Você está na página 1de 425

Copyright © 2023 Francine Locks

1ª Edição

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte dessa obra poderá ser


reproduzida ou transmitida por qualquer forma, meios eletrônicos ou
mecânico sem consentimento e autorização por escrito do autor/editor.

Capa: Ellen Ferreira


Ilustrações: Luciana Souza
Revisão: Gabrielle Andrade
Diagramação: RP Design Editorial

Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e acontecimentos


descritos são produtos da imaginação da autora. Qualquer semelhança com
a realidade é mera coincidência. Nenhuma parte desse livro pode ser
utilizada ou reproduzida sob quaisquer meios existentes – tangíveis ou
intangíveis – sem prévia autorização da autora. A violação dos direitos
autorais é crime estabelecido na lei nº 9.610/98, punido pelo artigo 184 do
código penal.

TEXTO REVISADO SEGUNDO O ACORDO ORTOGRÁFICO DA


LÍNGUA PORTUGUESA.
NOTA DA AUTORA 1
NOTA DA AUTORA 2
EPÍGRAFE
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
15
16
17
18
19
20
21
22
23
24
25
26
27
28
29
30
31
32
33
34
35
36
37
38
39
40
41
42
43
44
45
46
47
48
49
50
51
52
53
54
55
56
BIOGRAFIA
Temnyy Gorod (Cidade Sombria): Cidade fictícia situada no norte
da Rússia.

Granitsa: Grande muralha que divide o setor norte do resto da


cidade, localizada além da Kupol, construída há décadas para manter a elite
protegida.

Kupol: Floresta que protege e divide o setor norte do restante de


Temnyy Gorod

Marodery: Saqueadores que são encontrados geralmente entre o


centro e a Kupol.

Ozero: Lago localizado dentro da Kupol, frequentemente usado


para descarte de corpos e armas.

Berstuk: O gato da raça Sphynx, presente do pai de Demyan para


Roman, seu nome na mitologia eslava significa deus do mal que vivia nas
florestas.
Noite Longa: Fenômeno climático fictício que ocorre no inverno
que deixa toda Temnyy Gorod e parte do norte russo na mais completa
escuridão.

Poço: Localizado no subsolo do leste, é o local onde ocorre as lutas


clandestinas conhecidas como ciclos.

Smorodina: Bar localizado entre o centro, leste e a Kupol, onde se


concentra boa parte de todo o tráfico de armas, drogas e comunicação.

Funcionamento do ciclo: Cada ciclo tem o nome de uma estação.

Verão: Leto

Outono: Padat’

Inverno: Zima

Primavera: Vesna.
“Demyan e Roman[1] são ruins de verdade, eles
não são o tipo que você deve desejar na vida real.”
F. LOCKS & CINTHIA FREIRE.

Olá, leitor, antes de continuar sua leitura, gostaria de conversar um


pouquinho com você. É de extrema importância que você não pule essa
página, nem as próximas com as notas de autora para que você tenha uma
leitura agradável e segura.
Se você me acompanha nas redes sociais, já sabe bem o que Kings
of Dark significa, mas se você chegou até aqui porque gostou da capa, por
indicação de alguém ou por qualquer outro motivo, então, é importante
saber que se trata de uma duologia Bully/Dark Romance e como tal,
contém elementos que podem causar desconforto em pessoas sensíveis aos
temas.
De qualquer forma, é importante frisar que os acontecimentos que
definem um livro como Dark e que estão inseridos nessa duologia, não
ocorrem entre os casais principais e sim ao redor deles, mesmo assim, os
relacionamentos retratados aqui não são nem de longe parâmetros para
serem seguidos na vida real.
Lembrem-se sempre, tudo o que acontece nesse universo é apenas
ficção e as autoras não concordam com comportamentos abusivos,
possessivos, tóxicos e que causem qualquer tipo de desconforto físico ou
mental.
Há uma nota com todos os gatilhos relacionados ao livro e é de
extrema importância conhecê-los antes de seguir com a leitura.
A duologia Kings of Dark se passa em uma cidade fictícia, sendo
assim, utilizamos elementos baseados em fatos reais inseridos através de
muitas pesquisas para poder trazer a vocês uma cidade com elementos
distópicos, importantes para a ambientação da duologia, porém, tudo o que
envolve Temnyy Gorod é ficção.
Para outras dúvidas que tiverem, podem me procurar em minhas
redes sociais, será um prazer conversar e esclarecê-las.

Este livro contém elementos que podem causar desconforto,


especialmente para aqueles que são sensíveis à temas abordados aqui.
Reconhecemos a importância de respeitar os limites individuais e entender
que nem todos os leitores desejam se envolver com conteúdos que possam
afetar seu bem-estar emocional.

Se esses gatilhos mencionados podem fazê-lo sentir-se mal ou


perturbado, recomendamos gentilmente que não prossiga com a leitura. É
fundamental cuidar de sua saúde mental e emocional e não queremos que
se exponha a conteúdos que possam causar desconforto ou ansiedade.

Agradecemos sua compreensão e respeito pelos seus próprios


limites.

Lembre-se, é sempre importante colocar sua saúde e bem-estar em


primeiro lugar.
Gatilhos para:

Assassinato, agressões físicas, psicológicas, ameaças, chantagens,


uso abusivo de álcool. Perseguição, abuso psicológico. Suicídio, tráfico de
mulheres, estupro. Terror psicológico, crises de pânico, depressão.
Transtorno pós-traumático, delírios. Experiências espirituais.
Este livro contém cenas e descrições relacionadas à aparições de
fantasmas e temas sobrenaturais que podem ser perturbadoras para alguns
leitores.

Esta é uma obra de ficção destinada a maiores de 18 anos.


A autora não apoia e nem tolera esse tipo de comportamento. Não
leia se não se sentir confortável.

Denuncie se conhecer alguma vítima de qualquer um dos crimes


citados acima:
Disque 100 para denúncias de violações de direitos humanos.
“Todo homem tem seu preço, diz a frase. Não é verdade. Mas para
cada homem existe uma isca que ele não consegue deixar de morder.”
Friedrich Nietzsche

“Devo me acostumar com o fato de que ninguém nunca irá me


compreender. Este deve ser o destino comum de pessoas difíceis”
Tolstói
PADAT´
Empilho a última caixa e espalmo as mãos calejadas na lateral do
meu jeans gasto na intenção de limpar a poeira preta delas antes de anotar
na ficha a quantidade conferida. O ponteiro do relógio de plástico que um
dia foi branco dá a última volta completa, finalizando o dia e eu espero a
sirene ressoar por todo o estoque silencioso antes de bater meu ponto. O
guarda noturno pousa a mão sobre a pistola presa no couro em sua cintura
quando eu passo por ele, desejando boa noite. Apenas um som quase
inaudível deixa sua garganta quando ele me responde e olha em volta,
esperando que outros três funcionários deixem o local.
Coloco o capacete e os óculos de proteção no armário onde também
pego meus pertences, o som das outras pessoas recolhendo suas coisas
preenche o pequeno espaço do corredor junto do ruído do metal das portas
batendo habilidosamente. Há algo em comum entre cada um de nós além de
nossas vidas miseráveis nessa cidade e é a vontade de dar o fora daqui de
uma vez por todas. Esvazio meu armário para o funcionário do turno da
manhã com quem divido o espaço e fecho a porta com a mão direita
enquanto uso a esquerda para jogar a mochila sobre o ombro.
— Vá com cuidado — Faina murmura para mim.
Ela é a única amiga que tenho, a única pessoa que posso contar e a
única nessa cidade que se importa comigo.
— Eu sempre vou, você sabe. — Enfio as mãos nos bolsos do
sobretudo e acelero os passos.
Ela assente e corre em direção a Dimitri, outro funcionário com
quem dividimos o turno que dá a ela uma carona até o Gigante Laranja, o
complexo habitacional que fica no oeste, onde vive com sua mãe e irmã.
Eu vou a pé porque moro logo ao lado, em uma casa precisando de
reparos, engolida pela poluição, pelo esquecimento e por duas indústrias.
Em um pequeno terreno que nunca quis vender a eles, que nunca permiti
que virasse um estacionamento para seu maquinário e seus carros de luxo
porque há algo que o dinheiro não é capaz de comprar e as lembranças que
eu tenho na minha casa fazem parte disso, nem todas são bonitas, mas elas
são reais e tudo o que tenho, portanto, eu não iria a lugar algum. Em um
bairro onde apenas um par de moradores ainda vive, porque somos
orgulhosos demais para dizer “sim” ao capitalismo que nos maltrata há
décadas.
Sinto o vento frio maltratar minha pele assim que deixo o interior
para atravessar todo o estacionamento até o portão de arames que o
segurança noturno abre ao me ver. Ele fala em um aparelho de
comunicação, o cão preso em uma corrente enrolada em sua outra mão
fareja meus pés, mas ele já me conhece e não é uma ameaça desde que
esteja com o estômago cheio. Ele me deseja boa noite antes de o ruído das
rodinhas enferrujadas ecoarem pela área externa quando ele bate o portão.
O cão rosna para algo ou alguém, pressiono os dedos nas alças na minha
mochila e caminho silenciosamente pela rua sombria e escura.
Mal há iluminação pública decente nesta cidade, metade das
lâmpadas estão queimadas e ninguém nunca ousou fazer a manutenção
porque estamos esquecidos aqui. Principalmente nessa área, do lado sul,
onde apenas em volta das fábricas se mantêm iluminadas porque eles fazem
isso por si mesmo, não precisam de ninguém, possuem dinheiro o bastante
para dar ordens para que seus problemas sejam resolvidos, mas o resto,
onde nem mesmo as indústrias Petrovich são capazes de se enraizar, não há
nada além da escuridão abraçando cada cidadão desse lugar.
Engolida pela penumbra da meia-noite e por uma névoa densa que
recai sobre nós quando esse horário chega, abaixo minha cabeça e mergulho
na escuridão, deixando para trás todo e qualquer indício de luz oferecido
pela fábrica onde trabalho, torcendo para não encontrar ninguém desse lado
da rua, embora quase sempre encontre prostitutas e traficantes nessa área. O
som de alguma coisa me faz frear os passos e eu fecho as mãos dentro dos
bolsos da frente do sobretudo, enfiando as unhas na carne.
Apenas demônios andam livremente depois da meia-noite por
Temnyy Gorod.
— Gosta de mulheres indefesas? — alguém pergunta de algum lugar
e paro completamente de andar.
A voz rasga a escuridão como uma navalha afiada contra a seda
mais delicada.
— Eu gosto — um segundo homem responde, a voz não soa tão
imponente quanto ele gostaria.
Saltos atravessam o espaço entre eles e eu apenas vejo uma mulher
diante de mim quando nossos ombros colidem. Há sangue em seus lábios,
mas não somente lá, há um risco horizontal logo abaixo de sua orelha e se
eu pudesse dar um palpite, diria que o homem a manteve para ele enquanto
pressionava a lâmina contra sua pele. Ele a forçou até cortar a carne.
Os olhos dela encontram os meus por um momento, está escuro
demais aqui, mas ela está perto o bastante para que eu veja suas pupilas
dilatadas. O sobretudo aberto expõe seios desnudos que ela não se dá ao
trabalho de cobrir quando volta a correr na direção oposta a dos dois
homens.
— Você a machucou — o que tem o controle diz, a voz friamente
polida, embora eu possa sentir certa euforia em sua respiração.
— É, é o que eu faço de melhor.
Medo e horror deslizam através da minha espinha.
— Você a estuprou, lixo?
O riso cruel e trêmulo dele ecoa através da rua silenciosa, apesar do
medo.
— Sim, eu o fiz, a fodi pela frente e por trás, mas foi tedioso, porque
ela nem gritou. Ela não lutou, era só uma fodida prostituta.
O som de um soco me faz levar a mão até a boca, e então, eu o ouço
cuspir no chão.
— Sente prazer as ouvindo implorar?
— Eu sinto. Quanto mais alto melhor.
Outro soco.
— Então temos algo em comum. — Não há mais controle na voz do
homem. Ele parece fora de si agora.
— Não vou gritar quando me matar. — Ele parece certo sobre o seu
destino e reflito sobre isso.
Seja quem for o homem no controle, o outro sabe que ele não é
alguém que deixa de terminar algo.
— Você vai, porra, e quanto mais tempo levar para fazer isso, mais
dor sentirá. — Há ódio incrustrado em cada sílaba murmurada
pausadamente na escuridão.
O que está em desvantagem murmura algo que não consigo ouvir e
então, eu ouço o som da lâmina perfurar sua carne. Uma, duas, três vezes.
Ele uiva, se debate, não esperava por isso tão cedo. O grito que deixa sua
garganta me enche de horror ao mesmo tempo em que meus olhos se
ajustam à escuridão, focando a sombra de um homem encapuzado. Ele puxa
a lâmina.
— Eu lido com todo e qualquer tipo de homem. Com os piores, mais
temidos e sanguinários. — A voz imponente ruge, ofegante. — Mas sabe do
que eu não gosto? — Ele faz uma pausa. — Estupradores.
Há apenas o engasgo com sangue do homem cuja a vida está sendo
arrancada de seu corpo agora. Ele cai de joelhos, eu pisco, a escuridão se
molda sob meu olhar focado. Minha respiração falha, a garganta queima,
meus pulmões se comprimem. Medo rasteja sob minha pele, lentamente, se
infiltrando em meus ossos. Se me mover agora, ele me ouve. Ele me vê.
— Nos vemos no inferno em breve — mesmo morrendo, ele
murmura suas últimas palavras.
O homem de pé continua lá, estático, espreitando nas sombras. Um
miado baixo e longo de um gato me faz olhar para o chão, ele rasteja pelas
minhas pernas, antes de caminhar em direção ao corpo sem vida e quando
ergo o olhar, constato que o animal acaba de me delatar, porque a figura
esguia e ameaçadora me nota pela primeira vez. Ele dá um passo para
frente, encapuzado, a lâmina em sua mão esquerda. Abaixo a cabeça,
porque é o que todo e qualquer cidadão dessa cidade faz para atos ilícitos e
pessoas como ele, nós fechamos nossos olhos, não olhamos em seus rostos
e se a polícia fizer perguntas, nós dizemos que não vimos nada.
— Juro, eu juro que não o vi. — O terror em minha voz denuncia o
que pensei que poderia esconder. — Não vi o seu rosto, eu juro.
O miado do gato faz meus pelos se arrepiarem, é quase como se ele
estivesse de alguma forma decidindo junto do homem o meu futuro.
— Eu não vou contar... — murmuro. — Só... Me deixe viver.
— Acha que eu deveria deixá-la viva, Berstuk? — O homem dá um
passo para frente.
O gato dá um miado alto, uma entonação que quase sugere que é
uma resposta. Que tipo de monstro ele é? Um psicopata? Alguém que
tortura pessoas no meio da noite? Há alguns deles por aí, vagando por
Temnyy Gorod. O cheiro do sangue alcança minhas narinas como um
lembrete de que o próximo corpo sem vida no chão será o meu.
— É, eu também acho que é um risco muito grande... — Ele estala a
língua, um calafrio percorre minha espinha.
Espere, ele disse Berstuk? Esse é o gato de Roman? O fodido rei
deste lugar? O cara que está desaparecido, e se... E se ele estiver de volta?
Ergo a cabeça, não muito, apenas o suficiente para espiar sem correr
riscos. Parece a mesma silhueta, a mesma altura e imponência, o mesmo
tipo de perturbação. Aquele garoto fez dessa cidade um caos, mas ele
também colocou ordem, ele sempre foi ouvido e temido e sua carinha
bonita de bom menino era tão enganosa quanto sua personalidade de merda.
Ele pode ter acabado de matar um homem ou não, mas se houver
possibilidade de ele ser Roman com seu gato sinistro, então eu já deveria
estar correndo.
— Por favor, só me deixe ir... Tem a minha palavra.
Eu nunca diria nada sobre isso. Se for Roman ou não, ele é um
assassino frio, alguém que eu nunca deveria ter cruzado o caminho.
Um ruído na estrada me faz olhar para trás, um único erro e o
homem me alcança, cobrindo minha boca com a mão ensanguentada
enquanto mantém a lâmina contra minha garganta. Tento me mexer, a mão
escorregadia desliza sobre minha bochecha e volta para onde estava, o
cheiro do sangue dispara alertas de sobrevivência em meu cérebro e
lágrimas deixam meus olhos enquanto o corpo firme dele me força.
— Como se chama?
Não vejo seu rosto, mas agora de perto, sei que não é a voz de
Roman, eu saberia se fosse, porque ela é particular, suave e quase juvenil,
embora insana e perturbadora, como se estivesse sempre cantarolando uma
maldita canção psicopata. Essa voz é diferente, é baixa e enganosamente
controlada, como se ele pudesse manter todo o controle da situação, como
se tudo fizesse parte de um plano traçado que nunca dará errado. É tão fria e
estável que percorre minha espinha e goteja pânico sobre meus sentidos.
Ele tira a mão da minha boca para que eu responda, mas o sangue
continua no local, marcando minha pele.
— Diana. — O nome tropeça, trêmulo.
Ele ri, o som se infiltra em meus ossos com a crueldade e triunfo
que encontro no ato. Era para ele estar com medo porque o vi matar
alguém, mas tudo o que sinto é que seja quem for, está disposto a incluir
mais um nome à sua lista de assassinatos.
O meu.
— Eu lido com mentirosos todos os dias — murmura muito
lentamente, o nariz gélido tocando a minha orelha. — Me dê seu
documento, prove e estará livre sob o juramento de que nunca abrirá sua
fodida boca se não quiser morrer, mas se seu nome não for esse, então,
seu corpo será o próximo a estar caído no chão, porque mentirosos
também não são bons em cumprir suas promessas.
Solto uma lufada de ar, formando uma nuvem espessa diante do meu
rosto e então, faço um movimento cauteloso com a mochila, sugerindo a ele
que estou pegando meus documentos, mas ele pressiona a lâmina contra
minha pele com mais força.
— Deixe que te mostre para que eu possa ir.
Ele parece avaliar minhas intenções e quando me solta, eu tropeço,
os joelhos fracos, quase caindo.
— Tente algo e estará morta.
O gato mia ao lado do corpo no chão, os olhos refletindo como
espelhos, mas então, apenas então, quando eu sei que estarei morta se não
fizer isso, eu corro, corro com tudo de mim em direção à escuridão que
cerca a minha casa.
Eu ouço quando ele pragueja e também quando seus passos me
acompanham, mas não olho para trás, porque qualquer segundo perdido
coloca a minha vida em risco agora. O gato corre ao meu lado, ele passa por
mim e mergulha na névoa em direção a um lado da cidade ainda mais
perigoso, onde coisas ainda piores do que essa acontecem, onde a casa de
Roman, seu dono, fica, no oeste.
A mochila bate nas minhas costas a cada passo e o som de seus
sapatos parece mais alto, mesmo que eu esteja dando tudo de mim.
Lágrimas molham meu rosto, o frio maltrata minha garganta enquanto
engulo o máximo de ar na busca de recuperar o fôlego. Errado, estou
fazendo isso errado e me sentindo cansada antes do que pensei que
aguentaria. Uma dor aguda atravessa minha costela, eu deixo um uivo de
dor e desespero escapar. Não foi assim que pensei que morreria, pela lâmina
de um monstro cruel de Temnyy Gorod.
Me jogo contra o portão da minha casa e com o rosto encharcado
por lágrimas, arrisco um olhar em sua direção com a certeza de que é o
último, mas ele não está aqui, em nenhum lugar e não dou a ele tempo para
que me encontre. Em vez disso, pego as chaves embaixo do vaso ao lado da
porta, mas é apenas na quarta tentativa que a acerto na fechadura. A porta
se abre e se fecha tão rápido quanto é humanamente possível e quando
minhas costas batem atrás dela, eu deslizo até o chão, tomando fôlego e
juntando minhas pernas contra o peito.
Como isso aconteceu? Como ele havia desaparecido na escuridão?
Por que ele parou de correr?
Encaro a janela do outro lado da cozinha, ela está fechada, mas a
cortina aberta permite que o lado interno da casa fique exposto para
qualquer pessoa que apareça do lado de fora. Eu corro até ela e a fecho, me
espreitando entre os dois tecidos puídos antes de fechá-lo. Faço isso com a
janela da sala e quarto e corro até a porta dos fundos para conferir se está
trancada. Jogando a mochila no chão, corro até a cozinha e pego uma faca,
que seguro enquanto me mantenho estática no sofá, encarando a porta e
esperando pelo resto da noite que ele venha. Só que seja quem ele for, ele
não vem e quando o dia amanhece e minhas lágrimas se tornam apenas uma
camada grudenta em minha pele misturada ao sangue de um cadáver, eu
lavo o rosto e finalmente a deixo sobre a mesa da cozinha e passo um café,
pensando no que farei em seguida.
Só que eu não sei.
E quando as horas seguintes se passam, sou dominada pelo horror e
o pânico causados pela noite passada enquanto minha mente fervilha com
perguntas sem respostas. Se ele souber onde moro, minha sentença de morte
foi assinada na noite passada.
Passo a manhã inteira esperando por alguém que nem sei quem é,
que não faço ideia que aparência possui, mas ele não vem. Andando de um
lado para o outro na intenção de controlar meus nervos, enquanto o cheiro
do sangue que precisei esfregar do meu rosto com uma bucha ainda parece
estar por todas as partes. Me fazendo um milhão de perguntas as quais
nunca terei uma resposta.
E se ele for alguém que eu conheço? Alguém que me conhece e sabe
onde moro? E se ele não me seguiu até aqui porque já sabia para onde eu
correria? E se... E se ele estiver esperando apenas a noite chegar para
cometer outro crime na escuridão, livre de testemunhas? Não houve
indícios de carros da polícia e, mesmo que fosse alguém digno apodrecendo
no chão velho e esquecido desse lugar, eu também duvido que ela viria,
porque há apenas um posto policial em Temnyy Gorod e fica no centro. Se
o assassino for alguém rico, ele certamente poderia comprá-la, porque eles
são tão decentes quanto os que frequentam o setor leste da cidade.
E se fosse o meu corpo lá? E se fosse o meu cadáver agora mesmo
se decompondo, exposto, lentamente deteriorando. Alguém ligaria para a
polícia? Alguém viria recolhê-lo? Eu teria ao menos um enterro decente?
Não me resta mais nenhuma família, minha mãe morreu no parto e meu pai,
há cinco anos por problemas pulmonares causados pela poluição desse
lugar. Ninguém nunca se importou porque estava ocupado se preocupando
em sobreviver também. Esse é o fim para nós, para quem teve o azar e o
desgosto de nascer do lado errado da linha que divide o podre da perfeição.
O tudo do nada. As árvores da poluição. Os sonhos do pior pesadelo que
alguém poderia ter: a miséria.
Quando o horário de início de turno se aproxima, me obrigo a deixar
a casa, é quase meio-dia quando saio, depois de conferir as fechaduras de
todas as portas e janelas. Eu levo a chave extra comigo e encaro o grupo de
traficantes do outro lado da esquina. Um deles ergue a cabeça na minha
direção, quase que indiferente, apenas checando o movimento que faço ao
fechar o portão, o som da dobradiça sem lubrificação faz mais pessoas
olharem e o fato de eu estar olhando de volta os motiva a sustentar o olhar
por mais tempo do que o normal.
Eu assinto e abaixo a cabeça, passando o cadeado no portão, algo
que nunca costumo fazer. Encaro o segundo andar da minha casa,
constatando que havia esquecido de checar as janelas de cima, mas que
provavelmente estão fechadas porque eu quase nunca abro por causa do
cheiro forte no ar e do frio que já faz nessa época do ano.
— Há algo de errado, gracinha? — um deles diz, do outro lado da
rua, as mãos enfiadas no bolso da frente do moletom.
Provavelmente é o mais esquentadinho deles, o cabeça do bando
geralmente tem o que fala por ele enquanto somente absorve todas as
intenções à sua volta. Eu corro o olhar entre os cinco e levo dois segundos
para encontrar o que manda, está escorado em um muro, a cabeça inclinada
de lado, me encarando. E se for um deles? Busco alguma similaridade.
Não encontro nenhuma.
— Será que ela tá fechando o portão porque teme que um de nós
entre em sua casa de merda? — outro diz.
Solto um suspiro.
Raramente tenho qualquer tipo de desentendimento com algum
morador desse lugar, mas quando se cresce em uma cidade como essa, em
meio à pobreza, ao frio e à escuridão, você aprende a não confiar em
qualquer um e isso é o que me torna parecida com eles, com o grupo de
traficantes que ganha a vida nas ruas de Temnyy Gorod, nós não confiamos
em ninguém.
— Não — respondo. — Eu ouvi um barulho no meu quintal no
meio da noite.
— Ninguém rouba no nosso território — o que fala demais diz.
Todos os outros caras assentem em concordância, ruídos deixam
suas gargantas.
— Sou uma mulher solitária, preciso me proteger como posso.
O que fala muito dá uma risadinha, como se ele pudesse ser a
solução para a minha solidão.
— Nos avise se acontecer de novo — o cabeça do grupo diz, me
surpreendendo.
Assinto, agradecida.
— Obrigada.
E então, tão rápido quanto posso, faço o caminho até a empresa,
pensando sobre a noite passada e sobre coisas que eu nunca diria à polícia
ou a qualquer outra pessoa. Ninguém além de Roman resolve as merdas que
acontece nessa cidade e ele está desaparecido, provavelmente morto,
apodrecendo em alguma vala funda demais para que jamais achem seu
corpo. Talvez, apenas talvez, ele fosse a única pessoa que eu poderia confiar
minha segurança, porque embora ele fosse um perturbado que fazia as
pessoas darem um passo para trás quando sorria, ainda assim era o único
que já levou essa cidade a sério. Mas Roman Stepanovich não está mais
entre nós e eu havia presenciado um assassinato que provavelmente me
levará a morte também.
Olho de um lado a outro, não há nada, apenas o vento que grita
como um fantasma quanto mais rápido ando e quando finalmente chego à
rua onde tudo aconteceu, não há nada que denuncie que uma vida foi
encerrada aqui. Não há sangue no chão, nem sinais de um cadáver ou
assassino. Não há nada, absolutamente nada e ainda assim, eu sinto tudo,
sinto o corpo do homem me forçando, a textura, o gosto e o cheiro do
sangue ao ter sua mão pressionando minha boca, o pânico que senti quando
ele me ameaçou porque eu sabia que suas palavras não eram vazias e o
corpo sem vida no chão era a prova disso.
Nada, nenhum sinal, como é possível?
Pressiono as alças da minha mochila e volto a andar, não há
nenhuma prova sólida da noite passada e se eu não tivesse limpado o
sangue da minha pele poderia jurar que foi um pesadelo. Quando o
segurança externo me vê, ele abre o portão, o cão me encara e fareja minhas
roupas de longe e ao ouvir o bater dos ferros se fechando, respiro aliviada
pela primeira vez desde que saí de casa.
Faina acena para mim e seu sorriso morre quando ela olha meu
rosto.
Eu disse que não havia provas, mas estava errada.
A única prova do que aconteceu na noite passada sou eu e todo
mundo sabe o que acontece com as testemunhas de um crime cometido em
segredo.
— Tem certeza que não quer uma carona? — Dimitri pergunta,
puxando as chaves do carro do bolso.
Eu olho para o carro, para Faina, para o portão aberto esperando
todos nós sairmos. Preciso fechar o zíper do meu sobretudo e puxar o capuz
porque hoje faz mais frio do que o normal graças à ventania.
— O que tá acontecendo, Annika? — Faina pergunta.
Encaro o lado de fora outra vez, a escuridão onde as luzes desse
lugar não podem alcançar, lugares onde acontecem coisas como a que
aconteceu na noite passada. E se ele estiver lá? Por que eu quero ir e
conferir?
— Nada, é só... Uma dor de cabeça que não passa nunca.
Só que ela sabe que é uma mentira porque ela mora a vida inteira
nesse lugar, portanto, Faina sabe, ela sabe que qualquer que seja meu
problema, é do tipo que eu não posso abrir a boca para compartilhar se
quiser continuar viva.
— Entre no carro, vem, nós fazemos uma pausa rápida na sua casa.
— É em outra direção — respondo, mas já estou andando em
direção ao carro surrado pelo tempo.
— É, mas não vai levar um minuto.
Efim deixa a fábrica em direção ao carro, as mãos enfiadas nos
bolsos do casaco, os cabelos negros como o breu escondidos em um gorro
da mesma cor. Ele nunca fala com ninguém, é um funcionário eficiente e
nunca falta, mas é estranho e perturbador. Eu nunca o conheci de verdade,
mas todos os dias no fim do turno ele murmura um “até logo” antes de
entrar no carro de Dimitri e pegar uma carona até o oeste com ele também.
— A fechadura só abre por dentro, tá quebrada. — Dimitri entra no
carro e abre a porta.
Faina senta ao seu lado e quando o segurança assente e fecha o
portão, deslizo para o lado direito do banco, no qual conseguirei ver o local
onde tudo aconteceu. Abro o vidro traseiro manualmente quando estamos
quase chegando e foco meus olhos tanto quanto sou capaz, mas é rápido
demais e preciso enfiar a cabeça para fora e olhar para trás. Nada. Não há
nada lá, a menos que ele esteja engolido pela escuridão esperando por mim.
Uma parte minha desejou fazer esse teste se ele não custasse a
minha vida, só para saber, só para ter certeza se ele sabe quem sou, se
estarei livre.
— O que foi? O que viu? — Faina pergunta ao mesmo tempo em
que Dimitri encosta o carro na frente da minha casa.
Só há dois caras na esquina, mas os dois olham na nossa direção
para ter certeza se não é nenhum cliente ou algum tipo de armadilha.
— Pensei ter visto algo — minto, fechando o vidro. — Obrigada
pela carona.
— Tem certeza que está tudo bem? Precisa de analgésicos? Alguma
coisa?
— Tudo bem, eu tenho alguns, obrigada. — Toco seu ombro através
do espaço entre os dois bancos. — Nos vemos amanhã.
Nos despedimos, mas Dimitri espera que eu esteja dentro de casa
para que finalmente faça a volta na rua e siga em direção oposta. Fecho a
porta, acendo a luz, mas não me movo, porque primeiro preciso absorver
cada detalhe, desde as janelas fechadas a cada item que se mantém no
mesmo lugar e eu só sei disso porque fiz questão de decorar antes de sair
para o trabalho.
Deixo a mochila no gancho ao lado da porta de entrada e subo
lentamente degrau por degrau, a escuridão me engole, mas só acendo a luz
quando chego ao topo e então, confiro os dois quartos e o banheiro do andar
de cima. Não há nada que evidencie que alguém esteve aqui, nenhum
recado para mim.
Me pergunto se ter vindo a pé e conferido teria me deixado mais
aliviada porque, em vez disso, sigo com uma sensação estranha de que ele
está lá, no mesmo beco, na escuridão, engolido por sombras, terror e más
intenções, apenas esperando que eu cruze o seu caminho mais uma vez.
Recuso a carona de Dimitri e minto para Faina mais uma vez na
intenção de mantê-la longe de problemas, principalmente dos meus.
Quando a luz de freio do carro sai do meu campo de visão, o segurança
fecha o portão e me encontro desprotegida do lado de fora, me pergunto se
a decisão que tomei foi realmente a certa. Provavelmente não. O cão late, os
olhos fixos do outro lado da rua, nas sombras, em algo que apenas ele é
capaz de enxergar.
Praguejo mentalmente, amaldiçoando mais uma escolha ruim que já
fiz enquanto acelero os passos em vez de voltar para dentro. Além do mais,
o que eu poderia fazer? Ficar lá dentro e esperar que o dia chegasse? Não há
ninguém além de Dimitri que poderia me levar e ele já deixou a empresa.
Quando me dou conta, estou praticamente correndo, só que quanto mais
longe do meu local de trabalho fico, mais perto da escuridão chego. De
repente, sou engolida pelas sombras que abraçam o mesmo lugar onde um
crime aconteceu há dois dias.
Silêncio e escuridão. Meus olhos se adaptam ao ambiente hostil e
sinistro que compartilha o mesmo segredo que eu e tranco o ar, olhando em
volta. Meu sangue bombeando rápido demais me faz sentir tonta e dispersa,
mesmo assim, dou dois passos em direção ao beco escuro. Meu pai me
chamaria de irresponsável, pelas histórias que ouvi sobre minha mãe, ela
me acharia corajosa, mas Faina discordaria, ela diria que sou louca.
Acho que sou uma mistura das três coisas, porque somente uma
pessoa irresponsável ficaria parada presenciando um assassinato, apenas
uma corajosa correria de um assassino e ninguém além de uma louca
voltaria na cena do crime. Não há ninguém além de mim aqui e o silêncio é
tão brutal que posso ouvir o latido do cão ecoando sem parar para o que
quer que seja. Solto o ar, alívio deixando meus pulmões quando volto a
andar em direção à minha casa.
Eu só queria ter certeza se ele voltaria, se estaria esperando por
mim, se havia parado de correr naquela noite porque tinha intenção de me
matar nesse mesmo beco ou se era porque, no fim das contas, ele sabia que
eu não era uma ameaça. Agora tenho uma resposta, seja quem for o
assassino, ele não acha que sou burra o suficiente para abrir a minha boca.
Foi uma atitude imprudente, porque se ele estivesse esperando por mim,
provavelmente meu corpo seria o próximo desovado junto do cadáver que
agora deve estar fedendo e sendo comido por vermes.
Meu pai teria me dado a maior bronca, mas ele está morto e não é
como se eu tivesse altas expectativas sobre o futuro. O plano era nos tirar
desse buraco esquecido pelo mundo, dar a ele uma velhice decente, mas ele
se foi antes mesmo que eu tivesse um plano de verdade e depois, eu apenas
segui em frente, porque é o que a gente faz aqui, nós enterramos quem
amamos e fazemos uma escolha, a de ficar, porque ir embora é quase
impossível.
Não se deixa Temnyy Gorod sem contatos ou sem contar com a
sorte e eu nunca tive nenhum dos dois.
Enquanto caminho pela rua fria, encarando minha casa, eu penso
que ir embora faria dela mais uma entre outras abandonadas por moradores
que fizeram a escolha difícil de deixá-las para trás. Tudo o que tinham. Não
há como vender uma propriedade em Temnyy Gorod, porque, afinal de
contas, quem diabos iria querer viver nesse fim de mundo? Além disso,
dificilmente você poderia vender sua casa para outro morador desse lugar
porque ninguém aqui tem dinheiro bastante para isso, quero dizer, ninguém
além da parte obscura que mantém atividades ilegais no subsolo do setor
leste, mas os chefões já estão fora e só aparecem para negociações e a outra
parte deles, a que está no comando, vive junto de todo o resto, no complexo
habitacional no setor oeste, a única parte da cidade que é habitável, além do
setor norte onde vivem os ricaços.
Eu tive uma oportunidade, uma vez, apenas uma, mas eu a deixei
passar porque estava triste, furiosa e cheia de orgulho. Provavelmente foi
uma burrice dizer “não” aos interessados na compra da minha casa, porque
era meu único passe fora dessa cidade, mas eu havia perdido meu pai para
problemas provavelmente causados pela mesma indústria que queria
comprá-la de mim. Eu não podia fazer isso, que tipo de pessoa eu seria?
Como poderia colocar minha cabeça no travesseiro no fim de um dia e
dormir em paz com essa escolha? Não havia como, ia além da minha
sanidade, mexia com meu orgulho e moral.
Saco as chaves do bolso pequeno da lateral da mochila, tão aliviada
por chegar com vida até aqui quanto surpresa por saber que havia
possibilidades de eu morrer essa noite e estar bem com isso. Miados altos
me fazem girar a cabeça só para encontrar dois gatos correndo em meio à
névoa densa da meia-noite. Os sons se misturam, altos, de forma sinistra e
passam por mim como um flash de lembranças que faz meu coração
acelerar e eu perceber que não sou tão corajosa quanto pensei que fosse.
Pulo para dentro, batendo o portão e correndo até a porta que abro
com a habilidade de alguém que teme a própria morte e então, só então,
quando estou do lado de dentro, eu preciso rir disso porque temo mais o
gato macabro de Roman do que um maldito assassino que me jurou de
morte. Bem, qualquer um que visse a forma como aquele garoto desfilava
por aí com o animal à sua frente, fazendo o caminho até o destino como se
de alguma forma ele soubesse onde seu dono estava indo, ficaria com
medo. Os dois juntos era a coisa mais estranha e perturbadora que já
coloquei meus olhos e eu vivo em Temnyy Gorod desde que nasci.
— Merda... — Passo as mãos pelo rosto e penduro a mochila no
gancho.
Checo a casa, tudo parece no lugar. Talvez por isso eu não esteja
com medo, porque aquela noite não passa de um sonho, de uma lembrança
distante, de um bem que o homem fez a esse lugar diminuindo o número de
estupradores andando por aí. Talvez eu estivesse em pânico se ele soubesse
onde moro, se me deixasse alguma ameaça, se estivesse esperando por mim
naquele beco escuro.
— Tudo ok... — murmuro para mim mesma, porque é assim desde
que meu pai se foi.
Solitário e frio.
Eu poderia arrumar um animal de estimação, mas aí eu me lembro
que passo o dia inteiro fora e que seríamos dois infelizes. De qualquer
forma, eu havia me acostumado com o silêncio e a solidão. Em alguns
momentos, eu até gostava disso, mas era só em alguns.
Vou direto para o banho no banheiro de cima, a água demora um
tempo para esquentar, por isso continuo com as roupas, porque espero que o
banheiro esteja quente o bastante e engolido por vapor para me despir. Levo
um tempo a mais embaixo d’água, um dos raros luxos que me permito, mas
que faço hoje porque me sinto tensa, os últimos dias foram estressantes e
cheios de expectativas, portanto, quando desligo o chuveiro, estou me
sentindo bem e relaxada. Eu visto minhas roupas de dormir e um roupão
gasto que me faz lembrar que tenho negligenciado minha aparência e
cuidados básicos.
Uma corrente de ar frio me atinge, me fazendo encolher e praguejar,
me perguntando como pode estar tão frio dentro de casa quando o inverno
severo ainda nem chegou. A dobradiça da porta do meu quarto range,
denunciando a falta de lubrificação e lentamente, amaldiçoando e
segurando firme o nó do meu roupão como se ele pudesse me dar apoio,
caminho até lá. O vento forte empurra os tecidos da minha cortina e corro
até a janela para fechá-la, me perguntando como isso aconteceu, como ela
está aberta quando eu sequer a abri desde aquela noite apenas para que não
corresse nenhum risco.
Uso as travas como se ela fosse o suficiente para impedir que o lado
obscuro de Temnyy Gorod se mantivesse longe do meu quarto, mas é uma
mentira que conto a mim mesma para me fazer sentir melhor porque não há
nada no inferno que impeça qualquer um deles de seguir com seus objetivos
depois de colocarem uma meta em suas cabeças doentes. Pisco forte,
soltando o ar, o sopro quente ofusca o vidro diante de mim e eu o encaro se
tornar translúcido lentamente, segundo por segundo perdendo o desfoque,
até que eu o vejo, do outro lado da rua, mergulhado em sombras e más
intenções.
É ele, só pode ser ele, em roupas pretas e capuz, tão misturado à
escuridão que quase posso jurar que é uma visão distorcida do meu medo,
minha imaginação me pregando uma peça. Eu me inclino, quase colando o
rosto no vidro e quando pisco, ele não está mais lá, nenhum sinal, nenhuma
silhueta, nenhuma imagem. Nada. Não há absolutamente nada e eu me
pergunto se estou ficando louca ou o assassino havia realmente encontrado
minha casa e estava esse tempo todo só analisando meus passos, minhas
rotas, meu dia a dia e traçando a melhor forma de me matar sem deixar
rastros.
Eu o havia subestimado e também havia acreditado que sou mais
corajosa do que realmente sou. Estava enganada e agora provavelmente
serei sua próxima vítima, talvez ele me mate no meio do sono essa noite e,
de todas as maneiras que Temnyy Gorod poderia me matar, de alguma
forma, essa me deixa feliz, não é a pior forma de morrer aqui. Eu odiaria
que isso acontecesse lentamente ou que o fim só viesse na velhice, depois
de uma vida regada de miséria.
No fim das contas, talvez ele estivesse me fazendo um favor.
— O que... — gaguejo, encarando Faina no meu portão às quatro
horas da tarde de sábado.
— Você anda estranha, frustrada, cansada e estranha.
— Disse estranha duas vezes. — Desço o degrau da porta e caminho
sobre a fileira de pedras que formam uma trilha até o portão.
Abro o cadeado, ignorando o olhar questionador da minha amiga.
— É porque você anda realmente muito estranha.
— É só cansaço, deveria ter dito cansada duas vezes porque é só
esse o problema.
— E qual é a do portão com cadeado?
Uma coisa sobre Faina, ela é tão observadora quanto especuladora.
O tipo de amiga que arranca coisas de você.
— Traficantes — murmuro baixinho.
Ela entra e passa por mim, semicerrando os olhos e tirando os
sapatos antes de entrar enquanto fecho o portão com o cadeado. Eu a sigo
em seguida.
— Eles sempre estiveram aí.
— É, sim, mas não sei, não vou com a cara de um deles, intuição, a
minha me manda ficar em alerta.
Ela pendura o casaco grosso no gancho da parede, junto da minha
mochila, então quando fecho a porta, Faina me cumprimenta com um beijo
antes de erguer uma garrafa de vinho e um jornal no ar.
— Trouxe bebida e informações.
O jornal é publicado na cidade ao lado, mas todos os dias eles são
comercializados, vendidos em banquinhas ou de porta em porta por crianças
com pais de merda que os fazem sair para trabalhar enquanto ficam em casa
esperando o dinheiro. É o máximo que temos de informação de fora, graças
à falta de internet e como somente em alguns pontos da cidade o sinal de
telefone funciona, quando se quer fazer alguma pesquisa rápida ou falar
com alguém on-line, é preciso ir até lá e usar a rede do chip enquanto torce
para que ela não esgote ou falhe.
O problema é que esses lugares são perigosos porque atraem muitas
pessoas e às vezes, você pode estar caindo na armadilha de um tipo
específico de bandido, nós os chamamos de marodery[2]. Eles levam seu
celular, sua carteira e qualquer coisa que tenha de valor, por isso é
recomendado que os moradores de Temnyy Gorod frequentem os pontos de
sinais em grupos de pessoas.
— Às vezes é melhor ser ignorante. — Puxo o jornal de suas mãos e
a observo arrancar a touca da cabeça, revelando seus cabelos curtos e
negros.
— O país ainda está em guerra e eu não acho que ela vai terminar
tão cedo.
Assinto, encarando a manchete enquanto caminho até o armário da
cozinha em busca de taças.
— É...
Temnyy Gorod sofre sua própria guerra particular, luta suas próprias
batalhas, estamos sozinhos aqui, solitários e esquecidos, a maior parte de
nós não concorda com o governo extremista que está há anos demais no
controle, mas não há nada que possa ser feito nem mesmo sobre nós,
portanto, é uma batalha perdida, se opor é contra as leis.
Uma grande parcela do nosso país se envergonha, sofre e gostaria de
poder mudar toda a situação, reverter a história, voltar no tempo, obter
controle sobre ações que levaram vidas e um país às ruínas, em vez disso,
tudo o que fazemos é pedir, torcer, rezar, orar para que isso acabe, que as
pessoas tenham uma segunda chance, que seus corações sejam confortados,
que a dor da perda diminua ao longo dos anos.
— Isso... — Pouso o jornal sobre a mesa. — Embrulha meu
estômago.
— É...
É tudo o que ela diz, não há muito o que dizer sobre a situação atual
se você não concorda com ela, dói, choca, revolta, mas acima de tudo,
estarrece. A maior parte das pessoas está assim, se perguntando como isso
aconteceu, como puderam ir tão longe. Crianças, idosos, vidas. Embrulha o
estômago de qualquer pessoa que tenha um e que não seja um soldado
apoiador de merda daquele homem.
Faina olha em volta.
— Sua casa é...
Ela sempre tem algo a dizer sobre isso, sobre mim, sobre a casa,
cada vez que vem até aqui.
— Você ainda não comprou um aparelho de som? — imito sua
entonação para fazer uma pergunta que sei que ela fará.
Faina fecha a boca, um sorriso repuxando os lábios finos.
— É estranho, eu nunca vi isso em nenhum lugar.
— Eu gosto de silêncio.
— Eu também, mas ainda assim, eu ligo o som em alguns
momentos.
Dou de ombros.
— Eu tenho um DVD, assisto a alguns filmes de vez em quando.
A boca dela se abre em um “o” enorme.
— Achei que a sua TV estivesse queimada.
— Nah, eu só não ligo nunca. — Dou de ombros.
Não faz sentido, não temos TV a cabo, internet e apenas um canal
funciona e ele vive saindo do ar. Você está concentrado em uma novela ou
notícia e então, chiados cinzas e você começa a bater na caixa da televisão
como se ela fosse o problema. Não, isso só me deixa mais irritada, eu
prefiro o silêncio.
— Pelo menos um gato, um cachorro... Um peixe, Nika.
Eu sinto um arrepio correr minha espinha com a menção do gato.
— O que é isso? Repulsa de animais?
Sorrio.
— Não, eu só não acho que eles merecem ficar tanto tempo
solitários em casa enquanto estou fora.
Ela tem uma mãe e uma irmã mais nova, ambas vivem com ela e,
como a mãe já não trabalha mais devido a alguns problemas de saúde, a
casa nunca está sozinha, sempre há barulho ou alguém, companhia para
seus dois cães que só são um par porque ela não pode se dar ao luxo de
mais do que isso.
— Um peixe, então, eles são como plantas.
Semicerro os olhos em sua direção, enchendo nossas taças.
— Se você tivesse tanta disposição para resolver suas merdas como
tem pra se meter na minha vida...
— Credo. — Ela balança a taça em movimentos circulares antes de
bebê-la, como se não fosse um vinho barato. — Eu só me preocupo com
você.
— Eu tô bem, juro. É disso que eu gosto. Silêncio e solidão.
— Oh, sim? Posso ir embora agora pra que você seja feliz então.
Me sento à sua frente na mesa.
— Ou posso fazer algo para comermos.
— Tipo o quê? — Faina se debruça na mesa.
— Isso é você sendo exigente.
Ela dá de ombros.
— Eu vim até aqui, não é? Faça valer a pena.

Mais tarde, estamos deitadas no chão da minha sala, sobre o tapete,


esperando que a bebedeira de Faina passe para que volte dirigindo, quando
ela me encara, um sorriso triste no rosto.
— Minha mãe quer que eu me case com Viktor.
— Casar? Eu nem sabia que vocês ainda ficavam.
— A gente fica às vezes.
Solto um suspiro.
— Deus, Faina, casar com alguém dessa cidade é estar fadada a uma
vida inteira nesse lugar.
Ela dá de ombros.
— Todos nós estamos de qualquer maneira. A menos que tenhamos
um contato. — Ela faz biquinho. — Você tem um?
— Não.
Empurro para longe o pensamento de que joguei minha única
oportunidade fora.
— Tem minha mãe e irmã, como eu sairia daqui e as deixaria?
Sabe... É tão difícil e... — A voz dela morre. — Eu não sei.
— É...
— E ele quer isso.
Por que ele não iria querer? É Faina, ela é perfeita.
— E quanto a você?
Ela encara o teto.
— Eu gosto dele.
— O bastante para casar? Por que sua mãe quer isso?
— Ele pode morar com a gente, alugar a casa dele, é uma renda
extra.
Sempre há alguém querendo alugar por aqui, por ser uma cidade
como essa, o valor do aluguel é quase baixo o bastante para que algumas
pessoas assumam o perigo, a poluição e degradação que vem de brinde. É o
que a pobreza faz, ela não te deixa muitas opções.
O problema é que não dá para alugar uma casa aqui na intenção de
alugar uma fora daqui, porque o valor é tão abaixo do mercado que eu teria
que agradecer se ele cobrisse um terço de outra moradia. Além disso, eu
tenho medo de colocar qualquer um para dentro dessa casa, porque se eu
não conseguisse mais tirá-los, eu perderia tudo. Teria que envolver a polícia
e trazê-la para cá é o mesmo que arrumar confusão com os traficantes do
bairro.
— Não faça isso por alguns rublos a mais.
— É o nosso mercado do mês.
Encaro o teto e pego a sua mão, ela afunda os dedos na minha carne
como um ato de agradecimento.
— Pense, Faina.
Faina não veio porque eu estava estranha, ela veio porque precisava
de mim.
Ela assente, mas não diz nada, eu não quero que ela diga alguma
coisa, de qualquer forma, quero que ela pense.
Quando Faina se vai é mais de meia-noite, porque precisamos
esperar que ela ficasse sóbria outra vez para que eu permitisse que ela
deixasse minha casa e subisse na motocicleta que pegou emprestada da
irmã. Eu saio da frente de casa somente quando a luz vermelha traseira
deixa meu campo de visão e então, fecho o portão, olhando à minha volta,
neblina frio e escuridão me cercam no caminho até a porta e quando estou
segura do lado de dentro, me lembro que as travas que deveriam manter o
perigo do lado de fora são apenas um obstáculo pequeno que alguém
determinado não precisaria de muito esforço para se livrar.
A noite de quarta-feira volta para me assombrar, tenho sonhado
todas as noites com a figura ameaçadora do outro lado da rua. Mais do que
isso, tenho acordado assustada, levantado e olhado em volta como se, de
alguma forma, estivesse sendo observada por ele. Não há paz em minha
noite de sono desde que presenciei o assassinato e me pergunto quanto
tempo isso vai durar, se ele esteve aqui só para um recado ou se tem feito
isso outras vezes e eu não vi.
Ele teria deixado um sinal, não teria? Um recado, um aviso, um
animal morto no degrau da minha porta, algo tão macabro quanto ele em si.
Por que eu continuo esperando por isso?
Tomo um banho rápido e me sirvo com uma taça do vinho que abro
agora que estou sozinha. Apesar de não ser cedo, estou acostumada a
dormir tarde e vou para a cama com a taça e um livro ao qual encaro a
mesma página por vinte minutos inteiros sem prestar atenção em tudo o que
li até o momento.
Algumas vezes me perguntei se o vi mesmo do outro lado da rua
naquela noite, outras vezes tenho certeza disso por causa da janela aberta.
Ele entrou aqui?
Um miado alto faz meu coração congelar. Jogo o livro sobre a cama,
encaro a porta do quarto, mas perdi as chaves anos atrás, quando meu pai
ainda era vivo, portanto, ou eu teria que dar um jeito de trocar a fechadura
sozinha ou teria de dormir assim e torcer para que o assassino não entrasse
pela porta e procurasse por mim aqui em cima. Apoio a taça sobre a
banqueta que uso como mesa de cabeceira, há uma planta sobre um livro de
capa dura que uso como decoração e preciso empurrá-la um pouco para
trás.
E se eu pregasse a janela? Talvez eu pudesse usar madeira para que
as folhas da janela não deslizassem para os lados, assim ninguém entraria.
Só que eu teria que fazer isso em todas, só essa não resolveria nada.
Encaro o lado de fora, escuridão e neblina, nada além disso. Um
movimento na lixeira da casa à frente chama minha atenção, há dois gatos
no lixo, eu não poderia dizer se um deles é ou não o de Roman pela
aparência, porque está longe demais, exceto que Berstuk não se comporta
como um gato normal e provavelmente se alimenta da melhor ração e por
isso não precisaria comer de uma lixeira. Bom, isso quando seu dono não
estava desaparecido, agora eu não faço ideia, a única pessoa que poderia
saber sobre ele é seu amigo que ainda desfila por aí como se fosse o dono
de tudo.
Andando em carros de luxo que ninguém nesse lugar poderia
comprar, descumprindo leis que provavelmente respeita fora da linha que
divide a mansão onde mora do abandono dessa cidade. Fazendo de suas
vindas até aqui algo que só um playboy de merda faria, um escape, um
momento de diversão, o lugar onde ele pode ser quem realmente é antes
de voltar para sua bolha perfeita no setor norte e fingir que não há sangue
em suas mãos enquanto vive com sua família perfeita além da floresta,
do outro lado da Granitsa, a grande muralha que construíram para dividir
a elite da massa.
Nunca fui com a cara dele desde a adolescência, quando ele
esperava por Roman no final da aula. Eu estudei na mesma escola que
Roman, na única desse lado da Granitsa, que fica no setor habitacional e seu
amigo estava sempre lá, parado do outro lado da rua, encostado em um
muro, dentro de roupas pretas e um capuz que engolia seu rosto e o fazia se
misturar.
Depois disso eu não o vi mais, mas não poderia me importar menos,
só ouvia falar sobre Demyan porque sou bem informada e mesmo que não
tenha muitos amigos, aprecio uma boa e velha fofoca e bom, Faina é a
maior e melhor fofoqueira que conheço, apesar de que a informação de que
Demyan é o príncipe do norte e herdeiro de metade das indústrias que
poluem esse lugar não é novidade para ninguém.
Volto para a cama quando tenho certeza que não estou sendo
observada, então pego o livro e a taça que entorno até que esteja quase
vazia. Com o corpo mais leve por causa do efeito do vinho, me acomodo
em meio às cobertas grossas, dizendo para mim mesma que me levantarei
em breve para escovar os dentes, só que eu não levanto, nem leio mais uma
página sequer. Eu nem mesmo me movo quando outro miado alto ecoa pela
rua vazia e silenciosa porque estou cansada e sonolenta demais e dessa
forma, apago.
Com o pensamento de que seja quem ele for, também é um
conhecido de Roman ou ele não saberia o nome de seu gato e que, talvez
ele só tenha me dado mais uma noite de presente, mas não haveria outras
mais pela frente.
Acordo sobressaltada e me sento, ainda está escuro do lado de fora e
a cortina aberta me faz semicerrar os olhos e forçar a mente para o
momento em que a deixei assim, sendo que tenho lembranças de fechá-la
antes de me deitar. Minha cabeça dói um pouco por causa do vinho, mas a
taça não está onde deixei, em vez disso, encontra-se no chão ao lado da
poltrona diante da cama. Não há uma gota de vinho sequer dentro dela e me
lembro de ter deixado pelo menos dois dedos do líquido. Meu coração
acelera, mas ele quase falha quando a dobradiça do meu portão range
através do silêncio da madrugada, me fazendo pular para fora da cama,
ainda zonza.
Não há nada lá, mas quando fecho as cortinas e me viro, eu apenas
sei que apesar de ele não estar do lado de fora, esteve aqui no lado de
dentro.
Sinto uma onda de tontura quando encaro outra vez a poltrona,
pensando no assassino frio que tirou a vida de um homem diante de mim
sem pensar duas vezes, sentado aqui, me vendo dormir, bebendo o resto do
meu vinho na taça que usei enquanto me observa e faz planos de fazer o
mesmo comigo. E se eu tivesse acordado quando ele estava aqui? E se eu
tivesse contado a alguém sobre ele? Ele saberia? Como conseguiu entrar,
afinal de contas?
Sou tomada por pânico e horror e a sensação de descontrole e medo
me fazem precisar sentar na poltrona, o ângulo que tenho desse lado me
choca, me apavora, me estarrece e embrulha o estômago. Eu encaro
exatamente o local onde estava dormindo e, do lado arrumado da cama
onde as cobertas estão intactas, algo foi deixado para mim. Contorno o
colchão e, com os dedos trêmulos, toco o galho de lavanda. A planta é
conhecida em auxiliar o sono e esse é um recado de que ele sabe que não
tenho dormido à noite, que tenho andado pelo quarto e olhado pela janela
com medo de que ele voltasse. Seja quem for o homem que presenciei tirar
a vida de alguém, ele havia se tornado meu stalker também.
Preciso dormir, preciso muito dormir, porque tenho que estar
disposta para o trabalho amanhã, ainda assim, não consigo pregar os olhos.
Há uma tempestade do lado de fora, relâmpagos rasgam o céu e a cada
clarão que ilumina o interior do quarto, é como se eu pudesse vê-lo. Atrás
da minha porta, no gancho que pendurei uma jaqueta grossa, eu o vejo de
pé me observando. Nas sombras dos galhos secos da árvore do lado de fora,
que dançam conforme os clarões, é como se ele estivesse se movendo
lentamente em minha direção. Na poltrona onde joguei uma coberta grossa
de qualquer jeito, é ele sentado, observando.
Eu me sento e puxo as cobertas contra o peito, os batimentos mais
rápidos do que eu gostaria, porque sei que essa agitação me causará insônia.
O som alto de um trovão faz tudo parecer silencioso, há apenas a
tempestade, eu e ele em algum lugar. Eu sei que ele está por aqui, talvez do
outro lado da rua, talvez no quintal, ou quem sabe, no andar de baixo. Ele
havia se livrado do cadeado no meu portão como um aviso de que isso não
é o suficiente para mantê-lo longe.
Não há correntes, fechaduras ou janelas fortes o bastante. Não há
nada que o impeça de entrar aqui e fazer o que quiser comigo e ele quer que
eu saiba disso.
Não posso envolver a polícia, além disso, se ele descobrisse, me
mataria. Talvez ele faça por muito menos, por carregar um segredo. E se eu
tentasse falar com ele?
Encaro o pequeno relógio, são exatamente três da manhã, a hora do
diabo. Outro clarão ilumina o quarto, mesmo com as cortinas fechadas, eu
vejo uma sombra na parede quando isso acontece, parece um capuz, a
sombra de um homem. Esfrego os olhos e encaro a janela, não há nada lá,
do outro lado, na pequena sacada. Miados despertam mais sentidos e me
levanto, a boca seca, não quero olhar pela janela, não quero constatar o
óbvio. Com um suspiro trêmulo, caminho para fora do quarto, desço as
escadas lentamente e quando sou engolida pela escuridão do cômodo,
pressiono o interruptor.
A luz acende junto do som de um trovão. Nada. Não há nada aqui.
Talvez eu esteja ficando louca. Não, ainda há a lavanda. Eu não estou, não é
loucura. Havia a taça no chão, o líquido que ele bebeu, a planta sobre minha
cama, as cortinas abertas, o som do portão. Mesmo que seja isso que quero
acreditar, que não é real, no fundo, eu sei que é, há um assassino me
perseguindo e ele havia se tornado uma espécie de stalker que me vigia o
tempo inteiro, posso sentir. Senti-lo por toda parte.
Confiro a fechadura antes de encher um copo com água, então me
encosto na pia e deslizo o líquido pela minha garganta, quase desejando que
fosse algo mais forte. Coloco-o no escorredor, encarando as gotas caírem
sobre o mármore gasto, uma, duas, três gotas. Meus pensamentos estão em
um lugar distante, naquela noite, no corpo caído diante de mim. O cheiro do
sangue preenche minhas narinas como se o homem morto estivesse aqui,
sussurrando em meus ouvidos que sou a próxima.
Um arrepio percorre minha espinha quando pisco e balanço a
cabeça, outro relâmpago precede o som do trovão, eu amarro o roupão na
frente do abdômen e me obrigo a subir, mas antes disso, encaro a porta mais
uma vez. Às vezes, desejo que ele acabe logo com isso, só para me livrar
desse tormento, só que ele não o faz, porque é sádico demais para fazer
rapidamente.
Apago a luz da escada apenas quando estou no andar de cima, a
escuridão me faz precisar forçar a visão, mas leva um tempo até que eu me
acostume. Atravesso o quarto, ainda sem enxergar, então, caminho até a
janela e finalmente olho o lado de fora, certa de que ele está lá, do outro
lado. Meus olhos se moldam à escuridão lentamente, eu vejo a chuva lavar
a calçada onde ele esteve na outra noite, mas não há nada lá além da água
que escorre para a beirada da rua, formando uma pequena correnteza em
direção ao bueiro.
— Onde está você? — murmuro, a testa colada no vidro gélido.
A nuvem que deixa meus lábios ofusca o vidro, mas ele não está do
outro lado quando se desfaz. Eu sinto algo estranho borbulhar em meu
peito, uma sensação que desconheço.
O couro da poltrona atrás de mim range e meu coração apenas para,
sinto uma onda de tontura me atingir, o ar muda à minha volta, se tornando
quase espesso. O medo se infiltra em meus ossos, mas não me movo,
porque não posso. Se eu fizer isso, vai se tornar real. Fecho os olhos,
trêmula, o cheiro de lavanda se espalha pelo cômodo, lágrimas pinicam
meus olhos.
Ele não diz nada, mas os passos terminam quando a ponta das suas
botas pesadas encosta em meus calcanhares cobertos apenas por meias.
Meu corpo inteiro endurece ao senti-lo outra vez contra mim, minha cabeça
toca em seu peito, ele precisa se curvar para alcançar os lábios em meu
ouvido. Está encharcado, posso ouvir a água pingar no carpete do chão.
Quando outro clarão ilumina o quarto, eu vejo nosso reflexo no vidro diante
de mim, o capuz em sua cabeça, apenas um pedaço de pele se espreitando
entre o tecido grosso.
A mão gélida e grande toca minha garganta, lágrimas rolam sobre
minha bochecha, sou tão fraca e insignificante para ele que acha que nem
precisa desembainhar sua lâmina para acabar comigo. Os dedos longos
afundam em minha carne, me fazendo engasgar. Estrangulamento, então é
assim que ele faria? Quanto tempo meu corpo ficaria aqui até que alguém
sentisse minha falta? Um dia? Uma semana? Um mês?
— Não contei nada a ninguém — murmuro. A respiração do homem
sopra ar quente contra minha pele, fecho os olhos. — Eu nem mesmo vi o
seu rosto.
— Mesmo? Diana... — A voz grossa e sombria dispara alertas sobre
meus sentidos. — Devo acreditar na palavra de uma mentirosa?
Eu havia sonhado todas as noites com versões diferentes dele, mas
todas elas tinham a mesma voz. Não há como esquecê-la.
— Eu estava desesperada... — As palavras tropeçam, trêmulas.
A risada que ele dá é fria e cruel, como ele.
— Sabe... Annika. — A forma como pronuncia meu nome faz meus
pelos se arrepiarem. — Eu até estava gostando disso, da perseguição, do
cheiro do medo... — Ele lambe as lágrimas que correm sobre minha
bochecha. — De observá-la dormir...
O gemido que deixa escapar faz uma ameaça diferente, uma sexual.
— Matou um estuprador porque não concorda com isso, não vai me
machucar dessa forma.
Ele estala a língua de forma repreendedora.
— Talvez eu tenha ficado um pouco obcecado por você. — O aperto
em minha garganta se intensifica.
Inclino a cabeça, forçando contra seu peito, ele pousa a outra mão
sobre meu abdômen, fazendo a pele embaixo do roupão pulsar.
— Me mate logo se não confia em mim.
— Eu não confio em ninguém.
— Então faça logo, mas faça rápido, por favor. — Seguro seu
antebraço apoiado em meu seio esquerdo, o tecido gelado e úmido agarra os
músculos do membro inferior de seu braço. — Não vai fazer diferença pra
ninguém, de qualquer forma.
Eu penso em Faina, mas ela superaria rápido.
— Só está facilitando pra mim.
— Não importa, talvez você só esteja me livrando de uma vida
tediosa nesse fim de mundo.
O aperto afrouxa.
— Então talvez seu castigo seja viver. — A voz rouca me faz
engolir em seco.
Mais lágrimas escorrem sobre minha pele, meu corpo inteiro treme.
Ele é cruel o bastante para brincar com o meu futuro. Me matar ou deixar
viva. Está se divertindo tomando essa decisão.
— Por favor... — imploro para que me deixe em paz. — Nunca direi
nada a ninguém sobre o que vi naquela noite.
O nariz escorrega sobre minha bochecha, pressionando o local, ele
dá um passo à frente, o outro lado do meu rosto toca a janela, ele me
mantém pressionada contra ela, o corpo esmagando o meu. O cheiro de
sangue impregna na minha pele, eu penso que posso estar enlouquecendo,
porque o tenho sentido desde aquela noite.
— Envolva a polícia e será morta pelos traficantes, abra a boca a
alguém sobre mim e será morta pelas minhas mãos. Fuja e eu estarei logo
atrás, se esconda e acharei você. A partir de agora, guarda um segredo meu
e me certificarei todas as noites de que ninguém além de você o tem. —
Estou quase sem oxigênio quando ele me solta, tusso, retomando o ar, ainda
com dificuldade, as duas mãos em volta da minha garganta, alisando o
local.
Não me viro em sua direção quando dá um passo para trás, mas
quando ele faz o caminho até a porta do meu quarto, parando diante da
cama, me viro lentamente, ainda surpresa por estar viva. Ele deixa algo
sobre o colchão, um galho de lavanda, exatamente no mesmo lugar da
primeira vez, um sinal claro de que estou viva sob sua permissão e que o
que ele fez hoje é apenas a ponta do iceberg do que ainda pretende fazer
comigo.
— Durma, Annika, prefiro você dormindo.
E então ele se vai, deixando um rastro de gotas sobre meu carpete
enquanto faz o caminho até a saída, como se conhecesse cada centímetro da
minha casa.
O gosto de suas lágrimas ainda está em minha língua, é o melhor
sabor que já provei, porque seu medo, terror e ansiedade indicam o meu
controle. Ela tem um segredo meu, mas quando deixo sua casa, estou
disposto a fazer Annika mantê-lo para si, foder sua mente, deixá-la tão
fragmentada a ponto de desejar que eu a tivesse pego naquela noite quando
correu achando que poderia se livrar de mim. Só que ela não pode, nem
hoje, nem amanhã, não enquanto guardar um segredo que pode arruinar o
que sobrou da minha vida.
Eu até poderia ser piedoso se isso tivesse acontecido há um ano,
talvez eu acreditasse em sua palavra mesmo depois de saber que ela era
uma mentirosa e uma delatora. Talvez eu tivesse certeza que ela não tentaria
barganhar sua informação em troca de algo, mas hoje em dia, não apenas
desacredito de boas intenções, como da bondade em si, dentro ou além da
linha que divide o resto do mundo desse lugar.
Por isso, antes de qualquer coisa, preciso descobrir o que ela faria
com uma informação como essa, eu poderia dizer que Annika a venderia
por uma boa quantia se não soubesse que ela havia recusado uma proposta e
tanto capaz de livrá-la desse inferno, só que eu sei disso, sei que disse não à
venda de sua casa e sei também coisas que ela fez como retaliação.
Dinheiro não é tudo, mas há formas de alguém vingativa barganhar e se
vingar e não estou disposto a me colocar em risco.
Não sou mais o mesmo cara que frequentava essa cidade na
adolescência, cometendo delitos ao lado do melhor amigo, sou um homem
que perdeu tudo o que era mais importante em sua vida, que viu tudo ruir
lentamente, cada pessoa importante partir, que vive sem nenhuma
perspectiva e cheio de ódio, sou alguém com sede de vingança, alguém que
só irá descansar quando se banhar no sangue de seus inimigos. Alguém que
ela não deveria ter cruzado caminho, para quem nunca deveria ter mentido.
Entro no carro e através da floresta do outro lado de Granitsa, faço o
único caminho do setor norte que leva para o lado de fora da cidade só para
contorná-la e entrar no setor oeste, onde fica o apartamento de Roman, já
que essa parte onde a elite vive não possui estradas que liguem o bairro com
os demais de Temnyy Gorod. O cheiro de lavanda preenche o veículo, estou
encharcado e dolorido, mas há algo que preciso fazer lá que não pode ser
adiado. Seu maldito gato havia se tornado minha responsabilidade agora
que ele não está aqui, não quero aquele bicho estranho do caralho na minha
casa tanto quanto ele não quer deixar o lugar onde seu dono o criou na
esperança de que ele volte.
Por isso eu saio com bastante frequência do setor norte, por isso
ultrapasso a muralha que dá segurança ao nosso bairro, porque não apenas
tenho uma vida secreta que envolve lutas ilegais no subsolo do lado leste da
minha cidade quanto um animal estranho para manter vivo do lado oposto.
Agora também tenho Annika, meu novo brinquedo para quebrar.
O cheiro da lavanda diminui o fedor do ar que entra no carro através
das saídas de aquecimento, fungo, me lembrando da sensação do corpo
pequeno e trêmulo contra o meu, das promessas que ela fez e que me
certificarei de que irá cumprir. Talvez ela não fosse uma pessoa boa e
confiável, mas eu havia me tornado mestre em ser ruim nas duas coisas e
seria melhor nisso do que ela.
Encaro os nós dos meus dedos, estão ensanguentados por causa da
luta mais cedo, o contraste da minha pele vermelho-carmim contra a sua
branca salpicada de sardas, a forma como seus cabelos ruivos desceram em
ondas e se amassaram em uma bagunça molhada contra meu sobretudo
despertaram desejos primitivos em mim, desejos que achei que estavam
mortos há muito tempo, uma espécie de obsessão que te faz manter o foco
por mais um tempo. Ela havia se tornado meu novo objetivo.
Quando estou quase chegando na casa de Roman, preciso frear
bruscamente ao ver algo diante do carro. Os pneus derrapam por mais um
metro antes de parar. Berstuk para diante dos faróis, no meio da rua, o rabo
do gato se estende em uma curva angular, as orelhas repuxadas para trás, a
cabeça de lado, me encarando. Ele só fica lá, parado, antes de se virar de
frente para mim e sentar, franzindo o rosto, os dentes à mostra em uma
espécie de sorriso ameaçador.
Às vezes me pergunto se essa porra tem uma alma inteligente ou é a
de Roman lá, fazendo-o agir dessa forma. Somente isso explicaria a
maneira como o gato se comporta. Preciso engatar a ré e estacionar mais
atrás porque ele não se move para que eu encoste adiante, em vez disso,
apenas começa a andar quando desligo os faróis e caminho até a calçada, a
chuva lavando a nós dois. Abro o porta-malas, onde pego o saco de ração
que comprei. Ele fica de longe me observando esgueirar através das
faixadas em busca de cobertura.
Encaro o velho balanço do outro lado da rua, o local onde sempre
esperei por Roman. Bastava me sentar lá e ele aparecia dentro de alguns
minutos depois de ouvir o rangido dos ferros gastos, mas antes dele,
Berstuk sempre fazia o caminho até mim, como se analisasse minhas
intenções com seu dono o tempo inteiro.
— Fique longe — alerto, mas ele não espera por mim, sabe o que
vim fazer aqui.
Berstuk entra no prédio de tijolos pela passagem para gatos
instalada na porta principal que não está trancada, estaria se Roman ainda
vivesse nesse lugar, porque ele sempre foi cuidadoso demais para correr o
risco de seus inimigos terem acesso livre ao lugar onde ele poderia estar
mais vulnerável, mas as luzes do apartamento continuam apagadas e não é
pelo corte de energia, porque mantenho as faturas pagas todos os meses.
A árvore na calçada é iluminada pela luz quente do poste, clareando
os galhos finos e secos cobertos pela chuva. Eu a vi cheia e depois a vi
perder cada uma de suas folhas com o passar dos meses e nada além disso
havia mudado desde então. Berstuk mia da sacada de seu apartamento, uma
reclamação em bom-tom de que estou demorando demais. Empurro a porta,
o pistão está quebrado, ela não volta sozinha. Subo os degraus lentamente,
sentindo o peso de minhas botas molhadas e me lembrando do rastro que
deixei no carpete de Annika minutos atrás.
Quando chego no andar de Roman, pego as chaves que mantenho
embaixo da planta ao lado da porta, ela já está morta, a terra seca, ainda
assim, continua aqui como outro lembrete fodido de uma época que nunca
mais irá voltar, da mesma forma que continuo vindo, subindo as mesmas
escadas velhas e empoeiradas todas as semanas porque isso é o que me
restou, isso é que eu sou agora, alguém solitário pra caralho que mantém
um animal que abomina porque é tudo o que tem.
Berstuk para o lado do sofá, mas não olho os detalhes, não foco no
apartamento de Roman, vazio e empoeirado, em vez disso, despejo o saco
de ração no comedouro automático, antes de repor sua água. Sentindo o frio
se infiltrar em meus ossos, caminho de volta até a porta e me viro uma vez
para encarar o gato, mas ele continua no mesmo lugar, se espreitando entre
as sombras que a lateral do sofá forma no chão. Ele não caminha até o pote,
só fica lá, parado, me olhando de forma sinistra, como se eu tivesse
respostas, como se a culpa fosse minha, como se eu pudesse apertar a porra
de um botão e mudar tudo.
— Não me olhe assim, eu ainda não tenho respostas — murmuro, os
olhos dele brilham como esferas de luz na escuridão e o rosnado que ele dá
é perturbador.
Porra, Roman teria rido pra caralho da forma como fechei a porta
em seguida.
Faço o caminho até a minha casa a pé, como todos os dias dessa
semana, acelerando os passos sempre que estou sob o poste sem iluminação
onde um homem foi friamente assassinado diante de mim. A prostituta
nunca mais voltou, era seu ponto de prostituição, mas havia deixado de ser
naquela noite. Ela era alguém inteligente por não ter voltado. Quando estou
quase chegando em casa, avisto o grupo de traficantes que nem sempre se
mantém tão aglomerado a essa hora, quatro homens estão encostados no
muro de tijolos sem nenhum revestimento, do outro lado da minha casa,
dois deles com os braços cruzados, um à espreita, o quarto levando um
cigarro de maconha até os lábios.
A fumaça flutua sobre eles, se misturando à névoa densa, não há
nenhum ruído além da tosse do que está fumando. Eu me aproximo e, ao
atravessar a rua, chamo um tipo diferente de atenção, a curiosidade deles
sobre o que quer que tenha me levado a ir até lá. Um dos dois caras que está
encostado no muro impulsiona o corpo, a calça jeans baixa é puxada
quando ele inclina a cabeça de lado. É o que menos gosto, o que fala
demais. Os outros permanecem da mesma forma, como se eu não fosse
nenhuma ameaça.
— Precisa de erva? — ele diz, mesmo sabendo a resposta.
— Não.
Ele olha para trás, entre cada um deles, um sorriso perturbador no
rosto, algo como um gato encarando um passarinho, ansioso para destroçá-
lo.
— Algo mais forte, então?
Um carro passa por nós, devagar, os faróis baixos revelando uma
faixa de névoa na estrada. Não é nenhum carro que já tenha visto pelo
bairro.
— Fala logo e dê o fora, tá espantando os clientes.
Outro carro vem logo a seguir, fazendo o mesmo caminho, logo em
seguida, a cabeça de nós cinco acompanha os movimentos. É rara a
frequência de veículos nessa região, por se tratar de uma área industrial que
abriga unicamente moradores que são orgulhosos demais para vender suas
propriedades e dar a indústria o que quer: mais espaço para gerar mais
poluição.
— O Poço — o que fala demais diz. — As lutas começarão em
breve.
Hum.
O Poço fica no setor leste, um setor proibido por causa do solo
contaminado. Tudo o que havia naquele lugar foi abandonado e acabou em
ruínas; hospital, creches e escolas, o comércio, minha biblioteca preferida.
A área leste havia se tornado a Chernobyl de Temnyy Gorod, mas pessoas
ruins continuam criando raízes naquele lugar, tão fundo que haviam criado
um submundo, um lugar onde só os piores frequentam. Lutas ilegais,
prostituição, tráfico de drogas e Deus sabe o que mais acontece lá.
— Sem Roman nesse ciclo? — O cara com o baseado solta uma
risada cruel. — Não sei, não... Aquele fodido era toda a graça.
Como a boa fofoqueira que sou, fico em silêncio, só esperando mais
informações.
— O que quer? — o silencioso diz, encostado ao muro ainda na
mesma posição. — Se não veio atrás de drogas, então não acho que temos
algo a oferecer.
O falador pressiona o membro, impulsionando os quadris para
frente.
— Exceto...
— Cale a boca — o outro o corta. — Ela não é uma garota pra foder
— ele diz e, de alguma forma, isso me irrita.
— Qual é o meu problema?
Ele não responde, me fazendo cruzar os braços e prosseguir:
— Há alguém me perseguindo, não quero envolver a polícia.
A simples menção à polícia faz os quatro endireitarem os ombros e
se virarem para mim. Eu me arrependo de ter atravessado a rua.
— Não quer e não vai, se quiser continuar respirando.
Engulo em seco, procurando a coragem que armazenei para fazer
isso essa noite, depois de uma semana desde que meu stalker invadiu minha
casa e me ameaçou.
— Ele entrou na minha casa. — Encaro o cabeça do grupo. — É seu
território, não pode permitir que isso aconteça.
— Por que não dá a ele o que quer de uma vez? Mostre sua linda
boceta duas vezes e ele estará entediado.
O homem com o baseado ri.
— Talvez ele se entedie na primeira.
As risadas dos quatro se misturam e ecoam através da rua silenciosa.
— Faz dias, ele volta com frequência, entra na minha casa no meio
da noite, eu...
— Há algo de especial entre suas pernas que não pode só abri-las?
— Não quero envolver a polícia — murmuro, porque não quero que
soe como uma ameaça, tenho amor à minha vida.
— Perfeito então — o cabeça diz.
Quero gritar com todos eles, um por um, quero chamar uma viatura
e delatá-los, quero ficar de pé na minha sacada e observá-los serem presos,
só que não seria uma solução definitiva e eu estaria morta antes que a
sensação de vitória e satisfação deixasse meu sistema.
Balanço a cabeça negativamente, achei que ele resolveria meu
problema, Roman o faria se fosse em seu território no setor oeste, ele ficaria
na esquina em meio às sombras como um fodido psicopata e só sairia de lá
quando deixasse seu recado alto e claro. Meu stalker não voltaria. Só que
esse não é o território de Roman e mesmo se fosse, ele não está mais lá, está
desaparecido e muita coisa mudou desde então.
Passo pelo portão, mas não o tranco, porque o invasor havia se
livrado do meu cadeado depois de abri-lo de alguma forma sem precisar das
chaves. Ele voltou depois daquela noite chuvosa, uma vez ao longo dessa
semana e um galho de lavanda havia sido deixado exatamente no mesmo
lugar ao meu lado da cama. Eu acordei com o som da dobradiça do portão e
o cheiro da planta infiltrado em minhas narinas. Não sei quais são os
motivos dele não me acordar, mas costumo pensar que faz isso
silenciosamente só para me deixar um recado, um lembrete de que seu
segredo deve continuar sendo o que é. Um segredo. Algo que
compartilhamos.
O fato dele ter vindo apenas uma vez não me impediu de ter insônia
todas as noites, nem de passar horas de pé diante da minha janela enquanto
encarava as sombras do outro lado da rua. Não havia miados, resquícios de
sua presença, nada além de silêncio e escuridão, de medo e ansiedade. Eu
queria que meu stalker voltasse só para que me livrasse da angústia de
esperar por ele.
Fecho a porta da frente ao entrar, mesmo sabendo que ela não o
impede, então faço as mesmas coisas que todos os outros dias. Tomo um
banho, pego um livro e me deito, esperando que o sono venha, só que
mesmo às duas da manhã, ele não vem. Mesmo que eu levante para checar
as portas e janelas, mesmo que eu encare pela janela e constate que não há
ninguém lá, mesmo que a rua continue silenciosa e sem gatos, mesmo que
os traficantes já tenham ido para casa. Apenas quando é três e meia da
manhã eu consigo dormir.
Estou em um campo de lavanda, o cenário não é iluminado e vívido,
é escuro e cinza, o céu acima do campo é cheio de nuvens carregadas e o
som de um trovão ecoa através da imensidão, não há nada além de um
cenário aberto e plano, um oceano de púrpura que ao balançar com o
vento, libera um cheiro familiar. Me encolho, avistando um pequeno
casebre de madeira velha coberto por trepadeiras para onde corro o mais
rápido que posso. Espinhos grandes afugentam os dois pequenos canteiros
de lavanda de cada lado da porta, tão brutais e perigosos que estreitam a
passagem para o interior, mesmo assim eu entro. Quando me encosto atrás
da porta, eu vejo a sombra se mover do lado de dentro.
Meu stalker.
Um capuz grande o contorna, sombras engolindo seu rosto,
impedindo que eu o veja, as mãos enluvadas estão caídas ao lado do corpo.
Ele me encara, a cabeça reta, não baixa, não inclinada, mas em uma
postura que não denuncia nenhum tipo de emoção, zero arrogância, zero
surpresa. Apenas um poço sem fundo de paciência e perguntas sem
respostas.
Meu coração acelera, medo e terror percorrem meu corpo, se
infiltrando nos lugares mais difíceis, na garganta e ossos. Há um painel de
ferramentas atrás dele, facas, serrotes, uma tesoura de jardinagem. Ele
poderia me abrir no meio aqui, me estripar, me cortar em pedaços e
satisfazer seus impulsos mais violentos. Ninguém jamais saberia, ninguém
nunca me acharia. Eu provavelmente seria aberta como um peixe e deixada
nesse lugar como um animal.
— Parece que todos os caminhos a levam até mim.
Um relâmpago rasga acima de nós, me fazendo inclinar a cabeça e
olhar, não há telhado no casebre, há apenas um céu escuro iluminado por
clarões detrás de nuvens pesadas e tão perigosas quanto ele.
— Eu só queria abrigo... — Minhas palavras tropeçam trêmulas.
Medo por estar sozinha com ele em um lugar que não faço ideia
onde fica.
— Ou talvez você só tenha vergonha de admitir... — Ele se move
em minha direção de forma ameaçadora enquanto pronuncia a frase
lentamente. — Que gosta disso.
Sinto um calafrio percorrer meu corpo, gelo descendo através da
minha coluna.
— Eu não gosto. — Tento soar firme, mas ele continua inatingível.
Um trovão violento me faz estremecer ainda mais, o barulho da
chuva vem logo em seguida, mas não são pingos grossos que caem sobre
nós, em vez disso, eles desabam apenas ao redor do casebre; no interior
sem telhado, galhos de lavanda despencam, tocando gentilmente nossos
ombros antes de caírem no chão, formando um círculo à nossa volta. Como
isso pode estar acontecendo?
Quero estender a mão e tocar, checar se é mesmo real ou se é fruto
da minha imaginação fragmentada pelo medo, mas se fosse, eu poderia
mesmo estar sentindo o cheiro da planta se espalhar por todo interior?
— Não? — A palavra deixa seus lábios seguida de um rosnado.
A silhueta obscura e ameaçadora me contorna, eu me encolho
quando seu corpo cola atrás do meu mais uma vez, é como se ele amasse
me ter nessa posição. Olho para baixo, para os galhos de lavanda fazendo
uma espécie de círculo, um fenômeno impossível que acabei de presenciar.
— O que eu fiz pra você?
A boca dele está em minha orelha quando a lufada de ar que
acompanha um riso cheio de escárnio deixa seus lábios. Eu sinto um
arrepio percorrer meu corpo inteiro, mas ele atinge um lugar que eu não
acho que seja justificável.
— Isso não é sobre mérito, é sobre querer e eu quero que você fique
quieta agora.
— Só me deixe ir e seu segredo estará a salvo.
O nariz gélido do meu futuro assassino pressiona minha bochecha,
ele desliza as mãos enluvadas sobre meus braços até chegarem aos punhos,
os quais puxa para trás e os prende entre nós dois, usando uma de suas
mãos para me manter presa.
— Ainda não percebeu que isso não é mais sobre a informação que
guarda sobre mim e sim sobre você ser minha agora?
As palavras do traficante se repetem em minha mente: “Por que
não dá a ele o que quer de uma vez?”.
Achei que estivesse ficando louca, que não havia intenção sexual na
forma como ele me ameaçou, mas então, por que minha mente gira apenas
em torno disso?
— O que quer que eu faça para me deixar em paz?
Com a mão livre, ele a desliza sobre minha costela, me fazendo
empinar os seios não intencionalmente. Meu corpo inteiro treme enquanto
lavanda continua a cair sobre nós, resvalando em nossos corpos e se
acumulando no círculo perfeito que se forma, é como se elas delimitassem
um espaço que denuncia seus planos. Não tenho para onde ir, não há
caminho para mim, estou presa a ele, às suas ameaças e ao cheiro da flor
que nunca deixa o meu nariz.
— Que assuma que gosta disso. De ser minha presa.
— Pode me matar então e pôr um fim nisso.
Ele solta um gemido grave e profundo, como se minha relutância
desse a ele dor e prazer. Eu o sinto, oh, sinto-o crescer contra mim.
— E acabar com toda a graça?
Lágrimas queimam em meus olhos, elas são reflexo da minha
vergonha, minha moral zombando de mim, tornando tudo mais humilhante
quando a mão dele desliza entre minhas pernas, eu o sinto sem luvas
porque, de alguma forma, ele conseguiu tirá-la sem usar a outra mão. O
indicador e dedo médio se movem em direção à minha abertura e ele
separa os lábios antes de corrê-los sobre toda a fenda. Não há nada no
inferno que desperte mais ódio do que o som do seu riso sombrio ao
constatar o que suspeitava.
— Molhada pra caralho — ele diz. — Como uma vagabunda que
gosta de ser perseguida.
Meus joelhos enfraquecem, mas ele me mantém de pé através do
aperto entre as pernas. As lágrimas acumuladas escorrem sobre minha
bochecha quando meu corpo se move uma única vez em busca de alívio.
— Continue mentindo para si mesma — ele fala, lambendo minhas
lágrimas. — Continue fazendo isso, nada me dá mais prazer do que provar
o contrário.
A atmosfera sombria desperta algo em mim, algo que considero
doentio e errado.
— Me deixe ir... — imploro, mas ele não deixa, me mantém em um
aperto.
Eu continuo me movendo, agora não há mais como parar, desejo e
imundície, prazer e sofrimento. Por que quero que ele me machuque? Por
que quero que ele seja ruim? Encaro o céu, os relâmpagos que rasgam as
nuvens carregadas e que antecedem trovões que retumbam estrondos
ensurdecedores através da imensidão. A última corrente de lavanda cai,
acumulando os últimos galhos em um monte que nos circula. O que isso
quer dizer? Que ele havia finalmente conseguido o que queria?
— Goze ou assuma — ordena, talvez ele não tenha percebido, mas
os dois comandos soam como uma coisa só, porque gozar para ele também
seria assumir.
Fecho os olhos, ofegante, tento ignorar o fogo em meu ventre, não
posso arriscar minha paz emocional, sucumbir e depois lidar com a
vergonha, não posso dizer sim a ele e aos desejos sujos que sinto sobre a
aura obscura que carrega. Tento buscar um momento de clareza em minha
mente, mas estou me perdendo lentamente enquanto ele respira
pesadamente com o rosto enfiado em minha nuca.
— É uma garota orgulhosa — ele diz, mais lágrimas escorregam em
direção aos seus lábios. — Só está contribuindo com a minha obsessão por
você.
Não.
Não.
Eu me movo, tento fazer isso discretamente, mas não é possível
quando meu corpo inteiro treme e se inclina ao prazer. Quando me dou
conta, não estou mais presa, apesar da mão dele agora estar em minha
garganta, tenho as mãos livres para lutar e mesmo assim escolho ir por
outro caminho. Eu gozo em seus dedos, faço isso tão violentamente que
meu corpo inteiro treme em meio ao êxtase. Absorvo cada toque a seguir,
desde a língua quente correndo sobre minha bochecha ao seu corpo me
soltando bruscamente.
Eu caio de joelhos no chão, as mãos se afundando na lavanda
acumulada, o meio das pernas pulsando enquanto sinto o fantasma de sua
mão em minha carne. Ainda estou ofegante quando o som de um trovão, o
mais alto de todos, ecoa no céu, mas nenhum prazer e satisfação se
compara à vergonha que sinto por sucumbir. Eu choro com mais força, meu
corpo sacudindo, dessa vez, chuva cai no interior do casebre, encharcando
meu cabelo e roupas, apesar de que nem toda a água do mundo seria capaz
de limpar a sujeira em mim.
Meu stalker se abaixa atrás do meu corpo, ele esmaga minhas
bochechas com força enquanto empurra os dedos da mão que me
masturbou dentro da minha boca até que eu engasgue.
— Prove o sabor de uma puta mentirosa.
Tusso em meio às lagrimas.
Desejo me vingar dele, mas apesar de ser uma pessoa ruim, eu
posso sentir o gosto da pior mentira que já contei para mim mesma em seus
dedos.

Abro os olhos e me sento em um impulso, a primeira coisa que faço


é correr os dedos sobre meu rosto só para constatar o que já sei, está
encharcado por lágrimas de desespero e vergonha. Em seguida, ainda
ofegante e chocada, levo a mão entre as pernas, sentindo o latejar delator, a
ponta dos dedos encontra a textura melecada na minha calcinha e isso me
faz puxar a mão como se eu tivesse tocado em algo proibido.
Agarro as cobertas e me encolho, abraçando as pernas enquanto
penso em cada detalhe do sonho que tive, do orgasmo que veio apesar de
ser fantasioso. A combinação de tudo o que sinto desperta um estado de
tensão que faz meu corpo inteiro tremer. Isso não deveria ter acontecido, eu
não poderia ter tido um sonho sexual com meu stalker. O que há de errado
comigo, droga? Ele havia me ameaçado de morte e eu estava gozando
enquanto sonhava com ele?
Quando o cheiro de lavanda inunda minhas narinas, tornando o
sonho ainda mais real, eu penso que posso estar enlouquecendo, mas então
eu vejo, vejo a planta sobre a minha cama, deixada no mesmo local. Eu a
pego, chocada, constatando algo que me apavora tanto quanto me
envergonha. Ele estava aqui essa noite enquanto eu tinha um sonho
perturbador com ele. Resta saber se eu havia demonstrado isso, dito algo
dormindo ou se tudo o que aconteceu havia sido aquele fodido entrando na
minha mente.
Dirijo pela área industrial sombria que a essa hora está morta. A
escuridão da noite envolve o topo das fábricas junto da névoa que recai
sobre a cidade no fim do dia, principalmente desse lado, onde o ar é mais
denso por causa da poluição. O som do motor do carro ecoa através do
silêncio, abraçando paredes grandes de concreto, metade delas construídas
pelo meu avô e depois pelo meu pai. Os dois mortos agora. Talvez por
carma, a porra do universo vingando a morte de pessoas boas e inocentes
que tiveram a saúde afetada pela degradação ambiental desse lugar ou pelas
péssimas condições de trabalho nas indústrias.
Apenas em volta das fábricas, as luzes instaladas balançam com o
vento forte, formando sombras irregulares e dançantes nas paredes grandes.
O ar do lado de fora parece carregado de más intenções, mas elas não são
piores do que as minhas enquanto atravesso esse lado da cidade em direção
a um único lugar.
Passo pelo grupo de traficantes, são pouco mais de três da manhã e a
essa hora resta apenas dois deles. As duas cabeças giram na minha direção,
reconhecimento brilhando nos olhos de cada um e percebo isso porque
percorro o caminho lentamente, analisando seus comportamentos.
Em Temnyy Gorod ganha quem tem mais dinheiro ou mais
coragem, Roman e eu tínhamos os dois juntos e por isso fizemos nossa
reputação.
Escolho um local escuro perto de uma das fábricas que cerca a
propriedade de Annika e faço o caminho através das sombras noturnas, me
aproximando furtivamente do grupo de traficantes, eles só notam minha
presença quando já estou perto o bastante.
— Ei, se não é o príncipe do norte — um deles diz, é Nikolai,
conhecido por gostar do som da própria voz e por uma série de escolhas
ruins.
— Como ela se comportou essa semana? — pergunto, ignorando
seu comentário.
Não olho em direção à casa, em vez disso, enfio as mãos nos bolsos
da frente do moletom e me mantenho nas sombras, o capuz puxado para
cima.
— Ela tá escamada, cara, tem passado muito tempo na janela, feito
perguntas, mencionado a polícia — é Anton quem fala, o que está no
comando deles.
— Ela não vai, tem a minha palavra — digo, não que eu precise me
explicar, mas quanto menos problemas, melhor.
— O que vai acontecer quando se cansar dela? Será que podemos
fazer uma fila?
Dou um passo em sua direção.
— Sim, você pode, será o primeiro a caminhar para a morte. —
Mostro os dentes.
— Ele só tá brincando, ela não é uma garota pra foder, todos eles
estão avisados.
— Ela é minha e ninguém mexe no que é meu, dentro ou fora do
meu território.
A atmosfera à nossa volta se torna densa, carregada de expectativas
sobre um possível confronto, mas nenhum deles quer isso, comprar uma
briga comigo. O território é deles, mas boa parte das indústrias é minha e
nenhum traficante quer uma ligação para a polícia com a denúncia de que
elas estão sofrendo alguma ameaça.
— Estamos avisados. — Anton desencosta do muro e trocamos um
olhar complacente.
— Você não é conhecido por tomar decisões ruins, quero ouvir
isso da boca dele. — Indico com o queixo, apesar da voz baixa, a frase
carrega uma ameaça sutil.
— Não vou tocá-la.
O músculo da minha bochecha treme, é o mais perto de um sorriso
que sou capaz. Eu vejo o rosto dele endurecer e se contorcer quando dá um
passo para trás, ele sabe, ele já viu. Não apenas pela cidade, mas na área
leste, onde as piores coisas acontecem. Com Roman ao meu lado ou não,
ele sabe que sou alguém com quem não deve brincar.
— Eu sei. — Dou um passo para trás antes de me virar, então
atravesso a rua silenciosa, encarando o segundo andar da casa de Annika.
Ela não está lá, é possível que esteja dormindo, talvez fazendo um
chá, quem sabe tentando ler para pegar no sono. Ela não trabalha amanhã,
pode ser também que esteja bebendo um pouco de vinho e esperando por
mim para tirá-la de sua miséria. Enquanto caminho sorrateiramente através
da escuridão, tiro do bolso a chave mestra que uso para entrar na casa, o
silêncio do lado de dentro é perturbadoramente reconfortante, mas não mais
do que o cheiro dela por todo o local.
Sinto uma onda de poder, fascínio e adoração enquanto subo as
escadas estreitas, mas nada se compara ao encontrá-la deitada, enrolada na
coberta grossa, sustentando uma expressão perturbada enquanto se mantém
em um sono profundo. Eu paro diante da porta, minha cabeça tombando
para o lado enquanto a observo. É como se eu pudesse senti-la contra o meu
corpo, sob a palma da minha mão. Eu acabaria com qualquer um que
tentasse tirar isso de mim, que entrasse no nosso caminho.
Quando Annika se contorce e solta uma lufada de ar carregada de
desejo, a sensação de poder me envolve, alimentando a energia que me
impulsiona a continuar fazendo isso, vir até aqui, observá-la dormir
enquanto me deleito em pensamentos perversos que a fariam correr para
longe se estivesse acordada.
— O que eu fiz pra você? — O murmúrio é quase incompreensível,
mas por causa disso eu sei que ela está dormindo quando pronuncia as
palavras.
Hum... Interessante.
Me aproximo, saboreando a alegria sádica que sinto ao vê-la tão
incomodada com algo.
Uma tempestade se arma do lado de fora e me surpreendo com a
tormenta não anunciada, não havia sinal dela há cinco minutos e agora,
alguns trovões longos e distantes reverberam. Annika se agita na cama, o
corpo tremendo com o pesadelo. Ela está ofegante.
— Só me deixe ir e seu segredo estará a salvo.
A forma como estou em sua mente agora me deixa duro pra caralho,
eu toco meu pau, sentindo a dor de mantê-lo em um aperto dentro da calça,
observando a luz da lua que se espreita entre as nuvens espessas se
derramando sobre a pele do seu rosto coberto por sardas. Os cabelos ruivos
espalhados na fronha branca.
— Pode me matar então e pôr um fim nisso.
Lágrimas deixam seus olhos, posso vê-las brilharem.
Ainda assim, ela se contorce de uma forma que me surpreende, uma
forma sexual, inclinando o quadril e empurrando a coberta de modo que
uma perna fique exposta. Seja o que porra está passando em sua mente, ela
está na sarjeta agora porque só isso explicaria essa garota tendo um sonho
erótico com seu fodido stalker.
— Continue mentindo para si mesma — murmuro, fodendo para o
fato de que isso pode acordá-la. — Continue fazendo isso, nada me dá mais
prazer do que provar o contrário.
Eu ficaria feliz pra caralho vendo a vergonha brilhar em seus olhos
se ela os abrisse.
— Me deixe ir... — ela murmura, mas leva a mão entre as pernas, a
camisola sobe, revelando uma calcinha branca que ela empurra para o lado
antes de se mover contra os próprios dedos.
Annika inclina os quadris em busca de alívio e deslizo a mão para
dentro da calça, alcançando meu pau, a ponta dele tomada por lubrificação,
eu a uso para deslizar até a base, encarando a mão pequena com unhas
pintadas de preto se moverem entre as pernas, separando a carne que desejo
lamber e sugar.
Foda-se.
— Goze ou assuma — ordeno, ainda em sua mente, eu desejo de
alguma forma tornar ainda mais real para ela, manter meu personagem no
controle, dar a ela um fodido orgasmo em seu sonho doentio.
Annika geme e vira o rosto com repulsa, isso serve apenas para que
eu me mova mais depressa contra a minha mão, tão furiosamente que estou
empurrando os quadris.
— É uma garota orgulhosa.
Ela nunca assumiria isso para mim, preferiria estar morta a assumir
que se deleitou em um sonho onde eu, o homem que a tem feito de
marionete, dei a ela prazer. As bochechas de Annika ganham um tom
avermelhado que camuflam as sardas que salpicam toda a pele, eu sei o que
isso significa, o que seu corpo está dizendo. Ela estica a perna, arqueando
as costas, o pé escapa para fora da cama, tocando o interior da minha coxa e
eu apenas observo sua boceta molhada ser esfregada enquanto ela pensa em
mim e empurro mais forte.
— Foda-se... — murmuro, dessa vez é baixo demais, apenas um
lamento que chega junto do jato quente.
Observo o corpo de Annika atingir o clímax, ela se curva e goza, um
gemido longo e rouco deixando sua garganta. Ainda estou me sentindo
atordoado quando dou dois passos para trás, engolido pelas sombras, então
apenas guardo meu pau gozado, coloco a planta sobre a cama e deixo o
quarto dela, ouvindo-a se mover na cama, acordando. Estou ofegante
demais, surpreso com o rumo que a noite tomou e as duas coisas quase me
tornam humanos. Ela veria além da superfície essa noite porque fui pego de
surpresa e quando eu fizer Annika gozar com minhas próprias mãos, quero
que meus comandos sejam controlados, calculados, quero vê-la se
desmanchar em meus dedos enquanto me vê como tudo o que sou. Apenas
uma ameaça. Apenas um stalker. Apenas o assassino de um homem. Uma
pessoa ruim.
Desejo fazer isso em breve, e conforme me afasto, percebo que
nunca será o suficiente, porque anseio por mais, por uma dominação total
sobre ela inteira, sobre sua existência.
Posso sentir o fantasma de suas mãos entre minhas pernas mesmo
que elas nunca tenham estado lá. Posso sentir o cheiro da lavanda mesmo
que o bairro industrial cheire a degradação e poeira. Posso sentir seus olhos
em mim mesmo que eu saiba que ele não é a maior ameaça nesse momento,
enquanto atravesso o setor sul em direção ao leste, a área tóxica onde minha
biblioteca favorita foi deixada em ruínas quando o bairro deixou de ser
habitável por causa do solo contaminado.
Não costumo me arriscar com tanta frequência até lá, geralmente
pego em torno de dez livros e os leio com muita calma durante alguns
meses, sem pressa, sem cobrança, economizando tempo, porque sei o
quanto é arriscado estar no leste, não apenas por causa da contaminação,
mas porque o pior tipo de pessoa circula por lá, apesar de ser uma zona
proibida e fechada. A Chernobyl de Temnyy Gorod havia sido evacuado há
anos, depois de um vazamento de produtos químicos tóxicos, ainda assim, o
subsolo que já existia para deposito de resíduos químicos, havia se tornado
uma espécie de submundo no qual tudo acontecia, onde Roman reinava até
seu desaparecimento e eu sei disso porque meu pai me contou. Ele me disse
para nunca pisar no leste.
O vento gélido de outubro corta a pele do meu rosto como uma
lâmina afiada e me encolho dentro do sobretudo, os passos, por mais
estrategicamente silenciosos, ecoam através da rua espaçosa e vazia. Há um
grupo de traficantes por bairro e eles ficam em frente à minha casa, desse
lado no setor sul, mas o problema é o que posso encontrar pelo caminho,
não são os traficantes que me assustam, são os Marodery, apesar de que eles
ficam na fronteira com o norte.
Também tem os frequentadores do Poço, o ciclo de outono está
iniciando e com isso, a cidade se torna mais movimentada, os piores tipos
de seres humanos andando por aí, estupradores, torturadores, sádicos,
psicopatas, tudo isso está no leste de Temnyy Gorod e ainda assim, estou
caminhando para lá.
A iluminação das indústrias me faz escolher nas sombras para não
correr o risco de ser vista, mas conforme chego na fronteira com o leste,
mergulho em meia dúzia de fábricas abandonadas, desligadas, em desuso
por algum motivo. Eu uso a escuridão em volta delas para atravessar os
limites enquanto avisto a velha biblioteca caindo aos pedaços, um calafrio
percorre minha espinha, mas ele nunca me parou.
O medo se mistura à determinação, um misto de ansiedade e desejo
por conseguir livros novos, por estar dentro de um lugar que, apesar de estar
caindo aos pedaços, escuro e cheio de teias de aranha, ainda podia ser um
paraíso, a única coisa boa desse lugar.
Ao entrar na biblioteca, o ar úmido e o mofo invadem minhas
narinas, eu acendo a luz de uma lanterna que mantenho carregada sempre
que preciso vir até aqui. O círculo de luz apontado para as prateleiras
desorganizadas, para uma parte do local onde os livros foram danificados
por causa de uma goteira que só tende a piorar com o tempo.
Escolho um canto longe das janelas para que a luz interna não
chame atenção do lado de fora, então corro a mão sobre as lombadas
empoeiradas, sentindo nos livros uma espécie de refúgio que só eles me
oferecem, uma fuga para outros mundos, longe do perigo dessa cidade, da
contaminação, da maldade e do caos.
Escolho cinco deles com calma, levaria todos se pudesse, mas
enquanto escolho os outros títulos, sei que o caminho perigoso que fiz para
chegar até aqui valeu a pena.
Quando os coloco dentro de uma sacola sustentável que por ironia
ganhei da empresa onde trabalho, ouço passos ecoarem do lado de fora da
biblioteca. Eles parecem repercutir ao redor de todo o local, lentamente,
como um predador rodeando a presa. Deixo a sacola no chão e desligo a
lanterna, me espreitando atrás de uma fileira de prateleiras. Os passos agora
parecem dentro da biblioteca, meus olhos já estão lacrimejantes quando ele
se aproxima. Eu torço para que não seja ninguém do Poço, só alguém que
gosta de ler, apesar de que duvido que seja possível dois de nós nos
encontrarmos de uma vez aqui.
Apenas o som da minha respiração corta o silêncio, fazendo meu
coração acelerar, trazendo uma sensação de pressão em meus ouvidos. Uma
luz é apontada no interior, nas paredes, prateleiras, chão, eu vejo o
momento exato em que minha sacola é descoberta e então, o homem solta
um gemido longo e satisfeito, como se ele tivesse acabado de descobrir um
segredo.
— O que alguém como você faz do lado leste da cidade?
Eu reconheço a voz, porque ela é baixa, sussurrada e ainda assim,
imponente. Ele sempre usou o mesmo tom neutro, manso e controlado, algo
murmurado e arranhado e ainda assim, ruidoso. Provavelmente essa não é a
forma como ele fala com qualquer outra pessoa quando não está sendo um
perseguidor fodido da cabeça. Essa voz é algo que ele deve guardar e
manter apenas para mim, sua presa.
Ainda não fui descoberta nesse canto escuro, mas é só questão de
segundos para que seu corpo grande e ameaçador me pressione contra as
prateleiras empoeiradas. — Sabe o que eu teria que fazer se algum
fodido frequentador do Poço tocasse em você? No que é meu?
Cheia de determinação camuflando o medo que sinto sempre que
estou em sua presença, dou um passo para fora das sombras.
— Eu não sou sua.
Ele freia os passos, eu vejo a curva de seu capuz, mas nada além
disso porque a lanterna é apontada em meus olhos, me fazendo levar a mão
diante da luz, tentando cobri-la.
— Oh, você é, stukach, e quanto mais cedo assumir isso, mais fácil
será.
Stukach?
De onde isso saiu?
Então agora eu tenho um apelido?
Meu stalker apaga a luz, aperto os olhos e quando os abro, ele já
está diante de mim, retirando a lanterna da minha mão. Merda.
— Você é feio ou algo assim? Por que não posso ver o seu rosto?
Ele não ri, mas há um rosnado lá, uma espécie de resposta, o mais
perto do humor que alguém como ele é capaz de chegar.
— Eu sei que você gosta disso, de não ter controle sobre nossa
interação, de não me conhecer, de não saber se é seu último dia ou não.
— Sei que não vai me matar.
Ele envolve minha garganta em um aperto, me fazendo dar alguns
passos para trás e colidir com as prateleiras.
— Acha que só porque a quero pra mim que pegarei leve? Que sinto
algo? Eu conheço você, Annika, sei qual é o seu tipo, vingativa, você tem
sede de vingança, é movida por ruindade, você é quase como eu, não é uma
boa garota, é alguém que merece isso.
Quero saber porque ele havia me apelidado de delatora, talvez ele
soubesse que no passado eu já havia chamado a polícia para o grupo de
traficantes e culpado um vizinho ruim que me espiou no banho. Ou quem
sabe é porque ele havia cavado minhas merdas fundo o bastante para
descobrir sobre as indústrias.
— Podia ter corrido naquela noite. — Ele me gira, colando o corpo
no meu de uma forma que dói assumir que esperei que ele fizesse. — Mas
você ficou.
Engulo em seco.
De uma forma inexplicável, mesmo que ele seja um assassino frio
que ama jogos mentais, eu sinto uma espécie de alívio perturbador por ser
meu stalker aqui.
— Eu estava em choque.
Meu corpo inteiro está trêmulo quando ele corre a língua sobre a
veia pulsante do meu pescoço.
— Não. — O rosnado lento vem junto com sua mão deslizando para
dentro da bainha da minha blusa de lã. — Você queria ver porque sabia que
ele merecia morrer.
Não há luvas, ele apenas escorrega a mão gélida espalmada sobre
meu abdômen, ela é tão grande, os dedos tão longos que a ponta do polegar
toca a curva inferior dos meus seios sem nenhum tecido de proteção.
— É o que todo estuprador merece.
O corpo do meu perseguidor se retrai, quase como se algo lhe
afligisse.
— E você, o que você merece por ser uma rebelde vindo até aqui?
— Só queria alguns livros.
— E os tem, mas esse lado da cidade é arriscado demais, eu não
poderia te proteger de todos os demônios que andam pelo solo leste.
— Me proteger? — engasgo, a voz cheia de medo e anseio. — É
você quem tem me perseguido e feito mal a mim.
— Hum... — ele geme. — E ainda assim você tem levado suas mãos
entre as pernas no meio da noite pensando em mim.
Silêncio.
Choque.
Vergonha.
Humilhação.
— Vou chamar a polícia se entrar na minha casa outra vez — digo,
cheia de coragem.
— Sim, stukach, por que não faz isso?
A língua dele corre sobre minha bochecha, como em meu maldito
sonho, roubando lágrimas que eu nem sabia que estavam escorrendo.
— Por favor, me deixe ir.
— Eu deixo — ele diz. — Se assumir que era eu em seus sonhos,
que gosta dos meus jogos mentais, que sente prazer em esperar por mim.
Meu coração acelera, eu sinto coisas que deveria me envergonhar de
sentir por alguém como ele. Tento acertar uma cotovelada em seu abdômen,
mas ele é firme como rocha e somente o faz gemer de prazer e satisfação.
— Assuma, Annika, assuma e solto você.
— Nunca.
Quando a boca dele toca a curva do meu pescoço e ele agarra meu
seio esquerdo, arqueio minhas costas involuntariamente, reflexo do toque
que desafia todas as lógicas, razões e qualquer resquício de bom senso que
tenha me restado. A mão dele desliza para dentro da minha calça, entre as
pernas, eu já estou molhada lá quando seus dedos deslizam sobre minha
abertura e isso o faz gemer. Mortificada, mas excitada com a aura insana e
sombria, deixo a cabeça cair para trás, apoiando no peito firme dele.
Ouço quando meu stalker funga em meus cabelos, registrando o
cheiro do shampoo que uso, eu me pergunto se ele quer saber qual marca é,
se compraria um frasco e usaria para se masturbar no banho enquanto pensa
em mim. Quero saber até onde vai sua obsessão, se isso tudo é apenas para
infligir algum medo ou se ele realmente gosta de fazer isso.
O membro duro atrás de mim parece responder a minha pergunta.
— Porra... Nem precisa dizer nada, sua boceta entrega tudo o que
tenta omitir.
— Por favor...
Eu nem sei pelo o que estou implorando.
Seria menos humilhante dizer que é para que ele me liberte.
— Conte pra mim o que havia em seus sonhos. Era a minha mão
entre suas pernas? Minha língua? Eu a estava fodendo por trás?
Solto um gemido, ele morde meu pescoço, onde a veia pulsa. A mão
livre esmaga minha garganta. É como se meu stalker pudesse ler minha
mente, como se estivesse recriando o sonho que tive na noite passada. Eu
não ficaria surpresa se lavanda, de repente, começasse a cair do céu.
O indicador e dedo médio deslizam para dentro, tranco as pernas, o
corpo inteiro trêmulo, ele usa minha lubrificação para corrê-los sobre a
fenda, para cima, para baixo, para cima de novo, eu começo a me mover,
odiosamente, faço isso de uma vez para provar a ele que não o temo, que
não sou fraca.
— Isso, como a vagabunda que é. O que mais uma boa garota
estaria fazendo do lado leste? Hum?
Apenas atrás de alguns livros.
Mas quem se importa? Ele está determinado a fazer isso até o fim, a
quebrar minha mente.
— Quando a hora chegar, terá o que merece — murmuro, a voz
embolada e trêmula.
— Até lá, estará implorando para ter minha mão entre suas pernas
no fim de cada noite.
— No inferno que eu vou.
O aperto na garganta me faz inclinar a cabeça, eu tento enxergar seu
rosto, mas é escuro demais e além disso, perigoso também. O que ele faria
comigo se eu descobrisse sua identidade?
— Goze, não lute contra isso.
Se eu nem ao menos lutasse contra a forma como me sinto, então
que tipo de pessoa eu seria? Talvez ainda pior do que ele.
— Quando eu descobrir quem é, será o seu fim.
Ele apenas continua a mover a mão habilidosamente, a imagem viva
do sonho no casebre preenche minha mente enquanto mantenho os olhos
fechados. Ele era pior lá, na minha imaginação, mas esse aqui está longe de
ser bom. Ainda assim, meu corpo reage às duas versões, não deveria, mas
ele reage, talvez pelo tempo desde a última vez que estive com alguém.
Talvez porque minha mente é tão perturbada quanto a dele e estou
descobrindo isso agora.
De alguma forma, a respiração ofegante em meus ouvidos e a ereção
pressionando minhas costas delata que o que quer que isso seja, uma
vingança, uma prova ou um passatempo, ele também se sente afetado.
Meu corpo inteiro treme com o orgasmo que vem, deixando um
rastro quente em meu ventre, garganta e bochecha e tão rápido quanto eu
chego lá, a vergonha outra vez me atinge. Eu deveria provar a ele que não
sinto nada, que está nisso sozinho, que é um fodido doente, o problema é
que seus dedos molhados são a prova do contrário e quando ele os leva até a
boca, eu não deveria, mas sinto algo queimar em meu estômago com o som
do gemido que ele solta ao fazer isso.
Meu stalker afrouxa o aperto, como se ele tivesse acabado de provar
o que queria e agora eu não tivesse mais nenhuma utilidade.
— Vá para casa. Não chame atenção. Se alguém tocá-la, cada morte
como consequência será sua culpa, você não deveria estar desse lado da
cidade.
Ainda estou processando o orgasmo quando ele diz as palavras,
sobre tudo o que aconteceu e o que ele acabou de dizer e que deveriam me
deixar irritada e inconformada, eu me pergunto porque ele não me beijou.
— Não há nada pior que poderiam fazer comigo que você não tenha
feito.
Ele ri. Não é bem um riso, é uma lufada de ar que deixa seus
pulmões como um rosnado rápido.
— Minta para si mesma se isso for te fazer sentir melhor.
E então, ele se vai.
Eu deveria ter assumido os negócios quando me formei, deveria ter
estado à frente das indústrias quando tive minha reunião com os advogados
do meu pai, mas não o fiz, eu apenas decidi que o que acontece do lado de
fora da Granitsa poderia esperar mais um pouco, os problemas que me
fizeram desacreditar da bondade e boas intenções, no meu próprio pai antes
dele morrer. Problemas que eu não sabia que existiam até Roman me
mostrar, problemas que eu só vi porque era alguém que frequentava o oeste
com frequência e via o que o povo de lá passava e como as industrias
poderiam ter melhorado isso em vez de lucrar sobre suas fomes e péssimas
condições.
Eu adiei quanto pude, e quando chegou a hora, decidi nomear
Anatoli para liderar as indústrias, ele foi o braço direito do meu pai e a
pessoa mais capacitada para estar no comando. Eu nunca quis isso, nunca
quis fazer parte de nada do que ele construiu e também nunca tive a opção
de seguir um caminho diferente. Eu decidi cursar uma faculdade perto
porque não podia deixar minha irmã e porque depois que nosso pai morreu,
minha mãe já não era mais a mesma.
E então tudo ruiu outra vez, todos se foram, corpos ou mentes, eu já
não era mais a mesma pessoa há um ano e me tornei ainda mais frio e
impenetrável ao longo dos últimos meses.
Agora, eu havia finalmente assumido as indústrias, porque apesar de
lutar contra isso, é meu legado e eu havia assumido pela primeira vez.
Tenho dois objetivos a partir de agora, os negócios e Roman. Seja onde
aquele puto estiver, sei que não há nada que o faria partir sem se despedir,
ele nunca deixaria seu gato fodido, mesmo que eu já tivesse feito uma
promessa a ele um dia e é por isso que tenho vivido os últimos meses. Me
inscrevendo em lutas ilegais e apanhando até aprender a bater de verdade,
eu fiz isso ao longo de dois ciclos e estou fazendo de novo, dessa vez com a
intenção e estratégias para chegar até o fim, mesmo que a luta final só acabe
quando um dos lutadores estiver morto.
As lutas acontecem em ciclos trimestrais, ou seja, uma competição
por estação, eu tenho vindo há dois ciclos, me tornado melhor, feito
perguntas sutis, tentando rastrear qualquer pista que me levasse até Roman,
mas nada, eu não tenho absolutamente nada além de ódio absoluto e falsos
indícios que não me levaram a lugar algum.
Os lutadores são na sua maior parte, homens trazidos pelo rekruter,
a pior espécie, foragidos incriminados pelos piores tipos de crimes,
assassinos, pedófilos, estupradores. Alguns de nós até parecíamos decentes
do lado deles e saber que um morreria e que seu corpo seria engolido pelo
Poço trazia um pouco de conforto e muita satisfação para alguns de nós.
Eu tinha os meus próprios motivos, havia tirado a vida de um
homem há alguns dias porque era uma data fodida e meu ódio falou mais
alto. Eu achei que pudesse lidar melhor com isso quando chegasse a hora e
não levá-los à morte no Poço, era algo que eu precisava me conter porque
me faria estar desclassificado, já que a morte era algo destinado à luta final.
O vencedor saía com uma bolada de dinheiro, apesar de que o título
de assassino seria carregado para sempre consigo, nem todos se importavam
com isso, alguns deles só incluiriam mais um a uma lista imensa. Eu havia
conseguido isso antes da luta, por um momento de fraqueza, por achar que
isso me faria sentir menos, que eu a estaria vingando. Só que eu não pude,
nem todo o sangue em minhas mãos, nem mesmo a sensação dele correndo
sob as mangas do meu sobretudo em direção ao cotovelo quando ergui o
braço.
Nem quando eu me livrei do corpo em Ozero, o lago localizado
dentro de Kupol, a floresta do lado de cá da muralha, que assim como a
Granitsa, não permite que o norte se misture com o resto. Era onde o pior
tipo de gente se livrava de qualquer prova que o incriminasse.
O lago era usado para descarte de armas, alguns corpos também já
haviam sido desovados lá e a chegada do inverno em breve o congelaria por
bons meses, impedindo qualquer busca. Não que muitas pessoas soubessem
disso, Roman e eu sabíamos porque costumávamos andar por Kupol quase
todos os dias, pulando a muralha onde eu sempre vivi no norte para nos
aventurarmos juntos pelas áreas mais perigosas desde que éramos só
moleques irresponsáveis, quando ele era o filho da nossa empregada e meu
melhor amigo.
Além do mais, quem é que procuraria um estuprador de merda? Ele
era um homem solitário que vivia na área mais depreciada do complexo
habitacional no oeste, um lugar caindo aos pedaços, esquecido por Deus e
por todos. Ninguém procuraria por ele, principalmente nos arredores do
norte, onde a elite vive. Eu havia feito algumas pesquisas.
Foi minha primeira vida tirada, mas não foi a primeira pessoa morta
diante dos meus olhos. Ainda assim, foi a única que senti prazer por não
estar mais viva. Saber que um estuprador não respirava mais o mesmo ar
que eu, por mais poluído que seja o ar em Temnyy Gorod, me faz sentir
prazer.
Estaciono o carro próximo ao prédio abandonado no setor leste, o
local em ruínas é o único acesso ao subsolo, onde o Poço está localizado.
Alguns carros estão estacionados nos arredores graças ao início do ciclo de
Padat’ que havia iniciado junto da estação, como todos os outros. Mais uma
vez, eu havia me inscrito, agora com a intenção de chegar o mais longe
possível, porque quanto mais tempo eu passo no Poço, mais tempo tenho ao
lado de pessoas que conviviam com Roman e que podem estar escondendo
alguma coisa.
Observo os arredores à minha volta enquanto travo o veículo, o
bairro sombrio repleto de propriedades abandonadas possui marcas visíveis
da decadência e abandono. O ar carregado preenche meus pulmões,
contaminação, perversidade, malícia, conspiração. Muita coisa acontece no
submundo de Temnyy Gorod e estou disposto a descobrir se o
desaparecimento de Roman tem algo a ver com o que realmente move esse
lugar. Não as lutas, não o tráfico de armas, mas algo maior.
Adentro o local, embora o edifício possua o lado externo
visivelmente deteriorado pelo tempo e desleixo, ainda tem em sua estrutura,
quartos, salas e alas destinadas aos negócios que movem esse lugar, como
ele fica próximo à fronteira com o norte, a elite acabou instalando
repetidores de sinais de internet na floresta para o caso de algum deles ficar
preso na única estrada que atravessa a Granitsa e leva a elite para fora de
Temnyy Gorod. Dessa forma, o sinal acaba chegando aqui, assim como na
fronteira com o centro da cidade. Mesmo que haja quedas bruscas,
repentinas e oscilações, em Kupol e nas divisas com o leste e centro são as
únicas áreas com internet.
Atravesso o térreo vazio e silencioso, aqui de cima não é possível
ouvir nada do que acontece no subsolo, mesmo que ele esteja lotado agora.
Eu desço as escadas escuras e empoeiradas e atravesso o túnel, passando
por uma entrada que dá acesso ao arsenal que Arkady, o chefe desse lugar,
mantém próximo à entrada para o caso dele ser invadido pela polícia ou
algum ataque inimigo. O túnel arredondado é pouco iluminado, ainda
assim, sei quantos passos preciso dar para chegar até o centro, onde
chamamos de Poço por causa do local onde lutamos.
A área não é apenas conhecida por abrigar o pior tipo de pessoas,
por ser um antro de violência e atividades ilegais, mas por causa das
competições que continuam lotando esse lugar apesar dos anos e da área ser
proibida graças ao solo contaminado. Ninguém aqui se importa com o
câncer porque cada um sabe que está fadado a morrer muito antes de
qualquer doença chegar. Uma palavra errada, uma decisão ruim, uma
péssima escolha e você tem uma faca em sua garganta e seu corpo sendo
arremessado no Poço antes das comportas serem abertas por Arkady.
Os descartes eram impiedosamente feitos em Ozero, um lago
outrora sereno que havia se tornado um depósito de desespero e indiferença.
Os corpos dos homens eram arremessados nas águas como se suas vidas
não tivessem nenhum valor, condenados a serem tragados pelo abismo
negro de indiferença no qual os prenderiam para sempre.
A luz no fim do túnel pode ser vista conforme chego no Poço, mas
ela é quente e fraca, presa nas laterais das paredes. Avisto o bar do lado
direito, Ele rende uma boa quantia em dinheiro com bebida de péssima
qualidade servida a maioria. O uísque caro era reservado apenas para os
tubarões, mas eles estão aqui apenas em datas especiais. Titov é quem fica
atrás do balcão, sempre com a mesma expressão no rosto, silencioso e
observador, ele não é do tipo que arruma confusão, mas é do tipo que não
pensa duas vezes quando alguém lhe faz uma ameaça.
Homens se espalham ao redor do Poço, que fica no centro do espaço
redondo, alguns deles possuem cicatrizes grotescas em seus rostos, em
outros, elas estão logo abaixo da orelha, apenas um aviso, uma segunda
chance. Outros se escondiam dentro de capuzes grandes e escuros,
engolidos pelos tecidos das roupas puídas como se elas fossem apagar seus
passados. Todos eles tinham algo em comum: eram criminosos em busca de
dinheiro.
Roman destoava diante de todos, ele tinha um fodido rosto bonito de
riquinho que só não fazia com que se confundissem por causa de suas
roupas batidas e da reputação que qualquer pessoa nesse lugar conhecia.
Mesmo eu, alguém do norte, ainda conseguia me misturar com mais
facilidade com meu rosto, mas era quando ele ria, porra, quando Roman
sorria, os dentes cheios de sangue depois de uma luta enquanto seu
oponente permanecia no chão, inconsciente, que todos murmuravam como
ele podia parecer perturbador apesar da imagem de bom menino.
Sinto olhares caírem sobre mim e continuo usando a máscara
impassível que havia colado tão forte em minha face que eu já não era
capaz de me lembrar como era antes dela. Algumas mesas e cadeiras
contornam o Poço, mas elas sempre acabam vazias na hora da luta porque
ela é agitada e sanguinária o bastante para deixá-los inquietos, de pé,
enquanto gritam, comemoram ou amaldiçoam sobre suas apostas.
Caminho até o vestiário no canto esquerdo depois do Poço e ignoro
meu adversário já posicionado lá, usando a proteção bucal e um roupão
ridículo. Eu largo minha mala no chão de concreto sujo e úmido e visto a
bermuda colada que deixa todo o resto de pele exposto. Hematomas
arroxeados e esverdeados, quase se curando. Não é a primeira luta nesse
ciclo e não será a última porque estudei as estratégias do meu oponente.
— Se não é nosso cara. — Arkady acende um cigarro, eu encaro sua
mão, não há tempo para fumar um.
— E aí?
Ele é o organizador desse lugar, um homem magro quase na casa
dos cinquenta que desafia todas as probabilidades. Ele deveria estar morto,
por causa do câncer depois de passar tantos anos no subsolo ou por causa
dos problemas em que se mete. Alguém como ele não costuma viver mais
do que trinta, não sem trair algumas pessoas no meio do caminho.
— Tem lutado bem. — Ele puxa o ar com força, mantendo um
sorriso malicioso repuxado, fazendo a cicatriz em formato de meia lua que
misteriosamente surgiu em sua bochecha esquerda, se aprofundar. — Há
grandes apostas sobre você.
Assinto, apesar de não ser tão bom quanto Roman, eu havia me
preparado por meses, lutado até perder a consciência, aprendido técnicas,
lido, replicado o que aprendi, havia fortalecido meu corpo e preparado
minha mente.
— Vou dar o meu melhor essa noite outra vez. — Faço meus
alongamentos aqui mesmo.
Quando trocamos um olhar, a escuridão em seus olhos quase sugere
que ele guarda um segredo que eu gostaria de saber. No passado, eu havia
perguntado a ele sobre Roman, mas depois de uma resposta que apesar de
não parecer honesta e mesmo assim eu ter fingido que acreditei, decidi me
inscrever no primeiro ciclo só para continuar vindo aqui, conquistar sua
confiança lentamente.
— Tá atrasado. — Ele olha no relógio.
— Ainda tenho um minuto — murmuro, sem olhar em lugar algum.
Arkady me encara por um segundo antes de assentir, ele não gosta
disso, da minha falta de emoção, mas está acostumado a lidar com gente
pior, com quem mal pode se conter por dois segundos antes de cravar uma
lâmina em alguém só por um impulso que não foi capaz de controlar.
— Boa luta. — Ele dá um tapinha em minha nuca quando passo.
Quando atravesso a multidão barulhenta, apesar do frio, há gotas de
suor em minha testa e elas quase me fazem parecer humano por alguns
segundos. Com um cumprimento rápido, meu adversário começa a pular em
aquecimento, fazendo um movimento de boxeador. Estalo meu pescoço
lentamente, sentindo o alívio me atingir enquanto me preparo para a luta
que, apesar de muitas vezes ser cansativa, a dor também me faz sentir
melhor. Um jogo sujo onde a dor e a violência se misturam em supremacia.
Ele não é um lutador, é alguém que precisa de dinheiro e está
disposto a ir até a luta final para chegar nele, só que ele também é um
usuário e usou alguma merda hoje, posso ver em suas pupilas, na forma
como não consegue parar de se mover. Continuo imóvel, observando, os
pés posicionados, o peso distribuído como deve ser. A atmosfera à nossa
volta é densa, carregada e as pessoas gritam palavras imundas, ameaças ou
incentivos. Eu continuo concentrado no homem diante de mim e quando o
sinal é dado e ele começa a se mover ainda mais depressa, continuo parado.
Eu vejo seu peito se mover em uma respiração ofegante, o suor
escorrendo sobre a testa dele, gotas grossas na pele suja. Não conheço seus
crimes, mas conheço os erros que ele comete no Poço, ele é apressado
demais. Quando meu oponente avança sobre mim, uso o peso necessário no
pé certo e movo meu braço em um gancho que o faz ser jogado para trás,
primeiro a cabeça tomba, depois ele inteiro.
Espectadores famintos por sangue e violência urram em protesto,
outros por pura diversão e surpresa por ter acabado tão cedo. Talvez eu
devesse ter me esforçado um pouco mais, mas precisei mostrar a eles que
dessa vez é diferente, que estou mais treinado e forte e vim para passar mais
tempo. Além disso, não quero me machucar desnecessariamente, tenho
bastante hematomas e pretendo me recuperar bem até a próxima luta.
Meu oponente ainda está apagado quando caminho para fora do
Poço, mas um dejá vù me faz virar a cabeça em sua direção outra vez. Ele
está sobre a comporta que dispensa os corpos sem vida para o fundo, mas
ela não se abre porque ele não está morto e porque isso só pode acontecer
na última luta. Eu conseguiria? E se a pessoa disputando comigo não fosse
um fodido estuprador? Eu havia matado um há alguns dias e por mais fácil
que pensei que pudesse ser, ainda assim eu vejo seu rosto antes de dormir.
Há algo em tirar uma vida que muda você, talvez seja a alma que perde no
processo.
— É, você tá ficando bom, hein? — A mão de Zakhar, capanga e
braço direito de Arkady, pousa em minha nuca, quase ameaçadoramente.
É o mais amigável com alguém além de Arkady que ele pode ser,
além disso, Z também não gosta das minhas poucas palavras, nem de tentar
adivinhar o que estou pensando. Eu teria uma bala na minha cabeça e as
portas do Poço se abrindo para mim se ele soubesse.
— Tô até merecendo uma bebida grátis. — Mostro os dentes.
Ele me avalia por um segundo antes de sorrir, um cigarro pendurado
na boca.
— O quê? Seu dinheiro é bom demais pra gastar com a escória?
Balanço a cabeça.
— Talvez ele seja.
Silêncio.
Um, dois, três segundos.
Então, a risada de Arkady vem primeiro, depois a de Z e o resto das
pessoas à nossa volta.
— Ele tá brincando — ele diz, uma mecha do cabelo sujo caindo
diante dos olhos quando ele inclina a cabeça.
O músculo da minha bochecha treme.
— É claro que eu tô.
Mais risadas, então, ele me acompanha até o balcão e um copo com
vodka já está cheio esperando por mim. Eu me sento e ouço à minha volta
cada frase murmurada em êxtase, nenhuma delas é sobre Roman.
Quando sei que não terei nada essa noite, pego minha mala e deixo
o leste em direção a um lugar. Apesar do cansaço, eu sei que posso me
sentar diante de Annika e observá-la dormir enquanto penso, isso tem me
ajudado a colocar meus planos, as informações e meus pensamentos no
lugar. Se ela acordar, talvez eu brinque um pouco com a sua mente também.
Ele veio na noite passada, mas não entrou na minha mente, não me
acordou, não fez barulho algum, meu stalker apenas ficou lá, sentado, me
observando dormir, fingir. Eu acordei com o som do couro do sofá se
movendo e então, permaneci em silêncio, porque queria entender o que ele
fazia enquanto eu dormia. Ele não fez nada. Nem uma palavra, nem um
toque, nem um ofego. Só uma respiração controlada que preencheu todo o
ambiente com a sua força e ritmo.
Eu quis entendê-lo, entrar em sua cabeça, quis fazer perguntas. Eu
desejei pela primeira vez conversar com o homem que tem me perseguido,
atormentado e quebrado minha mente. Quis dar a ele a oportunidade de
fazer isso de uma forma menos dolorosa, mas foi um segundo, apenas um, e
então, eu lembrei o quanto ele me humilhou tentando provar que meu corpo
o queria, que o medo me excitava. Da forma como ele apertou minha
garganta, de como me soltou em seguida, me descartando. Da maneira
como entrou no meu sonho. De como me trata como se eu fosse sua
propriedade, seu brinquedo. Um objeto descartável.
—Terra para Nika. — Faina corre a palma da mão diante do meu
rosto.
— Dormi mal na noite passada.
— E todas as outras das últimas duas semanas? — ela brinca.
Eu gostaria de dizer a ela que, na verdade, havia sido as últimas
dezoito noites, mas quem está contando? Além do mais, eu teria que
explicar tudo e eu não poderia colocar Faina nisso.
— Como estão as coisas em casa? E com o Viktor?
Faina dá de ombros.
— Tenho pensado nisso.
— E...?
Ela risca em sua prancheta, depois de conferir uma série de fileiras,
contando a mercadoria.
— Hum... Eu vou fazer isso.
— Vai casar com ele?
— Gosto dele.
Dou a ela um olhar questionador.
— Eu gosto mesmo, Nika, talvez eu não me casasse com ele tão
cedo em um mundo diferente, em um país ou uma situação diferente, mas
sim, eu ficaria com ele, eu só escolheria fazer isso mais devagar.
Faina não é uma leitora assídua, se ela fosse, saberia que quando
estamos apaixonadas nós atropelamos tudo porque a única coisa que
queremos é ficar juntos com quem amamos. De qualquer forma, leitora ou
não, como eu saberia? Nunca havia me apaixonado, talvez o que eu
encontrava nas páginas dos livros não passasse de mentira. E também tem o
stalker, como eu podia julgá-la por qualquer decisão ruim depois de gozar
nos dedos do homem que tem me perseguido? Eu sou uma vergonha, uma
farsa.
— Só... Dê o fora se não estiver te fazendo bem em algum
momento.
Ela assente, apesar de que nós duas sabemos o quanto isso é difícil.
Em Temnyy Gorod, quando se acha alguém para dividir as dificuldades,
dificilmente você se livra dela, porque é quase impossível viver com apenas
uma renda quando se tem mais pessoas em casa. Eu consigo sobreviver
nesse lugar porque tenho uma casa, um emprego e sou sozinha, mesmo que
ganhe pouco aqui e viva para o trabalho, ainda assim não passo
necessidades, apesar de que não faço ideia de como vai ser quando precisar
de um telhado novo ou alguma manutenção cara, já que não tenho
economias.
— Eu vou — garante, e mesmo assim, não me sinto aliviada.
— Vou estar sempre aqui, você sabe, para ouvir sobre as coisas boas
ou se quiser surtar quando estiverem ruins.
O sinal ressoa através de todo o estoque e Efim é o primeiro a
caminhar em direção à saída, ainda de óculos e capacete, estranho ao ponto
de só tirá-lo quando está diante do armário. Ele sempre faz isso e ele quase
sempre também troca um olhar com Dimitri.
— Obrigada. — Faina envolve um braço na minha cintura e nós
caminhamos juntas.
Diante dos armários, jogo meus objetos de proteção dentro dele,
itens que só obtive porque lutei pelos nossos direitos já que nenhuma
indústria de Temnyy Gorod se importa com a segurança de seus
funcionários a menos que eles ameacem fazer alguma coisa a respeito disso,
como eu. De qualquer forma, essa cidade é só um reflexo do resto do país,
que pouco se importa com os direitos humanos.
Dimitri avisa Faina que espera ela no carro e segue próximo a Efim,
encaro minha amiga, quando os dois começaram a ir para casa juntos, achei
que tivesse algo acontecendo entre eles, mas não, nunca aconteceu e talvez
agora eu saiba o motivo.
— Dimitri é gay? — pergunto.
Faina fecha o armário, sustentando um sorrisinho de lado, é algo
incriminador, mas há uma parcela de tristeza brilhando em seus olhos.
— Achei que você perceberia bem antes.
— Não sou tão boa fofoqueira quanto você.
Ela dá de ombros.
— Você sabe como as coisas funcionam desse lado do mundo.
Para um país que não se importa e compromete os direitos humanos,
a comunidade LGBTQIAP+ sente na pele a falta de recursos, direitos e
olhar sobre eles. Pessoas eram mortas na rua por usarem as cores da
comunidade e isso não era lido nos jornais que eu comprava dos garotos na
minha porta, vinha de pesquisas que eventualmente eu fazia quando me
aventurava pelas áreas com internet, por mais perigosas que elas fossem por
causa dos Marodey.
Moradores de Temnyy Gorod precisavam de privilégios e contatos
para deixar a cidade e ter uma vida melhor, mas pessoas da comunidade
LGBTQIAP+ precisavam deixar o país para viver em paz. Pensar na
comunidade que vive nessa cidade aperta ainda mais meu coração, é um
problema duas vezes maior, além da fome, eles também precisavam viver
de aparência, escondendo de todos suas próprias identidades. De um lado,
pessoas que mal se conheciam porque não tinham acesso à informação, do
outro, pessoas ignorantes pelo mesmo motivo e influenciadas por um
governo mesquinho e preconceituoso.
— É, eu sei.
— Às vezes, eu vou com Efin até o apartamento do Dimi, fico na
sala assistindo a filmes, só para que eles tenham algum tempo juntos. Há
um vizinho fofoqueiro no andar dele e Efim mora com os pais, então, é o
único lugar que podem se encontrar — ela murmura.
— É uma boa amiga também, apesar de fofoqueira.
Ela não me pede para guardar segredo, porque me conhece bem.
— Falando em fofoca... — Faina sussurra o mais baixo que pode. —
Você viu o carro de Demyan? Ele está por aqui hoje.
— Demyan? O que ele estaria fazendo aqui?
Todo mundo sabe que ele havia deixado alguém no comando das
indústrias em vez de assumir os negócios do pai. Me pergunto se ele havia
mudado de ideia, se ele havia finalmente assumido suas responsabilidades.
— Assinando alguns papéis? Dando alguma ordem interna? Ele
pode não estar à frente de todas as decisões, mas com certeza ele ainda é o
chefão do sul.
Chefão no sul, príncipe do norte, um marginal no oeste. Demyan
Petrovich continua reinando em todos os territórios da cidade, mesmo que
seu melhor amigo esteja desaparecido.
— Se ele quisesse assinar algo, com certeza faria isso com seu rabo
aquecido por cobertores de luxo.
— Se ele se importasse com o frio, também não teria atravessado a
cidade a pé tantas vezes ao lado de Roman durante a Noite Longa.
No inverno rigoroso, a cidade testemunha um fenômeno
extraordinário e raro conhecido como “Noite Longa“. O acontecimento é
resultado de uma conjunção única de fatores geográficos e climáticos.
Durante essa época do ano, uma combinação perfeita de latitude,
altitude e condições atmosféricas faz com que o sol desapareça por trás das
altas montanhas que cercam nossa cidade, resultando em uma escuridão
profunda que se estende por três longos meses, tornando a noite quase
eterna.
Durante a “Noite Longa”, mesmo quando é dia, mal conseguimos
enxergar a luz do sol. O céu permanece encoberto por densas nuvens que
parecem absorver qualquer feixe de luz que tenta atravessá-las. A claridade
é escassa, e a cidade é envolta por uma penumbra persistente que suga toda
e qualquer luminosidade.
Sem o sistema de aquecimento, seria impossível resistir ao frio
severo que atinge temperaturas tão baixas. Casas são preparadas para
manter o calor, estoques de lenha são acumulados e lareiras são acesas,
oferecendo algum conforto em meio à escuridão gélida.
— Bom, foda-se, quem se importa com um playboy mimado?
Tem alguns anos que não o vejo, ele nunca se lembraria de mim, da
época que ele estava sempre lá, no final das aulas de Roman, esperando por
ele para saírem pela cidade cometendo crimes. Eu tinha curiosidade de
saber como ele está agora, porque naquela época, mesmo que ele fosse um
riquinho, seu rosto não destoava do resto de nós, havia sempre alguns
hematomas na bochecha e maxilar e ele também usava moletons com capuz
que o engoliam, e mesmo que o tecido não fosse puído como os dos
moradores do complexo habitacional, ainda assim o fazia se misturar.
Quando a última porta se fecha e estamos do lado de fora, o vento
gélido acerta meu rosto como um lembrete do frio que se aproxima. Me
encolho, enfiando as mãos nos bolsos e correndo os olhos pelo
estacionamento até encontrar o carro mais caro, todo preto, películas
cobrindo qualquer indício do que há do lado de dentro. Faina continua
falando sem parar sobre ele, sobre os boatos que se alastram pelo oeste
desde que Roman sumiu: que ele está morto, que Demyan havia perdido sua
alma e havia se tornado alguém frio e impiedoso por algum motivo.
— Não tenha pressa — Dimitri murmura, impaciente, a porta do
carro aberta, o braço sobre ela.
— Como se você tivesse algum compromisso — ela protesta.
— Sim, porque há muito o que fazer nessa cidade em uma quinta-
feira e eu tenho muita disposição depois de um dia inteiro de trabalho.
— Tem o Smorodina — ela diz.
É um bar entre o centro e o leste e a linha que delimita o norte e dá
início a Kupol. Depois da contaminação, todos os outros se tornavam
escombros, abandonados por causa do solo contaminado e a ordem de
evacuação daquela área da cidade, ainda assim, ele é o que divide os
bairros.
— Sim, se você quiser levar umas facadas — ele diz. — Ou acertar
umas por diversão.
Faina dá de ombros.
— Eu esfaquearia algumas pessoas por prazer. — Ela beija minha
bochecha antes de caminhar até o carro.
Efim entra no carro enquanto balanço a cabeça e me despeço dos
três, caminhando a passos lentos por causa do cansaço, observo o carro de
Dimitri atravessar a saída. O cão está silencioso essa noite e o guarda
noturno puxa o portão com a mesma animação para fechá-lo. Ele deixa
apenas uma fresta e espera por mim. Do meu lado direito, o som de um
isqueiro chama a minha atenção e olho na direção, eu levo alguns segundos
para juntar um mais um.
Encostado no carro preto, Demyan acende um cigarro, a luz
alaranjada ilumina seu rosto, que agora não é mais o de um garoto. Ele usa
uma mão para afastar o vento da ponta do cigarro quando tenta mais uma
vez acendê-lo, o rosto sendo iluminado de novo. Os olhos dele encontram
os meus, ele continua com o mesmo olhar pesado e ainda o sustenta como
no colégio, sempre mantendo o contato até que a outra pessoa desvie.
Ele segura o cigarro como um baseado, não com o indicador e o
médio, mas com a ponta de quase todos os dedos. Um fio de fumaça sobe
diante de seu rosto e eu só o vejo por causa da iluminação presa nas paredes
da fábrica. Ele também parece muito mais alto agora, menos magro, mais
homem, dentro de um sobretudo que poderia pagar um carro que me levaria
ao centro sempre que eu precisasse. Estou encarando tanto que preciso girar
mais o pescoço a ponto de eu estar olhando para trás, então olho para frente,
desejo boa noite ao guarda noturno e engulo minha vontade de xingar
Demyan pelas nossas péssimas condições de trabalho.
Quando estou na calçada, caminhando em direção à escuridão, giro
a cabeça para o lado só para encontrá-lo me encarando outra vez através do
muro de arame que protege a empresa. Eu posso jurar que seus lábios se
curvam em um sorriso antes dele soltar a fumaça em direção ao céu. Bem,
sim, é a cara dele ser um fodido provocador, por isso Roman e ele eram
melhores amigos, porque os dois eram perturbados no mesmo nível.
Eu só quero saber o que ele está fazendo aqui.
Faina havia contado a Dimitri sobre eu ter descoberto sobre sua
sexualidade no dia seguinte, no sábado à noite, nós quatro nos reunimos no
apartamento dele em busca de um pouco de diversão, algo raro em Temnyy
Gorod. Nós tomamos algumas garrafas de vinho barato compradas no único
mercado no centro da cidade, garrafas demais, e resultou em algumas
batidas na porta que refletia vizinhos revoltados com o barulho. Isso fez
com que encerrássemos mais cedo do que gostaríamos.
Os três me deixaram em casa e voltaram para o complexo
habitacional no oeste e levo tanto tempo para abrir a porta que isso me fez
rir. Quando ouço os traficantes do outro lado da rua, a coragem
impulsionada pelo líquido em excesso me faz voltar até a calçada. Três
cabeças se viram em minha direção quando tropeço, mas nenhum deles diz
nada por um longo tempo ou até eu decidir arriscar minha própria vida.
— Bundões. — Aponto com o indicador, o molho de chaves
balança, pendurado no meu dedo.
— O que foi que a vadia disse? — o que fala demais diz.
— Eu disse que são bundões — repito, cheia de coragem e sem
nenhum amor à vida. — Ele voltou e continua voltando. Vocês não
dominam o sul? — pergunto. — Então, por que não tomam uma atitude?
— Talvez eu deva dar uma lição na vagabunda. — Ele dá alguns
passos na minha direção.
— Não mova nem a porra de um dedo na direção dela. — Eu
reconheço a voz do que manda em todos eles, porque ela é controlada e
baixa, e ainda assim imponente.
— Ela tá nos desrespeitando.
— Sim, ela está e vai pagar por isso, mas não somos nós quem vai
puni-la.
Silêncio.
— Dê o fora.
Meu coração está batendo rápido demais quando dou um passo para
trás, de costas, e outro e mais um, tropeçando na calçada antes de entrar
correndo. Droga. Onde eu estava com a cabeça mexendo com um grupo de
traficantes?
Subo as escadas, me despindo, o frio não me atinge tanto quanto
deveria por causa do álcool e uma parte minha se sente feliz por viver algo
diferente por uma noite, por ser alguém que eu gostaria só por alguns
segundos, alguém forte e decidida, alguém que luta. Minha visão embaçada
se fixa no relógio de pulso antes de retirá-lo, ainda é cedo, eu beberia outras
duas ou três taças, falaria mais algumas asneiras, tomaria mais uma ou duas
decisões ruins.
Quando abro o chuveiro e deixo a água quente correr sobre minha
cabeça, encharcando o cabelo que eu não deveria lavar a essa hora por
causa do frio, ouço um ruído no andar de baixo. Eu penso que posso estar
ficando louca, que meu stalker havia desenvolvido em mim uma sensação
de perseguição que nunca ia embora, que tudo o que faço desde que o
conheci é esperar por ele outra vez. E de novo. E de novo. E outra vez.
Sinto um calafrio percorrer minha espinha, a sensação de ser
observada por ele me faz olhar à minha volta. Às vezes, sinto que ele está
em todas as partes, inclusive aqui, no banheiro, me olhando através de
câmeras, mesmo que eu saiba que não é possível. Tenho tentado não pensar
nele, no orgasmo que tive durante aquele sonho e na biblioteca, em como
deixei que um assassino, uma pessoa ruim, imoral e perturbadora fizesse o
que queria comigo. Em como gostei.
Penso em todas as vezes em que encontrei um galho de lavanda
sobre a minha cama e o imaginei aqui no meio da noite, sentado em meu
sofá, me olhando e fazendo planos comigo. Planos que provavelmente
começam com ele me usando e terminam com ele desovando meu corpo.
Será que ele me daria um orgasmo antes? Ou será que o dia da minha morte
seria um dia apenas destinado a isso?
A luz apaga e a água fica gelada imediatamente, fecho o registro o
mais rápido que posso, praguejando. Tateio a parede em busca da toalha que
sempre mantenho pendurada no gancho, mas não a encontro. Merda.
Continuo movendo minhas mãos, nua, enxarcada e morta de frio, em busca
de uma lanterna, sempre mantenho uma no banheiro, no entanto, minha ida
até a biblioteca havia me feito retirá-la do lugar e meu stalker também havia
arrancado-a das minhas mãos naquela noite.
Um barulho no andar de baixo faz meu coração parar, tento me
convencer de que é apenas a minha imaginação, o medo tentando me
enganar, eu havia confrontado um grupo perigoso de traficantes e se fosse
um deles? O som de um objeto de vidro caindo no chão e se despedaçando
ecoa por toda a casa, me trazendo a certeza absoluta de que tenho
companhia.
Ao levantar, bato a testa na ponta do armário aéreo que esqueci
aberto quando comecei a procurar a lanterna. A dor aguda faz meus olhos
se encherem de lágrimas e tranco o ar, me recompondo, antes de abrir a
porta. As dobradiças sem lubrificação me denunciam, então corro nua até o
quarto e arranco o lençol branco da cama para me enrolar nele.
O frio machuca minha pele, mas o medo que sinto nesse momento
faz minha adrenalina subir iminentemente. Algo escorre sobre meu rosto e
pinga sobre o lençol preso diante de meus seios, mesmo na escuridão, vejo
o círculo escuro, é sangue. O local onde bati havia aberto um ferimento.
Passos no corredor me fazem ser mais rápida, eu tento empurrar a
porta, mas alguém se mete no meio dela.
— Vai embora! — grito.
Seja quem for, ele chega até mim, esmagando minhas bochechas
com a mão. Eu sinto o cheiro da lavanda e eu não deveria, mas sinto alívio
também por ser ele.
— É a porra da segunda vez que fala com eles — ele diz.
Meu coração acelera, tento empurrá-lo, mas ele nem se move.
— Um bando de bundões — resmungo, virando o rosto de lado para
me libertar de sua mão. — Eles deveriam se livrar de você.
E então, ele ri, é um fodido rosnado baixo, mas há humor nisso.
— Acha que qualquer um deles poderia contra mim, stukach?
Meu stalker se inclina, me puxando outra vez por um aperto forte na
garganta, engasgo, mas congelo quando ele se aproxima, o nariz colado no
meu. Tento enxergar algo, mas além da escuridão, ainda há o capuz enorme
que faz mais sombras sobre seu rosto. Eu acho que ele vai me beijar, mas
em vez disso, apenas funga.
— Andando por aí com homens... Bebendo com eles... O que mais
você fez?
— O quê? — Empurro seu peito.
Ele me arrasta até a parede, minhas costas batem e solto um
grunhido.
— Sei cada passo que dá — ele diz. — Ainda não entendeu?
— Não sou sua propriedade.
— É minha até eu disser que não é mais.
— Até me descartar como uma mercadoria quebrada? O que vai
fazer comigo depois, me matar? — pronuncio entredentes. Ele fica em
silêncio por um tempo, talvez pensando em uma resposta, eu não tenho
como saber, tudo nele parece projetado. — Talvez eu mate você antes.
— Sim, por que não tenta fazer isso agora?
Quando ele me empurra de novo, deixo um gemido escapar, ele
deveria ser de medo, desespero, de dor, mas não é.
— Você me deve uma lanterna.
Ele para por um segundo, pensando sobre isso.
— Pra você apontá-la na minha cara?
— O que eu veria se fizesse isso?
— Tá curiosa sobre mim? Acha que preciso ter uma boa aparência
pra te fazer gozar?
Ele tem razão, ele não ser decente já é uma grande questão, um bom
motivo para eu não ter feito isso.
— Vá embora. — Empurro outra vez. — Pare de me perseguir, de
vir até aqui, de se sentar como um fodido psicopata e me olhar dormir.
Tenho um segredo seu, mas não sei quem você é e ele estará a salvo
comigo. Se eu descobrir sua identidade, mesmo sem querer, vai ter um
motivo pra me matar. Isso não precisa acontecer.
Ele puxa a mão que seguro o lençol e ele cai aos nossos pés, fazendo
um farfalhar ecoar através do silêncio. Quase nada pode ser visto, a luz
apagada e as cortinas fechadas impedem. Ainda assim, a respiração dele se
torna lenta e instável, não robótica como sempre, mas como se, de alguma
forma, ele tivesse sido atingido. Meus cabelos molhados estão caídos sobre
meus seios quando espalmo as mãos sobre seu peito, sentindo sua
musculatura firme.
— Vá embora, por favor — estou implorando agora, a embriaguez
havia se curado em tempo recorde, talvez pela adrenalina.
— É só parar de se conter e assumir para si mesma que gosta disso e
então, todos os problemas sairão do nosso caminho.
— Precisa ouvir, não é, porque é precisa ter o ego acariciado.
— Não, stukach, eu não preciso ouvir porque eu sei. — Ele enfia a
mão entre minhas pernas e meus joelhos vacilam. — Tem uma boceta
delatora também, como você.
Acerto um soco em seu ombro, mas ele apenas se move alguns
centímetros, inabalável, intocável. Eu desejo saber algo sobre ele, estar um
passo à frente, usar isso contra ele e vê-lo quebrar. Eu tenho um segredo,
mas isso não é o suficiente, eu quero algo que o machuque, que o faça
queimar.
— Não fale mais com os traficantes, não mexa com eles.
A mão dele se move lentamente, eu tento me afastar, mas acabo com
os dedos enrolados no tecido grosso do moletom que ele usa por baixo de
um casaco aberto. O cheiro dele não deveria, mas me faz perder os sentidos.
O aroma de um sádico impenetrável cheira como deveria, uma combinação
amadeirada com algo a mais, algo cítrico talvez, ou quem sabe o cheiro da
lavanda estivesse me deixando confusa. Isso e o fato dele estar com as mãos
em mim agora.
— Não vou abaixar minha cabeça para ninguém.
O nariz dele corre sobre minha bochecha, eu o sinto deslizar com
facilidade por causa da linha de sangue que escorreu até meu seio direito.
Ele funga como um fodido, como se isso o excitasse mais.
— Eu não pedi que abaixasse — continua murmurando, a voz rouca
e baixa. — O que aconteceu com o seu rosto?
Mesmo sabendo que havia acabado de enfrentar os traficantes, ele
não os acusa, não direciona a conversa por esse caminho, é como se ele
estivesse lá fora e soubesse que não foi eles. Ou talvez ele apenas não se
importe.
— Eu bati a cabeça. — Continuo tremendo, o frio é tão intenso que
machuca minha pele. — Por favor... Só me deixe em paz.
Ele não o faz, porque quando digo isso, inclino os quadris para
frente de forma involuntária contra seus dedos, estou pedindo para ele me
deixar, mas meu stalker sabe que não é agora, nesse segundo.
Meu corpo está tremendo quando ele inclina e me ergue,
empurrando para o chão alguns itens sobre minha cômoda antes de me
colocar sentada sobre ela.
— O que vai fazer?
Ele não responde, mas o rosnado longo que deixa escapar preenche
o cômodo silencioso. A boca dele toca meu seio esquerdo primeiro, a língua
quente brinca com a ponta dura e sensível. Lágrimas escapam dos meus
olhos, elas são de vergonha por quem me tornei. Por permitir que alguém
como ele faça o que quiser comigo, que me use mesmo sabendo que irá
descartar depois, como um objeto usado e gasto.
Eu penso no que o traficante me disse na primeira vez, sobre deixar
que ele me use, sobre eu abrir as pernas uma vez e então ele ficará
entediado e não voltará. Mas a forma como ele continua vindo, como corre
suas mãos sobre mim, não soa como alguém que se entedia rápido, soa
como alguém apegado aos seus objetos. Talvez ele só goste de brincar e
continue fazendo isso por muito tempo.
Não é sobre sexo, é sobre poder e alguém como ele ama reinar.
Ele lambe os respingos de sangue pouco acima do meu seio,
provando o gosto, é sua forma de parecer ainda pior, de soar ainda mais
aterrorizante, de fazer promessas silenciosas. Quando ele continua
descendo, sobre meu umbigo e osso do quadril, tento não soar ansiosa, tento
fazer parecer que as mãos em sua cabeça, sobre o tecido do capuz, são
apenas para empurrá-lo, mais é mais uma mentira que ele não acredita e
quando a língua dele, quente e úmida, alcança o meio das minhas pernas, as
lágrimas se tornam mais grossas.
Prazer absoluto.
Eu havia estado com apenas um cara a minha vida inteira, era só um
garoto idiota e inexperiente fazendo e nós acabamos em um beco no oeste,
atrás de um dos prédios que compõe o complexo habitacional. Ele nem
sabia o que estava fazendo, muito menos eu, mas éramos curiosos, achei
que estivesse apaixonada e tivemos uma oportunidade. Foi ridículo e rápido
o suficiente para que às vezes eu pense que só foi um sonho ruim. Depois
disso, quando fiz dezoito, eu apenas comecei a trabalhar, o sul cada vez
mais se tornava inabitável e quando percebi, era apenas eu no meio de um
monte de indústrias.
Nada de sexo para mim, nada de caras e tenho um motivo. Não,
obrigada, nem o melhor sexo do mundo me faria ceder e estar suscetível ao
fracasso. Mas agora isso. O pior dessa cidade, bem aqui, entre minhas
pernas e eu nem posso dizer que não é consensual ou que não estou
gostando.
— Tem um gosto tão bom, stukach, o sabor da vergonha parece
açúcar.
Prendo o soluço que quer escapar, dor e prazer se misturam de uma
forma que nunca pensei que fosse possível. As mãos dele afundam na
minha carne, tão forte que sei que deixarão marcas. O dente raspa sobre o
nó cheio de tensão e quando ele afunda três dedos em mim, a sensação de
preenchimento faz meu corpo inteiro arrepiar.
Eu havia lido apenas romances fofos e a maior parte deles era de
época, mas nesse momento, sei que se existisse algo mais sombrio, como
isso o que meu stalker e eu estamos fazendo agora, seria meu tipo de livro
favorito, o tipo que você se envergonha de gostar, o tipo que você lê
escondido, que agradece por não ter uma capa reveladora e que não indica
porque deseja que seja algo só seu, apesar de não se orgulhar.
— Relaxe, Annika.
Odeio a forma como ele pronuncia meu nome, como se fôssemos
íntimos, como se ele não tivesse intenção de parar de vir aqui. Apesar do
quarto estar afundado em escuridão, olho para o teto, apenas para não ver
suas sombras entre minhas pernas. Fecho os olhos, apertando-os com força.
— Por favor... — imploro, mas talvez isso torne apenas as coisas
mais humilhantes.
O sopro de um riso silencioso faz meu corpo se inclinar. Ele enfia os
dedos com mais força, a língua pressionando um ponto que eu não fazia
ideia que podia me dar tanto prazer, apesar de usar as mãos de vez em
quando e de que ele também já havia me feito gozar antes. Mas isso, isso é
algo que se lê, mas que não se faz ideia de como é. Ele me proporciona uma
alta de prazer tão forte que faz a queda parecer bonita.
Só que ela não é, porque embora agora eu esteja aceitando tudo com
a justificativa de que depois lidarei com a vergonha e a humilhação, ainda
assim sei que os dois sentimentos me arrastarão para o fundo do poço, junto
com meus ossos quando ele me matar.
— Você chora e age como se sua boceta não tivesse sido feita para
ser chupada por mim. Só aceite, aceite que gosta disso, que te dá prazer, que
deseja que eu continue voltando porque isso é a única coisa boa que terá
nessa cidade de merda.
Eu faço algo estúpido quando ele cola o rosto entre minhas pernas
outra vez, eu toco seu maxilar e deslizo os dedos sobre a pele e estrutura
óssea marcada e pior, eu faço isso até que a ponta dos meus dedos esteja em
sua boca, até que eu sinta o curvar silencioso dos lábios contra minha carne
úmida. A mão que ele mantém em minha coxa esmaga ainda mais meu
músculo e quando me dou conta, estou pressionando meu corpo contra seu
rosto.
Quando o estrago já está feito, gozo em sua boca, ouvindo os
gemidos dele ecoarem pelo quarto e se misturarem à minha respiração
ruidosa. Quando mais lágrimas escorrem pelo meu rosto e ele empurra
minha mão para longe do seu maxilar, prometo para mim mesma que é a
última vez que ele me usa dessa forma, que lutarei contra o prazer, que
suprirei sua necessidade sádica de provar o contrário para mim. Quando
meu stalker se afasta e dá alguns passos em direção às sombras, me
deixando nua, exposta e com frio, digo para mim mesma que não sentirei
mais vergonha ou remorso e que, em vez disso, o farei queimar também.
Alguém como meu stalker valoriza o controle que possui sobre
situações e sobre as pessoas. Alguém como ele se deleita com a sensação de
autoridade e a influência, encontra satisfação em fazer isso, alguém como
ele até pode fazer por paixão, mas não a alguma pessoa, mas pelos
resultados. Pelo alcance de seus objetivos. Se mantém motivado até o fim
só pelo gosto da vitória e quanto mais difícil alcançá-la, melhor.
Quando meu stalker deixou minha casa há três dias, eu soube o que
ele havia ido fazer lá, ele havia ido me punir por falar com os traficantes.
Ele não havia me machucado fisicamente, mas não havia sofrimento maior
do que sentir prazer no que ele tinha a me oferecer, no que deveria ser
doentio e sujo, no que ainda não deixava de ser e ainda assim, não era o
suficiente para me parar. Ele sabia disso, por isso gosta tanto de provar, não
a si mesmo, mas para mim.
O fato dele ainda não ter ido além é só uma prova de que há muito
pela frente. Ele nunca chegava lá, ele apenas ia e me oferecia prazer sem
exigir nada em troca, porque é isso que o excita, saber que eu não era capaz
de pará-lo, de lutar contra ele, de dizer não. Tudo o que ele fez até agora foi
saborear a vitória, a falta de pressa é só a comprovação de que ele não é
alguém comum, que os jogos mentais são suas maiores preliminares e ele
me quebraria de vez quando terminasse o que quer que estivesse fazendo
comigo.
Por causa de uma ordem interna não identificada, fomos liberados
mais cedo hoje, ainda faltava um tempo antes de começar a escurecer e por
isso tive a ideia de ir até o centro da cidade comprar algumas coisas para
casa, eu pedi uma carona a Dimitri e ele acabou passando na minha casa
antes para que eu pegasse o carrinho que usava para carregar as compras
sempre que ia até o supermercado no centro. Não é um caminho rápido e
fácil para se fazer, mas eu havia feito isso a minha vida inteira, cada vez que
preciso de suprimentos desde que meu pai ainda era vivo.
Quando bato a porta do carro de Dimitri e aceno, uma parte minha
deseja caminhar até a fronteira com o norte, onde se inicia a Kupol e onde
também sou capaz de acessar a internet, mas está escurecendo e não é uma
boa ideia ficar à mercê dos Marodery, principalmente sozinha. Com esse
pensamento, entro no único mercado da cidade. Há quatro caixas, mas só
dois deles estão em funcionamento, as duas mulheres me cumprimentam
com um aceno, pego um carrinho de compras, embora não compre itens
demais por causa da grana curta e da dificuldade de carregá-las para casa.
Quando me dou conta, estou segurando um sabonete de lavanda,
encarando a planta roxa na embalagem como se ela significasse algo puro e
bonito, quando para mim ela tinha outro significado. Trago a embalagem
até meu nariz e fungo, é diferente do cheiro dele, é algo que passou por
muitos processos e alterações até chegar nisso. Ainda assim, há uma
pontada, uma coisa que me faz pensar na última vez que o vi e nas
promessas que silenciosamente fiz para mim mesma.
Jogo duas barras dentro do carrinho e o empurro até onde estão os
shampoos, não é uma surpresa que também exista a essência de lavanda,
mas é uma surpresa que eu o escolha, junto de um condicionador com a
mesma fragrância. Eu havia dito para mim mesma que faria meu stalker
queimar e até poderia demorar para acontecer, mas aconteceria. Começando
com isso, fazendo sua cabeça dar um nó quando ele perceber que não estou
fugindo das lembranças que a lavanda me traz, mas que, em vez disso,
estou me banhando nelas.
Faço o restante das compras o mais rápido que posso para não estar
na rua tão tarde, mas, no último corredor, encontro uma sessão nova de
aromas, uma que com certeza não existia antes, porque eu saberia, já que
amo esse tipo de coisas. Como alguém que não está pensando direito há
quase vinte e cinco dias, tomo mais uma decisão estupida, eu escolho uma
vela aromática que fará a mente do meu fodido perseguidor fritar.
— Boa noite. — Coloco os itens sobre a esteira.
A atendente está mascando um chiclete e passando um pano sobre
seu caixa quando responde com um olhar sobre os cílios.
— Boa noite.
Quando estou na porta de saída com todos os itens dentro do
carrinho, a chuva do lado de fora me faz estremecer e querer chorar.
Observo as pessoas apressadas, algumas entram em seus carros, outras
abrem guarda-chuvas que eu nunca pensaria em trazer porque não fazia
ideia de que iria chover.
Eu penso na possibilidade de fazer isso embaixo de toda essa chuva,
mas está fazendo uns doze graus e não acho que posso chegar até em casa
sem congelar no caminho. O vento forte não ajuda na tomada de decisões,
porque ele me faz encolher e desejar não ter vindo hoje, ainda assim, eu
caminho até a margem onde o telhado termina, encarando a água desabar
sobre o solo empoeirado desse lado pouco frequentado por mim.
Pouco a pouco, a movimentação diminui, assim como a chuva e
quando ela se torna algo mais fraco e estável, algo que sei que será
duradouro e o melhor que terei, eu começo a andar, ciente de que gastei até
meu último centavo e que nada havia restado para que eu comprasse um
guarda-chuva novo. Eu caminho cerca de dois quilômetros debaixo de
chuva, mas nos primeiros cinquenta metros, já estava encharcada.
Sobretudo, camisa de lã, calças, até mesmo minhas meias, quero dizer,
principalmente elas.
— Merda — praguejo mais uma vez, pensando em uma vida fora
daqui, mas também em todas as outras que vivem nesse lugar sob condições
piores do que as minhas.
Um carro passa em alta velocidade, ainda no centro, quase na divisa
com o sul, eu não grito, ofendendo-o por ter me molhado ao passar por uma
poça de lama, porque só Deus sabe quem pode estar dentro. Logo em
seguida, um carro preto diminui a velocidade, parando ao meu lado na
contramão. Eu reconheço o veículo, como eu não reconheceria? O preto
absoluto envolve até o vidro, que abaixa lentamente, revelando um rosto
conhecido e temido nessa cidade.
O rosto perturbadoramente bonito de Demyan Petrovich.
— Entra no carro — ele ordena.
Não é um pedido, soa como algo que eu devo fazer.
— Prefiro pegar uma pneumonia e morrer. — Continuo andando,
sabendo que isso é um erro.
— O que disse?
— Eu disse não, obrigada. Falta pouco para eu chegar.
— Mentira. Eu sei onde mora.
Paro em um tropeço.
— Por que saberia?
Os olhos dele encontram os meus, a luz no centro do veículo está
acesa, revelando um rosto viril que já vi cheio de hematomas.
— É uma funcionária da minha empresa — ele diz.
— Sabe onde todos os funcionários moram?
— Só os que estão no meu caminho.
Eu penso na oferta que recusei, nas coisas que fiz depois por puro
prazer. Nas denúncias que nunca foram levadas realmente a sério. No
protesto que comecei em busca de equipamentos de segurança.
— Entra no carro agora.
Estou tocando a maçaneta antes que ele termine a frase. Eu coloco o
carrinho sobre os bancos caros de couro, a lama se espalha sobre o assento e
quando me sento ao seu lado, ele dá uma olhada sobre o ombro, depois para
mim, o maxilar apertado. Ele sabe que fiz isso para provocar.
— Sinto muito — murmuro, mas soa tão falso quanto o sorriso que
dou em seguida.
Ainda assim, ele encara meus lábios por tempo demais para ser
apenas um encarar. Quando o carro entra em movimento outra vez, Demyan
desliga a luz do teto. O carro começa a apitar por algum motivo, talvez seja
a forma dele reclamar que alguém como eu pisou os pés imundos sobre seu
chão caro.
— Coloque o cinto.
Eu o faço, mas só parece algo para me impedir caso as coisas
fiquem difíceis para o meu lado e eu precise me jogar para fora. Até porque,
nada de bom pode vir de alguém que andou com Roman a vida inteira.
Ele liga o aquecedor e quase solto um gemido com o aquecimento
dos bancos e com o ar quente contra as minhas pernas e rosto. Fecho os
olhos por um segundo, mas quando o cheiro de lavanda atinge minhas
narinas, eu os abro. A vela no banco de trás perfuma todo o carro, me
lembrando que talvez ele apareça essa noite. Quando encaro Demyan de
volta, ele tem os olhos presos em mim, mas os desvia para a direção. O
castanho quase pode ser confundido com mel, mas havia algo mais neles,
um toque de verde que só pode ser visto se prestar bem atenção.
— O que faz desse lado da cidade? — pergunto.
— Negócios.
— Achei que o único negócio que tinha além da Granitsa fosse no
leste.
Demyan abre a boca, mas ele a fecha em seguida, quase como se
estivesse se questionando como sei sobre os seus segredos. Só que eu sei,
mesmo que não se fale sobre as atividades ilegais do bairro contaminado, eu
sei que elas existem porque sou uma boa ouvinte, porque me aventuro há
anos até a biblioteca na fronteira e porque eu havia especulado um pouco
também aqui e ali.
— O que sabe sobre o leste? — ele pergunta, a voz um pouco
abalada.
Corro a língua sobre os lábios, ainda trêmula, a água escorre dos
meus cabelos e cai sobre o sobretudo ensopado, inundando todo o banco.
— Nada que eu deveria.
— Cuidado com o que fala por aí, alguém pode querer calar você.
Eu não digo a ele que já tenho uma pessoa tentando fazer isso e que
dois é um número bem grande quando se trata de colecionar perseguidores.
— Sou só alguém tentando sobreviver nesse fim de mundo.
— Parece alguém que gosta de se arriscar.
— O que sabe sobre se arriscar? É só um garoto mimado que anda
por aí fazendo coisas ruins por prazer.
Quando o carro perde a velocidade, percebo que estamos chegando
na minha casa.
— Cuidado — ele diz, sustentando um olhar ameaçador. — Não
esqueça quem paga as suas contas.
Olho para o banco de trás, onde está meu carrinho. Ficar
desempregada nesse lugar tornaria tudo ainda pior do que é, eu tinha que
aprender a manter minha boca fechada. Só que eu odeio Demyan por um
milhão de motivos e só o fato de estar dentro do seu carro agora é como se
eu estivesse traindo meu pai.
Ele não se move, apenas fica olhando para o lado de fora, só para
não ter que olhar para mim. Eu aproveito para correr a mão sobre a lama
nas rodinhas e espalho sobre a parte de trás do seu banco impecável.
— Isso é algo que não há como esquecer — murmuro, antes de
bater a porta com força, sem agradecê-lo pela carona.
Eu não conheço Demyan de verdade, mas sei que qualquer coisa
que vem de pessoas como ele, acompanha segundas intenções.
Conheço Roman minha vida inteira, eu estava lá quando o ar do
norte, livre de poluição, encheu seus pulmões pela primeira vez. Era quase
como se, naquele momento, ele estivesse fadado a ser um de nós, fazer
parte de um lado da cidade que ele odiava. A elite. Sua mãe trabalhava na
nossa casa, ela fez isso por muitos anos depois do seu nascimento e todos os
dias, Roman estava lá, um pentelho filho da puta quatro anos mais novo que
eu, me seguindo por toda casa, enchendo a porra da minha cabeça com
perguntas que eu não sabia a resposta, brincando a três e criando laços que
eu percebi, ainda na infância, que seriam impossíveis de desfazer.
Mas apesar do quanto nos tornamos próximos e fiéis, havia um
abismo que nos dividia e que, muitas vezes, nos deixava em silêncio porque
não encontrávamos respostas. O nome do abismo era Kupol. A floresta que
dividia a elite da massa, quilômetros e quilômetros de pinheiros verdes
entre Granitsa até a faixa de vegetação morta que faz fronteira com oeste,
centro e leste. A Kupol não era só uma espécie de redoma que a alta
sociedade deixou intocável para separar os dois povos, mas também um
lembrete constante, uma forma de esfregar na cara dos desfavorecidos que
não somos iguais.
Roman nunca se esqueceu disso, nem quando comeu da melhor
comida, nem quando vestiu as melhores roupas, nem quando o nosso
dinheiro nos levou para fora da cidade para algumas aventuras, nem quando
dirigiu os carros mais caros da coleção do meu pai. Ele nunca pôde
esquecer porque, no final de cada dia, ele voltava para o complexo
habitacional no oeste e abria sua geladeira vazia, depois ele tomava banho
em um chuveiro que nunca esquentava o bastante, se deitava em um
colchão velho e gasto e se cobria com uma coberta barata que não o aquecia
o suficiente durante o inverno.
Então, pouco a pouco, nós nos tornamos algo maleável, algo que ia
da elite ao Poço, dois garotos que atravessavam a cidade durante o inverno
severo, fumando, bebendo e falando merdas que nos faziam rir e quase
esquecer nossas diferenças.
Nós ficamos conhecidos no oeste primeiro porque era onde Roman
vivia e porque era onde eu passava muito tempo, ele dominou o território de
lá depois de conquistar respeito de alguns peixes grandes. Então, nós fomos
para o centro, gastar nossos dinheiros, nós fizemos amizades com os
Marodery que, naquela época, saqueavam nos pontos de internet. Depois
disso, fomos apresentados ao leste, conhecemos o Poço, Arkady e toda a
merda que ele nos tinha a oferecer.
Em seguida, veio o sul, as pessoas me conheciam lá por conta das
indústrias, os trabalhadores e poucos moradores do bairro souberam da
existência de Roman por minha causa, os traficantes que dominavam o
território nos identificavam pelos dois motivos, pelo meu sobrenome e por
nossa reputação.
Roman começou a participar de lutas, fazer o que era preciso para
levar dinheiro para sua mãe e eu só ficava por aí, pronto para qualquer
merda que alguém tinha a me oferecer.
Roman fazia isso porque precisava, eu fazia porque gostava.
Nós nos tornamos conhecidos, as pessoas nos chamavam de
príncipe do norte e rei do oeste, mas a verdade é que reinávamos na cidade
inteira.
Durante muito tempo, ouvia que ele me colocou no mau caminho,
que eu o seguia por aí em problemas porque ele era uma má influência, mas
a verdade é que eu sempre fui o pior de nós dois, eu nunca precisei de nada
disso, fazia por prazer. Roman não, ele queria ser bom, ele teria sido o filho
perfeito que meu pai queria, teria sido um bom irmão, alguém pronto para
assumir os negócios, alguém que faz as coisas certas pelas pessoas certas.
Em vez disso, nós dois nos perdemos, nos metemos em tantos
problemas que na maior parte do tempo, estávamos tentando sair de alguma
furada. Eu fui para a faculdade mesmo assim, porque precisava, porque,
apesar de tudo, ainda era filho de quem era e tinha obrigações e deveres. Eu
me tornei um sucessor. Estudei perto, meu pai havia morrido e eu não podia
ficar longe das pessoas que haviam se tornado minha responsabilidade.
Então, tudo desmoronou, as pessoas que eu deveria ter protegido,
Roman. Tudo se foi. E de repente, eu era só alguém ruim sem nenhuma
perspectiva, sem ninguém, cheio de ódio e sede de vingança e meu melhor
amigo, apesar de termos entrado em uma espiral de culpa e ressentimentos,
havia desaparecido misteriosamente depois de entrar em um ciclo.
Ele era tudo o que havia me restado, era a única pessoa que me
conhecia, ele era bom, lá no fundo, e eu não conseguia acreditar que havia
falhado com mais uma pessoa. Eu ainda me sentia morto, eu precisava dele,
nem que fosse para brigar, culpá-lo por algo que aconteceu ou permitir que
ele jogasse toda a culpa que eu sabia que era minha sobre mim.
Meses se passaram, eu havia começado a falar de Roman no
passado, como se ele estivesse morto, como se fosse apenas uma lembrança
e isso aconteceu de forma involuntária, porque é como todos falam dele,
como se todos soubessem de um segredo que não compartilham comigo,
como se ninguém tivesse esperanças sobre sua volta. Mesmo assim, eu
continuo pagando suas contas, alimentando seu gato, lutando no Poço para
obter informações e vivendo no meio de pessoas que poderiam me matar se
conhecessem minhas reais intenções. Por ele.
Roman havia feito uma promessa sobre o corpo sem vida da mãe,
ele prometeu vingar sua morte e nunca deixaria Temnyy Gorod sem
cumpri-la.
Eu não havia desistido de Roman Stepanovich, continuaria atrás
dele nem que fosse pelo seu corpo sem vida para lhe dar um lugar decente
para ser enterrado.
— Tem uma luta em vinte minutos. — Z adentra a sala escura de
cinema.
Um cinema abandonado no leste, fechado depois da evacuação do
bairro. Está caindo aos pedaços, as cadeiras estão cheias de pó e teias, a tela
apagada há anos, as paredes mofadas, úmidas e manchadas formando
padrões irregulares por causa de infiltrações no telhado. Ainda assim,
continuo vindo até aqui quando quero pensar com clareza, quando preciso
de alguma forma fortalecer minha teoria sobre Roman ter sido levado,
porque aqui era um lugar nosso, onde vínhamos para fumar um baseado ou
dois e falar algumas merdas.
— Só pensando um pouco na vida.
O capanga do chefe do Poço me encara, correndo a língua sobre os
lábios e semicerrando os olhos, pensativo. Apesar da escuridão, sei que há
uma arma em sua cintura porque ele é um exibicionista.
— É um cara misterioso, Demyan.
— Faz parte do meu charme.
Meus pés estão esticados sobre a poltrona da fileira de cadeiras da
frente. Roman e eu passávamos horas assim, cheios de porcaria para comer,
erva para fumar e uma lista de decisões ruins para tomar aqui. Era o nosso
lugar, e agora isso, esse filho da puta sorrateiro tirando a minha paciência.
— Eu aposto que faz. — Ele passa sobre alguns escombros que se
acumularam ao longo dos anos.
Me levanto, encarando todas as cadeiras que um dia foram
testemunhas de que esse lugar era cheio, um refúgio para boa parte dos
moradores dessa cidade esquecida sem acesso à internet.
Começo a andar em direção à saída, o ar opressor desperta meus
alertas, não confio nesse homem, não confio em ninguém dessa cidade,
principalmente em Arkady, em Zakhar.
Dou uma última olhada para trás, na recepção escura e vazia, nos
cartazes desbotados nas paredes, no carrinho de pipocas cujo o vidro está
tão sujo que não permite ver seu interior e, mesmo no ambiente desolado e
destruído pelo tempo, encontro a força que preciso para continuar
sangrando por Roman, exatamente como aquele fodido faria por mim.
Dez dias, já tem exatos dez dias que meu stalker não aparece e
tenho certeza que isso faz parte do seu jogo mental. Ele havia me feito sexo
oral sobre a cômoda do meu quarto na última vez que esteve aqui, mas
desde então, ele não havia voltado. Eu acordei no meio de cada noite desde
então, com a sensação de que ele estava no sofá de couro, sentado, me
vendo dormir, só que sempre estava vazio e frio e meu quarto tão silencioso
que me fez sofrer em agonia. Não que eu o quisesse aqui, mas eu queria me
vingar por ele ter me tratado como uma prostituta barata e descartável.
O que meu stalker talvez nunca tenha pensado é que sou uma garota
jovem e entediada, cheia de más intenções e com pouco a perder. Eu não
tinha experiências com homens, depois do idiota que conheci no final do
ensino médio e com quem tive uma rapidinha em um beco, um cara que
nem sequer me fez gozar, não houve ninguém mais, talvez uns três beijos
ruins, uma mão aqui e uma ali, mas nada além disso. Minha falta de
experiência com homens não me torna alguém fácil de enganar, porque,
apesar disso, eu sou uma leitora compulsiva e conheço mais sobre
personalidades e pessoas do que se tivesse uma ampla experiência.
Eu conhecia sádicos através da literatura e queria jogar o jogo dele
porque não é isso que alguém como meu stalker espera de mim. Ele quer
relutância, briga, oposição, eu daria a ele o contrário.
O motivo pelo qual nunca estive com nenhum cara a vida inteira é
simples: se eu podia ter uma vida sozinha e estável, por que eu iria querer
mudar isso? Eu poderia simplesmente escolher errado, ser enganada,
conhecer algum gigolô e quando eu me desse conta, estaria sustentando nós
dois, saindo para trabalhar enquanto ele fica na minha casa até o dia em que
ele se tornasse violento, começasse a me bater e me fizesse sair do meu
próprio lar. Eu conhecia algumas mulheres que passaram por isso, Faina
conhecia outras, a vida em Temnyy Gorod era difícil, incerta e arriscada, e,
bom, os caras legais eram os caras gays.
E se eu tivesse filhos? Sou uma mulher consciente sobre minhas
limitações, sobre as circunstâncias e esse pensamento me faz arrepiar. Meu
filho teria que estudar no oeste, onde fica a única escola. Como eu faria isso
funcionar vivendo no sul? Eu havia dito “não” à compra da minha casa e
duvido que outra oferta seja feita. Não há possibilidades de um futuro em
família para mim e eu nem quero falar sobre o ar poluído desse lado da
cidade. Para quê trazer mais crianças a esse mundo? E por que eu iria
querer ficar com alguém sem nenhum objetivo?
Então não, nunca perdi tempo saindo em encontros, porque eles não
me levariam a lugar algum.
Tomo um banho demorado, o dia no trabalho havia sido puxado
hoje, o carro de Demyan estava lá outra vez. Uma semana se passou desde a
carona que ele me deu e eu ainda queria me esfregar com mais força usando
a bucha de banho para me limpar por causa disso. Por que, de repente, ele
começou ir até a indústria? As pessoas estão falando que ele tem se
interessado sobre os negócios, que tem visitado todas as fábricas, que tem
observado.
Eu queria furar seus pneus só para vê-lo precisar trocar e trabalhar
de verdade por alguns minutos.
Quando saio do banho e vou para o quarto, usando pijamas e
roupão, tento não pensar na última vez que o stalker invadiu minha casa, o
ferimento no canto da minha testa havia se tornado apenas uma mancha
escura e pequena misturada às minhas sardas, e ainda assim, nada dele.
Abro a porta, a luz do luar que adentra através da janela revela algo
deixado sobre minha cama. Não é um galho de lavanda dessa vez, é um
buquê inteiro, cheio, amarrado com uma fita grossa de cetim. Há um cartão
junto, mas antes de pegá-lo, olho à minha volta para ter certeza se estou
mesmo sozinha. Ao constatar que ele não está aqui, seguro o buquê contra o
peito e caminho até a janela, não há ninguém do lado de fora me encarando,
eu uso a claridade baixa para poder ler o bilhete:
“Um mês que me pertence.”
O que é isso? Meu stalker comemorando nosso aniversário de
perseguição?
Fungo o aroma da lavanda, é um buquê lindo, o único que já ganhei,
mas é um jogo mental e uma mentira. Toco suavemente os galhos delicados
que sustentam pequenas flores roxas, me perguntando quem é ele, qual o
nome que deixou de marcar no cartão. A tensão emocional me consome,
mas é a ansiedade por algo que sei que virá essa noite que faz meu coração
acelerar de uma forma que não deveria. Quero descobrir sua identidade,
mas são os segredos e o mistério que tornam tudo menos perigoso. Mais
seguro.
Pego um vaso no andar de baixo, tiro a planta sobre a banqueta
desgastada ao lado da cama e coloco a lavanda na água, sobre a pilha de
livros que uso como uma base decorativa, substituindo o verde por roxo
delicado que repousa sobre eles. Na frente do buquê, a vela que comprei
como uma provocação nada sutil se exibe em destaque, eu a acendo e
sorrio, inundada por um aroma que deveria embrulhar meu estômago.
A chama suave e dançante ilumina o ambiente, eu fecho a fresta da
cortina, encarando mais uma vez o lado de fora só para não encontrá-lo lá.
Arrumo a cama para dormir, o movimento das cobertas desloca um pouco
de ar na direção da vela, balançando a chama pequena e fazendo com que
sombras sejam projetadas na parede, criando lugares iluminados e outros
mais sombrios e escuros, onde ela não pode alcançar.
Deitada na cama, encaro o buquê de lavanda e a vela, ambos
espalhando o aroma que, lentamente, cumpre o objetivo do meu stalker
desde o início: me fazer dormir.
“Durma, Annika, prefiro você dormindo.”
Sento na cama, sobressaltada, a vela está apagada, a cortina fechada,
o quarto mergulhado em escuridão. Semicerro os olhos em direção à
poltrona no canto do quarto, ao lado da janela, ela é em couro preto, mas a
cabeça dele em um capuz está mais acima do encosto, fazendo com que eu
possa ver um formato diferente que denuncia sua presença aqui, sentado,
me observando. A respiração pesada dele me deixa em choque, o homem
que tem me perseguido, que invade minha casa há um mês, está dormindo.
Corro até o interruptor, mas a luz não vem, ele provavelmente
cortou a energia antes de entrar. Merda. Vou até a banqueta, abro a caixa de
fósforos, mas ela está vazia porque usei o último. Abro a cortina, mas há
nuvens sobre a lua e nenhuma luz adentra o quarto. Meu celular está sem
bateria porque eu nunca preciso dele, já que não tenho sinal nesse lado da
cidade. Respiro fundo. Pense, Annika, pense.
Então, eu penso.
Descobrir sua identidade me colocaria em uma situação difícil, mas
entrar em seu jogo tornaria as coisas difíceis para ele, então decido seguir
com o meu plano original. Tateando a cama para não bater em nada
enquanto ando até o final dela, em direção ao sofá, encaro a silhueta escura
de suas pernas e os sapatos que mal posso ver. Meu coração bate tão forte
que quase posso ouvi-lo, o pulsar lateja dentro dos ouvidos, me deixa
zonza.
O que estou fazendo?
Quão insana eu sou por estar entrando nisso?
Ele quer entrar na minha cabeça? No meu sonho? Então, bom, eu
também sou uma ótima contadora de história e uma perfeita provocadora.
Se ele soubesse que está sendo observado, aposto que adoraria.
Estou cansado, ofegante e sangrando quando entro na casa de
Annika às três da manhã depois de uma luta. Sangue pinga dos nós dos
meus dedos e por isso, preciso lavar as mãos e pegar uma toalha de rosto
em seu banheiro para limpar o rastro de sangue que percorreu minha cara,
desde o supercílio até a mandíbula. Não foi uma luta bonita, em alguma
outra categoria, onde o peso e a altura contam, ela também não seria justa,
mas não há regras na luta livre e meu oponente, mesmo que pesasse pelo
menos trinta quilos a mais e também fosse mais alto, no mínimo serviria
para que eu estudasse quão rápido ele é capaz de ser, mesmo com mais
peso.
Eu usei o fato de ser mais magro e rápido para cansá-lo, e fiz isso
até que ele estivesse ofegante e eu pudesse começar a bater, mesmo que eu
tenha apanhado muito também. Apostas altas foram feitas essa noite, eu
havia vencido mais uma luta e passado mais uma fase em direção à luta
final, a luta que poderia me matar ou a luta que até poderia fazer de mim
um assassino, se eu já não fosse um.
Quando abro a porta do quarto de Annika, sou recebido por uma luz
que não esperava, a chama amarelada tremeluz quando a porta abre e
empurra uma corrente de vento em sua direção. Sou inundado por outra
coisa que me surpreende: o cheiro familiar de lavanda. Eu levo algum
tempo parado na porta, ofegante, sangue novo escorrendo de minhas
feridas. O que ela está fazendo, porra?
Há uma vela acesa e a porra do buquê que deixei sobre sua cama
está em um vaso, sendo exibido com orgulho por ela. Me sinto tonto, o
cheiro forte da lavanda deveria fazê-la sentir medo, pânico, temer a própria
vida, mas aqui está ela, se deleitando com o aroma, mergulhada em um
sono profundo ao lado da planta que a presenteei. Eu esperava chegar aqui e
encontrá-la na lata de lixo lá embaixo, em vez disso, Annika mantém meu
presente como um fodido troféu.
Achei que não havia como essa garota me deixar mais obcecado e
duro por ela, eu estava errado.
Assopro a vela para não correr o risco de ela ver meu rosto, mas o
nome do aroma escrito no vidro me faz unir as sobrancelhas, pensativo,
antes mesmo da chama apagar. O cheiro da fumaça camufla o perfume da
lavanda quando isso acontece, mas é apenas por alguns segundos, até o fio
fino se dissipar e sumir. Eu havia dado as flores para ela como uma forma
de provocação, para foder e quebrar sua mente, mas até podia entender que
ela gostasse de plantas e as achasse bonitas demais para pararem no lixo,
embora ela fosse do tipo orgulhosa e vingativa, que passa por cima disso só
por ódio.
Mas a vela não, a vela eu não dei a ela, foi Annika quem comprou
por livre e espontânea vontade, algo que mesmo que a fizesse lembrar de
mim, estava bem ali, acesa, perfumando todo o ambiente enquanto ela
dormia. Isso eu não era capaz de entender.
Me aproximo dela e empurro uma mecha de seus cabelos ruivos
para longe do rosto, me perguntando o que se passa em sua mente, tentando
entender as camadas que ela usa para lidar comigo. Inclino a cabeça e a
encaro, apesar da escuridão absoluta, pensando na noite em que a conheci,
na forma como ela parecia determinada a guardar meu segredo porque não
se importava se eu havia tirado a vida de um fodido estuprador.
Era uma data de merda, o aniversário de uma morte que eu não
queria relembrar, havia bebido, acabado de me inscrever no Padat’, e tudo o
que eu via era sangue, puro, uma banheira dele, sangue e mais sangue,
grosso e líquido, escorrendo e lavando tudo. Eu vi vermelho quando
enxerguei aquele homem e continuei vendo quando eu fiz perguntas as
quais já sabia a resposta, e vi mais vermelho ainda quando ele zombou de
mim. Eu odeio estupradores e minha alma já está destinada ao inferno,
então por que me segurar?
Ele não estupraria mais ninguém.
Corro o polegar sobre a costura dos lábios dela, imaginando a cor
levemente alaranjada de seus lábios, as sardas que salpicam sua pele como
uma fodida constelação e toda a cor dos cabelos espalhados sobre seus
seios. Duro, mas cansado, me afasto da cama porque não quero uma guerra
essa noite, não depois de lutar, eu só quero me sentar aqui e olhá-la dormir
enquanto a invejo por poder ter uma boa noite de sono, por conseguir fazer
isso. Sentado, inundado pelo cheiro familiar e ouvindo a respiração lenta e
constante de Annika, eu apago, de uma forma que nunca aconteceu desde
aquela noite.
Estou no fodido beco, o barulho dos meus passos ecoa através do
espaço vazio, o corpo sem vida repousa no chão, envolto pela névoa que se
espalha pela cidade com a chegada da noite, rastejando pelos cantos e
envolvendo o ambiente de forma sinistra.
Quando estou embainhando a faca que usei para tirar uma vida, eu
a vejo, cabelos ruivos e longos, sardas que salpicam a pele branca refletida
na luz do luar, os olhos enormes presos em mim, congelada. Ela havia visto
tudo. Outra vez, a mesma cena se repetindo, mas de uma forma diferente.
Nenhum de nós ousa quebrar o silêncio, mas Berstuk caminha
graciosamente em volta dela, como se Annika fosse uma de nós agora por
me presenciar cometendo um crime.
Princesa do sul, futura rainha do norte.
Eu quis tudo, quis que ela fosse minha quando não gritou por ajuda
ou socorro, e, principalmente, quando sorriu em direção ao corpo no chão.
Nesse momento, digo a mim mesmo que a perseguirei a partir de
agora, que me esgueirarei pelas sombras do sul e me alimentarei de sua
presença, coragem e determinação.
Ela caminha até mim lentamente, as botas de salto ecoando através
do beco, a cada passo dado em minha direção, ela é engolida pelas
sombras. Eu a vejo dar um passo sobre o corpo sem vida em vez de desviar
dele, os olhos sempre presos em mim, uma sombra projetada apenas de um
lado do rosto, os lábios cheios em um sorriso cruel e bonito pra caralho.
Eu queria assustá-la, mas quando chega até mim, sou eu quem está
assustado, nossas respirações cortam o ar como uma lâmina afiada e no
céu, a escuridão é um lembrete da Noite Longa que se aproxima.
Não é apenas falta de medo, é mais do que isso, é quase como se ela
gostasse da ideia do que pretende fazer comigo.
O gato some nas sombras, correndo em direção à estrada que o leva
ao oeste, sua casa, e o toque em meu peito é suave e quase sugestivo.
Engulo em seco, quero colocar a lâmina contra sua pele do pescoço e fazer
perguntas, mas não consigo me mover por alguma força maior, algum tipo
de energia que me prende.
— Qual seu lance com estupradores? — ela pergunta, a voz soa
estranha, quase distante, mas ela está perto, o rosto quase colado ao meu.
— Nenhum deles merece estar vivo — murmuro, a fala soa
embolada.
— E eu? Pretende me matar?
A pergunta me deixa ainda mais confuso.
— Tenho planos maiores para você.
Eu sinto seus lábios tocarem a lateral do meu rosto, a mão fria
adentrar sobre meu capuz até a nuca, então eu envolvo sua garganta e abro
os olhos.
Envolvo a garganta diante de mim, avanço sobre ela, caindo sobre
seu corpo na cama, mas solto quando me dou conta de que estou usando
mais força do que deveria e pouco a pouco, minha mente volta a si.
— O que porra você tá fazendo?
Ela está respirando com dificuldade, o sopro quente acaricia meu
rosto, deixo minha cabeça tombar sobre ela, nossos narizes se tocando.
Meus ferimentos latejam.
— Fede a sangue. Você se machucou?
— Responda.
Annika suspira.
— Eu estava curiosa sobre você.
Eu sinto seu coração bater sob mim, sinto o tremor de seu corpo
contra o meu, a respiração quente em minha pele, meu pau crescer entre
nós. Ela havia entrado na minha mente, assim como eu havia feito com ela.
— Entrou na minha mente essa noite.
— Eu poderia ter matado você em vez disso.
Ela tem razão, só que isso não é ela.
— Não é uma assassina.
— Ninguém é. Até matar alguém pela primeira vez.
Eu havia me tornado um, Annika havia estado lá para presenciar e
aqui estamos nós, ligados pela aquela noite.
— Por que não o fez?
— Você dá orgasmos bons demais para ser morto.
Foda-se, essa garota não está em si essa noite. Olho à minha volta,
procurando alguma garrafa de vinho, algum comprimido, qualquer merda
que justifique isso.
— O quê? — ela pergunta, cheia de determinação e sarcasmo. —
Você prefere quando não é consensual?
— Um caralho, eu prefiro que me implore pra que eu foda você.
Ela engole em seco e a sinto relutante, ainda assim, seus dedos se
torcem na bainha do meu moletom enquanto me pergunto o que diabos ela
pensa que está fazendo.
— Você cheira a lavanda, porra. — Fungo seu cabelo e pele, me
perguntando como é possível.
— É meu sabonete e shampoo.
Congelo.
Ela parece obcecada com isso, quase tanto quanto eu. Não deveria
ser assim, ela não deveria gostar disso, deveria? Que tipo de perturbada
Annika é?
— Sua boceta cheira a lavanda agora?
Os lábios dela se separam quando uma lufada de ar escapa.
— Sim.
Foda-se, eu não posso dizer que não gosto dessa versão.
— Por quê? — pergunto.
— Gosto de controle tanto quanto você.
Silêncio, eu até gostaria de pensar sobre suas intenções, mas não há
como seguir nenhuma linha de raciocínio quando essa garota se mexe tanto
embaixo de mim.
Afrouxo o aperto.
— O quê? Não gosta dessa perspectiva, não é? É um sádico que ama
a minha relutância sobre assumir.
— Não sou um sádico, sou só alguém um pouco fodido das ideias.
Quando eu sinto que Annika quer nos girar, eu permito que ela
esteja sobre mim. Estou afundado em suas cobertas, banhado em aroma de
lavanda quando ela senta sobre meu pau, a testa apoiada na linha da minha
mandíbula, próximo à orelha. Seja qual for sua intenção, permito que ela
faça isso porque, de vez em quando, eu deixo que o poder de uma boa
boceta afete meu juízo.
— Então, talvez eu te poupe da morte no fim de tudo isso.
Porra, eu não deveria gostar cada vez que ela abre a boca.
— Vou deixá-la fazer isso hoje se for te fazer sentir melhor porque
como um bom dominador, sei que de vez em quando é necessário se
lembrar do gosto de estar no comando. Não quero que perca sua identidade.
Ela engasga, parece uma espécie de riso cheio de escárnio, medo e
tesão e quando a mão de Annika agarra a base firme do meu pau, tento não
parecer tão afetado quanto me sinto. Ela começa a se mover lentamente, a
cabeça descendo sobre meu estômago e quando toco a parte de trás de sua
nuca, sobre os cabelos bagunçados, ela me empurra, porque empurrá-la em
direção ao meu pau significa estar controlando-a e Annika quer fazer isso
sozinha essa noite. Eu permito que ela faça, que rasteje sobre mim, que
desça minha calça de moletom e abocanhe meu membro duro e pulsante.
O gemido que deixa sua garganta não é o de alguém que está
fingindo, mesmo que isso seja um jogo, mesmo que ela só esteja brincando
comigo, Annika quer fazer exatamente o que está fazendo agora. Ela
sempre quis, desde o primeiro fodido toque. Desde a primeira vez que eu
vim, sem nenhuma inclinação sexual sobre minhas ameaças, desde que ela
usou minha aproximação para me questionar se eu a estava forçando porque
era isso que estava em sua mente fodida.
Toco a curva de sua nuca quando ela vai fundo em mim, mas não a
forço, eu apenas a deixo guiar pela extensão do meu pau, molhando todo o
caminho e chupando como alguém que tem uma ampla experiência nisso.
Enquanto observo a sombra do seu corpo se mover em um vai e vem sobre
mim, desejo arrancar a cabeça de cada homem que a tocou. Não importa
quantos paus ela já tenha chupado, o meu seria o último.
— Por que você não veio por dez dias? — ela pergunta, antes de
correr a língua sobre a ponta e sugá-la.
Foda-se, eu poderia dar a ela hoje até a porra das senhas do banco.
— Quem disse que não vim?
A mão direita dela aperta minha coxa, as unhas cravam na minha
pele, eu tento não pensar no quão insano é essa garota chupando seu
maldito stalker, mas isso me excita pra caralho, fortalece qualquer obsessão
sobre ela, qualquer intenção de continuar me alimentando de seus medos e
anseios e da sua liberdade.
— Foda-se. — Afundo meus dedos com mais força em sua nuca,
mas dessa vez ela não se importa.
Em vez disso, percebo que isso dá à Annika ainda mais fome, ela
chupa meu pau com mais raiva enquanto movo sua cabeça e me curvo,
apoiando meu corpo nos cotovelos. Nossas respirações e gemidos
preenchem o quarto, desejo acender a porra da luz e olhá-la fazer isso, mas
me contento com a imaginação de seus lábios cheios em volta do meu pau.
Eu me perco na imagem que nunca vi, mas que se mantém viva na minha
mente e quando ela se contorce, cheia de tesão, eu levo a mão entre suas
pernas porque sei que precisa disso.
— Oh... — ofega, a cabeça cai sobre minha coxa só por um
segundo, até eu afundar meus dedos nela.
Então Annika rebola contra mim, encharcada, lambuzando e
fodendo meus dedos enquanto me chupa. Ela sabe quando estou prestes a
gozar e não se importa em sair, ela só fica ali, engolindo cada maldita gota
do meu sêmen e se esfregando em mim como se não precisasse de mais de
um minuto.
Ela não precisa realmente.
— Goze, não lute contra isso...
E ela não o faz, pela primeira vez, Annika não se enoja por fazer
isso comigo, ela não me odeia por provar que gostou, em vez disso, ela só
se entrega ao prazer, mesmo que seja com alguém tão fodido das ideias
quanto eu. Bem, ela não parece ser muito diferente, afinal.
Nós caímos juntos um ao lado do outro, ofegantes, exaustos, um
maldito boquete e tenho meus pensamentos descontrolados. Puxo minhas
calças e me levanto, então encaro suas sombras sobre a cama, encolhida,
agarrada a um travesseiro como se fosse sua tábua de salvação. Apesar de
ter começado isso, ela não parece alguém orgulhosa do que fez. Dou um
passo para trás, e outro, e mais um, Annika não diz nada, ela só fica lá,
parada, ofegante, me encarando.
Eu não consigo pensar em nenhuma palavra que possa deixá-la
ofendida agora, não consigo pensar em nada que possa fazer com que ela
sinta dor. Então eu só saio, tão silenciosamente quanto entrei e quando
atravesso o portão, ainda não estou pensando com clareza, mesmo assim,
chego à conclusão de que embora não tenha dito nada, não há nada pior
para alguém que gosta de controle, saber que está controlando alguma
situação só porque alguém permitiu que estivesse.
Tudo o que faço é trabalhar, contar e esperar, é mais do que eu já fiz
em qualquer outro momento da minha vida. Meu stalker havia me dado um
objetivo, algo que quase ninguém em Temnyy Gorod tinha. Três. O número
de dias desde que eu entrei em sua mente, desde que terminei sobre ele, na
minha cama, a boca em torno do seu pau. Três dias e o gosto dele ainda está
na minha língua, a textura grossa do sêmen que engoli sem hesitar.
Eu havia passado sobre meu orgulho, princípios e qualquer
vergonha que eu poderia sentir por me entregar para alguém como ele, mas
fiz tudo isso pensando em algo maior, na vingança, na intenção de fazê-lo
se sentir da mesma forma. Afetado. Fora dos trilhos. O orgasmo é só um
brinde ou deveria ser. Eu usava as mãos de vez em quando, mas eu não
fazia ideia do que era bom de verdade.
— Tá ofegante e corada. Tem certeza de que não é febre? — Faina
coloca a mão sobre minha testa pela segunda vez em menos de um minuto.
A porta se abre, o segurança repousa a mão sobre a arma no coldre
quando Dimitri passa, sustentando um sorriso de lado. Ele ergue um papel
no ar e o balança.
— Eu consegui!
Eu grito e bato palmas, Faina corre até ele e pula em seu colo, Efim
encara do outro lado do estoque, um pequeno sorriso orgulhoso no rosto.
— Eu não acredito! — Faina continua se balançando.
A porta bate quando o segurança a fecha.
— T.I. — murmuro. — Porra, você conseguiu...
Dimitri é bom com computadores, ele sempre foi, é raro esse tipo de
formação em Temnyy Gorod, uma vez que não temos acesso à internet, não
temos motivo para obtermos aparelhos tecnológicos e portanto, mal
sabemos usar um celular sem fritar os neurônios. Mas Dimi não, sua mãe
havia trabalhado para a elite quando ele ainda era criança e por isso, ele
teve acesso a computadores desde cedo. Foi quando ele começou a ficar
obcecado, todos os dias mexia um pouco mais, até que ele se viu fazendo
coisas que ninguém mais fazia, adentrando a Kupol silenciosamente no
meio da noite em sua adolescência para acessar a internet.
Ele se inscreveu em um curso há dois anos e vai de carro para fora
da cidade quase todos os dias pela manhã. Dimitri havia se formado há um
mês, mas fazia muito mais tempo do que isso que ele havia pedido
transferência de cargo. Agora chegou a sua hora, ele lidaria com a parte da
informática em uma filial fora da cidade, era sua chave para sair daqui. Nós
o perderíamos, Faina não teria mais uma carona, mas ninguém pensaria
nisso porque todos estamos felizes pelo nosso amigo.
— Não sei, eu sinto que essa não é única mudança que vem por aí...
— Eu acabei de topar com Demyan no corredor — Efim diz
baixinho e isso me surpreende porque quase não se ouve a voz dele,
principalmente para fofocar.
— Foi com ele que eu falei. — Dimi dá de ombros.
— O quê? — cuspo. — Por que ele simplesmente começou a vir e
tomar decisões?
— Talvez ele finalmente tenha assumido os negócios, ele é o
herdeiro das indústrias Petrovich.
— Sim, e há várias delas por aí, por que essa? — resmungo, quase
sentindo dor física por isso.
Apesar do tempo que passou, não consigo me perdoar pela carona
que peguei com ele há dez dias, no entanto, não o havia visto mais. Ainda
assim, minha vontade de confrontá-lo ainda permanecia tão viva em mim
quanto a sede de vingança pelo meu stalker.
Ainda desejo ver Demyan ser punido pela morte do meu pai, já que
o seu está morto e não pode pagar por isso.
— Pensamentos positivos atraem coisas positivas. — Dimitri
balança o papel outra vez.
— Sim, ele tem razão. — Faina pula para fora do colo dele.
Encaro o relógio empoeirado preso na coluna acima de nós, ainda é
cedo o bastante para irmos, mas tarde demais para um playboy como
Demyan estar trabalhando.
— Ninguém além de você que vive a vida inteira nessa cidade é
capaz de pensar positivo sobre qualquer coisa, Dimi.
Ele dobra o papel e o coloca no bolso.
— Isso é porque amar me faz ser otimista.
Efim engasga.
Amar? Eu estava fodendo com um homem que me ameaçou de
morte e gostando disso.
Eu estava montando os dedos dele quando ainda nem havia sido
beijada por ele.
— Annika amando alguém? — Faina volta ao trabalho, um
sorrisinho no rosto. — Eu posso imaginá-la desovando um corpo, mas não
posso imaginá-la apaixonada.
O quê?
— Eu leio um monte de livros de romances — resmungo.
— Pelo sexo, aposto — Dimitri intervém.
Nem é por isso, já que leio muitos clássicos e, basicamente, leva
muito tempo até que o protagonista pegue na mão da mocinha. Às vezes, eu
quase morria de tédio, mas eu amo ler e isso é tudo o que tenho.
— Tenho alguns DVDs pornôs — Faina diz baixinho.
Eventualmente, isso acontecia, às vezes eu via homens trocando
essas coisas por aí porque esse era o mundo sem internet. Era isso ou sair da
cidade, usar alguma rede e baixar alguns vídeos em seus notebooks e
celulares. O problema é ser pego em algum lugar fazendo isso e ser
confundido com um tarado.
— Que bom, você assiste um filme ou dois de pornô amador pra se
excitar para o Viktor?
O olhar que ela me dá é estranho, quase como se não quisesse falar
dele na frente de Dimitri ou Efim.
— Eu tenho os melhores, você deveria aceitar. — Eu sei que ela está
zoando.
— Não gosto de pornô, mas eu aceitaria um livro mais quente se
você pudesse me dar.
— Talvez quando a gente sair da cidade possa ir àquela livraria
outra vez.
Tem algum tempo desde que fomos juntas à livraria da cidade que
faz fronteira com o norte e oeste, onde também fica o cemitério no qual
meu pai foi enterrado. Por termos poucos horários de ônibus, eu acabava
tendo que ficar muito tempo fora até conseguir o horário da volta e por isso,
quando ia limpar o túmulo do meu pai, acabava fazendo outras coisas na
cidade vizinha.
— A literatura erótica em livraria física ainda não é o que eu quero.
Os donos desses lugares acabam limitando a entrada do conteúdo
erótico em suas redes de vendas, o que é bom de verdade é o erótico
contemporâneo, são os escritores que dão tudo de si explorando a
sexualidade de forma diferente, no erotismo vendido on-line. O que eu não
consigo acessar pela falta de internet e porque mesmo que eu vá até um
ponto, precisaria fazer isso muito rápido para não estar à mercê dos
Marodery. Eu levava tempo demais lendo sinopses, nunca consegui tempo.
— Seu aniversário não é nesse mês? — ela pergunta.
— É. Na semana que vem.
Falar sobre meu aniversário faz um peso recair sobre a conversa
leve que estava rolando até dois segundos. Nenhum deles diz algo sobre
isso, nós voltamos ao trabalho, Dimitri eventualmente joga sua promoção
sobre nós enquanto Faina, Efim e eu soltamos comentários a respeito disso.
Quando finalmente chega a hora de ir para casa, o pensamento de passar
mais um aniversário solitária continua me fazendo sentir enjoada, porque é
sempre assim depois que meu pai se foi.
Nós quatro nos despedimos no estacionamento, mas estou tão
distraída que somente quando o frio me atinge, percebo que esqueci o
sobretudo. Eu volto correndo, caminhando por corredores que foram
apagados assim que deixamos o interior. Sabendo cada passo até os
armários, faço todo o trajeto mergulhada nas sombras, mas então, quando
estou quase lá, colido com algo rígido. Não é uma parede e minha mão
sobre o peito firme e quente é a prova disso.
A luz se acende, é a luz de movimento do corredor de armários.
— Merda, Demyan. — Tiro as mãos dele e dou um passo para trás.
— Parece quase decepcionada — ele provoca.
— Eu só vim pegar o meu casaco.
Eu não quero olhar para ele, mas há algo em Demyan Petrovich que
torna difícil desviar o olhar, talvez seja o cabelo enrolado dele, o corte mais
baixo nas laterais que permite que apenas os fios mais longos do topo se
enrolem em cachos perfeitos em um castanho escuro. Eu sempre odiei
Demyan, mas sobretudo, eu odiava que ele fosse o cara mais bonito que eu
havia colocado os olhos.
— Nunca gostou de mim, não é? — ele pergunta, cheio de si, o
sorriso que eu detesto lá, repuxado em um canto, fazendo uma linha se
formar em um C cheio de provocação.
Desvio os olhos para os sinais em seu rosto, para o maior deles
embaixo do olho direito e para o outro que ele exibe na bochecha esquerda.
Sinais não deveriam ser um charme, mas eles eram no rosto de Demyan. Eu
já o havia visto sem camisa uma vez no verão, depois de uma aula, quando
ele estava no meio de uma briga ridícula disputando o maior ego. Ele era
cheio deles nos ombros também, no peito e nas costas.
— Eu nunca gostei de caras como você, num geral, não é nada
pessoal.
Tento passar, mas ele dá um passo para o lado.
— Que tipo de cara você gosta?
Uno as sobrancelhas, incrédula.
— Você tá mesmo fazendo isso? Eu preciso lembrá-lo que é meu
patrão e que isso aqui — movo o dedo entre nós — se classifica como
assédio?
A forma como o sorriso aumenta sugere que quanto mais eu fico
brava, mais ele gosta.
— Então por que não passa no OK[3]?
— É, talvez, eu faça isso se não sair do meu caminho.
Demyan dá um passo para o lado, meus olhos correm sobre seu
rosto mais uma vez, tão perto quanto nunca estive. Eu sinto o ar ficar denso,
uma onda de vento atravessa o espaço entre nós. Ainda não posso acreditar
que ele está aqui outra vez. Quando não me movo, o sorriso dele diminui e,
lentamente, Demyan se inclina sobre mim.
— Buuh.
Empurro meu corpo para trás com o susto e, enquanto ouço sua
risada perturbada, eu praticamente corro para pegar meu casaco. Quando
passo de volta, ele não está mais, ainda assim, o fantasma da sua presença
continua pairando por todo o ambiente, como uma lembrança amarga de
que ele irá voltar.
A intenção é assumir os negócios, liderar o bairro decadente no sul
dessa cidade esquecida pelo resto do mundo porque desde que eu era
criança, meu pai me ensinou que poder e sucesso não são apenas direitos
meus, mas obrigações, uma vez que eles acompanham meu sobrenome. Eu
não tinha escolha, desde o início isso ficou claro, em letras gritantes, em
alto e bom-tom, com todas as palavras ditas, ora controladas, ora gritadas
contra o meu rosto ainda infantil, que não havia outra pessoa, outra saída,
outra vida para mim.
Eu deveria ser o seu sucessor porque eu era o filho homem, porque
não havia mais ninguém, porque meu avô e ele haviam dado sangue, saúde
e a vida inteira nos negócios e eles não fizeram isso para que elas fossem
vendidas para nossos concorrentes ou declarassem falência.
Por anos, fui moldado para me encaixar nesse papel, estudei em uma
escola de prestígio no norte, fui submetido a treinamentos e mentores que
me prepararam para a vida empresarial. Meu tempo livre era preenchido
com eventos sociais da alta sociedade, onde eu deveria fazer conexões e
aprender os jogos de poder, onde eu comecei a nadar próximo dos peixes
grandes e descobrir como me aproximar de um tubarão sem ser comido por
ele.
Tudo isso era para me transformar em um clone do meu pai, um
reflexo de seus desejos e ambições, havia sido por isso que eu havia sido
gerado, para começo de conversa, um bebê programado para herdar, duas
pessoas com sorte em acertar de primeira. Um menino.
Nunca pude fazer o que gostava na infância, música, nenhum tipo de
esporte, nenhuma merda do meu interesse porque era vista como perda de
tempo. Quando eu gostava de algo, ficava obcecado por ela, se, de repente,
meu novo negócio fosse hóquei, eu comprava tudo o que precisava, enchia
minha mente de esperança, cumpria todos os compromissos em tempo
recorde para me dedicar a ele, mergulhava de cabeça. Até ser descoberto,
até meus equipamentos serem pegos escondidos em algum canto da
propriedade e eu ter que largar porque não tinha tempo para isso. Eu
abandonei muita merda pela metade e quando percebi, estava afundado em
eventos e eventos e mais eventos e sendo arrastado para todos os lados
como um troféu.
Eu comecei a sair escondido, se não podia fazer coisas as quais me
ocupar, então eu só queria andar por aí e limpar minha mente, o problema é
que a rua tem muita merda a oferecer e eu abracei cada uma delas, ao lado
de Roman, eu arrumei desculpas e mais desculpas para pular a Granitsa em
busca de confusão para extravasar minha raiva. No começo, eu fiz isso
porque não sabia quem eu era, depois continuei fazendo porque percebi que
aquele era eu, alguém ruim, que gostava de problemas.
Eu encontrei cada confusão que cacei.
Eu estive na rua por muito tempo porque já não conseguia mais ficar
em casa.
Eu saía por aí, cometia alguns delitos, roubava ao lado de Roman,
levava drogas para outros bairros ao lado dele só por prazer, eu comprava
brigas que podiam ser resolvidas com conversas, ia por um caminho que,
muito embora fosse totalmente errado, era meu.
Então eles perderam o controle, meu pai já não se orgulhava de
mim. Eu havia me tornado um filho de merda.
Quando ele morreu, eu me senti mal por me senti aliviado, pela
primeira vez na porra da minha vida, eu poderia fazer o que eu queria. Não
que eu seguisse todas as ordens, não, eu estava longe de ser alguém
decente, mas acontece que minha rebeldia e meu descontrole estavam
associados a provar para mim mesmo que ninguém além de mim estava no
controle da minha vida.
Fiz muita coisa errada, fui por um caminho completamente contrário
ao que havia sido destinado a mim e ainda assim, as empresas continuavam
no mesmo lugar, como um lembrete constante de que elas permaneciam me
esperando, não importa quanto tempo passe ou quantos atalhos eu pegue. A
demora até meu destino só faria com que as coisas se tornassem ainda pior
quando eu assumisse os negócios, eu não teria experiência e também
poderia ser tarde demais se meu tutor estivesse fazendo as coisas erradas.
Eu estava colocando toda a minha herança nas mãos de alguém.
Todo o trabalho de duas vidas. Sobre todos os defeitos que meu pai possuía,
apesar de nunca ter me visto de verdade, de ser alguém frio e quase
impossível de amar, ele havia trabalhado duro em manter nossa família e
por isso, e porque fui criado para não acreditar que haviam mais
alternativas, eu decidir ficar. Ficar, procurar por Roman e assumir os
negócios.
Eu ainda não havia assinado nenhum papel, assumido totalmente
uma posição, mas havia dado um passo em direção a isso, inclinado a fazer
algo no meu tempo pela primeira vez. Eu comecei a frequentar as indústrias
há alguns dias, a participar, mesmo que silenciosamente, de algumas
reuniões, estar presente, me familiarizar com o ambiente, dar uma ordem ou
outra só para que soubessem quem realmente manda. Pouco a pouco, eu
conquistaria meu lugar no trono, porque apesar de não poder ter sido outra
pessoa, as indústrias são tudo o que me restam, a única coisa que não perdi.
Observo Annika deixar o estoque, ela tem uma tiara ridícula
artesanal na cabeça, presa sobre o capacete de segurança, onde tem escrito
imeninnik [4], que, através da parede de vidro no qual eles são monitorados,
a vi ser presenteada por Faina. Os cabelos longos e ruivos estão caídos
sobre os seios rígidos por causa do frio e ela parece um pouco chateada
enquanto caminha pelos corredores, a prancheta na mão, o olhar baixo.
— S dnyom rozhdeniya tebya.[5] — Me curvo sobre o ombro dela
quando cantarolo.
Eu vejo o rosto de Annika se contorcer, a expressão de tristeza ser
tomada por algo a mais, ódio absoluto. A pele clara ganha um tom
avermelhado de modo que as sardas se tornam menos evidentes. Se eu
soubesse que era tão divertido irritá-la, teria começado a fazer isso anos
antes, quando a vi pela primeira vez.
— Dê o fora, Demyan. — Ela continua andando.
Eu vou atrás.
— Sou só alguém comemorando seu aniversário, Nika — provoco,
estar nessa filial havia me dado uma vantagem, eu havia aprendido algumas
coisas sobre ela.
Annika arrisca um olhar na minha direção.
— Continua o mesmo, não é? Olhe só pra você. — Aponta na minha
direção. — Cheio de hematomas, as mãos todas machucadas. Continua se
metendo em brigas.
— E você? Sempre cheia de si, achando que é diferente do resto de
nós.
— Talvez eu seja.
Preciso admitir que gosto mais dela me chupando, mas isso não é
algo que posso dizer a ela.
— Se já ouviu algum boato sobre mim, então sabe que adoro uma
boa briga, principalmente quando envolve alguém irritante. Como você.
O sorriso que dou a faz desviar os olhos para a minha boca, porra,
ela pode até me odiar, mas há algo aqui que a deixa feliz. O que ela faria se
soubesse que eu já havia lhe feito gozar, que é por mim que ela espera todas
as noites?
— Caras como você são tão previsíveis que chegam a ser
entediantes — murmura baixinho, porque apesar de me desafiar, ela sabe
que não pode fazer isso diante de outras pessoas, dos meus funcionários. —
O que espera alcançar com isso?
Do lado de fora, o estrondo alto de um trovão rouba nossa atenção
por um segundo.
A pergunta me faz refletir sobre os verdadeiros motivos, é divertido
pra caralho vê-la irritada, mas há algo mais nisso. Eu não tinha certeza se
Annika havia me visto naquela noite, eu havia matado um homem e ela me
conhece, e se ela tivesse mentido sobre não ter me visto? Ela é uma
delatora, eu sei disso, e se ela simplesmente mentisse e depois saísse por aí
abrindo a porra da boca? Por isso eu comecei a lhe perseguir, encapuzado,
guardando minha identidade, mas mesmo quando eu tive certeza, eu
continuei voltando, me tornei seu stalker pessoal e isso eu não podia
explicar.
O que espero alcançar?
Eu fiquei obcecado por ela, porra.
— Talvez eu só esteja tentando te mostrar que você não é tão
diferente do resto de nós. Por mais que tente provar o contrário, também é
cheia de falhas, fraquezas. — Dou um passo à frente. — Segredos sujos.
O rosto de Annika ganha dois tons de vermelho, ela entreabre os
lábios, uma lufada de ar escapando e formando uma nuvem espessa entre
nós.
— Falhas e fraquezas? — Ela ri, se recompondo. — Você não faz
algo porque é fraco ou humano, Demyan, faz por prazer, porque é uma
pessoa ruim. Eu ouço o que dizem por aí e eu já o vi em ação. Eu sei quem
você é, o que sua família fez com o sul.
Família.
Eu não tenho mais uma.
E ela não sabe porra nenhuma sobre ela.
Ainda assim, mencionar minha reputação e as histórias que circulam
sobre mim, me faz ficar curioso sobre o que ela realmente sabe.
— Deveria ter ido embora quando teve oportunidade.
A reação é instantânea. O rosto ainda vermelho, os lábios
entreabertos, os olhos cheios de lágrimas. Ela me vê como um vilão e bom,
talvez eu seja um, mas também sou o único capaz de enxergar e entender
seu lado sombrio, o único que não a julga pelas coisas que faz e deseja
quando está sozinha ou a sós com seu stalker.
— Faça uma oferta agora e eu estarei dando o fora.
Isso me pega desprevenido, uma parte minha a odeia por largar as
pontas tão fácil, sem lutar. Essa não é a garota que eu conheço, aquela
mandaria eu e meu dinheiro à merda.
— Bem... — Roço o nariz sobre sua bochecha, ela não recua,
embora seu corpo inteiro esteja trêmulo. Eu me afasto, segurando seu
queixo, Annika também não desvia o olhar. — Talvez por uma boa
chupada...
Os olhos dela estão cheios de ódio e lágrimas quando ela diz:
— Eu prefiro morrer esquecida no sul, mesmo que minha última
respiração seja fria, dolorosa e solitária. — A lágrima finalmente escorre.
— Prefiro respirar lixo do que chupar um.
Por causa da forte chuva, Dimitri me deixa no portão de casa, ainda
estou usando minha tiara quando atravesso a porta de entrada. Eu havia tido
um bom dia, apesar de tudo, porque Faina havia se esforçado por isso. Um
bolo, piadas ruins, uma tiara, ela havia feito mais por mim do que qualquer
pessoa desde que meu pai se foi. Ainda assim, uma parte minha se sente
derrotada, desesperançosa, chateada. Às vezes, em dias como hoje, ainda é
difícil acreditar que não havia ninguém mais, que eu voltaria para casa e
encontraria um grande nada esperando por mim.
E eu nem quero pensar em Demyan, no quanto aquele encontro me
afetou.
Coloco o pedaço grande do bolo que sobrou sobre a mesa e o encaro por um
tempo até que decido abrir uma garrafa de vinho barato. Então me sento,
me sirvo dos dois e como e bebo em silêncio, encarando o creme branco
que abraça os morangos, me lembrando que era o sabor de bolo preferido
do meu pai e o quanto eu gostaria de ir até o cemitério comer um pedaço
dele lá, como nos anos anteriores. Ainda assim, só poderia fazer isso no
sábado, teria alguns dias pela frente, eu teria que congelar um pedaço se
quisesse fazer isso.
Derrubo uma taça de vinho e a encho em seguida, debruçada sobre a
mesa de forma deprimente. Acontece que em dias como hoje, eu me
pergunto se isso é tudo o que terei pelo resto da vida. Eu havia sido
orgulhosa no passado recusando a proposta feita pelas indústrias e agora
Demyan havia zombado de mim e me tratado como um pedaço de lixo, me
oferecendo sexo em troca de uma oferta. Eu queria me vingar dele por isso.
A luz da cozinha é apagada junto de um ruído alto que sugere que
foi a chave geral e sei o que isso significa. Meu stalker havia vindo me
felicitar. Quando ergo o olhar para a janela da cozinha, eu vejo a sombra
dele acender com a claridade de um relâmpago, em seguida, o estrondo alto
ecoa por toda a parte inferior da casa. Ele abre a porta, mesmo que não
tenha a chave, e nem perco o meu tempo me perguntando como fez isso.
— Não é um bom dia. — Seco as lágrimas sobre as bochechas,
ciente de que ele não está vendo.
— É seu aniversário.
Também não perco meu tempo me perguntando como ele sabe
disso.
— E daí? Veio me trazer um presente? — debocho, o olhar preso na
silhueta que não revela nada.
— Sim, já pode começar a desembrulhar.
Paro.
O silêncio só é cortado pelo som do trovão.
— Isso foi uma piada? Você tem mesmo um senso de humor?
— Eu tive um dia.
Hum.
Informações.
— O que mudou?
— Não há mais ninguém para fazer rir.
Eu vejo as sombras de seus braços se moverem quando ele coloca as
mãos nos bolsos do moletom.
— Então você é alguém que perdeu tudo e que agora saí por aí
matando pessoas em becos escuros?
Silêncio outra vez.
— Fazendo perguntas demais, stukach, prefiro sua boca em torno do
meu pau.
Tranco o ar, incapaz de controlar a forma como meu corpo reage a
isso, sempre foi assim, desde o primeiro sussurro em meu ouvido, eu
sempre levei nossa interação para outro caminho e ele percebeu, havia algo
nele, algo na forma como ele se movimenta, como pronuncia as palavras,
que faz com que meu sangue circule de uma forma diferente.
— Dê o fora.
A respiração dele se torna mais pesada, então eu ouço o farfalhar de
suas roupas grossas quando ele se move na minha direção. Giro na cadeira,
ficando de frente para ele, esperando que meu stalker se aproxime.
— O quê? Prefere assistir a um filme? Que eu leia pra você? —
Mais passos. — Ou será que você quer dar uma volta por aí, mãos dadas,
toda essa merda que pessoas normais fazem?
Engasgo com uma risada sombria, minha mente viaja para todas
essas imagens.
— Sabe o que eu quero? — pergunto, a voz melosa.
Ele se encaixa entre minhas pernas abertas e penduradas na
banqueta alta.
— Por que você não me conta? — é só um murmúrio baixo.
Eu pego a faca do bolo e a pressiono em sua carótida. Ele congela
por alguns segundos.
— Você morto — digo.
E então, o homem que tem me perseguido há quase quarenta dias
deixa a cabeça cair de lado, a pele forçando contra a lâmina de serra. Meu
coração acelera.
— Por que não faz isso e me dá algum prazer? Talvez seja até
melhor do que um bom e velho boquete.
Intensifico o aperto da serra contra a carne, tão forte que a sinto
adentrar a pele, ainda assim ele não se move, não recua, nem avança sobre
mim. Ele só continua entre minhas pernas, a respiração mansa, um poço de
indiferença, se privando de qualquer conexão emocional, como um
completo enigma. Eu penso que meu stalker possa ser um possível
sociopata, então repito as frases em minha mente: “Não há mais ninguém
para fazer rir.” Ele fazia outras pessoas rirem no passado. O que houve
com elas?
— Parece que o gato comeu sua língua. Achei que houvesse mais
fogo queimando aí. — Ele dá um passo para trás, decepcionado. — Eu tô
quase entediado.
— Aonde você vai? — pergunto.
— Tenho um compromisso.
Solto a faca sobre a mesa, balançando a cabeça negativamente,
então eu percebo que a partida dele me deixa mais irritada do que a
chegada.
— Há mais garotas para perseguir? Você tem uma lista delas? Faz
isso em ordem alfabética?
Ele para, a sombra como uma maldita estátua, quero empurrar seu
capuz e olhar em seus olhos, quero saber que história eles contam.
— Sim, Annika, de A a Z, a última fica com as sobras, já que a
primeira boceta é a mais desesperada.
Ódio puro e absoluto ferve em minhas veias.
— Talvez ela só esteja superestimando você. A decepção pode soar
como desespero.
O sorriso que ele dá soa como um rosnado, se eu tivesse enfiado a
faca, ele não teria ficado tão irritado.
— Vou mostrar a você o som do desespero.
Eu pulo para fora da cadeira, mas ele segura meu braço, me gira e
prende meu corpo contra a mesa.
— Seu ego é seu ponto fraco?
— Não tenho um ponto fraco, não há nada para atingir, nada a
perder.
— Nada? Todo mundo tem alguma coisa a perder.
— Bem, sim? O que você tem? — Seus dedos se enrolam nos
cabelos próximos à minha nuca quando ele puxa minha cabeça para trás, a
dor se mistura com prazer.
Eu não queria ser tão fraca e ceder tão rapidamente, mas basta um
toque e algumas palavras fodidas e eu estou me curvando a ele. Empurro
meus quadris para trás, sentindo a ereção forte e imponente, me
perguntando se ele me dará agora a sensação de preenchimento que tenho
me perguntando como é.
— Me diga, stukach... — A língua quente corre sobre a curva do
meu pescoço.
Merda.
O que eu tenho a perder?
— Não diria jamais a você, não te daria o prazer de arrancar o pouco
que tenho.
O gemido que ele dá é uma simulação falsa e mentirosa de
descontentamento.
— Bem, então, talvez eu arranque outra coisa de você.
Um orgasmo?
Bem, eu não perguntaria.
Quando suas mãos deslizam sobre o cós da minha calça, me curvo
sobre a mesa, permitindo que ele faça isso. A mão do meu stalker escorrega
para o meio das minhas pernas, quente, ciente do caminho, ele empurra
minha calcinha para o lado e quando espero seus dedos em mim, ele apenas
ri e não o faz. Um pequeno tapa é deixado na lateral do meu quadril, me
obrigando a me mover em direção ao prazer.
— Eu disse que era a mais faminta...
Quero mandá-lo calar a boca, mas o som perturbador da sua voz me
deixa excitada. Quando afundo o rosto no antebraço sobre a mesa, não
estou esperando que ele corra a mão por minha perna aberta, eu deixo um
gemido alto escapar, tão alto que me surpreende.
— Devagar, Annika, não vai deixar nada para as outras.
Algo queima dentro de mim, ódio, incômodo, ira.
Outras.
— Vai se arrepender no final de tudo isso.
Quando seus dedos mergulham em mim, preciso ser forte e apertar a
borda da mesa para não cair.
— Tão molhada e apertada, você sempre quis isso, desde o primeiro
fodido dia.
Quando ele entrou no meu quarto, todo molhado pela chuva.
O ruído do lado de fora da água desabando sobre o telhado só torna
a lembrança ainda mais viva.
— Todas elas gostam disso? Todas as outras curtem serem
perseguidas?
Ele enterra seus dedos tão profundamente que machuca um pouco, o
gemido que deixo escapar ecoa junto de um trovão.
— Cuidado, pode soar ciumenta.
Eu ouço o som da embalagem e sei o que está por vir. A ansiedade
me consome, tão violentamente que mal o deixo se afastar para deslizá-lo
sobre o membro pulsante, tudo o que faço é me esfregar nele, ansiar por
algo que eu não deveria.
— Olha quem fala, o cara que ameaçou matar outro homem que
entrasse no meu caminho.
O som do riso dele é abafado pelo ruído da chuva.
— Não há espaço para outra pessoa nessa história, ela é só nossa,
duas pessoas guardando um segredo já é gente demais, além disso... — Ele
está com a boca no meu ouvido agora enquanto os dedos trabalham em
mim. — Quando eu foder você, não vai pensar em qualquer outro cara.
Corpo e alma, stukach, os dois me pertencerão.
Ele me penetra, é tão profundo e forte que a sensação de
preenchimento machuca. Eu o sinto entre minhas pernas, no meu estômago,
em todas as partes, rastejando lentamente sob minha pele, em uma camada
profunda, alcançando lugares que não pensei que fosse possível. Uma
espécie de prazer e ardor se misturam, ofegante, arqueio as costas, uma mão
alcançando sua nuca sobre o tecido do moletom. Ainda estou zonza quando
murmura.
— Porra... — Ele toma um tempo para si.
— Merda... — É a minha vez.
E então, acontece, ele se move, a mão deslizando sobre a minha
garganta, a outra esmagando a carne do meu quadril, um impacto tão forte
que o som de nossas peles sobrepõe os sons externos, uma, duas, três, tão
violentamente que meu estômago bate na borda de mármore algumas vezes
e preciso me segurar com mais força para não permitir que isso aconteça de
novo se não quiser mais marcas do que a que sua mão deixará em meu
quadril.
Ele tem a lateral do rosto esmagando minha bochecha e quando
outro relâmpago ilumina minimamente o cômodo, eu nos vejo nas vidraças
da cozinha, seu corpo grande sobre o meu, a silhueta que deveria me
apavorar, me dando prazer de forma insana. Eu gosto disso, porra, eu não
deveria, mas eu gosto, gosto de nos ver em reflexos, gosto de como pareço
pequena perto dele, gosto de como fico molhada em segundos só por ouvir
sua voz. Eu nunca assumiria para ele, no entanto.
— Foda-se, você ainda cheira à lavanda — ele diz. — Aquilo não
era uma fodida provocação, você gosta disso.
A mão que mantém em minha garganta desliza um pouco para cima,
o polegar toca meus lábios, eu corro a língua sobre ele antes de sugá-lo,
roubando uma respiração instável do meu stalker.
— Está tentando provar a si mesmo ou é só uma divagação?
— Você já provou, não preciso fazer isso.
— Bem, ainda acendo minha vela antes de dormir e continuarei
fazendo isso todas as noites.
Ele rosna, o polegar dento da minha boca, separando meus lábios, o
nariz pressionado contra a minha bochecha, eu sei que está perdendo o
controle, também estou.
— Acende sua fodida vela quando leva a mão entre as pernas,
stukach?
Ele vai tão fundo que meu gemido soa como um gritinho
estrangulado que se perde no cômodo ruidoso.
— Sim, e eu também uso meu óleo novo de lavanda para mover
meus dedos com mais precisão.
— Foda-se. — Ele empurra minhas costas contra a mesa e ele
precisa de apenas mais duas estocadas para que eu goze.
Tremor, eu sinto meu corpo inteiro tremer quando desmorono,
sentindo o corpo dele se mover lentamente sobre mim, quase caído sobre o
meu, minha bochecha pressionada contra o mármore gélido da mesa. Eu
sinto quando ele também goza, o membro lateja e se contrai dentro de mim,
murmúrios deixando os lábios que nunca vi. O arrependimento vem antes
que eu puxe minha calça. Eu não digo nada a ele, não compro nenhuma
briga, não faço nenhuma promessa que sei que não irei cumprir, eu apenas
me viro e começo a subir as escadas, deixando-o para trás como se ele
tivesse completado sua missão, exatamente como faz comigo.
Ciente de que nunca lutei de verdade contra ele.
Totalmente consciente de que minhas lágrimas nunca foram de
medo e sim de vergonha.
Eu sabia que isso aconteceria, eu sempre soube desde o primeiro
dia.
Havia passado três dias desde meu aniversário, eu passava as noites
em claro desde então, virando de um lado para o outro na cama em busca de
respostas as quais eu nunca teria se continuasse agindo da forma como
tenho feito. Eu havia transado com o cara que tem me perseguido há mais
de um mês, cujo o rosto jamais vi e pior, pior do que ter cedido a ele, foi ter
gostado disso.
Ele não tinha voltado desde então, talvez ele tivesse ficado
assustado quando encontrou sangue lá, eu havia sangrado, havia acontecido
por ter estado apenas com um garoto anos atrás, um garoto que eu nem
sabia se havia realmente ido tão fundo. E se ele pensar que tirou minha
virgindade? E se ficou assustado ou com medo que eu misturasse as coisas?
Também não havia visto Demyan desde nosso último encontro
quando o chamei de lixo e o deixei sem palavras. Algumas de minhas
perguntas sem respostas tinham a ver com ele, com suas intenções
assumindo as indústrias, me confrontando e provocando. Certamente sou
algum tipo de alvo fácil para ele e Demyan é do tipo que gosta de
atormentar garotas por aí. O problema é que meu stalker e ele haviam me
deixado com insônia, cheia de olheiras e ódio absoluto.
Quero me vingar dos dois, quero me vingar do meu stalker por
achar que pode fazer o que quiser, a hora que quiser comigo. Quero me
vingar de Demyan por ter me mandado chupar seu pau em troca de uma
proposta nova, como se eu fosse uma prostituta barata. Ele está enganado
comprando uma briga comigo, porque se eu fosse uma garota que se vende
para ganhar a vida, eu cobraria caro por isso.
— Terra para Nika — Faina murmura sobre meu ombro ao passar
por mim.
Encaro o relógio, ainda falta algum tempo até o fim do expediente.
— Sabe aquela sensação estranha de que algo vai dar errado?
Ela ri.
— Não, eu estranho quando a sensação é sobre sentir que algo vai
dar certo. Daí é uma novidade pra mim.
Balanço a cabeça, batendo a caneta na prancheta.
— Desde que Demyan voltou... Eu não sei, as coisas desandaram
por aqui.
Eu sinto uma sensação de sufocamento, quase como se ele estivesse
me observando o tempo todo enquanto prendo o ar e me movo ciente disso.
— Demyan? — Ela enruga o nariz. — Você ainda tá nisso? Ele é só
alguém rico assumindo seu papel de herdeiro. Além de gostoso — isso sai
como um murmúrio baixo.
É, eu também nunca assumiria isso, preferiria sair por Temnyy
Gorod em um carro de som anunciando que chupei meu stalker do que
assumir que Demyan Petrovich é algo bom de olhar.
— O que vai fazer final de semana? — Ela puxa um novo assunto
quando percebe que deixei o outro morrer.
— Cemitério. Congelei um pedaço de bolo para levar, morango,
você sabe...
— Era o preferido dele, não era?
Assinto.
— Posso ir com você se quiser, não tenho nada nesse final de
semana — ela diz isso zombando, como se todos os outros fossem lotados
de compromissos.
— Eu agradeço, mas... Sabe, eu preciso disso, desse tempo com ele.
Faina assente, um sorriso de pesar curvando os lábios.
É sempre um dia cansativo, as rotas de ônibus são escassas em
Temnyy Gorod e finais de semana são ainda piores, há apenas uma ida e
volta pela manhã e outra que deixa a cidade logo depois do meio-dia e
retorna à noite, perto das 21hrs.
— Me avisa se precisar de algo.
— Eu tô bem, juro...
É só uma sensação estranha que não passa, uma ansiedade absurda
sobre duas pessoas diferentes, mas que têm feito meu estômago se revirar
quase da mesma forma.
— Vá tomar um ar fresco, faça sua pausa, você parece pálida.
Engulo em seco.
Há três dias, eu havia esbarrado em Demyan e isso havia me feito
perder três noites de sono porque ele havia dito algo tão estúpido que ainda
faz meu rosto queimar.
— Agora você parece vermelha. O que há de errado?
Tiro meu capacete, ignorando as perguntas, então me afasto,
desviando do olhar de Efim no caminho.
— Intervalo — falo para o segurança na porta que assente e a abre
para mim.
O corredor está escuro e as lâmpadas de movimento não se acendem
quando passo pelo corredor de armários, me fazendo olhar para todos os
lados só para ter certeza de que estou sozinha. Tento ser silenciosa e não
chamar atenção e quase fico feliz ao avistar a porta do banheiro, o problema
é que logo mais à frente, encostado à grande porta de esteira, está Demyan,
seu cigarro brilhando na escuridão.
— O que aconteceu com as luzes? — pergunto.
— Elas estão assombradas.
— O quê? — é quase um grito incrédulo, enquanto cruzo os braços
e uno as sobrancelhas.
Está escuro aqui, mas a porta aberta faz os refletores externos
iluminarem sua silhueta esguia e os cachos no topo da cabeça. Demyan
inclina em direção ao céu e sopra uma nuvem de fumaça. Raiva borbulha
dentro de mim ao encará-lo e ela se fortalece a cada segundo em que
presencio sua calma e serenidade. A leveza de alguém que não tem medo,
que não tem traumas, que teve dinheiro para mandar recolherem qualquer
merda que aparecesse em seu caminho.
— Só isso explica todas elas terem parado de funcionar ao mesmo
tempo.
Solto uma lufada de ar.
Fique na sua, Annika, fique na sua...
— Ou talvez você esteja gastando todo o seu dinheiro com cocaína e
putas e não pode gastar com o que realmente deveria importar.
A cabeça de Demyan gira lentamente na minha direção.
Ele não responde de imediato, está pensando sobre sua resposta. Eu
odeio isso, odeio que ele pense antes de falar e ainda assim escolha as
palavras mais erradas que poderia dizer.
É como se ele gostasse de ser alguém ruim. Como se fizesse
questão.
— Então é isso que falam sobre mim? Cocaína e putas? — Ele coça
o rosto com a mesma mão que segura o cigarro, ele usa o pé apoiado na
parede para impulsionar o corpo e se afastar.
Merda.
Lá vem ele.
— E algumas coisas mais.
— Eles falam também sobre o quanto gosto de foder garotas como
você? Cheias de raiva e fogo dentro de si? — O sorriso em seu rosto faz
meu estômago doer.
Os dentes são levemente separados de uma forma que não deveria
ser tão bonita, eu sempre tive um fraco por pequenas imperfeições.
— Você teria que me amarrar e fazer isso contra a minha vontade.
Demyan traga, pensativo.
— Vou descobrir seus segredos... — Ele dá alguns passos à frente.
— E então vou usar todos eles contra você.
— Por quê? — pergunto, não deveria, eu deveria brigar com ele,
mas faz parte do meu plano parecer fraca.
— Porque eu sei o que fez, sei sobre suas denúncias, sei que tentou
expor as indústrias na internet. Não obteve sucesso algum, ninguém soube
que foi você, não é? Tentou fazer isso de forma anônima, tentou me
derrubar sem correr riscos, mas eu sei, eu não sou Anatoli, eu sou alguém
que meu pai treinou para liderar todo seu império.
Engulo em seco, absorvendo suas palavras, ele sabe.
Eu havia denunciado as indústrias, feito fotos, exposto situações,
exigido melhorias, mudanças. Eu tinha feito algumas exigências como
Annika, mas havia ido muito mais a fundo atrás de uma foto anônima nas
redes sociais. Demyan sabe, ele sempre soube.
— Não, Demyan. — Estalo os lábios. — Você é um projeto que deu
errado — murmuro. — Acha que seu pai estaria orgulhoso com você
entregando uma rede de empresas na mão do vice-diretor? — Sorrio.
Ele me encara, alguma coisa brilha em seus olhos, está irritado, mas
há algo a mais lá. Talvez ele só tenha se dado conta de que seus
funcionários sabem mais sobre a empresa do que ele pensou que saberiam.
— Eu vou quebrar você. — Parece uma promessa.
— Não há nada para quebrar. — Inclino a cabeça, nossos narizes se
tocam, eu sinto sua respiração quente contra o meu rosto frio.
— Quando eu fizer da sua vida aqui um inferno, vai perceber que
está errada.
— Não, eu não vou. — Meus olhos estão presos nos dele quando
digo baixinho: — Porque eu me demito.
Demyan congela.
Ele congela como um fodido, o olhar preso no meu quando dou dois
passos para longe dele, incrédulo, então eu avanço sobre ele de forma
inesperada.
— Buuuh.
Só que ele não se esquiva como eu, em vez disso, seus olhos
continuam presos em mim como se ele tivesse acabado de perder seu
brinquedo favorito.
Demyan estava jogando comigo achando que eu era um peão, ele se
enganou, em um jogo de xadrez, eu nasci para ser a rainha.
O cemitério faz fronteira com o oeste, ele literalmente começa nos
limites da cidade, de modo que o lado leste das terras abrace uma parte da
Kupol que fica do lado esquerdo da estrada que leva a Granitsa. Depois de
passar a tarde em uma livraria, correndo meus dedos sobre lombadas de
livros que meu dinheiro não pode pagar, me dei ao luxo de um café em uma
cafeteria que cedia o sinal de internet e fiz algumas pesquisas. Passei duas
horas lá, o bastante para que eu conseguisse ler algumas sinopses com
calma e pesquisar por um gênero de livro que ainda não havia lido. Eu
havia achado dois e-books que chamaram a minha atenção.
Agora estou aqui, o céu cinzento é consequência de um dia nublado
e as nuvens carregadas quase sugerem que irá chover, mas não tenho
certeza porque sou péssima nisso, era meu pai quem sempre acertava,
bastava um olhar rápido para cima.
Meus passos são acolhidos por folhas secas caídas no chão por
causa de toda a vegetação que abraça esse lugar, elas estão por todas as
partes, acumuladas sobre as sepulturas esquecidas e empoeiradas que
exibem retratos de pessoas que um dia estiveram entre nós, mas que hoje
não recebem uma única visita capaz de afastar a sujeira aglomerada sobre
seus ossos.
Não há ninguém, motivo pelo qual escolho vir a essa hora.
Com o anoitecer, os visitantes recolhem seus pertences e partem, é
justamente quando chego, esbarrando em um e outro nos corredores
estreitos entre as sepulturas enquanto absorvo cada detalhe do lugar, os
costumes e tradições presentes nos pequenos detalhes, desde os ícones
religiosos deixados cuidadosamente às velas acesas, que exibem chamas
tremeluzentes por causa do vento.
Atravesso todo o local, abraçada pela atmosfera sombria, a lua
ganhando destaque no céu, lutando para se espreitar entre as nuvens cheias.
Quando chego no túmulo do meu pai, deixo minha sacola sobre a
mesa que instalei ao lado, uma antiga tradição pagã que foi banida pela
igreja ortodoxa porque as crenças não eram compatíveis, mas que mesmo
anos depois, apesar da religião de cada frequentador, ainda é muito
presente. A igreja considera errado fazer isso, não vê sentido se alimentar
junto de um corpo sem vida e prega que o ideal é fazer orações por suas
almas em vez disso.
Ainda assim, aqui estou eu, mesmo com a ameaça de banimento das
igrejas para quem continuasse fazendo isso anos atrás, cercada por dezenas
de mesas, abraçando um costume pagão adotado por um povo religioso
porque apesar de tudo, nos faz sentir bem, até mesmo mais próximos deles,
de quem perdemos, de quem precisamos enterrar um dia.
— Oi, pai. — Encaro sua foto em preto e branco, uma imagem de
uma época em que ele era mais feliz, quando era jovem, quando minha mãe
era viva ainda.
Ela havia sido cremada, odiava a ideia de ter seu corpo sob a terra,
principalmente a dessa cidade, por isso ela sempre repetiu para ele, queria
suas cinzas espalhadas em qualquer buraco, desde que ele não tivesse sido
cavado em Temnyy Gorod.
— Eu trouxe bolo. — Jogo uma garrafa de água sobre o túmulo e
uso o pano que trouxe para limpar. — E uma notícia: eu me demiti. —
Engasgo com uma risada. — Eu não sei onde estava com a cabeça, fiz algo
estúpido porque queria obter vantagem sobre uma situação. — Esfrego sua
foto, deixando a imagem de seu rosto mais vivida, limpa. — Você sempre
teve razão sobre esse defeito meu, mas não há como evitar.
Uso o resto da água da minha garrafa de um litro para lavar as mãos.
— Tudo por causa daquele merdinha... — Respiro fundo. — Ele me
tira do sério, Deus... Pai, eu o jogaria em uma cova dessas e riria enquanto o
cubro de terra.
Acendo algumas velas sobre o túmulo e bato as mãos uma na outra.
— O bolo é de morango, o seu preferido. — Me sento no banquinho
diante da mesa e encaro o mato que começou a crescer desde a última vez
que vim.
Ainda assim, seria trabalho para a próxima vinda até aqui.
— Agora eu preciso de um emprego, talvez eu deixe o sul me
engolir de vez. — Começo a limpar a mesa na qual irei comer. — Não há
quase mais moradores por lá, eu teria que andar bastante pelo bairro, isso se
conseguisse emprego em qualquer outra indústria que não fosse de
Demyan, o que é bem difícil, já que a família dele tem dominado todo
aquele lugar. — Talvez eu rode bolsinha perto do leste.
As chamas da vela que acendi balançam, eu me arrependo.
— É brincadeira.
Lavo as mãos de novo com as últimas gotas de água.
— Que merda, pai, eu tô tão fodida... — Me sento, abrindo o pote
com o bolo e pegando o garfo. — Eu deveria ter dado o fora quando pude,
eu sei, você teria chutado minha bunda se pudesse, foi estúpido — suspiro.
— Igualzinha a ela, não é?
Ele costumava me dizer como eu parecia com a minha mãe quando
tomava algumas atitudes impulsivas motivada pela raiva. Ela era vingativa,
ele era um poço sem fundo de tranquilidade.
— Você teria me feito implorar meu emprego de volta — digo com
a boca cheia. — E eu teria feito isso por você enquanto ainda queimo por
aquela família. Ainda assim eu teria — solto um gemido. — Você também
amaria esse bolo. — Seco as lágrimas sobre as bochechas. — Teríamos
brigado pela última fatia.

Abro os olhos, mas minha visão leva um tempo até se acostumar


com a escuridão à minha volta, então percebo onde estou. Merda. Eu havia
dormido. Vasculho a bolsa em busca do celular e finalmente relaxo quando
percebo que tenho algum tempo, apesar de parecer tarde demais. No céu, a
luz da lua escapa apenas por pequenas frestas entre nuvens pesadas,
iluminando pouco o local. A maior parte das velas estão apagadas agora,
inclusive as que acendi para o meu pai, talvez por causa de um vento forte
enquanto dormi.
Guardo meus pertences e quando estou prestes a deixar as flores que
trouxe sobre o túmulo do meu pai, antes de me despedir dele, eu vejo algo
que não estava lá antes. A porra de um pequeno buquê de lavanda.
— Então é essa a cara que você faz sempre que acorda e a encontra
lá?
Ergo o olhar, em choque, algo queimando dentro de mim,
borbulhando em meu estômago. Eu sinto o impacto de sua presença, sinto o
peso do que fizemos da última vez que nos vimos.
— Como me achou aqui?
— Eu te achei pelo cheiro — provoca.
Ele está a cerca de um metro e meio da lápide do meu pai, sentado
sobre a sepultura de alguém, dentro de roupas pretas e um moletom com
capuz que o engole, as mãos enfiadas nos bolsos da frente, tão à vontade
com os mortos que quase parece em casa.
Olho para o lado, eu poderia correr se não tivessem os cercados que
envolvem o cemitério, além do mais, já passamos disso.
— Eu seria mais feliz se seu bom senso funcionasse tão bem quanto
seu faro.
Ele ri, as velas mais distantes se movem como espíritos inquietos
que zombam de mim.
— O que quer aqui? — pergunto. — Você não tem uma lista? Por
que não começa ela de trás pra frente hoje? — Solto o ar enquanto caminho,
mas tropeço em um degrau que contorna uma sepultura.
Há apenas escuridão e escuridão à nossa volta, as folhas das árvores
balançam com o vento que se torna mais forte, me fazendo fechar o
sobretudo. Termino de recolher minhas coisas, mas não consigo encarar o
túmulo do meu pai, eu havia jogado muita merda sobre ele hoje, mas havia
omitido a maior delas.
— Não é um bom dia de novo? — Ele começa a andar.
— Não.
— Por causa do seu pai ou por que pediu demissão?
Paro, me viro, ele apaga uma vela com a mão como se a pequena
chama fizesse alguma diferença nessa escuridão.
— Como sabe? Como sabia do meu aniversário? Como sabia que eu
estava aqui?
— Eu sei tudo.
O ar condensado se torna cada vez mais forte conforme o frio
aumenta.
— Muitas perguntas, por que não vamos direto ao ponto?
Balanço a cabeça.
— Quando foi que isso parou de se tornar uma perseguição para se
tornar... Sexo cheio de raiva e... — Engulo em seco. — Você não vai sair
vitorioso essa noite.
— Começou quando passou a ter sonhos eróticos com seu fodido
stalker.
— Por favor, respeite os mortos.
— Os mortos também já foram pecadores um dia.
Engulo em seco.
— Pule a letra A da sua lista hoje, eu não estou a fim.
Andando em direção à saída, ouço os passos dele atrás de mim, mais
lentos e despreocupados do que os meus.
— O que mudou desde a noite do seu aniversário?
— Quando você me fodeu sem nem mesmo encostar sua boca em
mim? Não, sei, me diga você? O que mudou?
A luz do poste diante da entrada está queimada e dois anjos de
estátua sorriem, um a cada lado do portão, deteriorados, cobertos por sujeira
negra e musgo, guardando este lugar em uma postura impecável, como se
estivessem prontos para alcançarem voo.
A névoa se estende sobre o chão, em meio às lápides, envolvendo o
cemitério em um véu sinistro e melancólico enquanto permito que meu
stalker se aproxime de mim.
— Você não parecia se importar com a falta da minha boca quando
gozou pra mim. Nem quando subiu as escadas quando estava satisfeita.
— Eu nem sei o seu nome — cuspo as palavras.
— Que diferença isso faz? Um nome? — O nariz dele toca o meu.
Meu estômago se afunda, eu respiro fundo, a cabeça inclina, por um
segundo, apenas um, eu me lembro do meu confronto com Demyan, quando
ficamos tão pertos quanto meu stalker e eu estamos agora, quando ganhei o
jogo que estávamos jogando. Mas e esse? Eu tinha todas as indicações de
que perderia isso daqui.
— Isso aqui acabou, eu não vou mais ceder, é insano, você é
insano...
Eu não quero, mas fecho os olhos quando sua mão se encaixa em
minha nuca. Tudo o que ele fez foi duro desde então, cada fodida vez que
me tocou, na biblioteca, no meu quarto, na minha cama, na cozinha, mas
isso, isso é quase o fantasma de um toque, tão sutil e delicado que quase
posso jurar que é alucinação.
Ele me empurra e me gira, minhas costas batem no pequeno muro
de tijolos sem revestimento que sustenta a escultura de anjo, a bolsa cai do
meu ombro, afundando no mato alto desse lado, ainda assim, seu toque
continua delicado, o polegar contornando meus lábios lentamente, depois o
queixo, enquanto o meio da minha perna pulsa de uma maneira insana.
— Não sou uma prostituta, não sou uma boneca, não sou um objeto
que você usa quando quer e depois descarta.
Um bater de asas me faz erguer a cabeça, eu não acho que tudo isso
pode ficar ainda mais sombrio e macabro, até que um corvo pousa na
emenda do portão de ferro preto.
— Você é o que eu quero que você seja.
Eu sinto a respiração dele tocar meus lábios, eu quase posso sonhar
acordada com isso.
— Por que você nunca me beija?
Silêncio.
— Então é isso, não é? — O riso dele é de escárnio. — Não
romantize essa merda, stukach, eu não sou o tipo de cara que anda de mãos
dadas ou faz declarações. Isso aqui não é nada além do que é. — Ele se
afasta e começa a andar.
Encaro suas costas, a silhueta sendo engolida pela escuridão, as
botas mergulhadas na névoa densa. Ele havia erguido seu muro em tempo
recorde essa noite.
— Eu tô quase pensando que você não sabe beijar. — Minha voz é
de puro deboche.
Ele para.
Se vira.
Começa a andar na minha direção.
Merda.
Eu sempre soube que o orgulho é seu ponto fraco.
A mão dele chega primeiro na minha garganta, forçando meu corpo
contra o muro, em seguida, seus lábios mergulham nos meus, frios, cheios,
úmidos, famintos. É um beijo tão cruel e insano que faz minha mente
derreter lentamente, medo, barreiras, tudo se destrói quando ele força o
corpo contra mim, cheio de ira e desejo. Eu me inclino na ponta dos pés e
seguro sua nuca, a ponta dos meus dedos roçando em seus cabelos baixos,
raspados.
O rosnado que ele deixa se mistura com o gemido que escapa da
minha garganta. A pele da nuca é o mais próximo que ele permite que eu
chegue dele. O corvo solta um som alto e imponente que emerge através de
todo o cemitério, me causando mais arrepios, porque mesmo que eu nunca
assuma para ninguém, preciso dizer que isso o que está acontecendo aqui, é
o melhor e mais perturbador de Temnyy Gorod.
— Oh... — Sugo o lábio inferior dele quando se afasta
minimamente, trazendo-o até mim.
Desesperada, estou desesperada por ele.
E só por isso começo a abrir sua calça.
Ele ri.
— Achei que quisesse respeitar os mortos.
Meu stalker me ajuda com a meia grossa que uso por baixo da saia,
roupas demais, frio demais, um cemitério e ainda assim... Aqui estamos
nós, aqui estou eu, permitindo que ele rasgue com os dentes um
preservativo que carrega consigo porque sabe o caminho que sempre
tomamos.
— Porra, stukach, isso era pra ser sobre eu perseguindo e
assombrando você.
Quando ele me ergue e me penetra, sinto minha cabeça girar, a
sensação de preenchimento é tão satisfatória que ela camufla a vergonha
que sinto de mim mesma. Ele usa a parede atrás do meu corpo para ajudar a
sustentar meu peso enquanto se enterra em mim.
Jogo a cabeça para trás por um segundo, ele cobre a pele do pescoço
com beijos enquanto murmura palavras que não consigo compreender e
continua se enterrando em mim, forte, fundo, uma mão esmagando meu
quadril. Nossos lábios se encontram outra vez, agora que eles conhecem o
caminho, apenas não conseguimos parar.
Então ele só continua fazendo isso, se movendo em mim enquanto
me beija, fazendo minha cabeça girar três vezes mais. Meus braços estão
em volta da sua nuca. Mergulho as mãos em seus cabelos curtos, mas
quando estou deslizando-a para cima, ele empurra a cabeça para trás.
— Afaste suas mãos de mim.
Ele para de se mover, nós dois estamos ofegantes, é como se ele
estivesse se dando conta pela primeira vez do quão arriscado é cair nisso
comigo, do quão perto da sua identidade posso chegar.
— Eu tenho que ir.
— Foda-se. — Empurro seu peito e bato os sapatos no mato alto
antes de ajeitar minhas roupas e vê-lo fazer o mesmo.
Meu stalker começa a andar, ele não diz uma maldita palavra a
respeito do que aconteceu.
— Não volte! — grito, cheia de raiva e humilhação. — Não volte
nunca mais!
Quando ele passa pelo portão e o deixa aberto, junto minha bolsa,
ignorando o grito ensurdecedor do corvo e corro também, porque não quero
que os mortos saiam com ele.
Então eu fecho as grades, envolvo-as com a corrente e quando olho
para a estrada, ele já não está mais lá, se dissipou tão rapidamente quanto a
névoa que permeia esse lugar.
Duas semanas, duas fodidas semanas haviam se passado desde que
fodi Annika em um maldito cemitério, desde que a segui até lá na intenção
de aparecer para ela como Demyan só para tirá-la do sério, mas que acabei
levando as coisas por outro caminho porque como stalker, eu tinha algo
dela que não tinha com mais ninguém. Eu havia deixado Annika ir muito
além, havia fodido toda a situação quando continuei a seguindo mesmo
quando tinha certeza de que ela não sabia quem eu era e continuo fazendo
isso mesmo hoje, quase dois meses depois.
Se ela tocasse no meu cabelo saberia, porra, ela saberia, eu vejo
como Annika olha para eles enquanto fala comigo como Demyan, vejo
como os nota, como seus olhos correm minunciosamente sobre mim. É um
erro do caralho fazer isso como os dois, persegui-la usando as duas
identidades, é a maior burrice e ainda assim o faço, mesmo que não assuma
as reais intenções por trás disso. Por esse motivo, eu a deixei naquele
cemitério, por esse motivo eu saí tão abruptamente, porque caí em mim,
porque me dei conta de que bastava um toque mais acima e talvez ela
juntasse as peças.
Então ela me teria na mão, seu maior inimigo, a pessoa que mais
odeia no mundo, ela teria uma carta na manga e uma informação sobre mim
que poderia fazer o que sobrou do meu império de merda, ruir. Annika
pisaria sobre minhas cinzas enquanto sorri, faria isso sendo feliz, porque
essa é quem ela é, uma garota vingativa com tanta sede de vingança quanto
eu e tão impulsiva que mesmo precisando do emprego, havia se demitido só
para me derrotar no nosso jogo doentio que nem sequer havia durado muito.
Annika não havia hesitado, mesmo precisando do dinheiro para
viver, mesmo trabalhando anos na empresa, mesmo sabendo que seria
difícil arrumar qualquer coisa se saísse de lá, ainda assim, ela apenas se
inclinou contra mim, sorriu e jogou o meu jogo; não, pior, ela havia
ganhado. Ela me derrotou como Demyan, ela me derrotou como seu stalker
quando gostou do jogo mental que eu estava fazendo com ela. Porra, aquela
garota tinha entrado na minha mente uma vez quando teve oportunidade de
descobrir minha identidade, mas foi tão insana que preferiu se vingar de
mim me dando o troco, me fazendo sonhar com ela.
Procurar pelo paradeiro de Roman me dava um motivo para
continuar vivo, mas jogar com Annika me fazia sentir prazer nisso.
— Sua falta de concentração tem cara de ser uma boceta.
Ergo o olhar para Arkady, ele tem um sorriso de tubarão no rosto,
cheio de intenções ruins e ânsia pela resposta errada, está me testando desde
o dia em que coloquei os pés no poço.
— Nunca encontrei uma boceta que valha a pena meus
pensamentos.
— Sua luta é em dez minutos.
Desejo dizer que não há motivo para que ele e Zakhar me avisem as
horas de cada fodida luta, que tenho um relógio que funciona bem, só que
eu sei que essas pequenas interações sobre o tempo são tudo o que permito
que eles tenham de mim e por isso, os dois aproveitam desse momento.
— Vou ganhar todas elas. — Desço da banqueta diante do balcão e
pego minha mala.
— É ainda mais arrogante que seu amigo, as pessoas gostam disso,
está se tornando o novo Roman.
O novo Roman.
Fecho as mãos ao lado dos quadris.
Vejo vermelho.
Zakhar está atrás da cor que toma minha visão, um lembrete de que
não posso me perder em minha atuação, em meus objetivos. Ele tem a mão
sobre sua arma como se precisasse me lembrar quem está no comando
desse lugar.
— Não quero ser o novo Roman, tenho treinado pra ser melhor do
que ele.
Primeiro, surpresa toma as feições duras e traiçoeiras de Arkady,
depois, admiração, é quase como se eu tivesse acabado de pular dez degraus
de uma vez, o que me deixa com mais dúvidas do que antes. Estar contra
Roman apenas seria algo bom se Roman estivesse contra o poço em algum
momento.
— Ganhe dinheiro para esse lugar. — Ele bate em minha nuca
quando me empurra em direção à multidão.
Mãos acertam meus ombros, cabeça, peito, rosto, preciso me
esquivar de todos ao passar pelo mar de homens até o local da luta, onde
jogo a mala ao lado da pequena escada de ferro. A porta se abre, os ruídos
mal podem ser ouvidos por causa das vozes, meu nome é aclamado de uma
forma que nunca vi, mas isso me incomoda, me deixa nervoso e
desconfortável, porque esse sou eu e não sou Roman.
Meu melhor amigo amava essa merda, vi isso acontecer, vi quando
todos repetiram seu nome, como ele parecia orgulhoso por ser o melhor em
algo. E agora aqui estamos nós, todos ainda sabem quem ele é, mas o nome
de outra pessoa substituiu o seu.
Diante de mim, meu oponente já está se exibindo do outro lado do
poço, cheio de tatuagens amadoras espalhadas através dos músculos
trabalhados fortemente. Ele me dá um sorriso imoral, o dente de prata brilha
contra os holofotes virados para nós. Há algo em seu olhar que demonstra
que ele está certo de que será o vencedor essa noite. Eu deixo que ele ande
de um lado a outro, deixo que ele se exiba, permito que ele faça isso
enquanto ri da minha cara e me diminui. Não sou tão forte quanto ele, sou
um pouco mais magro, tenho uma cara menos ameaçadora, mas permito
que ele faça isso porque tenho algo que ele não tem, inteligência e a internet
a meu favor.
Como sempre, eu havia feito algumas pesquisas. Matou a própria
mãe a facadas, assalto à mão armada, troca de tiros com a polícia, um
policial ferido e com sequelas. Foragido por todos os crimes que cometeu
porque ninguém colocou a mão nele ainda. Bom, eu o faria pagar um pouco
por seus crimes essa noite e por zombar de mim diante de uma plateia.
Quando a luta começa, ele não vem com tudo, mas apesar de não ir
com sede ao pote, meu adversário comete um erro enorme, está concentrado
do lado de fora, onde metade dos homens gritam seu nome, isso o faz se
sentir especial pra caralho, pelo menos em um lugar alguém aceita suas
merdas, porque cada um aqui já fez coisas do tipo ou piores do que ele.
— Acha que pode me derrotar, novato? — A prata brilha quando ele
ri.
Ele avança com fúria sobre mim, golpeando com força e sem
piedade. Me defendo instintivamente, cada golpe na minha direção sendo
respondido por um contra-ataque rapidamente calculado. Em pouco tempo,
o ringue se transforma em caos absoluto, corpos suados, ensanguentados,
grunhidos de dor. Adrenalina corre em minhas veias, meu nome é aclamado
pela multidão, Roman vem na minha mente e um soco abre um corte no
supercílio, fazendo sangue jorrar sobre nós.
Merda.
— Seu amigo teria me dado mais trabalho.
Foda-se.
Faço um movimento de reversão, alterando nossas posições e
ganhando vantagem, o sangue sobre meus olhos dificulta a visão.
— Quando estiver do outro lado... — murmuro, o sorriso ainda mais
perturbador do que o dele, agora cheio de sangue entre os dentes. — Mande
lembranças à sua mãe.
Eu vejo incredulidade brilhar nos olhos negros, é quando afrouxa o
aperto e consigo ficar de pé. Ele avança sobre mim, cheio de raiva, mas
agora sua mente já está quebrada, longe demais para que ele se concentre
no que está acontecendo aqui. Acerto uma série de socos, mas quando estou
correndo o antebraço sobre o sangue, para afastá-lo dos olhos, ele acerta um
chute em minhas costelas, me fazendo cair contra a grade que cerca o poço.
Me abaixo quando o soco vem, a mão dele atinge o ferro, fazendo-o
uivar, é quando avanço sobre ele outra vez, e de novo, e de novo. A dor se
torna minha companheira, uma presença que me lembra quanto sou frágil
apesar de me sentir invencível às vezes. Minhas pernas vacilam, mas não
posso recuar, então dou tudo de mim, na minha luta mais difícil, ciente de
que precisarei de alguns pontos e que tenho uma costela quebrada.
Com um último golpe certeiro, faço meu oponente cair, seu corpo
ensanguentado marcado pelo fim de uma luta cruel e sangrenta que poderia
ser vingada fora do poço se ele decidisse que eu sou seu próximo alvo.
Uma garota em roupas apertadas e curtas ergue meu braço, eu
permito que ela faça isso enquanto meu nome é repetido com força a plenos
pulmões.
Demyan!
Demyan!
O sentimento de vazio permanece, embora o lugar esteja cheio. Ele
está aqui. Está aqui desde quando me perdi de mim mesmo de verdade pela
primeira vez.
Quando todos os meus outros problemas pareceram estúpidos
comparados a isso.
E agora eu tenho uma anotação sobre Roman. Por que Arkady o
veria com hostilidade quando Roman tinha tanto potencial para encher seus
bolsos de dinheiro?
Meu braço cai ao lado do corpo, a dor rasteja sob minha pele, sob
meus músculos, ela se infiltra em meus ossos.
E ainda assim, quando desço as escadas do poço, me perguntando se
algum dia meu corpo sem vida irá cair através da escotilha instalada no
chão, no final do ciclo, faço algo estúpido, eu dirijo até a casa da Annika e
quebro a promessa que fiz para mim mesmo sobre não procurá-la mais
como stalker.
Quinze dias se passaram desde minha demissão e eu não havia
conseguido nenhum emprego, mesmo tendo trilhado todo o sul. Fui à duas
entrevistas, quase implorei por uma oportunidade em qualquer área que
estivesse disponível e nada, mais da metade das indústrias fazia parte da
rede que Demyan havia herdado e o que restou delas, além da situação
trabalhista ser dez vezes mais alarmante, duas estavam falindo e as demais
não estavam contratando.
Eu havia lindamente, verdadeiramente, irreversivelmente, me
fodido.
E agora não há mais como voltar atrás, a única opção é rastejar atrás
de Demyan e pedir perdão, mas se ele havia me mandado chupar seu pau
por uma proposta que eu nem tinha muito interesse, nem quero pensar nas
coisas que ele me mandaria fazer em troca de algo que realmente quero.
Mais do que isso me deixa aflita nesse momento, e é o sumiço do
meu stalker, duas semanas desde o cemitério, eu havia dito para que ele não
me procurasse mais e ele o fez. Duas fodidas semanas. Eu deveria estar
feliz por isso, mas uma parte minha sente algo que sou incapaz de explicar,
poderia dizer que é o medo dele estar tramando algo maior, poderia dizer
que o embrulho que sinto no meu estômago quando a noite chega sem ele, é
só desespero por achar que a qualquer momento ele estará entrando e me
dando o troco. Mas não.
Quando caminho até a janela e encaro as sombras do outro lado da
rua, percebo que a sensação estranha que não reconheço quando não o vejo
lá é decepção.
Eu me encontro totalmente entediada, decepcionada, preocupada e
triste. Meu stalker havia me dado dor de cabeça e muito medo no início,
mas ele também havia me dado algo a mais, algo pelo qual esperar e
ninguém tem isso nesse lugar.
— Por onde você anda, hein? — Fecho as cortinas, checo se a vela
está longe o bastante dos livros e me deito, sem nenhum livro em mãos.
Agora eu também não tinha um emprego, não tinha nada.
Com esse pensamento e cheia de preocupações sobre o futuro,
adormeço.

Acordo com o movimento do colchão e abro os olhos, a vela está


apagada e preciso de alguns segundos até que minha visão se acostume com
a escuridão do quarto. Diante de mim, sentado de costas, nos pés da cama,
meu stalker se mantém nas sombras, a respiração pesada como se ele
tivesse corrido uma maratona para chegar até aqui. Puxo as cobertas até os
seios, embora cobertos, o frio caiu sobre Temnyy Gorod essa semana, as
temperaturas começaram a cair e eu precisava me preparar para a Noite
Longa.
— Pensei que não voltaria...
Ele solta um grunhido, é quase animalesco.
— Era o que você queria.
Era o que eu pensava que queria até você não voltar.
Em vez de dizer isso, nós ficamos em silêncio por um tempo, então
ele solta um suspiro, trêmulo, cansado.
— O que aconteceu com você?
Espero ele dizer que não somos isso, que ele quem faz as perguntas
e eu obedeço, mas em vez disso, ele me surpreende respondendo:
— Uma briga.
Solto o ar, isso é novo, ele com a guarda baixa.
— Então além de um perseguidor que mantém uma lista, você
também entra em lutas?
— Às vezes sim, todas elas com um propósito.
— O propósito de se matar?
Ele se mexe na cama, mas acaba soltando um gemido alto de dor
que me faz impulsionar meu corpo, ainda assim não vejo nada além de
escuridão e da silhueta dele.
— O que veio fazer aqui? — pergunto. — Duas semanas...
— Vim me certificar de que mantém meu segredo.
Faço um som exagerado com a garganta.
— Você veio porque sou sua preferida.
Há algo no meu estômago, borbulhando a cada respiração que ouço
dele.
— Eu vim porque era o lugar mais perto, eu precisava me limpar.
— Você veio do leste? Foi lá que andou arrumando confusão?
— Você sabe demais, cuidado com a sua boca, pessoas morrem por
menos do que isso.
— Se morasse no Gigante Laranja, teria cortado caminho pelo
centro.
— Ninguém corta pelo centro pra chegar no oeste a menos que
precise abastecer.
— Então você é mesmo do Gigante Laranja?
— Não, Annika, eu não sou.
Claro que não, as roupas caras, os sobretudos novos de material bom
não faziam parte dessa cidade. Ele era de fora, de fora ou... Do norte.
— Você faz parte da elite? — cuspo as palavras cheias de desprezo.
— Eu queimaria aquele lugar se pudesse.
Relaxo.
Então ele se mete em confusões no leste e não vive no norte. Duas
coisas sobre meu stalker, é um avanço e tanto.
— Por que acha que sou do norte?
— Suas roupas, o perfume caro. Você também é bem arrogante.
Ele solta um grunhido de dor.
— O que há de errado com você? — Me aproximo. — Precisa de
um hospital?
Ele fica de pé, estou quase na borda da cama quando me sento sobre
os joelhos dobrados, encarando apenas sombras e mais nada.
— Eu vim trazer sua lanterna. — Ele estica o braço e me entrega o
objeto.
Muito lentamente, pego-a na mão, o contato de nossas peles me faz
arrepiar, eletricidade pura, tensão, desejo reprimido.
— Minha lanterna? Por quê?
— Não era o que queria?
Engulo em seco, eu penso na possibilidade de apontá-la para ele.
— Como sabe que eu não vou apenas virá-la pra você e acabar logo
com isso?
— Se fizer, isso acaba. Quer que isso acabe, Annika?
Giro a lanterna entre meus dedos, encarando as sombras negras dela
na minha mão.
— Me mataria se eu fizesse isso?
— Por que não descobre sozinha? — A voz dele é quase divertida,
mas há crueldade nela também.
Coloco a lanterna de lado.
— Você não quer. — Não é uma pergunta. — Eu apenas sabia disso.
Ele começa a andar, mas geme e manca a cada passo dado.
— Espere.
Meu stalker para.
— Há mais perguntas?
— Eu quero que fique.
Eu quero que fique.
Eu.
Quero.
Que.
Fique.
A frase se repete em minha cabeça como um eco vergonhoso.
— Tenho uma costela quebrada, essa é sua forma de me matar?
Perfurando meus pulmões? — Ele se aproxima, parando diante da cama.
— Não, eu serei cuidadosa. Dessa vez. A morte está destinada para
o final, quando isso acabar.
Eu não poderia gostar mais do som da risada dele, é sombria e
obscura, carregada de más intenções, como ele inteiro.
— É mais perturbada do que eu — murmura enquanto pouso a mão
cuidadosamente em sua nuca, ciente de que não devo ultrapassar suas
barreiras como da última vez.
— Não, não tanto quanto você, mas com certeza a pior da sua lista.
Os lábios dele estão contra os meus quando eu os sinto se curvarem
em um sorriso, os meus se movem juntos e um gemido escapa quando ele
segura minha bunda com força demais para alguém com as costelas
quebradas. Lentamente, meu stalker se deita sobre mim na cama e mais
lentamente ainda eu me movo sobre ele.
Quando me sento sobre seu membro duro, não sei mais quais
gemidos são de dor ou de prazer, eles apenas se misturam e se tornam uma
coisa só. A mão dele na minha nuca, forte e meio agressiva me deixa
molhada, ele usa a pressão para ajudar a me mover sobre ele, a boca sempre
colada na minha em um beijo úmido e quente com gosto metálico de
sangue.
— E o outro cara? — pergunto.
Ele solta uma lufada de ar.
— Entrei na mente dele antes de acabar com ele.
Sorrio enquanto abro suas calças, a vingança ficaria para outra hora.
— Esse é o meu cara... — murmuro.
Duas semanas haviam mudado tudo.
Duas semanas haviam mexido com a minha mente.
Ele me puxa para outro beijo, mais apressado e forte dessa vez, mas
precisa se afastar quando uiva com uma dor aguda.
— Foda-se, bolso de trás — ele diz, gemendo de dor ao levantar os
quadris para que eu pegue.
Há uma camisinha lá e me pergunto se ele sabia que teria um bom
tempo comigo ou se isso é para as outras garotas de sua maldita lista.
— Não quero pensar que você me acha tão fácil assim... — Deslizo
suas calças para fora do corpo.
— Você é tudo, menos uma garota fácil.
Tento não rir enquanto abro o moletom, ele permite, meu stalker
permite que eu tire toda a sua roupa essa noite. Ele grunhe de dor quando
movo a camiseta para fora de seu corpo. Espalmo as mãos sobre o abdômen
plano, ele se encolhe quando minhas mãos tocam as costelas do lado
esquerdo.
— Precisa de um hospital — murmuro.
— Preciso enterrar meu pau em você — ele responde.
Meu peito não deveria se agitar com esse tipo de frase, mas ele se
agita cada vez que meu stalker diz algo como isso.
As mãos dele pousam sobre minhas coxas e elas deslizam para cima
e para baixo, eu começo a me despir, embora agora sejamos apenas toques e
sensações, não há como ver nada além de curvas escuras. Quando a última
peça cai no chão, puxo as cobertas sobre minhas costas, a mão dele brinca
com meus seios rígidos e aposto que ele estaria sentado agora saboreando
os dois se não estivesse tão machucado.
Me sento sobre ele, rígido, a sensação de preenchimento, nesse
ângulo, quase me machuca. Eu sinto um formigamento por todo o meu
corpo, algo rastejar no meu ventre em direção a outros lugares. Minha
cabeça gira. Eu me pergunto se será sempre assim, porque se for,
honestamente, vai ser difícil colocar um ponto final nisso.
— Porra... — Ele encaixa a mão na minha garganta para me puxar
até ele em um beijo.
— Aquela vez, na cozinha, deveria ter me falado que era virgem.
Meu corpo inteiro congela.
— Eu não era...
Ele empurra meu rosto minimamente para trás, quase como se
quisesse estudar minhas expressões, só que não pode me ver.
— Você me deixou cheio de sangue.
— Por isso está obcecado? Acha que foi meu primeiro? Acha que
isso fortalece nossos laços? — Me movo, a fricção do meu ponto sensível
contra a pele dele me faz esfregar cada vez mais.
Meu stalker intensifica o aperto na minha coxa, como se isso o
deixasse no limite.
— Minha obsessão por você veio muito antes disso.
Colo meus lábios nos dele, ainda há gosto de sangue neles quando
sugo, um gemido escapa por minha garganta.
— Houve um garoto uma vez, ainda no colégio, foi tão rápido que
nem tenho certeza se aconteceu.
— Um cara.
— É.
— No colégio...
— Sim.
Quando nós passamos de ameaças a isso?
— Quando acabou, eu não havia sentido nada.
— Foda-se — ele diz no meio de um rosnado, me puxando por um
aperto na nuca.
O beijo que ele me dá é tão forte que machuca, eu tento ser
cuidadosa, mas quando me dou conta, estou me movendo depressa e forte
sobre ele, desesperadamente, demorando em cada fricção em busca de
prazer absoluto.
— E agora, Annika, você sente isso? — provoca.
Meus lábios se repuxam contra os dele.
— Tão forte quanto ainda quero me vingar de você no fim de tudo
isso. — Seguro seu rosto, ele permite que meus dedos repousem atrás da
cabeça, os polegares pressionando a região malar.
— No fim de tudo isso, vai estar se rastejando pra mim. Tudo o que
irá querer é que eu continue fodendo você. Implorará por isso.
Continuo me movendo, a testa colada na dele, os cabelos caídos
sobre seu rosto, as mãos ainda nele enquanto me ajuda a mover para cima e
para baixo, deixando pequenos ruídos de dor e prazer escaparem
eventualmente, se misturando aos meus gemidos.
— Foi você quem rastejou até aqui essa noite... — Estou me
esfregando nele, tão forte que posso senti-lo vir.
E então acontece, o orgasmo vem, alto e prazeroso.
— Mas foi você quem implorou.
Sinto seu membro pulsante contrair dentro de mim, sinto os dedos
esmagarem a carne das minhas coxas quando faz isso. Sinto a respiração
quente no meu ombro. Constato que seu cabelo é mais comprido no topo da
cabeça ao tocar em meu rosto.
— No fim, se eu queimar, você queima junto — murmuro, ofegante.
— Eu serei um feliz amontoado de cinzas, então.
Faina esteve aqui essa manhã, ela disse que um amigo de um amigo
que conhece um morador do Gigante Laranja disse para a sua mãe que estão
precisando de alguém em uma mansão do norte e que não tinha nada a ver
com as indústrias. Ela foi bem enfática nessa informação, no fato de não
fazer parte do império Petrovich, seria a única maneira de eu aceitar pisar
meus pés no norte.
São seis da noite quando atravesso até o centro da cidade em busca
de algum serviço de mototáxi. Com um olhar desconfiado, ele faz a corrida
contornando o oeste e deixando Temnyy Gorod apenas para chegar até a
estrada sinuosa e escura que atravessa a Kupol. O asfalto é ladeado por
pinheiros tão altos que os topos afunilam a vista para o céu, formando uma
espécie de túnel.
Ele desacelera enquanto faz o trajeto, admirado com o lugar,
apreciando a vista sinistra da floresta que à noite, deve ser ainda mais
intimidante, apesar de que a névoa que flutua entre os pinheiros agora é
sombria o bastante para me deixar arrepiada. É a primeira vez que estou
aqui, porque ninguém da cidade vem para o norte a menos que trabalhe para
alguém desse lugar.
Quando ele para diante da Granitsa, seus olhos percorrem o lado
interior através dos gigantes portões. Eu encaro a moto até que ela saia do
meu campo de visão, porque estou protelando, estar no norte faz meu
estômago doer em desgosto, porque mostra nitidamente o quanto nós somos
diferentes, o quanto eles trabalharam duro para se isolarem do resto de nós
porque se sentem melhores por causa do dinheiro.
Dou meu nome na entrada, sinalizo a mansão e depois da
autorização, os portões gigantes se abrem para mim, me fazendo sentir
minúscula e insignificante. Um bairro inteiro de mansões, tão diferente e
contrastante com tudo o que conheço, com o sujo e abandonado, com o caos
e a desordem, com a decadência. Ruas perfeitas, largas e limpas, gramado
verde, extenso e não contaminado, porque enquanto eles contaminam o
resto da cidade, preservam seu próprio solo e ar.
Caminho pelo bairro, buscando o endereço que tenho em mãos, o
número que me foi dado. Uma mulher um pouco mais velha do que eu está
em seu gramado, o porta-malas aberto enquanto ela tira sacolas enormes de
lá, marcas estampam cada uma delas, eu não conheço nenhuma, mas sei que
o que tem dentro vale mais do que eu jamais poderia pagar, mais do que
qualquer morador do oeste poderia. Eu ainda tinha meus luxos porque havia
ficado com a casa que meu pai conseguiu com muito suor, além de ter um
emprego estável e viver sozinha, isso era mais do que a maior parte dos
moradores do Gigante Laranja possui.
Há mulheres mantendo seus filhos sozinhas com um salário pequeno
porque o marido já morreu ou as abandonou, há homens fazendo o mesmo,
tendo que sair e deixar as crianças sozinhas porque não há escola em
período integral e eles precisam trabalhar. Há família de sete, oito pessoas
em apartamentos de um quarto onde no máximo dois deles trabalham. São
casos e casos, existem situações ruins, as péssimas e tem situações como a
minha, as exceções. Bom, até agora, até eu não ter mais um emprego e
perder minha estabilidade.
Estou de um lado do bairro onde as casas possuem portões, quase no
fim de Temnyy Gorod, sei disso porque posso ver a ponta dos pinheiros que
cercam a extremidade. Aqui, as mansões parecem mais antigas, mais
luxuosas e ostensivas, gramados com cinco vezes o tamanho dos demais,
portões de ferro forjado que quase parecem os grandes portões da Granitsa.
Estou ofegante quando paro diante do número 666, deveria ser um
sinal, o universo me aconselhando a não embarcar nisso, ainda assim,
ignoro o possível aviso. Árvores sem folhas ladeiam as grades do portão de
entrada que empurro sem precisar de identificação, uma névoa densa flutua
sobre toda a superfície do local e diante de mim, a mansão mais sombria e
sinistra desse lugar me dá boas-vindas, alimentando minha atração pelo
obscuro.
Caminho pelo corredor cercado por pequenos muros moldados pela
planta Bruxus, ciente de que quando as temperaturas chegarem ao extremo,
provavelmente elas não sobreviverão. Há uma fonte no meio do caminho e
o corredor a contorna em uma estradinha que faz um círculo perfeito e me
leva até as escadas.
Olho para cima, para toda a estrutura do lugar, a mansão que mais
parece uma espécie de castelo gótico, construído por tijolos alaranjados que
perderam seu tom por causa da camada de poeira e que foram engolidos por
uma extensa trepadeira que rasteja, contornando as imensas janelas e só
para quando alcança o telhado.
A porta se abre em um clique, mas ninguém aparece. Trancando o ar
por alguns segundos, subo os degraus, o ruído da água da fonte ecoando
através do amplo gramado. No hall de entrada, tudo é escuro, silencioso e
quente, graças ao sistema de aquecimento. Decido não me mover até que
alguém chegue e me receba, enquanto isso, olho à minha volta, a escadaria
que comporta corrimãos entalhados na madeira que parece carvalho. As
amplas janelas que vão do chão até o teto e terminam em um formato
arredondado, a maior delas centralizada no primeiro andar da escadaria,
terminando em um formato de V de cabeça para baixo. Todas elas
permitindo a vista do lado externo, da vegetação coberta por uma neblina
forte que marca o fim da tarde.
— Fala sério... — murmuro.
O rangido suave de uma porta me faz girar a cabeça para o lado e
solto um gritinho quando uma mulher na casa dos sessenta fica diante de
mim. Eu nem mesmo a vi sair de qualquer lugar.
— Annika? — ela diz em uma voz baixa. — Eu sou Irina, a
governanta desse lugar.
Uma governanta de verdade, como em filmes. Ela usa um vestido
que, embora seja elegante, também é discreto, a cor cinza realça seus olhos
quase do mesmo tom, assim como os cabelos cinza-esbranquiçado, puxados
em um coque bem feito.
— Prazer em conhecê-la. — Minha mão é recebida por um aperto
firme enquanto ela faz contato visual sem desviar o olhar.
Irina aponta para meu sobretudo, ela me ajuda a tirá-lo antes de
pendurar o tecido grosso.
— Você veio do sul, certo? — Ela lê algo na ficha que mantém em
uma das mãos.
— Sim, é um longo caminho a pé desde a Granitsa, no entanto.
Um sorriso torto surge em seus lábios.
— Nem me lembro da última vez que deixei esse bairro, sou uma
velha cansada que evita sair de casa.
Uno as sobrancelhas, mas logo camuflo minha surpresa e
curiosidade sobre ela. Então Irina mora aqui, certo, de repente, quero saber
tudo sobre esse lugar.
— Eu vim porque uma amiga me indicou a vaga, disse que estavam
precisando de alguém, talvez para a limpeza de manutenção, acredito...
Irina indica uma sala de estar, localizada atrás de uma porta do hall,
o lugar quase me faz perder o ar, quadros com molduras douradas estão
espalhados nas paredes, fixados tão no alto que preciso levantar a cabeça
para admirá-los. Sobre a lareira está pendurado o maior deles, o retrato de
uma mulher de costas, dentro de uma camisola quase transparente em um
tom de lilás opaco, os cabelos ruivos dela estão caídos apenas de um lado
do corpo, deslizando sobre a nuca clara como a neve e descendo por um
ombro e braço.
Eu fico presa nela por um tempo, até que a voz de Irina chama a
minha atenção.
— Eu estou cansada, um pouco atrapalhada também, há algo no
qual preciso focar daqui para frente, então preciso de alguém que me
substitua, alguém disposta a comandar tudo isso. — Ela abre os braços e eu
olho em volta mais uma vez.
Tudo isso.
Há candelabros sobre a prateleira da lareira, um lustre imenso
exibido acima do sofá arredondado instalado no centro da sala, que fica
diante de outras duas poltronas, ladeando uma mesa de centro redonda que
abriga algumas velas e livros. Apesar de ostensivo, o lugar parece quase
abandonado, como se estivesse preso no passado, o tapete vermelho gasto
era a maior prova disso, de que manutenções não eram feitas a menos que
algo parasse literalmente de funcionar.
— Governar isso aqui? Quer dizer que vocês precisam de uma
governanta?
Há algo na expressão dela, talvez ciúme, eu não sei, apesar disso,
ela se esforça para parecer bem sobre essa mudança.
— Bom, de outra, alguém que assuma o meu lugar. — Ela aponta
para a poltrona enquanto se senta no sofá, dois metros distantes de mim.
— E o que eu preciso para conseguir esse emprego?
O sorriso em seu rosto se repuxa em arrogância, uma mulher que
gosta de controle e sabe que o tem.
— A questão não é se irá conseguir o emprego e sim se irá mantê-lo.
— Acha que não dou conta? — O desafio borbulha em minhas
veias.
— Eu acho que não — ela diz, confiante.
— Mesmo? — Sorrio de volta. — Então meu maior trabalho aqui
será provar o contrário.

Irina, a governanta, mora na casa há muitos anos, mas não


necessariamente meu emprego exige que eu o faça também. Nós havíamos
conversado sobre isso, sobre muita coisa, na verdade, sobre meu salário que
era duas vezes o que eu recebia nas indústrias e sobre minha carga horária,
eu passaria todo o dia aqui, cuidando da manutenção e funcionamento desse
lugar. Há uma van que atravessa o oeste e recolhe moradores que trabalham
no norte, nós ouvimos falar dela e a vimos por aí a vida inteira, era o único
meio dessas pessoas chegarem ao trabalho, já que a maioria das pessoas não
tinha carros ou motos.
Irina havia sido enfática em um motorista particular, ela me garantiu
que eu seria pega e deixada na porta da minha casa, porque era como
faziam aqui. Ela não me veria reclamar disso, no entanto, se meus patrões
usavam um comportamento mais humanizado com os funcionários, quem
seria eu para reclamar disso?
— Nas segundas, você precisa supervisionar, não precisa ficar
cuidando do trabalho deles o tempo todo, mas um dia da semana é sempre
bom lembrá-los que isso é um emprego e não um lugar onde se vem para
acessar a internet.
— Certo, supervisionar, verificar o estoque, fazer lista de tudo o que
falta na casa, comprar. Inspeção completa para checar se há algo precisando
de manutenção. — Confiro todas as anotações.
— Na terça, você deve coordenar a limpeza mais profunda em
algumas áreas específicas, como os quartos de hóspedes, que nunca são
usados e uma vez na semana precisam ser limpos. Há uma lista das áreas
pouco usadas as quais você deve gerenciar essa limpeza às terças.
— Tudo bem...
— Você não precisa se preocupar em supervisionar a lavanderia.
Semicerro os olhos.
— Ok.
— E há quartos em que você nunca, jamais, deverá entrar. Lugares
estritamente proibidos. — Irina me entrega um mapa da mansão. — O
terceiro andar, ele está vazio e inabitável, não suba até lá, não importa o
que.
Engulo em seco.
— Não subir no terceiro andar, não entrar nos quartos proibidos, não
gerenciar a lavanderia.
— Nas quartas, você gerencia as contas e orçamentos domésticos
para manter os registros sempre atualizados, tudo o que comprar e gastar
precisa ser anotado.
— E sempre será.
— Você também deve checar a jardinagem, o jardineiro está aqui
nesse dia, você precisa dar uma volta pelo quintal e mostrar a ele que
estamos de olho. Aproveite a volta externa para conferir a piscina e se está
tudo certo com o sistema de aquecimento, só para não correr nenhum risco
de ficarmos sem ele no meio da noite.
— Sim, senhora.
— Pode parecer enlouquecedor agora, mas cada uma dessas coisas é
feita em um grande intervalo de tempo, você irá andar por aí conferindo e
garantindo que as coisas continuem nos eixos. É uma mansão grande,
precisa de cuidados.
— Vou me esforçar para fazer isso.
— Ótimo — ela diz, incansável. — Quinta-feira, nesse dia você
pode pedir para que preparem algo especial para o chefe, ao menos uma vez
na semana... — Ela limpa a garganta. — Eu gosto de lembrá-lo quão bom
pode ser uma comida caseira. — Ela não revela nada além disso. —
Inspecione as áreas comuns, mantenha a organização e por fim, na sexta,
faça uma avaliação geral sobre a propriedade, identificando áreas que
precisam de melhorias.
— Eu passo tudo isso para os chefes?
— Só há uma pessoa na casa e não, você entrega para mim, eu
estarei em uma nova função, mas você não me verá por aqui. Não se
intrometa, não faça perguntas, não mexa onde não é permitido, não se meta
onde não é chamada.
— Certo...
— E os funcionários? — Olho em volta.
— Não há camareiras, uma vez que apenas um quarto está em uso
no segundo andar, a equipe conta com governanta, uma cozinheira, o
jardineiro e o piscineiro vêm uma vez na semana, uma auxiliar de limpeza,
ela faz a arrumação do quarto e todo o resto. Devagar e sempre, não há
muito o que limpar quando não se usa. E ah... — Ela parece quase humana
pela primeira vez. — Temos um motorista. Ele vai buscar e levar você
todos os dias.
— Governanta, cozinheira, limpeza, jardinagem, piscina e
motorista.
— Acha mesmo que dá conta?
— Eu sei que dou.
— E quanto à sua nova função? Com o que vai trabalhar?
A postura dela é impecável quando lança um olhar reprovador.
— Achei que tivesse entendido sobre não se meter onde não é
chamada.
Uh.
— Entendido, entendido...
No segundo andar, há três portas trancadas, uma delas é a do quarto
do meu patrão, mas apenas Irina e a auxiliar de limpeza estão autorizadas
para entrar no cômodo. Enquanto realizo minhas tarefas e supervisões,
mantenho minha lista e o mapa em mãos, sempre checando e relendo todos
os detalhes para não esquecer de nada. O corredor imenso é mal-iluminado
graças às portas fechadas e nessa área, apenas o banheiro é permitido para
mim. Não há nada demais lá além de luxo, luxo e algo impecavelmente
limpo, sugerindo que ele nunca é utilizado.
Eu penso no oeste, penso no sul ruindo e então isso aqui. Tudo isso
para apenas uma pessoa que nem sequer para em casa, que não usufrui, que
provavelmente mantém toda ostentação por status e um final de semana
confortável. Será que ele é feliz? Será que o velho solitário que vive nesse
lugar já amou alguém além de si mesmo?
Checo a despensa, a lista com o número de cada alimento que deve
ser reabastecido para que nada falte. Se ele sai pela manhã e volta apenas à
noite, depois que deixo esse lugar, provavelmente são os funcionários que
usufruem da comida do estoque. Bem, isso se ele também não for um
muquirana.
Irina simplesmente sumiu pela manhã, ela não me seguiu como uma
sombra para se certificar de que farei tudo certo ou que talvez colocarei
fogo em tudo se fizer algo errado, ela nem mesmo se espreitou por aí, para
se certificar de que não irei roubar nada, em vez disso, sumiu como um
fantasma. Eu não faria perguntas, no entanto, era uma das regras que
preciso seguir, se quiser continuar nesse emprego.
No final da tarde, estou na cozinha, tomando um gole de café que
Marina fez, ela cuida das refeições e da organização dessa área e faz isso
lentamente, sem nenhuma pressa. Uma manhã inteira trabalhando em uma
refeição que apenas os funcionários irão comer, depois algumas horas
limpando, em seguida, ela começa a descascar legumes e vegetais para
preparar uma janta para não sei quem.
Meu celular emite um som, ele nunca o faz porque não ando por
áreas com cobertura de rede e internet, mas ele tem simplesmente ressoado
por todo o dia, e-mails promocionais, ligações de números estranhos e
agora, uma mensagem de texto de um número que nunca vi.

O quê?
Aquela...

Claro que precisa.

Quando o motorista me deixa diante dos portões do meu antigo


emprego já são oito horas e vinte e cinco minutos. O segurança pede
autorização na entrada e a voz de Demyan, nada bem-vinda, ressoa através
do aparelho que ele mantém na mão. Ao entrar, faço um caminho diferente
ao qual estava habituada, ao invés de seguir para a direita, onde Faina está,
eu sigo para a esquerda e pego as escadas de metal, a batida violenta dos
meus pés ecoando através de todo o local silencioso. No andar de cima,
passo por duas portas antes de encarar o nome de Demyan em uma placa
prata, eu reviro os olhos quando abro sem bater, pegando-o desprevenido.
Ele está diante das amplas janelas, em roupas sociais que nunca o vi
usar, segurando um cigarro que deixa um fio de fumaça em direção ao seu
rosto. Os cabelos dele são uma completa bagunça, como se Demyan tivesse
corrido suas mãos vezes o suficiente para que os cachos se soltassem. A
corrente de ar por causa da janela aberta faz a porta atrás de mim bater, ele
solta a última tragada antes de apagar o cigarro e arremessá-lo para fora.
— Quem se importa com o meio-ambiente quando se tem um berço
de ouro para deitar?
— Mais uma vez, você achando que sabe alguma merda sobre mim.
Reviro os olhos e me aproximo.
— Me dê logo o que devo assinar.
Ele tem as duas mãos nos bolsos da calça, eu tento não olhar para a
pele exposta dos antebraços, marcadas por veias proeminentes que não
deveriam estar lá porque são bonitas demais para estarem nele. Quando
ergo o olhar para seu rosto, os lábios estão inclinados de apenas um lado em
um sorriso engessado que mais parece uma contração de um músculo.
— Gosta do que vê?
Sim, é, eu não deveria gostar, mas tudo em Demyan é bom de olhar,
exceto pelas marcas esverdeadas perto da boca, na maçã do rosto, no tom
esverdeado perto dos olhos e de um corte no supercílio que evidencia que
ele não passa do mesmo garoto.
— Eu nunca gostei de você, desde o colégio, quando ia se exibir
para um bando de garotas fáceis de iludir.
— Então por que nunca conseguiu tirar os olhos de mim?
Solto uma lufada de ar, carregada de sarcasmo.
— Sim, Demyan, nos seus sonhos eu não consigo.
Dessa vez, o sorriso dele é quase real, duas preguinhas se formam
no canto direito, os dentes levemente separados sendo expostos, brancos,
imperfeitos e bonitos.
— Não, Nika... — provoca, caminhando até a mesa. — Nos meus
sonhos muito mais coisas acontecem além de apenas olhar.
Minha garganta de repente está seca. Ele está fodendo comigo,
certo? Demyan Petrovich nunca sonharia com alguém como eu nem em um
pesadelo.
— Nos meus sonhos, eu só coloco as mãos em você para te esganar.
— Me inclino sobre a mesa e começo a procurar os papéis. — Onde estão?
— Muita pressa para quem chegou atrasada.
— Eu estava no meu novo emprego.
— Sim, no norte.
— E que não tem nada a ver com isso aqui. — Corro o indicador no
ar. — Ou com o que fazem com os moradores do sul.
Ele não diz nada.
— Assine aqui. — Ele empurra alguns papéis na minha direção.
Desvio o olhar para eles, pego e começo a ler. Demyan solta um
grunhido.
— O quê? Não confia em mim? — ele provoca.
— Não precisava da minha digital, não é?
— Não.
Sem nenhuma surpresa, leio cada linha do contrato, sentindo seus
olhos sobre mim enquanto me remexo desconfortavelmente, sem conseguir
me concentrar em nada.
— Pare de olhar.
— Por quê, sardenta? — A voz dele é divertida. — Não aguenta a
pressão? — Demyan dá a volta na mesa e se encosta nela. As mãos para
trás, apertando o mogno com força.
— Você não quer jogar esse jogo comigo — alerto.
Seu olhar parece pesado quando cai através dos meus lábios, então
eu entro em seu jogo de encarar.
É um erro, olhar para Demyan tão de perto é estúpido e um
equívoco. Eu descubro coisas novas lá, sardas sobre seu nariz que eu só
havia encontrado em seus ombros uma vez. O fundo esverdeado no
castanho de seus olhos que apenas assim tão perto é capaz de ser notado.
Um sinal pequeno no canto esquerdo embaixo da boca, outro no pescoço,
como uma tela branca salpicada por sardas sutis e sinais espalhados entre
elas. Quando ele pisca preguiçosamente, é quase como se eu pudesse
enxergar uma camada dele que nunca havia me deixado alcançar até hoje.
Quase como se ele tivesse um pouco de humanidade lá.
Solto uma lufada de ar, dou um passo para trás, então assino o
contrato e empurro contra seu peito.
— Nenhum de nós é vencedor nisso — digo. — Eu perdi meu
emprego, você perdeu uma boa funcionária. A diferença nesse jogo é que
apenas um de nós possui uma alma que ainda tem salvação e não é a sua,
Demyan.
Ele não diz nada, mas algo em seu olhar mudou. Ele não parece
alguém obstinado a acabar comigo, parece alguém disposto a fazer isso
consigo mesmo. Só que eu não tenho nada a ver com isso.
Venci a primeira semana de trabalho, cometendo um erro ou outro,
esbarrando em uma obra de arte de vez em quando e a segurando como se
minha vida dependesse disso, esquecendo de fazer algumas coisas e cada
dia mais curiosa sobre o terceiro andar. Eu não deveria xeretar, mas essa sou
eu, sempre curiosa sobre coisas que não deveriam despertar minha
curiosidade.
O último andar da mansão está em desuso, ainda assim, eu ouvia o
som de algumas portas batendo, passos, algum motor trabalhando. Eu podia
estar ficando louca, talvez minha imaginação fosse criativa demais por ler
tanto, mas na maior parte do tempo, o terceiro andar não era abandonado,
nem esquecido e cheguei a me perguntar se eu estou trabalhando em uma
mansão mal-assombrada, se o dono desse lugar teve uma família um dia e
se hoje ela simplesmente anda por aí como se não tivesse desapegado de
seu lar.
Não há mais explicações, isso ou o que quer que seja que tenha lá
em cima, é algo totalmente ilegal. E se ele for algum tipo de psicopata que
mantém suas vítimas presas? E se houver alguma mulher lá? E se a esposa
dele, na verdade, é mantida em cativeiro? Droga. Eu havia lido os dois
livros que baixei no dia em que visitei meu pai e a perturbação talvez
tivesse me atingido. Bom, isso ou realmente havia algo lá.
— Terminei. — Vera, a mulher de meia-idade que lida com toda a
limpeza, aparece diante de mim.
Minha prancheta cai aos meus pés, estou parada olhando para a
escada que leva para o terceiro andar.
— Oh, certo. Você já pode ir, está tudo em ordem, eu estou
terminando de escrever o relatório da semana.
Ela enruga o nariz, como se não fosse de sua conta, provavelmente
Irina não dá satisfação a ninguém, mas eu sou alguém que trabalhou em
indústrias a vida inteira e que tudo o que conhece é isso, dar explicações,
satisfações e tentar provar que sou útil no que faço.
— Ei, Vera, espere! — grito, correndo através do corredor do
segundo andar, ela para e me encara, ansiosa para ir para casa. — O
motorista, ele já voltou?
Ele foi ao mercado à tarde, mas eu não havia escutado-o voltar
desde então. Sergey tem me pegado e deixado em casa todos os dias da
semana, isso tem facilitado minha vida e me faz sentir segura, às vezes,
mesmo tendo que atravessar toda cidade, eu ainda me sinto mais protegida
do que o pequeno espaço entre minha casa e a indústria na qual trabalhava e
fazia a pé.
— Não que eu saiba. — Ela me dá um olhar de pesar antes de
descer as escadas.
— Bem... — Olho à volta. — Então, eu acho que só preciso
finalizar isso e esperar.
Encaro as portas fechadas, o quarto principal não é do dono da
mansão, mas os dois estão trancados, apesar de que apenas Vera e Irina
podem entrar. Além disso, o banheiro e o quarto de hóspedes são os únicos
que tenho permissão, porque há outro chaveado e ele fica em frente ao
quarto do chefão. Eu queria entender os motivos, se eles não confiavam em
mim com seus pertences ou se havia segredos que apenas chaves podiam
esconder, como, por exemplo, o terceiro andar.
Desço até a sala, onde um notebook está aberto esperando por mim,
então eu digito tudo o que escrevi à mão, porque ainda não aprendi a usar o
iPad que me deram. Um movimento na porta me faz erguer e dar um
gritinho.
Jesus, é como se eu esperasse por um fantasma o tempo inteiro.
— Criatura, por que anda tão assustada?
— Eu estava concentrada — minto.
E eu ando escutando barulhos no andar proibido.
Além do mais, você saiu de onde, querida?
— Terminou o relatório? — ela pergunta.
Encaro o lado de fora da propriedade pelas imensas janelas que vão
até o teto. Um relâmpago atravessa o cômodo enorme, iluminando todo o
local.
— Sim, aqui está.
— Olho depois, não há problemas, tenho sua documentação aqui,
preciso que assine.
— Perfeito. — Me levanto e pego os papéis de suas mãos.
— Você foi bem essa semana, esse é seu contrato se realmente
deseja continuar fazendo isso.
— Com certeza eu quero. — Pego uma caneta na mesa de centro e
me curvo sobre ela para usá-la como base. — Sergey não voltou?
— Ele acabou de ligar, há uma notícia ruim para essa noite, caso
você tenha planos.
— Planos em Temnyy Gorod? — Eu rio. — O que houve?
— Ele ficou preso fora da cidade, o pneu ou algo assim, não entendi
direito, aquele homem tem a língua embolada.
Não posso evitar a risada que deixo escapar, ele realmente tem.
— Bem, e agora? — Olho em volta.
— Você pode ficar essa noite, caso ele não consiga voltar. Fique no
quarto de hóspedes do segundo andar, ele está limpo e organizado, como
sabe.
— Dormir aqui? — Engulo em seco, eu quase posso sentir o frio em
meus ossos.
Irina enruga o nariz.
— Não é o que todos querem? Viver no norte?
— Não eu. E as pessoas querem melhores condições, não viver uma
vida que não é delas.
— Certamente não você.
— Certamente não — respondo.
Ela solta um suspiro e alisa o vestido perfeito, me avaliando da
mesma forma como a avalio desde que cheguei e me pergunto se ela é
realmente confiável, às vezes tenho dúvidas.
— Quarto de hóspedes, há o que comer na cozinha, pode ficar à
vontade, você tem permissão para isso.
— Certo...
— E quanto ao... — Limpo a garganta. — Ao chefe?
— Ele tem negócios fora, sempre volta tarde, vai estar dormindo
quando ele chegar e ele provavelmente estará dormindo quando sair pela
manhã. Não se preocupe.
— Perfeito.
— Não esqueça, as regras valem dentro e fora do expediente.
— Não esquecerei — murmuro.
Você não deixa que eu esqueça.
Meia-noite, a tempestade do lado de fora continua forte, Sergey não
voltou e eu me afundo na cama gigante cada vez que o trovão ressoa no
céu. Não há como dormir, tudo é grande, ostensivo e mórbido demais. Eu
me viro de um lado para o outro, de repente, meu stalker vem em minha
mente, talvez por causa do temporal, raios e trovões sempre me fazem
pensar nele. Eu me viro de lado outra vez, em direção às grandes janelas, o
tecido da cortina não está totalmente fechado, portanto, sou capaz de ver os
riscos atravessarem o céu.
Tem quase dez dias desde a última vez, desde a noite em que pedi
para que ele ficasse, desde que meu stalker cedeu e adormeceu ao meu lado
por um tempo. Eu me pergunto se ele sabe desse emprego, se a Granitsa é o
suficiente para detê-lo. Eu também queria saber o motivo de ele não ter me
acordado quando me visitou no meio da semana. Havia uma lavanda ao
meu lado quando acordei, mas ele não fez barulho algum, foi tão sorrateiro
quanto todas as vezes em que decidiu ser apenas uma visita silenciosa.
Havia dias e dias; havia os dias em que ele me procurava para sexo,
os dias em que ele só queria me ver dormir e os outros em que nem ele
sabia o que queria.
Eu gosto de todos eles.
E às vezes queria obter poder só para poder usá-lo da mesma forma,
para sexo, para observar ou para não saber o que quero com ele. Ainda
assim, apesar de eu jogar o seu jogo, ainda que eu fosse a rainha, sou
apenas uma peça.
Eu quero ser mais.
Um ruído no andar de cima me faz sentar, passos, uma porta.
Puta merda, não pode ser um fantasma, nem coisa da minha cabeça
perturbada. Isso parece tão real quanto provavelmente é.
Passos baixinhos deixam as escadas, me aproximo da porta, eles
atravessam todo o corredor desse andar em direção à descida, até que
somem. Olho para a janela e espero, então espero mais um pouco só para
ver alguém, lá embaixo, uma mulher de branco, ela entra em um carro
estacionado no quintal e dirige até a saída. Me inclino sobre a janela, o
rosto colado no vidro. Mais relâmpagos explodem no céu, e então eu o vejo,
mergulhado na escuridão do gramado, dentro de roupas pretas e o capuz
familiar.
Meu celular vibra sobre a cama, eu corro para pegá-lo.

Meu estômago está agitado, há fogo subindo pela minha bochecha.


Caminho até a janela e observo enquanto ele digita, sob as luzes dos
trovões.

Quando olho outra vez, ele já não está mais lá.


Só que ele não vem até mim, talvez por causa do sistema de
segurança ligado, eu não sei, ou talvez, apenas talvez, ele esteja estudando
esse lugar na intenção de voltar outro dia.
Outra porta bate no andar de cima e me encolho embaixo das
cobertas.
Até mesmo meu stalker acharia isso sinistro demais para ser
verdade.
Uma música delicada similar a uma caixinha de música à corda,
daquelas que contém uma pequena bailarina dançante em seu interior,
inunda o quarto, baixinho, ela toca por quase uma hora sem parar e quando
pego no sono, minha curiosidade sobre esse lugar é dez vezes maior.
Meu stalker não me visitou no final de semana, ele havia decidido
ficar mais de dez dias sem me tocar, sem procurar por mim sexualmente ou
para uma troca ou outra de farpas e promessas que, no fim, nós dois
sabíamos que não iríamos cumprir. Eu queria entender seus motivos, o que
fazia com que ele buscasse por sexo, o que o motivava ao ponto de ele
sentir alguma necessidade de falar comigo e o que acarretava meu stalker a
simplesmente sentar e me olhar dormir. Eu também queria ver seu rosto e
fazer perguntas e a cada manhã em que eu acordava e não via lavanda sobre
minha cama, eu sentia algo crescer em mim.
Algo que nunca senti, que não sei explicar.
Hoje é dia de supervisionar os funcionários, verificar o estoque e
fazer compras. Eu havia pedido para Sergey comprar alguns itens que
esqueci na segunda-feira passada e por isso ele precisou sair na sexta, ainda
assim, hoje há uma nova lista em minhas mãos com tudo o que será preciso
para essa semana. Coisas que ninguém além dos funcionários usa, legumes
que só os funcionários comem. Uma semana e o dono desse lugar não havia
sequer aparecido, ele não havia nem mesmo feito a refeição decente de
quinta-feira, o prato estava intacto quando cheguei na sexta e minha
curiosidade sobre ele se tornou duas vezes maior.
Quem é a mulher de branco que deixou a casa naquela noite? Por
que os ruídos continuam no terceiro andar? Por que a lavanderia não é da
minha conta? Por que as portas do segundo andar estão fechadas?
Por quê?
Por quê?
Por quê?
Onde Irina se meteu?
— Você não fica entediada? É metade do dia e eu não tenho mais o
que fazer.
Marina esboça um sorriso, ela parece um pouco animada com essa
conversa, o que sugere que seu dia é tão emocionante quanto o meu.
— O segredo é não fazer nada rápido. Cada coisa leva seu devido
tempo, não apresse as coisas, Annika.
Os cabelos dela estão presos em um coque baixo, envoltos de uma
rede que protege os fios e os impede de caírem na comida. Ela usa roupas
pretas, calça e cardigã, assim como Vera, da limpeza, e sobre os tecidos,
uma espécie de avental é esticado para defendê-los da sujeira e água.
Parecem roupas comuns, apesar do acessório e tudo isso também me deixa
um pouco surpresa, pensei que o povo de Temnyy Gorod inseridos no norte
trabalhariam como escravos.
— Tenho que me adaptar a isso, vivi minha vida inteira tentando
fazer o máximo de trabalho possível para um dia, eu tinha que ser útil se
não quisesse perder o emprego.
— Viva o capitalismo. — Ela carrega uma travessa até a mesa de
mármore, uma espécie de ilha no meio da cozinha. — Mas aqui as coisas
são um pouco diferentes, cada um tem sua função, mas todos nós temos
nosso tempo para executá-la.
— Percebo isso agora.
Ajudo Marina a colocar a mesa. O almoço fica servido por uma hora
e meia, nesse intervalo de tempo, cada funcionário pode vir se servir.
— Não tem que fazer isso. — Ela aponta para minhas mãos.
— Tudo bem, vamos adiantar seu serviço.
E então ela ri.
— Parece que você não aprendeu nada do que eu acabei de falar.
É a primeira conversa de verdade desde que cheguei aqui.
— Força do hábito.
Quando a mesa está pronta e nos sentamos, espero Irina, mas ela
não vem por agora e, enquanto Vera e Sergey, o motorista não chegam,
aproveito para interrogá-la.
— Há quanto tempo trabalha nesse lugar?
Ela ergue seus olhos para mim, parece estar me repreendendo,
apesar de que há um brilho de admiração e compaixão que não encontro nos
olhos da governanta.
— Tempo demais, cada um de nós, apenas o motorista é novo aqui.
Então eu me lembro de quando Irina hesitou quando perguntei
quantos funcionários haviam no total, quase como se ela tivesse se
esquecendo dele.
— Por que o chefe nunca para em casa? — Tento parecer
indiferente, mas quando ergo o olhar, encontro o seu reprovador sobre mim.
— Não especule, Annika, se Irina pegá-la fazendo isso, ela arranca
sua língua e a serve na próxima refeição.
Engulo em seco.
Eu não duvidaria.
É final do dia, mas quase todas as tarefas foram realizadas na parte
da manhã. Eu dou uma última inspecionada por toda a mansão antes de sair,
agora, no segundo andar, checo o quarto de hóspedes e o banheiro, os dois
únicos cômodos abertos para mim. Estou atravessando o corredor com a
prancheta na mão quando o ruído de uma dobradiça chama minha atenção.
Eu faço uma anotação sobre isso, antes de me virar e checar qual das duas
portas precisa de manutenção.
Então minha mente me manda sinais de alerta, ciente da
anormalidade. Uma das portas proibidas se abriu sozinha quando passei,
quase como se algo lá dentro chamasse por mim. Permaneço parada, os
corredores escuros e sombrios sussurram para mim, envoltos de sombras e
escuridão que se aprofundaram com a chegada da noite. Dou alguns passos
na direção do cômodo silencioso, o coração acelerado alimentado por uma
curiosidade que sempre me mete em problemas.
A porta cede sob meu toque hesitante, revelando um quarto
mergulhado em sombras. As cortinas estão fechadas, há uma cama
desarrumada, mas é o mau cheiro que chama a minha atenção. Mofo,
poeira, abandono e tristeza, posso sentir a pincelada de cada um deles.
Ao me mover através da entrada do quarto, a sensação de uma
presença invisível me acompanha, me trazendo arrepios que não posso
explicar. Uma escrivaninha revela rabiscos, anotações deixadas para trás,
quase como se fizesse parte de outra vida, mas são os nichos sobre elas,
cheios de livros, que roubam minha atenção. Eu não consigo conter meus
dedos quando os movo sobre as lombadas cheias de pó acumulado pelo
tempo, mas apesar da curiosidade, a escuridão não permite que eu veja
muito além, os títulos ou os rostos estampados nas polaroides caídas e
desbotadas sobre a escrivaninha.
Eu pego apenas uma na mão e forço minha visão, uma garota
sorridente estampa todo o polaroide em uma fotografia tirada de surpresa.
Um momento feliz congelado e esquecido pelo tempo, deixado aqui, em
uma espécie de mausoléu proibido.
Seria a filha do dono desse lugar?
Ela é jovem demais para ser a esposa dele?
Eu deixo o polaroide cair no chão quando o som de uma caixinha de
música começa a tocar e reconhecimento me faz querer correr para longe
tanto quanto desperta curiosidade sobre mim. É o mesmo som que ouvi
antes de dormir nesse lugar na sexta-feira.
Mas como é possível uma caixinha de música à corda tocar sozinha?
Esbarro em uma cadeira de estudos quando a bailarina começa a
girar diante de um espelho fragmentado da penteadeira, quebrado talvez por
um acesso de raiva, pela dor da perda ou pela própria garota antes do que
quer que tenha acontecido com ela, distorcendo e insinuando um passado
que talvez eu nunca entenda enquanto as paredes murmuram segredos de
dor e imploram para não ser esquecidos.
Mergulhada em horror e em um silêncio opressivo que só é
quebrado pelo som da caixinha de música, fecho a porta, devolvendo ao
quarto sua privacidade mórbida, enquanto tento me recompor. Sem
compreender completamente a história por trás do lugar, apoio minhas
costas na parede do corredor e encaro a escada que leva ao terceiro andar,
totalmente ciente de que algo sobrenatural acontece aqui e seja quem for a
garota que viveu nesse quarto, ela havia tentado se comunicar comigo duas
vezes.
Dirijo através de Temnyy Gorod em direção ao oeste, eu havia me
livrado do meu oponente rapidamente essa noite, tão rápido que minhas
costelas, ainda em recuperação, agradeceram. Não havia mais hematomas
pelo meu rosto e pela primeira vez em muito tempo, eu quase parecia
alguém decente.
Depois de comprar uma garrafa de vodka, dirijo até o Gigante
Laranja, porque Berstuk precisa comer e é um bom dia para me afundar em
álcool e nas minhas próprias merdas.
Quando paro o carro diante do prédio de Roman e deixo o interior
do veículo com o saco de ração em uma mão e a garrafa na outra, praguejo
por ter esquecido meu sobretudo no Poço. No passado, Roman teria me
dado um sermão sobre isso, ele teria dito que vou congelar, teria repetido
essa merda até que eu me cansasse de sua voz e então, ele teria ido buscar
um de seus moletons surrados para mim, porque esse era ele, alguém bom
no fundo, alguém que só precisava de uma chance e que nunca teve uma.
Tento ignorar a vergonha que sinto por pensar nele no passado
enquanto digo para mim mesmo que o fato de eu fazer isso não significa
que desisti dele e tudo o que tenho feito ao longo dos últimos meses é a
prova. Estou vivendo para encontrar Roman, havia me envolvido com
pessoas que nem deveriam estar no meu caminho, apertado a mão de
homens ruins o bastante para acabarem comigo caso eu dissesse uma
palavra errada. Eu fiz isso, fiquei preso ao Poço mesmo quando tudo o que
fugi durante minha vida inteira era justamente essa sensação de estar preso
a algo contra a minha vontade. Agora tô tão envolvido no ciclo e nas lutas
que não há como simplesmente dar para trás.
Preciso levá-las até o final e terminar vivo se quiser encontrar meu
amigo, se quiser continuar usando o Poço para investigar seu
desaparecimento. O problema é que a última luta só acaba com um lutador
morto e eu havia chegado perto da morte vezes demais para acreditar que
me livraria dela mais uma vez no final do ciclo.
Abro a garrafa com os dentes e sopro a tampa longe, a luz das
escadas não acende, o barulho dela quicando até encontrar o último andar
ressoa através do local vazio enquanto dou alguns goles generosos. Eu
continuo subindo e subindo, até estar diante da planta morta, procurando
por uma chave que nunca foi movida do lugar por ninguém além de mim
porque ele nunca voltou. Toco a maçaneta, mas levo um tempo até empurrar
a porta, porque sempre é um fodido problema estar aqui.
Não vejo Berstuk em nenhum lugar, ele geralmente está na rua a
essa hora ou durante o dia, mas não o encontro em nenhuma parte. Encho
seu pote de ração e água, ainda há os dois, mas jogo fora e substituo por
comida e água fresca, enquanto me pergunto porque ele tem comido menos.
Talvez o gato esteja doente, talvez ele tenha caído finalmente em si sobre
Roman. Talvez ele tenha perdido as esperanças.
Um ruído no quarto me faz levantar e tocar a pistola que mantenho
no cós da calça e que sempre anda comigo desde que comecei a me
envolver com Arkady e ter Z na minha cola.
Caminho lentamente até lá, eu nunca o faço, nunca vou além,
porque é demais para mim entrar no quarto de Roman e ver todas suas
merdas lá esperando por ele. Com a pistola em mãos, caminho
cuidadosamente mergulhado em sombras.
— Alguém está aí? — pergunto.
Nada, nenhum barulho deixa o quarto. Me encosto na parede e espio
o lado de dentro, em posição. Os olhos percorrendo cada detalhe, a cama
bagunçada, as cortinas entreabertas, janela fechada.
— Roman?
Um barulho alto me faz dar um salto para trás e Berstuk corre em
meio às minhas pernas, quase me derrubando.
— Maldição... — Seco o fio de suor da testa e atravesso até a saída,
onde deslizo pela porta até estar sentado no chão sujo. — Você sabia que
era eu, seu filho da puta.
Berstuk está parado no meio do corredor quando faz um barulho
estranho e começa a caminhar em direção à comida fresca, porque ela é
tudo o que importa. Por um segundo, apenas um, pensei que pudesse ser
Roman de volta e o fio de esperança é o bastante para terminar de me
destruir.
Pouso a arma no chão ao meu lado, bebo generosos goles de vodka
e enfio a cabeça nos joelhos, esperando por algo que talvez nunca aconteça,
que provavelmente nunca vai. Se Roman estiver vivo e não tiver uma boa
explicação, eu mesmo faria questão de matá-lo. Berstuk ronrona enquanto
come, ele sempre espera que eu saia, mas dessa vez, é como se o gato
soubesse que não tenho pressa. E eu não tenho, voltar para casa sempre é
um problema. Sempre foi, antes por um motivo diferente, agora, pelas
consequências de tudo o que aconteceu.
Cada respiração dentro daquele lugar é um lembrete constante do
que perdi, eles estão em todas as partes, nas paredes, no silêncio, na
escuridão que engoliu o que um dia foi o lar de alguém. Tudo lá são
lembranças dolorosas que ainda voltam para me assombrar todas as noites
desde aquela, desde que perdi uma parte minha, a metade de mim, a metade
boa.
O álcool desce queimando pela minha garganta, ergo o olhar, só há
escuridão e abandono, o passado zombando da minha cara, o futuro me
mandando seguir em frente, vozes me dizendo para acabar logo com isso.
Acabe com isso, Demyan, acabe logo com essa merda, porra.
Encaro a arma no chão, Berstuk, o apartamento vazio. Eu fiz uma
promessa para Roman, mas podia acabar com nossas vidas aqui e eu não
teria mais uma dívida com ele sobre seu gato se nós dois estivéssemos
mortos. Derrubo mais uma quantidade de vodka. Não sou um suicida, não é
só de Berstuk que cuido. Uma pessoa depende de mim, as indústrias
dependem de mim.
Ainda assim, seguro a pistola e corro o polegar sobre a superfície
fria, o ardor em minha garganta traz alívio para a dor em minha alma.
Há como fugir das pessoas, mas não há forma de fugir das memórias
que elas deixam.
Um ruído chama minha atenção quando estou correndo os dedos
sobre a pistola, pensativo, eu levo apenas alguns segundos para identificá-
lo, é o balanço da praça do outro lado da rua, onde sempre esperava por
Roman. Eu nunca entro agora, mas também nunca entrava antes, quando
Roman estava aqui porque esse animal é perturbador pra caralho.
— Fique vivo — murmuro a Berstuk.
Ele inclina a cabeça na minha direção e apesar de tudo, algo dentro
de mim continua resistindo, é quando me levanto, coloco a pistola no cós e
pego a garrafa.
Eu deixo o apartamento vazio de Roman e quando o frio me acerta,
do lado de fora, diante da praça, eu vejo o velho balanço de ferro se
movendo sem ninguém sobre ele. Para frente, para trás, em um movimento
fluído como se uma presença invisível estivesse se balançando nele. Sinto
meu corpo inteiro se arrepiar quando me aproximo, um carro emite uma
buzina alta e me encolho, quase sendo atingido por ele.
Pouco a pouco, o balanço perde a força, e então, ele para
iminentemente.
Roman seria o primeiro a acreditar nessa merda, ele seria o primeiro
a apontar e culpar alguma alma vagante por isso.
E se for ele? E se Roman estiver morto e preso nesse lugar? E se sua
fodida alma não tiver conseguido se livrar de Temnyy Gorod?
Eu rio, porque não, essa merda sobrenatural não é comigo, eu nunca
acreditaria nisso.
Caminho até o balanço de ferro e me sento, a falta de lubrificação
faz com que as peças ressoem pelo ambiente aberto e frio enquanto a névoa
dança sobre meus pés e a respiração deixa uma fumaça condensada escapar
diante do meu rosto. Eu tiro um cigarro do bolso e o acendo, antes de tomar
outro longo gole, sentindo dormência por todo o meu corpo, o álcool me
atinge tão forte que tenho consciência de que irei precisar dormir no carro
até que esteja sóbrio.
Sinto o peso da culpa, o cansaço me atingir, ouço as palavras de
Roman para mim, me culpando por tudo, pelo o que aconteceu com ela. Eu
sinto o peso de toda a desgraça na qual caí, me acertar em cheio e aceito
isso, aceito a culpa pelo o que aconteceu porque se ela é de alguém, então é
minha. Quando sopro a fumaça em direção ao céu, encarando as nuvens
densas cobrirem toda a extensão livre de estrelas, minha mente atormentada
se pergunta se é verdade o que dizem sobre pessoas que tiram a própria
vida.
Será que o céu acolhe aqueles que perderam toda a esperança? Será
que eles excluem aqueles que sucumbiram à escuridão em si?
O pensamento me abomina, ele me destrói mais do que o sentimento
de culpa.
Eu não suportaria se isso fosse verdade.
O frio me faz estremecer e as lágrimas, que não senti caírem,
cobrem meu rosto, deixando-o gelado e úmido. Eu bebo mais alguns goles
de vodka, na intenção de me manter aquecido, embora saiba que nem
mesmo ela seria o suficiente. Sem forças para terminar meu cigarro, jogo
ele no chão e espero o frio fazer seu trabalho. Se ele fosse um bom
funcionário, talvez ele me matasse.
Seria uma boa noite para morrer.
No fim do meu expediente, peço para que Sergey me deixe no
Gigante Laranja, já que Dimitri me deixou uma mensagem de texto mais
cedo avisando que Faina conseguiu uma folga porque não se sente bem. Ele
perguntou se eu podia passar em seu prédio para verificá-la e aqui estou eu,
fazendo isso. Aperto a campainha, mas ela está estragada e por isso preciso
bater na porta, o rosto de Faina preenche meu campo de visão, ela se
espreita entre a passagem apertada que ela mesmo limita e então, me
empurra para as escadas.
— O que há de errado com sua casa que eu não posso vê-la?
Faina me arrasta através dos degraus, em direção à saída. Do lado de
fora, o frio de final de novembro nos acerta e nós duas nos encolhemos e
fechamos nossos sobretudos juntas, de forma automática.
— Você parece melhor do que Dimitri mencionou.
— Não há nada de errado com a minha saúde. — A ponta vermelha
do nariz de Faina denuncia um choro recente. — Bem, não dessa forma...
— Então qual é o problema? A menos que você esteja beirando a
morte justificaria uma falta no trabalho. Você está beirando a morte?
Ela revira os olhos.
— Seria mais fácil se eu estivesse. — Quando ela desliza as costas
através das paredes de tijolos alaranjados até chegar no chão, eu sei que seja
o que for, não é algo simples de resolver.
— Por que não fala de uma vez? — Me abaixo, ficando diante dela.
— Coloque pra fora e veja no que dá.
Os olhos da minha amiga se enchem de lágrimas e um soluço deixa
seus lábios.
— Eu tô grávida, Nika.
Grávida.
Deus.
Não.
Espere...
Jesus Cristo, Faina.
— Eu achei que não estivesse apaixonada por Viktor. — murmuro,
alisando seu joelho.
Ela lança um sorriso quebrado na minha direção, mais lágrimas
escorrendo sobre suas bochechas.
— E eu não estou.
Solto um suspiro, pensando em uma solução, alguma saída. Grávida.
Que saída há para isso? Para gerar e manter uma criança viva em Temnyy
Gorod?
— Bem... — Esfrego o rosto. — Ao menos ele quer casar com você,
certo?
Porque, bem, isso não é um romance fantasioso onde a mocinha tem
uma opção, aqui nessa cidade, ela se casa com o cara que não gosta porque
é o melhor a ser feito.
— Sim, bem, ele quer... Até descobrir que não é o pai do bebê.
Eu caio sentada na frente dela.
Uma mãe que não trabalha, uma irmã mais nova, animais de
estimação, um bebê, um apartamento de um quarto, Temnyy Gorod.
— Quem é o pai dessa criança? — pergunto.
Por favor, não seja um traficante do oeste.
Por favor, não seja um fodido psicopata do leste.
Por favor, não seja um verme ganancioso do norte.
Por favor, seja algum trabalhador decente do sul ou do centro.
— Quando Dimi e Efin queriam ficar juntos, bem... — Ela corre as
mãos sobre as bochechas e solta o ar, se recompondo. — Eu não ia
realmente segurar vela para os dois.
Eu levo um tempo.
Quase um minuto, talvez.
Mas a verdade é que mesmo quando cinco minutos inteiros se
passam, eu não consigo acreditar na conclusão em que cheguei.
— Você não pode estar falando sério.
— Eu estou. — A voz dela falha no meio das duas palavras e mais
choro vem.
Rastejo até minha amiga, envolvendo seu braço no meu, o frio
fazendo nos duas tremermos.
— Qual deles? — pergunto, apoiando a cabeça em seu ombro.
A voz dela é um sopro de culpa e tormento.
— Eu não faço ideia, Nika.

Eu peço para Faina subir quando nós estamos quase congelando,


mesmo no térreo do prédio, para onde entramos depois dela confessar para
mim. Nós ficamos horas assim, sentadas, conversando, em silêncio, fazendo
planos que nenhuma de nós sabe se dará certo, criando expectativas, nos
preparando para decepções, pensando no pior que poderia acontecer, mas
nos agarrando às esperanças do melhor que essa cidade poderia oferecer se
tivéssemos sorte. Eu estaria ao lado de Faina e da criança, seja qual for sua
decisão sobre ela.
Do lado de fora, atravesso a rua, ciente de que terei que atravessar o
oeste até a área industrial no sul, onde vivo. A essa hora, os perigos são dez
vezes maiores, mas são riscos que se correm por ser uma boa amiga. Eu
recusei uma carona em uma moto por causa do bebê e disse para ela que iria
pelas sombras, como sempre fiz. Preciso caminhar através da praça vazia e
abandonada para chegar do outro lado do Gigante Laranja ao qual me
levará para fora do bairro mais rápido e depois de me certificar que não há
traficantes, faço isso correndo.
O frio machuca, mesmo com as roupas térmicas que coloquei em
uso recentemente, as botas pesadas de frio, o casaco de lã e o sobretudo, a
touca, o cachecol e as luvas, ainda assim, o frio faz doer os ossos enquanto
luto em uma corrida desajeitada por causa de tanto tecido.
E então, o som de um balanço chama minha atenção, eu viro para lá,
para ele balançando sozinho, e é quando vejo alguém caído diante do
balanço, no chão, o sereno noturno maltratando sua pele junto ao frio
tenebroso de menos oito graus que faz hoje. Ele não está usando roupas o
bastante e quando freio os passos, embora diga a mim mesma que eu não
deveria parar, que não deveria olhar ou me importar, que era muito provável
que ele fosse um fodido sem alma, eu paro. Não apenas isso, eu me
aproximo. Lentamente, o corpo dele é revelado para mim, ao lado de uma
garrafa vazia de vodka, sapatos, calças e uma blusa de lã cinza que já vi
antes. Cachos desgrenhados que conheço bem. Um rosto pálido sem cor
alguma que apesar de reconhecer, nunca vi nesse tom.
Por instinto, eu corro até Demyan e seguro seu rosto entre as mãos,
tão gelado que me pergunto se ainda vive. Eu checo seus batimentos e levo
algum tempo até encontrar pulsação. Raiva e desprezo borbulham dentro de
mim, elas lutam uma batalha contra a compaixão sobre uma versão dele que
eu não conhecia. Demyan Petrovich nunca ficaria vulnerável, o garoto que
eu conheci no colégio não vacilaria dessa forma, mas ainda assim, aqui está
ele. Não perece ter sido deixado largado depois de uma briga, não há
ferimentos, há apenas uma garrafa que sugere que tudo o que ele fez foi
beber até cair nesse chão frio de forma miserável.
— Demyan... — Dou alguns tapas em seu rosto gélido. — Ei,
Demyan, acorde, você tá congelando...
Ajoelhada diante dele, tento levantá-lo, mas é quase impossível com
seu corpo totalmente relaxado.
— Ei. — Mais tapinhas em seu rosto e nada. Os lábios dele estão
arroxeados, franzidos, ele parece morto. — Demyan... Demyan, acorde...
Ele abre os olhos e, Deus, é tão bonito e doloroso que faz meu
estômago se contorcer de uma forma que não deveria, justamente por ser
Demyan e, bom, a maneira como ele me encara, como se eu fosse tudo o
que ele queria ver agora, enche meu peito com algo além de ódio. É quase
como se eu o conhecesse de algum lugar além do que conheço, é quase
como se nós fôssemos algo além do que realmente somos. Quase como se
existisse um vínculo entre nós.
— Sardenta. — ele murmura.
Sardenta.
Porra, esse é mesmo o Demyan, alguém que mesmo morrendo,
ainda não deixa de me odiar.
— Consegue levantar? — pergunto, olhando em volta.
Ele fecha os olhos outra vez.
— Me deixe morrer. — A frase soa como um murmúrio implorado.
— Bem, sim, mas não hoje. — Puxo-o em minha direção.
Eu vejo algo cair atrás dele, é uma fodida arma.
Merda.
É como se os problemas me perseguissem.
— Vem, Demyan, por favor — imploro, tateando seus bolsos até
encontrar as chaves do carro. — Me ajude a levar você até o carro.
Quando eu o puxo, ele colabora, embora sua cabeça caia em meu
ombro, os cachos se espreitando contra a pele do meu rosto. Recolho a
pistola do chão e a coloco no meu bolso, então me levanto, puxando-o
comigo. Demyan vem, ele se levanta, o peso apoiado em mim, me fazendo
cambalear e quase cair com ele. Ele está todo gelado, tremendo, a cada
passo incerto que damos na direção do carro, cada segundo a mais com as
mãos nele, posso perceber isso, que está beirando a uma hipotermia.
Quando destravo o veículo e abro a porta, empurro Demyan para
dentro, ele cai de mau jeito, as pernas para fora do carro. Preciso me abaixar
e colocá-las para dentro, antes de bater a porta e entrar ao seu lado. Eu
aperto todos os botões até encontrar o aquecimento enquanto giro a
temperatura no máximo. O rosto sem cor continua gelado, mesmo com o
vapor soprando contra ele, eu procuro roupas no carro, mas não acho nada,
então tiro meu sobretudo e o cubro, antes de pegar suas mãos e esfregá-las e
soprá-las.
Quando me lembro da pistola, coloco-a no porta-luvas, então, eu
apenas continuo tentando aquecer Demyan para que ele não morra
congelado.
Quando eu finalmente o sinto aquecendo, diminuo um pouco a
temperatura para que ele não receba um choque térmico ao sair do veículo
mais tarde. O rosto de Demyan parece mais corado quinze minutos depois,
as mãos menos brancas, os lábios mais avermelhados. Eu toco sua pele,
checando seu calor corporal, quando eu sei que ele está melhorando, eu
finalmente dou partida no veículo, sem fazer ideia de como colocá-lo em
movimento.
Eu poderia deixá-lo morrer ou eu poderia deixá-lo aqui e torcer para
que o aquecedor funcionasse até ele estar sóbrio para dirigir. Ou quem sabe
eu pudesse só ir embora e acreditar que ele não sairia bêbado por aí. Isso ou
eu poderia usar os dois pedais lá embaixo e fazer essa coisa andar até a
minha casa. Bem, parece melhor do que deixá-lo se afogando no próprio
vômito e melhor do que ir a pé, de qualquer forma.
Então eu faço isso, eu testo as marchas e os pedais até descobrir
quais me fazem andar para frente e qual dos pedais me faz acelerar e frear.
Não há ninguém nas ruas, não há carros e pessoas, não há nada além de
postes, na pior das hipóteses. Então, eu levo cinco quarteirões para fazer a
coisa funcionar como deveria e levo mais três para pegar o jeitinho, então
eu levo mais cinco para dirigir quase decentemente e mais alguns até a
minha casa enquanto sorrio como uma doida por estar fazendo isso pela
primeira vez.
Quando estou quase chegando diante da minha casa, o grupo de
traficantes rouba a minha atenção, eu me descuido um pouco e acabo
batendo em uma lata de lixo. Quando saio do carro, eles estão olhando, o
cabeça deles à espreita, pronto para tomar uma atitude.
— É o Demyan, eu o juntei afogado no vômito — murmuro para
ele.
Ele assente, mas dá uma olhada no estrago que fiz.
— Ele vai preferir ter morrido quando ver isso.
Olho para o mesmo lugar que ele, é um estrago pequeno, mas é um
carro caro. De qualquer forma, eu não me importo, é o preço que ele deve
pagar por me fazer passar por isso.
Se algum dia alguém me falasse que Demyan Petrovich estaria
dormindo no meu sofá porque salvei sua vida, eu teria rido e dito que era
mais fácil eu vê-lo morrer. Só que não é, e não foi, quando eu o vi na noite
passada tendo uma hipotermia e afogado em álcool, eu vi alguém que não
conhecia. Vi um Demyan sob sua fachada, um que ele provavelmente luta
para manter longe dos outros e que talvez poucas pessoas conheçam.
Alguém com problemas, com dores, cansado. Diferente.
Eu havia prometido acabar com ele, me vingar por sua família ter
construído o sul e nos aniquilado, ter poluído esse lugar e matado pessoas e
eu também sabia que se ninguém o encontrasse, ele morreria. Eu poderia só
ter fingido que não o vi lá. Poderia ter apagado a imagem dele caído da
minha mente e viver minha vida como se nada tivesse acontecido. Só que
essa não seria eu, eu não sou como os que vivem no norte. Eu me importo
com as pessoas e suas dores, sejam elas quem forem.
Demyan se move no sofá, os cachos mais bagunçados do que jamais
vi, o rosto em uma expressão de tormento, como se não tivesse paz nem
mesmo dormindo. Há uma linha entre as sobrancelhas, mas é o fio de suor
que chama a minha atenção. Eu levo minha mão até sua testa, medindo a
temperatura. Febre. Os olhos dele se abrem, primeiro, é como se ele não
tivesse caído em si, depois, quando o faz, algo brilha em seus olhos, ele me
olha da mesma forma que olhou na noite passada quando abriu os olhos
naquele chão frio.
Empurro os cabelos para longe da testa úmida, mas percebo que o
estou tocando mais do que deveria.
— Como se sente?
Demyan solta um grunhido, então ele funga, mas seu nariz parece
congestionado. Mordo os lábios, eu não deveria achar isso fofo, ele é
Demyan, porra, só que isso o torna humano e a versão humana de Demyan
é curiosa.
— Como um pedaço de merda. — Quando ele se senta, as cobertas
que coloquei sobre ele escorregam sobre seu colo.
— Bem, isso você sempre foi. — Estico o braço. — Café?
Ele pega uma xícara fumegante de café preto sem açúcar.
— Obrigado.
Uh, uma palavra que não sabia que ele poderia dizer.
Eu me levanto e pego alguns comprimidos e água.
— Isso vai te fazer sentir melhor.
O olhar que Demyan dá é quase como se ele não tivesse esperança
sobre algo que pudesse de fato fazê-lo se sentir melhor um dia, ainda assim,
ele pega.
— O que aconteceu? — pergunta.
— Você não lembra?
O corpo de Demyan parece trêmulo agora, com o café quente, ele
está suando ainda mais. Eu puxo suas cobertas para que sua temperatura
não aumente tanto.
— Eu bebi demais.
— Por que você estava lá? Era onde passava seu tempo com Roman,
não era?
Ele não responde, em vez disso, fecha os olhos e ergue uma barreira
entre nós.
— Por isso bebeu tanto? — pergunto. — Você conhece Roman, ele
deve ter feito alguma merda e agora tá vivendo por aí como um filho da
puta enquanto procuram por ele.
— Ele nunca teria ido sem avisar.
— Acha que o mataram?
Os olhos de Demyan se abrem, o castanho ficando mais escuro.
— Gosta de se meter onde não é chamada, não é?
— Tá na minha casa, no meu sofá, com as minhas cobertas, bebendo
do meu café. Eu salvei você na noite passada.
Uma buzina ecoa na frente da casa, é Sergey vindo me pegar para o
trabalho.
— Na próxima vez, então, faça o favor de me deixar morrer.

Vera e Marina estão cochichando na lavanderia quando chego, eu


me aproximo furtivamente tentando ouvir algo, mas Sergey caminha atrás
de mim com passos nada sutis que faz com que as duas deixem o local e eu
seja capaz apenas de ouvir quatro palavras: “Não. Dormiu. Em. Casa”.
Provavelmente estão fofocando sobre o chefe enquanto ele passa a noite em
um bordel fora da cidade afundado em prostitutas e uísque caro.
Não é algo que me interesse, nem um bom dia para fofoca, minha
cabeça já está cheia demais com Faina e Demyan e tudo o que aconteceu na
noite passada. Da janela, eu vejo o mesmo carro estacionado lá, o carro que
a mulher de branco entrou na sexta-feira passada quando achou que
ninguém estava olhando. Se eu fizer perguntas, as coisas serão ainda mais
omitidas e cuidadosamente, todos trabalharão ainda mais pesado em manter
segredos de mim. Por isso, eu seria cuidadosa em bisbilhotar.
Hoje é dia de inspecionar as áreas comuns e preparar algo especial
para o chefe e Marina parece ansiosa em ser realmente útil de verdade.
Percebo isso porque ela tem todos os legumes separados e todo o resto que
será preciso para uma receita que só será preparada à tarde.
— Ele não comeu a refeição de quinta-feira passada, não é?
Marina nega com um aceno enquanto Sergey e Vera tomam
caminhos diferentes, indo em direção às suas obrigações.
— Não, ele nunca come, na verdade.
Hum...
— O que pretende fazer hoje? — Encaro todos os saquinhos com os
ingredientes sem conseguir chegar a uma conclusão.
— Blini[6].
— Ele gosta? — pergunto.
— Ele comia antes.
Antes. Antes do quê?
— Por que não faz Borsch[7]? É um dia frio, talvez ele queira se
aquecer com uma sopa quando chegar. Era o que eu iria querer.
Ela parece contrariada, bom, ninguém gosta de ter outra pessoa se
metendo em seu caminho, ainda assim, ela sabe que sou a governanta agora
e que quando sugiro algo, quero dizer que ela poderia fazê-lo. Diferente de
Irina, que manda todos mudarem seus planos sem se importar com o
trabalho que passaram elaborando-os.
— Eu posso tentar, talvez ele goste, minhas receitas nunca deram
resultado de qualquer forma.
— Sim, vamos fazer isso.

No final do turno, enquanto espero por Sergey do lado de fora, eu


vejo algo preto se mover em direção à lateral da casa. Eu penso que pode
ser um gato e por isso, corro até lá, tentando seguir o animal que vi apenas
por reflexo. Está frio e escuro, a maior parte das luzes da mansão está
apagada e quando levanto a cabeça em direção ao andar de cima, sou capaz
de ver uma luz fraca deixar o terceiro andar.
Me encolho quando sombras de pessoas caminhando por lá chamam
a minha atenção. Eu tento enxergar algo, mas é impossível desse ângulo,
então sigo em frente, remoendo.
As luminárias de jardim espalhadas me permitem enxergar melhor
na escuridão, embora duas delas estejam queimadas. Aproveito para fazer
uma anotação mental para mandar consertá-las. Procurando o animal
sorrateiro, caminho furtivamente, o gramado se curvando aos meus pés.
Nesse lado, pinheiros delimitam a extremidade, não há muros, portões ou
cercas, apenas vegetação densa que dá início a uma floresta extensa que
contorna todo o norte.
O grito estridente de um corvo perfura o silêncio e flutua sobre mim
como um lamento macabro. Eu o vejo lá, em meio à escuridão, iluminado
pela luz pálida da lua e ao semicerrar os olhos para enxergar melhor, tenho
a visão clara do local onde ele pousou. Uma lápide se espreita na escuridão,
me aproximo, olhando para os lados para checar se meu stalker está por
perto, ele estava na primeira vez que havia um corvo lá e eu não ficaria
surpresa se ele fosse algum tipo de evocador de corvos ou algo assim.
Não há ninguém além do pássaro e eu, quando chego à lápide,
percebo outra um pouco mais ao lado. Um arrepio percorre meu corpo
inteiro, o chamado do animal ecoa outra vez pela escuridão, quase como um
grito do além. A medida em que me aproximo, os detalhes da lápide se
tornam mais visíveis. Me ajoelho no gramado frio e estico o braço em
direção à fotografia coberta por pó, há um pequeno rasgo nela e também
está levemente amassada. Meus olhos encontram os do corvo por um
momento e quase posso acreditar que ele me trouxe até aqui de propósito.
O rosto de uma garota sorridente se revela para mim.
Anna Petrovna.
Cubro a boca, é a garota do quarto. Eu penso na porta se abrindo
para mim, na caixinha de música e agora nisso, no corvo voando até aqui.
— O que você quer me dizer? — Esfrego seu rosto jovem e bonito.
— Aqui está você.
Eu dou um grito e caio com as mãos enterradas na grama, o corvo
voa em direção à floresta. Encaro Sergey, ele está fazendo o sinal da cruz.
— Você quase me matou de susto. — Espalmo as mãos para limpar
a grama grudada. — Você sabe quem é Anna? — pergunto baixinho.
Ele nega com um aceno.
— Não, e se eu fosse você, não mexeria com os mortos.
Principalmente com alguém como Irina na sua cola.
— Eu só estou curiosa — resmungo, seguindo-o através do
gramado.
— Por sua curiosidade, talvez a terceira lápide nesse gramado será a
sua.
Quando ergo o olhar, há uma silhueta diante de uma das janelas do
terceiro andar e seja quem for, está olhando exatamente para mim.
Tenho uma dívida com Annika. Ela havia salvado a porra da minha
vida mesmo quando eu desisti de lutar por ela. Apesar de me odiar, ela não
me deixou lá, em vez disso, Annika havia me arrastado até o carro e
dirigido até sua casa, onde me deu um lugar quente para dormir. Ela
também havia batido meu carro, mas, bem, eu aposto que isso havia sido de
propósito. Não posso continuar fazendo isso, há uma parte minha, mesmo
que ela seja mínima e quase invisível, que ainda é decente. Ou quase.
Por isso, pelo o que ainda resta de decência em mim e que eu não
quero matar, vim essa noite libertar Annika de qualquer merda mental na
qual a envolvi nos últimos meses. É preciso, inevitável, algo que eu devo
fazer agora antes que eu perca ainda mais o controle. Ela finalmente estaria
livre, finalmente se libertaria de mim, alguém que a perseguiu, que a
ameaçou, que jogou com ela, que entrou em sua mente, que prometeu
quebrá-la e fazê-la queimar e que no fim, está apenas desistindo porque é a
decisão mais fácil e a única coisa certa a se fazer.
Quando me sento em sua poltrona, ela se mexe na cama como se
não estivesse dormindo, então, preguiçosamente, Annika se senta de frente
para mim, mergulhada em escuridão e decisões ruins que apenas facilitaram
nossa relação até agora.
— Não ia me acordar de novo? — ela pergunta, a voz calma e
melosa, totalmente diferente do tom que usa comigo quando não estou
mergulhado na escuridão.
— Essa noite eu ia, stukach.
— Tem mais de duas semanas que não me acorda — murmura.
— Eu gosto de vê-la dormir.
Annika solta um suspiro baixo e arrastado.
— É algum tipo de fetiche?
— É mais como algo que eu gostaria de poder fazer também.
Ela parece pensar sobre isso.
— Tem problemas com insônia?
— Sim.
Não acordá-la vai um pouco além disso, eu queria estar aqui, queria
estar com ela, ver Annika dormir me trouxe uma sensação de paz e conforto
que eu não tinha há muito, muito tempo, algo que eu nem sabia mais como
era sentir. Eu também gosto de tê-la acordada, de fodê-la sobre essa maldita
cama ou em qualquer outra parte dessa casa, o problema é que Annika
nunca quer só isso, ela não quer só sexo, ela quer falar e ela consegue entrar
na minha cabeça e fazer com que eu me abra com ela como ninguém nunca
conseguiu.
Só que não posso ter isso como Demyan, porque ela me odeia.
— Foi algo que aconteceu com você? Foi por causa das pessoas que
perdeu?
É claro que ela não esqueceria.
— Sim.
Termine logo com isso, porra, coloque um ponto final nessa merda.
— Você deve ter alguém, converse, conversar ajuda. Talvez se sinta
melhor se você se abrir.
Eu rio, porque ser irônico me blinda.
— Se me mandar ir pra terapia, não esqueça quem abriu as pernas
para o seu fodido stalker, stukach.
Eu espero Annika ficar brava, mas então, o som fodido da sua risada
ecoa através do quarto. Eu ouço o farfalhar das cobertas quando ela rasteja
até mim, seus passos no carpete enquanto ela anda e o couro se movendo
quando ela se senta no meu colo.
Porra.
— Eu li dois livros com personagens como você — ela me
surpreende ao dizer.
Minha cabeça está girando com essa versão de Annika, a versão
dela que esperou tanto por mim que decidiu que não queria só sexo comigo.
A versão dela que quer mais.
— E o que achou?
— Eles são meus preferidos. Eu deveria saber, entre o Batman e o
Coringa, eu sempre tive meu favorito.
Toco a lateral do seu rosto, a cabeça dela se inclina contra a minha
palma.
— Eu vim por um motivo essa noite.
— Não me deixou lavanda da última vez que veio, mas eu ouvi
você. Eu sei o que tá tentando fazer.
Eu puxo seu rosto com força até o meu e ela vem sem hesitar,
deixando um gemido alto de prazer escapar. Annika se agarra em mim, eu
me levanto com ela no colo e caio por cima do seu corpo na cama. Meus
dedos se enroscam em seus cabelos, ela prende as pernas nas minhas costas,
destinados a desempenhar nossos papéis, nós dois arrancamos nossas
roupas em tempo recorde.
Com as mãos trêmulas, Annika abre meu moletom, mas eu não a
deixo tirar, porque fui longe demais para correr esse risco mais uma vez e
estragar a única coisa boa que tive na porra da minha vida há muito tempo.
Ela corre as mãos sobre meu abdômen antes de segurar meu rosto outra vez
e me beijar, aceitando seu destino.
Nossos lábios se encontram em um beijo faminto enquanto algo se
espalha em meu sistema como veneno fatal. Ela se entrega ao meu toque
possessivo e quando movo o látex sobre meu pau, Annika mal espera eu
terminar para encaixá-lo em sua boceta molhada. O gemido que ela deixa
escapar é cruel e me deixa tonto pra caralho. Ela sempre deixa.
O beijo se torna mais desesperado à medida em que me enterro nela,
quando me dou conta, Annika tem as mãos na minha cabeça, sob o tecido
do meu moletom, ela mantém os dedos em minha nuca, as unhas
pressionando minha pele tão forte que o ardor se espalha pelo local. Eu
sinto o gosto do metal em minha língua, um beijo tão violento e
desesperado que machuca seus lábios. Eu desacelero, me enterrando com
calma nela, enquanto sugo seus lábios e aprecio o sabor do sangue em sua
língua. Nossas respirações se tornam um pouco mais estáveis quando ela se
inclina e eu nos permito girar, deixando-a por cima.
Nós dois sabemos que esse é o limite para a nossa loucura.
Mas nenhum de nós quer parar, porque a insanidade também é nossa
rendição.
— Eu fiz promessas de acabar com você, não pode terminar comigo
antes disso — ela diz, a testa colada na minha.
— Se eu deixá-la em paz, não vai ter mais motivos pra fazer isso.
Pressiono seus quadris, ajudando-a a deslizar sobre mim em um vai
e vem que preciso controlar se não quiser gozar como um fodido
adolescente.
— O que aconteceu? Você ficou entediado?
— Não há como se entediar com você, acredite.
Eu não deveria rir de novo, mas é involuntário dessa vez e quando
me dou conta, Annika está segurando meu rosto com força em outro beijo
enquanto me fode insanamente.
Ela seria minha ruína.
Seria o ato final.
Annika seria o último golpe, o que me levaria à morte.
— Então o quê? Eu preciso saber.
Eu giro de novo, estou tão na beirada da cama que fico de pé no
chão enquanto a mantenho deitada. Pressiono uma mão em sua garganta
enquanto sinto suas pernas deslizando sobre meus ombros. Ela grita quando
a penetro dessa vez.
— Eu estou libertando você.
O quadril de Annika se move quando ela se curva, o gemido longo
indica o orgasmo e mantenho-a nessa posição, segurando seu corpo longe
da cama enquanto ela mantém apenas a parte das costas lá. Eu me enterro
fundo nela, uma, duas, três, foda-se, quatro vezes antes de gozar e quando
isso acontece, eu só continuo fazendo isso, tentando marcá-la como minha
possessivamente.
Ao largá-la, o quadril de Annika cai na cama, nossas respirações
descontroladas ganham um ritmo mais calmo e lento com o passar dos
minutos. Eu não sei quanto tempo passou, estamos encarando sombras e
mais sombras, porque isso é tudo o que poderemos ser, então ela diz:
— Vai terminar com todas as outras ou se cansou apenas de mim?
Eu levo um tempo para entender, então visto minha calça e sapatos e
fecho o moletom.
— Você é a única no meu radar, stukach.
Silêncio.
Mais silêncio.
— Então acenda a luz, mostre seu rosto pra mim, eu prometo que
não vou contar a ninguém o que aconteceu.
Engulo em seco, eu fico tentado pra caralho a fazer isso, talvez,
apenas talvez, se eu não tivesse desligado a chave geral, eu tivesse um surto
de coragem e pressionasse o interruptor da parede. Mas não, ir até lá
embaixo e ligar tudo é um nível muito além de coragem que nem mesmo eu
tenho, nem mesmo alguém que participa de lutas ilegais no Poço com
direito à morte tem. Encarar Annika na luz como seu stalker me dá medo
pra caralho.
— Não volte pro leste, não vá mais à biblioteca, não ande pelo oeste
na madrugada, não faça nada estúpido. Não esqueça que essa cidade é o que
é e que monstros andam por aí o tempo todo.
— Não se despeça de mim. Não ouse fazer isso depois de tudo. —
A voz dela falha.
Porra.
Porra.
Porra.
— Eu não vou voltar, Annika. Não haverá mais lavandas sobre sua
cama. — Eu puxo seu rosto e a beijo, depois, tiro um ramo do bolso do meu
moletom. — Essa será a última.
Então, eu corro a língua sobre as lágrimas que ela deixa escapar pela
última vez.
Tenho meu rosto completamente inchado quando me despeço do
meu pai. Acendo a vela, coloco a flor sobre o túmulo e digo adeus a ele
mais uma vez. Geralmente, eu levo mais tempo para vir, mas é um dia ruim
e não há ninguém além dele com quem eu gostaria de conversar hoje. Faina
diria que estou louca, ao menos os mortos não podem julgar. Ou se eles
podem, não há como falar.
Eu precisei vir, precisei desabafar com alguém, dizer em voz alta
que eu havia não apenas transado com um cara que havia me ameaçado de
morte, me seguido, invadido minha casa e me feito chorar, como também
estava apaixonada por ele. É, era a única explicação para a forma como me
sinto agora, a única maneira de justificar meu estômago embrulhado, a dor
em meu peito e a dor de cabeça por causa do choro constante.
Eu havia me apegado a ele.
Ao sexo e a ele.
Eu havia gostado da sua possessão e da maneira como ele me
marcou.
Só que isso acabou e eu sei que meu stalker não é alguém que volta
atrás em uma decisão. Por algum motivo, ele havia acabado o que
começamos e eu tinha certeza que ele não me procuraria nunca mais. Eu
também sabia porque ele havia sentido o mesmo que eu e estava com medo.
E, seja qual for seu segredo, ele achou que seria ruim demais para que eu
aceitasse.
“Não volte pro leste, não vá mais à biblioteca, não ande pelo oeste
na madrugada, não faça nada estúpido. Não esqueça que essa cidade é o
que é e que monstros andam por aí o tempo todo.”
E aqui estou eu, em um cemitério, às nove horas da noite de um
domingo sem transporte para voltar, porque passei horas demais me
lamentando sem me importar em voltar para minha casa solitária e fria,
porque, no fim, mesmo que as esperanças fossem quase nulas, eu pensei
que pudesse encontrá-lo aqui, sentado sobre algum túmulo, mergulhado em
sombras, me observando.
Só que ele não veio.
Meu stalker não iria mais me seguir por aí, nem me proteger de
pessoas ruins.
Quando estou diante dos portões pretos de ferro, dou uma última
olhada para trás, o amontado de túmulos engolidos pela névoa e a escuridão
se despedem temporariamente de mim. Ignoro o local onde meu stalker e eu
estivemos na última vez e fecho os portões para que os mortos não
escapem. Diante do cemitério, me pergunto o que seria menos arriscado.
Atravessar a Kupol e o centro, atravessar o oeste ou procurar algum serviço
de transporte fora de Temnyy Gorod.
O farol de um carro acerta meus olhos e coloco a mão diante do meu
rosto, eu dou alguns passos para trás quando ele perde a velocidade, com
medo do que posso encontrar, mas então, eu vejo o amassado na parte da
frente e reconheço o veículo.
— Você fica linda entre os mortos. — A voz de Demyan é pura
provocação.
— Não é só porque salvei sua vida que aprecio o fato de você estar
vivo.
Os lábios dele se curvam em um sorriso bonito e Demyan corre a
mão sobre os cachos.
— Tá tentando se matar também? O que tá fazendo fora da cidade a
essa hora? Tá fazendo menos sete graus essa noite.
Não me diga...
Levanto a coberta que carrego comigo no ar, eu havia usado roupas
apropriadas, botas para o frio e uma coberta térmica durante todo o tempo
aqui. Novembro é meu limite, quando o inverno chega, eu fico algum
tempo sem visitar meu pai, essa provavelmente seria a última visita em um
longo tempo.
— Eu vim visitar meu pai antes da Noite Longa chegar.
O olhar que Demyan me dá é quase como se ele compartilhasse da
mesma dor que eu. Eu não sinto a pena dele, eu sinto a compreensão. Ainda
assim, a afinidade que não construímos continua presente, como se, de
alguma forma, Demyan e eu tivéssemos algum tipo de conexão maior, mais
profunda, algo que eu gosto, apesar de odiá-lo.
— Entra, eu te levo.
— Só porque te livrei da morte, não significa que somos amigos.
— Acredite, eu sei, sardenta.
— Pare de me chamar de sardenta. — Eu contorno o carro e entro,
então giro os botões, aumentando a temperatura.
— Hum... Parece tão à vontade no meu carro.
— É porque eu tive que aprender a dirigi-lo pra que nós dois não
morrêssemos congelados.
Quando o carro entra em movimento, o sorriso que Demyan tem no
rosto é de satisfação.
— Isso explica a batida.
— É, eu nunca tinha sentado no banco do motorista antes.
Ele me olha como se eu fosse um bicho de sete cabeças.
— Uau, e você só saiu por aí dirigindo?
— O que eu podia fazer? Você não deixou opções. Eu não podia
ficar no carro com você e uma arma.
Demyan engasga.
— Eu ainda tô surpreso que você não a disparou contra mim.
— Acredite, eu fiquei tentada.
— Então, nunca havia dirigido antes... Interessante.
— Interessante? Não sou uma garota do norte, Demyan, meu pai
não tinha um carro.
— Quer seu emprego de volta? — ele pergunta. — Você sabe, por...
Há algo familiar em sua presença, nessa versão de Demyan que
conversa comigo, que não é cruel e detestável.
— Ter salvado sua vida? — Solto uma lufada de ar. — Acha que
vou aceitar sua esmola?
— Aquilo foi insano, fomos longe demais. — Ele corre a mão outra
vez pelo cabelo. — Você não precisava ter se demitido.
Sangue sobe para a minha cabeça, achei que pudesse empurrar o
ódio para o lado, mas é mais forte do que eu.
— Você mandou que eu chupasse o seu pau.
— Eu não fiz isso.
— Dá no mesmo.
— Era só uma provocação. — Ele intensifica o aperto no volante
enquanto atravessa o Gigante Laranja.
— Eu não me importo, não gosto de você, de caras como você.
— Eu não sou meu pai. — Eu sinto a raiva em cada sílaba
pronunciada.
— Foi criado pra ser como ele — resmungo.
— Acha que me conhece por causa do que ouve por aí, mas você é
só mais uma pessoa que não faz ideia do que acontece depois que se
atravessa a Granitsa.
— O que faria se eu topasse? — pergunto. — O que teria feito se eu
ficasse de joelhos e só concordasse com o que disse? Você teria dito que
estava brincando ou teria esperado que eu chupasse você antes de fazer uma
oferta pela minha casa?
Silêncio.
Eu vejo seu pomo de adão se mover.
— Eu teria deixado me chupar e eu teria gostado pra caralho. — A
voz dele, a forma como Demyan parece verdadeiro, me deixa enojada, mas
também desperta algo mais. — E depois eu teria dito que estava brincando
sobre a oferta, que seu lugar é no sul até eu decidir que não é mais.
Eu sinto o golpe de suas palavras. Sinto ódio por saber que elas são
verdadeiras.
— Pare o carro — ordeno.
— Não vou te deixar no meio do oeste a essa hora.
— Pare a porra do carro, Demyan! — exijo.
— O que foi? — ele pergunta. — O pensamento do meu pau na sua
garganta te enoja? — provoca. — Porque, no fundo, eu acho, sardenta, que
você me odeia tanto porque sente algo maior por mim.
Meu rosto está em chamas agora, eu quero dizer algo a ele que o
machuque, quero fazer Demyan queimar, mas não conheço seu ponto fraco.
O carro adentra o setor sul, o lugar mal-iluminado e vazio nos
recebe de forma sinistra e desoladora, e ainda assim, não tenho uma
resposta.
— Deve ser difícil, não é? Ter nascido em berço de ouro, ter tido
tudo o que desejou a vida inteira, ser dono de todo o sul, ter qualquer garota
na sua cola e ainda assim, ser rejeitado por mim. Uma pobre fodida que
seus amiguinhos ricos nunca olhariam duas vezes.
Quando o carro perde o movimento, sei que chegamos, mas não
consigo desviar o olhar, eu vejo o aperto dos seus dentes tensionarem a
mandíbula, a forma como ele parece prestes a explodir.
— Saia.
Dou uma risada.
— Sim, eu vou. Mas não pense que essa carona de merda foi você
pagando sua dívida comigo, eu salvei sua vida, você me deve uma e pode
apostar que eu vou cobrar.
Achei que era o destino brincando comigo quando deixei o oeste e a
encontrei na porta daquele cemitério, achei que alguém em algum lugar
estava me dando uma chance de fazer essa merda funcionar como Demyan,
mas eu estava errado, cada fodida vez que abri a boca, piorei qualquer
relação que tenha começado a construir com ela.
Annika não é fácil de lidar, ela tem traumas, medos e muito ódio
enraizado e todo ele é destinado ao norte, ao meu pai e a mim. Ela acha que
sou como ele, ela nem mesmo tenta, de fato, me ouvir. Eu tentei, tentei ser
eu mesmo, a versão minha que pouquíssimas pessoas já conheceram, tentei
usar o pouco de decência que resta em mim. Tentei ser a versão minha que
eu só conseguia ser usando a porra de um capuz quando estou mergulhado
na escuridão, mas ela não baixou sua guarda por muito tempo.
Quanto mais eu deveria tentar? Eu não sei, não havia sido criado
para agradar, havia sido educado e ensinado a passar por cima de todo
mundo e agora tenho uma garota fazendo isso comigo cada vez que nos
encontramos. Sempre foi assim, desde o colégio, desde a primeira vez que
coloquei meus olhos nela e ela pareceu enojada, eu ainda podia vê-la, cheia
de sardas, pequena e magra, os cabelos bagunçados, segurando sua mochila
surrada e me julgando. O riquinho que vinha no final da aula só para
arrumar confusão junto do seu amigo do oeste.
Ela nunca foi como as outras, enquanto as garotas arrumavam
formas de chamar minha atenção, todos os dias, quando o sinal tocava e o
colégio esvaziava em tempo recorde, Annika passava por mim, o mesmo
olhar de desgosto, o mesmo nariz sardento empinado, o mesmo ódio
reprimido. Eu queria fodê-la no passado e quero fodê-la no presente. Não
como um stalker que esconde o rosto, mas como Demyan Petrovich,
alguém que nunca se escondeu de nada e ninguém.
Ela havia dado uma chance ao seu stalker, havia ouvido o que ele
tinha a dizer, havia conversado com ele, apesar das ameaças, das brigas, de
lutar contra o que sentia por ele no início, ainda assim, Annika o quis, ela
queria que ele ficasse porque não apenas o enxergou de verdade, como
gostou do que viu. Eu não consigo entender como ela pôde confiar nele,
alguém que a ameaçou de morte e não em mim. Queria entender como
aquela garota podia ter implorado para alguém como ele ficar, alguém que
tirou a vida de um homem na frente dela e a ameaçou por causa do segredo
que guardava dele.
Meu pai diria que ela não é para mim, que há uma garota no norte
esperando um laço que irá fortalecer os negócios. Roman me chamaria de
covarde, ele daria um tapa na minha nuca e me mandaria parar de ser
frouxo. Minha mãe teria torcido um pouco o nariz no começo, ela teria
mandado eu obedecer meu pai, mas adoraria Annika no fim das contas, mas
isso antes...
Existiu apenas uma pessoa que diria a coisa certa. Ela falaria
exatamente o que eu deveria fazer e eu faria, porque os conselhos dela eram
os melhores, eles eram reais, de alguém que se importava de verdade e que
torcia por mim. Eu não sei mais como seguir em frente sem eles, sem a voz
dela me dizendo o que eu deveria fazer, porque mesmo quando eu não
seguia seus conselhos, eu sabia que o caminho no qual estava indo, era
errado pra caralho e então quando as coisas apertavam, eu pegava um
atalho.
Levo a garrafa de vodka até a boca enquanto encaro o painel que
montei com dedicação obsessiva ao longo dos últimos meses e que há
algum tempo está sem novas informações. A luz baixa cria sombras na
cortiça, uma foto de Roman está presa no centro com um alfinete vermelho
e em volta dela, tudo o que consegui até agora. Quase nada. A foto de
Arkady, a imagem de uma van branca que nunca consegui a placa, Z, o
mapa da cidade, todas as datas importantes, cada papel ligado por um
barbante vermelho que cria uma rede de possibilidades.
O Poço.
Meu maior palpite era o Poço, Roman não teria partido sem vingar
sua mãe, ele teria feito isso primeiro e só então ido.
E, por mais puto que estivesse comigo, por mais fodida que
estivesse nossa relação naquela época, ele também não teria partido sem me
falar. Ele teria se despedido, pelo o que fomos um dia, pelo o que ela
significou para ele, por ela.
Acendo um cigarro e a cada tragada, me afundo em um estado de
concentração quase hipnótico, focado em cada palavra escrita, cada rosto,
cada coisa que ouvi no Poço ao longo do último ciclo. Tento buscar sentido
em algo, tento encontrar respostas no olhar pesado de Arkady para mim.
Tento recorrer aos mortos. Eu peço mentalmente ajuda, peço uma porra de
luz, qualquer coisa que me leve a ele.
Quando um terço da garrafa foi esvaziado, eu a pouso sobre a mesa
de cabeceira e esfrego o rosto, sabendo o que vem agora. O barulho no
andar de cima é só mais um lembrete do que tenho que fazer, da minha vida
miserável, de que eu nunca fui e nunca serei só alguém normal. Então, eu
subo as escadas e vou ver minha mãe.
Demyan e stalker.
Stalker e Demyan.
Eu podia aceitar que eu havia me apaixonado por um homem
sombrio que me perseguiu nos últimos meses, mas eu não conseguia
assumir que Demyan Petrovich estava em meus pensamentos desde que me
deixou em casa na noite passada. Eu havia sido dura com ele, o havia visto
descer suas barreiras e depois o havia visto erguê-las quando eu não deixei
margem alguma para uma conversa decente.
Demyan não é o norte.
Demyan não é o sul.
Ele era um garoto mimado que se tornou um homem que eu não
conheço.
— No que tem pensado tanto? — Marina pergunta.
No meu stalker.
Em Demyan.
— Que deveríamos fazer mais refeições para o chefe. Ele comeu na
quinta-feira passada e comeu as sobras, isso nunca aconteceu antes.
— Era sopa, ele ficou resfriado, talvez tenha dado apetite a ele.
Dou de ombros.
— Talvez. Ou talvez ele tenha finalmente caído em si.
O sorriso dela aumenta.
— Eu falo a ele, vivo repetindo que precisa se alimentar, mas ele é
um garoto teimoso.
Garoto.
Garoto teimoso.
— O quê?
Irina aparece na porta, usando um vestido cinza, sua postura
impecável e olhos ameaçadores.
—Vocês não são pagas para tagarelar.
— Não estamos tagarelando, falamos meia dúzia de palavras, qual o
seu problema comigo? — pergunto.
— Meu problema não é com você, é com funcionários que
descumprem minhas ordens. O que estava fazendo nos fundos da
propriedade na sexta-feira?
Inclino a cabeça, mas então me coloco no meu lugar. Brigar com
Demyan havia feito meu orgulho falar mais alto e acabar desempregada, eu
não posso passar por isso outra vez.
— Eu segui um animal até lá, pensei que pudesse ser um gato.
— Animais são comuns por aqui por causa da floresta, não se meta
onde não é chamada, pare de bisbilhotar
— Sim, senhora. — Sorrio, mas ela não me conhece o bastante para
identificar o deboche no curvar dos meus lábios.
Quando Irina deixa a cozinha, eu me viro para Marina.
— Quem é Anna? — pergunto.
A mulher diante de mim perde a cor do rosto, o cabelo negro
absoluto ganhando ainda mais cor, assim como os olhos no mesmo tom.
— Não falamos esse nome aqui — ela murmura. — Não falamos
sobre nada do que aconteceu naquela noite.
Um barulho de vidro ecoa através de toda a cozinha quando uma
xícara desliza na borda da mesa e cai no chão, se espatifando. O líquido
quente dentro dela respinga em nossas pernas e pés e quando Marina se
abaixa e começa a juntar os cacos, ela dá um gritinho ao cortar o indicador.
Eu me abaixo imediatamente, sentindo um cheiro familiar se espalhar pela
cozinha.
— Você tá bem?
Ela puxa o dedo para si, pressionando o pequeno ferimento.
— Não se fala de quem está morto — ela diz.
Eu fungo.
— Que cheiro é esse?
— É de chá. — Ela se levanta e a forma como se vira em direção à
pia, sugere que o assunto está terminado.

Sinto um arrepio percorrer meu corpo inteiro, quase como se algo


tivesse passado através de mim. Não há ninguém aqui, estou esperando
Sergey para que me leve para casa, Irina ainda não saiu de onde quer que
esteja, Vera já foi embora e Marina está no banheiro, se preparando para ir
também. A porta que dá acesso à lavanderia está aberta e um sussurro
atravessa o cômodo, quase como vento. Apesar do interior aquecido, eu
sinto o frio da rua me atingir, uma corrente de ar tão forte que preciso
caminhar até lá para checar se há alguma janela aberta.
Não há, estou do lado de dentro da lavanderia, todas as janelas estão
fechadas e outro arrepio percorre meu corpo, quase como se uma presença
sobrenatural me fizesse companhia. Eu penso no rosto de Anna, no sorriso
bonito da garota, na caixinha de música, no corvo, na xícara caindo e agora,
isso...
Encaro uma pilha de roupas dobradas, o cesto vazio, todas elas já
lavadas, então ergo o olhar para o pequeno varal interno com aquecedor,
onde um sobretudo grosso está estendido. Eu encontro familiaridade na
peça, quase como se eu já tivesse visto antes.
— O que diabos você faz aqui? — Marina me puxa com força para
fora e me arrasta até o corredor.
Sergey está na porta de entrada, ele balança a cabeça negativamente,
como se não pudesse acreditar que eu esteja fazendo algo que não deveria
outra vez. Ergo o olhar através da sala, para o quadro sobre a lareira, os
cabelos ruivos caídos como cascata sobre os ombros da mulher exibida.
— Eu tô ficando louca... — murmuro.
Uma porta bate no andar de cima, mas apenas eu levanto a cabeça.
— Vá. Vá pra casa, amanhã é outro dia.
Quando entro no carro, percebo que estou cantarolando, mas é só
quando estamos atravessando a estrada que atravessa a Kupol que eu me
dou conta qual música é.
É a melodia da caixinha à corda.

Assim que o motorista me deixa, mal entro em casa quando uma


batida na porta ressoa por todo o andar de baixo. Um pouco confusa e
curiosa, caminho até ela, me perguntando quem poderia ser, já que meu
stalker não é conhecido por bater na porta e ele era a única pessoa que
vinha me ver. Vinha. No passado. Quando a abro, o rosto bonito de Demyan
está lá, pálido, ofegante, os lábios entreabertos e uma expressão de dúvida
como se nem ele soubesse o que veio fazer aqui.
— Jesus, Demyan, eu preferia quando nós éramos só duas pessoas
diferentes que se esbarravam no final da aula.
— Eu vim por Faina.
— O que aconteceu com ela?
Ele entra sem ser convidado, mas quanto a isso, eu já estou
acostumada, então não me importo.
— Eu não sei, ela não parecia bem hoje, achei que deveria saber.
Cruzo os braços.
— Então você veio me dar um recado sobre uma amiga de quem
você provavelmente nem gosta? Você se preocupa com ela?
— Ela é minha funcionária.
— E está grávida.
Merda, e agora eu havia acabado de dizer a Demyan algo que não é
meu para contar. Isso me faz vacilar um pouco, então puxo uma cadeira e
me sento. Ele continua parado, de pé, me encarando, as mãos dentro dos
bolsos do sobretudo pesado.
— Eu não vou contar nada.
— Obrigada. — Esfrego o rosto. — Por que você veio?
— Isso precisa parar, não somos inimigos, nem precisamos ser, eu
estou baixando minha guarda.
Abro minha boca, mas nada sai, ele parece honesto, tão honesto que
me deixa perplexa.
— Não temos mais nenhuma relação profissional, não precisamos
ter um bom convívio porque não nos veremos mais.
— Eu não sou o meu pai.
A forma como ele diz isso, como parece cheio de fogo dentro de si,
como está determinado a colocar um ponto final na nossa briga, mexe com
algo dentro de mim.
— Então prove.
— Como?
Dou de ombros.
— Não sendo como ele.
Nós trocamos um olhar e Demyan não desvia os olhos. Calor sobe
sobre minha pele.
— Coloque um casaco, vamos ver sua amiga.
— O quê?
— Vamos lá, não vou dizer nada estúpido, não vou tentar nada, não
vou pisar na bola. Você vai, fala um pouco com ela, eu espero no carro,
depois te trago de volta.
— Por que você faria isso por mim? Essa é sua dívida paga?
Demyan dá de ombros.
— Pode ser se você quiser. Ou pode ser só uma carona.
Eu não deixo meu orgulho atingir meu relacionamento com Faina,
porque sei que ela precisa de mim agora. Quando pulo da cadeira e pego o
sobretudo sobre o sofá, Demyan tem um sorriso no rosto que eu nunca em
um milhão de anos poderia saber o que significa. É quase como se ele
estivesse feliz.
— Nika?! — Faina me puxa em um abraço apertado e me arrasta
pelas escadas. — O que tá fazendo aqui?
— Eu vim ver você.
Os olhos dela se enchem de lágrimas em tempo recorde.
— Eu tive um dia de merda.
— Eu sei... — Esfrego sua bochecha.
Ela olha para as escadas, então me puxa para fora do prédio, apesar
do frio. Coloco minha touca enquanto Faina faz o mesmo.
— Minha irmã ainda não sabe, mas ela tá se espreitando por aí
tentando descobrir algo — murmura sobre o fato de estarmos aqui fora no
frio. — Eu ainda não contei pra ninguém.
— Ninguém, tipo, ninguém?
— Não quero contar a Dimitri, eu não sei, Nika, parece tão errado.
Ele tá feliz no emprego novo fora da cidade.
— Jesus Cristo, Faina. — Acerto um tapa em seu ombro. — Precisa
contar a eles.
— Eu não quero estragar o que eles têm.
— Vocês — respondo. — Vocês têm. Isso não é só sobre eles, você
entrou nisso também e eles abriram pra que entrasse.
Ela assente.
— O que eu deveria fazer? Contar e o quê?
— Apenas conte e espere a próxima etapa vir. Um passo de cada
vez. Talvez um exame quando a criança nascer.
Ela engasga.
— Com que dinheiro? Mal posso sustentar essa criança.
— Vamos dar um jeito, vamos conseguir.
Um sorriso se forma em seus lábios quando me incluo no seu futuro,
então ela ergue o olhar para o carro de Demyan do outro lado da rua. Ele
tem o vidro aberto enquanto sopra uma nuvem de fumaça para fora.
— O que meu chefe tá fazendo aqui?
Solto um suspiro.
— É uma longa história — murmuro.
— Eu nem sabia que vocês se falavam.
Demyan troca um olhar comigo.
— Oh, meu Deus, é muito mais do que isso, não é? — Ela cobre a
boca. — Vocês estão transando?
— Por que não fala mais alto? Talvez o norte não tenha ouvido.
— Oh, meu Deus!
— Cale a boca. Não estamos transando. É só uma carona.
Faina seca as lágrimas, meu próprio drama lhe servindo de
entretenimento.
— Do jeito que ele tá te olhando, se não estão, é só uma questão de
tempo...
É um dia estranho, daqueles que a partir do momento em que você
abre os olhos, aceita que algo ruim irá acontecer e tudo o que você faz ao
longo do dia é esperar e se preparar para esse momento. Desde quando
Sergey estava dirigindo através da estrada sinuosa que atravessa a Kupol até
depois do almoço, quando o céu começa a ficar preto. Eu passo o tempo
inteiro olhando o celular, esperando alguma notícia, embora o único
provedor poderia ser Dimitri, já que do meu ciclo pequeno de amigos, só
ele tem acesso à internet. Mas nada chega. Não há nenhuma indicação de
que algo está errado além da minha intuição ou da forma como todos
parecem quietos demais hoje.
Até agora.
— Sergey já saiu? Acabei de ver na TV que uma tempestade se
aproxima. — Irina me encontra na adega, onde Vera e eu estamos
trabalhando na limpeza do local.
— Sim, ele deve estar chegando no mercado agora. — Encaro o
relógio preso na parede.
Um estrondo muito alto ecoa por todo o lugar, fazendo as luzes
piscarem, nós três nos encolhemos.
— Caramba, eu não vi isso chegar.
Não há janela aqui, o local perfeitamente planejado para comportar
as bebidas fica isolado
— Não vai dar tempo de Sergey voltar e ele ainda precisa te deixar
em casa, vou dispensar ele mais cedo, é mais seguro.
— O quê? — Engasgo. — Passar a noite aqui?
No meio de uma tempestade?
Encaro Vera, que dá de ombros.
— Eu não me importaria de dormir em lençóis de oitocentos fios. —
Vera bate as palmas das mãos, espantando a poeira.
O som da caixinha de música ecoa em minha mente, a melodia lenta
e sinistra reverberando em minhas paredes mentais, sussurrando segredos
que ainda não sei se estou pronta para descobrir.
— Não há o que ser feito, é isso... Ficar. — Dou de ombros.
— Se já fosse dezembro, eu diria que a Noite Longa decidiu chegar
mais cedo... — Vera empurra o carrinho de limpeza para fora da adega.
— Os pássaros não estão loucos hoje — respondo.
Mas eles ficam no primeiro dia de inverno, com a chegada da Noite
Longa, não havia como sair na rua sem correr o risco de um ataque de
pássaros, é como se cada espécie que a Kupol abriga decidisse deixar a
floresta e sobrevoar a cidade, sem rumo, aos gritos e cantos e o som de
bater de asas. Milhares de pássaros em uma espécie de abertura sinistra e
perigosa.
Outro estrondo seguido de uma ventania muito forte acontece, nós
deixamos a adega enquanto Irina liga para Sergey, liberando-o mais cedo de
suas tarefas. Irina também dispensa Vera, embora tudo o que possamos
fazer aqui é ir para nossas acomodações, ainda assim já estamos liberadas
para fazer isso. Da janela da cozinha, raios rasgam o céu e uma chuva
torrencial desaba violentamente sobre o gramado bem cuidado da
propriedade. Eu vejo o momento exato em que o risco de um raio desce em
direção a um pinheiro, atingindo-o, as luzes piscam, Vera, Marina e eu
gritamos enquanto Irina continua impecável.
— Eu vou para o quarto. — Vera corre em direção às escadas.
— Eu também, gritem se precisarem de algo. A janta está pronta,
não há nada que precise ser feito. — Então, ela deixa a cozinha, alcançando
Vera.
Encaro Irina enquanto esfrego os braços, ela tem sua sobrancelha
erguida, os olhos presos na tempestade lá fora. A eletricidade cai.
— Você pode ir também, não é seguro ficar por aí.
— Tudo bem, eu prefiro ficar na cozinha até isso terminar.
A chuva incessante acerta os vidros das janelas enquanto o som
mais alto vem dela martelando no telhado, criando uma cacofonia
ensurdecedora. Uma porta bate no andar de cima, Irina ergue a cabeça, é
como se ela estivesse tentando identificar se o som vem do segundo ou
terceiro andar. Eu avalio suas expressões polidas, mas ela só demonstra algo
quando nós duas ouvimos o som de uma porta de carro do lado de fora.
Ela olha o relógio, então corre em direção à entrada da mansão antes
de dizer:
— Vá para os aposentos.
Eu não vou.
Em vez disso, me aproximo da entrada, furtivamente, sem que
ninguém me veja. De onde estou, não posso ver nada e é difícil ouvir
quando o mundo está desmoronando sobre nós.
— O que aconteceu com você?
— Eu bati o carro em um pinheiro.
A voz.
Confusa, eu corro até o hall de entrada, a porta está aberta e diante
dela, uma figura esguia em um sobretudo está de pé, quando um relâmpago
clareia todo o céu atrás dele e a eletricidade volta, eu me sinto subitamente
tonta, porque é Demyan Petrovich. O rosto ensanguentado, o olhar fixo no
meu, choque dançando sobre suas feições e refletindo por todo o meu
corpo.
Meu coração está disparado, o corpo inteiro treme, mas minha
mente busca respostas para isso, embora eu já saiba o que está acontecendo
aqui. O silêncio pesado é quebrado pelo som da chuva, dos trovões e da
porta quando Irina a fecha, mas nenhum de nós pronuncia nenhuma palavra
sequer por muito, muito tempo.
— Eu mandei que fosse para o quarto — Irina diz.
— Você recebeu ordens todo esse tempo, não foi? Para me fazer de
idiota...
— Pode ir... — Demyan diz a ela, que deixa o hall enquanto sustenta
um olhar duro na minha direção.
— Eu achei, por um segundo, que você pudesse ser um pouco
decente.
— Eu não sou — ele diz, sangue pingando em suas roupas.
— Vejo isso claramente — murmuro. — Você é como o seu pai, por
mais que tente provar que não.
Quando tento passar por ele, Demyan me segura.
— Você não vai sair no meio de uma tempestade.
Dou um sorriso cruel.
— E vai fazer o quê? Me impedir? — Tento puxar meu braço, mas
ele mantém o aperto, me impedindo de sair.
— Pode morrer se sair lá fora, olhe pra mim.
— Que bom, talvez eu tenha mais sorte do que você, então.
— Annika...
A respiração pesada de Demyan atinge meu rosto, mas estamos
presos no nosso jogo de encarar.
— Não vou deixá-la sair, nem que eu precise amarrar você aqui.
Não é seguro, a estrada está fechada, há relâmpagos atingindo a Kupol,
você não teria para onde ir.
Eu recuo, ele afrouxa o aperto, eu esfrego o rosto.
— Não acredito que me manipulou desse jeito...
— Se demitiu por causa de um jogo estúpido e sem sentido que
jogamos pra acariciar nossos egos. Você precisava de um emprego, eu
precisava de alguém.
Balanço a cabeça, meus olhos se enchendo de lágrimas.
— Não era uma decisão sua, Demyan, sabia que eu não queria
trabalhar pra você quando não fui a qualquer uma de suas outras empresas
do sul, por que seria diferente no norte? Por que acha que eu iria querer
trabalhar aqui?
— Eu não acho que iria, mas acho que precisava, você saiu por
minha causa, o mínimo que eu deveria fazer era conseguir um emprego pra
você. Eu não sou um inconsequente, Annika, você tem uma casa, gastos e
despesas, você precisava de um emprego e eu só... Iria ficar longe do seu
radar.
— Você fez isso porque é um sádico. Porque ama controle. Porque
gosta de jogar comigo.
— Não. Você tá errada.
— Foi na minha casa, você me fez acreditar que havia erguido uma
bandeira da paz.
Demyan corre a mão sobre o ferimento e solta um grunhido baixo.
— Ela tá erguida, eu juro.
Eu penso em me desvencilhar dele e correr para fora, mas então, eu
começo a juntar algumas peças. Os túmulos, Anna, o quarto, a sensação de
uma presença que quer me dizer algo. Se Demyan é quem vive aqui,
completamente solitário, onde está toda a sua família? Eu sabia do seu pai,
mas e sua mãe? E sua irmã? Ele tinha uma, não tinha? Eu havia ouvido
falar dela no passado uma vez.
Espere...
— Anna é sua irmã? — pergunto.
Eu vejo seu rosto perder a cor.
O sangue ganhando um tom mais escuro por causa disso.
Os lábios dele arroxeados se repuxam em desgosto.
— O quê?
Demyan começa a andar, ele simplesmente ergue um muro.
— Eu tropecei em seu túmulo outro dia.
Ele se vira para mim.
— Eu deveria saber que era uma ideia de merda trazê-la pra cá.
— Eu sou curiosa.
Ele dá um sorriso, parece um grunhido de escárnio cheio de pânico.
— Não me diga.
Demyan tira o sobretudo encharcado e o joga sobre a mesa da
cozinha enquanto usa a pia para lavar seu rosto cheio de sangue.
Isso me faz pensar em Marina, nela falando que ele nunca come e
que havia comido a sopa naquela noite, então eu lembro que ela disse que
ele estava resfriado e relaciono isso àquela noite em que o encontrei na
praça, em como ele amanheceu febril. Pouco a pouco, as peças vão se
juntando. As roupas na lavanderia, o motivo de eu não poder entrar lá ser
justamente porque eu reconheceria. Demyan havia me dado um emprego,
mas ele também havia colocado toda a sua merda exposta para mim. Anna,
o que quer que aconteça no terceiro andar. No fim, ele sempre soube que se
eu cavasse fundo, poderia descobrir seus segredos e usá-los contra ele.
Ainda assim, aqui estou eu.
Aqui está Demyan.
— Eu fico se me falar quem era Anna. — Toco seu antebraço, as
mangas de sua camisa branca e molhada estão erguidas.
Demyan para de se mexer, ele fixa o olhar em um ponto distante, os
olhos cheios de faíscas. Eu percebo que ele está apertando os dentes porque
os músculos de sua mandíbula tensionam. Observo cada detalhe do seu
rosto, cada músculo que se destaca com a pressão crescente enquanto ele
luta uma batalha interna.
— Ela era minha irmã — ele diz, o olhar perdido. — Minha
bliznets[8].
Gêmea.
Demyan tinha uma irmã gêmea e ela está morta.
— Eu sinto muito. — Minha voz sai estrangulada e lágrimas
pinicam meus olhos. — O que aconteceu?
O olhar dele encontra o meu.
— Eu não falo sobre isso. — Há rispidez em seu tom de voz.
Assinto.
— Tudo bem...
Eu penso no sorriso bonito da garota, no quarto cheio de
recordações cruéis, no espelho quebrado que agora faz sentido. Eu penso
em Demyan vivendo sozinho nesse lugar. Em uma irmã gêmea morta. Em
um garoto perdendo tudo, lentamente e então, pouco a pouco, eu
desconstruo a imagem que tinha de Demyan na minha cabeça e de repente,
tudo o que achava que sabia sobre ele se desfaz como fumaça soprada ao
vento.
— Eu não sou um moleque mimado e encrenqueiro, Annika.
Corro meus olhos sobre Demyan.
Não.
Ele é um homem que vive em uma mansão onde toda sua família
viveu um dia, junto das lembranças, dos fantasmas e da dor.
E, embora ele tenha manipulado as coisas para me trazer para cá, eu
também podia entender seus motivos.
— Agora eu sei.
Abro os olhos com o som de um trovão, a tempestade do lado de
fora continua violenta, eu me sento lentamente, esfregando o rosto e quando
me levanto, percebo que há algo errado. Me sinto estranha, olho para
minhas mãos, para os pés, então me viro e grito quando vejo sobre a cama
do quarto de hóspedes da mansão, meu corpo esticado em um sono
profundo.
Eu corro até a cama de volta e continuo gritando, esperando alguém
aparecer na porta, esperando que Irina ou Demyan venham me checar, mas
ninguém vem, mesmo que eu continue gritando e gritando até me cansar de
fazer isso, até perceber que é em vão. Quando isso acontece, olho em volta,
tentando me recompor, pensar com clareza ou entender o que está
acontecendo.
Pisco e esfrego os olhos, o corpo continua lá, belisco meu braço, eu
não acordo. Estou encarando meu próprio rosto pálido e cabelos ruivos
espalhados pela cama quando tenho uma ideia estúpida, tentar vagar por aí.
Toco a parede, mas não há fluidez, portanto, quando giro a maçaneta e a
porta se abre, percebo que seja o que isso for, um sonho ou uma experiência
espiritual, não me dá o direito de simplesmente sair atravessando estruturas.
No corredor escuro do segundo andar, encaro a porta de Demyan e
caminho até lá, me pergunto se há alguma possibilidade de conhecer algo
que nunca vi antes ou se apenas tenho acesso ao que já faz parte do meu
subconsciente. Eu toco a maçaneta, mas ela não gira, está trancada. Tento
ouvir algo, mas o som da chuva no telhado me impede. Apoio a testa na
porta, é quando o som da caixinha de música começa a tocar no quarto de
Anna.
Não.
Merda, Anna.
Eu me viro e caminho até lá, a porta está destrancada, o cômodo
mergulhado em escuridão. Dessa vez, consigo olhar as polaroides com mais
atenção, fotos de Anna sorrindo, tentando cobrir o rosto, envergonhada, os
cabelos rebeldes, os olhos verdes incríveis, os lábios cheios e rosados, a
pele impecável, as bochechas coradas, linda. Anna era linda. Havia alguns
traços nela que me lembram Demyan, a boca, os olhos e a cor da pele
principalmente. Isso e os cabelos enrolados.
Ela era a outra metade dele e está morta.
Gêmeos.
Há uma foto com Demyan, ela está beijando sua bochecha enquanto
ele mostra o dedo médio, uma versão dele que eu nunca poderia imaginar
que conhecia, uma versão humana que amou um dia. Estou chorando
quando pego outra, é uma imagem com outro garoto, eu levo algum tempo
até perceber quem ele é. Roman está sorrindo como um garoto, um sorriso
largo e bonito que nunca o vi dar no colégio ou em qualquer outro lugar, um
sorriso verdadeiro e não algo que ele usava para assustar as pessoas. Não
era seu sorriso de psicopata lá, era um sorriso tão bonito e grande que fazia
os olhos se fecharem.
Agora sei por que ele sempre esteve alheio às garotas do oeste.
Roman era namorado de Anna, a forma como ela olha para ele na
foto não me deixa dúvidas.
Uma lágrima cai sobre a polaroide em minha mão quando o último
acorde da caixinha desvanece no ar, deixando o quarto afundado em um
silêncio absoluto. O rangido da dobradiça sem lubrificação me faz erguer a
cabeça, não é a porta de entrada, mas uma que leva para a suíte. Eu largo a
fotografia sobre a mesinha e caminho até lá, a chuva diminui sobre o
telhado, mas os trovões continuam reverberando no céu e iluminando o
interior.
Quando passo pela porta, envolta de uma aura etérea, minha
consciência flutua diante de uma cena que me choca e faz meu coração se
apertar. A visão que se revela é desoladora mesmo sob a escuridão. Apenas
um feixe de luz penetra pelas frestas da janela empoeirada e inspiro o ar
carregado de angústia, dor e poeira. Eu paro quando encontro destroços
diante dos meus pés, lascas de porcelanato, de vidro e porcelana. Um
pedaço grande de espelho estilhaçado em centena de pedaços brilhantes que
refletem uma imagem distorcida de mim mesma.
Mas, apesar de tudo, não é o banheiro quebrado que mais me choca,
e sim a banheira branca para uma pessoa, banhada em sangue seco. Um
vermelho tão profundo que quase parece preto. Contando uma história
trágica e dolorosa que ainda reverbera por todos os outros cômodos, apesar
de ser mantida em segredo. Marcas de mãos ensanguentadas percorrem a
lateral do porcelanato branco e as paredes do banheiro, gotas dele
respingam o chão quebrado, pedaços de azulejos estão espalhados por todo
o cômodo como testemunhas silenciosas do que aconteceu aqui um dia.
De alguma forma, sinto a presença da garota aqui, agitada,
perturbada, inquieta, querendo me dizer algo que talvez eu leve algum
tempo ainda para decifrar.
Medo e determinação se agitam em mim quando dou um passo para
trás, adentrando o quarto outra vez, e conforme me afasto cada vez mais,
em direção ao quarto onde meu corpo repousa, faço uma promessa
silenciosa para a garota que nunca conheci. Eu iria desvendar seus segredos.
Eu começo a correr, lágrimas escorrendo sobre meu rosto, meu
corpo inteiro trêmulo e quando abro a porta, Demyan está sentado sobre a
cama, em uma calça de moletom e sem camisa, ele segura meu corpo
trêmulo contra ele e empurra meus cabelos para longe do rosto suado.
É quando eu volto.
Tudo fica claro, como um flash de luz disparado contra meu rosto.
Então abro os olhos.
Demyan está diante de mim.
— A Anna... — murmuro entre lágrimas, sentindo sua palma quente
contra minha bochecha. — Ela tirou a própria vida, não foi?
A respiração de Annika se torna pesada por causa da aproximação,
eu nunca imaginei que ela pudesse gostar do meu toque como Demyan, mas
aqui estou eu, segurando seu rosto entre as mãos enquanto ela não cria
formas de escapar de mim, me ofender ou esconder que está gostando.
— Com quem conversou? — pergunto, tentando controlar meu tom
de voz, minhas expressões, qualquer indício de sentimento sobre qualquer
coisa.
Então, eu percebo o quanto fiquei dependente da armadura de
indiferença que uso desde que perdi Anna.
— Com ninguém... — Ela se senta, a mão tocando meu joelho. —
Eu acabei de ter um sonho muito louco...
— Um sonho?
— Há um banheiro no quarto dela?
— Entrou lá?
De joelhos na cama e as mãos diante do rosto, Annika me encara,
tentando organizar seus pensamentos. O azul de seus olhos brilhando sob a
iluminação baixa do quarto.
— Entrei no quarto de Anna outro dia, estava no corredor quando a
porta abriu sozinha...
Não.
Não.
Eu não deveria ter trazido Annika para cá.
Não deveria ter deixado minha merda exposta achando que ela não
iria xeretar.
— Vá dormir, sardenta.
Quando me levanto, ela toca meu antebraço. É tão fodido e íntimo
que faz minha mente girar. Eu me agarro a uma migalha que ela me dá
porque isso é tudo o que eu tenho, é mais do que eu tive de qualquer pessoa
desde que perdi tudo.
— Eu nunca usaria isso contra você por maior que fosse o meu
ódio, Dem.
Dem?
Eu não sei de onde isso saiu.
Nem ela, porque a forma como Annika une as sobrancelhas faz
parecer que saiu sem pensar.
Eu fico de pé, o estômago embrulhado. E se ela tivesse descoberto
sobre o stalker e de repente estivesse usando Anna contra mim? Annika
faria isso? Ela iria tão longe usando minha gêmea morta? Como ela havia
descoberto a forma como Anna me chamava? Como ela havia entrado na
porra do banheiro trancado?
— Quer foder com a minha mente, não é? Você só tá querendo se
vingar de mim pelo o que eu fiz.
Eu jogo isso para que se encaixe caso ela saiba sobre o stalker, mas
isso também faria sentido sobre o emprego, então eu deixo-a abraçar o que
quer que ache que seja.
— O quê? Não. — Caminha de joelhos sobre a cama até estar na
borda, então se senta sobre os calcanhares, diante de mim. — Estive no
quarto de Anna uma vez, estava escuro, foi rápido, eu toquei em um
polaroide dela apenas, uma foto dela sorrindo e escondendo o rosto, mas...
Tem o meu sonho... — Seus olhos estão cheios de lágrimas. — No meu
sonho, havia Roman em um deles, havia fotos suas com ela e havia... Havia
um banheiro todo destruído e sangue... — Annika segura meu rosto, talvez
ela tenha identificado o pânico que estou sentindo agora.
Eu havia estado aqui enquanto Annika sonhava. Havia visto-a se
debater e murmurar alguns detalhes.
— Pare.
Me livro de suas mãos e atravesso a porta, eu corro através do
corredor e entro no quarto de Anna depois de tantos meses. Depois de ter
destruído tudo da última vez. Depois de ter bebido tanto e quase morrido
afogado no próprio vômito após um surto onde destruí todo o banheiro onde
Roman e eu a encontramos morta, achando que me libertaria das
lembranças daquela noite. Como se eu pudesse esquecer da sensação da
pele dela nua e coberta por sangue escorregadio. Como se eu pudesse me
livrar do olhar desesperado de Roman na minha direção, como se eu fosse
capaz de fazer algo para trazê-la de volta. Como se o cheiro metálico algum
dia pudesse deixar meu nariz.
Atravesso até o banheiro sentindo Annika atrás de mim e quando
tento entrada, encontro a porta fechada, como sabia que estaria. Eu havia
me livrado da chave em seu aniversário de morte porque cada vez que
voltava aqui, eu me tornava alguém ainda pior. O estuprador morto naquela
noite era a prova disso.
Eu havia entrado aqui um pouco antes daquilo, havia me sentado em
meio aos destroços e havia encarado a banheira repleta de sangue seco e
lembranças horrorosas. Eu também havia perdido o controle.
— Essa porta tá fechada há meses, Annika, como você entrou aqui,
porra?
— Eu não entrei... — murmura. — Eu sonhei, não sei...
— Como pode ter sonhado com um lugar que nunca esteve?
A forma como ela me encara sugere que nem mesmo ela tem
respostas para isso.
Roman teria acreditado em cada fodida palavra dela. Roman teria
arrastado
Annika em busca de respostas. Ele acreditava nessa merda, que os mortos
não descansavam se tivessem algo pendente aqui, se quisessem dizer algo.
Mas eu não, eu nunca acreditei. Minha mãe teria ouvido sobre seu sonho até
enlouquecer, então, ela diria que estava certa o tempo todo.
E se Irina tivesse alguma chave extra em algum lugar? E se Annika
tivesse aberto a porta com uma chave mestra?
Tento forçar a entrada mais uma vez, mas realmente não há como.
Sinto que estou sufocando.
Eu dou alguns passos para trás.
— Porcelanato, porcelana, espelho quebrado, uma banheira com
sangue quase preto, marcas de mãos... — ela diz baixinho. — Eu sonhei
com isso... — Lágrimas e mais lágrimas caem sobre suas bochechas. — Ela
quer dizer alguma coisa, Dem...
Dem.
Não havia como isso ser mentira.
Ou havia?
Eu nunca tinha acreditado nessa merda antes, por que faria isso
agora?
Eu teria desmoronado agora se ela não estivesse precisando de mim.
— Foda-se. — Eu a pego no colo em posição fetal e a carrego pelo
corredor e então, eu derrubo mais uma barreira que protege minha merda
dela quando a levo para o meu quarto.
— Eu sinto muito... — ela diz, a cabeça enterrada em meu rosto, as
mãos em volta do meu pescoço.
Eu não fazia ideia do que era ter alguém precisando de você dessa
forma.
Não sabia como era precisar de alguém.
Não me lembrava como era não estar mais sozinho.
— Tudo bem. — Puxo as cobertas grossas e a coloco lá, Annika se
aninha entre elas, minúscula na minha cama. — Durma um pouco.
Ela me olha, uma linha entre as sobrancelhas, então, fecha os olhos.
Os cabelos longos e ruivos espalhados sobre minha roupa de cama preta. Eu
me dou conta do erro que cometi, mandar Annika dormir pode fazê-la me
associar ao seu stalker, porque esse é o tipo de frase que ele diria a ela, o
tipo de relação que eles tinham. Eu sinto falta pra caralho daquilo, mas isso,
como Demyan, a confiança que estou construindo com ela, a forma como
de repente começou a me olhar...
Quando me movo para fora da cama, Annika se mexe.
— Demyan...
— Oi.
— Você pode ficar?
Porra.
Foda-se.
Se ela soubesse o quão obcecado por ela sou, não teria me feito essa
pergunta.
— Sim, sardenta, claro que sim. — Eu me acomodo ao seu lado e é
natural pra caralho a forma como ela deita em meu braço.
Como nossos corpos se encontram, como se aconchegam, como ela
passa um braço sobre minha cintura. Isso é melhor do que ser seu stalker. É
mais real.
— Quando eu entrei lá, quando comecei a bisbilhotar... Eu fiz isso
porque não sabia que era você, não sabia que era a sua irmã, eu não teria
feito se soubesse.
Empurro seus cabelos para longe, o ruivo ondula por suas costas.
— Tudo bem.
Mas tinha o sonho, coisas que estavam acontecendo que iam além
dela xeretar.
Coisas que Roman nomearia.
Coisas que eu nunca teria coragem de assumir.
Coisas que me fizeram tomar uma decisão nos últimos meses que
me impedia de dormir.
Abro os olhos, eu levo um tempo até perceber onde estou. Uma luz
quente ilumina o quarto gigante e luxuoso e a claridade da lua também
adentra o cômodo através das duas janelas que começam acima das mesas
de cabeceira e vão até o teto, de cada lado da cama. O feixe de luz que
atravessa o quarto acerta algo diante da cama, uma espécie de painel
investigativo cheio de recortes presos. Encaro Demyan ao meu lado, em um
sono profundo, tão calmo, relaxado e bonito que eu nunca poderia dizer que
é real, que é uma versão existente dele.
Sem pensar muito, afasto os cachos de sua testa, ele envolve minha
cintura possessivamente, mesmo que esteja inconsciente. Me pergunto
quando isso aconteceu, quando deixamos de ser inimigos para estarmos
aninhados um no outro como se nos conhecêssemos há meses, como se
fizéssemos isso há muito tempo. Me sinto suja por meu stalker, por estar
permitindo que outro homem ultrapasse a linha quando eu havia me
apaixonado por ele, mas isso com Demyan mexe comigo de alguma forma e
não é de agora, não é recente.
Quando corro o indicador sobre o antebraço de Demyan em minha
cintura, me dou conta que o mesmo sentimento que cresceu em mim por um
homem que nunca vi o rosto também estava crescendo por outro que eu
nunca achei que fosse capaz. Eu queria os dois.
Encaro o painel iluminado pela luz pálida da lua, reconheço o rosto
de Roman lá, envolto por linhas vermelhas que ligam inúmeras
informações. Ele estava tentando achar Roman? Ele ainda estava mesmo
vivo? O que havia acontecido com ele? Eu penso na foto no quarto de
Anna. No vínculo entre eles que era maior do que pensei, maior do que
amigos, eles eram família.
Sobre a mesa de cabeceira de Demyan há um iPad, eu o pego para
pesquisar algo que está em minha mente agora. Eu digito “projeção astral”
no Safari e o que leio me choca. Eu sabia que não havia sido um sonho, não
havia forma no inferno de saber o que havia dentro daquele cômodo, dizer a
Demyan que tive um sonho foi a maneira mais prática de explicar o que
aconteceu, por que como eu colocaria em palavras o fato de que deixei meu
corpo e vaguei por sua casa em uma experiência espiritual? Que minha
consciência havia se desprendido do corpo?
Havia dezenas de relatos na internet, sobre fluidez através de
paredes e também de precisar abrir portas para passar de um lugar para o
outro. Relatos de pessoas que visitam lugares conhecidos e outros de visitas
feitas a lugares nunca idos antes, como o banheiro de Anna. A única dúvida
era sobre ele estar fechado e, ainda assim, eu ter conseguido acessá-lo, mas
bem, para início de conversa, havia um fantasma se comunicando comigo e
depois, eu havia vagado por aí fora do corpo, então, não é realmente como
se eu pudesse explicar as coisas que acontecem dentro dessa mansão.
O corvo. A xícara caindo por algum motivo. O vento e os sussurros
me levando à lavanderia para que eu reconhecesse as roupas de Demyan. A
caixinha de música. A porta do quarto se abrindo para que eu entrasse e
descobrisse o que aconteceu lá dentro. Projeção astral revelando o banheiro
onde ela morreu.
Talvez Anna soubesse que Demyan é alguém difícil de se abrir e ela
não conseguisse se comunicar com ele por ser alguém cético.
Eu sempre acreditei nisso, na comunicação com os mortos.
Então, eu me lembro do balanço, da forma como ele se moveu como
se eu tivesse que olhar ao redor para encontrar Demyan no chão, beirando a
morte, naquela noite.
Caramba.
Desligo o iPad e o coloco no mesmo lugar, então, me deito e encaro
o teto todo trabalhado em uma estrutura clássica, o lustre gigante pendurado
no centro do cômodo. Tanto luxo, tanto espaço para uma única pessoa. O
que havia acontecido com a sua mãe?
— O que há de errado? — ele pergunta.
— Eu perdi o sono.
Ele solta um suspiro pesado.
— Há algo de errado com essa casa, então, eu nunca pude dormir
aqui.
O farfalhar das cobertas quando nos movemos preenche o silêncio.
Estou pronta para dizer que é carma pelo o que o norte faz com o sul,
quando me lembro tudo o que ele perdeu. Não havia castigo maior do que o
de Demyan, do que dar adeus a quem ama. Do que estar sozinho no mundo.
— Mesmo? Eu pude ouvir você roncar.
Eu vejo o rosto dele se contorcer em uma expressão perturbada,
quase envergonhada.
— Mesmo?
Dou uma risada.
— Sim, você parecia preso em um sono profundo.
As sobrancelhas dele se unem.
— Eu estava.
Então, silêncio, o olhar de Demyan cai em meus lábios, eu queria
não parecer eufórica com seu braço em volta da minha cintura ou com a
forma como ele me marca como dele ao fazer isso.
— O que estamos fazendo? — pergunto em um sussurro.
Demyan empurra uma mecha para longe do meu rosto.
— Não sei, mas eu vou beijar você agora... — Quando ele se inclina
sobre mim, eu o recebo disposta.
Ele desliza para cima do meu corpo, apenas de calça de moletom,
sou capaz de sentir seu calor corporal através da pele exposta. Demyan
segura meu rosto, o toque percorre minha pele como uma promessa de
redenção em meio ao caos. Eu me entrego a ele, ao beijo ansioso que rouba
suspiros que se misturam ao vento uivante do lado de fora.
O beijo se torna cada vez mais ansioso, ele solta um grunhido
quando pousa a testa na minha por causa do ferimento que tem no local.
Seguro seu rosto, correndo os dedos entre os cabelos, envolvendo minhas
pernas em sua cintura, sentindo seu pau contra mim de uma forma que já
não me faz sentir uma traidora por desejar dois homens. Quando Demyan
toca a bainha da minha camiseta e permito que ele a tire, eu vejo surpresa
brilhar em seus olhos.
Não há escuridão dessa vez, com Demyan não, apesar de todos os
seus segredos e traumas, ele faz isso comigo na luz. Ele permite que eu veja
suas dores, permite que eu alcance além de suas camadas, assim como
permito que ele faça comigo. Quando ele me despe e me encara como se de
repente eu fosse tudo o que ele desejasse no mundo inteiro, eu tento não me
sentir tão especial para não sofrer duas perdas no futuro.
— Porra, isso não pode ser real... — ele diz. — Você aqui, na minha
cama.
— Soa como alguém que desejou fazer isso por muito tempo.
Eu penso na forma como sua cabeça inclinava ao me ver deixar o
colégio, como ele corria a língua sobre os lábios ressecados pelo frio. Como
a mandíbula tensionava sob o meu olhar de desprezo.
— Você não? — Demyan pergunta, cheio de si, sobre mim.
— Eu odiava você.
Ele segura meus punhos contra a cama, um sorriso tão presunçoso
no rosto que me faz querer estapeá-lo.
— Odiava, sardenta?
— É, eu odiava.
A boca dele toca a curva do meu pescoço, meu ombro.
— Caras como você não estão acostumados a serem rejeitados, só
está tentando provar algo a si mesmo.
— Eu tô fodendo sobre provar alguma coisa, eu só quero estar
enterrado em você.
Fogo queima em meu ventre, estômago e bochechas. Eu sinto o
meio de minhas pernas latejar tão intensamente que me mexo em busca de
alívio. Corro as mãos por ele inteiro, por seu rosto, cabelo, ombros, por suas
costas e cintura, cada pedaço de pele. Demyan permite que eu faça isso, que
eu o explore, ele não se esconde nas sombras e não coloca limites no toque
também.
Quando os lábios dele encontram os meus outra vez, ele me gira, a
mão em volta da minha cintura, me deixando sobre ele, sentindo-o duro e
grande embaixo de mim. Mordendo os lábios, rastejo sobre seu corpo,
puxando a calça de moletom e encontrando uma trilha de sinais por todo o
corpo. Peito, abdômen, ossinho no quadril. Quando ergo o olhar, ele está
perdido em mim, cheio de expectativa, quase prendendo o ar.
Eu sorrio.
Ele também, é tão involuntário que seus ombros balançam.
— Vai ser o último prego no meu caixão, sardenta.
— Não salvei sua vida pra você ficar falando em morrer.
O sorriso dele aumenta quando toca meu queixo.
— Vai jogar isso na minha cara pelo resto da vida?
— Cada vez que eu tiver a oportunidade. — Puxo sua calça.
Oh.
Ele está sem cueca.
Sinais por sua coxa, sinais bem lá.
— Parece em um parque de diversões.
— Eu estou...
Havia um tempo desde a última vez e tenho medo de que ninguém
supere meu stalker. Ele havia me estragado para qualquer outro, havia sido
destruidor. Ele havia me feito sentir de uma forma que nunca pensei que
poderia, me feito perceber que gosto de coisas que teriam me assustado.
Duro, forte, ele havia me feito chorar de dor e prazer.
— Qual o problema? — Demyan pergunta. — Há outro cara no meu
caminho?
Dou um olhar duro na sua direção.
— Talvez.
Demyan solta um grunhido antes de envolver minha cintura e me
girar, a mão dele esmaga minhas bochechas, mas são os seus olhos, o
castanho absoluto e possessivo, que fazem meu estômago se contorcer.
— E onde está ele agora? Porque eu sou o cara entre suas pernas
nesse momento, Annika.
Aperto os lábios, ele não desvia o olhar.
— Eu não sei...
Eu ainda quero saber?
Meu coração acelera.
Eu ainda queria meu stalker, mas eu também quero Demyan. Os
dois.
— Não haverá ninguém mais em seu fodido caminho depois de
mim.
Quando Demyan se encaixa entre minhas pernas, inclino o quadril
para que ele vá além. Eu sinto sua pele deslizando contra minha carne, cada
fodido centímetro úmido e escorregadio. A sensação de preenchimento faz
minha mente derreter, mas é o olho no olho que torna tudo mais intenso. Ele
está marcando território, ele está me marcando como sua e pela forma como
me olha, não acho que Demyan esteja determinado a desistir do que quer.
Não acho que ele me deixaria, como meu stalker fez.
— Vai livrar sua mente de qualquer outro, vai dizer não a todos eles.
Ele se move, não é delicado, mas a testa colada na minha permite
nossas bocas se tocarem. Enquanto Demyan me fode de forma bruta, eu
sinto seus lábios se repuxarem em sorrisos que acompanham os meus, eu
sinto sua respiração contra minha pele cada vez que sua boca se move em
um praguejo ou murmúrio. Quando fecho os olhos por um segundo, eu
quase posso sentir meu stalker sobre mim, a forma agressiva como ele faz
isso, como o final de cada estocada me empurra para trás.
Minha cabeça está girando por causa disso, pela forma como não
consigo superá-lo, pela forma como Demyan Petrovich me faz sentir,
depois de tudo o que já dissemos para o outro. Como a possessão de
Demyan supre a falta que sinto pelo stalker.
— E você? Acha que pode sair por aí ditando regras enquanto não
as segue?
— É uma garota ciumenta, sardenta?
— Sobre o que é meu, sim.
A atmosfera se torna pesada à nossa volta enquanto nos movemos e
dizemos coisas que nunca pensamos dizer para o outro. Eu odiava Demyan,
odiava sua postura e arrogância, odiava que ele parecesse sempre tão bem
quando o resto de nós morria lentamente. Eu odiava o quanto ele era bonito
desde garoto, odiava como as meninas corriam para ele e como ele me
olhava, como se eu fosse alguém inferior, como se não fosse boa o bastante,
como se nunca fosse ser.
Eu odiava tudo isso nele porque havia criado em minha mente um
Demyan que não existe, porque havia toda uma história que mesmo que
nunca tenha sido contada para mim, eu mesma criei, cada página, cada
linha, quando eu não fazia ideia da verdade, de que o que eu encontraria nas
folhas era algo totalmente diferente da minha mente.
— Foda-se, eu nunca fui tão rápido com uma garota antes. — A
cabeça dele pressiona contra minha bochecha.
Eu sinto seus cachos contra meu rosto, o cheiro do seu shampoo.
Quando a fricção da pele de Demyan contra meu clitóris se torna um
atrito forte que não se afasta, ele continua se movendo apenas fazendo
círculos e indo fundo demais, me obrigando a pressionar as unhas em suas
costas e enterrar a cabeça em seu ombro. Eu não levo meio minuto e me
agarro tão apertado nele que Demyan precisa me afastar.
— Porra, eu preciso sair...
Eu o puxo em um ato desesperado, tentando senti-lo por cada
segundo, mesmo que meu corpo inteiro esteja tremendo de prazer.
Quando o libero, o gozo de Demyan explode em minha barriga, em
suas mãos, por todos os lados. Ele está de joelhos diante de mim, os cachos
uma tremenda bagunça, a mão fechada em torno do pau, encarando a
bagunça que fizemos. Luz começa entrar através das janelas enormes, ele
está de frente para ela agora, como um fodido garoto que teve um orgasmo.
Mas é o olhar, o fogo que queima em seus olhos e me marca como sua, que
faz planos para as próximas vezes e que diz silenciosamente que sou dele
agora, que me assusta.
Me assusta por gostar tanto.
Por querer ser de alguém.
Por querer que esse alguém seja Demyan Petrovich.
Estou digitando em meu iPad de trabalho o relatório da semana
quando ouço algumas vozes vindas do quarto de Demyan, é Vera e Irina. Eu
me aproximo furtivamente, tentando capturar algo.
— Peça para Marina preparar algo para ele comer essa noite, diga
para fazer a mais, ele tem se alimentado decentemente agora que conheceu
essa garota.
— Então eles estão juntos?
Seguro a respiração para ouvir a resposta.
— Quem é que sabe? Eu mal ouço a voz dele desde que sua irmã
morreu.
— Talvez ainda exista uma chance para ele.
— Talvez se Roman voltar, eu não sei se ele consegue ser o mesmo
de antes.
— Às vezes só precisamos mudar — Vera diz. — Talvez Demyan
não seja mais o mesmo nunca mais, mas quem sabe ela faça com que ele
descubra uma nova versão de si mesmo.
— Uma versão que chega em casa no meio da noite todo
ensanguentado? Ele continua fazendo suas merdas no leste e vai acabar
morto se não parar.
Suas merdas no leste.
— Talvez ela saiba sobre as coisas que ele faz.
— Não seja tola, nós o seguimos até o leste quando ele estava
prestes a perder o controle uma vez, acha que ela faria isso? Ela seria
devorada se pisasse os pés lá.
Com a cabeça colada na porta, absorvo cada frase dita. Então,
Demyan ia para o leste e Irina só sabia disso porque o seguiu. Bem, eu teria
feito o mesmo se trabalhasse para alguém tão jovem prestes a perder o
controle. Isso afetaria Irina e todos os empregados, se ele morresse ou
colocasse tudo a perder.
— Ele tem mudado desde então, foi uma fase difícil... — Vera ainda
tinha alguma esperança sobre ele, mas Irina era uma mulher velha, cética e
cansada.
Ela quer estabilidade e garantias.
— Olha bem pra isso. Olha pra esse painel, parece alguém bem pra
você? Demyan vai terminar em uma vala se continuar cavando.
O suspiro que Vera dá é tão alto que posso ouvir.
— Vamos torcer para que a ruiva não esteja só de passagem, ele
precisa de estabilidade e perspectiva.
Então, eu sinto um sopro me atingir, meus pelos se arrepiam, a onda
de vento passa por mim, junto de sussurros em direção à escada.
Ao terceiro andar.
Antes que eu possa processar cada sensação estranha, um grito vem,
alto, agudo e descontrolado lá de cima.
Eu ouço Irina correr e a única alternativa é me esconder no quarto
de Anna.
Ela corre até lá e quando espio, Vera está parada, olhando como se
fosse algo normal.
Seja o que for que acontece lá em cima, sou a única que não sabe.
Atrás de mim, a caixinha de música começa a tocar.
— O que eu deveria fazer? Não tenho como ir até lá — murmuro,
como se de alguma maneira, Anna estivesse aqui.
Talvez ela esteja.
— Eu sei... Seja o que for que esteja tentando me dizer, prometo que
vou descobrir.
— Eu ouvi dizer que você e Demyan... — Marina começa.
— A gente se conhece há alguns anos.
Ela une as sobrancelhas.
— Mas me perguntou sobre Anna.
— Sim, eu conheci Demyan quando ele ia se aventurar pelo oeste.
Eu estudei com Roman.
Ela inclina as sobrancelhas.
— Trabalhei com a mãe dele por muitos anos. Ela era uma mulher
decente.
— O que aconteceu com ela?
— Foi um roubo seguido de morte. Trágico e doloroso.
— Como todas as outras mortes, não é? — Me inclino sobre a mesa.
— Parece que tudo o que esse lugar atrai é isso.
— Não acho que é o lugar. Acho que Deus tem os seus preferidos.
— Achei que todos no norte eram.
Um sorriso compreensivo se curva nos lábios de Marina.
— Eu também pensei um dia, quando era só uma jovem cheia de
raiva por causa da desigualdade. Então, eu percebi que o dinheiro do norte
não compra o que muitas casas com geladeiras vazias possuem no oeste.
— Você não tá romantizando a pobreza, não é? Talvez ficar fora do
oeste tenha te feito esquecer pelo o que as famílias de lá passam.
Ela balança a cabeça.
— Jamais. Minha família está lá.
— Mesmo?
Ela assente.
— Eu os ajudo como posso, uma boa parte do meu salário fica lá.
— Deve ser difícil...
— Já foi mais difícil, mas Demyan duplicou nossos salários depois
da morte de seu pai.
Uh...
— Por que está me contando isso? — pergunto.
Ela dá de ombros.
— Só para o caso de você achar que ele não passa de um garoto
mimado.
— Era o que eu pensava dele até um tempo atrás.
— Ficar no oeste fez Demyan alguém diferente de seu pai. Ele
nunca olhou para o resto da cidade, mas Demyan não, ele esteve lá. Ele
sentiu nosso frio e viu com os próprios olhos enquanto crescia com Roman.
Assinto.
Eu posso entender um pouco melhor agora. Talvez Demyan não
estivesse lá apenas porque era um garoto rebelde. Talvez ele estivesse se
sentindo culpado por ter tanto quando o resto de nós não tinha quase nada.
Por seu pai ser um fodido explorador.
— Obrigada por me contar — murmuro.
Nós erguemos a cabeça em direção às janelas quando o som de uma
porta de carro batendo chama nossa atenção. Sem ter como evitar, meu
estômago se agita e a pulsação acelera.
— Terá momentos em que você irá desejar amordaçá-lo por ser tão
irritante, mas lembre-se que ele é só alguém cheio de fogo por ter pedido
tudo o que tinha.
Quando a porta da frente bate, olho à minha volta, nervosa.
— Eu vou dar uma olhada na lavanderia.
Ela ri. É quase o mesmo que dizer que estou indo me esconder lá.
Só que não adianta, Demyan me encontra no meio do caminho e me
arrasta até lá. Eu protesto enquanto ele faz isso e tento impedi-lo quando
fecha a porta e me coloca sentada sobre uma bancada de mármore.
— Deus, Demyan, o que foi isso?
— Eu queria chegar antes de você sair.
— Bem, sim? Mas e todo esse desespero?
Ele ri, eu tento não parecer tão obcecada pelo som que ele faz ou
pela forma como os lábios se repuxam. Eu lembro do primeiro dia em que o
vi na empresa, do lado de fora, encostado ao seu carro enquanto um cigarro
queimava entre seus dedos.
— Como foi o seu dia? — Seu olhar corre por meus cabelos, então
ele puxa o elástico que os prende.
— Irina não me deixa ficar com eles soltos.
— Irina não manda em nada, ela é só uma velha coruja especuladora
e irritada.
Os cachos ondulados e ruivos caem sobre meus ombros e seios, ele
corre os dedos sobre uma mecha até chegar na ponta.
— Melhor assim.
— Ela vai reclamar.
— Aí você diz a ela que seu chefe gosta do seu cabelo solto porque
o deixa duro.
Eu acerto um tapa em seu ombro, ele desvia, sorrindo, então inclina
meu queixo e encara meus lábios e esqueço qualquer merda que ele tenha
dito. Não espero que Demyan venha, em vez disso, me inclino, acabando
com qualquer distância que nos separa. O gemido que ele dá é de deleite e
surpresa, como se não pudesse acreditar quão bom isso é. Eu sei, também
não acredito.
— Eu tô no trabalho... — só que eu digo isso no meio de um
gemido.
— Acabou seu turno.
Eu o empurro e pulo.
— Sergey deve estar me esperando.
— E tudo o que eu quero é fodê-la aqui enquanto ele continua
fazendo isso.
— Não, aqui não.
Demyan me puxa para outro beijo, me sinto tonta enquanto
cambaleamos juntos. O que é isso? A maneira como minha mente está
girando agora...
— A gente se vê...
— Não respondeu como foi o seu dia.
Engasgo com uma risada irônica quando toco a maçaneta, então, eu
me lembro que não há mais ninguém para ele fazer essa pergunta. Eu penso
em uma casa cheia e no que ela se tornou. No quarto de Anna, no banheiro
destruído.
— Foi bom, como todos os outros, eu gosto daqui.
Eu gosto daqui.
Eu gosto de você.
Ele parece surpreso. Qualquer um ficaria, é um mausoléu onde
alguém do outro lado está tentando me contatar e ainda assim, eu gosto.
Talvez por eu ser alguém que leva bolo para um cemitério ou por ser
alguém que transou com seu stalker em um.
— E você? — Me apoio na porta.
Ele enfia as mãos nos bolsos do sobretudo, que não tirou na entrada
porque estava com pressa para me arrastar até aqui.
— Quer saber se eu gosto daqui?
Sorrio.
— Quero saber como foi o seu dia.
Ele abre a boca, mas a fecha em seguida, então, Demyan olha de um
lado a outro, sem saber o que dizer. Talvez ele esteja desacostumado a isso,
a conversas corriqueiras.
— Foi só um dia. — Ele desvia o olhar para a janela.
— E quanto às indústrias, como está indo?
A linha em sua sobrancelha se torna mais profunda.
— Bem...
— Então é isso? Você quer saber sobre mim e meu dia, mas não
quer se abrir comigo?
— Não há nada demais na minha vida, sardenta, eu tô poupando
você.
— Então não poupe. Sabe que vi o painel no seu quarto, há muita
coisa acontecendo com você. Como assim não há nada demais?
Eu vejo seu pomo de adão se mover.
— Tem certeza que quer entrar nisso?
— Em ser mais do que sexo? — pergunto. — O que você quer?
— Tá me colocando contra a parede?
Balanço a cabeça.
— Não, você já é bem grandinho, tenho certeza que já sabe o que
quer.
— Sim, eu sei, e você sabe também.
Sinto um bater de asas no meu estômago.
— Então, da próxima vez que eu perguntar, seja honesto.
Depois que Annika deixa minha casa, dirijo até o leste, minha
cabeça trabalhando sem parar. Não quero a pena dela, quero a admiração,
quero que ela me veja como via seu fodido stalker, que se sinta protegida
por mim como se sentia por ele e não que me veja apenas como um
moleque que se meteu em problemas a vida inteira e que agora havia
perdido tudo.
Quando adentro o leste, passando em frente ao cinema abandonado
onde Roman e eu matávamos horas, encaro a faixada deteriorada por alguns
segundos antes de desviar o olhar para a estrada e me perguntar se algum
dia colocaremos nossos pés lá dentro outra vez. Juntos. O ciclo de Padat’
está chegando ao fim e ainda não tenho pistas novas, nada quente o
bastante.
Estaciono o carro, me perguntando quando será a última vez, minha
última luta, se um dia alguém me acertará tão forte que será o último golpe.
Se será antes da luta final ou se alguém fará primeiro para obter o título de
vencedor no fim disso tudo. Por ser do norte, pergunto se Arkady daria um
tratamento especial para o meu corpo sem vida, se ele me daria a
oportunidade de ser enterrado ao lado da minha família ou se ele só abriria
as comportas e mandaria eu me foder.
Eu aposto que ele subiria lá, que me encararia de cima através do
buraco do Poço, que sorriria para meu corpo sem vida, descartado como
todos os outros. Como o de um sequestrador, molestador, como o de um
sádico, como o de qualquer outro demônio que se perdeu no subsolo em
algum momento. Como de um fodido estuprador. Talvez fosse a maneira de
eu pagar pelo que fiz há alguns meses, talvez morto eu pudesse descansar.
Eu havia brincado de Deus ao perder o controle, agora Ele me mostraria
que eu não sou mais do que um monte de carne e ossos prontos para
apodrecer em uma pilha.
O olhar de Z encontra o meu, mas são os olhos de Arkady que
denunciam que ele esconde mais do que jamais assumiria.
— Quase lá... — ele diz, o sorriso um poço de perversão. — Acha
que dá conta daqui pra frente?
— Vamos torcer pra que sim. — Tento sorrir, mas é só a contração
da bochecha.
Não dar conta agora é melhor do que não dar conta na luta final.
Não dar conta agora ainda me daria uma chance.
Ainda assim, não desisto, com um olhar na direção do meu
oponente, subo no Poço.
As pessoas chamam por mim, elas gritam meu nome e mesmo que
isso aconteça, é como se o nome do meu amigo reverberasse mais alto do
que o meu nas paredes mentais que levei muito tempo para construir. Olho
à minha volta, me demorando mais que um segundo nos rostos que nos
cercam, tentando encontrar algo, um olhar que incrimine alguém, que me
diga qualquer coisa.
Eu nem ouço o sinal para que a luta comece, eu só me dou conta
quando o primeiro soco me acerta, desprevenido. A energia caótica pulsa
através do meu corpo, eu penso no tanto de perguntas que Annika faria se
eu chegasse com o rosto ferido amanhã. Talvez ela me associe com seu
stalker e acabe com tudo de uma vez, talvez ela finalmente se dê conta
quando juntar algumas peças e perceber que tudo faz sentido.
Me esquivo do golpe seguinte e observo seus músculos tensionarem
quando o homem diante de mim se prepara para mais deles. Ele está
confiante, obstinado, provavelmente também precisa muito do prêmio. Eles
me odeiam ainda mais por acharem que estou fazendo isso apenas por
prazer, que tudo o que eu quero é tirar o prêmio final de alguém que precisa
realmente dele porque sou um psicopata com uma desculpa para matar.
Eu não havia feito pesquisas sobre esse.
Estava ocupado demais fodendo a minha garota e tentando tirar algo
dela como Demyan em vez de entrar em sua mente.
— Eu tô te poupando de uma morte dolorosa no fim do ciclo. É
melhor se render logo — ele diz.
Eu não respondo.
O sorriso que dou aprendi com meu melhor amigo, é algo que me
faz parecer louco. Bem, talvez eu seja realmente.
— Vou acabar com você.
— Você pode tentar. — Acerto uma sequência de golpes nele, suas
costas acertam a grade lateral, mas ele arruma uma forma de sair.
Me abaixo, esquivando de outro soco. Annika não veria meu rosto
machucado, ela não faria perguntas. A luta se estende, mais cansativa e
longa do que a última. Minhas costelas ainda estão doloridas, mas não
permito que ele perceba. Eu apenas continuo, me esquivando, bloqueando e
contra-atacando, usando toda a minha resistência para me manter firme.
A luta prossegue, nossos corpos ficam cansados, sangue correndo
pelo rosto do meu oponente de um corte no supercílio que atrapalha sua
visão. Talvez ele precise do dinheiro, talvez precise muito, mas há algo que
ele talvez desconheça: lealdade, promessas, amizade. Eu tenho um objetivo,
encontrar Roman e no final de tudo isso, quando eu me tornar alguém
confiável e próximo o bastante de Arkady, eu me sentaria na mesa com os
tubarões e me faria de idiota enquanto procuro pelo meu amigo.
Ajeito meus pés, fixo meu olhar no dele, controlo minha respiração,
então, trabalho em uma combinação de socos que quase faz tudo se mover
em câmera lenta. Eu vejo o rosto de Roman em minha mente, vejo o
homem grande, suado e ensanguentado cair para trás, vejo a multidão gritar
meu nome enquanto alguns deles se penduram do lado de fora da grade.
Não consigo sorrir. Não consigo comemorar. Não consigo ficar
feliz. Não consigo nada, porque, no fundo, odeio essa merda, era Roman
que amava isso. Não consigo porque não estou aqui para ser o melhor de
nada. Não consigo porque só tenho um objetivo aqui.
Quando desço do Poço, Arkady está me esperando, ele pousa a mão
sobre a minha nuca suada enquanto ainda estou com dificuldades para
controlar minha respiração. Mãos acertam meus ombros, costas, cabeça,
mas ele segue me arrastando entre o mar de homens cruéis.
— Tenho um presente pra você — ele diz, um sorriso cheio de
intenções. — Lá nos fundos.
Encaro o corredor do Poço que leva a lugares que nunca fui.
Lugares que Roman já esteve. Lugares onde apenas os patrocinadores têm
acesso.
— Está sorrindo como se fosse uma boceta.
— É uma, a melhor. Você sabe que só tenho as melhores.
Eu penso numa forma de recusar sem parecer um filho da puta
ingrato.
— Eu agradeço.
— Tá recusando um presente, porra? Que tipo de homem recusa
uma boa boceta?
Z está nos observando quando sorrio.
— Guarde-a para o final — murmuro. — Eu ainda não sou seu
vencedor.
Ele está me analisando e faz isso por quase um minuto, antes de
sorrir e apertar os dedos no local onde toca.
— Ainda... — E então, ele me solta e esfrega as mãos. — Vou
guardá-la pra você.
Encaro o corredor cheio de promessas e segredos, me perguntando
qual deles poderia fazê-lo queimar. Eu aposto que Roman voltaria se
Arkady fosse um amontoado de cinzas. E aposto que ele mijaria sobre elas
também.
É sexta-feira, final do dia, quando Demyan me manda uma
mensagem de texto.
Por um segundo, eu penso no meu stalker, mas ele não havia me
procurado desde que se despediu de mim para sempre e eu duvido que faça
isso.
Outra mensagem chega em seguida, me perguntando por que estou
demorando tanto para responder. O celular toca na sequência.
— Ser rico deve ter te impedido de aprender a esperar, não é?
Demyan ri do outro lado.
— O que vai fazer hoje?
— Hum... Deixe-me ver. Tenho uma festa naquela boate no centro,
depois meus amigos e eu vamos para o apartamento de luxo dele no oeste
para beber alguns drinks.
Ele fica em silêncio.
— Que boate no centro?
Balanço a cabeça.
— Que apartamento de luxo no oeste? — resmungo.
— Você tá brincando.
— É claro que eu tô, o que eu faria em uma sexta à noite em
Temnyy Gorod?
— Nunca faz nada?
— Você faz?
— Nós estamos brigando?
Sorrio.
— Não, é só um hábito ruim.
— De estar sempre na defensiva comigo?
— Talvez — respondo. — O que você quer fazer?
— Que você fique.
Engasgo.
— Ficar, tipo, no meu emprego?
— Na minha casa — ele responde. — Eu tô fora da cidade, mas
chego em uma hora.
— Não é uma boa ideia, Dem...
Dem.
Eu ainda não sei de onde isso saiu.
— Tudo bem... Merda, sim. — Ele solta o ar, provavelmente em uma
pausa para o cigarro. — No que eu tava pensando? A gente se vê na
segunda.
— Tudo bem...
Sergey aparece diante de mim, a tela ainda nem se apagou quando
eu mudo minha decisão.
— Eu... Hum... — Esfrego a testa. — Eu vou ficar.

Ele chega após quarenta minutos. Sei disso porque posso ouvir o
som do carro, o bater das portas e os passos pelo corredor quando estou no
quarto de hóspedes. Não ouço a porta do seu quarto bater, no entanto, nem
passos através da escada que vai para o terceiro andar. Em vez disso, eles
morrem quase diante da minha porta. Com os cabelos molhados e uma
roupa extra que aprendi a deixar aqui, abro a porta. Demyan está sentado no
chão, diante do quarto da irmã, a cabeça enterrada no joelho.
— O que... — Ele ergue o olhar.
Parece cansado.
Não, parece exausto.
— O que tá fazendo aí?
Ele dá de ombros.
— Às vezes, eu só me sento aqui.
Sinto algo em meu estômago, mas é a forma como meu coração
acelera diante disso que me deixa preocupada. Essa versão de Demyan, a
forma como ele parece a um passo de quebrar e ainda assim anda por aí em
uma postura indestrutível. Eu quero isso, quero ser forte assim.
— Se você não voltasse pra casa hoje, eu ia achar que tinha ido atrás
de alguma garota.
Os lábios dele se repuxam em um sorriso.
— Eu quase dirigi até sua casa, então, eu mudei o caminho porque
não queria parecer que tava me humilhando.
— Orgulhoso.
— Não, só um pouquinho de amor-próprio. Eu ainda preciso de algo
para me manter de pé.
— Um pouquinho? Eu aposto que você tá cheio disso.
O olhar dele cai sobre minha calça justa e seios.
— Eu tô cheio de tesão com você por aí, vagando pela minha casa
como se mandasse em tudo.
Eu não deveria sorrir por causa dessa merda.
— Gosta de ser mandado?
— Por você.
Eu solto um suspiro baixo quando me lembro onde estamos. O
quarto de Anna diante de mim. A imagem do banheiro preenche minha
mente, a lembrança da banheira ensanguentada.
— Então, você sempre vem e senta aqui?
— É. Me ajuda a pensar um pouco.
— No quê?
— Em tudo e qualquer coisa.
— Por quê, Demyan? Por que a Anna tirou a própria vida?
Eu deslizo para o seu lado no chão.
— Ela foi estuprada.
Estuprada.
Jesus.
Ele provavelmente vê o horror em minhas feições.
— Eu sinto muito. — Apoio a cabeça em seu ombro. — Você sabia?
Ele joga a cabeça para trás, apoiando-a na porta.
— Não, eu descobri na carta que ela deixou.
— Roman sabe? Sobre a carta?
Ele balança a cabeça.
— Nunca contei a ninguém sobre ela, eu não tive coragem.
Sinto meu estômago se embrulhar, eu a vejo em minha mente, a
água turva pelo sangue.
— Quem encontrou Anna? — pergunto em um sussurro.
— Roman. — A voz de Demyan é um sopro doloroso. — Então, ele
gritou por mim.
Não há o que dizer além de puxar sua mão para o meu colo.
— Eu não... — Não consigo falar, não consigo pensar no que dizer.
— Nunca contei sobre a carta porque não tive coragem de dizer a
ele essa palavra. Estuprada... — ele suspira, tentando organizar as palavras.
— Quando ela se foi, tudo o que podíamos fazer para nos sentir melhor era
culpar o outro. Eu o culpei por ser um namorado ruim, ele me culpou por
ser um irmão de merda.
— Não foi culpa de ninguém, ela não tinha mais controle sobre sua
mente.
— É o que eu poderia dizer pra me sentir melhor. Mas é mentira. Eu
falhei como irmão.
— Demyan...
— É a verdade, por mais cruel e dolorosa que ela seja. Eu tinha uma
irmã, minha gêmea, alguém que eu deveria cuidar e proteger e eu não vi
isso acontecer com ela. Não vi o estupro e não a vi se perdendo em sua
própria mente.
— Não eram próximos?
— Porra, sim, nós éramos. — Ele puxa a mão e esfrega o rosto. —
Mas ela estava sempre com Roman no final e havia o lance com o leste...
— Que lance?
O olhar que ele me dá é quase como se Demyan não soubesse o que
fazer, contar tudo ou continuar guardando para si.
— Roman lutava no leste.
Minha mente está girando agora, sim, eu sei sobre Roman, porque
eu ouvi alguns boatos pelo bairro, mesmo que ele fosse um lugar proibido
que as pessoas evitavam mencionar.
— E quanto a você?
— O que tem eu?
— Eu sei sobre suas lutas.
Há algo no olhar de Demyan agora, fogo, admiração.
— Você não deve sair por aí falando sobre o leste, sardenta.
— Eu sei.
Ele assente.
— Bom, continue de boca fechada, então.
— Me conte sobre seu lance no leste.
— Eu ainda não sei se tá recolhendo informações sobre mim pra me
arruinar no fim de tudo isso.
— Achei que tivéssemos passado por isso. Eu vi o quadro de Roman
no seu quarto, eu teria que ser cega para passar por ele e não perceber. Acha
que o leste tem a ver com o desaparecimento dele?
— Eu já não sei mais o que acho.
— Então por quê? Por que tá se metendo em um lugar
contaminado? Por que tá se colocando em perigo? Você tinha uma arma
consigo no oeste naquela noite, por que anda por aí carregando ela?
A mão dele toca meu queixo e eu uso o momento para me esgueirar
entre suas pernas, de frente para ele.
— Eu tô com você. Somos nós dois agora. Não importa o que
aconteça, seus segredos são meus para guardar.
O olhar dele cai sobre meus lábios, eu aposto que ele ficou duro
agora.
— Roman desapareceu depois que se envolveu no ciclo com o
homem que comanda o subsolo.
— O Poço — murmuro e ele me dá um olhar que sugere que esse
nome nunca deveria sair da minha boca. — Meu pai, ele me contava
algumas histórias.
— Nunca fale do Poço fora do Poço — ele diz, uma espécie de
mantra para quem frequenta o local. — Nunca fale dele.
— Tudo bem... — murmuro.
— Eu tô inscrito no ciclo de Padat’, ele encerra em duas semanas —
o suspiro que Demyan solta no final da frase quase sugere que ele precisava
dizer isso a alguém.
— O que isso quer dizer?
— Quer dizer que tenho mais uma luta antes da final. — Ele faz
uma pausa longa, o olhar cravado no meu, tão fundo que perfura meu
crânio.
— E o que há depois disso?
— Se eu sobreviver? Talvez Roman.
Minha cabeça está girando.
Eu solto minhas mãos e me afasto dele.
— O que quer dizer com “se eu sobreviver”?
E então, Demyan me conta, ele me explica como funciona o ciclo.
Há lágrimas sobre minhas bochechas quando balanço a cabeça, em pânico.
— Por quê? — Minha fala sai estrangulada. — Por que se
inscreveu? — Começo a andar de um lado para o outro. — Por que tá me
contando isso?
— Porque é a única pessoa em quem eu confio, sardenta. — Ele me
olha de baixo para cima, ainda sentado. — E se eu sumir, precisa saber que
é porque eu estarei morto.
Exausta.
Quando Demyan e eu caímos no colchão, nus e suados, estamos
exaustos. Ele puxa o lençol preto para mim e me cubro, antes de me aninhar
nele, que não se dá o trabalho de fazer o mesmo. O abdômen definido de
Demyan se move com força, subindo e descendo, estou tão drenada que
apenas o pensamento de me levantar para um banho agora esgota o restante
das minhas energias. Eu não conseguiria ficar de pé.
—Eu tô feliz pra caralho que tenha ficado.
— Claro que você está. — Eu acertaria um tapinha em seu ombro se
pudesse me mover.
— Quer uma água? Algo para comer?
Eu teria que sentar para isso e não quero sair daqui.
— Não, obrigada.
— Se você não pede água é porque o sexo não foi bom.
Sorrio.
— Não quero água porque não quero me sentar para beber, eu não
posso me mexer.
Demyan sorri, a respiração se tornando regulada, ele se vira de
frente para mim, os cachos suados e bonitos diante da testa. Como ele
consegue? Como pode ter tanta energia depois de uma noite inteira de sexo?
— Pode dormir até tarde, sardenta. — Ele deixa um beijo na minha
bochecha.
Eu sinto minhas pálpebras pesadas.
— O que vai fazer amanhã?
— Trabalho, amanhã eu deixo a cidade outra vez, vou visitar outra
indústria fora de Temnyy Gorod, tenho ficado um tempo em cada uma, feito
algumas observações antes de assumir a presidência.
Dou um sorriso, ele une as sobrancelhas para isso.
— Parece todo crescido.
Demyan balança a cabeça.
— Fugi dessa merda durante minha vida inteira, é meu legado, não
há o que ser feito.
— Você pode vender tudo e dar o fora.
O olhar dele se torna mais sombrio.
— Não posso deixar essa casa, e mesmo que eu pudesse... Não sei, o
pensamento de deixar tudo o que minha família construiu nas mãos de
outras pessoas...
— Não há nada pior do que seu pai já tenha feito que podem fazer
com os empregados, com os adolescentes e até crianças, Dem.
Quando ele se vira e encara o teto, eu acho que está colocando um
ponto final nessa conversa, mas então, ele diz:
— Isso me deixou mal por anos, no começo, eu não sabia, depois,
eu não podia acreditar e então, quando Roman dizia essas merdas sobre ele,
eu só... Sabia que era verdade e não podia fazer nada. A única maneira que
encontrei de sair disso foi não assumindo as indústrias e me afastando dele,
então ele morreu e eu não sabia mais o que fazer.
E depois Anna...
— Você não é ele.
— Eu não sou.
— Então faça diferente. Dê melhores condições aos seus
funcionários, conserte o que ele deixou.
— Eu tô visitando cada indústria, fazendo pesquisas, vendo com
meus próprios olhos. Eu nunca tinha ido tão longe, nunca pensei realmente
que assumiria os negócios, por mais que tenha me preparado pra isso a vida
inteira. Eu achei, no fundo, que daria o fora com Anna e Roman, sei lá,
qualquer merda, menos ficar aqui e trabalhar para ele em seus negócios
imundos.
— Você quer mesmo fazer isso?
— Assumir as indústrias? Eu já estou trabalhando nisso.
— Não, eu tô falando sobre as más condições em algumas de suas
empresas em Temnyy Gorod.
— É claro que sim, como eu poderia colocar a porra da minha
cabeça em um travesseiro e dormir?
— É, parece que você tem motivos demais para ter insônia. O que
pretende fazer para melhorar a vida de seus empregados?
— Um plano de saúde decente. Equipamentos de segurança.
Fiscalização recorrente. Tirar as crianças de lá.
— Não esqueça que essas famílias contam com esse dinheiro, eu vi
garotos de treze anos trabalhando, Dem, isso precisa ser resolvido.
— Tenho providenciado a legalização dos meninos de dezesseis a
dezoito com contratos de prestação de serviços que garantam a segurança
deles e qualquer coisa que aconteça com eles.
— Perfeito. — Corro o polegar sobre suas costelas, sobre os
hematomas do local. — E quanto aos mais jovens?
— Eu não sei, ainda tô pensando nisso.
— Aumentar o salário dos pais ou responsáveis por essas crianças,
talvez oferecer algum curso profissionalizante dentro das indústrias, uma
forma de garantir emprego no futuro para eles.
— É uma boa ideia. Educação e capacitação — ele repete.
— Você também poderia conseguir parceria com alguma ONG, você
tem nome, isso traria visibilidade para eles e, consequentemente, ajuda para
o povo de Temnyy Gorod.
O olhar que Demyan me dá me enche de fogo.
— É uma boa líder, seria uma ótima sucessora para os negócios do
meu pai.
— Não, eu sou muito boa em cuidar de pessoas e enxergar suas
dores. Isso não é sobre liderança, é sobre compaixão.
A boca de Demyan se abre, o olhar dele cai sobre meus lábios outra
vez, o sol bate na janela, nascendo, ainda assim, não o impede de subir em
cima de mim pela quarta vez. Eu permito que ele faça isso, porque amo que
ele não vá embora depois, amo que ele fica e conversa, amo que ele me
ouça e que se abra comigo. Quando envolvo seu rosto entre as mãos,
sentindo-o crescer contra mim, nossos lábios se repuxam juntos em um
sorriso.
— Eu tô tão obcecado por você que eu largaria toda a minha merda
só pra fazer isso pra sempre.
Meu coração acelera.
— E você me veria largando toda a minha pra topar qualquer coisa
que tenha a me oferecer.
Surpresa brilha no olhar de Demyan, mas ele parece duas vezes
mais faminto e possessivo agora.
— Às vezes, eu ainda não acredito que não precisei te amarrar e te
forçar a gostar de mim.
Engasgo com uma risada.
— Às vezes, só precisamos ser honestos. Eu odeio sua armadura,
mas gosto do que há dentro dela. Também entendo o porquê de vesti-la.
— Cada vez que abre a boca, você dificulta um pouco mais. Não
tem como não gostar de você, sardenta. Eu queria que tivesse me dado essa
chance no ensino médio.
Sorrio.
— Quando você atravessava a cidade só para esperar Roman no
final da aula? Quando ficava lá, todo cheio de si, me encarando com aquela
cara? Eu nunca teria te dado moral.
O sorriso dele aumenta, presunção pura.
— É, você nunca deu.
Quando ele desliza para dentro de mim lentamente e se move em
um ritmo desacelerado, minha cabeça gira de uma forma diferente. Eu o
sinto em meu corpo inteiro e a sensação de preenchimento percorre até meu
coração. Eu me agarro em Demyan, me sentindo uma traidora por desistir
tão fácil do meu stalker, porque tudo o que descobri que queria com ele,
encontrei aqui, com alguém que nunca pensei encontrar.
— Parece que fazemos isso há muito mais tempo.
A testa de Demyan toca a minha, uma mão encaixada no meu rosto,
a ponta do polegar inclinando meu queixo para que ele me beije, mas
mesmo quando termina, não há uma resposta. Ele só continua se movendo,
lentamente, me fazendo arfar e gemer baixinho, a cabeça afundada na curva
do seu pescoço. Eu me agarro em Demyan, tão forte que mal podemos
respirar.
— Porra, sardenta, isso é tão bom...
— Eu sei.
É diferente do que eu tinha com meu stalker, é mais real, é olho no
olho, e mesmo que eu sentisse que aquilo era verdadeiro, isso parece
duradouro e estável e tão bom que chega a ser doloroso.
— Se estragar tudo, eu te mato.
Estou esperando uma resposta quando um grito agudo e
desesperador vem do andar de cima. Um, dois, uma sequência de gritos
semelhantes a um filme de terror. Demyan sai de mim e desliza para fora da
cama em tempo recorde, então, ele começa a caçar suas roupas, mas parece
perdido demais para achar qualquer coisa. Eu recolho sua calça de moletom
e jogo para ele.
— Quem tá gritando assim? — Sentada na cama, seguro o lençol
contra os seios.
Os gritos não param, Demyan tem os olhos arregalados, uma
expressão de cansaço e pânico.
— Eu ainda não tô pronto pra falar sobre isso.
Quando a porta do quarto bate e os gritos cessam, tenho mais
perguntas do que antes.
Saio da cama e corro até o corredor, impulsionada pela curiosidade,
mas Demyan apenas olha para mim.
— Por favor — murmura.
Eu respeito seu pedido e o observo correr até lá.
Alguém vive no terceiro andar.
Um calafrio percorre meu corpo inteiro, arrepiando meus pelos.
Mas, quem?
Quando Demyan aparece na minha casa no sábado, me convidando
para ir ver Faina, não penso duas vezes antes de pular dentro do carro dele.
Nós conversamos por bastante tempo enquanto Dem alimentava Berstuk e
resolvia suas coisas no oeste. Ele me encontrou do lado de fora uma hora e
meia depois com um sorriso bonito e um convite para comer algo fora da
cidade.
— Não sou como as garotas do norte, não tenho roupas para
qualquer lugar que queira me levar.
Ele faz uma inspeção rápida.
— Como chama então os trajes que tá usando senão roupas,
sardenta?
— Trapos — resmungo.
— É só um restaurante de esquina onde servem batatas fritas e
hambúrgueres.
O suspiro de alívio poderia ser ouvido no subsolo do leste.
Quando Demyan segura minha mão e caminha comigo para dentro
de uma lanchonete simples e até mesmo de reputação duvidosa, eu tenho
mais certeza sobre ele e o tipo de pessoa que é.
— Continue me olhando assim e eu te arrasto para o carro.
Corro o polegar sobre a pele de sua mão.
— Eu não precisaria de mais que cinco minutos lá dentro.
O olhar que ele me dá quase queima a minha pele.
— Eu não levaria dois.
Envolvo sua cintura, sentindo o peso do braço dele sobre meu
ombro enquanto caminhamos como um casal. Ele puxa a cadeira para que
eu me sente e não contorna a mesa, Demyan apenas se senta ao meu lado, o
corpo tão inclinado que ele quase está de frente para mim. Sou tudo o que
ele vê, tudo o que ele quer e Demyan deixa isso claro o tempo inteiro para
mim.
— Uma das piores coisas sobre viver sem internet é isso aqui. —
Aponto para as batatas fritas quando nosso pedido chega. — Quando bate
vontade de comer algo e você não pode apenas ligar ou fazer um pedido por
aplicativo.
Demyan empurra uma mecha de cabelo para trás da minha orelha.
— Vou te entupir de porcarias de agora em diante.
— Não posso dizer que vou achar ruim.
Eu como basicamente sozinha enquanto Demyan move sua perna,
ansioso demais. Ele olha em volta, confere as horas, se inclina sobre a mesa
eventualmente para pegar uma batata, mas nada além disso. Ele nem
mesmo pediu um hambúrguer para ele.
— O que há de errado? — pergunto.
Demyan dá de ombros.
— Nada.
— Não parece nada.
Ele parece pensar se fala ou não sobre isso, mas o toque da minha
mão sobre seu joelho o encoraja.
— É só um lugar que eu trazia Anna. Era o hambúrguer preferido
dela.
Estou levantando o guardanapo até a boca quando paro no meio do
caminho. De repente, eu havia perdido o apetite.
— Merda, sinto muito, eu não queria pesar pra você.
— É a sua vida, o seu passado, eu entendo.
Quando esfrego sua perna, ela para de se mover.
— Eu não vim desde que ela...
Cortou os pulsos.
Em uma banheira.
Sozinha.
— E como se sente?
Ele une um pouco as sobrancelhas, como se falar sobre isso fosse
um crime.
— Eu não sei.
Não saber como se sente é um sentimento comum de luto, eu
entendo melhor do que ninguém.
— É...
— Você sabe... O seu pai...
Falar dele com Demyan já não me faz sentir uma traidora, agora que
sei que ele não é como seu pai. Ainda assim, há uma mágoa, algo que me
atinge. Ele havia morrido de câncer pulmonar enquanto vivíamos em um
bairro engolido por ar contaminado e poluído. Culpar seu pai sempre foi
mais fácil do que assumir que era apenas o destino agindo.
— Sim. Eu sei.
O braço dele recai sobre meu ombro outra vez e a gente só fica em
silêncio, olhando o lado de fora através das grandes janelas de vidro. De
repente, enquanto algumas pessoas passam em seus sobretudos e encolhidas
pelo frio, neve começa a cair, lentamente, pequenos flocos brancos que se
dissolvem ao tocar a superfície.
— É neve — murmuro.
— Sim, a Noite Longa se aproxima.
E com isso, o fim do ciclo, a luta final, eu não havia conseguido
processar essa informação, não queria pensar nisso, mas era tudo o que
estava em minha mente desde a noite passada. Eu aperto mais Demyan
contra mim, sem dizer nada, mas a forma como sua mão esquerda corre
sobre minha nuca e desliza por meus cabelos sugere que ele sabe no que
estou pensando.
— Eu não vou morrer — ele diz, a boca na minha nuca.
— Você não sabe. — Minha voz sai embolada
O pensamento de perder Demyan de repente parece pior do que
qualquer coisa.
— Eu quero ir... — Subitamente, estou de pé.
— Claro. — Demyan se levanta e caminha até o caixa, eu deixo o
estabelecimento e vou para o carro sozinha.
Do lado de fora, o vento frio e a neve contra a minha pele parecem
me livrar um pouco da sensação de sufocamento, mas é questão de
pouquíssimos minutos até que o frio se torne doloroso. Eu sinto minha pele
secar junto dos lábios, sinto os meus cabelos ficando gelados. E a ponta do
meu nariz arder com o choro preso. O toque do sino na porta denuncia a
saída de Demyan do estabelecimento.
Há uma linha funda de preocupação entre suas sobrancelhas e ela se
desfaz quando ele me vê.
— Porra, você me deu um susto. — Ele me puxa, então se afasta
para me checar. — Tá um frio do caralho aqui, por que não esperou do lado
de dentro?
— Isso é demais pra mim.
— Achei que tivesse superado seu ódio pelo meu pai.
As palavras estão entaladas na minha garganta enquanto encaro
Demyan, o olhar cheio de fogo e impaciência, o rosto pálido pelo frio, as
mãos agora dentro dos bolsos do casaco grosso.
— Não isso.
— O quê? — Ele busca meu olhar.
— Perder você.
Silêncio.
A neve continua caindo.
Minha cabeça girando.
Surpresa brilha em seus olhos, mas ele só me puxa para ele e me
envolve em um abraço acolhedor e apertado que se torna um embalo em
uma calçada movimentada coberta por neve. Deixo um soluço escapar,
porque o pensamento de Demyan morto me enche de pânico e horror e
porque o pensamento de estar diante da morte não o apavora. Ele deveria
desistir disso, deveria pelo menos parecer com medo, mas aqui está ele, só
me confortando por algo que provavelmente irá acontecer e que mesmo que
possa mudar, ainda assim não o faz.
— Se você morrer, eu mato você — resmungo, cheia de raiva, os
braços dobrados entre nós, os punhos esmagados contra o peito dele.
— Eu não vou — ele garante.
— Como pode ter tanta certeza?
— Porque agora eu tenho pra quem voltar.
Eu estou chorando contra o peito de Demyan e continuo fazendo
isso pelos próximos cinco minutos e a constatação de que o amo vem tão
certa quanto a chegada da neve. Ele só fica assim, me embalando em
silêncio sob o peso de uma promessa que sabe que não tem controle.
Quando entramos no carro e ele pergunta: “na sua casa ou na minha?” e
respondo que tanto faz, não me surpreendo ao vê-lo fazer o trajeto até o sul,
tampouco quando ele desliza sob minhas cobertas junto comigo.
Quando Demyan pega no sono, enrolado no meu corpo nu, e fico
acordada com insônia, percebo que está na hora de conversar sobre isso
com alguém. Eu teria que me abrir sobre ele com Faina para não explodir.
É um dia estranho, a sensação de que alguma coisa dará errado está
alojada em meu peito, me lembrando que nunca erro. Talvez sejam os
trovões fortes, a associação que faço com coisas ruins quando dias
tempestuosos chegam. Ou talvez essa sensação tenha amanhecido comigo
hoje, segunda-feira, porque tive um final de semana incrível demais para
acreditar que os próximos seriam tão bons quanto ele.
É isso, coisas boas nunca perduram na minha vida ou na vida de
qualquer um de Temnyy Gorod, porque somos amaldiçoados.
É final do dia, minhas tarefas estão todas realizadas, Sergey deve
entrar pela porta atrás de mim há qualquer momento. Ele sabia que eu havia
dormido na mansão na noite passada porque não precisou me trazer para o
trabalho hoje, uma vez que eu já estava aqui. Eu não me importo que eles
saibam ou que comentem, porque não conheci Demyan agora, isso não é
um caso de patrão e funcionária, vai além disso.
De qualquer forma, tenho me sentido tão feliz que duvido que
gastaria minhas energias com fofoca.
— Ah, preciso pegar algumas coisas no quarto de Demyan —
murmuro para Sergey, me sentindo um pouco estranha por mencionar isso a
ele.
— Claro, espero aqui. — Com as mãos para trás e assoviando, ele
marcha até a porta, despreocupado.
No segundo andar, um som familiar deixa as escadas, estou com a
mão na maçaneta do quarto de Demyan quando inclino a cabeça na direção
da música. É o som da caixinha de música, cantarolada na voz de uma
mulher. Em um impulso, mesmo depois de abrir a porta, eu ando em
direção às escadas em vez de entrar no quarto. Uma janela imensa igual as
outras instaladas em cada curva da escada revela os dois túmulos na parte
de trás da casa.
Quando um raio ilumina o céu, clareando as paredes escuras da
escadaria, eu volto a subir, ciente de que estou fazendo algo errado e
proibido, mas impulsionada pela sede de descobrir todo e qualquer segredo
que envolve esse lugar. Os últimos degraus são iluminados, a luz forte e
branca faz formas claras no chão, denunciando um andar altamente claro.
Não vejo ninguém, mas ouço sons de saltos e uma porta bater. É a
forma de andar de Irina, revelando que o que quer que seja sua nova função,
é aqui em cima. Eu sigo a voz cantante, a música sinistra da caixinha de
música à corda do quarto de Anna me guiando como magia, cada passo
pelo corredor claro me fazendo chegar mais perto.
De repente, estou diante de um quarto todo branco no qual uma
espécie de janela é instalada para que quem esteja do lado de fora observe o
que se passa lá dentro. As paredes são revestidas de uma espécie de
almofada, criando um ambiente opressivo que evoca uma sensação de
isolamento, esterilidade e pura frieza. A iluminação dentro do quarto branco
é baixa, suave e vem de pequenas luminárias embutidas no teto. A única
mobília presente é uma cama, uma mesa de cabeceira com um livro e uma
televisão suspensa, presa com inclinação quase no teto.
Estou bisbilhotando quando uma mulher aparece do outro lado do
vidro, ela bate com força nele, me fazendo pular para trás. É uma mulher de
meia-idade, cabelos longos e despenteados, a pele pálida e olheiras fortes
que contornam olhos castanhos que reconheço em Demyan e na fotografia
de Anna. O olhar dela é vidrado, mas são seus lábios se movendo com a
canção que faz meu sangue congelar.
É a canção da caixinha.
A voz que ouvi no andar de baixo.
Os gritos que ouvi.
Uma mulher vive aqui em cima.
A mãe de Demyan.
Por que ela está presa?
Sem que eu perceba, estou cantando a música da caixinha junto com
ela, os olhos da mulher se arregalam antes de se encherem de lágrimas,
como se estivesse grata por eu fazer isso, por estar aqui, por ouvi-la, por
reconhecer a melodia.
— Como conhece essa música? — É a voz de Demyan.
— Por que ela tá presa? — pergunto.
— Ela... — Ele se aproxima, pânico brilhando nos olhos. — Onde
ouviu essa música?
— No quarto de Anna, na caixinha à corda...
Encaro uma mulher atravessar outra porta, eu a reconheço pelas
roupas brancas, é a mulher que vi deixar a mansão no meio daquela noite
chuvosa. A dona do carro que vejo todos os dias estacionado do lado de
fora.
— Sinto muito, eu precisei ir ao banheiro.
— Onde está Irina? — ele pergunta.
A mulher dá um olhar estranho na direção de outra porta, eu vejo o
rosto de Demyan ser tomado por um pânico ainda maior.
— Deixe-nos a sós por um momento, por favor.
Ela assente e atravessa o corredor em uma corridinha antes de
chegar às escadas.
Eu sinto um cheiro familiar e olho em volta, mas há apenas portas e
portas e o quarto branco gritando para mim. A mãe dele não para de cantar.
— Que caixinha à corda?
— Sobre a mesa.
A mãe dele aumenta o tom, o canto se tornando mais desesperado,
alto, as duas mãos espalmadas no vidro.
— Ela está quebrada.
Meus olhos estão cheios de lágrimas e elas caem sobre minhas
bochechas. Eu cantarolo para que Demyan ouça e quando ele dá um passo
para o lado, a xícara que ele tem na mão balança, o líquido vazando pela
borda.
— Não está, eu a ouço, ouço essa melodia desde a primeira noite em
que dormi nesse lugar, ouço ela através dos corredores, do quarto de
hóspedes, o tempo inteiro.
— Eu mesmo a quebrei em um acesso de raiva. Na noite em que
destruí o banheiro, eu quebrei o espelho, quebrei a caixinha, porque cada
vez que dava corda, eu me lembrava de Anna diante da penteadeira,
sorrindo para mim através do espelho. Eu a destruí, Annika.
— Eu a ouço — digo em um sussurro.
A mãe de Demyan para de cantar, então ela sorri, o olhar vidrado.
— Eu a ouço — ela repete minha fala. — Eu a ouço.
Ela começa a bater na própria cabeça.
Quando Demyan avança em direção ao quarto branco, o chá em sua
mão balança e o líquido desliza sobre seus dedos, as folhas que boiam sobre
a superfície chacoalham junto e, pela primeira vez, reconheço o cheiro
familiar, o mesmo aroma que senti no dia em que a xícara caiu na cozinha,
como se Anna quisesse me dizer algo.
E ela queria.
Lavanda.
Lentamente, algumas peças se encaixam em minha mente.
Demyan abre a porta do quarto, ele envolve os braços da mãe e
começa uma estratégia para acalmá-la.
Não.
Não.
Não.
Cubro os lábios.
Lavanda.
Uma porta atrás de mim se abre, Irina aparece no meu campo de
visão, mas é o que está atrás dela que faz o sangue em minhas veias
congelar e meu coração partir. Há uma espécie de estufa doméstica de
lavanda que ocupa um quarto inteiro. Fileiras de vasos alinhados
comportando a planta já crescida, climatização apropriada, sacos de
fertilizantes, uma parede com ferramentas de poda e cuidados. Eu estou em
choque, observando cada detalhe, quando Irina fecha a porta, o sopro que
ela faz ao se fechar traz o cheiro forte da planta até mim.
Junto as peças e quando olho para Demyan, a visão está turva por
causa das lágrimas, ele sabe que não há mais como me fazer de idiota. Eu
acabei de descobrir.
Demyan Petrovich é meu fodido stalker.
Encaro a mãe dele, ela é medicada por Irina, uma espécie de
sedativo, os cabelos castanhos caem como cascata sobre os braços de
Demyan quando ele a carrega até a cama. Eu aproveito esse momento para
correr. Corro tão rápido quanto posso através das escadas, chamando por
Sergey. Eu não o vejo em nenhum lugar e quando passo pela sala, meus
olhos encontram quadro diante do sofá. A mulher ruiva. Os cabelos caídos
por seus ombros desnudos e costas.
Sou eu.
É ele.
Não há outra pessoa.
Eu havia me apaixonado por Demyan duas vezes enquanto ele se
divertia brincando com minha mente.
Atravesso a porta, o carro de Sergey está estacionado, mas não o
vejo do lado de fora, então tudo o que faço é correr sob o céu escuro, os
relâmpagos cessaram, mas as nuvens pesadas denunciam a chuva que está
por vir. Eu uso meu código para abrir os portões e corro pelo norte até a
saída enquanto torço para que Demyan não venha atrás de mim e quando
estou diante da Kupol, ciente de que meu único caminho é atravessar a
floresta se não quiser que ele me ache pela estrada, eu ouço seu grito, a voz
poderosa reverbera sobre o silêncio que só é quebrado pelo som da minha
respiração ofegante.
Eu não olho para trás quando mergulho na floresta.
Pingos grossos começam a cair sobre mim enquanto corro, e a cada
passo em direção à escuridão, minha mente fervilha. Berstuk com o stalker
na noite em que o conheci. Pensei que ele fosse algum conhecido de
Roman, pensei que ele fosse só alguém no sul que conhecia os dois, assim
como eu conhecia, mas não, Demyan sempre soube quem eu era. Quando
ele perguntou meu nome, quando me fez tirar meus documentos da bolsa
para checar a identidade que sabia que eu estava mentindo. Ele sempre
soube e por isso Demyan não saiu das sombras, porque eu o reconheceria.
— Deixe o motorista te levar, Annika. Não seja orgulhosa.
— Orgulho? — eu grito, as costas pressionadas no tronco de um
pinheiro. — Você brincou comigo como um sociopata.
Ouço os passos dele se aproximando, então, volto a correr.
Por isso o grupo de traficantes não se preocupou em se livrar de
quem quer que estivesse invadindo seu território para brincar comigo,
porque eles sempre souberam que era Demyan, porque Demyan e Roman
conheciam cada um deles. Porque Demyan era o sul e eles respeitavam isso.
— Me deixe em paz! — eu vocifero.
Mas seus passos não param, eles são mais cautelosos do que os
meus, está tentando me encontrar na escuridão.
— Não vou deixar você atravessar a Kupol sozinha, porra, você não
sabe que tipo de merda acontece aqui dentro.
— Nada pior do que já não tenha feito comigo.
— Acredita mesmo nisso?
Eu não respondo.
Em vez disso, continuo correndo e pensando.
“Não há mais ninguém para rir”.
Meu stalker havia perdido todos e ele sempre falou sobre isso.
Os sinais estavam bem aqui, diante de mim, bastava eu enxergá-los.
Demyan havia perdido Roman, seu pai e irmã e de alguma forma, a mente
de sua mãe. Como eu não vi? Como pude ignorar essas informações?
Droga, sim, eu lembro do meu stalker todo machucado, a noite em
que ele me procurou, todas as vezes em que senti o cheiro metálico nele,
eram as lutas que Demyan estava inserido, era quando ele deixava o leste e
procurava por mim por algum fodido motivo.
Deixo um soluço escapar.
Não...
— Só... Volte comigo, por favor, não precisa dizer nada, não precisa
nem olhar pra mim.
Meus ombros balançam com a força do choro, eu continuo correndo
sem saber para que direção estou indo. Lágrimas embaçam minha visão e a
escuridão noturna torna tudo ainda mais difícil. Sinto meus pulmões
queimarem, o frio se instalar em meus ossos, uma pontada forte na testa, a
sensação de ter meu crânio perfurado por causa do ar gelado que respiro,
causando a dor aguda.
Então, eu me lembro da carona que peguei com Demyan quando ele
me encontrou na chuva depois de ir ao mercado, o cheiro de lavanda dentro
do seu carro. Eu pensei que eram as velas e artigos que comprei com a
fragrância, mas era Demyan o tempo todo, com certeza.
— Eu pensei em te contar muitas vezes... — ele diz, ofegante. —
Mas eu não sabia como fazer isso sem você me odiar ainda mais.
— Tem razão, Demyan, eu odeio você.
E ele estava sempre um passo à frente, porque como Demyan, sendo
meu chefe e estando nas indústrias, me cercando o tempo todo no início, ele
ouvia coisas. Sabia que era meu aniversário, sabia que eu estaria no
cemitério visitando meu pai naquele dia, ele sabia porque contei à Faina no
estoque. Demyan apenas ouviu. Eu o chamei de lixo naquela noite e depois,
ele foi na minha casa e me fodeu sobre a mesa da cozinha como um sádico
filha da puta enquanto inflava seu ego e ria de mim por dentro.
Eu paro de andar, cada pensamento e constatação me trazendo mais
dor.
Tudo mentira.
Isso o que vivemos. Como stalker, como Demyan.
Eu havia me apaixonado por um homem de duas personalidades e
nenhuma delas era decente.
Stukach.
Achei que meu stalker havia cavado meu passado e descoberto
meus podres, mas a verdade é que Demyan sabia que eu havia delatado as
indústrias. Ele sempre soube, como eu pude ser tão burra?
Deus...
Quantas coisas eu havia deixado passar?
Quantas outras eu não havia visto?
Tropeço em uma raiz e o impacto no chão é forte o bastante para
que eu torça um punho, eu bato a cabeça em uma árvore e deslizo sobre a
vegetação íngreme e escorregadia até estar na superfície inferior do declive,
coberta de lama, chuva e mentiras.
— Merda, sardenta... — Sinto as mãos de Demyan contra meu
rosto, a silhueta dele nas sombras.
É Demyan, no escuro absoluto, é meu stalker, há uma diferença e eu
perceberia se Demyan tivesse agido comigo nas sombras.
Mas ele sabia e por isso nunca o fez. Sempre havia uma luz acesa.
Eu achava que era porque ele queria ser honesto e transparente comigo, mas
não, é porque ele queria ser outra pessoa.
Tento me debater e gritar, mas o canto de um corvo me faz silenciar,
ele rouba a minha voz e eu apago sob o maior choque que eu poderia levar.
Eu vejo o rosto pálido de Anna atrás de Demyan, ela parece tão
infeliz quanto seu irmão me fez sentir.

Quando desperto, estou envolvida em uma escuridão que faz com


que eu leve algum tempo para perceber onde estou. Eu sinto o cheiro dele
nos lençóis antes de ver o painel de investigação perto da cama. E quando
uso as mãos para empurrar meu corpo e me sentar, meu punho lateja de dor.
Demyan não está no quarto, mas apenas o fato de continuar nesse lugar me
deixa sufocada.
Analiso a faixa bem presa no meu punho, os medicamentos sobre a
mesa de cabeceira ao lado de uma receita médica. Eu havia recebido a visita
de um médico em algum momento em que estava desacordada. Com apenas
uma mão, impulsiono meu corpo e encosto as costas na mesa de cabeceira,
o silêncio ecoando as revelações das últimas horas. Lembranças cruéis
sobre uma armadilha na qual fiquei presa como uma ratinha.
A dor física é insignificante em comparação à dor emocional sobre
ter perdido dois caras por quem havia me apaixonado e confiado. Dois caras
que, na verdade, o tempo todo, sempre foi apenas um. Eu puxo as cobertas
contra meu corpo, sentindo frio por causa do nervosismo, um frio tão
severo que faz meus dentes baterem. Eu não suportaria vê-lo agora, não
suportaria se Demyan entrasse por essa porta.
O stalker sempre falou comigo em uma espécie de murmúrio, um
tom baixo e duro, enquanto Demyan era agitado, provocador de uma forma
espontânea e quase bem humorada. Eu estava tão cega e crente de que ele
era outra pessoa que nunca assimilei a familiaridade no tom. Ou como eu
havia me apaixonado tão rápido por Demyan mesmo quando eu cresci o
odiando, tudo porque meu corpo reconheceu o seu. Porque quando eu
baixei minha guarda, ele o reconheceu, o acolheu e se entregou para ele
porque já era familiar, porque já o queria como stalker.
Tudo fazia sentido, cada pensamento colocado em ordem, cada peça
do quebra-cabeças, cada sensação que eu não entendia, como quando toquei
meu stalker no cemitério e ele recuou, todas as vezes que tentei alcançar
seus cabelos e ele me afastou. Demyan sabia que eu poderia reconhecê-lo.
Cada pequeno detalhe havia um sentido. Cada pequena mentira tinha um
propósito.
Sergey havia sido contratado para ser meu motorista porque se eu
fosse na van junto dos demais funcionários que trabalhavam no norte e
eram deixados no oeste, alguém teria me contado que a mansão era dele.
Tantas coisas, tantos detalhes, minha cabeça parecia explodir e o
choro, eu não conseguia parar de chorar e me importar com isso.
A sensação de perda toma conta de mim, porque apesar de ter
Demyan como o vilão dessa história, eu tinha algo com o stalker como se
ele fosse outra pessoa e agora, eu sinto que o perdi também. Eu queria gritar
com o mundo por ter me tornado tão estúpida a esse ponto, mas acontece
que sou a única culpada por tudo o que aconteceu. Por ser tão fácil de
enganar.
A porta do quarto se abre e Marina entra. A claridade vinda do lado
de fora ilumina o cômodo gradativamente, junto da chegada do dia e ela
clareia também o rosto cheio de preocupação de alguém que gosto e
também já nem sei mais se havia sido verdadeira comigo.
— Eu trouxe um pouco de chá — ela diz baixinho.
Dou uma risada cheia de sarcasmo em meio às lágrimas.
— De lavanda?
As sobrancelhas de Marina se unem, como se ela não soubesse de
nada.
— Camomila.
— Eu quero ir pra casa.
— Sergey ainda não chegou, ele chega em uma hora.
Corro a mão sobre as lágrimas, empurrando-as para longe.
— Onde está Demyan? Eu juro por Deus... Se ele entrar aqui...
Marina se senta na borda da cama, algo que provavelmente ela
nunca fez antes. Eu sinto o peso de sua mão sobre minhas pernas protegidas
por uma coberta grossa.
— Ele dormiu no quarto de hóspedes, acabou de sair. Se serve de
consolo, ele parecia péssimo.
Péssimo?
Dou a ela um olhar mortal.
— Não há perdão para o que ele fez comigo.
Marina empurra o chá na minha direção.
— Eu não sei o que foi, menina, e também conheço Demyan há
anos demais para ter uma noção, mas só queria que soubesse que seja o que
for, ele não está bem com isso.
Meu coração dói, meu punho dói, minha alma dói.
— Que bom. — Coloco a bandeja de lado depois de beber o chá e
então me levanto.
Estou usando roupas que não são minhas e pelo tamanho e estilo, o
primeiro pensamento que vem a minha mente é Anna.
— Eram de Anna — ela diz.
Eu assinto, embora isso me deixe um pouco nervosa e me traga a
lembrança de seu rosto na floresta junto do grito do corvo antes de eu
desmaiar.
— Obrigada por ter me recebido tão bem. — Toco o antebraço de
Marina, um nó se instalando em minha garganta.
Os olhos dela parecem tristes ao assentir para mim. Ela não me
segue, apenas fica presa ao quarto mal-iluminado e mórbido de Demyan
enquanto caminho pelos corredores em direção à saída. Eu não ouço o som
da caixinha enquanto deixo a mansão, não ouço gritos, nem os passos de
Irina. Eu apenas me sento no degrau da porta, encarando a neve do lado de
fora enquanto torço para não congelar dentro do meu sobretudo que
encontrei pendurado atrás da porta, junto da minha bolsa.
Quando os faróis do carro de Sergey brilham na minha direção, eu
nem espero ele chegar até mim e já começo a andar. A cada passo dado para
longe da mansão, eu sinto um aperto no peito e uma sensação de
sufocamento que só piora quando entro no carro e observo a casa ficar
pequena pelos vidros traseiros enquanto o veículo se afasta.
Eu não tinha planos de voltar, nem de perdoar Demyan, mas eu
havia feito uma promessa para o fantasma de Anna e eu já não sabia se seria
capaz de cumpri-la.
Annika se foi e pela forma como me olhou antes de sair correndo,
eu sei que é para sempre. Quando ela entra no carro do motorista e é levada
para longe, tudo o que quero fazer é implorar ou forçá-la, qualquer coisa
que a faça ficar mais um tempo, que me ouça apesar de eu nem saber por
onde começar. Eu havia pedido para mentir sobre já ter saído porque queria
que ela se sentisse bem em seus últimos minutos, mas quando atravesso os
corredores silenciosos, eu sinto o impacto do vazio depois de um final de
semana cheio dela, de nós dois, de risadas sarcásticas e espontâneas e
conversas profundas que eu não tinha com ninguém além dela.
Quando caminho em direção ao terceiro andar, eu passo por todas as
portas fechadas que separam os cômodos abandonados, o quarto dos meus
pais, o quarto de Anna, o quarto de hóspedes, que antes de Annika não era
usado. Ela havia partido e mais do que isso, havia levado consigo a
confiança que um dia depositou em mim. Quando subo as escadas, minha
mente está mergulhada em culpa, escuridão e no dano irreparável que
causei nela.
Há silêncio no terceiro andar, minha mãe ainda está sob efeito de
sedativos, odeio isso, odeio quando preciso chegar a esse ponto, mas às
vezes ela se torna perigosa, para quem está por perto e para ela mesma,
então precisamos recorrer à medicações mais fortes. Há uma enfermeira que
fica durante todo o dia e Irina, que largou seu posto como governanta para
estar responsável pelos cuidados da minha mãe aqui em cima. Ela tem seu
próprio quarto, um horário novo e menos trabalho, ainda assim, é difícil pra
caralho lidar com ela todos os dias, estar diante da mulher que ela se tornou
quando sabemos quem foi um dia.
A enfermeira ainda não chegou, Irina está no quarto ao lado com
vidros e vista para observá-la, estou no corredor, diante dos vidros
transparentes que permitem que os dois lados sejam vistos, mas ela não me
vê porque está dormindo. Serena, os cabelos castanhos caídos para fora da
cama, entro no quarto, sento na beirada no colchão, ela sequer se mexe. Há
uma dor aguda na minha cabeça agora, resultado da noite maldormida e de
cada lembrança que tenho repassado a cada segundo em minha mente.
O som da voz de Annika murmurando a melodia da caixinha de
música junto da minha mãe não pode ser esquecido. Como é possível?
Como Annika pode saber cantá-la? Como ela teria visto a caixa
funcionando se eu mesmo havia quebrado ela em um acesso de raiva? É a
mesma música que minha mãe canta incessantemente desde que Anna se
foi.
Eu fico por um tempo, então, me levanto e sigo até o quarto de
Anna, o cômodo que evitado desde aquela noite, a noite em que encontrei
Anna. Quando abro a porta, o sopro do vento faz um livro cair, eu me
assusto um pouco com isso antes de juntá-lo de volta e colocá-lo no lugar.
Aqui dentro, forço a porta do banheiro mais uma vez só para ter mesmo a
certeza de que Annika não entrou lá, que ela havia tido alguma espécie de
sonho sobrenatural. A porta não abre, mesmo que eu esteja forçando meu
ombro contra ela. Sobre a penteadeira, há alguns polaroides, eu pego os que
estão por cima, uma foto de Anna sorridente, a foto com Roman e uma
comigo.
São as mesmas que Annika mencionou, ao lado delas, a caixinha de
música empoeirada está fechada, caída de lado, eu a abro cuidadosamente,
mas a bailarina dentro dela está quebrada, solta e se desprende antes de cair
no chão. Com cuidado, junto-a e a coloco dentro da caixa, antes de dar
corda nela, mas não há força porque o pino está quebrado também. Não há
forma disso funcionar. Não há maneira no mundo de Annika ter feito essa
caixinha tocar e ainda assim, lá estava ela na noite passada, cantarolando a
melodia como se fosse familiar.
Eu me sento no chão ao lado da cama que exibe o mesmo lençol
daquela noite, a coberta sobre ela ainda está bagunçada como Anna deixou,
como se ela estivesse se levantado para um banho e pretendesse voltar para
ela em algum momento. Só que ela não voltou e o grito de Roman cheio de
horror e desespero continua ecoando em minha mente em uma repetição
dolorosa que nunca acaba.
Eu sinto a falta dela, sinto o peso da morte de Anna, do sumiço de
Roman e da partida iminente de Annika, também sinto falta da lucidez da
minha mãe, de quem ela costumava ser. Sinto falta de tudo isso, mas perder
Annika depois de ser deixado por todo o resto é o último prego no meu
caixão. Eu tinha razão, sabia que ela terminaria de acabar comigo e ainda
assim, eu a segui, entrei na sua casa e brinquei com ela.
A única coisa boa que tive em muito tempo, o único sopro de
esperança sobre algo que não tem mais conserto: eu. Eu havia suportado
todo o resto, mas não suportaria passar meus dias nesse lugar depois de
imaginá-la como minha rainha do norte. Não suportaria não ter mais
Annika pelos corredores depois de perceber que a presença dela aqui era a
única coisa que me fazia querer continuar lutando, lutando pelo meu legado,
por Roman, pela mente da minha mãe.
Minha mente racional resiste à ideia sobre a caixa de música, mas a
voz de Roman sussurra coisas insanas em minha consciência.
A culpa me consome por ter agido como um filho da puta sádico sob
duas personalidades, por ter brincado com ela, ainda assim, obtive tanto de
Annika que eu não consigo me arrepender, apesar de tudo. Eu havia feito
com que ela se apaixonasse por mim, como seu fodido stalker e como eu
mesmo e se em algum lugar dentro de Annika, ela sentisse um fragmento
do que sinto por ela, então me ouviria quando eu fosse rastejar atrás dela.
Não levaria muito tempo.
A neve fina e persistente continua caindo sobre Faina e eu quando
puxo-a para dentro da minha casa, o frio nos faz encolher e nos
esquentarmos uma na outra enquanto andamos juntas com os braços
engatados. Ela tem um punhado de neve sobre o gorro preto quando o puxa
para fora da cabeça, mas nenhuma de nós tira os sobretudos até que o
aquecimento interno tenha nos aquecido o bastante para isso. Quando
acontece, o olhar dela cai sobre meu punho enfaixado.
— O que é tão sério que fez você esperar por mim até o fim do
turno?
Passa da meia-noite agora, eu havia ido até a fábrica, pedido para
que Faina dormisse comigo essa noite e pedido para que Efim levasse o
recado para a mãe dela.
— Você vai ficar com o bebê? — pergunto.
— Eu ainda não sei, há um médico agendado para a próxima
semana.
Próxima semana, certo, eu faço uma anotação mental para não
esquecer disso.
— Então você assumiu algo com algum deles? Qual foi a reação?
— Bem, é um bebê em Temnyy Gorod, só alguém insano não ficaria
preocupado. Além disso, há o fato de que não sei qual deles é o pai.
Ela se senta no sofá, soltando um suspiro exausto.
— Não se submeta a isso agora, é arriscado para a saúde do bebê.
Ela torce o nariz.
— Nenhum de nós teria dinheiro para isso de qualquer forma.
Eu me jogo no sofá ao seu lado, puxando seus pés para o meu colo
enquanto rimos.
— Gosto de conversar com você porque é a única pessoa que faz da
própria desgraça uma piada — murmuro. — Quero dizer, não o bebê... O
dinheiro.
Nós rimos um pouco mais, até que meu riso se torna um choro.
— Jesus, por favor não diga que também tá esperando um bebê.
— Não, é pior que isso.
Ela torce o nariz para o fato de eu mencionar um bebê como algo
ruim, mas é só sua forma de tornar toda a nossa merda mais engraçada.
— Você transou com Demyan.
O nome leva meu coração a errar uma batida, faz o sangue correr
em uma intensidade diferente em minhas veias, gelo descer por minha
coluna e calor queimar minhas bochechas.
Eu deveria poder dizer que o ódio que sinto por Demyan agora
ultrapassa qualquer indício de insanidade que me faz amá-lo sob as duas
personalidades, mas não posso. Apesar do que descobri, eu o amo mais do
que qualquer ódio pujante que já senti por ele e sua família. Isso me
envergonha mais do que me entregar para meu stalker.
Então, quando paro de chorar e encontro o olhar curioso de Faina,
eu conto a ela sobre meu stalker, todos os detalhes. Conto a ela todas as
vezes em que ele veio até o meu encontro, em casa, na rua, no cemitério e a
última vez que isso aconteceu. E a cada palavra que empurro para fora, me
sinto mais aliviada, menos fantasiosa, menos sufocada. Ela tem o rosto
corado e os lábios entreabertos quando termino, contando sobre o último
galho de lavanda deixado aqui.
— Então, ele te deixou e você se apaixonou por ele.
— É, e no meio disso, Demyan começou a... Falar comigo, a me
provocar. Na empresa, no caminho do mercado para casa, no oeste, ele, de
repente, passou a aparecer em todas as partes, desde que eu estava na
fábrica ou quando fui para mansão. Ele não era mais Demyan do colégio,
Demyan do norte, Demyan das ruas, ele era um Demyan humano que eu
não conhecia. Nós brigávamos no começo, e aí... Chegou um dia em que...
— Ergo o olhar para minha amiga. — Eu simplesmente descobri que a
mansão na qual eu trabalhava era a dele.
— Não...
Eu conto à Faina o quanto nós dois nos aproximamos a partir desse
ponto, sobre a forma como ele me tratou, como parecia sincero, eu conto a
ela como ele era espontâneo e como nossos corpos pareciam se encaixar tão
perfeitamente.
— Então você se apaixonou pelos dois.
— Sim.
— E seu stalker... — Ela esfrega o rosto. — Até mesmo dizer isso
em voz alta parece insano. Mas, ele... Não voltou desde então?
— Não, eu não tive os dois ao mesmo tempo, quando meu stalker
sumiu, Demyan e eu estreitamos nossos laços, nós ficamos próximos de
uma forma que nem mesmo meu stalker e eu éramos. Foi mais do que sexo
ou carência, nós falamos sobre coisas profundas e dolorosas, ele se abriu
comigo.
— Uau.
Faina ainda está absorvendo tudo quando solto:
— Foi quando eu descobri que Demyan era meu stalker.
Ela cobre a boca com as duas mãos, os olhos se arregalam, choque
puro e absoluto enquanto espero que ela o xingue para que eu me sinta um
pouco melhor. Só que eu não me sinto, mesmo depois de uma leva inteira
de palavrões e ofensas.
— Como você descobriu?
— Ele possui uma plantação de lavanda.
— Lavanda? No inverno severo desse lugar?
— É sério que você tá preocupada com a forma que ele cuida para
que a planta sobreviva ao frio?
Ela dá de ombros.
— É curioso.
— Ele a tem em um ambiente climatizado no terceiro andar.
— Uh... — Ela se ajeita no sofá e se joga sobre mim em um abraço
desastrado e agoniado, mas acolhedor. — E como você se sente?
— Como alguém que correu até a Kupol e desmaiou pelo choque.
— Levanto o braço. — E que também machucou o punho.
— Como você saiu de trabalhar em um estoque pra isso?
— Eu também queria saber... — murmuro.
Eu não conto à Faina sobre o assassinato daquele homem, sobre o
fantasma da irmã, sobre a mãe dele, nem sobre o Poço também, porque são
coisas pessoais demais.
— Ele pediu desculpas?
— Ele pediu para que eu não saísse a pé, pediu para que eu voltasse
para a mansão enquanto eu corria.
— Mas não se desculpou?
— Eu não lembro, tava ocupada correndo, além do mais, que
diferença faz? Você teria desculpado ele?
— Se o sexo fosse isso o que você diz e se ele parecesse
arrependido.
— Quase três meses, Faina. Não foi um erro, foi uma opção, ele
continuou vindo.
— Ele ficou obcecado.
Por Deus.
Essa palavra.
— E você ficou por eles, não foi?
— Não há eles.
— Na sua mente, sim — ela diz.
Meus olhos se enchem de lágrimas, eu ainda podia sentir isso, que
havia dois, que tinha sido real com eles e que, de alguma forma, eu vivia o
luto por perder um deles.
— Ele brincou comigo.
— E se apaixonou como castigo.
— Você tá defendendo ele? — pergunto, voltando para o meu lugar.
— Não, o que ele fez foi horrível, mas o que quero dizer, Nika, é
que quando ele vir atrás de você, se você achar que deve perdoá-lo, se uma
parcela sua sentir que ele se arrepende e que há uma chance para isso
funcionar, então vá fundo, nada acontece nesse lugar, se vocês estiverem
apaixonados de verdade, então é mais do que qualquer coisa que possa
acontecer de legal pelo resto da sua vida em Temnyy Gorod. — Ela dá de
ombros, ciente do nosso destino nesse lugar.
— Parece que está falando sobre si mesma.
Ela dá de ombros.
— Talvez eu esteja.
Faina se arrasta até mim dessa vez e deita no meu colo.
— Acha que nenhum deles sente algo por você?
Há lágrimas em nossos olhos quando ela responde:
— Somos três, isso não é algo tradicional, muito menos no nosso
país e menos ainda nesse lugar sem acesso à internet. No meu caso, amor
não é a solução.
— Será? — Acaricio seus cabelos. — Talvez amor seja a solução
para tudo.
Ela funga.
— Diz isso porque é uma romântica viciada.
Deixo um suspiro escapar enquanto penso sobre isso.
Não, não havia nada de romântico no que eu fazia com meu stalker
quando estávamos mergulhados em escuridão. Talvez vício fosse a única
palavra que define realmente o que acontecia aqui.
Mas, e Demyan?
Eu não acho que poderia perdoá-lo um dia, mas quando o
pensamento de que o fim do ciclo se aproxima vem à minha mente, junto
das informações que tenho sobre a luta final, eu sinto pânico puro e
absoluto me dominar, porque a ideia de perdoar Demyan parece doce perto
da ideia de perdê-lo para sempre na luta final.
Minhas mãos estão trêmulas, o corpo inteiro dói, tento não pensar
em Demyan, mas todos os meus pensamentos são dele desde que o vi em
um beco escuro, tirando a vida de um homem há quase três meses. Um
estuprador, mais uma peça se juntando, sua irmã havia cortado os pulsos em
uma banheira depois de ter deixado uma carta de suicídio que dizia que
havia sido estuprada. Mais uma coisa que fazia sentido, o fato dele ter
perdido o controle, de não ter parado. Ele sabia que aquele homem
estupraria outras mulheres ao longo da vida, outras “Annas”, ele mesmo
havia dito que sim.
Sento na cama, um livro aberto ao meu lado, o mesmo que tentei ler
cinco vezes, mas que não havia conseguido. Era um dos títulos que escolhi
na biblioteca da última vez em que me esgueirei até o leste, quando
Demyan havia me encurralado sob seu disfarce. Ele havia roubado minha
lanterna, não porque temia que eu descobrisse quem ele era, mas porque eu
já sabia.
Agora tenho informações sobre ele, tudo o que sempre desejei desde
que meu pai morreu. Demyan havia matado um homem, eu poderia
denunciá-lo por isso. Sempre quis me vingar, sempre quis que sua família
pagasse pelo o que fez com o sul, pela forma como explorava seus
funcionários, como nunca se importou com a poluição desse lado da cidade
ou em fazer propostas sobre casas que abrigaram lembranças de uma vida
inteira e que foram destruídas por uma máquina demolidora.
Então, eu penso em Anna, em seu fantasma atormentado, na mãe
dele, na morte iminente do pai anos atrás. Ele já não havia pagado o
bastante por seus erros? Pelos erros da família? Em seguida, o stalker vem
em minha mente, um erro recente, mostrando que apesar de tudo o que
perdeu, de toda dor e sofrimento pelo qual passou, ele continua errando e
brincando com as pessoas.
E também tem nossas conversas, tudo o que Demyan me falou, o
que pretende fazer pelos funcionários agora que está tomando frente dos
negócios, isso parece tão real, verdadeiro, demonstra que ele está mesmo
tentando consertar. Só que eu não sei mais o que é verdade ou não, não sei
se, mesmo que ele tivesse jogado comigo no começo, algo do que vivemos
sob as duas personalidades havia sido verdadeiro, porque eu simplesmente
não sei mais nada.
Encaro a vela sobre a banqueta ao lado da cama, ela está apagada,
ainda assim, o cheiro da lavanda chega até onde estou, me deixando
enjoada. Ao lado dela, o último galho que recebi do meu stalker está
apoiado sobre uma pilha de livros, as pequenas flores mortas, se
desprendendo do caule, marrons, secas, sem vida. Eu não consigo me livrar
dessas coisas, do shampoo e do sabonete que uso, da vela e da última flor.
Não consigo me livrar de nada disso porque tudo havia sido real
para mim, em minha mente, na mente frágil da garota solitária que se
agarrou às migalhas que recebeu de um homem que nem sequer havia
mostrado o rosto, tudo isso porque ele continuava voltando quando
ninguém mais fazia.
Me sinto de luto, como se o fato deles serem um tivesse matado o
outro. Eu havia enterrado meu stalker em minha mente e entre os dois,
agora ele era o meu preferido, apenas porque eu nunca havia visto o seu
rosto. Em minha mente fragmentada ele ainda era qualquer pessoa, menos
Demyan, então, eu me agarrei a isso.
Ouço o som das dobradiças do portão, o som da porta sendo aberta,
passos ecoam através da escada enquanto desespero cresce dentro de mim.
Sinto lágrimas frias sobre minhas bochechas, lágrimas estúpidas que
continuam caindo desde o dia em que deixei sua casa. Enquanto passos se
aproximam, minha mente repassa um milhão de cenas em minha mente,
lembranças do meu stalker aqui nesse mesmo lugar, imagens de Demyan e
eu em sua casa, na lavanderia, em seu quarto, no chão diante da porta de
Anna.
Ele não apaga a luz, mas quando abre a porta, percebo roupas
familiares que apenas Demyan como stalker usaria. Um conjunto de
moletom, um capuz preto que engole um rosto que consigo ver porque não
está escuro. Ele tem uma mão no bolso da frente, a outra na fechadura da
porta, uma expressão de cansaço e, eu até diria, arrependimento se o
conhecesse, só que não o conheço, nem como stalker, nem como sua
verdadeira identidade, ele não passa de um mentiroso que havia partido
meu coração duas vezes.
— Acha que só porque manda no sul pode entrar aqui sem bater? É
dono de quase todo lugar, mas não é dono dessa casa e nunca vai ser.
— Não me lembro de você reclamando quando eu entrava sem bater
no meio da noite.
— Sim, porque eu não sabia que meu stalker era o príncipe do norte.
Meu coração bate tão forte agora que as palavras deixam meus
lábios trêmulas.
— Que diferença isso faz pra você?
Solto uma lufada de ar.
— Que diferença isso faz pra mim? — Saio da cama. — Vá embora,
Demyan, não quero ter essa conversa com você.
— Há muito o que conversar, Annika, muito a ser dito.
Eu rio, mas não há humor.
— Não quero ouvir o que acha que tem pra me dizer. Isso... —
Movo o indicador entre nós. — Foi a maior mentira que já vivi. Todas as
vezes em que sentou nesse sofá e me viu dormir... O tempo todo você só
ficava aqui... Pensando como você foderia a minha mente?
— Não.
Eu odeio o soluço que deixo escapar.
— Sabe... Eu tive tempo pra pensar, pra juntar as peças, você deve
ter rido muito pelas minhas costas. No meu aniversário, quando eu te ofendi
na empresa e então você voltou depois como o meu stalker e transamos na
cozinha, deve ter sido muito engraçado mesmo.
— Não foi.
Empurro as lágrimas com raiva.
— A sensação de provar algo a si mesmo...
— Pare... — ele diz, a voz cheia de urgência. — Só. Pare. Pare de
fazer suposições sobre o que a gente viveu.
— Sob qual personalidade? — Rio.
— As duas.
Balanço a cabeça, inconformada, conversar com Faina deveria ter
trazido conformismo sobre minha situação, mas quanto mais penso nisso,
menos conformada me sinto. Desde a noite em que o vi assassinar um
homem a tudo o que veio depois. Eu cedendo para meu stalker, eu
decidindo dar uma chance a Demyan...
— Você tirou a vida de um homem — digo. — Sabia que meu nome
era Annika, você me conhecia, ainda assim me fez dizer a você naquela
noite, naquele beco escuro, você me fez provar quando menti.
— Queria ter certeza que não havia me visto.
— Se tivesse simplesmente desaparecido, ninguém nunca saberia
que é um assassino, mas agora eu sei, cometeu um erro se tornando meu
stalker. Por que você veio? Por que continuou voltando?
O olhar dele é tão profundo que o sinto em minha alma.
— Eu fiquei obcecado por você.
Obsessão.
Não amor.
Enquanto isso, eu amei os dois.
— Vá. Embora. — As lágrimas continuam caindo enquanto olho
para qualquer lugar, menos para Demyan.
E elas não param, não param porque enquanto odeio Demyan, eu
também penso na luta final em pouco mais de uma semana. A luta que
poderia terminar com ele morto.
— Nem consegue olhar pra mim. — Há algo que não reconheço em
sua voz, uma pincelada de culpa e saudade talvez.
Ouço o som suave do interruptor ao ser acionado e imediatamente o
quarto mergulha em uma escuridão densa, quase palpável, como um véu
misterioso que guarda segredos que nós dois compartilhamos. Coisas as
quais vivi aqui, nesse mesmo lugar, sob a falta de iluminação.
— O que pensa que está fazendo?
— Nem consegue olhar pra mim — ele repete.
— Olhar pra você me machuca — respondo.
— Sempre foi assim, sempre foi mais fácil como seu stalker, então
me ouça no escuro, ouça o que ele tem a dizer.
— Não vou te perdoar pelo que fez, você me quebrou, foi longe
demais, o que fez foi sujo e desonesto.
— Eu sei... — As palavras saem junto do fôlego preso.
Minha visão começa a se acostumar com a escuridão, pouco a
pouco, o preto absoluto se torna sombras, algumas mais claras, outras mais
escuras, mas não mais do que isso.
— Li a busca que fez no meu iPad, seja qual for o tipo de
experiência sobrenatural ou espiritual que teve no banheiro de Anna, viu o
que havia lá dentro, detalhou cada coisa que encontrou lá, os azulejos
quebrados, o espelho, a banheira com sangue... Eu tive um surto naquela
noite, tinha uma reunião, já era tarde, eu tava sobrecarregado por causa de
Roman, por ter que me inscrever em mais um ciclo quando eu não sabia se
ele realmente me levaria até ele... Entrei no banheiro de Anna naquela
noite. Era aniversário de sua morte, um ano.
“O ciclo se iniciando, assumir as indústrias, a data de morte, Roman
desaparecido, minha mãe... Tudo isso me levou a um nível de estresse
muito alto, um acesso de raiva me fez agir fora de mim, eu quebrei todo o
banheiro, o espelho da penteadeira, tudo o que encontrei no caminho, todas
as lembranças que achei que podia destruir, então eu escorreguei até o chão
e passei as duas horas seguintes em choque, sangrando, as mãos
machucadas, processando o descontrole que não previ. Eu não estava bem.”
— Ainda assim, saiu de casa.
— Eu saí, tinha a maldita reunião, foi quando comecei a frequentar
as empresas, quando tomei a decisão de estar à frente dos negócios. Eu te vi
no seu intervalo, sorridente, conversando com Faina, você parecia tão feliz,
mas havia algo lá, uma semelhança, um fogo que eu conhecia, então me
lembrei de você, de todas as vezes em que nosso olhar cruzou no passado,
de todas as fodidas vezes em que torceu seu nariz pra mim. Tive minha
reunião, fiquei até quase o fim do turno e quando faltavam alguns minutos,
eu simplesmente encontrei seu endereço na ficha dos funcionários. Eu me
lembrei do seu pai, da casa que ouvi meu pai tentando comprar no passado,
entre duas empresas, atrapalhando os negócios.
— Atrapalhando os negócios? O sul era formado apenas por
famílias até o seu negócio atrapalhar a nossa vida!
Encaro a silhueta dele, as curvas sombrias que haviam brincado
comigo por semanas, o capuz, o rosto engolido por sombras, ele não parece
Demyan, mesmo agora, mesmo sabendo sobre sua identidade, é como se
minha mente estivesse trabalhando fortemente para manter o mistério, para
escondê-lo de mim, para torná-lo dois novamente.
— Meu pai era alguém ruim, ele não era um bom marido, um bom
pai ou um patrão decente, ele era um homem que colocava o dinheiro à
frente de tudo. Apesar disso, há algo que nenhum de nós pode discordar, e
é a quantidade de emprego que as indústrias do sul geraram para os
moradores do oeste.
— Sob condições ruins.
— Sob condições que estou tentando melhorar. — Ele parece certo
sobre isso, honesto a respeito dessa informação, mas já não sei mais no que
acreditar. — Em condições ruins ou não, sempre tivemos emprego a
oferecer.
— Sim, por salários ridículos e longas horas de trabalho. Soa como
todos os outros capitalistas de merda que ostentam com o dinheiro gerado
com o suor de pessoas necessitadas.
— Sabe que não sou assim.
Não sou como meu pai...
Quase posso ouvi-lo dizer.
E tem tudo o que Marina disse, sobre ele ter dobrado seus salários
depois da morte do pai e sobre Demyan ser diferente. Ainda assim, ele
havia brincado comigo como um garoto rico do norte.
— Por que queria meu endereço? O que pretendia fazer na minha
casa?
— Eu sabia que, em algum momento, uma oferta havia sido feita,
que havia recusado e também sobre seus ataques na internet no passado,
ninguém nunca descobriu que era você, mas eu sabia, eu havia cavado
fundo, tentando descobrir quem poderia ser, então eu apenas... Descobri.
— Stukach... — murmuro, o apelido jogado na escuridão tem um
peso tão grande que chega a machucar. Eu nunca havia questionado meu
stalker por isso porque pensei que era apenas ele cavando meu passado e
usando-o contra mim.
— Sim, delatora — ele diz. — Eu não tinha intenção de nada
quando fiz o caminho até sua casa, era só uma curiosidade sobre você.
Sobre a garota pobre sem recursos que havia causado tantos problemas para
as indústrias que havia feito uma sala se encher com homens ricos em busca
de uma solução.
Meu coração está tão acelerado agora que torna minha respiração
mais pesada, ele pode ouvir isso, e quando Demyan dá dois passos na
minha direção, ergo o braço entre nós.
— Não.
Ele para e fica onde está, diante da janela, sobre a luz pálida da lua,
daqui posso ver um lado do seu rosto, metade engolido por sombras, a outra
metade exposta.
Meio stalker, meio Demyan.
Eu ainda queria os dois.
Mas eu não podia ceder.
Os dois haviam partido meu coração.
— Sua casa ficava entre duas empresas, sim, mas o único problema
nisso era o fato de você viver no meio de poluição pra mim, eu não podia
entender porque meu pai havia começado isso, enquanto eu saía daqui e
voltava para a empresa, eu só conseguia pensar que ele só era alguém
tornando mais uma vida difícil em vez de facilitar. Foi então que eu ouvi, os
gritos, a mulher pedindo ajuda, eu me aproximei da escuridão só pra
encontrar aquele filho da puta em cima dela, já era meia-noite, estava
escuro, eu não vi o rosto dela, mas por um segundo, apenas um, eu pensei
que fosse você. Era o seu caminho, seu trajeto, seu horário de saída. Eu não
pensei duas vezes, Anna veio em minha mente, você veio em minha mente,
sorrindo com Faina horas antes, eu a imaginei cortando os pulsos em uma
banheira horas depois, perdi o controle. Quando ela correu, ele tentou me
matar e eu apenas agi.
— Pensou que fosse eu? Aquela garota?
— Só quando ele já estava no chão e eu te vi lá, parada, é que eu me
dei conta de que não era — ele diz isso de forma controlada, como se
precisasse se policiar para não se perder em sua mente, naquela noite outra
vez. — Então, você mentiu seu nome, porque essa é você, sardenta, alguém
que nunca facilita.
— Por isso não me seguiu, porque sabia onde eu morava.
— E porque eu tava em choque, tinha um corpo para desovar em
algum fodido lugar. Eu não tava bem naquela noite, eu não tô bem desde
Anna, eu nunca... Às vezes, eu nem sei se um dia na porra da minha vida eu
estive, mas eu tirei a vida de um homem e quer saber? Eu nem me
arrependo, porque ele teria te estuprado naquela noite e teria feito isso
sorrindo.
Estou enjoada, o cheiro da lavanda e as lembranças que ela me traz.
O pensamento de ter sido estuprada naquela noite.
O fato dele ter mantido isso para si por tanto tempo...
— Era meu trajeto, meu horário de saída.
— Era... — Demyan solta o ar.
Minha mente está girando, meu peito doendo, ansiedade pura, quero
gritar com ele, mas também quero implorar para que ele desista da luta
final.
Queria só poder odiar ele, só fazer isso sem o pensamento de que ele
pode apenas morrer em alguns dias.
— Pode ir até a polícia com essa informação se quiser, pode
finalmente ter sua vingança sobre mim.
— Ou você pode apenas ir embora e fingir que nunca aconteceu,
que nunca nos conhecemos.
Ele dá uma risada dura, sombria e cruel.
— Você tá em cada canto da minha casa, tá por todo o sul, todo o
norte, todo o oeste, você tá saindo do mercado no centro, tá na biblioteca no
leste, não há forma no inferno de fingir que isso não aconteceu quando você
tá por toda maldita cidade.
O soluço que deixo escapar não pode ser contido, ele apenas sai,
cheio de dor.
— Você tá até na Kupol, sardenta, tá por todas as partes.
— Por que entrou aqui? Por que agiu como outra pessoa o tempo
todo? Por que se aproximou de mim?
— No começo, eu não sabia se havia me visto, eu tava com medo,
não podia ser preso por aquilo quando tenho minha mãe para cuidar, sou a
única pessoa que restou, ela precisa de cuidados, de mim. Também sou a
única pessoa no mundo que procuraria por Roman, se eu fosse preso,
ninguém nunca o acharia, se eu fosse preso, quem cuidaria dela?
— Mas continuou vindo mesmo depois, mesmo quando soube que
eu não havia reconhecido você.
— Porque eu fiquei obcecado, em algum momento, no meio das
ameaças que eu fazia, percebi que você... Porra, você gostava que eu vinha.
— Porque eu não sabia que era você! — grito, cheia de raiva, as
lágrimas correndo.
Elas continuam caindo porque eu nunca poderia denunciá-lo pelo o
que fez, não era certo, porque uma parte minha, a parte quebrada que
também era toda errada, o entendia.
— Por isso mesmo, você nunca teria dado abertura pra mim como
Demyan. Eu fique viciado, cada vez que eu vinha ou depois de uma luta, eu
só sentava aqui e te olhava dormir porque eu não podia fazer isso, não
consigo, há tanto em meus ombros e minha mente que eu só...
Ouço som de papéis quando ele se move, quando Demyan caminha
até mim, eu não peço para que ele pare, apesar de não tê-lo perdoado,
apesar de saber que não estou disposta a ceder.
— Pode ter tido seus motivos, mas isso não desfaz as coisas, você
brincou comigo e eu me sinto como uma idiota.
— Eu sei.
Meu coração acelera, eu sinto o cheiro dele em suas roupas, não o
perfume que Demyan usava sob sua verdadeira identidade, mas o que ele
usava quando se vestia como meu stalker.
—Você confiava em um assassino, mas não confiava em mim...
— Porque você era arrogante.
— Eu tava na defensiva. Assim como você.
É, ele estava, depois de perder todo o mundo, o que eu podia
esperar?
— Qual dos dois é você? Qual das duas personalidades é a sua?
Ele acende a luz, eu poderia achar que é uma resposta para a minha
pergunta, que Demyan é o verdadeiro ele, mas então eu vejo papéis em sua
mão caída na lateral do corpo.
— O que é isso?
— É meu testamento.
— Seu o quê?! — A frase sai em meio à lágrimas de desespero.
— Tudo o que tenho, as indústrias, as casas...
— Cala boca... — Empurro-o. — Não ouse falar isso.
— Não há mais ninguém, sardenta, eu não tenho ninguém.
Me sento na borda do colchão, o choro se tornando mais forte, eu
cubro o rosto com as duas mãos, ele se aproxima mais, eu sinto minha testa
tocar seu abdômen. Quero me agarrar a ele, quero abraçá-lo, quero implorar
para que ele desista disso, quero qualquer coisa, quero perdoá-lo, quero
dizer a ele que o amo e que fico com ele se desistir dessa ideia estúpida.
Mas eu sou tão orgulhosa e ainda não estou pronta para isso, eu apenas
não...
— Não é sobre dinheiro ou poder, mas sobre o que você pode fazer
com os dois. Me disse uma vez que era alguém que agia por compaixão,
que ouvia as necessidades das pessoas, essa é a minha, é o que preciso, que
fique com tudo e que esteja à frente, é a melhor pessoa que conheço pra
fazer isso. — Ele ergue meu queixo. — Eu só preciso de duas coisas em
troca.
— Sua mãe e Roman... — murmuro.
— Berstuk vai de brinde. Faz parte do pacote.
Há uma névoa em seu olhar, como se ele estivesse lutando muito
para ter essa conversa, para se abrir, para me pedir esse favor.
— Há uma pessoa me ajudando a procurar Roman. Ele vai te
procurar se alguma coisa acontecer comigo.
— Se você morrer.
— Sim.
— E minha mãe, ela se perdeu em sua mente depois que Anna se
foi... Há pessoas cuidando dela, você só precisaria... Não há mais ninguém,
por favor.
Eu fico em silêncio.
Um testamento.
Todo o dinheiro de Demyan.
Mas não quero nada disso.
— Quando eu digo que você nunca facilita pra mim, é tipo isso. —
O polegar dele corre sobre minha bochecha. — Tô te dando todo o meu
dinheiro e você só... Não quer aceitar.
— Posso cuidar dela sem precisar ficar com tudo.
Ele solta um suspiro.
— Não vai poder fazer isso se tiver que estar em um estoque no sul.
Não consigo parar de chorar, pensar no futuro com o pensamento
dele morto, eu só... Perder meu pai havia sido muito, eu não queria mais um
túmulo para visitar.
— São alguns papéis que preciso que assine. — Ele coloca sobre
minha cama, não lavanda, seu testamento. — Sei que não confia em mim,
por isso vou deixar para que leia com calma.
— Como vai saber quando pegá-lo?
O olhar dele está preso no meu agora, o rosto sério, pálido, cansado,
seu polegar se move contra a pele do meu rosto e ele só fica em silêncio por
bastante tempo, se contentando com a limitação de contato, com apenas o
que permito.
— Eu volto em algum momento até a luta final.
Ele volta em algum momento.
Antes da luta final.
Uma despedida, porque talvez ele não sobreviva.
Em vez de me agarrar nele e pedir para que ele não vá, eu apenas
assinto e permito que Demyan se afaste de mim, eu faço isso porque apesar
de estar sofrendo por algo que pode acontecer, também sofro pelo que me
fez passar. Por ter me usado, brincado comigo.
Ele para quando está na porta, então, olha sobre o ombro, o capuz
envolvendo parte do rosto.
— Me perguntou qual dos dois era eu — ele diz em um murmúrio.
— Isso importa, sardenta? Eu te amei sob as duas personalidades.
E com isso, ele sai, me deixando não apenas com seu testamento em
mãos, mas com o coração em mil pedaços.
Apesar de tudo, me sinto aliviado, eu havia finalmente tirado um
peso das minhas costas sendo totalmente honesto com Annika, sobre mim,
sobre quando me tornei seu stalker, sobre aquela noite no beco escuro e
sobre o que sinto por ela. Eu achei que Annika gritaria comigo, que ela
abriria uma lata de minhocas e por um segundo, também pensei que
pudesse ter aceitado o dinheiro mais fácil, alegando que era o mínimo que
eu devia a ela depois de tudo que a fiz passar.
Em vez disso, ela havia conversado comigo, havia me feito
perguntas e havia estado relutante sobre a grana. Sobre uma herança. Todo
o meu dinheiro. Ela não era qualquer garota, ela era a melhor de todas, a
mais forte e decidida, a mais corajosa e valente. Ainda assim, eu tinha
jogado com ela, apesar de ter feito isso exatamente por esses motivos,
porque ela não era qualquer uma, ela era ela, alguém diferente, determinada
e que me despertava curiosidade.
Alguém por quem fiquei obcecado.
Alguém por quem me apaixonei.
Mesmo se ela decidisse me denunciar por tirar a vida de um homem,
eu não me arrependeria do que fiz, porque ele não era uma pessoa decente,
era um estuprador, iria estuprá-la naquela noite e agora, ele não iria estuprar
mais ninguém.
Sou engolido pela atmosfera sinistra do leste quando adento o bairro
rumo à minha penúltima luta, passo diante do cinema, a faixada suja,
destruída e abandonada, um lugar onde provavelmente nunca mais irei me
encontrar com meu amigo. O silêncio e a escuridão da estrada engolem o
veículo enquanto deixo o carro andar lentamente o último quilômetro,
adiando minha chegada, os gritos pelo meu nome, as expectativas que
colocaram sobre mim. Quando estou quase no prédio que comporta não
apenas o Poço, mas uma rede de crimes que temos planos de descobrir,
avisto o mar de carros e motocicletas enfileirados quase decentemente
demais para homens tão incorretos. Minha pulsação acelera e a sensação de
ser observado faz os pelos da nuca se eriçarem.
Homens estão espalhados em grupos do lado de fora, apesar do frio
severo. Um carro com o porta-malas aberto exibe uma aparelhagem
ostensiva de som, formando um círculo de ouvintes perto dele. Um barril de
fogo queima diante deles, as chamas dançando um metro acima da borda.
Estaciono o mais longe que posso, preparado para a luta. Puxo o capuz do
meu casaco e saio do veículo, determinado, ciente de que pode ser a última,
de que pode ser apenas a penúltima, de que posso morrer agora ou na
próxima.
Ao me mover pelas sombras, ouço os murmúrios vazios desses
homens ruins e sanguinários. Suas conversas parecem apenas uma
competição de ego, exibindo sua crueldade e brutalidade, discutindo de
forma fútil e vulgar sobre sexo e suas ações insanas.
Enquanto me misturo à multidão disfarçadamente, fico alerta para
qualquer sinal de perigo iminente.
À medida que me aproximo do barril de fogo, sinto o calor das
chamas em contraste com o frio, sentindo o impacto da Noite Longa se
aproximar. A luta final aconteceria na primeira noite de inverno, o dia dos
pássaros loucos, no dia em que Roman nasceu, porque ele é tão filho da
puta e perturbado que não podia esperar mais um dia, em vez disso, ele
tinha apenas que vir ao mundo no dia mais insano de Temnyy Gorod.
O possível dia da minha morte.
A cada passo, fico ainda mais em alerta, consciente de que minha
presença pode ser percebida a qualquer momento. Apesar de que as pessoas
gritam meu nome em meio à luta e de que elas apostam muita grana em
mim, eu também havia criado inimigos ao longo de cada ciclo, homens
cruéis e cheios de egos aos quais foram derrotados em algum momento por
mim e que não aceitaram isso tão facilmente quanto eu.
— O príncipe do norte tá escondendo algo? — Z é o único que
percebe minha presença, mas isso porque ele tem olhos de águia e um bom
faro para traidores.
Ele tem razão sobre se preocupar comigo.
Tiro as mãos dos bolsos da frente do moletom quando o olhar dele
permanece tempo demais lá.
— Se eu quisesse enfiar uma bala na cabeça de alguém lá dentro, eu
não faria isso dessa forma. — Mostro minhas mãos.
Isso é um problema, a essa altura, os dois já deveriam confiar mais
em mim, ainda assim, Arkady e Zakhar permanecem relutantes sobre meus
motivos.
— Ah é? — Ele se aproxima, o ombro encostando no meu, o rosto
sustentando uma expressão ameaçadora.
Sorrio, apoiando uma mão em seu ombro, o olhar preso no dele.
— Por que eu teria um plano sobre isso se estamos jogando no
mesmo time?
Ele avalia minhas intenções.
Arkady aparece na porta do prédio, a arma encaixada no cós da
calça, sobre a camisa, exibindo todo seu poder, embora ele não precise jogar
isso na cara de ninguém. Qualquer um aqui sabe quem ele é e do que é
capaz.
— Suas palavras são bonitas, riquinho. — Arkady se mantém no
meio da porta, um aviso de que só passo quando ele permitir. — Mas no
Poço nós respeitamos ações.
Algo urgente queima em meu peito, a necessidade de vê-los ruir.
— Eu tô a uma luta da final, a um passo de me tornar um assassino.
Os acionistas com quem trabalho retirariam suas ações se soubessem desse
lugar e do que faço aqui.
O olhar de Arkady amolece ligeiramente diante das minhas
palavras, no fundo, ele sabe que tenho responsabilidades e eu não colocaria
tudo a perder dessa forma, o medo dele sobre alguma revolta minha só pode
significar uma coisa. Ele sabe onde Roman está e teme que eu desconfie
dele sobre seu paradeiro.
— Tem uma luta pra vencer essa noite. — Ele dá um passo para o
lado, me mostrando que só faço o que ele quer ou sigo para onde permite.
— Vai ter muita grana no fim disso. — Assinto, porque falar de
dinheiro é a única coisa capaz de fazer nossa conversa seguir por um
caminho diferente.
O rosto dele se contorce em uma expressão de puro entusiasmo, eu
sou levado pelo corredor circular e escuro do Poço que nos leva até o
ringue, onde meu oponente já espera por mim. Eu nunca me atraso, mas
decidi fazer isso agora, no final, só para desestabilizar meus adversários,
fazê-los esperar o tempo limite enquanto se perguntam se irei mesmo
aparecer, se estou classificado, se ele será poupado de uma luta enquanto se
prepara para a final.
Eu vejo o momento exato quando ele se dá conta de que não, de que
estou aqui, de que é apenas um jogo mental. O rosto ganhando uma
expressão de ódio pujante que reverbera através dos passos que ele dá,
porque não pode ficar parado.
A atmosfera do bairro contaminado é sufocante, mas aqui, no
subsolo, onde meu corpo nunca seria procurado caso eu desaparecesse, a
sensação é quase dez vezes maior. Uma mistura de poeira e cheiro de
decadência impregna o ar. O som das pessoas ao redor ecoa nas paredes
úmidas enquanto me preparo para a penúltima luta do ciclo, a luta que pode
garantir minha vaga na final.
Meus músculos estão tensos, a adrenalina pulsando em minhas veias
enquanto o homem diante de mim me analisa. Robusto e intimidador, ele
sustenta uma expressão sombria que parece refletir a brutalidade dos golpes
que lança sobre mim quando a luta começa.
Mas confio em mim mesmo, confio em meus reflexos e em minhas
habilidades de luta, no que aprendi ao longo dos últimos meses, no que
aprendi no passado quando via Roman treinar. Quando eu só estava em um
treino comum e ele narrava todo seu treinamento de forma confiante quase
como se soubesse que eu deveria aprender.
E eu aprendi. Talvez ainda não seja tão bom quanto ele, mas quando
meu oponente e eu estivéssemos no chão, eu seria o único dos dois com um
objetivo e um motivo forte o bastante para me fazer levantar.
Busco vantagem sobre ele depois de desviar de um soco, ainda sinto
minhas costelas desde a luta na qual elas foram atingidas, levaria alguns
meses até que eu me recuperasse completamente disso, isso se eu
sobrevivesse à luta seguinte. Eu só preciso focar nisso agora, em não
permitir que ela fosse acertada ou tudo ruiria.
O impacto de um soco que levo no rosto faz a multidão gritar, um
coro de espanto que quase pode ser ouvido em câmera lenta enquanto caio.
Meu adversário corre em minha direção, pronto para me imobilizar e obter
vantagem, encaro as comportas no chão, então, rolo para o lado e me
desvencilho dele, elas não abrirão para mim essa noite.
De repente, estou de pé novamente e com um movimento ágil,
consigo derrubar meu adversário. Avanço com uma série rápida de socos e
cotoveladas precisas.
O ar parece eletrificado com a energia da luta. Os espectadores ao
redor urram, o som de nossos nomes ecoando pelas paredes sombrias do
subsolo. O suor escorre pelo meu rosto, mas não cedo à exaustão.
A luta prossegue, nós buscamos fôlego enquanto nos encaramos e
rodamos o ringue, por um segundo, apenas um, minha mente quebrada me
fode de novo e eu vejo o rosto de Roman entre todos. Uma expressão de
dor, cansaço, esgotamento.
É quando me desestabilizo, uma sequência implacável de golpes é
desferida pelo meu oponente. Um soco certeiro atinge minha costela, o
único lugar onde não posso ser atingido. A dor penetrante irradia por todo o
meu corpo. Por um momento, minha respiração se torna instável e preciso
reunir todas as minhas forças para suportar o impacto. Ainda estou me
recuperando quando sou atingido no rosto e por último, um golpe cruel em
minha coxa, me fazendo cair.
Encaro meu oponente, o rosto brutal cheio de sangue, o brilho da
vitória brilhando nos olhos negros e sombrios, um triunfo cantado cedo
demais para que ele deixe o ego ser maior que seu foco. Enquanto ele ri, o
sangue correndo de seu supercílio, os braços levantados, eu controlo minha
respiração e tomo fôlego, faço isso tão calmamente que faria Roman bater
no peito e dizer: “esse é a porra do meu melhor amigo”. Ele nunca se
conformou com a minha calma, com a forma que eu sempre pensava antes
de fazer as coisas, porque ele sempre foi completamente meu oposto.
Cheio de raiva contida, só esperando para explodir.
Uma bomba-relógio andando por aí.
Eu o mandava se acalmar e fazer as coisas com mais calma.
Ele dizia para mim quando eu tinha que agir.
Por um segundo, eu fecho os olhos, então, a voz de Roman grita em
meus ouvidos:
Agora!
Agora, Demyan!
E eu me movo em uma varredura de perna, fazendo com que ele
caia, em seguida, o mais rápido que posso, mantenho-o preso em uma
finalização de perna que o faz uivar e que mantenho até que ele desista da
luta. Do ciclo. Automaticamente, me classificando para a final.
As pessoas gritam meu nome, mas não me levanto, porque não há
vitória alguma nisso. Estar na final poderia me matar, e porra,
provavelmente vai, porque meu oponente é um assassino frio que havia
destruído a garganta de um homem com os próprios dentes e ele pode ser
um problema para a minha mente também, porque é conhecido por ser um
fodido estuprador.

Dirijo até a fronteira com o centro, leste e o norte, onde fica o bar ao
qual Roman e eu sempre íamos no passado. O bar que quase precisou
fechar por estar parcialmente localizado no solo contaminado, mas que
depois de um acordo, conseguiu permanecer aberto. O trato era fechar os
fundos para o leste e de mantê-lo aberto para o centro, dessa maneira, todo
e qualquer cliente não teria contato com a contaminação. Bem, esse era o
acordo, mas Temnyy Gorod não é conhecida por sua legalidade em
qualquer coisa.
Então, havia uma porta nos fundos, uma porta por onde o pior tipo
de gente entrava, o tipo que frequentava o poço. Tipo eu.
Estou mancando quando entro no bar, o capuz puxado para cima,
tentando esconder minha identidade e não chamar atenção, mas todas as
cabeças viram para mim, porque o sangue em meu rosto e mãos não é uma
coisa que se pode ignorar, nem mesmo aqui.
— Então, o rei do norte continua se metendo nos mesmos problemas
de quando só era um príncipe?
É Boris, o dono desse lugar, um frequentador do Poço e uma pessoa
decente em uma balança que mede os crimes dos homens que já pisaram
naquele lugar.
Ele sempre me chamou de príncipe do norte, a cidade inteira na
verdade, apesar de eu nunca ter gostado, mas me chamar de rei agora é só
sua forma de saber sobre o fato de eu estar assumindo meu lugar nas
indústrias. Boris é um cara velho que mal sai desse lugar, mas que como
qualquer outro cara que possui um bar, sabe de tudo e qualquer coisa fora
daqui.
— Não, quando eu era só um príncipe, meus problemas eram muito
menores.
Agora eu tenho uma irmã que havia tirado a própria vida, uma mãe
presa em sua mente, uma garota que me odiava, uma luta final que poderia
me matar, um amigo desaparecido e uma ideia insana e suicida que envolvia
eu arruinando a vida de um monte de homens cruéis e sanguinários.
— O que quer beber? O mesmo de sempre?
Havia um tempo desde a última vez, ainda assim, ele sabia que eu
adorava uma bebida barata, me conhecia bem o bastante para pegá-la antes
que eu respondesse.
Acendo um cigarro.
— Isso é um estabelecimento fechado — ele diz, empurrando o
copo em minha direção.
— Sobre um solo contaminado.
Viro todo o conteúdo de uma única vez antes de pedir mais.
— Nada do Roman? — pergunta.
Encaro a banqueta vazia ao meu lado, o lugar que ele costumava
preencher. Estou olhando para ela ainda quando Boris coloca um copo
diante dela, eu pego a garrafa de sua mão e enquanto o cigarro queima em
minha boca, encho nossos copos, o líquido barato respingando na madeira
da bancada.
— Ele se foi — murmuro, sem dar qualquer indicação sobre isso.
— Acha que ele tá morto? A morte nunca teria o alcançado, ele tem
mais vidas do que seu maldito gato.
Sopro a fumaça em direção ao teto, torcendo para que ele esteja
certo.
— Não importa quantas vidas ele tenha, Roman tá morto pra mim.
O olhar de Boris cai sobre o copo ao meu lado, a banqueta vazia, o
espaço que não permito que ninguém preencha porque é dele.
— Ele parece mais vivo do que você agora.
Bem, talvez sim, porque eu havia assinado minha sentença de morte,
de qualquer forma.
Empurro meu copo, Boris o enche pela terceira vez.
— Se está aqui essa noite, significa que semana que vem será um
assassino, será como qualquer outro daquele lugar, não será mais o rei do
norte, será o rei do Poço.
Rei do Poço.
Não.
Só há uma pessoa capaz de carregar esse título e não sou eu.
Eu não quero ser o rei de porra nenhuma, do norte, sul ou leste.
Não quero títulos, quero ver tudo ruir e quero fazer isso ao lado de
Roman enquanto mijamos sobre as cinzas do leste.
— Ou talvez eu seja só mais um cadáver desovado em Ozero.
Boris enche meu copo pela quarta vez.
— Então, tome seu último drink no meu bar antes de se juntar às
almas perdidas que vivem na Kupol.
Eu faço isso e quando Boris se afasta, por um segundo, apenas um,
encaro o lugar vazio ao meu lado.
— Me dê um sinal de que está vivo, seu filho da puta ingrato do
caralho — murmuro para a presença invisível do meu melhor amigo.
Então, meu celular vibra, capturando um sinal inconsistente que
deixa a floresta e que alcança esse lugar, muito raramente.
É uma mensagem de Dimitri.
A porra do sinal que eu precisava.
Não, é mais que isso.
Puta merda.
Tudo mudou.
— Faina. — Eu puxo minha amiga para um abraço.
— Eu queria morar mais perto de você, queria que estivéssemos há
poucos passos de distância.
— E estamos, a diferença é que os poucos passos que te trazem do
sul ao Gigante Laranja poderiam te matar.
Eu não deveria rir disso.
— Um dia. Um dia, a internet vai chegar nessa cidade e vamos
passar todo o nosso tempo digitando.
— Vamos passar todo o nosso tempo digitando um dia se
conseguirmos algum emprego nessa área.
Acerto um tapa em seu ombro, ela me puxa para dentro do prédio
em seguida.
— Mal-humorada — resmungo. — O que há com você hoje?
Ela dá de ombros, mas não consigo ignorar a forma como olha para
as escadas.
— Nada, é só... — suspira. — O que te traz aqui? Achei que me
procuraria só depois da minha consulta. Não precisa se preocupar comigo,
Nika, eu tô bem.
— Eu vim por mim. Só precisava conversar um pouco pra não
surtar.
Dois dias, havia se passado dois dias desde que Demyan havia
deixado seus papéis comigo e que havia voltado de madrugada para buscá-
los, assinados. Eu estava dormindo e ele havia respeitado isso. A lavanda
sobre a minha cama era só uma parte de seu jogo mental, um jogo que eu
havia jogado por muito tempo e que havia gostado de cada segundo. Ela
também era a constatação de que ele ainda está vivo. Ainda.
— Conversou com seu príncipe?
— Com meu stalker? — resmungo.
Ela dá de ombros.
— Você sempre preferiu os vilões de qualquer forma, quem se
importa?
— Eu me importo, ele brincou comigo, e sim, nós conversamos, ele
jogou toda a sua merda sobre mim.
— E você tá absorvendo ela.
— Eu tô.
— Qual é o problema então?
O Poço, a luta, um testamento.
Uma possibilidade de morte, saudade, responsabilidades.
Sua mãe, Berstuk, encontrar Roman.
E de tudo isso, o que mais me assusta é a possibilidade de viver em
um mundo onde ele não exista mais. Eu podia lidar com meu stalker
parando de vir, me deixando, mas eu não podia lidar com Demyan partindo.
— Não posso contar...
Ela solta um suspiro, o frio tornando sua pele do rosto mais pálida, a
ponta do nariz rosada.
— Segredos, eu já tenho demais deles em meu prato.
Ela olha para as escadas mais uma vez.
— O que há de errado? — pergunto.
Faina solta um suspiro pesado.
— Nada, é só... Dimitri, Efim e eu decidimos que vamos ficar
juntos.
Puxo minha amiga em um abraço apertado.
— Uau. Apenas... Uau, Faina.
— Estamos felizes.
— Então, qual é o problema? — pergunto. — Por favor, só... Fale
um pouco, me alimente de informações, isso me mantém lúcida.
Nós sentamos no degrau sujo do prédio, porque ela nunca me
convida para entrar, eu não questiono isso, viver em um apartamento
pequeno com pessoas demais e animais que nem deveria ter adotado por
causa da higiene e falta de espaço acaba limitando-a. Nós não teríamos
privacidade lá, Faina provavelmente nunca tem.
— As pessoas são um problema. Seus julgamentos. A fita que usam
pra sair por aí medindo todas as decisões que tomamos como se todas elas
precisassem de um grande motivo por trás. Às vezes, a gente só quer fazer
algo porque é o que nos faz feliz naquele momento, isso não significa que
precise ser pra sempre.
— Falou sobre Efim ou Dimitri pra sua mãe?
Ela balança a cabeça.
— Falei. — E então ela ri, puro pânico em cada gargalhada que vem
a seguir, até que elas se tornam um choro forte.
— Jesus, Faina. Isso não é algo que se joga sobre qualquer um.
— Você teria contado ao seu pai — ela resmunga.
— Sim, e ele teria cagado um tijolo.
— E depois ele teria batido em suas costas e dito: “se é isso que te
faz feliz...”.
Bem, sim, isso é totalmente a cara do meu pai.
— Dois caras, hein? — murmuro. — Qual o nosso problema em nos
contentar apenas com um?
— Não há uma forma de fundi-los, Nika, no fim das contas, meu
caso é pior do que o seu, porque amo cada peculiaridade que os diferencia.
Eu odiaria ter que escolher apenas um. Eu nunca faria isso.
Seguro sua mão.
— Sim, e se há certeza sobre o que sentem por você, então, não
deveria se envergonhar de ficar com os dois.
Ela torce o nariz.
— Não é como se pudéssemos sair por aí os três de mãos dadas.
Mas é o que me deixa feliz. No fim, Viktor não se importou nem um pouco,
talvez os motivos dele querer casar comigo fossem os mesmos da minha
mãe.
Dou de ombros.
— Talvez. Vão arrumar um jeito de fazer isso funcionar, eu aposto
que sim.
Ela deixa um suspiro pesado escapar.
— É...
— E se nada der certo e as coisas estiverem difíceis aqui, na sua
casa, você ainda tem a mim. Minhas portas estarão sempre abertas para
você e esse bebê.
Ela apoia a cabeça em meu ombro.
— Por que isso soa como uma despedida? — ela diz.
— Não soa. Não é o fim de nada, isso é o começo de algo lindo que
irá durar pelo tempo em que vocês estiverem felizes.
— E Demyan? — ela pergunta.
— O que tem ele?
— Ele te deixou triste quando você descobriu a verdade... Mas antes
disso, como seu stalker ou como ele mesmo, ele te fez feliz?
Encaro minha amiga.
Honestidade.
— Como eu nunca pensei que alguém nesse fim de mundo poderia
se sentir — murmuro.
Ela seca uma lágrima que eu nem havia percebido escapar.
— E então? Esse não é o objetivo, afinal?
Nós ficamos assim, em silêncio, por bastante tempo, porque, no fim
das contas, apesar da raiva, do orgulho ou o que quer que seja que nos
impede, todo mundo sabe o que realmente quer.
Um pouco mais tarde, quando finalmente dá minha hora, eu me
levanto e me despeço de Faina.
— Não fique muito tempo sem me visitar — murmuro, no meio de
um abraço.
— Não vou. Te mantenho atualizada sobre minha consulta. Mas, é
isso por enquanto, o primeiro passo é procurar um lugar, Dimitri vai alugar
o apartamento, mas pode levar bastante tempo.
— Ou pode ser muito rápido — enfatizo. — Ser otimista é
necessário para se manter forte.
Ela ri.
— Você falando sobre ser otimista, cale a boca, Nika. — E com um
empurrão, eu estou do lado de fora do prédio.
Ela paira no batente, um sorriso enorme.
— Vou chamar Dimitri pra te levar, ele tá no apartamento.
Berstuk passa por mim, ele desfila através da calçada coberta de
neve, o rabo angulado de pé, cheio de orgulho e mau-humor, me fazendo
lembrar daquela noite, de quando presenciei Demyan tirar a vida de um
homem, de um homem que me estupraria se ele não o tivesse matado, de
um homem que havia feito isso com outra mulher. Eu me abaixo e estico o
braço em sua direção, ele para, inclina a cabeça minimamente, então, fareja.
É como se ele soubesse quem sou.
— Eu posso fazer isso.
Berstuk ergue a cabeça, eu escorrego e caio de joelhos, Faina segura
a porta para que ele passe. Mancando, Demyan caminha até mim, um braço
em frente à barriga, a mão tocando a costela, há hematomas em seu rosto,
perto da boca também, a pele branca cheia de marcas causadas pelas
escolhas ruins que ele fez em função de um objetivo. Roman. Tudo gira em
torno de Roman. E se ele estivesse morto? Eu não sei se ele aguentaria isso,
não da forma como parece cansado.
Demyan estende o braço, encaro sua mão.
— Não, tudo bem, Dimitri pode fazer isso.
Ele parece entender o recado.
—Vou chamá-lo — Faina diz, fechando a porta, praticamente me
jogando para Demyan.
Toco sua mão quente, mesmo com todo o frio. Ele me puxa, apesar
dos ferimentos, faz isso em um movimento único e preciso. Eu dou um
pulinho quando fico de pé, mas ele não solta a minha mão, em vez disso, o
toque apenas continua lá, firme, entre nós dois e quando o polegar de
Demyan se move, eu sinto lágrimas de saudade queimarem meus olhos.
Ele está aqui e está vivo, mas isso significa que havia vencido a luta
passada e que estava na final. Na final que poderia fazer com que ele não
estivesse mais aqui, nem vivo.
— Senti sua falta, sardenta.
Eu puxo minha mão.
— O que tá fazendo no prédio de Faina?
— Ele não é só de Faina, há um monte de outros apartamentos.
— Sim, e nenhum deles é de Roman e portanto, não está aqui pelo
gato.
Que aliás, havia desaparecido.
— Vim por Dimitri, ele está trabalhando comigo em algo.
— Ah... — Dou um passo para trás. — Bem, eu... — Procuro seu
carro, ele está estacionado perto da esquina, se destacando em meio a
poucos veículos, porque nenhum outro era tão chamativo e caro.
— Obrigada por assinar os papéis.
Dou a ele um olhar severo. Os papéis que passam todos os seus bens
para mim caso ele morra, os papéis que assinei por sua mãe e porque uma
parte minha nunca poderia abandoná-lo, mesmo depois de tudo.
— Ainda não perdoei você — murmuro, sem conseguir olhar para
ele.
— Eu sei...
O passo que Demyan dá na minha direção acompanha um gemido
de dor.
— Como vai conseguir ganhar qualquer luta dessa forma? — digo,
cheia de raiva. — Você mal consegue caminhar. É como andar por livre e
espontânea vontade em direção à morte. Olha só pra você, tá cansado,
Demyan... Tá exausto... — Minha voz sai estrangulada, o medo de perdê-lo
em alguns dias faz um desespero cruel e instável crescer em mim.
Ele dá um sorriso, um sorriso contornado por hematomas, um
sorriso bonito e cheio de segredos. Um sorriso grande demais para alguém
caminhando para a morte.
— Talvez, quando eu estiver morto, você consiga me amar apesar
do que fiz. — Ele toca meu queixo, o polegar correndo sobre o contorno da
minha bochecha.
Encaro a entrada escura e silenciosa, uma pergunta dolorosa
pairando sobre mim de forma cruel, eu não quero ter que fazê-la, mas há
uma necessidade urgente nela.
— Pergunte, sardenta.
Forço os dentes, lágrimas começam a cair, eu enfio a mão nos
bolsos do sobretudo, encarando o balanço no qual o encontrei quase sem
vida uma vez. Mas eu não desvio o olhar para Demyan quando a pergunta
apenas sai:
— Devo enterrá-lo junto da sua irmã?
Eu ainda não olho para Demyan e eu não faço isso porque
desmoronaria aqui mesmo, em uma calçada fria do Gigante Laranja.
— Pensa mesmo em tudo, por isso é a pessoa certa pra assumir meu
lugar.
Eu finalmente o encaro, a cabeça erguida para que eu não pareça tão
fraca e instável.
— Responda, Demyan.
Ele encara os pés, as mãos enfiadas nos bolsos também e pela
primeira vez, é como se ele estivesse realmente encarando a morte de
frente. Eu vejo um brilho de medo lá, nos olhos castanhos e bonitos dele.
— Se eu morrer no Poço, Nika, duvido que meu corpo seja entregue
de volta. Eles provavelmente me desovarão.
— O quê? — grito, começando a andar de um lado a outro. —
Quem?
— Não se envolva nisso.
Eu dou uma risada cheia de sarcasmo.
— Não me envolver? Eu estou totalmente afundada nisso.
— Ozero — ele diz baixinho.
— O lago na Kupol? — paro.
— Ele é uma espécie de lugar onde corpos, armas e qualquer prova
de crime é descartado.
— Então descubra a hora que isso será feito.
— Não — ele diz, cheio de determinação. —Não, claro que não.
— Posso não ter perdoado o que fez pra mim, mas não vou
simplesmente deixar seu corpo afundar em um lago junto de um monte de
outros corpos. Quem eram eles? Aposto que criminosos das piores espécies.
Não, não, Demyan...
— Sardenta... — Ele segura meu rosto. — Eu sabia disso e fiz essa
escolha.
— Sua alma nunca vai descansar... — Deixo um soluço escapar. —
Meu Deus, Demyan, eu tô com tanta raiva de você agora...
Por me fazer passar por isso.
Por me fazer apaixonar por ele em duas versões diferentes.
Por confiar nele e agora, por ter que fazer planos sobre sua morte.
Ele me envolve em um abraço, meus braços caídos para baixo, meu
rosto lavado por lágrimas, o frio me fazendo tremer junto do nervosismo
que sinto ao pensar em tudo isso e é tão bom e reconfortante quanto não
deveria.
— Vou fazer isso de qualquer forma, então, é melhor que coopere
comigo.
A porta se abre, eu me afasto de Demyan e seco meu rosto antes de
encarar Dimitri, que aponta para o carro e avisa que irá esperar lá.
— Porra, sardenta... — Ele esfrega o rosto. — Você realmente
nunca facilita.
— Essa sou eu. — Recolho todas as minhas forças para me afastar
dele.
Dou um passo para longe, mas ele só fica parado, me encarando ir.
— A gente se vê.
A gente se vê.
Meu estômago se contorce.
— Se você morrer... — Mais lágrimas correm sobre minha
bochecha. — Vou deixar lavandas sobre seu túmulo.
Deus.
Eu odeio que ame tanto o sorriso quebrado que ele dá para mim.
— Se eu morrer, sardenta... — A cabeça dele tomba para o lado. —
Vou assombrar qualquer maldito cara que se aproximar de você.
Não havia felicidade alguma em ser alguém orgulhosa, dias se
passaram desde que vi Demyan pela última vez e saudade havia se tornado
um turbilhão de sentimentos conflitantes que me consumiam lentamente. O
cheiro da lavanda impregnado em cada tecido das minhas cobertas e
cortinas era só mais um lembrete da dor, mas não era só o aroma da planta
que me trazia lembranças, elas estavam por todas as partes, impregnadas em
minha pele, sob ela, em meu sistema e em minha mente.
O brilho de medo que identifiquei em seu olhar naquela noite no
Gigante Laranja, na última vez que nos vimos, não deixava minha memória
porque a ferida aberta das suas mentiras e jogos perversos ainda doía, mas
ela doía menos, muito menos, do que o pensamento de perdê-lo essa noite,
na luta final.
Ele havia me envolvido em suas artimanhas, brincado com minha
mente e coração e me deixado aqui, presa nesse labirinto de memórias que
eu queria que fossem mentirosas, mas que, no fundo, eu sabia que haviam
sido reais. Ele havia brincado comigo e seu castigo havia sido me amar.
Talvez ele tivesse começado tudo isso por outro motivo, mas isso, o que
Demyan e eu temos agora, mesmo que não dure, mesmo que não passe
dessa noite, vai estar em mim para sempre.
Trago a garrafa de vinho tinto até a boca, bebendo goles generosos
do líquido enquanto lágrimas escorrem pelas minhas bochechas. Não, eu
não quero que Demyan Petrovich seja só uma fodida lembrança, eu quero
que ele seja meu futuro. Quero estar com ele no sul, no norte ou em
qualquer lugar que ele me convide para ir. Isso ainda me faz mal, o
pensamento de perdoar o que ele fez, mas eu não sei o quanto isso tem a ver
com mágoa ou orgulho.
Eu só quero poder descobrir. Quero poder dizer a ele que sim, eu o
perdoo, quero dar um último abraço em Demyan, porque realmente pode
ser o último. Eu quero qualquer coisa, qualquer migalha que ele possa me
dar antes de subir em um ringue, o problema é que ele já deve estar no leste
agora, caminhando para uma morte dolorosa, enquanto eu ficarei aqui,
esperando qualquer sinal, qualquer notícia, alguma novidade. Sem nenhum
plano.
Eu iria até a Kupol pela manhã? Seu corpo já estaria no fundo? Eu
deveria ir agora e esperar alguma movimentação só para que pudesse pular
no lago e retirar seu corpo de lá enquanto homens perigosos ainda estão por
perto? Eu morreria de frio? Eu deveria ir até Dimitri para pedir ajuda?
Deveria envolver um homem que logo seria pai em algo como isso? Como
o leste?
Dou mais um gole no vinho, antes de retirar minhas roupas e encarar
a banheira cheia, a água quente esperando por mim. Eu nunca tomo banho
nela, não faço isso porque nunca tenho tempo e porque nem pensei que o
sistema ainda pudesse estar funcionando. Mas está e estou entrando nela,
sob a iluminação fraca e tremeluzente da vela de lavanda, quando lembro de
Anna, a imagem da garota morta em minha mente, a água carmesim, as
marcas de mãos no porcelanato branco, na parede, o retrato de um dia
doloroso que nunca poderá ser esquecido.
A água escaldante abraça cada centímetro da minha pele fria, puxo
minha garrafa para dentro, trazendo-a contra meu peito, eu não prendo o
cabelo, em vez disso, metade dele mergulha quando fecho os olhos. Eu a
vejo, os pulsos cortados, o sangue ondulando de forma hipnotizante
enquanto o corpo sem vida espera que alguém o encontre lá. O olhar
vidrado, entregue à dor e aos demônios de sua mente e aos motivos que a
impulsionaram a isso.
O porcelanato branco e polido da banheira transbordando com uma
fina corrente de água e sangue que se espalha pelo chão, formando uma
poça sinistra e inquietante que alguém pisaria quando a encontrasse.
Formando as pegadas que presenciei de alguma forma.
Eu havia feito uma promessa para o fantasma de Anna e irei cumpri-
la.
Mas enquanto isso não acontece, é como se ela pudesse entrar em
minha mente o tempo todo, talvez seja apenas minha consciência me
lembrando que eu a havia abandonado, mas parecia algo mais. É mais fácil
para ela se manifestar em casa, quando todos os seus objetos pessoais estão
lá, espalhados por todos os lados, junto das recordações que eles trazem,
aqui, aqui ela é apenas uma lembrança de alguém que nunca irei conhecer
realmente, mas que gostaria muito.
Coloco a garrafa sobre a borda da banheira e deslizo para dentro da
água, deixando que ela me cubra por completo, esperando que tenha o
poder de varrer toda a angústia e dor para fora de mim, todo o medo que
sinto de perder Demyan essa noite. Embaixo da água, eu apenas abro os
olhos e encaro o teto ondulado, me perguntando o que Anna sentiu quando
a vida deixou seu corpo lentamente, quando o sangue jorrou para fora e se
misturou à água.
Será que ela havia sentido dor?
Será que ela havia mesmo sido tão egoísta e não havia pensado em
seu irmão gêmeo ou namorado? Em sua mãe?
Acima de mim, a sombra de uma silhueta se move, eu a reconheço
antes de meu corpo nu ser envolvido por braços que me puxam em sua
direção. Sou retirada da água, a pele exposta é atingida por um frio doloroso
e cruel, mas Demyan me aninha contra ele como um bebê, encolhida.
— Não, não, não... — A voz deixa sua garganta com uma
vulnerabilidade que nunca presenciei em Demyan e em ninguém mais. —
Não, por favor, sardenta, não....
A cabeça dele está enterrada em minha nuca quando ele desliza para
o chão, se sentando comigo em seu colo, aninhada nele, encharcando suas
roupas de moletom. Ele segura a parte de trás da minha cabeça e de onde
estou, vejo a garrafa de vinho virada, o líquido vermelho escorrendo pela
borda e chão.
Oh.
Meu Deus.
— Não... — ele soluça, não como Demyan, nem como meu stalker,
mas como o irmão de alguém que tirou a própria vida em uma banheira.
Como alguém que encontrou o corpo da irmã sem vida.
Como uma pessoa solitária perdendo a última pessoa que restou.
— Dem... — murmuro.
Ele para de me balançar, se permitindo acreditar que minha voz não
é uma alucinação.
— Nika... — Demyan segura minha cabeça com as duas mãos e
afasta para que possa olhar para mim.
O que eu vejo me choca, faz meu estômago se contorcer, minha
garganta fechar e lágrimas queimarem em meus olhos em tempo recorde.
Não é nenhum dos dois, nenhuma personalidade que já o vi usar, é
Demyan de verdade e ele está de volta no passado, no dia em que perdeu a
irmã.
Lágrimas grossas escapam de seus olhos castanhos e bonitos quando
ele pousa a testa na minha, ele não se importa em me deixar vê-lo de
verdade, sob todas as camadas que moldou ao longo dos anos, seja pelos
conflitos com o pai, pela morte da irmã, a mente da mãe ou o
desaparecimento do seu melhor amigo. Ele havia usado uma armadura todo
esse tempo e está sem ela agora.
— Eu tô aqui... — Seguro seu rosto, colocando meus lábios nos
dele.
Apesar de que estou viva, o choro de Demyan parece uma
despedida, eu duvido que ele esteja bem para essa luta hoje, duvido que ele
esteja focado nela. Ele parece quebrado agora, de todas as formas, como se
tivesse aceitado a morte.
— Eu pensei que estivesse morta. — Ele me mantém presa contra
ele, os braços em volta de mim, em um abraço tão apertado que faz minha
mente girar.
Ninguém nunca me amou dessa forma, ninguém nunca fez o amor
parecer um sentimento insano e desesperado, até agora.
— É só vinho — murmuro.
A cabeça dele está outra vez em meu ombro quando ele a joga para
trás, apoiando-a no azulejo frio, a respiração se tornando lentamente
estável, enquanto ele volta para si, o olhar fixo na parede à frente dele,
como se não pudesse nem sequer encarar o vinho no chão e na banheira.
Me movo para fora do seu colo antes de alcançar um roupão,
tremendo de frio, encarando Demyan todo molhado, o olhar vazio, a pele
pálida, o nariz avermelhado.
Tão lindo.
Tão quebrado.
Como ele venceria essa luta?
Como ele continuaria vivo?
— Por que você... — tenta perguntar, a frase sai junto de uma lufada
de ar, desconexa. — Não tava pensando em...
Me ajoelho diante de Demyan.
— Eu nunca faria isso.
Ele não parece certo sobre isso.
— Eu juro, por tudo, pelo meu pai, pela alma dele.
Demyan dobra os joelhos e deixa a cabeça cair entre eles, vestido
todo de preto, o capuz cobrindo sua cabeça, eu empurro o tecido para trás e
corro meus dedos por seus cabelos raspados. Sem cachos, sem os ondulados
que tanto amo. Ainda assim, ele está lindo, parece mais velho. Deslizo a
mão sobre a pele gélida do rosto, as bochechas úmidas pelo choro, ele fecha
os olhos, o rosto inclinando contra a palma da minha mão enquanto uma
expressão de prazer e alívio se contorce em seu rosto.
— Eu teria desistido de toda a merda se você... Eu teria só... Feito
isso também.
Levanto sua cabeça.
— Isso não é uma tragédia escrita por Shakespeare, Demyan.
— Não, ele não seria tão cruel — ele solta um suspiro, antes de
fazer menção a levantar.
— Você já... Já vai?
Ele para, uma mão no chão, a perna dobrada, pronto, apenas
esperando uma frase, uma palavra, um pedido, uma migalha.
— Ainda tenho um tempo, vou dar uma volta, rodar por aí e esperar.
— Logo os pássaros estarão loucos, é perigoso, deve começar em
breve.
Só. Peça. Annika.
Só assuma logo.
Só ame Demyan mais um pouco, porque pode ser a última vez dele
aqui. A última vez que olha para ele, a última vez que pode tocá-lo, abraçá-
lo e senti-lo.
Não seja orgulhosa.
Com o som de uma batida forte no vidro, meu corpo se encolhe com
o susto. Demyan, ao meu lado, também ergue o olhar em direção à janela
do banheiro. Uma ave preta está presa ali, sua cabeça pequena rachada e o
sangue escorre pelo vidro. O pássaro, agora sem vida, escorrega lentamente,
deixando um rastro vermelho em seu caminho.
— Começou — murmuro.
O olhar de Demyan encontra o meu.
— Bem-vinda à Noite Longa, stukach.
Quando ele se levanta, determinado a ir para a luta, preciso engolir o
nó em minha garganta, ele corre a mão sobre a pele do meu rosto,
lentamente, faz isso enquanto o olhar se demora em cada canto do meu
rosto, memorizando os detalhes, ciente de que pode ser a última vez.
Lágrimas escorrem sobre minhas bochechas quando inclino a cabeça,
relutante, ele puxa o capuz para cima, encarando o caminho que elas fazem.
Ele não diz nada, não se despede, não faz promessa alguma.
A mão encaixa na curva do meu pescoço e quando fecho os olhos,
eu sinto sua língua quente e úmida roubar minha lágrima.
Como meu fodido stalker, como alguém que eu também amei.
Me agarro no tecido grosso e molhado de suas roupas, enrolando
meus dedos nele.
Quando Demyan me solta, eu sinto o impacto cruel e doloroso de
ser deixada por ele, de não dizer o que sinto enquanto o vejo partir. Ele
deixa o banheiro, outro pássaro bate no vidro, na janela do quarto dessa vez,
ele faz uma pausa de dois segundos para olhar, mas eu não consigo desviar
os olhos dele, da forma como parece prestes a ruir, do rosto bonito que
talvez eu nunca mais veja.
Ele abaixa a cabeça quando atravessa a porta do quarto, e quando
um soluço escapa da minha garganta, eu me dou conta de que não adianta
nada continuar sendo alguém orgulhosa, que eu adoeceria por remorso se
Demyan morresse sem saber o que sinto.
— Espere! — eu grito da porta.
Ele para no meio da escada, engolido pela escuridão.
— Existe um canto em minha mente que ainda te odeia pelo o que
fez comigo — confesso.
— Eu sei. — Ele se vira.
— Mas... — Balanço a cabeça, quase inconformada por assumir isso
tão cedo. — Mas é só uma parte em um canto, porque você está em todo o
resto dela. Eu amo você com ela e com todo o meu corpo que, de alguma
forma, sempre soube que era você.
O olhar que Demyan me dá é inconformismo puro e absoluto.
— Só tá falando isso porque talvez eu morra essa noite — ele diz.
— Não estou inventando isso porque pode morrer, estou assumindo
porque é como me sinto e porque talvez seja minha única oportunidade.
Desço lentamente até onde ele está, quatro degraus abaixo de mim.
— Eu não mereço você, sardenta.
— Nem ia se despedir de mim de verdade? Me dar instruções sobre
sua mãe ou o gato?
— Você é boa descobrindo coisas sozinha. Mas não, eu deixei tudo
direcionado, há alguém esperando para lhe dar instruções.
— Caso você morra.
— Caso eu morra — ele repete.
Balanço a cabeça, cheia de ódio reprimido.
— Se você morrer, Demyan, eu juro, vou levar outro cara para a sua
casa e transar com ele sobre a sua cama.
Ele solta um rosnado, antes de me pegar no colo e subir as escadas
comigo. Não há motivação maior para mantê-lo vivo.
O som de um relâmpago ecoa pelo cômodo, iluminando todo o local
em uma sequência sinistra e assustadora de piscadas de luz.
— Vamos ver se qualquer um deles vai te foder como eu. —
Quando Demyan me joga na cama, não é nada delicado.
Meu roupão se abre, revelando a pele nua e arrepiada pelo frio.
As luzes não param de piscar e cada vez que o vejo na luz e na
escuridão, é quase uma mistura de suas duas identidades.
É Demyan.
É meu stalker.
Ele esmaga minha bochecha com a ponta dos dedos, puxando meu
rosto em sua direção.
— Não importa quão bem eles façam isso ou não, no fim das contas,
não vai ser você lá — provoco.
Isso o deixa mais determinado.
Eu vejo Demyan reagir pela primeira vez desde que chegou aqui. Eu
sempre soube que seu orgulho era seu ponto fraco, mas eu não sabia que ele
era mais ciumento que orgulhoso.
— Será eu sim. — Ele me beija, tão forte e duro que a sucção quase
machuca. — Quando fechar seus olhos, será eu sobre você e quando abri-
los, continuará sendo. — Ele se encaixa entre minhas pernas e quando se
enterra em mim, eu sinto fogo queimar em meu ventre. — Você estará na
minha casa, cercada por lembranças de uma época em que jamais poderá
esquecer. Estará tão entediada de qualquer outro que tudo o que fará é tentar
me enxergar em cada um.
Demyan se move, forte, duro, cada estocada fazendo minha cama
bater na parede. Relâmpagos continuam cortando o céu do outro lado da
janela enquanto os gritos dos pássaros tornam nossa despedida mais sinistra
e perturbadora. Não poderia ser diferente, de qualquer forma, porque ele
havia entrado em minha vida no dia em que matou um homem e agora
estava partindo na noite mais louca do ano, no início da Noite Longa.
— O quê? — A mão dele desliza sobre minha garganta.
— É meu stalker hoje?
— Foi com ele que tudo começou.
Seguro seu punho, lágrimas deixando meus olhos novamente, a cada
lembrança, não, ele não morreria. Ele será o mais rápido, o mais habilidoso
e o mais forte.
— Só tá falando tudo isso porque tá confiante, deve ter algum plano,
você é ciumento demais pra me deixar pra outro.
A luz está acesa quando um sorriso se forma nos lábios de Demyan,
o polegar dele desliza sobre meus lábios, ele desacelera, eu me curvo
quando a sensação de fazer isso lentamente se torna algo diferente, algo
incrivelmente delicioso.
— Eu sou — ele diz. — E se tudo der certo, sardenta, não precisará
deixar lavanda sobre meu túmulo ou jogá-las sobre as águas obscuras de
Ozero.
A testa de Demyan cola na minha, então, ele só continua fazendo
isso, se movendo devagar, enquanto minhas mãos deslizam sob o tecido do
moletom, por toda a extensão da pele de suas costas.
— Não lute. — Seguro seu rosto. — Apenas desista...
Demyan gira comigo e depois ele me faz sentar em seu colo. Nossas
testas se tocam, o que aconteceu no banheiro ainda paira sobre nós. Há um
peso aqui, instalado no ar, denso e quase palpável.
— Não é assim que funciona.
A luz apaga depois de um trovão, mas a chuva nunca vem, porque a
chegada da noite longa é algo cientificamente impossível de explicar. A
forma como os pássaros se comportam no último dia de outono, quando
eles percebem que os três meses seguintes serão de pura escuridão, é como
se os deixassem possuídos por fúria e uma loucura avassaladora.
Demyan me deita, minhas pernas ainda em torno dele, ele começa a
se mover depressa outra vez, o som dos pássaros lá fora é tão alto que a
cabeceira da cama contra a parede mal pode ser ouvida. Ele mantém a boca
colada em meu ouvido, um desespero cruel crescendo em nós dois. Nada
parece o bastante quando ele se move assim, quando parece perdido em
fúria e em mim.
Eu percebo o que ele está fazendo, está me fodendo como meu stalker
no escuro, mas sendo ele mesmo quando a luz volta. Ele não é nem um,
nem outro essa noite, é os dois.
— Seu cabelo ainda cheira à lavanda, stukach.
— A minha boceta também...
O grunhido que ele deixa escapar é de pura insanidade.
— Foda-se. — Ele estoca forte, vezes demais para que o atrito do
impacto seja o suficiente.
Eu me agarro a ele, às lembranças e à esperança.
A maior alta que foi Demyan em minha vida, torcendo para que a
queda não venha, porque eu não sobreviveria a ela.
Nós dois alcançamos o clímax juntos, agarrados um ao outro em um
aperto quase doloroso.
Seu relógio digital apita.
— Merda, eu preciso ir... — Ele me encara, mas parece relutante.
— Fique, não vá ao leste essa noite.
— Não é assim que funciona — ele repete e pousa a testa na minha,
ainda estamos ofegantes. — Eles me caçariam e me matariam se eu desse
pra trás. Tem muita grana envolvida.
— Dê a eles o dinheiro que conseguiriam com ela, eu aposto que
você o tem debaixo do seu colchão.
Demyan balança a cabeça, eu vejo algo em seu olhar, algo que ele
não quer contar.
— Não dá. Essa noite, sardenta. — A mão dele toca meu queixo. —
Tudo vai mudar.
— O que tá escondendo de mim?
Ele desvia o olhar.
— Nada.
— Quanto tempo ainda tem?
— Quinze minutos. Por quinze minutos, sou todo seu.
— Pela última vez?
— Eu espero realmente que não...
Me levanto, amarro o roupão e pego roupas do meu pai para ele. Eu
não preciso dizer nada, ele sabe de quem são, Demyan tira o tecido
molhado de seu corpo e os substitui pelo conjunto de moletom.
— Valeu.
Ele parece distante, uma barreira invisível se erguendo por causa do
medo de perder a luta.
— Volta pra mim, okay?
Seu olhar encontra o meu.
— Isso é um pedido sério ou é só você me dando um objetivo?
— Se outro homem sobre a sua cama não incentivou você, isso seria
o bastante?
— Você na minha vida, sardenta? Como minha rainha do norte?
Sabe que sim.
— Tá me prometendo um futuro?
Ele toca a lateral do meu rosto.
— Não sou uma boa pessoa, mesmo minha decisão mais bem-
intencionada é ruim, porque isso é tudo o que eu conheço. Mas quando
prometo algo, nunca me verá quebrando essa promessa. Eu não te prometo
apenas um futuro, se eu sobreviver, eu te prometo o melhor de todos.
Assinto, lágrimas caindo de minhas bochechas.
— Vamos mudar Temnyy Gorod juntos. Quero fazer isso ao seu
lado.
Demyan ainda está segurando meu rosto quando me dá um último
beijo, as luzes piscam outra vez, fazendo um ruído causado pelo mau
contato.
— Preciso que cuide da minha mãe, que tente entender o que tá
acontecendo.
— O que quer dizer?
Demyan olha no relógio.
— A caixinha de música tá quebrada, mas ela conhecia a melodia,
por isso eu não achei que pudesse ser real, até que você apareceu e... Você a
ouviu de alguma forma, Annika, por meses, eu pensei que minha mãe havia
se perdido em sua própria mente.
— O que aconteceu com ela?
— Ela entrou em uma depressão profunda depois que meu pai se
foi, então a morte de Anna a fez quebrar de vez, havia momentos de surtos
onde ela simplesmente se machucava, dizia que via Anna, que a ouvia, que
ela estava deixando sinais...
— Sinais?
— Irina chamou uma equipe, ela passou por uma investigação, já
havia um psiquiatra que cuidava de sua mente por causa da depressão, ele a
diagnosticou com TEPT e Transtornos Delirantes. Está em observação
desde então, mas ela ainda fala de Anna o tempo todo, aquela maldita
música... A lavanda sempre a deixou calma, nós começamos a cultivar
depois de um tempo porque não é fácil encontrar e ela prefere quando a
planta está fresca. Passar um tempo na estufa com supervisão também a
mantém lúcida, até ela começar a delirar outra vez.
— Demyan. — Seguro seu braço.
Ele balança a cabeça, ciente do que estou prestes a falar.
— O tempo inteiro em que estive em sua casa, coisas aconteceram,
coisas que eu não sei se podem ser apenas... Coincidência.
Outro pássaro bate no vidro do quarto, me fazendo encolher. O
relógio de Demyan apita com outro alerta.
— Acha que... — Ele ri, mas parece um pouco transtornado. —
Não... Eu não sou como Roman, não acredito nessa merda, Nika.
Envolvo sua cintura com as mãos e assinto, ele não precisa disso
essa noite, precisa de foco.
— Tem razão — murmuro. — Mas eu prometo que, seja como for,
Dem, vou cuidar dela, de sua mente, vou ajudá-la a passar por isso.
— Sei que é um fardo pesado demais para carregar... Mas não tenho
como fazer isso se não tiver certeza de que ela ficará bem.
— É uma promessa, mas eu espero realmente não precisar ter que
cumpri-la.
Ele assente, encostando a testa na minha.
Pela última vez.
— Não posso ficar mais. Esse é meu limite.
Antes de se afastar, Demyan me diz a hora que costumam descartar
os corpos em Ozero, ele havia feito pesquisas, porque me conhecia o
suficiente para saber que eu poderia fazer campana na Kupol e me colocar
em risco.
Assinto, determinada, embora meus olhos estejam cheios de
lágrimas quando ele se afasta.
— Seja o melhor — murmuro.
Demyan olha para trás.
— Por você.
E então, ele desaparece na escuridão da escada ao mesmo tempo em
que a energia cai de vez.
Caminho até a janela e encaro o lado de fora, centenas de pássaros
voam no céu em um espetáculo sinistro e inexplicável. Centenas deles,
desgovernados, preenchendo o ar, criando uma dança caótica entre as
nuvens escuras e os relâmpagos que cortam entre eles. Seus gritos
angustiados ecoam pela atmosfera e abafam o som do meu choro.
O som de algo caindo atrás de mim me faz girar, então, a
eletricidade volta e encaro algo diante de mim que só pode significar outro
sinal. No chão, ao lado da poltrona, as roupas de Anna que deixei dobradas
sobre o braço do móvel estão caídas em um monte.
Eu havia feito uma promessa a ela.
E, se sua mãe havia realmente se tornado aquilo que presenciei quando
estive no terceiro andar, era melhor que eu cumprisse de uma vez, se não
quisesse acabar como ela.
Me agasalho bem, camiseta térmica sob outra de lã e um sobretudo
que, embora esteja gasto e puído em algumas partes, é grosso o bastante
para me proteger do frio. Visto uma calça térmica também e botas
específicas, então, pego meu cachecol, gorro e luvas e corro para fora da
casa vestindo cada um deles. É uma péssima ideia sair no dia de hoje, é
arriscado e imprudente, mas eu nunca fui conhecida por ser prudente, por
não me arriscar ou por ter boas ideias.
As asas batem com uma energia frenética, os gritos ecoam como um
coro impiedoso, em uma noite caótica, cruel e angustiante que está apenas
começando. Um pássaro acerta minha cabeça, as garras grudam em meus
cabelos, levantando-os no ar enquanto pairo diante do vidro do carro
estacionado na esquina. O homem do lado de dentro aponta uma arma na
minha direção, mas não tenho tempo para erguer as mãos no ar. Eu apenas
entro e me sento ao seu lado.
É um dos traficantes do bairro, está em seu ponto, porque apesar da
noite caótica, a movimentação de carros é grande por causa da luta que está
prestes a acontecer no Poço.
— Já matei pessoas por muito menos do que isso.
— Preciso de uma carona até o norte.
Ele coloca a arma no porta-luvas, bem diante de mim, posso usá-la
para ameaçá-lo se ele não quiser me levar, mas provavelmente ele a tirará
de mim e me matará. Eu sei onde os corpos são desovados agora.
— Não posso sair, há uma movimentação grande essa noite.
— Eu te pago — digo a ele um valor.
Ele ri, uma risada provocadora.
— De onde vai tirar dinheiro se mal pode comprar roupas?
— Demyan — digo, cheia de determinação. — Se o conhece bem o
bastante para que permitisse que ele brincasse comigo em seu território,
então, vai fazer isso pela garota dele.
— Então, acabaram juntos no fim das contas?
Dou a ele um olhar mortal que responde a sua pergunta.
— Ele não está no norte agora.
Coloco o cinto de segurança.
— Eu sei.

— Sou eu. — Irina libera minha entrada no bairro depois que sou
deixada diante da Granitsa.
Devido a Kupol e a floresta que cerca as extremidades do norte, a
quantidade de pássaros desse lado é assustadora. Preciso tirar meu
sobretudo e colocá-lo sobre a cabeça enquanto corro, eles me acertam com
força, os que sobrevoam mais baixo batem em carros estacionados nos
gramados bem-cuidados, nas janelas das casas, no tronco das árvores
solitárias que algumas das propriedades ostentam.
A escuridão da noite me cerca enquanto eu caminho a pé, motivada
por uma promessa que fiz a um fantasma.
Meu coração bate descompassado devido à falta de fôlego e meus
passos incertos são interrompidos quando piso em algo mole, um corvo
morto está sob minha bota e balanço o pé para me livrar dele. Sangue se
espalha pelo asfalto e através do material do meu calçado, a cabeça do
animal está caída, o bico aberto.
E se isso fosse um símbolo de presságio? E se fosse Anna querendo
me dizer algo?
Eu volto a andar, me perguntando quantas vezes sua mãe achou que
era o fantasma atormentado da filha e quantas vezes apenas culpou a
própria mente. Quando ela começou a se questionar realmente, se uma parte
dela era relutante em acreditar nisso ou se ela havia deixado de fazer isso
porque todo mundo dizia que estava louca.
E se ela nunca tivesse estado?
E se não fosse sua mente?
E se o problema da mãe de Demyan fosse a alma vagante e
atormentada da filha?
E se ela só precisasse de algo para finalmente descansar?
Com uma mistura de repulsa e determinação, passo por cima da ave
sem vida, o peso da cena macabra permanecendo em minha mente inquieta.
O pensamento dividido em Demyan, na mãe e em Anna.
E só quero que ele sobreviva, só quero poder lutar contra o sistema,
contra Temnyy Gorod e contra seu passado ao lado dele.
Estou diante dos portões da mansão de Demyan, estão abertos,
esperando por mim, passo por eles e conforme me aproximo da porta, me
sinto mais cansada. Um pássaro grande passa diante do meu rosto, correndo
sua garra sobre minha bochecha. Eu sinto exatamente o local onde ele
passou, quando toco a pele, a ponta dos meus dedos é recebida por sangue
vivo.
Estou subindo as escadas da entrada quando outro pássaro
repentinamente voa em minha direção, grudando em meus cabelos com
força, como se quisesse me arrastar para seu caos alado. Meus sentidos
ficam sobrecarregados e minha angústia cresce ao tentar me livrar da
criatura.
Eu me debato, o sobretudo cai na entrada, o pássaro grita e se debate
em meio aos meus cabelos e rosto. A porta se abre, eu caio para dentro, o
pássaro voa para longe e eu apenas continuo no chão, respirando com
dificuldade enquanto encaro Irina de cabeça para baixo.
A tempestade ainda ruge lá fora, mas agora todos os sons foram
amenizados por uma porta de madeira grossa que transforma todo o som em
um caos abafado.
— É a criatura mais insana que já conheci.
Sorrio, ofegante, tentando me recompor.
— Meu pai costumava dizer isso.
Ela estica o braço.
— Preciso de um momento. — Eu apenas continuo no chão, me
recompondo.
— Então? Seja o que for que Demyan fez de ruim, você o perdoou?
— Eu o amo mais que o odeio.
Ela sorri, um sorriso honesto e grande demais para estar no rosto de
Irina.
— Espero que seja muito, então, ele passou por muita coisa.
Gritos e mais gritos ecoam no andar de cima, gritos que nem mesmo
os pássaros loucos são capazes de abafar o som. É quando me levanto.
— É Yaroslava — ela diz. — Eu preciso ir.
Sigo Irina, ela para por dois segundos, então, se dá conta de que não
estou aqui por causa do trabalho e que só havia colocado meus pés nesse
lugar por um único motivo, apesar de nem eu mesma saber disso na época.
— O que ela tem hoje? — pergunto.
— Ela está agitada. Diz que Anna... Diz que ela está na casa essa
noite.
Sinto uma corrente de ar empurrar lentamente meus cabelos e ela
passa por mim junto de sussurros, sussurros que me levaram à lavanderia
um dia, sussurros que me incentivaram a subir as escadas proibidas.
— O que acha disso? Das coisas que ela diz?
— Não sou paga para achar qualquer coisa.
— Ainda assim o faz, não é? — Estamos no segundo andar agora,
encaro a porta de Anna por um momento antes de seguir Irina.
Então, eu ouço, a caixinha de música, a melodia suave e sinistra
ecoando através do corredor mal-iluminado.
— Ouve isso? — pergunto em um sussurro. — Consegue ouvir?
— O quê, menina? — Ela faz uma pausa. — Pássaros e trovões?
Eu começo a cantar baixinho a melodia, em um sussurro instável. O
rosto de Irina perde a cor, os relâmpagos iluminam o corredor.
— Por que tá fazendo isso? Como conhece essa música?
No andar de cima, a mãe de Demyan canta junto comigo, como se
ela também a estivesse ouvindo, eu subo as escadas, deixando Irina para
trás, o machucado em minha bochecha latejando quando me movo
depressa. As luzes fortes e brancas me recebem no andar de cima, e como
se soubesse que estou chegando, a mãe de Demyan tem as mãos espalmadas
no vidro, lágrimas caindo sobre sua face cansada.
— Ela está aqui! — grita, batendo no vidro.
Espalmo minhas mãos, diante das dela. O olhar de Yaroslava é de
surpresa.
— Eu sei... — murmuro, ela lê meus lábios, alívio brilhando em
seus olhos.
—Ajude-a! — ela grita, me fazendo afastar por impulso. — Ajude a
minha menina. — E então, ela começa a cantar a melodia outra vez.
Quando olho para Irina, não sei o que sua expressão quer dizer, mas
ela parece disposta a qualquer coisa que eu tenha a oferecer, qualquer coisa
que possa mudar a situação nessa casa. Enquanto corro de volta para o
segundo andar, eu penso em Demyan, se a luta já chegou ao fim, se ela já
começou ou se eles fazem algum tipo de ritual inicial por se tratar de uma
final. Eu queria que ele ainda nem sequer tivesse subido no ringue, porque,
de alguma forma, isso ainda daria uma chance a ele.
Toco a maçaneta do quarto de Anna, lágrimas queimam em meus
olhos, acendo a luz, então, encaro o quarto, a cama bagunçada, a
escrivaninha com as fotos, o espelho quebrado. A porta do banheiro
continua trancada, mas sei o que há lá porque vi. Eu havia entrado nesse
lugar outras vezes, visto o que há aqui dentro, só que preciso focar no que
ainda não toquei, nas coisas que não mexi.
Encaro o pequeno closet, acendo a luz, roupas estão enfileiradas de
forma impecável, assim como os sapatos, algumas bolsas, uma mochila. Eu
começo vasculhando essas coisas, me desculpando mentalmente com
Demyan por mover as coisas de sua irmã do lugar. Abro as gavetas, olho
embaixo das roupas, jogo-as no chão, revisto os bolsos de algumas calças,
abro as bolsas e mochilas, tudo, eu levo algum tempo procurando por algo
que nem sei o que é.
Quando me jogo no chão, lágrimas queimando em meus olhos,
apoio a cabeça na parede, pronta para desistir. O som dos pássaros parece
cessar por um instante, de repente, o quarto é tomado por uma energia
estranha que provavelmente significa algo. Ouço as batidas do meu
coração, cada promessa que Demyan me fez repassa em minha mente, eu
fecho os olhos por um segundo, apenas um, quando abro, estou encarando a
prateleira suspensa de livros, lombadas alinhadas, revelando títulos que, em
outro momento, me despertariam curiosidade. Eu foco em uma delas, em
um livro aleatório mal-encaixado, como se alguém tivesse mexido nele há
pouco tempo ou como se ele tivesse sido o último que ela leu.
Isso me causa uma estranha sensação de curiosidade e certeza
quando me levanto e o pego na mão, ao folhear as páginas, um papel cai aos
meus pés. Me abaixo e desdobro a folha, encontrando o nome de Anna,
uma inscrição para um curso, feita às três horas da tarde e guardada com
zelo, como se fosse precisar dela em algum momento.
Olho a data de novo.
Espere.
Me lembro das palavras de Demyan sobre a noite em que perdeu o
controle, a noite do aniversário de morte de Anna.
Encaro a data no papel outra vez, só para ter certeza, então, cubro os
lábios, totalmente em choque.
— Por que alguém que planejava tirar a própria vida havia se
inscrito em um curso no mesmo dia?
Oh.
Meu Deus.
A menos que...
A menos que ela não tenha feito isso.
E se Anna não tivesse cometido suicídio?
Demyan não pode...
Se algo acontecer com ele, ele precisa saber disso.
Antes de morrer.
Irina me deixa na divisa com o leste, estou usando roupas de frio,
um cachecol enrolado sobre meu nariz e boca, tentando manter meu rosto
longe do perigo e um capuz para manter os pássaros afastados. Atravesso o
bairro contaminado, usando pontos escuros para me mover, como sempre
fiz em cada vez que fui à biblioteca. Só que dessa vez, não estou indo a um
lugar onde abriga apenas livros velhos, estou indo a uma parte que nunca
fui, uma parte da cidade que não passava de histórias horripilantes
sussurradas contra as regras do Poço que proíbem falar sobre ele fora dele.
Eu sabia que era um prédio, um local abandonado que dava acesso
ao subsolo, e soube qual deles era quando avistei uma movimentação. Meu
coração bate descompassado em meu peito enquanto me aproximo da
edificação, cujas paredes ecoam histórias sombrias e segredos enterrados.
Os homens continuam conversando, eles afastam os pássaros com
um tapa no ar, um gesto simples em meio a uma conversa cheia de risadas
asquerosas, como se não fossem nada, como se não houvessem histórias de
pessoas que tiveram seus olhos arrancados por pássaros na chegada da
Noite Longa.
Passo pelo grupo de homens, enfio as mãos nos bolsos do sobretudo,
inclino a cabeça, encaro o lado oposto a eles e passo sem olhar em suas
direções. Tranco o ar, torcendo para não chamar atenção, para que ninguém
me pare, para que não precise de um tipo de senha para entrar nesse maldito
lugar. Passo por dois homens na porta do prédio, os dois estão fumando um
cigarro, eu atravesso a nuvem de fumaça e me vejo descendo escadas que
me levam a uma espécie de túnel.
Homens e mais homens estão espalhados pelo lugar, encostados nas
paredes sujas, escuras e sinistras. Ouço um gemido esganiçado de uma
mulher, ergo o olhar, ela tem seu sobretudo aberto virado para mim, os seios
expostos ao frio, a mão de um homem sobre a garganta dela em um aperto
tão forte que a faz engasgar. Continuo andando, andando e andando,
passando pelo corredor que me leva a um mar de vozes.
Seguro o papel entre meus dedos com força, a inscrição de Anna,
talvez a resposta de muitas perguntas que Demyan e Roman fizeram por
muito tempo. Ele precisa saber disso hoje, porque se sua irmã foi mesmo
morta por alguém, então, talvez Roman tenha descoberto isso e sido
assassinado também.
Eu queria descobrir, queria cavar fundo, queria ir longe o bastante
para descobrir todos os segredos e motivos, o que Anna sabia para ter sido
morta por alguém.
Conforme adentro pelos corredores decrépitos, a escuridão engole
cada passo meu e então, ele começa a ficar claro, evidenciando o que há do
outro lado. Pessoas gritam um nome, a luta ainda não iniciou, mas ela está
prestes a começar. Demyan está no ringue, esperando por seu adversário, os
homens atrás de mim passam pelo meu corpo, esbarrando em meus ombros
pequenos e frágeis enquanto permaneço parada, encarando-o lá, a cabeça
erguida, cheio de arrogância, totalmente diferente de quando estava na
minha casa mais cedo porque aqui ele vestia aquela armadura, a que eu
costumava odiar, a mesma que conheci no ensino médio.
As pessoas que passaram por mim contornam o Poço, todos gritam
o nome de Demyan, meu capuz cai quando um homem grande esbarra em
meus ombros, mas ele não para, eu viro para ver se alguém me viu, mas
reconheço a silhueta de alguém, a forma de andar por aí, a cabeça abaixada,
um capuz engolindo a cabeça, cabelos ondulados se espreitando para fora.
A forma como se movimenta chama minha atenção, então, eu também
reconheço o moletom, a pequena estampa que já vi antes, a marca que
alguém como ele nunca poderia pagar. O moletom de seu amigo e que só
pode significar uma coisa.
— Roman? — chamo.
Ele para, as mãos nos bolsos, a cabeça baixa, as costas um pouco
curvadas por causa da altura, ele se vira meio de lado, tentando reconhecer
minha voz em suas lembranças enquanto talvez se questiona se deve ou não
se revelar para mim. Então, ele vira, o rosto pálido como se não tomasse sol
há muito, muito, muito tempo. Tanto tempo desaparecido, Demyan
movendo o mundo inteiro por ele, e Roman aqui. Não é mais um menino, é
um homem e seja lá onde esteve todo esse tempo e o que fizeram com ele,
quase o destruiu.
— Sardenta?
E lá está, o sorriso insano se curvando nos lábios de Roman, o brilho
no olhar que deixa qualquer um hipnotizado.
O moletom de Demyan e o fato dele saber meu apelido deixa tudo
esclarecido, seja o que Roman esteja tramando, Demyan está com ele nisso.
— O quê...? O que tá fazendo aqui?
O sorriso dele aumenta, um sorriso que já ouvi ser de um psicopata,
mas que eu sei que é só sua forma de sorrir, a forma que ele usa para causar
desconforto nas pessoas.
— Você não sabe? — ele diz. — A luta final é minha com Demyan.
Não.
Não.
Dou um passo para trás.
Então, meu corpo colide com algo sólido, uma parede de músculos
que tem apenas um serviço e deixa isso claro.
Mal tenho tempo de gritar ou correr quando mãos grandes cobrem
minha boca e o homem cruel me arrasta para a escuridão.
F. Locks se formou em Letras/Espanhol, largou seu emprego e se dedicou
integralmente ao seu verdadeiro sonho: escrever. Com quase dez anos de
experiência na escrita e muitos livros publicados, sente que ainda há muitas
histórias para contar e todas elas são de mocinhos quebrados e anti-heróis
porque esse é seu tipo preferido.
[1]
Roman, livro dois, escrito por Cinthia Freire.
[2]
Saqueadores
[3]
Otdel Kadrov: Departamento de Recursos Humanos.
[4]
Aniversariante
[5]
Feliz aniversário para você
[6]
Receita tradicional da culinária russa
[7]
Receita tradicional da culinária russa
[8]
Irmã gêmea

Você também pode gostar