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Copyright © 2023 by Clarissa Coral

Texto revisado segundo o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

LEGADO OBSCURO

Design e ilustração de capa: Clarissa Coral


Revisão ortográfica: Ana Vitti
Diagramação: Clarissa Coral

Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, organizações, lugares e


situações são frutos da imaginação deste autor e usados como ficção.
Qualquer semelhança com a realidade ou fatos reais é mera coincidência.

Todos os direitos reservados.


Proibida a reprodução, no todo ou em parte, através de quaisquer meios.
Os direitos morais do autor foram assegurados.

Texto revisado segundo o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.


Índice

Prólogo
1 - Na direção da encrenca
2 - Em meio ao caos
3 - Uma oportunidade
4 - Caminhos entrelaçados
5 - Julgamentos
6 - Acordo selado
7 - Sombra de um questionamento
8 - Mudança
9 - Turbulência
10 - Uma porta entreaberta
11 - Harmonia oculta
12 - Encomenda
13 - O som da chuva
14 - Tão perto
15 - Gotas cálidas
16 - Rubi líquido
17 - Lentamente caindo
18 - Um jato de água
19 - Fogo tempestuoso
20 - Sem permissão
21 - Ligação abrupta
22 - O mais puro desespero
23 - Acerto de contas
24 - Choque
25 - Nas sombras
26 - Indistinguível
27 - Abismo de fogo
28 - Insaciável
29 - Roçar inquieto
30 - Um fardo solitário
31 - Peões insignificantes
32 - Casa dos sonhos
33 - Caçada perfeita
34 - Dança de sombras e caos
35 - Turbilhão caótico
36 - Confissões
37 - Quebra-cabeça
38 - Um caminho obscuro
39 - Atmosfera densa
40 - Um legado crescente
41 - Por um filho
42 - Devoção completa
43 - Contagem
44 - Presa perfeita
45 - Nas chamas da caçada
46 - Presa e predador
47 - Que devoram e consomem
48 - Partida temporária
49 - Comemorações
Epílogo
Notas da Autora & Agradecimentos
Em breve: a história de Theo
Sobre a autora
“Está tudo escrito nas linhas de sua vida
Está tudo escrito dentro do seu coração
Você e eu só temos um sonho
Encontrar nosso amor, um lugar
Onde podemos nos esconder
Você e eu fomos feitos
Para amar um ao outro, agora
Para sempre e mais um dia”
-You And I
SCORPIONS
Prólogo
A luz fraca e vacilante se refletiu na lâmina afiada quando a mão
encapuzada soergueu a faca.
Ela estremeceu, ofegante, o corpo escorregando no chão do antigo
armazém abandonado. Dolorida, atordoada, tudo o que conseguiu fazer foi
mover a cabeça e olhar por cima do ombro. As tábuas soltas das janelas
rangiam com o vento enquanto a silhueta da pessoa que empunhava a faca se
aproximava sorrateiramente.
A chuva caía sem piedade do lado de fora, tilintando no chão feito
dedos sombrios que tocavam uma melodia composta apenas para as cores
escuras da noite.
Ela arfou, olhando para os lados, buscando por uma saída.
Era como se o próprio ar estivesse impregnado com um cheiro de
antecipação mórbida.
— Não. Não. Por favor. Por favor.
Nem mesmo seus gritos ou seu desespero serviram como um freio
para impedir o avanço dos passos calculados e silenciosos que vinham na
sua direção, o brilho metálico da faca intensificando-se ao frio azulado dos
relâmpagos.
— Socorro! Socorro!
O vento uivou junto à tempestade, como se sibilasse que não adiantava
gritar, pois ninguém a escutaria.
— Quem é você?! — As lágrimas escorriam até seus lábios feridos;
um gosto de sal e desespero. — O que eu fiz para você?!
Tudo o que obteve em resposta foi um sorriso coberto pelas sombras
que fez seus ossos trincarem.
— Quem é você?!
O grito se entrelaçou ao som do metal encontrando a carne; um eco
que ressonou no silêncio da noite, sufocado pela chuva implacável, que
acompanhou o deslizar do sangue pelo chão, até se encontrar à água que
caía, em uma mistura macabra de vermelho e cinza.
1
Na direção da encrenca

Foram os gritos de uma criança que o arrancaram do caos familiar dos seus
sonhos.
Com o coração disparado, vestindo apenas uma bermuda folgada,
Felipe jogou as cobertas para o lado e se levantou da cama, cambaleando até
a porta do quarto, tateando a mão na parede para encontrar o interruptor que
acenderia as luzes do corredor.
Como andava rápido, seguindo na direção dos gritos, seus dedos não
conseguiram encontrar o botão, e ele avançou na escuridão, deixando-se ser
guiado pela luz do luar que se infiltrava pela janela vertical que cobria uma
parede do chão ao teto.
Assim que se aproximou da porta de onde o choro infantil vinha,
Felipe a abriu e entrou no quarto, vendo a sobrinha de quatro se remexendo e
se debatendo embaixo das cobertas.
— Mãe! Mamãe! Mãe! Mamãe!
— Calma, Ágata — ele falou, o coração se contraindo, condoído,
enquanto se sentava na beirada da cama. — É só um sonho. O titio está aqui.
Acorde. É só um sonho.
— Não... Não... Mãe! Mãe!
Felipe acariciou suavemente o rosto molhado de lágrimas da pequena,
murmurando palavras reconfortantes enquanto a segurava com ternura. Ele
sabia o quão assustador os pesadelos podiam ser. E como sabia. Com
cuidado, ele ergueu a menina nos braços e balançou suavemente,
embalando-a como fazia quando ela era apenas um bebê.
As lágrimas de Ágata começaram a diminuir, substituídas por soluços
cansados. Aos poucos, o choro foi cessando e ela abriu os olhos.
— Tio Fê, eu... eu tava com medo. O sonho era tão ruim...
Felipe comprimiu os lábios, afagando os cabelos macios de Ágata.
— Eu sei. Mas foi só um sonho.
— Queria o colar de borboleta da mamãe.
Com cuidado, ele deitou a menina novamente na cama e cobriu-a
carinhosamente, garantindo que ela estivesse confortável e protegida.
— Tente descansar, Ágata. Feche os olhos e pense em coisas boas.
Amanhã procurarei o colar outra vez. Vou ficar aqui até você dormir de
novo, tá bom?
Ela assentiu, fungando e enxugando as últimas lágrimas que teimavam
em escorrer por suas bochechas. Com um suspiro cansado, a menina fechou
os olhos e afundou no travesseiro, deixando-se levar pelo cansaço.
Felipe observou a sobrinha por mais alguns instantes antes de se
levantar, o coração apertado. Com cuidado, saiu do quarto de Ágata em
silêncio, até se ver cercado pela escuridão do corredor.
Seus passos lentos e pesados o fizeram passar diante da janela de
vidro, onde se viu refletido à luz do luar; as tatuagens que cobriam seus
braços e peito despido eram desenhos caóticos, pesados.
Se ao menos conseguisse achar o colar de sua falecida cunhada...
Talvez a joia trouxesse algum conforto simbólico para sua sobrinha.
Ele soltou o ar e correu os dedos pelos cabelos escuros enquanto
praguejava baixo; sentia que qualquer resquício do sono havia ido embora
por completo.
Ao virar a cabeça, Felipe encarou a porta fechada do quarto do seu
irmão mais velho, Diogo, o pai de Ágata.
Quase se pegou engolindo em seco.
Quase se pegou dando um passo para a frente, erguendo a mão,
pressionando a maçaneta para baixo e...
— Você deveria entrar pelo menos uma vez aí e ver seu irmão.
Felipe olhou para o lado.
Sua mãe, Solange, estava parada no meio do corredor, trajando suas
costumeiras vestes recatadas de dormir, os cabelos tingidos de castanho
puxados para trás.
— Não vai fazer diferença — Felipe se limitou a responder, fitando a
porta fechada outra vez.
— Acha que seu irmão não pode senti-lo?
— Minha preocupação é com Ágata. E você deveria se preocupar com
a sua neta também. — Ele tentou controlar a rispidez na própria voz. — Por
que não vai ficar um pouco com ela?
Sua mãe inspirou fundo, passando por ele, preparando-se para a abrir a
porta do quarto de Diogo.
— Estou sem sono. Passarei a noite aqui com o seu irmão.
Uma raiva silenciosa latejou por baixo das tatuagens e da pele dele.
— Ágata acabou de ter um pesadelo.
— E você a acalmou, não acalmou?
— Ela sonhou com a mãe. Quer a mãe, quer aquele colar que ninguém
consegue encontrar. E precisa de você, de uma figura feminina.
— E não é por isso que você decidiu contratar uma babá para ela? Isso
vai resolver todos os problemas.
Felipe soltou o ar; um som que saiu ruidosamente dos lábios, uma
batida compassada, latente. Mas não teve chance de dizer mais nada para a
mãe. Ela se limitou a menear a cabeça e entrar no quarto de Diogo, fechando
a porta e o deixando sozinho no meio do corredor.
Consciente de que não conseguiria mesmo pregar os malditos olhos
outra vez, Felipe se dirigiu ao seu quarto e rapidamente trocou suas roupas.
Vestiu uma jaqueta de couro preta que carregava consigo histórias de
aventuras passadas, calçou suas botas de motociclista e pegou a chave da
garagem, descendo as escadas em um embalo de pressa e irritação.
Ao abrir a porta da garagem, a silhueta da sua moto reluziu sob a luz
fraca que deslizava pelas janelas laterais. Era uma máquina poderosa e
imponente, uma Harley-Davidson V-Rod Muscle. Sua cor preta brilhava
com um ar de mistério e rebeldia, algo que agradara seu espírito desde a
primeira vez em que colocara os olhos nela.
— Vamos dar uma volta, belezinha?
Com destreza e familiaridade, ele vestiu o capacete e montou na moto,
sentindo a vibração do motor ganhar vida sob seus comandos. O som
característico do ronco potente ecoou pelo ambiente, uma sinfonia de
liberdade e adrenalina.
E, quando o portão principal da casa se abriu ao seu comando, ele
acelerou e mergulhou na noite que cobria a cidade de Campinas, os
pensamentos tumultuados lhe fazendo companhia enquanto ele rumava para
o bar de motoqueiros que costumava frequentar.
Sua mãe... Seu irmão... Sua sobrinha...
Felipe comprimiu o guidão com força, acelerando ainda mais.
Não demorou muito para avistar a fachada do bar “Pistões &
Estradas”, o point dos motoqueiros da região.
Felipe estacionou sua Harley-Davidson com destreza, chamando a
atenção dos que estavam do lado de fora. Ao descer da motocicleta, sentiu os
olhares de algumas garotas se virando em sua direção, mas as ignorou.
Caminhou em direção à entrada do bar, abrindo a porta de madeira maciça
com um empurrão decidido.
O bar estava iluminado por uma mistura de luzes bruxuleantes, que
projetavam sombras nas paredes. O som estrondoso da música de rock
pulsava no ar, abafando conversas animadas e risadas altas. O cheiro de
cerveja, couro e aventura impregnava o ar.
— Uma cerveja — ele pediu enquanto se sentava em um lugar vago
no balcão.
— É pra já.
Não demorou muito para que o atendente colocasse uma garrafa aberta
e gelada diante dele.
— Obrigado. Theo está por aqui?
O rapaz olhou para os lados, franzindo o cenho.
— Ele deu uma passada mais cedo, não sei se já foi embora. Se ele
estiver aqui ainda, deve estar lá nos fundos.
Felipe anuiu e se levantou, levando a cerveja consigo. Caminhou
determinado em direção aos fundos do bar, a música alta sendo substituída
pelo som abafado de vozes masculinas, indicando que estava se afastando
cada vez mais da agitação do local.
Enquanto se aproximava da área aberta e sem cobertura, a visão de
alguns homens conhecidos por suas atividades ilegais chamou sua atenção.
Cobra, Falcão e Lobo. O rosto de Felipe se contraiu. Sabia que aqueles
sujeitos eram a personificação dos problemas.
Como já estava com a cabeça cheia e queria evitar qualquer encrenca
desnecessária, ele cogitou voltar atrás. Tinha certeza de que Theo não estaria
no meio daqueles caras.
Porém, antes que pudesse dar meia-volta, um ruído feminino e aflito
cortou o ar, alcançando os ouvidos dele.
Felipe virou o rosto.
No chão, próximo a uma parede, uma garota estava caída, com o rosto
machucado e assustado, cercada por vários daqueles homens.
Em um instante fugaz, os olhos assustados dela se encontraram com os
olhos ferozes dele.
Foi como se algo ardesse dentro dele.
Uma chama selvagem, insana.
E qualquer pensamento de evitar encrenca se dissipou rapidamente.
2
Em meio ao caos

O gosto metálico do sangue se espalhou pela boca de Mariana no instante


em que o golpe de Cobra a atingiu, jogando-a contra a parede,
desequilibrando-a e a derrubando no chão.
O impacto arrancou um ruído assustado de sua boca, e ela cerrou os
punhos, perdida entre o choque trêmulo e a coragem de revidar, quando
ergueu a cabeça e o viu.
Os olhos dele, profundos e selvagens, pulsavam feito um terremoto
castanho e feroz, que se irradiava pelo chão que os punhos dela tocavam,
estremecendo sua pele, seu ar, seu ser.
Enquanto sua mente ainda lutava para se recuperar do impacto, o olhar
dela percorreu as roupas do recém-chegado, absorvendo cada detalhe. A
jaqueta de couro que vestia era como uma segunda pele, que gritava perigo e
selvageria, entrelaçando-se com os pedaços de tatuagens que se mostravam
em partes dos braços e do pescoço.
Será que ele é mais um comparsa da gangue de Cobra, Falcão e
Lobo?
O motoqueiro deu um passo para a frente, e Mariana se viu prendendo
o ar, grudando as costas com mais força contra a parede.
Mas não conseguiu deixar de fitá-lo.
Algo nos olhos dele queimava feito a entrega a um precipício
desconhecido, uma queda vertiginosa rumo ao coração de uma tempestade.
— O que vocês estão fazendo com ela? — a voz firme fez o coração
dela estremecer diante do timbre intenso.
— Vaza daqui — Falcão ordenou. — Nossa conversa é com a puta, e
não com você.
Mas o motoqueiro não se moveu.
— Você é surdo ou o quê? — Cobra ralhou.
— Deixem a garota em paz.
Lobo cuspiu no chão, dando uma risada perigosa.
— Não somos de pedir duas vezes.
E então, os três avançaram para cima do motoqueiro.
Com um golpe rápido e certeiro, o homem da jaqueta de couro
bloqueou o soco de Lobo, desviando-o com destreza e contra-atacando com
um chute direcionado ao abdômen. O ar foi expulso dos pulmões de Lobo
em um grunhido de dor, fazendo-o recuar alguns passos.
Mariana piscou, surpresa.
Falcão sacou um canivete, mas o motoqueiro se esquivou da lâmina,
movendo-se com agilidade felina. Com um giro rápido, ele agarrou o braço
de Falcão e o imobilizou, fazendo-o soltar o canivete e o levando ao chão em
uma queda desajeitada.
Foi então que ela viu Cobra se preparando para um ataque sorrateiro,
vindo por trás do motoqueiro misterioso.
Mariana abriu a boca para gritar e avisá-lo.
Mas o motoqueiro foi ainda mais rápido.
Ele girou, agarrando o braço de Cobra e usando o próprio impulso do
agressor para arremessá-lo violentamente contra a parede.
Teve a impressão de que a estrutura toda estremeceu enquanto Cobra
caía desacordado no chão.
— Eu também não sou de pedir duas vezes — ele vociferou, baixo e
letal, a voz ressonando como um trovão que ribombava ao longe.
Atordoada com a cena, a mente a mil por hora, Mariana ergueu o rosto
e voltou a fitar o motoqueiro.
— Vem, garota, vamos sair daqui.
Levou alguns instantes para o corpo de Mariana reagir.
E foi então que ela conseguiu processar o que tinha acabado de
acontecer ali.
Merda. Merda. Merda. Merda. Merda.
Com as pernas trêmulas, Mariana se levantou, correndo os dedos pelos
cabelos, olhando para Cobra, Lobo e Falcão caídos.
Merda. Merda. Merda. Merda. Merda.
— Você...
O motoqueiro a agarrou pelo pulso, impedindo-a de falar; ele a
arrastou dali, puxando-a pelo corredor que voltava para o bar, até que
estivessem do lado de fora do local, onde várias motos estavam
estacionadas.
Assim que sentiu o controle voltando por completo ao seu corpo,
Mariana puxou o braço e o encarou.
— O que você fez?!
Ele arqueou as sobrancelhas, parecendo confuso.
— Te tirei de um problema?
Mariana engoliu em seco. A sensação era de que seu coração ia saltar
para fora do peito. Cada pedacinho do seu corpo tremia.
— Não — sussurrou, incapaz de erguer a voz. — Você apenas me
arranjou mais problemas.
Ele entreabriu os lábios.
Mariana inspirou fundo, esfregando o rosto e girando nos calcanhares,
em busca do táxi que a levara até ali. Para seu alívio, encontrou-o
estacionado do outro lado da rua, aguardando por ela. Era melhor ir embora
antes que as coisas ficassem pior.
— Espera.
A voz dele se espalhou como um tremor quente por seu sangue.
Mariana virou o rosto, os cabelos balançando com o vento frio.
Um medo estranho se apossou dela ao encará-lo.
Merda, o que tinha na cabeça para ter ido até aquele lugar, achando
que poderia consertar os problemas financeiros do seu pai?
Ele desceu uma mão para o bolso da calça.
O coração dela se acelerou.
No entanto, para sua surpresa e alívio, em vez de uma arma ou
qualquer outra coisa ameaçadora, o motoqueiro retirou um lenço do bolso.
Mariana piscou.
O medo cedeu lugar a uma curiosidade cautelosa, enquanto ela
observava os movimentos dele.
E então, ele se aproximou, cobrindo o pouco espaço que os separava, a
pele exalando um calor que quebrava o frio da noite. Em um gesto
inesperado, ele ergueu a mão e estendeu o lenço em sua direção, limpando o
sangue do corte em sua boca; um toque suave que se contrastava com sua
aparência selvagem e rude.
Mariana ergueu o rosto, buscando pelos olhos dele.
A sensação do lenço contra sua pele machucada era como um abraço
cálido em meio ao caos, um suspiro vulnerável que a atordoou.
O vento soprava, trazendo o cheiro dele até ela; uma nota forte,
masculina, que ela tinha certeza que ficava marcada em qualquer lugar que
ele tocava, feito o beijo do fogo.
Com um movimento suave, ele terminou de limpar o ferimento,
guardando o lenço de volta no bolso da calça.
Uma batida de coração fez o tempo voltar a correr ao redor dela.
Atônita, ainda tentando assimilar tudo o que havia acontecido,
Mariana buscou mais uma vez pelos olhos dele.
— Obrigada...
Ele deu de ombros, e ela se limitou a menear a cabeça em um gesto de
despedida, forçando sua atenção a procurar pelo táxi outra vez. Ao localizar
o veículo, andou até ele, sentindo o olhar do motoqueiro a acompanhando
em cada passo.
— Tá tudo certo, moça? — o taxista perguntou.
— Sim, não se preocupe.
Ao entrar no veículo, a sensação do olhar flamejante em suas costas
permaneceu, feito um elo invisível, pulsante, latente.
No que estou pensando?!
Ela agitou a cabeça e se afundou no banco.
E, mesmo enquanto o táxi se afastava, seguindo pelas ruas iluminadas
por postes e ladeada por prédios altos, a sensação de estar sendo
acompanhada permaneceu, como se algo naqueles olhos ferozes desafiasse
as barreiras do tempo e da distância.
◆◆◆

Felipe permaneceu na penumbra, observando de longe a garota entrar


em sua casa, agora em segurança. Havia seguido o táxi durante todo o
trajeto, tomando cuidado para não ser notado.
Não sabia por que diabos fizera aquilo; mas fora apoderado por uma
vontade irrefreável, uma necessidade instintiva de se certificar de que ela
chegaria bem e que mais ninguém a seguiria.
Conhecia pessoas da laia de Lobo, Falcão e Cobra.
Eram agiotas e estelionatários que não mediam esforços para exercer
poder e controle.
O que uma garota como aquela — que não parecia frequentar bares e
moto clubes — estava fazendo com gente daquele tipo?
Mas que merda, praguejou para si mesmo. Isso não é problema meu.
Agitando a cabeça, ele abaixou a viseira do capacete assim que a viu
desaparecer pela porta.
Pronto.
Estava feito.
Provavelmente, jamais voltaria a vê-la.
O vento ciciou por entre as árvores, ruindo na inquietude dos seus
pensamentos.
Felipe apertou o punho no acelerador, sentindo a vibração da moto sob
suas mãos, enquanto o ronco do motor preenchia o ar noturno. Lançou um
último olhar na direção da casa daquela garota; e então, acelerou e
desapareceu na escuridão, ansiando que o afastamento também levasse
embora as impressões que galopavam embaixo do seu pulso.
3
Uma oportunidade

O toque do despertador do celular arrancou Mariana de sua péssima noite


de sono.
A sensação de exaustão vibrava por seus ossos enquanto ela se forçava
a abrir os olhos, ainda perdida nas mesmas imagens que a tinham impedido
de adormecer naquela noite: a discussão com os agiotas e a intervenção do
motoqueiro enigmático que havia aparecido do nada para defendê-la.
Cada pedacinho da sua pele estremeceu ao evocar a imagem dos olhos
ferozes e selvagens.
Mariana quase se viu prendendo o ar ante a lembrança da intensidade
pulsante daquelas íris feitas de fogo e rispidez.
Céus, minha cabeça não está boa mesmo. Culpa dessa noite em claro.
Levantando-se da cama, ela caminhou com passos lentos e sonolentos
em direção ao banheiro. Ao se deparar com o espelho, seus olhos se fixaram
na cicatriz em sua boca.
Ao erguer a mão, as pontas dos seus dedos roçaram o ferimento; quase
podia sentir o toque firme e gentil do motoqueiro, o deslizar do lenço dele
em seus lábios.
Uma sensação estranha de conforto e segurança a invadiu ao relembrar
aquele momento; era como se o toque do estranho tivesse um efeito
calmante sobre suas preocupações.
O que era insano demais.
Porque ela nem sabia o nome dele.
Mariana agitou a cabeça e fitou o machucado outra vez.
Como não queria preocupar seu pai e sua irmã mais nova, tomou
cuidado de aplicar base e maquiagem no rosto, até que nenhum sinal da
cicatriz pudesse ser percebido.
Ótimo.
Ela voltou para o quarto e abriu a janela; o dia começava a
empalidecer, e a brisa fria mostrava que as temperaturas permaneceriam
amenas em Campinas, como haviam sido durante toda aquela semana.
Mariana olhou ao redor, esticando as cobertas sobre a cama e
checando se havia mais alguma coisa fora do lugar.
A maior “bagunça” estava em sua escrivaninha.
Livros e material impresso — sem contar os arquivos e vídeos salvos
em seu notebook — formavam uma pilha imensa das disciplinas que
costumavam ser cobradas no concurso da Polícia Científica do Estado.
Havia pesquisado as últimas provas e lidos os editais; para ter uma nota alta,
precisava focar seus estudos em Língua Portuguesa, Biologia, Física,
Química, Matemática, Contabilidade, e ainda possuir noções em Direito,
Criminologia, Criminalística, Medicina Legal, Lógica e Informática.
Seu maior desejo era passar o dia ali estudando, até o céu começar a
escurecer de novo. Contudo, a atual situação da sua família permitia que ela
só pudesse usufruir de poucas horas em cima dos livros.
Em silêncio, Mariana saiu do seu quarto e caminhou até o quarto de
sua irmã mais nova, Lívia, que completara quinze anos há pouco tempo.
Com cuidado, tocou o ombro da irmã, tentando despertá-la para que não
perdesse a hora da escola e o ônibus.
— Lívia, acorde! Você vai se atrasar se não se levantar.
Lívia resmungou baixo e se virou na cama, enfiando a cabeça embaixo
da coberta.
— Só mais cinco minutinhos, por favor...
Mariana suspirou; dez anos de idade a separavam de sua irmã mais
nova, só que, às vezes, ela tinha a sensação de que aquele abismo era muito
maior do que parecia.
— Lívia, levante-se agora mesmo! Não quero ter que explicar para o
pai por que você perdeu o ônibus de novo. Nós vendemos o carro e não
temos como te levar para a escola.
A contragosto, Lívia abriu os olhos e, com um resmungo irritado, saiu
da cama. Mariana deixou o quarto de sua irmã e atravessou o corredor,
deixando o olhar cansado percorrer a casa modesta, mas que sempre lhe
parecera acolhedora. Os móveis simples, a decoração singela e os quadros na
parede contavam a história de sua família e acentuavam a saudade que a
ausência da mãe deixava em cada cômodo.
Enquanto caminhava pela sala, Mariana sentiu o aroma agradável do
café fresco. Seguiu o cheiro até a cozinha, mas não encontrou seu pai ali.
Estranhando aquilo, ela foi até a sala e viu a porta entreaberta; dali,
enxergava seu pai agachado em frente à entrada da casa, com um balde ao
seu lado, esfregando o portão de entrada com uma bucha.
— Pai, o que você tá fazendo?
— Nada, filha. Tome café. Só tô terminando uma coisa aqui.
Nem um pouco convencida, Mariana atravessou a garagem e parou
diante do portão, o coração quase saltando pela boca.
Alguém havia pichado “Tic-Tac” ali, usando uma tinta vermelha que a
fazia pensar em sangue escorrendo.
— Foram os agiotas?
Seu Alberto olhou para cima, com os olhos velhos e cansados, e soltou
um suspiro.
— Eles não estão brincando, Mariana. Precisamos encontrar uma
solução o mais rápido possível. — Pesar enchia sua voz. — Por algum
motivo, eles se enfureceram e resolveram deixar essa mensagem aqui.
Culpa pesou nos ombros de Mariana.
— Eu causei isto.
— Como assim?
— Fui até o “Pistões & Estradas” atrás daqueles agiotas ontem.
A esponja caiu das mãos de seu pai.
— Você foi fazer o quê?!
— Não podia ficar parada, pai! — Mariana abriu os braços. — Fui
pedir mais tempo para eles. Prometi que pagaríamos a dívida, mas só que
precisávamos de mais tempo. Também perguntei se eles poderiam rever os
juros para nós, mas as coisas não saíram como eu esperava. Fui tola, eu sei.
Pelo coração fraco do seu pai, ela optou por ocultar o soco que havia
levado e a surra que o motoqueiro misterioso tinha dado em Cobra, Lobo e
Falcão.
Só de pensar naquele estranho de jaqueta de couro e tatuagens...
Um arrepio subiu pela espinha dela.
— E você está bem?! — Seu pai se colocou de pé subitamente, os
olhos arregalados. — Eles não fizeram nada com você?!
— Não se preocupe, pai. Está tudo bem.
— É claro que me preocupo! — Ele encarou o portão pichado; um
olhar derrotado e exausto enchia o castanho de suas íris. — Eu fiz essa
dívida. Nem você, nem sua irmã, deviam se responsabilizar com isso.
— Você pegou o dinheiro para cuidar da gente e tentar salvar seu
negócio. — Com o coração condoído, Mariana se aproximou do pai,
erguendo os braços e descansando a cabeça no peito dele. — Daremos um
jeito de solucionar esse problema.
A respiração trêmula dele chiou em seus ouvidos.
— Não mereço uma filha como você.
— Merece sim. Porque você é um pai muito bom. Agora entre,
coloque um casaco e tome um café quente. Eu termino de limpar o portão.
Aproveite e veja se a Lívia saiu da cama.
Seu Alberto assentiu, depositando um beijo na testa dela, e foi para
dentro da casa.
Com um suspiro cansado, Mariana fitou o portão e se agachou para
apanhar a bucha dentro do balde.
Que merda foi essa que eu fiz? Só piorei as coisas!
Queria colocar a culpa no motoqueiro intrometido, mas sabia que...
— Já está na faxina assim tão cedo?
Mariana olhou por cima do ombro, vendo Isabela, sua amiga e
vizinha, se aproximando. Isabela estava vestindo um conjunto elegante de
calça social preta e uma blusa branca impecavelmente passada. Seu cabelo
castanho subia em um coque elegante e bem feito, e ela usava óculos de
armação fina que realçavam seus olhos expressivos.
— Bom dia, Isabela. — Mariana olhou do portão para a vizinha. —
Isso não estava nos planos, mas ultimamente, nada tem saído conforme o
planejado, não é mesmo?
Isabela lançou um olhar curioso para o balde de água suja e para a
pichação no portão, erguendo uma sobrancelha em questionamento.
— Ei, o que aconteceu aqui?
Mariana soltou um suspiro pesado.
— Tentei negociar a dívida do meu pai com os agiotas ontem à noite,
mas só piorei as coisas. Eles deixaram um aviso bem claro de que não vão
estender o prazo.
Isabela franziu o cenho; preocupação delineava seu semblante. Ela se
aproximou e colocou uma mão no ombro de Mariana; foi um toque
reconfortante que ela não imaginava que estava precisando.
— Ei, não se culpe tanto. Você só estava tentando proteger seu pai.
Tenho certeza de que as coisas vão se ajeitar.
Mariana sorriu timidamente, grata pelo apoio de sua amiga. Ela sabia
que podia contar com Isabela em momentos difíceis como esse.
— Obrigada, Isa. Não sei mais o que faço. Precisamos
desesperadamente de dinheiro para pagar as prestações das dívidas. Por
sinal, surgiu alguma coisa lá na sua agência de recrutamento?
Isabela meneou a cabeça, pensativa. Sua vizinha trabalhava em uma
empresa que encaminhava candidatos aos mais diversos tipos de emprego e,
como não conseguia trabalho em sua área, Mariana havia deixado um
currículo com ela, na esperança de arranjar algo que lhe pagasse qualquer
salário para ajudar o pai a quitar as dívidas.
— Na verdade, surgiu algo sim. Você se enquadra no perfil, mas não
sei se é um trabalho que faz seu tipo.
— Qual trabalho?
— Babá. Uma família rica está procurando por uma moça solteira que
possa se comprometer a ser babá em tempo integral da única criança da casa
— Isabela explicou, trocando o peso de uma perna para outra. — O
pagamento é bom, mas não tem nada a ver com sua área de formação em
Farmácia, tampouco com seus objetivos em concursar na Polícia Científica.
O coração de Mariana se acelerou em expectativa.
Babá?
Não tinha experiência comprovada, mas havia cuidado praticamente
sozinha de Lívia desde o falecimento da mãe delas, muitos anos atrás.
— Um trabalho é um trabalho, e exigir demais não é algo que estou
podendo fazer nesse momento. Consegue colocar meu currículo nesse
processo seletivo, Isa?
— Consigo fazer ainda melhor. — Isabela deu uma piscada divertida
para ela. — Posso te encaixar nas entrevistas que vão acontecer hoje. O que
acha?
4
Caminhos entrelaçados

Feixes de luz natural entravam pela ampla janela do escritório na mansão.


Sentado na cadeira, Felipe deixou que os olhos corressem pelo cômodo; era
um ambiente espaçoso e arejado, mesmo assim, sentia-se sufocado com a
ideia de ficar enclausurado entre quatro paredes.
Nada se comparava à sensação pura de liberdade que experimentava
quando estava pilotando, ou quando trabalhava realizando negociações de
compra e venda de motocicletas.
Mas, pelo bem-estar de sua sobrinha, havia separado o dia para cuidar
da seleção minuciosa de uma babá.
Estava folheando os currículos enviados pela agência de recrutamento
quando uma jovem mulher entrou no escritório, vestindo roupas adequadas
para a entrevista.
— Olá. Seja bem-vinda. — Felipe se levantou para cumprimentá-la
com um aperto de mão, e a guiou até uma das poltronas. — Meu nome é
Felipe, e estou conduzindo as entrevistas. Qual é o seu nome?
A garota abriu um sorriso tímido.
— Jéssica. É um prazer conhecê-lo, senhor Felipe.
Ao longo da entrevista, ele fez uma série de perguntas para avaliar as
habilidades e a experiência de Jéssica; não deixaria Ágata nas mãos de
qualquer pessoa.
— Você tem experiência em cuidar de crianças pequenas?
Jéssica assentiu.
— Sim, trabalhei como babá em outras ocasiões. Cuido de crianças de
diferentes idades e sempre me preocupo em garantir sua segurança e bem-
estar. Ajudo-as com a lição de casa também e com qualquer dificuldade que
venham a ter na escola. Possuo formação em Pedagogia.
Felipe anuiu, prosseguindo com a entrevista. Por mais que as
qualidades e habilidades de Jéssica se encaixassem no que ele estava
buscando, algo na forma como ela falava o deixava inquieto.
Não sabia explicar o motivo.
Apenas sentia que não era ela.
E, entre uma e outra resposta de Jéssica, Felipe se pegou com os
pensamentos navegando até a garota do bar. Será que ela estava bem depois
de toda a confusão? Será que aqueles caras...
Felipe entreabriu os lábios, exalando baixo.
Por que estava pensando nela, quando sequer sabia seu nome?
— Está tudo bem? — Jéssica indagou, franzindo o cenho. — Eu disse
algo que não o agradou?
Felipe negou e se levantou, gesticulando para a jovem acompanhá-lo
até a saída do escritório.
— Agradeço pela sua disponibilidade em participar desta entrevista. A
agência que te enviou para cá vai entrar em contato para informar a decisão
final quando o processo seletivo acabar.
Após a saída de Jéssica, Felipe se jogou na poltrona, absorto nos
próprios pensamentos, surpreso por se ver outra vez mergulhado na
infinidade castanha dos olhos da garota do bar.
Por que ela continuava pairando em sua mente, mesmo sendo uma
estranha, que provavelmente tinha rolos complicados com pessoas como
Lobo? Ela não era problema seu. Precisava se concentrar nas entrevistas; e,
para isso, precisava tirar aqueles olhos intrigantes — que misturavam temor
e coragem — de uma vez por todas de sua cabeça.
◆◆◆

— Mais uma vez, Isa, muito obrigada por ter me encaixado na


entrevista da manhã e por ter me trazido até aqui — Mariana falou, sentada
no banco de carona da amiga. — Você me poupou de pegar dois ônibus.
Isabela riu e deu uma piscada divertida para ela.
— Ora, amigas são para isso. Mas aceito meu pagamento na forma de
uma cerveja bem gelada.
— Combinado. — Mariana riu, meneando a cabeça e empurrando uma
mecha de cabelo para trás da orelha. — Vamos marcar algo para o próximo
fim de semana.
— Fechou!
Conforme Isabela dirigia, os olhos de Mariana absorviam a paisagem
de um dos bairros mais nobres da cidade de Campinas; as calçadas largas, as
casas elegantes com arquitetura imponente, os jardins bem cuidados, os
carros luxuosos estacionados nas garagens.
Ao se aproximarem da mansão, a boca de Mariana se abriu em um
“O” impressionado diante da grandiosidade do lugar.
— É aqui mesmo?
— Sim. A família Rocha é muito rica. Quem mora aqui é uma senhora
viúva, com seus dois filhos adultos e sua única netinha, que tem quatro anos.
Marina observou a fachada adornada por colunas brancas e uma ampla
entrada. Isabela aproximou o carro do portão, tocou o interfone e fez as
apresentações. Em pouco tempo, as grades de ferro maciço se abriram,
permitindo a entrada do veículo e revelando um caminho pavimentado que
conduzia até a entrada principal.
— Boa sorte, Mari. — Isabela parou o carro para que ela descesse. —
Estarei torcendo por você.
— Obrigada mais uma vez, Isa.
Puxando o ar para se encher de confiança, Mariana desceu do carro,
despediu-se de Isa e ficou observando a amiga partir, o veículo
desaparecendo de sua vista assim que os portões se fecharam.
Ela girou nos calcanhares, os sapatos de salto baixo clicando no chão
com o movimento, as mãos alisando o tecido do vestido que Isabela lhe
emprestara. Era um modelo midi elegante, de cor sóbria e discreta, que
Isabela frisara que era adequado para uma entrevista de emprego, por ter um
corte clássico, mangas curtas e uma silhueta que realçava sua cintura sem ser
demasiadamente chamativa. Havia optado por poucos acessórios; apenas um
par de brincos discretos e um relógio de pulso simples.
Certo. Vamos lá. Preciso desse emprego para salvar minha família.
Enquanto Mariana caminhava em direção à entrada, uma das
empregadas saiu para recebê-la, trajando um uniforme impecável.
— Olá, seja bem-vinda à Mansão da Família Rocha. Meu nome e
Rosana. O senhor Felipe está aguardando por você na sala de entrevistas. Por
favor, me acompanhe — ela pediu, conduzindo Mariana pelo caminho
pavimentado até a entrada principal da casa.
Assim que colocou seus pés dentro do local, Mariana foi inundada
com a visão do hall espaçoso, onde um lustre de cristal reluzente pendia do
teto alto. As paredes eram revestidas por painéis de madeira escura, que
contrastavam com o piso de mármore claro.
Rosana a levou até uma sala localizada no primeiro andar. Mariana
piscou, admirada. Grandes janelas permitiam a entrada abundante da luz do
sol no ambiente, destacando os móveis de madeira e os papéis de parede.
— Por favor, sinta-se à vontade. O senhor Felipe a chamará em breve.
Aceita alguma coisa? Água? Café?
— Uma água, por favor.
Rosana assentiu e saiu, deixando-a sozinha na sala.
Mariana sentou-se em uma das poltronas, incapaz de parar de admirar
os detalhes decorativos, os quadros nas paredes e os vasos de flores frescas
que adornavam a mesa de centro.
Lívia ficaria deslumbrada com essa casa. Ela ama tudo o que exala
riqueza.
Ao cruzar e descruzar as pernas quatro vezes, ela se pegou sentindo
um frio na barriga, um nervosismo trepidante que não havia experimentado
até aquele momento.
Será que daria certo? Será que era adequada para o cargo?
Não tinha experiência registrada como babá, mas...
Mariana se levantou, notando que não conseguiria ficar sentada por
muito tempo.
A sensação era de que havia um cronômetro em contagem regressiva
na sua cabeça; cada minuto que se passava a deixava mais perto do prazo
dado pelos agiotas.
Tinha que dar um jeito de pagar a dívida do seu pai.
Não podia permitir que aqueles homens machucassem sua família.
Um deles a esbofeteara só porque ela pedira para aumentar o prazo.
Só de imaginar que eles podiam fazer algo com Lívia...
Mariana engoliu em seco e andou até uma das janelas, inspirando e
expirando várias vezes, tentando se acalmar para a entrevista.
Fitou o imenso jardim, buscando nas cores fortes das flores e no verde
do gramado bem aparado uma distração.
Quando estava quase calma outra vez, um movimento chamou sua
atenção; seus olhos se voltaram para uma menina pequena, de cabelos
castanhos e conjunto de moletom, que brincava perto de uma das árvores.
A garotinha olhava para o alto, atenta em alguma coisa ali.
Mariana franziu o cenho, tentando enxergar o que ela enxergava.
De repente, a menina esticou as mãozinhas, subindo pelos galhos,
fazendo o coração de Mariana se acelerar na mesma hora ao vê-la perder o
equilíbrio e ficar pendurada ali.
— Ai Meu Deus!
Arfando, sem pensar duas vezes, Mariana abriu a janela em um
impulso e saltou por cima do parapeito, correndo em direção à árvore e à
menina, mal notando que um dos seus sapatos havia ficado para trás.
— Calma! Tô chegando! Segure-se firme!
Respirando rápido, Mariana parou embaixo da árvore, examinando a
altura, o coração trovejando no peito.
— Tô com medo! — a menina choramingou.
— Calma, meu amor. Vou te ajudar.
Lutando para manter a calma, Mariana se apoiou em um ponto seguro
para subir, agarrando-se aos galhos firmes. Ouviu o barulho de algo se
rasgando; talvez fosse a barra do vestido, mas não se importou. Precisava
fazer com que aquela criança descesse em segurança.
— Segure minha mão — ela pediu, a voz suave, fitando a menina.
Com lágrimas nos olhos, a garotinha engoliu em seco.
— Confie em mim — Mariana pediu outra vez, dando um sorriso
encorajador para ela. — Não vou te deixar cair. É uma promessa.
Ainda hesitante, ela estendeu as mãos pequenas em sua direção.
Com cuidado e destreza, Mariana a segurou, trazendo-a para si, e a
envolveu em seus braços. Notou que a menininha tremia.
— Pronto. Você está segura. Vamos descer?
— E se a gente cair?
— Não vamos cair. Qual é o seu nome?
— Ágata.
— Escute-me, Ágata. Vamos fazer isso juntas, tá bom?
A menina assentiu, demonstrando uma confiança recém-adquirida.
Mariana, ainda segurando a mão da criança, procurou os pontos seguros para
os pés de Ágata, guiando-a com firmeza durante a descida, enquanto seu
outro braço permanecia agarrado a um dos galhos. Seus olhos permaneceram
fixos na menina, transmitindo calma e paciência a cada movimento, até que
finalmente Ágata estivesse segura no chão.
— Viu só? — ela disse, sorrindo para a menina. — Você conseguiu!
Ágata bateu palmas e pulou, animada, um raio de sol iluminando seu
semblante infantil.
— Você tem que descê também!
— Já tô indo.
Mariana apoiou o pé descalço no mesmo lugar pelo qual tinha guiado
Ágata, ainda se segurando em um dos galhos.
— Ágata! — a voz grave e masculina que surgiu do nada a assustou.
O pé de Mariana escorregou, e o galho em que ela se agarrava fez um
“creck” que ecoou pelo jardim; e quando percebeu, seu corpo caiu para trás
com tudo.
Um par de braços fortes a amparou, impedindo sua queda ao chão.
Mariana ofegou com força, envolvida por um perfume forte e
másculo; ela ergueu o rosto, atônita, pronta para agradecer pela ajuda; mas o
mundo se calou ao seu redor enquanto seus olhos se expandiam ao
reconhecer o misterioso motoqueiro da noite anterior a segurando nos
braços.
5
Julgamentos

Tudo aconteceu tão rápido que Felipe mal teve tempo de processar o borrão
veloz dos acontecimentos.
Um segundo atrás, alguém gritara que Ágata estava pendurada na
árvore; no outro, ele estava correndo pelo jardim, procurando pela sobrinha;
e, logo após, uma garota estava caindo em seus braços.
Felipe ergueu o queixo, fitando-a, os lábios se apartando ao reconhecer
a garota que vira no bar na noite anterior, sentindo que ela o sondava, o
sorvia, partilhando do mesmo reconhecimento.
Os olhos dela pareciam duas esferas brilhantes, o castanho acentuado
pelo brilho da luz do sol, as bochechas coradas tonalizando sua pele clara.
Os lábios entreabertos soltavam o ar baixinho, acelerado, e alguns fios de
cabelo se grudavam no batom. Felipe desceu o olhar pelo pescoço fino, um
arrepio quente escalando a espinha dele ao se deparar com o vale formado
pelos seios dela no decote do vestido, e ergueu o rosto na mesma hora, o
corpo reagindo imediatamente contra sua vontade.
— Você tá bem? — a vozinha assustada e preocupada de Ágata o
chacoalhou, puxando-o de volta para a realidade.
Felipe piscou e limpou a garganta, colocando a garota no chão. Notou
que ela estava sem um dos sapatos.
— Estou sim — ela respondeu para Ágata, correndo os dedos pelos
cabelos, as bochechas ainda mais vermelhas. — Não me machuquei. E você?
Está bem?
Ágata assentiu; e então, para o choque de Felipe, sua sobrinha abraçou
a garota, que também pareceu ser pega de surpresa pelo gesto.
— Fiquei com medo!
— Mas agora está tudo bem — ela sussurrou, acariciando os cabelos
de Ágata. — Só não suba mais em uma árvore sem um adulto por perto,
combinado?
Ágata ergueu o rosto, sorriu e assentiu.
— Combinado!
A garota sorriu de volta para sua sobrinha; e algo naquele sorriso
quase fez Felipe levar uma mão ao peito diante da pontada que o atingiu.
Dando uma risadinha travessa, Ágata a soltou e correu de novo pelo
jardim, fazendo “tchau” com a mão enquanto voltava para dentro da casa.
O vento soprou, chacoalhando as folhas das árvores.
Felipe se voltou para a garota, estreitando o olhar ao fitá-la.
— O que você está fazendo aqui?
Notou que ela pareceu se sobressaltar diante do tom sério e baixo de
sua voz.
— Vim para a entrevista. Para o cargo de babá. — Ela umedeceu os
lábios, correndo os dedos mais uma vez pelos cabelos, os olhos dele
acompanhando cada um dos movimentos. — Não imaginei que você morava
aqui e que era o pai dela.
— Não sou o pai. — As mãos de Felipe desceram para os bolsos da
calça. — Sou o tio.
— Entendi. Hã... Não nos apresentamos ainda. — Ela estendeu a mão
em sua direção. — Meu nome é Mariana. Mariana Pereira.
— Felipe — ele retirou a mão de um dos bolsos e envolveu os dedos
pequenos e gelados dela em um aperto quente, observando-a engolir em seco
discretamente. — Não achei que alguém como você compareceria para uma
entrevista como essa.
Ela arqueou as sobrancelhas, confusa.
— Alguém como eu?
— Envolvida com pessoas da laia de Lobo, Falcão e Cobra.
O rosto dela pareceu ficar ainda mais vermelho.
— Foi um mal entendido.
Suas mãos se soltaram.
— Então, o que você estava fazendo no bar ontem à noite?
Os braços dela caíram ao lado do corpo.
— Meu pai tem uma dívida com eles. Fez empréstimos para salvar o
próprio negócio. Fui até lá pedir mais tempo para juntar o dinheiro e pagar
as prestações, mas eles se enfureceram, daí você chegou e... — Mariana
apertou os olhos e balançou a cabeça. — Este seu olhar está me irritando.
Foi a vez de Felipe arquear as sobrancelhas.
— Meu olhar?
— Você está me julgando. Já deve ter criado toda uma imagem a meu
respeito na sua cabeça.
Felipe trocou o peso de uma perna para a outra.
— Conheço o tipo de gente que se envolve com aqueles agiotas.
— Gente desesperada — Mariana retrucou, o rosto ainda mais
vermelho. — Meu pai estava desesperado. A lojinha dele é tudo o que ele
conseguiu construir ao longo de uma vida de trabalho e sacrifício. Foi como
ele sustentou nossa família. E ficou desesperado com a possibilidade de
perdê-la quando o banco recusou os empréstimos.
Os olhos de Felipe desceram para os lábios dela. Podia enxergar a
palidez do ferimento que um dos agiotas dera a ela na noite passada, mesmo
com a camada de maquiagem o ocultando.
E pensar naquilo fez algo em seu sangue arder.
Algo inesperado, feroz.
Foi preciso muito controle e muita frieza para se manter impassível.
Foi preciso enfiar as mãos nos bolsos da calça outra vez para não tocar
o machucado e ver se ela estava melhor.
— Entendo. Mesmo assim, não acho uma boa ideia manter pessoas
envolvidas com agiotas perto da minha sobrinha. A segurança e o bem-estar
de Ágata vêm em primeiro lugar.
Mariana prendeu o ar, mordeu o lábio inferior; e então, ajeitou os
ombros e ergueu o queixo.
— Certo. Acho que a entrevista terminou por aqui?
Felipe se limitou a um aceno de cabeça. Por algum motivo, seu
coração batia de um jeito irritante, acelerado, estranho.
E aquilo só ficava mais forte ao se lembrar de como ela salvara Ágata
e do jeito como sua sobrinha a abraçara.
Mesmo assim...
— Espero que você encontre uma boa pessoa para cuidar da sua
sobrinha. Ela parece ser uma criança muito doce e gentil.
Aquilo fez o corpo dele balançar outra vez, pendendo na direção dela,
feito um maldito ímã atraído pelo metal.
Mas que merda é essa?!
Mariana se despediu com um outro movimento de cabeça, passando
por ele sem fitá-lo, mas sem abaixar a cabeça, um rastro cálido do seu
perfume floral o acariciando com um toque invisível.
Ele se pegou engolindo em seco.
Observou-a apanhar o sapato perdido no gramado, calçá-lo e caminhar
pela trilha pavimentada até a saída da mansão, onde o portão se abriu,
permitindo que ela se esvanecesse lentamente de sua visão, ao mesmo tempo
em que a pulsação em sua garganta parecia aumentar.
Felipe deu um passo cambaleante e irritadiço para trás, até as costas
encontrarem apoio no tronco da árvore.
Seus músculos estavam irritados e quentes embaixo daquela camisa
social que odiava usar.
Decidindo ir para dentro da casa para espairecer, ele caminhou
lentamente até a sala, ainda com a mente repleta da conversa tensa com
Mariana. Por que aquilo martelava tanto em sua cabeça? Mal a conhecia!
Assim que se sentou no sofá, Ágata entrou na sala, suas bochechas
coradas e o olhar curioso.
— Tio Fê! Tio Fê! — chamou ela, correndo em sua direção.
— Tô aqui.
Ágata subiu no colo dele e o abraçou, os braços pequeninos
envolveram o pescoço dele.
— Cadê o colar de borboleta da mamãe? Você achou?
Felipe suspirou, acariciando o cabelo dela carinhosamente.
— Ainda não, mas eu vou continuar procurando, tá bom? Prometo que
vou achar.
— Tá — respondeu Ágata, apoiando a cabeça no ombro dele.
Curioso sobre o que havia acontecido no jardim, Felipe questionou:
— Por que você subiu na árvore? E onde estava sua avó, que deveria
estar de olho em você?
Ágata encolheu os ombros, parecendo um pouco insegura.
— A vovó tava no quarto com o meu papai.
Uma pontada de revolta e amargura atingiu o coração de Felipe.
Minha mãe nunca vai mudar.
— E por que você subiu na árvore? Você podia ter se machucado!
— Eu vi um gatinho lá em cima! Queria pegar ele!
— Toda essa confusão por causa de um gato?
— Eu quero um gato, tio Fê!
— Você sabe que sua avó é alérgica a gatos e que não gosta de animais
na casa. — Ele trincou o maxilar. — Não faça mais isso. Você podia ter se
machucado de verdade, Ágata.
Ela encolheu os ombros e fez um biquinho.
— Mas a moça me ajudou. Ela foi corajosa e me abraçou!
Aquelas palavras simples fizeram o coração de Felipe se apequenar no
peito. A garota do bar, a mesma que ele havia encontrado na noite passada,
parecia também ter deixado uma impressão marcante em sua sobrinha.
— Ela vai voltar, tio Fê?
— Não.
Ágata fez outro bico e baixou os olhos.
Felipe arqueou as sobrancelhas.
— Você quer que ela volte?
A pergunta fez sua sobrinha erguer o rosto; e ali, embaixo do sol da
manhã, ele viu um brilho que não testemunhava no olhar de Ágata há muito
tempo.
— Sim! O abraço dela é quentinho!
Apenas aquilo.
“O abraço dela é quentinho”.
Por algum motivo, aquilo o inflou, o impulsionou a tirar Ágata do seu
colo, a se levantar, a dar um passo para a frente, e mais um, e mais um, até
estar em sua garagem, vestindo o capacete, montando na Harley-Davidson e
acelerando para fora da mansão, o ronco da moto enchendo a rua enquanto
acelerava mais e mais, procurando por Mariana.
Cadê ela?
E então a viu.
Ela já havia atravessado dois quarteirões com passos rápidos.
Felipe acelerou mais, chegando perto dela.
— Ei! Espere!
6
Acordo selado

Mariana virou a cabeça ao ouvir o ronco da moto parando ao seu lado,


combinada à voz masculina grave e ríspida.
Ela fitou a motocicleta, hipnotizada pela vibração daquela máquina
poderosa; algo na Harley-Davidson e nele evocavam uma harmonia
selvagem, sombria, como se fossem uma só entidade.
Quando Felipe tirou o capacete, seus olhos se encontraram com os
dela; era uma mistura quente e castanha, tão impenetrável e abalável que a
fez pensar que ele seria capaz de caminhar tranquilamente sobre um mundo
em chamas. Os cabelos rebeldes e bagunçados caíam sobre o rosto, e toda a
atenção dele parecia se concentrar nela, prendendo-a em seu olhar, fazendo
suas bochechas esquentarem.
— O que foi? — Mariana perguntou, lutando para não levar o dorso
da mão às próprias maçãs do rosto, apenas para confirmar se estavam
mesmo quentes diante da presença pulsante de Felipe. — Aconteceu alguma
coisa? Ágata está bem?
Ele anuiu e desceu da moto, o vento carregando o cheiro masculino de
seu perfume até ela.
— Quero reconsiderar o que eu te disse. — Sua voz baixa, porém
rouca e firme, espalhou uma onda trêmula por baixo da pele dela.
Mariana arqueou as sobrancelhas.
— Reconsiderar? — ela repetiu, quase engolindo em seco quando ele
deu um passo em sua direção, ficando perigosamente perto, as tatuagens em
seu pescoço parecendo se mover junto com cada passo de seu andar.
— A entrevista. O cargo de babá.
A contragosto, seu coração titubeou.
— Pensei que você tivesse deixado bem claro que não queria alguém
envolvida com agiotas por perto da sua sobrinha, mesmo depois de eu ter
explicado toda a situação.
Droga, Mariana, dá para segurar essa língua?
Felipe correu os dedos pelos cabelos, curvando o canto da boca em
uma linha que oscilava entre o perigo e a indecência.
Céus, ela tinha a sensação de que o coração batia por todo o corpo.
— Ágata gostou de você.
— O poder de decisão final é dela? — Minha nossa, alguém tinha que
colocar um freio na sua língua. Ela não era assim. Mas algo em Felipe
parecia testá-la e levá-la até a borda dos seus limites.
Ele soltou um chiado baixo pelos lábios, quase uma risada que selava
um desafio não-dito.
— A decisão final é minha, mas Ágata gostou mesmo de você. De um
jeito que nunca a vi agir com outra pessoa. E uma coisa que ela disse...
Enfim, decidi colocar minhas impressões de lado a seu respeito e refazer a
entrevista. Se você ainda quiser, é claro.
Mariana respirou fundo e, ao invés de pular nos cabelos dele e puxar
um tufo como sentira vontade de fazer desde que colocara os pés para fora
da mansão, tentou se reconectar com seu lado mais racional.
Precisava do emprego. Precisava do dinheiro.
Por seu pai. Por sua irmã.
— Tudo bem. Vamos refazer a entrevista.
— Ótimo. — Felipe estendeu o capacete para ela. — Eu te levo de
volta até a mansão. Sobe aí.
O corpo dela balançou.
— Não é necessário. Eu vou a pé.
Felipe subiu na moto e apontou para a garupa com a cabeça.
— Sobe. Não quero perder tempo.
Incapaz de contra-argumentar — e temendo perder a oportunidade de
conseguir o emprego — Mariana aceitou o capacete e passou por ele, indo
até a moto, ignorando o pulsar insistente que retumbava em seu peito pelo
simples fato de estar perto de um homem como ele.
Minha cabeça deve estar em pane total por conta de tudo o que está
acontecendo nos últimos tempos.
Sim, aquela era a única justificativa para ela se sentir tão incomodada
na presença dele. Todos aqueles músculos masculinos apertados dentro de
uma roupa social criavam um contraste com o olhar inquisidor, flamejante,
como se quisessem rasgar o tecido para se agarrar ao couro e ao preto.
Consolando-se parcialmente com o pensamento, ela colocou o
capacete e se sentou na garupa.
— Pode se segurar em mim.
O pedido causou um novo arrepio enervante, inesperado.
Mariana obedeceu, sentindo os músculos duros do abdômen de Felipe
se contraírem ao seu toque enquanto ele se inclinava para frente, dando
partida, o ronco do motor da motocicleta ecoando pela rua.
E, quando ele arrancou e acelerou, a Harley-Davidson deu um impulso
para frente, fazendo o corpo dela se apertar ao dele, o vento se
transformando em uma rajada poderosa até que eles estivessem outra vez
dentro das imediações da mansão.
Felipe estacionou a moto em frente à mansão, e Mariana tirou o
capacete; sua pulsação vibrava, em parte pela velocidade da motocicleta, em
parte pela sensação do seu corpo colado ao dele.
Em silêncio, eles se dirigiram juntos até o escritório, onde a entrevista
seria realizada.
Ao entrarem na sala, Mariana observou a elegância do ambiente, com
móveis refinados e uma decoração sofisticada. A luz natural que adentrava
pelas janelas realçava ainda mais a atmosfera agradável do lugar.
Felipe indicou uma cadeira para ela, enquanto ele mesmo se
acomodava atrás da mesa.
— Então, Mariana, vamos recomeçar a entrevista. Me desculpe pela
forma como as coisas aconteceram antes. — Ele parecia mais calmo agora.
Mariana assentiu, tentando manter a postura confiante.
— Tudo bem. Eu entendo. — Ela respirou fundo e decidiu ser sincera.
Foco no que importa, Mari. Você precisa desse emprego. — Eu sou formada
em Farmácia, mas estou buscando outras oportunidades. Atualmente, estou
estudando para passar no concurso da Polícia Científica.
— Polícia Científica? — Havia um interesse genuíno e sincero na voz
dele. — É uma área interessante, mas bem diferente do que você está
buscando agora. Por que quer esse cargo de babá, então?
Mariana hesitou por um momento.
— Para ajudar meu pai a pagar a dívida com os agiotas. Devo minha
vida ao meu pai. Sozinho, ele criou a mim e a minha irmã desde que nossa
mãe faleceu. Não posso abandoná-lo agora, e temo que aqueles homens o
machuquem se começarmos a atrasar o pagamento das prestações.
Felipe a analisou atentamente por alguns instantes; e a sensação que
ela teve foi de que aquele par de olhos castanhos sondavam sua alma, seu
ser, quase roubando seu ar.
E então, ele começou a fazer algumas perguntas específicas sobre
situações desafiadoras envolvendo crianças. Mariana respondeu com
segurança, demonstrando que possuía habilidades necessárias para lidar com
os cuidados infantis, usando sua irmã Lívia como exemplo, já que ambas
possuíam dez anos de diferença.
Conforme a conversa prosseguia, Mariana compartilhou sua dedicação
em garantir o bem-estar e a segurança da criança, destacando sua empatia e
disposição para se adaptar às necessidades individuais de Ágata.
— Este cargo exige que você se mude para esta casa. É algo
imprescindível. Isto é um problema para você?
Ela inspirou fundo, pensativa. Seu pai sabia se virar. Lívia já era
adolescente. Tinha algumas irresponsabilidades que Mariana vivia
corrigindo quando estava por perto, mas talvez aquilo ajudasse sua irmã a
amadurecer.
— Não, não é problema.
— Certo. Você terá um quarto para você no segundo andar, próximo
ao quarto de Ágata. Também terá direito há uma folga na semana, para
voltar para sua casa ou para onde quiser. Haverá horários de descanso,
principalmente no período em que Ágata estiver na escola. Você não precisa
se preocupar com as refeições dela ou com a limpeza. Temos cozinheira e
empregada todos os dias. O principal é companhia, cuidado e atenção.
Minha nossa, é outra realidade. Não dá para acreditar que tem gente
que vive com toda essa mordomia, enquanto outros ralam para ter o básico.
— Você dirige? Tem carro?
— Dirijo, mas não tenho carro.
— Você terá que buscar Ágata na escola durante a semana, já que nem
sempre estou em casa para fazer isso, e minha mãe não dirige.
A ponta da língua de Mariana coçou para perguntar o que havia
acontecido com os pais de Ágata, mas ela achou melhor guardar o
questionamento para si mesma. Haveria tempo para encontrar aquelas
respostas e sanar suas dúvidas.
— Quanto ao carro... — ela começou.
— Você pode usar o meu para buscá-la e levá-la à escola e a outros
lugares sempre que for preciso. Uso mais minha moto.
Após algumas perguntas finais, Felipe estendeu um papel para ela.
— Como você pode ver, é um trabalho com muitas exigências. Será
registrado com todos os devidos direitos trabalhistas. Este é o pagamento
que ofereço. Se não for um valor suficiente, me avise.
Mariana quase caiu para trás com o número.
— Você vai pagar isto por mês? — Ela teve que se conter para não
gritar de empolgação. Era muito dinheiro.
— Por semana.
Ela engasgou.
— Por semana?
Felipe inclinou o corpo para frente, apoiando as mãos em cima da
mesa, os músculos se apertando embaixo da camisa social e fazendo o tecido
subir, revelando parte das tatuagens que cobriam sua pele.
— Ágata é o que tenho de mais precioso. Quero o melhor para ela.
Ainda tenho algumas ressalvas quanto a você — aquela parte final a
cutucou, mas Mariana permaneceu encarando-o com o semblante contido
—, porém minha sobrinha gostou de você, e posso notar seu
comprometimento e sua vontade. Se você estiver de acordo com todos os
termos do trabalho, faremos um acordo formal com todos os detalhes e
responsabilidades envolvidas, ressaltando primeiro um período de
experiência, e depois, dependendo de como as coisas prosseguirem, um novo
acordo.
A sensação era de que o sangue latejava nos ouvidos.
Mariana manteve o olhar firme em Felipe, absorvendo cada palavra
que ele dizia. Embora seu semblante contido demonstrasse uma certa tensão,
por dentro, ela estava repleta de emoções conflitantes. Aquela era a melhor
oportunidade que surgira em seu caminho, mesmo que a presença imponente
de Felipe a deixasse um tanto intimidada.
Enquanto ele falava, Mariana captou o cheiro do perfume dele no ar,
uma fragrância masculina e marcante que parecia se colar em suas roupas.
Era uma mistura de sensações; a familiaridade do cheiro do homem
misterioso que a resgatara na noite anterior, misturada à consciência de que
estava diante de uma figura austera, quase misteriosa.
Após ponderar brevemente, Mariana assentiu com seriedade.
— Estou de acordo com os termos, senhor Felipe.
— Felipe — ele a cortou, captando seu olhar outra vez, causando uma
nova batida forte de coração dentro dela. — Apenas Felipe.
Mariana umedeceu os lábios e assentiu.
— Certo, Felipe. Darei tudo de mim. Acredito que posso corresponder
às expectativas e cuidar da Ágata da melhor forma possível.
Felipe se levantou, contornando a mesa e se aproximando dela, ao
mesmo tempo em que Mariana também ficava em pé. A luminosidade da
manhã marcava as linhas do rosto dele; seus olhos ficavam em um tom
castanho mais forte, mas não tão selvagem quanto na noite anterior.
Ele se aproximou dela, olhando para o contrato que ela segurava,
depois de novo para ela, ali se demorando, como se buscasse decifrar algo
que nem mesmo Mariana sabia o que era.
— Temos um acordo? — A voz, mais baixa, a fez estremecer.
Felipe estendeu a mão, e Mariana não hesitou em corresponder,
sentindo um arrepio percorrer sua espinha ao retribuir o gesto e ter sua mão
envolvida em um aperto quente e firme.
— Temos um acordo.
7
Sombra de um questionamento
Vinte e um anos atrás

— Ei, devolve isso! — Felipe bradou para o irmão mais velho, apontando
para o carrinho de controle remoto que Diogo segurava.
Diogo o ignorou e ergueu a mão, deixando o brinquedo em uma altura
que Felipe não alcançava.
— Me devolve! — Ele arfou, pulando, tentando pegar o carrinho.
Diogo continuou parado no lugar, mantendo o carrinho acima de sua
cabeça, encarando o desespero e a irritação do irmão mais novo.
— Diogo, devolve! É meu carrinho preferido! Foi o último brinquedo
que o papai me deu antes de ir para o céu!
— Eu sei.
— Devolve!
Com um sorriso malicioso, Diogo estalou a língua.
— E o que você vai fazer se eu não devolver? Vai chorar?
O menino de nove anos, indignado, tentou pegar o carrinho das mãos
do irmão, mas Diogo se afastou rapidamente e, de forma proposital, soltou o
brinquedo no chão.
O som do carrinho se quebrando causou uma onda de choque e
frustração em Felipe. Ele abriu a boca e encarou Diogo, um misto de raiva
e tristeza ardendo no fundo dos seus olhos.
— Você quebrou meu carrinho!
— Foi um acidente.
— Não, você fez de propósito!
Diogo, dando de ombros, olhou para o brinquedo.
— Ah, qual é, era só um carrinho! Você é tão dramático! Se tivesse me
deixado brincar, o carrinho ainda estaria inteiro.
Felipe puxou o ar, erguendo o punho, ameaçando avançar para cima
de Diogo, que permaneceu parado no lugar, como se o desafiasse a ir em
frente.
No mesmo momento, a porta do quarto se abriu.
— Ei! Ei! Parem com isso! — Solange, a mãe deles, os repreendeu. —
O que está acontecendo aqui? Por que você tá ameaçando bater no seu
irmão, Felipe?!
Felipe, segurando os pedaços do carrinho, se voltou para a mãe.
— Mãe, Diogo quebrou meu carrinho de propósito! — contou, com a
voz embargada. — O carrinho que o papai me deu! Ele estava me
provocando e jogou no chão!
— Foi um acidente, mãe! — Diogo falou na mesma hora, colocando-
se na frente do irmão, o rosto se transformando. — Eu não queria quebrar o
carrinho! Só fiquei com saudades do papai e quis brincar um pouco com ele.
Solange, olhando para os pedaços do brinquedo no chão, suspirou e
colocou as mãos na cintura.
— Felipe, foi só um acidente. É a coisa mais normal do mundo. Não
precisa fazer tanto drama por causa de um brinquedo.
Felipe, indignado, apontou para Diogo.
— Mas mãe, ele fez de propósito! Ele queria me irritar e destruir meu
carrinho!
Meneando a cabeça, ela esticou os braços e puxou Diogo para si,
envolvendo o menino em um abraço protetor.
Felipe engoliu em seco, imaginando se o abraço de sua mãe era tão
quente e confortável quanto parecia; não se lembrava quando havia sido a
última vez em que fora aninhado e embalado por ela.
— Diogo, não se preocupe. Seu irmão está exagerando.
Diogo baixou a cabeça, encostando o rosto no peito da mãe.
— Eu não queria que isso tivesse acontecido.
— Eu sei. Felipe, peça desculpas para seu irmão.
— O quê?! — ele pestanejou, incrédulo.
Solange ergueu o queixo, sem soltar Diogo de seus braços.
— Entrei aqui e vi que você ia bater no seu irmão. Peça desculpas.
Um nó se formou na garganta dele.
— Não vou pedir desculpas! É ele que errou! Ele que tem que se
desculpar!
— Você não facilita para mim, não é, Felipe? — Sua mãe suspirou
outra vez. — Se não pedir desculpas para o Diogo, vai ficar sem sobremesa
no jantar.
— Mas, mãe...!
— Estou apenas lhe ensinando a ser uma pessoa que sabe reconhecer
os próprios erros. É melhor aprender aqui em casa do que na rua. Pense
nisso.
Uma frustração avassaladora encheu o peito do menino enquanto sua
mãe saía com Diogo do quarto, deixando-o sozinho ali.
Felipe, com lágrimas nos olhos, se ajoelhou diante dos pedaços do
carrinho, tocando-os com as pontas de seus dedos, deixando o coração ser
eclipsado pela saudade dolorosa que sentia de seu pai.
◆◆◆

Atualmente
Felipe empurrou a porta do bar Pistões & Estradas, entrando na
atmosfera abafada e animada do local. Era noite e a luz amarela criava um
ambiente bruxuleante. O bar estava cheio; a maior parte dos homens e
mulheres vestiam jaquetas de couro e botas robustas. Do lado de fora, o
ronco das motos se entrelaçava com as conversas animadas que aconteciam
no interior do bar.
Ele se dirigiu ao balcão, onde encontrou Theo sentado em um banco
alto. Seu amigo de longa data era alto, com uma estrutura física robusta e
musculosa, resultado de anos de motociclismo e academia. Seus cabelos
eram curtos e escuros, combinando com sua barba por fazer. Ele usava uma
jaqueta de couro preta, com alguns patches de motoclube, uma camiseta
branca por baixo e botas escuras. Algumas de suas tatuagens se revelavam
conforme ele erguia o braço para beber a cerveja direto da garrafa.
— Fala, Theo.
— Fala, mano. Achei que você ia passar na oficina hoje.
— Não deu. — Ele se sentou no balcão ao lado de Theo. — Tive
outros compromissos. Como tá a reforma daquela moto?
— Quase nos finalmentes. — Theo ergueu a garrafa em comemoração.
— O comprador vai pagar uma nota preta nela, mas você precisa passar lá na
oficina e dar seu toque final naquela belezinha.
Felipe inspirou fundo, correndo os dedos pelos cabelos.
— Amanhã passo lá e termino o serviço. Hoje realmente não rolou.
— O que tá pegando? — Theo perguntou, arqueando uma
sobrancelha. — Você parece meio abalado.
Felipe suspirou, gesticulando para o atendente lhe trazer uma cerveja
gelada. Céus, era tudo o que precisava naquele momento.
— Foi um dia daqueles. Muita coisa para resolver.
— Problemas com a família? Quer falar sobre isso? — Theo sorveu
um gole de sua cerveja, e então, soltou um riso amargo: — Embora eu seja a
última pessoa que possa dar conselhos sobre união familiar ou qualquer
outra merda que remeta à família de comercial de margarina.
Os pensamentos de Felipe foram para Mariana, para a forma como a
encontrara ali, cercada pelos agiotas, na noite anterior.
Sem que percebesse, seus punhos se cerraram, uma raiva incontrolável
subindo por seu sangue.
Theo arqueou as sobrancelhas e virou a cabeça, a corrente prateada
com uma medalhinha que usava ao redor do pescoço balançando de um lado
para o outro.
— Tá tudo bem?
Felipe hesitou, segurando a garrafa de cerveja que o atendente do bar
colocou diante dele.
— Só umas merdas aí.
— Tem a ver com a surra que você deu no bando do Lobo ontem à
noite?
Ele bufou e bebeu um gole da cerveja.
— Já tá sabendo disso?
— Tá todo mundo sabendo. Que merda deu na sua cabeça?
Um riso amargo escapou da boca de Felipe. Era impossível se
desvencilhar da imagem pulsante dos olhos de Mariana.
— É isso que eu tô me perguntando até agora.
— Os caras não vão deixar barato, mas ouvi dizer por aí que o Válter
falou que a briga de vocês não é problema dele. Então, vocês podem fazer o
que quiser, mas não aqui dentro do bar dele. Ele enfatizou que o Pistões &
Estradas é um território neutro.
— Fico mais aliviado — Felipe fez questão de enfatizar a ironia na
própria voz.
— Acho que você tá precisando de mais uma cerveja, cara.
— Acho que sim.
Theo acenou para o bartender e pediu mais duas cervejas.
Enquanto esperavam as bebidas chegarem, Felipe se viu navegando
outra vez na névoa dos pensamentos, o rosto de Mariana pairando por entre
as brumas, vívido e claro, junto do momento em que ele avançara contra
Lobo e seus capangas.
“Que merda deu na sua cabeça?”
Trincou a mandíbula, repetindo para si mesmo que qualquer outra
pessoa teria feito o mesmo ao ver uma garota como ela em perigo.
“E por que a contratou como babá de sua sobrinha?”, sua mente lhe
devolveu, cutucando-o.
— Às merdas da vida, mano — Theo falou, entregando uma garrafa
de cerveja para ele.
Empurrando os questionamentos para o lado, Felipe aceitou a bebida e
brindou as garrafas com Theo.
— Às merdas da vida.
◆◆◆
— Isa, você nem imagina! — Mariana cantarolou enquanto segurava o
celular, andando de um lado para o outro no quarto. — Consegui o emprego
de babá! Obrigada pela indicação, você foi essencial nisso!
— Ah, que ótima notícia, Mari! Parabéns! Fico muito feliz por você.
Tenho certeza de que vai arrasar nesse trabalho. Quando você começa?
— Semana que vem. Tenho que ajeitar umas coisas e assinar o
contrato. Estou um pouco nervosa, mas animada. É a chance de ajudar meu
pai a se livrar da dívida de uma vez por todas.
— De nada, amiga. Você merece. Me conte tudo depois, ok?
— Com certeza! Até mais, Isa.
Ao encerrar a ligação, Mariana largou o celular ao lado do seu
material de estudo. Mesmo com uma nova carga horária puxada, precisaria
se organizar para continuar estudando para o concurso da Polícia Científica,
embora consciente de que talvez tivesse que adiar aquele sonho por um
tempo, em prol da segurança do seu pai e de sua irmã, e engolir um pouco do
seu orgulho.
Sim, ainda estava irritada com a forma como Felipe lhe tratara antes
da entrevista, mas não podia se dar ao luxo de perder aquele emprego.
E tinha certeza de que conseguiria lidar com ele e com o jeito dele.
Ora, não preciso me preocupar tanto com isso, certo? O foco do meu
trabalho é Ágata, e não o tio dela. Provavelmente, ele fica bem pouco na
casa.
Tentando se desvencilhar da imagem enigmática de Felipe, que insistia
em perfurar as barreiras de sua mente, ela foi até a sala, encontrando Lívia
esparramada no sofá, assistindo a um dorama coreano.
— Lívia, tá na hora de dormir. Amanhã você tem aula!
— Aí, só mais um episódio, por favor!
Mariana riu e caminhou até a janela, puxando a cortina para fechá-la.
Prestes a puxar o tecido, teve impressão de enxergar uma silhueta no meio
da escuridão.
— Ei, Lívia!
— O que foi?
— Acho que tem alguém lá fora...
Sua irmã se levantou do sofá e grudou o rosto no vidro da janela.
— Não tô vendo ninguém.
Mariana inclinou o corpo para frente, fitando a escuridão. Lívia estava
certa. Não havia mais nada ali.
— Que estranho...
Lívia mordeu o lábio inferior.
— Acha que são os caras para quem o papai deve dinheiro?
— Talvez, mas... — Mariana entreabriu os lábios. Havia uma
inquietação palpitando em seu coração. — Esqueça isso. Devo ter visto
coisas. Não vá dormir tarde. Logo, não estarei mais aqui durante semana
para te controlar, e você vai ter que se virar sozinha.
— Tá bom, tá bom.
Após dar um beijo de boa noite na testa de Lívia, Mariana foi até a
porta da sala e se certificou de que ela estava trancada; e, mesmo depois de
fechar a janela do próprio quarto e se enfiar embaixo das cobertas, a
sensação obtusa de estar sendo observada pela escuridão se estendeu por
todas as horas seguintes da noite.
8
Mudança

As janelas altas permitiam que a luz natural entrasse, iluminando o novo


cômodo que, a partir daquele dia, ela chamaria de “meu quarto”.
Mariana olhou em volta, admirando o espaço amplo e bem mobiliado,
com um grande guarda-roupa de madeira escura, uma cama que parecia ser
super confortável e uma escrivaninha elegante que ela logo encheria com seu
material de estudo para o concurso público.
É isso. Aproveitarei esta oportunidade para ajudar meu pai a pagar
todas as dívidas. Ele cuidou de mim a vida inteira. É hora de cuidar dele.
Confiante, ela colocou suas malas em cima da cama e começou a
desfazê-las uma por uma, determinada a fazer o melhor trabalho possível.
Mariana apanhou algumas blusas, pendurou-as dentro do guarda-roupa
e, ao seu virar para pegar mais peças de roupa, surpreendeu-se ao ver uma
mulher em pé no meio do quarto, a observando.
— Ah, sinto muito — Mariana falou, ligeiramente sobressaltada,
levando uma mão ao peito. — Não ouvi a senhora entrar.
A mulher mantinha uma postura ereta e austera, e não havia um
esboço de sorriso em seus lábios. Ela trajava um vestido preto clássico,
impecavelmente alinhado, que se harmonizavam aos cabelos castanhos
tingidos presos em um coque perfeito.
— O silêncio é reflexo de classe e bons modos — ela respondeu, a voz
firme, correndo os olhos pelo ambiente. — Eu ouvi vários barulhos aqui e
vim checar o que estava acontecendo.
Mariana teve que se controlar para não morder o lábio inferior e
manter as costas alinhadas enquanto a fitava.
— Perdoe-me, não me apresentei. Meu nome é Mariana, sou...
— A nova babá que meu filho contratou?
— Sim, senhora.
— Sou Solange, a avó de Ágata.
— Prazer em conhecê-la, senhora Solange. — Mariana esticou a mão
para cumprimentá-la; a mulher não retribuiu o gesto, fazendo-a recolher o
braço lentamente. — Vou me dedicar por completo aos cuidados da Ágata.
Pode confiar em mim.
Solange meneou a cabeça, o semblante impassível.
— É o que espero. Ágata precisa de alguém que possa cuidar dela com
diligência. Você terá tempo para se instalar e conhecer a casa. Por ora,
espero que você mantenha uma atitude respeitosa e profissional. Tenho
regras e expectativas claras que precisavam ser seguidas. Uma delas é: não
ultrapasse limites em cômodos onde você não é bem-vinda, como o meu e o
do meu filho. Você está aqui por Ágata, e somente por ela.
Céus, Mariana tinha a sensação de que gotas de suor frio escorriam
por sua nuca, ocultadas pelos seus cabelos soltos.
— Como desejar, senhora Solange. Agradeço por esta oportunidade de
trabalho. — Ela tentou forçar um sorriso; em vão. — Farei o meu melhor
para cumprir suas expectativas.
Um silêncio tenso pairou no ar, espiralando-se junto do olhar fixo que
Solange lhe lançou por mais um momento antes de se virar e sair do quarto,
deixando-a com o a sensação de que o coração batia na garganta.
Que mulher arrepiante. Mariana meneou a cabeça, voltando sua
atenção para a mala e para as roupas. Mas não vou julgá-la. Pelo que Isa me
falou, ela ficou viúva anos atrás, e teve que criar os filhos sozinha. Às vezes,
uma pessoa acaba endurecendo diante dos desafios da vida.
— Marianaaaaaa! Você voltou!
A vozinha infantil e animada a cumprimentou, junto de um abraço
apertado em sua cintura.
— Ágata! — Mariana se surpreendeu com a entrada animada da
menina no quarto. Ela se agachou para ficar na altura de Ágata e a abraçou
de volta. — Estou de volta, meu amor! Como você está?
— Feliz!
O sorriso cresceu nos lábios dela, dissipando a tensão deixada pela
presença de Solange.
— Também estou feliz.
— Você vai morar aqui? — a menina perguntou, apontando para as
malas em cima da cama.
— Sim. E vou cuidar de você. O que você acha disso?
Ágata pulou animada e puxou Mariana pela mão, conduzindo-a até seu
próprio quarto. Mariana sorriu, deixando-se levar pela energia contagiante da
menina, até se ver dentro do quarto de Ágata; um ambiente encantador, com
tons suaves de rosa, móveis delicados. Bonecas e bichinhos de pelúcia
estavam cuidadosamente arrumados nas prateleiras, próximos da cama
infantil.
— Quer toma chá comigo e com minhas bonecas? — Ágata
perguntou, olhando com expectativa para Mariana.
— Claro, adoraria! — Mariana respondeu, sentando-se no pequeno
conjunto de mesa e cadeiras onde as bonecas estavam preparadas para o chá.
Ela seguiu o exemplo de Ágata, fingindo pegar a xícara delicada e fingindo
tomar um gole. — Que delícia de chá, Ágata!
Ágata riu, servindo chá para outras bonecas. De repente, parou em
uma delas e fez carinho na cabeça.
— Não chola.
— Por que ela está chorando? — Mariana sondou, curiosa.
— Porque a mamãe dela é uma estlelinha no céu — Ágata murmurou,
ainda acariciando a boneca. — Igual a minha mamãe.
O coração de Mariana se contraiu no peito. Ela precisou engolir em
seco e respirar fundo para controlar a ardência que queimou seus olhos e
estremeceu cada pedacinho da sua pele.
— Sabia que a minha mamãe também é uma estrelinha no céu?
Ágata ergueu os olhinhos; quando Mariana percebeu, já havia se
movido para mais perto da menina, aninhando-a em seus braços.
— Nossas mamães deixam o céu mais blilhante?
Mariana sorriu e assentiu; os olhos marejados.
— Com certeza.
— Quer mais chá?
— Quero sim!
Enquanto Ágata servia o chá imaginário para ela, os olhos de Mariana
navegaram até a boneca, a dúvida se contorcendo na ponta de sua língua.
— Hum... Ágata... E o papai da boneca? Onde ele tá?
— Tá dormindo — Ágata sussurrou, colocando o dedo na frente dos
lábios, como se dissesse “shiu”. — E a vovó não gosta que a gente faça
barulho.
◆◆◆

Após o chá de bonecas com Ágata, Mariana a ajudou com a lição de


casa e a colocou para descansar. Deixando a menina sozinha, voltou para seu
quarto, terminou de arrumar as malas e, curiosa, decidiu explorar alguns dos
cômodos da mansão, tomando cuidado para não ultrapassar nenhum limite
que desafiasse as regras de Solange.
“E o papai da boneca? Onde ele tá?”
“Tá dormindo E a vovó não gosta que a gente faça barulho”.
Um arrepio subiu pela espinha dela.
Aquilo havia sido estranho e não fizera nenhum sentido, embora
tivesse atiçado seu lado investigativo.
Bom, Ágata é uma criança, e crianças têm imaginação fértil.
Enquanto atravessava os corredores, seu olhar parou em um dos
cômodos com a porta-entreaberta; ao espiar o que havia do lado de dentro,
seu coração deu um pulo animado.
Era uma academia completamente equipada dentro de casa.
Sem se conter, ela empurrou a porta e adentrou no local, observando
os equipamentos de musculação, boxe e artes marciais.
Sempre quis ter uma academia dessa em casa!
Enquanto observava os equipamentos dispostos de forma organizada,
um movimento capturou sua atenção. Seu coração deu um salto quando seus
olhos se encontraram com a visão que a deixou sem fôlego. No centro da
sala, Felipe estava realizando flexões no chão, seu corpo esculpido em
movimentos fluidos e coordenados.
Sem camisa e coberto de suor, as tatuagens que adornavam suas
costas, peito e ombros ficavam em plena exibição conforme ele subia e
descia, os braços fortes tensionados; cada músculo definido se destacava sob
a luz suave do ambiente, criando uma visão que fez sua boca secar.
Ela arfou baixinho, querendo dar um passo para trás e sair dali.
No mesmo instante, Felipe ergueu a cabeça, os olhos quentes e fundos
encontrando os seus.
As pernas dela quase falharam com o impacto daquele olhar.
Ele congelou o movimento, apoiado em um só braço.
— O que está fazendo aqui? — a voz rouca, baixa, foi como um
arrepio quente acariciando sua pele.
— Eu... Eu só queria saber se posso usar essa academia também, no
meu horário livre — ela respondeu a primeira coisa que apareceu em sua
cabeça; a sensação era de que brasas quentes ardiam em suas entranhas.
— Você malha?
— Para manter o condicionamento físico. É... — Algo no corpo
esculpido e suado dele parecia hipnotizá-la, roubando sua racionalidade. —
É para o concurso da polícia. E para a saúde.
— Hum.
E então, Felipe abaixou o rosto, retomando o exercício.
O mundo voltou a correr ao redor dela.
E, antes que aquilo pudesse ficar mais constrangedor, Mariana desviou
o olhar e se virou, deixando a sala de exercícios para trás, lutando para se
desvencilhar da sensação trêmula e ardente que parecia tê-la abraçado por
inteiro.
9
Turbulência

“Born to be Wild”, da banda Steppenwolf, estourava em batidas


energéticas e solos de guitarra pelas caixas de som da oficina, carregando
Felipe para a mesma sensação de liberdade e aventura que ele sentia quando
subia em sua moto e pilotava sem destino certo.
— Tá aqui a peça que você encomendou — Theo apontou para o lado.
— Era só isso que faltava, né?
— Sim. — Agachado no chão, enquanto trabalhava na restauração de
uma antiga motocicleta de colecionador, Felipe acariciou o banco de couro.
— Essa belezinha aqui logo, logo vai estar pronta para rodar.
— E vai nos render uma boa grana.
Felipe assentiu, concentrado na música e no trabalho.
Eram em momentos como aquele que ele conseguia se desconectar
verdadeiramente do resto do mundo.
A oficina era seu santuário particular; um espaço amplo, repleto de
motos antigas e peças espalhadas por toda parte. Pôsteres de motocicletas
clássicas adornavam as paredes acima das bancadas, onde as ferramentas
estavam organizadas, prontas para serem utilizadas.
Há um ano, havia aberto aquele negócio com Theo, na intenção de se
dedicar à restauração de motos de colecionadores e encontrar um respiro
para a mente após o acidente que seu irmão e sua cunhada haviam sofrido.
Contudo, a paixão compartilhada por motocicletas clássicas e a
habilidade técnica de ambos lhes renderam uma boa reputação na
comunidade dos entusiastas de duas rodas; uma fama que se estendia por
todas as regiões de Campinas e do Circuito das Águas devido ao trabalho de
alta qualidade e atenção aos detalhes.
— Por quanto acha que conseguiremos vendê-la? — Theo perguntou,
enquanto as notas de “Born to be Wild” continuavam a encher o espaço.
— No mínimo, o triplo do que pagamos na carcaça.
Theo assoviou, animado.
O cheiro de óleo e tinta impregnava o ar, cadenciando a sincronia do
trabalho.
— Essa grana vai ser bem-vinda.
— Nem fale — Felipe concordou, ajustando um pequeno detalhe no
guidão que ainda não estava do seu agrado.
— Tá reclamando do quê, mano? — Theo o cutucou. — Sua família
nada no dinheiro.
— O dinheiro que minha mãe recebe é da pensão que meu pai deixou
após falecer, mais a aposentadoria de enfermagem dela. E é tudo dela. Não
quero um centavo.
Nem mesmo para pagar Mariana.
Preferia pagar a nova babá de Ágata com seu próprio dinheiro.
Mariana.
Nem mesmo os solos de guitarra que irrompiam das caixas de som
foram suficientes para abafar os pensamentos, o som tilintante que o nome
dela causava em sua mente.
Quase um mês havia se passado desde que Mariana começara a
trabalhar como babá de Ágata, e Felipe percebia mudanças sutis em sua
sobrinha; Ágata parecia mais alegre, mais comunicativa, e tinha certeza de
que aquilo se devia, em grande parte, à presença da babá.
Mesmo quase não ficando em casa e chegando tarde da noite devido
ao trabalho na oficina, vez ou outra, ele tinha alguns vislumbres de Mariana.
E um olhar capturado, uma centelha do perfume dela que ficava no
corredor da sua casa...
Com um suspiro frustrado e com o coração acelerando contra sua
vontade, Felipe focou a atenção na motocicleta à sua frente, girando a chave
de fenda com força, canalizando sua energia no trabalho mecânico.
Mesmo que a presença de Mariana agitasse tudo dentro dele, ele se
recusava a deixar que qualquer linha do profissionalismo fosse ultrapassada.
Já tinha problemas demais. E saber que Ágata estava sendo bem cuidada era
o bastante para mantê-lo no lugar.
— Seu pai trabalhava com o quê mesmo, mano?
— Ele era engenheiro.
A língua de Theo estalou.
— E deixou uma pensão bem gorda pra sua mãe, hein?
Felipe ergueu os olhos, aliviado pela provocação o puxar para longe
do perfume imaginário de Mariana.
— Pra que você quer saber?
— Talvez eu tente ser seu padrasto.
— Vai se foder.
Theo jogou a cabeça para trás, gargalhando, a corrente de prata e a
pequena medalhinha balançando de um lado para o outro em seu pescoço.
Revirando os olhos, Felipe se levantou e foi até o pequeno frigobar,
abrindo uma garrafa de cerveja gelada.
— Sinto falta dele, sabe?
— Do seu pai?
— Sim. — Felipe inspirou fundo e sorveu um gole de cerveja. — Ele
era tão diferente da minha mãe.
— Pelo tanto que você fala dele, seu velho deve ter sido um cara
incrível — Theo comentou, pegando uma cerveja também e apoiando as
costas na bancada da oficina.
— Ele era. — Felipe soltou o ar. — Puta merda. Ele faz falta.
— Bom, tenho certeza de que isso é algo que jamais vou falar sobre o
meu pai.
A música continuava a preencher o ambiente, ocupando as lacunas do
silêncio que imergiu entre eles.
Em um gesto automático, Theo levou a mão à medalhinha que
carregava no pescoço. Felipe observou o movimento com atenção, se
perguntando por que o amigo sempre tocava naquele pingente quando
mencionava o próprio pai.
O tópico “pai de Theo” era um assunto proibido; algo próximo de um
acordo tácito e não-dito, mas compreendido, onde o passado devia
permanecer completamente enterrado.
E Felipe conseguia entender e compreender as razões do amigo.
Bom, cada um tem suas próprias merdas de vida para carregar.
Finalizando a cerveja, e sem trocar mais nenhuma palavra sobre o
assunto, os dois mergulharam de volta em seus trabalhos, permitindo que a
música e o ruído das ferramentas tomassem conta do espaço.
◆◆◆

Era tarde da noite quando Felipe chegou em casa, sentindo o cansaço


tomar conta de seu corpo após um longo dia de trabalho na oficina. Ele subiu
as escadas lentamente, o som de seus passos ecoando pelo corredor
silencioso.
Ao passar em frente à porta fechada do quarto de seu irmão Diogo,
sentiu uma pontada de desconforto e lançou um olhar momentâneo para a
porta, como se a própria escuridão, junto da madeira, pudesse distorcer o
tempo, o espaço, os acontecimentos de uma fatídica noite.
Soltou o ar.
Nada voltaria a ser como antes.
Ansiando por um banho quente e longo, ele se afastou.
No entanto, antes que pudesse prosseguir para o seu próprio quarto,
um grito agudo de Ágata ecoou pelo corredor, fazendo com que ele parasse
abruptamente.
O coração disparou, a adrenalina encheu suas veias.
Sem hesitar, Felipe girou nos calcanhares e correu em direção ao
quarto da sobrinha, ouvindo os gritos dela ficarem mais altos.
Ao chegar à porta entreaberta, seu olhar se fixou na cena à sua frente.
Mariana estava sentada na cama, com Ágata encolhida em seus braços,
tremendo e chorando. Os cabelos de Mariana caíam suavemente sobre seu
rosto, enquanto ela murmurava palavras gentis e acalentadoras para a
menina assustada.
— Calma, meu amor. Foi só um pesadelo. Estou aqui.
Mesmo na penumbra, Felipe podia enxergar as lágrimas que enchiam
os olhos de Ágata.
— Era a mamãe... Eu queria a mamãe...
— Ela está no céu. Lembra o que você me disse? — Mariana
sussurrou, e algo na doçura da voz dela espalhou uma calidez pelo peito de
Felipe. — Que ela é uma estrelinha brilhante no céu. E ela está lá, brilhando
junto com a minha mamãe.
— Mas eu queria ver a mamãe.
— Eu sei, meu amor. Eu também sinto falta da minha mãe. Às vezes,
quando a saudade aperta, eu fecho os olhos e imagino uma praia especial,
onde eu costumava ir com ela. É um lugar mágico, cheio de paz e amor.
Podemos ir até lá em nossa imaginação, juntas.
Ágata olhou para Mariana com curiosidade e um brilho de esperança
nos olhos molhados pelas lágrimas.
— Nessa praia, as ondas são suaves e brincalhonas. Elas fazem
cócegas, assim. — Mariana cutucou a barriga de Ágata, fazendo-a rir
baixinho. A menina se aconchegou mais nos seus braços, atenta às suas
palavras. — A areia é macia e dourada, e o sol sempre brilha com todo o seu
esplendor. É um lugar onde podemos sentir o abraço da mamãe, mesmo que
ela não esteja aqui fisicamente. Podemos sentir o seu amor nos envolvendo
como uma brisa suave e fresca.
Mariana fechou os olhos por um momento, e Felipe quase teve a
sensação de estar sendo transportado para aquele mesmo lugar com ela e
com Ágata.
— Os pássaros voam livres pelo céu azul, cantando melodias de
alegria. O mar é bem azul. À medida que caminhamos pela praia, sentimos a
areia macia entre os dedos dos pés, e as ondas nos acariciam suavemente,
como se nos dissessem que tudo ficará bem. E, quando olhamos para o
horizonte, vemos o brilho de uma estrela especialmente radiante, lembrando-
nos de que a mamãe está sempre conosco, cuidando de nós.
O ar resfolegou nos pulmões de Felipe; algo pareceu se quebrar,
removendo espinhos, se dissolvendo, abrindo espaço para a luz incipiente
que se perdia nas vestes da noite; para então se erguer e se refazer dentro
dele.
Os olhos de Mariana se abriram, surpresos, e ela virou o rosto,
deparando-se com ele.
Foi como ser atingido uma energia silenciosa, magnética, que
transcendia o som, as palavras, dançando no indizível do orvalho da manhã,
escondido nas entrelinhas de uma pálida montanha de instantes e beleza;
efêmera e sólida.
O coração de Felipe disparou no peito, sua respiração falhou.
Ele deu um passo vacilante para trás, atônito, atordoado. Sua mão
instintivamente foi ao peito, enquanto o coração rugia em seu interior,
turbulento, conflituoso, a voz incapaz de tomar forma.
E, sem dizer nada, ele se virou e se afastou, os passos pesados ecoando
no corredor em um misto de turbulência, confusão e algo mais que não
conseguia nomear.
10
Uma porta entreaberta

Uma mistura de surpresa e desapontamento apertou o coração de Mariana


enquanto ela assistia Felipe desaparecer na escuridão do corredor, incapaz de
entender o que havia acontecido na brevidade daquele momento em que seus
olhares tinham se encontrado e se sustentado.
Suspirando, ela voltou sua atenção para Ágata, segurando a menina
com ternura, cantarolando baixinho, tentando dissipar a agitação que o
vislumbre da presença de Felipe havia deixado em sua pele.
Já fazia quase um mês que estava trabalhando na mansão, e podia
contar em uma mão as vezes em que conseguira trocar mais do que algumas
frases com o tio de Ágata.
Ele parece me evitar. Bom, mas meu trabalho é com Ágata, e não com
ele.
Quase não via a avó da menina também; tinha a impressão de que
quem mais vivia naquela casa eram os empregados, e não a família.
— Fica aqui pra sempre, tia Ma? — Ágata murmurou, sonolenta,
aninhada contra seu peito.
— Estou aqui, meu amor — ela sussurrou de volta, embalando-a junto
de seu corpo. — Não vou a lugar nenhum.
Assim que sentiu que a respiração de Ágata se atenuou, Mariana a
ajeitou na cama, puxou as cobertas por cima dela e deu um beijo em sua
testa. Toda vez que fazia aquilo, uma quentura especial enchia seu peito; era
inevitável se recordar das inúmeras vezes em que fizera Lívia dormir após o
falecimento da mãe delas.
Tomando cuidado para não fazer barulho, ela se levantou e saiu do
quarto, deixando a porta apenas encostada, caso a menina tivesse outro
pesadelo durante a noite.
O corredor estava imerso em uma atmosfera latente, inquietante, como
se as paredes se curvassem para as sombras.
Mariana caminhou devagar, esfregando os próprios braços, cada passo
ecoando suavemente no chão. A única luz que havia ali provinha da janela
no final do corredor, que cobria uma parede inteira, permitindo a entrada do
luar.
Um sopro de vento passou pela lateral do seu rosto, espalhando um
arrepio por sua espinha.
Ela se sobressaltou quando a porta de um dos quartos se abriu
lentamente, emitindo um rangido agudo.
Com o coração aos pulos, Mariana se aproximou da porta, pronta para
fechá-la; era um dos quartos que Solange havia proibido explicitamente que
ela ou qualquer outro empregado entrasse.
Sua mão pousou na maçaneta.
Tinha a sensação de que o ar estava suspenso diante do seu rosto.
Uma parte sua, curiosa por natureza, a fez inclinar a cabeça para
frente, apenas para espiar o que havia ali dentro.
Teve impressão de ouvir um som familiar.
“Bip-bip-bip”.
Parecia muito com o som que costumava ouvir no hospital durante seu
estágio no curso de Farmácia.
Intrigada, e com passos cuidadosos, Mariana empurrou um pouco mais
a porta, tentando ser o mais sutil e silenciosa que conseguiu.
Suor frio molhava sua nuca.
O quê...?
Seus olhos se estreitaram, confusos, surpresos.
A luz que se infiltrava do lado de fora, pelas frestas da janela, lançava
um tom difuso no quarto, derramando-se sobre o homem deitado na cama.
Seu corpo parecia vulnerável e imerso em um sono profundo.
Mariana reconheceu os aparelhos ao lado da cama, seus monitores
digitais brilhando em tons verdes e azuis. O som constante e regular dos
batimentos cardíacos ecoava pelo quarto, enquanto um aparelho medidor de
pressão exibia os números em um pequeno visor.
Ela entreabriu os lábios, perdida em questionamento silenciosos.
O homem estava deitado em posição supina, os lençóis brancos
cobrindo parte de seu corpo. Os traços de seu rosto eram suavizados pela
serenidade do sono, e os cabelos escuros se espalhavam sobre o travesseiro.
Os fios conectados ao corpo do homem pareciam teias frágeis,
estabelecendo uma ligação entre ele e os aparelhos. Um monitor preso ao
seu dedo indicava a oxigenação sanguínea, enquanto sensores colocados em
seu peito acompanhavam sua frequência cardíaca.
Não havia nenhum suporte respiratório oferecido por aparelhos, o que
a fez imaginar que, o que quer tivesse acontecido com aquele homem,
deixara-o em um estado de inconsciência ou coma não-responsivo que
permitia que ele respirasse de forma independente.
Quem é você?
Ela se pegou dando mais um passo para frente, observando-o, o ar
escapando lentamente de seus lábios úmidos.
O queixo dele era muito familiar.
Parecia-se com o queixo de Ágata.
E algo no formato do nariz a fazia pensar demais em Felipe.
Seu corpo tenso se inclinou um pouco mais, o coração bombeando
com força.
Será que ele é...?
De súbito, ela sentiu uma presença atrás de si, que a pegou de
sobressalto, arrancando um arquejo de sua garganta; antes que pudesse
reagir ou gritar, uma mão cobriu sua boca, enquanto um braço prensava sua
cintura, prendendo suas costas contra um peito largo e masculino, a boca se
aproximando de seu ouvido.
— Você não deveria estar aqui.
11
Harmonia oculta

Um arquejo tentou escapar da garganta de Mariana, mas a mão que a


segurava fez uma pressão ainda mais firme em sua boca.
— Não grite.
O pedido foi dito tão baixo, tão sussurrado, que quase pareceu ser
ciciado dentro de seus próprios pensamentos.
Seu coração martelava dentro do peito, e ela lutava para controlar sua
respiração acelerada. Em meio ao medo e à tensão, ela fez um sinal
afirmativo com a cabeça, indicando que não iria gritar. A mão que cobria sua
boca foi retirada com cuidado.
Lentamente, ela se virou, encontrando os olhos furiosos de Felipe.
Ele estava vestindo uma camiseta regata preta que realçava seus
músculos bem definidos, e uma bermuda de dormir. Seus cabelos ainda
estavam úmidos do banho, e gotículas de água escorriam por seu rosto.
A tensão era palpável no ar.
Ainda tentando controlar sua respiração, ao mesmo tempo em que se
sentia confusa e cativa pela força bruta que emanava dele, Mariana
entreabriu os lábios.
— Desculpe... Eu...
Felipe ergueu o dedo, repetindo o mesmo gesto de silêncio que Ágata
fizera durante o primeiro chá de boneca que elas tinham feito juntas.
Mariana anuiu.
Ele não se moveu, encarando o homem deitado na cama, para então se
voltar para ela, os olhos percorrendo seu rosto, ali se demorando.
O ar parecia eletrificado, permeado de uma energia incerta.
Mariana não rompeu o contato visual.
Aos poucos, a fúria nos olhos dele cedeu, dando lugar a uma
expressão mais suave, ainda que a intensidade permanecesse.
Aquilo espalhou um efeito espelho em seus músculos.
Toda a adrenalina dos últimos instantes começou a deixar o corpo
dela, levando os tremores para longe.
Felipe se virou para ela, ainda em silêncio; seu rosto estava coberto
por uma sombra escura, os olhos castanhos quase negros. A mão dele
envolveu o pulso dela em um aperto quente enquanto a puxava para fora do
quarto, fechando a porta com o máximo de cuidado possível para não
produzir nenhum ruído.
Mariana engoliu em seco.
A sensação era de que o coração batia na garganta.
— Eu... Não era a minha intenção... Eu...
— Vamos sair desse corredor.
Soltando o pulso dela, Felipe apoiou as mãos em suas costas, guiando-
a pelo caminho apenas iluminado pelo luar. Os sentidos de Mariana se
emaranharam. Um aroma de shampoo e sabonete masculino permeava a pele
dele, e ela quase se viu inclinando o rosto naquela direção, mergulhando no
cheiro; contudo, a tensão, a adrenalina e a imagem do homem deitado na
cama a deixavam ansiosa.
Em silêncio, eles desceram a escadaria de mármore, até chegarem na
cozinha, onde Felipe acendeu a luz.
Seus olhos se semicerraram por um momento, até se acostumar com a
luminosidade intensa.
Felipe se afastou, caminhando pela cozinha, passando as mãos pelos
cabelos escuros e molhados. Mariana teve impressão de que o fogão
diminuiu de tamanho quando ele se inclinou sobre a bancada, apanhando
uma cápsula de café e a colocando na máquina.
— Quer um? — Felipe ofereceu, os ombros largos à mostra na
camiseta folgada que vestia.
Foi com muito esforço que Mariana se desviou da protuberância dura
dos músculos do braço dele que se moviam conforme ele acrescentava mais
água no suporte transparente da máquina de café.
— Se eu tomar café agora, vou passar a madrugada em claro, com
energia para dançar no telhado da casa.
Teve impressão de ver o esboço de um sorriso de canto marcando os
lábios rígidos dele; um vislumbre fugaz, mas que foi suficiente para fazer o
coração dela acelerar mais do que deveria.
— Então, vou fazer um café só para mim. Fique à vontade para beber
o que quiser.
Mariana anuiu e foi até a geladeira, apanhando uma jarra de suco de
acerola que Rosana havia preparado na parte da tarde para Ágata.
— O café não tira seu sono?
— Não. Posso tomar quanto eu quiser. Não faz diferença.
— Não sei se isso é bom ou ruim — ela comentou, pegando um copo
do armário e o enchendo com o suco. — Se não fosse pela energia que o
café me dá, não sei como conseguiria me arrastar para fora da cama...
— ...E correr quase dois quilômetros no parque depois de deixar Ágata
na escola todos os dias? — Felipe indagou, apertando o botão da máquina, o
cheiro forte do café impregnando a cozinha quase que no mesmo instante.
Ela virou a cabeça, os cabelos balançando de um lado para o outro, as
sobrancelhas ligeiramente arqueadas.
— Como você sabe disso?
— Já passei por lá de moto algumas vezes e te vi correndo no mesmo
horário — ele respondeu, apanhando a xícara com o café fumegante.
Algo quente e inesperado se espalhou pelo seu peito; Mariana quase
prendeu o ar diante daquela pressão, daquela sensação forte.
Segurando o copo de suco, ela tomou um gole, a bebida gelada
descendo por sua garganta.
O instante de uma eternidade se passou pela cozinha.
Tomando coragem, Mariana soltou o ar e encarou Felipe.
— Aquele homem no quarto...
Os olhos dele, agora mais sérios, outra vez escurecidos, a fitaram.
— É meu irmão Diogo, pai de Ágata.
— O que aconteceu?
Felipe bebeu um gole do café e, por um momento, Mariana achou que
não iria obter nenhuma resposta. Mas, então, os ombros dele caíram,
acompanhados de uma respiração pesada, chiada.
— Há pouco mais de um ano, meu irmão e minha cunhada sofreram
um acidente de carro. Minha cunhada faleceu. O nome dela era Verônica.
Meu irmão ficou nesse estado. Como minha mãe foi enfermeira a vida toda,
ela o trouxe para casa e cuida dele desde então.
— Ele está em um coma não-responsivo? — Mariana mordeu o lábio
ao sentir o peso do olhar de Felipe sobre sua indagação. — Só perguntei
porque notei que ele não respira com ajuda de aparelhos.
— Sim, é algo do tipo.
— E sua mãe cuida dele sozinha? Não contratou outros enfermeiros
para ajudá-la?
Um riso desgostoso escapou da boca de Felipe.
— Ela jamais permitiria que alguém encostasse no filho precioso dela.
E se minha mãe tivesse te visto lá no quarto dele...
Mariana segurou o copo com mais força.
— Não vai mais acontecer. Foi um erro. Sinto muito.
Felipe deu de ombros.
— Pra mim tanto faz quem entra e quem sai de lá. — Notas riscadas
marcavam suas palavras. — Só estou avisando pelo seu bem. Você me disse
que precisa do emprego e do dinheiro. Não se aproxime do quarto de Diogo
novamente.
A cautela na voz dele vibrava uma advertência velada. Mariana
assentiu, compreendendo o aviso. Sabia que estava testemunhando uma nova
parte de Felipe que ainda não conhecia.
— Obrigada — ela agradeceu em um sussurro de voz. — Não entrarei
mais lá. Foi a primeira e última vez.
O silêncio voltou a invadir a cozinha, e Mariana terminou de beber o
suco em um só gole. Seu coração batia acelerado no peito, pulsando em
perguntas e mais perguntas que não sabia se deveria fazer.
— É melhor não — Felipe respondeu.
Ela ergueu o rosto, piscando.
— Sobre o que você...
Felipe comprimiu os lábios em uma linha fina.
— Não fique fazendo perguntas sobre meu irmão ou sobre o acidente
por aí. Minha mãe não gosta de pessoas de fora falando sobre esse assunto. É
melhor controlar esse seu lado que flerta com a área policial e investigativa.
É para o seu próprio bem.
Mesmo frustrada, ela se viu obrigada a concordar.
Mariana andou até a pia, lavando o copo que havia acabado de usar.
Sentiu Felipe apoiar o quadril na bancada da pia, o calor do corpo masculino
acariciando o seu. Os lábios de Felipe pairavam próximos à xícara, e ela
imaginou involuntariamente que a boca dele teria gosto de café.
Forte, marcante.
— Posso te fazer uma pergunta? — ele indagou.
— Eu não posso fazer perguntas, mas você pode? — Mariana ouviu
suas próprias palavras escapando por seus lábios, repreendendo-se no
mesmo instante por estar confrontando alguém que podia ter lhe demitido
naquela noite.
Para sua surpresa, não viu raiva ou fúria no semblante de Felipe; mas
sim uma chama curiosa, quase analítica, quase provocativa, em meio ao
castanho de seus olhos atentos.
— Acho que tenho o direito, não tenho?
Mariana deu de ombros, desviando o olhar e guardando o copo lavado
no armário.
— Faça.
— Por que você quer tanto entrar para a Polícia Científica?
A sinceridade e a curiosidade na pergunta dele a surpreenderam.
Mariana o fitou por um momento que pareceu longo demais antes de
baixar os olhos, fitar os próprios dedos molhados, soltar o ar, para então
voltar a encará-lo.
— Porque uma falha cometida pela Polícia Científica permitiu que o
criminoso que tirou a vida da minha mãe saísse impune.
Felipe ajeitou a postura; era visível que a resposta dela o pegara de
surpresa. Mariana se virou, ficando ao lado dele, deixando que o quadril
também se apoiasse na bancada da pia.
Do lado de fora, a noite zunia.
— Minha mãe foi vítima de um assalto que acabou tirando a vida dela.
Eu tinha doze anos na época, e minha irmã Lívia tinha apenas dois. Durante
a investigação do crime, a equipe da Polícia Científica encontrou evidências
cruciais que poderiam levar à identificação do assassino. — Ela engoliu em
seco; falar aquilo era como voltar em um tempo onde sua vida havia
desmoronado feito uma torre atingida pela tempestade. — No entanto,
devido a uma série de circunstâncias, houve uma falha na análise e
interpretação dessas evidências, resultando em conclusões equivocadas.
— Tipo o quê?
Ela inspirou fundo, trocando o peso de uma perna para outra, o
movimento fazendo com que seu braço roçasse lentamente no braço tatuado
de Felipe, espalhando um arrepio quente por sua pele.
— Um dos principais erros foi a contaminação da cena do crime. A
equipe não conseguiu preservar adequadamente o local, permitindo que
evidências importantes fossem comprometidas. Isso incluiu a falta de
isolamento da área, a não utilização adequada de equipamentos de proteção
individual e a manipulação inadequada de objetos em busca de evidências.
Teve bastante descaso também, sabe? Já que minha mãe não era uma “figura
importante”. Era “só mais uma”. Algumas evidências cruciais foram mal
interpretadas, outras passaram despercebidas. Tudo isso levou a conclusões
errôneas sobre a autoria do crime, e deu tempo para que o verdadeiro
culpado desaparecesse do mapa sem precisar encarar a justiça.
Uma sombra irritadiça lampejou pelos olhos de Felipe; Mariana notou
como ele segurou a xícara de café com mais força.
— Essas impunidades no nosso país são uma merda mesmo. — Dali,
ela conseguia enxergar a pulsação dele latejando na veia da garganta. — Até
hoje, a polícia não encontrou o motorista que bateu no carro do meu irmão e
da minha cunhada.
— Sinto muito mesmo — ela murmurou, o coração se apequenando
dentro do peito — Essa falha na investigação do caso da minha mãe me
deixou com uma sensação de injustiça e impotência, sabe? Daí, depois disso,
coloquei na cabeça que entraria na Polícia Científica para garantir que
nenhum caso que caia em minhas mãos fique sem solução.
— Tenho certeza que você vai conseguir.
Mariana arqueou as sobrancelhas, encarando-o diante da afirmação tão
firme dita por Felipe.
— É mesmo?
— Você foi confrontar três agiotas para defender seu pai e pedir por
mais tempo para pagar a dívida dele. — Felipe sorveu o último gole do café.
— Se você teve coragem e determinação para fazer isso, você consegue
passar no concurso da Polícia Científica.
O ar ficou carregado de silêncio enquanto os dois se entreolhavam, as
palavras de Felipe ecoando no fundo da alma dela, alcançando um espelho
que vibrava ali, no fundo perdido de um sonho, reverberando para fora de si,
como se queimasse para quebrar o inatingível das íris dele.
Foi um infinito que veio e se foi, feito o ponto de um último verso.
E então, sem dizer mais nada, Felipe colocou a xícara vazia na pia e
começou a se afastar em direção à saída da cozinha. Antes de alcançar a
escada, ele virou o rosto, procurando pelos olhos dela.
— Quando você vai aparecer na academia para treinar?
A pergunta a pegou desprevenida, mas ela não conseguiu evitar um
leve sorriso ao responder.
— Talvez um dia a gente se esbarre por lá.
Felipe assentiu com um olhar significativo, que pareceu atravessá-la;
em seguida, subiu as escadas em direção aos quartos, desaparecendo de sua
vista, deixando-a sozinha na cozinha com os pensamentos inquietos.
Mariana suspirou, tocando o próprio rosto quente.
Acima da bancada, a janela se abria para a noite trêmula,
entrelaçando-se em sombras, segredos e desejos; tecendo uma harmonia
oculta, que não podia ser ouvida, mas que estava ali, latente, perdida em
lacunas profundas e obscuras.
12
Encomenda

A sala estava envolta em penumbra, com feixes de luz fraca atravessando as


cortinas cerradas.
Suas costas doíam por causa da cadeira desconfortável; já havia dito
para seu sócio trocá-las. Com um suspiro irritado, encarou a outra pessoa
sentada no lado oposto de uma mesa de madeira antiga, coberta por papéis e
documentos.
— E então?
— Precisamos entregar essa encomenda com urgência. — O tom
carregava uma tensão metálica, a voz ecoando no espaço escuro. — A
pessoa que solicitou tem pressa.
— E você trouxe os documentos?
A resposta obtida foi um aceno de cabeça.
— Estes são os elementos compatíveis que encontramos — explicou,
retirando de dentro de um envelope três papéis e os entregando nas mãos da
outra pessoa.
O som do papel sendo manuseado preenchia o ambiente.
Seus olhos caíram nos papéis, um risco marcando sua boca.
— Vou analisar tudo minuciosamente.
— Lembre-se, qualquer atraso ou falha será pago com consequências
indesejáveis. O tempo é um luxo que não temos.
Outro suspiro escapou de seus lábios, acompanhado de uma nota de
impaciência.
— Compreendo perfeitamente. Não se preocupe, farei o que for
necessário para cumprir as expectativas.
O silêncio se estendeu por alguns segundos, enquanto ambos se
encaravam na penumbra.
— Não demore. — Seu sócio se colocou em pé. — O tempo é nosso
inimigo.
Desta vez, optou por não responder à cobrança.
Sabia o que estava fazendo e nunca decepcionara nenhum cliente.
Com um aceno de cabeça final, recolheu os papéis e os guardou em
um envelope pardo, deslizando-o em um bolso interno de seu casaco.
Levantou-se lentamente e se afastou da mesa, deixando a sala com os passos
ressonando na escuridão.
13
O som da chuva
Vinte e dois anos atrás

A chuva caía torrencialmente do lado de fora, batendo contra as janelas,


criando uma melodia ritmada que ecoava no interior da casa.
Felipe colou o rosto no vidro, seus olhos infantis admirando a água
que borrava o jardim e criava poças no gramado.
— Mãe, a chuva não dá uma sensação diferente?
Sua mãe, agitada e vestida com um elegante casaco, andava de um
lado para o outro na sala, carregando um guarda-chuva na mão junto da
expressão de insatisfação.
— Que baboseira você está falando, Felipe? E tire a mão do vidro!
Vai manchar tudo o que a empregada limpou hoje.
O menino de oito anos encolheu os ombros e a obedeceu, voltando o
olhar para a sala. Seu irmão Diogo vestia um conjunto social que o deixava
parecendo um pouco mais velho que o rapaz era. E seu pai, deitado no sofá,
com a aparência frágil e cansada, parecia infinitamente mais confortável no
pijama de moletom.
— Não entendo por que você não pode ir comigo, Luiz! — Solange
cruzou os braços, lançando um olhar reprovador ao marido. — É só uma
peça de teatro!
Felipe observou o pai esboçar um sorriso fraco, mas sincero, que
tentava disfarçar o cansaço evidente do seu rosto.
— Eu sei, querida, mas hoje ficarei te devendo essa.
Sua mãe revirou os olhos, exasperada.
— Tudo bem. Faça como quiser. Os meninos vão comigo.
Ao ouvir aquilo, Felipe correu para longe da janela e se aproximou do
sofá onde o pai estava deitado.
— Eu vou ficar com o papai!
— Você sempre quer ficar com ele. — Solange revirou os olhos,
impaciente. — Seu pai não vai a lugar algum. Não seja tão apegado.
— Deixe o Fê aqui comigo, querida.
— Está bem, fique com o seu pai. Venha, Diogo, ou vamos perder
hora.
E, sem esperar por uma resposta, sua mãe pegou na mão de seu irmão
e saiu de casa, abrindo e fechando a porta em um baque seco.
— O que você ia dizer sobre a chuva, Fê?
O menino se aproximou do sofá, ficando com o rosto perto do rosto do
pai.
— Que ela dá uma sensação diferente.
— Que tipo de sensação?
— Não sei, é algo quentinho. — Ele colocou a mãozinha no próprio
peito. — Parece que o som da chuva tá abraçando a gente.
Seu pai sorriu com ternura, tossindo baixo ao tentar ajeitar a cabeça.
— Você está certo, filho. A chuva tem uma maneira mágica de nos
fazer sentir aconchegados. É como se estivéssemos protegidos dentro de
nosso próprio refúgio.
Felipe, animado com a resposta do pai, subiu no sofá e deitou-se ao
lado dele, apoiando a cabeça em seu peito.
— Também gosto de ouvir o som da sua respiração, papai. Gosto do
som da chuva e do som da sua respiração. As duas coisas fazem com que eu
me sinta bem.
Os dedos de seu pai afagaram gentilmente seus cabelos.
— Talvez nem sempre seja assim. Talvez nem sempre você tenha as
duas coisas. Mas a chuva sempre poderá te ajudar.
O menino soergueu o rosto, a expressão confusa.
— Como assim?
— Você vai saber que está em um lugar aconchegante quando o som
da chuva lhe der a sensação de que está recebendo um abraço quentinho.
◆◆◆

Atualmente

O ronco de sua Harley-Davison ecoou do caminho da oficina até as


imediações de sua casa no final daquela tarde; o trabalho havia acabado mais
cedo, e Theo recusara seu convite de tomar uma cerveja no Estradas &
Pistões, alegando que ia sair com uma garota naquela noite. Seu amigo até
dissera que arranjava alguém para ele; um convite que Felipe dispensou.
Sexo descomplicado era sempre bem-vindo, mas seu humor pedia por uma
noite de solidão e reclusão.
Felipe estacionou sua moto na garagem, desligou o motor e levantou a
viseira do capacete. O tempo estava pesado, com nuvens carregadas e um
vento úmido que cortava a pele.
Merda.
Iria chover naquela noite.
Talvez os primeiros pingos caíssem antes do anoitecer.
Seus dentes bateram contra sua vontade.
Odiava dias chuvosos.
Ao entrar na casa e pisar no hall da sala, seus ouvidos foram
preenchidos com o som cristalino de risadas divertidas.
Fazia tanto tempo que ele não ouvia um som tão...
Puro.
Retirando a jaqueta de couro, ele avançou para o meio da sala.
Ágata e Mariana estavam brincando animadamente no chão da sala,
rodeadas por uma variedade de maquiagens coloridas e pincéis, e não
perceberam sua chegada.
Aproveitando que havia passado despercebido, Felipe deixou os olhos
correrem por Mariana, um calor ardente invadindo seu peito e ali se
agarrando sem nenhuma permissão.
Havia algo naquela garota que sempre parecia puxá-lo, capturá-lo.
Algo que ficara ainda mais forte depois daquela noite na cozinha.
Ele simplesmente não conseguia não olhar para ela.
E, mesmo com o rosto pintado e maquiado por Ágata, tudo nela
permanecia perigosamente...
Atraente.
— Tio! — Ágata o chamou com um gritinho de empolgação assim que
o viu, fazendo Mariana erguer a cabeça.
O olhar dela o atingiu como uma onda, crescendo e avançando em
silêncio, e então o envolvendo com tanta força e rapidez que Felipe quase se
desequilibrou, quase perdeu a linha do raciocínio.
E então, ela sorriu.
E os olhos dele baixaram para a boca dela.
Para aqueles lábios pintados de cor-de-rosa, o batom meio borrado,
que libertavam o breve sussurro de uma respiração.
Santa Mãe de Deus!
Outra onda o atingiu; desta vez, ardendo e queimando cada pedaço do
seu ser.
— Felipe? — ela o chamou, ainda sentada no chão no meio das
maquiagens, os cabelos caindo pelos ombros. — Algum problema?
Ele se pegou entreabrindo os lábios, ansiando por ar.
Porque parecia humanamente impossível respirar.
— O tio quer brincar também! — Ágata saltitou pela sala, agarrando
sua mão e o puxando na direção do tapete.
“Não”, ele queria gritar. “Não tão perto dela”.
Mas era como se seu cérebro houvesse entrado em curto-circuito, e as
palavras não chegavam até sua boca em uma forma correta.
— Acho que seu tio está cansado, meu amor.
Ágata fez biquinho.
— Tá cansado, tio?
Felipe passou a mão pelo cabelo, tentando sorrir para a sobrinha,
tentando fazer qualquer coisa que o tirasse daquele torpor.
— Tô bem.
E, puxado por Ágata, ele se viu sentado no tapete, muito perto de
Mariana; perto o bastante para sentir a calidez que a pele dela emanava,
perto o suficiente para captar as notas adocicadas do seu perfume, o acelerar
quase imperceptível de sua respiração.
— Vou te deixar bonito, tio!
Felipe acenou de forma automática, tentando não olhar de soslaio para
Mariana, embora sentisse o toque do olhar dela por toda sua pele.
Controle-se, porra! O que deu na sua cabeça hoje?!
Ele tinha trinta anos.
Ela tinha vinte e cinco.
Ela era uma garota cuja família possuía problemas o bastante; ele já
detinha a própria cota de problemas.
Ela era uma funcionária da mansão.
Ela era a babá da sua sobrinha.
Os limites estavam claros até demais.
— Vira o rosto, tio — Ágata pediu, segurando um pincel.
Felipe obedeceu, porque não havia nada no mundo que o faria dizer
“não” para Ágata. Ele olhou para a janela. Para o céu que ficava cada vez
mais carregado. Para a cortina. Para a parede. Mas não para Mariana. Para
qualquer lugar, menos para Mariana.
Porque tinha certeza de que olharia para a boca dela.
E não sabia muito bem o que poderia acontecer em seguida.
Em uma distância tão perigosamente curta.
Puta merda, ele deveria ter aceitado o maldito convite de Theo e se
enroscado com alguma mulher desconhecida.
Talvez ainda desse tempo de ligar para ele.
Ágata passou o pincel em seu rosto; uma nuvem de pó vermelho e
dourado se espalhou diante de seus olhos, fazendo seu nariz coçar.
Ele escutou um som baixinho escapar dos lábios de Mariana; e, merda,
foi impossível não virar o rosto e olhá-la.
Mariana ergueu a mão, tentando segurar o riso, o rosto iluminado, os
olhos brilhantes, os cabelos caindo como cascata por seus ombros...
Felipe travou a respiração.
Porque, por um instante, o mundo parou de girar.
E tudo o que havia era aquele som delicado que provocava uma
queimação dissonante por todo seu sangue.
Ágata deu um risinho travesso.
— Quer batom, tio?
— Acho que seu tio já está ótimo, Ágata — Mariana interviu, tirando
a maquiagem da mão dela. — Vamos guardar as coisas agora? Logo, logo
preciso ir para a minha casa.
O coração de Felipe deu um salto inesperado dentro do peito.
E então, ele se lembrou de que aquela era a noite de folga dela.
— Não quero que você vá embora! — Os olhos de Ágata dobraram de
tamanho, ameaçando marejar.
Foi a vez de Felipe limpar a garganta e intervir.
— É o dia de descanso dela, Ágata. Todo mundo tem direito a
descansar, ir para casa, passear, sair.
Ágata a fitou, franzindo o cenho e apoiando as mãos na cintura.
— Vai saí com seu namolado, tia?
Felipe quase tossiu, e teve que se controlar para não olhar para
Mariana, fingindo estar ocupado demais apanhando um lenço para remover
aquele pó brilhante da cara.
— Não tenho namorado — Mariana respondeu, brincando com os
cabelos delas.
Ele soltou o ar.
De um jeito aliviado até demais.
Um jeito que o deixou irritado consigo mesmo.
— Então, fica comigo!
— Já te expliquei que hoje vou preparar um jantar para o meu papai,
meu amor — Mariana explicou, recolhendo os pincéis de maquiagem. —
Meu papai também tem saudade de mim.
Felipe virou o rosto, fitando o céu cinzento, um nó se formando no
meio da sua garganta.
Merda.
Ele daria qualquer coisa para ter a chance de preparar um jantar para o
próprio pai.
— Entendeu, meu amor? Vou ficar com meu pai e com a minha irmã
hoje, mas amanhã eu volto, tá bom?
— Podemos ver um filme juntos — Felipe propôs, sabendo que a ideia
de passar a noite recluso ou na cama de uma desconhecia aliviando uma
vontade que não seria aliviada por completo havia ido por água abaixo.
Ágata dobrou as pernas e abraçou os joelhos, afundando o rosto no
meio deles, os cabelos caindo para a frente.
— Mas eu queria ficar com você, tia Ma.
— Ágata — o tom de Felipe ficou um pouco mais rígido.
A menina fungou; um sinal de que estava prestes a chorar.
Com dor.
A porra do coração dele se partiu em dois.
Se sua cunhada não tivesse falecido no acidente...
Se seu irmão não estivesse inconsciente...
Se sua mãe fosse uma avó presente...
Se ele tivesse algum poder para tirar aquela dor dela...
Felipe correu os dedos pelos cabelos, exasperado, trocando um rápido
olhar com Mariana.
“Ela não costuma fazer esse tipo de birra”, disse em silêncio.
Nunca vira sua sobrinha tão apegada em uma pessoa.
Mariana assentiu, como se compreendesse o que ele estava tentando
explicar, e se aproximou de Ágata, acariciando os cabelos dela.
— Olha, Ágata, não fique assim. Nós brincamos bastante o dia inteiro
e nos divertimos muito, não foi? Amanhã eu volto para fazermos tudo de
novo. Por que você tá tão triste?
Ágata levantou os olhos.
Lágrimas grossas enchiam as pequeninas íris castanhas.
Com um suspiro, ela apontou para a janela, onde o céu ficava mais
carregado a cada instante que se passava, anunciando a chuva que se
derramaria a qualquer momento.
— É que não vai ter estlelinha no céu hoje.
Felipe engoliu em seco.
E teve impressão de ver o lábio inferior de Mariana tremendo.
Porra.
Se ele estava se sentindo impotente antes diante da angústia da
sobrinha, agora a sensação havia triplicado.
Era de partir o coração.
Ágata só queria a mãe.
Como qualquer outra criança.
E tudo o que lhe restava era um abrigo vazio, corroído pela música de
uma permanência que tinha se derramado e se perdido como a lava de um
vulcão; marcada e endurecida, incapaz de ser arrancada.
Era injusto demais que ela, com tão pouca idade, já houvesse
experimentado uma perda avassaladora como aquela.
Uma perda que ele conhecera quando tinha oito anos.
Por que a vida é tão fodida e injusta?
Mariana suspirou, fitando a janela.
— Você tem razão, meu amor. É bem provável que o céu fique
encoberto a noite toda hoje.
Ágata piscou.
— Então você vai ficar, tia?
— Vamos fazer diferente. — Mariana tocou no rosto dela. — Que tal
você e seu tio irem jantar lá em casa hoje à noite?
14
Tão perto
Treze anos atrás

Sentada confortavelmente na poltrona, Mariana tentava ler, pela terceira


vez, o mesmo parágrafo do livro de fantasia que ganhara de sua mãe na
semana anterior, em sua festinha de aniversário de doze anos. Contudo,
Lívia, no cercadinho, ficava fazendo barulho com os brinquedos e
balbuciando sozinha, quebrando toda a sua concentração.
Com um suspiro, Mariana fitou a irmãzinha de dois anos.
— Você quer minha atenção? É isso?
Lívia sorriu e balbuciou várias palavras; ela entendeu que aquilo era
uma confirmação à sua pergunta.
Mariana fechou o livro e se levantou, pronta para andar até o cercado
e pegar Lívia no colo. Durante as tardes, ela costumava ficar com a irmã
enquanto o pai trabalhava na loja que havia aberto há pouco tempo e sua
mãe saía para fazer compras para repor o estoque.
Antes que pudesse chegar até a irmã, o telefone tocou, e Mariana
correu para atendê-lo antes do quarto toque.
— Alô?
— É da casa do senhor Alberto Pereira? — uma vez feminina e séria
indagou.
— É sim.
— Gostaria de falar com ele ou com algum adulto responsável, por
favor.
Mariana estufou o peito; sua mãe sempre dizia que, na ausência dela
e do pai, ela era a adulta responsável do lar.
— Pode falar comigo.
— Aqui é do Hospital Vera Cruz. A senhora Maria Luiza Pereira
acabou de ser trazida até nós, após sofrer um assalto e ser esfaqueada. Peço
desculpas por dar a notícia assim. Infelizmente, fizemos tudo o que estava
ao nosso alcance, contudo ela não resistiu, veio a óbito e estamos tentando
contatar os parentes dela e...
◆◆◆

Atualmente

Enquanto terminava de refogar a carne e saltear os legumes na


manteiga, Mariana se perguntava sem parar o que tinha dado em sua cabeça
para convidar Felipe e Ágata para jantar em sua casa.
Havia sido mais forte do que ela.
Olhar para aquela menina, para aquele pedido que carregava a
imensidão da ausência do mundo, foi como entrar em um veleiro e rumar por
um passeio desajeitado, uma volta no tempo onde um único segundo foi
capaz de transformar todo o sentido da natureza.
“Infelizmente, fizemos tudo o que estava ao nosso alcance, contudo
ela não resistiu, veio a óbito e estamos tentando contatar os parentes dela
e...”.
Ela engoliu em seco, afastando lágrimas antigas e mexendo os
legumes para que eles não queimassem.
De qualquer forma, ver a tristeza que marejava em Ágata foi como se
colocar diante de um espelho; de ver seu eu de doze anos, sozinho em uma
casa com uma criança de dois anos, recebendo a notícia da morte violenta da
mãe.
E, quando percebeu, o convite havia sido feito.
“Que tal você e seu tio irem jantar lá em casa hoje à noite?”.
Ela achou que Felipe recusaria assim que dissera aquilo.
Mas o brilho voltara para os olhos de Ágata.
E lá estava ela; preparando o jantar para cinco pessoas, enquanto
Felipe dividia uma bebida com seu pai na sala de estar e Ágata brincava
animadamente com Lívia.
Minha nossa, isso está mesmo acontecendo?
Mariana olhou por cima do ombro; dali da cozinha, tinha um
vislumbre da sala e conseguia ver seu pai sentado na poltrona, segurando
uma latinha de cerveja, à frente de Felipe, que estava no sofá. Ele vestia uma
camiseta regata preta que realçava seus braços tatuados e seus bíceps
definidos. Seu cabelo estava um pouco bagunçado, o que lhe conferia um
charme despretensioso.
A visão causou uma aceleração anormal em seu coração, o calor se
espalhando por seu rosto.
— Por que o seu rosto está tão vermelho, Mari? — Lívia perguntou
com malícia, erguendo uma sobrancelha sugestivamente enquanto entrava na
cozinha.
Mariana deu de ombros, voltando a atenção para a carne.
— É o calor da cozinha.
Lívia riu, desconfiada.
— Calor da cozinha? Hum, sei. Isso parece mais um “calor humano”.
Aquele ali na sala é o pai da Ágata?
Mariana tentou disfarçar a acentuação do rubor nas bochechas,
pegando uma tigela para continuar preparando o jantar.
— Ele é o tio.
Lívia sorriu ainda mais, deslizando o polegar pelo queixo.
— Que tio, hein? Te deixa até com o rosto vermelho.
Mariana revirou os olhos, desligando o fogo dos legumes.
— Você está exagerando.
— Ih, nem tente me enganar. Você sabe que eu te conheço. — Lívia se
aproximou e deu um tapinha leve no ombro de Mariana. — Não preciso de
detalhes. Só quero saber se você já fez acrobacias em cima daquele
monumento tatuado.
Mariana quase se engasgou.
— Claro que não!
— Tá tudo bem aí na cozinha, meninas? — ela escutou a voz do pai
vindo da sala.
— Tá sim, pai! — Mariana sentia o rosto queimar insanamente.
Lívia jogou a cabeça para trás, dando uma gargalhada e recebendo um
cutucão de Mariana.
— Se eu fosse você, Mari, não perderia tempo. — Sua irmã baixou a
voz. — Imagina a pegada daqueles braços e daquelas mãos.
Droga.
Ela não queria imaginar a pegada daqueles braços e daquelas mãos.
Mas tudo o que seu cérebro traidor fazia naquele momento era lhe
mandar as mais perigosas, quentes e eróticas imagens para sua mente.
— Ele é praticamente meu chefe — Mariana ralhou para a irmã, as
bochechas ardendo, voltando toda a atenção para a finalização do jantar.
— Acho que vale uma quebra na regra de “não se come a carne onde
se ganha o pão”.
Céus.
A sensação era de que seu sangue corria três vezes mais rápido,
acelerando o coração, a mente, a respiração.
— Vocês precisam de ajuda com alguma coisa?
A voz grave e rouca de Felipe causou um sobressalto e um
estremecimento por todo o corpo de Mariana.
Ela se virou, olhando por cima do ombro; a presença dele enchia a
cozinha, parecendo cercá-la, envolvê-la.
— Ela precisa sim! — Lívia respondeu rápido, a língua travessa. —
Vou arrumar a mesa lá na sala. Ágata, me ajuda a colocar os talheres?
E, feito um vendaval, Lívia saiu da cozinha.
Mariana fez uma nota mental para não se esquecer de esfregar o rosto
da irmã no asfalto quente na primeira oportunidade que tivesse.
— O que você quer que eu faça? — Felipe perguntou, dando mais um
passo para dentro da cozinha.
O coração de Mariana batia na garganta, nos ouvidos, na boca.
— Hã... Você pode temperar a salada.
— Certo. Tem alguma preferência?
— Pode fazer uma mistura com o sal, o azeite e o vinagre.
Felipe assentiu, colocando-se ao lado dela; o cheiro do perfume dele
se intensificando, se sobrepondo ao aroma da comida em seus sentidos.
Mariana se esforçou para finalizar a carne com toda a concentração do
mundo. Esforçou-se de verdade. Mas não havia muito segredo na receita
quase finalizada, e, toda vez que Felipe se movia para temperar a salada, o
corpo grande dele quase roçava no dela e Mariana tinha que erguer os olhos.
— Obrigado.
Ela piscou, não sabendo se havia escutado direito.
— Obrigado — Felipe repetiu, e, se Mariana não estivesse olhando
diretamente para ele, teria duvidado de sua própria audição.
E teria perdido aquele lampejo de fogo no olhar dele, quente e feroz,
ardendo por menos de um segundo antes que ele voltasse a atenção para o
tempero da salada.
— Pelo quê? — ela sussurrou. Do lado de fora, o entardecer já havia
se transformado em noite; o vento se intensificava, trazendo a umidade da
chuva que iria cair a qualquer instante.
— Por convidar Ágata para jantar aqui.
— Ela estava triste. Não foi nada. Eu...
Ele olhou para ela.
— Foi tudo.
Os lábios de Mariana se entreabriram.
Ela não conseguia desviar o olhar.
Talvez nenhum ser humano conseguisse.
Simplesmente era algo impossível.
Tudo em Felipe era chamativo, desde os cabelos escuros, espessos e
bagunçados, os olhos que pareciam sempre carregar fogo, até a linha forte do
maxilar, acentuando a boca rude e bem marcada.
— Mariana?
O olhar dele baixou em reflexo, descendo para os lábios dela.
Ouvir seu nome sair daquela boca em um sussurro, como um vento
tilintante, cadenciado pelas primeiras gotas de chuva que começavam a bater
contra a janela, quase a fez prender o ar.
— Eu... — Ela teve impressão de dar um passo na direção dele; ou
teria sido ele que se aproximara dela?
E olhar para aquela boca...
E senti-lo olhando de uma forma magnética para seus lábios...
— Foi uma surpresa para mim te ouvir fazendo o convite.
— Eu precisava vir até a minha casa, mas Ágata não queria que eu
fosse embora. A ideia de convidá-los para jantar aqui surgiu do nada na
minha mente. Foi uma surpresa para mim você aceitar o convite.
— Acho que eu também não queria que você fosse embora.
Mariana arfou baixinho.
E notou que ele parecia tão chocado quanto ela com o que dissera.
E que ele estava muito próximo.
Ela ergueu o queixo, incapaz de escapar dos olhos dele.
E ficou sem ar.
— Mariana... — ele sussurrou, e levantou a mão, como se estivesse
prestes a tocar o rosto dela.
15
Gotas cálidas

Foi na fugacidade de um relâmpago matizado de azul que Felipe percebeu o


que quase fez.
O que estava quase prestes a fazer.
O que talvez ainda quisesse fazer.
Ele quase havia beijado Mariana no meio da cozinha da casa dela.
— Ágata gosta muito de você e sua presença faz bem para ela — ele
disparou, surpreendendo-se por praticamente gaguejar palavras confusas
enquanto recolhia a mão e dava um passo esquisito para trás.
Mariana piscou rapidamente.
Parecia confusa.
Merda.
Ele estava fodidamente confuso.
— Começou a chover — Felipe falou, encarando a janela.
— Sim, começou.
Ele voltou o olhar para ela. Com o cenho franzido, o rosto
ligeiramente avermelhado, tentadoramente afogueado, Mariana o encarava
como se ele tivesse enlouquecido.
O que não era impossível de estar acontecendo.
Felipe não conseguia pensar em nenhuma outra explicação para aquela
sensação aérea, sufocante e irritante que queimava em seu sangue.
— Filha, sua irmã terminou de arrumar a mesa. — O pai de Mariana
surgiu na porta da cozinha. — A comida está pronta?
Mariana assentiu, empurrando os cabelos para trás da orelha em um
gesto meio desajeitado, o qual Felipe não conseguiu desviar o olhar um
segundo sequer, imaginando se aqueles fios eram tão macios quanto
pareciam.
— Sim, vamos comer.
◆◆◆

Felipe achou que aquelas sensações insanas passariam durante o


jantar, feito vapor que subia e se dissipava no ar.
Mas toda vez que Mariana, sentada à sua frente na mesa, dava risada
de alguma gracinha de Ágata ou de alguma coisa contada pela irmã mais
nova, o sangue dele ardia como se fosse feito do mais fogo puro do inferno.
Do lado de fora, a chuva fina havia se transformado em uma
tempestade feroz, sacudindo a casa e as janelas, acompanhada do ribombar
de trovões longos e relâmpagos fugazes.
O ambiente dentro da casa, por outro lado, estava aquecido pela
presença de todos à mesa.
Completamente diferente da sensação que ele experimentava em sua
própria casa, nas vezes em que conseguia partilhar um jantar com a mãe.
Ele suspirou, dando uma checada rápida no celular.
Tinha mandado uma mensagem para a mãe, avisando que jantaria fora
com Ágata. O texto estava marcado como visualizado; contudo, nenhuma
resposta ou questionamento viera da parte dela.
Como sempre.
Felipe voltou o celular para o bolso da calça, trazendo sua atenção
para a mesa de jantar.
Ágata estava animada e contava suas aventuras na escola, enquanto
Lívia ria e fazia piadas sobre os próprios colegas de classe.
— Você tem namolado? — Ágata perguntou para Lívia.
— Hum, isso é segredo — Lívia devolveu, dando uma piscada para a
menina.
— Como assim, Lívia? — Mariana arqueou as sobrancelhas. — Você
é nova, tem que se concentrar nos estudos.
— Tenho quinze anos. Não se preocupe comigo, Mari.
Mariana abriu a boca para contra-argumentar, mas Ágata a cortou.
— A tia Mari não tem namolado.
Lívia cutucou a bochecha, fingindo ficar pensativa.
— Temos que arranjar um namorado para ela, não temos? Ou será que
ela já gosta de alguém e também está escondendo isso em segredo?
De soslaio, Felipe notou as bochechas de Mariana ruborizarem.
Foi uma visão que fez todo o corpo dele acelerar.
Lívia riu outra vez, acentuando o clima leve e divertido.
O pai de Mariana também estava bem-humorado, contando histórias
do passado e relembrando momentos especiais da infância das meninas.
Felipe tentava participar da conversa, mas seus pensamentos voltavam
constantemente para Mariana. Ele notou a maneira como ela sorria e
interagia com a família, sua risada delicada tilintado pela sala, em harmonia
com a chuva. Cada gesto dela parecia se gravar em sua mente, adensando a
atração que tudo nela exercia sobre ele, inquietando-o mais e mais.
Enquanto observava Mariana, não pôde deixar de pensar no pai dela,
na dívida que aquele homem fizera com os agiotas para salvar seu próprio
negócio e sustentar a família.
Vez ou outra, Felipe recebia um olhar do pai dela, algo que lampejava
respeito e gratidão, como se ele visse Felipe como alguma espécie de
salvador por ter empregado Mariana.
E aquilo o deixava com um gosto estranho na boca.
Estranho?
Não.
Diferente, talvez.
Alguém tão fodido como ele não podia ser visto como salvador.
Em algum momento, o assunto sobre a faculdade, cursos e trabalho
veio à tona. Mariana falou sobre o concurso da Polícia Científica,
mencionando que continuava estudando nas horas vagas.
— Será que você consegue passar, Mari? — Lívia indagou, meneando
a cabeça. — Todo mundo fala que concurso público é tão difícil.
— Ela é dedicada e esforçada — Felipe disse, sua voz grave se
sobressaindo na conversa. — É claro que ela vai passar.
Um instante de silêncio caiu sobre a mesa.
Mariana ergueu a cabeça, abrindo um sorriso de gratidão, a chama
doce e arrebatadora dos olhos dela fazendo o coração dele acelerar.
— Filha, com certeza você vai passar — o pai de Mariana a encorajou,
a voz suave e sincera.
Felipe quase se pegou sorrindo para o homem.
Não conseguia evitar lembranças de seu próprio pai, que havia sido
seu herói, assim como o pai de Mariana era para ela e Lívia. Não conseguia
evitar a mistura de gratidão, saudade e amargor revolvendo dentro do peito.
De uma ausência que jamais poderia ser preenchida.
Felipe inspirou fundo, fitando a tempestade do lado de fora.
“Você está certo, filho. A chuva tem uma maneira mágica de nos fazer
sentir aconchegados. É como se estivéssemos protegidos dentro de nosso
próprio refúgio”.
A sensação de aconchego que a chuva tinha trazido para o menino que
um dia ele fora nunca mais voltara para seu eu que teve que ser criado após a
morte do pai.
Felipe virou o rosto, capturando o olhar de Mariana em sua direção.
Por todas as forças do céu.
Como aquela mulher podia ser tão...
Linda. Preciosa. Doce.
Droga, não tinha uma palavra certa.
Uma palavra suficiente.
Ele não se lembrava de ter se sentido tão fora de si na presença de uma
mulher em algum outro momento de sua vida.
Está tudo bem?, as íris castanhas pareciam indagar, preocupadas.
Ele se limitou a um aceno de cabeça, engolindo em seco e enfiando
mais uma garfada da comida maravilhosa dentro da boca, contentando-se
com a alegria que irradiava da sobrinha.
Se Ágata estava feliz, aquilo bastava.
Não precisava de mais nada.
Apenas de Ágata feliz, de sua oficina e de sua moto.
Mariana riu de uma piada de Lívia.
Apenas...
Apenas.
◆◆◆

Depois do jantar, a sobremesa foi servida — um pote de sorvete de


morango que o pai de Mariana encontrou no freezer. Foi o a alegria de
Ágata, que se divertia com os bigodes de sorvete que ficavam em seu rosto.
— Agradecemos demais pelo jantar, mas temos que ir — Felipe falou
após ajudar Mariana e Lívia a tirarem a mesa. — Está tarde.
Ágata fez biquinho.
— Já, tio?
— Já. Você precisa dormir. Sua avó vai ficar preocupada se
demorarmos mais. — Era uma bela de uma mentira, mas era um argumento
que podia ser usado com uma criança.
Mariana caminhou até a janela, observando o lado de fora.
— A chuva está muito, mas muito forte mesmo. Não sei se é seguro
vocês voltarem agora.
— Tô de carro e conheço bem as ruas — Felipe respondeu, embora
uma parte sua realmente concordasse que a tempestade que despencava era
uma das mais severas que testemunhara nos últimos tempos.
— Acho melhor vocês reconsiderarem essa ideia — Lívia falou,
mexendo no celular. — Acabei de receber um alerta aqui de que há vários
pontos de alagamento na cidade.
Felipe apanhou o próprio celular, confirmando o aviso. Trincou o
maxilar, praguejou baixo. Merda. Não era seguro atravessar a cidade com
Ágata. Não naquelas condições.
— Podemos ver um filme juntos até a chuva diminuir — Mariana
sugeriu, a voz adocicada espalhando faíscas pela pele dele. — O que acham?
Você já tinha sugerido ver um filme com a Ágata hoje.
Uma veia pulsou na garganta de Felipe.
Aceitar seria ficar mais tempo ali.
Perto dela.
Do perfume dela.
Da presença que eletrificava o ar ao redor dele.
— Eba! — Ágata gritou, pulando pela sala de um lado para o outro.
Aquele foi o maldito veredicto.
Felipe não encontrou um contra-argumento.
Não podia fazer igual ao pai de Mariana, que se recolheu no quarto,
deixando-os na sala.
Em pouco tempo, estavam todos ajeitados no sofá; Mariana e ele em
um extremo, com a sobrinha no meio deles, e Lívia na ponta, formando um
pequeno círculo. Ágata insistiu que queria ver Enrolados, e a ideia da
menina foi acatada por todos.
Enquanto o filme se desenrolava, a chuva caía sem dar trégua.
— Eu amo vocês! — Ágata despejou em algum momento no meio do
filme, causando uma ternura avassaladora no peito de Felipe.
“Talvez nem sempre seja assim. Talvez nem sempre você tenha as duas
coisas. Mas a chuva sempre poderá te ajudar”.
Com um pequeno sorriso emocionado, escondido na penumbra da
sala, Felipe esticou a mão, acariciando os cabelos da sobrinha, no mesmo
instante em que Mariana ergueu a mão para fazer um carinho em Ágata.
“Como assim?”.
Os dedos dela roçaram nos dedos dele, e seus olhares silenciosos
receberam um ao outro, sustentando-se, ali se demorando, iluminados entre
os relâmpagos, ecoando nos trovões e no sangue de Felipe uma voz antiga,
familiar, tão cálida que parecia envolvê-lo.
“Você vai saber que está em um lugar aconchegante quando o som da
chuva lhe der a sensação de que está recebendo um abraço quentinho”.
16
Rubi líquido

Só havia uma coisa que era melhor do que o cheiro do sangue — era o
cheiro do medo que a presa exalava durante a caçada, durante aqueles
segundos que antecediam seu destino inevitável.
Não tinha nada mais inebriante e viciante do que aquela fragrância.
Era uma pena que durava tão pouco.
— Por favor... Por favor... Não sei quem você é... Nunca te vi antes...
Eu tenho dinheiro. Posso te dar quanto dinheiro você quiser. Apenas me
deixe ir. Por favor.
Quase riu.
— Por favor...
Do canto de sua boca, somente um sopro irônico, trêmulo, escapou em
deleite.
Dinheiro não compraria o cheiro.
Dinheiro não compraria aquele deslizar voluptuoso que se espalhava
por sua pele conforme o cheiro do medo da presa ficava mais intenso, mais
desesperador, mais...
Perfeito.
Sob a luz de um relâmpago claro, soergueu e desceu a faca em um
golpe brutal, preciso, rasgando a garganta da sua presa.
Apenas a garganta.
As ordens eram para não danificar mais nada.
Mas já bastava.
E, enquanto a chuva despencava de forma violenta do lado de fora, sua
cabeça se inclinou para frente, permitindo que o olfato desfrutasse do cheiro
do sangue que deslizava do corte aberto para o chão, formando uma poça
que brilhava tanto quanto uma tapeçaria de rubi líquido.
17
Lentamente caindo

A brisa úmida da manhã entrava pelas janelas entreabertas, trazendo um ar


fresco e revigorante para a sala. Os primeiros raios do sol já se faziam
presentes, espalhando um calor suave pelo ambiente.
Mariana acordou devagar, os olhos ainda sonolentos, e percebeu que
havia adormecido no sofá. Ao olhar em volta, viu que Lívia, Felipe e Ágata
também estavam dormindo na sala, formando uma imagem que depositou
um beijo cálido em seu peito.
Aconchegada entre as almofadas, ela sorriu ao se lembrar da noite
anterior, da tempestade lá fora, dos risos e do filme assistido juntos.
Os sons vindos da cozinha indicavam que o pai dela estava acordado e
preparando o café da manhã. O aroma convidativo do café pairava no ar,
deixando o ambiente ainda mais acolhedor.
O melhor cheiro do mundo.
Mariana tentou se levantar em silêncio do sofá, mas, ao fazer um
movimento para se erguer, um leve rangido do estofado entregou sua
intenção. Seus olhos se arregalaram momentaneamente, mas logo se
encontraram com os de Felipe, que também parecia estar despertando.
O sol que entrava pela janela acariciava o rosto dele, realçando a
tonalidade intensa de seus olhos castanhos, a luz pintando-o com um tom
dourado, etéreo, causando um descompasso no coração dela.
Que homem lindo.
E o semblante tranquilo e sereno que ele tinha ao despertar, tão
dissonante de suas expressões sempre sérias e austeras, desenhava nele um
outro ângulo de beleza; mais leve, e, ainda assim, mais pulsante.
Felipe virou o rosto em sua direção; e o pequeno sorriso que se formou
tomou os lábios dele fez com que Mariana sentisse como se uma barreira
invisível estivesse caindo entre eles. Lentamente caindo. Era a primeira vez
que ela o via sorrir de uma maneira tão genuína, sem qualquer traço de
deboche ou ironia. Era ele ali, apenas ele.
— Bom dia — Felipe murmurou, a voz rouca pelo sono.
— Bom dia — ela respondeu de volta, o coração dando um salto
involuntário e afoito no peito.
Felipe esticou os braços acima da cabeça, espreguiçando-se. Mariana
acompanhou cada movimento, admirando os músculos e as tatuagens que
decoravam seus braços. Ele era uma obra de arte viva, e ela se pegou
desejando explorar cada detalhe daquele corpo escultural.
Minha nossa, no que estou pensando?! Ele é praticamente meu chefe!
Decidiu culpar Lívia por aqueles pensamentos invasivos.
— A noite chuvosa nos pegou desprevenidos, não é? — Felipe
comentou, tocando os cabelinhos de Ágata, que estava deitada entre eles.
— Acho que nem percebemos quando adormecemos aqui no sofá. Não
me lembro de ter visto o fim do filme. — A mente dela deu um estalo. —
Nossa, sua mãe deve estar super preocupada por vocês não terem voltado
ontem!
Como se ainda estivesse acordando por completo, ele se sentou e se
ajeitou, esfregando os olhos com as mãos, antes de fitá-la outra vez.
— Garanto que minha mãe não está nem um pouco preocupada.
Mariana arqueou as sobrancelhas.
— Com o fato da neta dela de quatro anos ter passado a noite fora?
— Minha mãe sabe que Ágata está comigo. — Felipe inspirou fundo,
correndo os dedos pelos cabelos. — É suficiente para ela. Entenda que as
preocupações da minha mãe se voltam em garantir que Diogo fique bem e
saudável para, quando e se ele acordar do coma, ele consiga voltar a ter uma
vida normal.
— Mas...
Seu movimento fez Ágata se remexer e acordar, obrigando Mariana a
engolir a vontade de replicar que dona Solange não era uma boa avó para
Ágata. Tudo bem, entendia que deveria ser horrível ter um filho em coma.
Desesperador. Assustador.
E que se agarrar à esperança de que um dia ele saísse daquele estado
podia ser a única razão que a tirava da cama.
Mas Ágata estava ali e precisava de atenção e...
Ora, pare com isso, Mariana. Isso não é problema seu, e você não
quer perder o emprego por falar demais o que pensa.
Mas, mesmo assim...
Se sua mãe fosse viva, e Lívia ou ela tivessem filhos, sua mãe jamais
se comportaria como dona Solange, e...
Mariana suspirou e fitou Felipe.
Era melhor mesmo parar de tocar no assunto.
Não por causa do seu emprego, e sim por ele.
Por Felipe.
Por mais que Felipe tentasse disfarçar, ela via a dor e a amargura que
lampejavam nos olhos dele.
E ela se pegou desejando trazer de volta o semblante sereno e o sorriso
gentil para o rosto dele outra vez.
Ágata suspirou baixinho, olhando em volta.
— Cadê meu quarto, tio Fê?
— Você não dormiu no seu quarto essa noite.
A menina esfregou os olhinhos e bocejou, ainda sonolenta,
assimilando a informação.
— Bom dia, meu povo. O café está pronto e tem pão fresco. — Seu
pai surgiu na porta da sala, carregando uma expressão leve que Mariana não
via há muito tempo.
Ágata bocejou outra vez.
— Tô com fome, tia Ma.
— Então, vamos comer, pequena. Vamos tomar um café da manhã
delicioso — ela falou, ajudando Ágata a ficar em pé.
Lívia bocejou, esticando os braços e se espreguiçando.
— Café da manhã é uma ótima ideia.
◆◆◆

Após a tempestade, a cidade permanecia coberta por um véu de


umidade, com os raios do sol pintando o céu de tons dourados e rosados. As
ruas brilhavam com as poças de água deixadas pela chuva, e o aroma fresco
e limpo da terra molhada preenchia o ar.
Felipe dirigia em silêncio de volta para a mansão, com Mariana ao seu
lado no banco do passageiro e Ágata no banco de trás, animada com as gotas
de água que ocasionalmente escorriam pelo vidro.
Ao chegarem na mansão, o som dos pneus do carro passando sobre a
entrada de pedras ecoou.
— Tio! O gatinho tá ali! Ele voltou!
Assim que Felipe guardou o carro na garagem, Ágata saltou para fora
do veículo, correndo atrás do gatinho no meio do jardim. Mariana apertou os
olhos, vendo o animalzinho miar assustado e pular no meio dos arbustos,
desaparecendo antes que Ágata o alcançasse.
Ela riu sozinha, divertindo-se com a cena enquanto descia do carro.
— Por que vocês não deixam Ágata ter um gato ou um cachorro?
— Minha mãe não gosta de animais, além de ser alérgica a gatos.
Quando eu era criança, meus cachorros sempre fugiam e desapareciam. —
Felipe deu de ombros. — Ela se cansou do meu choro e proibiu qualquer
animal de estimação de entrar aqui em casa.
— Entendi. Que pena. Ágata ficaria feliz com um gatinho.
— Eu sei... Enfim, o que você vai fazer agora? — Felipe perguntou, a
voz grave e rouca capturando a atenção e o olhar dela.
— Vou dar um banho em Ágata e trocar a roupa dela — respondeu,
alternando a visão entre a menina e Felipe. — E você, o que vai fazer?
Ele trocou o peso de uma perna para a outra, movendo os braços de
uma forma quase imperceptível, mas que fez os bíceps e as tatuagens se
destacarem embaixo da luz do sol. A camiseta delineava seu peito, o tecido
parecendo querer explodir em alguns momentos, causando uma inquietude
nos dedos dela.
— Estava pensando em usar academia. Quer treinar comigo?
Os lábios de Mariana se entreabriram, pegos de surpresa com o
convite inesperado. Felipe era uma incógnita, uma combinação que exalava
perigo, que impelia os sentidos prudentes a ficarem longe; mas, ao mesmo
tempo, exerciam um magnetismo que a enredavam em uma teia que ela não
conseguia — talvez não quisesse — escapar.
— Claro, por que não?
◆◆◆

Não demorou muito para que Mariana cuidasse de Ágata e a deixasse


brincando no quarto, para então ir ao encontro de Felipe na academia. Ao
entrar no ambiente repleto de equipamentos de treinamento, viu-o realizando
uma série de exercícios com uma barra fixa. Suor manchava sua regata,
colando-a ao peitoral definido. Ele estava tão concentrado que ela não quis
interrompê-lo com o anúncio de sua chegada.
Seguindo as instruções do antigo professor de sua academia, ela se
aqueceu um pouco na esteira e depois se dirigiu para a frente de um espelho
que ocupava uma parede inteira da academia, segurando um par de halteres e
iniciando uma série de treino para o ombro.
— O movimento que você tá fazendo com halteres tá errado — Felipe
falou, quebrando sua concentração. — Assim você vai se machucar.
Mariana meneou a cabeça e se observou no espelho, erguendo e
abaixando os pesos.
— Acho que está certo.
Ele ergueu as sobrancelhas; um tom de deboche sondava seu olhar.
— Não, tá errado.
— Mas o professor da academia me ensinou desse jeito.
— Ensinou errado.
Ela bufou e revirou os olhos.
— E como seria o certo, senhor personal trainer?
Felipe largou a barra e andou até Mariana, posicionando-se atrás dela.
Ela prendeu a respiração ao sentir o peito dele roçando em suas costas,
enquanto os braços fortes e tatuados a envolviam, posicionou suas mãos
sobre as dela, ajustando a pegada nos halteres.
— Preste atenção. — A respiração de Felipe roçou em sua nuca, e ela
estremeceu discretamente. — Olhe para o espelho.
Tentando não engolir em seco, Mariana ergueu o rosto e o obedeceu.
Os olhos dele, que ela via através do espelho, escureceram em uma cadência
desconcertante; uma nova rajada de ar tocou sua nuca, arrepiando a pele da
região sensível.
— Vou começar.
Ela assentiu, incapaz de falar.
Oi, Deus, sou eu de novo. Me ajuda.
— Mantenha os cotovelos próximos ao corpo e levante os halteres
lentamente, expirando ao subi-los e inspirando ao descer — ele explicou,
enquanto os dedos se moviam com firmeza para corrigir a postura dela.
Mariana fechou os olhos por um instante, tentando se concentrar na
orientação de Felipe, mas era difícil ignorar a sensação do toque dele em sua
pele. A proximidade física entre os dois era intensa, e a cadência de suas
respirações parecia sincronizada.
— Assim — ele falou baixo, e ela abriu os olhos, encontrando
novamente o olhar de Felipe refletido no espelho. Seus olhos estavam
escuros e focados, e Mariana sentiu seu coração acelerar em um galope
feroz.
Ela tentou seguir suas instruções da melhor forma possível, mas a
presença de Felipe tão próxima dela a deixava desconcertada.
— Quer que eu faça um pouco mais rápido? Ou com mais força? —
ele sussurrou no ouvido dela, o timbre baixo, voraz.
Calor varreu o rosto de Mariana, transformando-a em líquido, uma
gota tocada pelo fogo que se irradiava dele, evaporando-se em seus braços.
O peito de Felipe se colou mais às costas dela.
Ela tinha certeza de que as pernas falhariam a qualquer momento.
Tinha certeza de que...
E, como um raio fendendo entre as montanhas, um grito alto e
desesperador irrompeu pela casa, ecoando do segundo andar.
18
Um jato de água

O grito agudo cortou o ar, interrompendo o treino de Mariana e Felipe. O


coração dele deu um salto; aquela era a voz de sua mãe.
Ambos se entreolharam, preocupados, largando os halteres no chão e
correndo para o segundo andar da mansão.
Os nervos de Felipe se acentuaram que a confusão vinha de dentro do
quarto de Diogo. Na metade do corredor, já conseguia enxergar sua mãe
gritando com Rosana, acusando a empregada de ter manchado os lençóis da
cama de Diogo e os lavado sem sua permissão.
— Você sabe que somente eu posso tirar e colocar os lençóis limpos
na cama do meu filho! — Os olhos de Solange estavam em chamas de raiva,
e sua voz cortava o ar como um chicote. — Veja só o que você fez! Você os
manchou com seus produtos!
— Eu não fiz isso, senhora Solange! Conheço as regras! — Rosana
respondeu, assustada. — Eu juro!
Soltando um suspiro cansado, com a nuca latejando e as têmporas
pulsando, Felipe se colocou entre a mãe e Rosana, já imaginando qual seria
o desfecho daquela história.
— Mãe, acalme-se. Vamos resolver isso com calma, está bem? Rosana
tem sido uma excelente funcionária, ela jamais faria algo assim. E, se
aconteceu, tenho certeza de que foi um acidente.
Mas sua mãe permanecia irredutível.
— Não quero ouvir desculpas! Ela manchou os lençóis! Os lençóis do
meu Diogo! Ela está demitida, entendeu?
Rosana começou a chorar, com as mãos tremendo de nervosismo.
— Por favor, senhora, eu juro que não fiz nada! Por favor, acredite em
mim!
— Amanhã, as colegas de escola da Ágata vão vir aqui com suas
mães, e vamos precisar de ajuda extra para cuidar de tudo. — Felipe tentou
argumentar mais uma vez, trocando um olhar com Mariana. — Deixe
Rosana trabalhar mais um dia, por favor. Depois disso, pensaremos em uma
solução.
Solange bateu os dentes, torcendo o rosto, dando a impressão de que
seus cabelos estavam ainda mais repuxados no coque alto.
— Está bem, mas que seja a última vez! — ela esbravejou, apontando
um dedo acusador para Rosana, que se encolheu. — Você tem até amanhã à
noite para arrumar suas coisas e sumir da minha vista!
Rosana assentiu, as lágrimas acumuladas nos olhos.
— Obrigada, senhora.
— Agora suma da minha vista! — Solange sibilou. — Suma da porta
do quarto do meu filho!
Engolindo em seco, Rosana assentiu, lançou um olhar grato para
Felipe e se virou, desaparecendo rápido. Solange, sem proferir mais
nenhuma palavra, fechou a porta do quarto de Diogo, trancando-a com
chave. Não olhou para o filho, tampouco para Mariana, e deu as costas para
os dois, seguindo na direção do próprio quarto, onde se fechou.
Assim que ficou sozinho com Mariana, Felipe suspirou, passando os
dedos pelos cabelos, o corpo se corroendo de cansaço.
— Desculpe por isso — ele pediu, buscando pelos olhos dela. —
Minha mãe tem esse temperamento forte e às vezes é difícil convencê-la do
contrário.
Mariana tocou o braço de Felipe em sinal de apoio.
Foi um toque suave, singelo, mas que pareceu espalhar uma onda
quente e reconfortante por toda a pele dele, percorrendo seu sangue,
abraçando seus ossos, até que o coração voltasse a bater com mais calma.
— Não precisa se desculpar. Eu entendo que família é complicado, e
você fez o que pôde para ajudar. Fico apenas com pena da Rosana.
Felipe encarou a porta fechada do quarto de Diogo; a sensação era de
que o sangue bombeava nos ouvidos.
— Minha mãe não vai mudar de ideia.
— Vou dar uma ligada mais tarde para minha amiga Isa. Ela trabalha
na agência de recrutamento. Foi ela que me indicou esse trabalho. Vou falar
sobre a Rosana para ela. Tenho certeza de que Isa conseguirá arranjar outro
serviço para ela o mais rápido possível.
◆◆◆

Em contraste com a atmosfera carregada da mansão, o dia seguinte


amanheceu bonito e ensolarado, com um céu azul sem nuvens. Felipe
observava Ágata brincando animada com suas três amiguinhas no jardim. A
felicidade da menina era contagiante, e ele sentia uma sensação de paz e
gratidão por vê-la tão radiante.
Pelo menos, alguém está tendo um dia bom por aqui.
Ao lado das crianças, Rosana cumpria suas tarefas diligentemente,
servindo lanches para as pequenas e suas mães. Apesar de seu semblante
triste e abatido, ela estava se esforçando para fazer seu trabalho bem feito.
Felipe sabia que a situação não era fácil para ela, mas admirava sua
dedicação mesmo diante das adversidades.
Bem que minha mãe podia ser mais flexível.
Era um pensamento quase irônico.
“Solange” e “flexibilidade” não se encaixavam na mesma frase.
Ele virou o rosto, atraído por um perfume doce que o vento soprou e
que o acariciou.
Mariana estava por perto também, cuidando das crianças e ajudando
Rosana. Tudo o que ela fazia era costurado com graça e doçura, assim como
o ar da casa dela; mais um contraste com o clima frio da mansão.
O que poderia ter acontecido se sua mãe tivesse flagrado Mariana no
quarto de Diogo, noites atrás?
A simples ideia de sua mãe maltratando Mariana lhe causava uma
sensação de irritação e angústia, um anseio desesperador de protegê-la.
Tão forte quanto na noite em que a vira pela primeira vez, cercada por
Lobo, Falcão e Cobra.
Tinha arranjado problemas ao comprar briga com aqueles caras.
Mas, se o tempo voltasse, ele faria a mesma coisa de novo.
Porque jamais permitiria que alguém encostasse um dedo em Mariana
com o intuito de machucá-la.
A ferocidade do pensamento o surpreendeu.
E foi inevitável voltar para o dia anterior, para a sensação do corpo
dela tão junto do seu enquanto treinavam na academia.
Faltou pouco...
Muito pouco...
Para que ele não cruzasse os limites e se afogasse nela, no desejo
latente que ardia mais e mais em seu sangue, acumulando, calado, tentando
encontrar um caminho para sair e explodir.
Merda.
Sentia que estava completamente perdido.
— Ágata é a pobre menina rica, não é mesmo?
Ao ouvir o nome de sua sobrinha, Felipe virou a cabeça. As três mães
das amiguinhas de Ágata estavam sentadas em uma mesa no jardim,
bebendo e conversando. Não notaram sua presença; provavelmente nem
suspeitavam de que ele podia ouvi-las dali.
— Como assim?
— Ela vive cercada nesse luxo, mas a gente sabe que é infeliz. Ela não
é como nossas filhas. Ela não tem mãe.
A fala foi como uma flechada envenenada no peito de Felipe.
— É verdade — a outra concordou. — Ninguém cuida melhor de um
filho do que a própria mãe.
— E ela também não tem pai — a outra mulher alfinetou. — Do que
adianta ficar cercada de empregados, se ninguém a ama de verdade? Essa
menina jamais vai saber o que é amor de verdade.
— Tipo, amanhã na escola, as crianças da classe precisam levar
biscoitos caseiros para o lanche. Nossas filhas vão levar biscoitos feitos por
nós. Mas Ágata? Provavelmente a empregada vai comprar algo pronto na
padaria. Algo frio e sem amor.
— Realmente, é a pobre menina rica.
— Uma criança sem mãe está condenada a ser infeliz para o resto da
vida. — Ela bebericou um gole do chá. — Marquem o que estou dizendo.
Essa menina ainda vai dar trabalho e se perder quando for maior.
— Será que ela vai se envolver com coisa errada?
— Tenho certeza. Olha para o tio dela. É um gato, mas é todo tatuado,
vive indo nesses motoclubes. Certeza que mexe com coisa errada. Não sei
vocês, mas eu, com o tempo, afastarei minha filha de Ágata. Não acho bom
nossas meninas crescerem com uma garota que não tem esteio e
direcionamento. Será um péssimo exemplo para nossas filhas que são tão
bem criadas e protegidas.
Fúria latejou pelas veias de Felipe; ele deu um passo duro e pesado no
gramado, abrindo a boca para defender sua sobrinha; mas antes que pudesse
falar qualquer coisa, as três mulheres emitiram gritinhos agudos ao mesmo
tempo.
A cabeça dele girou, confusa, sem entender a reação delas. Mas, então,
ele notou que Mariana estava no meio do jardim, com uma mangueira de
água nas mãos, espirrando água nas três mulheres.
— Desculpem! — Mariana pediu, fingindo inocência. — Eu estou
aprendendo a mexer nisso.
Felipe trocou um olhar com Mariana, percebendo que ela havia feito
aquilo de propósito. Ela também ouvira o que as mulheres estavam falando
de Ágata e não hesitou em dar uma resposta à altura.
— Olha o que você fez! — uma gritou. — Presta atenção!
— Minhas roupas estão todas molhadas! — exclamou a outra.
— Meu cabelo! Você molhou meu cabelo! Eu passei no salão antes de
vir para cá!
Rosana logo apareceu com toalhas para elas, enquanto Ágata, que
havia ouvido a confusão, se aproximou curiosa.
— O que aconteceu? — Ágata perguntou.
— Nada. — Felipe respondeu, disfarçando um sorriso. — Acho que
foi só um acidente com a mangueira.
Mariana se aproximou, parecendo genuinamente preocupada.
— Me desculpem, de verdade. Não queria molhar vocês. — Ela olhou
para Ágata, sorrindo com doçura. — Sabe, essa mangueira de água é nova e
é um tanto complicada de manusear.
Ágata olhou para Mariana com admiração.
— Você é muito engraçada, tia Ma!
Ela deu uma piscada para Ágata.
— Acho que sou só meio atrapalhada, meu amor.
E, sob o sol brilhante, em meio ao calor do dia, alheios aos resmungos
das mulheres que usavam as toalhas para se secarem, trocaram um olhar
divertido e silencioso, junto de um sorriso cúmplice que só eles conseguiam
perceber e decifrar.
19
Fogo tempestuoso

— O que você está fazendo?


Assim que Felipe pisou na cozinha para pegar um copo de água e se
recolher em seu quarto, teve impressão de que sua pergunta se afogou em
uma nuvem de açúcar e farinha.
— Biscoitos para Ágata levar na escola amanhã — Mariana explicou,
retirando duas assadeiras de dentro do forno. Colocou-as sobre a mesa da
cozinha, retirando as luvas de proteção. Seus cabelos estavam presos em um
coque desajeitado, e havia um pouco de farinha em sua bochecha esquerda.
— Quero ver aquelas mulheres idiotas abrirem a boca.
Atingido por uma mistura de surpresa e comoção, Felipe se aproximou
mais dela, observando os biscoitos em formato de coração. Um cheiro
delicioso dançava no ar.
— Você ficou até agora fazendo tudo isso?
— Falta só decorá-los.
— Não era necessário ter todo esse trabalho — ele murmurou, embora
o coração estivesse batendo com uma força descomunal dentro do peito. —
Poderíamos ter comprado algo pronto para a Ágata levar.
Mariana grunhiu, apoiando as mãos na cintura.
— De jeito nenhum! Essa é minha forma de calar aquelas madames
dos narizes empinados e mostrar que Ágata é amada e protegida. Muito bem
protegida e cuidada.
Ele arqueou as sobrancelhas; um traço risível de diversão subiu por
sua boca.
— Achei que o banho de mangueira tinha sido seu recado para elas.
— Aquilo foi só o começo.
Os lábios de Felipe tremeram.
A garganta tremeu.
E então, um som baixo escapou de sua boca.
Um riso.
Um riso leve, verdadeiro.
Um som divertido que ele não ouvia de si mesmo há muito tempo.
— Acho que não cheguei a verbalizar, mas obrigado por ter jogado
água nelas. Eu teria feito algo pior, mas você foi mais rápida. Jamais
imaginei que você tivesse coragem de fazer algo assim.
Notou-a corar, erguer levemente o queixo para observá-lo.
— Não as molhei só por causa do que disseram sobre a Ágata.
Ao chegar mais perto dela, Felipe notou que havia um pouco de açúcar
em seus lábios. Provavelmente ela havia experimentado os biscoitos. E
provavelmente aqueles lábios deveriam estar doces.
Tentadoramente doces.
— E qual foi o outro motivo?
Ainda com o rosto ruborizado, Mariana o fitou.
— Você.
O coração dele falseou, mas ele se forçou a manter a postura.
— Eu?
Os lábios dela se contraíram.
O açúcar ainda estava ali, feito um convite doce e brilhante.
— Elas falaram mal de você. Das suas tatuagens incríveis e do seu
trabalho com as motos. Como elas tiveram coragem? Elas não estão aqui
para ver o quanto você trabalha naquela oficina. E o pior de tudo... — Os
olhos de Mariana faiscaram. — Falaram que você era um péssimo exemplo
para Ágata, sendo que sei que você daria a vida por ela. Acredite, eu joguei
água nelas para não fazer algo que colocasse meu réu primário em risco.
Puta merda.
Felipe prendeu o ar.
Aquela mulher...
Aquela boca açucarada...
Para o inferno com tudo isso!
Ele deu um passo para a frente.
E soube que era tarde demais.
◆◆◆

Ela não conseguiu recuar.


Ela não quis recuar.
Sabia que era tarde demais.
No instante seguinte, os braços de Felipe a envolveram, levantando-a
do chão e a puxando contra seu peito, a colisão entre seus lábios
estremecendo o mundo ao redor.
Um ofego escapou da garganta de Mariana, seu coração disparando
contra o coração selvagem e furioso de Felipe; a mão dele deslizou pelos
cabelos dela, soltando-os do coque, os dedos se emaranhando nos fios
libertos, a boca a tomando em um beijo ardente, possessivo.
Em resposta, ela envolveu os braços ao redor do pescoço dele,
arqueando seu corpo contra o de Felipe, sentindo sua respiração quente
contra seus lábios. Abriu os lábios para os dele; eram tão macios, e ele tinha
o gosto de açúcar; o açúcar dos biscoitos que ela estava preparando, o açúcar
que estava em seus próprios lábios.
Inebriada, Mariana deixou os dedos se enroscarem no emaranhado
rebelde dos cabelos dele, permitindo-se queimar naquele calor abrasador, no
cheiro dele, no toque dele.
Ela estava sendo beijada.
Ela estava sendo beijada por aquele homem que era uma mistura de
fogo, enigma, beleza, ferocidade e doçura; e nada mais importava naquele
momento.
Mas, em algum canto nublado da mente, no emaranhado dos fios
racionais, ela teve a impressão de escutar passos na escuridão, o farfalhar das
sombras do lado de fora, e sentiu a mão de Felipe apertar sua cintura.
— Acho... Acho que ouvi alguma coisa...
— Hum?
— Ali, na janela...
Ele virou o rosto por apenas um segundo; ela aproveitou aquele
instante para recuperar o fôlego enquanto fitava a janela. Não havia nada lá
além de sombras e silêncio.
E então, antes que sequer pudesse voltar a si, a mão de Felipe segurou
a nuca dela, capturando seus lábios novamente, aprofundando o beijo,
incapaz de se conter. Ele se inclinou nela, sua língua traçando o formato de
sua boca, fazendo-a estremecer, pressionando o quadril dela contra a mesa
da cozinha.
Mariana arfou, mantendo os braços em volta do pescoço de Felipe.
Deveria parar.
Sabia que devia.
Mas, naquele momento, ela estava perdida nas sensações que ele lhe
proporcionava, e as sombras lá fora já não importavam mais. Era como se
todo o controle pertencesse a Felipe. Se ele quisesse, ele teria que parar
aquilo, aquela insanidade.
As mãos de Felipe desceram pela lateral do seu corpo, os dedos
deslizando para baixo de sua blusa; Mariana estremeceu com o toque quente
em sua pele, em sua barriga, em sua cintura.
Cada respiração tornava-se mais pesada e descompassada, o beijo se
perdendo em uma intensidade arrebatadora e incontrolável, como se
estivessem envolvidos por uma tempestade de desejos que Mariana não
podia mais ignorar.
Mais. Mais. Mais.
Contudo, antes que o momento pudesse se estender ainda mais, que
aquele fogo tempestuoso pudesse devastar mais, o som de passos se
aproximando e a voz animada de Ágata invadiram a cozinha.
O corpo de Mariana gelou.
As mãos de Felipe retesaram.
Como se houvessem tomado um choque forte, os dois se afastaram
abruptamente, o rosto corado dela se encontrando com os olhos escurecidos
dele.
Assim que entrou na cozinha, vestindo seu pijama de gatinho, Ágata
olhou para eles com curiosidade inocente.
— O que vocês tão fazendo? — ela perguntou, a curiosidade inocente
estampada em seu semblante infantil.
Mariana, ainda tentando recuperar o fôlego, passou a mão pelos
cabelos e olhou para a mesa da cozinha, onde os biscoitos assados estavam
esperando para serem decorados.
— Ah, estamos fazendo biscoitos para você levar na escola amanhã.
— Oba! — Ela bateu palmas, a alegria brilhando em seus olhos. —
Quero ajudar!
— Quer decorar os biscoitos comigo e com seu tio? — Mariana
perguntou, olhando apenas para a menina; tinha a sensação de que se
dissolveria caso encarasse Felipe naquele momento.
Bom, talvez devesse arriscar dar uma olhadinha para ele...
— Quero! Quero ajudar!
Com o coração ainda acelerado, Mariana sorriu para Ágata, tentando
esconder sua turbulência interna. De soslaio, viu que Felipe também forçou
um sorriso, tentando disfarçar o desconcerto que o tomava. Juntos, os três se
reuniram em torno da mesa, onde os biscoitos aguardavam a decoração.
Mariana pegou as travessas de glacê colorido e começou a explicar
para Ágata como decorar os biscoitos. A menina estava entusiasmada e
ansiosa para aprender, e aquilo a fez voltar para o próprio passado, para as
tardes na cozinha assando biscoitos com sua falecida mãe.
Vez ou outra, pegava Felipe observando a interação delas com um
olhar atento, quase encantado; que fazia as bochechas de Mariana arderem
em um misto pulsante de sentimentos.
— Põe glanulado nesse, tio Fê!
— Nesse aqui?
— Isso!
Conforme o tempo passava, a tensão inicial foi se dissipando, e uma
atmosfera de descontração e cumplicidade se instalou. A animação de Ágata
espalhou uma leveza pela cozinha, permitindo que Mariana erguesse o rosto,
encontrando os olhos de Felipe, em um momento que pareceu dissolver
ainda mais as barreiras que existiam entre eles.
Rindo, conversando e deixando a criatividade fluir, eles mergulharam
na tarefa de decorar os biscoitos. Mariana notou que, de vez em quando, os
dedos dela e de Felipe se tocavam de forma sutil, causando arrepios suaves
em sua pele e fazendo seu coração palpitar, puxando-a para o beijo
inebriante que ainda formigava seus lábios.
E, conforme a noite avançava, a cozinha se enchia de risadas, sorrisos
e biscoitos coloridos, em uma harmonia dissonante das sombras crescentes
no coração da escuridão que se espalhava do lado de fora da casa.
20
Sem permissão

Podia sentir a antecipação do cheiro.


Sob a proteção das sombras densas da noite, entre as árvores e os
arbustos, com os pés afundando no jardim, tinha uma visão privilegiada da
grande e elegante cozinha.
Dela.
Era jovem, não uma jovem qualquer, e sim aquela juventude que
molhava os lábios e formigava as mãos esfomeadas, espalhando um ímpeto
incontrolável, um anseio em agarrar as mechas castanhas do cabelo até as
pontas de seus dedos se avermelharem e os olhos dela explodirem em um
misto de aflição e deleite.
Uma presa perfeita.
Seus olhos reviraram, consumidos com a sensação palpável.
Cheiro, gosto, som.
Umedeceu os lábios com a ponta da língua.
Seu corpo se encheu de arrepios.
Os dedos ansiosos correram por seu próprio cabelo, delirando em
puxar aquele cabelo.
Mordeu o lábio inferior, um filete de sangue escorreu do canto
esquerdo, enchendo seu paladar com um gosto metálico.
Qual seria o cheiro do sangue dela?
As veias queimavam, pulsavam, dominavam.
Queria.
Mas haviam lhe dito que não podia.
Não era assim que as coisas funcionavam.
Precisava de permissão para caçar e mergulhar nos cheiros de morte
que lhe enchiam de vida.
Abraçou-se por debaixo do moletom, arranhando as próprias costas até
a pele rasgar, contendo um grunhido de insatisfação.
Não podia tê-la sem permissão.
Mas daria um jeito de encontrar um cheiro que aplacasse seu desejo.
21
Ligação abrupta

A manhã ensolarada pintava o céu com tons dourados, e Mariana sorriu ao


estacionar na frente da escola de Ágata. A menina estava radiante,
carregando uma caixa de biscoitos que ajudara a fazer.
— Será que meus amigos vão gostar?
— Tenho certeza que sim, meu amor. Principalmente porque você
ajudou a decorar todos os biscoitos. Isso os deixou ainda mais especiais.
Ágata sorriu e deu um beijo no rosto dela, descendo do carro e
correndo até o portão, onde uma das auxiliares da escola recebia as crianças.
Mariana acenou para Ágata, e só ligou o carro e partiu quando viu a
menina entrar em segurança dentro da escola.
Vê-la tão feliz fazia seu coração transbordar de carinho.
Sabia o que era não ter mãe.
Sabia o que era crescer no mundo sem uma figura materna.
Sentia falta da mãe, perdia-se às vezes na imaginação de como sua
vida poderia ter sido se a mãe ainda estivesse ali para orientá-la, abraçá-la,
aconselhá-la, protegê-la.
Mas Mariana não se sentia menos amada ou menos amparada.
Tinha seu pai. Tinha Lívia. Tinha Isabela.
“Do que adianta ficar cercada de empregados, se ninguém a ama de
verdade? Essa menina jamais vai saber o que é amor de verdade”.
Seus dedos apertaram o volante com força, as pontas se avermelhando
com a raiva que inundou seu sangue.
As mães da amiga de Ágata tinham tido sorte por terem sido apenas
molhadas por ela.
O que desejara ter feito de verdade com aquelas mulheres ao ouvir
palavras tão venenosas e cruéis...
Mariana inspirou fundo, acalmando a respiração.
Esperava que seu “recado” tivesse sido compreendido.
Ninguém falaria mal de Ágata perto dela. Cuidaria e protegeria aquela
menina com unhas e dentes; do mesmo jeito que imaginava que sua mãe
faria se estivesse viva. Do mesmo jeito que era cuidada e protegida por seu
pai, por Lívia, por Isabela, por...
O rosto de Felipe invadiu sua mente.
Seu coração acelerou, ansioso, afoito.
“Olha para o tio dela. É um gato, mas é todo tatuado, vive indo nesses
motoclubes. Certeza que mexe com coisa errada”.
Aquelas mulheres não sabiam de nada.
Não o conheciam.
Não eram capazes de mensurar o amor que Felipe tinha pela sobrinha.
Não eram capazes de imaginar o quanto aquele homem, por debaixo da
máscara das tatuagens e do jeito rebelde, podia ser protetor, carinhoso.
E intenso.
Mariana arfou, a lembrança do beijo voltando para sua mente.
Minha nossa.
Cada detalhe daquele momento estava gravado em sua memória,
fazendo-a reviver a sensação de suas mãos firmes em sua cintura e seus
lábios selvagens contra os seus.
Minha nossa.
Todo seu rosto ardia.
Ao estacionar o carro e atravessar o jardim, Mariana notou uma parte
da grama afundada, próximo aos arbustos o que a fez franzir a testa.
Ela se aproximou com atenção, seus olhos examinando a marca na
grama, todos os seus estudos para o cargo de perita da Polícia Científica
vindo à tona de forma automática. O formato era irregular, mas havia uma
certa profundidade, como se algo tivesse pressionado a grama ali.
A mente de Mariana começou a trabalhar, pensando nas possibilidades
do que aquela marca poderia significar. Seria um sinal de que alguém esteve
ali? Um objeto pesado foi deixado ali temporariamente? Um animal fez
isso? Ágata havia dito várias vezes que tinha visto um gatinho no jardim e
tentara pegá-lo.
Talvez...
Suas suspeitas iam desde algo corriqueiro até as teorias mais
elaboradas, mas então ela balançou a cabeça, afastando as especulações.
Você está exagerando, Mariana. Não precisa analisar tudo dessa
forma, pensou consigo mesma, relembrando a empolgação com os estudos
para o concurso. Provavelmente, isso foi obra das crianças que brincaram
aqui o dia inteiro, incluindo Ágata, que estava super agitada.
Apesar de tentar ignorar as teorias mirabolantes, ela não conseguiu
evitar um leve sorriso enquanto imaginava a pequena Ágata, junto com suas
amiguinhas, correndo e brincando no jardim. A criançada era sempre cheia
de energia e, às vezes, um pouco atrapalhada também. Tinha visto Lívia
crescer e aprontar sem parar. Não era difícil acreditar que aquela marca na
grama era apenas fruto da diversão incontrolável das crianças.
Deixando aquilo de lado, ela se virou para seguir em direção à
mansão, seu coração deu um salto ao ver Felipe saindo de lá em sua direção.
Foi como ser atingida por uma onda furiosa, implacável, voraz.
As lembranças e sensações do beijo da noite anterior inundaram sua
mente, deixando-a inebriada.
Não haviam tido chance de conversar depois que Ágata entrara na
cozinha; a menina pedira para Mariana dormir com ela no quarto, e eles não
tinham se visto mais.
O que talvez tivesse sido bom.
Porque, de guarda baixa, desprevenida, rendida, ela não conseguiria
ter lidado com toda a intensidade e impetuosidade que os lábios dele haviam
espalhado em seu corpo na noite anterior.
Só que agora...
Mariana prendeu o ar, os olhos presos nos dele, nas cores que o sol
esquentava e transformava em fogo.
Cada passo que ele dava em sua direção parecia ecoar em seu próprio
coração acelerado. Ela queria falar com ele, queria falar sobre o beijo,
explicar-se, pedir explicações, mas as palavras pareciam se prender em sua
garganta.
— Mariana... — A voz de Felipe soou rouca, espalhando a tensão que
preenchia o ar.
Ela engoliu em seco, o rosto esquentando com a proximidade dele.
— Felipe... — murmurou, procurando se manter a calma, mas seus
olhos não conseguiam se desviar dos dele.
O sol iluminava cada detalhe do rosto dele, destacando suas íris
castanhas e acentuando o contorno de suas tatuagens nos braços. Ele estava
próximo o suficiente para que Mariana sentisse sua presença; a eletricidade
entre eles era quase palpável.
— Sobre... — ele começou a dizer, dando mais um passo à frente.
Antes que Felipe pudesse se aproximar por completo, seu celular
tocou. A ligação a tirou momentaneamente de sua hipnose, mas seu olhar
não saiu dos olhos dele.
Com as mãos trêmulas, ela atendeu a ligação.
— Esse é o número da Mariana Pereira? — A voz no telefone soou
grave e séria.
— Sim, sou eu. — Mariana respondeu, sua voz saindo quase num
sussurro, enquanto ela continuava olhando para Felipe.
— Aqui é do Hospital Vera Cruz. Sua irmã, Lívia Pereira, acabou de
ser trazida até nós e...
22
O mais puro desespero

O resto da frase pareceu se perder em meio ao caos que se instalou dentro


de Mariana. Seus pensamentos se embaralharam, e tudo o que ela conseguiu
ouvir foi o nome de sua irmã e a urgência na voz do interlocutor; o jardim se
fechou ao seu redor, o sol esfriou, os arcos entre os tempos se embaralharam
em pontos sem começo e sem fim.
“É da casa do senhor Alberto Pereira?”.
O celular caiu da mão dela; Mariana deu um passo cambaleante para
trás, incapaz de respirar, de parar de tremer.
“É sim”.
De novo.
“Gostaria de falar com ele ou com algum adulto responsável, por
favor”.
Estava acontecendo de novo.
“Pode falar comigo”.
Do mesmo jeito como ocorrera onze anos atrás.
“Aqui é do Hospital Vera Cruz. A senhora Maria Luiza Pereira
acabou de ser trazida até nós, após sofrer um assalto e ser esfaqueada”.
— Mariana? Mariana? O que tá acontecendo?
“Peço desculpas por dar a notícia assim. Infelizmente, fizemos tudo o
que estava ao nosso alcance, contudo ela não resistiu, veio a óbito e estamos
tentando contatar os parentes dela e...”.
— Mariana, olhe para mim!
As mãos de Felipe em seus ombros trouxeram-na de volta à realidade,
e ela encarou o rosto dele com os olhos marejados de pânico. O coração
batia descompassado, e ela lutava para encontrar a voz.
— É Lívia... — ela conseguiu dizer, a voz trêmula. — Minha irmã...
Ela está no hospital. Não sei o que aconteceu.
O aperto de Felipe em seu ombro de intensificou, suave, protetor. A
expressão dele, sob o sol da manhã, era séria e preocupada.
— Vamos para lá agora mesmo. — Ele disse com firmeza. — Vou
pegar a moto, assim chegaremos mais rápido.
— Não... Não precisa me acompanhar... Você tem seu trabalho, suas
coisas, e eu...
Ele a segurou com mais força, fazendo seus olhares se encontrarem.
— Você não vai para lá sozinha de jeito nenhum, entendeu? — As íris
dele flamejavam, implacáveis e determinadas. — Fique aqui. Vou pegar a
moto e vamos juntos para o hospital.
◆◆◆

O trajeto até o hospital passou como um borrão ao redor de Mariana.


Agarrada a Felipe, sentada na garupa da moto dele, tudo o que conseguia
pensar era em Lívia, no que poderia ter acontecido com ela.
Um milhão de teorias passavam por sua cabeça.
Ela havia sofrido um acidente? Uma tentativa de assalto, como
acontecera com a mãe delas? E se os agiotas tivessem feito algo com Lívia?
Lágrimas trêmulas embaçaram os olhos de Mariana.
Ela estava pagando a dívida em dia.
Será que ainda estavam enfurecidos por causa do que acontecera no
bar? Será que queriam mostrar quem mandava?
Um soluço fraco escapou de sua garganta.
E se fosse tarde demais?
Felipe parou a moto no estacionamento do hospital e ajudou Mariana a
descer. A mão dele se fechou ao redor da dela; quando seus olhares se
encontraram, ele a puxou contra seu peito, envolvendo-a em seus braços, o
perfume dele espalhando um bálsamo de conforto por toda a pele dela.
— Ela está bem — ele sussurrou. — Tenho certeza disso.
Mariana se apertou ainda mais contra ele, permitindo que as lágrimas
rolassem livremente.
— Estou com medo. E se...
E se eu tiver perdido minha irmã, assim como perdi minha mãe?
— Estou aqui. — Os braços de Felipe a seguraram com ainda mais
força, como se temessem que ela desmoronasse a qualquer momento. —
Você não vai ficar sozinha.
Felipe e Mariana adentraram no hospital com pressa, procurando pelo
médico responsável pelo atendimento de Lívia. Enquanto caminhavam pelo
corredor, algumas das amigas adolescentes de Lívia, que estavam na sala de
espera, reconheceram Mariana e se aproximaram.
— Onde está a Lívia?
— Foi levada para a enfermaria, está sendo medicada.
Enfermaria. Medicada.
Mariana tentou caçar conforto naquelas palavras. Lívia estava sendo
atendida. Lívia estava viva.
Uma das mãos de Felipe permanecia em suas costas; como um apoio
que impedia que ela caísse para trás.
— O que aconteceu com a minha irmã?
— Uma crise de pânico, ansiedade, nervoso... Ela passou muito mal na
escola e nós a trouxemos correndo pra cá.
Um milhão de perguntas giraram em sua cabeça.
— Ela está ali, naquele quarto.
— Certo, obrigada.
O coração de Mariana batia descompassado enquanto ela corria ao
lado de Felipe em direção à enfermaria. Seus pensamentos estavam uma
verdadeira bagunça, repletos de medo, preocupação e ansiedade. Cada passo
parecia uma eternidade até que finalmente chegaram ao leito onde Lívia
estava deitada.
Ao ver sua irmã ali, respirando e consciente, um alívio imenso tomou
conta de Mariana. As lágrimas ameaçavam escapar, mas ela lutou para se
manter forte. O alívio momentâneo, no entanto, logo deu lugar a uma onda
de preocupação ao notar a palidez em seu rosto e o olhar assustado em seus
olhos.
Ela se aproximou devagar, com os olhos fixos em Lívia, e segurou sua
mão com delicadeza.
— Lívia... — sua voz saiu em um sussurro trêmulo, uma mistura de
alívio e preocupação. — Você está bem?
Lívia estremeceu.
— Mari... eu... Estou com tanta vergonha.
As lágrimas escaparam dos olhos de Lívia, rolando silenciosamente
por suas bochechas.
— O que aconteceu?
Lívia continuou soluçando baixinho, incapaz de falar.
Com o coração comprimido, Mariana virou o rosto, fitando as amigas
de sua irmã, que estavam na entrada da enfermaria.
— O que aconteceu para deixá-la tão nervosa?
As amigas se entreolharam, incertas de como explicar a situação.
— O que aconteceu? — Mariana perguntou outra vez, mais firme.
Uma delas engoliu em seco.
— Mariana, hoje de manhã, um vídeo íntimo da Lívia foi vazado na
internet. Toda a escola viu.
Uma onda de choque estremeceu Mariana.
O choro de Lívia se tornou mais sôfrego, alto.
— Eu me senti tão envergonhada e exposta. — Sua irmã soluçou,
enterrando o rosto nas mãos. — Como se todo mundo estivesse me julgando.
Eu só queria desaparecer.
Raiva, indignação e impotência consumiram Mariana em um cólera
sombria; ela deu um passo à frente, abraçando a irmã com força, um gosto
amargo enchendo sua boca.
— Eu não sabia que ele tava me filmando, Mari. Foi minha primeira
vez. Eu... Eu jamais pensei que... Desculpa, eu...
— Shh... Shh... Isso não foi culpa sua, me ouviu?
— E se o papai ver? O que eu faço? Nunca mais vou conseguir olhar
na cara dele, Mari... Como eu pude ser tão burra?
As palavras de Lívia a encheram de compaixão e raiva ao mesmo
tempo. Ela acariciou os cabelos da irmã com ternura, tentando lhe dar um
pouco de consolo.
— Eu digo e repito: isso não foi culpa sua. Você não fez nada errado.
Estou aqui e vamos enfrentar isso juntas, ok? — Mariana lutava para manter
a calma para transmitir confiança à irmã, mas por dentro, a indignação
crescia.
Sentiu Felipe se mover atrás dela, virando-se para as amigas de Lívia.
— Quem foi o cara que vazou o vídeo?
A fúria silenciosa na voz dele, latente e baixa, se espalhou como uma
névoa pelo quarto.
As meninas se entreolharam, buscaram os olhos de Lívia, que se
escondeu o rosto no peito de Mariana, e então voltaram a encarar Felipe.
— Foi o Enzo.
Mariana buscou pelo nome em sua cabeça; não o reconheceu.
Lembrou-se da noite em que Felipe e Ágata haviam jantado em sua casa, de
Lívia comentando que talvez estivesse saindo com alguém.
— Ele é da sua escola, Lívia?
— Sim, é mais velho, tá no terceiro ano. Ele... — Lívia soluçou,
enterrando o rosto no peito de Mariana. — Falou que eu podia confiar nele.
— Ele está alegando que o celular foi hackeado, mas a gente sabe que
é mentira — uma das meninas explicou, engolindo em seco. — Só que
ninguém consegue provar.
— E qual é a cara desse moleque? — Felipe perguntou, a voz ainda
mais sombria, mais dura.
Uma das meninas pegou o celular e abriu o Instagram de Enzo,
mostrando-o para Felipe. Dali, Mariana observou o olhar dele se enchendo
de uma sombra decidida, selvagem.
— Onde encontro esse Enzo?
As meninas trocaram olhares antes de responder:
— Ele não foi para a escola hoje... Então deve estar na pista de skate,
aquela do Parque da Lagoa do Taquaral.
Sem hesitar, Felipe buscou pelos olhos de Mariana.
— Cuide da Lívia, eu volto mais tarde para buscá-las.
— Mas...
— Cuide dela. Eu cuido do resto.
Antes que Mariana pudesse dizer algo, ele saiu apressadamente da
enfermaria, deixando-a com o coração a mil por hora. A raiva e a impotência
cresciam dentro dela; ao mesmo tempo que queria impedir Felipe de sair
dali, não pretendia de forma alguma se afastar da irmã.
— O que eu faço, Mari? — As lágrimas de Lívia molhavam a blusa de
Mariana. — Minha vida acabou!
— Calma, meu amor, calma. — Ela se ajeitou na cama e colocou Lívia
deitada sobre seu peito, do mesmo jeito que fizera inúmeras vezes quando
sua irmãzinha era apenas uma criança. — Sua vida não acabou. Nós vamos
dar um jeito e passar por cima disso, tá bom? Assim que o médico te liberar,
iremos para a delegacia e faremos um boletim de ocorrência.
— Isso só vai piorar as coisas. Só quero me esquecer de tudo.
— Eu sei, mas não podemos deixar esse crime impune. Senão, ele vai
fazer de novo com outras garotas. E eu não vou permitir, me ouviu?
Lívia fungou e assentiu, apertando os olhos, mais lágrimas
angustiantes rolando por suas bochechas.
Enquanto acariciava os cabelos da irmã, Mariana fitou a porta da
enfermaria, perguntando-se para onde Felipe tinha ido e o que pretendia
fazer.
23
Acerto de contas

O som furioso da moto de Felipe ecoava pelos arredores do Parque da


Lagoa do Taquaral. A alta velocidade com que ele se aproximava do local
deixava um rastro de vento e poeira, como se a própria tempestade estivesse
chegando sobre a área verde que rodeava a lagoa principal, um dos mais
importantes espaços de lazer de Campinas.
Era um cenário calmo, um espaço que oferecia passeios de pedalinho e
espetáculos de águas dançantes nos finais de semana; contudo, nada naquela
atmosfera serena conseguia aplacar a cólera que queimava em suas veias
toda vez que o desespero de Mariana e o choro angustiado de Lívia atingiam
suas lembranças.
Ah, não deixaria aquilo barato.
Mariana havia chorado em seus braços, angustiada e aflita, temendo
que o pior tivesse acontecido com sua irmã. E a pobre da garota...
Felipe bateu os dentes.
Homem de verdade não vazava vídeos íntimos de sua garota.
Enquanto ele se aproximava da área destinada à pista de skate, a mente
de Felipe se fixava em cada detalhe da paisagem, que já era conhecida por
ele. O cenário que costumava ser calmo e acolhedor se contrastava com a
revolta ardente em seu âmago; a fúria contida ecoava em sua mente,
alimentando sua determinação em encontrar o responsável pelo vazamento
do vídeo íntimo de Lívia.
Ao chegar à pista, Felipe parou a moto com um derrapar brusco,
levantando poeira pelo chão. Seus olhos escurecidos faiscavam enquanto ele
vasculhava o ambiente em busca de Enzo; o rosto do moleque havia se
gravado em sua mente. Os olhares curiosos de outros frequentadores do
parque não o intimidavam, apenas aumentavam seu anseio voraz em
encontrar o responsável pelo sofrimento da irmã de Mariana.
Ele saltou da moto, arrancando o capacete, o ar selvagem fustigando
ao seu redor.
— Enzo!
Ao ouvir o grito furioso de Felipe ecoar pelo parque, o tal Enzo se
virou, confuso e surpreso ao vê-lo se aproximar com tanta determinação.
— Qual é a sua, cara? — Enzo questionou, tentando mascarar a
insegurança que sentia ao ser abordado de forma tão agressiva.
Sem titubear, Felipe avançou e o agarrou pelo colarinho da camisa,
seus olhos ardendo de raiva. Os amigos do rapaz se aproximaram, pronto
para defendê-lo, mas Felipe os encarou com tamanha intensidade que
recuaram momentaneamente.
— Não cheguem mais perto, ou vão se arrepender! — ameaçou Felipe,
sua voz baixa e cortante.
Enzo tentou revidar, mas seus esforços foram bloqueados pela firmeza
de Felipe, cujo punho cerrado pressionou a pele do rapaz, uma ameaça clara
de que a situação poderia piorar a qualquer instante.
— Você vai se retratar pelo que fez! Vai até a delegacia e vai assumir a
culpa! — Felipe exigiu, sua voz crepitando de raiva. — Ou vai levar uma
bela de uma surra.
Levou alguns instantes para o moleque entender do que Felipe estava
falando.
— É sobre o vídeo? — Ele soltou uma risada debochada. — Já falei
que fui hackeado.
— Você não me engana, moleque. Sei que foi você.
Enzo ergueu o queixo.
— E daí? Na hora que tava acontecendo, a vadia não reclamou nem
um pouco. Pelo contrário, tava gostando até demais e...
O soco foi certeiro, atingindo em cheio o rosto de Enzo, que foi jogado
para trás e caiu no chão com um baque surdo.
O silêncio na pista de skate foi ensurdecedor, enquanto as pessoas em
volta testemunhavam a cena com choque e espanto.
Felipe ofegava, o peito arfando.
Fúria retorcia seu semblante.
— O que você disse, moleque? — rosnou, seu olhar fixo em Enzo
caído no chão. — Repita o que você disse sobre Lívia!
De soslaio, Felipe viu um dos amigos de Enzo tentando atacá-lo por
trás. Alerta e ágil, ele bloqueou o golpe, derrubando o rapaz com um
movimento rápido. O choque da queda pareceu dar um recado final para o
restante dos rapazes.
Enzo, agora mais assustado do que nunca, engoliu em seco e olhou
para Felipe com medo genuíno.
— Porra, cara, para com isso! Ela é sua irmã? Sua namorada?
— Ela é alguém importante para uma pessoa muito preciosa para mim.
E essa pessoa está sofrendo por causa do que você fez para Lívia. E isso me
deixa puto demais.
Com sangue escorrendo do nariz, Enzo se arrastou para trás no chão;
Felipe pisou sobre a perna dele, impedindo-o de se mover.
— É melhor você ir para a delegacia agora mesmo e confessar que
vazou o vídeo. É bom falar também que você gravou o vídeo sem o
consentimento e conhecimento da Lívia, ou...
— Ou o quê? — Enzo indagou, a voz trêmula.
Felipe deu um passo à frente; era como se o mais visceral dos fogos
ardesse em seus olhos. Não deixaria que aquele crime sobre a irmã de
Mariana ficasse impune.
— Ou você vai descobrir o verdadeiro inferno — jurou, sua voz baixa
e sombria. — Vai descobrir que eu posso ser um pesadelo pior do que
qualquer delegado ou juiz. Eu sou capaz de fazer coisas que você nem
imagina quando quero proteger alguém. Agora, vá para a delegacia e assuma
a culpa, ou então você terá que lidar comigo. E garanto... Você não vai
gostar nem um pouco da segunda alternativa.
◆◆◆

Felipe conseguiu levar Enzo até a delegacia, onde o rapaz confessou


sua culpa no vazamento do vídeo e assumiu as consequências de seus atos.
Após resolver esse assunto, ele foi buscar Ágata na escola e a deixou
na mansão, garantindo que ela estivesse em segurança com a “presença” da
avó e das outras empregadas.
Ah, merda, verdade! Ainda tinha que resolver o pagamento e a
demissão de Rosana.
Cuido disso amanhã.
Enquanto dirigia, seu celular vibrou com uma mensagem de Mariana.
Ao ver o nome dela no visor, sentiu o coração bater mais afoito do que
deveria. A mensagem era simples e rápida; informando-o de que Lívia havia
tido alta e que já estavam em casa, depois de terem pegado um Uber.
A fúria que ainda o dominava não desapareceu completamente, mas a
notícia de que Lívia estava bem e em casa trouxe um alívio momentâneo.
Ainda assim, sentia que precisava de um tempo para se acalmar e organizar
seus pensamentos. Decidiu passar na oficina, onde deixou alguns materiais
para que Theo pudesse fazer reparos na moto em que estavam trabalhando.
Com o objetivo de ver Mariana e se certificar de que ela estava bem,
ele se dirigiu à casa dela. Ao estacionar em frente à residência, mal teve
tempo de desligar a moto quando a porta se abriu e Mariana apareceu
correndo em sua direção.
Sem pensar duas vezes, ela se jogou em seus braços, buscando
conforto e proteção. Felipe a abraçou com força, sentindo toda a tensão e
preocupação dos últimos acontecimentos se dissiparem ao tê-la ali, colada ao
seu peito.
— Você está bem? — perguntou, preocupado.
— Agora estou. — Ela ergueu o rosto, dando-lhe um sorriso cansado,
mas sincero. — Obrigada por tudo, Felipe. Fiquei sabendo que Enzo
confessou e assumiu toda a culpa.
— Não precisa me agradecer.
— Mas o que você fez para ele confessar?
— Apenas o que era necessário para ensinar um moleque a assumir as
responsabilidades como um homem de verdade.
Mariana se afastou um pouco para olhar nos olhos dele.
Porra, como aquela mulher era maravilhosa.
— Mais uma vez... Muito obrigada.
— E como Lívia está?
— Dormindo. — Mariana fitou a casa de relance antes de voltar os
olhos para ele. — Efeito dos calmantes que ela tomou no hospital. Meu pai
vai ficar cuidando dela a noite toda, para eu poder voltar lá na mansão e ficar
com Ágata.
— Não quer passar a noite com sua irmã?
— Lívia já está melhor. E o mais difícil, que era fazer Enzo assumir a
culpa, já está resolvido também. — Mariana empurrou uma mecha de cabelo
para trás da orelha; o movimento fez o perfume dos fios serpentear até
Felipe, acariciando e atiçando seus sentidos. — Já fiquei fora o dia todo.
Preciso cumprir com meu trabalho e... — Ela soltou o ar. — Minha nossa,
ainda não acredito que você deu um jeito no Enzo.
Um sorriso de canto subiu no lado esquerdo da boca de Felipe.
— Você deu um jeito naquelas mulheres que estavam falando mal de
mim e da Ágata. E agora eu devolvi o favor.
Mariana ergueu o queixo, o rosto pairando próximo do dele.
— E eu lembro como você me agradeceu. E agora vou devolver o
agradecimento.
E, com aquelas palavras, e sem mais nenhum aviso, ela o beijou.
24
Choque

Se ela achou que Felipe foi pego de surpresa pelo beijo, isso se dissipou em
segundos quando as mãos dele a pegaram pela cintura, ávidas, fortes, os
lábios possessivos assumindo o controle.
Os braços de Felipe envolveram Mariana com firmeza, trazendo-a
mais para perto dele, enquanto suas mãos desciam por suas costas, deixando
um rastro ardente por onde passavam.
Ela arfou baixinho quando ele a ergueu, girando-a e a colocando
sentada na moto, sem deixar de reivindicar seus lábios.
Mariana inclinou a cabeça; a boca dele contornava a sua, descendo
para o seu pescoço, para subir novamente e provocá-la, os dedos se
enredando em seus cabelos, dando um leve puxão, o calor de cada toque
inflamando o lado mais racional da sua existência.
Ainda em cima da moto, Mariana passou uma perna de cada lado da
cintura de Felipe, trazendo-o ainda mais para si. Seus corações acelerados
pareciam bater em uníssono, como se fossem um só. O toque de suas peles
incendiava suas sensações, e cada beijo a fazia sentir que as estrelas do céu
estavam em combustão espontânea acima de suas cabeças.
Os lábios de Felipe percorriam a pele dela, os dedos passeando por seu
corpo, encontrando todos os pontos sensíveis que a faziam suspirar. Os
dedos de Mariana se entrelaçavam nos cabelos dele, entregando-se ao
momento, como se o mundo inteiro existisse somente para aquele beijo.
Mantendo-a sobre a moto, entre suas pernas, Felipe pressionou o
quadril contra o dela; Mariana estremeceu com a sensação da pressão rígida
contra sua pele ardente. O som dos motores que passavam ao longe era
abafado pelas respirações, pelas pulsações desenfreadas.
Finalmente, quando o ar se fez necessário, eles se separaram,
mantendo as testas coladas, respirando ofegantes.
— O que acha de voltar para casa? — Felipe sussurrou, rouco,
roçando os dentes na orelha dela.
Um arrepio se espalhou pelo corpo de Mariana.
Poderia pensar em um milhão de motivos para negar o convite.
Mas não queria pensar em um milhão de motivos.
— Acho uma ótima ideia.
Seus olhares se encontraram de relance, um prelúdio antes do beijo
que se seguiu, estremecendo feito uma tempestade viva.
◆◆◆

Felipe e Mariana voltavam na moto pela estrada escura em direção à


mansão. Ela mantinha os braços ao redor da cintura dele, aconchegando-se
em seu calor. A noite estava calma, e as estrelas pontilhavam o céu escuro
como pequenos diamantes brilhantes.
Ao chegarem perto do portão da propriedade, Felipe apertou o
controle e o portão eletrônico começou a se abrir lentamente.
Enquanto esperavam, Mariana notou um carro parado logo à frente na
escuridão, próximo à entrada da mansão. Ela franziu o cenho ao reconhecer
o veículo.
— Ei, não é o carro da Rosana?
Felipe virou a cabeça, erguendo a viseira do capacete.
— É sim. Que estranho.
— Será que ela veio acertar os detalhes da rescisão?
— Talvez, mas... Eu mandei uma mensagem para ela hoje, remarcando
a reunião e o ajuste de contas para amanhã.
Entreolhando-se sob o vento da noite, os dois desceram da moto,
deixando os capacetes em cima da garupa.
Mariana se aproximou com cautela do carro, dando um leve aceno ao
ver que havia alguém dentro do veículo.
— Acho que a Rosana está nos esperando.
Felipe não disse nada, o rosto ligeiramente franzido.
Com os passos firmes, Mariana avançou pela rua, sentindo um aperto
no coração, uma sensação incômoda de que algo não estava certo.
Quando ela chegou perto do vidro do carro para dar uma batidinha na
janela, levou um susto.
O rosto de Rosana estava pálido, e havia um corte profundo em sua
garganta, de onde o sangue vertia e manchava suas roupas.
25
Nas sombras

Mariana soltou um grito de horror e puxou Felipe para trás, afastando-se do


carro. Seu coração batia descontroladamente, uma mistura de pânico e
choque a tomando por completo.
Sem entender, Felipe inclinou o rosto na direção do veículo; ao ver
Rosana, um palavrão escapou de sua boca.
Ele esticou a mão, fazendo menção de abrir a porta do carro.
Em reflexo, Mariana o puxou; toda sua mente sendo invadida pelos
estudos para o concurso da Polícia Científica.
— Não podemos contaminar a cena.
— Mas a Rosana...
— Sinto muito, Felipe... Ela já está morta. — As palavras saíram em
um sibilo frio, incrédulo. — E se contaminarmos a cena, iremos dificultar o
trabalho dos peritos.
Ele engoliu em seco, o rosto tomado de perplexidade.
— O que fazemos agora?
— Temos que chamar a polícia imediatamente — ela falou, tentando
controlar a voz trêmula. — E isolar a cena até eles chegarem.
Felipe concordou, os olhos fixos em Rosana dentro do carro.
— Como isso pode ter acontecido? — ela o ouviu murmurar.
— Eu não sei, mas vamos descobrir. A polícia precisa vir aqui o mais
rápido possível.
— Pode deixar que eu cuido disso.
Enquanto Felipe ligava para a emergência, Mariana olhou em volta,
tentando detectar qualquer sinal de movimento ou presença suspeita nas
redondezas. Havia uma sensação latente no ar, um sussurrar implícito, um
pulsar quieto, como se olhos invisíveis a espreitassem por entre as garras da
escuridão.
Mariana deu alguns passos, afastando-se do carro e da cena do crime,
seus sentidos aguçados em alerta máximo. Ela olhava em volta, atenta a
qualquer movimento nas sombras, mas não conseguia identificar nada
claramente. A sensação de estar sendo observada a deixava inquieta, como
se um predador invisível estivesse à espreita.
Devo estar em choque. Foi um dia cheio. E agora a Rosana...
Era atordoante e insano demais.
De repente, um leve ruído chamou sua atenção, e seu corpo ficou
tenso. Ela se virou rapidamente, mas não viu nada além das árvores escuras
e silenciosas. Seus olhos buscaram os cantos mais sombrios da propriedade,
mas a escuridão parecia engolir tudo.
Uma mão tocou sua cintura, causando-lhe um sobressalto.
Mariana olhou por cima do ombro, encontrando-se com os olhos
escuros e preocupados de Felipe.
— Calma, sou eu — ele sussurrou, seu tom de voz sombrio refletindo
a gravidade da situação. — A polícia está a caminho.
Mariana assentiu, ainda com os olhos vasculhando o ambiente. Ela
queria acreditar que aquilo era apenas sua imaginação, mas seu instinto de
policial a alertava de que havia algo ali, algo além do que podia ver.
◆◆◆

Logo, as luzes vermelhas e azuis das viaturas policiais surgiram na


entrada da mansão.
Mariana e Felipe se aproximaram dos policiais, relatando o que
haviam encontrado e apontando o carro onde Rosana estava. Os policiais
fizeram uma rápida inspeção e confirmaram o óbito.
— Meu Deus! — Mariana levou as mãos à boca, o choque da
realidade finalmente a atingindo. — Pobre Rosana.
Em pouco tempo, as autoridades começaram a realizar os
procedimentos necessários, isolando a cena do crime e interrogando Mariana
e Felipe sobre os detalhes e a forma como tinham encontrado Rosana.
Não demorou muito para que o movimento atraísse a atenção dos
vizinhos e dos demais empregados da mansão, acentuando o clima de
apreensão e angústia.
Ainda bem que Ágata está dormindo.
Era melhor que, por ora, a menina ficasse alheia aquele terror.
Em certo momento, dona Solange surgiu vestindo um robe elegante, o
rosto pálido e abalado. Ela se aproximou dos policiais, procurando respostas
para o assassinato da empregada que havia sido demitida há pouco tempo.
— Mas não é possível. Como isso aconteceu?! E bem na frente da
minha casa!
A atmosfera era tensa, e as palavras se perdiam no ar enquanto todos
tentavam compreender o que havia acontecido.
E, enquanto a noite se desenrolava em perguntas e interrogatórios
infinitos, Mariana não conseguiu se desvencilhar da sensação do toque frio
de um olhar invisível e vigilante, escondido nas profundezas da escuridão,
distante do alcance de qualquer visão.
◆◆◆

O cheiro do sangue de sua vítima ainda impregnava suas narinas,


satisfazendo uma sede primitiva que crescia em seu âmago.
Dali, enxergava as luzes das sirenes policias.
E aquilo amplificava o sabor da caçada finalizada.
Cada batida acelerada do coração era como uma sinfonia para seus
anseios, uma melodia que o incitava a continuar seu jogo mortal.
Era bom.
Mas não era suficiente.
Havia algo mais, algo que exercia uma atração irresistível sobre seus
sentidos; um aroma inebriante que se sobrepunha ao cheiro do sangue
derramado. O vento trazia consigo aquele perfume, mais doce e delicioso do
que o anterior.
Como resistir?
Seus olhos brilharam, os lábios se curvando num sorriso malicioso.
Deveria resistir.
Sua última caçada, fora do planejamento, sem permissão, causaria
uma irritação.
Mas fora necessária.
Para aplacar, para acalmar.
Mas agora...
O vento soprou novamente; e, com uma longa inspirada, permitiu que
seus pulmões se enchessem com aquele cheiro delicioso que lhe instigava a
caçar mais uma vez.
26
Indistinguível

Nos dias que se seguiram ao trágico assassinato de Rosana, a mansão ficou


envolta em um clima de exaustão e apreensão.
Mariana não conseguia esquecer o horror do momento em que
encontrara a empregada dentro do carro, e a incerteza pairava no ar como
uma nuvem densa. A polícia investigava sem parar, mas até aquele
momento, não havia pistas sólidas que levassem ao culpado.
Enquanto observava o noticiário no jornal da região, Mariana
percebeu que o caso ainda era uma manchete constante. As imagens do carro
de Rosana cercado por policiais e da mansão invadida por agentes
investigativos eram repetidas de forma contínua. A sensação de
vulnerabilidade a atormentava, pois o assassino ainda estava solto e era
como se as sombras o escondessem dos olhos do mundo.
Mantinha-se sempre vigilante; temendo em especial por Ágata.
A polícia havia interrogado todos os moradores da mansão e os
empregados, mas, após várias averiguações, foi constatado que todos
possuíam álibis sólidos e, assim, foram descartados como suspeitos. As
câmeras de segurança da mansão e das redondezas também foram analisadas
com muito cuidado, mas para frustração da investigação, nenhuma delas
capturou o ângulo onde o carro de Rosana estava estacionado.
Bom, um pedacinho da frente do carro aparecia em uma gravação.
E só.
Ninguém havia saído ou entrado da mansão; a única gravação de
movimento era o momento em que Felipe e ela tinham chegado com a moto
e notado o carro de Rosana.
Na esperança de oferecer ajuda com o pouco conhecimento que estava
obtendo de seus estudos para o concurso da Polícia Científica, Mariana havia
pedido para que Felipe lhe enviasse as filmagens daquela noite, já que ele
possuía acesso ao sistema de segurança da casa.
Suspirando, Mariana apanhou o celular, revendo as imagens outra vez,
como fizera nos últimos dias, tentando encontrar qualquer pista que pudesse
ter passado despercebida.
No entanto, ao revisitar as filmagens, Mariana concluiu o mesmo que
a polícia: não havia nenhum movimento suspeito registrado.
Como isso é possível?
Nem mesmo uma sombra inquietante ou um vulto indistinguível se
faziam presentes nas imagens.
Era como se o assassino soubesse exatamente onde os olhos
eletrônicos não poderiam alcançá-lo.
Mas, mesmo assim, por mais habilidoso que o criminoso seja, ele —
ou ela — ainda não tem a capacidade de virar fumaça.
Mariana contraiu os lábios, guardando o celular.
Ninguém conseguia desaparecer daquela forma, ainda mais em uma
região tão vigiada e tão monitorada.
O que a polícia está deixando passar? O que eu estou deixando
passar?
Apesar de todo o pesadelo dos últimos dias, era curioso como uma
parte sua sentia-se determinada em ajudar, em querer investigar. Ela tinha
certeza de que era a confirmação de que estava trilhando o caminho certo e
que se daria bem na área da perícia criminal.
Quem sabe, quando todas as dívidas com os agiotas estivessem pagas
e sua família ficasse em segurança, ela poderia se voltar por completo aos
estudos, mesmo que tivesse que deixar de ser babá de Ágata e...
Seu coração se contraiu; a mera ideia de ficar longe da menina, ou de
visitá-la somente de tempos em tempos, doeu mais do que imaginava.
Mas sabia que não poderia ficar para sempre ali.
Uma hora, Ágata cresceria, e as preocupações de Felipe com a
sobrinha iriam diminuir.
Felipe.
Mal tinha tido chance de conversar com ele devido à confusão na
mansão, ao entra e sai de investigadores, aos repórteres colados no portão;
mas o gosto do beijo, o cheiro do perfume, o calor das mãos... Tudo dele
permanecia impregnado nela.
— Tia Ma! Seu rosto tá vermelho!
Piscando rápido, Mariana se virou, vendo Ágata a fitando com um
sorrisinho travesso.
— É verdade? Devo estar com bastante calor. — ela tentou
desconversar, tocando a própria bochecha quente. — E você? Já quer que eu
te leve para a casa da sua amiguinha?
Ágata assentiu, animada. Uma das mães das amigas de Ágata — que
parecia ser muito mais humana e simpática do que as outras mulheres que
Mariana dera um banho de mangueira — convidara a menina para dormir
em sua casa e brincar com a amiga. Felipe tinha concordado. Seria bom
manter Ágata longe da mansão, diante de toda a confusão.
— Quero ver o tio Fê primeiro!
— Seu tio tá trabalhando na oficina, meu amor.
— Mas eu quero ver ele. Quero meu beijo.
Mariana inspirou fundo, decidindo não argumentar mais.
Afinal, uma parte sua também queria muito ver Felipe.
◆◆◆
Mariana estacionou o carro em frente à oficina Ponto Quilômetro
Zero, seguindo as instruções do GPS. Ao sair do veículo, ela percebeu o som
alto do rock que ecoava pelo ambiente e viu as portas abertas da oficina,
permitindo uma visão parcial do que acontecia lá dentro. Ágata, animada, já
estava saindo do carro e correu em direção à oficina.
Felipe, vestindo uma regata suada e suja de graxa, estava concentrado
em uma moto, trabalhando ao lado do homem que ela supôs ser o tal Theo.
Era impossível não admirar cada um dos movimentos dele. Seu coração
acelerou quando seus olhares finalmente se cruzaram, e ela pôde ver um
brilho nos olhos de Felipe ao reconhecê-la.
— Tio Fê! — Ágata gritou, e Felipe se virou imediatamente para
receber o abraço carinhoso da sobrinha.
— E aí, pequena? — ele respondeu com um sorriso, segurando-a nos
braços.
— Você deve ser a famosa Mariana, certo? — o amigo de Felipe
indagou, jogando um pano sobre os ombros. Também possuía o corpo
musculoso coberto de tatuagens, e conforme se movia, uma correntinha de
prata com um pingente circular balançava em cima de sua camiseta. — Já
ouvi falar muito de você por aqui.
— Sim, sou eu. — Mariana respondeu com um sorriso, apertando a
mão dele. — Você deve ser o Theo, não é?
— O próprio.
— Tenho que aguentar esse cara o dia inteiro — Felipe suspirou,
fingindo indignação e cansaço.
Theo arqueou os olhos.
— Sou eu que tô pagando meus pecados por ter que te aturar.
Ela abriu um sorriso; era notável como a amizade dos dois pulsava no
ar em meio ao cheiro da graxa e ao som do rock.
Ágata soltou o tio e olhou para Mariana.
— Tia Ma, você também precisa dar um beijo no tio Fê.
Calor subiu pelo rosto de Mariana; ela deu um passo à frente e se
aproximou de Felipe, sentindo o calor que emanava dele e uma sensação
familiar que nunca desaparecia por completo.
— Oi — ela murmurou suavemente, inclinando o rosto, depositando
um beijo na bochecha dele.
O roçar dos seus lábios na pele dele provocou um arrepio nela, um
anseio por mais, mas ela se conteve, controlando a vontade de beijá-lo como
verdadeiramente queria.
Ainda mais agora que sabia como eram os beijos de Felipe.
Ágata soltou uma risadinha travessa, se divertindo com a cena.
— Tia Ma, dá outro beijo no tio Fê!
— Ágata, a tia Ma já deu um beijo na minha bochecha, está bom
assim, não precisa mais... — Ele brincou, mas o fogo ardente que Mariana
via nos olhos dele quase a fez engolir em seco.
Theo soltou um assobio baixo.
— De repente, parece que estou sobrando aqui.
Felipe lançou um olhar enviesado para o amigo, que riu baixo.
— Quer ir, Ágata? — Mariana perguntou para a menina.
Ela negou com um aceno de cabeça.
— Quero fica aqui mais um pouco!
— Bom, quer uma cerveja? — Theo ofereceu à Mariana, andando até
o frigobar e pegando uma garrafa para ele e uma para Felipe.
— Não, estou dirigindo. Mas aceito uma água.
Enquanto Theo entregava a água para Mariana, os três se acomodaram
em algumas cadeiras próximas à oficina. A música no ambiente continuava
animada, harmonizando-se com o cenário repleto de pôsteres e objetos que
faziam Mariana pensar que estava em um motoclube particular.
Felipe deu um gole na cerveja e olhou para Mariana.
— E sua irmã? Por causa de toda a confusão desses últimos dias, até
esqueci de perguntar sobre ela. Como Lívia está?
Mariana suspirou e ajeitou uma mecha de cabelo atrás da orelha.
— Ainda está bem abalada por causa do vídeo, mas a terapia que eu
insisti que ela começasse a fazer está ajudando bastante. E meu pai tem sido
muito compreensivo, dando todo o apoio que ela precisa.
— Seu pai é muito gente boa — Felipe sorveu um gole da bebida.
— Ele é. — Um sorriso de orgulho encheu os lábios de Mariana. — É
o pai mais incrível e batalhador do mundo inteiro.
De soslaio, Mariana notou que, toda vez que a palavra “pai” era
mencionada na conversa, Theo tocava a correntinha ao redor do pescoço, o
olhar navegando para um ponto distante. Parecia um gesto automático; e ela
se perguntou o que havia embaixo das camadas daquele homem tatuado e
que falava muito pouco sobre si mesmo.
— Uma borboleta! Tio Fê! Tia Ma! Uma borboleta!
Mariana virou o rosto, observando Ágata apontar para uma borboleta
azul que havia entrado na oficina.
De repente, a menina se voltou para o tio, o rostinho mais sério.
— E o colar de borboleta da mamãe, tio Fê?
— Ainda tô procurando. — A voz de Felipe soou mais arranhada. —
Não se preocupe, eu vou encontrá-lo.
Ágata não pareceu completamente satisfeita com a resposta, mas
voltou sua atenção para a borboleta.
— De qual colar ela está falando? — Mariana indagou. — Já ouvi
Ágata mencionar esse colar de borboleta algumas vezes.
— Era um colar da minha cunhada. O pingente era uma borboleta,
uma joia feita sob encomenda. Era um colar único, muito bonito. Ele
desapareceu depois do acidente que meu irmão e minha cunhada sofreram.
— Felipe inspirou fundo, depositando a garrafa de cerveja sobre a mesinha
de centro. — Ágata sempre pede o colar da mãe, mas já virei a mansão de
cabeça para baixo. Ele simplesmente sumiu.
— Vou dar uma procurada nas coisas da Ágata. Talvez o colar tenha
caído em algum canto ou se enroscado em um brinquedo.
— Boa sorte, porque eu já desisti de encontrá-lo.
◆◆◆

O relógio marcava o início da noite quando Mariana estacionou o


carro na garagem da mansão. As luzes externas começavam a se acender,
dando um ar acolhedor ao lugar. Ela havia deixado Ágata na casa da amiga
e, a convite da mãe da menina, ficou um pouco lá para descontrair.
No entanto, à medida que Mariana saía do carro e fechava a porta, o
peso dos acontecimentos recentes parecia cair sobre ela como uma
tempestade. As preocupações com Lívia, a dívida do seu pai com os agiotas,
o assassinato de Rosana e os sentimentos confusos por Felipe, que só
aumentavam, deixavam-na com o coração apertado.
Enquanto Mariana se perdia em pensamentos, um par de braços
envolveu-a por trás, fazendo-a dar um pequeno pulo de susto. Antes que
pudesse reagir, Felipe a girou nos braços e selou seus lábios em um beijo
quente e apaixonado. O beijo desarmou qualquer resistência que ela pudesse
ter e fez suas pernas tremerem, levando-a a se entregar ao momento e erguer
os braços, passando-os ao redor do pescoço de Felipe.
Quando o beijo se encerrou em meio a uma necessidade de ar e fôlego,
Felipe roçou os lábios na bochecha direita dela.
— Eu menti lá na oficina.
— Sobre o quê? — Mariana murmurou, arrepiando-se com o roçar
úmido da boca dele em sua pele.
— Sobre um beijo seu na minha bochecha ser suficiente. — Ele
moveu o rosto, passando os lábios por cima dos dela. — Aproveitando que
Ágata está na casa da amiga hoje, o que acha de se desligar um pouco de
toda a confusão dos últimos dias? Quer ir para um lugar especial? Apenas
nós dois?
Com o coração acelerado, ainda com os braços ao redor do pescoço
dele, Mariana inspirou o perfume de Felipe e assentiu.
— Quero.
27
Abismo de fogo

A noite caía rapidamente enquanto Felipe e Mariana deixavam para trás as


luzes da cidade de Campinas e toda a turbulência dos últimos dias,
avançando pela estrada à medida que a velocidade da moto aumentava.
Quando começaram a descer a serra, Mariana apertou os braços em
torno da cintura de Felipe e olhou em volta, se perguntando aonde ele a
estava levando.
Finalmente, a estrada deu lugar a uma pequena trilha de terra que os
levou até uma praia deserta e idílica. A lua brilhava com intensidade,
lançando reflexos prateados nas ondas calmas do mar. O som suave das
ondas quebrando na areia se misturava ao canto das estrelas no céu noturno.
Mariana desceu da moto, ainda um pouco atordoada com a velocidade
da viagem e com o tempo que havia se passado. Ela olhou ao redor,
encantada com a beleza tranquila do local. Então, olhou para Felipe, que a
observava com um sorriso misterioso nos lábios.
— Onde estamos? — perguntou ela, curiosa.
— Lembra da história que você contou para a Ágata? — Felipe falou,
caminhando até ela.
Mariana franziu a testa, buscando a lembrança nas memórias, até que
acreditou encontrar a noite que ele mencionava.
— A história sobre como minha mãe me levava para a praia quando eu
estava triste ou precisava me sentir bem?
— Exatamente. — Felipe segurou a mão dela, puxando-a na direção
da areia. — Eu ouvi você contando essa história e pensei que talvez fosse
bom te trazer aqui. Não sei qual era a praia que sua mãe te levava, mas essa
daqui é um lugar que gosto muito por não ser muito movimentado.
Uma emoção indescritível encheu o coração dela conforme eles
andavam sobre a areia, até se sentarem em um local à beira-mar.
— Não precisava ter vindo tão longe por minha causa.
Felipe a fitou, os olhos refletindo a luz da lua.
— É claro que eu precisava. Você cuida de todo mundo, mas quem
cuida e olha de você?
Os lábios dela se entreabriram, e Mariana se viu incapaz de proferir
qualquer som, qualquer palavra.
— Eu quero que você se sinta bem, assim como sua mãe fazia. E
também porque acho que precisávamos de um momento só nosso, longe de
tudo e de todos.
O brilho intenso da lua e das estrelas iluminava o rosto dele,
acentuando a cor de seus olhos, acelerando os batimentos do coração dela.
Mariana inclinou o rosto para frente, no mesmo instante em que Felipe
a envolveu nos braços, unindo seus lábios em um beijo que começou lento,
explorador e, aos poucos, foi se queimando em um anseio urgente, perdido
no rebentar das ondas.
Entre um beijo e outro, ela o fitou, as mãos no rosto dele, a respiração
ofegante.
— Felipe... O que somos? Onde isso vai parar?
Ele a fitou, o peito subindo e descendo embaixo da camisa.
— Não faço ideia — ele confessou na voz mais sincera que ela já
tinha ouvido. — A única coisa que sei é que você se impregnou em mim. Na
minha cabeça, no meu corpo, na minha alma, no meu coração. Quando não
estou com você, estou pensando em você, procurando por você. E te quero
como nunca quis ninguém em toda a minha vida.
A confissão a atingiu como a mais forte e certeira das ondas.
Sem ponderar, sem questionar, Mariana se atirou nos braços dele, a
colisão entre seus lábios explodindo em um beijo ainda mais impetuoso.
As mãos de Felipe se enterraram em seus cabelos, puxando-a contra o
seu peito, a boca sobre a dela, sedenta e possessiva. O ar parecia carregado
de eletricidade. Mariana arfou quando as mãos dele desceram para baixo de
sua blusa, acariciando sua pele, mais devagar agora, como se estivesse
incerto se deveria seguir em frente.
— Não... Não pare... — ela murmurou entre a trilha de beijos. — Por
favor...
Como se aquela fosse a permissão que lhe faltava, ele seguiu em
frente, continuou a beijá-la, e suas mãos deslizaram suavemente por seu
corpo, desabotoando sua blusa e acariciando sua pele, enviando arrepios
deliciosos por toda a extensão do seu ser.
Mariana não conseguia resistir ao toque dele, ao fogo que queimava
entre eles, conforme os dedos ágeis a despiam, tirando sua blusa,
desabotoando sua calça, deslizando-a para baixo, livrando-a de cada peça de
roupa, até que ela estivesse completamente nua sob o luar, os cabelos caindo
como uma cascata castanha sobre os ombros.
As ondas quebravam suavemente na praia, acompanhando o ritmo de
seu coração acelerado.
Ele a devorou com os olhos; as íris se convertendo em fogo puro.
— Você é linda pra caralho.
Com a boca sobre a dela, Mariana permitiu que ele a deitasse na areia,
perto de onde as ondas se desmanchavam em espumas.
— Isto tem tentado minha imaginação há muito tempo... — ele rosnou
baixinho, mordiscando a orelha dela, as mãos fortes descendo por seus
quadris, explorando a pele despida.
Arqueando-se ao toque dele, Mariana inclinou a cabeça para trás,
permitindo que boca de Felipe descesse para seu pescoço, depositando uma
trilha de beijos e mordidas leve que a fizeram se contorcer em seus braços.
— Não é justo que eu seja a única sem roupa aqui...
Felipe deu uma risada baixa; perigosa e selvagem.
— Fique à vontade.
Mariana espalmou as mãos sobre o peito de Felipe, puxando a
camiseta preta por cima da cabeça dele. O luar brilhava, lançando sua luz
prata sobre as ondas que se quebravam, desenhando um contorno nas
tatuagens que cobriam o peito dele.
— Gosta do que vê?
Mariana engoliu em seco, umedecendo os lábios.
Felipe a encarava com um olhar cheio de malícia, deixando-a arrepiar-
se sob a intensidade daquele olhar. Lentamente, ele acariciou a linha de seu
pescoço com as pontas dos dedos, descendo com ousadia até a linha que unia
as coxas dela, em uma promessa ardente que só parecia torturá-la.
— Felipe...
Os dentes dele roçaram pelo seio dela, e Mariana apertou os olhos, um
gemido trêmulo escapando de seus lábios entreabertos.
Talvez o mar estivesse mais quente, talvez as ondas tivessem se
tornado incandescentes.
Sem pressa, ele passou a atenção para o outro seio dela, ali se
demorando, alternando dentes e língua para provocá-la; Mariana jogou a
cabeça para trás, cravando os dedos nos ombros tatuados de Felipe, a
respiração ofegante, descompassada.
Um rosnado rouco, quase primitivo, escapou da garganta dele quando
suas mãos deslizaram para o meio das coxas dela.
— Você é realmente... Deliciosa.
O coração dela acelerou, e o fôlego escapou em um suspiro contido
quando ele segurou cada uma de suas coxas com firmeza.
Uma onda quebrou, espalhando água ao redor deles.
Seus olhares se encontraram, queimando sob a luz do luar.
Ele a beijou, descendo os lábios por seus seios, por sua barriga, até a
boca encontrar o mesmo ponto onde as mãos antes estavam, arrancando dela
um gemido rouco que se perdeu pela praia deserta.
Mariana se moveu, ondulando os quadris, rendida e entregue aos
toques de Felipe; era impossível pensar, era impossível respirar, era
impossível fazer qualquer outra coisa que não fosse sentir e desejar e ansiar
e...
Ele se ergueu, cortando a carícia bruscamente; um suspiro frustrado
escapou dela, causando outra risada perigosa nele.
— Ainda não. Não desse jeito.
Felipe desafivelou o cinto da calça, livrando-se das últimas peças que
cobriam sua pele, jogando-as no pequeno amontoado que as outras roupas
tinham formado sobre a areia.
Sem afastar os olhos do rosto dela, Felipe se deitou sobre seu corpo, se
pressionando firme e rígido entre suas pernas, e ela impulsionou os quadris
em resposta, ansiando por ele, pelo fim daquele desespero ardente que
consumia cada pedacinho sua pele.
— Como quiser, querida — ele sussurrou em seu ouvido.
Mariana sentiu o coração disparar ao sentir os dedos de Felipe se
enterrarem em seus cabelos, enquanto ele se posicionava com uma mão
apoiada na areia ao lado de sua cabeça; era um toque possessivo que a
deixava perdida em si mesma.
No primeiro impulso, Mariana sentiu-se mergulhar em um abismo de
fogo, esquecendo-se de tudo ao seu redor, inclusive o próprio nome. Cada
centímetro dele deslizando para dentro dela era uma sensação avassaladora
que roubava seu fôlego.
O rugido do mar ecoava em seus ouvidos, misturando-se aos sons
abafados que escapavam de seus lábios.
Ela teve que se controlar para não gritar no meio da praia deserta.
Porque ele...
O tamanho dele...
A forma como ele se movia...
Felipe se inclinou para a frente, capturando os lábios de Mariana com
avidez, impulsionando os quadris com mais força, tomando tudo o que havia
dela, reivindicando-a como ela o reivindicava.
Arfando, os dedos dela arranharam as costas tatuadas dele, o arranhar
das unhas fazendo-o estremecer e aumentar ainda mais o ritmo.
O som do mar e do vento se misturaram, apagando o mundo ao redor,
acentuando-se em cada toque, em cada movimento, em cada beijo, até a
última onda explodir na mais intensa e ardente entrega.
28
Insaciável

A lua brilhava no céu cobalto, tingindo as ondas que estouravam na areia e


se desmanchavam nos cabelos esparramados de Mariana.
— No que está pensando? — Felipe perguntou, depositando mais
alguns beijos na pele arrepiada do pescoço dela.
— Que não quero ser flagrada nua na areia.
— Eu também não quero que ninguém te flagre nua na areia. — Os
dentes dele roçaram pela pele sensível. — Decidi que essa vai ser uma visão
só minha e de mais ninguém.
Após mais um longo e demorado beijo, eles apanharam as roupas, se
vestiram, voltaram para a moto e decidiram procurar por uma pousada para
passarem a noite; estava tarde para retornar para a cidade. Iriam embora bem
cedinho pela manhã, para chegarem a tempo de pegarem Ágata na casa
amiga.
Assim que encontraram uma pousada com um quarto vago, Mariana se
livrou das roupas cheias de areia e correu para baixo do chuveiro.
O som da água corrente ecoava pelo ambiente, e Mariana sentia cada
gota lavar a areia e o sal que se misturavam com sua pele. Ela não conseguiu
evitar um sorriso bobo enquanto pensava em como aquele dia tinha sido
intenso e surpreendente.
De súbito, sem aviso, sentiu a presença de Felipe atrás dela, e antes
que pudesse reagir, ele a abraçou com força, arrancando um arquejo baixo
dos seus lábios.
— Felipe!
— Ainda não acabei com você — confessou em um sussurro, virando-
a e a puxando para um beijo possessivo.
O calor daquele momento fez a pele de Mariana, e ela correspondeu
com o mesmo desespero, suas mãos agarrando os braços fortes de Felipe.
O beijo era intenso, insaciável.
Mariana sentia cada toque, cada movimento dos lábios de Felipe em
sua pele, como uma corrente elétrica percorrendo seu corpo, dominando
cada pedacinho de sua existência, envolvendo-a em uma nuvem de vapor.
Ele a pressionou com mais força contra a parede, suas mãos
deslizando com firmeza pela pele dela, explorando cada curva e contorno. O
calor do momento era sufocante, e Mariana sentia suas pernas fracas, quase
incapaz de se manter em pé, e se agarrava aos ombros dele, buscando por um
equilíbrio que sua racionalidade já tinha perdido há muito tempo.
Os lábios de Felipe se afastaram dos dela por um momento, deixando
um rastro de beijos pela linha do maxilar, pelo pescoço, e descendo até os
seios dela. Mariana ofegou, segurando-se com força ao corpo dele, os sons
abafados escapando de sua boca.
Entre uma respiração ofegante e outra, seus olhares se encontraram.
Mariana nunca tinha visto alguém admirá-la com tanta selvageria, com
um olhar tão escurecido e crepitante.
E as tatuagens que os cobriam...
Poderia tocá-las e olhá-las e admirá-las a noite inteira.
— Não me olhe desse jeito — ele rosnou baixinho, os dedos se
afundando nos cabelos dela. — Senão eu terei que...
— Terá que...? — ela provocou com um sorrisinho de canto.
Felipe a ergueu no colo com facilidade, e ela envolveu as pernas ao
redor de sua cintura. A água escorria pelos seus corpos molhados e quentes.
Ela ofegou ao senti-lo tão rígido contra sua pele.
— Terei que fazer isso...
E, com uma mão enterrada nos cabelos molhados dela, e a outra
sustentando contra a parede, ele a tomou de uma só vez, deixando que
aquele calor aumentasse e se espalhasse enquanto começava a se mover,
indo cada vez mais fundo, cada vez mais rápido, até Mariana estremecer em
seus braços, sentindo-o estremecer logo em seguida, o calor se misturando à
água e ao vapor.
◆◆◆

Apenas uma luz fraca tremeluzia no ambiente escuro.


Seu rosto permanecia parcialmente oculto pelas sombras, revelando
apenas um olhar inquieto e inescrutável. À sua frente, com um olhar severo,
a Autoridade lhe repreendia.
— Você precisa entender que tudo deve ser feito de acordo com as
regras — a voz ecoava no ambiente tenso. — Não podemos deixar pontas
soltas, qualquer deslize pode colocar tudo a perder. Tenho clientes que...
Sua cabeça assentiu mecanicamente, embora a mente estivesse
ocupada com outra coisa. O coração pulsava com uma urgência
incontrolável, os instintos selvagens gritavam dentro de si. O cheiro de
sangue e adrenalina ainda pairava em suas narinas, uma lembrança tentadora
da caçada que havia ocorrido há pouco tempo.
E aquele cheiro específico...
— Se nossos clientes suspeitarem que nossos serviços podem ser
expostos, tudo o que construímos irá por água abaixo.
Enquanto a Autoridade continuava a falar, seus pensamentos voltavam
para o momento em que surpreendera a mulher dentro do carro, para o som
da carne rasgando, para o cheiro do sangue que se impregnou no interior do
veículo.
Não era o cheiro que queria.
Mas tinha sido suficiente.
Naquele momento.
Só que agora...
— Você está me ouvindo?
— Sim, sim, claro — respondeu sem realmente prestar atenção às
palavras. Tudo o que conseguia pensar era na presa que queria de verdade.
— Sei que você gosta de fazer as coisas à sua maneira — a Autoridade
continuou — Mas precisamos seguir as regras. Não podemos deixar que
nossos impulsos nos dominem. É por isso que tudo tem funcionado há tanto
tempo. Porque nossa operação possui regras que nos protegem dos olhos da
polícia.
Enquanto ouvia, assentia com a cabeça, o coração dividido entre a
obediência e o anseio mais primitivo da alma.
— Compreendo.
A Autoridade lhe lançou um último olhar.
— Você sabe o que vai acontecer se fizer algo assim de novo, certo?
— Sim.
— Que tenha sido a última vez. E não a promessa de uma última vez,
como nós sabemos que já aconteceu.
Quando a Autoridade finalmente se afastou, seu corpo permaneceu ali,
imerso em suas próprias sombras. Sabia que errara ao não seguir os passos
de sempre. Precisava de cautela, precisava manter suas ações dentro das
sombras e fora dos olhos do mundo.
Mas a caçada era irresistível, o cheiro era inebriante, o desejo de
controlar a vida e a morte era avassalador.
Com o coração pulsando em um ritmo frenético, permitiu que seus
olhos se fechassem, saboreando-se apenas com os cenários que existiam nas
sombras de sua imaginação; o gosto do medo, o aroma da morte, a
contemplação da fuga, o toque do suor frio, o som final.
Tão...
Bom.
O cheiro da presa ficava mais forte do que nunca.
A caçada lhe chamava.
E não sabia como faria para resistir na próxima vez.
29
Roçar inquieto

Aos poucos, as estrelas que ainda resistiam no céu foram desaparecendo,


dando espaço para a chegada do amanhecer.
Com o rugido do motor da moto ecoando nos ouvidos, Felipe e
Mariana deixaram a praia para trás. se aventurando pela estrada
serpenteante. O dia empalidecia, o céu cedia espaço para tons suaves de azul
e roxo. As árvores ao lado da estrada pareciam silhuetas dançantes,
recortadas contra o horizonte que estava prestes a se iluminar. Os primeiros
raios de sol surgiram tímidos, espiando por entre as montanhas da serra.
Felipe acelerou a moto, sentindo os braços de Mariana ao seu redor, o
vento fresco da manhã acariciando seu rosto.
Poderia eternizar aquele momento, viver nele até o fim dos seus dias.
Porque era uma sensação tão certa quanto à chuva que batia na janela
do seu quarto de infância.
E constatar aquilo...
Era atordoante e assustador.
Quando chegou à mansão, sentindo ainda as chamas das sensações que
haviam incendiado a noite, ele notou que seu coração ainda batia acelerado
por causa dela. Estava viciado na presença dela. Mariana era insaciável para
ele, um desejo que não podia ser saciado facilmente.
Felipe estacionou a moto, ajudando-a a descer.
Assim que Mariana tirou o capacete, seus longos e castanhos cabelos
caíram pelos ombros, causando um formigamento nos dedos dele, um anseio
por seu afundar naqueles fios, inspirar sua fragrância, se perder nela por
completo mais uma vez.
E, sem se conter, ele passou o braço ao redor da cintura dela, unindo
seus lábios em mais beijo que poderia fazer o inferno ter inveja do fogo que
se incendiou por suas veias.
— Me dê um motivo para não te arrastar para o meu quarto — ele
sussurrou contra a boca dela.
— Tenho que buscar Ágata na casa da amiga — Mariana sussurrou de
volta. — Este é um bom motivo?
Felipe suspirou.
— Sim, é um bom motivo. Nos vemos mais tarde? Vou dar uma ligada
para Theo e ver se ele precisa que eu passe na oficina.
— Certo. Até mais tarde.
Enquanto via Mariana pegar o carro para buscar Ágata e desaparecer
no final da rua, Felipe ficou na entrada da mansão, ligando para Theo.
O celular do amigo chamou, chamou, chamou.
E não atendeu.
Tentou de novo.
A ligação caiu direto na caixa postal.
Felipe franziu o cenho, encarando o visor do celular.
Que estranho.
Era difícil Theo não atender uma ligação sua.
Por via das dúvidas, mandou uma mensagem para ele.
Talvez Theo estivesse enroscado na cama de alguma garota, fazendo
algo muito mais útil e divertido do que atender uma ligação de trabalho.
Bom, ele tinha se esquecido do próprio celular enquanto estava com
Marina.
Ao guardar o celular no bolso da calça, Felipe deixou a garagem e
rumou para o jardim. Notou que havia um carro estacionado na frente do
portão da mansão, com a porta do motorista aberta.
Ele andou até ali, vendo que não havia ninguém ao volante, embora o
motor do carro continuasse ligado.
Felipe abriu o portão e foi até a calçada. Notou que havia uma mulher
quase na esquina que a mansão formava, com uma bolsa pendurada no
ombro. Ao chegar mais perto, reconheceu-a como sendo Isabela, a amiga de
Mariana e funcionária da agência de recrutamento.
Havia algo no olhar de Isabela que o intrigou. Ela parecia distante,
como se estivesse observando algo à distância, em seus próprios
pensamentos. Felipe se aproximou mais dela, seus passos anunciando sua
presença.
— Isabela? — chamou, vendo-a virar o rosto para ele.
— Ah, Felipe. Oi — cumprimentou ela, com um sorriso forçado. —
Desculpa, deixei o carro na entrada da sua casa.
— Está tudo bem?
Isabela virou o rosto, voltando a encarar a rua que cortava a lateral da
mansão, franzindo os lábios, para então se voltar para ele.
— Só estava pensando em... Bom, não é nada. — Ela agitou a cabeça,
empurrando uma mecha de cabelo para trás da orelha. — Estou aqui porque
fui chamada para conduzir as entrevistas das novas empregadas da casa.
Sabe como é, sua mãe quer contratar novas pessoas desde que... Bom, desde
o que aconteceu com Rosana.
A menção ao nome de Rosana foi como um machado que cortou o véu
sonhador que o envolvia até aquele momento.
Havia saboreado o paraíso embaixo das estrelas e ao lado do mar.
Agora precisava voltar para a realidade.
Enquanto ele tentava encontrar as palavras certas para expressar sua
opinião, a mãe de Felipe, dona Solange, apareceu no jardim.
— Acho meio cedo para novas contratações — ele falou, as memórias
de Rosana assassinada voltando para sua mente. Se fechasse os olhos, podia
ver o carro da empregada ali, o corpo sem vida, o sangue cobrindo as roupas
dela. — Ainda estamos lidando com tudo o que aconteceu.
— Sua mãe falou que há muito serviço acumulado na mansão e que
precisa de ajuda, pois não consegue dar conta de tudo sozinha.
Mesmo acostumado a ter visões muito divergentes da visão da mãe,
Felipe se viu obrigado a concordar com ela naquele ponto.
Sem Rosana, vários serviços estavam sem fazer; os outros empregados
tentavam cuidar das tarefas que eram da empregada mais velha da casa,
contudo, tudo parecia bagunçado e confuso.
Para sua mãe, que gostava das coisas impecáveis, aquilo deveria estar
sendo uma verdadeira tortura. Principalmente por ter que gastar tempo
cuidando de algum serviço, quando — na cabeça dela — poderia estar
cuidando de Diogo e rezando para que um dia ele acordasse do coma.
Até ele, que não ligava muito para ordem e asseio, estava sentindo
falta do jeito prático com o qual Rosana lidava com as tarefas domésticas.
— Tudo bem, não vou mais atrasá-la — ele falou, passando os dedos
nos cabelos. — Minha mãe deve estar te esperando.
Isabela deu um leve sorriso e acenou para Felipe antes de se dirigir ao
carro estacionado em frente ao portão da mansão, adentrando com o veículo
no terreno da propriedade.
Felipe tentou ligar novamente para Theo; a ligação caiu direto na caixa
postal.
Ele ficou ali na calçada por mais alguns instantes, encarando o celular,
para então virar o rosto para a rua lateral que Isabela parecia ter fitado com
tanta concentração, imaginando no que ela poderia estar pensando. Não
havia nada demais ali.
O dia começava a clarear, o sol nascente pintava o céu com tons
dourados, quentes; um contraste dissonante com o roçar frio que arranhava o
peito inquieto dele.
30
Um fardo solitário

“Perto... Tão perto...”.


Mariana acordou repentinamente, os olhos se abrindo para o escuro do
seu quarto na mansão. Não havia um ruído no ar, apenas uma sensação
inquieta, deslizante, como uma presença invisível estivesse pairando há
poucos instantes acima do seu corpo, quase tocando seu rosto, espreitando
nos liames das sombras.
Ela engoliu em seco, o coração batendo mais rápido, a respiração
entrecortada.
Devo ter tido um sonho. Os últimos dias foram muito agitados.
O quarto estava mergulhado na escuridão, com apenas a luz fraca da
lua entrando pelas frestas da cortina. Cada som mínimo ao seu redor parecia
amplificado, adensando a tensão que pulsava entre as quatro paredes.
Mariana se sentou na cama, seus olhos percorrendo o cômodo em
busca de qualquer sinal de movimento.
Não havia nada ali.
Ainda inquieta, esticou a mão, apanhando o celular que deixava em
cima da mesinha de cabeceira, e mandou uma mensagem para Felipe.

Mariana: Está acordado? Posso ir até o seu quarto?

A resposta dela chegou instantes depois.

Felipe: Adoraria te ter no meu quarto, mas ainda não voltei para
casa. Estou aqui na oficina cuidando de uma moto.

Ela piscou, checando as horas. Não era tão tarde da noite, mas já havia
passado bastante do horário que Felipe costumava voltar da oficina.

Mariana: Está com muito serviço acumulado aí?

Observou Felipe digitar a mensagem, demorar para enviar, como se


tivesse apagado; então, começar a digitar de novo.

Felipe: Theo não apareceu por aqui hoje e não atendeu minhas
ligações. Tô tendo que cuidar de um reparo sozinho.

Mariana: Tá tudo bem com ele?

Felipe: Espero que sim. E você? Aconteceu alguma coisa?

Mariana mordeu o lábio inferior, correndo os olhos ao redor do quarto.


A impressão que tinha era de que cada sombra parecia se fechar sobre ela.
Engoliu em seco, voltando sua atenção para a mensagem.

Mariana: Tive um pesadelo, só isso.


Felipe: Cuido de você assim que chegar em casa. Fique
tranquila que você não vai ter tempo para dormir e ter outro pesadelo.

As bochechas dela queimaram com a promessa e a imaginação que


aquelas linhas lançaram em sua mente.
Limitando-se a mandar uma figurinha de resposta para ele, Mariana
deixou o celular de lado e decidiu que uma xícara de chá de erva cidreira lhe
cairia bem enquanto esperava que Felipe voltasse para a mansão.
Ao sair do quarto, passou pela penumbra do corredor, o coração
voltando a acelerar em um descompasso inquieto.
O que deu em mim?
Provavelmente, era estresse e cansaço.
Antes que pudesse dar mais um passo, Mariana teve que refrear o
próprio corpo, quase trombando com Solange, que vinha na direção oposta.
— Boa noite, dona Solange.
A mulher se limitou a cumprimentá-la com um aceno de cabeça, antes
de continuar seu caminho.
Mariana a observou, vendo que ela rumava para o quarto de Diogo.
Solange parecia mais cansada do que o normal, as olheiras fundas, os
cabelos mais desalinhados, e Mariana imaginou que a falta de uma
empregada-chefe na casa, assomado ao assassinato de Rosana, junto dos
cuidados que precisava ter com o filho em coma, a estavam deixando
esgotada.
Apesar de tudo, ela é só uma mãe que também está sofrendo.
E, antes que pudesse pensar melhor, deu um passo à frente.
— Precisa de alguma ajuda com o seu filho, dona Solange? Sei que a
senhora está sobrecarregada com tudo o que aconteceu. Eu... Eu sou formada
em Farmácia. Tenho noções da área da saúde.
A mulher a olhou demoradamente; um olhar tão fundo, tão
perscrutador, que Mariana sentiu um calafrio subir por sua espinha.
— Certo. Pode me acompanhar.
Mariana piscou.
O quê?
— Venha. Você é surda ou o quê? Entre.
Ela assentiu, atônita demais com aquela autorização, e entrou no
quarto de Diogo. O ambiente estava como se lembrava. As cortinas se
moviam levemente com a brisa noturna, e a luz da lua iluminava o cômodo
de forma espectral. Assim como da outra vez, o irmão de Felipe permanecia
deitado na cama, inconsciente, ligado aos aparelhos que mediam seus
batimentos e sua pressão sanguínea.
Observou Solange sentar-se na cadeira ao lado da cama, e começar a
limpar o peito despido do filho com um material antisséptico.
— Quer... Quer ajuda com isso? — Mariana ofereceu, estranhamente
desconfortável.
— Eu sou a única que pode tocar em Diogo — ela frisou, sem olhá-la
nos olhos, concentrada na higienização. — Pegue mais lenços no armário
para mim.
Mariana fez conforme o ordenado.
Após entregar os lenços para Solange, ficou em pé no quarto, incerta
sobre o que fazer a seguir.
— Obrigada pela confiança e por me deixar entrar aqui e te ajudar —
resolveu dizer, mantendo os braços caídos ao lado do corpo.
Sem ergueu os olhos, Solange continuou limpando o peito do filho.
— Você está cuidando de Ágata. Você está cuidando de Felipe. —
Havia uma nota arranhada ali, implícita, afiada, junto ao nome do filho mais
novo. — Cedo ou tarde, vai querer Diogo também.
Mariana entreabriu os lábios.
— O q...
Solange apontou para o armário.
— Pegue o antisséptico.
Ela se voltou para o armário, pegou o frasco e o entregou à Solange.
— Você tem filhos, garota?
— Não. — Mariana empurrou uma mecha para trás da orelha. — Mas
cuidei da minha irmã mais nova desde que ela tinha dois anos e eu, doze.
Lívia é minha irmã, mas é quase como uma filha para mim também. E tenho
um carinho muito especial por Ágata.
Solange deslizou o lenço pelo braço de Diogo.
— Uma mãe é capaz de abdicar de tudo para cuidar de um filho.
Até mesmo abdicar do outro filho e da própria neta?
Céus; Mariana teve que se esforçar demais para segurar a
impulsividade da própria língua.
— Sei o que está pensando — Solange falou, ainda sem olhá-la. O luar
iluminava a linha do maxilar dela. — Mas você só vai entender se um dia
tiver seus próprios filhos. Pegue mais lenços para mim.
Mariana caminhou até o armário, tentando manter a calma e não
mostrar o desconforto que a tomava.
De súbito, um som agudo chamou sua atenção. O aparelho de
monitoramento de Diogo emitiu um bip rápido e, em seguida, um barulho de
algo caindo ecoou pelo quarto.
Mariana se virou, assustada.
Ao se inclinar para pegar a medicação em uma das mesas ao lado da
cama, Solange havia batido acidentalmente com a mão no suporte do
aparelho, derrubando-o no chão.
Mariana correu até ela, a preocupação estampada em seu rosto. O
aparelho era essencial para monitorar o estado de saúde de Diogo, e agora
estava danificado no chão.
— A senhora está bem, dona Solange? A senhora se machucou?
Solange permaneceu sentada, respirando rápido, seus olhos cansados e
cheios de lágrimas enquanto encarava o filho inconsciente. Sob a luz trêmula
do luar, a expressão antes impenetrável dela agora lampejava um sopro fraco
de vulnerabilidade.
— O aparelho está na garantia? Se você acionar a loja, pode ser que
consiga um novo amanhã mesmo... — Mariana se aproximou, não sabendo
se amparava a mulher ou se limpava a bagunça. — A senhora se machucou?
Quer que eu faça alguma coisa para...
Antes que pudesse terminar a pergunta, Solange ergueu a cabeça, os
olhos faiscando no meio das lágrimas.
— Saia daqui!
Mariana arregalou os olhos.
— Dona Solange...
— Saia daqui! Saia logo! — ordenou, a voz furiosa, embargada, feroz.
— Eu cuido disso!
Confusa e preocupada com a matriarca da mansão, Mariana se viu
obrigada a engolir o nó em sua garganta.
— Tudo bem. Se precisar de alguma coisa, é só chamar.
Mariana saiu do quarto às pressas, com o coração apertado.
Apesar dos modos frios e impenetráveis de Solange, e de não aprovar
o jeito que ela “cuidava” de Ágata e Felipe, parte sua se compadecia pela dor
e pelo sofrimento que a mulher certamente experimentava toda vez que
entrava naquele quarto e via o filho mais velho naquele estado comatoso;
sabendo que não podia fazer nada para trazê-lo de volta, apenas velá-lo e
ampará-lo.
Espero que, um dia, ela baixe a guarda e se permita ser ajudada.
Tenho certeza de que as coisas mudariam bastante por aqui se dona Solange
mudasse de postura.
Ao se virar, seus ouvidos captaram um som familiar e potente do lado
de fora da mansão; era o ronco da moto de Felipe, um sinal de que ele
finalmente havia chegado.
Uma onda de alívio se apoderou do peito dela, um anseio desesperador
de se jogar no conforto quente dos braços fortes dele.
E, enquanto descia as escadas e ia ao encontro de Felipe, sentia a
mente tomada de preocupações e vontade de ajudar mais. Mas sabia que, por
ora, não poderia fazer muito mais do que oferecer um pouco de auxílio e
apoio para Solange, mesmo que a matriarca da família parecesse
determinada a carregar todo o fardo sozinha.
31
Peões insignificantes

Precisava pensar rápido.


Elaborar um plano que blindasse tudo o que havia construído.
Andando de um lado para o outro, no colo da escuridão, sua mente ia e
vinha, analisando o tabuleiro imaginário, calculando cuidadosamente o
próximo movimento.
Não podia deixar que erros tolos destruíssem toda a confiança que
havia obtido de seus clientes.
Às vezes, para dar o xeque-mate, para proteger peças mais valiosas,
era preciso recuar e sacrificar.
Inspirou fundo.
Aquilo daria um pouco de dor de cabeça, mas era o único movimento
seguro que enxergava em seu tabuleiro.
— Tenho um serviço para você.
Mãos espalmadas e devotas se estenderam diante dos seus olhos.
— O que quer que faça?
Com cuidado, entregou um embrulho plástico para as mãos estendidas
em sua direção.
— Vamos sacrificar algumas peças do nosso tabuleiro.
Dentes sedentos e brancos se abriram na escuridão.
— Um cavalo? Um bispo? Uma torre?
Um riso fraco e cansado escapou de seus lábios.
— Apenas peões insignificantes. E faremos as coisas do meu jeito.
32
Casa dos sonhos

O domingo brilhava sob um céu azul e claro.


Após a tensão da noite passada, Mariana sentia-se mais renovada por
estar em sua casa, com sua família. E sentia-se ainda mais completa por
Felipe, Ágata e Isabela estarem ali.
Fora surpreendida, logo cedo, por uma ligação de seu pai, convidando-
a para o almoço de domingo, e estendendo o convite para Felipe e Ágata.
Em um primeiro momento, Mariana quase recusou; mas então notou algo na
voz de seu pai que não percebia há muito tempo — animação e leveza. Ao
repassar o convite para Felipe, ficou ainda mais surpresa por ele aceitar sem
titubear, e se emocionou quando Ágata saltitou de um lado para o outro,
vibrando de alegria por ter a chance de rever “tia Lívia”.
— Acho que vou convidar Isabela também — Mariana comentou, já
dentro do carro com Felipe e Ágata. — Vai ser bom para Lívia estar rodeada
de pessoas que a colocam para cima.
— Sua irmã está melhor?
— Aos poucos, sinto que ela está melhorando. Vai levar tempo, mas
Lívia é forte.
Um raio de sol passou pelo rosto de Felipe quando ele virou a cabeça e
capturou os olhos de Mariana.
— Se Lívia tiver metade da sua resiliência e determinação, tenho
certeza de que ela vai se recuperar.
O coração dela saltou no peito, tomado pela surpresa da sinceridade
pulsante das palavras dele.
Mais emocionada do que gostaria de admitir, Mariana forçou sua
atenção no celular e na ligação com Isabela; sua amiga aceitou o convite, e
não demorou para que sua casa estivesse cheia de vida e alegria.
O almoço havia sido delicioso; uma macarronada com molho de carne
moída — especialidade do seu pai — e todos estavam reunidos na sala após
a refeição.
Enquanto Mariana e Isabela tiravam a mesa, um sorrisinho malicioso
passou pelos lábios de sua amiga.
— Então, em que nível vocês estão?
— Do que você tá falando? — Mariana desconversou, sentindo as
orelhas esquentarem por já imaginar o rumo daquela conversa.
— De você e do Felipe. Vocês não param de trocar olhares.
— Não é nada demais.
— Ah, Mari, me diz a verdade! — Isabela revirou os olhos. —
Conheço você como a palma da minha mão. Sei que você não é alguém de
relacionamentos casuais. E está na cara que você está apaixonada por Felipe.
Um pouco sem jeito, Mariana colocou os copos e pratos na pia,
tentando disfarçar o rubor que subia pelas suas bochechas.
— Bem, talvez... Eu não sei. Acho que estou gostando dele, mas ainda
é cedo para dizer qualquer coisa.
Isabela riu, dando uma leve cutucada no ombro de Mariana.
— Gostando? Menina, isso é muito mais do que só gostar! A forma
como vocês dois se olham, como se entendem sem precisar de palavras... É
amor, Mari. Tenho certeza!
Mariana suspirou, sentindo o coração acelerar com as palavras da
amiga. No fundo, sabia que Isabela estava certa, mas ainda tinha medo de
admitir para si mesma o que estava sentindo.
Um pedaço de si ainda temia feridas, vulnerabilidades, perdas.
Só de se recordar do sofrimento experimentado por perder a mãe, de
tudo o que fizera temendo que os agiotas tirassem a vida do seu pai, do medo
alucinador quando recebeu a ligação do hospital e achou que algo grave
tivesse acontecido com Lívia...
Ter também significava correr o risco de perder.
— Eu... Acho que sim. Mas não quero apressar as coisas, sabe? Ainda
temos muita coisa para descobrir um do outro.
Isabela concordou, colocando a mão no ombro de Mariana.
— Claro, é importante ir com calma. Mas não tenha medo de se
permitir ser feliz. Você merece isso, Mari.
Mariana sorriu, agradecendo o apoio da amiga.
— Obrigada, Isa. Você sempre sabe o que dizer.
As duas terminaram de arrumar a mesa e voltaram para a sala, onde o
restante da família estava conversando animadamente. Mesmo com o rosto
virado para outro lado, ela podia sentir os olhos de Felipe acompanhando
cada um dos seus passos, o perfume dele chegando até seu olfato, feito um
ímã atraído pelo metal.
— Mari, como é sua casa dos sonhos? — Lívia perguntou, sentada no
chão, desenhando com Ágata.
— Minha casa dos sonhos? — Mariana piscou. — Nossa, preciso
pensar um pouco nisso.
— Essa é fácil! — Isabela se jogou em uma das poltronas. — Para
mim, seria um apartamento luxuoso em uma cobertura, com uma vista
deslumbrante da cidade. Ele teria um hall de entrada majestoso, adornado
com obras de arte requintadas e um lustre suntuoso que lança um brilho
suave sobre o ambiente. O piso seria feito de mármore italiano ou madeira
nobre.
Mariana arqueou as sobrancelhas com diversão, sentando-se no sofá
ao lado de Felipe.
— Mais alguma coisa?
— Hum... — Isabela tocou o próprio queixo, pensativa. — A cozinha
podia ser equipada com os mais modernos eletrodomésticos de aço
inoxidável, bancadas de mármore ou granito, e ter armários sofisticados.
Imagino uma espaçosa ilha central, onde posso confraternizar com os meus
amigos e fazer refeições rápidas.
— Se você entregar esse desejo com força para o universo, tenho
certeza de que ele será dado para você — Mariana escutou o pai dizer para
Isabela.
— Que assim seja, seu Alberto. E o senhor? Como imagina sua casa
dos sonhos?
Ele sorriu; um sorriso que aqueceu o coração de Mariana.
— Do jeito que ela está agora.
— E você, Felipe? — Isabela se voltou para ele. — Como é sua casa
dos sonhos?
— Ora, ele já mora em uma casa dos sonhos — Lívia cortou a
conversa, erguendo os olhos. — Quem é que não sonha em viver em uma
mansão gigantesca, em um dos melhores bairros da cidade?
Felipe se ajeitou no sofá, a perna dele se encostando e repousando na
perna de Mariana; um contato que espalhou um calor agradável por toda a
pele dela.
— Bom, na verdade, minha casa dos sonhos é bem diferente do lugar
onde eu moro atualmente.
— É mesmo? — Lívia indagou, curiosa. — Como ela é?
— É um lugar simples, mas cheio de aconchego. A casa teria só um
andar. Onde quer que você olhe, verá um toque pessoal, algo que reflita
quem eu sou. — Ele pausou por um momento, organizando os pensamentos.
— Primeiro, com certeza teria uma garagem espaçosa, onde eu pudesse
guardar todas as minhas motos. A sala de estar teria um ar rústico, nada de
mármore ou essas decorações mais frias.
Completamente diferente da mansão onde ele cresceu e vive até hoje,
Mariana pensou, atenta a cada uma das palavras que saíam dos lábios de
Felipe, pintando um quadro vívido da casa dos sonhos dele.
— A cozinha seria espaçosa e bem equipada, para que pudéssemos
cozinhar juntos e experimentar novas receitas. E claro, teríamos uma mesa
grande para receber os amigos e a família nos momentos especiais.
— Tem um quarto pra mim lá, tio? — Ágata perguntou, os olhinhos
brilhando, as mãos segurando o lápis de cor.
Felipe sorriu e assentiu para a sobrinha.
— Com certeza.
— Eba!
— Hum, e o que mais? O quintal seria um lugar de paz, com um
jardim bem cuidado e uma área para relaxar ao ar livre. Imagino que
passaríamos muitas tardes lá, conversando, curtindo a natureza, vendo a
chuva. — Ao mencionar a chuva, uma luz nostálgica encheu os olhos dele;
uma luz diferente de tudo o que Mariana já tinha visto nele. — O som da
chuva batendo nas janelas criaria uma atmosfera aconchegante e relaxante
nessa casa. É como se o mundo lá fora ficasse mais calmo, e nós nos
sentíssemos protegidos dentro daquele ambiente.
Mariana o ouvia em silêncio, transportada para a casa dos sonhos de
Felipe. Cada detalhe descrito por ele ecoava em sua mente, criando uma
sensação tão real que quase podia tocar e sentir tudo.
Seu coração começou a bater mais rápido, e ela se viu imaginando-se
vivendo nesse lugar ao lado dele e de Ágata. A imagem parecia tão real, tão
palpável, que a surpreendeu com sua intensidade.
Ela suspirou baixinho, levando uma mão ao peito.
Por mais receosa que se sentisse, não podia negar que o que estava se
desenvolvendo entre eles — e também entre ela, ele e Ágata — era muito
mais profundo do que imaginava.
— Tá tudo bem? — a pergunta de Felipe a puxou de volta para a
realidade, fazendo com que Mariana piscasse e limpasse a garganta.
— Sim, sim. Eu... Minha cabeça foi longe.
— Acho que eu ainda ia preferir a mansão — Lívia concluiu. — Mas
acho que ia dar muito trabalho com a faxina, né? Bom, se eu morasse em
uma mansão, teria que ter dinheiro para contratar gente para me ajudar com
a limpeza.
— Por falar em limpeza... — Isabela buscou o rosto de Felipe. — Sei
que não é dia nem lugar para falar de trabalho, mas já tenho algumas
candidatas para sua mãe. Mandarei toda a documentação para ela ainda essa
semana, assim ela pode escolher uma nova empregada.
Felipe se limitou a um aceno de cabeça.
— Certo, obrigado.
— E nada ainda sobre o caso da antiga empregada? — o pai de
Mariana indagou, tomando cuidando com as palavras na frente de Ágata.
Mariana suspirou e trocou um olhar com Felipe.
— Nada ainda.
— Mas reforçamos a segurança, trocamos o sistema de alarme. Os
vizinhos fizeram o mesmo. — Felipe acrescentou. — A polícia tem rondado
bastante o bairro também.
Isabela inclinou o corpo para frente, pensativa.
— É estranho as câmeras não terem registrado nada, né? Esses dias,
quando passei lá na mansão para conversar sobre as candidatas com dona
Solange, fiquei olhando para a rua, imaginando para onde a “pessoa” — ela
escolheu aquela palavra no lugar de “assassino” por conta de Ágata —
poderia ter ido, imaginando como nenhuma câmera pegou nada. Não
consegui parar de pensar nisso. É como se a pessoa tivesse desaparecido
feito um fantasma. Estranho demais, né?
Mariana virou o rosto, observando a janela, o vento que soprava do
lado de fora, balançando a copa das árvores.
Sim.
Era estranho demais.
◆◆◆

— Agora conte para mim: você se divertiu hoje? — Felipe perguntou,


colocando Ágata na cama. Do lado de fora da mansão, o dia havia se
transmutado para uma noite tranquila, sem lua ou estrelas.
Sua sobrinha, já vestida com os pijamas para dormir, alargou o sorriso
e balançou a cabeça com muita alegria.
— Eu amei!
Felipe sorriu para ela, bagunçando seus cabelos. Era notável como
Ágata se transformava em uma criança muito mais tranquila quando passava
um tempo com a família de Mariana.
Ele mesmo se transformava quando estava com ela.
Felipe inspirou fundo, quase levando uma mão ao peito, o coração
trovejando forte.
Ele sabia que não era alguém que se abria com facilidade, que fala
sobre sonhos ou desejos — por muito tempo, tinha vivido apenas para
satisfazer sua paixão pelo motociclismo e por cuidar de Ágata,
principalmente desde o acidente da cunhada e do irmão.
Mas quando começara a descrever sua casa dos sonhos...
Tudo tinha fluído com tanta naturalidade, que ele precisou se controlar
para não mencionar o elemento mais especial que imaginava naquela casa,
além de sua sobrinha.
Mariana.
Mesmo com os olhos abertos, podia vê-la na pintura daquele sonho;
em cada canto, em cada cômodo, com seu sorriso, com seu perfume,
transformando uma pilha de tijolos e concreto em um verdadeiro lar.
Como, em tão pouco tempo, ela podia estar se transformando na peça
central de seus sonhos?
Nunca antes havia sentido uma conexão tão forte com alguém.
Era atordoante.
A velocidade com que esses sentimentos estavam crescendo parecia
rápida demais, mas ao mesmo tempo, era uma sensação certa e única.
— Tio Fê. — Ágata o cutucou. — Tio Fê.
Com um eco pulsante no coração, ele baixou os olhos.
— O que foi?
— Por que a tia Ma não me colocou pra dormir hoje?
— Porque ela foi tomar banho. Você não gosta mais que eu te coloque
pra dormir? — provocou.
Ágata deu um sorriso que encheu o peito dele.
— Eu amo!
Com os pensamentos ainda agarrados à Mariana, ele pegou as cobertas
e as ajeitou por cima da sobrinha. Escutou um barulho de papel no meio
delas; ao procurar a origem do sol, encontrou um desenho de Ágata. Era uma
casa com três pessoas no jardim: uma mulher, um homem e uma menina.
Riscos caíam do alto; ele imaginou que era o desenho da chuva.
— Você fez isso hoje na casa da Mariana?
— Sim? Gostou?
— Tá lindo. É você, sua mãe e seu pai?
Ágata balançou a cabeça.
— Não. Eu, tia Ma e tio Fê. Na casa com chuva que você falou.
Felipe fitou o desenho; algo ardia no fundo dos seus olhos, um marejar
há muito tempo não experimentado. Era uma representação simples nos
traços de uma criança, mas tão significativa. Em seus sonhos infantis, Ágata
também via a si mesma, Mariana e ele juntos, na casa dos sonhos que havia
descrito no almoço.
— E o que é isso na cabeça da tia Ma? — ele perguntou, tentando
conter a emoção em sua voz.
— É o véu de noiva porque a tia Ma se casou com o tio Fê! — ela
respondeu, inocentemente.
O coração de Felipe quase parou; as palavras desapareceram de sua
boca, o mundo pulsou em uma batida silenciosa, ecoante, forte.
— A gente vai brincar, fazer festa do pijama, fazer biscoito, e eu vou
desenhar mais. — Ela apontou para o céu com os riscos feitos no alto da
casa. — E a chuva é porque vai ser uma chuva de amor!
Com as mãos trêmulas, ele colocou o desenho na mesinha de
cabeceira ao lado da cama de Ágata, olhando mais uma vez para a
representação daquela casa, daquela família. Em seguida, deu um beijo de
boa noite na sobrinha e saiu do quarto, fechando a porta atrás de si.
Aquela onda de emoções era avassaladora, e ele precisava de um
momento para processar tudo o que estava sentindo.
No corredor, seus passos eram lentos e hesitantes, quase flutuantes e
confusos, mas pareciam querer levá-lo até o quarto de Mariana.
Sentiu o celular vibrar no bolso da calça.
Apanhou o aparelho; ao checar o visor, viu que havia recebido uma
mensagem de Theo.
Estranhou.
Theo tinha estado distante por mais de um dia, sem dar notícias e sem
atender suas ligações.
“Estou no Estradas & Pistões. Pode vir até aqui?”
Felipe inspirou fundo, fitando o caminho até o quarto de Mariana e a
mensagem do amigo. Theo não costumava sumir daquele jeito.
Sem perder mais tempo, ele enviou a resposta.
“Estou indo”.
33
Caçada perfeita

Sua língua passou pelos lábios, a mão se fechando no ar, como se tentasse
agarrar uma razão para continuar seguindo as regras.
Mas era impossível se esquecer daquele cheiro.
Era o aroma de uma presa perfeita para caçar.
Uma presa que provavelmente lutaria com todas as suas forças; e
então sucumbiria, deslizando até o chão, espalhando-se em uma poça
escarlate que acentuaria seu cheiro.
E a pele?
Havia ainda a pele.
A pele parecia tão...
Perfeita.
Talvez devesse usar suas mãos.
Sim, as mãos.
Talvez desse colocar os dedos ao redor do pescoço, apenas para sentir
a pulsação acelerada, o calor que deixaria a presa enquanto seus olhares se
sustentavam nos momentos finais da caçada.
A Autoridade não ia gostar nada daquilo.
A Autoridade havia dito que estava cuidando de tudo para limpar os
rastros do último serviço descuidado.
Deveria obedecer.
Deveria esperar pelas ordens.
Mas o destino tinha lhe trazido a presa perfeita.
Como alguém poderia recusar o chamado da caçada perfeita?
34
Dança de sombras e caos

A noite vibrava em um arco magnetizado de cobalto e sombras, com o céu


encobrindo qualquer rastro da lua e das estrelas; o que não impedia que o bar
de motoqueiros “Estradas & Pistões” ganhasse vida. O rugido dos motores
ecoava no ar, misturando-se ao som de risadas e conversas animadas.
Felipe estacionou sua moto perto da entrada e afundou no bar,
sentindo-se em casa entre aqueles motociclistas. O cheiro de cerveja, o som
do rock'n'roll e a energia do lugar o envolveram, trazendo à tona lembranças
de tantas outras noites que havia passado ali com Theo e outros amigos.
E da noite em que havia visto Mariana pela primeira vez.
Ao vasculhar o bar com o olhar, encontrou Theo sentado em uma
mesa isolada, segurando uma garrafa de cerveja intocada. Notou
imediatamente a expressão cansada no rosto do amigo, mais vulnerável do
que o normal. Preocupado, se aproximou, sentando-se na mesa ao lado de
Theo.
— Ei, cara, o que tá acontecendo? — perguntou, encarando o amigo.
— Você não apareceu na oficina e nem atendeu as minhas ligações.
Theo suspirou e olhou para a garrafa de cerveja, seus olhos desviando
do olhar de Felipe.
— Desculpa, mano. Não tive condições. Minha cabeça tava cheia
demais, e eu não consegui cuidar de mais nada.
— Você tá com algum problema? Tem algo que eu possa fazer?
O som de rock clássico tocava em alto volume, misturando-se com as
conversas paralelas. A fumaça de cigarros pairava no ar, criando uma névoa
que deixava a luz bruxuleante.
— É o meu avô... — Theo finalmente falou, a voz arranhada, cansada.
— Ele está muito doente.
O coração de Felipe apertou-se com a notícia.
Ele sabia o quanto Theo era próximo do avô paterno, que morava em
Holambra, cidade natal do amigo. Era como se o avô fosse uma âncora para
ele, a única conexão que seu amigo mantinha com um passado que não
gostava de encarar ou mencionar.
Um passado que nem mesmo Felipe ousava questionar e investigar,
mesmo conhecendo vários detalhes; por experiência própria, sabia que as
pessoas precisavam de espaço para lidar com suas questões pessoais.
— Sinto muito pelo seu avô. Ele vai melhorar?
Theo hesitou antes de responder.
— Os médicos não estão muito esperançosos.
Felipe assentiu, compreendendo a gravidade da situação. Ouvir aquilo
era como voltar no tempo, para a época em que seu próprio pai havia
adoecido e falecido.
— Queria dar um jeito nisso, sacudir o velho e colocar ele em pé. —
Theo suspirou. — Mas não tem nada que eu possa fazer.
— Eu entendo. A gente se sente completamente impotente. — Atrás
dos olhos de Felipe, as memórias com seu pai lampejavam em um tom sépia
nostálgico, marcado pelo tilintar da última chuva confortável. — É uma
situação de merda.
— Uma situação de merda — Theo repetiu, encarando a garrafa de
cerveja. — Acho que não tem expressão melhor.
— Sinto muito, cara. Se precisar de alguma coisa, é só me chamar. —
Ele estendeu o braço, dando dois tapinhas no ombro do amigo. — Estou aqui
para o que der e vier.
Um sorriso fraco manchou os olhos angustiados de Theo.
— Valeu mesmo, mano.
Felipe estendeu a mão, tocando a garrafa de cerveja de Theo com as
pontas dos dedos.
— A bebida está quente. Vou pegar algumas geladas. Já volto.
Theo assentiu, agradecendo silenciosamente pela preocupação.
Felipe se levantou e andou até o balcão.
Enquanto esperava ser atendido, seus olhos caíram na moça ao seu
lado, que parecia estar esperando um drink ficar pronto. Seus cabelos
estavam tingidos de azul, piercings enfeitavam seu rosto, e ela estava vestida
com roupas pretas e estilosas, combinando com o ambiente do bar. No
pescoço dela, porém, algo chamou sua atenção: um colar de borboleta.
Não é possível.
Foi como se todas as paredes do bar se fechassem ao seu redor.
Felipe arfou, o coração acelerando em um descompasso sombrio,
confuso, voraz.
Ele reconheceria aquela joia em qualquer lugar.
— Ei, onde você conseguiu esse colar? — perguntou, as palavras
escorregando de sua boca em um impulso trêmulo.
A moça o encarou, visivelmente irritada com sua aproximação.
— Ganhei do meu namorado.
“Essas impunidades no nosso país são uma merda mesmo”, a
conversa com Mariana em uma noite longínqua se infiltrou em suas
memórias, tecendo uma dança de sombras e caos. “Até hoje, a polícia não
encontrou o motorista que bateu no carro do meu irmão e da minha
cunhada”.
— Esse colar é da minha cunhada. — Felipe ergueu o dedo, apontando
para o pingente. — Foi feito sob encomenda. É único. Sou capaz de
reconhecê-lo com os olhos fechados.
— Tá louco?! Esse colar é meu!
— Não, não é! — A voz de Felipe se alterou, se elevou, a razão se
queimando. — É da minha cunhada. Ou seja, é da minha sobrinha. Devolva-
o agora mesmo!
A moça estapeou a mão dele, fazendo com que os olhares das pessoas
presentes no bar se voltassem para eles.
— Sai pra lá, cara!
— O que tá acontecendo aqui? — uma voz grave e intimidadora ecoou
nos ouvidos de Felipe. — Por que você tá mexendo com a minha namorada,
caralho?!
Felipe ergueu os olhos, o sangue latejando nos ouvidos.
Era Lobo, um dos três agiotas da gangue que frequentava o bar.
— O que ele tá fazendo pra você, Melissa?
— Ele diz que esse colar é da cunhada dele e quer de volta.
O peito de Felipe subia e descia vertiginosamente sob a camisa.
“Essas impunidades no nosso país são uma merda mesmo. Até hoje, a
polícia não encontrou o motorista que bateu no carro do meu irmão e da
minha cunhada”.
Seria possível que ele tivesse alguma relação com o acidente?
Seria possível que Lobo fosse uma ponta perdida do passado?
Algo que estava ali, embaixo do seu nariz, durante todo aquele último
ano?
Incapaz de ceder, Felipe o encarou.
— Onde você encontrou esse colar?
— Vai se foder, cara. Não tenho que te dar porra nenhuma de
satisfação. — Lobo deu um passo ameaçador para frente, colocando-se cara
a cara com Felipe. — Deixa minha mina em paz.
— Só quando ela me devolver o colar. Ou melhor... — Felipe o
encarou de volta; faísca lampejavam em suas íris. — Só quando você me
explicar como está com esse colar. Porque eu sei que é da minha cunhada.
Um sorriso perigoso cresceu na boca de Lobo.
— Melhor tomar cuidado, cara. Válter falou que esse bar é território
neutro, mas minha vontade de te socar não para de crescer. Ainda não
esqueci da surra que você me deu por causa daquela vadia.
A menção insultuosa a Mariana foi o estopim que faltava para que ele
perdesse o controle.
Em um impulso de raiva, Felipe partiu para cima de Lobo.
E tudo se transformou em um borrão caótico.
No instante em que o punho fechado de Felipe encontrou o rosto de
Lobo, o agiota rosnou e avançou, empurrando-contra uma mesa. Garrafas e
copos caíram pelo chão.
— Retire o que você disse!
— Sobre a vadia? — Lobo arqueou uma sobrancelha. — Só falei a
verdade. A puta tá pagando as prestações da dívida do pai em dia. Mas tô
pensando em fazer uns reajustes nos meus negócios e aumentar os juros. Ela
vai ter que abrir as pernas para me pagar.
Felipe avançou de novo, mais furioso, golpeando-o na boca do
estômago. Lobo arfou, puxou o ar, erguendo a perna e o chutando de volta.
Recuperando o fôlego, Felipe se ergueu; com o canto dos olhos, viu
Theo, Falcão e Cobra se aproximando.
As demais pessoas se afastavam, ficando em pé e formando uma roda
para assistir a briga.
— Calma aí, rapaziada! — Válter, o dono do bar, gritou. — Vocês
conhecem as regras! Nada de briga aqui dentro!
Mas Felipe mal ouviu o que ele dizia.
Era como se uma besta furiosa, aprisionada em seu ser naquele último
ano desde o acidente sofrido por seu irmão e sua cunhada, tivesse finalmente
quebrado as correntes e se libertado de uma forma incontrolável.
Não conseguia pensar.
Não conseguia parar.
Theo tentava intervir, mas era impedido por Falcão e Cobra, que o
seguravam pelos braços. A situação estava ficando fora de controle, e os
ânimos só se acirravam mais a cada golpe trocado.
— Se vocês querem se matar, façam isso lá fora!
Em instantes, os seguranças de Válter apareceram e conseguiram
separar Felipe e Theo, arrastando-os para fora do estabelecimento.
No lado de fora, a noite estava escura e a brisa fria contrastava com a
atmosfera quente e tensa que os cercava.
Lobo, Falcão e Cobra se postaram diante de Felipe e Theo, formando
uma linha ameaçadora.
— Agora você vai aprender uma lição de verdade, moleque. — Um
sorriso de escárnio se desenhou pelas linhas ameaçadoras da boca de Lobo.
— Ninguém bate na gente e sai ileso. E depois que terminarmos com você,
vamos atrás da sua puta e da família dela.
As palavras de Lobo ecoaram no ar, mas Felipe não se deixou
intimidar. Sua expressão estava séria e determinada, os músculos tensos,
pronto para enfrentar o que viesse pela frente. Theo permaneceu ao seu lado,
pronto para participar da briga.
Respirações ofegantes cortavam o ar.
Quando estavam prestes a se lançar em mais uma troca de golpes, as
luzes das sirenes piscaram e o som das viaturas policiais se aproximou
rapidamente. O barulho das sirenes preencheu o ambiente, e os agiotas se
viraram para encarar a chegada das autoridades.
Em poucos segundos, o local foi cercado por vários policiais armados,
que desceram das viaturas com agilidade e cautela.
A cabeça de Felipe girou.
Trocou um olhar com Theo.
Alguém tinha chamado a polícia por causa de uma briga de bar?
Eram muitas viaturas, muitos homens e...
Antes que pudesse completar o raciocínio, os policiais fardados e
armados montaram um cerco ao redor dos agiotas, empurrando Felipe e
Theo para trás.
— Que porra é essa?! — Lobo vociferou, o semblante mostrando que
não entendia o que estava acontecendo ali.
Os policiais não recuaram.
— Lobo, Falcão e Cobra, rendam-se agora mesmo! Vocês estão presos
pelo assassinato da empregada Rosana Serra!
35
Turbilhão caótico

As palavras ecoaram no ar como um trovão, causando expressão de choque


e surpresa nos semblantes de Lobo, Falcão e Cobra.
Felipe viu que o trio tentou reagir, mas estavam em completa
desvantagem e cercado por inúmeros homens e mulheres fardados.
Os policiais agiram com precisão, algemando os três criminosos e
conduzindo-os até as viaturas, ignorando os gritos de protesto. A tensão no
ar era palpável, e os demais frequentadores do bar observavam a cena com
um misto de curiosidade e questionamentos.
Enquanto os agiotas eram levados sob custódia policial, os olhares de
Felipe e Theo se cruzaram em uma indagação muda.
O que diabos acabou de acontecer aqui?!
Com adrenalina correndo pelas veias, Felipe se aproximou de um dos
policiais que parecia chefiar a operação.
— Eles são mesmo os culpados do assassinato de Rosana?
— Não posso dar informações a um civil.
— Eu sou Felipe. Moro na mansão onde Rosana trabalhava.
— Felipe Rocha? — o policial indagou, averiguando suas notas.
— Sim, quero entender melhor o que acabou de acontecer aqui. Como
esses três caras estão envolvidos na morte de uma funcionária que trabalhava
na minha casa?
— Recebemos uma denúncia recentemente. Houve uma briga entre
vocês há algumas semanas, certo?
Felipe confirmou, explicando o que havia acontecido e como tinha
defendido Mariana da agressão dos três homens.
— A denúncia que recebemos indicava que esses indivíduos estavam
planejando uma retaliação contra você. Eles foram avistados nas
proximidades da sua residência.
Felipe franziu o cenho, lembrando-se da noite com Mariana na
cozinha, quando a beijara pela primeira vez e ela comentara sobre a
impressão de ter visto alguém suspeito perto da casa.
— Eles atacaram Rosana primeiro — o policial prosseguiu. — Através
da denúncia, conseguimos localizar a arma do crime, uma faca, na residência
deles.
A revelação atingiu Felipe como um soco no estômago, fazendo sua
cabeça girar ainda mais. A ideia de que aqueles três caras estavam
envolvidos no assassinato de Rosana era perturbadora.
E ainda havia o colar de borboleta da sua cunhada, que estava
pendurado no pescoço da namorada de Lobo.
Um colar desaparecido há mais de um ano.
“Essas impunidades no nosso país são uma merda mesmo. Até hoje, a
polícia não encontrou o motorista que bateu no carro do meu irmão e da
minha cunhada”.
— Quem fez a denúncia? — Theo indagou, colocando-se ao lado de
Felipe. As luzes das sirenes iluminavam seu rosto austero.
O policial inspirou fundo, checando as anotações mais uma vez.
— Foi uma denúncia anônima. Não temos informações sobre a
identidade do denunciante.
Felipe sentiu um nó de frustração em sua garganta.
Tantos questionamentos pairavam no ar, e as peças do quebra-cabeça
formavam um encaixe estranho, arranhado. Ele olhou em direção ao bar,
onde a tensão da briga ainda pulsava no tilintar das sombras, e então voltou
seu olhar para o policial.
— E agora?
— Vamos levá-los sob custódia e interrogá-los. Mas será mera
formalidade. Todas as evidências apontam contra eles. — O policial
estendeu um cartão para Felipe. — Se precisar de mais informações ou se
lembrar de algo importante, por favor, entre em contato conosco.
— Certo. Vocês podem aproveitar e dar uma nova olhada no acidente
que meu irmão e minha cunhada sofreram há um ano? O motorista que bateu
neles até hoje não foi encontrado. Talvez esses caras — ele fez um
movimento de cabeça na direção da viatura — saibam de algo.
— Pode deixar. Averiguarei tudo. Vamos fazer o que for necessário
para esclarecer essa situação.
Felipe agradeceu ao policial, encarando o cartão; um milhão de
perguntas ainda salpicavam por sua boca.
Enquanto ele estava mergulhado em pensamentos, a voz furiosa e
indignada de uma mulher cortou o ar. Era Melissa, namorada de Lobo, que
saía do bar em um alvoroço, gritando e demandando que soltassem seu
namorado. Os policiais tentaram contê-la, afastando-a com firmeza.
Felipe se aproximou dela, os passos pesados, crepitantes.
— É a última vez que vou te perguntar. — Ele fez um gesto para que
os policiais dessem um espaço. — Melissa, certo? Onde você conseguiu
aquele colar?
Melissa o encarou, um misto de raiva e surpresa em seus olhos.
— De novo isso? Eu já te respondi!
— Onde conseguiu esse colar? — Sem ceder, ele apontou para o
pingente que pendia sobre as roupas dela.
Ela revirou os olhos, irritada.
— Já te disse. Foi um presente do Lobo. Vai usar isso como desculpa
para mais problemas? É meu. E ponto final.
Foi como se toda a tensão da última hora convergisse em um único e
explosivo ponto em seu âmago.
Sem pensar duas vezes, Felipe esticou a mão e puxou o colar,
arrancando-o do pescoço de Melissa.
— Esse colar não é seu. — Sua voz estava carregada de emoção, de
um misto de raiva e urgência.
Choque perpassou pelo rosto de Melissa.
— O que você está fazendo? Devolva-o agora!
Felipe segurou o colar em sua mão, examinando-o mais de perto. Era
o mesmo colar de borboleta que pertencera a sua falecida cunhada. Não
tinha dúvida nenhuma.
— Esse colar é da minha cunhada. Ele desapareceu no mesmo dia em
que ela e meu irmão sofreram um acidente grave. Posso devolvê-lo para
você, mas você vai ter que ir até a delegacia e prestar um depoimento junto
com o seu namorado. O que me diz? Podemos ir até lá agora mesmo.
A expressão de Melissa mudou de confusão para choque absoluto. O
silêncio pairou no ar, tenso e denso, enquanto todos os olhares no local se
voltavam para a cena que se desenrolava diante deles.
Por fim, Melissa bufou e deu as costas bruscamente, afastando-se de
Felipe e atravessando a rua.
Enquanto ela desaparecia diante dos seus olhos, Felipe sabia que não
havia evidências reais de que Melissa estivesse envolvida no acidente ou no
assassinato — homens como Lobo trocavam de mulher como trocavam de
roupa. No entanto, o colar era uma pista intrigante, um fio solto que poderia
levar a alguma informação importante.
Ele se aproximou dos policiais novamente e relatou o que havia
acontecido, mostrando o colar como prova, que concordaram em investigar a
história mais a fundo.
Com um misto de indagações e sentimentos revirando em seu interior
feito um turbilhão caótico, Felipe encarou o pingente de borboleta mais uma
vez.
Algo ainda faltava naquela história.
E talvez descobrir aquela peça-chave pudesse trazer um pouco de
conforto para sua mãe e justiça para seu irmão e sua cunhada.
Com a mente fervilhando, ele se dirigiu à delegacia, pronto para
colaborar com as autoridades na busca pela verdade por trás da morte de
Rosana e dos eventos que estavam se desdobrando ao seu redor.
36
Confissões

Sentada na sala de estar, Mariana não parava de checar o visor do celular; as


preocupações crescendo a cada minuto que se passava com a ausência de
Felipe.
Uma sensação estranha eclipsava seu coração; uma apreensão muda,
trêmula, que regelava até o fundo dos seus ossos.
Estava imersa nos mais receosos pensamentos quando, de repente,
ouviu o familiar ronco do motor da moto dele. Seu coração deu um salto de
alívio e antecipação quando o som se aproximou.
Ainda bem!
Seus olhos se fixaram na entrada da mansão, e logo viu Felipe
entrando pela porta. No entanto, sua expressão de alívio se transformou em
choque ao notar os machucados visíveis em seu rosto.
— Meu Deus, o que aconteceu com você? — Ela se levantou
abruptamente do sofá, praticamente correndo até ele.
Um suspiro exausto escapou dos lábios de Felipe.
— Uma longa história.
— Você estava até agora no bar com Theo?
— Na verdade, acabei de voltar da delegacia.
— Como assim?!
Ela olhou para ele, ansiosa por saber mais, e então ele começou a
relatar os eventos que haviam ocorrido: seu encontro com Theo, a briga no
bar com os agiotas, a descoberta do colar de borboleta e a chegada da
polícia, acusando os agiotas pelo assassinato de Rosana.
Mariana ficou em choque, seus olhos arregalados enquanto ouvia a
narrativa de Felipe. As peças do quebra-cabeça começavam a se encaixar,
mas também traziam consigo uma enxurrada de perguntas, principalmente
para seu lado que estudava quase todos os dias o funcionamento de uma
investigação policial e o trabalho da perícia criminal.
— Isso é... é inacreditável. — Ela finalmente conseguiu dizer, sua
mente girando com as reviravoltas da história. — Como... Como eles estão
envolvidos na morte de Rosana?
Felipe balançou a cabeça, sua expressão séria.
— Aparentemente, eles estavam planejando me atacar como
retaliação, mas as coisas saíram do controle e eles acabaram envolvidos na
morte de Rosana. — Ele olhou para Mariana, seus olhos cheios de
intensidade. — Precisamos descobrir como eles estão ligados a tudo isso.
— Quem fez a denúncia?
— Foi anônimo.
— Alguém do bar, talvez? Alguém que podia saber das intenções
deles? Esses caras tem contato com muita gente.
— Talvez. — Felipe passou a mão pelo rosto, cansado.
Mariana abriu a boca para fazer mais perguntas, mas então lembrou
dos machucados de Felipe. Com cuidado, tocou o rosto dele.
— Espere, precisamos cuidar desses ferimentos primeiro.
— Tem uma coisa que eu preciso fazer primeiro.
Curiosa, Mariana o seguiu enquanto ele se subia as escadas e se dirigia
ao quarto de Ágata. A menina estava dormindo tranquilamente, seu rosto
angelical iluminado pela luz suave do abajur, a respiração suave, ritmada.
Felipe se aproximou da mesinha de cabeceira e, com cuidado, colocou o
colar de borboleta ali.
Mariana olhou para ele, entreabrindo os lábios.
— O que você está fazendo?
Ele olhou para ela com um sorriso terno.
— Devolvendo o que é dela.
Uma emoção indefinida encheu o peito dela.
Sentia o marejar dos próprios olhos só de imaginar a alegria que Ágata
experimentaria ao acordar e ver o colar de sua mãe ali.
Baixou os olhos, observando o desenho que Ágata deixara na mesa;
uma casa com três pessoas, um jardim colorido e riscos que pareciam gotas
de chuva.
Uma calidez única a abraçou diante daquele desenho inocente.
Ao erguer a cabeça, viu que Felipe a observava fitar o desenho.
Empurrando as lágrimas para longe, Mariana pegou a mão de Felipe e
o levou até o quarto dela.
— Agora vamos cuidar desses ferimentos.
Ele assentiu, sentando-se na beirada da cama dela enquanto Mariana
apanhava a caixa de primeiros socorros.
Sentando-se ao lado dele, Mariana começou a limpar os cortes com
cuidado, fazendo o possível para não causar mais dor a ele. A cada grunhido
de desconforto que ele emitia, ela sentia uma pontada de angústia.
— Por que você se meteu em outra briga com Lobo? — Ela
perguntou, sua voz suave, mas carregada de preocupação genuína.
Os olhos de Felipe se encontraram com os dela; tão profundos, tão
castanhos, que Mariana teve certeza de que poderia mergulhar ali, e ali se
refugir para sempre.
— Pelo mesmo motivo da última vez. Por você.
O coração deu um salto surpreso.
— Eu? — A voz saiu em um sussurro trêmulo, surpreso.
Felipe assentiu, um pequeno sorriso brincando em seus lábios.
— Você viu o desenho que Ágata fez, não viu?
Mariana assentiu.
— Ela desenhou sua casa dos sonhos?
— Sim, ela prestou atenção na conversa na casa do seu pai. E as
pessoas no desenho... Somos nós. Nós três. Ela, você e eu.
Os olhos de Mariana se iluminaram, o coração batendo com força.
— Ágata...
— Quando ela te viu pela primeira vez, depois que você a salvou de
cima da árvore, sabe o que ela me disse? Que você tinha um abraço
quentinho. Foi essa fala de Ágata que me fez correr atrás de você para
refazermos a entrevista.
O ar entrava e saía em um assovio dos pulmões de Mariana.
— Por quê?
— Porque tudo nessa casa é frio e gelado. As paredes, os móveis, a
decoração, minha mãe, meu irmão. Tudo. E acho que eu estava sendo
consumido por isso, e Ágata percebia. Talvez eu estivesse me tornando
gelado também. Mas tudo mudou com você aqui.
— Você não é uma pessoa fria, Felipe.
— Eu poderia ter me tornado. Mas com você aqui, tudo ficou
diferente. E Ágata foi a primeira a notar quando disse para mim que seu
abraço era quente. — Felipe inclinou a cabeça para frente; o calor dele
pairava ao redor dela. — Sua presença ilumina o ambiente, Mariana, torna
tudo mais agradável e acolhedor. Não consigo mais negar o que sinto por
você, nem a vontade de ter ao meu lado sempre.
As palavras dele a envolveram como um abraço, uma confissão
sincera que aqueceu seu coração.
— Felipe...
— No começo, me senti assustado com a intensidade desses
sentimentos. Achei que era apenas atração. A ideia de abrir meu coração
para alguém... — Ele suspirou, deixando que uma vulnerabilidade sincera
enchesse seu rosto. — Por muito tempo, optei por me fechar, me dedicando
apenas aos cuidados com Ágata e as consequências deixadas pelo acidente
sofrido pelo meu irmão e pela minha cunhada. Mas, sem perceber, você
quebrou essas barreiras, me fez querer sonhar novamente, almejar um futuro
cheio de possibilidades. Você trouxe cor para um coração que estava há
muito tempo cinzento. Eu te amo.
As palavras finais de Felipe ecoaram no quarto, preenchendo o espaço
entre eles com uma intensidade ardente, pulsante, mais verdadeira e palpável
do que qualquer outra coisa que ela já havia experimentado em toda a sua
vida.
Uma lágrima solitária escapou do canto de seus olhos, mas antes que
tivesse a chance de deslizar completamente, a mão de Felipe estava lá,
suave, reconfortante, secando-a antes que a gota chegasse aos lábios dela.
Mariana olhou para ele, seus olhos refletindo uma mistura complexa
de emoções. Ela tinha medo de abrir seu coração, de se entregar
completamente a alguém, pois sabia o quanto a vida podia ser incerta e
volátil. Tinha medo de experimentar a perda, a preocupação, a dor que vinha
junto com o amor profundo. Mas, naquele momento, diante de Felipe e do
amor que ele expressava, sentiu uma coragem renovada crescendo dentro
dela.
Porque olhar para Felipe era como olhar para um espelho.
Para seu próprio reflexo.
Para um entendimento além de qualquer palavra ou explicação.
Para uma força maior do que qualquer pulsar.
— Acho que também fui covarde — ela admitiu com sinceridade, sua
voz suave e sincera. — Desde que perdi minha mãe e assumi as
responsabilidades de casa... Criei um muro de receio, desenvolvi o medo de
me entregar, de me permitir sentir algo tão forte. A vida me ensinou que o
amor pode ser frágil, que podemos perder as pessoas que mais amamos em
um piscar de olhos, em uma ligação telefônica. Mas você, Felipe, você
também trouxe uma nova luz para a minha vida. Você me mostrou que vale a
pena lutar, proteger e amar, mesmo quando há incertezas. Você me deu
coragem para enfrentar meus medos, para abraçar o amor com tudo o que ele
implica. — Ela olhou para ele, seus olhos se conectando aos dele. — Eu te
amo, Felipe. Mais do que as palavras podem expressar.
A mão de Felipe se ergueu, os dedos roçando suavemente na nuca dela
antes de se fecharem, puxando-a para perto. Uma corrente elétrica percorreu
a pele dela, um arrepio delicioso que aqueceu seu corpo inteiro.
Movendo-se como se fossem ímãs, seus lábios se encontraram em um
beijo lento, profundo que, a cada toque, a cada deslizar, fazia o mundo
exterior desaparecer, deixando apenas aquele momento, aquela conexão,
aquela certeza de que nada mais importava.
As mãos de Mariana deslizaram pelos ombros largos de Felipe,
segurando-o com uma urgência silenciosa, ajudando-o a se livrar da
camiseta. Ele a puxou para mais perto, seu peito tatuado pressionando o
dela. Mariana afundou os dedos em seus cabelos, perdendo-se na textura
macia enquanto o beijo se aprofundava.
Podia sentir o coração dele, forte e selvagem, trovejando no mesmo
compasso do seu.
Seus lábios se afastaram por um momento, os olhos se encontrando
em uma troca que falava muito mais alto do que qualquer palavra.
As mãos dele deslizaram pelo corpo dela, provocando arrepios ao
longo de sua pele exposta.
— Minha — ele sussurrou. — Só minha.
E, sem hesitação, Felipe a puxou para seu colo, envolvendo-a em um
abraço apertado, onde o calor de sua pele queimava contra a dele.
Mariana inclinou a cabeça para trás, oferecendo-lhe acesso a seu
pescoço, onde seus lábios deixaram um rastro de beijos ardentes enquanto
ele a despia, peça por peça; cada toque, cada carícia, era como uma faísca
que acendia um fogo que não podia ser contido.
Com um gemido abafado, Felipe a deitou com gentileza na cama, seus
lábios explorando cada centímetro da pele dela.
— Sou sua? — ela sussurrou, rouca, o calor crescendo entre suas
coxas conforme a boca dele reivindicava cada pedaço de sua pele.
— Sim... Você é minha luz, Mariana — ele murmurou entre os beijos,
sua voz rouca e carregada de emoção. — Minha razão para sonhar. Minha
para amar. Minha para desejar.
As palavras dele ecoaram em sua mente, em seu coração, em seus
ossos, em sua alma; ela o puxou para um beijo apaixonado, as mãos
explorando o peito de Felipe, sentindo os músculos fortes sob sua palma.
— Te amo — ela sussurrou.
— Diga de novo. — Ele a beijou na curva dos seios, suas mãos
percorrendo cada centímetro de sua pele, deixando um rastro de fogo por
onde passavam. Mariana arqueou os quadris, buscando mais contato, mais
proximidade. — Diga de novo.
— Te amo. Te amo. Te amo.
Um rosnado baixo escapou da garganta de Felipe; os dedos dele se
enterraram nos cabelos dela enquanto a boca capturava seus lábios
novamente, as pernas se entrelaçando, pele contra pele, calor contra calor.
Entre beijos e toques, os gemidos e suspiros se misturaram na
atmosfera quente do quarto.
Mariana envolveu as pernas em torno dos quadris de Felipe, a
respiração ofegante, o anseio ardendo em seus olhos.
Com um movimento, ele foi para dentro dela, se movendo primeiro
sem pressa, depois com força, mais força, mais rápido, as respirações
acelerando, os corpos se chocando, tremendo, mais fundo, mais forte; e
então, com um gemido abafado, um impulso final, o mundo queimou ao
redor deles, deixando apenas um calor ardente que consumiu até as sombras
mais escuras que estremeciam do lado de fora.
37
Quebra-cabeça

Pela janela, o vento fresco do anoitecer soprava. Não havia lua ou estrelas
no céu; apenas a luz bruxuleante do abajur iluminava o quarto.
Deitada sobre o peito de Felipe, Mariana fechou os olhos, imersa em
todas as sensações que vibravam por seu corpo. Os dedos dele deslizavam
por suas costas em círculos; uma carícia que poderia ser infinita.
— E seus machucados? — ela murmurou, abrindo os olhos ao se
erguer sobre o colchão, apenas o suficiente para fitá-lo. Seus cabelos caíam
em torno do rosto e sobre os ombros. — Nem pensei neles...
Felipe soltou um suspiro risonho.
— Nem eu. Você é o melhor remédio que eu posso tomar.
Um leve rubor subiu pelas bochechas de Mariana.
Ela voltou a se aconchegar no peito dele, encarando o teto.
— Você vai acordar sua mãe para contar sobre a prisão dos agiotas e
falar que a polícia suspeita que eles estão por trás da morte de Rosana?
— Falo com ela amanhã.
Mariana pensou em contra-argumentar, mas já havia compreendido
que a dinâmica mãe e filho era complexa entre Solange e Felipe.
Deixou a mente vagar, pensando em tudo o que ele havia lhe contado
sobre a abordagem policial, a ligação anônima e a arma do crime.
— É tão estranho...
— O quê? — Felipe murmurou, brincando com os cabelos dela.
— Os três estarem envolvidos no crime, e nenhuma câmera de
segurança filmar nada. É quase como Isabela falou. Parece que o crime foi
cometido por um fantasma.
— Também achei estranho, mas a arma do crime é uma prova
incontestável. A polícia disse que ainda vai investigar a fundo, mas não
duvido nada que aqueles caras estivessem planejando uma retaliação contra
mim e todos que vivem aqui por causa daquela briga na noite em que te
conheci. E depois que encontrei o colar da minha cunhada com a namorada
do Lobo...
Mariana voltou a se erguer, segurando o lençol sobre o peito.
— Esse ponto é mais estranho ainda. Por que o colar estava com essa
garota? A única coisa que consigo pensar é que Lobo ou um dos caras que
trabalha para ele causou o acidente e, antes de fugir do local, roubou o colar
da sua cunhada. — Ela virou o rosto, fitando um ponto na parede. — É uma
explicação plausível, mas sinto que tá faltando um indício, uma evidência
mais sólida e...
Um riso baixo escapou dos lábios de Felipe.
Ainda segurando o lençol, Mariana voltou a fitá-lo.
— O que foi?
— Você fica muito sexy quando ativa o modo perita criminal. — A
mão dele deslizou por baixo do lençol, apertando a coxa dela. — Acho que
vou gostar ainda mais quando você passar no concurso.
Mariana riu, estapeando de leve a mão dele.
— Não me desconcentre. Estou tentando pensar.
— Não te quero pensando agora.
— Mas eu quero pensar. As coisas não se encaixam.
Virando de lado, Mariana inclinou o corpo e apanhou o celular que
deixara em cima da mesinha de cabeceira. Procurou nos arquivos as
filmagens feitas pelas câmeras de segurança na noite do assassinato de
Rosana. Felipe se recostou na cabeceira, encarando o visor do celular ao lado
dela.
— Olhando para isso de novo? Não tem nada aí, né?
— Aparentemente não, mas... — Mariana mordeu a parte interna da
bochecha, passando filmagem por filmagem, revendo as mesmas cenas
vazias e escuras.
“É estranho as câmeras não terem registrado nada, né? Esses dias,
quando passei lá na mansão para conversar sobre as candidatas com dona
Solange, fiquei olhando para a rua, imaginando para onde a pessoa poderia
ter ido, imaginando como nenhuma câmera pegou nada”, ela se voltou para
as observações de Isabela. “É como se a pessoa tivesse desaparecido feito
um fantasma. Estranho demais, né?”.
Sim, era mesmo muito estranho.
E se Lobo houvesse agido junto com Falcão e Cobra, a equação ficava
mais sem sentindo ainda.
Como as câmeras não teriam pego nenhum dos três homens em
nenhum ângulo?
Tinha quase certeza de que a polícia iria fechar o caso e acusar os três
agiotas — passado criminoso, comportamento violento, assomado à arma do
crime encontrada na casa deles.
Ninguém ia averiguar mais nada.
Era o que bastava para muitos oficiais mal pagos e cansados do
sistema burocrático do país.
E o sistema não se importava com alguém como Rosana.
Era a mesma coisa que havia acontecido com sua mãe.
O caso de Rosana só estava tendo um pouco mais de atenção porque
fora noticiado na mídia e ocorrera em um bairro nobre de Campinas.
E com os três na prisão, a “justiça” seria feita e anunciada.
Mas algo dentro de si não aceitava aquela conclusão.
Não era assim que seus olhos liam a cena do crime.
O que é isso?
Mariana piscou, voltando para uma das filmagens. Deu zoom na
imagem, ao mesmo tempo em que acendia a luz do quarto, fazendo Felipe
pigarrear e cobrir os olhos com o braço.
— Isso aqui... Nesse canto... Parece uma sombra se movendo. Ou o
pedaço de uma sombra se movendo. Não sei. Não tenho certeza.
Com os olhos acostumados com a claridade, Felipe olhou para o ponto
que ela mostrava na gravação.
— Deve ser a sombra de uma árvore se mexendo. Tava ventando
aquela noite, não tava?
Mariana torceu o lábio.
— Pode ser, mas... — Ela fechou os olhos, tentando refazer a imagem
daquele pedaço da rua na sua cabeça. — Tem uma árvore ali?
— Não sei. Não me lembro agora. Deve ter.
— Vou confirmar para ter certeza.
— Você vai o quê...?
Antes que ele pudesse entendê-la, Mariana já tinha se levantado da
cama e apanhado as roupas jogadas pelo chão, vestindo peça por peça, até
estar completamente vestida.
— Vou lá fora ver esse ângulo da filmagem. Quero confirmar se há
uma árvore nesse ponto aqui, e se foi ela que fez essa sombra que vai e vem.
— Agora? — Ele piscou, incrédulo.
— Agora.
— Tá, espera um pouco. Vou com você.
Felipe se apressou para vestir suas roupas, e desceu as escadas atrás de
Mariana. Juntos, eles atravessaram o jardim, passaram pelo portão, até
chegarem na rua. Mariana mantinha os olhos fixos no celular, analisando o
vídeo em busca do ângulo certo. Quando finalmente encontrou, parou e
olhou para o local onde a sombra aparecia.
— É exatamente aqui. — Ela apontou. — E não tem nenhuma árvore
por perto. O que só significa uma coisa: esse movimento rápido que aparece
por segundos na filmagem é a sombra do assassino.
Felipe franziu a testa, olhando ao redor.
— Isso não faz sentido. Se alguém passasse por aqui, as câmeras
teriam registrado. Não importava se a pessoa tivesse dado um passo para a
frente, para trás ou para o lado. — Felipe apontou ao redor. — A pessoa teria
sido gravada.
— Eu sei. — Ela mordeu o lábio, pensativa. — As câmeras pegariam
qualquer movimento em volta dessa área. Mas não faz sentido que a sombra
tenha sido causada por um objeto. É a sombra de uma pessoa.
Os olhos de Mariana se estreitaram enquanto ela continuava a analisar
a rua. Ela estava imersa em seus pensamentos, tentando ligar os pontos, usar
seus conhecimentos de perícia criminal para entender o que estava
acontecendo, como o assassino havia escapado das câmeras.
Daquele jeito, teria que concordar com Isabela e concluir que o
assassinato fora cometido por um fantasma.
De que outra forma alguém desaparecia daquele jeito, sem deixar
nenhum rastro de sua presença?
De que...
E então, um pensamento lhe ocorreu.
Frio e arrepiante.
Ela ergueu o celular, passando a gravação outra vez.
Sentiu a respiração acelerar.
— O que foi? — Felipe perguntou, se colocando ao seu lado.
A sombra não tinha se movido para a frente, para a trás, para a direita
ou para a esquerda.
A sombra vinha de baixo.
E, como a nota final de uma sinfonia obscura, os olhos dela caíram
para o chão, para a rua, exatamente onde havia a tampa da rede de esgoto.
38
Um caminho obscuro

Felipe acompanhou a linha do olhar de Mariana, que terminava em cima da


tampa da rede de esgoto.
— Você não está falando sério, está? — ele murmurou, cruzando os
braços ao sentir um calafrio inóspito escalar sua espinha.
— É o único caminho que o assassino pode ter feito para escapar das
câmeras. Veja. — Mariana abriu todas as gravações. — Nenhuma das
filmagens captura o ângulo da entrada do esgoto.
Os olhos de Felipe percorreram as imagens, enquanto ele pensava no
que ela havia dito.
— Puta merda, isso é insano. Você está sugerindo que o assassino
entrou e saiu do esgoto?
— Parece a única explicação plausível. — Ela olhou para ele com
seriedade. — Se queremos resolver isso, precisamos considerar todas as
possibilidades.
Felipe coçou a nuca, hesitante.
— Eu entendo, mas... isso é perigoso. Se você estiver certa, o
assassino poderia estar bem perto.
Mariana fez uma careta, claramente desconfortável com a ideia.
— Eu sei, mas eu não posso simplesmente ignorar essa pista.
— E o que você pretende fazer? — ele perguntou, preocupado.
Mariana olhou para a tampa do esgoto, mordendo o lábio inferior.
— Vou tentar levantar essa tampa. Se eu conseguir, pelo menos
teremos uma ideia se alguém passou por aqui recentemente.
Felipe a encarou, incredulidade nos olhos.
— Você está ficando maluca? Isso é perigoso demais. Se você acha
que o assassino pode ter usado esse esgoto, então deveríamos chamar a
polícia e deixar que eles lidem com isso.
Mariana suspirou, frustrada.
— E o que você acha que a polícia vai fazer? Dependerá de quem
estiver à frente da investigação. E, honestamente, não tenho muita fé de que
se darão ao trabalho de averiguar essa pista. Eles já têm os agiotas como
culpados, e isso pode ser mais conveniente para todos os envolvidos.
Felipe franziu o cenho, lutando contra a frustração.
— Odeio ter que concordar nesse ponto. A justiça nesse país é falha
demais quando quer.
— Eu sei. Eu vivi isso na pele com o que aconteceu com a minha mãe.
Por isso que quero entrar nessa área. Para obter respostas para as pessoas que
são esquecidas pelo sistema. Às vezes, precisamos fazer o que está ao nosso
alcance. Caso contrário, se a polícia estiver errada, o verdadeiro assassino
ficará impune. — Ela se aproximou da tampa do esgoto, determinada. —
Você vai me ajudar?
Felipe engoliu em seco, lutando contra seus instintos protetores, mas
sabendo que ela tinha razão. Ele se aproximou e a ajudou a remover a tampa.
Um cheiro fétido subiu, embrulhando seu estômago.
— Vamos fazer isso rápido. Se encontrarmos alguma coisa, saímos
daqui imediatamente e chamamos a polícia.
— Certo.
— E quanto à contaminação da cena, que você sempre fala?
Mariana fez uma careta.
— Acho que não existe mais nada tão contaminado quanto um esgoto.
Mas vamos evitar tocar em qualquer coisa.
Com determinação, Mariana desceu pela abertura do esgoto, seguida
de perto por Felipe. A escuridão parecia bufar em sua nuca, e o cheiro fétido
que os atingiu fez com que ambos tampassem seus narizes, tentando
minimizar o desconforto.
Usando as lanternas de seus celulares, eles iluminaram o caminho à
sua frente. A água suja fluía lentamente pelos canos, e as paredes úmidas
pareciam pressionar contra eles. Felipe pensou consigo mesmo que só podia
ter ficado maluco ao seguir Mariana nessa aventura subterrânea.
— Isso é loucura... — ele murmurou, sua voz ecoando pelo túnel.
— Acredite em mim, eu sei — respondeu Mariana, olhando ao redor
com cautela.
Eles seguiram lado a lado, avançando lentamente pelo túnel apertado.
O eco de seus passos era acompanhado pelo gotejar constante da água.
Mariana olhava para cada canto, examinando a estrutura decadente.
De repente, a lanterna dela iluminou uma área que parecia ter uma
estrutura diferente do resto da construção, como se fosse uma passagem mais
recente, uma adição em uma época posterior. Seus olhos se estreitaram ao
observar detalhes intricados nas paredes.
— Olha isso, Felipe — ela disse, apontando com a lanterna. — Essa
parte do túnel é diferente. Parece ter sido construída depois.
Felipe franziu o cenho, olhando para onde ela apontava.
— Pode ser que alguém esteja usando isso como rota de fuga —
Mariana continuou falando, a voz dela diminuindo nos ouvidos dele
conforme Felipe encarava o túnel. — Onde será que isso vai dar?
A cabeça dele girou.
Não... Não é possível.
— Olha ali... — Mariana apontou para o chão, a respiração chiada. —
Parece que tem algo ali.
Ainda atônito, com o coração descompassado, Felipe seguiu seu olhar
e viu uma pilha de roupas sujas e molhadas.
— Alguém esteve aqui. Isso é o suficiente para chamar a polícia,
Felipe — ela decretou. — Precisamos sair daqui agora.
Mas ele mal a ouviu.
Tinha uma boa noção geográfica e espacial.
Aquele caminho...
— Felipe? Felipe? Vamos sair daqui. Felipe?
Todos os sons desapareceram ao redor dele.
E, quando percebeu, foi dominado por algo mais forte que a vontade e
a razão; ele se viu correndo pela passagem recém-descoberta, o coração
batendo tão forte que ele quase podia senti-lo reverberando em sua cabeça.
Mariana o seguiu, chamando por ele, mas sem entender o que estava
acontecendo.
— Felipe, espera! O que você está fazendo?
Os passos de Felipe ressoavam pelo caminho obscuro, ecoando como
os batimentos rápidos de seu coração.
“Não é possível”, murmurava para si mesmo, quase como um mantra.
Ele se recusava a acreditar no que estava acontecendo.
O caminho subterrâneo finalmente chegou ao fim, levando a uma
estreita escada que se elevava para uma passagem acima deles. Sem hesitar,
arfando, ele subiu a escada, impulsionado por um impulso inexplicável,
como se algo o guiasse.
Ao atingir o topo da escada, Felipe encontrou uma porta emperrada.
Ele usou toda a sua força para ceder o material, e a porta se abriu deslizando
para o lado, revelando uma visão surreal. Diante dele estava uma passagem
secreta, um corredor estreito e misterioso.
Seus olhos se estreitaram quando ele tocou algo no chão. Era um
tecido, um tapete. Intrigado, Felipe empurrou o tapete de lado e atravessou a
passagem, com Mariana logo atrás dele.
— Onde nós...
A pergunta dela se esvaneceu quando saíram do outro lado.
Felipe cambaleou para trás.
O ar parecia ter sido sugado de seus pulmões enquanto ele olhava ao
redor, sem palavras, incapaz de compreender o que estava vendo.
Eles estavam dentro de um quarto.
Um quarto que Felipe reconhecia muito bem.
Era o quarto de seu irmão Diogo.
E a cama onde Diogo permanecera naquele último ano em coma se
encontrava completamente vazia.
39
Atmosfera densa

Felipe cambaleou para trás, como se um soco tivesse sido desferido em seu
estômago. O impacto do que estava vendo o deixou tonto, sem palavras, e
uma sensação de terror crescente o envolveu.
Aquele era o quarto de Diogo.
O quarto que seu irmão usara a vida toda; na infância, na adolescência,
na época em que se casara, no último ano onde ele havia permanecido em
coma.
Felipe conhecia muito bem aquele cômodo.
Mas agora...
Agora tudo parecia distorcido, um pesadelo fora de controle.
E a cama vazia, com os lençóis límpidos e impecáveis, parecia ser
apenas o repouso de uma presença fantasmagórica.
As cortinas tremulavam suavemente com o sibilar frio e secreto do
vento que soprava, mas lá fora não havia luar nem estrelas, apenas
escuridão. A atmosfera adensava a cada andar do ponteiro do relógio, das
batidas do coração, como se o próprio ar estivesse carregado uma pulsação
sombria, caótica demais para tomar forma, cor, som ou cheiro.
Não...
Felipe encarou a passagem que os trouxera até ali, sua mente girando
em um turbilhão de confusão, medo e choque.
Não é possível...
Quando havia entrado na rede de esgoto com Mariana, tinha achado
que apenas estariam perdendo tempo. Depois, aquele túnel novo surgira no
meio do caminho, e sua mente analítica calculou na mesma hora que o
caminho seguia na direção da mansão.
A conclusão galopara com tanta força em sua mente, que ele mal se
dera conta dos próprios atos; havia disparado pela passagem sem olhar para
trás, sem pensar, sem analisar.
Tinha sido o medo do assassino estar em sua casa?
Tinha sido o medo pela vida de Ágata, da mãe, do irmão, de Mariana,
dos empregados?
Ou tinha sido algo ainda mais obscuro, uma hipótese sombria que ele
não queria tocar?
Felipe arfou, olhando para a cama vazia do irmão, encarando a
passagem outra vez, a abertura tecida de escuridão e enigmas, que criava um
acesso entre o quarto de Diogo e a rua que passava ao lado da mansão.
O que está acontecendo aqui?!
Perguntas insondáveis corriam por sua cabeça, mas ele estava tão
atordoado que mal conseguia formular um pensamento coerente. Era como
se a realidade estivesse se desfazendo diante de seus olhos.
Ao seu lado, escutou Mariana arquejar baixinho, a mão dela se
segurando com força em seu braço.
— Ágata!
O nome da sobrinha estremeceu até o fundo dos ossos dele.
Os olhares dos dois se cruzaram e, sem hesitação, eles se lançaram em
uma corrida frenética em direção ao quarto de Ágata, cada passo ecoando
como um martelo em agonia sob seus corações acelerados.
Felipe arquejava.
Era impossível pensar, respirar.
A mão firme de Mariana bateu no interruptor, e a luz invadiu o quarto
de Ágata.
Felipe tinha a sensação de que seu coração ia explodir de ansiedade; e
uma sensação de vertigem o envolveu quando seus olhos se acostumaram
com a claridade do quarto.
A cama estava vazia.
O colar de borboleta, que deixara sobre a mesinha de cabeceira,
também tinha desaparecido.
E não havia sinal de Ágata em nenhum lugar.
— Não... Não pode ser... — Mariana sussurrou, dando um passo aflito
para trás, a voz trêmula de choque e desespero.
Os olhos de ambos se encontraram, um misto de incredulidade e
agonia pulsando no silêncio do cômodo. Eles olharam em volta, como se a
simples ação pudesse trazer Ágata de volta, mas a menina havia
desaparecido sem deixar vestígios.
Num acordo silencioso, eles giraram nos calcanhares e correram para
fora do quarto, a urgência palpitando sob a pele.
Felipe atravessou o corredor, verificando cada quarto, gritando pelo
nome da sobrinha, enquanto Mariana corria escada abaixo, chamando por
Ágata sem parar.
— Ágata! — Felipe abria porta por porta, o coração em pânico. —
Ágata, onde você está?! Ágata!
E cada quarto vazio jogava uma pedra em seu estômago.
Quando Felipe chegou ao quarto de sua mãe, um arquejo abafado
escapou de seus lábios.
Solange estava caída no chão, o rosto pálido e olhos sem foco.
— Mãe!
Correndo até ela, ele a segurou em seus braços, o coração martelando
em seu peito. Notou que ela respirava e tinha pulsação. Um ferimento
ensanguentado na cabeça dela fez o corpo dele se arrepiar.
— Mãe! Mãe, o que aconteceu? — a voz de Felipe estava cheia de
urgência, misturada com pânico. Ele não sabia a se ajudava a se erguer ou se
pegava o celular para chamar uma ambulância.
Solange piscou devagar, como se estivesse lutando para focalizar a
visão. Seus olhos encontraram o rosto de Felipe; foi a primeira vez que ele
viu uma expressão tão obscura e tão amedrontada naquelas íris.
— Mãe, fale comigo! O que aconteceu?
Os lábios dela se apartaram lentamente, o sussurro de uma respiração
pesada roçando no rosto dele.
— Diogo... Ele não me obedece mais...
◆◆◆

Em meio à urgência e à corrida insana contra o tempo, Mariana desceu


as escadas pulando os degraus, a agonia enchendo seus passos enquanto
chamava pelo nome de Ágata.
— Ágata! Ágata, meu amor! Ágata, me responda!
Seus olhos vasculharam a casa, da sala à cozinha, do escritório à
pequena biblioteca, mas a menina não estava em lugar algum.
— Ágata!
Nenhuma resposta.
Um tremor gélido percorreu sua espinha.
Ofegando, Mariana apanhou o celular, pronta para ligar para a polícia
e relatar o desaparecimento da menina.
E então, como um eco sinistro, uma risada infantil pareceu flutuar pelo
ar e atingiu seus ouvidos.
Mariana ergueu a cabeça, o celular ainda nas mãos.
Tentou normalizar a respiração, se concentrar, se acalmar.
O risinho ecoou outra vez; um som de criança se divertindo.
Mas, ao invés de alívio, aquilo provocou um arrepio em sua pele,
cutucando o âmago de sua intuição.
Sem hesitar e sem soltar o celular, Mariana usou a porta dos fundos e
correu até o jardim. Uma escuridão opressiva a envolveu, ausente de
qualquer luz natural ou céu estrelado, apenas interrompida por alguns postes
espalhados na rua que cortava a lateral da mansão.
Um pressentimento incômodo pesava em seu peito, mas ela continuou
a avançar.
E então, a risada soou novamente.
Dessa vez, ela reconheceu a voz alegre e inocente de Ágata.
Seu coração acelerou, esperançoso e, ao mesmo tempo, temeroso.
Um cheiro forte e acre enchia o ar.
Que cheiro é esse?!
Mariana se aproximou com cautela, seus olhos se fixando no banco do
jardim onde a pequena figura de Ágata estava sentada no colo de um
homem.
Engoliu em seco.
— Ágata... — Mariana murmurou, sua voz carregada de medo e
incerteza. — Ágata, o que você está fazendo aqui fora?
Os olhos da menina se voltaram para Mariana, cheios de alegria
genuína. O ar falhou nos pulmões de Mariana. Ágata olhou para o homem
com uma expressão de felicidade radiante.
— O papai acordou!
Mariana sentiu como se o chão desaparecesse sob seus pés.
Seus olhos se estreitaram quando ela seguiu o olhar de Ágata e
encontrou os olhos de Diogo, o homem que deveria estar em coma,
segurando a filha nos braços, e a encarando com um olhar fixo e predatório.
40
Um legado crescente
Vinte e três anos atrás

Foi a primeira vez que Solange fez aquilo.


Já havia escutado rumores no hospital; alguns boatos mais implícitos,
latentes entre as paredes brancas e os odores antissépticos. Alguns diziam
que eram enfermeiras, como ela, envolvidas no esquema para aumentar os
ganhos. Outros sussurravam que eram os jovens residentes, esgotados com
os horários insanos de seus turnos. E ainda havia aqueles que sibilavam que
renomados cirurgiões e membros do conselho de medicina se envolviam por
debaixo dos panos no esquema.
A verdade era que não dava para se ter certeza de nada.
Mas Solange tinha recebido uma proposta sigilosa.
E agarrou sem questionar aquela chance de conseguir um lucro que
jamais poderia obter em anos de serviço exaustivo.
O paciente — um homem forte e saudável — tinha dado entrada no
hospital de madrugada, após sofrer um acidente de carro; ele não havia
resistido aos ferimentos, e o óbito fora declarado às três e quarenta e quatro
da manhã.
A viúva e a mãe estavam aos prantos no corredor quando ela recebeu
a proposta.
O falecido era um doador compatível com a mulher de um importante
senador, que precisava urgentemente de um coração. Mesmo com o dinheiro
para passar na frente da lista de espera, não havia aparecido ninguém
compatível.
Até aquele momento.
Contudo, a família não aceitara doar os órgãos do homem.
Era um direito dos familiares.
Mas a proposta veio para Solange.
Um esquema feito de sombras e segredos, regado a dinheiro e favores.
Enquanto lavava as mãos, com o coração disparado, Solange ergueu
a cabeça, fitando as cores escurecidas de seus olhos no espelho do banheiro.
Ora, o homem já estava morto.
Que mal havia ir sem um coração, um fígado e as córneas para o
caixão?
Ninguém ia saber.
Naquele momento, os entregadores estavam levando o coração para a
mulher do senador. Já as córneas e o fígado, ela não fazia ideia do destino.
E nem queria saber. O que lhe bastava era ver os dígitos em sua conta
bancária; um valor que lhe agitou o sangue e acentuou uma sede por mais.
Muito mais.
◆◆◆

Solange voltou para a casa quando o sol já estava alto no céu.


Por conta dos turnos e plantões, seus horários não costumavam ser
regulares.
Mas, depois daquela madrugada, havia um novo sabor em seus
sentidos, uma pulsação conquistada por suas mãos.
Tinha nascido e crescido em uma família pobre, miserável. Fizera um
técnico em enfermagem com muito sacrifício. Casara-se com um
engenheiro, na esperança de mudar de status. Bom, o marido ganhava bem,
mas, desde que adoecera, vinha pegando pouco serviço, diminuindo a renda
da casa, obrigando-a a pegar mais plantões para manter as contas em dia.
Além disso, tinha dois filhos para criar. E ela não queria voltar para uma
vida de poupança e aperto.
Não.
Nunca.
Jamais.
Aquilo era passado.
Sonhava em viver em uma mansão, com empregados, carros e luxo.
E iria alcançar seus sonhos; não importava o preço.
Ao abrir o portão da casa, viu seu marido com o filho mais novo de
sete anos, Felipe, andando pelo jardim, como se estivessem procurando
alguma coisa.
— Será que o cachorro tá aqui, papai?
— Não sei, Fê. Vamos continuar procurando por ele.
— Não tô ouvindo ele latir!
— Às vezes ele escapou. Faremos cartazes para encontrá-lo.
Solange se limitou a um suspiro, torcendo para que os dois não a
vissem.
Sim, ela os amava-o, do jeito que dava para amar um homem doente,
que ficava cada dia mais decadente, e um filho que tinha nascido de seu
ventre, mas que quase não parecia ser seu.
Felipe era uma cópia do pai.
Desde à aparência até a personalidade.
Não havia nada de si no filho mais novo, nem um traço de seu legado.
Já Diogo...
Solange sorriu para si mesma, avançando para dentro da casa.
Era um prazer olhar para o menino mais velho e se ver ali, cada traço
de sua herança que havia gestado por nove meses.
O menino mais velho era uma extensão de si mesma, um reflexo de
sua própria existência. Cada feição de Diogo era um espelho de tudo o que
ela devotava em si mesma; cada gesto era um eco de seus próprios
movimentos.
— Diogo! — ela chamou, colocando a bolsa em cima da mesa. —
Diogo, a mamãe chegou. Cadê você?
Solange estranhou a ausência de respostas.
Tirando os sapatos apertados, Solange andou pela casa, atravessou o
corredor, até chegar ao quarto do filho mais velho. Empurrou a porta com
cuidado. Foi então que sentiu um cheiro familiar. Era um odor ao qual se
acostumara no trabalho.
Sangue.
— Diogo?
Viu o menino sentado na cama, com as mãos vermelhas, o sangue
gotejando das juntas, caindo em um tilintar arrepiante no chão.
Solange arfou e correu até o filho de dez anos, ajoelhando-se à sua
frente.
— Meu bem, você se machucou? O que aconteceu?
E então, viu que não havia nenhum corte na mão de Diogo.
O sangue não era dele.
Arqueando as sobrancelhas, Solange fitou o filho.
Diogo correspondeu ao olhar dela, comprimindo os lábios, um
lampejo ardente crepitando em suas íris.
— Eu queria saber qual era o cheiro do sangue do cachorro, mamãe.
Só que agora ele não está latindo mais. E acho que ele não vai latir de novo.
◆◆◆

Vinte e dois anos atrás

Ela finalmente havia comprado a mansão dos seus sonhos.


Administrava as finanças da casa, dizia ao marido que os
investimentos, a compra de ações e as aplicações que fazia com o dinheiro
que ganhavam juntos estava rendendo absurdamente bem.
Devido à fraqueza da doença, seu marido não a questionava.
Ficava feliz em vê-la feliz.
Era tedioso. Como Felipe.
Bom, o que importava era que o dinheiro continuasse entrando.
Ninguém precisava saber a origem de sua fonte. Desde àquela noite, em que
contrabandeara o coração para a esposa do senador, as coisas tinham
mudado. Descobriu que havia muita demanda para aquele tipo de serviço. E
tudo precisava ser executado com muita cautela. A retirada dos órgãos dos
falecidos tinha que ser feita no tempo exato, com um cuidado absurdo para
não danificar o produto.
O pagamento chegava no mesmo dia.
Era tudo anônimo.
Ninguém sabia a identidade de ninguém.
Era melhor assim.
Dali de onde estava, podia ver Diogo sentado no banco do jardim,
sozinho, quieto e reflexivo.
Talvez fosse a maneira como ele se movia, os traços familiares que ele
herdara dela, que a levavam a fixar seus olhos nele com uma devoção
desmedida. Não podia se conter. Ela o observava quando ele não estava
olhando, estudando cada detalhe de sua postura, cada olhar que ele
direcionava a outras pessoas. Seu filho estava crescendo, ficando mais belo;
uma beleza tão fria quanto os mármores que decoravam a mansão que
devotava. E ele estava começando a chamar a atenção das meninas de sua
classe.
Solange trincou os dentes.
O mero pensamento de que Diogo poderia pertencer a qualquer outra
pessoa além dela provocava uma ânsia que se tornava quase insuportável.
— Mãe, podemos pegar um cachorrinho? — Felipe pediu, puxando a
barra da sua camiseta, fazendo-a desviar o olhar do filho mais velho para o
filho mais novo. — O papai falou que, se você deixar, ele vai buscar um
comigo.
Solange inspirou fundo, tirando a mão de Felipe de sua roupa.
— Já disse que não. Não gosto dos latidos de cachorro.
— Mas mãe!
— Não é não, Felipe!
— E um gato? Podemos pegar um gato?
— Sou alérgica a gatos.
— Mas eu queria tanto um cachorro!
— Chega, Felipe! Seus animais sempre fogem e você fica chorando!
Não vai entrar mais nenhum cachorro ou gato nessa casa, entendeu? — Seu
tom de voz se elevou, fazendo o menino se encolher. — Vá fazer sua lição de
casa, antes que eu perca a paciência com você.
A contragosto, Felipe a obedeceu.
Solange se virou, apoiando as mãos na bancada de mármore,
voltando a olhar o filho mais velho no jardim.
Não podia arriscar trazer mais animais para dentro de casa; porque
sabia que, em algum momento, Diogo iria querer descobrir qual era o
cheiro do sangue deles.
Como havia acontecido nas últimas cinco vezes naquele ano.
◆◆◆

Dezoito anos atrás

Era a primeira vez que Solange recebia aquele tipo de proposta.


Tinha ficado conhecida naquele mercado, naquele ramo obscuro.
Viúva há quatro anos, fazia o que era necessário para se manter.
Todos acreditavam que a pensão de seu falecido marido, assomado aos
investimentos e às ações que a família detinha, mantinham seu estilo de
vida.
Ninguém jamais poderia saber da verdade.
Discreta e perspicaz, ela era sempre a mais procurada pela cartela
seleta de clientes que havia desenvolvido naqueles anos.
Córneas, rins, fígados, corações, pulmões...
Havia perdido a conta do quanto contrabandeara para fora do
hospital.
Os “doadores” eram sempre vítimas de acidentes fatais; nada que
pudesse prejudicar o produto. A família nunca ficava sabendo que seu ente
querido era enterrado com uma parte de si faltando.
E ela tomava cuidado para que as coisas continuassem funcionando
daquela forma perfeita e sistemática.
Contudo...
Os olhos de Solange caíram para a pasta de documento que um dos
representantes do seu cliente lhe entregara.
— O único doador que vocês encontraram ainda está vivo.
— Meu cliente disse que pagará o triplo pelo fígado.
Só de imaginar aquele valor...
Solange umedeceu os lábios, ajeitando-se na cadeira.
— Ainda assim, há um problema. Ele não está morto.
— Então... Ele precisará morrer.
◆◆◆

O coração dela palpitava alto quando entrou na mansão, recebida


pelo luxo frio e imponente de cada peça escolhida para compor a
decoração.
A conversa com o representante ainda martelava na cabeça dela.
Tinham buscado no banco de dados dos pacientes terminais, dos
pacientes internados no hospital; ninguém era compatível com a pessoa que
precisava de um transplante urgente de fígado até o final daquela semana.
Somente o homem encontrado nos registros de uma clínica.
Um homem que estava vivo, saudável, isento de acidentes ou qualquer
outra coisa que pudesse tirar sua vida.
Nunca tinha recebido aquele tipo de serviço.
Como iria extrair o produto com o doador longe das paredes do
hospital?
Enquanto estacionava o carro na garagem da mansão, sentia sua
mente trabalhar a mil por hora.
Se rejeitasse aquele serviço, outra pessoa o pegaria.
Poderia ser o fim do legado que construíra nos últimos anos.
Mas, se aceitasse a proposta, seria o primeiro passo de um caminho
sem volta, escuro e profundo.
Que exigiria muito mais cautela, muito mais cuidado do que tirar os
órgãos de corpos que já estavam no necrotério, esperando apenas a
liberação para serem enviados para a funerária e enterrados.
“Pense. Pense. Pense. Encontre uma solução”.
O futuro doador precisava morrer.
Isso era óbvio.
Mas como fazer aquilo sem sujar as mãos, sem correr o risco de ser
pega?
Precisaria criar um esquema muito maior.
Teria que se livrar do corpo também.
Se a polícia encontrasse um corpo com órgãos roubados, iniciaria
uma investigação, e o cerco ao seu redor poderia se apertar. Aquilo
espantaria os clientes. O lucro acabaria. A miséria voltaria a pulsar em sua
vida.
E não podia permitir aquilo de jeito nenhum.
Solange sacou a chave da bolsa, virando-a na fechadura.
Quando abriu a porta principal da casa, quase gritou com a cena que
seus olhos testemunharam.
Quase.
Talvez, se tivesse chegado um minuto depois, seria tarde demais.
Felipe estava deitado no sofá, com um livro de geografia no colo e a
televisão ligada. Dormia profundamente, um dos braços caído para o lado,
as pontas dos dedos quase tocando o tapete. E, acima dele, atrás do braço
do sofá, estava Diogo, empunhando uma faca de cozinha, calculando e
estudando o irmão, a lâmina pairando perigosamente perto de Felipe.
Contendo um grito para não acordar Felipe, e agradecendo pelos
empregados já estarem ausentes naquele horário, Solange avançou e
arrancou a faca da mão de Diogo.
Arrastou o filho mais velho para o quarto, escada acima.
Em momento algum, Diogo fez questão de falar ou exprimir um som.
Assim que fechou a porta do quarto, ela se virou para o filho.
— O que você estava fazendo?
Diogo deu de ombros, indiferente.
— Queria saber qual era o cheiro do sangue de uma pessoa quando a
faca corta a pele e a carne.
— E os animais?
— Cansei deles.
Solange correu os dedos pelos cabelos; suor molhava sua nuca.
— Não toque no seu irmão, entendeu?
— Pra mim, Felipe não é muito diferente de um animal.
Solange não cedeu e o continuou encarando; sabia que ainda era a
única autoridade que seu filho ouvia e obedecia.
Algo nele gostava daquele jogo, daquele teste de limite, daquele
desafio.
— Vou repetir: não toque no seu irmão, entendeu?
Diogo deu de ombros outra vez.
— Entendeu, Diogo?
— Que seja.
Respirando rápido, Solange o analisou.
Diogo era seu tudo.
Sua vida, sua metade, seu legado.
E não havia traço de remorso em nenhuma linha da expressão do seu
filho.
Apenas aquele mesmo olhar, aquela curiosidade crescente, aquele
anseio que pulsava e que tomava as íris, feito um fogo que poderia inflamar
e se descontrolar a qualquer momento.
Diogo, com quinze anos, já estava apresentando sinais de evolução.
Aquilo era uma angústia silenciosa; a sensação de que Diogo não era
mais seu, de que sua identidade estava se desgarrando, a atormentava nas
noites mais escuras. Cada passo que ele dava para longe dela era sentido
como uma facada em seu peito, uma ameaça àquele laço tão forte que os
unia.
Se seu filho perdesse o controle, ela o perderia.
E não conseguia contemplar um mundo onde Diogo não existisse.
Teria que viver apenas com Felipe.
Seria mais fácil que alguém arrancasse seu coração e o devorasse.
Solange andou de um lado para o outro, os nervos à flor da pele.
Precisava pensar em uma solução. Precisava, com todas as suas
forças, proteger o filho do mundo que jamais o entenderia.
Se conseguisse ajudá-lo a controlar as pulsões, a canalizá-las,
talvez...
Os olhos dela caíram no documento do pedido do cliente.
E então, seus ossos estremeceram.
E uma ideia — genial — sem volta a tomou.
◆◆◆

Usando as sombras como camuflagem, Solange estacionou o carro


com cuidado. Já fazia mais de quinze minutos que estava dirigindo com os
faróis apagados, para não correr o risco de chamar atenção.
— Chegamos — ela sussurrou, fitando Diogo sentado no banco de
passageiro ao seu lado.
Com um olhar apático, Diogo fitou a casa de campo.
— O que estamos fazendo aqui?
— Eu disse que ia cuidar de você, não disse? Mamãe sempre vai
cuidar de você.
— Não entendi.
— Hoje, você vai caçar. Mas tem que seguir minhas regras, tá bom?
A cor e a luz nos olhos dele se transformaram.
— Vai haver sangue?
— Vai sim. Mas lembre-se: siga as regras para não estragar o
produtor. Eu sou a regra e a Autoridade aqui. Se você conseguir, poderá
caçar mais vezes. — Ela inclinou o rosto, os cabelos caindo para frente,
roçando na bochecha do filho. — Será nosso segredo, Diogo. O começo da
construção de um império, da construção de um legado. Nosso legado
obscuro.
41
Por um filho

—O quê... O que você disse, mãe? — a pergunta de Felipe foi um


sussurro falho; a paralisia o prendia no chão, segurando a mãe, buscando por
uma resposta enquanto encarava os olhos dela.
— Diogo... Ele não me obedece mais...
O impacto das palavras dela reverberou através de Felipe, como um
trovão em uma noite escura e tempestuosa. O chão parecia tremer sob seus
pés enquanto ele lutava para compreender as palavras carregadas de uma
revelação aterradora.
O túnel.
O assassinato de Rosana.
A cama vazia de Diogo.
A devoção e obsessão de sua mãe em ser a única a cuidar do filho
acamado e inconsciente.
Enquanto o choque e a confusão se entrelaçavam em sua mente, uma
torrente de pensamentos apreensivos se agitava dentro dele. As peças do
quebra-cabeça pareciam começar a se encaixar, formando uma imagem
sombria e inquietante.
— O dinheiro, tudo o que construímos... — Solange murmurou, suas
palavras ecoando como uma confissão macabra. — Fiz o que fiz por nós. E
para manter seu irmão com a gente. Perder Diogo era inaceitável. Você não
tem filhos. Você não entende. Mas Diogo... Eu fiz tudo para ele. Para
protegê-lo do mundo. O mundo não está pronto para entender alguém tão
diferente e especial como seu irmão.
O queixo de Felipe tremia levemente enquanto ele encarava sua mãe,
uma mistura de incredulidade e horror desenhada em seu rosto.
Podia sentir a fria correnteza da verdade começando a envolvê-lo,
arrastando-o para um abismo de segredos inimagináveis, feito uma escuridão
que sempre estivera ali, a um toque de distância, mas que jamais fora
enfrentada de frente; e que agora ameaçava engolfá-lo por completo.
Felipe entreabriu os lábios; a voz deslizou para fora, estremecendo as
paredes do quarto, ecoando a profunda turbulência que tomava conta de cada
pedaço do seu ser.
— Mãe... O que você fez?
42
Devoção completa
Seis anos atrás

Obstinada, atravessando a impiedade dos anos que se seguiram, Solange se


viu moldando sua arquitetura para erguer e devotar as coisas que mais
amava: uma vida longe da miséria e um refúgio único que protegeria Diogo
de um mundo impiedoso.
Sob a capa da escuridão, tornou-se a melhor no ramo ao criar uma
rede de tráfico de órgãos que era tanto seu escudo quanto sua espada
afiada.
Cada passo calculado, cada movimento medido, ela conduzia sua
operação clandestina como uma maestrina em uma orquestra sinistra.
Tudo acontecia de forma anônima, sem rastros, sem pontas soltas.
Era boa no que fazia.
E tinha fama.
Conheciam-na como a “Autoridade”.
Ninguém sabia sua verdadeira identidade. E nem precisavam saber.
Os clientes ricos e desesperados buscavam seus serviços, sussurrando
seus desejos sombrios em ouvidos ávidos por dinheiro e poder. E ela, a
regente oculta dessa macabra sinfonia, os atendia com uma determinação
feroz.
A busca por doadores compatíveis se tornou sua tarefa, uma tarefa
que ela executava com precisão cirúrgica. Ela encontrava os indivíduos que
se encaixavam nos parâmetros exigidos, eliminando quaisquer obstáculos
que surgissem em seu caminho. Seus contatos escusos, seus recursos
ocultos, tudo estava à disposição para garantir que sua operação
funcionasse sem falhas.
Tinha se especializado naquilo.
Tinha se tornado a melhor.
E então, havia Diogo.
Seu filho, sua criação, sua arma secreta, seu protetor e protegido.
Aqueles olhos ocos e aquela expressão apática escondiam um
predador, um caçador habilidoso e sádico que mergulhava nas profundezas
de um abismo sem volta. Ele seguia suas ordens como um cão obediente, um
instrumento de destruição que ela mantinha por perto para protegê-lo do
mundo que ameaçava consumi-lo.
Ele caçava os alvos, satisfazia sua necessidade pelo cheiro do sangue;
e então, ela retirava os órgãos para entregá-los aos clientes.
Nunca tinha sido sua intenção envolver Diogo em sua rede.
Contudo, aquilo fora um sacrifício necessário para manter seu filho a
salvo, para mantê-lo junto a si, para garantir que ele nunca fosse arrancado
de seus braços.
Quando caçava, Diogo ficava saciado e sob controle.
Voltava a ser um homem como qualquer outro. Até mais brilhante,
eloquente e inteligente do que Felipe. Ninguém jamais suspeitava de seu
belo filho.
E ela garantia para que tudo permanecesse daquele jeito.
Após a execução da caçada e a retirada dos produtos, cuidava com
esmero da limpeza da cena. Tinha gente contratada para isso. Algumas
equipes aleatórias; gangues e criminosos que queriam dinheiro fácil, sem
saber a origem da fonte. Eles se livravam do corpo, garantindo que não
sobrasse nem mesmo as cinzas, e limpavam até a última gota de sangue. O
pagamento era feito de forma anônima e irrastreável. E tudo funcionava da
forma correta, como ela esperava que acontecesse até o último dia de suas
vidas.
Até Verônica aparecer.
◆◆◆

Solange observava atentamente enquanto a jovem Verônica cruzava o


caminho de Diogo, seus olhos afiados detectando qualquer sinal de afeição
ou interesse. Um turbilhão de emoções fervia dentro dela, uma mistura
ardente, fervorosa, que a fazia contrair os punhos e querer arrancar sangue
e pele.
Como essa moça ousava atrair a atenção de seu filho?
Como ousava ameaçar o vínculo que Solange acreditava ser
inquebrável?
Mas a realidade fria e cruel era que Diogo não podia amar outra
pessoa, não da maneira que Solange o exigia.
A situação ficou ainda mais complicada quando Verônica demonstrou
interesse mútuo por Diogo. Cada olhar trocado, cada toque casual, eram
facas afiadas cravando no coração de Solange. No entanto, ela percebeu
que lutar contra os sentimentos de seu filho seria uma batalha perdida. Ela
tinha que encontrar uma maneira de manter Diogo sob seu controle, sem
afugentá-lo e sem fazê-lo perder o controle para seu lado mais obscuro.
Foi então que Solange traçou seu plano, uma solução sombria que
satisfaria suas necessidades retorcidas e permitiria que Diogo permanecesse
em sua esfera de influência. Ela aconselhou Diogo a se casar com Verônica,
uma ideia que aparentemente seria uma concessão de normalidade. O
casamento serviria como uma fachada, uma capa de normalidade por trás
da qual as atividades sombrias poderiam continuar.
E assim, o casamento ocorreu. Diogo e Verônica se tornaram marido
e mulher, um arranjo que Solange havia cuidadosamente projetado para
manter Diogo em seu controle. A mansão, agora preenchida com a presença
constante de Verônica, continuava a ser um caldeirão de segredos e
escuridão.
Para os de fora, era um casamento perfeito.
Diogo jogava e atuava com perfeição.
Solange sabia que tinha o filho sob controle, dançando conforme os
passos ditados, sem jamais quebrar as regras do jogo.
Com o tempo, Verônica engravidou e Ágata nasceu. Solange tentou,
com esforço sincero, desenvolver algum tipo de afeição por sua neta. Mas a
semelhança da criança com seu falecido marido e com Felipe tornou essa
tarefa quase impossível. Cada vez que olhava para Ágata, via neles traços
que a faziam revirar os olhos e suspirar com frustração.
Ninguém nunca seria como Diogo.
Tudo bem, podia tolerar a menina, assim como tolerava a presença da
nora.
Se fizesse sua parte, nada mudaria. Ainda teria Diogo, sua rede de
tráfico, seu luxo, seu controle.
Sim, era nisso que acreditava.
E as coisas continuaram andando daquela forma.
Até a fatídica noite em que, sem sua permissão, Diogo caçou
Verônica.
◆◆◆

Um ano atrás

A noite fatídica que deveria ter sido como tantas outras, com suas
atividades cuidadosamente orquestradas, tomou um rumo que ela não
poderia prever, e isso a irritou e a desesperou de uma maneira que Solange
não estava acostumada.
Seu filho, Diogo, havia caçado Verônica sem a sua permissão.
A ousadia dele a deixou furiosa, pois o esquema que ela havia
elaborado estava meticulosamente planejado para manter o controle. E
agora, a presença indesejada de Verônica havia sido eliminada de uma
maneira que ameaçava expor os segredos obscuros que ela se esforçava
tanto para esconder.
— Por que você fez isso?! — ela vociferou para o filho, os nervos
pulsando, enquanto encarava o corpo sem vida e ensanguentado da nora.
Com um olhar apático, pontilhado de lampejos satisfeitos, Diogo deu
de ombros.
— O cheiro de Verônica estava se tornando muito forte para mim, e eu
quis sentir mais do que eu já tinha sentido. Faz tempo que entrar dentro dela
não me satisfazia mais. Eu queria mais dela. Todo o cheiro.
Solange contraiu os lábios.
A explicação, mórbida e perturbadora, só aumentou sua raiva e seu
medo.
— E sua filha?
— Ela não tem nenhum cheiro.
“Menos mal, menos mal”.
Ela sabia que precisava agir rapidamente para preservar o que havia
construído.
Teve que pensar rápido.
Precisava manter Diogo ainda mais sob seu controle, eliminando a
possibilidade de futuras caçadas não autorizadas.
E assim, um plano começou a se formar em sua mente prática.
Na mesma noite, conseguiu arquitetar o cenário que manteria seu
filho a salvo e protegido, e que criaria um pretexto justificável para a morte
de Verônica.
— Um acidente, mãe?
— Sim. Um acidente de carro que te deixará em coma.
Diogo franziu o cenho, pensativo.
— Olhe para mim, Diogo. Quem eu sou?
— A Autoridade.
— E o que você mais teme, Diogo?
— Ficar longe de você e não poder mais caçar.
A resposta encheu Solange de satisfação.
— Então, se você quiser continuar comigo e continuar caçando, terá
que me obedecer. E nunca mais poderá caçar sem permissão, me entendeu?
Ou seremos colocados longe um do outro.
Diogo, em seus modos e submissão à autoridade dela, concordou com
o plano.
Assim, Solange simulou um acidente de carro, onde Verônica morreu e
Diogo ficaria em coma. Não contou toda a verdade para o filho. Não contou
que esse estado de “coma” seria a desculpa perfeita para deixá-lo sob
vigilância constante, mantendo-o em seu alcance.
Contratou, de forma anônima e irrastreável — sempre irrastreável —,
uma das equipes que sempre lhe fazia serviços no submundo do crime —
uma gangue liderada por homens que usavam codinomes como Lobo,
Falcão e Cobra.
O acidente foi simulado.
O corpo da sua nora foi deixado dentro do carro.
Teve que escolher a dedo o socorrista que atestou o coma de Diogo —
um homem que, noites depois, foi caçado por Diogo.
Deixar pontas soltas era algo perigoso.
E Solange só tinha sobrevivido do ramo porque era cuidadosa ao
extremo.
Quando foi ao necrotério, aos “prantos”, fazer o reconhecimento do
corpo da nora, teve impressão de que uma das joias dela havia sido roubada
— um colar de borboleta — mas aquilo pouco lhe importava.
Agora nada mais fugiria do seu controle.
A partir daquela noite, Diogo passou a viver em um estado de coma
simulado, onde a linha entre a realidade e a ilusão estava borrada.
Não permitia que nenhum empregado entrasse no quarto do filho;
nem mesmo Felipe ou Ágata. Era arriscado demais.
Com os contatos certos, construiu silenciosamente um túnel que
ligava o quarto de Diogo ao lado externo da rua, passando por uma das
redes de esgoto, para garantir que seu filho tivesse um caminho livre e
seguro para as noites da caçada.
É claro que os construtores foram caçados posteriormente.
Por segurança, Solange o drogava para fazê-lo dormir por longas
horas, e só o acordava quando era hora de caçar. Às vezes, a droga perdia o
efeito, e uma dose maior precisava ser administrada, mas sempre com muito
cuidado, para não causar nenhum dano à perfeição que era seu menino.
Porque agora e para sempre ele seria seu.
Apenas seu.
43
Contagem

A respiração de Mariana estava suspensa diante do próprio rosto,


magnetizada junto às sombras do jardim que eclipsavam seu coração.
Ela não sabia se dava um passo para frente ou para trás, se olhava para
Ágata ou para o homem de beleza fria e sinistra que carregava a menina no
colo.
— É o meu papai! — Ágata falou de novo, animada. O colar de
borboleta pendia no pescoço dela. Em que momento Ágata o colocara? Ou
fora o homem que pendurara o colar nela?
Mariana engoliu em seco.
O cheiro forte continuava pairando ao seu redor, e ela não conseguia
identificar o que era aquele odor.
— Que tal me entregar o seu celular? — Diogo pediu, fitando-a com
um sorriso que regelou até o fundo dos ossos dela.
Os olhos de Mariana caíram para o aparelho que segurava em mãos,
pronta para ligar para o número de emergência.
Diogo expeliu um risinho atípico pelo nariz.
— Não é uma boa ideia fazer isso.
Ela hesitou, e então viu a faca que repousava no banco ao lado de
Diogo. A lâmina era grande, afiada; um sussurro prateado na escuridão.
O canto da boca de Diogo subiu em um sorriso arrepiante; sem mover
um músculo sequer da face, ele traçou uma linha com os olhos que ia da faca
para Ágata, de Ágata para a faca.
— Então, o que acha de me entregar seu celular agora?
Temendo pela segurança da menina, Mariana se viu forçada a
obedecê-lo. Estendeu o celular para Diogo, que o apanhou e o guardou em
um dos bolsos da calça.
— Boa menina. — Em nenhum momento, os olhos dele se desviavam
dela. — Então essa é a sua babá, filha?
— Sim! É a tia Mari!
Outro sorriso.
Outro arrepio.
O coração de Mariana batia descompassado.
Onde Felipe estava? Quanto tempo levaria para ele vasculhar o
segundo andar e descer até o jardim?
Ela queria gritar, fazer alguma coisa; mas a mera ideia daquele homem
machucando Ágata...
— Vamos jogar? — Diogo indagou, umedecendo os lábios.
— Jogar o quê, papai?
Os tendões de Mariana vibravam.
Ela observou Diogo tirar Ágata de seu colo, colocando a menina em
pé à sua frente, sem romper o silencioso contato visual; um aviso velado de
que poderia machucar a própria filha a qualquer instante, caso Mariana
tentasse alguma gracinha.
— Você vai correr até a sua babá e pegar na mão dela quando eu
mandar, tá bom?
Ágata assentiu, animada.
Mariana tinha a sensação de que o coração ia saltar para fora do peito
a qualquer momento.
— Agora, papai?
— Não. Só quando eu mandar.
O vento soprava, agitando a copa das árvores.
Aquele cheiro continuava ondulando pelo jardim; um cheiro agudo,
penetrante, distintivo.
Ela conhecia aquele odor.
Era...
Era...
Diogo moveu um dos braços lentamente, capturando a atenção total de
Mariana, que temia pela segurança de Ágata.
Viu o que parecia ser um isqueiro nos dedos dele.
Mariana arfou.
O cheiro...!
Com os dedos envolvendo o pequeno objeto de metal e plástico,
Diogo pressionou o polegar contra a parte superior do isqueiro, fazendo com
que a tampa metálica se erguesse com um leve clique. Uma centelha
brilhante e faiscante surgiu da roda de ignição, dançando no ar antes de se
dissipar. O som metálico do atrito ecoou em um sibilo enquanto Diogo
movia o polegar para trás de novo, fazendo a roda girar contra a pedra
áspera, repetindo o movimento uma, duas, três vezes.
Este cheiro é cheiro de gasolina!
E então, uma pequena chama emergiu do topo do isqueiro.
No chão... Tem uma trilha formada por gasolina no chão!
Diogo lançou-o para o lado; em câmera lenta aos olhos de Mariana, o
isqueiro voou pelo ar, caindo sobre a trilha de gasolina.
Ela observou, paralisada, enquanto a faísca encontrava o líquido
inflamável e uma linha de chamas ardentes começava a se formar,
crepitando com uma intensidade assustadora.
Um grito sufocado escapou de seus lábios.
O fogo, agora alimentado pela trilha de combustível, começou a se
espalhar rapidamente, sua voracidade crescente se manifestando em um
rugido ensurdecedor.
O jardim iluminou-se com a incandescência das chamas, pintando as
árvores e o terreno com tons vibrantes de laranja e vermelho. As sombras
dançantes ganhavam vida, lançando uma luz sinistra sobre o cenário,
enquanto o fogo avançava implacavelmente em direção à mansão, onde a
maior parte do combustível parecia estar concentrada.
A mansão! Felipe!
— Diogo! — Mariana gritou, desesperada. — Pare! Por favor!
Outro sorriso se abriu na boca dele.
— Corra até sua babá, Ágata. E eu vou contar até dez. Vocês vão
correr. E quando eu chegar no dez... — Os olhos dele se cravaram com um
apetite voraz nos olhos dela. — Eu vou caçar você.
44
Presa perfeita
Dois meses atrás

Ele tinha sentido o cheiro dela na primeira vez em que ela pisara na
mansão.
E aquele perfume...
Ah, aquele perfume...
Era absolutamente perfeito.
Tão perfeito quando o cheiro irresistível que Verônica um dia havia
tido.
Fazia tempo que não se sentia tão excitado e instigado com um
aroma; nem mesmo as caçadas que sua mãe lhe arranjavam tinham lhe
proporcionado tal sensação.
Precisava caçá-la.
Precisava sorver até a última centelha da fragrância daquela presa.
Pediu permissão para a Autoridade. E seu anseio foi fortemente
negado.
— Você está proibido de tocar na babá que Felipe arranjou para
Ágata. Isso pode nos trazer problemas, entendeu? Ela é proibida. Foque nas
presas que eu escolher. Você entendeu o que eu disse? Não posso mandá-la
embora sem justificativa. Seu irmão já enfiou na cabeça que ela vai ficar.
Ágata a quer. Estamos entendidos?
Ele se limitou a um dar de ombros.
Não podia desobedecer a Autoridade, ou seriam separados.
Mas o cheiro...
Ah, que cheiro.
◆◆◆

Naquela mesma noite, ele usou o túnel e foi até a casa dela. Não iria
desobedecer a Autoridade. Queria apenas sentir um pouco mais do cheiro.
Apenas para aplacar a pulsação selvagem das veias.
Ela estava na janela.
Ah, se abrisse o vidro, se libertasse seu perfume...
Deu um passo, só para chegar um pouco mais perto, só mais um
pouco...
— Ei, Lívia!
— O que foi?
— Acho que tem alguém lá fora...
A voz o pegou de sobressalto; ágil, Diogo se recolheu na escuridão.
— Não tô vendo ninguém.
Viu-a inclinar o corpo para frente, fitando a escuridão.
— Que estranho...
Se ela pelo menos abrisse a janela e libertasse um pouco do perfume
para ele...
◆◆◆

Ela tinha entrado no seu quarto.


Ele estava inconsciente, mas sabia que ela estivera ali.
Curiosidade? Coincidência? Desconhecia o motivo.
Mas reconhecia o cheiro de seu perfume.
A presa perfeita havia entrado em sua toca. Pena que não
permanecera tempo o bastante para que ele acordasse do efeito do sedativo.
◆◆◆

Após vários dias sedado com aquela maldita droga que a Autoridade
lhe ministrava, ele finalmente pudera caçar naquela noite tempestuosa.
Havia um cliente precisando de um produto.
E ele precisava caçar a presa para a Autoridade pegar o produto.
Uma caçada sempre era emocionante.
Derrubara o sangue, inalara o medo da presa, regozijara-se em suas
súplicas.
Diogo adorava quando eles suplicavam.
Tornava tudo mais emocionante, deixava-o ainda mais imponente.
Voltara apenas na madrugada; a retirada do produto e a limpeza da
caçada não eram problemas seus.
A Autoridade colocou-o para dormir.
Estava fazendo-o dormir com muito mais frequência, desde que ELA
se mudara para a mansão com seu cheiro de presa perfeita.
Mas ele tinha prometido que ia se manter sob controle.
Só podia ser livre e caçar se obedecesse à Autoridade.
Mas o cheiro estava ficando cada vez mais tentador.
E a droga, cada vez mais fraca.
◆◆◆

A tal empregada Rosana tinha sido demitida por sua causa.


Ele se esgueirara para fora do “leito do coma” durante a madrugada,
após a caçada, quando o efeito do sedativo passou, e serpenteou pela casa e
pelos corredores, inalando a fragrância dela.
Sob a luz dos relâmpagos, parou na frente da porta do quarto dela.
E então descobriu que ela não estava lá.
Nem ela, nem Felipe, nem Ágata.
Ouviu o barulho da Autoridade regressando, e retornou para o
quarto, sujando o lençol — uma mancha que ocasionou o surto de sua mãe
no dia seguinte e a demissão de Rosana.
◆◆◆

A boca do seu irmão estava sob a boca dela.


Sob a proteção das sombras densas da noite, entre as árvores e os
arbustos, com os pés afundando no jardim, tinha uma visão privilegiada da
grande e elegante cozinha.
Dela.
Era jovem, não uma jovem qualquer, e sim aquela juventude que
molhava os lábios e formigava as mãos esfomeadas, espalhando um ímpeto
incontrolável, um anseio em agarrar as mechas castanhas do cabelo até as
pontas de seus dedos se avermelharem e os olhos dela explodirem em um
misto de aflição e deleite.
Uma presa perfeita.
Seus olhos reviraram, consumidos com a sensação palpável.
Cheiro, gosto, som.
Umedeceu os lábios com a ponta da língua.
Seu corpo se encheu de arrepios. Os dedos ansiosos correram por seu
próprio cabelo, delirando em puxar aquele cabelo.
Diogo mordeu o lábio inferior, um filete de sangue escorreu do canto
esquerdo, enchendo seu paladar com um gosto metálico.
Qual seria o cheiro do sangue dela?
As veias queimavam, pulsavam, dominavam.
Queria.
Mas haviam lhe dito que não podia.
Não era assim que as coisas funcionavam.
Precisava de permissão para caçar e mergulhar nos cheiros de morte
que lhe enchiam de vida.
Abraçou-se por debaixo do moletom, arranhando as próprias costas
até a pele rasgar, contendo um grunhido de insatisfação.
Não podia tê-la sem permissão.
Mas daria um jeito de encontrar um cheiro que aplacasse seu desejo.
O pé de Diogo afundou na terra do jardim.
Tinha que dar um jeito de controlar o desejo.
Não podia desapontar a Autoridade outra vez.
◆◆◆

Não havia nenhuma caçada programada, e ele estava enlouquecendo.


Os sedativos quase não faziam mais efeito.
Fingia para a Autoridade que dormia na maior parte do tempo.
Não queria ficar fraco e enjoado.
Queria caçar.
Precisava caçar.
Tinha sido proibido de tocar na babá. A babá era o problema. Mas ele
precisava se aliviar de alguma forma.
Então, naquela noite, ele se esgueirou pelo túnel, avançou para fora
da mansão e... E viu a empregada Rosana dentro do carro.
Um sorriso manchou seus lábios.
Não era a babá.
Mas Rosana convivia com a babá.
Teria um pouco do cheiro dela em si.
E ele avançou, incapaz de conseguir resistir à ideia do cheiro.
◆◆◆

O cheiro do sangue de Rosana ainda impregnava suas narinas,


satisfazendo uma sede primitiva que crescia em seu âmago.
Dali, enxergava as luzes das sirenes policias.
E aquilo amplificava o sabor da caçada finalizada.
Cada batida acelerada do coração era como uma sinfonia para seus
anseios, uma melodia que o incitava a continuar seu jogo mortal.
Era bom.
Mas não era suficiente.
Havia algo mais, algo que exercia uma atração irresistível sobre seus
sentidos; um aroma inebriante que se sobrepunha ao cheiro do sangue
derramado. O vento trazia consigo aquele o perfume, mais doce e delicioso
do que o anterior.
Como resistir?
Seus olhos brilharam, os lábios se curvando num sorriso malicioso.
Deveria resistir.
Sua última caçada, fora do planejamento, sem permissão, causaria
uma irritação. Mas fora necessária.
Para aplacar, para acalmar.
Mas agora...
O vento soprou novamente; e, com uma longa inspirada, permitiu que
seus pulmões se enchessem com aquele cheiro delicioso que lhe instigava a
caçar mais uma vez.
◆◆◆

— Você sabe o que vai acontecer se fizer algo assim de novo, certo?
— Sim.
— Que tenha sido a última vez. E não a promessa de uma última vez,
como nós sabemos que já aconteceu.
“Verônica”.
Quando a Autoridade finalmente se afastou, seu corpo permaneceu
ali, imerso em suas próprias sombras. Sabia que errara ao não seguir os
passos de sempre. Precisava de cautela, precisava manter suas ações dentro
das sombras e fora dos olhos do mundo.
Mas a caçada era irresistível, o cheiro era inebriante, o desejo de
controlar a vida e a morte era avassalador.
Com o coração pulsando em um ritmo frenético, permitiu que seus
olhos se fechassem, saboreando-se apenas com os cenários que existiam nas
sombras de sua imaginação; o gosto do medo, o aroma da morte, a
contemplação da fuga, o toque do suor frio, o som final.
Tão...
Bom.
O cheiro da presa ficava mais forte do que nunca.
A caçada lhe chamava.
E não sabia como faria para resistir na próxima vez.
◆◆◆

Na companhia das sombras daquela noite, ele deslizou como se fosse


parte da escuridão até o quarto dela.
Era simplesmente irresistível.
O coração de Diogo batia com força.
Inspirando o cheiro que dançava por todo o quarto, ele esticou a mão,
quase tocando os cabelos dela, o rosto dela...
“Perto...”.
“Tão perto...”.
E então ela se moveu, ameaçando acordar.
Rápido e ágil, ele deixou o quarto dela e retornou para o seu, onde
encontrou a Autoridade, furiosa, implacável.
Deitou na cama, sabendo que tinha que voltar para o coma simulado,
para o maldito sedativo que já não fazia quase nenhum efeito sobre seus
sentidos.
A Autoridade saiu e voltou.
Mas quando voltou...
Ainda havia consciência nele.
Ele conseguia sentir a presença dela, o cheiro dela.
Por que a autoridade deixara a presa perfeita entrar em seu quarto?
— Você tem filhos, garota?
— Não. Mas cuidei da minha irmã mais nova desde que ela tinha dois
anos e eu, doze. Lívia é minha irmã, mas é quase como uma filha para mim
também. E tenho um carinho muito especial por Ágata.
Sentia o lenço úmido ser deslizado por seu braço.
— Uma mãe é capaz de abdicar de tudo para cuidar de um filho.
A pressão daquele toque era um aviso, um alerta.
“Eu sou a Autoridade. Você obedece a mim e pertence a mim. Somos
inseparáveis. Ela entra e sai daqui se eu permitir. Está vendo? Estou te
dando uma lição. Você não pode escolher. Eu mando e você obedece”.
— Sei o que está pensando. Mas você só vai entender se um dia tiver
seus próprios filhos. Pegue mais lenços para mim.
Mesmo com os olhos fechados, com a consciência quase partindo,
Diogo sentiu-a se afastar. Não queria perdê-la. Não agora. Não quando ela
estava tão perto.
Seu coração acelerou, causando um apito na máquina que o
monitorava.
Ouviu um barulho, um som estridente.
A Autoridade havia derrubado o aparelho no chão para que a presa
perfeita não percebesse a verdade sobre a condição dele.
— Dona Solange...
— Saia daqui! Saia logo! Eu cuido disso!
◆◆◆

Após a confusão no quarto com o aparelho de monitoramento, a


Autoridade teve uma conversa séria com ele.
Diogo a ouviu atentamente.
Ela queria desviar a atenção da polícia, que continuava investigando
o assassinato de Rosana. Queria proteger seu império. Queria protegê-lo.
— Tenho um serviço para você.
— O que quer que faça?
— Vamos sacrificar algumas peças do nosso tabuleiro.
Seus dentes se abriram com a euforia da ideia de uma caçada.
— Um cavalo? Um bispo? Uma torre?
— Apenas peões insignificantes. E faremos as coisas do meu jeito.
◆◆◆

A arma do crime — a faca que usara para cortar a garganta de


Rosana — fora plantada em uma das bases operantes de Lobo, Falcão e
Cobra. Diogo sabia que eles eram apenas alguns dos peões que
trabalhavam para a Autoridade, sem conhecer sua verdadeira identidade,
sem saber a natureza das cenas criminosas que limpavam e dos corpos que
davam fim.
Segundo a Autoridade, aqueles homens tinham rixas com seu irmão.
“Tudo vai se encaixar perfeitamente”.
Ele plantou a arma, na mesma noite em que a Autoridade fez uma
denúncia anônima para a polícia.
◆◆◆

Diogo não conseguia mais aguentar.


Não queria mais aguentar.
Sua língua passou pelos lábios, a mão se fechando no ar, como se
tentasse agarrar uma razão para continuar seguindo as regras.
Mas era impossível se esquecer daquele cheiro.
Era o aroma de uma presa perfeita para caçar.
Uma presa que provavelmente lutaria com todas as suas forças; e
então sucumbiria, deslizando até o chão, espalhando-se em uma poça
escarlate que acentuaria seu cheiro.
E a pele?
Havia ainda a pele.
A pele parecia tão...
Perfeita.
Talvez devesse usar suas mãos.
Sim, as mãos.
Talvez desse colocar os dedos ao redor do pescoço, apenas para sentir
a pulsação acelerada, o calor que deixaria a presa enquanto seus olhares se
sustentavam nos momentos finais da caçada.
A Autoridade não ia gostar nada daquilo.
A Autoridade havia dito que estava cuidando de tudo para limpar os
rastros do último serviço descuidado.
Deveria obedecer.
Deveria esperar pelas ordens.
Mas o destino tinha lhe trazido a presa perfeita.
Como alguém poderia recusar o chamado da caçada perfeita?
◆◆◆

A urgência corria pelas veias de Diogo como uma correnteza


implacável. Seus olhos fixaram-se na figura de sua presa saindo da mansão
com Felipe, dirigindo-se para a lateral da casa, onde o túnel secreto estava
oculto.
Ela era obstinada.
Ela ia encontrar a passagem.
Ele não queria perdê-la.
Ele não podia perdê-la.
E se seu irmão a levasse para longe? E se ela descobrisse a verdade?
E se ela desaparecesse antes que ele pudesse desfrutar da caçada.
Cada passo que ela dava parecia ressoar em sua mente, acendendo o
desejo frenético de segui-la, de garantir que ela não encontrasse a
passagem e de manter sua obscura diversão intocada.
Uma tensão frenética pulsava em suas veias.
Ele não podia permitir que ela descobrisse o segredo, não podia
permitir que ela se afastasse. A ideia de perdê-la para sempre o consumia,
alimentando uma urgência mais forte do que qualquer plano ou autoridade
poderia conter.
— Pare! Pare! Volte para o quarto!
A voz da Autoridade ecoava em seus ouvidos, gritando sobre o plano,
sobre o império, sobre o legado que haviam construído juntos.
Ela tentava impedi-lo, mas a fome de caçar queimava dentro dele,
mais intensa do que qualquer outro desejo. As palavras dela se
desvaneceram em um borrão indistinto enquanto ele avançava, seus olhos
fixos na presa que escapava.
A autoridade dela não importava mais.
Nada importava além da caçada, da necessidade de mantê-la para si,
de capturá-la antes que fosse tarde demais.
Um rugido de frustração e anseio escapou de seus lábios, e ele não
hesitou.
Num movimento rápido e impiedoso, ele a golpeou, derrubando-a no
chão.
Solange caiu com um grito abafado, e Diogo não olhou para trás
enquanto se afastava, indo em direção à garagem.
Sorriu ao ver os galões de gasolina.
Felipe os mantinha ali; uma reserva de segurança para sempre
garantir que sua moto estaria rodando.
Ele agarrou um galão e começou a derramar o líquido inflamável,
criando uma trilha que se estendia da sala da mansão até o banco no
jardim. O cheiro acre da gasolina invadiu o ar, preparando o cenário da
formidável caçada que ocorreria ali.
Nada poderia impedi-lo.
E ele iria garantir aquilo.
Seus passos o levaram ao quarto de Ágata. Viu o colar de borboleta
que pertencera à Verônica sobre a mesa de cabeceira da filha. Seus dedos
tocaram o objeto, recordando-o do pulsar de uma de suas caçadas mais
emocionantes.
E então, um movimento no canto de seus olhos o fez se voltar para
Ágata. A menina estava acordada, seus olhos fixos nele, um sorriso
sonolento nos lábios.
— Papai!
45
Nas chamas da caçada

Atônito, Felipe ajudou a mãe a se levantar e a colocou sentada na beirada da


cama. Encarava-a como se não a conhecesse, como se não soubesse quem
verdadeiramente era aquela mulher.
— Você... — As palavras deslizavam pausadas por entre as frestas de
seus lábios. — O que você fez foi...
Solange ergueu a mão, levando os dedos ao corte na testa.
— Foi por amor.
Felipe grunhiu.
— Há outro nome para isso, mãe.
— Eu sempre cuidei dele, sempre fiz de tudo para que ele
permanecesse na linha... Desde que percebi que ele era diferente. Foi quando
ele caçou um de seus cachorros pela primeira vez que compreendi que
precisava protegê-lo de uma forma especial.
Felipe estreitou os olhos, atônito.
— Meus cachorros? — A voz saiu em um ganido, a mente voltando
para os filhotinhos que havia ganhado do pai na infância, e que sempre
“fugiam”. — Diogo... Matou meus cachorros?
— Foi por isso que proibi animais na casa depois de um tempo. Gatos,
cães... Para que Diogo não cometesse um deslize e fosse descoberto.
— Por Deus...! Você...
— Você não entende, Felipe. Você nunca vai entender.
— Espero mesmo nunca entender. — Ele deu um passo à frente. O
coração palpitava desgovernado, incrédulo. — Espero mesmo nunca me
tornar alguém como você e...
Felipe se calou quando um clarão alaranjado iluminou a noite que
reinava do lado de fora.
Arfando, ele correu até a janela; uma sensação dilacerante enchia sua
boca, fechava sua garganta.
Mariana. Ágata.
E um pânico vertiginoso encheu suas veias quando ele viu o fogo que
se alastrava de um ponto no jardim e cercava toda a mansão em uma
velocidade assustadora.
◆◆◆

— Cinco... Seis...
Tudo o que Mariana conseguiu fazer foi agarrar a mão de Ágata e
correr com todas as suas forças.
— Sete... Oito...
O jardim foi rapidamente engolido pela incandescência das chamas,
suas línguas famintas lambendo o ar e criando uma dança frenética de cores
vívidas. As árvores se destacaram em tons de laranja e vermelho, enquanto
as sombras distorcidas pareciam se mover em um frenesi, projetando uma
atmosfera sinistra sobre o cenário.
— Nove...
O fogo avançou impiedosamente, consumindo o terreno e se
aproximando cada vez mais da mansão, onde a maior concentração de
combustível parecia alimentar as chamas vorazes.
— Dez!
Arquejando, Mariana ergueu a menina do chão, pegando-a no colo
para conseguir correr mais rápido. A destruição iminente parecia inevitável,
e o desespero apertava seu peito, cada passo a levando mais longe da ameaça
ardente.
Não havia como entrar na mansão; a porta principal estava tomada
pelo fogo.
Felipe... Felipe ainda está lá dentro!
O grito desesperado de Mariana ecoou pelo ar enquanto ela corria,
seus olhos buscando freneticamente uma saída.
Ela avistou o portão de saída, uma esperança tênue, e correu até ele.
Mas quando tentou abri-lo, seu coração afundou ao perceber que estava
trancado. Bateu nas grades, gritou por socorro, mas o som do crepitar das
chamas quase abafou sua voz.
— É só um jogo, tio Mari. O papai tá brincando com a gente.
Ofegando, ela olhou para trás.
Diogo estava se aproximando, sua figura distorcida pelas ondas de
calor, sua faca cintilando perigosamente à luz das chamas.
O sorriso dele era de um predador que se deleitava com a caçada.
Mariana segurou Ágata com mais força, os batimentos do coração
ecoando em seus ouvidos enquanto ela buscava desesperadamente uma
maneira de escapar.
Seus olhos se encheram de lágrimas, uma mistura de medo e
determinação, enquanto ela continuava a correr, procurando uma brecha na
prisão de chamas que se fechava ao seu redor.
◆◆◆

O ar estava cheio de um aroma acre e a fumaça começava a se infiltrar


no quarto. Arfando, Felipe testemunhou o fogo se alastrando rapidamente,
engolindo o jardim e cercando a mansão em um abraço incendiário.
Porra. Porra. Porra. Porra. Porra.
Não havia tempo a perder.
Ele agarrou o braço de Solange e a arrastou para fora do quarto,
ignorando suas súplicas e gritos de protesto.
O fogo rugia lá fora, ganhando força a cada segundo, e o calor
opressivo empurrou-os para longe das chamas que dançavam.
Pela janela, Felipe podia ver o inferno que se desenrolava. Ele sentia o
desespero se acumulando dentro dele, a sensação de impotência esmagadora.
E então, a voz de Solange penetrou seu frenesi.
— Diogo está caçando Mariana, Felipe! — ela exclamou, ofegando.
— Ele está lá fora! Ela se tornou a obsessão dele, assim como Verônica! Não
consegui controlá-lo no passado, e não consegui controlá-lo agora.
As palavras dela foram como um choque elétrico para Felipe.
— Se ele é tudo o que você me contou, então é impossível colocá-lo
sob controle.
— Mas ele é meu filho! Eu o conheço!
— Você é tão louca e tão doente quanto ele!
Um novo ímpeto de determinação o envolveu, e ele sabia o que
precisava fazer. Levou Solange até o quarto de Diogo, empurrou-a na
direção do túnel secreto.
— Vá! — ele gritou, sua voz cheia de desespero. — Use o túnel para
sair daqui!
— Não posso deixar Diogo aqui!
— Puta que pariu!
O grito de Felipe estremeceu as paredes do quarto, fazendo Solange se
encolher diante do filho.
— Olha a merda que você causou! Entra na porra desse túnel logo,
antes que eu mesmo te arraste por ele! E não ache que isso acabou aqui!
Ela engoliu em seco.
Felipe conseguia ver o medo nos olhos da mãe.
Jamais tinha falado com ela daquela forma.
Mas jamais soubera de sua verdadeira faceta.
— E você?
— Não vou abandoná-las. Vá!
Solange assentiu e desapareceu pelo túnel, e ele ficou sozinho no
quarto de Diogo.
Felipe olhou ao redor, seus olhos varrendo o quarto em busca de
qualquer coisa que pudesse ajudá-lo a escapar das chamas. Enquanto isso,
com o celular em mãos, ligava freneticamente para os bombeiros e para a
polícia, implorando por ajuda enquanto lutava contra o tempo.
Mas sua prioridade era Mariana e Ágata.
Ele sabia que precisava chegar até elas.
Sabia que elas estavam em algum lugar lá fora, sendo caçadas por um
psicopata que outrora ele chamara de irmão.
Com o coração acelerado, Felipe continuou correndo, procurou por
uma saída, seu cérebro trabalhando em ritmo acelerado, buscando uma
forma de chegar até as duas garotas que mais amava em toda sua vida.
Desceu as escadas; o fogo ardia com mais intensidade no primeiro
andar, a fumaça tomava os cômodos.
Merda!
Tossindo, ele protegeu o rosto, tentando inalar o mínimo possível.
Voltou a subir as escadas, retornando para o corredor.
Do lado de fora, teve impressão de ouvir o grito de Mariana.
Seu coração acelerou.
Olhou para a parede de vidro que preenchia o final do corredor.
Correu até a academia, apanhou um dos pesos e voltou para lá,
jogando o halter mais pesado que conseguiu carregar contra o vidro.
A parede se estilhaçou; vidro chovendo sobre o fogo.
Que se foda!
E, sem pensar duas vezes, Felipe se lançou na direção da abertura,
saltando para o jardim.
◆◆◆

Não. Não. Não. Não.


Apertando Ágata, Mariana continuava correndo, sem saber ao certo
para onde ir.
Gritava por ajuda, por socorro.
Àquela altura, os vizinhos já deveriam ter visto o fogo.
Alguém já deveria ter chamado os bombeiros. Mas será que
conseguiria escapar de Diogo antes que a polícia e os bombeiros chegassem?
— Consigo sentir seu cheiro delicioso — uma voz cantarolou em meio
às chamas. — Cheiro de medo e determinação. O melhor cheiro que tem.
Um cheiro que fica ainda mais delicioso quando o sangue é derramado.
As palavras cheias de uma malícia sinistra a estremeceram.
Mariana engoliu em seco, a realidade caindo sobre ela como um peso
insuportável. Não havia escapatória, não havia lugar para se esconder. Ela
estava encurralada, cercada pelo fogo e pelo predador que a perseguia.
Os olhos dela encontraram os de Diogo, e o brilho perigoso da faca
que ele segurava brilhava à luz das chamas. Seus pés pareciam enraizados no
chão, a impotência a envolvendo.
Ágata se agarrou a ela, seus pequenos olhos cheios de medo refletindo
o terror que Mariana também sentia.
— Por que o papai tá assustador?
Queria acalmar a menina, queria protegê-la.
Mas não conseguia acalmar a si mesma.
— Por favor, não... — Mariana sussurrou, sua voz trêmula e
suplicante. Ela deu um passo para trás, mas não havia para onde ir. As
chamas dançavam ao seu redor, e Diogo avançava, seu sorriso distorcido
como o de um predador prestes a abocanhar sua presa.
O brilho da faca ficava mais intenso, mais próximo, enquanto Mariana
se via encurralada pelo fogo e pela escuridão que se fechava ao seu redor.
Ela segurou Ágata ainda mais perto, protegendo-a com seu próprio corpo, as
chamas e o desespero formando um cenário infernal ao seu redor.
Diogo riu.
— Eu adoro quando vocês imploram.
46
Presa e predador

— Por favor... — Mariana continuou implorando, a voz carregada de


súplica. — Deixe a Ágata ir. Não a machuque. Por favor.
Diogo sorriu, cada vez mais próximo.
A faca em sua mão era uma harmonia sombria com o fogo.
Seus olhos estavam fixos em Diogo, seu corpo tenso e alerta, cada
músculo preparado para o que estava por vir.
Não permitiria que ele ferisse Ágata.
Em um ato de coragem desesperada, Mariana tomou uma decisão
rápida, uma decisão que poderia salvar a menina, mesmo que aquilo custasse
sua própria vida.
Colocou Ágata no chão, empurrando-a na direção do portão fechado,
onde as chamas ainda não haviam chegado.
— Corra! Ágata, corra!
E então, tão rápido quanto uma batida voraz de coração, Mariana se
lançou na direção de Diogo, seus braços estendidos para agarrá-lo, para
tentar detê-lo e ganhar tempo precioso para Ágata escapar.
Tempo até o socorro chegar.
Escutou-o arquejar, surpreso.
Os dois caíram no chão, lutando desesperadamente, o corpo de
Mariana chocando-se contra o dele em uma batalha de sobrevivência.
Diogo tinha a vantagem, sua força dominante enquanto ele a
pressionava no solo. Um sorriso distorcido brincava em seus lábios, sua
respiração pesada misturando-se ao crepitar das chamas.
Ele baixou a cabeça, inspirando o cheiro dela.
— Tão bom. Tão perfeito.
Ergueu a faca.
— Que cheiro delicioso. Que presa perfeita.
A faca estava prestes a descer, a ameaça mortal iminente.
O tempo parecia ter desacelerado, as batidas do coração de Mariana
retumbando em seus ouvidos, enquanto ela se preparava para o inevitável.
Mas então, feito um raio, Felipe surgiu no meio da escuridão e do
fogo, agarrando Diogo pelo colarinho e arrancando-o de cima de Mariana.
Ela arfou, mal compreendendo o que estava acontecendo.
O choque do impacto ecoou pelo jardim, cortando o ar como um
trovão.
Os irmãos entraram em uma luta feroz e caótica, seus corpos se
chocando e se contorcendo em um embate desesperado. A faca brilhava
perigosamente, a ameaça de sua lâmina cortante pairando sobre eles.
A risada selvagem de Diogo ecoava no ar.
— Oh, Felipe, você sempre foi o fraco, o que não conseguia
acompanhar o ritmo. Olhe só para você agora, tentando ser o herói. É
patético.
Felipe rosnou em resposta.
Mariana observou a cena com o coração na garganta. Ela viu a fúria
nos olhos de Felipe, a determinação em seus movimentos enquanto ele
lutava contra seu próprio irmão. Mas Diogo não cedia facilmente. Seu rosto
estava distorcido em um sorriso sádico, seus risos tilintando em meio à luta.
— Você não é nada além do meu brinquedo, Felipe. Sempre foi assim,
sempre será. E quando eu acabar com você, vou me banhar no sangue dela.
Ofegando, Mariana olhava em volta, procurando por alguma coisa que
pudesse usar para ajudar Felipe.
O fogo rugia, feroz, impiedoso.
— Eu não vou deixar! — Felipe vociferou.
Mariana percebeu que Felipe estava ferido, sangue manchando suas
roupas, mas ele não recuava. Ele se agarrava a cada pedaço de força que
possuía, determinado a proteger sua família.
— E o que você pretende fazer, hum? Me deter? Me enfrentar? —
Diogo umedeceu os lábios. — Não importa o que faça, Felipe. Sempre vou
estar à espreita, nas sombras da sua mente, nos seus piores pesadelos.
Com um movimento forte, brusco e preciso, Diogo girou Felipe no
chão, ganhando vantagem na luta.
Mariana gritou, desesperada.
Ao longe, teve impressão de escutar sirenes — seriam os bombeiros?
A polícia?
Não vai dar tempo.
O coração de Mariana batia com força.
Eles não vão chegar a tempo de salvá-lo.
Olhou para Felipe; um milhão de cenas se passaram por sua mente.
Não ia perdê-lo.
Não ia permitir que ele fosse arrancado dela.
Nem ele. Nem Ágata.
Com um ímpeto de coragem, Mariana viu um galho da árvore caído,
suas extremidades queimando, mas ainda o suficiente para ser usado como
arma. Ela o pegou sem hesitar, sentindo o calor se irradiar pelo cabo
enquanto avançava em direção à luta furiosa.
Diogo estava tão absorto em sua disputa com Felipe que não percebeu
Mariana se aproximando.
Com um grito, ela ergueu o galho e o atingiu com força nas costas.
Diogo rugiu, soltando Felipe enquanto a dor e o fogo o atingiam.
Felipe aproveitou o momento de distração de seu irmão para se afastar
e chutar a faca caída para longe. Ele se virou rapidamente e, com um golpe
rápido e preciso, atingiu o estômago de Diogo.
Diogo urrou de dor, sua expressão distorcida em agonia.
Com a mão estendida, ele se virou na direção de Mariana, os dedos
apontados em sua direção, feito garras retorcidas.
— Você... É... Minha... Presa...!
Com um movimento rápido, Mariana golpeou Diogo novamente com
o galho em chamas, fazendo-o perder o equilíbrio. Ele lutou para se manter
de pé, mas estava ferido demais, o fogo consumindo sua força.
Diogo cambaleou e, incapaz de evitar, caiu para trás, diretamente nas
chamas que se alastravam pelo jardim.
O fogo o envolveu, as chamas dançando e crepitando ao redor dele.
Ele urrou uma última vez, um som cheio de desespero e agonia, antes
de ser engolido pelo incêndio que ele mesmo havia causado.
Mariana e Felipe ficaram paralisados, olhando em choque enquanto as
chamas consumiam Diogo.
O calor era intenso, as labaredas cresciam, engolindo-o.
Tremendo, Mariana largou o galho queimado, ao mesmo tempo em
que Felipe corria em sua direção e a envolvia em seus braços; enquanto as
sirenes se aproximavam, os bombeiros invadindo o terreno para apagar o
fogo e a sombras que consumiam a mansão.
47
Que devoram e consomem

Viaturas policias e dois caminhões de bombeiros cercavam os arredores da


mansão da família Rocha.
Com Ágata trêmula e chorosa nos braços, Felipe observava as
labaredas que consumiam cada pedaço daquele lugar, daquele legado que
escondia sombras e escuridão.
E se sentia absurdamente aliviado com os escombros que
despencavam.
— Onde a gente vai morar, tio Fê?
— Não se preocupe. — Ele sussurrou para a sobrinha. Cada músculo
de seu corpo doía. Havia recebido os primeiros-socorros dos paramédicos,
fora instruído a ir até o hospital, mas insistira em ficar mais um pouco ali,
assistindo ao fogo que devoravam a mansão erguida sobre ossos e sangue.
— Estaremos juntos. É o que importa. Vou cuidar de você.
— Eu também. — A voz de Mariana pairou atrás dele. — Eu também
vou cuidar de vocês.
Com um turbilhão de emoções conflituosas revolvendo em seu âmago,
Felipe esticou um braço, passando-o ao redor da cintura de Mariana,
puxando-a para junto de si e de Ágata.
— Você está bem?
— Agora estou — ela sussurrou, deitando a cabeça no ombro dele, os
dedos acariciando os cabelos de Ágata. — Agora estou.
Enquanto observava os paramédicos retirarem o corpo coberto de
Diogo dos escombros, um silêncio pesado pairava sobre o cenário.
Seu irmão.
Um assassino.
Uma marionete descontrolada nas mãos da mãe deles.
Era insano demais.
Era atordoante demais.
Felipe engoliu em seco, o coração contraído, acelerado, observando os
paramédicos colocarem o corpo de Diogo dentro da ambulância.
O último capítulo da vida do irmão se encerrava ali, e embora a
relação entre eles tivesse sido distorcida por sombras, ainda era uma perda.
— Diogo! Tirem as mãos de Diogo! Não levem meu filho!
Solange, a mãe deles, emergiu da escuridão, gritando
desesperadamente pelo filho perdido.
— Não! Meu filho! Meu Diogo! — Sua voz era um lamento selvagem
que parecia ecoar pelas chamas que consumiam a mansão. — Meu menino!
Devolvam meu filho!
Um policial tentou acalmá-la.
— Afasta-se, senhora Rocha.
— Não! — Ela se debateu, tentando atacar os homens que queriam
contê-la. — Vocês não entendem! Ele é diferente! Ele precisa de mim! Só eu
sei como cuidar dele e mantê-lo sob controle!
Os minutos seguintes aconteceram rápidos demais para que Felipe
sequer pudesse processá-los e compreendê-los.
Houve denúncias, houve provas.
A imprensa pipocava ao redor da mansão.
A polícia agiu rapidamente, detendo Solange sob a acusação de crimes
terríveis.
Formação de quadrilha.
Tráfico de órgãos.
Ocultação de cadáveres.
Todos aqueles termos borravam e nublavam a mente de Felipe.
Enquanto Solange era levada à viatura, gritando por seu filho em um
misto de dor e desespero, Felipe observava, uma mistura de sentimentos
agitando-se dentro dele.
Ele não podia evitar sentir uma pontada de compaixão, mas também
reconhecia que ela havia conduzido suas próprias ações sombrias.
E a dor por ter sido enganado por tantos anos...
Ah, ele sabia que aquilo seria um espectro que ainda o perseguiria.
Mas...
Felipe virou seu olhar para Mariana, que estava apoiada nele, ainda
acariciando e acalmando Ágata. As chamas devoravam a mansão ao fundo.
Os olhos dela eram um bálsamo sob o fogo. E ele entendeu. As palavras
eram desnecessárias naquele momento; tudo o que importava era o abraço
apertado, o toque suave, e a certeza de que estariam juntos quando o dia
irrompesse.
48
Partida temporária

— E, por fim... — Felipe se ergueu, limpando as mãos em uma flanela


após dar os últimos retoques na moto. — Lobo, Falcão e Cobra não estavam
envolvidos no assassinato de Rosana, mas faziam parte do esquema
criminoso da quadrilha de tráfico de órgãos. Vão continuar atrás das grades
por um bom tempo.
Theo correu os dedos pelos cabelos, apoiando o quadril na bancada da
oficina.
— Uma grande merda.
— Uma grande merda — Felipe se viu obrigado a concordar. Não
havia expressão melhor.
Um instante de silêncio pulsou entre os dois, entrecortado pelo rock
que tocava mais baixo daquele dia.
— E você, cara? Como tá? — Theo indagou. — A mansão...
— O fogo danificou quase tudo. Dava para reformar, mas decidi que
não quero pisar naquele lugar nunca mais. Mandei derrubar tudo. Vou
vender o terreno. Por enquanto, estou morando em um apartamento alugado
com Ágata.
— E sua sobrinha?
Dor encheu os olhos de Felipe.
— Ela ficou em choque com tudo. Mariana me incentivou a colocá-la
com uma psicóloga que entende de criança, e parece que tá ajudando. Eu me
sinto um merda por não ter conseguido protegê-la mais, sabe?
— Você fez o que estava ao seu alcance. Muito mais do que qualquer
outro tio faria.
— Assim espero. E continuarei fazendo. — Felipe correu os olhos ao
redor da oficina. — Vou cuidar dela até o último dia da minha vida.
— E em relação à morte do seu irmão, à prisão da sua mãe...
Felipe inspirou fundo, indo até o frigobar e pegando uma cerveja.
Ofereceu uma garrafa para Theo, que a aceitou.
Pensou no fogo que consumiu o irmão, na mãe na cadeia; segundo os
relatórios que recebia, ela gritava toda noite, chamando por Diogo,
esperando que o filho voltasse para ela.
Nunca perguntava sobre ele.
Ou sobre Ágata.
De acordo com o que os advogados o tinham informado, ela também
não parecia arrependida por ter criado um esquema criminoso de tráfico de
órgãos naqueles anos. Continuava insistindo, de uma forma doentia e
complexa, que tinha feito aquilo para cuidar de Diogo.
Tentou visitá-la uma única vez; quando sua mãe viu que era ele, e não
Diogo — pois não aceitava a morte do filho mais velho — o expulsou aos
gritos dali.
E Felipe nunca mais retornou a prisão.
Talvez nunca mais cruzasse aqueles portões outra vez.
— De verdade, cara? Não consigo explicar.
Theo abriu a garrafa, sorvendo um gole da bebida.
— Não precisa explicar para mim. Te garanto, Felipe. Eu entendo essa
confusão insana que tá passando na sua cabeça.
Os dois trocaram um olhar carregado de silêncio e compreensão.
Sim, mesmo não conhecendo completamente o passado do seu melhor
amigo, pelo pouco que sabia, Felipe imaginava que Theo conseguia tatear
parte daquelas sombras obscuras que haviam se revelado em sua vida.
De soslaio, como se sentisse o rumo de seus pensamentos, Felipe
observou Theo tocar a correntinha que sempre carregava no pescoço.
O que será que essa corrente significa? Por que ele sempre a toca
quando qualquer coisa sobre a família dele é mencionada?
— Tem uma coisa que eu preciso te falar, cara — A voz de Theo o
arrancou dos questionamentos.
— Fale, Theo.
— Lembra que meu avô tava doente?
Felipe anuiu.
— Lembro sim.
— Os médicos me ligaram. Ele faleceu ontem.
Uma onda de choque passou pelo corpo de Felipe.
Ele largou a garrafa de cerveja de lado e avançou até Theo, oferecendo
apoio e conforto.
— Por que você não me falou, cara? Porra. Sinto muito pela perda. Sei
o quanto seu avô significava para você.
A barreira que Theo mantinha ao seu redor, sempre dura e inabalável,
ameaçou trepidar por alguns instantes.
— Valeu mesmo, cara. É duro demais, mas pelo menos ele não está
mais sofrendo. E, olha, eu sei que é muita responsabilidade, mas preciso ir
até Holambra. Acertar as coisas, o funeral, essas coisas todas, sabe?
Felipe assentiu, colocando a mão no ombro de Theo.
Ali, nas rochas que Theo mantinha no olhar, Felipe enxergou uma
pequena fissura, um sussurro não dito, mas que estava ali, em cada pontinho
trêmulo das íris.
A última coisa que Theo queria fazer era retornar para Holambra.
— Não se preocupe com a oficina. Eu vou cuidar de tudo por aqui —
Felipe antecipou. — Você vai lá e faz o que precisa ser feito. E, qualquer
coisa que precisar, é só me ligar, ok? Vai dar tudo certo.
Theo respirou fundo, a barreira voltando a se erguer ao seu redor.
Felipe se achava uma pessoa fechada.
Mas quando se tratava de Theo...
Theo era infinitamente mais recluso e fechado.
— Não será por muito tempo. Vou voltar o mais rápido possível.
Um pequeno sorriso apareceu no rosto de Felipe.
— Vou ficar aqui, mantendo as coisas nos trilhos até você voltar. E, ó,
se precisar de alguma ajuda com as coisas do seu avô, é só me falar. Estamos
juntos nessa, mano.
Theo assentiu, um lampejo de gratidão passando por seus olhos duros
e expressão séria.
— Valeu mesmo, Felipe. Vou te manter informado sobre tudo. E, mais
uma vez, desculpa por não ter te contado antes. Foi tudo tão rápido.
— Não precisa se desculpar. Eu entendo. Agora vai lá e cuida das
coisas. A gente se fala, ok?
Os dois amigos se abraçaram rapidamente.
E, enquanto Theo se afastava, subindo na moto e começando a se
preparar para sua jornada à Holambra, Felipe prometeu a si mesmo que
manteria a oficina funcionando e estaria pronto para ajudar o amigo quando
— e se — ele decidisse se abrir completamente.
49
Comemorações

— Tem certeza de que a divulgação do resultado era hoje?


— Sim, tá aqui no edital.
— Mas o site tá certo? É esse site mesmo?
— Sim, Lívia — Mariana respondeu, tentando não se contagiar pela
ansiedade da irmã. — A publicação será feita pelo site do Diário Oficial.
— Então atualize o site de novo. Tô nervosa.
— Lívia, você vai me deixar nervosa desse jeito!
— Mas você não tá nervosa ainda?
Mariana se viu perdida entre a vontade de grunhir e dar uma risada
baixa. Céus, ela estava muito nervosa.
Ergueu os olhos, e viu seu pai, Felipe, Isabela e Ágata ao redor da sala
da casa, todos a fitando com a mesma expectativa e ansiedade.
Amava todo aquele apoio — na mesma proporção em que, naquele
momento, cada par de olhos a deixava ainda mais nervosa.
Decidiu atualizar o site mais uma vez.
Por favor, por favor, por favor, por favor.
Inspirando fundo, Mariana atualizou o site mais uma vez.
Uma nova publicação surgiu na parte posterior da página do Diário
Oficial.
“Resultados do Concurso Público da Polícia Científica”.
— Foi publicado — ela falou em um arquejo.
— Abre logo isso, Mari! — Lívia implorou, saltando da cadeira.
Com a mão ligeiramente trêmula, Mariana moveu o mouse e clicou na
publicação, abrindo-a. Uma lista de nomes surgiu diante de seus olhos. Ela
rolou a tela do notebook, descendo até a letra “M”.
Mariana Pereira – Aprovada.
Um gritinho emocionado escapou da garganta dela.
— Você passou?! — Lívia praticamente berrou.
Lágrimas cintilaram nos olhos dela.
— Sim! Sim!
Berros e aplausos encheram a sala.
— Viva a tia Mari! — Ágata saltitou, risonha e alegre.
Mariana se levantou da cadeira, sendo abraçada por seu pai, pela irmã,
por Isabela, por Ágata, por Felipe.
— Parabéns, meu amor — ele sussurrou em seu ouvido, deixando uma
trilha quente e arrepiante na pele dela. — Sempre acreditei em você.
— Obrigada — ela sussurrou de volta. — Obrigada por tudo.
◆◆◆

Após ser expulsa da sala e da cozinha por seu pai, por sua irmã, por
Isabela — até mesmo por Ágata — sob a alegação que o jantar de
comemoração seria feito por eles, Mariana se dirigiu até o banheiro da casa,
fechando a porta atrás de si e buscando por seu próprio reflexo no espelho.
— Mãe... — ela murmurou, abrindo um sorriso emocionado para si
mesma enquanto levava uma mão ao peito, sentindo a força determinada
com que seu coração batia. — Eu consegui. Estou ainda mais perto de
realizar meus sonhos.
Um leve tremor passou por sua garganta.
Mariana inspirou fundo, fitando a si mesma, o peito cheio do
sentimento mais terno e cálido que já experimentara.
— Com essa nova carreira, vou poder fazer justiça pelas pessoas. A
justiça que lhe foi negada no passado. E poderei cuidar do papai e da Lívia
com mais tranquilidade. E... Obrigada. Sei que você está me olhando de
algum lugar. Tenho certeza de que foi você que colocou Felipe e Ágata no
meu caminho, para me mostrar que posso amar sem medo de perder. Eu me
permiti amá-los. E agora eles são minha família. Muito obrigada.
Escutou a porta do banheiro sendo aberta.
Mariana não precisou se virar para ver Felipe; enxergou-o através do
reflexo do espelho, os olhos escurecidos ardendo em chamas que se
espalharam por sua pele antes mesmo que ele a tocasse.
Como um único olhar podia arrebatá-la de tal forma?
Ele fechou a porta atrás de si e a trancou; Mariana abriu a boca, mas
Felipe avançou até ela, tomando-a nos braços, seus lábios sorvendo os dela
enquanto a erguia e a colocava sentada na bancada da pia.
— Felipe! — Ela arfou contra a boca dele.
— Quero você — ele murmurou, os lábios se movendo contra os dela
com um desejo urgente, as mãos subindo por suas coxas, deslizando para
baixo do vestido que ela usava. — Preciso de você.
Todo seu corpo se incendiou com o toque dos dedos dele.
— Vão nos ouvir! — ela arquejou, jogando a cabeça para trás.
— Estão distraídos na cozinha. — Um brilho perigoso lampejava nas
íris dele. — É só não fazer barulho.
Incapaz de se conter, completamente inebriada por ele, Mariana se
redeu aos beijos e às carícias.
Felipe exprimiu um murmúrio rouco, se colocando entre as pernas
dela, os lábios provocando o caminho entre sua boca, seu pescoço e a curva
dos seios; as mãos dela passeavam por seus braços despidos, reverenciando
cada uma das tatuagens que se desenhavam pelos músculos dele.
Mariana gemeu baixo, atiçada quando a mão dele a livrou da calcinha,
os dedos brincando entre o meio de suas coxas.
— Shh... — Ele sussurrou em provocação em seu ouvido. — Lembra
o que eu disse, linda? Não pode fazer barulho.
Ela engoliu em seco, arquejando. Escutou o som do cinto de Felipe se
soltando, o calor acentuando no banheiro, as bocas colidindo para calarem
qualquer som perigoso. Ele segurou uma das pernas de Mariana, apoiando-a
em sua cintura, puxando-a para mais perto, até que suas peles ardentes se
roçassem, livres de qualquer barreira.
Mariana precisou morder os lábios para não gemer alto.
Uma das mãos de Felipe subiu, se agarrando aos seus cabelos em um
aperto forte e delicioso.
A boca dele se colou em sua orelha.
— Vai ter que ficar ainda mais quietinha agora, linda.
Sem soltar seus cabelos, Felipe a puxou, tomando-a com um impulso,
encaixando-se nela, dentro dela, calando os sons involuntários da sua boca
com mais um beijo.
Faíscas queimavam atrás dos seus olhos fechados.
Ela afundou os dedos nos cabelos dele, perdendo-se de qualquer razão
ou sanidade naquele momento.
Mariana sentiu o coração acelerar à medida que Felipe se movia cada
vez mais rápido, mais forte. A tensão se acumulava em seu corpo,
desesperada para explodir. Os sussurros e gemidos que escapavam dos seus
lábios e dos dele eram abafados pelos beijos famintos, urgentes.
Suas unhas se cravaram nos braços dele, as mãos de Felipe a
seguraram com mais força, os movimentos do corpo dele sobre o seu ditando
o ritmo, acentuando o fogo que queria consumi-la por completo.
E então, quando não foi mais possível aguentar, quando não foi mais
possível resistir, cada pedacinho dela estremeceu, vibrou, explodiu, o mundo
desaparecendo ao seu redor enquanto era tomada pela mais avassaladora das
sensações; Mariana arquejou contra os lábios dele, sentindo Felipe acelerar
os movimentos, abafando os próprios grunhidos nos beijos vorazes,
puxando-a, apertando-a, até alcançar o próprio ápice.
Um olhar rápido e cúmplice foi trocado entre os dois, um sorriso
secreto e divertido.
Calmo e terno, os lábios dele depositaram um beijo suave na curva do
pescoço dela.
Ela se afundou nos braços de Felipe, seus corações batendo em
uníssono, ofegantes e saciados, permitindo-se sentir e experimentar todo o
frenesi que ainda vibrava por sua pele quente contra a pele quente dele.
◆◆◆

Tarde da noite, quando o jantar terminou, Isabela partiu e seu pai se


recolheu ao quarto, Mariana insistiu em tirar a mesa. Felipe a ajudou
enquanto Lívia e Ágata assistiam a um filme juntas.
Ao voltar para a sala, Mariana encontrou Lívia e Ágata adormecidas.
— Quer que eu acorde a Ágata? — perguntou baixinho para Felipe.
— Não, deixe-a dormindo. Quero aproveitar que todos estão
descansando para te mostrar uma coisa.
De soslaio, Mariana lançou um olhar enviesado para ele.
— Não é o que você está pensando. Isso só mais tarde. — Uma fome
provocante ardeu nos olhos dele. — Mas se continuar me olhando desse
jeito, terei que mudar os planos.
Mariana riu baixinho, estapeando a mão boba dele.
— Mais tarde — ela murmurou de volta. — Agora me mostre o que
você quer me mostrar.
— Teremos que sair daqui.
Ela arqueou as sobrancelhas.
— Da sala?
Felipe abriu um sorriso enigmático.
— Da casa.
Mariana sentiu um arrepio de antecipação correndo pela espinha
enquanto observava a expressão misteriosa nos olhos de Felipe. Ela não
tinha ideia do que esperar, mas a curiosidade a impulsionava a seguir
adiante. Com um sorriso travesso, ela tocou o peito dele com a ponta do
dedo.
— Tudo bem, Sr. Mistério. Vamos lá.
Felipe riu, o som melodioso enchendo o ar, enquanto eles deixavam
para trás a casa de Mariana e se dirigiam para a Harley-Davidson
estacionada na frente da garagem.
A noite estava fresca e agradável, com uma brisa suave que brincava
com os cabelos de Mariana e acariciava sua pele. Ela subiu na moto atrás de
Felipe, segurando-o com firmeza pela cintura. Aquela sensação de
proximidade sempre lhe proporcionava um misto de conforto e empolgação.
Será que vai ser sempre assim com ele?
Ela esperava que sim.
A moto rugiu à vida sob eles, e eles partiram, cortando as ruas da
cidade como flechas. Os prédios altos e iluminados pareciam passar em um
borrão, enquanto Mariana se deixava levar pela adrenalina da velocidade e
pelo calor do corpo de Felipe junto ao dela. Cada curva e cada reta pareciam
uma dança perfeitamente coordenada; amava aquela sensação de liberdade,
de pura selvageria sem limites.
Depois de algum tempo, a paisagem começou a mudar, os prédios
dando lugar a um bairro mais tranquilo e arborizado. As ruas eram mais
calmas ali, e o som suave do motor da moto parecia ser o único som ao
redor. Havia apenas algumas casas; nada muito luxuoso, mas, aos seus olhos,
tudo possuía um ar belo, acolhedor e confortável.
Felipe estacionou a moto em frente a um terreno amplo e vazio.
— Chegamos — ele anunciou em um tom misterioso e divertido,
desligando a moto e tirando o capacete.
Mariana olhou ao redor, observando as árvores e o espaço aberto
diante deles. Franziu o cenho enquanto descia da moto e tirava o capacete,
tentando entender o que estava acontecendo.
— Aqui? Mas o que estamos fazendo aqui?
— Queria te mostrar esse terreno.
— Hum... — Mariana observou o pedaço amplo e plano de terra. — O
que tem de especial nesse terreno?
Felipe a abraçou por trás, aconchegando-a em seu peito, um calor
reconfortante se espalhando pelas costas dela.
— Lembra-se da casa dos sonhos que eu descrevi durante um almoço
com a sua família?
— Lembro sim.
— Este terreno — ele começou, sua voz suave e cheia de emoção — é
o começo de algo incrível. É o lugar onde planejo construir minha casa dos
sonhos. Nossa casa dos sonhos, Mariana. Nossa casa, onde cada pedaço será
moldado da forma mais acolhedora e especial possível. Onde poderemos
encontrar aconchego nos dias de chuva. É aqui que desejo passar todos os
dias ao seu lado, com Ágata, construindo memórias inesquecíveis.
Um sorriso emocionado e surpreso desabrochou nos lábios de Mariana
enquanto ela girava nos braços de Felipe, seus olhos brilhando em comunhão
com as estrelas.
— Você... você está falando sério? — a voz tremulou de emoção.
— Mais sério do que nunca — ele afirmou, seus olhos capturando os
dela com sinceridade. — Quero viver com você e com Ágata aqui até o fim
da minha vida. O que me diz?
Sem mais palavras, Mariana selou o compromisso com um beijo terno
e carregado de significado. O vento sussurrava suavemente entre as árvores,
como um testemunho da promessa que acabara de ser feita.
— Mal posso esperar para nós três construirmos nossas vidas e nossos
sonhos nesse lugar especial.
Epílogo
Um ano depois

A chuva tilintava contra as janelas da casa.


Com aquele som melodioso e ritmado, harmonizado ao cheiro da
pipoca com manteiga, a noite de sábado ganhava um toque mais especial e
aconchegante.
Felipe amava aquele ritual.
Mariana, Ágata e ele estavam acomodados no sofá da sala da casa que
havia construído naquele último ano, cada um abraçado por cobertores
macios. Baldes de pipoca com manteiga eram passados de mão em mão,
enquanto Mariana passava filme por filme no catálogo do streaming,
procurando pelo escolhido para a noite do “cinema em casa”.
— Nossa, são tantas opções que eu fico até perdida. — Ela riu com o
controle na mão. — Alguma sugestão, pessoal?
Felipe fitou Mariana, que estava ao seu lado, e sorriu, passando um
braço carinhosamente ao redor dos ombros dela.
A presença dela materializava o amor que ele colocara em cada tijolo
ali erguido. O brilho nos olhos dela quando olhava para a tela da TV era uma
visão que aquecia seu coração.
Certa e perfeita demais.
Ágata agitou a mão no ar.
— Eu quero assistir àquele filme com dragões e magia!
Felipe riu, bagunçando os cabelos dela.
— Seu pedido é uma ordem, senhorita!
— Aqui está. — Mariana clicou em “Como treinar seu dragão”. —
Teremos um filme com dragões e magia especialmente para você.
Ágata alargou o sorriso, alegre e animada.
Cappuccino, o mais recente membro da família, miou e pulou no sofá,
se aconchegando no colo da menina.
Enquanto o filme começava e seguia, risadas e comentários divertidos
preenchiam a sala, criando um ambiente de cumplicidade e alegria. Eles
eram mais do que apenas uma família; eram um time, enfrentando juntos os
desafios da vida e celebrando suas vitórias.
Mariana apoiou a cabeça no ombro de Felipe, trocando olhares
carinhosos com ele antes de voltar sua atenção para a história que se
desenrolava na tela.
Céus, como ele a amava.
Como amava aquela casa, aquelas duas garotas especiais, aqueles
momentos compartilhados entre eles três.
Enquanto o filme rolava na televisão, a chuva do lado de fora parecia
criar uma trilha sonora perfeita para a noite.
Felipe fechou os olhos por um momento, absorvendo o som
reconfortante do ambiente ao seu redor. A mais pura sensação de paz e
completude o preenchiam. Sabia que havia encontrado seu lar, não apenas
nas paredes daquela casa, mas nos corações de Mariana e Ágata, um refúgio
inabalável que o embalava e o acolhia, feito um abraço quentinho da chuva,
que permaneceria e perduraria através das estações da vida, tecendo o legado
de um novo capítulo, uma nova história cheia de sonhos e promessas.

Fim
Notas da Autora & Agradecimentos
Pensa em uma história que amei escrever!

Quem em conhece sabe demais que amo misturar romance com mistério —
para mim, é uma combinação que funciona de uma forma sensacional.

Como vocês devem ter notado, deixei um gancho para uma história do
Theo. Então, se preparem porque ainda teremos o livro dele nessa
duologia que intitulei “Duologia Legado”.
Agradeço também a todos aqueles que têm me apoiado nesta jornada: meus
pais, minha irmã, meu marido (em memória), meus avós, toda a minha
família, meus leitores maravilhosos. Muito obrigada mesmo pela confiança e
pelo carinho depositado em cada leitura. Vocês são incríveis.

Um beijão para todos!


Em breve: a história de Theo
Fiquem de olho, porque nosso Theo também vai ganhar o próprio livro! Me
acompanhem nas redes sociais para não perderem nenhuma novidade!
Sobre a autora
Tradutora, revisora e professora de História e Inglês. Apaixonada pela
escrita desde a descoberta das fanfics com onze anos de idade e tentativa de
escrever o primeiro romance aos treze.

Quando não está negociando preços de traduções com os clientes ou


viajando nos livros que lê, busca se aventurar nos mundos fictícios que cria.
Viciada em café, ama um bom mistério e enigmas complexos. Sempre confia
que o troco está certo, pois a única coisa que sabe contar de cabeça são
histórias.

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