulso para tirar sua mão
dali e Lívia assentiu.
— Vou tentar — a garota murmurou, sorrindo. — Sobre a minha
família… — ela hesitou, antes de soltar um suspiro e parecer minimamente
pronta para falar. — Me dou consideravelmente bem com meus pais, mas
eles me tratam como criança e sinceramente, às vezes eu meio que tenho
atitudes que não me dão orgulho. Estou há uma semana sem falar com eles
porque estava irritada por terem me mandado para cá, mas nenhum dos dois
me mandou mensagem hoje e eu notei que não era bem irritada a palavra,
mas sim chateada. Eu ia para um festival hoje com meus amigos para
comemorar meu aniversário e só queria um Natal normal em Monte Sul, sem
ter que aguentar gente que me julga, e com gente eu queria dizer a chata da
minha tia, mas eles decidiram me mandar para cá sozinha e nem vão passar
comigo.
Segurei sua mão, assim como tinha feito comigo e eu notei como de
certa forma aquele gesto acabava sendo bastante reconfortante, porque ela
abriu um sorrisinho, me olhando de canto de olho, antes de encarar a mesa e
a mão que eu não segurava.
— Eu amo a minha avó, mas ela tem a vida dela, fica indo nas
vizinhas toda hora, tricota só Deus sabe o que e saí para fazer compras, eu
meio que não me encaixo. Se não tivesse te conhecido, eu literalmente teria
passado a última semana trancada dentro de casa olhando para o teto, ou
talvez aprendendo crochê.
— Bom, devemos agradecer ao Olaf por ter corrido para mim — eu
falei, pensando quão engraçado era a ideia de que se não fosse por aquele
cachorro, talvez eu nunca tivesse conhecido a Lívia.
— Obrigada, Olaf, você me deu um amigo incrível — ela disse para
nenhum lugar, como se Olaf pudesse escutar e eu dei risada.
— Obrigado, Olaf.
Nossas comidas chegaram e eu agradeci, soltando a mão dela para
trocar o milkshake de lugar assim que o atendente saiu, porque ele tinha
colocado o de morango na minha frente.
— Quer uma batatinha? — Lívia ofereceu e eu achei fofo o jeito que
batatinha soava quando ela dizia, porque tinha um tom diferente.
— Quero — falei, esticando a mão para pegar, mas a garota já estava
com uma batata na frente do meu rosto. Encarei com curiosidade, antes de
morder a comida e ver ela sorrir.
— Por que ficou vermelho? — Lívia perguntou e eu sinceramente
nem tinha cogitado que estava corado. — Sou sua namorada, posso te dar
batatas na boca.
— Você pode fazer o que quiser.
Por que eu tinha dito aquilo? Não fazia a menor ideia, mas a garota
só balançou a cabeça, me dando mais uma batata, antes de tomar um pouco
de seu milkshake e oferecer para eu provar.
Ficamos lá comendo e conversando por mais de uma hora, até estar
perto das seis da tarde e considerando que ainda precisávamos buscar
Mathias, nosso tempo era curto. Os minutos voavam quando eu estava com
ela.
13 - Críticas Familiares São Parte Da Rotina

Lívia

Sábado, 10 de dezembro de 2022


Existem instantes específicos onde você reflete sobre suas ações e as
chances de um arrependimento fazer presença são realmente enormes, o que
eu comprovei assim que Sam estacionou na frente da casa da minha avó o
carro que pegou emprestado com a mãe. Eu, ele e Mathias descemos, porém
a única coisa que se passava pela minha cabeça era como eu deveria estar
louca e quão idiota tinha sido a ideia de arrumar um falso namorado. Se eu
fosse pega, simplesmente seria a maior humilhação da minha vida, quase
conseguia escutar “nossa, a Lívia é tão encalhada que precisou até fingir um
namorado, fala sério, que piada”. Tudo o que eu podia fazer no momento era
confiar em Samuel e acreditar que a nossa conexão bizarra não era apenas
coisa da minha cabeça.
— O que foi? — ele perguntou, interrompendo meus pensamentos e
segurando a minha mão.
Eu quase conseguia sentir faíscas a cada vez que ele fazia aquilo de
uma forma tão natural, como se realmente fossemos um casal e aquilo não
passasse de uma maldita farsa.
— Nervosa — admiti, vendo a caminhonete branca enorme do tio
Louis parada há poucos metros de onde estávamos. — Meu tio realmente
chegou.
— Relaxa, Lívia, o Samuel vai fazer um ótimo papel e eu vou agir
como se te conhecesse bem o suficiente para você ser minha cunhada —
Mathias afirmou, me dando um tapinha nas costas.
Eu constantemente conhecia homens menores do que eu, na verdade,
era uma raridade encontrar caras maiores no meu ciclo de convivência, mas
chegava a ser cômico a altura dele considerando a forma como se portava ao
meu lado.
Respirei fundo, tomando toda a coragem que eu precisava e comecei
a andar para a entrada da casa, sem soltar a mão de Samuel nem um
pouquinho. Abri a porta e logo consegui ver tia Ella e Bastien no sofá da
sala. Minha avó tinha decorado tudo antes que eu chegasse no começo do
mês e a casa era uma enorme mistura de guirlanda, pisca-pisca e festão, além
da árvore gigante e super decorada em vermelho no canto. Colocamos os
casacos e os cachecóis pendurados no cabideiro da minha vó e a minha
atenção foi direcionada para os passos rápidos que ecoaram pela sala.
— Lívia! Feliz aniversário — Bastien gritou, correndo na minha
direção e pulando para me abraçar e eu apertei meu priminho com força.
O garotinho tinha cabelos cacheados e castanhos como os meus e sua
pele também era preta em um tom de amêndoa, mas os olhos ele tinha
puxado completamente da tia Ella, porque eram tão verdes quanto a grama
na primavera.
— Eu estou fazendo aulas de piano — ele me contou em francês e eu
o apertei ainda mais. A última vez que vi Bastien foi no ano anterior, quando
tio Louis deu uma passada em Monte Sul e foi na minha casa nos visitar com
meu priminho.
— É mesmo? Vai ser o próximo Chopin?
Eu não entendia nada de música clássica, mas pelo menos o nome de
alguns pianistas eu sabia.
— Não, eu vou começar a tocar rock no teclado.
Aquilo era bem mais a cara de Bastien, o que me fez rir, antes de tia
Ella se aproximar com um olhar reprovador.
— Já falamos sobre isso, você vai aprender música clássica — disse
para o garoto.
Quando eu falava que aquela mulher era um porre, era em partes
sobre isso que eu estava comentando. Ella Dubois Laurent era pianista aos
dezoito anos e um verdadeiro prodígio, mas largou tudo quando engravidou
do tio Louis e decidiu se dedicar apenas a criação de Beatrice. Porém,
embora aquela tivesse sido uma escolha totalmente dela, uma vez que até a
vovó Anne se ofereceu para cuidar da minha prima, tia Ella adorava despejar
suas frustrações nos filhos e cobrava tanto dos dois que eu ficava
incomodada.
— Sua avó tinha dito que iria trazer alguém, Lívia. Finalmente você
decidiu fazer pelo menos alguma coisa que preste e arrumou um namorado?
Espero que ele seja rico, porque um futuro com a sua faculdade não é algo
que você vai ter. — Tia Ella pegou Bastien do meu colo, deixando o
garotinho no chão e me dando um sorriso falso.
Aquela mulher era uma das coisas que me fazia ter certeza sobre
continuar fazendo Artes, porque simplesmente a ideia de ser tão frustrada ao
ponto de precisar tentar colocar os outros para baixo o tempo todo me
deixava arrepiada. Ela era alguém que eu olhava e não conseguia sentir nada
além de pena.
— Esse é o Samuel — falei em português, porque o coitado do meu
falso namorado deveria estar confuso com tantos diálogos em francês. —
Meu namorado.
Segurei a mão de Sam, o puxando para perto e notei o sorriso na cara
da minha tia desaparecendo, conforme o meu aumentava.
— É um prazer conhecê-la… — Eu o interrompi.
— Ah, não, acredite, não há prazer nenhum em conhecer essa daí —
falei, fazendo uma careta para a mulher e apontando para o Mathias. — Esse
é o Mathias, não que você precise saber, agora com licença que eu vou falar
com as pessoas que realmente são da minha família.
Segurei a mão de Mathias também e sorri para Bastien, apenas para
ele saber que tudo estava bem, antes de atravessar a sala e ir até a cozinha,
onde meu tio tentava acender uma churrasqueira dentro de casa e Beatrice
gritava em francês quão horrível era aquela ideia.
— Ah, o clima de paz natalino, como é bom — eu disse, com todo o
sarcasmo exposto na minha voz e minha prima quase instantaneamente se
virou para mim, sorrindo com aqueles dentes perfeitamente alinhados e
brancos, antes de abrir os braços e correr na minha direção.
Soltei as mãos dos meninos e a apertei quase com tanta força quanto
tinha apertado Bastien, aproveitando o fato de que a altura de Beatrice era
excelente para um abraço, porque minha prima era exatos doze centímetros
menor do que eu, embora sua postura sempre tenha sido equivalente a de
uma modelo. Em questão de aparência, Trish era a cópia da tia Ella: branca,
loira e de olhos verdes, mas eu deveria agradecer aos céus pelo fato de que
em personalidade as duas eram completamente distintas.
— Quanto tempo eu não vejo você — ela afirmou e eu a soltei,
apertando sua bochecha que estava quase inexistente, mostrando que ela
tinha emagrecido ainda mais desde a última vez que nos vimos, o que era
bastante surpreendente, considerando que Beatrice já era muito magra. —
Feliz aniversário.
— Lívia, como você está bonita. Feliz aniversário — tio Louis falou,
se aproximando e me abraçando.
Eu gostava como normalmente eles falavam em português comigo,
mesmo que aquele sotaque fofo pela falta de uso da língua ficasse presente.
— Obrigada, tio — agradeci, me afastando e segurando o braço de
Samuel para fazer meu tio e Beatrice prestarem atenção no menino que tinha
permanecido como estátua. — Esse é o Samuel.
— Brasileiro? — tio Louis perguntou, antes de puxar o garoto e lhe
dar um abraço apertado.
— Coreano — Samuel disse rapidamente, dando dois tapinhas nas
costas do homem antes de soltá-lo. — Mas moro no Brasil há anos.
Beatrice também cumprimentou meu falso namorado e eu apresentei
Mathias, que pareceu bastante animado em dar em cima da minha prima, até
eu cutucar seu braço discretamente e avisar que ela tinha namorada, o que
fez todo o brilho do garoto desaparecer.
Tio Louis continuou insistindo que um churrasco dentro de casa seria
uma boa ideia, enquanto Beatrice tentava convencê-lo do contrário.
— Não vou deixar a minha Lívia sem um churrasco, já basta a
abobada da minha irmã ter feito a coitada vir para cá mesmo odiando o frio.
Curiosidade sobre o meu tio: depois que ele aprendeu a dizer a
palavra “abobada”, meio que tornou aquele o segundo nome da minha mãe e
constantemente a chamava daquele jeito.
— Quem é abobada, Louis?
Merda.
Assim que me virei na direção da entrada da cozinha pude enxergar
vovó Anne acompanhada da dona daquela voz: Julie Laurent Mendes, minha
mãe.
Ok, definitivamente não estava nos meus planos minha mãe aparecer,
porque uma coisa era ter um namorado falso e apresentar para familiares que
eu vejo uma vez por ano e olhe lá, mas para a minha mãe… Como eu
explicaria quando Samuel desaparecesse da minha vida?
— Você mesmo, Julie! — tio Louis exclamou, me tirando da chuva
de pensamentos que surgia em minha cabeça, enquanto andava para abraçar
minha mãe.
Samuel segurou a minha mão e me deu um olhar de cumplicidade,
como se entendesse o que me afligia. Era impressionante como aquele rapaz
conseguia me ler às vezes.
Assim que se soltou do meu tio, a mulher direcionou o olhar para
mim, dando um sorriso que desapareceu logo que sua atenção foi
direcionada para a minha mão e em seguida para o rosto de Samuel.
— Lívia?! — ela pronunciou meu nome como se estivesse fazendo
uma pergunta.
— Sim, meritíssima? — perguntei, usando o jeito que eu a chamava
quando estava brava ou chateada.
No momento eu poderia dizer que estava os dois. Brava por terem
me mandado para cá e chateada por nem terem conversado comigo.
— Quem é esse? — dona Julie questionou, encarando Samuel como
se estivesse avaliando um pedaço de carne estragado, o que me deixou
verdadeiramente incomodada.
Ela poderia me julgar o quanto quisesse, já fazia aquilo todos os dias,
mas Sam não tinha feito nada além de ser uma pessoa incrível desde que nos
conhecemos. Por isso eu entrei na frente dele, como se fosse o bastante para
protegê-lo e praticamente inflei o peito quando disse:
— Meu namorado.
— Seu o quê? — papai foi quem perguntou dessa vez, porque eu fiz
o anúncio no exato momento em que ele entrou na cozinha.
Samuel me puxou um pouquinho para trás, abrindo um sorriso
enorme e estendendo a mão para o meu pai.
— Sou o Samuel, é um prazer conhecer o senhor — ele disse,
apertando a mão do homem e em seguida cumprimentando minha mãe e
minha avó.
— Vocês não conheciam o namorado da sua filha? — tio Louis
questionou, encarando meus pais com desaprovação. — Quando eu digo que
você precisa ser mais participativa e menos crítica, Julie…
Meu tio foi prontamente interrompido pela minha mãe, que não foi
nada educada ao gritar:
— Cala a boca, Louis.
Outro fato curioso sobre meu tio era que além de Beatrice, ele
sempre foi o único que me apoiou fazer Artes Visuais e inclusive comprou
escondido para mim quase todos os materiais que meus pais não quiseram
me dar.
— Desde quando você tem um namorado, Lívia? E como não avisa
que vai trazer ele para Souciville?
— Primeiro que eu não trouxe ninguém, ele não é um cachorro —
afirmei, um pouco irritada pelo tom de voz que ela estava usando comigo. —
Samuel está aqui porque veio passar dezembro com a mãe, inclusive, caso
esteja tão focada em me criticar e não tenha notado, Mathias veio com ele.
— Apontei para o garoto, que acenou discretamente.
Não estava acreditando que além de ter me largado, minha mãe ainda
queria criar uma cena justo no meu aniversário.
— Avisei a vovó, a dona da casa, que ele viria aqui no meu
aniversário, que caso você tenha se esquecido, considerando que nem falou
comigo, é hoje — continuei, um pouco irritada, me aproximando mais dela
como se toda minha raiva tivesse criado um campo magnético, mas
novamente Sam soube o que fazer a segurou a minha mão, acariciando meu
polegar. — Estamos namorando desde maio.
— Como eu não sabia da existência dele? — ela perguntou e eu tive
que soltar uma risada seca.
— Porque, embora talvez seja chocante, isso não é sobre você. É o
meu relacionamento e eu tenho o direito de escolher quando vão ou não
saber sobre ele — falei, bastante nervosa, sentindo minha garganta
trancando.
Soltei a mão de Sam e caminhei até a porta da cozinha que dava para
o fundo da casa, ignorando quão frio estava lá fora e como eu não usava
casaco nenhum e apenas saindo.
Consegui escutar meu tio gritando:
— Por que você precisa sempre criticar ela?
E em seguida a porta se fechou atrás de mim, não me deixando
escutar a resposta. Corri até o fundo do quintal, me sentando na mureta que
tinha lá e enfiando minha cabeça entre os joelhos, como se fosse o bastante
para me acalmar. Porém, não se passou nem cinco minutos antes que eu
sentisse um tecido cobrindo meus ombros. Quando olhei para cima, notei
que era um cobertor e Samuel estava parado na minha frente, usando sua
jaqueta e me dando um sorriso discreto.
— Oi — ele disse e eu suspirei, antes de responder:
— Oi.
— Você vem sempre aqui? — o garoto perguntou, passando o
cachecol pelo meu pescoço.
— Chorar no fundo da casa da minha vó? — questionei, dando uma
risada baixa. — Mais do que você imagina.
Samuel se sentou ao meu lado, pegando minhas mãos e fazendo uma
conchinha com as suas para deixá-las aquecidas. Acho que até o momento
eu nem tinha notado como suas mãos eram enormes.
— Sinto muito.
— Não é sua culpa.
— Mas eu sinto mesmo assim, acho que durante todos os nossos
poucos dias juntos eu nunca tinha visto você chateada, porém foi só a sua
mãe chegar que seu brilho todo desapareceu — ele murmurou, olhando
diretamente para mim, enquanto eu encarava o céu, admirando a neve que
começou a cair.
— Ela não falou comigo nenhuma vez e ainda chegou querendo
implicar com você, foi demais para mim — admiti, suspirando e sentindo
meu nariz coçando, como se eu fosse espirrar.
— Seu tio está te defendendo com unhas e dentes lá dentro, posso
dizer que sou fã dele? — Samuel brincou e eu dei uma risadinha.
— Acho que além da Beatrice e do Bastien, tio Louis é a única
pessoa dos dois lados da minha família que realmente gosta de mim.
— Não fala assim — ele pediu.
— Não é bem mentira, eles não fazem nada além de me criticar.
— Mas você ainda tem eles e posso te garantir que até as críticas são
melhores do que não ter ninguém. No fundo, eles estão criticando porque é a
forma que sabem demonstrar que se importam, mesmo sendo ridículo e não
estando nada certo.
Era egoísta eu estar ali reclamando da minha família considerando
que Sam nem tinha para onde correr.
— Quero só ver no Natal — murmurei. — Se prepare, porque o
clima natalino costuma trazer o caos por aqui e não calmaria.
— Posso lidar com isso — ele afirmou, sorrindo para mim.
— Sua mãe não vai ficar chateada por não passar com ela? —
perguntei, só então me lembrando que talvez isso pudesse ser uma questão,
mas Samuel soltou uma risada quase dolorida, que me fez olhá-lo
diretamente nos olhos.
— Minha mãe odeia o natal, ela não comemora, eu normalmente vou
para a praça ver os fogos.
— Sozinho? — sussurrei, sentindo meu peito doendo com a possível
imagem de Samuel sentado sozinho durante o Natal.
— Sim, eu nunca tinha conseguido convencer o Mathias a vir para cá
comigo e meio que nunca contei sobre a parte de ficar sozinho como uma
última tática de convencimento.
— Saiba que eu te aceito como falso namorado em todos os natais,
ou então nós terminamos, mas continuamos melhores amigos e você está
mais do que convidado para continuar vindo caso sobreviva.
— Fico grato pelo convite e aceito ser seu melhor amigo em todos os
próximos natais — ele afirmou, assentindo com a cabeça como se
firmássemos um contrato, e eu dei risada, me inclinando e lhe dando um
beijo na bochecha.
— Obrigada, você é um ótimo falso namorado.
— Vamos entrar? — Samuel sugeriu e eu concordei, ficando em pé
quando ele soltou as minhas mãos só por tempo suficiente para segurar
apenas uma.
Andamos até a porta e encostei na maçaneta no minuto exato em que
Mathias estava prestes a sair.
— Aleluia! — ele murmurou. — Como vocês me deixam sozinho
para irem se pegar? Não conheço ninguém.
— Nós não… — comecei a falar, mas Samuel só deu um tapa na
cabeça do melhor amigo e mandou ele entrar, o que acabou sendo meio
engraçado.
Tio Louis tinha conseguido instalar sua churrasqueira portátil e a
carne já estava na grelha, o que fez o homem — que se encontrava sozinho
na cozinha — abrir um sorriso para mim, apontando para seu feito de uma
forma orgulhosa.
— Eu disse que iria conseguir — ele afirmou e eu sorri de volta,
soltando Sam para dar um abraço nele.
— Obrigada, tio Louis — falei, me afastando e notando a forma
como o homem parecia me avaliar.
— A abobada foi para a sala, mas se não quiser falar com ela, eu
finjo que não vi você entrando e vocês podem subir para o seu quarto. Aí te
chamo quando a comida estiver pronta — o homem sugeriu e eu ri.
— Não precisa, tio, vou ter que lidar com ela uma hora ou outra.
— Fique de cabeça erguida, você não fez nada de errado.
Concordei com o tio Louis e deixei a cozinha, passando pelo
corredor com Mathias e Samuel e vi todos os meus outros parentes sentados
na sala. Bastien andou até mim, me entregando uma folha cheia de glitter.
— O que é isso? — perguntei em francês, me abaixando para ficar na
mesma altura que meu primo.
— Seu presente — ele respondeu, piscando os olhinhos como se
esperasse eu abrir.
Desdobrei o papel, vendo que estava escrito na minha língua materna
“Feliz aniversário, Lívia, você é a melhor pia do mundo!”. Precisei segurar
a risada por conta da palavra errada, abraçando Bastien e agradecendo. Ele
era o que menos sabia português, porque Ella não fazia a menor questão de
ensinar, mas, ainda assim, meu tio se esforçava para que ele aprendesse.
Me levantei, encarando meu pai, que fez um sinal para que nos
sentássemos no sofá vago e eu fui até lá. O homem começou a conversar
com Samuel e em poucos minutos o papo já tinha se direcionado para como
nos conhecemos e quais eram as intenções dele comigo.
— Pai! Para com isso — eu pedi e Samuel colocou a mão na minha
coxa, como se me sinalizasse que estava tudo bem, mas aquele gesto foi o
bastante para eu ficar de olhos arregalados, encarando sua mão.
— Não se preocupe, amor — ele disse para mim, em seguida fitando
meu pai com atenção. — Posso garantir para o senhor que não tenho
nenhuma intenção além de fazer sua filha feliz. Ver ela sorrindo ilumina o
meu dia inteiro.
Olhei para ele e Samuel me encarava com os olhos brilhando, o que
me deixou quase sem ar.
— Eles não são adoráveis? — Mathias perguntou, apontando para
nós dois e ganhando minha atenção. — Quando o Sammy disse que ia ter
um relacionamento à distância eu nem acreditei muito que iria funcionar,
mas meu Deus, ele só falava da Liv o dia inteiro. Saudades para cá, meu
amorzinho para lá, a maior melação. Não tinha como eles não darem certo.
Eu acho que se existia qualquer dúvida sobre nosso relacionamento
até o momento, Mathias exterminou elas, porque até Beatrice parecia
extremamente convencida. Sorri satisfeita e tentei aproveitar o resto da noite,
que só ficou melhor quando tio Louis anunciou a comida e eu pude
finalmente comer meu churrasquinho.
Evitei meus pais o máximo que pude, principalmente depois que eles
falaram que já iriam embora pela manhã e só tinham passado dar um oi.
Nossa discussão seria adiada até o fim, porque eu não estava com paciência
para mais críticas.
Mathias foi embora com o carro da minha falsa sogra e Samuel ficou
para dormir lá em casa, porque minha avó insistiu muito, a um ponto que
não teve como negar e considerando que meu quarto tinha um sofá, tudo foi
bem tranquilo.
14 - Era Para Ser Fofo Ter Medo De Cavalos?

Samuel

Quinta-feira, 15 de dezembro de 2022


Os dias passaram quase voando depois do aniversário da Lívia e toda
aquela situação com os pais dela. A coelhinha evitou tocar no assunto, mas
eu sabia bem que estava chateada, principalmente porque mais uma vez eles
não tentaram contato, mesmo sendo os errados.
Eu estava pronto para sair de casa, quando minha mãe me chamou,
ganhando a minha atenção.
— Qual é o tipo sanguíneo da sua namorada? — ela perguntou e eu
já quis revirar os olhos, porque embora respeitasse minha mãe acreditar em
personalidade e compatibilidade baseada em tipo sanguíneo tal qual outras
culturas acreditavam em signo, para mim nenhuma das opções fazia sentido.
— Eu não sei, mãe, graças a Deus ainda não precisamos de uma
transfusão de sangue.
— Por que não chama ela para o jantar? — minha mãe sugeriu, mas
eu sabia bem que ela só queria fazer uma sessão de interrogatório.
— Mãe, deixe a Lívia quieta, não tem motivo para você fazer um
interrogatório.
— Por que não? Ela é sua namorada e eu preciso conhecer quem vai
se casar com meu filho.
— Meu Deus, nós não estamos noivos! — a lembrei, jogando as
mãos para cima. — Você só vai ver ela uma vez por ano mesmo, não tem
motivo para ficarmos nesse assunto.
Ou nem isso, porque em breve aquela farsa terminaria.
— Se não estão noivos porque dormiu na casa dela? — a mulher
perguntou, cruzando os braços.
— Porque eu tenho vinte e cinco anos, mãe! — exclamei, pegando
meu casaco que estava pendurado e vestindo. — Eu entendo que você
acredita que eu ainda preciso ficar embaixo da sua asa, mas isso não
aconteceu nenhuma vez desde que eu tinha doze anos, como agora isso vai
fazer sentido? Só vamos continuar respeitando o espaço um do outro.
— Sammy… — A interrompi.
— Está tudo bem, não vamos discutir, vou andar a cavalo.
Passei pela porta, não deixando que ela falasse mais nada. Bom, se
tinha uma coisa que eu e Lívia tínhamos em comum eram nossas relações
conturbadas com nosso pais, não que isso fosse uma coisa boa.

Eu estava dando mais uma volta com Gato de Botas, quando uma
silhueta cor de rosa parada em frente ao estábulo chamou a minha atenção.
Apenas uma pessoa poderia estar usando uma jaqueta colorida combinando
com a calça daquela forma, o que me fez sorrir, enquanto direcionava meu
cavalo até a cerca em que Lívia estava apoiada, me observando atentamente.
— Preciso dizer que você cavalgando é um colírio para os olhos.
Quando for verão, por favor, faça isso sem camisa, grave e me mande — ela
falou assim que eu desci do Gato de Botas.
— Você é muito cara de pau, coelhinha — eu afirmei e foi o bastante
para ela fazer uma careta como se estivesse ofendida.
— Não sou cara de pau, apenas sei o que quero.
Lívia definitivamente não deveria sair falando aquele tipo de coisa.
— E o que você quer é me ver sem camisa andando a cavalo?
— Exatamente, acho que é o mais perto que chegarei da visão do
paraíso.
— Você é tão boba! — exclamei, rindo. Se parasse para analisar
todos os meus últimos dias, acho que eu tinha passado mais da metade deles
rindo com ela.
Gato de Botas se inclinou um pouco para frente e foi o bastante para
que Lívia desse um pulinho para trás.
— Quer andar também? — eu sugeri, vendo os olhos dela se
arregalarem. — Você vai estar comigo, juro que é seguro.
— Não sei se estou colocando muita fé nisso — ela afirmou,
analisando o cavalo.
— Se andar, posso até cogitar o vídeo — eu brinquei, vendo um
sorriso sacana tomar conta dos lábios de Lívia.
— Eu não sou do tipo que esquece fácil — a garota disse, como se
estivesse me avisando.
— Vem logo — pedi, segurando sua mão e a levando para perto do
cavalo.
Foi perceptível seu nervosismo e eu achei melhor pedir para ela
fechar os olhos, enquanto a colocava em cima do Gato de Botas, subindo
atrás dela logo em seguida.
— Pode olhar — falei, assim que segurei as rédeas, a abraçando para
que se sentisse segura.
— Puta merda! — ela exclamou, parecendo um pouco tensa e eu
falei perto do seu ouvido:
— Relaxa, você pode confiar em mim.
Lívia apenas assentiu e eu fiz o cavalo começar a trotar, indo devagar
para que a garota não se assustasse mais. Porém, assim que senti que ela
estava um pouco confiante, passamos a galopar e os cabelos cacheados dela
voaram com o vento, enquanto a jovem soltava um gritinho animado.
— Meu Deus, isso é incrível! — ela gritou e eu apenas sorri, bastante
satisfeito.
Ficamos andando por mais um longo tempo e eu só queria que
durasse para sempre, porque a ideia de que já era dia quinze e em breve
meus dias com ela chegariam ao fim me deixava apreensivo.
15 - Melhores Amigos Costumam Ser Linguarudos

Lívia

Segunda-feira, 19 de dezembro de 2022


Olaf estava meio triste, provavelmente porque no dia do meu
aniversário ele tinha sido obrigado a ficar no meu quarto já que a chata da tia
Ella era alérgica a cachorros e eu não o tirei muito de casa depois disso.
Então, em uma tentativa de deixá-lo feliz, decidi passar o dia com ele e era o
mínimo, considerando que durante os últimos nove dias eu só estava vendo
Samuel e Mathias o dia inteiro, o que incluía ser obrigada a ver alguns
filmes de Natal que Sam dizia serem ótimos. Mesmo não querendo admitir,
eles realmente eram.
— Lívia, a mãe do Christiano comentou que ele chega essa semana
— vovó Anne disse assim que abriu a porta do meu quarto e foi o suficiente
para eu pular da cama, dando um gritinho animado.
Eu estava louca para ver Chris, porque além de morrer de saudades,
queria muito saber como ele vinha se saindo na faculdade e morando
sozinho.
— Isso é incrível, vovó! — eu exclamei, segurando as mãos dela e
dando pulinhos, o que fez a mulher rir.
— Seu namorado vai ficar com ciúmes se ver sua animação para
encontrar outro rapaz.
Segurei a risada com a possibilidade de Samuel sentir ciúmes.
Primeiro porque eu não imaginava ele fazendo a linha ciumento e segundo
porque tudo aquilo era apenas uma farsa e relacionamentos falsos não
incluem ciúmes.
— O Samuel sabe que se garante, vovó — eu falei e embora só
tivesse inventado aquilo, não tinha como ele não se garantir.
Samuel adorava proteger os outros, era inteligente, bonito, divertido
e ainda ficava um gato andando a cavalo. Qualquer garota que pudesse
namorar com ele, seria alguém de muita sorte. Sinceramente, nem fazia
sentido para mim aquele rapaz estar solteiro.
Bom, acho que eu deveria agradecer a todas as moças tapadas que
não notaram aquele homão, porque pelo menos pude tê-lo por um Natal. E
logo aquilo acabaria para ele voltar a elas.
— Está tudo bem, querida? — vovó questionou, parecendo
preocupada. — Você ficou com uma cara estranha.
— Tudo ótimo! — afirmei, forçando um sorriso, não entendo bem o
motivo para eu ter ficado meio para baixo do nada. — Vou ligar para o
Chris.
— Vou deixar você sozinha então — vovó Anne afirmou, apertando
meu rosto. — Se quiser falar sobre o que está te incomodando estou aqui,
vou fazer uns biscoitos.
— Obrigada, vovó.
A senhora deixou meu quarto e eu me joguei na cama, enchendo Olaf
de beijos e abraços antes de pegar meu celular e fazer uma chamada de vídeo
para Chris.
— Fala, gata! — ele atendeu, aparecendo na tela com aquele
rostinho que eu morria de saudades.
Christiano tinha cabelos castanhos ondulados e sua pele preta clara
era quase dourada. Normalmente seu rosto não ficava coberto por nada, mas
naquele instante meu melhor amigo tinha deixado o bigode crescer e um
pouquinho da barba também.
— Congele um pouco — pedi e Chris ficou parado, já sabendo o que
eu faria. — Pronto, te admirei o bastante.
— Conseguiu matar a saudade?
— Nem de longe! — exclamei, me jogando no travesseiro. — Vovó
disse que você está vindo.
— Só fiquei sabendo hoje que você está em Souciville. — ele falou,
fazendo um beicinho. — Eu poderia ter ido semana passada. Falei com
você no seu aniversário, como ocultou o fato de que estava aí, dona Lívia?
— Muita coisa rolando — eu murmurei, soltando um suspiro.
— Não me diga que é a praga da Denise mais uma vez! —
Christiano parecia prestes a me dar um soco virtual com a possibilidade que
criou. — Já te falei para bloquear essa mocreia.
— Relaxa, eu não falo com ela há bastante tempo — eu disse e
realmente era verdade. Não tinha nem notícias dela desde a metade de
setembro.
— Então eu chuto que o problema seja seus pais — ele sugeriu e eu
concordei.
— É, em partes sim — eu disse, olhando para a porta do meu quarto
que se abriu, imaginando que era a vovó, mas fiquei surpresa por ver
Samuel. — Oi! — exclamei, sorrindo.
— Nossa, te levaram um bolo para você ter aberto um sorriso tão
grande? Só comida te faz sorrir assim — Chris falou e eu quis matá-lo. Eu
tinha um melhor amigo com uma boca grande demais.
— Ah, me desculpa, não sabia que você estava em ligação — Sam
disse, pronto para sair do quarto. — A vovó disse que eu podia subir.
Eu gostava de ver Samuel chamar minha avó de vovó, coisa que ela o
obrigou a fazer, mas era fofo.
— Capaz, vem aqui — pedi, dando espaço para ele se deitar ao meu
lado e Olaf já foi pedir carinho, porque meu cachorro simplesmente amava
aquele garoto. — Chris, esse é meu amigo Samuel — falei assim que ele se
sentou, acenando para a tela e em seguida me encarando com uma expressão
estranha.
— É um prazer! — Chris exclamou, olhando para o lado, antes de
terminar de falar: — Sou Christiano.
Samuel fez carinho em Olaf e eu o fitei com curiosidade, porque a
expressão em seu rosto não era exatamente a que eu estava acostumada, me
fazendo pensar se tinha acontecido alguma coisa.
— Gatinha, vou ter que desligar — Christiano falou, ganhando a
nossa atenção. — Preciso buscar umas coisas ainda para poder ir tranquilo.
Chego quinta, já me espere com biscoitos porque tudo que eu quero é te ver
enquanto como a especialidade da vovó Anne.
— Pode deixar! — eu afirmei, acenando. — Até quinta, minha vida.
— Até! Tchau para você também, Samuel!
— Tchau — Sam respondeu, tirando a mão de Olaf para acenar e eu
desliguei, colocando o celular de lado e me virando para o garoto.
— O que veio fazer aqui? Não que eu esteja reclamando, porque não
ia poder sair já que o Olaf está triste — falei, apontando para o cachorro que
parecia qualquer coisa, menos triste, enquanto sorria para o garoto. —
Nossa, acho que você era a cura dele.
Samuel deu um sorriso bastante forçado e não desviou o olhar do
cachorro, o que me deixou um pouco preocupada.
— Ei, você está bem? — perguntei e ele apenas assentiu, sem dizer
nenhuma palavra, o que foi o bastante para que eu segurasse seu rosto, o
obrigando a me olhar. — O que aconteceu?
— É seu namorado de verdade? — ele questionou, sussurrando e eu
franzi o cenho, pensando do que ele estava falando. — O tal Christiano.
— O quê? — indaguei, soltando uma gargalhada com aquela
possibilidade absurda. — É meu melhor amigo, praticamente crescemos
juntos.
— E ele vem passar o Natal com você?
— Não, ele mora aqui quando não está em aula da faculdade, vem
passar o Natal com a família. Você vai passar o Natal comigo — eu disse,
erguendo uma sobrancelha, um pouco confusa com a sua reação. A ideia era
ridícula até na minha cabeça, mas precisei perguntar: — Você está com
ciúmes?
Samuel me encarou, cerrando um pouco os olhos e engolindo em
seco.
— Do que eu teria ciúmes?
— É o que quero entender, sua reação foi esquisita.
— Só queria saber se tinham alguma coisa, ele te chamou de gatinha.
— Ele sempre me chama assim — falei, achando bastante esquisita a
ideia de estar me explicando para alguém que eu não tinha nada além de uma
farsa.
— Vim assistir o filme que faltou — Samuel disse, desviando do
assunto e eu apenas aceitei, porque aquilo tinha ficado suficientemente
confuso para mim.
— Qual seria?
— Holidate, ou Amor Com Data Marcada, depende da língua da sua
Netflix.
— Sinceramente, Samuel Chung, só você para me fazer assistir à
comédia romântica natalina.
— Por nada, eu sei que estou trazendo muito conteúdo para a sua
vida — ele afirmou, com um sorriso cínico no rosto, que me fez sorrir
também.
— Vamos para a sala assistir — falei, dando dois tapinhas na sua
coxa e em seguida o encarando. — Porra, você malha?
— O quê? — Ele parecia confuso, mas eu ignorei, pressionando sua
coxa algumas vezes.
— Fala sério, é super durinha.
— Puta merda, Lívia. — Samuel revirou os olhos, ficando em pé. —
Você é completamente doida.
— E você adora — eu disse, provocando e o garoto me fitou com
uma expressão debochada, antes de ceder e sorrir.
— É, eu adoro.
Aquela resposta me deixou bastante satisfeita e eu chamei Olaf para
nos seguir, enquanto descíamos as escadas e nos sentávamos no sofá para
assistir ao filme que provavelmente seria péssimo.

— Coelhinha, o filme nem é triste, por que você está chorando? —


Samuel perguntou, me oferecendo mais um lenço de papel, enquanto eu
chorava loucamente depois do final do filme.
— Eu quero o que eles têm — falei, em meio às lágrimas, nem
sabendo se daria para entender o que eu dizia.
— Um relacionamento falso que se torna real? — ele questionou e eu
automaticamente fitei seu rosto, mostrando a língua quando notei o sorriso
sugestivo em seus lábios.
— Um amor assim — expliquei, apontando para a televisão. — Acho
que isso não existe na vida real.
— O que exatamente?
— Alguém que escolha te amar em cada momento, em seus dias
ruins, nos dias tristes, mas também fique nos dias bons. Só não acho que
realmente exista algo assim e caso tenha, talvez não seja para mim —
admiti, secando as últimas lágrimas que se encontravam nos meus olhos e
me deitando no colo dele, não me importando nadinha com o fato de que não
pedi para fazer aquilo, ou com a forma que pareceu deixá-lo constrangido.
— Como poderia não ser para você? — Samuel perguntou e eu o
encarei um pouco confusa. — Você é uma das melhores pessoas que eu
conheço. É como se tivesse um arco-íris só seu e nem tem relação com as
suas roupas, é apenas porque você traz cor a tudo. Meus dias andam bem
mais divertidos desde que nos encontramos e não faz o menor sentido para
mim alguém te conhecer para valer e não te amar.
— Talvez nunca fiquem por tempo o suficiente para me conhecer
para valer — eu murmurei, brincando com os fios do suéter azul marinho
dele.
— Então são bem idiotas por não saberem o que estão perdendo.
Fitei Sam, tentando descobrir se de alguma forma ele estava
brincando, mas o garoto parecia sério o suficiente para eu encarar aquilo
como nada além de sinceridade, o que era bastante curioso e bastante
hipócrita também. Se fosse seguir a lógica dele, aquele rapaz me amaria,
porque depois de quinze dias ficando no mínimo metade do dia juntos, eu
praticamente tinha contado a minha vida inteira e ele sabia quase cada
pensamento meu.
Desviei minha atenção do seu rosto quando Olaf me deu uma
lambida, me fazendo rir e me sentar para lhe dar carinho, passando a mão
por seu pêlo fofinho.
Não voltei mais naquele assunto, mesmo que uma pulga tivesse
ficado atrás da minha orelha e nós apenas jantamos com a minha avó,
assistindo alguns episódios de Scooby-doo até quase meia-noite, quando
Samuel quis ir embora para não dormir lá em casa mais uma vez — o que já
tinha acontecido umas quatro vezes depois do meu aniversário.
— Te vejo amanhã, coelhinha — ele falou, me dando um beijo na
bochecha e eu o puxei, abraçando seu pescoço e quase pedindo para que
ficasse, mas não podia fazer isso, porque pelo menos alguma parte minha
precisava lembrar de separar nossa farsa da realidade.
Samuel era meu amigo de verdade, mas como namorado não passava
de um fingimento e eu tinha que conseguir manter isso em mente, ou caso
contrário, meu coração que ainda não estava totalmente curado poderia
ganhar novas rachaduras.
16 - Corações Deveriam Apenas Bombear Sangue Ao Invés De Causar Dor

Samuel

Quinta-feira, 22 de dezembro de 2022


Entrei em casa, um pouco atordoado com a situação que tinha
acabado de presenciar e pude ver Mathias jogado no sofá, assim como em
quase todos os outros dias. Meu melhor amigo tinha realmente tirado férias e
nem fazia questão de sair junto alguns dias quando eu ia ver Lívia.
— Ué, o que está fazendo em casa? — ele perguntou, erguendo o
corpo para me olhar, com uma mistura de confusão e curiosidade estampada
no rosto. — São duas horas da tarde só.
— A Lívia está meio ocupada — expliquei sem muitos detalhes,
tentando tirar dos meus pensamentos a imagem que perturbava minha
cabeça.
— Você parece estranho — ele afirmou, se levantando e andando
para perto de mim.
Desviei e me direcionei para as escadas, como se entrar no meu
quarto fosse o bastante para não pensar, porém Mathias me seguiu pelo
corredor e não me permitiu fechar a porta na cara dele, se sentando na minha
frente quando eu me joguei na cama, encarando o teto.
— O que rolou? Vocês brigaram?
— Não.
— Então precisa explicar que merda pode ter acontecido para você
voltar tão cedo e com essa cara depois de dormir lá — Mathias disse,
cruzando os braços e logo em seguida arregalando. — Ah merda, vocês
transaram e as coisas ficaram estranhas?
— Claro que não! — exclamei, soltando um suspiro meio irritado. —
O tal do Christiano chegou.
— Eu deveria saber quem é? — meu melhor amigo perguntou, me
obrigando a soltar um suspiro irritado.
— O que eu contei para você que chamou ela de gatinha.
— Ah, esse cara — ele falou, balançando o dedo para mim como
uma afirmação. — Mas não entendi o que tem demais.
— Ele chegou quando eu e a Lívia estávamos assistindo, aí ela
literalmente pulou em cima dele e os dois ficaram girando mais que pião.
Parecia aquelas cenas de filme.
— Não estou sacando o problema.
— Eles pareciam uma porra de comédia romântica ao vivo, o melhor
amigo de infância volta para o Natal e os dois descobrem os sentimentos,
fala sério, é o maior clichê possível.
— Sammy, você está pirando, surtando mesmo, puta merda. —
Mathias deu dois tapinhas no meu ombro, como se estivesse preocupado. —
Meu amigo, você está na merda.
— O que quer dizer? — O fitei, ficando curioso.
— Sammy, Sammy… Você claramente está apaixonado. — Ele
soltou uma risada que me fez arregalar os olhos.
— Eu não estou apaixonado — afirmei com toda a convicção que
conseguia.
— Você passa quase o tempo todo com a Lívia — Mathias
argumentou, levantando o polegar como se fosse começar a citar uma lista.
— Nós somos amigos.
— E está claramente com ciúmes de um garoto que é amigo dela. —
Ele ergueu o indicador.
— Não é ciúmes, só queria saber melhor da relação deles, ela não
falou muito sobre isso.
Ela só me contou que eles era amigos há tempos e que a familia dele
morava em Souciville, mas o fato dela ter dito para ele que eu era um amigo
e não seu namorado foi meio esquisito.
— Samuel.
— Não estou apaixonado — repeti, engolindo a saliva que parecia
mais densa na minha boca. — Eu não posso estar.
— Por que não? — Mathias questionou, fazendo uma careta.
— Porque ela me avisou que eu não poderia fazer isso.
Merda.
— Acha que pode controlar seu coração só porque alguém avisou?
Se fosse assim, ninguém nunca se machucaria.
— Eu não posso estar apaixonado — expliquei, dando uma risada
nervosa.
A ideia tinha que beirar o absurdo na minha cabeça, mas apenas por
pensar em Lívia, parecia que meu coração se acelerava. Qual era a chance de
eu ter me apaixonado pela minha falsa namorada que claramente não queria
nada comigo?
— Samuel…
— Não, ela não sente isso e disse um milhão de vezes que não quer
se relacionar com ninguém, eu não posso ter me apaixonado mesmo assim.
Todas as nossas conversas sobre como ela tinha se magoado com a
tal Denise invadiram minha mente, como um turbilhão e eu parecia prestes a
colapsar.
— Ela também pode ter mudado de ideia.
— Eu estou fodido, fodido pra caralho! — exclamei, já nem
escutando mais direito o que ele falava.
Não tinha como eu ser outra coisa além de burro por ter deixado que
aquela garota invadisse meu coração, mesmo que Lívia fosse um furacão e
eu acreditasse que era impossivel ela não estar presente em cada
pensamento. Porém, eu teria que lidar com as consequências daquilo e
apenas engolir tudo que eu sentia até que a farsa acabasse. Talvez quando já
não estivéssemos nos vendo mais as coisas ficassem diferentes, quem sabe
aquilo desapareceria, mesmo que eu soubesse que esquecer minha coelhinha
seria impossível.
O Natal já estava chegando e depois dele nós tínhamos apenas seis
dias até que cada um voltasse para a sua vida antes de nos conhecermos e do
fingimento começar. E eu já estava sentindo falta dela.
17 - Apelidos Repentinos Mexem Com O Coração

Lívia

Sexta-feira, 23 de dezembro de 2022


Acho que crise existencial seria um bom termo para definir o que eu
sentia no momento. Tinha ligado para Samuel um total de quatorze vezes, o
que me fez concluir que talvez eu estivesse perdendo a minha sanidade,
porque não fazia o menor sentido continuar ligando para alguém que não
atendia.
Eu estava jogada na cama, discando o numero dele mais uma vez,
deitada em cima de Olaf e pronta para começar a chorar, porque me sentia
absurdamente confusa, quando Christiano entrou pela porta, arregalando os
olhos.
— Por que você parece prestes a chorar enquanto segura o celular na
orelha? — ele perguntou, em seguida erguendo as sobrancelhas como se
tivesse entendido tudo, seja lá o que se passasse na sua cabeça. — Puta que
pariu! — Chris se jogou do meu lado, ficando perto do microfone. — Escuta
aqui, sua mal amada do caralho, já não basta ter partido o coração da minha
amiga para começar a namorar com aquele bostinha que parece o Popeye,
você ainda quer ficar perturbando ela? Supera que você perdeu esse
mulherão, ela está super gostosa e namorando outra pessoa, porra, vai se
foder.
Eu quase dei risada, porque sinceramente, o atual namorado da
Denise realmente parecia o Popeye, com os braços enormes, mas super
baixinho. A única diferença era que ele tinha cabelo.
— Só por curiosidade, quem você está namorando? — a voz de
Samuel invadiu o outro lado da linha e eu arregalei os olhos, porque não
achei que ele tivesse atendido. — Espero que ele esteja falando de mim,
coelhinha.
Me sentei imediatamente na cama, querendo assassinar Christiano
por ter dito tudo aquilo.
— Oi! — exclamei, escutando uma risada.
— Seu amigo parece um pouco irritado — ele afirmou e eu encarei
Chris, imaginando que estava o enforcando.
— Era o Samuel? — meu melhor amigo perguntou baixinho e eu
assenti.
Christiano tomou o celular da minha mão, me fazendo arregalar os
olhos, tentando pegar de volta, mas ele pôs o braço na frente, me impedindo,
antes de colocar no viva-voz.
— Posso saber o que você fez para a minha melhor amiga chorar?
— O quê? — Samuel parecia confuso do outro lado da linha.
— Olha, no geral o dedo da Lívia é podre, mas eu realmente achei
que você era um cara decente, porém entrei aqui e ela estava quase
chorando, então por favor me conta o que aconteceu.
Aquele seria o momento em que eu perderia meu réu-primário. Pulei
nas costas de Chris, tentando pegar meu celular, enquanto ele gritava para
que eu descesse, mas nossa discussão foi interrompida, quando Samuel
perguntou:
— Por que você estava chorando, coelhinha?
Isso fez Christiano parar, me entregando o aparelho e eu precisei
respirar fundo, tentando bolar alguma mentira que fizesse sentido.
— Não estava, foi impressão do Chris.
— Mentirosa — Christiano murmurou e eu mostrei a língua para ele.
— Tem certeza? — Sam questionou mais uma vez. — Se eu fiz
alguma coisa, pode falar.
— Você não fez nada! — afirmei, chutando a bunda do meu melhor
amigo, antes de me sentar na cama novamente.
— Aliás, foi mal não ter atendido antes, baby, eu fui dar comida
para o Gato de Botas e esqueci o celular dentro de casa — Samuel
explicou, me fazendo me jogar para trás, como se tivesse levado um tiro,
fechando os olhos. — O que rolou para ligar quatorze vezes? Quer que eu
vá aí?
Baby, puta merda, aquele garoto queria me foder e nem era no bom
sentido.
— Credo, eu tinha esquecido como você ficava apaixonada — Chris
comentou e eu arregalei os olhos, o encarando seriamente. — Samuel, saiba
que sua namorada acabou de se derreter aqui.
— Cala a boca — gritei, jogando uma almofada naquele idiota
linguarudo.
— Avise o meu cunhado que ainda estou indignado por vocês
estarem juntos desde maio e eu só ter ficado sabendo agora, mas que estou
aliviado do seu chororô ser porque ele não te atendeu e não qualquer outra
coisa.
— Some daqui, Christiano — berrei, jogando minha garrafa de água
nele e acertando sua perna, o que fez meu melhor amigo me mostrar o dedo
do meio.
— Sò vou sair porque não quero participar dessa conversa melosa,
mas você não manda em mim, sua nojenta.
— Engraçado que até agora pouco eu era gostosa, né! — exclamei
para ele, assim que abriu a porta do quarto, imitando seu gesto de antes.
— Você é, principalmente quando estou esfregando na cara dos
outros o que eles perderam, mas quando me irrita eu simplesmente te odeio.
— Vai para a merda!
— Depois de você! — ele gritou, saindo do quarto e fechando a
porta.
— Vocês parecem ter uma relação bastante tranquila — Samuel
disse, me lembrando que ainda estava na ligação.
— Acho que por nos conhecermos desde crianças as vezes ele se
torna o irmão que eu não tenho.
— Eu pensei que você tivesse dito a verdade para ele.
— Por quê? — questionei, me virando de bruços e colocando o
celular na cama. — Eu te falei que só ia contar para a Maya.
— Você me chamou de amigo quando me apresentou aquele dia na
ligação — Sam disse, com o tom de voz um pouco mais baixo.
— Força do hábito, depois eu contei que namoramos — respondi
rapidamente, antes de prestar atenção no que eu tinha dito e sentir meu
coração quase parar. — Quero dizer… Ah, você me entendeu.
— Sim, namorada — ele debochou e eu mostrei a língua, mesmo que
fosse impossível Samuel ver.
— Você podia vir aqui, né — pedi, com a voz manhosa.
— Já está com saudades de mim? Eu dormi aí ontem.
— Mas foi embora logo depois do almoço, nem terminamos de
assistir o filme do Scooby-doo.
— Quer que eu vá aí para terminarmos então? — ele sugeriu e eu
automaticamente me sentei, ficando bastante animada.
— Sim, por favor, não sei mais assistir sem ter seus brações para
abraçar — falei, sabendo que aquilo provavelmente o deixaria vermelho,
como todos os comentários que eu fazia. — Você esconde uma mina de ouro
embaixo da jaqueta.
— Vai cagar, Lívia.
— Vem logo, amorzinho — brinquei, escutando ele rir do outro lado
da linha. Eu poderia irritá-lo o quanto fosse, no final ele sempre dava risada.
— Já estou pegando a chave da moto, chego aí em dez minutos.
— Vou fazer pipoca, beijos.
Desliguei a ligação, saltando da cama e calçando minha pantufa,
chamando Olaf para fazer pipoca comigo, mas assim que abri a porta eu vi
Christiano plantado lá, com um sorriso cínico no rosto.
— Mas que porra, Chris.
— Aí, seu amorzinho já está vindo ver filme só porque você pediu.
Cerrei meus olhos e Chris começou a correr, porque sabia que eu iria
atrás dele. Com Christiano eu voltava a ser criança, porque ele era a porra do
meu irmão mais velho insuportável. Paramos quando eu percebi que Samuel
deveria estar chegando e corri para a cozinha fazer pipoca.
Logo estávamos eu, Sam e Chris — atrapalhando tudo — assistindo
Scooby-doo com Olaf deitado no sofá do lado.
18 - Namoros Falsos E Sentimentos Reais Não Combinam

Samuel

Sábado, 24 de dezembro de 2022


Gostaria de dizer que o dia anterior tinha me feito concluir que a
ideia de estar apaixonado não passava de um surto coletivo entre eu e
Mathias, mas depois daquela ligação e de ir assistir filmes com Lívia, eu
apenas senti mais ainda todas aquelas sensações me dominando. Ela me
fazia feliz de um jeito que eu não me sentia há muito tempo, como se apenas
por ouvir a sua voz uma energia incrível me dominasse. Definitivamente
meu coração não estava preparado para o furacão Lívia.
— Bom dia — ela falou, se sentando na cama e se espreguiçando de
um jeito fofo, enquanto seus cabelos estavam uma verdadeira bagunça
adorável.
Eu me encontrava no meu novo canto preferido para dormir: o sofá
do quarto dela, lugar onde passei grande parte das últimas noites.
— Bom dia — murmurei, colocando o braço embaixo da cabeça para
vê-la melhor e não conseguindo conter o sorriso que se formou nos meus
lábios.
Vovó Anne definitivamente me adorava, considerando que nunca
deixava de me chamar para jantar e sempre insistia para que eu ficasse
dormindo lá, o que até a fez pegar um pijama que segundo ela pertencia a
Louis quando era mais novo para que eu usasse.
Uma das minhas partes preferidas de passar o inverno fora do Brasil
era como as casas tinham um ótimo aquecimento, porque mesmo que do
lado externo estivesse congelando, eu me encontrava de camiseta e bermuda,
com apenas uma coberta me esquentando.
— Eu acho que você gosta muito desse sofá — Lívia disse, se
levantando da cama e fazendo carinho em Olaf, que tinha dormido com ela.
— Dá para dizer que ele é muito confortável — eu afirmei, sorrindo
e vi a garota revirando os olhos, antes de se olhar no espelho.
— Porra, meu cabelo está uma zona.
— Continua lindo — pensei alto e foi o bastante para Lívia ganhar
um sorriso sacana nos lábios e se aproximar, me deixando um pouco
apreensivo.
— Você acha meu cabelo lindo? — ela perguntou e eu franzi o
cenho, meio confuso com aquela pergunta.
— Sempre disse que sim.
— Interessante — Lívia murmurou, sorrindo e se abaixando do meu
lado. — As vezes fico curiosa sobre o que mais você acha de mim — ela
disse, fazendo um beicinho e deslizando o dedo indicador pelo meu braço.
— Você é um namorado muito quietinho.
Estava prestes a perguntar o que ela queria dizer, quando a porta foi
aberta e Christiano entrou, como se não fosse nada.
— Bom dia, pombinhos, devo agradecer aos céus por vocês estarem
vestidos, porque eu tinha esquecido que o Samuel dormiu aqui — ele disse,
se sentando na cama de Lívia e abraçando Olaf.
— O que está fazendo aqui tão cedo? — a garota perguntou, se
levantando e cruzando os braços.
— Atrapalhei alguma coisa? — Christiano devolveu a pergunta,
cerrando um pouco os olhos. — Olha, vocês vão ter muito tempo para
transar em paz quando voltarem para Monte Sul, então será que podemos
aproveitar enquanto eu posso ficar com vocês?
— Sai daqui! — ela gritou para o rapaz, jogando uma blusa que
estava no chão na direção dele.
— Credo, garota — Christiano exclamou, se levantando e mostrando
a língua. — Desçam logo que a vovó quer tomar café, nada de rapidinhas.
— Abre essa boca de novo e eu te mato — Lívia falou para ele,
empurrando o garoto para fora do quarto.
— Pare de tratar sexo como tabu, Lívia, não é como se vocês não
transassem — Chris disse, antes que ela fechasse a porta na cara dele.
Bom, acho que Christiano ficaria meio surpreso se soubesse que não
tínhamos nem sequer nos beijado e que provavelmente aquilo nunca
chegaria a acontecer.
— Foi mal, ele é idiota — Lívia disse, tirando os meus pensamentos
do que eu não deveria nem imaginar.
— Tudo bem — eu afirmei, forçando um sorriso, antes de me
levantar, me virando para arrumar o sofá.
Porém, levei um susto quando senti alguma coisa colidindo com a
minha bunda e causando um estalo, assim que me virei, pude notar Lívia
bem próxima. Encarei sua mão, me perguntando se eu estava imaginando
coisas.
— Você acabou de bater na minha bunda? — questionei, erguendo
uma sobrancelha.
— Ah, você não pode me julgar desse jeito — ela falou, apontando
para o meu rosto. — Seu bumbum ficou um arraso nesse pijaminha. — Lívia
indicou minha bunda com as duas mãos, como se estivesse pronta para
apertar.
— Lívia, você simplesmente não vale nada! — eu exclamei, dando
as costas para ela novamente e terminando de dobrar a coberta.
— Não posso fazer nada se meu namorado é um grande gostoso —
Lívia mudou um pouco o tom de voz para dizer namorado, apenas para
deixar claro que não era sério e eu revirei os olhos.
Porém, não esperava que ela pulasse nas minhas costas, me
obrigando a segurar suas coxas para mantê-la firme.
— Me leva até lá embaixo? — Lívia pediu, abraçando meus ombros.
— Estou com preguiça de andar.
— Você bate na minha bunda e ainda espera que eu te carregue?
— Eu acho que como sua namorada eu deveria ter o direito de usar e
abusar desse corpinho lindo e malhado que Deus te deu — ela argumentou e
mesmo tentando não fazer, eu acabei rindo. — Viu, sua recompensa é que eu
sou engraçada e gostosa, tem como pedir mais?
— É melhor você calar a boca, Lívia.
— Já sei, se eu continuar falando você não vai resistir? — Lívia
sugeriu e eu revirei os olhos, ajeitando ela e saindo do quarto.
— Se continuar falando eu vou deixar você cair de bunda no chão e
aposto que vai doer.
— Tudo bem você pode dar beijinho para sarar.
— Lívia! — eu a repreendi, escutando a risada dela ecoando pelo
corredor.
— Qual é, Samuel, estou brincando com você! — ela exclamou, se
erguendo um pouco para me dar um beijo na bochecha, antes que eu
descesse as escadas.
Obriguei ela a sair das minhas costas antes de entrarmos na cozinha,
porque não queria nenhum olhar sugestivo vindo de Christiano ou algum
entendimento errado da vovó Anne. Mesmo teimando, Lívia concordou
comigo, segurando minha mão enquanto andávamos. Às vezes parecia que
nós esquecíamos que aquilo era apenas fingimento e eu precisava me obrigar
a ficar com isso sempre em mente, porque quando aquela garota me tratava
como se realmente fosse seu namorado, ou ficava fazendo brincadeirinhas,
não era bem como se meu coração entendesse que não passava de uma farsa.
Eu só precisava ter aquilo fresco para aquela noite, porque a véspera
de Natal tinha finalmente chegado e com ela precisávamos lidar com tudo e
eu atuaria como o melhor namorado possível, porque no fundo tudo o que eu
queria era que não fosse apenas mentira.

Todo mundo já tinha chegado, porque os pais de Lívia avisaram mais


cedo que não conseguiriam ir e eu estava me esforçando para ser o mais
simpático possível, mesmo que a tal tia Ella estivesse no meu pé —
enquanto Louis e Bastien ajudavam na cozinha —, me perguntando coisas
ridículas como “deve ser difícil aguentar a Lívia, não? Ela tem um
temperamento tão forte” ou “já sabe que vai precisar sustentá-la, né? Essa
garota escolheu um curso tão sem futuro”. Minha única vontade era mandar
a mulher tomar no cu, porém, como um ótimo namorado bonzinho, eu me
controlei e não insultei aquela velha, pelo menos, não fora da minha cabeça.
Eu queria que Mathias estivesse ali para pelo menos eu ter alguém
quando minha namorada sumia, mas o pai dele ligou no dia anterior, pedindo
para que o meu melhor amigo passasse a noite do Natal com a família em
Paris, porque eles tinham decidido ir para lá de última hora. Então
mandaram um helicóptero e eu apenas me despedi daquele idiota, que
voltaria dia vinte e seis.
Meu olhar correu pela sala, tentando encontrar Lívia para que ela me
salvasse daquela situação insuportável.
— Amor! — Lívia exclamou, me puxando pela mão e acenando para
a mulher, ignorando completamente quando ela falou que estava
conversando comigo e me levando dali.
Liv estava usando um suéter vermelho de bolinhas brancas e eu
estava propositalmente combinando, com um verde de bolinhas. Compramos
juntos quando fomos novamente na feirinha e eu acho que tinha virado uma
das minhas roupas preferidas.
— Eu juro que poderia te beijar agora! — eu afirmei sem pensar,
vendo os olhos de Lívia se arregalando e querendo engolir imediatamente o
que tinha dito, isso, claro, antes do sorriso sacana invadir os lábios dela.
— Pode fazer isso mais tarde — ela falou e eu revirei os olhos,
porque mesmo não sendo proposital, Lívia estava brincando com o coitado
do meu coração e ele não aguentaria muito mais.
— Por que a Beatrice não está aqui? — eu perguntei, desviando do
assunto para saber sobre a prima legal de Lívia.
— Foi passar o Natal com a família da namorada. Sinceramente,
louca de esperta de fugir disso daqui — a garota disse, soltando um suspiro e
pegando o celular do bolso.
Eu não estava espiando, mas simplesmente não tinha como não
enxergar a tela se acendendo e o nome gigante de Denise aparecendo em
uma chamada.
Aquilo fez meu peito doer. Durante alguns dos nossos dias, Lívia me
contou sobre como ela e Denise estavam ficando há bastante tempo e quando
acreditou que finalmente teriam alguma coisa, a menina simplesmente deu
um ghosting e apareceu namorando — nas palavras da coelhinha e de
Christiano — a cópia do Popeye com cabelo. Porém, mesmo que já não
tivesse contato com Denise, a garota ainda parecia afetá-la bastante, e
considerando que Liv não me disse que elas vinham se falando, talvez aquilo
pudesse significar uma volta.
Nós nos separaríamos dia primeiro de janeiro. Eu voltaria triste e de
coração partido para Vila dos Anjos e só depois iria para Monte Sul,
enquanto Lívia poderia ficar com Denise. Eu só esperava que ela não saísse
machucada mais uma vez, porque com toda certeza aquela garota merecia
ser feliz, mesmo que isso significasse não ficar comigo.
Lívia me encarou, me dando um sorriso bastante falso.
— Eu preciso atender rapidinho, mas você pode dar uma olhada no
Olaf? Ele odeia ficar preso, mas a chata da tia Ella é alérgica.
— Eu sei — afirmei, forçando um sorriso também. — Vou dar uma
olhadinha nele, pode ir lá.
A garota agradeceu, segurando o celular com força e saindo pela
porta dos fundos depois de colocar a jaqueta. Eu gostaria de dizer que aquilo
não tinha doído, mas estaria mentindo, porque querer que ela fosse feliz não
significava que eu não sentiria meu coração se quebrando apenas com a
possibilidade dela não fazer parte do meu futuro.
19 - Ex-Quase Namoradas São Um Porre

Lívia

Sábado, 24 de dezembro de 2022


Atravessei a porta, um pouco irritada por Denise realmente ter a cara
de pau de me ligar, principalmente depois de ter me mandado um monte de
mensagens desde ontem, essas que ignorei.
— Mas por que caralho você está me ligando, Denise? — perguntei,
deixando quão puta da cara estava estampado na minha voz.
— Por que tanta grosseria, Livzinha?
Era estranho como o apelido que eu costumava gostar naquele
momento não me causava nada além de náusea. Será que era assim que
funcionava a superação de términos conturbados? Toda aquela tristeza e
euforia é substituída por nada além de descaso e nojo?
— Você merecia que eu nem atendesse — falei, ríspida e foi o
suficiente para eu escutar um suspiro do outro lado da linha.
— Sinto sua falta.
— Isso não é problema meu.
— Qual é, Lívia, não é como se você tivesse realmente me
esquecido.
— Denise, vou te contar algo que talvez seja chocante — eu disse,
tentando não mandar ela se foder. — Minha vida continuou sem você, eu
estou absurdamente feliz e com outra pessoa.
— Conta outra. — Ela soltou uma risada, me fazendo pensar como
exatamente eu passei meses sofrendo por aquela criatura podre. — Todo
mundo sabe que você me ama.
— O amor deixa de existir quando não é suficiente. Você partiu a
porra do meu coração, sumiu por dois meses e apareceu namorando aquele
projeto de homem, além de que eu só fiquei sabendo porque o povo da
faculdade me contou. Denise, você é uma escrota e eu estou tão
absurdamente agradecida por ter caído na real e parado de te colocar em um
pedestal. Eu não amo você, acho que nunca amei, eu só amava a ideia do que
a gente poderia ser, mas estou muito feliz mesmo, namorando alguém
incrível e isso você não pode tentar invalidar, porque finalmente alguém me
trata do jeito que eu mereço e eu me apaixonei completamente por ele.
Eu até poderia falar que aquilo não passava de uma história para
Denise me deixar em paz, mas eu tinha sido sincera em cada palavra e sabia
disso, sentia em meu peito. Eu estava apaixonada por Samuel Chung e talvez
me foderia por isso, mas cacete, que se dane, pelo menos uma vez eu
precisava seguir a droga do meu coração.
— Você está falando sério? Realmente começou a namorar? — Ela
parecia realmente surpresa e claro que estava, acho que acreditou que eu
ficaria igual imbecil sofrendo até que decidisse me dar uma chance.
— Sim, agora com licença que eu preciso voltar para a minha família
e o meu namorado, tchau, Denise, feliz Natal.
Não deixei que ela respondesse e apenas desliguei a ligação,
entrando dentro da casa e procurando por Samuel. Meu coração estava
acelerado enquanto subi as escadas, abrindo a porta do quarto e vendo o
garoto brincando com Olaf.
— Oi — ele disse assim que me viu.
— Oi — respondi, achando a cena adorável, porque ele tinha pego
Olaf no colo e o cachorro parecia sorrir ainda mais do que de costume.
— Terminou sua ligação?
— Sim e também encerrei um capítulo.
— O que quer dizer?
— Finalmente eu superei a Denise e digo isso completamente, sem
nenhum resquício de sentimento.
Samuel abriu um sorriso, parecendo satisfeito com a minha
conclusão e colocou Olaf no chão antes de se aproximar de mim, me dando
um beijo na bochecha. Senti minha pele queimando onde seus lábios
tocaram e se ainda restava alguma dúvida sobre estar apaixonada por ele,
acabou naquele instante.
— Fico feliz.
Vamos, garoto fala direito comigo. É um “fico feliz” do tipo: que
bom, vamos ficar juntos, ou um “fico feliz” mais para: adoro nossa amizade,
que bom que superou essa tóxica? Eu gostaria que ele tivesse menos filtros e
me dissesse o que se passava naquela cabecinha linda.
— Lívia, Samuel, o jantar está na mesa! — tio Louis gritou do
corredor e foi o bastante para que eu desviasse minha atenção de Sam.
— Vamos lá — falei para Samuel, mas fazendo um sinal para Olaf
ficar, enquanto deixávamos o quarto.
Descemos as escadas rapidamente e Bastien já pulou na nossa frente,
indo abraçar meu falso namorado. Até mesmo meu priminho tinha se
apegado a Samuel vendo o garoto por dois dias, então ninguém poderia me
julgar por ter me apaixonado em quase um mês.

Samuel não parava de se mexer no sofá e sinceramente, eu nem


poderia julgar, porque estava do mesmo jeito na cama, principalmente
porque Olaf tinha ido dormir com Bastien em um dos quartos de hóspedes e
eu não era acostumada a ficar sozinha na cama.
— Sam? — chamei, acendendo a luz do abajur e logo a voz do
garoto dominou o quarto:
— Eu te acordei?
— Não, eu também não consigo dormir — expliquei, me sentando na
cama e coçando os olhos. — Quer vir aqui comigo?
— Tem certeza? — ele questionou e eu consegui ver, mesmo com a
pouca luz, sua silhueta se erguendo um pouco.
— Sim, vem logo — pedi, dando algumas batidinhas na cama e
deslizando para o lado.
Samuel levantou, andando e se sentando no espaço que liberei para
ele.
— Por que não consegue dormir? — o garoto perguntou, encarando
as paredes assim como eu.
— Muitos pensamentos — admiti, soltando um suspiro.
— No que você está pensando?
— No momento em você.
Consegui notar como ele rapidamente me encarou, parecendo
confuso.
— Em mim?
— Estou imaginando como seria te beijar — falei, não me
esforçando mais para conter as palavras entaladas na minha garganta. — E,
na verdade, no momento acho que é o que está dominando a minha cabeça.
— Esse é o seu pensamento? — ele questionou e eu me virei um
pouco, o encarando com certo deboche.
— Não fale como se estivesse me julgando, você é um pedaço de
mau caminho — afirmei, fazendo um beicinho. — Fico curiosa sobre qual
seria a sensação.
— De me beijar?
— É, basicamente sim.
O rapaz soltou uma risada abafada, antes de chegar perto de mim.
— O que está fazendo? — perguntei, cerrando um pouco os olhos.
— Se é o que não te deixa dormir, eu posso tirar isso da sua cabeça
— ele falou e eu sorri, um pouco curiosa.
— O que exatamente me faria parar de pensar que quero beijar você?
Samuel chegou bem mais perto, deslizando uma das mãos pelo meu
pescoço e roçando a boca na minha orelha, antes de sussurrar:
— Posso te dar o que você quer. — Ele se afastou, ficando com o
rosto a centímetros do meu.
Eu não sabia se aquele rapaz estava brincando ou o que diabos era
aquilo, mas definitivamente queria entender.
— Está dizendo que vai me beijar?
— Acho que não incluímos isso nas nossas regras — ele afirmou e
eu assenti, a única coisa sobre beijos era que eles não poderiam acontecer na
frente da mãe dele, o que, sinceramente, não era momento para citar.
— Não incluímos — eu concordei e o garoto se aproximou um
pouco, tocando seu nariz no meu, antes de beijar a minha bochecha,
enquanto sua mão parecia bastante confortável no meu pescoço, com o
polegar acariciando minha mandíbula.
Ele deu um beijo do lado que sua mão não estava, me fazendo
arrepiar mesmo com aquele simples toque e soltou uma risadinha maldosa
quando notou o que tinha provocado em mim.
Samuel foi deixando uma trilha de beijos em meu pescoço, antes de
chegar bem perto da minha boca, a fitando como se analisasse o que faria
sem seguida, mas, sinceramente, só parecia que ele estava me atentando.
Porém, antes que pudesse reclamar sobre isso, nossos lábios se
colidiram e eu me desmanchei, porque nem em todos os meus pensamentos
tinha conseguido cogitar que beijá-lo seria daquela forma. Entreabri os
lábios e sua língua deslizou em direção a minha, aproveitando a situação de
uma forma deliciosa. Passei meus braços pelo seu pescoço, tentando trazê-lo
para ainda mais perto e sua mão que estava no meu pescoço cedeu até a
minha cintura, se direcionando lentamente para dentro da minha camiseta.
Aquele rapaz queria me matar, essa era a única explicação possível,
principalmente quando começou a deslizar o indicador pela lateral direita do
meu corpo, indo para baixo e em seguida subindo até chegar com o polegar
perto do meu seio, acariciando a região.
Samuel separou nossas bocas, me permitindo recuperar o fôlego que
ele tomou apenas para si e quando encarei seus olhos, eu só tive vontade de
continuar.
— Matei sua curiosidade? — ele questionou, ainda sem tirar as mãos
de mim.
— Acho que atiçou ainda mais — admiti, um pouco ofegante.
— Podemos resolver isso — Sam sugeriu e eu dei um sorriso sacana,
antes de mover minhas mãos para a barra da sua camiseta, pronta para tirá-
la, o que fez o garoto dar uma risada, me ajudando com o meu objetivo. O
tecido foi para o chão e talvez naquele momento meu rosto estivesse
transparecendo meu puro choque.
Eu imaginava que ele era musculoso, pelo simples fato de que seus
braços já eram grandes, mas simplesmente minha imaginação não tinha nem
beirado a realidade daquele abdômen sarado. Samuel era realmente gostoso.
— Definitivamente você está me devendo o vídeo — falei, desviando
o olhar para o seu rosto, que mostrava toda a confusão do garoto.
— Que vídeo?
— Sem camisa e andando a cavalo — o lembrei e isso fez Sam rir.
— Você só fala merda, coelhinha.
— Bom, você pode me manter caladinha — eu sugeri e isso foi o
bastante para um sorriso tomar conta do rosto dele.
— Acho que vou fazer isso mesmo.
Ele tomou meus lábios novamente, mas de uma forma muito mais
intensa, explorando como não tinha feito antes, enquanto minhas mãos
deslizavam por aquelas costas rígidas. O rapaz continuou acariciando meu
seio, enquanto a outra mão se firmava em meu pescoço. Quando nossas
bocas se separaram por um instante, eu arfei baixinho, permitindo que Sam
ganhasse o controle da situação, tirando a minha blusa com uma facilidade
absurda.
O rapaz beijou todo o meu colo e me deitou, ficando por cima de
mim. Nós viramos uma mistura de mordidas, beijos e lambidas, e cacete, eu
simplesmente poderia fazer aquilo para sempre. Ele percorreu as mãos pelo
meu corpo, chegando no cós do shorts do pijama e afastando nossos lábios,
retirando bem devagarinho a peça junto com a minha calcinha, só desviando
o olhar do meu quando terminou, beijando as minhas coxas e me fazendo
arrepiar ainda mais, antes de voltar a unir nossas bocas.
Sua mão trilhou um caminho para o meio das minhas pernas, me
acariciando antes de colocar os dedos dentro de mim, saindo e entrando,
fazendo meu quadril seguir seus movimentos. Continuamos nos beijando,
mas quando ele atingia o ponto certo, eu precisava afastar rapidamente
nossos lábios, gemendo baixinho. Aquilo era uma delícia, mas eu queria
mais.
Desci minhas mãos até a bermuda dele e Samuel me encarou, como
se quisesse confirmar o que eu estava sugerindo, o que me fez assentir
rapidamente. Ele tirou os dedos de mim, removendo as últimas peças de
roupa. Eu o puxei para perto, como se fosse uma autorização e o rapaz
pressionou o quadril contra o meu, me fazendo arfar, antes de se impulsionar
para dentro. Eu quase soltei um gemido alto, mas Sam foi rápido em tampar
minha boca com delicadeza, chegando bem perto do meu ouvido, enquanto
continuava seus movimentos contínuos e meu corpo obedecia o seu.
— Precisamos ser silenciosos, coelhinha — ele murmurou e em
apenas assenti, porque estava tão perdida em meio as sensações que ele me
provocava que eu concordaria com qualquer coisa. — Precisa gemer
baixinho só para mim.
Porra, ali ele acabou comigo, principalmente porque logo em seguida
se impulsionou com mais força e eu precisei quase prender a respiração para
não fazer barulho, me entregando completamente. Eu apenas era dele e
precisava aceitar isso.
20 - Toucas De Coelho São Uma Das Minhas Coisas Preferidas

Samuel

Domingo, 25 de dezembro de 2022


Remexi na cama, me espreguiçando e abrindo os olhos, notando que
ainda estava no quarto de Lívia. Cacete, não tinha sido um sonho. Encarei a
garota que se encontrava de costas para mim, observando seus ombros
despidos e a forma como apenas o tecido da manta a cobria. Me aproximei
sorrateiramente, a abraçando, sentindo sua pele na minha e dando alguns
beijos no seu pescoço.
— Bom dia — ela sussurrou com a voz manhosa, abrindo apenas
uma frestinha dos olhos. — Já é de manhã?
— Sim, mas ainda é cedo, pode voltar a dormir — respondi,
mordendo seu ombro e vendo a garota dar um sorrisinho. — Feliz natal,
coelhinha.
— Feliz Natal — Lívia murmurou, segurando meu braço que
contornava sua barriga. A puxei um pouco, encaixando seu corpo no meu e
fechei os olhos, apenas querendo ficar para sempre com ela e logo me
permitindo voltar a dormir.

Acordamos com a vovó Anne gritando com Bastien no corredor,


porque o garoto tinha começado a correr com Olaf pela casa. Levantamos
rapidamente e nos vestimos, colocando nossos suéteres que combinavam, já
descendo para tomar café e depois deitamos no sofá abraçados, vendo
televisão até a hora que os tios de Liv chegaram, mas sem tocarmos no
assunto da noite anterior. Eu estava um pouco confuso com tudo, porque
honestamente, não sabia o que aquilo significava para nós. Foi só um
momento? Ela tinha algum mínimo sentimento por mim? Muitos
questionamentos rondavam minha cabeça, mas simplesmente a mesa do
almoço de Natal não parecia o lugar ideal para puxar o assunto e soar como:
“Lívia, sei que pode parecer idiota, mas será que você pode dizer o que quer
comigo?”.
— Estão ansiosos para voltar para Monte Sul? — Louis perguntou
para mim e para Lívia. — Agora que vão morar na mesma cidade.
Forcei um sorriso, assentindo rapidamente, enquanto cortava um
pedaço do peru que estava no meu prato.
— Sim, por meses era a única coisa na minha cabeça e agora
finalmente está chegando — falei e a garota assentiu.
— Vamos poder aproveitar o resto do verão inteiro! — Lívia
exclamou e o tio dela deu uma risada.
— Aposto que é o que te deixa mais animada.
— Sim, apenas imaginar poder finalmente torrar minha bunda no sol
é o que tem me feito levantar da cama. E de brinde posso ver esse corpinho
bonito ficando bronzeado — ela falou, apontando para mim e eu engasguei,
tendo que tomar um pouco de suco ao mesmo tempo que vovó Anne
arregalou os olhos.
— Lívia, olha essa boca! — a mulher exclamou. — Bastien ainda
tem oito anos.
— Ele nem entende o que estou falando, vovó — ela disse com
indiferença, encarando o priminho e sorrindo.
— Você está falando da sua bunda — o garoto respondeu em inglês e
isso me arrancou uma gargalhada, que precisei controlar quando vi a
expressão horrorizada da tia de Lívia.
— Bastien! — Ella o repreendeu, encarando a criança com os olhos
cheios de julgamento. — Você não pode dizer essas coisas.
— Desculpa — o menino pediu em português.
O almoço continuou com aquela mesma energia caótica e depois que
terminamos, todo mundo foi para a árvore de Natal trocar presentes. Eu dei
uma versão impressa e autografada de um dos webtoons mais famosos da
minha mãe para Lívia, o que fez a garota pular no meu pescoço e me dar um
beijo na bochecha, antes de me entregar meu presente: uma touca com
orelhas de coelho igual a que ela usava quando nos conhecemos.
— Para você não se esquecer de mim — ela murmurou e eu abri um
sorriso enorme.
— Isso seria impossível — admiti.
21 - Novo Ano, Mas Sem Namoro

Lívia

Sábado, 31 de dezembro de 2022


Trinta e um de dezembro, véspera de ano novo e meu último dia em
Souciville, no começo do mês a única coisa que eu queria era ficar em
Monte Sul, aproveitar o verão e ir no festival no dia do meu aniversário, mas
se fosse ser sincera, estar com Samuel na pista de patinação nem me fez
pensar em festival nenhum durante a maior parte do tempo e eu só fui
realmente lembrar quando Maya me enviou fotos com Enzo, dizendo que
queria que eu estivesse lá. Talvez se não fosse por Sam eu teria passado o
tempo inteiro emburrada, mas ele tinha simplesmente feito tudo ser incrível.
Cada passeio, cada risada, todas as comidas que me fez experimentar, ele
todo. Naquele instante eu só queria que fosse durar mais, porque eu não me
sentia pronta para me despedir do meu falso namorado.
Não conversamos sobre o que aconteceu, o que fez uma onda de
pensamentos invadir a minha mente, eu não sabia o que ele queria e Samuel
não fazia muito o tipo que deixava as coisas claras, mas seu silêncio meio
que acabou falando por si só. Para mim tinha sido realmente importante,
porque eu estava apaixonada, mas acho que no caso dele foi só mais uma
noite, com uma pessoa que ele talvez nem fosse mais ver. Aquela
possibilidade fazia meu peito doer.
Eu estava caminhando pela praça com Olaf, procurando por Samuel,
já que combinamos de ver a queima dos fogos da virada lá com Mathias e
Christiano junto e depois de um tempo, consegui enxergar o garoto
acenando. Ele usava uma jaqueta marrom com pelinhos na gola e as mãos
estavam cobertas por luvas brancas. Aquele sorriso que fazia meu coração
disparar se encontrava presente no seu rosto e eu gostaria de dizer que aquilo
não me deixou mais uma vez chateada pela falta de respostas, mas seria
mentira. Me aproximei, abraçando ele, meu melhor amigo e Mathias, que
estava encolhido, como se o frio fosse demais.
— Olha só, você lembrou de colocar luvas — Samuel falou para
mim, apontando para as minhas mãos cobertas por luvas bordô.
— Está muito frio — admiti, tentando dar um sorriso tranquilo.
— Pelo amor de Deus, vão buscar alguma coisa para a gente comer
antes que eu morra — Mathias pediu, empurrando eu e Sam para longe.
Fiquei um pouco confusa com sua atitude, mas quando virei para trás
ele e Chris apenas fizeram um sinal de joinha e meu melhor amigo deu uma
piscadinha para mim, o que, honestamente, só foi mais estranho ainda.
A praça ficava próxima da feirinha, então eu sugeri que fossemos
pegar comida lá e Samuel prontamente concordou. Tinha algumas
barraquinhas novas lá, o que incluía uma de comida coreana, onde meu falso
namorado pegou uma tigela de Tteokbokki.
— Você quer? — ele ofereceu, segurando um bolinho com os hashi e
levando para a minha boca.
Dei uma risadinha e apenas aceitei, sentindo aquele sabor
maravilhoso.
— Puta merda, isso é uma delícia — admiti e ele concordou, me
dando mais um pouco antes que eu achasse a cafeteria e entrasse para pegar
um chocolate quente.
Olaf andava no meio de nós dois, sorrindo como sempre e eu me
sentia realmente confortável.
— Coelhinha — ele chamou e eu o fitei, pensando se finalmente
teríamos aquela conversa. — Obrigado por ter tornado meu dezembro
incrível.
Aquela não parecia bem a fala de alguém que iria dizer que estava
afim de outra pessoa, mas sim uma despedida.
— Você é o melhor holidate que eu poderia pedir — eu disse, ainda
esperando que tivesse alguma coisa ali que me fizesse saber que existiam
sentimentos, mas Sam parecia distraído.
E talvez de para incluir o fato de que me apaixonei por você.
Samuel sorriu, me olhando nos olhos, mas não tinha nenhum vestígio
de que iria dizer alguma coisa para me fazer ficar e eu tive certeza disso
quando ele falou:
— Fico feliz que tenha feito meu trabalho corretamente.
Engoli em seco. Eu sabia que tudo era uma farsa e eu que criei a
maldita regra três, onde era estritamente proibido que ele se apaixonasse por
mim. Eu só não contava que o contrário fosse acontecer.
Escutei as pessoas gritando a contagem e nós corremos para alcançar
Mathias e Christiano, com Olaf nos seguindo enquanto segurávamos
cachorros-quentes para os dois. Chegamos lá no exato momento em que os
fogos começaram. O céu brilhava diversa cores e era tudo absurdamente
lindo, mas, mesmo fingindo e gritando feliz ano novo com os meninos, tudo
que eu sentia era um imenso vazio, porque a partir do dia seguinte Samuel
não estaria mais presente na minha vida, ou pelo menos, a farsa do namoro
terminaria e eu seria arremessada na friendzone. Aquilo machucava mais do
que poderia imaginar.
22 - Doente… De Amor

Samuel

Terça-feira, 10 de janeiro de 2023


Nove dias longos e solitários se passaram desde que me despedi de
Lívia no aeroporto. Fiquei abraçando ela por tanto tempo que quase perdi
meu voo e tive que ser arrastado por Mathias, que durante metade da volta
ficou falando sobre como eu era um imbecil por não ter tentado conversar.
Eu sabia disso e por esse exato motivo tomei uma decisão naquele
voo: assim que chegasse em Vila dos Anjos eu iria ligar para Lívia e contar
sobre como me sentia, sobre como nada tinha sido uma farsa para mim.
Porém, acho que o universo gostava de me castigar, porque perdi
meu celular na merda do avião e mesmo comprando outro no dia três, tive
que trocar de número e perdi todas as fotos e mensagens de dezembro,
porque não tinha feito backup, o que incluia o número da coelhinha. Ela não
usava muito o Instagram, então nunca nos seguimos, mas tentei procurá-la
mesmo assim, até no Facebook, só que nem sinal da Lívia em lugar nenhum,
quase como se fosse apenas uma criação da minha cabeça.
Por isso, passei a última semana cabisbaixo e deitado no sofá de
Mathias, só me dando ao trabalho de levantar para ir ao banheiro. Quase
como se eu estivesse doente.
— Samuel, você precisa sair daí — Mathias pediu pela quinta vez
naquele dia, mas eu apenas ignorei, virando para o outro lado. — Cara até a
sua barba já cresceu — ele falou, apontando para o meu rosto, que realmente
tinha começado a nascer a barba que eu sempre tirava.
— Não quero, não faz sentido — murmurei.
— Nós podemos tentar encontrar ela em Monte Sul, vou com você
para lá na segunda se quiser.
— Como você acha que vamos encontrar a Lívia naquela cidade
gigante? Não é como se eu fosse andar pela rua e esbarrar com ela.
— Samuel, tenha um pouco de fé em mim, eu vou achar essa mulher
para você! Nem que seja a última coisa que eu faça — Mathias afirmou com
tanta convicção que eu até acreditei, observando ele pegar o celular na mesa
de centro e começar a ligar sabe Deus para onde.
Sinceramente, eu esperava que ele realmente pudesse fazer alguma
coisa, porque eu não aguentava mais aquela sensação de que meu mundo
tinha desabado.
Eu poderia ter escutado meu único outro amigo, Dick Norris e ido
para Liverpool ver os shows da sua banda durante dezembro, mas não, eu
quis fazer como todos os anos e passar em Souciville, fodendo com a porra
do meu coração.
Estava completamente apaixonado por aquela garota, tanto que a
ideia de viver sem ela era como veneno.
23 - Comédias Românticas Precisam De Finais Felizes

Lívia

Domingo, 15 de janeiro de 2023


Eu estava fazendo a mesma coisa que nos últimos dias: abraçando
Olaf e olhando minhas fotos com Samuel, o que me deixava triste pra
cacete.
Acho que liguei umas dezesseis vezes ao todo nos primeiros três
dias, mas depois apenas conclui que ele não queria falar comigo e desisti,
aceitando que a única a sentir algo real tinha sido eu.
— Lívia, a Maya está te esperando — minha disse ao abrir a porta do
meu quarto e eu fiz apenas um sinal positivo, vendo em cima da mesinha de
cabeceira o globo de neve que Samuel tinha me dado e ficando ainda mais
triste.
Desde que voltamos para casa ela vinha tentando conversar comigo
todos os dias, mas eu estava triste demais para me esforçar a ter uma boa
convivência, o que normalmente iniciava a série de perguntas: “brigou com
o Samuel?”, “o que você fez para o Samuel?”, “quando o Samuel vem aqui
em casa?” e “por que não sai dessa cama?”
Honestamente, eu não queria que tocassem no nome dele, mas
sempre que falavam até mesmo Olaf levantava a cabeça e abanava o
rabinho, como se soubesse quem era e também sentisse saudades.
— Nem para se levantar e receber sua melhor amiga? — Maya
perguntou, antes de se jogar na minha cama.
— Não estou no clima — expliquei, encarando o teto.
— Liv, você precisa sair dessa — ela pediu. — Sei que gosta dele,
mas não tem como continuar nessa deprê toda.
— Eu só não consigo entender o motivo para ele sumir, sabe? Tudo
parecia normal no aeroporto, eu já tinha aceitado que seríamos amigos, mas
agora ele nem me atendeu, ou retornou.
— Ele é um babaca! — Maya exclamou e por mais que realmente
parecesse aquilo, eu consegui ficar irritada com o comentário.
— Não fala assim dele!
— Isso não faz bem, você está defendendo o garoto que te deu um
ghosting! — minha melhor amiga disse. — Lívia, é igual com a…
Eu apenas levantei a mão, fechando a cara. Normalmente eu aceitava
a opinião de Maya tranquilamente, mas eu não poderia deixar que ela
comparasse Samuel e Denise, porque simplesmente não tinha nada a ver.
— Nem termine essa frase, ou vamos brigar pela primeira vez em
anos — eu afirmei e Maya assentiu, percebendo que eu realmente falava
sério.
— Preciso de um favor — ela murmurou, mudando de assunto e eu
soltei um suspiro, tentando ficar pronta para ajudar com seja-lá o que fosse.
— Diga.
— Você tem que sair um pouco de casa, eu não dirijo, o Enzo está
viajando e meu primo precisa de carona do aeroporto para a minha casa,
porque meu tio viajou — Maya soltou todas as informações de uma vez.
— Que primo?
— Literalmente meu único primo, Lívia, o que eu comento que nós
éramos bem próximos quando crianças e que estava em Souciville também.
— O que te chamava de Mini May?
— Isso!
— Você voltou a conversar com ele com frequência? — questionei,
porque nem sabia disso, talvez eu estivesse mesmo muito alheia.
— Sim, tem um tempo, mas enfim, você pode dirigir? Minha mãe
disse que empresta o carro, mas ela não tem como ir — Maya implorou,
juntando as mãos e fazendo um beicinho.
— Não, não quero sair de casa! — afirmei, com toda a convicção do
mundo.
Não tinha como alguém me fazer sair do meu quarto e da minha
pilha de tristeza, nem mesmo minha melhor amiga e o primo perdido dela.
Segunda-feira, 16 de janeiro de 2023
Eu estava dirigindo para o Rio de Janeiro, desejando desaparecer,
porque mais uma vez eu comprovei que não serviria nunca para ser
advogada.
Chegamos no aeroporto em poucos minutos e Maya estava
absurdamente animada, dando pulinhos enquanto andávamos, porque pelo
que eu sabia, ela já não via o primo pessoalmente há alguns anos.
— Será que ele vai demorar? — a garota perguntou, ficando na ponta
dos pés para tentar enxergá-lo.
— Como ele é? — questionei, soltando um suspiro. Seria bem mais
fácil eu tentar enxergar ele do que Maya, que tinha treze centímetros a
menos.
— Não sei atualmente, não nos vemos há anos, mas não acho que vá
ter muitos coreanos nesse aeroporto, então aponta se ver algum que eu tento
saber se é. Ele sabe como eu sou, vai me reconhecer.
— Ok, fique aí que vou pegar um suco, preciso de alguma coisa para
aguentar essa situação — falei, saindo de perto de Maya e indo até um dos
quiosques do aeroporto.
Pedi um suco de abacaxi e em poucos minutos estava voltando para
Maya, porém, quase caí para trás quando pude enxergar quem eu mais queria
ver: Samuel, andando diretamente na minha direção. Talvez aquilo fosse
uma alucinação, mas eu precisava saber, então caminhei mais rápido,
parando quando ele também parou, só que na frente de Maya.
— May? — o rapaz perguntou, encarando diretamente minha melhor
amiga e me deixando com uma cara de tacho. Por um segundo achei que
estivesse andando até mim, mesmo que eu permanecesse um pouco distante,
mas pelo visto conhecia Maya e aquele era o único interesse no momento.
— Sammy? — ela quase gritou e minha boca até se abriu ao escutar
o apelido, considerando que ele brigou comigo todas as vezes que o chamei
assim. — Meu Deus, você está enorme.
Mas que porra?!
— Você também. — Ele girou Maya e eu gostaria muito de dizer que
aquilo não estava me deixando incomodada. Apenas virei o rosto, pensando
que talvez não ver a cena fizesse tudo doer menos. — Você era só uma
pirralha.
— Fazem nove anos, Sammy.
Nove anos?
Foi como se a minha cabeça tivesse um estalo e eu apenas olhei para
eles, arregalando os olhos e me aproximando. Meu Samuel era o primo da
minha melhor amiga. Ele me notou quase que instantaneamente.
— Lívia?! — Samuel exclamou, me olhando com tanta surpresa que
eu senti meu coração se acelerando.
Eu sabia que tinha sentido saudades, mas não quanto até aquele
momento. Sinceramente, se não tivesse ignorado minhas ligações, eu seria
capaz de pular em cima dele ali mesmo.
— Oi — eu murmurei, vendo Maya parecer confusa, mas antes que
ela tivesse a chance de dizer algo, Mathias se aproximou, falando alto:
— Consegui falar com o reitor, ele é amigo do meu pai, estão
procurando no banco de dados… — Ele parou, arregalando os olhos e
abrindo a boca. — Puta merda, Lívia? — Seu sorriso se tornou enorme. —
Cacete! Não é que esbarramos com ela sem nem precisar sair na rua?
— Perdão? — eu estava realmente confusa.
Samuel desviou de Maya, andando até mim e segurando meu rosto
com as duas mãos, me deixando nervosa.
— É você mesmo — ele murmurou, antes de me abraçar e
sinceramente, eu nem sabia mais se conseguia entender.
Olhando de perto, Sam parecia cansado, como se não dormisse
direito há dias porque as olheiras estavam bem marcadas.
— Ok, não estou entendendo mais nada — falei, me soltando dele e
notando que a coitada da Maya estava apenas com uma careta. —
Aparentemente seu primo é o meu Samuel.
Quis engolir de volta aquilo assim que disse, porque de meu aquele
garoto não tinha nada, apenas o fingimento.
— Não acredito! Meu Deus, se você tivesse me mostrado uma foto
tudo faria sentido!— Maya exclamou.
A questão é que eu fiquei tão triste que nem tive coragem de mostrar
nada para minha melhor amiga, que se aproximou de Sam, lhe dando um
tapa forte no braço, que eu não tinha notado, mas estava despedido, já que
ele usava uma regata branca. Merda, por que ele tinha que ser gostoso em
um nível que quase me fazia esquecer que estava puta?
— Por que você sumiu, seu idiota? Ela estava chateada.
— Cala a boca, Maya! — pedi, querendo me enfiar em um buraco.
— Eu não sumi! — ele afirmou, segurando minha mão e me fitando
de um jeito intenso. — Eu perdi a bosta do meu celular no voo e tive que
trocar de numero, perdi seu contato, mas te caçei em tudo que foi canto, só
que não te achei.
Ok, então Samuel não tinha me deixado sem um retorno de
propósito?
— Espera, então você me deixou no vácuo porque não tinha como
responder?
— Sim, eu nunca deixaria de te responder, coelhinha — ele disse e
eu senti meu coração se acelerando.
— Estou de prova, faz cinco dias que comecei a ligar para as
universidades de Monte Sul para tentar descobrir se tinha alguma Livia
Laurent Mendes cursando Artes Visuais — Mathias falou, mostrando um
sinal positivo.
— Por que você fez isso? — perguntei, ficando curiosa se
universidades informam dados de alunos.
— Porque esse idiota estava deitado triste no meu sofá desde que
perdeu o celular, só choramingava Lívia para cá, Lívia para lá, coelhinha
pipipi, coelhinha popopo. Insuportável, boa sorte, Liv, é com isso que você
vai lidar.
— Cala a boca, Mathias! — Samuel repreendeu o melhor amigo da
mesma forma que eu tinha feito com Maya e isso me fez rir, antes do garoto
me olhar, abrindo um sorriso. — Eu meio que estou guardando isso desde
Souciville.
— O quê? — questionei, sentindo meu coração subir a garganta.
— Eu sei que tínhamos uma regra três, mas eu preciso dizer que meu
coração não soube obedecê-la, porque acho que mesmo antes de você cria-
la, no fundo uma parte minha já tinha se apaixonado — ele falou, me
fazendo arregalar os olhos, porque com toda certeza eu não estava esperando
por aquilo. — Lívia, eu quero passar todo o tempo do mundo com você,
quero estar ao seu lado em cada estação, ver a primeira neve, as flores
desabrochando, o sol torrando a areia da praia e as folhas caindo. Eu quero
poder te ver todos os dias e falar com você toda hora, quero poder passear
junto com o Olaf no Quaresmeira e no calçadão. Eu quero uma vida toda
com você, coelhinha.
Se eu dissesse que não fiquei com meus olhos cheios de lágrimas,
estaria mentindo.
— Podemos enfiar a regra três na bunda — eu afirmei e isso fez ele
rir.
— Claro que você tinha que dizer algo idiota — Samuel falou,
sorrindo e colocando as mãos no meu rosto. — Eu amo isso em você.
— Eu te amo — admiti, soltando o ar que tinha prendido e me
esforçando para conseguir colocar para fora o que sentia, o que para mim era
sempre um verdadeiro desafio. — Eu te amei quando você cuidou do meu
cachorro, mesmo sem saber de quem era. Te amei por se dispor a me mostrar
a cidade, nem me conhecendo, por ficar me chamando de coelhinha, por me
dar um globo de neve e não se importar com quanta comida eu devorava, por
colocar seu cachecol em mim quando achava que eu estava com frio, por me
dar um aniversário incrível e se esforçar para ser o melhor falso namorado
do mundo. Eu te amei até por me obrigar a ver comédias românticas. Cada
detalhe me fez te amar mais e quando eu notei só tinha você em mim.
O sorriso de Samuel cresceu, antes de me abraçar, me erguendo e
tomando meus lábios. Sinceramente, nós pareciamos um casal dos filmes
bobos dele, se reencontrando no aeroporto.
— Eu senti tanto a sua falta — ele disse assim que afastou nossas
bocas, sorrindo, ainda sem me colocar no chão. — Eu te amo, coelhinha.
Escutei palmas e quando olhamos para o lado, Mathias e Maya
estavam aplaudindo, com lágrimas nos olhos. Eu poderia fazer uma careta
para os dois, mas nem aqueles idiotas conseguiriam estragar o momento,
então eu apenas apertei Samuel, aproveitando seu abraço mais um pouco
antes que ele me colocasse no chão.
— Ok, eu ia fazer isso provavelmente em outro lugar, porque nem
achei que ia te encontrar tão cedo — ele falou, soltando uma risada abafada,
antes de colocar a mão no bolso da mochila que Mathias segurava, pegando
uma caixa e se ajoelhando na minha frente. — Lívia, você aceita passar de
falsa namorada para namorada de verdade, tendo que me aguentar todos os
dias até o resto da sua vida?
As pessoas estavam olhando para nós e suspirando, colocando as
mãos no peito e mostrando expressões fofas, provavelmente pensando que
ele iria me pedir em casamento.
— É, eu aceito — afirmei, o que fez Sam abrir a caixa, que tinha um
visco natalino, me arrancando uma gargalhada.
— Acho que era o combo que faltava para o nosso romance natalino
ficar completo — ele falou, ficando de pé e segurando o visco em cima da
minha cabeça. — Você conhece as regras, coelhinha.
— Bobo — eu disse, segurando seu rosto e antes que o beijasse,
Samuel murmurou:
— Completamente bobo por você.
Então ele uniu nossos lábios e eu ignorei tudo ao nosso redor, apenas
beijando meu enfim namorado, enquanto seus braços rodeavam minha
cintura.
Epílogo

Samuel

Domingo, 24 de dezembro de 2023


Passar a véspera de Natal com a família de Lívia e a minha reunidas
não era exatamente algo que imaginamos, mas quando até mesmo minha
mãe — que odeia a data — aceitou, nós concluímos que era uma ótima ideia.
Aproveitando as férias dos nossos empregos e da faculdade da Liv, pegamos
um voo para Souciville no dia vinte, me dando pouco, mas ainda assim
tempo suficiente para planejar tudo, mesmo que a decisão sobre fazer aquilo
só tivesse acontecido de forma definitiva no dia quinze.
Eu deveria agradecer aos céus por Christiano ter pegado férias antes,
porque sem ele aquela noite teria se tornado um desastre.
Não contamos a verdade sobre nosso relacionamento para a família
de Liv, porque, segundo ela, poderia algum dia se tornar uma história
engraçada do tipo que só ficam sabendo anos depois, mas contamos para
Chris, que deu muita risada e nos chamou de idiotas, alegando que
claramente estávamos apaixonados desde o início. Ele não estava errado.
— Se você tiver mais um surto nervoso, eu vou ignorar o fato de que
a Lívia te ama e vou enfiar a sua cara na neve — Christiano me ameaçou,
porque já era a quarta vez que eu pedia para ele conferir se tudo estava certo.
— Eu só quero que tudo dê certo.
— Vai dar, eu que ajudei a planejar, criatura!
Dei risada, concordando e logo pude ver a mulher mais linda do
mundo saindo pela porta e correndo na minha direção, me arrancando um
sorriso antes mesmo que eu a abraçasse.
— Oi, vida! — ela falou, me dando um beijinho.
Segurei sua mão e nós começamos a andar, com Olaf logo ao lado.
Lívia usava um sobretudo laranja, com uma blusa lilás e uma calça em um
tom meio azulado de verde, mas não estava com nenhum cachecol, mesmo
que estivesse nevando.
— Coelhinha, esqueceu o cachecol? — eu perguntei, tirando o meu e
colocando no pescoço dela, para garantir que ficasse quentinha.
— Eu poderia voltar e buscar um, você vai passar frio — ela disse,
fazendo um beicinho e eu toquei o nariz dela, lhe dando um beijo na
bochecha.
— Não vou! — afirmei.
— Quanta melação do caralho, vocês namoram há um ano, parem
com essa porra — Christiano pediu, revirando tanto os olhos que quase
saltaram do rosto dele. — Existem pessoas solteiras que querem paz. — Ele
apontou para si mesmo e Lívia e eu rimos, continuando a andar.
Andamos bastante até a praça, porque Christiano tinha convidado
para uma sessão de filmes que teria lá, porém, quando chegamos, não tinha
ninguém, apenas o telão com o projetor ligado e a tela branca.
— Chris, tem certeza que vai ter isso? — Lívia perguntou, agarrada
ao meu braço.
— Samuel, vem me ajudar a dar uma olhada, Liv senta nas cadeiras e
não reclama — ele mandou e minha namorada me olhou como se dissesse
“vamos obedecer, ele está doido”, antes de se sentar com Olaf, me deixando
com Chris.
Andei com o garoto para trás do projetor.
— Está tudo pronto? — questionei e Chris fez um sinal positivo,
ligando a tela, que começou uma contagem de segundos, antes de iniciar
Scooby-doo, coisa que eu e minha namorada sempre assistimos.
Lívia parecia confusa da sua cadeira, o que me fez rir. A tela ficou
totalmente preta e em seguida com algumas manchas.
— Chris, acho que bugou — a garota exclamou e eu estendi a minha
mão para Christiano que me deu a caixinha que eu tinha feito ele guardar.
Caminhei sorrateiramente para perto dela, esperando que a tela
ficasse branca e logo em seguida aparecesse: LÍVIA LAURENT
MENDES, VOCÊ ACEITA SER MINHA ESPOSA?
Lívia se levantou automaticamente, olhando exatamente para a
direção em que eu me encontrava, ajoelhado e com a caixa do anel de
noivado de diamante da minha avó aberta. Quando falei para o meu pai que
queria pedir Liv em casamento, Ivan rapidamente me deu o anel, dizendo
que talvez as coisas entre ele e minha mãe não tivessem funcionado porque
não fez direito, e considerando que tinha pertencido a minha avózinha, não
teve como eu não aceitar.
Minha namorada levou as mãos até o rosto e eu vi as lágrimas
brilhando em seus olhos.
— E aí, quer se casar comigo, coelhinha? — reforcei a pergunta,
fazendo ela rir, antes de assentir várias vezes e andar até mim.
— Óbvio que eu quero — Lívia afirmou e eu senti as lágrimas
invadindo meu rosto, antes de ficar em pé, colocando o anel no dedo dela e a
abraçando com força, gritando em seguida:
— Ela disse sim!
Fogos de artifício encheram o céu assim como na noite de ano novo
de 2022, quando nos despedimos e eu acreditei que talvez nunca a teria para
mim. Os olhos de Lívia brilhavam.
Christiano saiu de trás do telão, junto de Mathias e Maya que
viajaram para lá sem Liv saber no dia anterior e ficaram escondidos na
minha casa, porque eu estava na da vovó Anne de qualquer forma. Olaf
também se aproximou, como se estivesse comemorando junto.
— Ah, meu Deus, vocês estão aqui? — ela perguntou, as lágrimas se
misturando em uma risada.
— Nós participamos até do momento em que ele te pediu em namoro
com um visco, acha que perderíamos o de casamento? — Maya debochou,
me dando dois tapinhas no ombro. — Estou orgulhosa, priminho.
— Vocês são adoráveis, eu sempre soube que isso ia rolar — Mathias
afirmou, abraçando nós dois ao mesmo tempo, o que me fez rir.
— Agora é hora de anunciar o casório — Christiano brincou,
indicando a direção da casa da vovó Anne. — Jantar de Natal em família
onde a Lívia vai jogar na cara da tia Ella que está ficando rica, tem um
relacionamento feliz e ainda ganhou um noivo gostoso.
— Ei! — Lívia o repreendeu, colocando as mãos ao redor da minha
cintura. — Só eu posso falar isso dele.
— O garotinha ciumenta, puta merda — o garoto reclamou,
revirando os olhos. — Vamos logo. Precisamos agradecer aos céus por
minha mãe ser a prefeita e ter me autorizado só arrumar aquilo amanhã, tive
que fingir um festival de filmes por vocês.
— Vocês me enganaram — Lívia admitiu, me dando um beijo na
bochecha.
E nós começamos a caminhar todos juntos, enquanto eu e minha
noiva estávamos de mãos dadas, prontos para mais um jantar de natal, mas,
daquela vez, sem nenhuma farsa nos deixando confusos.
— Acho que fui um bom menino esse ano — falei para ela e Lívia
me encarou com confusão. — Eu pedi você para o papai noel e ele me
atendeu.
— Idiota — ela disse, dando uma gargalhada e eu beijei sua
bochecha, rindo também.
Nós nos conhecemos na neve daquela cidadezinha do Canadá e nos
apaixonamos com o frio, mas no final das contas nossa história só teve um
verdadeiro início há quase um ano embaixo do sol de Monte Sul, porque
tudo com o Lívia era quente e aconchegante, e eu não poderia ser mais grato
por ela ter se tornado a minha família.
FIM
ROCK E ALGUMAS OUTRAS DROGAS
SINOPSE

Daisy Shields sempre amou datas comemorativas, principalmente o


natal, porque ter toda a família reunida ao redor de uma árvore decorada e
poder trocar presentes, carinhos e risadas era incrível. Porém, quando
descobriu que existiam grandes chances de naquele ano serem suas últimas
festas, tudo desabou. Com uma rara doença no coração, tudo que a jovem
precisava era de um transplante.
Mesmo que temendo a possibilidade de um curto futuro, Daisy se
mudou para Liverpool, a cidade da sua banda preferida, The Beatles,
querendo aproveitar seus últimos meses.
No entanto, foi realmente surpreendida ao conhecer Dick Norris, um
guitarrista em ascensão que tinha a capacidade de levá-la a lugares onde
limite não estava presente, fazendo Daisy se sentir viva, como não
acontecia há anos.
Só que nem tudo poderia ser perfeito, e quando uma decisão
importante bate a porta da jovem pouco antes do natal, cabe a Daisy decidir
o desfecho de sua história.
Capítulo 1

Quando se é diagnosticada com uma doença rara e letal, você não sabe
bem se quer aproveitar seu curto tempo de vida ou jogar tudo pelos ares.
Bem, uma vez John Lennon disse que “a vida é aquilo que acontece
enquanto estamos ocupados fazendo planos”. Para alguém que vai viver
apenas seis meses, não havia muitos planos para se idealizar.
Minha mãe sempre dizia que Deus escolhia os fardos que cada um
deveria carregar, mas para mim eu era apenas uma garota que nasceu
danificada. Aos vinte e três anos fui diagnosticada com amiloidose cardíaca,
uma doença que afeta em grande maioria homens acima de quarenta anos,
mas podemos dizer que eu fui o bilhete premiado nas estatísticas. Também
conhecida como Síndrome do Coração Rígido, ela é caracterizada por um
acúmulo de proteínas nas paredes do coração, impedindo que ele bata
decentemente. Um dia meu coração vai literalmente parar de bater, e a única
forma de isso não acontecer é fazendo um transplante.
E aí você se pergunta: Então é só trocar de coração que tudo se resolve?
A resposta é sim, se não houvesse uma fila para transplante tão grande que
se fosse uma loja, eu estaria a cinco quadras de distância. A estimativa de
espera ultrapassava anos, coisa que eu não tinha.
Foi por isso que decidi seguir o que Lennon disse, viver minha vida sem
planos. Ok, talvez tivesse alguns, mas nada muito substancial. Assim, acabei
indo parar em Liverpool, a cidade onde surgiu os Beatles, vulgo a melhor
banda já existente. Eu não pensei muito quando decidi me mudar para lá
sozinha, só que queria passar meus últimos tempos em um lugar que tanto
ouvi falar enquanto escutava as músicas e assistia os documentários sobre a
maior banda da história da música.
Meus pais no início não aceitaram muito bem a ideia de eu morar
sozinha a trezentos e cinquenta e cinco quilômetros de Londres, onde nasci e
cresci. No entanto, meus poderes de persuasão ultrapassavam a razão
humana. Consegui convencê-los a me deixarem morar lá, com a única
condição de que eu continuasse meu tratamento com um cardiologista. Eu
não tinha motivos para negar, embora soubesse que a única forma de
continuar viva era ser transplantada.
E era por isso que eu estava no Liverpool Waterfront bebendo um
chocolate quente em um dia frio de outono enquanto observava
curiosamente as estátuas de Paul, George, Ringo e John. Eu passava por
aquela praça quase todos os dias, mas nunca tinha realmente parado para
observar as estátuas. Deviam ter um pouco mais de dois metros, feitas
inteiramente de bronze e incrivelmente semelhantes aos quatro músicos.
— Para o que você acha que ele estava olhando?
Meu corpo teve um pequeno espasmo de susto, eu nem percebi que
alguém estava parado ao meu lado. Com olhar voltado na direção do falante,
descobri ser um garoto. Ele vestia roupas de inverno compostas por uma
jaqueta de couro preta, calça jeans escura e botas cano alto que pareciam ser
pesadas. Seu cabelo castanho claro estava demasiadamente bagunçado, o
que me fazia pensar que ele nem o penteou antes de sair de casa. Sobre seu
ombro, carregava um violão coberto por uma capa preta de tecido. Aquele
cara parecia ter saído da capa de um disco de rock do século passado.
— Como? — questionei, um pouco intrigada com sua pergunta.
Ele apontou para a estátua de John Lennon.
— Lennon. Me pergunto o que ele estava olhando — explicou.
Acabei dando de ombros.
— Acredito que seja algo que jamais saberemos.
— Mas pelo menos dá asas à imaginação.
Meneei a cabeça, concordando.
O olhar de John parecia distante naquela estátua, como se observasse
distraidamente algo um pouco acima do seu campo de visão. Poderia ser um
pássaro, ou alguém no alto de um prédio. As possibilidades eram infinitas.
Olhei para o garoto, mas algo que ele segurava me chamou a atenção.
Em suas mãos estava um amontoado de folhas rosa que eu precisava entortar
a cabeça para conseguir ler o que estava escrito. Identifiquei as palavras
"show" e "club".
— O que é isso? — Apontei para as folhas.
Ele demorou o olhar nelas e então sorriu, me encarando nos olhos
pela primeira vez, os dele eram castanhos.
— Minha banda vai se apresentar amanhã à noite no Cavern Club. —
Ele me entregou um dos panfletos.
— Você está brincando né? — Praticamente arranquei o papel de sua
mão.
Lá dizia claramente, em letras estilizadas e com alguns desenhos sem
sentido:

"Black Roulettes
no Cavern Club
Sexta-feira - 9 p.m”

— Eu não brinco em serviço, loirinha — falou em tom convencido.


— Se quiser aparecer, só tem que pagar a entrada.
— Primeiramente, é Daisy — o corrigi com irritação na voz. — E
segundo, como conseguiram o espaço? Só gente boa toca naquele lugar.
The Cavern Club era um bar onde estrelas como The Beatles e The
Rolling Stones se apresentaram antes da fama. Ele fora derrubado, mas ao
verem a importância do lugar, acabaram por reconstruí-lo e hoje tornou-se
um ponto turístico e referência no mundo do rock.
— Nós somos bons — ele retrucou —, e talvez nosso baixista
trabalhe lá. — Deu de ombros.
— Você é o guitarrista? — supus. Pelo violão que carregava no
ombro, imaginei que seria essa sua função na banda.
— Eu mesmo. — Ele estendeu a mão livre. — Dick Norris,
guitarrista, cantor e compositor. Garçom nas horas vagas.
— Daisy Shields — Apertei a mão dele, a balançando em
movimentos leves. — Livreira e… acho que apenas isso.
Soltamos nossas mãos segundos depois.
— Você não é daqui — ele observou, sua fala era convicta. —
Reconheço o sotaque londrino quando o escuto.
— Você está certo — confirmei. — Sou da Grande Londres.
Southwark.
— E o que trouxe uma londrina a Liverpool?
Pensei por alguns segundos.
— Vontade de viver, eu acho. Sou uma grande fã dos Beatles.
— Então decidiu se mudar para a cidade deles — Dick completou o
raciocínio.
— Exatamente.
Nós dois sorrimos ao mesmo tempo.
— Está aqui há quanto tempo? — perguntou, continuando a
conversa.
— Pouco mais de um mês.
Eu me mudei para Liverpool em outubro, e desde então vinha
trabalhando em uma pequena livraria a não muitas quadras de onde
estávamos, assim como consultando um cardiologista semanalmente. Meu
apartamento alugado também não era longe.
— Então imagino que ainda tenha muito em Liverpool para
conhecer.
Concordei com a cabeça, eu tinha mesmo. Desde que cheguei, mal
arranjei tempo para sair, me foquei demais no trabalho. Os poucos lugares
que conheci foram o porto e o parque com as estátuas à nossa frente.
— Aparece no show amanhã e eu te levo para conhecer a cidade.
Arqueei as sobrancelhas.
— À noite? — indaguei duvidosa.
O garoto sorriu.
— É o melhor horário para se conhecer Liverpool, loirinha. — Antes
que eu pudesse reclamar do apelido, Dick deu uma olhada no relógio em seu
pulso e voltou a falar. — Preciso ir. — Começou a dar passos lentos para
trás. — Nos vemos amanhã.
Ele se virou e saiu correndo em direção oposta à que eu estava indo.
Voltei a olhar o papel na minha mão.
Eu não tinha nada melhor para fazer em uma sexta-feira à noite,
então talvez pudesse dar uma passadinha para assistir o show da banda dele.
E também, eu estava louca para conhecer o Cavern Club. Só teria que
esconder essa informação da minha mãe, ou ela me arrastaria pelos cabelos
de volta a Londres.
Evelyn Shields se tornou uma mãe superprotetora depois que fui
diagnosticada e, desde então, tinha feito da minha vida um verdadeiro
inferno. Antes de me mudar para Liverpool, sequer conseguia sair de casa
sem que ela preparasse seu famoso kit de sobrevivência para pessoas com
problemas de coração, que incluía tudo que era tipo de remédio, de
anticoagulantes à aspirina, e sempre me lembrava de deixar seu número de
celular salvo nos contatos de emergência para caso eu viesse a desmaiar no
meio da rua.
Um pouco surtada? Talvez, mas eu a entendia. Descobrir que sua
filha tinha poucos meses de vida não era a melhor notícia que poderia se dar
para uma mãe. Ela estava com medo de me perder, era evidente. Eu também
estava com medo, demais até, mas pensar nisso não faria com que a doença
sumisse. Aproveitar meus últimos meses era o que me restava, e eu estava
me prendendo a essa ideia com todas as minhas forças.
Seis meses, eu tinha seis meses para ser feliz. Faria deles os melhores
da minha vida.
Olhei para o folheto na minha mão.
Um show me aguardava no dia seguinte.
Capítulo 2

Saí do trabalho cedo naquele dia. Minha chefe foi super compreensiva
quando falei que queria conhecer o Cavern Club naquela noite. Talvez o fato
de ela saber da minha doença tenha ajudado na decisão. Enfim, o importante
era que cheguei em casa com bastante tempo para me arrumar devidamente.
Eu nunca fui de me preocupar com a roupa que estava usando,
normalmente optava por algo confortável, como calça de moletom e casacos
largos. Naquela noite seria diferente. Vesti um cropped vermelho que,
sinceramente, eu nem lembrava de ter, e uma jaqueta preta de couro que
ganhei de aniversário alguns anos atrás. Me maquiei como não fazia há anos.
Tentei me convencer de que estava me arrumando daquela forma por ser
um bar e todos irem arrumados nesse tipo de lugar, mas cá entre nós, estava
bem óbvio o motivo. Eu era patética por querer ficar bonita para um garoto
com quem troquei meia dúzia de palavras na rua.
— Que se dane, eu não vou viver muito mais mesmo — murmurei para
meu reflexo no espelho do meu quarto.
Essa era a ironia que eu vinha vivendo, se fizesse algo vergonhoso, não
ficaria remoendo esse acontecimento para o resto da minha vida, pois ela era
extremamente curta.
Terminei colocando um par de brincos de brilhinho que encontrei no
fundo da minha caixa guarda-tudo, que ficava escondida por pilhas de
cobertores dentro do armário.
Com a bolsa pendurada no ombro, eu estava mais do que pronta.
Fui a pé até o Cavern Club, pois ficava perto de casa. O local tinha uma
fila para entrar, mas nada do que um pouco de espera não resolvesse.
Enquanto aguardava, me peguei observando o letreiro vermelho que
nomeava o bar. Era bem clássico, compondo a vibe retrô que aquele lugar
trazia. A construção de tijolos não era a original, mas uma réplica muito bem
feita.
Era inacreditável imaginar que eu estava finalmente indo no bar que os
Beatles tocaram no início da carreira. Poderia fingir por alguns segundos que
eu estava lá em 1960 curtindo o som de uma banda desconhecida, que
ninguém sabia que mudaria a história do rock para sempre.
Assim que entrei, me surpreendi com a pouca iluminação do ambiente.
Era totalmente imersivo. O bar era comprido e estreito, com mesas e
cadeiras preenchendo espaço até a beirada do palco, que ficava um metro
mais alto que o térreo. Os instrumentos já estavam dispostos lá, mas nem
sinal dos músicos que se apresentariam naquele dia. Acabei chegando um
pouco mais cedo para conseguir entrar, então teria que esperar até o show
começar, mas eu realmente não me importava.
Fui até o bar, ainda vazio pelo horário, e me sentei em um dos
banquinhos. O bartender estava de costas, mas se virou com o barulho que
fiz. Ele era novo, talvez um pouco mais do que a minha idade, e tinha os
cabelos loiros bagunçados. O sorriso que me lançou comprovou que fazia
sucesso com as mulheres, e homens, daquele lugar.
— Pela sua cara, acho que um sex on the beach seria perfeito.
Franzi o cenho.
— O quê?
Ele deu uma risada, claramente se divertindo com minha confusão.
— Você não entende muito de drinks, né?
Ah, então ele estava falando de uma bebida.
— É tão óbvio assim? — acabei rindo também.
O homem deu de ombros.
— Te garanto que é uma bebida ótima, e está com vinte porcento de
desconto nessa noite — falou, apontando para uma plaquinha disposta na
bancada.
— Tem como ser sem álcool?
— Não vai ter muito o que colocar no copo.
Dei um sorrisinho.
— Não posso beber nada alcoólico, ordens médicas.
— Assim fica difícil, deixe-me pensar.
Ele entortou a boca e olhou para cima, buscando em sua mente drinks
que eu pudesse beber.
— Posso fazer um Pink Lemonade, é basicamente suco de limão,
morango e açúcar.
— Perfeito.
Eu não podia beber álcool, mas ninguém disse que açúcar também estava
vetado da dieta.
O homem se virou para preparar a bebida, e foi então que percebi que
estava sentado em um banco alto parecido com o meu. Ele não se levantou
para preparar meu drink, pois as bebidas, também notei, estavam ao seu
alcance sem que precisasse se esticar muito. Aquilo era, no mínimo, curioso.
Esperei alguns minutos, aproveitando para dar uma boa analisada no bar.
Tinha várias decorações que lembravam do século 20, algumas referências
aos Beatles também.
O bartender voltou a se virar para mim e estendeu um copo de vidro com
um líquido cor-de-rosa dentro.
— Aqui está. Modéstia à parte, ficou muito bom.
Peguei o copo e o levei até perto dos lábios.
— Vou confiar em você — disse antes de tomar um gole.
Era doce e azedo ao mesmo tempo, uma combinação perfeita. Dava pra
sentir o gosto do limão e do morango, o que realmente me surpreendeu, pois
normalmente esse tipo de bebida era puro açúcar.
— Confesso que realmente está. — Acabei bebendo mais alguns goles.
Eu terminaria aquele copo em segundos.
— Aliás, sou o Thomas. — Ele me estendeu o braço.
Apertei sua mão.
— Daisy.
As sobrancelhas dele se arquearam, durou poucos segundos, mas
percebi que algo tinha acontecido. Eu provavelmente nunca descobriria o
que era, pois ele logo foi chamado por outra cliente.
— Até depois, Daisy. — Sorriu antes de se afastar, empurrando seu
banco, que agora percebi ter rodinhas, para o lado, se segurando na bancada
do bar.
Com meu copo em mãos, levantei do banquinho e fui mais para perto
do palco. Várias pessoas já se acumulavam na frente, mas consegui me
encaixar em um canto mais afastado, que dava para visualizar perfeitamente
os instrumentos esperando seus músicos.
Mais alguns minutos se passaram até que algumas luzes se apagaram
e outras diminuíram de intensidade. As conversas cessaram, todos ansiosos
para ver a banda subir no pequeno palco.
Uma movimentação no palco começou, mas estava escuro demais
para vermos quem era. Consegui ver uma das pessoas colocar a guitarra
sobre o ombro, mas o resto era apenas vultos.
Ouvimos alguém arranhar algumas notas na guitarra, o que levou o
público a loucura. Eram eles, e o show estava prestes a começar.
— Boa noite, Liverpool — a pessoa nas sombras disse ao microfone.
Era a voz de Dick.
Alguns gritos femininos foram escutados por todo o bar.
— Nós somos a The Black Roulettes e hoje preparamos uma
apresentação especial para vocês. — Ele fez uma pausa e então começou
uma contagem. — 1, 2, 3, 4!
No último número, as luzes do palco se acenderam e as primeiras
notas de “You Really Got Me” da The Kinks preencheu o ambiente.
Finalmente consegui ver Dick. Ele vestia uma jaqueta jeans azul
escuro com uma blusa dos Beatles por baixo, o cabelo estava ajeitado para
trás com gel. Sua voz era linda, me lembrando um pouco do Alex Turner, da
Arctic Monkeys. Dick era um verdadeiro astro do rock.
A segunda música começou mais calma, eu logo reconheci
“Yesterday”, uma das minhas músicas preferidas da The Beatles. Ela ficou
tão boa na voz de Dick, que pensei até mesmo em gravar para poder escutar
mais vezes.
Cantei a letra junto com o público, chegando a fechar os olhos para
imergir no clima que tomava o lugar. Era uma atmosfera inebriante.
Quando a música acabou, bati palmas mais do que o necessário.
Tinha sido, no mínimo, lindo.
Dick agradeceu e logo em seguida a próxima música começou.
Enquanto eles tocavam, percebi o olhar de Dick varrer o público. Ele
parecia procurar por alguém, e confesso que meu coração deu um pequeno
salto em resposta. As chances de ele estar me procurando eram baixas,
considerando que ele provavelmente entregou aqueles panfletos para
dezenas de garotas ontem, mas não pude evitar que meu subconsciente
acreditasse no contrário.
Seu olhar pousou em mim, e Dick sorriu.
Me virei para as pessoas ao meu redor, julgando se ele poderia estar
olhando para outra pessoa, mas ninguém parecia estar ligando para aquilo.
Tinha que ser para mim.
Ele lançou uma piscadela antes de voltar para o público, me deixando
com o coração na garganta. Também tinha a chance de eu estar tendo um
infarto, mas, de qualquer forma, estava sendo um momento extremamente
desconcertante.
Tentei me focar nos outros integrantes da banda no intuito de fazer
meus batimentos cardíacos desacelerarem. O baixista acabou me chamando
a atenção, era o bartender de alguns minutos atrás. Ele estava sentado em
uma cadeira de rodas e movimentava o tronco para frente e para trás
enquanto tocava empolgado o baixo.
Assim que a música acabou, eu e o público gritamos eufóricos
pedindo por mais.
Dick encostou os lábios no microfone e falou com a voz levemente
rouca pelo esforço:
— Vamos finalizar com “Come Together”.
Outra música dos Beatles.
As pessoas pediram que eles tocassem mais, mas Dick apenas deu
um sorrisinho e sinalizou para que a banda começasse a tocar.
Ele deu tudo de si, atingindo as notas certas, seguindo o ritmo da
música. No final, os aplausos foram os mais altos da noite.
— Muito obrigado por terem vindo nos escutar esta noite — ele
agradeceu — É uma honra podermos nos apresentar no mesmo lugar em que
os Beatles começaram.
A frase “mais um” tomou conta do bar.
Dick balançou a cabeça, rindo.
— Sinto muito, pessoal. Tenho um encontro daqui a pouco, prometi
levar uma garota conhecer a cidade. — Ele olhou para mim. — Ela é
londrina, acreditam? Eu preciso mostrar para ela o que é diversão de
verdade.
Algumas pessoas deram risada, enquanto outras lamentaram pelo fim
do show. Eu não fiz nem um nem outro. Na verdade, permaneci estática no
meu lugar, tentando processar o que acabou de acontecer.
O cantor desceu do palco por uma entrada que eu nem tinha
percebido antes, os outros integrantes da banda o seguiram.
Decidi voltar para o bar, ver se conseguia alguma bebida sem álcool,
mas que pudesse fazer algum efeito sobre o meu cérebro, pois eu
definitivamente precisaria de coragem para encarar Dick se ele viesse até
mim.
— Fugindo de mim, loirinha?
Me virei rápido, apenas para encontrar Dick com as mesmas roupas
de antes, mas com suor brilhando na testa e pescoço. Tive a capacidade de
achar um homem suado sexy.
— Apenas vim pegar uma bebida. — Aquela era uma meia verdade.
Ele olhou para o bar vazio e depois para mim.
— Sei.
Seu sorriso convencido me causou uma leve irritação, mas não pude
impedir minhas bochechas de corarem.
— Então você acha que vamos sair para um “encontro”? — Fiz aspas
com a mão.
Ele riu.
— Dar em cima de uma garota e depois chamar ela para sair. Se isso
não é um encontro, então não sei o que é.
“Dar em cima de uma garota”. O meu cérebro repetiu essa frase
constantemente enquanto eu o encarava atordoada.
Desviei o olhar.
— Certo.
Dick me olhou zombeteiro.
— Está planejando me dar um fora, loirinha? — Ele não parecia
acreditar que eu fosse fazer isso.
E eu não ia.
— De forma alguma. Só não achei que fosse considerar isso um
encontro.
— E o que mais seria?
Torci os lábios em um biquinho, pensativa.
— Hum… dois estranhos caminhando juntos à noite? Talvez eu deva
me preocupar em você roubar meus órgãos, mas já aviso que o coração vai
ser inútil.
Ele pareceu achar graça do que eu disse.
— Porque? É feito de pedra? Gelo?
Ah, se ele soubesse.
— Está mais para danificado — me limitei a dizer.
As sobrancelhas dele se uniram, a expressão confusa, mas meu
sorrisinho suavizou seu rosto. Dick deve ter pensado que eu estava
brincando.
— Bem, danificado ou não, posso garantir que não irei roubá-lo.
— Que gentil da sua parte.
O garoto revirou os olhos.
— Fiz um roteiro à la Beatles que você não poderá recusar. O que
me diz, pronta para a noite de Liverpool?
Olhei para sua mão estendida, e então para meu celular. A tela se
acendeu com uma mensagem da minha mãe perguntando se eu já estava na
cama.
Respirando fundo, guardei o celular na bolsa e coloquei a minha mão
sobre a de Dick.
— Pronta.
Capítulo 3

Entrei sem medo no carro de Dick. Ele não conseguiria me manter em


cativeiro por muito tempo caso me sequestrasse, a não ser que conseguisse
um coração no mercado negro para mim.
— Onde está me levando?
Dick negou com a cabeça.
— Vai estragar a graça se eu contar.
— Se estiver me levando para seu laboratório secreto onde tira os órgãos
das pessoas e vende por milhares de libras, por favor me avise para eu já
estar preparada na hora de me despedir do mundo. Quero pelo menos ouvir
“Yesterday” mais uma vez.
Ele riu do meu senso de humor questionável.
— Relaxa, loirinha. Não pretendo roubar nada de você, a não ser, talvez,
uns beijos. Com seu consentimento, é claro.
Seu tom de voz descontraído me pegou desprevenida.
Estava me flertando na cara dura, e eu não sabia como reagir a isso.
— Engraçadinho. — Desviei o olhar para a janela, tentando não pensar
em como seria beijar Dick Norris. A ideia era desconcertante e irreal, no
mínimo.
No silêncio angustiante que se formou, Dick ligou o aparelho de mídia e
conectou no bluetooth do seu celular, o estendendo na minha direção.
— Te deixo escolher a playlist dessa noite.
Peguei o celular da mão dele.
— Seria muito clichê eu colocar Beatles?
Ele me olhou por curtos segundos e sorriu, voltando a atenção para a
estrada.
— De forma alguma.
— Muito bem.
Analisei as playlists de Dick no Spotify até achar uma repleta de músicas
dos Beatles fora da ordem dos álbuns. Selecionei a primeira. “Penny Lane”
preencheu o ambiente com suas notas animadas.
— Não vi esse céu azul suburbano desde que cheguei em Liverpool —
comentei ao escutar esse trecho da música tocar.
— É inverno, londrina. E tenho certeza que na sua cidade é pior.
Dei de ombros.
Ele estava certo, menos na parte de ser inverno, tecnicamente estávamos
no final do outono. O céu de Londres era noventa por cento do ano cinza e
sem graça. Ok, talvez um pouco menos, mas eu realmente não prestava
atenção nisso enquanto vivia lá.
— Penny Lane is in my ears and in my eyes — Dick cantarolou.
— There beneath the blue suburban skies — completei, rindo.
Dick não tirou o sorriso do rosto.
— I sit and meanwhile back…
— Penny Lane! — exclamamos juntos, caindo na risada enquanto a
música chegava ao fim.
Nos olhamos por alguns segundos, sorrindo. Nem percebi que Dick tinha
parado o carro.
— Engraçado você ter escolhido essa música — falou, apontando como
queixo para um muro de tijolos ao lado de onde paramos o carro.
Uma placa toda rabiscada dizia em letras garrafais “Penny Lane 18”,
iluminada por um poste de luz da construção abrigada atrás do muro.
— Isso é… a gente tá… ai meu deus.
Abri a porta do carro e fui correndo até lá, tocando na placa maltratada
pelo tempo e pelos turistas.
— Se formos para o outro extremo da rua, vamos encontrar uma
barbearia e um banco, igual na música — Dick disse ao se aproximar.
— Não acredito que estou em Penny Lane. Dá até para imaginar o Paul e
o John passando por aqui quando adolescentes, falando sobre as músicas que
iriam compor juntos.
— É só uma rua — ele constatou.
Tive que revirar os olhos.
— O que importa não é a rua em si, mas a história que ela guarda.
Dick cruzou os braços e apoiou o corpo no muro.
— Uma pena que provavelmente vão mudar o nome dela.
Eu travei.
— O quê? — Me virei com os olhos arregalados.
— Dizem que o nome foi em homenagem a um traficante de escravos.
Estão até fazendo petição para que mudem o nome. Se for verdade ou não, é
uma pena. Essa rua sem sombra de dúvidas tem história. — No fim,
concordou comigo.
De repente, meu ânimo diminuiu exponencialmente.
— Vem, vou tirar uma foto sua com a placa enquanto o nome ainda não
mudou.
Assenti e desbloqueei meu celular, o entregando para Dick.
Me posicionei ao lado da placa e dei um sorrisinho.
Ele abaixou a câmera.
— Que sem graça, assim parece que estou te obrigando a aparecer na
foto.
Bufei erguendo os braços.
— O que quer que eu faça então?
— Uma expressão mais espontânea, talvez? É a porra da Penny Lane,
mostre empolgação por estar aqui.
Abri um sorriso, com dentes e tudo, e apontei para a placa com uma das
mãos.
— Isso aí! — Ele também sorriu enquanto tirava as fotos, mudando o
ângulo para ver se melhorava. — Agora manda um beijo para a câmera.
Ao invés de fazer o que ele pediu, mostrei o dedo do meio.
Dick riu.
— Deu de fotos — falei indo até ele e tirei o celular da sua mão.
— Vai postar no seu Instagram?
Neguei.
— Não tenho um.
O olhar de choque dele quase fez com que eu me sentisse uma espécie de
aberração.
— Que pessoa não tem redes sociais em pleno século vinte e um?
— Bem… eu.
A vida das pessoas não me importava, e eu tinha certeza que a minha
também não importava a elas. Ninguém queria saber o que eu comi no
almoço, ou onde estive no final de semana. Esse tipo de banalidade não fazia
diferença para os outros, e nem para mim.
— Nós vamos criar um agora mesmo. — Ele arrancou o celular da
minha mão.
— Ei! — protestei, tentando pegar ele de volta.
Não obtive sucesso.
Quando vi, Dick tinha baixado o aplicativo no meu aparelho e estava na
página de criação de conta.
— Seu e-mail, por favor.
Cruzei os braços, irritada, mas acabei passando o e-mail para ele.
— Nome completo e idade?
— Daisy Shields — disse em um tom de voz nada animado —, vinte e
três anos.
Ele levantou a cabeça.
— Pensei que fosse mais velha.
O fuzilei com o olhar.
— Quantos anos você tem?
— Vinte e cinco.
— Grande diferença — ironizei.
Dick ignorou a alfinetada.
— Temos que criar um arroba. Que tal "loirinha irritadiça”?
Cruzei os braços, me segurando para não dar um tapa em Dick.
— Que tal “vou te matar se não parar de me chamar assim”?
— Hm… não, acho que ultrapassa o número de caracteres.
Respirei fundo, pronta para agredir fisicamente um desconhecido.
— Coloca Daisy Shields. Duvido que existam outras no mundo.
O garoto ficou alguns segundos em silêncio enquanto digitava.
— Muito bem, arroba Daisy Shields, bem-vinda ao Instagram. — Me
entregou o celular.
Olhei para a minha mais nova conta na rede social e franzi o cenho
ao ver que já estava seguindo uma pessoa. Cliquei no número um para ver de
quem se tratava.
— Você me fez te seguir no insta? — Arqueei as sobrancelhas.
Eu quis matá-lo pelo sorrisinho que me deu.
— Apenas facilitei as coisas.
Entrei na conta dele, passando a olhar suas fotos. A maioria era de
shows que fez com a banda em bares e restaurantes de Liverpool, mas tinha
uma ou outra selfie e várias fotografias da cidade.
— Encontrou algo interessante? — perguntou desinibido,
aproximando o rosto da tela do meu celular.
Apertei o aparelho contra meu peito, o impedindo de ver o que eu
fazia.
— Não seja enxerido.
Dick levantou as mãos, se rendendo.
— Jamais.
Guardei o celular na bolsa.
— Certo, engraçadinho, onde mais vai me levar hoje? Imagino que
tenha mais alguma ideia em mente.
Ele mordeu o lábio, contendo um sorriso.
— Ah, eu tenho — disse abrindo a porta do carro para mim. — Entra
aí, loirinha. Temos uma longa noite pela frente.
— Vai ficar a noite inteira me chamando assim?
— Se isso continuar te deixando irritada, sim.
Suspirei, entrando no carro em seguida.
Dick dirigiu por poucos minutos, uns dez no máximo. Ele parou em
uma rua arborizada parecida com Penny Lane.
— Você sabia que não tem morangos em Strawberry Fields?
Olhei empolgada pela janela. Estava escuro, mas o portão todo
trabalhado era inconfundível.
— Ouvi dizer que é uma réplica do original — comentei, descendo
do carro em seguida.
Dick não negou.
— Mas é divertido fingir que era por ele que John passava na frente
todos os dias, e que nesse muro ao lado ele pulava para ficar de bobeira com
os amigos no gramado do orfanato à noite.
— Realmente, tem seu charme.
Ouvir Dick falar sobre isso me lembrava de quando eu ficava
importunando meus pais contando a história dos Beatles. Finalmente
encontrei um fanático como eu.
— Tira uma foto minha? — Estendi o celular.
— Agora você quer tirar foto. — Ele revirou os olhos e pegou o
celular da minha mão.
Me posicionei bem no meio do portão e estiquei os braços para cima.
O flash da câmera veio segundos depois.
Peguei o celular de volta e indiquei com o queixo que Dick fosse
onde eu estava. Ele me obedeceu, relutante.
— Finge que está escalando o portão.
Ele me olhou cético.
— Está falando sério?
— Nunca falei tão sério na minha vida.
Dick resmungou alguma ofensa incompreensível e agarrou a grade
vermelha, erguendo uma das pernas fingindo que estava prestes a escalar ela.
Foi nesse momento que eu tirei a foto.
— E se escalarmos ela de verdade?
— O quê? — Tirei os olhos do celular para prestar atenção no garoto.
— Não deve ter ninguém lá dentro — argumentou —, podemos fazer
igual John Lennon quando jovem. O que acha?
— Invadir patrimônio público?
Ele franziu o cenho.
— Não acho que seja público.
— Essa não é a questão! — exclamei, perplexa.
— Você não sabe se divertir, Daisy Shields?
Eu quis dar um soco naquele sorrisinho sacana.
— E vamos fazer o que ali dentro?
Dick apontou um dedo na minha direção e voltou correndo para o
carro, tirando do banco de trás uma mochila preta.
— Um piquenique.
Arqueei as sobrancelhas.
— Jura? — ironizei.
— Peguei algumas coisas do Cavern Club — disse voltando até mim.
— Suco, pois Thomas disse que você não bebe, e alguns salgadinhos. Aliás,
quero ouvir essa história. Como uma fã condecorada de Beatles não bebe
álcool? Pensei que era pré-requisito, considerando que um dos locais que se
tornou mais famoso por causa deles foi um bar.
— É uma longa história.
Na verdade, não era, mas eu não estava afim de estragar o clima
contando sobre minha doença.
— Que tal entramos e você me conta durante nosso piquenique?
Temos a noite toda — sugeriu.
Bem, que mal faria? Ele sentiria pena, sim. O clima ficaria estranho,
sim. Mas eu tinha certeza que ele iria me importunar até que eu contasse.
— Certo — acabei concordando.
Dick me ajudou a subir pela grade, impulsionando meu pé para cima
com suas mãos, e depois pulou para o outro lado com uma facilidade
impressionante.
— Por que sinto que essa não é sua primeira vez fazendo isso?
Ele encolheu os ombros.
— Não admitirei nada que poderá ser usado contra mim no tribunal.
— Engraçadinho.
Caminhamos pela estrada de pedra. Dick estava certo quando disse
que o lugar estaria vazio. Não havia sequer uma lâmpada acesa, tanto nas
construções quanto nos postes.
Fomos até um extenso gramado, onde Dick estendeu sua jaqueta
jeans e indicou que eu sentasse em cima.
— Obrigada — murmurei, me sentando sobre o casaco. Ele se
acomodou ao meu lado na grama.
Da mochila, Dick tirou exatamente o que tinha me dito, duas garrafas
de suco e alguns pacotes de salgadinhos.
— Um farto piquenique — brinquei.
— A gente trabalha com o que tem.
E já estava ótimo assim, foi o que constatei ao pegar a garrafa de
suco e beber um gole.
— Eu tenho uma doença — soltei sem mais nem menos.
Dick me olhou intrigado, não deveria estar esperando por aquilo.
— Como?
— É por isso que não bebo — expliquei. — Se chama Amiloidose
Cardíaca. É bem rara, principalmente na minha idade. Foi um diagnóstico
tardio, eu demorei para procurar ajuda. No início eu sentia apenas uma
dormência nas mãos, mas acabei ignorando por um tempo, até que comecei a
sentir dores insuportáveis.
Não só o fato da minha demora para procurar ajuda, mas também a
dificuldade de chegar a um diagnóstico levaram ao meu quadro atual.
Ninguém esperava que uma mulher jovem pudesse ter essa doença, é
basicamente um dos últimos diagnósticos diferenciais a se pensar, aqueles
que estão em letras minúsculas no canto da folha de um livro com mais de
mil páginas.
— Enfim, eu tomo uma tonelada de medicamentos, então não posso
ingerir nada alcoólico.
Dick me encarava estático, sua expressão de espanto me deixou um
pouco receosa. Será que eu o tinha assustado?
— E é… grave? Essa sua doença.
Concordei com a cabeça.
— Não tenho muito tempo de vida, se é isso que quer saber.
— De quanto tempo estamos falando exatamente?
Não faria sentido mentir, não agora que já contei tudo a ele.
— Seis meses.
De repente, o clima ficou pesado, exatamente como eu estava
tentando evitar.
Era claro que ele ficaria chocado com a informação, todos ficavam.
— Era por isso que eu não queria te contar. Todo mundo faz essa
cara quando eu digo isso.
Ele piscou algumas vezes e negou com a cabeça.
— Desculpa, é só que… sei lá, eu não esperava por essa. Pensei que
você fosse dizer que era evangélica ou estava participando dos alcoólicos
anônimos.
Não consegui segurar a risada.
— Acho que teria sido melhor eu inventar algo assim.
— Não. Não teria.
Franzi o cenho.
Dick deu de ombros.
— Existe um lado bom em contar as coisas para um estranho. Ele
não tem pré-julgamentos, ele não sabe como era sua vida até agora, ele pode
dar conselhos que nenhum conhecido seu daria por medo, ou por não
entender pelo que você está passando.
Foi a minha vez de ficar sem reação.
— Obrigado por me contar a verdade, Daisy Shields.
— Você sabe que há grandes chances de eu ter inventado toda essa
história, né? — brinquei.
Um sorriso ladino tomou o rosto de Dick.
— Ah, eu sei disso, mas prefiro acreditar que você é uma pessoa
honesta. Estou sendo enganado para doar dinheiro na sua vaquinha virtual?
— Sim, eu agradeceria muito se você doasse duzentas libras para eu
atingir a meta e pagar meu tratamento.
Dick não riu como eu esperava, mas o sorriso não saiu do seu rosto.
Acho que só eu via graça em piadas sobre a minha doença.
— Tem tratamento? — ele quis saber.
Neguei.
— A única solução seria fazer um transplante de coração, mas já
fazem meses que estou na fila de espera. Ele não chegaria a tempo, pelo
menos foi o que o médico disse.
— Eu sinto muito, Daisy.
Tomei mais um gole do meu suco.
— Está tudo bem, tive um tempo para me acostumar com a ideia.
— É por isso que você veio para Liverpool?
Assenti.
— Decidi que viveria meus últimos tempos em um lugar que eu
sempre quis conhecer. Como viajar para outro país estava fora de cogitação,
escolhi uma cidade da Inglaterra.
— A cidade dos Beatles — ele completou.
Eu sorri, finalmente focando meu olhar nele.
— Não tinha como ser outra.
Dick abriu um dos pacotes de salgadinhos e encheu a palma da mão,
colocando tudo dentro da boca de uma vez. Eu ri enquanto o observava
mastigar de forma exagerada.
— Eu teria ido para a praia — disse depois de engolir o salgadinho
com certa dificuldade. — Não veria problema em passar meus últimos dias
embaixo de um guarda-sol bebendo uma água de coco e curtindo a vista.
— Nunca fui para a praia — admiti.
Ele virou rapidamente o pescoço na minha direção, me olhando
espantado.
— Está falando sério?
— Nunca tive a oportunidade. Meus pais não são muito de viajar, e
preferem ficar em cidades grandes.
— E você não pensou em ir por conta? Ou com os amigos? O
colégio? Qualquer coisa.
Roubei um punhado de salgadinhos do pacote dele, que estava
jogado na grama.
— Na verdade, pensei sim. Meu colégio nunca fez uma viagem do
tipo e, para ser bem sincera, eu nunca tive um grupo de amigos com quem
pudesse fazer esse tipo de coisa. Quanto a ir sozinha, minha mãe controlava
muito minha vida até eu completar vinte e um anos, e então veio o
diagnóstico da Amiloidose… acabou que a minha primeira oportunidade de
sair de casa foi agora.
— Vou te levar para conhecer o mar — falou em tom de promessa.
— Acho difícil que isso vá acontecer — eu disse rindo.
Dick não riu, sua expressão se manteve firme.
— Estou falando sério. Você vai conhecer o mar, e eu quero estar lá
para tirar uma foto e me gabar nas redes sociais por isso.
— Porque eu não esperava diferente?
Ele deu um chutezinho no meu pé, implicante.
O barulho de pneus roubou nossa atenção.
Dick se levantou rápido, estendendo a mão para me ajudar a fazer o
mesmo. Nós recolhemos as coisas, apressados, e fomos correndo para trás de
uma árvore.
Um carro passou pela estrada de pedra e seguiu adiante, sumindo
atrás de uma construção moderna que tinha sido feita durante a revitalização
do lugar.
— Acho melhor irmos — murmurou, os lábios próximos demais do
meu ouvido.
Um arrepio atravessou todo meu corpo.
— Hum… é, sim — falei, desconcertada.
Eu teria conseguido me segurar se Dick não tivesse soltado uma
lufada de ar, o indício de um risada, que afastou os fios de cabelo que
protegiam meu pescoço.
Me virei para ele tendo a completa noção de que isso nos deixaria
praticamente colados peito contra peito. Talvez eu quisesse ter feito isso
desde o início.
Dick era bonito, o que de certa forma me surpreendia, pois eu não
costumava chamar a atenção de caras como ele. O show de hoje provou que
o guitarrista tinha dezenas de garotas que dariam tudo para trocar uns
amassos, ou até mesmo passar apenas um tempo com ele. E foi comigo que
ele saiu daquele show e fez uma tour pela Liverpool noturna. Eu deveria
perder meu tempo criando esperanças de que talvez seu interesse em mim
fosse além da nossa paixão mútua por The Beatles?
— Algum problema, loirinha? — sua voz era levemente rouca pelo
tom baixo que adotou.
Percebi que passei tempo demais encarando seus lábios em silêncio.
Ainda bem que ele não conseguia ver meu rosto direito, pois eu tinha
certeza de que naquele momento eu parecia um pimentão.
— Sabe, eu poderia perguntar o mesmo — revidei. — A gente não ia
sair daqui?
Desviei meu olhar para baixo, mostrando para ele que ainda
estávamos grudados um no outro, que ele ainda me pressionava contra o
tronco da árvore.
A respiração de Dick se chocou contra meu rosto, quente e
convidativa.
— E se eu disser que estou louco para te beijar, mesmo não sabendo
nada sobre você, e correndo o risco de levar um chute no meio das pernas
por tentar algo?
Mantive minha expressão neutra, fingindo que por dentro eu não
estava surtando e soltando fogos de artifício ao mesmo tempo. Ah, se ele
soubesse a confusão que causou na minha mente com essa frase.
— Hum… — fingi pensar. — Acho que você deveria correr o risco,
só uma sugestão.
Dick sorriu, aquele tipo de sorriso que faz você se apaixonar na hora
pela pessoa, e então aproximou o rosto lentamente do meu.
Fechei os olhos me preparando para quando seus lábios tocassem os
meus, pois eu não sabia que tipo de reação meu corpo poderia ter. Era fato
que fazia meses que eu não beijava um cara, não desde que comecei o
tratamento da minha doença.
Mas aquele beijo nunca chegou.
Uma luz forte me cegou por alguns segundos, e fez com que Dick se
afastasse.
— Ei! — alguém gritou. — O que vocês estão fazendo aqui? É
proibido entrar depois do horário de visitação.
Nós nos olhamos alarmados.
— Corre — ele sussurrou.
E foi o que fizemos, rindo como dois malucos enquanto
disparávamos em direção ao muro. Eu provavelmente teria uma crise de falta
de ar, mas valeria a pena.
Aquela foi uma das melhores noites da minha vida.
Capítulo 4

Terminei de arrumar a estante dos livros de suspense, levando meu


carrinho em direção à sessão das fantasias.
Trabalhar em uma livraria tinha suas vantagens, eu podia organizar as
estantes do jeito que eu quisesse, como se fosse minha própria biblioteca.
Fora que eu ganhava desconto por ser funcionária.
Eu tinha dado a sugestão de fazer um espaço para os livros que eram
sensação do momento, com direito a decoração especial e tudo mais. Minha
chefe gostou tanto da ideia que acabou me encarregando de planejar o visual
da entrada da livraria. Naquela semana eu havia feito um arco-íris de livros.
Estava reestocando alguns livros quando senti meu celular vibrar no
bolso do avental.
Era uma mensagem, mais especificamente de Dick.
Meu coração errou uma batida ao ler o nome dele na tela.
“Tive uma ideia”, era o que dizia a mensagem. Sem cumprimentos, ele
foi direto ao ponto.
“Diga”, acabei sendo mais curta ainda.
Dick não demorou a responder.
“Vai ter que me encontrar pessoalmente para descobrir”
Mordi o lábio, curiosa demais para esperar até o final do expediente para
descobrir o que ele tinha para me contar.
“Não se fala esse tipo de coisa para uma pessoa cardíaca. Não tem
medo de que eu tenha um infarto?”
A resposta mais uma vez veio rápido.
“Se fosse assim, você teria infartado depois que quase te beijei em
Strawberry Field”
A minha sorte é que ele não tinha como ver a forma como minhas
bochechas ficaram vermelhas depois de ler aquela mensagem.
“Até parece”
Na verdade, ele tinha um ponto, mas não deixaria que jogasse isso na
minha cara.
Depois do nosso quase beijo e a fuga do guarda noturno, Dick me deixou
em casa e me fez passar meu número de celular pra ele. No dia seguinte,
ficamos conversando por mensagens durante horas a fio. Infelizmente, não
conseguimos nos encontrar de novo, pois no sábado ele trabalhava em uma
lanchonete, e hoje, no domingo, eu trabalhava na livraria.
“Que horas você larga do trabalho?”
Olhei para o relógio pendurado na parede ao lado do caixa.
“Daqui duas horas”
A livraria estava vazia naquele horário, mas eu precisava ficar para
fechar naquele dia, então nada de fugir antes do expediente acabar.
“Te vejo em duas horas”
Eu não respondi, pois estava concentrada demais em passar as próximas
duas horas me perguntando que maldita ideia era aquela que ele teve e
porque não podia me contar por mensagem.
Decidi que mataria o tempo ajeitando as decorações de Natal que tirei do
depósito. A maioria das lojas já estavam enfeitadas para o Natal faziam dias,
mas aqui na livraria acabamos deixando mais para o final de Novembro.
Os enfeites com flocos de neve chegavam a ser irônicos, considerando
que não era comum nevar na Inglaterra, pelo menos não em Londres.
Quando pesquisei sobre Liverpool, descobri que aqui as chances de nevar
eram maiores, mas isso não aconteceu desde que cheguei. Era uma pena, eu
adoraria ver a neve de novo antes de… bem, era melhor nem pensar nisso.
O tempo acabou passando rápido. Consegui deixar a livraria em um
clima bem natalino, com uma árvore iluminada bem no meio da loja e
guirlandas espalhadas pelas prateleiras, repletas de lacinhos vermelhos e
dourados. Até mesmo coloquei na vitrine livros com a temática de Natal.
Estava tão concentrada em admirar minha arte, que nem ouvi a porta da
loja sendo aberta.
— Parece que eu entrei em um daqueles filmes natalinos que repetem
todo ano na televisão.
Me virei com uma mão no peito, nada preparada para aquele susto.
— Devo lembrá-lo que meu coração está por um fio?
Dick sorriu.
— Você se assusta fácil demais, loirinha.
— Algum dia vai parar de me chamar assim?
— Eu duvido muito.
Suspirei alto.
— Então sane a minha curiosidade, pois essas foram as duas horas
mais torturantes da minha vida. — Eu claramente exagerei, e ele sabia disso.
— Já vai fechar a loja?
Assenti.
— Vem — ele apontou com a cabeça em direção a porta —, eu te
ajudo.
Dei uma última conferida na loja e então aceitei a ajuda de Dick para
trancar tudo. Ele terminou de puxar a grade de metal e limpou as mãos na
calça jeans, logo em seguida ajeitando a franja para trás, deixando uma
mancha preta na testa.
Deixei escapar uma risada contida.
Ele me olhou divertido, mas ao mesmo tempo confuso.
— O que foi?
Apontei para minha testa.
— Você está sujo.
Dick esfregou o dorso da mão sobre a testa, mas não tirou a mancha
por completo, apenas a espalhou mais para os lados.
— Deixa comigo.
Me aproximei dele e, com uma certa grosseria, esfreguei a sua pele
até que o preto sumisse por completo. Dick fez alguns protestos no processo,
mas não me impediu de continuar.
— Poderia ter sido mais delicada — ele reclamou, levando a mão à
testa agora vermelha.
Não pude deixar de achá-lo fofo com aquela expressão falsa de
sofrimento e o biquinho emburrado.
— Não teria saído, mas não se preocupa que da próxima vez eu finjo
que não vi, assim o bebê não vai machucar a testa — provoquei.
Dick revirou os olhos, mas vi a sombra de um sorriso no seu rosto.
— Você disse que tinha uma ideia para me contar — o lembrei.
— Ah, sim. — Ele pareceu se lembrar do motivo de estar ali. — Tem
uma lanchonete legal aqui perto, vamos conversar lá.
Coloquei as mãos na cintura.
— Quantas condições mais vão ter para você me falar logo essa
maldita ideia?
A minha ansiedade já estava difícil de suportar.
— É a última — disse rindo —, prometo.
Suspirei, fingindo que não estava afim de ir com ele. É claro que eu
estava.
— Muito bem, vamos lá então.
Caminhamos em silêncio por alguns minutos. As ruas estavam
movimentadas naquele final de tarde, pessoas comprando presentes de Natal
antes que os estoques acabassem, outras apenas aproveitando para passear
enquanto a chuva ainda não vinha. Nenhum de nós precisou falar para
preencher o vazio.
O sorrisinho convencido no rosto de Dick estava me deixando
angustiada. Ele estava com a cara de quem aprontava algo, mas eu não sabia
dizer o que.
— Porque está me olhando?
Ele perguntou antes de virar o rosto na minha direção.
— Sua expressão está me incomodando.
— Que expressão? — O sorriso dele aumentou.
— A de quem está planejando algo, e eu estou com medo de não
gostar.
— Me conhece há quatro dias e já consegue me ler tão facilmente?
Estou impressionado.
Cruzei os braços e o encarei cética.
Dick balançou a cabeça, sorrindo, e apontou com o queixo.
— Olha para o outro lado da rua.
Fiz o que ele mandou, demorando um pouco para entender o que
queria que eu visse, até que meus olhos brilharam. Grudado à parede de uma
grande construção estava um banco que, de início, poderia parecer um lugar
qualquer, mas o que chamava a atenção era a estátua de bronze em uma das
suas pontas. Era uma mulher lendo um jornal com uma sacola de compras ao
lado.
— Eleanor Rigby — murmurei, encantada.
Atravessei a rua com um pouco de pressa, sendo seguida por Dick,
que reclamava sobre eu não ter olhado para os lados antes de atravessar.
— Você definitivamente quer morrer.
Ignorei sua fala e me sentei ao lado da estátua.
Ela já estava desgastada pelo tempo, mas nada tirava sua beleza e o
seu significado. Em cima, uma placa estava com seu nome e uma
homenagem à “All the lonely people” gravados em dourado.
— A maioria das pessoas dá mais atenção para a lápide da Eleanor,
mas para mim essa estátua tem mais charme e significado — Dick comentou
enquanto pegava o celular que estendi na sua direção.
Ele não estava errado. A lápide em St. Peter’s Church era apenas
isso, uma lápide. A Eleanor Rigby daquele cemitério não tinha relação
alguma com os Beatles, apenas a coincidência de Paul acabar colocando esse
nome na música. Já a estátua era uma homenagem à música, tendo um
significado muito maior na história da banda.
Posei ao lado da estátua, tirando algumas fotos apenas parada ao seu
lado e outras fingindo que eu estava interagindo com ela.
— Isso ficou tão brega — ele falou, rindo.
Apenas mostrei a língua e peguei meu celular de volta.
— Vem, vamos tirar uma selfie com a Eleanor, assim ela não se sente
tão sozinha. — Puxei Dick pela manga do casaco.
— Isso está ficando cada vez pior — protestou, mas se deixou ser
levado até a estátua.
Eu voltei a me sentar ao lado da Eleanor, enquanto Dick se agachou
do outro lado. Abri um sorriso largo, já ele deu uma erguidinha em um dos
cantos da boca.
— Você é tão sem graça — murmurei enquanto analisava a
fotografia.
Dick deu de ombros e se sentou ao meu lado, inclinando a cabeça na
minha direção para ver a foto também.
Estávamos próximos demais, foi o que percebi ao sentir um cacho do
seu cabelo raspar no meu queixo.
— Até que não ficou ruim — ele disse, absorto ao surto interno que
eu estava tendo naquele exato momento.
— É, hm… — Limpei a garganta. — Acho melhor a gente ir seja lá
onde você quer me levar.
Dick se afastou e levantou.
— Tem razão, vamos.
Acompanhei ele por mais alguns minutos, até pararmos em frente a
uma cafeteria.
Franzi o cenho, analisando a fachada cor de rosa que remetia aos
anos sessenta, com azulejos formando um padrão quadriculado que
preenchia toda a parede. Dá vitrine, dava para ver que o lado de dentro tinha
o mesmo aspecto.
— É bonitinha — argumentei, ainda tentando entender porque
estávamos especificamente lá.
— Não percebeu nada no nome?
Acompanhei seu olhar até o letreiro acima das nossas cabeças.
— Lady Madonna. — Li em voz alta. — É uma música deles não?
Uma das pouco conhecidas.
Dick assentiu.
— Vem. — Ele segurou minha mão e me puxou para dentro da
cafeteria.
Aquele contato de peles durou poucos segundos, mas foram o
suficiente para me desestabilizar. Eu era patética.
— Martha — Dick disse ao ver uma mulher ruiva limpando uma
mesa recém desocupada.
A mulher se virou para nós e sorriu ao ver quem a chamava.
— Dick, querido. Fazia tempo que você não aparecia.
Esperei quieta enquanto a mulher segurava Dick pela bochecha e
dava um beijo estalado em uma delas. Dava para ver que a tal Martha tinha
muito carinho por ele.
Eles finalmente pareceram lembrar que eu estava lá, pois a mulher
arqueou as sobrancelhas para mim e então se voltou para Dick.
— Não vai me apresentar a garota?
Ele revirou os olhos, dando um falso suspiro.
— Essa é a Daisy, uma… amiga.
Eu sorri para a mulher, que pegou minha mão e chacoalhou
incansavelmente.
— É um prazer conhecê-la. Dick nunca trouxe garotas aqui, você
deve ser especial.
Lancei um olhar assombrado para ele, que apenas negou com a
cabeça, parecendo sem graça com a cena.
— Eu sou Martha, madrinha desse garoto aqui e melhor amiga da
mãe dele.
— Bom te conhecer. — Dei um sorrisinho apreensivo.
A mulher finalmente soltou minha mão.
— A mesa de sempre?
Ele concordou.
Nós a seguimos até uma mesa encostada em uma parede repleta de
fotos em preto e branco.
— Fiquem a vontade, volto em alguns minutos para anotar os
pedidos.
Finalmente voltamos a ficar sozinhos.
Um silêncio estranho tomou conta, sendo cortado apenas pela música
ambiente que começou a tocar. Eu reconheci a voz de John, mas não sabia
bem qual música era.
Apoiei os cotovelos sobre a mesa e juntei as mãos, soltando minha
respiração um pouco audível demais.
— Você vem muito aqui com a sua mãe?
Dick piscou algumas vezes e me encarou, parecendo perceber que eu
tinha feito uma pergunta.
— Ah, é. Eu vinha, quando pequeno.
— E por que não vem mais?
Ele de repente ficou estranho, distante.
— Ela… ela teve câncer. — Foi o máximo que se limitou a dizer.
— Ah.
Foi a minha vez de ficar sem graça.
Para a nossa sorte, Martha voltou para anotar os pedidos.
— Já sabem o que vão querer?
Dick não me deixou falar.
— Dois chocolates quentes, e pode trazer aqueles biscoitinhos de
manteiga?
Martha anotou tudo no seu bloquinho.
— Claro. Acabei de fazer uma fornada deles, estão bem quentinhos.
— Obrigada — agradeci antes que ela se afastasse.
Decidi não permitir que aquele clima estranho voltasse a se instalar.
— Mas então, o que você queria tanto me falar que precisou me
trazer até aqui?
Um sorrisinho surgiu no seu rosto, algo que não tinha mais
acontecido desde que entramos na cafeteria.
— Ah, sim. Eu tive uma ideia brilhante — se gabou.
Balancei as mãos, o incentivando a continuar.
Dick levantou e foi correndo até o balcão, roubando uma caneta que
estava jogada lá, e voltou para seu lugar. Ele pegou um guardanapo do
suporte no canto da mesa e o estendeu, escrevendo algo no topo.
Tentei espiar, mas ele tapou o que escrevia com a outra mão.
— O que você está fazendo?
O garoto finalmente parou de escrever e levantou o guardanapo.
Em uma letra até bem bonita estava escrito “Lista da Daisy de coisas
para fazer antes de morrer”.
— Ok, isso é bem macabro.
Ele largou o guardanapo na minha frente.
— Pensei em escrevermos uma lista com tudo o que você quer fazer
antes de… bem, você sabe.
— Morrer?
Dick engoliu em seco.
— É.
Analisei o guardanapo por alguns segundos.
— Não é uma má ideia.
Aquilo pareceu animar Dick.
— Certo! Então vamos lá, qual é a primeira coisa que você quer pôr
na lista?
Era difícil pensar nisso. Tinha tantas coisas que eu queria fazer,
morar em Liverpool era uma delas.
— Bem, eu já vim para Liverpool, que era a minha prioridade.
Conheci o Cavern Club, Penny Lane, Strawberry Fields e a estátua da
Eleanor. Acho que os principais pontos turísticos dos Beatles eu já vi, não
sei o que poderia estar faltando.
Estar naquela cidade já era uma grande realização.
— Não estou falando apenas dos Beatles. Você pode pôr qualquer
coisa nessa lista. O que sempre quis fazer, mas nunca teve a oportunidade?
— Bem, eu já deixei de fazer muitas coisas por causa do medo da
minha mãe de que algo acontecesse. Nunca saí para curtir a noite com meus
amigos, embora não tivesse muitos, de qualquer forma.
Eu era aquele tipo de adolescente que tinha apenas dois amigos na
escola, mas que eram inseparáveis. Nunca foi um problema para mim, pois
eles eram o suficiente, sempre foram. Acabei me afastando um pouco de um
deles quando nos formamos, mas eu ainda conversava com Abigail, que me
deu total apoio quando contei que me mudaria para Liverpool.
— Já sei qual vai ser o primeiro item.
Ele puxou o guardanapo para perto e escreveu sua ideia, o virando
para mim em seguida.
— Ir no ensaio da The Black Roulettes?
O garoto sorriu.
— Amanhã à noite, na garagem do nosso baterista.
— Vai ter muita gente?
— Está planejando fugir de mim mais uma vez?
Dei um tapa em sua mão.
— Você sabe que eu não fiz isso. Só perguntei para saber se vai ter
algum lugar para sentar.
Eu me cansava muito fácil, culpa do meu coração danificado.
— Vai ter, não se preocupe. Mas na festa que vamos depois eu vou
ficar te devendo, pois nunca fui naquela boate.
Arqueei as sobrancelhas, confusa.
— Que festa?
— Vamos ir em uma festa depois do ensaio.
Neguei.
— Não gosto de festas.
— Você já foi em uma?
Neguei mais uma vez.
— E como tem tanta certeza assim de que não gosta?
— Eu assisto televisão — falei como se fosse óbvio.
Vi filmes adolescentes demais para entender que aquele não era o
meu tipo de programação, principalmente em uma segunda-feira à noite.
— Ok. Segundo item, ir em uma festa. — Ele anotou em seguida.
— Pensei que era a minha lista — protestei.
Dick virou o guardanapo para mim e largou a caneta na mesa.
— Pois bem, sua vez então.
Pensei um pouco. O que mais eu queria fazer antes de morrer?
Tinham que ser coisas possíveis, praia, por exemplo, não era uma delas.
Martha apareceu com nossos pedidos e os deixou em cima da mesa,
dando uma rápida olhada curiosa para o guardanapo, mas decidiu não
questionar e se afastou.
Dick bebeu um gole de chocolate quente enquanto esperava.
— Eu queria aprender a tocar violão.
— Posso te ensinar.
— Ótimo. — Anotei a terceira ideia.
Escrevi mais algumas coisas e então larguei a caneta, pegando meu
chocolate quente e bebendo um gole.
Dick puxou a lista para ler.
— Ver a neve cair? Não é muito comum nevar na Inglaterra.
— Ah, eu sei, mas vi que ao norte tinha mais chances de nevar, então
achei que poderia acabar vendo por aqui.
Eu ansiava por esse momento desde que cheguei, principalmente
considerando que nos aproximávamos do Natal. Nevar deixaria tudo ainda
mais mágico.
Ele terminou de ler a lista, balançando a cabeça para cima e para
baixo.
— É, acho que conseguimos fazer a maioria delas. Mas eu me recuso
a tirar uma foto com o papai noel, essa você pode completar sozinha.
Peguei a lista de volta.
— Estraga prazeres.
— Mas já sabe quais vão ser os primeiros itens que vamos completar,
não é?
— Sei, sim.
Desviei meu olhar para o papel.
“Ir no ensaio da The Black Roulettes”.
“Ir em uma festa”.
E eu rezava para que a minha mãe nunca descobrisse o segundo item.
Capítulo 5

— O que achou?
A garota de pele preta clara e cabelos crespos balançou a cabeça em
discordância na videochamada que estávamos fazendo no computador.
— Você não vai usar esse suéter surrado em uma festa — Abigail disse
incrédula.
Olhei para meu suéter amarelo queimado. Ele era quentinho e
confortável, tudo que eu mais prezava.
— Não tenho nada melhor — argumentei.
— Ah, você tem sim.
Encarei minha melhor amiga por alguns segundos, tentando entender do
que ela falava. Meus olhos se arregalaram quando lembrei.
— Não! Eu não vou vestir aquilo.
— Você vai sim! — Ela veio para frente da tela, provavelmente
desejando atravessá-la para vir me obrigar a vestir a roupa.
— Eu não gosto… daquilo. Você me obrigou a comprar, mas eu nunca
concordei em vestí-lo.
— Pois está mais do que na hora.
Suspirei, sabendo que não teria como contrariar Abigail Starkey.
Fui até meu armário de roupas e procurei na pilha mais escondida, onde
ficavam as roupas que eu não usava, mas que estavam lá por algum motivo.
Tirei um pedaço de tecido preto e o estendi na frente da câmera do
computador.
Abigail deu um gritinho quando viu o vestido.
— Você vai ficar tão linda.
— Eu vou ficar ridícula.
— Deixa de ser boba e veste ele logo.
Soltando um longo suspiro, fui para um canto do quarto onde a câmera
não pegava e troquei de roupa.
Me olhei no espelho antes de mostrar o resultado para Abigail.
O vestido era lindo. Tinha mangas compridas e a barra ia até um pouco
acima dos joelhos, o tecido era inteiramente preto e se ajustava ao corpo. Eu
me sentia tão ridícula quanto no dia em que o vesti no provador da loja.
— Eu quero ver! — Abigail gritou na videochamada.
Voltei para a frente do computador.
Minha amiga fingiu ter um ataque cardíaco e caiu para trás na cama.
— Isso foi meio ofensivo considerando que eu realmente tenho problema
de coração — brinquei.
A garota deu risada e voltou a me encarar.
— Você está simplesmente maravilhosa. Aquele tal de Dick vai surtar
quando te ver.
— Ele vai rir de mim, isso sim.
— Daisy Shields, você é a londrina mais gostosa que esse garoto já viu.
Ele vai se ajoelhar aos seus pés no segundo em que te ver nesse vestido.
Ela dizia aquilo porque era minha amiga, mas eu sabia que as coisas
eram diferentes na realidade. Eu seria apenas uma lembrança passageira,
uma garota doente apaixonada por The Beatles. Essa seria a minha posição
na vida dele.
— Está um grau lá fora, eu vou congelar.
— É só colocar uma meia-calça e um casaco. Você ainda tem aquela cor
mais grossa, não? A que usou no aniversário da sua mãe.
Se eu ainda a tivesse, provavelmente estaria soterrada na gaveta de
meias.
— Vou procurar.
Perdi alguns minutos até encontrar a maldita meia-calça. Ela era mais
grossa que uma normal, mas ficava bem disfarçada na perna. Vesti ela,
ajeitando embaixo do vestido, e peguei um casaco no armário para completar
o look.
— O que acha desse? — Mostrei um casaco vermelho felpudo que fazia
parecer que eu tinha uma ovelha colorida pendurada no cabide.
— Ah, eu adoro esse casaco. Veste aí para a gente ver como fica.
Fiz o que Abigail pediu e dei uma voltinha para ela me analisar.
— Tá perfeito, amiga!
Eu realmente esperava que ela estivesse falando a verdade, pois não
queria passar vergonha na frente de tanta gente desconhecida.
— Você tomou seus remédios? — minha amiga pediu, voltando a tornar
a voz em um tom sério.
Assenti.
— Minha mãe estaria me ligando nesse exato momento para me xingar
se eu não os tivesse tomado. Ela tem uma espécie de telecinese bizarra. Às
vezes penso que instalaram câmeras no meu apartamento sem eu saber.
Olhei ao meu redor, fingindo procurar por uma câmera.
— Ela só está preocupada com você morando sozinha.
Sentei na minha cama.
— Eu sei, e entendo ela. Mas estar aqui… eu precisava disso. Tenho tão
pouco tempo. Preciso compensar, preciso… viver.
Precisava fazer o que nunca tinha feito antes, essa era a verdade.
— Então vai lá e vive, garota. Sei que você está interessada no Dick, dá
para ver na sua cara, e olha que a resolução de imagem nem é tão boa. Dá
uma chance para esse garoto, você se privou tanto desde que descobriu a
doença. Está na hora de ir atrás do que você quer.
— Sim, você está certa.
— Eu sempre estou certa, querida — ela se gabou.
A tela do meu celular brilhou, revelando a mensagem de uma pessoa
bem conhecida.
— Amiga, tenho que ir. Dick vai me dar uma carona e ele já está aqui na
frente.
Abigail mandou um beijo para a câmera.
— Amanhã quero saber de tudo!
— Tá bom, tá bom — falei rindo e desliguei a chamada.
Peguei minha bolsa, guardando o celular dentro, e dei uma última olhada
no espelho, ajeitando minha franja para os lados.
Saí rápido de casa para não deixar Dick lá fora esperando.
O encontrei escorado no carro, mexendo no celular.
— Oi — chamei sua atenção.
Dick levantou o olhar para mim e então paralisou.
Eu não sabia dizer se aquela reação era boa ou ruim, só que me
deixou com vontade de sair correndo mesmo sabendo que eu ficaria com
falta de ar antes de chegar na esquina.
— Você está realmente linda — disse por fim.
Eu achei que já tivesse atingido o nível mais alto de vermelhidão que
meu rosto poderia aparentar, mas aquele ultrapassou todos os limites. Me
tornei uma pimenta por inteiro, e meu coração disparou como quando era
saudável, o que talvez pudesse vir a ser um problema mais tarde.
— É… obrigada — murmurei, colocando uma mecha de cabelo atrás
da orelha.
Dick sorriu, aquele sorriso que poderia desestabilizar qualquer um.
Aquele sorriso que me fazia querer beijá-lo sem parar.
— Vamos?
Assenti, um sorriso bobo tomando meus lábios.
Entramos no carro e Dick dirigiu por alguns minutos. Ele explicou
que o garoto morava em uma parte mais rica de Liverpool. Eu
definitivamente nunca tinha ido para aqueles lados antes.
Observei as casas pelo vidro do carro. Não chegavam a ser mansões,
mas definitivamente custavam mais do que meu rim no mercado negro,
talvez os dois.
Dick estacionou na frente de um belo portão, que tinha o metal todo
retorcido em arabescos, o que combinava perfeitamente com o muro alto e
branco que protegia a casa.
Saímos do carro e ele tocou uma campainha que eu nem tinha
percebido na parede.
Não demorou muito para que o portão abrisse e nós finalmente
entrássemos.
Contornamos a casa, que era maior do que eu esperava, e
caminhamos por uma estrada de pedra até os fundos, onde percebi ter uma
garagem realmente grande, com dois portões, sendo que um deles estava
aberto. Foi para lá que Dick me levou.
Algum rock antigo tomava conta do ambiente enquanto as pessoas
conversavam e bebiam em seus copos de plástico. Tinha muita gente lá,
principalmente garotas.
— Isso parece mais um show do que um ensaio — sussurrei.
Dick apenas deu uma risada.
— As pessoas gostam de nos ver ensaiar. — Deu de ombros.
— Você quer dizer as garotas.
Ele me olhou com as sobrancelhas arqueadas.
— Ciúmes, loirinha?
Foi a minha vez de rir.
— Até parece.
Dick manteve um sorriso convencido no rosto enquanto desviávamos
das pessoas para chegar nos fundos da garagem, onde os instrumentos já
estavam instalados.
Vi Thomas na sua cadeira de rodas conversando com um garoto. Ele
sorriu quando nos viu e veio na nossa direção empurrando as rodas com as
mãos.
— Eu estava quase achando que não viriam.
— Eu precisava buscar a londrina aqui para que ela não se perdesse
no caminho — disse apontando com a cabeça para mim.
Dei um tapa em seu braço.
— Bom te ver de novo, Thomas — falei, sorrindo.
— Você também, Daisy.
Eu pretendia continuar a conversa, puxar assunto sobre o ensaio, mas
um garoto chegou por trás de Dick e envolveu seus ombros com o braço.
— Dick Norris, eu tenho uma gata para te apresentar — disse ele.
Thomas limpou a garganta, e então o intruso olhou para ele, e depois
para mim.
— Quem é ela?
O garoto era mais alto que Dick e tinha a pele em um tom alaranjado
escuro, seu cabelo era preto e bagunçado. Ele vestia roupas amarrotadas,
como se tivesse recém acordado.
— Essa é a Daisy — Thomas me apresentou. — Ela veio com o
Dick.
— Ah. — Ele deu um sorriso culpado. — A gente conversa outra
hora, campeão. — disse dando dois tapinhas no peito de Dick e saiu de
perto.
— Aquele idiota é o Russel — Thomas explicou —, nosso baterista.
— É ele o dono dessa casa?
Dick assentiu.
— E adora se gabar por isso.
Dei mais uma olhada no garoto, que agora estava do outro lado da
garagem conversando com duas mulheres. A primeira impressão que ele
deixou não foi das melhores, mas decidi não julgá-lo por isso.
— Vou cumprimentar alguns conhecidos.
Assenti e deixei que Dick saísse da rodinha também, restando apenas
Thomas e eu.
— Legal Dick ter te trazido.
Olhei para Thomas, não esperando que fôssemos conversar sobre o
meu interesse amoroso, mesmo que eu guardasse essa informação apenas
para mim.
— Ele me convidou ontem — comentei. — Achei que seria legal
assisti-los mais uma vez. Eu adorei o show que fizeram no Cavern Club.
— Bom saber que gostou. — Ele sorriu. — Mas fiquei surpreso que
vocês dois mantiveram contato depois daquele dia.
Franzi o cenho.
— Por que diz isso?
Thomas deu de ombros.
— Ele é o tipo de cara que não fica com a mesma garota mais de uma
vez. Dick e Russell até disputavam para ver quem ficava com mais mulheres
em uma noite. Mas desde aquele dia, Dick só tem andado com você. Isso me
deixa aliviado, se quer mesmo saber. Ele passou por coisas demais e merece
alguém realmente bom.
Decidi deixar para escanteio minha curiosidade em saber mais sobre
a vida de Dick e apenas desfiz o mal entendido, pois definitivamente não
existia um futuro em que nós dois ficávamos juntos.
— Nós somos apenas amigos — garanti.
Thomas me olhou cético.
Se ele soubesse da minha doença, entenderia do que eu estava
falando.
— Você vai na festa depois? — resolvi mudar de assunto antes que
eu acabasse falando algo que estragasse o clima.
Thomas negou.
— Embora eu ache extremamente divertido atropelar os pés das
pessoas com minha cadeira, combinei de sair com minha namorada.
— Ela está aqui?
Ele apontou para uma garota sentada em um sofá mais na entrada da
garagem.
Ela era linda. Tinha a pele preta clara em um tom oliva quente e os
cabelos volumosos e castanho escuro, não conseguia ver a cor dos seus olhos
daquela distância, mas tinha certeza que eram claros.
Infelizmente, na minha rota em voltar o olhar para Thomas, acabei
me deparando com uma cena que sabia que uma hora ou outra iria acontecer.
Dick estava conversando com uma garota. Ele sorria enquanto ela deslizava
a mão por seu braço, pareciam estar em uma conversa animada, e íntima.
Desviei o olhar tão rápido quanto pude.
— Me apresenta ela depois? — Adotei um sorriso falso nos lábios,
eu não tinha a menor vontade de sorrir.
— Claro — ele disse contente.
Thomas olhou para além de mim, e eu me virei para ver o que
acontecia.
Um garoto de cabelos escuros e compridos até um pouco acima dos
ombros estava conectando o teclado na tomada. Ele tinha uma expressão
séria, de poucos amigos.
— Aquele é o Alex. Se ele começou a arrumar os instrumentos, é
porque já vamos começar.
Assenti.
— Vou arrumar um lugar para sentar. A gente se fala depois.
Me despedi momentaneamente de Thomas e fui para um sofá que
tinha ali perto, um pouco mais para a lateral do palco improvisado, pois na
frente tinha um amplo espaço aberto para as pessoas ficarem de pé e
curtirem a música.
Thomas estava certo quando disse que logo o ensaio iria começar.
Dick e Russell também foram em direção aos seus instrumentos, e não levou
muitos minutos para que estivessem a postos.
— O que acham de começarmos com “Bloody Valentine”?
As pessoas gritaram animadas, loucas para ouvir a banda começar a
tocar.
As primeiras notas da música do Machine Gun Kelly tomaram conta
da garagem. O alvoroço do público aumentou quando Dick começou a
cantar.
Eu adorava o Machine Gun, mas tinha que admitir que a música
ficava melhor na voz de Dick. Ele conseguia transmitir sensações de um
jeito sem igual, fazendo com que sua voz tocasse as pessoas de várias
formas. Era inebriante.
Bati palmas com as pessoas ao final da música, enquanto ele repetia
uma sílaba no mesmo ritmo.
— Vocês são demais — ele murmurou no microfone antes de tocar a
última nota na guitarra.
Enquanto batíamos palmas, Dick bebeu um gole de água da sua
garrafa, se preparando para a próxima música.
Eles tocaram mais três músicas, uma melhor que a outra. Naquela
noite não teve Beatles, mas o ensaio não deixou de ser incrível por causa
disso. A The Black Roulettes tinha tudo para se tornar famosa um dia, eles
eram demais.
Dick veio na minha direção assim que o ensaio terminou e sentou ao
meu lado no sofá.
— Já temos um item para riscar da sua lista.
— Um item que você escolheu — o lembrei.
Ele empurrou meu ombro com o seu, fazendo com que meu corpo
tombasse para o lado.
Soltei uma risada e apontei para Thomas, que estava com a
namorada.
— Ela é bem bonita.
— Não diga isso para Thomas, ele vai tomar duas horas do seu
tempo para dizer como a namorada é incrível.
Eu não sabia o porquê, mas tinha a impressão de que isso realmente
poderia acontecer. Pelo jeito que ele olhava para ela, quase dava para ouvi-lo
latir.
— Thomas e Samantha tiveram um início bem conturbado — contou
—, mas agora são o casal mais meloso que já vi na minha vida.
Observei o casal por alguns segundos. Eles pareciam perfeitos um
para o outro, sorrindo como duas pessoas que realmente se amavam. Aquele
era o tipo de relacionamento que eu sempre sonhei em ter e, mesmo sabendo
que agora isso nunca aconteceria, esse sonho ainda não tinha se apagado por
completo.
— Fico feliz pelo Thomas, de verdade.
— Eu também. Sei que você deve estar curiosa para saber como ele
acabou em uma cadeira de rodas.
Meu rosto corou na mesma hora, entregando minha curiosidade.
— As pessoas costumam ter medo de falar com ele sobre isso por
achar que é um assunto sensível, mas Thomas sempre foi aberto sobre sua
condição. Ele teve uma encefalite quando éramos crianças e perdeu o
movimento e sensibilidade completa de uma das pernas, mas isso nunca o
abalou. É a pessoa mais alegre que conheço e eu, bem… eu admiro isso nele,
essa positividade toda.
Do pouco que consegui conhecer Thomas, vi exatamente o que Dick
estava me descrevendo. Ele emanava luz. As pessoas deviam ser mais como
ele, foi o que constatei.
— Dick — uma voz feminina o chamou.
Era a mesma garota que estava com ele antes.
Ela se aproximou e apoiou a mão no ombro dele.
— Você vai no Avenue, não vai? — A garota fez um biquinho pidão.
Dick concordou com a cabeça.
— Esse é o plano.
O sorriso contente dela me deu calafrios.
— Então te vejo lá. Eu e as garotas já estamos indo.
— Sim, a gente se encontra lá.
Ela deu um leve aperto no ombro de Dick e se afastou, indo para o
grupo de pessoas que deixava a garagem.
— Tem certeza que quer que eu vá nessa festa? Não quero te
atrapalhar.
Dick revirou os olhos.
— Você nunca atrapalha, loirinha. — Ele se levantou e puxou minha
mão. — Vem, vamos também. A entrada antes das onze tem desconto.
— Que pão duro — brinquei.
— Não finja que não é igual — argumentou.
Nós dois rimos.
Eu definitivamente era igual.
Capítulo 6

Eu me arrependi no segundo em que entrei naquela boate.


O clima lá dentro era abafado, e o lugar estava escuro demais para eu
enxergar dois metros à minha frente. Não que tivesse muita coisa para ver, já
que lá estava lotado de pessoas.
Deixei meu casaco e minha bolsa na chapelaria e segui Dick mais
adentro do salão.
A maior parte era uma área aberta para a pista de dança, mas encostado
nas paredes haviam bancos acolchoados com mesas baixas para as pessoas
sentarem e beberem com mais tranquilidade. Eu sabia que logo estaria em
um daqueles, pois não aguentaria ficar tanto tempo assim de pé.
— Quer beber alguma coisa? — gritou ao meu ouvido.
Balancei a cabeça, negando. Eu duvidava que tivesse qualquer coisa que
não água quando se tratava de bebidas sem álcool.
— Eu vou pegar uma bebida, você espera aqui?
— Tudo bem — gritei de volta.
Dick sumiu rápido na multidão, me deixando sozinha na beirada da pista
de dança.
Uma música eletrônica quase rompia meus ouvidos, mas pelo visto eu
era a única incomodada com isso, pois as pessoas dançavam e gritavam,
derrubando bebida umas nas outras. Precisei desviar de um homem que
vinha cambaleando com um copo de plástico, pois eu tinha certeza que ele
daria com a bebida em cheio no meu vestido se eu permanecesse parada lá.
Os minutos foram passando e Dick não voltava. Comecei a pensar em ir
atrás dele quando o garoto finalmente apareceu.
— Desculpa a demora, encontrei alguns conhecidos.
Assenti.
— Vamos na pista de dança, vi Russell e Alex mais para o meio.
Dick pegou minha mão e me guiou entre as pessoas, mas não consegui
evitar esbarrar na maioria delas. Ninguém parecia dar a mínima, dançando
como se nada tivesse acontecido.
Chegamos ao grupo de amigos dele, que formavam uma rodinha bem no
centro da pista de dança.
— Pensei que não ia aparecer — Russell gritou, dando um empurrão no
ombro de Dick, que cambaleou para frente com o impacto.
Ele deu risada e fez o mesmo, levando Russell a derrubar boa parte de
sua bebida no chão.
Todos começaram a pular quando uma nova música começou a tocar,
inclusive Dick. Tentei acompanhar o ritmo, mas meus pulmões não
aguentavam como os de uma pessoa saudável.
Uma garota ao meu lado começou a me empurrar com o ombro, me
obrigando a dar pequenos passos para trás. Quando vi, eu estava quase para
fora da roda. Tentei não me importar com isso e continuar a curtir a festa,
dançando na medida do possível.
A música era boa, animada, e me fazia realmente querer curtir até altas
horas, mas meu coração já estava dando sinais de alerta. Eu precisava sentar,
ou desmaiaria no meio da multidão.
Pensei em avisar Dick que eu iria para os bancos, mas ele já estava longe
de mim, bebendo um longo gole do seu copo enquanto dançava e era
interceptado pela garota do ensaio.
Apenas dei meia volta e me esgueirei pelas pessoas até achar um banco
que estivesse vazio. Tive sorte de encontrá-lo.
Me sentei no estofado fofinho e escorei as costas, apoiando a cabeça no
suporte de madeira. Respirei fundo algumas vezes, até que a sensação de
falta de ar passasse.
Quando finalmente voltei a ficar bem, peguei meu celular e vi que tinha
algumas mensagens de Abigail na caixa de entrada. As duas primeiras
pediam como estava a festa e se eu já tinha beijado na boca, as outras eram
apenas surtos aleatórios que eu prontamente ignorei.
Respondi à minha amiga dizendo que nada tinha acontecido, mas que eu
estava curtindo a festa. Omiti a parte de quase desmaiar, ela não precisava
ficar preocupada comigo a essa hora da noite.
— Pensei que você tinha dito que não fugiria mais de mim.
Levantei a cabeça assustada.
O corpo largo de Dick tomou conta do meu campo de visão. Existia um
certo charme em vê-lo de baixo, ele parecia mais imponente.
— Eu precisava sentar um pouco — admiti.
Dick se jogou ao meu lado no banco.
— Poderia ter me avisado.
Encolhi os ombros.
— Não quis preocupá-lo com isso.
Ele pareceu incrédulo com minha resposta.
— Eu a trouxe aqui, sou responsável por você pelo resto da noite.
— Não te pedi para fazer isso — aleguei.
Se fosse para incomodar, eu nem teria vindo. Eu sabia como conseguia
ser um peso na vida das pessoas, e não queria fazer isso com Dick, pelo
menos não naquela noite.
— Mas eu quero. — Seu corpo virou na minha direção, nos deixando
cara a cara.
— Se estiver fazendo isso por causa da minha doença, pode deixar que
eu sei me cuidar. Já convivo com ela há meses, conheço meus limites.
— Você sabe que essa não é a questão.
Arqueei as sobrancelhas.
— Eu sei?
Dick levou uma das mãos ao meu rosto, segurando minha mandíbula
com delicadeza.
— Daisy Shields, quando vai entender que estou louco para te beijar?
Ele não me deu tempo de responder.
Os lábios de Dick tocaram os meus tão rápido que não pude nem puxar o
ar antes que sua boca tomasse a minha. Ele segurou meu rosto com as duas
mãos, me puxando para mais perto, como se de alguma forma eu pudesse
fugir. Eu não iria para lugar algum.
Minhas mãos agarraram sua camisa de flanela, e eu apertei o tecido com
força entre os dedos.
Os dedos calejados de Dick arranhavam minhas bochechas em uma
espécie de carinho excitante. Sua pele era quente, convidativa, e os lábios
pressionados contra os meus tinham gosto de álcool. Eu queria mergulhar
naquele beijo e não emergir nunca mais.
Deixei que a língua dele tomasse o ritmo, me obrigando a inclinar o
corpo para frente e para trás conforme ele desejava, às vezes vindo com
tudo, e então liberando a pressão para que eu pudesse respirar.
Uma de suas mãos percorreu um caminho por meu corpo até chegar na
minha coxa, onde ela se firmou e, me pegando desprevenida, me
impulsionou para cima, fazendo com que eu sentasse no colo dele. Aquilo
me deu margem para envolver meus braços no pescoço de Dick, que pareceu
gostar do atrito que minha pele causou na sua nuca, pois senti o arrepio que
passou por seu corpo naquela região.
Eu já tinha me imaginado beijando Dick algumas vezes, mas nada
superava a vida real. Aquele beijo estaria no topo da minha lista, embora ela
não fosse muito longa. Não sabia que precisava tanto beijar Dick Norris até
que isso acontecesse.
Infelizmente, não consegui evitar que meu corpo enrijecesse quando
senti sua mão subir por minha coxa, levantando a barra do vestido alguns
centímetros.
— Exagerei?
Dick perguntou, quase sem fôlego, ao desgrudar a boca da minha.
— Não — murmurei, também com a voz por um fio. — Está perfeito.
Tudo isso… meu Deus.
— Você é perfeita — sussurrou contra meus lábios, voltando a tomá-los
para si.
Eu poderia ficar a noite inteira lá, beijando Dick como se nada mais
existisse, mas meus pulmões clamavam por socorro.
— Dick — falei ao me afastar. — Eu preciso respirar. — Soltei uma
fraca risada.
O garoto tocou a testa na minha, voltando a segurar meu rosto entre as
mãos.
— Desculpe — murmurou. — Desculpe.
Se há dois meses me dissessem que eu estaria morando em outra cidade,
sentada no colo de um garoto em uma festa, eu provavelmente iria rir. Não
parecia real. A Daisy de Liverpool se tornou uma pessoa completamente
diferente, e eu adorava isso. Nunca me senti tão livre em toda a minha
existência, tão viva. Eu quase conseguia fingir que era uma pessoa normal,
com vários anos pela frente para cometer ainda mais loucuras.
Quase.
— É melhor eu ir para casa.
Ele moveu a cabeça para trás, me encarando com uma expressão
estranha, desapontada.
— O que? Por quê? — perguntou confuso.
— Estou cansada — confessei.
— Se fiz algo que possa ter…
Não deixei que ele concluísse aquela frase.
— Você não fez nada de errado — garanti. — Foi perfeito, eu juro. O
melhor beijo que uma pessoa poderia dar.
Ele adotou um sorrisinho convencido no rosto.
— Mas eu estou realmente cansada. Não acho que meu coração aguente
muito mais, para ser bem sincera.
Nós dois rimos.
— Eu te levo para casa.
Neguei.
— Não precisa ir embora por minha causa.
— Eu quero te levar para casa, Daisy — afirmou, convicto da sua
decisão.
— Tudo bem — acabei aceitando.
Me levantei do colo de Dick e deixei que me acompanhasse até a
chapelaria para pegar minhas coisas. Esperei enquanto ele pagava sua conta
no caixa.
— Vamos? — perguntou vindo até mim.
Assenti, e então saímos para a noite fria de Liverpool.
O carro de Dick não estava estacionado muito longe, mas minhas pernas
agradeceram quando finalmente nos escondemos do vento gelado.
O caminho até meu prédio foi silencioso, mas nada desconfortável.
Assim que o carro parou em frente a fachada tão conhecida por mim, me
virei para Dick.
— Obrigada por essa noite, foi incrível.
Dick sorriu, levando uma mão aos meus cabelos e a apoiando atrás da
minha cabeça. Ele se inclinou e deixou um singelo beijo na minha testa.
— Dorme bem, loirinha.
Controlei o impulso de beijá-lo mais uma vez e saí rápido do carro, indo
até o portão do meu prédio.
Abri a bolsa para pegar minhas chaves, mas fui surpreendida ao não
encontrá-las lá. Coloquei as mãos nos bolsos do casaco, mas nada. Elas não
estavam comigo.
Tentei recriar meus passos na mente para descobrir o que poderia ter
acontecido com elas, mas a verdade era que eu não fazia ideia.
Simplesmente evaporaram.
— Algum problema?
Me virei para Dick, que tinha aberto a janela do carro e se inclinava para
fora dela.
— Não encontro minhas chaves.
— Não consegue pedir para o porteiro abrir?
Neguei.
— Meu prédio não tem porteiro.
Precisava adicionar na minha lista “ficar presa para fora de casa”. Não
era um sonho, mas eu definitivamente o realizei.
— Vou tentar ligar para a minha vizinha, ela tem minha chave reserva.
Dick negou.
— Vai incomodar ela a essa hora? Entra no carro, você pode passar a
noite no meu apartamento.
O olhei apreensiva.
— Entra logo, Daisy.
Suspirei e voltei correndo para dentro do carro. Minhas mãos e pernas
estavam congelando, eu não aguentaria mais muito tempo lá fora mesmo.
— Tem certeza que posso ficar lá?
— Claro — disse em tom óbvio. — Eu te trago de volta amanhã cedo
para você não perder o horário do trabalho.
Dick já tinha ligado o carro e estava agora dirigindo para longe da minha
casa.
— Na verdade, estou de folga amanhã de manhã. Tenho uma consulta
médica marcada.
Percebi seus dedos apertarem com mais força o volante, mas a voz dele
saiu controlada quando me respondeu.
— Posso te levar se quiser.
— Não precisa.
Ele me olhou por poucos segundos, a expressão demonstrando irritação.
— Daisy Shields, pare de negar tudo o que te ofereço. Vou levá-la ao
médico amanhã, já está decidido.
— Tudo bem — me rendi.
Descobri que Dick e eu morávamos no mesmo bairro, mas em lados
opostos.
Ele entrou na garagem do prédio e estacionou em uma vaga próxima
às escadas. Saiu do carro e deu a volta para abrir a porta para mim.
— Obrigada.
O segui escada acima, até que paramos na frente de uma das portas.
Dick tirou a chave do bolso e a destrancou, deixando que eu entrasse no
apartamento primeiro.
— Você mora sozinho?
Ele ligou as luzes, revelando a sala de estar que ficava junto da
cozinha.
— Sim, já fazem alguns anos. Vou pegar algo para você vestir —
disse sumindo em uma porta que imaginei ser o seu quarto.
Analisei o espaço enquanto isso.
Era um apartamento pequeno, mas perfeito para uma pessoa morar.
Na verdade, o meu era um pouco menor até.
Dick voltou com uma pequena pilha de roupas e as entregou para
mim.
— Você pode se trocar no banheiro, é a primeira porta da esquerda.
Assenti e fui até lá, trancando a porta assim que entrei.
Vestia uma camiseta manga longa branca e uma calça de moletom
escura. Ambas ficaram grandes no meu corpo, mas eram bem confortáveis
para dormir.
Quando voltei para a sala, vi Dick estendendo uma coberta no sofá.
— Eu posso arrumar.
Ele se virou na minha direção, demorando alguns segundos para
responder. Seu olhar estava fixo em mim.
— Ah, não. Isso é para mim. Você pode dormir no meu quarto.
Me aproximei dele.
— Imagina. O sofá já está ótimo. É sério.
Não sei se conseguiria dormir sentindo o cheiro de Dick no
travesseiro, mas eu não contaria isso a ele.
— Eu não me importo de dormir no sofá — ele argumentou, mas eu
balancei a cabeça.
— Não vou obrigá-lo a dormir no sofá em sua própria casa. Eu
durmo aqui, não tem problema.
Dick pareceu se render, pois largou o travesseiro que segurava e deu
alguns passos para longe.
— Certo. Se precisar de qualquer coisa, é só bater na porta.
— Tudo bem. — Sorri agradecida. Ele me salvou naquela noite.
O garoto sorriu mais uma vez e deu meia volta, indo para seu quarto.
Observei ele durante o trajeto e não consegui evitar pensar em nosso
beijo. Eu ainda sentia a sensação de seus lábios pressionados nos meus, dos
seus cabelos enrolados nos meus dedos. E por Deus, eu queria repetir aquilo,
muito.
— Dick? — o chamei.
Ele se virou, o cabelo desgrenhado acompanhando o movimento.
— Sim?
Caminhei a passos rápidos até ele e me joguei em seus braços,
tomando seus lábios para mim.
Dick retribuiu o beijo na mesma intensidade, levantando meu corpo
alguns centímetros, fazendo com que meus pés não tocassem mais o chão.
Ele me prensou contra a parede mais próxima, levando os lábios ao meu
pescoço, onde beijou com gana.
Meus dedos passearam por seu cabelo, e apertava as mechas com
tanta força que tinha certeza que o estava machucando, mas Dick não
protestou. Ele voltou com a boca até a minha, roubando todo meu fôlego
para si.
— Dick — murmurei entre o beijo.
Ele parou o que estava fazendo e me encarou, os olhos tomados pelo
menos desejo que também ardia nos meus.
Inclinei minha cabeça para a porta do seu quarto.
Dick olhou para o local por alguns segundos e então para mim.
— Você tem certeza?
Assenti.
— Absoluta.
Eu nunca tive tanta certeza em toda a minha vida.
Voltamos a nos beijar, e Dick nos guiou em passos atrapalhados até o
seu quarto, fechando a porta assim que passamos por ela.
Talvez eu não conseguisse completar o último item da minha lista,
que adicionei sem Dick saber, mas naquele momento aquilo não importava.
Eu só precisava dele.
Nada mais.
Capítulo 7

Dick me levou até meu apartamento para que eu pudesse trocar de roupa.
Minha vizinha foi muito atenciosa em abrir o portão e me dar a chave
reserva que eu deixava com ela para situações como aquela.
Troquei rápido de roupa e logo estava de volta dentro do carro.
— Onde é?
— Naquele hospital do centro.
— Ah — foi o único som que saiu da sua boca.
Ele dirigiu o resto do caminho em silêncio, com uma expressão séria no
rosto.
Não entendi a mudança repentina de humor, mas decidi não questioná-lo.
A última noite tinha sido… intensa, mas eu temia que as coisas entre nós
fossem ficar estranhar a partir daquele momento. Talvez tenha sido um erro
e eu percebi tarde demais.
O carro parou na frente do hospital, exatamente como pedi.
Dick continuou a olhar para frente.
— Obrigada pela carona — falei já tirando meu cinto.
Ele deu um sorriso de lado e finalmente olhou para mim.
— Sem problemas — murmurou, a voz mais fraca do que o normal.
— Está tudo bem, certo? Digo… entre nós.
Não consegui evitar soar insegura, principalmente vendo ele agir daquela
forma.
Dick inclinou a cabeça, seu olhar sondando meu rosto.
— Por que diz isso?
Olhei para minhas mãos, não conseguindo sustentar seu olhar.
— Não sei, você está estranho. Achei que pudesse ter se arrependido de
ontem.
Senti suas mãos envolverem meu rosto, exatamente como na noite
anterior. Fui obrigada a encará-lo.
— Nunca mais repita isso — impôs. — Eu não me arrependo de um
segundo sequer que passei com você desde que te conheci. Se estou agindo
estranho, pode ter certeza que a culpa não é sua. É só que… não gosto de
hospitais.
Pisquei algumas vezes, desnorteada.
— Daisy, é melhor você ir. Vai perder sua consulta.
Assenti.
— Sim, você está certo.
Me virei para abrir a porta, mas Dick segurou meu braço.
— O que foi?
Ele se inclinou, me dando um selinho demorado.
— A gente conversa mais tarde, tudo bem?
Novamente só consegui movimentar a cabeça em concordância.
Saí do carro de Dick e me despedi com um aceno, observando
enquanto ele arrancava para longe.
Dick não gostava de hospitais, e eu já tinha uma boa ideia de o
porquê, mas mesmo assim ele me trouxe até um. Talvez ele realmente não
fosse tão indiferente a mim quanto eu imaginava, ainda mais depois do que
disse sobre não se arrepender de nada do que fizemos. Eu também não me
arrependia.
Respirei fundo, tentando colocar os pensamentos em ordem, e entrei
no hospital.
Minha consulta foi rápida, apenas um check-up para ver como estava
o meu coração. O resultado era sempre o mesmo, eu precisava de um
transplante urgente. Ouvir isso nem me desanimava mais, já tinha aprendido
a conviver com o fato de que talvez eu não fosse durar muito mais tempo.
Decidi voltar para casa a pé. Eu não morava longe e Dick realmente
não precisava ter me dado carona, mas aceitei de bom grado.
No caminho, vi que as lojas já estavam prontas para o Natal.
Guirlandas e sinos dourados enfeitavam fachadas, com as clássicas
poinsétias vermelhas completando o toque natalino. Também tinham papais
noéis de tecido nas mais diversas poses, e bonecos de neve que sorriam
contentes por finalmente chegar a época do ano em que as pessoas podiam
fazê-los de verdade.
Uma loja de roupas me chamou a atenção. Nela estavam expostos
suéteres natalinos, misturando o verde e o vermelho com estampas de flocos
de neve e renas. Era o lugar perfeito para eu riscar mais um item da lista,
comprar suéteres natalinos cafonas.
Entrei na loja, sendo delatada por um sino preso à porta. Uma mulher
de cabelos já grisalhos veio na minha direção com um sorriso grande no
rosto.
— Bom dia, querida.
— Bom dia — a cumprimentei de volta. — Vi aqueles suéteres nos
manequins e queria saber se você teria outros modelos.
— Claro, vou te mostrar o que temos.
A mulher pegou uma pilha de suéteres dobrados em um dos armários
expositivos e estendeu um por um em cima de uma mesa de vidro bem ao
centro da loja.
— Procura alguma estampa em especial?
— Na verdade, queria dois que combinassem. Vou dar um de
presente.
Ela me lançou um olhar confidente.
— Para o namorado?
— Ah, não, não — tratei de negar —, é só um amigo.
— Hum, sei. — Ela não parecia muito convencida da minha resposta.
— Se me disser a numeração que ele veste, podemos achar algo que
combine com algum desses aqui.
Eu não tinha certeza do tamanho, mas poderia dar um bom palpite
pela memória que eu tinha de seu corpo.
A atendente foi me mostrando várias opções, até que por fim acabei
escolhendo dois suéteres verde escuro com detalhes em vermelho e uma
faixa de renas bordadas na altura do peito. Era cafona, e eu estava louca para
ver Dick vestindo.
Paguei pelas peças e agradeci a mulher, saindo da loja com minha
sacola pendurada no braço.
Durante meu trajeto de volta para casa, senti meu celular vibrar no
bolso do casaco. Quando o peguei para ver quem estava me ligando,
descobri que era minha mãe. Atendi na mesma hora, pois sabia que ela
surtaria se eu não respondesse.
— Oi, mãe.
— Querida, onde você está? Já foi na consulta com o cardiologista?
Vi na agenda que era hoje de manhã.
Era claro que essa seria a primeira pergunta dela.
— Acabei de sair de lá — garanti. — Estou voltando para casa,
minha chefe me liberou o resto da manhã.
— Ah, que bom. Aproveite para descansar bastante. Mas e então, o
que ele disse?
Suspirei.
— O de sempre. As proteínas estão impedindo o meu coração de
bater direito e logo logo ele vai parar de funcionar.
Ouvi um fungado do outro lado da linha.
— Vou tentar falar com seu médico de Londres de novo, ver se ele
consegue fazer alguma coisa para adiantar seu nome na lista.
Aquilo era muito improvável de acontecer, mas eu não tiraria as
esperanças da minha mãe.
— Certo, mãe. Tem mais alguma coisa que queira falar comigo?
— Já comprou sua passagem de ônibus?
— Sim, chego dia vinte e três.
Eu tinha prometido que voltaria para casa no Natal. Era a minha
época do ano preferida, e nada me faria perder a oportunidade de passá-lo
com minha família. Aquele seria meu último Natal, ele tinha que ser
especial.
— Ótimo. Se precisar de qualquer coisa me ligue, está bem? Você
sabe que eu só quero o seu bem.
— Eu sei, mãe. Você é a melhor.
— Um beijo, querida.
— Beijos — falei antes de desligar.
Eu amava minha mãe, mas desde que fui diagnosticada com
Amiloidose Cardíaca, ela passou a ter essa obsessão em me ver curada,
mesmo sabendo que as chances eram mínimas. Era cansativo ter que lidar
com ela.
Assim que voltei para casa, aproveitei para dar uma geral no
apartamento, que estava precisando de uma boa faxina. Descansei o restante
do tempo até a hora do almoço, quando preparei alguma coisa rapidinha e
logo depois fui para o trabalho.
O dia foi tranquilo, com um pouco mais de movimento por causa do
Natal se aproximando. As pessoas tinham a mania de comprar presentes de
última hora, o que acabava exigindo demais dos lojistas, que precisavam
suprir as necessidades dos clientes em encontrar o presente perfeito quando
praticamente tudo que era bom já estava esgotado. Para a minha sorte,
trabalhar em uma livraria não demandava tanto quanto em uma loja de
brinquedos, por exemplo. Sempre teríamos livros sobrando, já que eram
poucas as pessoas que gostavam de ganhar algo assim de presente.
No final do dia, decidi dar uma passada na Lady Madonna para
tomar um chocolate quente, que era delicioso demais para eu nunca mais
provar de novo.
Martha me recebeu com um grande sorriso quando me viu entrar na
cafeteria.
— Daisy, que bom vê-la mais uma vez. Dick não está com você?
Neguei.
— Vim sozinha dessa vez. Sonhei com seu chocolate quente e decidi
que precisava vir tomá-lo mais uma vez.
A mulher riu, enganchando o braço no meu e me guiando até a mesa
do outro dia.
— É a nossa especialidade. Dick vinha todos os dias com a mãe
apenas para tomá-lo, e ainda comia uma fornada de biscoitos de manteiga.
Eu conseguia visualizar perfeitamente o pequeno Dick bebendo uma
grande xícara de chocolate quente, com farelos de biscoito por toda a roupa.
— Ele me contou que vinha aqui com a mãe. Me parece que era o
lugar preferido deles.
— Com certeza. Lisandra era minha sócia.
Arqueei as sobrancelhas, surpresa com a revelação.
— Eu não sabia — admiti. Dick tinha omitido essa parte quando
viemos aqui.
Martha apontou para as fotos penduradas na parede.
— Ela tinha uma câmera fotográfica velha e adorava tirar fotos das
pessoas. Praticamente todas são de sua autoria.
Analisei as fotografias.
A maioria parecia ter sido tirada na cafeteria, e até consegui
reconhecer a Martha quando mais jovem. Tinha uma com dois homens
apertando as mãos, e outra com uma mulher de cabelos escuros e lisos, que
sorria apaixonada para a câmera.
— Essa é ela — Martha disse, apontando para a última foto que
analisei.
A mãe de Dick era linda. Ele não era muito parecido com ela, talvez
o sorriso e o brilho nos olhos. Demonstrava ser uma mulher cheia de vida, o
que era irônico de se pensar considerando como foi o seu fim.
— Dick era muito apegado à mãe. Ela morreu quando ele tinha
apenas doze anos.
Levei uma mão à boca.
Dick perdeu a mãe muito cedo, era de se entender por que ele não
gostava de falar do assunto. Talvez nunca tivesse realmente superado a
morte dela.
— Deve ter sido um baque e tanto.
Martha assentiu.
— Dick nunca mais foi o mesmo. Se afastou do pai e quase repetiu
de ano no colégio por faltas. Nós ficamos muito preocupados na época, mas
depois ele pareceu mostrar interesse em tocar guitarra, formou até uma
banda, e isso ajudou um pouco, mas ainda é perceptível que a morte da
Lisandra afeta muito ele.
— Eu imagino. É difícil se recuperar de algo tão traumático.
Eu bem sabia como era lidar com uma doença, mesmo que estivesse
mais na pele da pessoa que vai morrer do que da que vai ficar para trás.
— Eu me preocupo tanto com esse garoto. — Martha suspirou. —
Ele é como um filho para mim, e não gosto de vê-lo afastado da família, das
pessoas que o amam. Fiquei surpresa quando apareceu aqui com você, fazia
muito tempo que eu não o via sorrir genuinamente.
Martha provavelmente estava exagerando, pois já vi várias vezes
Dick sorrindo, e a maioria delas não me envolvia. Ela e Thomas por algum
motivo enfiaram na cabeça que eu era a solução na vida de Dick, quando na
verdade era o contrário. Era ele quem estava me ajudando.
— Vou parar de tagarelar antes que você decida fugir — Martha
brincou, voltando ao seu tom alegre habitual. — Já volto com seu chocolate
quente.
— Certo, obrigada.
Aproveitei para dar uma olhada em meu celular enquanto esperava
por meu pedido. Tinha uma mensagem não lida de Dick.
"Loirinha, vou ter que ficar até mais tarde no trabalho. Te ligo à
noite para planejarmos o próximo item que vamos cumprir da lista”.
Respondi dizendo que não tinha problema e que à noite
conversávamos.
A minha próxima hora consistiu em me deliciar com um saboroso
chocolate quente e conversar com Martha sobre Londres, que ela disse já ter
visitado algumas vezes.
Já estava escuro do lado de fora quando voltei para casa.
Tomei um longo e quentinho banho, perdendo mais tempo do que o
necessário apenas porque eu podia. Vesti o pijama mais confortável que
encontrei e me joguei no sofá da sala, ligando a televisão e procurando por
algo interessante para assistir.
Eu já estava no segundo episódio de uma série quando meu celular
tocou.
Peguei o aparelho de cima da mesa de centro e o levei ao ouvido sem
olhar na tela o nome da pessoa que estava ligando.
— Alô?
— Vai dizer que não salvou meu número? Estou desapontado.
— Ah. Oi, Dick.
Era claro que seria Dick que estaria me ligando, ele tinha avisado que
faria isso.
— Como foi a consulta?
Revirei os olhos, mesmo sabendo que ele não tinha como ver.
— É sério que me ligou para perguntar disso?
— Na verdade não, eu só queria ouvir sua voz mesmo — disse sem
escrúpulos.
— Engraçadinho. Minha expectativa de vida não diminuiu, se é isso
que quer saber.
— Ótimo, pois ainda temos uma lista para completar. O que me leva
ao tópico principal dessa ligação. Vou te levar no Casbah Club amanhã.
Topa?
— Claro, a que horas?
— Pensei em você ir no meu trabalho depois que sair do seu. Não vai
demorar muito, e depois disso vamos direto para o bar.
— Por mim pode ser.
— Então está combinado.
Eu estava louca para conhecer o Casbah Club. Foi o primeiro lugar
que os Beatles tocaram, mas a banda tinha outro nome na época. Era um dos
itens da lista de coisas para fazer antes de morrer. Embora ele não
funcionasse mais como um bar, ainda tinha seu valor e se tornou uma
espécie de museu, expondo um pouco da história dos integrantes da banda
quando jovens.
— Eu fui no Lady Madonna hoje — acabei comentando.
— Sério?
— Sim, conversei um pouco com a Martha. Ela me contou que sua
mãe era sócia da cafeteria.
A linha ficou silenciosa por alguns segundos. Cheguei até a pensar
que a ligação pudesse ter caído, mas Dick voltou a me responder.
— Sim, ela adorava aquele lugar.
— Isso me fez perceber que eu sei muito pouco sobre você.
Dick soltou o indício de uma risada no outro lado da linha.
— E o que quer saber sobre mim, Daisy Shields?
— Ah, não sei. Suas bandas preferidas? Quando começou a gostar de
Beatles? Se já teve algum animal de estimação com um nome bizarro. Esse
tipo de informação que é super relevante de saber sobre outra pessoa.
— Bem, minhas bandas preferidas são The Beatles, obviamente, Pink
Floyd, Blondie e The Who. Comecei a ouvir Beatles por causa da minha
mãe, e não, nunca tive um animal de estimação com um nome bizarro, a não
ser que você considere chamar um hamster de Lennon como algo bizarro.
— Blondie? — Dei uma risada. — Pensei que você era mais da vibe
Rolling Stones e Guns.
— Também gosto muito deles, mas a Deborah Harry foi minha
primeira crush. É difícil esquecer o videoclipe de “Heart Of Glass”.
— É verdade que ela era uma gata naquela época.
— Mas e você?
Era difícil escolher minhas bandas favoritas, pois eu gostava de
muitas.
— Acho que as que eu mais gosto são Green Day, The Kinks e The
Runaways, além de Beatles, é claro. Eu me apaixonei por Beatles quando
tinha quatorze anos, vi uma apresentação do coral do colégio em que
cantaram “Let It Be” e foi amor à primeira vista. Quanto ao animal de
estimação, eu na verdade nunca tive um, então não posso responder essa
pergunta.
— Deixa eu adivinhar, você passou a adolescência escutando
“Cherry Bomb”?
Soltei uma exclamação surpresa.
— Como você sabe?
Dick riu.
— Você tem cara de ser aquelas adolescentes que ouviam artistas
revolucionárias feministas, como Bikini Kill e Joan Jett.
— Você me pegou — admiti.
Toda adolescente que curtia rock teve sua fase punk rebelde, a minha
foi aos quinze anos.
Nós conversamos por mais algum tempo, falando sobre nossas
músicas preferidas, sobre como odiávamos o frio, mas queríamos muito que
nevasse naquele inverno. Dick contou que tinha uma irmã mais nova, mas
que acabava não a vendo muito. Eu contei que era filha única, mas cresci
com Abigail, que considerava praticamente como uma irmã.
Eu só percebi que já era tarde da noite quando senti meus olhos
começarem a pesar.
Dei meu primeiro bocejo quando Dick estava contando sobre uma
viagem que fez com os amigos da banda.
— Está com sono, loirinha?
— Um pouco — admiti.
— Vou deixá-la dormir. Não se esqueça do nosso encontro amanhã.
— Por que você insiste em chamar nossos passeios de encontros?
Desde a primeira vez, ele sempre dizia que íamos a um encontro.
— O que são para você se não encontros?
— Dois amigos curtindo a noite?
Da última vez, falei que éramos estranhos. Agora, já não poderia
mais nos considerar assim. Dick era muito mais do que um mero estranho.
— Amigos não se beijam, e nem tr…
— Tá bom! — o cortei. — Já entendi. É um encontro, nós vamos a
um encontro.
— Te vejo lá, loirinha.
Me despedi e desliguei a chamada antes que ele pudesse falar mais
alguma bobagem.
Dick Norris era a minha perdição.
Capítulo 8

Entrei na lanchonete já pouco movimentada.


Não vi sinal de Dick, então resolvi apenas sentar em um dos lugares
vazios e esperar um pouco.
Um garoto de avental veio à minha mesa.
— Boa noite, vai querer pedir alguma coisa?
— Na verdade, vim encontrar o Dick.
Ele me lançou um olhar de reconhecimento.
— Ah, você deve ser a Daisy. Vou chamar ele para você.
Sorri em agradecimento e dei uma olhada no cardápio em cima da mesa
enquanto esperava.
Dick apareceu limpando as mãos no avental preto amarrado na cintura.
Ele ficava engraçado vestindo aquilo, pois não combinava em nada com seu
estilo.
— Loirinha, quase achei que você não viria — disse sentando na cadeira
à minha frente.
O encarei descrente.
— Vai mesmo insistir nessa história de que eu fugi de você?
— Vou — respondeu convencido.
Balancei a cabeça, negando.
— Pensei em completarmos mais um item da sua lista hoje — comentou,
erguendo o cardápio da lanchonete. — Provar uma comida típica de
Liverpool.
Aquela era uma boa ideia.
— E o que você sugere?
— Wet Nelly com bastante creme, como a tradição manda.
— O que é isso?
— É um pudim feito com pão amanhecido, creme e frutas secas.
— Parece interessante.
Eu nunca tinha ouvido falar naquela sobremesa, mas pelos ingredientes
parecia ser simples e gostosa.
— Vou te trazer um pedaço.
Dick voltou para a cozinha, de onde saiu poucos minutos depois com um
prato em mãos. Ele o colocou na minha frente e me entregou um garfo.
— Bon appetit.
A cara era boa, agora estava na hora de descobrir se o sabor também.
Peguei um pedaço com o garfo e o levei até a boca, mastigando devagar
para saborear melhor o pudim.
Dick me encarava com expectativa.
— É gostoso — eu disse por fim, e levei mais uma garfada à boca.
— Sabia que você iria gostar.
Terminei minha sobremesa tão rápido que foi decepcionante ver o prato
vazio.
— Que horas termina seu turno?
Ele olhou no relógio.
— Em vinte minutos. Vou ajudar a levantar as cadeiras e depois
podemos ir. Você me espera aqui?
Assenti.
A lanchonete já estava vazia àquela hora, então não demorou muito para
que ele e o outro garçom arrumassem tudo para finalmente poderem ir
embora.
— Vamos? — Dick disse vindo na minha direção já sem o avental na
cintura.
Segui ele até seu carro e então tomamos rumo para o Casbah Club.
— Não vai estar fechado a essa hora?
— Sim — concordou —, mas eu conheço alguém que pode abrir para
nós.
— Que conveniente.
Dick estacionou em frente a um portão preto de ferro. Nós descemos do
carro e fomos até lá, onde uma pessoa vestida inteiramente de preto nos
esperava do lado de dentro.
— E aí, cara — Dick falou indo até a pessoa, que descobri ser o
segurança do lugar.
Ele abriu o portão e cumprimentou Dick com um abraço. Deviam ser
amigos.
— Depois dessa não te devo mais nada.
Dick sorriu.
— Estaremos quites — prometeu.
O homem olhou para mim.
— Ouvi dizer que você é fã de Beatles, espero que aproveite essa visita
exclusiva.
Apenas balancei a cabeça, assentindo.
Entramos pelo portão e caminhamos por uma curta estrada de pedras até
uma casa que poderia passar despercebida, mas dentro abrigava boa parte da
história do rock inglês.
— Como conhece o segurança desse lugar?
Ele deu de ombros.
— É um amigo de longa data. Ele estava me devendo uma por um dia
que o salvei de um encontro desastroso.
— E usou essa dívida para que conseguíssemos entrar?
— Exatamente.
A porta de entrada dava direto em uma pequena escadaria, que nos
levava para o corredor do bar. Ele era dividido em salas, cada uma com uma
temática diferente que se referia aos Beatles.
Dick me levou primeiro para uma sala com paredes de madeira preta.
— Sabe o que tem nesse lugar?
Concordei.
— John Lennon marcou o nome dele com uma faca na madeira.
— Isso mesmo, bem ali. — Apontou para uma pequena marca em uma
das paredes.
Me aproximei do local para analisar.
As luzes da sala eram fracas, mas dava para enxergar bem a marca na
parede. Não tinha nada demais, apenas estava escrito John, mas saber que foi
o próprio John Lennon adolescente que fez isso deixava tudo ainda mais
surreal. Aquela marca estava lá, preservada, há décadas.
Seguimos para a sala arco-íris, que tinha esse nome porque Paul havia
pintado listras coloridas no teto. Na sala da aranha foi onde encontramos o
palco em que eles se apresentavam. Ela era chamada assim, pois uma grande
teia foi pintada na parede logo atrás do palco, com uma aranha vermelha
bem no meio. Se alguém pesquisasse o nome do bar na internet, seriam fotos
desse lugar que encontraria. Vimos também a silhueta de John feita por
Cynthia Lennon e o dragão branco pintado na parede.
— É estranho pensar que foi aqui que tudo começou — comentei,
quando já estávamos saindo da casa.
— The Quarrymen.
Eu sorri.
— Esse nome era péssimo.
— Mas sem ele não existiriam os Beatles.
De fato, foi preciso passar por aquela fase para que hoje fosse a maior
banda de rock da história.
— Obrigada por me trazer aqui. Está realizando meu sonho de infância.
Dick segurou minha mão e me puxou para um abraço.
— É o mínimo que posso fazer por você, loirinha.
Me afastei um pouco.
— Diz isso por causa da minha doença?
Ele me olhou sem jeito. Podia estar escuro, mas eu conseguia distinguir o
sentimento de pena em seu olhar.
— Não quero sua pena, Dick. Não foi para isso que vim aqui.
— Eu sei disso — ele argumentou. — Não estou fazendo por pena. Só
sinto que preciso te proporcionar tudo isso enquanto ainda temos tempo. Te
garanto que não é caridade nem nada do tipo. As pessoas pagariam para ficar
em sua presença, Daisy. Você é incrível.
Arregalei os olhos, surpresa com as palavras tão sinceras de Dick.
Quando vim para Liverpool, não esperava que nada disso acontecesse. O
plano era conhecer alguns pontos turísticos e voltar antes do Natal, mas Dick
acabou atrapalhando tudo isso ao chegar sem aviso prévio. Talvez ele fosse
meu presente de Natal.
Envolvi o pescoço de Dick com meus braços e o puxei para um beijo.
Eu aproveitaria aquele presente o máximo que pudesse.
Capítulo 9

Aquele era o grande dia, pelo menos foi o que Dick disse na mensagem
que me mandou às oito da manhã.
Sim, era o dia em que eu finalmente tiraria uma foto com o Papai Noel
que estava em uma exposição no centro da cidade.
Combinei com Dick de nos encontrarmos lá na hora do almoço.
Teríamos uma hora, mas era mais do que suficiente para fazermos o que
pretendíamos.
O parque em que estava tendo a exposição de Natal estava lotado,
com crianças correndo e pais desesperados atrás delas. Um coral cantava
músicas natalinas, fazendo com que só faltasse nevar para completar o
clima. Eu ainda tinha fé que isso aconteceria enquanto eu estivesse em
Liverpool.
Encontrei Dick sentado no banco que usamos como ponto de
referência para nos achar, ele vestia o suéter cafona que comprei no outro
dia, com uma jaqueta jeans por cima.
Cheguei por trás dele e tapei seus olhos com as mãos.
Dick deu um sobressalto, mas não tentou afastar meus braços.
— Eu sei que é você, loirinha.
Suspirei frustrada.
— Como descobriu? — perguntei dando a volta no banco e me
sentando ao seu lado.
— Conheço essas suas mãozinhas como ninguém, já que elas
tocaram boa parte do meu corpo.
Ele pegou uma das minhas mãos, e eu tentei me soltar, sem sucesso.
— Você consegue passar um dia inteiro sem me lembrar do que
fizemos?
— Hum… — ele fingiu pensar. — Não, definitivamente não. Preciso
lembrá-la todos os dias da melhor transa da sua vida.
Arqueei as sobrancelhas.
— Quem disse que foi a melhor?
— Dúvido que tenha gemido o nome de outro cara como gemeu o
meu.
Meu rosto tomou todas as colorações de vermelho possíveis de uma
só vez.
— Você é insuportável, sabia?
Dick piscou para mim e sorriu.
— Não finja que não gosta quando sou descarado assim. Eu te
conheço mais do que imagina, Daisy Shields.
Revirei os olhos.
Era claro que eu gostava. Quem não iria gostar de alguém como Dick
Norris dando em cima de você?
— É melhor a gente ir na fila, porque o Papai Noel está disputado
hoje. — Apontei para o amontoado de crianças que esperavam ansiosas para
sentar no colo do Papai Noel e fazer um pedido, torcendo para que
ganhassem de Natal algum brinquedo novo, que no fim seria comprado pelos
pais.
Dick suspirou alto, claramente relutante em realizar esse item da
minha lista.
— A gente precisa mesmo fazer isso?
Assenti.
Peguei a lista do bolso e balancei na sua frente.
— Você prometeu cumprir todos os meus desejos.
Ele murmurou algo incompreensível e levantou em um rompante.
— Vamos lá então — disse a contra gosto.
Sorri contente e o puxei pelo braço até a pequena fila improvisada
em um dos cantos do estande.
A decoração estava muito linda, com renas infláveis e pinheiros
cobertos de neve falsa nas laterais, e um grande poltrona vermelha onde o
Papai Noel atendia as crianças. Duas pessoas vestidas de elfo organizavam a
sessão de fotos.
Enquanto esperávamos, Dick tirou a jaqueta e me obrigou a vesti-la
com o pretexto de que estava muito frio para eu ficar apenas de suéter. Não
reclamei, pois realmente sentia minhas mãos congelando. As abriguei nos
bolsos do casaco.
Levou cerca de vinte minutos para que fosse a nossa vez de ter uma
sessão particular com o dono do Pólo Norte.
O tal Papai Noel sorriu quando me aproximei.
— Os jovenzinhos vieram fazer um pedido de Natal?
Ele realmente tinha uma certa idade, e a barba branca e comprida era
real, diferente dos muitos papais noéis por aí que usavam uma sintética presa
ao rosto. Fiquei até com pena do pobre velhinho quando lembrei o que
pretendíamos fazer.
— Na verdade, queremos apenas tirar uma foto com o senhor —
expliquei.
— Pois bem, podem se aproximar.
Dick entregou o celular para um dos elfos e nós nos ajeitamos um de
cada lado da cadeira.
— Sorriam!
Nossos sorrisos foram largos, como duas crianças contentes e
secretamente prontas para aprontar.
O elfo devolveu o celular para Dick, que foi a deixa para nos
encararmos e finalmente colocarmos nosso plano em ação.
— Corre — ele disse antes de tirar a touca da cabeça do Papai Noel e
disparar para longe.
Eu corri atrás dele, que no meio do caminho se virou para segurar
minha mão.
Nós corremos poucos metros, mas meus pulmões já protestavam por
sossego.
— Dick — o chamei —, para.
O garoto não ouviu de início, me obrigando a repetir a frase.
Minhas pernas já não aguentavam mais e eu sentia que iria desmaiar
se não parasse de fazer tanto esforço.
Ele desacelerou o passo e se virou para mim.
Praticamente caí em seus braços.
— Me desculpe, eu esqueci que você não conseguia correr tanto.
Ergui a mão tentando sinalizar que estava tudo bem.
A culpa não era dele, mas sim do meu maldito coração com os dias
contados.
Dick me ajudou a chegar até o banco mais próximo, onde tirei seu
casaco e me sentei, esticando a cabeça para trás para puxar o máximo de ar
que conseguia para dentro dos pulmões e normalizar minha respiração.
Mantive meus olhos fechados durante todo o processo.
— Sinto muito, mesmo — ele voltou a se desculpar.
Quando eu já estava melhor, apenas com um leve formigamento nos
braços e uma dorzinha nas costas, abri os olhos e o encarei.
— Está tudo bem, sério. Eu só precisava descansar um pouco. Tenho
estado mais cansada nesses últimos dias, não é culpa sua.
Ele balançou a cabeça.
— Vou tomar mais cuidado. Não quero tirar dois meses da sua
expectativa de vida.
Consegui soltar uma fraca risada.
Eu adorava o fato de sermos tão próximos a ponto de ele achar
confortável fazer piadas com a minha possível morte precoce. Era o tipo de
coisa que eu queria ouvir, e não como era triste que eu morreria jovem. As
pessoas achavam que eu merecia a pena delas, sempre se lamentando pela
minha doença e me desejando forças para encará-la, quando o que eu mais
queria era uma descontração, um motivo para rir. Dick sabia disso, e estava
sendo meu melhor remédio.
— Talvez eu tenha perdido uma semana — brinquei — Você vai
conseguir viver sabendo que adiantou a minha morte?
— Será para sempre um fardo na minha vida — seu tom de voz foi
um pouco sério demais para quem a princípio deveria estar entrando na
brincadeira.
— Que tal você me pagar um chocolate quente em troca? — sugeri,
tentando desviar do assunto.
Dava para notar que Dick não lidava bem com a morte,
principalmente por ter perdido a mãe tão novo. Ele brincava comigo, mas
não a ponto de rir de todas as piadas que eu fazia. Talvez eu estivesse
forçando demais a barra e o deixando desconfortável.
— Isso eu posso fazer.
Devolvi sua jaqueta e ele se levantou, a vestindo antes de ir até uma
tenda do outro lado do parque, que estava vendendo café e chocolate quente.
Não tinha muita fila, mas Dick levaria alguns minutos para voltar.
Olhei ao meu redor, aproveitando para observar as famílias que
estavam curtindo os dias que antecediam o Natal. A maioria carregava
sacolas coloridas, provavelmente cheias de presentes que iriam parar
embaixo de uma árvore bem decorada. Eu acabei não montando uma no meu
apartamento, pois voltaria para Londres dia vinte e três, mas nos anos
anteriores ajudei minha mãe a montar a nossa lá em casa. Era um dos meus
passatempos natalinos preferidos.
Suspirei.
Aquele seria meu último Natal.
Pisquei algumas vezes, afastando uma lágrima que tentava se formar
no canto do meu olho. Esfreguei a região com uma das mãos e quando a
afastei, vi um pontinho branco se chocar contra ela e sumir.
Ergui a cabeça e encarei o céu. Não era possível.
Devagar, mais pontinhos brancos foram caindo, se chocando contra
minha roupa e derretendo no mesmo segundo.
Um largo sorriso se abriu no meu rosto.
Estava nevando.
Capítulo 10

Dick
Tive que esperar poucos minutos na fila para conseguir comprar os
chocolates quentes.
Eu particularmente adorava a bebida, principalmente a feita pela tia
Martha. Ela tinha um toque especial que conseguia deixar tudo o que
preparava incrivelmente bom.
Fazia muito tempo que eu não voltava no Lady Madonna, mas por algum
motivo quis que Daisy conhecesse aquele lugar. Mostrar para ela onde passei
boa parte da minha infância foi, de certa forma, gratificante. Eu queria que
Daisy conhecesse aquela parte de mim, e não apenas o Dick Norris
guitarrista e apaixonado por Beatles.
The Beatles. Era engraçado pensar que foram eles que nos uniram.
Eu estava passando pela Liverpool Waterfront para distribuir panfletos
do nosso show no The Cavern Club quando me deparei com uma garota
loira encarando fixamente as estátuas dos quatro integrantes da banda. Ela
estava com a cabeça inclinada para o lado, como se analisasse a cena, talvez
se questionando o contexto da foto que usaram de modelo para as estátuas.
Aquele era o questionamento que eu me fazia toda vez que passava por lá,
por isso decidi me aproximar dela.
Foi a melhor decisão que tomei em toda minha vida.
Conhecer Daisy foi quase como um presente de Natal, embora eu nunca
o comemorasse, pelo menos não desde que perdi minha mãe. Mas Daisy
tinha esse poder de fazer com que eu quisesse passar meu tempo com ela e
realizar todos seus desejos, que incluíam vestir um suéter ridículo e tirar uma
foto com o Papai Noel, coisas as quais fiz de bom grado. Por ela, tudo era
por ela.
Peguei os dois copos de isopor e agradeci a moça que me atendeu.
Quando me virei para voltar, vi Daisy encarando o céu. Em poucos
segundos, a neve começou a cair.
O sorriso no rosto dela era impagável.
Daisy ergueu as mãos e deixou que os flocos de neve caíssem nelas. Seu
cabelo começou a ficar salpicado de pontinhos brancos, mas ela não parecia
se importar, absorta demais em ver a neve que tanto desejou que aparecesse.
Nós tínhamos completado mais um item da lista.
De repente, tudo pareceu ficar em câmera lenta.
Daisy engoliu em seco e fez uma careta de dor, levando uma das mãos ao
peito. Ela levantou em um supetão e deu alguns passos para frente,
cambaleante.
Derrubei os copos no chão e saí correndo no momento em que a vi
começar a cair.
Algumas pessoas já se amontoavam ao redor dela quando cheguei. Eu os
empurrei sem nem me importar, precisava chegar nela a qualquer custo.
Me agachei na frente dela e puxei sua cabeça para o meu colo. Ela estava
desmaiada, não tinha reação a estímulo algum.
— Alguém chama uma ambulância! — gritei a plenos pulmões. —
Daisy. — Balancei seus ombros, mas ela nem se mexeu.
Pânico começou a dominar o meu peito, a mesma sensação que tive
quando assisti minha mãe morrer na cama de hospital há treze anos.
Impotente, era o pior sentimento de todos.
Alguém se abaixou ao meu lado e pegou o pulso dela.
Eu estava pronto para virar e xingar seja lá quem estivesse a
incomodando, mas a mulher ergueu uma mão com calma.
— Eu sou médica.
Assenti, tranquilizado, e deixei que ela tocasse em Daisy.
— Ela tem pulso — explicou —, e não parece ter sinais de choque. Isso
é bom. Sabe me dizer se ela tem alguma doença?
— Sim, ela tem problema de coração. Não lembro direito o nome da
doença, mas era grave.
A mulher assentiu e levou uma mão à testa de Daisy.
— Sabe me dizer se ela estava sentindo alguma coisa antes de desmaiar?
Pisquei repetidas vezes, ainda atordoado. Onde estava a maldita
ambulância?
— Eu não sei! — exclamei alto, meu tom de voz começando a acelerar.
— Eu saí para comprar um chocolate quente e quando estava voltando a vi
desmaiar. Ela parecia estar com dor no peito.
Aquilo tudo era culpa minha. Eu não deveria tê-la forçado a correr. Daisy
estava daquele jeito por minha causa e de mais ninguém.
Eu era um completo idiota.
— Se acalme, tudo bem? A ambulância está vindo e nós vamos levá-la
direto para o hospital — a médica garantiu. — Com base no que você
contou, eu acredito que ela tenha tido um infarto, muito provavelmente por
insuficiência cardíaca.
— Ela vai ficar bem? — não consegui esconder o pânico em minha voz.
— Farei o possível para que sim.
Ela conferiu mais uma vez o pulso e a respiração de Daisy, concordando
satisfeita quando viu que ainda estavam presentes.
A neve ainda caía ao nosso redor, mas era a menor das preocupações
naquele momento.
Um barulho alto de sirene se sobressaiu sobre os murmúrios das pessoas
que estavam ao nosso redor.
A médica suspirou aliviada e se virou para mim.
— Qual o seu nome mesmo?
— Dick.
— Certo. Dick, eu preciso que você se afaste dela, tudo bem? Os
paramédicos vão precisar de espaço para trabalhar.
Olhei uma última vez para Daisy e assenti, voltando a deitar sua cabeça
no chão gelado.
— Nós vamos cuidar dela.
— Daisy — proferi. — O nome dela é Daisy.
Ela apoiou uma mão no ombro.
— Nós vamos cuidar da Daisy.
Duas pessoas vestidas com macacões azul escuro vieram correndo com
uma maca rígida amarela em mãos.
Eu levantei e me afastei, deixando que eles fizessem o seu trabalho.
Observei atento enquanto tomavam todas as medidas, repetindo o que a
médica fez e muito mais. Quando eles levantaram ela na maca, os segui até a
ambulância.
— Você é parente dela? — um dos paramédicos perguntou depois que
colocaram Daisy para dentro da ambulância.
— Um amigo. Ela não tem família em Liverpool.
— Pode me passar o nome completo dela?
— É Daisy Shields.
Ele anotou em uma prancheta que nem vi que estava segurando e me fez
mais algumas perguntas. Eu respondi tudo o que sabia, que não era muito.
— Estamos prontos para ir — a médica de antes gritou de dentro da
ambulância.
— Você vem junto? — o paramédico perguntou.
Olhei para a ambulância, ela era grande e imponente. Eu sabia qual seria
o seu destino final. O hospital.
Tentei dizer que sim, que eu queria acompanhá-los para saber como
Daisy ficaria, mas minha língua travou.
Não, eu não podia entrar no hospital. Não podia correr o risco de perder
outra pessoa importante para mim.
Foi por isso que balancei a cabeça de um lado para o outro e dei dois
passos para trás.
— Não posso.
O homem apenas assentiu e fechou a porta de trás do veículo, logo
entrando no lado do motorista e ligando a ambulância.
Eles foram embora com as sirenes tocando em alto som, e eu
observei Daisy ir sem a certeza de que ela ficaria bem.
Capítulo 11

Eu não tive coragem.


Fazia dois dias que Daisy estava internada no hospital e eu não tive
coragem de ir visitá-la.
Liguei para Thomas no dia do acidente e contei tudo o que aconteceu.
Ele foi até meu apartamento e me ouviu desabafar como uma adolescente de
quinze anos. Admiti meus sentimentos, mesmo que confusos, por Daisy.
Falei que queria estar perto dela a todo momento, e que estava me matando
não saber se ela estava bem
Thomas disse que eu precisava visitá-la, e eu sabia disso, mas não
conseguia. Não poderia reviver aqueles traumas mais uma vez.
— Não seja um idiota. — Ele tinha me dito. — Você conheceu uma
garota incrível e está deixando ela ir embora.
Realmente, Daisy era sem igual. Criamos uma conexão tão profunda e
em tão pouco tempo, que me surpreendia que há duas semanas eu sequer a
conhecia.
Era por isso que eu estava parado na frente do hospital, arrumando forças
para entrar.
Respirei fundo.
Eu conseguiria, era só passar pela porta e perguntar onde ficava o quarto.
Coloquei a mão no bolso do casaco e senti um pedaço de papel lá dentro.
Ao tirá-lo, vi que era um guardanapo.
Aquilo só podia ser uma coisa.
Desdobrei o papel, revelando exatamente o que eu imaginava que era.
Alguns números da lista já estavam riscados, como o Casbah Club e
os suéteres cafonas, mas um ela nunca chegou a conseguir. “Ver a neve cair”.
Voltei até meu carro e revirei tudo em busca de uma caneta. Assim
que a encontrei, risquei os itens quatro, cinco e seis. Pronto, agora estava
certo.
Nós quase a completamos. Tínhamos marcado de domingo ir em um
baile que teria perto do meu apartamento onde a idade mínima dos
participantes era sessenta e cinco anos. Era uma ideia ridícula, mas Daisy
disse que esse era seu sonho desde que assistiu “A Casa das Coelhinhas”.
Quase não percebi um outro item que Daisy escreveu depois, sem eu
saber.
“Não se apaixonar por Dick”.
Engoli em seco.
Queria muito entender o contexto que a levou a escrever aquilo. Será
que tinha sido após a noite que passamos juntos? Ou antes disso? Em que
momento Daisy percebeu que poderia acabar se apaixonando por mim?
Eu tinha que perguntar isso a ela.
Sem pensar duas vezes, tranquei meu carro com a chave e entrei no
hospital.
Para a minha sorte, aquele não era o mesmo hospital que minha mãe
ficou internada. Eu não conhecia o hall de entrada e nem os leitos, o que de
certa forma me deixava mais tranquilo.
Fui até o balcão da recepção e pedi por Daisy. A mulher me passou o
número do quarto e eu agradeci, pegando o elevador para o andar em que ela
estava internada.
Com passos hesitantes, caminhei até a porta do seu quarto. Ela estava
fechada, e eu não sabia o que esperar quando a abrisse.
— Você consegue — sussurrei.
Toquei na maçaneta e a apertei entre os dedos, pronto para girá-la e
finalmente abrir a porta.
— Ei.
Uma voz chamou minha atenção.
Me virei para a dona dela.
Uma garota de cabelos crespos e pele preta clara vinha na minha direção
com um copo de café na mão.
— Esse é o quarto da minha amiga, não pod… — Ela parou de falar, o
olhar fixo no meu rosto. — É você.
Franzi o cenho.
— O quê?
— Você é o Dick, não é?
Assenti.
— Eu me chamo Abigail, sou a melhor amiga da Daisy. Ela me falou
muito sobre você.
Então aquela era a tal amiga de quem Daisy tinha comentado algumas
vezes. Era claro que ela estaria em Liverpool, assim como os pais de Daisy
também, embora eu não os tivesse visto ainda.
— Vim visitá-la.
Abigail negou.
— Não posso deixá-lo entrar.
— O quê? — repeti.
Eu não estava entendendo. Por que eu não podia visitar Daisy?
— Você foi um idiota — ela me acusou. — Minha amiga passou mal e
você não se deu ao trabalho nem de acompanhá-la até o hospital. Faz dois
dias que ela está internada, e você só decidiu aparecer agora? Não, você não
vai entrar nesse quarto.
Não haviam desculpas que pudessem explicar minha atitude. Abigail
estava certa em tudo que disse. Eu era um completo idiota.
— Ela está bem? — eu quis saber.
Precisava ter certeza de que Daisy estava bem, ou enlouqueceria.
— Sim, ela está. Teve sorte de o infarto não ter sido fulminante, mas isso
piorou sua condição clínica. Ela passou para o topo da lista de transplantes.
Os médicos acham que se não fizerem logo, Daisy talvez não sobreviva até o
Natal.
Escorei minha mão na parede, sentindo que poderia cair para trás se não
buscasse algum apoio.
Daisy estava morrendo, e isso nunca pareceu tão real até agora.
— Eu preciso vê-la — insisti.
Não poderia ir embora e correr o risco de nunca mais olhar para seu
rosto, ouvir sua voz.
— Ela está dormindo, precisa descansar.
— Não pretendo acordá-la — prometi. Apenas observá-la seria o
suficiente.
Abigail me olhou insistentemente, decidindo se era ou não uma boa
ideia. Por fim, ela acabou cedendo.
— Ok, você pode entrar, mas seja rápido.
Concordei e finalmente abri a porta do quarto.
Assim como Abigail tinha dito, Daisy estava deitada na cama em um
sono profundo. Ela tinha um óculos nasal preso ao rosto para ajudá-la a
respirar, e um monitor mostrava sua pressão e frequência cardíaca.
Não pude deixar de pensar na minha mãe.
A cena estava se repetindo.
Eu perderia Daisy assim como perdi minha mãe.
Virei e saí rápido do quarto, não suportando mais vê-la daquele jeito.
— Você… pode entregar isso para ela? — perguntei estendendo o
pedaço de papel que tirei do meu bolso.
Abigail o pegou da minha mão e assentiu.
— Sim, posso fazer isso.
— Obrigado.
Eu precisava sair daquele hospital o mais rápido possível.
Dando uma última olhada para a porta do quarto, que agora estava
entreaberta, fui em direção ao elevador e fugi de lá o mais rápido que pude.
Eu era mesmo um idiota.
E um covarde também.
Capítulo 12

Daisy

Era véspera de Natal.


Eu estava em um hospital em Londres, internada após meu transplante de
coração, e hoje era o dia da minha alta.
Quase tive um novo infarto quando minha mãe veio contar, aos soluços e
choro, que tinham conseguido um coração para mim. Não poderia negar que
também chorei como uma criança.
Essa esperança que senti no peito era algo que nunca me foi permitido
sentir, algo que nunca me apoiaram a ter. Eu tinha uma doença e morreria na
fila de espera para um transplante, foi o que todos os médicos disseram.
E então tudo mudou, e agora eu estava curada. Com o coração de outra
pessoa, que tinha uma família sofrendo por sua perda, mas que me permitiu
viver.
Viver.
Eu não podia nem acreditar que estava pensando nessa palavra como
uma real possibilidade.
— Oi, querida. — Minha mãe entrou no quarto com uma mochila rosa
pendurada no ombro. — Como está se sentindo?
— Muito bem — garanti. — Pronta para voltar para casa.
Ela sorriu.
— Estou tão feliz que você vai conseguir comemorar o Natal com nós.
— Eu também — admiti.
Não só esse, como vários outros Natais também.
— O médico disse para você comer coisas leves, então decidimos fazer
algo mais simples esse ano — disse com pesar.
— Não tem problema.
Só de estar na presença da minha família eu já seria a garota mais
sortuda do Mundo.
Minha mãe largou a mochila em cima da cama e começou a tirar as
roupas de dentro.
— Trouxe algo confortável — disse estendendo uma calça de moletom e
depois um blusão roxo que fazia anos que eu não usava.
— Está ótimo, mãe. Muito obrigada.
Evelyn veio até mim e depositou um beijo na minha testa, afagando
meus cabelos loiros bagunçados.
— Tudo por você, meu tesouro.
Sorri, sabendo que eu tinha a melhor mãe de todas.
Com sua ajuda, levantei da cama e tirei as roupas do hospital, às
trocando pelas que minha mãe trouxe.
Não fiquei impressionada quando vi que estavam largas. Eu emagreci
bastante desde que fui internada ainda em Liverpool e depois transferida
para cá. Mas isso não me abalava, pois agora eu teria muito tempo para me
recuperar.
Uma batida na porta chamou nossa atenção.
Abigail se esgueirou pela fresta que abriu e anunciou.
— Daisy, você tem uma visita.
Ela então abriu a porta por completo.
Dick estava parado do lado de fora do meu quarto. Ele segurava um
pequeno buquê de lírios rosa e vestia sua típica jaqueta de couro.
Eu cheguei a pensar que pudesse estar sonhando.
— Oi, Daisy.
Nenhuma palavra saiu da minha boca, pois eu estava completamente sem
reação.
— Vou deixá-los a sós — minha mãe disse antes de sair do quarto com
Abigail.
Observei Dick entrar em silêncio e fechar a porta atrás de si. Ele colocou
o buquê em cima da minha cama.
— Sei que você não deve estar querendo me ver, e com razão, mas eu
precisava ter certeza de que está bem.
Era a primeira vez que eu via Dick desde o dia em que tive um infarto no
meio da praça em Liverpool. Desde o dia em que ele desistiu de mim.
Eu acordei sozinha em uma cama de hospital, com pessoas estranhas ao
meu redor. No momento que mais precisei dele, ele simplesmente sumiu.
Era claro que eu não queria nunca mais vê-lo na minha frente, mas
estaria mentindo se dissesse que sua visita não me abalou. Não se esquece
tão fácil assim da pessoa por quem você é apaixonada.
— Você viu a lista. — Aquilo não era uma pergunta.
Dick assentiu.
— Foi uma pena não termos completado.
— A gente não conseguiria, de qualquer forma. Tinha um item que eu
não poderia riscar.
Ele sabia do que eu estava falando, pois sua expressão preocupada se
suavizou.
— Acabei fazendo uma lista também — comentou.
Dick colocou uma mão no bolso e tirou de lá um papel amarelo dobrado
várias vezes. Ele o estendeu para mim.
Peguei o pedaço de papel e o abri.

— Eu completei minha lista — ele disse depois que terminei de ler.


Não tirei os olhos do papel.
— Porque está fazendo isso? — Finalmente o encarei.
— Fazendo o quê? — Ele não entendeu minha pergunta.
— Me dando falsas esperanças.
Dick se aproximou. Eu não tive forças para recuar.
— Não estou dando falsas esperanças, estou expondo o que eu sinto. Eu
também falhei Daisy, em não me apaixonar por você. Naquele dia… eu me
assustei — admitiu. — Passei a ter pavor de hospitais desde que vi minha
mãe morrer em um, e isso fez com que eu cometesse um grande erro. Eu te
deixei sozinha, e nenhum pedido de desculpas vai mudar isso.
Ele desviou o olhar para as próprias mãos.
— Eu fui te visitar dois dias depois, mas Abigail me contou que você
estava morrendo. — Dick olhou para mim, os olhos marejados. — Eu não
poderia perder outra pessoa que amo, seria demais para mim.
— Você não me perdeu — sussurrei.
— Não da forma que eu esperava, mas eu te perdi, Daisy. No minuto em
que decidi não entrar naquela ambulância, eu sabia que tinha te perdido.
Aquilo doeu no meu peito, como se a sutura da cirurgia estivesse sendo
rasgada e meu novo coração exposto. Sim, eu estava magoada. Sim, eu
prometi a mim mesma que nunca mais o olharia na cara. Mas sim, eu ainda
gostava dele, e um novo coração não mudaria isso.
— Por que você está aqui, Dick? Não pode ter vindo até Londres apenas
para ver se eu estava bem?
Dick coçou a nuca e desviou o olhar, um sorriso envergonhado se
formou em seu rosto.
— Eu acabei de dizer que estou apaixonado por você, loirinha. Por qual
outro motivo eu estaria aqui?
Senti meu rosto esquentar. Até em um momento como aquele Dick
conseguia fazer eu corar.
— Não estou dizendo que você deveria me perdoar nem nada do tipo.
Vim para mostrar que estou disposto a fazer diferente a partir de agora. Vim
pedir uma chance para te provar isso.
— Dick…
Ele balançou a cabeça.
— Não precisa responder agora, eu posso esperar. Já faz uma semana
que estou aqui mesmo, posso esperar todo o tempo do mundo por você,
loirinha.
Arregalei os olhos.
— Você está em Londres já faz uma semana?
Dick concordou.
— Desde que Abigail me avisou do transplante. Ela pediu para que eu
não atrapalhasse sua recuperação, então decidi aparecer apenas quando você
recebesse alta.
— Isso é… não sei nem o que dizer. Eu pensei que nunca mais te veria.
— Se é o que você quer, eu vou embora sem questionar — seu tom de
voz era baixo, dolorido.
Talvez essa fosse a escolha mais sensata a se fazer.
Sim, talvez fosse mesmo, mas não era a que meu coração queria.
— Não — murmurei — Não quero que vá embora.
Estiquei meu braço e peguei a mão de Dick, a apertando de leve.
— Quero que fique aqui, comigo. Eu também me apaixonei por você
Dick, não consegui completar minha lista, jamais conseguiria.
Ele se aproximou e levou a mão livre ao meu rosto, deslizando o polegar
pelo meu queixo e o erguendo. Encarei Dick me sentindo completamente
exposta, vulnerável.
— Acho que deveríamos criar uma lista nova.
— Eu já sei qual vai ser o primeiro item — afirmei.
Ele inclinou a cabeça, curioso.
— E qual seria?
— Quer passar o Natal comigo?
Epílogo

1 aNO DEPOIS
— Quem vai querer batata assada? Acabaram de sair do forno.
Caminhei com cuidado até a mesa de jantar e coloquei a forma sobre um
suporte de metal.
— Parece delicioso, Daisy.
— Não mais do que o peru que o senhor cozinhou, senhor Norris.
O pai de Dick me olhou divertido.
— Quantas vezes terei que pedir que me chame de Roger?
— Mais algumas.
Nós dois rimos.
Terminei de colocar os pratos na mesa com a ajuda de Roger, que se
mostrou também um cozinheiro de mão cheia. O peru estava com um cheiro
delicioso.
— Ei, vocês dois. Venham comer.
Dick e Ava nem prestaram atenção em mim.
Os dois estavam absortos em uma conversa sobre Beatles, discutindo
qual lado do disco que Dick segurava era melhor. Ele acha que era o “A”, ela
o “B”.
Ava era a irmã mais nova de Dick, tinha catorze anos e morava com o
pai. Esse ano ela e o irmão se reaproximaram depois que ele percebeu como
sua família era importante. Dick apresentou os Beatles à irmã, da mesma
forma que sua mãe apresentou à ele. Os dois agora passavam horas falando
sobre isso, o que chegava até a ser irritante.
— Dick — chamei mais uma vez.
Ele se virou para mim de onde estava sentado e balançou a mão no ar.
— Já vai, amor. Estou tentando convencer a Ava de que “Yesterday” não
precisava ser mais longa.
— Tem só dois minutos! — a garotinha protestou.
— E são os melhores dois minutos de todos! Se acrescentar mais,
estraga.
Revirei os olhos ao ver que os dois começariam mais uma discussão.
— Eles são impossíveis.
Roger riu.
— São, sim, mas é tão bom vê-los juntos. Ava não admitia, mas ela
sentia falta do irmão. Eu também. Nunca vou te agradecer o suficiente por
trazer Dick para casa.
— Ah, eu não fiz nada. Foi Dick quem finalmente se ligou que precisava
de vocês na vida dele.
O homem sorriu enquanto encarava os filhos.
— A morte de Lisandra foi difícil para todos nós, mas Dick foi o que
mais sentiu. Ele era muito apegado à mãe. Vê-lo se afastar de nós,
principalmente da Ava, foi doloroso, mas eu sabia que ele precisava de
espaço, então deixei que fosse embora. Você entrar na vida dele foi o que
Dick precisava para tomar as rédeas da vida, quer acredite ou não. Meu filho
se tornou uma pessoa muito melhor depois que te conheceu.
— Ele também me ajudou muito — admiti.
Dick e eu começamos a namorar pouco tempo depois do Natal, e desde
então meus dias vinham sendo os melhores. Tivemos altos e baixos ao longo
do ano, como qualquer casal, mas nada conseguia superar o amor que
cultivamos e fortalecemos.
Eu era muito grata a ele, por tudo.
— Do que estão falando? — Dick perguntou ao se aproximar de mim e
me abraçar por trás.
— Estávamos comentando que “Yesterday” precisava de um minuto a
mais.
— Eu não disse?! — Ava gritou da cozinha.
Dick suspirou alto.
— Ah, de novo não! — exclamou inconformado.
Nós todos começamos a rir.
Recostei a cabeça no peito do meu namorado.
— Beatles e Natal, o que mais eu poderia pedir?
Dick apoiou a testa sobre a minha cabeça.
— Quer fazer uma lista de desejos?
Sorri, sabendo que ele também o fazia, mesmo eu não conseguindo ver.
— É uma ótima ideia.
FIM
Agradecimentos

Essas duas novelas vieram de um surto sobre fazermos algo juntas e quando
nos tocamos, estávamos com uma capa, duas ideias e uma meta: terminar
tudo antes do Natal. Conhecer Lívia, Daisy, Samuel e Dick nos últimos
meses foi uma experiência que citaremos minimamente como mágica e
poder finalmente estar mostrando eles para vocês é simplesmente tudo o
que queríamos, porque não esperávamos que essas duas histórias fossem se
tornar tão importantes para nós, e como seria doloroso nos despedir dos
personagens que construímos com tanto carinho ao longo dessa trajetória.

Deixamos aqui um agradecimento muito especial a João, Marcos e Edu, que


nos apoiaram tanto com essa loucura que nem sabemos colocar em
palavras. Agradecemos a nossas parceiras e principalmente a cada um de
vocês, queridos leitores, que deram uma oportunidade a O Natal Me Levou
A Você.

Nunca é um adeus definitivo, então vamos dizer… Até logo.


Sobre o autor

Bruna Souza
nasceu em Curitiba, Paraná. Estava conectada com a leitura desde muito
nova, já que seu principal hobbie era ler para os mais novos. Aos 11 anos,
começou a colocar no papel o que normalmente ficava guardado em sua
cabeça e descobriu o amor pela escrita.

Sempre foi apaixonada por romances, tanto nas telas como nos livros, e
ama escrever sobre isso, já que vê como uma forma de compartilhar com
outras pessoas os mundinhos que ficam em sua mente.

Instagram/Tiktok/Twitter: @bsouzaautora
Livros deste autor

Herdeira
"Eu me permitiria amá-lo de todo coração, amá-lo até a minha morte, amá-
lo durante todas as batalhas, durante o dia e durante a noite, fosse em
Pradla, na Terra, ou em qualquer outro lugar. Eu apenas o amava."

Ao completar dezesseis anos, Karleen deveria se casar com um nobre e


assumir o trono de Pradla.

Tudo muda quando a jovem conhece o irmão mais novo de seu prometido,
um marquês irritante e desaforado, que acaba virando sua vida de cabeça
para baixo.

Porém um grande segredo é revelado e a princesa terá que decidir entre


seguir o que já lhe era destinado desde o nascimento, ou ir atrás do que seu
coração desejava: descobrir a verdade sobre suas origens e o motivo de
nunca ter se encaixado totalmente.

Mas será que escutar o seu coração será o suficiente para salvar seu reino?

30 Dias
Joshua não imaginou que aos dezoito anos sua vida ganharia um rumo tão
complicado, principalmente considerando o quanto sempre priorizou não se
envolver em problemas.

Porém, quando o problema em questão acaba sendo ganhar a atenção da


nova aluna — e também filha do melhor amigo do seu pai —, ele conclui
que pode gostar até demais de arriscar.

Entre trabalhos, festas e tentativas não muito certeiras de ficar próximo de


Naomi, com certeza o que ele não esperava era que seu coração entraria na
equação e muito menos, que acabaria ficando disposto, a usar todos os seus
dias na tentativa de provar para ela — e para si mesmo — que aquilo
poderia ser real.
Sobre o autor

M. Victoria Spido
Os livros sempre foram seu refúgio.

É uma leitora voraz, com menos tempo para ler do que gostaria. Estuda
medicina na sua cidade natal e tem planos de ser uma neurologista "muito
fod*". Começou a escrever aos 14 anos, pois precisava colocar sua
criatividade para fora de algum jeito. Gosta de pensar que todas as pessoas
tem um propósito, e o dela é ajudar seja da forma que for, curando doenças
ou tocando corações.

Você pode encontrá-la nas redes sociais, onde passa seu tempo falando
sobre livros, séries e filmes.

Instagram/TikTok/Twitter: @euvilivros
Livros deste autor

Paranoia
"Amar Flora era natural, constante. E eu não poderia desejar outra coisa"

Desde que se conhecia por gente, Íris Malta gostava de garotas. Na verdade,
uma garota em específico, Flora Amoruso. Elas se conheceram aos onze
anos e Íris nunca mais a esqueceu. Mas só havia um problema, Flora era
hétero, talvez uma das garotas mais hétero já vistas.

Aos 17 anos, ela já completava alguns anos de namoro com Camilo, o


prodígio do futebol que todos garantiam que um dia um olheiro o levaria
para um time grande. Eles eram o casal perfeito do Colégio Madre Teresina,
e isso deixava Íris com náuseas. No entanto, era o último ano de escola e ela
sabia que provavelmente nunca mais voltaria a ver Flora, já que a garota
desejava entrar no curso de medicina em Florianópolis, a três horas de
distância da pequena Salgamar. Disposta a mudar o relacionamento delas de
"conhecidas" para "algo mais", Íris tinha o plano perfeito para chamar a
atenção de sua crush, e quem sabe conseguir uns beijos em troca.
Table of Contents
O NATAL ME LEVOU A VOCÊ
Direitos autorais
Dedicatória
PLAYLIST
DEZEMBRO NÃO ERA ASSIM
SINOPSE
1 - Neve Não É Para Mim
2 - Teremos Um Dezembro Gelado
3 - Uma Crise Nunca É Uma Boa Opção
4 - Cachorro Sem Dono É Algo Preocupante
5 - O Bonitão Foi De Grande Ajuda
6 - Encontros Em Parques Sempre Trazem Oportunidades
7 - Caras Gatos Com Moto São Um Perigo
8 - Feiras Natalinas São Agradáveis
9 - Desconhecidos Podem Ser Melhores Do Que Muita Gente
10 - Romances Natalinos Sempre São Interessantes
11 - Um Falso Namorado Eficiente É Tudo Que Uma Garota Poderia
Pedir
12 - Patinação No Gelo É Uma Boa Prova De Equilíbrio
13 - Críticas Familiares São Parte Da Rotina
14 - Era Para Ser Fofo Ter Medo De Cavalos?
15 - Melhores Amigos Costumam Ser Linguarudos
16 - Corações Deveriam Apenas Bombear Sangue Ao Invés De Causar
Dor
17 - Apelidos Repentinos Mexem Com O Coração
18 - Namoros Falsos E Sentimentos Reais Não Combinam
19 - Ex-Quase Namoradas São Um Porre
20 - Toucas De Coelho São Uma Das Minhas Coisas Preferidas
21 - Novo Ano, Mas Sem Namoro
22 - Doente… De Amor
23 - Comédias Românticas Precisam De Finais Felizes
Epílogo
ROCK E ALGUMAS OUTRAS DROGAS
SINOPSE
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Epílogo
Agradecimentos
Sobre o autor
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Sobre o autor
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