Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
1ª Edição
Verão: Leto
Outono: Padat’
Inverno: Zima
Primavera: Vesna.
“Demyan e Roman[1] são ruins de verdade, eles
não são o tipo que você deve desejar na vida real.”
F. LOCKS & CINTHIA FREIRE.
O quê?
Aquela...
Ele chega após quarenta minutos. Sei disso porque posso ouvir o
som do carro, o bater das portas e os passos pelo corredor quando estou no
quarto de hóspedes. Não ouço a porta do seu quarto bater, no entanto, nem
passos através da escada que vai para o terceiro andar. Em vez disso, eles
morrem quase diante da minha porta. Com os cabelos molhados e uma
roupa extra que aprendi a deixar aqui, abro a porta. Demyan está sentado no
chão, diante do quarto da irmã, a cabeça enterrada no joelho.
— O que... — Ele ergue o olhar.
Parece cansado.
Não, parece exausto.
— O que tá fazendo aí?
Ele dá de ombros.
— Às vezes, eu só me sento aqui.
Sinto algo em meu estômago, mas é a forma como meu coração
acelera diante disso que me deixa preocupada. Essa versão de Demyan, a
forma como ele parece a um passo de quebrar e ainda assim anda por aí em
uma postura indestrutível. Eu quero isso, quero ser forte assim.
— Se você não voltasse pra casa hoje, eu ia achar que tinha ido atrás
de alguma garota.
Os lábios dele se repuxam em um sorriso.
— Eu quase dirigi até sua casa, então, eu mudei o caminho porque
não queria parecer que tava me humilhando.
— Orgulhoso.
— Não, só um pouquinho de amor-próprio. Eu ainda preciso de algo
para me manter de pé.
— Um pouquinho? Eu aposto que você tá cheio disso.
O olhar dele cai sobre minha calça justa e seios.
— Eu tô cheio de tesão com você por aí, vagando pela minha casa
como se mandasse em tudo.
Eu não deveria sorrir por causa dessa merda.
— Gosta de ser mandado?
— Por você.
Eu solto um suspiro baixo quando me lembro onde estamos. O
quarto de Anna diante de mim. A imagem do banheiro preenche minha
mente, a lembrança da banheira ensanguentada.
— Então, você sempre vem e senta aqui?
— É. Me ajuda a pensar um pouco.
— No quê?
— Em tudo e qualquer coisa.
— Por quê, Demyan? Por que a Anna tirou a própria vida?
Eu deslizo para o seu lado no chão.
— Ela foi estuprada.
Estuprada.
Jesus.
Ele provavelmente vê o horror em minhas feições.
— Eu sinto muito. — Apoio a cabeça em seu ombro. — Você sabia?
Ele joga a cabeça para trás, apoiando-a na porta.
— Não, eu descobri na carta que ela deixou.
— Roman sabe? Sobre a carta?
Ele balança a cabeça.
— Nunca contei a ninguém sobre ela, eu não tive coragem.
Sinto meu estômago se embrulhar, eu a vejo em minha mente, a
água turva pelo sangue.
— Quem encontrou Anna? — pergunto em um sussurro.
— Roman. — A voz de Demyan é um sopro doloroso. — Então, ele
gritou por mim.
Não há o que dizer além de puxar sua mão para o meu colo.
— Eu não... — Não consigo falar, não consigo pensar no que dizer.
— Nunca contei sobre a carta porque não tive coragem de dizer a
ele essa palavra. Estuprada... — ele suspira, tentando organizar as palavras.
— Quando ela se foi, tudo o que podíamos fazer para nos sentir melhor era
culpar o outro. Eu o culpei por ser um namorado ruim, ele me culpou por
ser um irmão de merda.
— Não foi culpa de ninguém, ela não tinha mais controle sobre sua
mente.
— É o que eu poderia dizer pra me sentir melhor. Mas é mentira. Eu
falhei como irmão.
— Demyan...
— É a verdade, por mais cruel e dolorosa que ela seja. Eu tinha uma
irmã, minha gêmea, alguém que eu deveria cuidar e proteger e eu não vi
isso acontecer com ela. Não vi o estupro e não a vi se perdendo em sua
própria mente.
— Não eram próximos?
— Porra, sim, nós éramos. — Ele puxa a mão e esfrega o rosto. —
Mas ela estava sempre com Roman no final e havia o lance com o leste...
— Que lance?
O olhar que ele me dá é quase como se Demyan não soubesse o que
fazer, contar tudo ou continuar guardando para si.
— Roman lutava no leste.
Minha mente está girando agora, sim, eu sei sobre Roman, porque
eu ouvi alguns boatos pelo bairro, mesmo que ele fosse um lugar proibido
que as pessoas evitavam mencionar.
— E quanto a você?
— O que tem eu?
— Eu sei sobre suas lutas.
Há algo no olhar de Demyan agora, fogo, admiração.
— Você não deve sair por aí falando sobre o leste, sardenta.
— Eu sei.
Ele assente.
— Bom, continue de boca fechada, então.
— Me conte sobre seu lance no leste.
— Eu ainda não sei se tá recolhendo informações sobre mim pra me
arruinar no fim de tudo isso.
— Achei que tivéssemos passado por isso. Eu vi o quadro de Roman
no seu quarto, eu teria que ser cega para passar por ele e não perceber. Acha
que o leste tem a ver com o desaparecimento dele?
— Eu já não sei mais o que acho.
— Então por quê? Por que tá se metendo em um lugar
contaminado? Por que tá se colocando em perigo? Você tinha uma arma
consigo no oeste naquela noite, por que anda por aí carregando ela?
A mão dele toca meu queixo e eu uso o momento para me esgueirar
entre suas pernas, de frente para ele.
— Eu tô com você. Somos nós dois agora. Não importa o que
aconteça, seus segredos são meus para guardar.
O olhar dele cai sobre meus lábios, eu aposto que ele ficou duro
agora.
— Roman desapareceu depois que se envolveu no ciclo com o
homem que comanda o subsolo.
— O Poço — murmuro e ele me dá um olhar que sugere que esse
nome nunca deveria sair da minha boca. — Meu pai, ele me contava
algumas histórias.
— Nunca fale do Poço fora do Poço — ele diz, uma espécie de
mantra para quem frequenta o local. — Nunca fale dele.
— Tudo bem... — murmuro.
— Eu tô inscrito no ciclo de Padat’, ele encerra em duas semanas —
o suspiro que Demyan solta no final da frase quase sugere que ele precisava
dizer isso a alguém.
— O que isso quer dizer?
— Quer dizer que tenho mais uma luta antes da final. — Ele faz
uma pausa longa, o olhar cravado no meu, tão fundo que perfura meu
crânio.
— E o que há depois disso?
— Se eu sobreviver? Talvez Roman.
Minha cabeça está girando.
Eu solto minhas mãos e me afasto dele.
— O que quer dizer com “se eu sobreviver”?
E então, Demyan me conta, ele me explica como funciona o ciclo.
Há lágrimas sobre minhas bochechas quando balanço a cabeça, em pânico.
— Por quê? — Minha fala sai estrangulada. — Por que se
inscreveu? — Começo a andar de um lado para o outro. — Por que tá me
contando isso?
— Porque é a única pessoa em quem eu confio, sardenta. — Ele me
olha de baixo para cima, ainda sentado. — E se eu sumir, precisa saber que
é porque eu estarei morto.
Exausta.
Quando Demyan e eu caímos no colchão, nus e suados, estamos
exaustos. Ele puxa o lençol preto para mim e me cubro, antes de me aninhar
nele, que não se dá o trabalho de fazer o mesmo. O abdômen definido de
Demyan se move com força, subindo e descendo, estou tão drenada que
apenas o pensamento de me levantar para um banho agora esgota o restante
das minhas energias. Eu não conseguiria ficar de pé.
—Eu tô feliz pra caralho que tenha ficado.
— Claro que você está. — Eu acertaria um tapinha em seu ombro se
pudesse me mover.
— Quer uma água? Algo para comer?
Eu teria que sentar para isso e não quero sair daqui.
— Não, obrigada.
— Se você não pede água é porque o sexo não foi bom.
Sorrio.
— Não quero água porque não quero me sentar para beber, eu não
posso me mexer.
Demyan sorri, a respiração se tornando regulada, ele se vira de
frente para mim, os cachos suados e bonitos diante da testa. Como ele
consegue? Como pode ter tanta energia depois de uma noite inteira de sexo?
— Pode dormir até tarde, sardenta. — Ele deixa um beijo na minha
bochecha.
Eu sinto minhas pálpebras pesadas.
— O que vai fazer amanhã?
— Trabalho, amanhã eu deixo a cidade outra vez, vou visitar outra
indústria fora de Temnyy Gorod, tenho ficado um tempo em cada uma, feito
algumas observações antes de assumir a presidência.
Dou um sorriso, ele une as sobrancelhas para isso.
— Parece todo crescido.
Demyan balança a cabeça.
— Fugi dessa merda durante minha vida inteira, é meu legado, não
há o que ser feito.
— Você pode vender tudo e dar o fora.
O olhar dele se torna mais sombrio.
— Não posso deixar essa casa, e mesmo que eu pudesse... Não sei, o
pensamento de deixar tudo o que minha família construiu nas mãos de
outras pessoas...
— Não há nada pior do que seu pai já tenha feito que podem fazer
com os empregados, com os adolescentes e até crianças, Dem.
Quando ele se vira e encara o teto, eu acho que está colocando um
ponto final nessa conversa, mas então, ele diz:
— Isso me deixou mal por anos, no começo, eu não sabia, depois,
eu não podia acreditar e então, quando Roman dizia essas merdas sobre ele,
eu só... Sabia que era verdade e não podia fazer nada. A única maneira que
encontrei de sair disso foi não assumindo as indústrias e me afastando dele,
então ele morreu e eu não sabia mais o que fazer.
E depois Anna...
— Você não é ele.
— Eu não sou.
— Então faça diferente. Dê melhores condições aos seus
funcionários, conserte o que ele deixou.
— Eu tô visitando cada indústria, fazendo pesquisas, vendo com
meus próprios olhos. Eu nunca tinha ido tão longe, nunca pensei realmente
que assumiria os negócios, por mais que tenha me preparado pra isso a vida
inteira. Eu achei, no fundo, que daria o fora com Anna e Roman, sei lá,
qualquer merda, menos ficar aqui e trabalhar para ele em seus negócios
imundos.
— Você quer mesmo fazer isso?
— Assumir as indústrias? Eu já estou trabalhando nisso.
— Não, eu tô falando sobre as más condições em algumas de suas
empresas em Temnyy Gorod.
— É claro que sim, como eu poderia colocar a porra da minha
cabeça em um travesseiro e dormir?
— É, parece que você tem motivos demais para ter insônia. O que
pretende fazer para melhorar a vida de seus empregados?
— Um plano de saúde decente. Equipamentos de segurança.
Fiscalização recorrente. Tirar as crianças de lá.
— Não esqueça que essas famílias contam com esse dinheiro, eu vi
garotos de treze anos trabalhando, Dem, isso precisa ser resolvido.
— Tenho providenciado a legalização dos meninos de dezesseis a
dezoito com contratos de prestação de serviços que garantam a segurança
deles e qualquer coisa que aconteça com eles.
— Perfeito. — Corro o polegar sobre suas costelas, sobre os
hematomas do local. — E quanto aos mais jovens?
— Eu não sei, ainda tô pensando nisso.
— Aumentar o salário dos pais ou responsáveis por essas crianças,
talvez oferecer algum curso profissionalizante dentro das indústrias, uma
forma de garantir emprego no futuro para eles.
— É uma boa ideia. Educação e capacitação — ele repete.
— Você também poderia conseguir parceria com alguma ONG, você
tem nome, isso traria visibilidade para eles e, consequentemente, ajuda para
o povo de Temnyy Gorod.
O olhar que Demyan me dá me enche de fogo.
— É uma boa líder, seria uma ótima sucessora para os negócios do
meu pai.
— Não, eu sou muito boa em cuidar de pessoas e enxergar suas
dores. Isso não é sobre liderança, é sobre compaixão.
A boca de Demyan se abre, o olhar dele cai sobre meus lábios outra
vez, o sol bate na janela, nascendo, ainda assim, não o impede de subir em
cima de mim pela quarta vez. Eu permito que ele faça isso, porque amo que
ele não vá embora depois, amo que ele fica e conversa, amo que ele me
ouça e que se abra comigo. Quando envolvo seu rosto entre as mãos,
sentindo-o crescer contra mim, nossos lábios se repuxam juntos em um
sorriso.
— Eu tô tão obcecado por você que eu largaria toda a minha merda
só pra fazer isso pra sempre.
Meu coração acelera.
— E você me veria largando toda a minha pra topar qualquer coisa
que tenha a me oferecer.
Surpresa brilha no olhar de Demyan, mas ele parece duas vezes
mais faminto e possessivo agora.
— Às vezes, eu ainda não acredito que não precisei te amarrar e te
forçar a gostar de mim.
Engasgo com uma risada.
— Às vezes, só precisamos ser honestos. Eu odeio sua armadura,
mas gosto do que há dentro dela. Também entendo o porquê de vesti-la.
— Cada vez que abre a boca, você dificulta um pouco mais. Não
tem como não gostar de você, sardenta. Eu queria que tivesse me dado essa
chance no ensino médio.
Sorrio.
— Quando você atravessava a cidade só para esperar Roman no
final da aula? Quando ficava lá, todo cheio de si, me encarando com aquela
cara? Eu nunca teria te dado moral.
O sorriso dele aumenta, presunção pura.
— É, você nunca deu.
Quando ele desliza para dentro de mim lentamente e se move em
um ritmo desacelerado, minha cabeça gira de uma forma diferente. Eu o
sinto em meu corpo inteiro e a sensação de preenchimento percorre até meu
coração. Eu me agarro em Demyan, me sentindo uma traidora por desistir
tão fácil do meu stalker, porque tudo o que descobri que queria com ele,
encontrei aqui, com alguém que nunca pensei encontrar.
— Parece que fazemos isso há muito mais tempo.
A testa de Demyan toca a minha, uma mão encaixada no meu rosto,
a ponta do polegar inclinando meu queixo para que ele me beije, mas
mesmo quando termina, não há uma resposta. Ele só continua se movendo,
lentamente, me fazendo arfar e gemer baixinho, a cabeça afundada na curva
do seu pescoço. Eu me agarro em Demyan, tão forte que mal podemos
respirar.
— Porra, sardenta, isso é tão bom...
— Eu sei.
É diferente do que eu tinha com meu stalker, é mais real, é olho no
olho, e mesmo que eu sentisse que aquilo era verdadeiro, isso parece
duradouro e estável e tão bom que chega a ser doloroso.
— Se estragar tudo, eu te mato.
Estou esperando uma resposta quando um grito agudo e
desesperador vem do andar de cima. Um, dois, uma sequência de gritos
semelhantes a um filme de terror. Demyan sai de mim e desliza para fora da
cama em tempo recorde, então, ele começa a caçar suas roupas, mas parece
perdido demais para achar qualquer coisa. Eu recolho sua calça de moletom
e jogo para ele.
— Quem tá gritando assim? — Sentada na cama, seguro o lençol
contra os seios.
Os gritos não param, Demyan tem os olhos arregalados, uma
expressão de cansaço e pânico.
— Eu ainda não tô pronto pra falar sobre isso.
Quando a porta do quarto bate e os gritos cessam, tenho mais
perguntas do que antes.
Saio da cama e corro até o corredor, impulsionada pela curiosidade,
mas Demyan apenas olha para mim.
— Por favor — murmura.
Eu respeito seu pedido e o observo correr até lá.
Alguém vive no terceiro andar.
Um calafrio percorre meu corpo inteiro, arrepiando meus pelos.
Mas, quem?
Quando Demyan aparece na minha casa no sábado, me convidando
para ir ver Faina, não penso duas vezes antes de pular dentro do carro dele.
Nós conversamos por bastante tempo enquanto Dem alimentava Berstuk e
resolvia suas coisas no oeste. Ele me encontrou do lado de fora uma hora e
meia depois com um sorriso bonito e um convite para comer algo fora da
cidade.
— Não sou como as garotas do norte, não tenho roupas para
qualquer lugar que queira me levar.
Ele faz uma inspeção rápida.
— Como chama então os trajes que tá usando senão roupas,
sardenta?
— Trapos — resmungo.
— É só um restaurante de esquina onde servem batatas fritas e
hambúrgueres.
O suspiro de alívio poderia ser ouvido no subsolo do leste.
Quando Demyan segura minha mão e caminha comigo para dentro
de uma lanchonete simples e até mesmo de reputação duvidosa, eu tenho
mais certeza sobre ele e o tipo de pessoa que é.
— Continue me olhando assim e eu te arrasto para o carro.
Corro o polegar sobre a pele de sua mão.
— Eu não precisaria de mais que cinco minutos lá dentro.
O olhar que ele me dá quase queima a minha pele.
— Eu não levaria dois.
Envolvo sua cintura, sentindo o peso do braço dele sobre meu
ombro enquanto caminhamos como um casal. Ele puxa a cadeira para que
eu me sente e não contorna a mesa, Demyan apenas se senta ao meu lado, o
corpo tão inclinado que ele quase está de frente para mim. Sou tudo o que
ele vê, tudo o que ele quer e Demyan deixa isso claro o tempo inteiro para
mim.
— Uma das piores coisas sobre viver sem internet é isso aqui. —
Aponto para as batatas fritas quando nosso pedido chega. — Quando bate
vontade de comer algo e você não pode apenas ligar ou fazer um pedido por
aplicativo.
Demyan empurra uma mecha de cabelo para trás da minha orelha.
— Vou te entupir de porcarias de agora em diante.
— Não posso dizer que vou achar ruim.
Eu como basicamente sozinha enquanto Demyan move sua perna,
ansioso demais. Ele olha em volta, confere as horas, se inclina sobre a mesa
eventualmente para pegar uma batata, mas nada além disso. Ele nem
mesmo pediu um hambúrguer para ele.
— O que há de errado? — pergunto.
Demyan dá de ombros.
— Nada.
— Não parece nada.
Ele parece pensar se fala ou não sobre isso, mas o toque da minha
mão sobre seu joelho o encoraja.
— É só um lugar que eu trazia Anna. Era o hambúrguer preferido
dela.
Estou levantando o guardanapo até a boca quando paro no meio do
caminho. De repente, eu havia perdido o apetite.
— Merda, sinto muito, eu não queria pesar pra você.
— É a sua vida, o seu passado, eu entendo.
Quando esfrego sua perna, ela para de se mover.
— Eu não vim desde que ela...
Cortou os pulsos.
Em uma banheira.
Sozinha.
— E como se sente?
Ele une um pouco as sobrancelhas, como se falar sobre isso fosse
um crime.
— Eu não sei.
Não saber como se sente é um sentimento comum de luto, eu
entendo melhor do que ninguém.
— É...
— Você sabe... O seu pai...
Falar dele com Demyan já não me faz sentir uma traidora, agora que
sei que ele não é como seu pai. Ainda assim, há uma mágoa, algo que me
atinge. Ele havia morrido de câncer pulmonar enquanto vivíamos em um
bairro engolido por ar contaminado e poluído. Culpar seu pai sempre foi
mais fácil do que assumir que era apenas o destino agindo.
— Sim. Eu sei.
O braço dele recai sobre meu ombro outra vez e a gente só fica em
silêncio, olhando o lado de fora através das grandes janelas de vidro. De
repente, enquanto algumas pessoas passam em seus sobretudos e encolhidas
pelo frio, neve começa a cair, lentamente, pequenos flocos brancos que se
dissolvem ao tocar a superfície.
— É neve — murmuro.
— Sim, a Noite Longa se aproxima.
E com isso, o fim do ciclo, a luta final, eu não havia conseguido
processar essa informação, não queria pensar nisso, mas era tudo o que
estava em minha mente desde a noite passada. Eu aperto mais Demyan
contra mim, sem dizer nada, mas a forma como sua mão esquerda corre
sobre minha nuca e desliza por meus cabelos sugere que ele sabe no que
estou pensando.
— Eu não vou morrer — ele diz, a boca na minha nuca.
— Você não sabe. — Minha voz sai embolada
O pensamento de perder Demyan de repente parece pior do que
qualquer coisa.
— Eu quero ir... — Subitamente, estou de pé.
— Claro. — Demyan se levanta e caminha até o caixa, eu deixo o
estabelecimento e vou para o carro sozinha.
Do lado de fora, o vento frio e a neve contra a minha pele parecem
me livrar um pouco da sensação de sufocamento, mas é questão de
pouquíssimos minutos até que o frio se torne doloroso. Eu sinto minha pele
secar junto dos lábios, sinto os meus cabelos ficando gelados. E a ponta do
meu nariz arder com o choro preso. O toque do sino na porta denuncia a
saída de Demyan do estabelecimento.
Há uma linha funda de preocupação entre suas sobrancelhas e ela se
desfaz quando ele me vê.
— Porra, você me deu um susto. — Ele me puxa, então se afasta
para me checar. — Tá um frio do caralho aqui, por que não esperou do lado
de dentro?
— Isso é demais pra mim.
— Achei que tivesse superado seu ódio pelo meu pai.
As palavras estão entaladas na minha garganta enquanto encaro
Demyan, o olhar cheio de fogo e impaciência, o rosto pálido pelo frio, as
mãos agora dentro dos bolsos do casaco grosso.
— Não isso.
— O quê? — Ele busca meu olhar.
— Perder você.
Silêncio.
A neve continua caindo.
Minha cabeça girando.
Surpresa brilha em seus olhos, mas ele só me puxa para ele e me
envolve em um abraço acolhedor e apertado que se torna um embalo em
uma calçada movimentada coberta por neve. Deixo um soluço escapar,
porque o pensamento de Demyan morto me enche de pânico e horror e
porque o pensamento de estar diante da morte não o apavora. Ele deveria
desistir disso, deveria pelo menos parecer com medo, mas aqui está ele, só
me confortando por algo que provavelmente irá acontecer e que mesmo que
possa mudar, ainda assim não o faz.
— Se você morrer, eu mato você — resmungo, cheia de raiva, os
braços dobrados entre nós, os punhos esmagados contra o peito dele.
— Eu não vou — ele garante.
— Como pode ter tanta certeza?
— Porque agora eu tenho pra quem voltar.
Eu estou chorando contra o peito de Demyan e continuo fazendo
isso pelos próximos cinco minutos e a constatação de que o amo vem tão
certa quanto a chegada da neve. Ele só fica assim, me embalando em
silêncio sob o peso de uma promessa que sabe que não tem controle.
Quando entramos no carro e ele pergunta: “na sua casa ou na minha?” e
respondo que tanto faz, não me surpreendo ao vê-lo fazer o trajeto até o sul,
tampouco quando ele desliza sob minhas cobertas junto comigo.
Quando Demyan pega no sono, enrolado no meu corpo nu, e fico
acordada com insônia, percebo que está na hora de conversar sobre isso
com alguém. Eu teria que me abrir sobre ele com Faina para não explodir.
É um dia estranho, a sensação de que alguma coisa dará errado está
alojada em meu peito, me lembrando que nunca erro. Talvez sejam os
trovões fortes, a associação que faço com coisas ruins quando dias
tempestuosos chegam. Ou talvez essa sensação tenha amanhecido comigo
hoje, segunda-feira, porque tive um final de semana incrível demais para
acreditar que os próximos seriam tão bons quanto ele.
É isso, coisas boas nunca perduram na minha vida ou na vida de
qualquer um de Temnyy Gorod, porque somos amaldiçoados.
É final do dia, minhas tarefas estão todas realizadas, Sergey deve
entrar pela porta atrás de mim há qualquer momento. Ele sabia que eu havia
dormido na mansão na noite passada porque não precisou me trazer para o
trabalho hoje, uma vez que eu já estava aqui. Eu não me importo que eles
saibam ou que comentem, porque não conheci Demyan agora, isso não é
um caso de patrão e funcionária, vai além disso.
De qualquer forma, tenho me sentido tão feliz que duvido que
gastaria minhas energias com fofoca.
— Ah, preciso pegar algumas coisas no quarto de Demyan —
murmuro para Sergey, me sentindo um pouco estranha por mencionar isso a
ele.
— Claro, espero aqui. — Com as mãos para trás e assoviando, ele
marcha até a porta, despreocupado.
No segundo andar, um som familiar deixa as escadas, estou com a
mão na maçaneta do quarto de Demyan quando inclino a cabeça na direção
da música. É o som da caixinha de música, cantarolada na voz de uma
mulher. Em um impulso, mesmo depois de abrir a porta, eu ando em
direção às escadas em vez de entrar no quarto. Uma janela imensa igual as
outras instaladas em cada curva da escada revela os dois túmulos na parte
de trás da casa.
Quando um raio ilumina o céu, clareando as paredes escuras da
escadaria, eu volto a subir, ciente de que estou fazendo algo errado e
proibido, mas impulsionada pela sede de descobrir todo e qualquer segredo
que envolve esse lugar. Os últimos degraus são iluminados, a luz forte e
branca faz formas claras no chão, denunciando um andar altamente claro.
Não vejo ninguém, mas ouço sons de saltos e uma porta bater. É a
forma de andar de Irina, revelando que o que quer que seja sua nova função,
é aqui em cima. Eu sigo a voz cantante, a música sinistra da caixinha de
música à corda do quarto de Anna me guiando como magia, cada passo
pelo corredor claro me fazendo chegar mais perto.
De repente, estou diante de um quarto todo branco no qual uma
espécie de janela é instalada para que quem esteja do lado de fora observe o
que se passa lá dentro. As paredes são revestidas de uma espécie de
almofada, criando um ambiente opressivo que evoca uma sensação de
isolamento, esterilidade e pura frieza. A iluminação dentro do quarto branco
é baixa, suave e vem de pequenas luminárias embutidas no teto. A única
mobília presente é uma cama, uma mesa de cabeceira com um livro e uma
televisão suspensa, presa com inclinação quase no teto.
Estou bisbilhotando quando uma mulher aparece do outro lado do
vidro, ela bate com força nele, me fazendo pular para trás. É uma mulher de
meia-idade, cabelos longos e despenteados, a pele pálida e olheiras fortes
que contornam olhos castanhos que reconheço em Demyan e na fotografia
de Anna. O olhar dela é vidrado, mas são seus lábios se movendo com a
canção que faz meu sangue congelar.
É a canção da caixinha.
A voz que ouvi no andar de baixo.
Os gritos que ouvi.
Uma mulher vive aqui em cima.
A mãe de Demyan.
Por que ela está presa?
Sem que eu perceba, estou cantando a música da caixinha junto com
ela, os olhos da mulher se arregalam antes de se encherem de lágrimas,
como se estivesse grata por eu fazer isso, por estar aqui, por ouvi-la, por
reconhecer a melodia.
— Como conhece essa música? — É a voz de Demyan.
— Por que ela tá presa? — pergunto.
— Ela... — Ele se aproxima, pânico brilhando nos olhos. — Onde
ouviu essa música?
— No quarto de Anna, na caixinha à corda...
Encaro uma mulher atravessar outra porta, eu a reconheço pelas
roupas brancas, é a mulher que vi deixar a mansão no meio daquela noite
chuvosa. A dona do carro que vejo todos os dias estacionado do lado de
fora.
— Sinto muito, eu precisei ir ao banheiro.
— Onde está Irina? — ele pergunta.
A mulher dá um olhar estranho na direção de outra porta, eu vejo o
rosto de Demyan ser tomado por um pânico ainda maior.
— Deixe-nos a sós por um momento, por favor.
Ela assente e atravessa o corredor em uma corridinha antes de
chegar às escadas.
Eu sinto um cheiro familiar e olho em volta, mas há apenas portas e
portas e o quarto branco gritando para mim. A mãe dele não para de cantar.
— Que caixinha à corda?
— Sobre a mesa.
A mãe dele aumenta o tom, o canto se tornando mais desesperado,
alto, as duas mãos espalmadas no vidro.
— Ela está quebrada.
Meus olhos estão cheios de lágrimas e elas caem sobre minhas
bochechas. Eu cantarolo para que Demyan ouça e quando ele dá um passo
para o lado, a xícara que ele tem na mão balança, o líquido vazando pela
borda.
— Não está, eu a ouço, ouço essa melodia desde a primeira noite em
que dormi nesse lugar, ouço ela através dos corredores, do quarto de
hóspedes, o tempo inteiro.
— Eu mesmo a quebrei em um acesso de raiva. Na noite em que
destruí o banheiro, eu quebrei o espelho, quebrei a caixinha, porque cada
vez que dava corda, eu me lembrava de Anna diante da penteadeira,
sorrindo para mim através do espelho. Eu a destruí, Annika.
— Eu a ouço — digo em um sussurro.
A mãe de Demyan para de cantar, então ela sorri, o olhar vidrado.
— Eu a ouço — ela repete minha fala. — Eu a ouço.
Ela começa a bater na própria cabeça.
Quando Demyan avança em direção ao quarto branco, o chá em sua
mão balança e o líquido desliza sobre seus dedos, as folhas que boiam sobre
a superfície chacoalham junto e, pela primeira vez, reconheço o cheiro
familiar, o mesmo aroma que senti no dia em que a xícara caiu na cozinha,
como se Anna quisesse me dizer algo.
E ela queria.
Lavanda.
Lentamente, algumas peças se encaixam em minha mente.
Demyan abre a porta do quarto, ele envolve os braços da mãe e
começa uma estratégia para acalmá-la.
Não.
Não.
Não.
Cubro os lábios.
Lavanda.
Uma porta atrás de mim se abre, Irina aparece no meu campo de
visão, mas é o que está atrás dela que faz o sangue em minhas veias
congelar e meu coração partir. Há uma espécie de estufa doméstica de
lavanda que ocupa um quarto inteiro. Fileiras de vasos alinhados
comportando a planta já crescida, climatização apropriada, sacos de
fertilizantes, uma parede com ferramentas de poda e cuidados. Eu estou em
choque, observando cada detalhe, quando Irina fecha a porta, o sopro que
ela faz ao se fechar traz o cheiro forte da planta até mim.
Junto as peças e quando olho para Demyan, a visão está turva por
causa das lágrimas, ele sabe que não há mais como me fazer de idiota. Eu
acabei de descobrir.
Demyan Petrovich é meu fodido stalker.
Encaro a mãe dele, ela é medicada por Irina, uma espécie de
sedativo, os cabelos castanhos caem como cascata sobre os braços de
Demyan quando ele a carrega até a cama. Eu aproveito esse momento para
correr. Corro tão rápido quanto posso através das escadas, chamando por
Sergey. Eu não o vejo em nenhum lugar e quando passo pela sala, meus
olhos encontram quadro diante do sofá. A mulher ruiva. Os cabelos caídos
por seus ombros desnudos e costas.
Sou eu.
É ele.
Não há outra pessoa.
Eu havia me apaixonado por Demyan duas vezes enquanto ele se
divertia brincando com minha mente.
Atravesso a porta, o carro de Sergey está estacionado, mas não o
vejo do lado de fora, então tudo o que faço é correr sob o céu escuro, os
relâmpagos cessaram, mas as nuvens pesadas denunciam a chuva que está
por vir. Eu uso meu código para abrir os portões e corro pelo norte até a
saída enquanto torço para que Demyan não venha atrás de mim e quando
estou diante da Kupol, ciente de que meu único caminho é atravessar a
floresta se não quiser que ele me ache pela estrada, eu ouço seu grito, a voz
poderosa reverbera sobre o silêncio que só é quebrado pelo som da minha
respiração ofegante.
Eu não olho para trás quando mergulho na floresta.
Pingos grossos começam a cair sobre mim enquanto corro, e a cada
passo em direção à escuridão, minha mente fervilha. Berstuk com o stalker
na noite em que o conheci. Pensei que ele fosse algum conhecido de
Roman, pensei que ele fosse só alguém no sul que conhecia os dois, assim
como eu conhecia, mas não, Demyan sempre soube quem eu era. Quando
ele perguntou meu nome, quando me fez tirar meus documentos da bolsa
para checar a identidade que sabia que eu estava mentindo. Ele sempre
soube e por isso Demyan não saiu das sombras, porque eu o reconheceria.
— Deixe o motorista te levar, Annika. Não seja orgulhosa.
— Orgulho? — eu grito, as costas pressionadas no tronco de um
pinheiro. — Você brincou comigo como um sociopata.
Ouço os passos dele se aproximando, então, volto a correr.
Por isso o grupo de traficantes não se preocupou em se livrar de
quem quer que estivesse invadindo seu território para brincar comigo,
porque eles sempre souberam que era Demyan, porque Demyan e Roman
conheciam cada um deles. Porque Demyan era o sul e eles respeitavam isso.
— Me deixe em paz! — eu vocifero.
Mas seus passos não param, eles são mais cautelosos do que os
meus, está tentando me encontrar na escuridão.
— Não vou deixar você atravessar a Kupol sozinha, porra, você não
sabe que tipo de merda acontece aqui dentro.
— Nada pior do que já não tenha feito comigo.
— Acredita mesmo nisso?
Eu não respondo.
Em vez disso, continuo correndo e pensando.
“Não há mais ninguém para rir”.
Meu stalker havia perdido todos e ele sempre falou sobre isso.
Os sinais estavam bem aqui, diante de mim, bastava eu enxergá-los.
Demyan havia perdido Roman, seu pai e irmã e de alguma forma, a mente
de sua mãe. Como eu não vi? Como pude ignorar essas informações?
Droga, sim, eu lembro do meu stalker todo machucado, a noite em
que ele me procurou, todas as vezes em que senti o cheiro metálico nele,
eram as lutas que Demyan estava inserido, era quando ele deixava o leste e
procurava por mim por algum fodido motivo.
Deixo um soluço escapar.
Não...
— Só... Volte comigo, por favor, não precisa dizer nada, não precisa
nem olhar pra mim.
Meus ombros balançam com a força do choro, eu continuo correndo
sem saber para que direção estou indo. Lágrimas embaçam minha visão e a
escuridão noturna torna tudo ainda mais difícil. Sinto meus pulmões
queimarem, o frio se instalar em meus ossos, uma pontada forte na testa, a
sensação de ter meu crânio perfurado por causa do ar gelado que respiro,
causando a dor aguda.
Então, eu me lembro da carona que peguei com Demyan quando ele
me encontrou na chuva depois de ir ao mercado, o cheiro de lavanda dentro
do seu carro. Eu pensei que eram as velas e artigos que comprei com a
fragrância, mas era Demyan o tempo todo, com certeza.
— Eu pensei em te contar muitas vezes... — ele diz, ofegante. —
Mas eu não sabia como fazer isso sem você me odiar ainda mais.
— Tem razão, Demyan, eu odeio você.
E ele estava sempre um passo à frente, porque como Demyan, sendo
meu chefe e estando nas indústrias, me cercando o tempo todo no início, ele
ouvia coisas. Sabia que era meu aniversário, sabia que eu estaria no
cemitério visitando meu pai naquele dia, ele sabia porque contei à Faina no
estoque. Demyan apenas ouviu. Eu o chamei de lixo naquela noite e depois,
ele foi na minha casa e me fodeu sobre a mesa da cozinha como um sádico
filha da puta enquanto inflava seu ego e ria de mim por dentro.
Eu paro de andar, cada pensamento e constatação me trazendo mais
dor.
Tudo mentira.
Isso o que vivemos. Como stalker, como Demyan.
Eu havia me apaixonado por um homem de duas personalidades e
nenhuma delas era decente.
Stukach.
Achei que meu stalker havia cavado meu passado e descoberto
meus podres, mas a verdade é que Demyan sabia que eu havia delatado as
indústrias. Ele sempre soube, como eu pude ser tão burra?
Deus...
Quantas coisas eu havia deixado passar?
Quantas outras eu não havia visto?
Tropeço em uma raiz e o impacto no chão é forte o bastante para
que eu torça um punho, eu bato a cabeça em uma árvore e deslizo sobre a
vegetação íngreme e escorregadia até estar na superfície inferior do declive,
coberta de lama, chuva e mentiras.
— Merda, sardenta... — Sinto as mãos de Demyan contra meu
rosto, a silhueta dele nas sombras.
É Demyan, no escuro absoluto, é meu stalker, há uma diferença e eu
perceberia se Demyan tivesse agido comigo nas sombras.
Mas ele sabia e por isso nunca o fez. Sempre havia uma luz acesa.
Eu achava que era porque ele queria ser honesto e transparente comigo, mas
não, é porque ele queria ser outra pessoa.
Tento me debater e gritar, mas o canto de um corvo me faz silenciar,
ele rouba a minha voz e eu apago sob o maior choque que eu poderia levar.
Eu vejo o rosto pálido de Anna atrás de Demyan, ela parece tão
infeliz quanto seu irmão me fez sentir.
Dirijo até a fronteira com o centro, leste e o norte, onde fica o bar ao
qual Roman e eu sempre íamos no passado. O bar que quase precisou
fechar por estar parcialmente localizado no solo contaminado, mas que
depois de um acordo, conseguiu permanecer aberto. O trato era fechar os
fundos para o leste e de mantê-lo aberto para o centro, dessa maneira, todo
e qualquer cliente não teria contato com a contaminação. Bem, esse era o
acordo, mas Temnyy Gorod não é conhecida por sua legalidade em
qualquer coisa.
Então, havia uma porta nos fundos, uma porta por onde o pior tipo
de gente entrava, o tipo que frequentava o poço. Tipo eu.
Estou mancando quando entro no bar, o capuz puxado para cima,
tentando esconder minha identidade e não chamar atenção, mas todas as
cabeças viram para mim, porque o sangue em meu rosto e mãos não é uma
coisa que se pode ignorar, nem mesmo aqui.
— Então, o rei do norte continua se metendo nos mesmos problemas
de quando só era um príncipe?
É Boris, o dono desse lugar, um frequentador do Poço e uma pessoa
decente em uma balança que mede os crimes dos homens que já pisaram
naquele lugar.
Ele sempre me chamou de príncipe do norte, a cidade inteira na
verdade, apesar de eu nunca ter gostado, mas me chamar de rei agora é só
sua forma de saber sobre o fato de eu estar assumindo meu lugar nas
indústrias. Boris é um cara velho que mal sai desse lugar, mas que como
qualquer outro cara que possui um bar, sabe de tudo e qualquer coisa fora
daqui.
— Não, quando eu era só um príncipe, meus problemas eram muito
menores.
Agora eu tenho uma irmã que havia tirado a própria vida, uma mãe
presa em sua mente, uma garota que me odiava, uma luta final que poderia
me matar, um amigo desaparecido e uma ideia insana e suicida que envolvia
eu arruinando a vida de um monte de homens cruéis e sanguinários.
— O que quer beber? O mesmo de sempre?
Havia um tempo desde a última vez, ainda assim, ele sabia que eu
adorava uma bebida barata, me conhecia bem o bastante para pegá-la antes
que eu respondesse.
Acendo um cigarro.
— Isso é um estabelecimento fechado — ele diz, empurrando o
copo em minha direção.
— Sobre um solo contaminado.
Viro todo o conteúdo de uma única vez antes de pedir mais.
— Nada do Roman? — pergunta.
Encaro a banqueta vazia ao meu lado, o lugar que ele costumava
preencher. Estou olhando para ela ainda quando Boris coloca um copo
diante dela, eu pego a garrafa de sua mão e enquanto o cigarro queima em
minha boca, encho nossos copos, o líquido barato respingando na madeira
da bancada.
— Ele se foi — murmuro, sem dar qualquer indicação sobre isso.
— Acha que ele tá morto? A morte nunca teria o alcançado, ele tem
mais vidas do que seu maldito gato.
Sopro a fumaça em direção ao teto, torcendo para que ele esteja
certo.
— Não importa quantas vidas ele tenha, Roman tá morto pra mim.
O olhar de Boris cai sobre o copo ao meu lado, a banqueta vazia, o
espaço que não permito que ninguém preencha porque é dele.
— Ele parece mais vivo do que você agora.
Bem, talvez sim, porque eu havia assinado minha sentença de morte,
de qualquer forma.
Empurro meu copo, Boris o enche pela terceira vez.
— Se está aqui essa noite, significa que semana que vem será um
assassino, será como qualquer outro daquele lugar, não será mais o rei do
norte, será o rei do Poço.
Rei do Poço.
Não.
Só há uma pessoa capaz de carregar esse título e não sou eu.
Eu não quero ser o rei de porra nenhuma, do norte, sul ou leste.
Não quero títulos, quero ver tudo ruir e quero fazer isso ao lado de
Roman enquanto mijamos sobre as cinzas do leste.
— Ou talvez eu seja só mais um cadáver desovado em Ozero.
Boris enche meu copo pela quarta vez.
— Então, tome seu último drink no meu bar antes de se juntar às
almas perdidas que vivem na Kupol.
Eu faço isso e quando Boris se afasta, por um segundo, apenas um,
encaro o lugar vazio ao meu lado.
— Me dê um sinal de que está vivo, seu filho da puta ingrato do
caralho — murmuro para a presença invisível do meu melhor amigo.
Então, meu celular vibra, capturando um sinal inconsistente que
deixa a floresta e que alcança esse lugar, muito raramente.
É uma mensagem de Dimitri.
A porra do sinal que eu precisava.
Não, é mais que isso.
Puta merda.
Tudo mudou.
— Faina. — Eu puxo minha amiga para um abraço.
— Eu queria morar mais perto de você, queria que estivéssemos há
poucos passos de distância.
— E estamos, a diferença é que os poucos passos que te trazem do
sul ao Gigante Laranja poderiam te matar.
Eu não deveria rir disso.
— Um dia. Um dia, a internet vai chegar nessa cidade e vamos
passar todo o nosso tempo digitando.
— Vamos passar todo o nosso tempo digitando um dia se
conseguirmos algum emprego nessa área.
Acerto um tapa em seu ombro, ela me puxa para dentro do prédio
em seguida.
— Mal-humorada — resmungo. — O que há com você hoje?
Ela dá de ombros, mas não consigo ignorar a forma como olha para
as escadas.
— Nada, é só... — suspira. — O que te traz aqui? Achei que me
procuraria só depois da minha consulta. Não precisa se preocupar comigo,
Nika, eu tô bem.
— Eu vim por mim. Só precisava conversar um pouco pra não
surtar.
Dois dias, havia se passado dois dias desde que Demyan havia
deixado seus papéis comigo e que havia voltado de madrugada para buscá-
los, assinados. Eu estava dormindo e ele havia respeitado isso. A lavanda
sobre a minha cama era só uma parte de seu jogo mental, um jogo que eu
havia jogado por muito tempo e que havia gostado de cada segundo. Ela
também era a constatação de que ele ainda está vivo. Ainda.
— Conversou com seu príncipe?
— Com meu stalker? — resmungo.
Ela dá de ombros.
— Você sempre preferiu os vilões de qualquer forma, quem se
importa?
— Eu me importo, ele brincou comigo, e sim, nós conversamos, ele
jogou toda a sua merda sobre mim.
— E você tá absorvendo ela.
— Eu tô.
— Qual é o problema então?
O Poço, a luta, um testamento.
Uma possibilidade de morte, saudade, responsabilidades.
Sua mãe, Berstuk, encontrar Roman.
E de tudo isso, o que mais me assusta é a possibilidade de viver em
um mundo onde ele não exista mais. Eu podia lidar com meu stalker
parando de vir, me deixando, mas eu não podia lidar com Demyan partindo.
— Não posso contar...
Ela solta um suspiro, o frio tornando sua pele do rosto mais pálida, a
ponta do nariz rosada.
— Segredos, eu já tenho demais deles em meu prato.
Ela olha para as escadas mais uma vez.
— O que há de errado? — pergunto.
Faina solta um suspiro pesado.
— Nada, é só... Dimitri, Efim e eu decidimos que vamos ficar
juntos.
Puxo minha amiga em um abraço apertado.
— Uau. Apenas... Uau, Faina.
— Estamos felizes.
— Então, qual é o problema? — pergunto. — Por favor, só... Fale
um pouco, me alimente de informações, isso me mantém lúcida.
Nós sentamos no degrau sujo do prédio, porque ela nunca me
convida para entrar, eu não questiono isso, viver em um apartamento
pequeno com pessoas demais e animais que nem deveria ter adotado por
causa da higiene e falta de espaço acaba limitando-a. Nós não teríamos
privacidade lá, Faina provavelmente nunca tem.
— As pessoas são um problema. Seus julgamentos. A fita que usam
pra sair por aí medindo todas as decisões que tomamos como se todas elas
precisassem de um grande motivo por trás. Às vezes, a gente só quer fazer
algo porque é o que nos faz feliz naquele momento, isso não significa que
precise ser pra sempre.
— Falou sobre Efim ou Dimitri pra sua mãe?
Ela balança a cabeça.
— Falei. — E então ela ri, puro pânico em cada gargalhada que vem
a seguir, até que elas se tornam um choro forte.
— Jesus, Faina. Isso não é algo que se joga sobre qualquer um.
— Você teria contado ao seu pai — ela resmunga.
— Sim, e ele teria cagado um tijolo.
— E depois ele teria batido em suas costas e dito: “se é isso que te
faz feliz...”.
Bem, sim, isso é totalmente a cara do meu pai.
— Dois caras, hein? — murmuro. — Qual o nosso problema em nos
contentar apenas com um?
— Não há uma forma de fundi-los, Nika, no fim das contas, meu
caso é pior do que o seu, porque amo cada peculiaridade que os diferencia.
Eu odiaria ter que escolher apenas um. Eu nunca faria isso.
Seguro sua mão.
— Sim, e se há certeza sobre o que sentem por você, então, não
deveria se envergonhar de ficar com os dois.
Ela torce o nariz.
— Não é como se pudéssemos sair por aí os três de mãos dadas.
Mas é o que me deixa feliz. No fim, Viktor não se importou nem um pouco,
talvez os motivos dele querer casar comigo fossem os mesmos da minha
mãe.
Dou de ombros.
— Talvez. Vão arrumar um jeito de fazer isso funcionar, eu aposto
que sim.
Ela deixa um suspiro pesado escapar.
— É...
— E se nada der certo e as coisas estiverem difíceis aqui, na sua
casa, você ainda tem a mim. Minhas portas estarão sempre abertas para
você e esse bebê.
Ela apoia a cabeça em meu ombro.
— Por que isso soa como uma despedida? — ela diz.
— Não soa. Não é o fim de nada, isso é o começo de algo lindo que
irá durar pelo tempo em que vocês estiverem felizes.
— E Demyan? — ela pergunta.
— O que tem ele?
— Ele te deixou triste quando você descobriu a verdade... Mas antes
disso, como seu stalker ou como ele mesmo, ele te fez feliz?
Encaro minha amiga.
Honestidade.
— Como eu nunca pensei que alguém nesse fim de mundo poderia
se sentir — murmuro.
Ela seca uma lágrima que eu nem havia percebido escapar.
— E então? Esse não é o objetivo, afinal?
Nós ficamos assim, em silêncio, por bastante tempo, porque, no fim
das contas, apesar da raiva, do orgulho ou o que quer que seja que nos
impede, todo mundo sabe o que realmente quer.
Um pouco mais tarde, quando finalmente dá minha hora, eu me
levanto e me despeço de Faina.
— Não fique muito tempo sem me visitar — murmuro, no meio de
um abraço.
— Não vou. Te mantenho atualizada sobre minha consulta. Mas, é
isso por enquanto, o primeiro passo é procurar um lugar, Dimitri vai alugar
o apartamento, mas pode levar bastante tempo.
— Ou pode ser muito rápido — enfatizo. — Ser otimista é
necessário para se manter forte.
Ela ri.
— Você falando sobre ser otimista, cale a boca, Nika. — E com um
empurrão, eu estou do lado de fora do prédio.
Ela paira no batente, um sorriso enorme.
— Vou chamar Dimitri pra te levar, ele tá no apartamento.
Berstuk passa por mim, ele desfila através da calçada coberta de
neve, o rabo angulado de pé, cheio de orgulho e mau-humor, me fazendo
lembrar daquela noite, de quando presenciei Demyan tirar a vida de um
homem, de um homem que me estupraria se ele não o tivesse matado, de
um homem que havia feito isso com outra mulher. Eu me abaixo e estico o
braço em sua direção, ele para, inclina a cabeça minimamente, então, fareja.
É como se ele soubesse quem sou.
— Eu posso fazer isso.
Berstuk ergue a cabeça, eu escorrego e caio de joelhos, Faina segura
a porta para que ele passe. Mancando, Demyan caminha até mim, um braço
em frente à barriga, a mão tocando a costela, há hematomas em seu rosto,
perto da boca também, a pele branca cheia de marcas causadas pelas
escolhas ruins que ele fez em função de um objetivo. Roman. Tudo gira em
torno de Roman. E se ele estivesse morto? Eu não sei se ele aguentaria isso,
não da forma como parece cansado.
Demyan estende o braço, encaro sua mão.
— Não, tudo bem, Dimitri pode fazer isso.
Ele parece entender o recado.
—Vou chamá-lo — Faina diz, fechando a porta, praticamente me
jogando para Demyan.
Toco sua mão quente, mesmo com todo o frio. Ele me puxa, apesar
dos ferimentos, faz isso em um movimento único e preciso. Eu dou um
pulinho quando fico de pé, mas ele não solta a minha mão, em vez disso, o
toque apenas continua lá, firme, entre nós dois e quando o polegar de
Demyan se move, eu sinto lágrimas de saudade queimarem meus olhos.
Ele está aqui e está vivo, mas isso significa que havia vencido a luta
passada e que estava na final. Na final que poderia fazer com que ele não
estivesse mais aqui, nem vivo.
— Senti sua falta, sardenta.
Eu puxo minha mão.
— O que tá fazendo no prédio de Faina?
— Ele não é só de Faina, há um monte de outros apartamentos.
— Sim, e nenhum deles é de Roman e portanto, não está aqui pelo
gato.
Que aliás, havia desaparecido.
— Vim por Dimitri, ele está trabalhando comigo em algo.
— Ah... — Dou um passo para trás. — Bem, eu... — Procuro seu
carro, ele está estacionado perto da esquina, se destacando em meio a
poucos veículos, porque nenhum outro era tão chamativo e caro.
— Obrigada por assinar os papéis.
Dou a ele um olhar severo. Os papéis que passam todos os seus bens
para mim caso ele morra, os papéis que assinei por sua mãe e porque uma
parte minha nunca poderia abandoná-lo, mesmo depois de tudo.
— Ainda não perdoei você — murmuro, sem conseguir olhar para
ele.
— Eu sei...
O passo que Demyan dá na minha direção acompanha um gemido
de dor.
— Como vai conseguir ganhar qualquer luta dessa forma? — digo,
cheia de raiva. — Você mal consegue caminhar. É como andar por livre e
espontânea vontade em direção à morte. Olha só pra você, tá cansado,
Demyan... Tá exausto... — Minha voz sai estrangulada, o medo de perdê-lo
em alguns dias faz um desespero cruel e instável crescer em mim.
Ele dá um sorriso, um sorriso contornado por hematomas, um
sorriso bonito e cheio de segredos. Um sorriso grande demais para alguém
caminhando para a morte.
— Talvez, quando eu estiver morto, você consiga me amar apesar
do que fiz. — Ele toca meu queixo, o polegar correndo sobre o contorno da
minha bochecha.
Encaro a entrada escura e silenciosa, uma pergunta dolorosa
pairando sobre mim de forma cruel, eu não quero ter que fazê-la, mas há
uma necessidade urgente nela.
— Pergunte, sardenta.
Forço os dentes, lágrimas começam a cair, eu enfio a mão nos
bolsos do sobretudo, encarando o balanço no qual o encontrei quase sem
vida uma vez. Mas eu não desvio o olhar para Demyan quando a pergunta
apenas sai:
— Devo enterrá-lo junto da sua irmã?
Eu ainda não olho para Demyan e eu não faço isso porque
desmoronaria aqui mesmo, em uma calçada fria do Gigante Laranja.
— Pensa mesmo em tudo, por isso é a pessoa certa pra assumir meu
lugar.
Eu finalmente o encaro, a cabeça erguida para que eu não pareça tão
fraca e instável.
— Responda, Demyan.
Ele encara os pés, as mãos enfiadas nos bolsos também e pela
primeira vez, é como se ele estivesse realmente encarando a morte de
frente. Eu vejo um brilho de medo lá, nos olhos castanhos e bonitos dele.
— Se eu morrer no Poço, Nika, duvido que meu corpo seja entregue
de volta. Eles provavelmente me desovarão.
— O quê? — grito, começando a andar de um lado a outro. —
Quem?
— Não se envolva nisso.
Eu dou uma risada cheia de sarcasmo.
— Não me envolver? Eu estou totalmente afundada nisso.
— Ozero — ele diz baixinho.
— O lago na Kupol? — paro.
— Ele é uma espécie de lugar onde corpos, armas e qualquer prova
de crime é descartado.
— Então descubra a hora que isso será feito.
— Não — ele diz, cheio de determinação. —Não, claro que não.
— Posso não ter perdoado o que fez pra mim, mas não vou
simplesmente deixar seu corpo afundar em um lago junto de um monte de
outros corpos. Quem eram eles? Aposto que criminosos das piores espécies.
Não, não, Demyan...
— Sardenta... — Ele segura meu rosto. — Eu sabia disso e fiz essa
escolha.
— Sua alma nunca vai descansar... — Deixo um soluço escapar. —
Meu Deus, Demyan, eu tô com tanta raiva de você agora...
Por me fazer passar por isso.
Por me fazer apaixonar por ele em duas versões diferentes.
Por confiar nele e agora, por ter que fazer planos sobre sua morte.
Ele me envolve em um abraço, meus braços caídos para baixo, meu
rosto lavado por lágrimas, o frio me fazendo tremer junto do nervosismo
que sinto ao pensar em tudo isso e é tão bom e reconfortante quanto não
deveria.
— Vou fazer isso de qualquer forma, então, é melhor que coopere
comigo.
A porta se abre, eu me afasto de Demyan e seco meu rosto antes de
encarar Dimitri, que aponta para o carro e avisa que irá esperar lá.
— Porra, sardenta... — Ele esfrega o rosto. — Você realmente
nunca facilita.
— Essa sou eu. — Recolho todas as minhas forças para me afastar
dele.
Dou um passo para longe, mas ele só fica parado, me encarando ir.
— A gente se vê.
A gente se vê.
Meu estômago se contorce.
— Se você morrer... — Mais lágrimas correm sobre minha
bochecha. — Vou deixar lavandas sobre seu túmulo.
Deus.
Eu odeio que ame tanto o sorriso quebrado que ele dá para mim.
— Se eu morrer, sardenta... — A cabeça dele tomba para o lado. —
Vou assombrar qualquer maldito cara que se aproximar de você.
Não havia felicidade alguma em ser alguém orgulhosa, dias se
passaram desde que vi Demyan pela última vez e saudade havia se tornado
um turbilhão de sentimentos conflitantes que me consumiam lentamente. O
cheiro da lavanda impregnado em cada tecido das minhas cobertas e
cortinas era só mais um lembrete da dor, mas não era só o aroma da planta
que me trazia lembranças, elas estavam por todas as partes, impregnadas em
minha pele, sob ela, em meu sistema e em minha mente.
O brilho de medo que identifiquei em seu olhar naquela noite no
Gigante Laranja, na última vez que nos vimos, não deixava minha memória
porque a ferida aberta das suas mentiras e jogos perversos ainda doía, mas
ela doía menos, muito menos, do que o pensamento de perdê-lo essa noite,
na luta final.
Ele havia me envolvido em suas artimanhas, brincado com minha
mente e coração e me deixado aqui, presa nesse labirinto de memórias que
eu queria que fossem mentirosas, mas que, no fundo, eu sabia que haviam
sido reais. Ele havia brincado comigo e seu castigo havia sido me amar.
Talvez ele tivesse começado tudo isso por outro motivo, mas isso, o que
Demyan e eu temos agora, mesmo que não dure, mesmo que não passe
dessa noite, vai estar em mim para sempre.
Trago a garrafa de vinho tinto até a boca, bebendo goles generosos
do líquido enquanto lágrimas escorrem pelas minhas bochechas. Não, eu
não quero que Demyan Petrovich seja só uma fodida lembrança, eu quero
que ele seja meu futuro. Quero estar com ele no sul, no norte ou em
qualquer lugar que ele me convide para ir. Isso ainda me faz mal, o
pensamento de perdoar o que ele fez, mas eu não sei o quanto isso tem a ver
com mágoa ou orgulho.
Eu só quero poder descobrir. Quero poder dizer a ele que sim, eu o
perdoo, quero dar um último abraço em Demyan, porque realmente pode
ser o último. Eu quero qualquer coisa, qualquer migalha que ele possa me
dar antes de subir em um ringue, o problema é que ele já deve estar no leste
agora, caminhando para uma morte dolorosa, enquanto eu ficarei aqui,
esperando qualquer sinal, qualquer notícia, alguma novidade. Sem nenhum
plano.
Eu iria até a Kupol pela manhã? Seu corpo já estaria no fundo? Eu
deveria ir agora e esperar alguma movimentação só para que pudesse pular
no lago e retirar seu corpo de lá enquanto homens perigosos ainda estão por
perto? Eu morreria de frio? Eu deveria ir até Dimitri para pedir ajuda?
Deveria envolver um homem que logo seria pai em algo como isso? Como
o leste?
Dou mais um gole no vinho, antes de retirar minhas roupas e encarar
a banheira cheia, a água quente esperando por mim. Eu nunca tomo banho
nela, não faço isso porque nunca tenho tempo e porque nem pensei que o
sistema ainda pudesse estar funcionando. Mas está e estou entrando nela,
sob a iluminação fraca e tremeluzente da vela de lavanda, quando lembro de
Anna, a imagem da garota morta em minha mente, a água carmesim, as
marcas de mãos no porcelanato branco, na parede, o retrato de um dia
doloroso que nunca poderá ser esquecido.
A água escaldante abraça cada centímetro da minha pele fria, puxo
minha garrafa para dentro, trazendo-a contra meu peito, eu não prendo o
cabelo, em vez disso, metade dele mergulha quando fecho os olhos. Eu a
vejo, os pulsos cortados, o sangue ondulando de forma hipnotizante
enquanto o corpo sem vida espera que alguém o encontre lá. O olhar
vidrado, entregue à dor e aos demônios de sua mente e aos motivos que a
impulsionaram a isso.
O porcelanato branco e polido da banheira transbordando com uma
fina corrente de água e sangue que se espalha pelo chão, formando uma
poça sinistra e inquietante que alguém pisaria quando a encontrasse.
Formando as pegadas que presenciei de alguma forma.
Eu havia feito uma promessa para o fantasma de Anna e irei cumpri-
la.
Mas enquanto isso não acontece, é como se ela pudesse entrar em
minha mente o tempo todo, talvez seja apenas minha consciência me
lembrando que eu a havia abandonado, mas parecia algo mais. É mais fácil
para ela se manifestar em casa, quando todos os seus objetos pessoais estão
lá, espalhados por todos os lados, junto das recordações que eles trazem,
aqui, aqui ela é apenas uma lembrança de alguém que nunca irei conhecer
realmente, mas que gostaria muito.
Coloco a garrafa sobre a borda da banheira e deslizo para dentro da
água, deixando que ela me cubra por completo, esperando que tenha o
poder de varrer toda a angústia e dor para fora de mim, todo o medo que
sinto de perder Demyan essa noite. Embaixo da água, eu apenas abro os
olhos e encaro o teto ondulado, me perguntando o que Anna sentiu quando
a vida deixou seu corpo lentamente, quando o sangue jorrou para fora e se
misturou à água.
Será que ela havia sentido dor?
Será que ela havia mesmo sido tão egoísta e não havia pensado em
seu irmão gêmeo ou namorado? Em sua mãe?
Acima de mim, a sombra de uma silhueta se move, eu a reconheço
antes de meu corpo nu ser envolvido por braços que me puxam em sua
direção. Sou retirada da água, a pele exposta é atingida por um frio doloroso
e cruel, mas Demyan me aninha contra ele como um bebê, encolhida.
— Não, não, não... — A voz deixa sua garganta com uma
vulnerabilidade que nunca presenciei em Demyan e em ninguém mais. —
Não, por favor, sardenta, não....
A cabeça dele está enterrada em minha nuca quando ele desliza para
o chão, se sentando comigo em seu colo, aninhada nele, encharcando suas
roupas de moletom. Ele segura a parte de trás da minha cabeça e de onde
estou, vejo a garrafa de vinho virada, o líquido vermelho escorrendo pela
borda e chão.
Oh.
Meu Deus.
— Não... — ele soluça, não como Demyan, nem como meu stalker,
mas como o irmão de alguém que tirou a própria vida em uma banheira.
Como alguém que encontrou o corpo da irmã sem vida.
Como uma pessoa solitária perdendo a última pessoa que restou.
— Dem... — murmuro.
Ele para de me balançar, se permitindo acreditar que minha voz não
é uma alucinação.
— Nika... — Demyan segura minha cabeça com as duas mãos e
afasta para que possa olhar para mim.
O que eu vejo me choca, faz meu estômago se contorcer, minha
garganta fechar e lágrimas queimarem em meus olhos em tempo recorde.
Não é nenhum dos dois, nenhuma personalidade que já o vi usar, é
Demyan de verdade e ele está de volta no passado, no dia em que perdeu a
irmã.
Lágrimas grossas escapam de seus olhos castanhos e bonitos quando
ele pousa a testa na minha, ele não se importa em me deixar vê-lo de
verdade, sob todas as camadas que moldou ao longo dos anos, seja pelos
conflitos com o pai, pela morte da irmã, a mente da mãe ou o
desaparecimento do seu melhor amigo. Ele havia usado uma armadura todo
esse tempo e está sem ela agora.
— Eu tô aqui... — Seguro seu rosto, colocando meus lábios nos
dele.
Apesar de que estou viva, o choro de Demyan parece uma
despedida, eu duvido que ele esteja bem para essa luta hoje, duvido que ele
esteja focado nela. Ele parece quebrado agora, de todas as formas, como se
tivesse aceitado a morte.
— Eu pensei que estivesse morta. — Ele me mantém presa contra
ele, os braços em volta de mim, em um abraço tão apertado que faz minha
mente girar.
Ninguém nunca me amou dessa forma, ninguém nunca fez o amor
parecer um sentimento insano e desesperado, até agora.
— É só vinho — murmuro.
A cabeça dele está outra vez em meu ombro quando ele a joga para
trás, apoiando-a no azulejo frio, a respiração se tornando lentamente
estável, enquanto ele volta para si, o olhar fixo na parede à frente dele,
como se não pudesse nem sequer encarar o vinho no chão e na banheira.
Me movo para fora do seu colo antes de alcançar um roupão,
tremendo de frio, encarando Demyan todo molhado, o olhar vazio, a pele
pálida, o nariz avermelhado.
Tão lindo.
Tão quebrado.
Como ele venceria essa luta?
Como ele continuaria vivo?
— Por que você... — tenta perguntar, a frase sai junto de uma lufada
de ar, desconexa. — Não tava pensando em...
Me ajoelho diante de Demyan.
— Eu nunca faria isso.
Ele não parece certo sobre isso.
— Eu juro, por tudo, pelo meu pai, pela alma dele.
Demyan dobra os joelhos e deixa a cabeça cair entre eles, vestido
todo de preto, o capuz cobrindo sua cabeça, eu empurro o tecido para trás e
corro meus dedos por seus cabelos raspados. Sem cachos, sem os ondulados
que tanto amo. Ainda assim, ele está lindo, parece mais velho. Deslizo a
mão sobre a pele gélida do rosto, as bochechas úmidas pelo choro, ele fecha
os olhos, o rosto inclinando contra a palma da minha mão enquanto uma
expressão de prazer e alívio se contorce em seu rosto.
— Eu teria desistido de toda a merda se você... Eu teria só... Feito
isso também.
Levanto sua cabeça.
— Isso não é uma tragédia escrita por Shakespeare, Demyan.
— Não, ele não seria tão cruel — ele solta um suspiro, antes de
fazer menção a levantar.
— Você já... Já vai?
Ele para, uma mão no chão, a perna dobrada, pronto, apenas
esperando uma frase, uma palavra, um pedido, uma migalha.
— Ainda tenho um tempo, vou dar uma volta, rodar por aí e esperar.
— Logo os pássaros estarão loucos, é perigoso, deve começar em
breve.
Só. Peça. Annika.
Só assuma logo.
Só ame Demyan mais um pouco, porque pode ser a última vez dele
aqui. A última vez que olha para ele, a última vez que pode tocá-lo, abraçá-
lo e senti-lo.
Não seja orgulhosa.
Com o som de uma batida forte no vidro, meu corpo se encolhe com
o susto. Demyan, ao meu lado, também ergue o olhar em direção à janela
do banheiro. Uma ave preta está presa ali, sua cabeça pequena rachada e o
sangue escorre pelo vidro. O pássaro, agora sem vida, escorrega lentamente,
deixando um rastro vermelho em seu caminho.
— Começou — murmuro.
O olhar de Demyan encontra o meu.
— Bem-vinda à Noite Longa, stukach.
Quando ele se levanta, determinado a ir para a luta, preciso engolir o
nó em minha garganta, ele corre a mão sobre a pele do meu rosto,
lentamente, faz isso enquanto o olhar se demora em cada canto do meu
rosto, memorizando os detalhes, ciente de que pode ser a última vez.
Lágrimas escorrem sobre minhas bochechas quando inclino a cabeça,
relutante, ele puxa o capuz para cima, encarando o caminho que elas fazem.
Ele não diz nada, não se despede, não faz promessa alguma.
A mão encaixa na curva do meu pescoço e quando fecho os olhos,
eu sinto sua língua quente e úmida roubar minha lágrima.
Como meu fodido stalker, como alguém que eu também amei.
Me agarro no tecido grosso e molhado de suas roupas, enrolando
meus dedos nele.
Quando Demyan me solta, eu sinto o impacto cruel e doloroso de
ser deixada por ele, de não dizer o que sinto enquanto o vejo partir. Ele
deixa o banheiro, outro pássaro bate no vidro, na janela do quarto dessa vez,
ele faz uma pausa de dois segundos para olhar, mas eu não consigo desviar
os olhos dele, da forma como parece prestes a ruir, do rosto bonito que
talvez eu nunca mais veja.
Ele abaixa a cabeça quando atravessa a porta do quarto, e quando
um soluço escapa da minha garganta, eu me dou conta de que não adianta
nada continuar sendo alguém orgulhosa, que eu adoeceria por remorso se
Demyan morresse sem saber o que sinto.
— Espere! — eu grito da porta.
Ele para no meio da escada, engolido pela escuridão.
— Existe um canto em minha mente que ainda te odeia pelo o que
fez comigo — confesso.
— Eu sei. — Ele se vira.
— Mas... — Balanço a cabeça, quase inconformada por assumir isso
tão cedo. — Mas é só uma parte em um canto, porque você está em todo o
resto dela. Eu amo você com ela e com todo o meu corpo que, de alguma
forma, sempre soube que era você.
O olhar que Demyan me dá é inconformismo puro e absoluto.
— Só tá falando isso porque talvez eu morra essa noite — ele diz.
— Não estou inventando isso porque pode morrer, estou assumindo
porque é como me sinto e porque talvez seja minha única oportunidade.
Desço lentamente até onde ele está, quatro degraus abaixo de mim.
— Eu não mereço você, sardenta.
— Nem ia se despedir de mim de verdade? Me dar instruções sobre
sua mãe ou o gato?
— Você é boa descobrindo coisas sozinha. Mas não, eu deixei tudo
direcionado, há alguém esperando para lhe dar instruções.
— Caso você morra.
— Caso eu morra — ele repete.
Balanço a cabeça, cheia de ódio reprimido.
— Se você morrer, Demyan, eu juro, vou levar outro cara para a sua
casa e transar com ele sobre a sua cama.
Ele solta um rosnado, antes de me pegar no colo e subir as escadas
comigo. Não há motivação maior para mantê-lo vivo.
O som de um relâmpago ecoa pelo cômodo, iluminando todo o local
em uma sequência sinistra e assustadora de piscadas de luz.
— Vamos ver se qualquer um deles vai te foder como eu. —
Quando Demyan me joga na cama, não é nada delicado.
Meu roupão se abre, revelando a pele nua e arrepiada pelo frio.
As luzes não param de piscar e cada vez que o vejo na luz e na
escuridão, é quase uma mistura de suas duas identidades.
É Demyan.
É meu stalker.
Ele esmaga minha bochecha com a ponta dos dedos, puxando meu
rosto em sua direção.
— Não importa quão bem eles façam isso ou não, no fim das contas,
não vai ser você lá — provoco.
Isso o deixa mais determinado.
Eu vejo Demyan reagir pela primeira vez desde que chegou aqui. Eu
sempre soube que seu orgulho era seu ponto fraco, mas eu não sabia que ele
era mais ciumento que orgulhoso.
— Será eu sim. — Ele me beija, tão forte e duro que a sucção quase
machuca. — Quando fechar seus olhos, será eu sobre você e quando abri-
los, continuará sendo. — Ele se encaixa entre minhas pernas e quando se
enterra em mim, eu sinto fogo queimar em meu ventre. — Você estará na
minha casa, cercada por lembranças de uma época em que jamais poderá
esquecer. Estará tão entediada de qualquer outro que tudo o que fará é tentar
me enxergar em cada um.
Demyan se move, forte, duro, cada estocada fazendo minha cama
bater na parede. Relâmpagos continuam cortando o céu do outro lado da
janela enquanto os gritos dos pássaros tornam nossa despedida mais sinistra
e perturbadora. Não poderia ser diferente, de qualquer forma, porque ele
havia entrado em minha vida no dia em que matou um homem e agora
estava partindo na noite mais louca do ano, no início da Noite Longa.
— O quê? — A mão dele desliza sobre minha garganta.
— É meu stalker hoje?
— Foi com ele que tudo começou.
Seguro seu punho, lágrimas deixando meus olhos novamente, a cada
lembrança, não, ele não morreria. Ele será o mais rápido, o mais habilidoso
e o mais forte.
— Só tá falando tudo isso porque tá confiante, deve ter algum plano,
você é ciumento demais pra me deixar pra outro.
A luz está acesa quando um sorriso se forma nos lábios de Demyan,
o polegar dele desliza sobre meus lábios, ele desacelera, eu me curvo
quando a sensação de fazer isso lentamente se torna algo diferente, algo
incrivelmente delicioso.
— Eu sou — ele diz. — E se tudo der certo, sardenta, não precisará
deixar lavanda sobre meu túmulo ou jogá-las sobre as águas obscuras de
Ozero.
A testa de Demyan cola na minha, então, ele só continua fazendo
isso, se movendo devagar, enquanto minhas mãos deslizam sob o tecido do
moletom, por toda a extensão da pele de suas costas.
— Não lute. — Seguro seu rosto. — Apenas desista...
Demyan gira comigo e depois ele me faz sentar em seu colo. Nossas
testas se tocam, o que aconteceu no banheiro ainda paira sobre nós. Há um
peso aqui, instalado no ar, denso e quase palpável.
— Não é assim que funciona.
A luz apaga depois de um trovão, mas a chuva nunca vem, porque a
chegada da noite longa é algo cientificamente impossível de explicar. A
forma como os pássaros se comportam no último dia de outono, quando
eles percebem que os três meses seguintes serão de pura escuridão, é como
se os deixassem possuídos por fúria e uma loucura avassaladora.
Demyan me deita, minhas pernas ainda em torno dele, ele começa a
se mover depressa outra vez, o som dos pássaros lá fora é tão alto que a
cabeceira da cama contra a parede mal pode ser ouvida. Ele mantém a boca
colada em meu ouvido, um desespero cruel crescendo em nós dois. Nada
parece o bastante quando ele se move assim, quando parece perdido em
fúria e em mim.
Eu percebo o que ele está fazendo, está me fodendo como meu stalker
no escuro, mas sendo ele mesmo quando a luz volta. Ele não é nem um,
nem outro essa noite, é os dois.
— Seu cabelo ainda cheira à lavanda, stukach.
— A minha boceta também...
O grunhido que ele deixa escapar é de pura insanidade.
— Foda-se. — Ele estoca forte, vezes demais para que o atrito do
impacto seja o suficiente.
Eu me agarro a ele, às lembranças e à esperança.
A maior alta que foi Demyan em minha vida, torcendo para que a
queda não venha, porque eu não sobreviveria a ela.
Nós dois alcançamos o clímax juntos, agarrados um ao outro em um
aperto quase doloroso.
Seu relógio digital apita.
— Merda, eu preciso ir... — Ele me encara, mas parece relutante.
— Fique, não vá ao leste essa noite.
— Não é assim que funciona — ele repete e pousa a testa na minha,
ainda estamos ofegantes. — Eles me caçariam e me matariam se eu desse
pra trás. Tem muita grana envolvida.
— Dê a eles o dinheiro que conseguiriam com ela, eu aposto que
você o tem debaixo do seu colchão.
Demyan balança a cabeça, eu vejo algo em seu olhar, algo que ele
não quer contar.
— Não dá. Essa noite, sardenta. — A mão dele toca meu queixo. —
Tudo vai mudar.
— O que tá escondendo de mim?
Ele desvia o olhar.
— Nada.
— Quanto tempo ainda tem?
— Quinze minutos. Por quinze minutos, sou todo seu.
— Pela última vez?
— Eu espero realmente que não...
Me levanto, amarro o roupão e pego roupas do meu pai para ele. Eu
não preciso dizer nada, ele sabe de quem são, Demyan tira o tecido
molhado de seu corpo e os substitui pelo conjunto de moletom.
— Valeu.
Ele parece distante, uma barreira invisível se erguendo por causa do
medo de perder a luta.
— Volta pra mim, okay?
Seu olhar encontra o meu.
— Isso é um pedido sério ou é só você me dando um objetivo?
— Se outro homem sobre a sua cama não incentivou você, isso seria
o bastante?
— Você na minha vida, sardenta? Como minha rainha do norte?
Sabe que sim.
— Tá me prometendo um futuro?
Ele toca a lateral do meu rosto.
— Não sou uma boa pessoa, mesmo minha decisão mais bem-
intencionada é ruim, porque isso é tudo o que eu conheço. Mas quando
prometo algo, nunca me verá quebrando essa promessa. Eu não te prometo
apenas um futuro, se eu sobreviver, eu te prometo o melhor de todos.
Assinto, lágrimas caindo de minhas bochechas.
— Vamos mudar Temnyy Gorod juntos. Quero fazer isso ao seu
lado.
Demyan ainda está segurando meu rosto quando me dá um último
beijo, as luzes piscam outra vez, fazendo um ruído causado pelo mau
contato.
— Preciso que cuide da minha mãe, que tente entender o que tá
acontecendo.
— O que quer dizer?
Demyan olha no relógio.
— A caixinha de música tá quebrada, mas ela conhecia a melodia,
por isso eu não achei que pudesse ser real, até que você apareceu e... Você a
ouviu de alguma forma, Annika, por meses, eu pensei que minha mãe havia
se perdido em sua própria mente.
— O que aconteceu com ela?
— Ela entrou em uma depressão profunda depois que meu pai se
foi, então a morte de Anna a fez quebrar de vez, havia momentos de surtos
onde ela simplesmente se machucava, dizia que via Anna, que a ouvia, que
ela estava deixando sinais...
— Sinais?
— Irina chamou uma equipe, ela passou por uma investigação, já
havia um psiquiatra que cuidava de sua mente por causa da depressão, ele a
diagnosticou com TEPT e Transtornos Delirantes. Está em observação
desde então, mas ela ainda fala de Anna o tempo todo, aquela maldita
música... A lavanda sempre a deixou calma, nós começamos a cultivar
depois de um tempo porque não é fácil encontrar e ela prefere quando a
planta está fresca. Passar um tempo na estufa com supervisão também a
mantém lúcida, até ela começar a delirar outra vez.
— Demyan. — Seguro seu braço.
Ele balança a cabeça, ciente do que estou prestes a falar.
— O tempo inteiro em que estive em sua casa, coisas aconteceram,
coisas que eu não sei se podem ser apenas... Coincidência.
Outro pássaro bate no vidro do quarto, me fazendo encolher. O
relógio de Demyan apita com outro alerta.
— Acha que... — Ele ri, mas parece um pouco transtornado. —
Não... Eu não sou como Roman, não acredito nessa merda, Nika.
Envolvo sua cintura com as mãos e assinto, ele não precisa disso
essa noite, precisa de foco.
— Tem razão — murmuro. — Mas eu prometo que, seja como for,
Dem, vou cuidar dela, de sua mente, vou ajudá-la a passar por isso.
— Sei que é um fardo pesado demais para carregar... Mas não tenho
como fazer isso se não tiver certeza de que ela ficará bem.
— É uma promessa, mas eu espero realmente não precisar ter que
cumpri-la.
Ele assente, encostando a testa na minha.
Pela última vez.
— Não posso ficar mais. Esse é meu limite.
Antes de se afastar, Demyan me diz a hora que costumam descartar
os corpos em Ozero, ele havia feito pesquisas, porque me conhecia o
suficiente para saber que eu poderia fazer campana na Kupol e me colocar
em risco.
Assinto, determinada, embora meus olhos estejam cheios de
lágrimas quando ele se afasta.
— Seja o melhor — murmuro.
Demyan olha para trás.
— Por você.
E então, ele desaparece na escuridão da escada ao mesmo tempo em
que a energia cai de vez.
Caminho até a janela e encaro o lado de fora, centenas de pássaros
voam no céu em um espetáculo sinistro e inexplicável. Centenas deles,
desgovernados, preenchendo o ar, criando uma dança caótica entre as
nuvens escuras e os relâmpagos que cortam entre eles. Seus gritos
angustiados ecoam pela atmosfera e abafam o som do meu choro.
O som de algo caindo atrás de mim me faz girar, então, a
eletricidade volta e encaro algo diante de mim que só pode significar outro
sinal. No chão, ao lado da poltrona, as roupas de Anna que deixei dobradas
sobre o braço do móvel estão caídas em um monte.
Eu havia feito uma promessa a ela.
E, se sua mãe havia realmente se tornado aquilo que presenciei quando
estive no terceiro andar, era melhor que eu cumprisse de uma vez, se não
quisesse acabar como ela.
Me agasalho bem, camiseta térmica sob outra de lã e um sobretudo
que, embora esteja gasto e puído em algumas partes, é grosso o bastante
para me proteger do frio. Visto uma calça térmica também e botas
específicas, então, pego meu cachecol, gorro e luvas e corro para fora da
casa vestindo cada um deles. É uma péssima ideia sair no dia de hoje, é
arriscado e imprudente, mas eu nunca fui conhecida por ser prudente, por
não me arriscar ou por ter boas ideias.
As asas batem com uma energia frenética, os gritos ecoam como um
coro impiedoso, em uma noite caótica, cruel e angustiante que está apenas
começando. Um pássaro acerta minha cabeça, as garras grudam em meus
cabelos, levantando-os no ar enquanto pairo diante do vidro do carro
estacionado na esquina. O homem do lado de dentro aponta uma arma na
minha direção, mas não tenho tempo para erguer as mãos no ar. Eu apenas
entro e me sento ao seu lado.
É um dos traficantes do bairro, está em seu ponto, porque apesar da
noite caótica, a movimentação de carros é grande por causa da luta que está
prestes a acontecer no Poço.
— Já matei pessoas por muito menos do que isso.
— Preciso de uma carona até o norte.
Ele coloca a arma no porta-luvas, bem diante de mim, posso usá-la
para ameaçá-lo se ele não quiser me levar, mas provavelmente ele a tirará
de mim e me matará. Eu sei onde os corpos são desovados agora.
— Não posso sair, há uma movimentação grande essa noite.
— Eu te pago — digo a ele um valor.
Ele ri, uma risada provocadora.
— De onde vai tirar dinheiro se mal pode comprar roupas?
— Demyan — digo, cheia de determinação. — Se o conhece bem o
bastante para que permitisse que ele brincasse comigo em seu território,
então, vai fazer isso pela garota dele.
— Então, acabaram juntos no fim das contas?
Dou a ele um olhar mortal que responde a sua pergunta.
— Ele não está no norte agora.
Coloco o cinto de segurança.
— Eu sei.
— Sou eu. — Irina libera minha entrada no bairro depois que sou
deixada diante da Granitsa.
Devido a Kupol e a floresta que cerca as extremidades do norte, a
quantidade de pássaros desse lado é assustadora. Preciso tirar meu
sobretudo e colocá-lo sobre a cabeça enquanto corro, eles me acertam com
força, os que sobrevoam mais baixo batem em carros estacionados nos
gramados bem-cuidados, nas janelas das casas, no tronco das árvores
solitárias que algumas das propriedades ostentam.
A escuridão da noite me cerca enquanto eu caminho a pé, motivada
por uma promessa que fiz a um fantasma.
Meu coração bate descompassado devido à falta de fôlego e meus
passos incertos são interrompidos quando piso em algo mole, um corvo
morto está sob minha bota e balanço o pé para me livrar dele. Sangue se
espalha pelo asfalto e através do material do meu calçado, a cabeça do
animal está caída, o bico aberto.
E se isso fosse um símbolo de presságio? E se fosse Anna querendo
me dizer algo?
Eu volto a andar, me perguntando quantas vezes sua mãe achou que
era o fantasma atormentado da filha e quantas vezes apenas culpou a
própria mente. Quando ela começou a se questionar realmente, se uma parte
dela era relutante em acreditar nisso ou se ela havia deixado de fazer isso
porque todo mundo dizia que estava louca.
E se ela nunca tivesse estado?
E se não fosse sua mente?
E se o problema da mãe de Demyan fosse a alma vagante e
atormentada da filha?
E se ela só precisasse de algo para finalmente descansar?
Com uma mistura de repulsa e determinação, passo por cima da ave
sem vida, o peso da cena macabra permanecendo em minha mente inquieta.
O pensamento dividido em Demyan, na mãe e em Anna.
E só quero que ele sobreviva, só quero poder lutar contra o sistema,
contra Temnyy Gorod e contra seu passado ao lado dele.
Estou diante dos portões da mansão de Demyan, estão abertos,
esperando por mim, passo por eles e conforme me aproximo da porta, me
sinto mais cansada. Um pássaro grande passa diante do meu rosto, correndo
sua garra sobre minha bochecha. Eu sinto exatamente o local onde ele
passou, quando toco a pele, a ponta dos meus dedos é recebida por sangue
vivo.
Estou subindo as escadas da entrada quando outro pássaro
repentinamente voa em minha direção, grudando em meus cabelos com
força, como se quisesse me arrastar para seu caos alado. Meus sentidos
ficam sobrecarregados e minha angústia cresce ao tentar me livrar da
criatura.
Eu me debato, o sobretudo cai na entrada, o pássaro grita e se debate
em meio aos meus cabelos e rosto. A porta se abre, eu caio para dentro, o
pássaro voa para longe e eu apenas continuo no chão, respirando com
dificuldade enquanto encaro Irina de cabeça para baixo.
A tempestade ainda ruge lá fora, mas agora todos os sons foram
amenizados por uma porta de madeira grossa que transforma todo o som em
um caos abafado.
— É a criatura mais insana que já conheci.
Sorrio, ofegante, tentando me recompor.
— Meu pai costumava dizer isso.
Ela estica o braço.
— Preciso de um momento. — Eu apenas continuo no chão, me
recompondo.
— Então? Seja o que for que Demyan fez de ruim, você o perdoou?
— Eu o amo mais que o odeio.
Ela sorri, um sorriso honesto e grande demais para estar no rosto de
Irina.
— Espero que seja muito, então, ele passou por muita coisa.
Gritos e mais gritos ecoam no andar de cima, gritos que nem mesmo
os pássaros loucos são capazes de abafar o som. É quando me levanto.
— É Yaroslava — ela diz. — Eu preciso ir.
Sigo Irina, ela para por dois segundos, então, se dá conta de que não
estou aqui por causa do trabalho e que só havia colocado meus pés nesse
lugar por um único motivo, apesar de nem eu mesma saber disso na época.
— O que ela tem hoje? — pergunto.
— Ela está agitada. Diz que Anna... Diz que ela está na casa essa
noite.
Sinto uma corrente de ar empurrar lentamente meus cabelos e ela
passa por mim junto de sussurros, sussurros que me levaram à lavanderia
um dia, sussurros que me incentivaram a subir as escadas proibidas.
— O que acha disso? Das coisas que ela diz?
— Não sou paga para achar qualquer coisa.
— Ainda assim o faz, não é? — Estamos no segundo andar agora,
encaro a porta de Anna por um momento antes de seguir Irina.
Então, eu ouço, a caixinha de música, a melodia suave e sinistra
ecoando através do corredor mal-iluminado.
— Ouve isso? — pergunto em um sussurro. — Consegue ouvir?
— O quê, menina? — Ela faz uma pausa. — Pássaros e trovões?
Eu começo a cantar baixinho a melodia, em um sussurro instável. O
rosto de Irina perde a cor, os relâmpagos iluminam o corredor.
— Por que tá fazendo isso? Como conhece essa música?
No andar de cima, a mãe de Demyan canta junto comigo, como se
ela também a estivesse ouvindo, eu subo as escadas, deixando Irina para
trás, o machucado em minha bochecha latejando quando me movo
depressa. As luzes fortes e brancas me recebem no andar de cima, e como
se soubesse que estou chegando, a mãe de Demyan tem as mãos espalmadas
no vidro, lágrimas caindo sobre sua face cansada.
— Ela está aqui! — grita, batendo no vidro.
Espalmo minhas mãos, diante das dela. O olhar de Yaroslava é de
surpresa.
— Eu sei... — murmuro, ela lê meus lábios, alívio brilhando em
seus olhos.
—Ajude-a! — ela grita, me fazendo afastar por impulso. — Ajude a
minha menina. — E então, ela começa a cantar a melodia outra vez.
Quando olho para Irina, não sei o que sua expressão quer dizer, mas
ela parece disposta a qualquer coisa que eu tenha a oferecer, qualquer coisa
que possa mudar a situação nessa casa. Enquanto corro de volta para o
segundo andar, eu penso em Demyan, se a luta já chegou ao fim, se ela já
começou ou se eles fazem algum tipo de ritual inicial por se tratar de uma
final. Eu queria que ele ainda nem sequer tivesse subido no ringue, porque,
de alguma forma, isso ainda daria uma chance a ele.
Toco a maçaneta do quarto de Anna, lágrimas queimam em meus
olhos, acendo a luz, então, encaro o quarto, a cama bagunçada, a
escrivaninha com as fotos, o espelho quebrado. A porta do banheiro
continua trancada, mas sei o que há lá porque vi. Eu havia entrado nesse
lugar outras vezes, visto o que há aqui dentro, só que preciso focar no que
ainda não toquei, nas coisas que não mexi.
Encaro o pequeno closet, acendo a luz, roupas estão enfileiradas de
forma impecável, assim como os sapatos, algumas bolsas, uma mochila. Eu
começo vasculhando essas coisas, me desculpando mentalmente com
Demyan por mover as coisas de sua irmã do lugar. Abro as gavetas, olho
embaixo das roupas, jogo-as no chão, revisto os bolsos de algumas calças,
abro as bolsas e mochilas, tudo, eu levo algum tempo procurando por algo
que nem sei o que é.
Quando me jogo no chão, lágrimas queimando em meus olhos,
apoio a cabeça na parede, pronta para desistir. O som dos pássaros parece
cessar por um instante, de repente, o quarto é tomado por uma energia
estranha que provavelmente significa algo. Ouço as batidas do meu
coração, cada promessa que Demyan me fez repassa em minha mente, eu
fecho os olhos por um segundo, apenas um, quando abro, estou encarando a
prateleira suspensa de livros, lombadas alinhadas, revelando títulos que, em
outro momento, me despertariam curiosidade. Eu foco em uma delas, em
um livro aleatório mal-encaixado, como se alguém tivesse mexido nele há
pouco tempo ou como se ele tivesse sido o último que ela leu.
Isso me causa uma estranha sensação de curiosidade e certeza
quando me levanto e o pego na mão, ao folhear as páginas, um papel cai aos
meus pés. Me abaixo e desdobro a folha, encontrando o nome de Anna,
uma inscrição para um curso, feita às três horas da tarde e guardada com
zelo, como se fosse precisar dela em algum momento.
Olho a data de novo.
Espere.
Me lembro das palavras de Demyan sobre a noite em que perdeu o
controle, a noite do aniversário de morte de Anna.
Encaro a data no papel outra vez, só para ter certeza, então, cubro os
lábios, totalmente em choque.
— Por que alguém que planejava tirar a própria vida havia se
inscrito em um curso no mesmo dia?
Oh.
Meu Deus.
A menos que...
A menos que ela não tenha feito isso.
E se Anna não tivesse cometido suicídio?
Demyan não pode...
Se algo acontecer com ele, ele precisa saber disso.
Antes de morrer.
Irina me deixa na divisa com o leste, estou usando roupas de frio,
um cachecol enrolado sobre meu nariz e boca, tentando manter meu rosto
longe do perigo e um capuz para manter os pássaros afastados. Atravesso o
bairro contaminado, usando pontos escuros para me mover, como sempre
fiz em cada vez que fui à biblioteca. Só que dessa vez, não estou indo a um
lugar onde abriga apenas livros velhos, estou indo a uma parte que nunca
fui, uma parte da cidade que não passava de histórias horripilantes
sussurradas contra as regras do Poço que proíbem falar sobre ele fora dele.
Eu sabia que era um prédio, um local abandonado que dava acesso
ao subsolo, e soube qual deles era quando avistei uma movimentação. Meu
coração bate descompassado em meu peito enquanto me aproximo da
edificação, cujas paredes ecoam histórias sombrias e segredos enterrados.
Os homens continuam conversando, eles afastam os pássaros com
um tapa no ar, um gesto simples em meio a uma conversa cheia de risadas
asquerosas, como se não fossem nada, como se não houvessem histórias de
pessoas que tiveram seus olhos arrancados por pássaros na chegada da
Noite Longa.
Passo pelo grupo de homens, enfio as mãos nos bolsos do sobretudo,
inclino a cabeça, encaro o lado oposto a eles e passo sem olhar em suas
direções. Tranco o ar, torcendo para não chamar atenção, para que ninguém
me pare, para que não precise de um tipo de senha para entrar nesse maldito
lugar. Passo por dois homens na porta do prédio, os dois estão fumando um
cigarro, eu atravesso a nuvem de fumaça e me vejo descendo escadas que
me levam a uma espécie de túnel.
Homens e mais homens estão espalhados pelo lugar, encostados nas
paredes sujas, escuras e sinistras. Ouço um gemido esganiçado de uma
mulher, ergo o olhar, ela tem seu sobretudo aberto virado para mim, os seios
expostos ao frio, a mão de um homem sobre a garganta dela em um aperto
tão forte que a faz engasgar. Continuo andando, andando e andando,
passando pelo corredor que me leva a um mar de vozes.
Seguro o papel entre meus dedos com força, a inscrição de Anna,
talvez a resposta de muitas perguntas que Demyan e Roman fizeram por
muito tempo. Ele precisa saber disso hoje, porque se sua irmã foi mesmo
morta por alguém, então, talvez Roman tenha descoberto isso e sido
assassinado também.
Eu queria descobrir, queria cavar fundo, queria ir longe o bastante
para descobrir todos os segredos e motivos, o que Anna sabia para ter sido
morta por alguém.
Conforme adentro pelos corredores decrépitos, a escuridão engole
cada passo meu e então, ele começa a ficar claro, evidenciando o que há do
outro lado. Pessoas gritam um nome, a luta ainda não iniciou, mas ela está
prestes a começar. Demyan está no ringue, esperando por seu adversário, os
homens atrás de mim passam pelo meu corpo, esbarrando em meus ombros
pequenos e frágeis enquanto permaneço parada, encarando-o lá, a cabeça
erguida, cheio de arrogância, totalmente diferente de quando estava na
minha casa mais cedo porque aqui ele vestia aquela armadura, a que eu
costumava odiar, a mesma que conheci no ensino médio.
As pessoas que passaram por mim contornam o Poço, todos gritam
o nome de Demyan, meu capuz cai quando um homem grande esbarra em
meus ombros, mas ele não para, eu viro para ver se alguém me viu, mas
reconheço a silhueta de alguém, a forma de andar por aí, a cabeça abaixada,
um capuz engolindo a cabeça, cabelos ondulados se espreitando para fora.
A forma como se movimenta chama minha atenção, então, eu também
reconheço o moletom, a pequena estampa que já vi antes, a marca que
alguém como ele nunca poderia pagar. O moletom de seu amigo e que só
pode significar uma coisa.
— Roman? — chamo.
Ele para, as mãos nos bolsos, a cabeça baixa, as costas um pouco
curvadas por causa da altura, ele se vira meio de lado, tentando reconhecer
minha voz em suas lembranças enquanto talvez se questiona se deve ou não
se revelar para mim. Então, ele vira, o rosto pálido como se não tomasse sol
há muito, muito, muito tempo. Tanto tempo desaparecido, Demyan
movendo o mundo inteiro por ele, e Roman aqui. Não é mais um menino, é
um homem e seja lá onde esteve todo esse tempo e o que fizeram com ele,
quase o destruiu.
— Sardenta?
E lá está, o sorriso insano se curvando nos lábios de Roman, o brilho
no olhar que deixa qualquer um hipnotizado.
O moletom de Demyan e o fato dele saber meu apelido deixa tudo
esclarecido, seja o que Roman esteja tramando, Demyan está com ele nisso.
— O quê...? O que tá fazendo aqui?
O sorriso dele aumenta, um sorriso que já ouvi ser de um psicopata,
mas que eu sei que é só sua forma de sorrir, a forma que ele usa para causar
desconforto nas pessoas.
— Você não sabe? — ele diz. — A luta final é minha com Demyan.
Não.
Não.
Dou um passo para trás.
Então, meu corpo colide com algo sólido, uma parede de músculos
que tem apenas um serviço e deixa isso claro.
Mal tenho tempo de gritar ou correr quando mãos grandes cobrem
minha boca e o homem cruel me arrasta para a escuridão.
F. Locks se formou em Letras/Espanhol, largou seu emprego e se dedicou
integralmente ao seu verdadeiro sonho: escrever. Com quase dez anos de
experiência na escrita e muitos livros publicados, sente que ainda há muitas
histórias para contar e todas elas são de mocinhos quebrados e anti-heróis
porque esse é seu tipo preferido.
[1]
Roman, livro dois, escrito por Cinthia Freire.
[2]
Saqueadores
[3]
Otdel Kadrov: Departamento de Recursos Humanos.
[4]
Aniversariante
[5]
Feliz aniversário para você
[6]
Receita tradicional da culinária russa
[7]
Receita tradicional da culinária russa
[8]
Irmã gêmea