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Capa

Contra capa
O PRÍNCIPE DA MÁFIA: Rejeitada pelo Mafioso
Sinopse
Todos os direitos reservados
Ficha Técnica
Ilustrações
Nota da Autora
Hierarquia Famiglia Moretto
Mapa
Dedicatória
Prólogo
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capíutlo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Capítulo 38
Capítulo 39
Capítulo 40
Capítulo 41
Capítulo 42
Epílogo 1
Epílogo 2
Agradecimentos
Sobre a Autora
Outros livros da Autora
Fausto Moretto é o novo Sottocapo da Cosa Nostra, e assume o trono de poder no
submundo siciliano ao lado de o Don da Máfia. Enquanto as intrigas da maior organização
criminosa se desenrolam, o Príncipe da Máfia, determinado a descobrir quem assassinou seu
pai, vê sua vida ainda mais complicada.

Michela Zanchetta foi criada como uma princesa da máfia, e tendo sua virgindade
como uma virtude, jamais pensou que seria sua ruína.
Seus sonhos de liberdade colidem com o sistema patriarcal da máfia, e ela toma uma
decisão impulsiva que a coloca em rota de colisão com o destino, escolhendo um noivo errado.

Enquanto os corpos de Fausto e Michela se entendem perfeitamente numa atração


irresistível, suas mentes travam uma batalha incessante de amor e ódio.

Ele é calculista
Ela é impulsiva
Ele tinha uma escolha
Ela a roubou dele.

A fuga de Michela torna-se inevitável e nessa empreitada desastrosa terá sua virgindade
leiloada.
Fausto irá salvá-la
E depois… ela será rejeitada.

Nessa trama de paixão e traição, seus destinos entrelaçados desencadeiam uma jornada
tumultuada entre o submundo da máfia e os anseios proibidos do coração.

Aqui você vai encontrar:


Dark Romance – Age Gap – Haters to lovers – Casamento arranjado que termina
em desastre, e uma reviravolta surpreendente.
Este livro contém gatilhos emocionais e é destinado para maiores de idade.

Leia a nota da Autora.


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Nenhuma parte deste livro poderá ser reproduzida, transmitida ou gravada, por qualquer
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de 0,06/dia num mês.
Pense nisso!
SILVIE BASSET - Copyright
© 2024 – 1ª Edição

Capa, Diagramação e Edição: Silvie Basset


Revisão: Narjara Pedroso
Ilustrações: Tacyla Priscila – Lis Rodrigues
Olá, amiga leitora! É com imensa alegria e gratidão que compartilho este universo de
Máfia que criei com você.
Se você já me conhece, fico muito feliz por estar aqui comigo lendo nosso Príncipe
Mafioso. Agora se é seu primeiro contato com minha escrita, espero que este seja apenas o
primeiro dos meus livros que irá conhecer. Sinta-se à vontade para entrar e ficar.
Escrever a Trilogia Irmãos Moretto tem sido uma jornada incrível, repleta de desafios.
Minha esperança é que você sinta a mesma paixão e fúria que eu experimentei ao dar vida ao
meu caos.
Este é o segundo livro e pode ser lido separadamente, mas recomenda-se a leitura
sequêncial uma vez que temos mistérios que começam lá com o nosso Don. Ainda teremos o
terceiro livro, mas a história dos casais começam e terminam em cada obra.
Deixe a opção em seu kindle para atualizar automaticamente. Teremos algumas
alterações no correr de um mês por conta da revisão tardia. E fique tranquila, não vai interferir
em nada a história.
Alguns temas podem gerar gatilhos emocionais e levar o leitor para uma bad trip. Então,
por favor, preserve sua saúde mental e pare a leitura caso isso aconteça.
Teremos um anti-herói, pois estamos no mundo da máfia. Ele não foi criado para ser
bonzinho, e sua infância foi bem conturbada por ter uma mãe complicada.
Também há cenas de tortura, tráfico humano e assassinatos.
Mas Fausto Moretto vai encantar você, prometo!
Lembre-se que meus personagens possuem características reais. Não teremos príncipes
e princesas, mas situações desastrosas que podem acontecer no cotidiano. Tirando a loucura
envolvendo os ditames da máfia embelezada.
Mafioso que possui valores de moral e honra aparecem tão somente nos livros. Minha
opinião.

Agora, vamos para as ressalvas do PDM:


Número 1: Sou contra qualquer ato ilícito, violência, bem como a total submissão da
mulher (que salvo algumas vezes, são bem interessantes, rsrs).
Número 2: Vamos estar na Sicília, Itália, onde o idioma é italiano, e por isso coloquei
algumas palavras nesta língua com o intuito de provocar a sensação de estarmos de fato lá,
capisco[1]?
Número 3: Os cargos da Máfia serão tratados de modo diferente. Teremos o Don,
Sottocapo, Consiglieri, Caporegime, Tenentes e soldados. A nomenclatura será necessariamente
essa.
Logo mais será apresentado um mapa e uma árvore de hierarquia.
Número 4: Quando o núcleo familiar consistir em algo restrito ao capo será usado a
palavra clã, já quando abordar a organização criminosa como um todo, famiglia.
Número 5: Foi feito um estudo sobre investimento em Criptomoedas, mas as
informações relatadas no correr da trama não se adequam à realidade, sendo adaptadas da melhor
forma para dar à narrativa a congruência necessária.
Sou muito acessível e gosto do feedback das minhas leitoras. Se quiser deixar um
recadinho no pv das redes sociais, vou adorar.
Caso tenha algum erro, peço que faça a menção no campo destinado no próprio kindle
que a Amazon irá me notificar.
Espero que desfrutem da leitura.
Para quem quer um grande amor,
Você só irá encontrar,
Se começar a procurar.
Amar tem que ser fácil como respirar…
Quando você passa por cima de si pelo outro, não é amor.
MICHELLA ZANCHETTA

— Ele está olhando pra cá… — Valentina anuncia com ar conspiratório, mantendo o
sorriso nos lábios esticados. Mia cugina[2] possui muitos talentos, mas está longe de ser
ventríloqua.
— Pare de encará-lo, então — devolvo num cochicho, repreendendo-a. Tenho evitado
olhar para qualquer ponto aonde os irmãos Moretto estão, justamente para evitar os olhos
acusatórios do irmão do meio.
E estava tendo êxito… até agora.
Talvez os mais de 100 convidados para o aniversário de mia frattela[3] tenham ajudado.
Era para ser uma reunião íntima, mas vejam só… A esposa do Don não tem mais esse privilégio.
Não importa. Meu martírio aqui não é maior do que tenho sofrido depois de inventar a
mentira deslavada que Papà e Luigi acreditaram de pronto.
Claro que conseguir outro casamento vantajoso com mais um Moretto ajudou no
convencimento. Isso… ou apenas o trauma que o irmão mais velho causou em minha casa.
Quando digo minha casa, significa dentro de casa mesmo, mais especificamente no quarto de sua
noiva, que virou ex… e depois esposa de vez.
Santa Donna[4]… Dou um leve chacoalhar de cabeça para meus neurônios
desembaraçarem após a confusão mental causada pelas mudanças repentinas de estado civil de
mia frattela. Tudo aconteceu tão rápido.
Aquele maledetto Don Moretto merecia sofrer mais um pouquinho para compensar as
noites de choro de Tchesca.
Caspita![5] Aquilo corroeu meu coração. Mia frattela já havia sofrido por uma vida
inteira aos 14 anos, não precisava passar por outro tormento.
— Ele olhou de novo — cantarola, tirando-me do torpor e pegando a taça de espumante
da bandeja que acaba de passar por nós nas mãos de um garçom.
Engulo em seco, porém me mantenho de costas para o ponto que parece ser a obsessão
da noite de Valentina.
— Iiih… já era. Ele está vindo pra cá. — Minha cabeça move no automático para trás,
descobrindo que a narrativa do filme de suspense tornou-se realidade. Madonna delle ragazze
cattive, mi aiuta![6] Sinto o desconfortável calafrio que percorre toda a minha espinha toda vez
que este homem se aproxima. Melhor enfrentar o confronto de frente.
— Porcamiseria… — resmungo, virando-me lentamente e cabisbaixa para o inimigo:
Fausto Moretto.
Pressiono meus lábios numa linha fina, mordendo o interior com os dentes até o ponto
de doer e formigar a região. Che odio![7] É toda minha a culpa desta posição humilhante. Por
conta do noivado forçado, fito primeiramente os calçados lustrosos do novo Sottocapo[8] da Cosa
Nostra.
Mamma mia! O engraxate deve ficar uma hora em cada sapato para ofuscar a visão de
quem olhar, sendo consumida pela sensação de déjà vu. Em câmera lenta, subo a inspeção e…
tudo para. Fausto Moretto está ainda mais bello.
No instante em que alcanço seus olhos, meu coração parece sentir o furacão de sua
presença, acelerando as batidas e descontrolando meus pulmões que desaprenderam sua função
vital.
Cazzo![9]
O que faço?
Decido pelo mais sensato, claro…
Prendo a respiração até meu corpo aprender a se portar devidamente. Se minha alma
nunca foi obediente, imagine o corpo? Então, sinto a ardência em meu peito pela falta de ar.
Oddio! Nunca fui uma exímia nadadora, por isso solto o ar bufando bem na cara do infelicce. E a
humilhação sobe de nível. Merda.
Fausto vira o rosto para o lado, soprando um riso sarcástico repleto de promessas
maldosas.
Dio Onnipotente[10], nunca lhe pedi nada especificamente, mas agora peço que o chão se
abra e me engula. Fecho os olhos no automático, esperando ser atendida. Nada… dou até uma
batidinha com o salto-alto no assoalho. Oddio!
Como parece ser inevitável, abro as pálpebras e esboço meu melhor sorriso sem dentes.
O homem mais gostoso que já vi na face da Terra passa as mãos na barba rala, perfeitamente
desenhada no rosto, me analisando como se fosse um experimento.
— Chiao…[11] — murmuro baixinho, soltando uma risada sem graça e aguardando a
loira ao meu lado tomar a atitude certa e me arrastar para longe. Meus movimentos tornaram-se
lentos demais, pois quando movo a cabeça em direção à Valentina, Fausto avança em meu
espaço pessoal ficando a menos de um metro de distância.
— Signorina[12] Valentina, incomoda-se em me deixar a sós com minha noiva? — ele
pergunta sem tirar os olhos de mim.
— Claro que não Signore Moretto. — A danada aperta meu braço como se fosse um
alento. Todavia, continuo a me sentir como a ovelha que segue para o abatedouro.
De imediato e num impulso de sobrevivência seguro a mão de Valentina, implorando
sem palavras. Mia cugina[13] responde inclinando-se até meu ouvido.
— Estamos numa festa, com vários convidados e todo seu clã, cara mia. Agora é a hora
do “ou vai ou racha”. Converse com a versão do mafioso-nerd e depois me conta tudo —
sussurra rapidamente e em seguida faz uma pequena reverência ao príncipe do submundo,
afastando-se e me abandonando.
Não! Quero gritar com a stronza[14], mas adivinha? Não posso. Nem percebo quando
libero um pequeno rosnado, dando-me de cara com o diabo. Dou aquela risadinha idiota,
mastigando todos os meus dentes que rangem com a pressão que faço com o maxilar.
Ah… Valentina. Você me paga!
— Tua cugina[15] é esperta — declara, bebericando da bebida avermelhada. Ele passa a
língua no canto da boca limpando o resquício do líquido e me hipnotizando por um breve
momento. A imagem da língua de Fausto Moretto percorrendo outros lugares, mais precisamente
entre minhas coxas e subindo… sinto toda minha região íntima contrair e…
Dou um tapa na testa, retomando meu juízo que fugiu com a imagem da ficção muito,
mas muito molhada que acabo de vivenciar.
Dio Santo! Esses Moretto devem ter alguma forma de canalizar a sedução do mundo
inteiro. Será que aprenderam isso quando foram iniciados?
Respiro fundo e o encaro, de novo a presença imponente e o olhar profundo aceleram as
batidas do meu coração.
Por que Valentina não ficou aqui comigo? Merda!
Ela e mia frattela pensam que esse casamento é uma oportunidade única para fugir de
todos os problemas. As ragazze[16] sabem que a mentira saiu num rompante de desespero no
segundo que ouvi sobre meu casamento com Alessio. Por isso, preciso esclarecer tudo com o
espécime masculino que saiu de uma revista da Vogue, e assim conseguir que seja meu aliado e
mantenha o compromisso até Valentina conquistar nostro cugino[17].
Depois pode me dar o pé na bunda.
É simples, não é? Não me importo de ficar como a figlia rejeitada. Será inclusive um
argumento para insistir com Papà a me deixar continuar com os estudos. Quem sabe ir para a
Università Moda-Design em Milão[18]? Este sim, seria um sonho realizado.
— Então, cara noiva, estou curioso… — Fausto me encurrala na parede. — O que seria
um beijo escandaloso?
Oddio! Ele está muito perto. Meu útero deve ter torcido, pois lembra daquela
pressãozinha no baixe ventre que nos faz perder qualquer lingerie? Então…
Inspiro com força, querendo que o ar alivie a sensação de necessidade intensa. Cazzo!
Péssima ideia. Sou absorta violentamente pelo aroma amadeirado do perfume de Fausto. Perdi a
calcinha.
— Não sei do que está falando — replico, sentindo minhas bochechas ficarem
vermelhas no instante em que a mentira espirra para fora.
— Algo me diz que você sabe. — O sorriso presunçoso acompanha a inspeção
minuciosa do meu corpo. Sim… ele realmente sabe. Arg! Por que Dio… por que os stronzi[19]
precisam ser tão atraentes? — Se não me engano foram essas as palavras que tuo padre[20]
mencionou para me coagir e firmar o noivado.
Coagir…
Ma che succede?[21]
Franzo o cenho no instante que tomo consciência da palavra agressiva. Não deveria,
mas me sinto momentaneamente ofendida.
Oras… Ele iria precisar de uma noiva a qualquer momento. Qual o problema de ser
comigo?
O acidente com minha necessaire que o deixou alguns dias com um hematoma na região
dos olhos foi realmente isso, um acidente. Será que ele não superou?
Cesso![22]
Papà pode ter sido um pouco exigente ao conversar com Giulio. É compreensível.
Agora, coagir? Esta conduta significaria ameaçá-lo, impondo uma consequência, no caso o
duelo no Anello di Cottello[23]. Ele precisaria sentir-se ameaçado para aceitar o noivado? Bufo o
ar com desprezo.
— Coagir? — indago debochada. — Até parece. Você precisa se casar um dia e sou um
ótimo partido, saiba disso — acrescento, soando ultrajada e me viro para escapulir o quanto
antes. Será que colou? Espero que sim. Não é o momento e nem o local adequado para esclarecer
tudo.
Tenho um milhão de motivos para evitar a discussão com mio sposo oggi.[24]Primeiro,
porque Fausto não se demonstra apto a ouvir minhas explicações; segundo, e, principalmente,
longe dos olhares curiosos do Consiglio dell Damigelle[25], que aparentemente possui alguns
membros muito interessados no que está acontecendo.
De repente sou privada de escolha, pois mio sposo me segura pelo braço.
— Nem pense em fugir, Colibrì[26] — sussurra, assoprando as palavras na curva do meu
pescoço. Prendo a respiração conforme um arrepio gostoso percorre toda a extensão da minha
espinha. O apelido idiota me estacando no lugar, ele só me chamou assim…
— Quem disse que estou fugindo? — contesto baixinho. — Só não sei responder à sua
pergunta. Talvez possa fazê-la a uma das donne[27] viúvas que consolou mês passado. — Aii,
merda. Por que falei isso? Nem tenho direito de cobrar fidelidade do infelicce. E per favore…
Colibrì? Eu lá tenho nariz pontudo para parecer um Colibrì? Oddio! Non ne me frega niente[28].
Preciso apenas sair daqui, por isso sigo o repertório fajuto. — Elas com certeza saberão
responder, e até lhe dar amostras do ato escandaloso que procura. — Mordo a língua para evitar
maiores danos.
Che succede[29]comigo? Eu realmente estou sentindo cada palavra. Madonna di Ragazze
Pazze, mi aiuta![30] Estou me comportando como uma noiva enciumada!
Balanço a cabeça e esbravejo algumas palavras sem sentido, tentando colocar um pouco
de senso em meu cérebro que foi possuído por um ser demoníaco e doido.
— E se eu quisesse me casar com uma das donne[31] viúvas, hum? — Fausto permanece
segurando meu braço. — Você, Colibrì, me tirou a opção de escolha, não? Sem contar que elas
são mil vezes melhores do que uma mentirosa, ainda mais uma que não sabe mentir. — Engulo
em seco, já que ele tem toda razão. Agora é o momento de contar a verdade?
Se eu retrucar que foi por uma boa causa, hein?
Será que esse Sottocapo é benevolente?
Estudo-o com uma careta engraçada numa mistura de desculpa e confusão. Oddio![32]
Não me sinto em pleno domínio de minhas faculdades mentais.
— Eu não sei como é… — Não disse? Maluca de pedra, uma vez que não consigo dizer
outra coisa a não ser a resposta da primeira pergunta.
— O que você não sabe? — Olho para Fausto, refletindo se maluquice se transmite
como vírus. Ele esqueceu o que me perguntou?
— Como é um beijo escandaloso. — Dou de ombros, declarando outra mentira. Não sou
principiante no quesito beijos, afinal. Pisco algumas vezes e estudo as feições de Fausto que se
modificam, indicando com clareza a mudança de pensamentos. Seu olhar é tão intenso que me
deixa constrangida. E olha que é bem difícil, viu?
Então, a mão que estava em meu braço começa a me puxar e sou arrastada do salão de
festas. Porcamiseria… Fodeu.
— O que você está fazendo? — pergunto, mantendo um sorriso falso quando passamos
por alguns dos convidados. Ele também acena, mas não deixa de caminhar.
— Te levando para um lugar mais reservado — responde, acenando discretamente para
o irmão caçula que pelo visto entende o gesto. Percebo quando Max se aproxima de alguns
soldados que se colocam como uma barreira da visão de Papà e Luigi do local pelo qual estamos
passando.
Madonna mia, é agora o momento de enviar um anjo salvador, va benne?
— Eu não posso ir com você para fora da festa — afirmo, numa tentativa inútil.
— Não vamos para fora da festa. Vamos apenas para outro ambiente. — Avisto o arco
de entrada e rezo mais uma vez. Nada. Olho para o teto agora brava com todos os santos da
igreja.
Cazzo! Io sono una brava ragazza,[33] não sou? Outra mentira…
— É o mesmo do que para fora — digo.
— Detalhes.
Atravessamos um corredor amplo e subimos rápido demais a pequena escada na lateral
direita. Fausto me arrasta mais um pouco até alcançar o primeiro patamar do andar superior.
Estou sem fôlego já que praticamente corri para acompanhar os passos largos do Sottocapo.
Finalmente, Fausto estagna de súbito, fazendo-me desequilibrar e buscar apoio em seu
corpo. Então, os segundos não são mais contados, o barulho da festa é silenciado, o chão parece
areia movediça e… ao alcançar os olhos escuros estou completamente fodida.
Mio sposo não espera que me recupere tão logo me encosta na parede oposta com um
baque. Estamos praticamente em um ponto cego para quem sobe, mas completamente expostos
para quem tomar o caminho do piso superior sentido descida. Olho para cima e sobre o ombro do
meu raptor, verificando se há mais alguém.
Grazie Dio[34], não vejo ninguém.
Na sequência, fito Fausto sem entender não apenas porque ele me trouxe aqui, mas o
que me levou a segui-lo sem pestanejar. Eu poderia ter puxado meu braço do seu agarre,
chamado alguém, inventado outra mentira… Mas nãaooo… Eu o segui por livre e espontânea
vontade.
— Por que me trouxe aqui, Fausto? — pergunto num fiapo de voz, caindo o olhar para
sua boca desenhada e totalmente beijável. Meus olhos estão travados nos lábios carnudos
emoldurados pela barba perfeita, que percorre todo o maxilar quadrado e me hipnotizam com
facilidade. Como queria sentir em meus dedos a aspereza dos pelos aparados…
Madonna, estou enlouquecendo.
— Porque você precisa saber… — Ele desliza o indicador por minha clavícula,
deixando uma trilha de lava quente com seu toque na epiderme exposta pelo decote do vestido de
crepe.
— O quê? — Estou possuída. É isso… minhas cordas vocais conseguiram vibrar de um
jeito que nunca ouvi antes.
— O que é um beijo escandaloso. — Sem me dar um segundo para pensar, Fausto
colide nossas bocas e invade meus lábios com sua língua exigente. Meus braços o envolvem pelo
pescoço tão somente para dar equilíbrio. Sim. Só por isso meus dedos se engalfinham nos fios
sedosos de seus cabelos escuros e tecem o desenho do corte alinhado em sua nuca. Oddio!
Ele chupa, mordisca e lambe meus lábios de modo a me fazer desejar que sua boca
percorra um caminho além do meu rosto, mas do meu corpo todo.
Fausto segura minha cabeça, movimentando para os lados numa dança ensandecida de
puro desejo. Mal consigo respirar e mesmo assim não quero parar. Ofego, e ele diminui o ritmo,
sugando minha língua uma, duas, três vezes.
A mão que aperta minha cintura começa a subir até alcançar o meu seio, roçando na
parte inferior como uma taça. Ele massageia, reconhecendo o tamanho conforme movimenta a
palma. Gemo baixinho em sua boca.
Dio santo, estou perdida.
Seus lábios continuam me consumindo e a língua me invadindo e me tomando
impiedosamente.
Meu quadril se projeta para a frente inconscientemente, querendo sentir o atrito do seu
sexo nem que seja em meu abdômen. Quero saber se está tão excitado quanto eu estou.
A mão de Fausto passa a esfregar sobre o tecido meu mamilo que intumesce ainda mais
com a fricção. Pressiono as coxas, querendo mais… mais de mio sposo. Mesmo que seja só
agora… só… mais um pouco. E então, ele se afasta.
— Pronto, Colibrì — Fausto pausa o beijo, dando apenas um último selinho antes de me
soltar por completo e dar um passo para trás, deixando o inverno capturar o momento de verão
que acabamos de vivenciar. Não. Avanço e ele me segura no lugar. Che succede?[35]— Agora
você sabe.
— Sei o quê? — questiono com a voz rouca de desejo, e avanço, tentando diminuir a
distância dos nossos corpos. Ele me mantém no lugar com o espaço indesejado entre nós,
segurando-me pelo ombro.
— O que é um beijo escandaloso. — A atmosfera de sedução desaparece de imediato.
O quê?
Fausto parece totalmente composto como se nada tivesse acontecido segundos atrás.
Não há mais o sorriso sarcástico, muito menos o olhar de luxúria. Ele simplesmente disse aquilo
sem sorrir e mostrar qualquer emoção. Cazzo!
É como se tudo que fez até agora fosse algo mecânico e sem importância alguma?
Tenho a impressão que acabo de vivenciar um surto psicótico que criou a experiência de
beijar Fausto Moretto.
Levo uma das mãos na lateral do rosto, apoiando e esfregando-o, recapitulando as cenas
que acabei de protagonizar. Foi real? Porque a feição do homem em minha frente não é a mesma
daquela que vi há pouco.
— Acredito que agora posso assumir o compromisso de modo apropriado. Não queria
estar sujeito a um noivado sem que minha noiva soubesse pelo menos o significado de sua
mentira — declara, puxando as mangas do terno e ajeitando a gola que devo ter bagunçado.
Então… não estou maluca. Aconteceu de verdade. Não estou maluca. Acabo de
realmente beijar Fausto Moretto. Mas…
— Ma che dici?[36]— questiono para ter certeza de o Testa de minchia[37] ter falado
realmente o que ouvi. A fúria tomando conta do meu interior.
— Exatamente o que ouviu — devolve, subindo o olhar que estava em suas vestes.
— Você é… — esbravejo.
— Um monstro? — emenda minha fala. — Fui criado para ser pior. — Encara-me com
desprezo. — Espero que tenha sanado sua dúvida sobre o beijo. — Ele se vira para começar a
descer as escadas. Stronzo. Como fui me iludir sabendo que ele é tão ruim quanto o irmão?
Ah… só que eu não sou nada parecida com a Francesca. Então, antes que me dê as
costas por completo contraponho:
— Não. — A negação seca chama sua atenção.
— Não? — Fausto ergue uma sobrancelha, me encarando sobre o ombro.
— Não. — Desencosto da parede e ajeito a saia do vestido. Em seguida, passo à frente
do príncipe da Cosa Nostra para iniciar a descida de volta à festa. O homem altivo acaba de criar
raízes no lugar, uma vez que fica imóvel. — Você não sanou minha dúvida. Apenas mostrou que
beija mal pra caralho, isso sim. — Limpo os cantos da boca. — Espero que tenha aprendido algo
na pequena lição de hoje. — Apresso-me para descer os primeiros degraus antes que ele saia do
transe. Meio segundo depois, ouço-o resmungar “come sei sboccata[38]”.
Desço ainda mais rápido.
Se o maledetto me alcançar e me prensar daquele jeito na parede de novo não vou
resistir, e ele vai ter certeza do que já sabe…

Que sou uma completa mentirosa.


MICHELA ZANCHETTA

Arg! Cazzo! Como é frustrante isso!


Existem dias que a inspiração vem como água saindo da torneira, agora… merda. As
linhas traçadas mais parecem riscos sem sentido sobre o papel e, para variar, se transformaram
em um labirinto sem saída.
De manhã, o modelo parecia estar pronto em minha cabeça… mas agora, aqui estou eu,
segurando a porra da folha repleta de rabiscos.
Rasgo novamente e amasso na sequência, jogando na lixeira como exímia jogadora de
basquete que me tornei. Poderia até orquestrar uma música com os sons que estou fazendo no
quarto, ora rasgo, ora rosno, ora jogo a bola de papel no lixo. Tudo bem que este último nem
sequer faz barulho.
— Arg! — Atiro o corpo no espaldar da cadeira, completamente derrotada. Minutos se
passam até que respiro fundo, puxando o MacBook e buscando as novas tendências da estação e
depois altero a busca para os vestidos mais opulentos do século passado. Parece absurdo, eu sei,
mas esses pedidos especiais são para as damigelle[39] da Cosa Nostra, por este motivo, funciona.
Aos poucos a ideia vem surgindo, então reinicio o processo de criação, traçando
primeiramente o corpo esguio que passei a utilizar como padrão nos meus croquis, delineando o
rosto delicado e olhos expressivos que lembram uma das mulheres mais bonitas que conheço.
Minha escrivaninha do quarto passou a ser uma confusão de papéis, pincéis, draw pencil
das mais diversas cores, expondo de roupas sofisticadas até uma calça de alfaiataria com apliques
de jeans e lantejoulas. Todos são de minha autoria, porém a assinatura é um nome
completamente diferente de Michela Zanchetta.
Jamais pensei que um dia me chamaria Éloise Dufour, mas este é o nome artístico que
mammina e a Signora Affonso sugeriram para acobertar todos os meus segredos, uuh…
E eu acatei de pronto por achar o máximo. Rio sozinha, pegando a caneta pincel na cor
alaranjada para finalizar alguns detalhes.
Minhas tardes das férias de verão não têm sido consideradas férias. Afinal, tenho
trabalhado e sinceramente, nunca me senti tão bem quanto nos momentos em que estou criando
os modelos solicitados pelas clientes da loja.
Quem diria que uma brincadeira se tornaria oficialmente meu ofício, e muito mais, um
sonho idealizado. Só não sei, se possível. Não agora…
Sempre gostei de circular pelos salões, absorvendo o deslizar dos diversos vestidos e
detalhes que cada donna usava nos eventos da famiglia.
Desenhar era meu hobby, que ninguém sabia. Ficar trancafiada dentro de casa me fez
inventar e reinventar métodos para não enlouquecer, sendo os rabiscos em cadernos o que mais
me dava prazer.
No entanto, eram desenhos vazios e sem formas definidas. Eu simplesmente desenhava
aquilo que via, até que um dia, lembrando dos detalhes do vestido de noivado de Francesca, saiu
o primeiro croqui.
Claro que aprimorei o modelo retirando o excesso de babados que finalizava o topo do
corpete, colocando um decote com um “v” profundo entre os seios. Fiquei envaidecida pela
criação ao mesmo tempo que tive medo, pois quem iria usar algo tão sensual dentro do nosso
meio?
Foi o primeiro segredo.
Dali em diante, não parei mais e passei a me dedicar em modelos que talvez… digo
talvez, pudessem se encaixar nos padrões da famiglia.
Então, mia frattela se casou. Sabia que iria me sentir sozinha com sua ausência, pois ela
já havia passado alguns meses fora por conta do pequeno intercâmbio que fora obrigada a ir. No
entanto, também sabia que logo retornaria.
Agora com o casamento imediato, não houve esse retorno. E eu havia perdido Francesca
para o maledetto Moretto. Hunf… Bufo com raiva ao me lembrar do que nostra Piccola[40],
passou. Foi quando enlouqueci e passei a desenhar 1.888.888 modelos diferentes de vestidos,
esboçando os traços do rosto de mia frattela.
A saudade era grande demais. Precisava ocupar minha mente com algo para afastar a
solidão que doía em meu interior. Em nossas chamadas de vídeo diárias, ela sempre dizia que
estava bem. Mas eu sabia melhor. Ela não estava.
Fiquei descuidada, e o excesso de croquis esparramados pelo quarto facilitou a
descoberta por mammina. Entrei em uma crise de pânico quando Signora Zanchetta pegou
justamente um dos modelitos mais ousados para examinar.
— O que é isso, figlia? — perguntou, franzindo o cenho. Oddio! Tinha acabado de sair
do banho quando a flagrei examinando a folha de papel. Pensei que ficaria de castigo por um
mês e minha viagem à Palermo para finalmente passar alguns dias com Tchesca ia ser cancelada.
— É-é que… — gaguejei, querendo ter os poderes do Flash quando ela vasculhou o
quarto e encontrou os demais croquis. — É meu escape, mammina. Faço para me distrair e… —
Dou de ombros. È finita[41]… estava condenada.
No entanto, mammina esboçou um sorriso e passou a analisar os demais desenhos com
mais afinco conforme encontrava-os, alguns caídos no chão e outros em uma pilha sobre a
escrivaninha.
Naquela tarde, fomos até a loja da Signora Affonso, uma das boutiques favoritas da elite
de Messina e que frequentávamos com frequência.
Ao chegar à boutique, Signora Zanchetta apresentou meus croquis e solicitou para ver
os tecidos que dessem o melhor caimento na confecção dos vestidos. Perguntou constantemente
minha opinião e, no evento seguinte, eu e mammina exibimos com glamour os modelos
desenhados exclusivamente por mim.
Era isso…
Mammina embarcou em meu navio e escolheu não a proa, mas uma das cabines com a
melhor vista em alto mar.
Eu gostava dos meus croquis e estava extasiada por mammina gostar também. Mas a
exigência de algumas damigelle indagar sobre quem era o designer por trás da obra-prima me
envaideceu de um modo diferente.
Elas queriam os meus vestidos!?
Signora Zanchetta apenas informou o local no qual haviam sido confeccionados. A
aparição na sequência de muitas donne[42] da famiglia querendo algo parecido fez com que a
pequena Signora, proprietária da Boutique me procurasse sugerindo uma parceria. Mammina só
permitiu se eu continuasse anônima, por conta de ser prejudicial à minha imagem ter um trabalho
remunerado, já que donna del famiglia [43]não trabalha. Aff.
Como gostaria de não ter nada a ver com a famiglia.
Non me ne frega um cazzo.[44]
As três batidinhas suaves na porta tornaram-se o código secreto que mammina inventou
para indicar a entrada de algumas pessoas que tomaram conhecimento do nosso segredo. Se são
quatro sons mais espaçados, preciso esconder o máximo que consigo dos croquis.
Claro que uma dessas pessoas é Valentina. Mas não é ela que mammina anuncia,
levando em conta que mia cugina[45] saiu há pouco menos de meia hora daqui de casa. A
presença ilustre que veio me visitar trata-se de alguém que ainda estou me acostumando a
conviver.
— Figlia? — Anunciatta Zanchetta aparece receosa, abrindo a porta até que tenha uma
brecha onde passa apenas a sua cabeça. — Signorina[46] Spadotto…
— Sì, mammina… já sei quem é — interrompo-a, expirando o ar enfadada. Gesticulo
com a mão para que abra totalmente a porta e nossa convidada nada quista entre.
— Grazie, Signora — Erica Spadotto aguarda a autorização para adentrar, a princípio
mais reservada, até que mia mammina acena, dando um sorriso de compreensão antes de sair. É
então que sua postura muda e vejo a pessoa cheia de si que todas nós conhecemos. Há pouco
recebi sua mensagem de que estava a caminho.
O que Luigi vê nessa ragazza?
Ele pode dizer um milhão de vezes que não tem qualquer interesse na filha do Tenente
de Milazzo, mas sair com ela e boicotar alguns de seus encontros furtivos demonstram o
contrário. Por que sei disso?
Adivinha?
Fiquei íntima da ruiva… penso com ironia.
A metida olha ao redor como se fosse a proprietária inspecionando o local. Logo
encontra a pequena poltrona e arremessa a bolsa Louis Vuitton, vindo até mim e examinando
sobre meu ombro o modelo que acabo de finalizar.
Não tenho tempo de pensar quando sinto o papel ser roubado de minhas mãos.
— Ei! Ainda preciso… — tento em vão capturar de volta.
— No, principessa,[47] não precisa de mais nada. — Se não fosse o sorriso satisfeito em
seus lábios que afagam meu ego, juro que poderia levantar e entrar numa briga com ela por
vários motivos.
Um deles é essa forma que a infelicce passou a me chamar quando ficamos… íntimas?
Ela é uma princesinha tanto quanto eu. A garota possui tantas regalias quanto todas nós.
Enfatizar o título falso que a famiglia nos confere de início foi mais para me provocar, posto que
odeio não ser como todas as outras ragazze. Contudo, com os meses de convivência o tal apelido
meio que ficou e me acostumei com ele.
No creo[48]. Mas Valentina tem razão ao afirmar que essa ruiva veio para ficar entre nós.
Erica Spadotto é metida, arrogante, sem noção e poderia continuar tecendo-lhe mil e um
elogios similares. Entretanto, só faz mal para ela mesma. O fato de sair com vários uomini da
famiglia é indício do que afirmo. Por quê?
Máfia e machismo dentro da Cosa Nostra fizeram um pacto para viverem em conjunto.
Quer sobreviver como mulher e sem ter o corpo encontrado em uma praia por afogamento? Ande
na linha.
Ela poderia escolher pelo menos outsiders[49]. Mas não…
Tenho a impressão que quer provocar seu Papà toda vez. Não posso afirmar com
certeza.
— Gostou? — indago, mordendo o topo da caneta-pincel. A ruiva faz suspense com um
biquinho, até que o canto do lábio direito sobe num sorriso enviesado que finaliza com aquela
piscadinha charmosa.
Acabo ruborizando, pois Erica consegue flertar com todo mundo, incluindo comigo às
vezes.
Não que ela tenha algum interesse sexual, entenda. É um flerte natural da ruiva.
Estico os braços e as pernas para frente, alongando o corpo que passou muito tempo
sentado.
— E o outro? Conseguiu colocar os apliques? — A ruiva fala já se dirigindo ao meu
closet. A ragazza viu não sei onde uma blusa frente única branca com detalhes em renda preta, e
claro, me enviou a título de inspiração.
Ela e Valentina me colocaram como sua modista particular. Se veem uma roupa que
gostam, enviam para mim e pedem que desenho um modelo exclusivo.
— Sabia que esse serviço é pago, não sabia? — reclamo com entonação brincalhona.
— Estou apenas te ajudando a aprimorar o ofício — replica, ainda na busca entre os
cabides. — Aaaah! Achei! — diz empolgada e em seguida me olha com cara emburrada. — Por
que tinha que esconder tanto?
— Porque não uso roupas assim e Valentina queria pra ela.
— Não mesmo! Eu que fiz a encomenda. — É mole?
— Se é encomenda, cadê meu pagamento?
— Hunf… desaforada. Sou sua modelo. O trabalho também é meu.
— Arg… não acredito por que tento. Anda, veste logo pra gente ver como ficou. — A
ruiva dá alguns pulinhos e se aproxima da cama, tirando rapidamente a camiseta babylook preta.
Tento não olhar diretamente para ela, o que me faz ver o reflexo de suas costas no espelho atrás
dela.
— O que é isso? — Levanto muito rápido e quando dou por mim estou virando a ruiva
para examinar a pele repleta de hematomas. Ela arfa quando passo os dedos sobre um dos
ferimentos e tão rápido tirou está colocando novamente a peça de roupa.
— Não é nada — ela hesita. — Caí de moto.
— Desde quando você pilota uma moto?
— Quem disse que estava pilotando?
— Deixa eu ver direito. — Tento puxá-la, mas a ruiva se esquiva.
— Não. Não é nada. Juro. — Seu olhar piedoso me faz parar o interrogatório. Aquilo
não eram marcas de uma queda, mas sim de pancadas feitas com o mesmo objeto. — Olha, pode
dar a blusa para Valentina, mas prometa que não vai dizer nada a ninguém, Sì? — Ela estende a
peça de roupa para mim.
— Eu… não vou. E… a blusa é sua, Érica — falo, e começo a ajudá-la a vestir a peça
encomendada. Não sei o que aconteceu com essa ragazza, mas a convivência forçada tem me
mostrado versões que me deixam confusa. — Vo-você deveria contar para alguém sobre…
— Pra quem, hum? Mio padre? — Ela bufa um riso irônica. — Madre?
— Não, Erica… — Pressiono meus lábios, pensando se iria me arrepender do que
estaria por vir. — Para Luigi.
— Não! — A ruiva foi tão rápida que até me assustou. — Luigi jamais pode saber, va
benne?
Sabe aquele ditado: falou do diabo… Então…
— O que eu não posso saber? — Mio fratello, que ocupa praticamente o batente inteiro
da porta do meu quarto, indaga. No mesmo segundo, sou posta como uma barreira entre ele e a
ruiva. Se não conhecesse Erica Spadotto muito bem, diria que a ragazza está com medo.
Olho por cima do ombro para ela que ainda me usa como a muralha da China e depois
encaro o homem alto, de cabelos escuros e olhos tão verdes quanto os de Francesca.
Luigi parece expelir dardos de fogo em direção à ruiva que se encolhe toda num
primeiro momento. Depois, ela fecha os olhos com força e respira fundo, sendo tomada pelo
espírito da donna com a qual estou acostumada.
— Não é da sua conta.
— A Erica caiu de moto. — Não me julguem. As palavras eclodiram da minha boca,
tanto que levei as duas mãos para conter o restante. Os dardos flamejantes acabaram de se
teletransportar dos olhos de Luigi para os da ruiva. Oddio! Dou um passinho para o lado para sair
do fogo cruzado.
— É mesmo? — Luigi soa sarcástico, passando uma mão sobre o queixo enquanto
caminha para dentro do quarto. Cazzo… meus desenhos, penso. — E quando você aprendeu a
pilotar uma moto? — indaga. Ótimo. Seu foco ainda é a ruiva.
— No mesmo dia que você não quis me levar para casa na sua. — Ela responde
malcriada, terminando de vestir a blusa frente única e pegando sua bolsa em seguida. Olho para
mio fratello que está bufando com as narinas alargadas. Madonna mia! Vai acontecer um
apocalipse no meu quarto. — Quem sabe da próxima vez você não aprenda a me atender quando
pedir, hum? Aí eu posso cair da moto com você.
Dio mio. A ruiva não tem amor à própria vida?
Ela passa por ele e, quando penso que a cena de dorama com atores nada coreanos, vai
terminar, Luigi a segura pelo braço. É… a catástrofe será grande.
— Eu não deixo ninguém em minha garupa cair. — Luigi a olha dos pés à cabeça.
Caralho. — E você não é o tipo de ragazza que sobe na minha moto.
Pela segunda vez sinto compaixão por Erica Spadotto hoje. Ela pressiona os lábios
numa respiração sôfrega, desmontando a pequena guerreira que havia assumido para enfrentar
Luigi. É nítido o brilho nos seus olhos contendo as lágrimas.
— E nunca vou ser… — Sua voz sai baixinha, tão melancólica que parte meu coração.
Logo após, ela puxa o braço de volta e sai do quarto tão rápido quanto um vendaval. Luigi ainda
está no transe que suas últimas palavras o colocaram
Aproximo-me vagarosamente e mesmo diante da diferença de altura consigo acertar-lhe
um tapa estralado na nuca.
— Aiii, frattela… Che Succede?[50] — indaga esfregando o local.
— Que porra é essa, stronzo? — Cruzo os braços sobre o peito. — O que foi isso? Por
que tratou a ragazza assim?
— Não se intrometa, Chela. Não é assunto seu.
— Não é assunto meu… — Faço uma voz grossa imitando com desdém sua fala. — Se
você é um uomono decente, vá atrás dela.
Ele expira o ar de modo sonoro, deixando os ombros caírem.
— Não posso…
— Hum? — murmuro. E quando Luigi se dá conta de que disse em voz alta me encara,
passando a analisar ao redor. Merda, nitidamente buscando a saída mais fácil.
— Arrume o quarto e esconda os croquis, Signorina Eloíse, mammina chamou para o
jantar.
— Eu já vou guardar e… o quê?
— Pensou que não sabia? Pensa que não te vejo, frattela? — Luigi sorri de lado e eu
fico completamente em pânico. — Anda… não vou contar para Papà. Mammina me fez
prometer.
Deixo o corpo relaxar.
— Grazie.
— Mas não vou mentir se ele perguntar. Então, se não quer que Papà descubra como
eu…
— Va benne… va benne… entendi — replico. Luigi aperta meu nariz, fazendo-me
sorrir. Empurro sua mão e ele sai do meu quarto.
— Espero que tuo futuro marito permita esse novo ofício. Se fosse Alessio, com
certeza, deixaria.
— Casar com Alessio seria o mesmo que casar com você — digo, recolhendo alguns
dos papéis jogados pelo chão.
— De modo algum — Luigi ainda tenta insistir, mesmo Papà dizendo que meu
casamento é certo. Gesticulo com a mão dispensando-o. Felizmente, ele entende e desaparece.
Gostaria que mio fratello entendesse meus sentimentos. Mas para ele, casamento é
apenas uma negociação. E por estar sempre com Alessio, entendeu por bem se tornar cupido.
Nesse papel, os homens deveriam ficar de fora.
Apresso-me em pegar os desenhos e fechá-los na gaveta maior da escrivaninha. Tranco
com a pequena chave que é colocada em outra gaveta na mesinha de cabeceira. Solto um riso
sem humor, pensando em tantas gavetas e chave para esconder um segredo que pelo visto está
chegando ao conhecimento de outras pessoas.
Assim, não é mais segredo. Apenas algo sigiloso. Quem sabe um dia não saio em uma
revista de moda?
É… eu posso sonhar.
MICHELA ZANCHETTA - PASSADO

Minha mão escorrega por conta do suor, deixando escapar os dedos finos de Valentina.
Mia cugina solta um gritinho, assim que agarro novamente sua mão e puxo para me acompanhar.
— Acelera, Valentina! Ele já terminou de contar. — Ela corre assoprando o ar, ofegante.
Francesca e Luigi se esconderam do outro lado da mansão enquanto eu e Michela viemos para o
lado do jardim.
— Brincar de esconde-esconde aqui é mais difícil — Valentina reclama. — Tudo fica
longe.
— E é muito mais divertido. Tem mais lugares pra se esconder — pontuo, sentindo gotas
de suor escorrerem por minha testa. A festa começou ao meio-dia, e mesmo sendo metade da
tarde, ainda está quente. — Agora fica aqui. — Indico o espaço entre duas moitas com arbustos
vistosos. — Alessio não vai te encontrar neste lugar.
— Mas eu quero que ele me encontre.
— A brincadeira é esconde-esconde, Valentina. A ideia é o pegador procurar —
cochicho, recriminando-a. Às vezes essa paixonite de Valentina me irritava.
Tínhamos que aproveitar a chance de brincar, uma vez que mammina geralmente
implicaria conosco correndo por todos os lados. Mas para nossa alegria, o evento parece não
exigir a nossa presença. Na verdade, ela até sugeriu a brincadeira e empurrou Luigi e Alessio a
participarem para nos envolver.
Nem ao menos Signora Spadotto conseguiu negar para que suas preciosas filhas com
cabelos de fogo não entrassem na bagunça, quando lhe pediram com entusiasmo no olhar. Nunca
tive empatia com as ruivas como hoje.
Eu e mia frattela não gostamos das irmãs Spadotto por sempre se acharem melhores que
todo mundo. A mais velha inclusive, que é uns seis meses mais velha que Tchela, e pensa já ser
uma damigelle. Ragazza metida. Muito bella e arrogante na mesma medida.
Por um milagre, Erica e Elisa Spadotto conseguiram convencer sua madre para brincarem
conosco. Elas seguiram para o mesmo lado de que Luigi e Francesca.
Pelo visto, não apenas Signora Zanchetta não queria a presença de suas figlie no salão,
mas também a madre das ruivas. Não entendi. É um noivado como tantos outros. A ragazza
estava com cara de que chupou limão e o sposo bebia tanto que dava para ouvir suas gargalhadas
pelo salão inteiro.
Mio fratello acabou acatando à vontade de nossa madre, mesmo dizendo que não é mais
criança e logo será uma fatto del uomono. O ragazzo ainda tem 12 anos, mas se comporta como
se fosse o segundo em comando em nossa casa.
Ele será um dia, eu sei… Por ora, ainda é mia madre que manda. E por isso, com mais
gente participando, o esconde-esconde voltou a ser emocionante como alguns meses atrás, antes
de Dário, irmão de Alessio, completar 13 anos e ter ido para a iniciação.
Pobre Alessio tem sofrido com a ausência do irmão. Mio cugino nem sequer discutiu
como Luigi para entrar na brincadeira. Mio fratello será iniciado daqui dois meses e Alessio no
próximo ano.
— Valentina… — rosno seu nome em alerta. — A brincadeira é esconde-esconde e não
outra encenação de casamento que você inventou.
— Mas naquele dia… — Ela suspira. — Eu queria…
— Eu sei, eu sei… pedir Alessio em namoro. E você fez, não fez? — Ela assente com a
cabeça. — E o que aconteceu?
— Ele disse que somos crianças e criança não namora. — Valentina assopra a resposta
chateada. — Mas era para eu ser a noiva e ele teve que inventar de fazer o sorteio. Acabei sendo
apenas a madrinha e você que se casou com ele.
Expiro o ar com força, menos enfezada.
— Foi só uma brincadeira e eu jamais me casaria na vida real com Alessio. — Não
contenho a careta de nojo. — Seria o mesmo que me casar com Francesca.
— O Alessio é ragazzo — aponta Valentina com entonação para corrigir o equívoco.
Seria se não tivesse feito propositalmente. O parentesco de Valentina é mais distante que o meu,
mesmo sendo nostra cugina e melhor amiga minha e de Francesca. Alessio é filho do meu Zio
Demetrio, fratello de mio Papà, sem contar que não enxergo meu futuro como uma damigella[51].
Não consigo. O fato de viver para cuidar tão somente dos mios finglie e marito é
assustador. Então, prefiro pegar meus cadernos e desenhar um milhão de cenários que gostaria de
conhecer antes desse final infelicce.
— Está vendo… na minha cabeça ele não é o príncipe encantado como na sua. Agora,
não estraga a brincadeira e sossega aqui, enquanto eu vou correr para me esconder mais à frente.
— Empurro os ombros de Valentina para que se abaixe e saio em disparada para o outro lado,
ainda agachada. Estou parecendo uma sapa, Dio mio. Uma sapa muito rápida.
Quero aproveitar para brincar com os ragazze de nosso clã ainda quanto posso. Logo,
eles não serão os mesmos.
Tento não pensar muito no assunto. Mas sei que os ragazzi voltarão diferentes da
iniciação. Todos voltam. Essa parece inclusive a última festa na qual os meninos serão meninos.
Por este motivo mammina insistiu tanto.
Bom… pelo visto, oggi, todos nós somos igualmente crianças brincando ao redor da
mansão Moretto. O noivado deve ser importante para a famiglia, pois poucos possuem o
privilégio de usar a sede, residência do Don, para festas. Francesca disse que é algo a mais, ela
sabe, mas ela desconversou quando notou que prestava atenção.
Outro ponto no qual eu e mia frattela somos diferentes. Enquanto ela fica atenta a
qualquer movimentação para se inteirar dos assuntos que envolvem os adultos, eu prefiro ficar
no escuro.
A dor nos joelhos dobrados me traz de volta ao presente. Che cavolo![52] Por que merda
fui inventar de entrar nesse jardim?
Avisto mais ao lado outro muro verde com arbustos maiores. Será que é o tal labirinto?
Mammina nunca nos deixou vir aqui por ser um lugar proibido para as crianças. Olho para os
lados, procurando testemunhas. Nada.
Eu poderia entrar só na beiradinha e correr para me salvar assim que visse Alessio, não é?
Não espero ouvir a resposta da minha consciência quando sigo em frente e me posiciono
na primeira dobra de hera alta. Fico ali atenta aos sons de passos. Estou afastada da festa e
mesmo ouvindo alguns murmúrios de pessoas ao redor, é fácil distinguir o gritinho ardido de
Valentina quando Alessio a encontra.
Coloco apenas a cabeça para fora do esconderijo vendo a cena hilária do meu cugino,
tropeçando ao tentar pular o arbusto que Valentina passou por baixo e escapou em direção ao
ponto para se salvar. Alessio é rápido, mas parece se divertir com a perseguição, ou apenas está
indo lento para tentar encontrar mais de um. Eu…
Ah, não…
Ele que trate de correr atrás de Valentina. Cansei de ficar entre esses dois. Basta a
brincadeira idiota de casamento. Senti-me enojada e culpada ao pensar na possibilidade de me
casar com Alessio. Uma sensação horrorosa como se estivesse cometendo o maior pecado de
todos.
Tomada desse sentimento, caminho me esgueirando um pouco mais para dentro do
labirinto. Então, uma parede feita de hera volumosa se torna duas, viro à esquerda, e se tornam
três.
Madonna mia. Coloco uma mão querendo deslizar pela parede de folhas pequenas na cor
verde escura. Vi em algum lugar que era uma das formas para se sair de um labirinto. Se chegar
ao centro e ver um cálice reluzente vou correr para o lado oposto. Melhor deixar esse lance com
o Harry Potter.
Che merda[53] que fui fazer?
Consigo ouvir as vozes de todos que ainda se divertem na perseguição do esconde-
esconde. Ninguém irá parar para me procurar… ainda. E não quero gritar, pois se mammina
descobre que a desobedeci e entrei no labirinto proibido, nunca mais vou poder brincar nos
eventos.
Preciso encontrar o corredor por onde entrei.
Pensa, Michela… pensa.
Eu tinha virado à esquerda primeiro… ou foi à direita? Só não posso ficar parada. Ando
lentamente, observando a folhagem que ora é densa e outrora consigo ver os vãos, com vista a
outros caminhos. Cazzo. Que saia do outro lado, mas vou sair e correr para encontrar miei
cugine[54].
Continuo desbravando o desconhecido, sentindo-me quase uma Tomb Raider[55] se não
fosse o vestido amarelo, com pequenas margaridas e saia na altura do joelho rodada. Algumas
vozes mais grossas tornam-se nítidas conforme sigo pelo último corredor. Tantas bifurcações
antes para agora não ter nenhuma?
As vozes másculas e grossas parecem alteradas. Che cavolo! O espírito da Tomb Raider
misturado com o Harrry Potter acaba de ser exorcizado do meu corpo sem qualquer intervenção
do padre. Pronto.
O barulho de uma pancada oca me assusta e me faz saltar para trás. Estou com as mãos
sobre a boca. Dio santo, espero não ter gritado… Abaixo-me logo após querendo me esconder, o
que é impossível se a pessoa estiver no mesmo corredor. Salvo se tiver visão seletiva e enxergar
apenas da cintura pra cima.
Existe um pequeno buraco, de onde consigo visualizar a cena. Um rapaz de calça jeans,
jaqueta preta e cabelos longos está estirado no chão.
— Que porra você pensa que está fazendo, Maximus? — O sujeito de terno escuro, de
costas para mim, indaga. Na posição que se encontra, suponho ter sido ele a bater no filho caçula
de Don Moretto. Vasculho o lugar e noto a presença de um terceiro membro.
— Qual é, fratello? Estava comemorando. Duvido que nosso hacker de plantão ali não
passou o relatório pra você? — Fratello… estudo melhor os meios corpos que consigo ver. É…
estou assistindo uma briga entre os príncipes herdeiros da famiglia.
Caspita! Preciso sair daqui, antes que me notem ou estarei encrencada.
— É difícil manter a segurança do cugino Matteo quando está em nosso território, cazzo.
E você ainda o chama para uma cara[56]? — Agora é o outro irmão que fala. Acredito ser o tal
hacker, então… Fausto. De acordo com as investigações da melhor espiã do clã Zanchetta, mia
frattela.
— Estávamos com oito soldados — Maximus contrapõe, sentado com as pernas dobradas
em posição de meditação. Ele parece um ragazzo levando bronca, o que não deixa de ser
verdade. A diferença dos irmãos Moretto é três anos para cada, assim, provável que ele não tenha
mais que 17 anos.
Impossível viver neste meio sem saber a idade dos príncipes. Ainda mais quando todos os
amigos de Papà estao reclamando da assunção de Giulio como Sottocapo aos 23 anos.
— Não se trata da corrida em si, Max. Você saiu de madrugada e Matteo voltou, mas
você não. — Giulio soa mais preocupado. — Pelas suas pupilas sei bem onde esteve, stronzo.
Quer que nosso padre o veja assim?
Os ombros de jaqueta preta, muito estilosa aliás, caem derrotados. O que tem a ver as
pupilas? Será que o cazzo não dormiu?
De certo. Espeto meu dedo em um galho e arfo involuntariamente. Coloco o dedo na
boca e quando olho de novo o vão, vejo apenas Giulio erguendo Maximus do chão.
Aonde o nerd-mafioso se meteu? Dou de ombros e sigo agachada, passando a engatilhar
até estar distante da discussão de família.
Continuo com os olhos atentos ao chão de pedra até que a pedra seguinte é preta e muito
bem engraxada da mesma forma que a outra ao seu lado. Pior é notar que colocaram cadarços
finos para adornar. Os dois troncos que seguem acima encapados de linho cinza escuro são as
barreiras assustadoras que me impedem de seguir. Oddio!
— Levante-se — a voz grave e ríspida causa um arrepio esquisito por toda minha
espinha. Fecho os olhos, apertando minhas pálpebras o mais forte que consigo numa careta
enquanto obedeço o comando, levantando-me.
— Eu só estava brincando de esconde-esconde e entrei no labirinto sem querer, e aí não
conseguia sair, e quanto mais procurava a saída ficava pior e… — paro de tagarelar por conta do
silêncio, vejo olhos amendoados me fitando com curiosidade. Tampo os ouvidos para enfatizar a
afirmação seguinte: — Não ouvi nada. Juro.
A cabeça de Fausto Moretto se inclina para o lado e seu rosto impassível de qualquer
expressão.
Sabe a sensação de que vamos passar dos 11 até os 30 de castigo? Então, é capaz de Papà
fazer meu acordo de casamento incluindo o adendo sobre e mio marito me manter ainda mais
enclausurada.
— Por favor, só me ajude a sair… juro que não ouvi nada.
— Você é uma péssima mentirosa, ragazza. É bom aprender a mentir, se quiser
sobreviver na máfia — aconselha mecanicamente.
Abaixo a cabeça envergonhada.
— Scusa…[57] mas não é nada demais passar a noite fora para um fatto dell uomono —
replico, defendendo o seu irmão caçula. Queria eu ter a liberdade dada a ele.
— Não, não é. Agora venha. — Ele encara a tela do celular e caminha, passando em
minha frente e acenando para segui-lo. — Acho que você ganhou a brincadeira, já que todos
foram encontrados pelo ragazzo Zanchetta.
— Como você sabia? — Fito-o surpresa.
— Eu tenho olhos em todos os lugares da Sicília, Signorina. E quando estiver novamente
na segunda bifurcação do labirinto, siga para a esquerda ou acabará novamente perdida. — O
hacker obscuro informa, demonstrando que sabia onde eu estava todo o tempo.
Emito um som de espanto abafado por minhas mãos. Oddio! Quando dou um passo à
frente noto que saímos do labirinto. Ele segue em direção à festa e aponta para onde devo ir se
quero continuar como a ganhadora dessa rodada.
— Grazzie — digo baixinho e recebo uma piscadela de Fausto Moretto, seguida de um
leve sorriso. Ele é ainda mais belo quando sorri. Engulo um suspiro ao mesmo tempo em que
meu coração erra uma batida, então percebo que estou sendo analisada pelo príncipe da Cosa
Nostra. Dio Santo! Dou três murrinhos em minha testa para acordar.
— Chelaaaaa… você ganhou magrela, apareça! — O berro de Luigi me faz encolher no
lugar. Ai, merda. Bufo e me viro, pronta para correr naquela direção.
— Ei! — Fausto chama minha atenção, mostrando que ainda estava próximo. — Você
não é magrela. — Finalmente, não me sinto mais acuada como dentro do labirinto e minha
petulância habitual retoma meu corpo no instante em que contesto:
— Aprenda a mentir melhor, Signore Moretto, ou não vai sobreviver no mundo da máfia
— devolvo com a mesma piscadinha que recebi e corro dali, sem deixar de ouvir seu resmungo
baixo juntamente com um riso, “eu não minto”.
Madonna mia, o que foi isso?
Chacoalho a cabeça e apresso o passo, sem entender nada do que acabou de acontecer,
apenas com o conselho dado por um dos Moretto sendo repetido em minha mente: “Aprenda a
mentir…”.
Diante de tudo o que me espera, incluindo as indagações sobre onde me escondi, parece-
me um ótimo conselho, não é?
FAUSTO MORETTO

O barulho do teclado logo em frente tem sido a minha música favorita há anos. É aqui, no
quartel general montado num dos quartos do meu apartamento, que não me sinto um príncipe do
submundo, mas sim um rei.
Meu mundo é um emaranhado de códigos, telas brilhantes e uma teia de vigilância de
fazer inveja a qualquer sala da Europol. Sou o olho invisível da Cosa Nostra que tudo vê. Os
diversos monitores dispostos diante de mim comprovam esta afirmação.
Tenho a habilidade desde criança em fazer mais de uma coisa ao mesmo tempo, o que
facilita e muito o meu trabalho. Ainda mais quando preciso fiscalizar contas enquanto apago
rastros do mio fratello caçula.
Estou manipulando novamente vídeos das câmeras de segurança que captou imagens da
última gara di corsa[58]que Maximus participou. O cornuto[59] ficou fora de si após brigar com a
polizia que diz ser sua namorada, e pelo que pude entender, foi extravasar nas ruas da pior forma
que conhece.
Por um momento fiquei aliviado, pois esse romance entre Simona e Max tem prazo de
validade e não sei se mio fratello vai aceitar com facilidade seu destino; mas quando vi a merda
em que se meteu, preferi à polizia.
Não quero ter que me adiantar em rever relatórios médicos para atestar a saúde de
Maximus novamente. O relacionamento com uma outsider é fora dos padrões admitidos pela
Cosa Nostra, só que tem sido a salvação para a mente conturbada de mio fratello.
Quem sabe para ele e por ele possamos alterar o destino fadado à um casamento de
conveniências?
Se for possível alterar o fardo em se casar por obrigação para o clã Moretto, que seja para
Maximus.
O meu destino já foi traçado.
Suspiro enfadado com as lembranças que me levaram a buscar um anel de noivado para
outra noiva do clã Zanchetta, meu atual destino… a pequena mentirosa Zanchetta.
Escoro o queixo sobre a mão, encarando as telas, permitindo-me viajar até nosso último
encontro…
Os lábios entreabertos, os gemidos contidos, o formato arredondado do seio que senti
através do tecido daquele vestido que amaldiçoei diversas vezes por cobrir o corpo delicado e
perfeito de meu Colibrì mentiroso. Caralho!
As coisas que pretendo fazer com aquele corpo. Se ela soubesse que já sei como são seus
seios, será que permitiria um toque mais intenso? Será que conseguiria me controlar como no
aniversário de mia cognata? Cazzo. Nem sei como consegui soltá-la…
A danada parece saber que estou de olho em cada um dos seus passos e decidiu me
enlouquecer. Logo após a mentira que a fez minha noiva intensifiquei vigilância na casa dos
Zanchetta. E, em uma tarde quente, a maledetta inventou de fazer topless, por este motivo tenho
total conhecimento sobre os dois montes de pele e mamilos rosados da mentirosa.
Arg! Esfrego minha testa e tento recobrar o juízo. Minhas atitudes nunca foram insanas,
porém pensei em como poderia manipular situações para levar qualquer um que ousasse ver o
corpo do meu Colibrì num desafio na cutelaria.
Por pouco um dos soldados não a flagra desprovida da parte de cima da roupa de banho,
tendo a sorte de continuar com sua mísera vida. Sim, eu iria matá-lo. Felizmente, acionei a tempo
o jato do regador automático por onde o infelicce passava e, para a salvação de sua vida, ele
xingou alto, fazendo meu Colibrì se cobrir rapidamente, entrando na sequência em sua casa.
Nunca interferi na vida particular dos membros da famiglia, por mais que saiba muitos
segredos incluindo certas escapadas de algumas das damigelle. Só para constar, a maioria dos
cornuti[60] merecem os chifres.
Todavia, mia cara noiva desde o dia em que quebrou meu nariz tem sido minha ruína.
Sou tirado dos meus pensamentos pela pequena caixa de texto com cabeçalho vermelho,
o que indica que meu programa encontrou alguma divergência nas ramificações de contas
bancárias. Clico e demoro milissegundos até identificar quem fez a operação.
A Signora Adelia, irmã da falecida esposa do Caporegime Renzo Silvestri, parece ter
transferido um valor excessivo para a conta do seu afilhado que mora na Espanha.
Cazzo! Deveria ser proibido para membros da famiglia apadrinhar crianças dos orfanatos
que não sejam da Cosa Nostra. Respiro de modo frustrado ao notar que a conta parece estar
codificada. Vou perder mais tempo do que queria para descobrir se o ragazzo realmente está
usando esse dinheiro.
Talvez tente o novo malware[61] que enviei através dos e-mails do Grupo Empresarial
Moretto para todos os membros e associados. Foi o caminho mais fácil. Uma inofensiva
mensagem de publicidade para infectar todos os sistemas dos Caporegimes, incluindo as
máquinas de suas damigelle.
Trabalhoso? Com certeza. Porém, a prestação de contas fica sob controle, já que tenho
como confrontar os dados apresentados por todos.
Os números na caixa de mensagem começam a se multiplicar e outras informações vão
surgindo, se misturando com a tensão que preenche tudo o meu redor. Não existe ambiente
físico, apenas aquele gerado virtualmente que vai muito além das paredes do meu escritório.
Envio diversos e-mails e em seguida, puxo toda vida pregressa do investigado. Estudo, empregos
e… pronto.
O extrato do marmocchio[62] aparece na tela.
Verifico as despesas notando tratar-se de gastos que qualquer universitário teria. O
ragazzo parece muito econômico mesmo tendo a conta bancária recheada de euros. A somatória
extravagante coincide com a sua data de aniversário.
Um presente, talvez?
Ficarei de olho. Ainda não encontrei o início da teia que me colocou a buscar cada
transação, cada transferência, cada saldo, desde que os ataques se tornaram uma rotina em nossas
vidas. Tudo parece um quebra-cabeça sem solução.
Eu sou bom nisso, não há dúvida, mas alguém está vazando informações.
Alguém está conseguindo colocar uma barreira que tem nublado meus dados. Cazzo. As
contas finais batem, entretanto, existe uma curva torta no meio do caminho, como se o desvio
fosse mascarado para os valores coincidirem com os relatórios dos últimos carregamentos. Não
encontro o local exato dessa curva, mas estou perto.
Preciso descobrir…
Sem contar que os ataques persistem e ainda o assassinato de Papà está impune. Não há
rastro do atirador.
Quem matou Don Antonio Moretto sabia o que estava fazendo para conseguir escapar.
Talvez aproveitou a oportunidade… Talvez ainda está entre nós, ou talvez tem sido assessorado
por alguém de dentro.
Estou deixando passar algo.
Cansei de rever as filmagens que consegui das únicas câmeras localizadas próximas do
local.
Sei que Giulio se culpa por se afastar sem a cautela de ter pelo menos alguns soldados no
dia da morte de Papà.
Não foi sua culpa, mas sim do traidor que parece escorregar no vão de nossos dedos.
Sempre que conseguimos uma pista, algo acontece favorecendo quem quer que esteja por detrás
da falha nos números do nosso centro de custo.
Suspiro pesadamente, pressionando meus dedos contra as têmporas. Não que tenham
alguém tão bom quanto eu, mas as informações privilegiadas têm ajudado a dissimular as
atividades lesivas, bem como o assassinato do Don da Cosa Nostra.
Sinto meus olhos arderem pelo excesso de exposição às telas brilhantes. Verifico o
horário que indica um novo recorde de tempo que permaneci em meu QG, sem a interferência de
miei fratelli.
Entendo o motivo de Giulio, uma vez que passei a madrugada nesta sala e ele tem
assuntos muito melhores para fazer no período noturno. Contudo, Maximus… é novidade.
Passam das nove da manhã e ainda…
— Por favor, me fala que realmente tem um beija-flor de papel de parede na sua tela
principal e não estou alucinando? — A indagação surgida do nada me faz sacar a arma que
deixei ao lado do teclado e por pouco não atiro. — Ei! Sono io. — Maximus informa, de mãos
erguidas, mostrando os dentes num sorriso maroto.
— Já passou por sua cabeça que eu podia te matar todas as vezes que entra assim? —
Desengatilho a semiautomática colocando-a de volta no lugar.
— Se atirasse, eu não morreria.
— Por quê? — Giro a cadeira gamer preta para ouvir a explicação maluca. Maximus é
muito inteligente, está se formando em medicina com altas notas, mas nessas horas nunca sai
algo produtivo.
— Porque você nunca atirou na testa quando foi pego de surpresa, salvo se estamos sendo
atacados. Geralmente você escolhe o baço ou este vão aqui, ó… — Aponta entre a clavícula e a
primeira costela. — Melhor alguém para torturar e tirar informações do que alguém morto, não
é?
Sobre a inteligência? Retiro o que disse.
— Agora responde. Qual o lance do Colibrì na sua segunda namorada — insiste,
apontando para a tela do computador. Pressiono as pálpebras com força algumas vezes e bocejo,
sentindo o cansaço pela noite em claro.
— Segunda? Nem sabia que tinha a primeira.
— Tecnicamente existe uma sequência que nossa famiglia tende a pular nos
relacionamentos. Sei que é difícil para você e Giulio entenderem, mas vou tentar — diz, entrando
em meu local pessoal e sentando-se no pequeno sofá de couro preto ao canto. — Primeiro se
namora, depois se noiva e por último se casa. — Enumera, indicando os dedos da mão que só
não dilacero por pensar na utilidade em ter um cirurgião na famiglia. — Mas acho que de nós
três, apenas eu estou passando pela primeira etapa.
Por que mesmo tenho esse sofá em meu quartel general?
Ah… porque mia cognata decidiu que seria uma boa ideia para decorar o ambiente.
Bufo, frustrado. Nunca vou deixar de me questionar sobre sua utilidade todas as vezes que
alguém adentra em meu santuário.
Francesca foi quem sugeriu ter um lugar para que mios fratteli pudessem se acomodar
um dia que entrou aqui tarde da noite em uma das muitas reuniões que tuo marito, Don Moretto,
estendeu por mais tempo, analisando as câmeras de segurança que sempre tive acesso.
Ver Giulio mal acomodado, inclinado sobre uma das telas nunca foi algo com que me
preocupei, até porque o vi suportar posições muito menos confortáveis por horas a fio.
Mas mia cognata[63] deixou claro que nossas reuniões não eram sessões de tortura e por
isso comprou o dito sofá, mandando-o entregar num dia em que não estava. Tomei conta da
existência do móvel apenas mais tarde. E agora, tenho um divã para terapias em meio às telas de
computadores.
— Maximus… — confronto, com voz de alerta. — Sabe que a segunda e terceira etapa
não podem ser com a polizia[64].
— Quem disse?
— Maximus, as tradições fazem parte de quem somos. Você não pode se casar com
alguém de fora. Ainda mais alguém que mandou te prender.
— Ela só estava cumprindo com o seu trabalho. Sem contar que tem nos ajudado e muito
nos casos das ragazze que têm chegado em nossos portos sem autorização. — Gesticula, fazendo
pouco caso.
— Simona Ferruchi só nos ajuda porque quer encontrar o traficante que comanda as
operações.
— Nós também queremos, fratello. Pode ser que ele seja o culpado pela morte de Papà.
— Ele se curva para a frente, cruzando os dedos das mãos entre o vão das pernas. Na sequência,
ele passa a olhar para meus monitores. — Sabia que tem uma sala igualzinha à essa no prédio da
Europol? Tem um cara lá tão bom quanto você…
— Ninguém é tão bom quanto eu.
— E todos os Moretto passaram longe da fila da humildade no céu. — De repente os
olhos de Max ficam assustados. — Nós viemos de lá, não é? O caminho agora pode ser o
inferno, mas os bebês nascem com a alma boa.
Solto um riso frouxo não acreditando que de uma conversa séria, Maximus consegue
alterar para algo bobo e inocente.
— Os bebês vieram de um embrião fecundado, Max. E se você quer acreditar na
existência de céu e inferno, sinceramente, não sei de onde viemos.
— De toda forma… — Max estala a língua no céu da boca, desconsiderando por
completo o que eu disse. Sinceramente, não sei por que pergunta. — Podíamos unir esforços e
descobrir de vez quem está nos traindo — revela sua intenção com a conversa.
A ideia em ter acesso a todos os arquivos secretos da Europol passa por minha mente
como um delírio extremamente atraente. Contudo… a que custo?
Eu estaria atestando a um órgão estatal sobre minha identidade no submundo do crime,
bem como poderia colocar em risco todos aqueles que juramos proteger no omertà.
Com certeza a polizia saberá sobre meu conhecimento e programas desenvolvidos para
decodificar, usurpar as informações, inclusive craquelá-las para não deixar rastros. Esses dados
são basicamente uma confissão expressa dos crimes que não apenas eu, mas todos da famiglia
cometeram.
— Não. — respondo secamente, voltando-me para minhas telas.
— Cazzo… — Mio fratello reclama. — Por quê?
— Porque é arriscado demais. Você em contrapartida poderia conectar este pendrive em
algum dos computadores em sua próxima visita. — Saco o pequeno objeto.
— Não posso fazer isso. Se a Simona pega, ela me castra.
— Mas por quê…? Você estaria fazendo apenas o seu trabalho — remendo, com a minha
melhor voz de deboche.
— Va fancullo, fratello![65] Só queria ajudar — Max devolve, levantando-se. Antes que
saia, aproveito para indagar sobre a última tarefa que lhe passei.
— Você me ajuda fazendo o que te pedi. Como anda a preparação do evento? — A cara
emburrada de mio fratello desaparece na mesma velocidade que surgiu.
— Estou escolhendo o iate e contratei uma empresa que está em alta neste tipo de festa.
Será um grande evento do incrível Token Imperium, mio signore — Max se curva como uma
reverência engraçada. — Minha lista de celebridades está bem maior que a sua, inclusive.
— Ótimo. Os investidores estão aumentando e preciso de uma estreia de luxo para as
velas subirem ao máximo — enfatizo sobre o novo token fantasma que inseri no mercado de
criptomoedas. Estou contando com o mesmo sucesso.
Não seria um hacker multimilionário se não soubesse atuar com maestria nas plataformas
de moeda digital. A minha fortuna pessoal se destaca dos demais por ter informações sobre
operações financeiras antes mesmo que aconteçam no mundo real.
Sempre tentei embutir essas atividades para papà com os possíveis números que
somariam em nosso império. Porém, Don Antonio afirmava que essa modernidade era algo
difícil de entender para o mundo repleto de tradições da Cosa Nostra.
Então, passei a analisar a concorrência daqueles que usufruíam do conhecimento como eu
e adquiri experiência ao notar a criação de diversos Token fantasmas. Eles apareciam e eram
divulgados com glamour, oferecendo lucro extremamente atraente. Os investidores surgiam e
consumiam algo que nem existia. Quando o valor do Token alcançava o teto limite dado por seu
criador, esse desaparecia, de repente.
Vi empresas burras serem descapitalizadas do nada por sonhar alto demais em apenas um
fundo de investimento. Pessoas perderem todas as suas economias.
No momento em que situações se repetem constantemente, surgem dois alertas, um para
que intenta ser o salvador, e outro para quem quer ser melhor.
Faço parte do segundo grupo.
O atual Don Moretto permitiu estender minha ganância em participar desse grupo,
finalmente.
E, em razão de não ser um crime previsto em qualquer lugar do mundo, o evento
grandioso que mio fratello tanto ama pode ser feito pelo clã Moretto sem muito segredo.
Ainda não decidi sobre a necessidade ou não do desaparecimento do Token Imperium, até
porque sua funcionalidade é atraente para nosso Grupo Empresarial também. Não criei ainda o
aplicativo que tem atraído os investidores. Todavia, não é complicado montá-lo se tiver a equipe
certa. Ainda estou estudando o caso em mantê-lo ou não como um fantasma.
Esse sim… é o crime perfeito, por ser temporário se assim eu o quiser.
— Espero que o lucro ultrapasse a meta — comento.
— Tenho certeza de que sim. Você é o cara, Fausto. Nada é impossível pra você.
Bufo o ar, sorrindo na sequência.
— Nada é impossível para nós.
— Nem ao menos se casar com uma polizia? — Simplesmente ignoro-o, levantando-me
e passando por sua frente e saindo da sala ao mesmo tempo em que digo.
— Há limites, Maximus… limites. — Mas digo pensando em como poderei burlar essa
regra para que mio fratello possa casar-se com quem quiser… exceto a polizia. Afinal, ele
merece ser amado por uma mulher.
A imagem de Chiara Moretto com os olhos nublados me vem em mente. Um calafrio
percorre minha espinha com as lembranças do amor doentio de mammina. Nunca foi amor de
verdade. Ela maculou nossos corações quanto a esse sentimento.
Giulio teve sorte.
Talvez a perda de Francesca e sua real condição de saúde o tenham ajudado a aprender o
que é amar.
Maximus sempre foi o mais inocente e que menos entendia o que acontecia com nossa
madre. Ele é o único dos irmãos Moretto com chances de se apaixonar do modo convencional,
sem a necessidade de provações grandiosas.
Por isso, penso em interceder por ele junto a Don Moretto quando for o momento.
Preciso de argumentos concretos e fortes, muito melhores do que aqueles que apresentei para
evitar o meu noivado.
Se bem que…
Bom, se realmente tentasse dissuadi-lo sobre o compromisso com a mentirosa
Zanchetta… tinha conseguido.
FAUSTO MORETTO – PASSADO

O pequeno panfleto com as instruções para montagem do foguete espacial veio


amassado demais, e, para piorar, Max acabou rasgando-o no segundo que decidiu posicionar as
instruções do brinquedo no tapete do meu quarto. Respiro fundo para conter o impulso de tirar o
papel de sua frente.
Não adianta. Então, olho para cima e mantenho a atenção nos outros modelos já
montados sobre a prateleira. Assim, consigo acalmar a gana em tirar todas as peças de mio
fratello caçula. Caspita. Não deveria ter deixado, mas a pequena marca do corte em seu rosto foi
um incentivo para ser mais complacente.
Maximus me defendeu numa atitude impensada. Ele entrou na frente no instante que
mammina jogou o pote de azeitonas em minha direção. A pancada cortou o supercílio, o que
conferiu uma marca eterna no rosto do bambino.
Minha culpa. Não queria assustar mammina naquele dia. Só estava procurando meus
irmãos para brincar. Acabei entrando na cozinha silenciosamente demais, e por impulso de
defesa, mammina me recebeu com o ataque.
Ela tem passado por muito estresse nos últimos dias. Papà a proibiu de sair conosco, por
conta do assalto que sofreram no início do ano. Mio padre é um homem muito importante e
temos muito dinheiro com os navios, por isso estamos sempre com soldados, nossos seguranças,
nos acompanhando em todos os lugares.
Mas nada adiantou quando bandidos tentaram sequestrar Papà e mammina no caminho
de volta de uma das muitas festas de nossa famiglia.
Esse é o motivo que levou mammina a se defender de mim com o pote de azeitonas. Ela
tem ficado mais assustada desde então. Por isso, a culpa é toda minha. Deveria ter anunciado
minha chegada. Assustei mammina. Giulio até tentou segurá-la, mas não conseguiu.
Não pensei que mammina ficaria assustada dentro de casa, já que não há perigo
enquanto estivérmos dentro da mansão.
Solto o ar frustrado ao me recordar, e automaticamente ajeito o cabelo de Maximus atrás
da orelha. Ele não gosta de cortar os cabelos e chora demais quando vamos ao barbeiro. Da
última vez, mammina nem insistiu e Max ficou com os fios mais longos que o habitual corte
tigelinha.
Mio fratello sorri, agradecendo silenciosamente o afago. Mammina geralmente nos dá
carinho antes de dormir. Em algumas noites, Giulio acompanha mammina, geralmente quando
seus olhos perdem o brilho habitual.
Eu não tenho medo de mia mammina porque Giulio diz que é passageiro quando o
fantasma toma seu corpo. Assisti um filme em que fantasmas tomavam emprestado os corpos das
pessoas vivas. É a forma como vejo a outra mulher que ocupa o lugar de mammina às vezes.
O medo é o gatilho que traz o fantasma à tona. Foi por isso que o corpo de mammina
atirou o vidro de azeitonas em mim.
Suspiro sonoramente e continuo separando as peças em pequenos montes, selecionando
as peças de cores azul, branco, preto e os detalhes do foguete. Em seguida, observo o bambino
em minha frente com a cara retorcida pela atenção empregada em sua tarefa.
Max foi a vítima. Mio fratello, mesmo que franzino, com apenas cinco anos de idade,
me empurrou para o lado, sentindo a pancada do pote no rosto. A distância do arremesso foi
suficiente para causar um hematoma e uma fissura pequena acima do olho direito. Sangrou
muito.
No dia seguinte, Papà levou mammina para uma viagem. Ela retornou há pouco mais de
um mês. Por mais que tivesse medo do fantasma, senti muita falta de nossa madre. Signora
Moretto é uma mulher muito carinhosa e seus beijos e abraços no tempo que ficou fora fizeram
muita falta a todos nós. Um pouco a mais para Giulio, que é mais próximo a ela.
Max chorava baixinho, sentindo-se culpado pela ausência de mammina também. Ele
sabia que tinha feito o certo, porém ouvir a fúria de Papà e o olhar acusatório do fantasma que
ocupava o corpo de nossa madre pareceu ser o contrário.
Então, nos últimos dias tenho deixado Maximus brincar mais vezes do que costumo
permitir com minhas preciosas peças de lego. Claro que peguei a maleta em que guardo
aeronaves e outros modelos que vieram com peças faltantes. Assim, minhas preciosas bases com
caças e tanques de guerra, bem como a réplica do pentágono estão a salvo metros acima de
nossas cabeças na última prateleira.
— MAX! FAUSTO! — A voz grossa para um menino de nove anos ressoa no corredor.
— Onde vocês se meteram?
Maximus nem espera o segundo chamado e já corre para a porta, abrindo-a num puxão.
Não contenho o sorriso de alívio por ver minhas joias livres daquelas mãozinhas assassinas de
lego.
Antes que Giulio apareça à porta, já estou guardando as peças nos seus devidos lugares,
colocando cuidadosamente nos espaços destinados às suas cores respectivas.
— Que foi? — nosso caçula indaga, aumentando o sorriso ao ver mammina logo atrás
de Giulio. Ela passa por ele, apertando com carinho seu nariz arrebitado. É notório o peito de
mio fratello inflar de satisfação.
— O que meus bambini[66] estão aprontando, hum? — Mammina vasculha o quarto e me
vê no instante em que estou guardando a maleta dentro da gaveta da estante. — Espero que nosso
astronauta ainda tenha uma nave, caro mio. — Ela sorri gentilmente. É ela… mia mammina
amorosa. Não o fantasma.
— A próxima missão está garantida, mammina — pontuo e dou-lhe um beijinho na
bochecha assim que se aproxima. Ela ajeita meu cabelo, empurrando com os dedos o pequeno
topete em gel que Signora Isabel fez mais cedo.
— Que bom, meu aventureiro. Que bom… — A voz mansa e aveludada acaricia meu
coração de bambino. Em seguida, ela me abraça de lado, apertando-me junto ao seu corpo e
Maximus a abraça do outro lado para aproveitar o carinho ofertado.
— E então, mammina? Vamos? — Giulio indaga temeroso, enfiando as mãos nos bolsos
da calça. Mio fratello costuma ser mais comedido, mas depois do ocorrido, sempre que
mammina pede para nos ver, sinto-o receoso. — Você viu que eles estão brincando e…
— Sim, figlio. Mas… — mammina direciona a ele e depois nos encara, pensativa. — O
que acham de brincar de esconde-esconde, hum?
— Eu quero — nosso caçula se prontifica. — Giulio, você me esconde?
— Não é assim que funciona, caro mio. — Mammina ri baixinho. — Primeiro temos
que tirar na sorte quem vai procurar e depois vemos o esconderijo.
— Ah… — Max replica. Mammina não costuma brincar conosco de esconde-esconde,
apenas com Giulio. Papà não permitia que ficasse muito tempo ao nosso lado. Mas nas últimas
semanas, após ela ter retornado de viagem, tudo ficou mais divertido. Signora Isabel tem deixado
que fique por mais tempo em nosso andar.
— Mammina, podemos brincar depois e…
— Que isso, Giulio, amore mio… tua mammina só quer brincar também com tue
[67]
fratelli , va benne? — ela o interrompe. Giulio exala uma expiração longa e cansada.
— Va benne… — responde.
— Eba! Como tira na sorte? — Max dá alguns pulinhos e vai até o lado de mammina.
— Vamos mostrar números com as mãos e depois contar até chegar em alguém. Quem
for escolhido será a pessoa que irá procurar, va benne? — mammina explica empolgada. Giulio
pressiona os lábios, mas em seguida se rende com um pequeno sorriso.
Ele também sabe que o fantasma foi embora.
Minutos depois exibimos todos as duas mãos, cada um com seu número escolhido pela
quantidade de dedos expostos. E então, mammina inicia a contagem até que…
— Trinta e cinco, trinta e seis e… trinta e sete — Ela aponta para Giulio. — Está com
você, amore mio. Vamos aqui do lado de fora no corredor para você contar, porque é mais fácil
para nós corrermos de volta.
— Conto até quanto? — Giulio se empolgou com a brincadeira e parece ter se
esquecido de qualquer preocupação.
— Até 100.
— Até 100? — Max fica assustado. — Mas quando for a minha vez não vou saber
contar até 100, mammina.
— Não tem problema, bambino. Quando for sua vez, eu conto com você — ela afirma,
colocando a mechinha de cabelo que tende a cair no rosto de Max para detrás da orelha, como eu
fiz mais cedo. Mio fratello lhe oferece um sorriso alegre, ela o segura pela mão e em seguida
pega a minha.
— Vou começar então. — Giulio anuncia, colocando o rosto sobre o braço apoiado no
batente da porta. Assim que ele começa a contar, nós três saímos correndo escada abaixo até o
andar térreo da mansão.
— Venham comigo, miei figli[68]. Mammina vai colocá-los nos melhores esconderijos.
— Pode esconder o Max, mammina. Eu sei onde vou me esconder — pontuo. Queria
correr para alcançar o labirinto no jardim. Sempre soube o caminho certo a seguir e nunca me
perdi como miei frattel[69]i.
— Tudo bem. Só não vá lá fora, pois seria injusto com Giulio. Ele não terá tempo de
procurar por todos nós, va benne?[70]
— Ah… eu ia no labirinto. Agora não sei mais onde… e…
— Calma, figlio. Venha comigo. Vamos esconder Max que eu sei o lugar perfeito para
você.
Sorrio empolgado e corro de mãos dadas com mammina e meu irmão caçula. Sinto meu
coração palpitar forte com a alegria de estar brincando com ela assim.
— Aqui, Max. Fica quietinho. Não pode falar nada ou Giulio irá te ouvir. — Mammina
coloca mio fratello no vão da mesa do escritório de Papà, em seguida sai comigo de mãos dadas.
— Agora, você. — Saímos apressados e atravessamos o corredor indo em direção à cozinha. Ela
coloca o indicador sobre os lábios para que fique em silêncio e a Signora Isabel não nos veja
passando por ela em direção à dispensa.
Talvez algumas das donne que trabalham em casa tenham nos visto, mas mammina se
prontificou em pedir silêncio com um sorriso. Quando elas notaram que estávamos brincando,
riram e saíram de perto.
— Mammina, rápido. Giulio já deve estar os procurando.
— Calma, figlio. Precisa ser um esconderijo perfeito. Lá — ela aponta a escada que
levava ao subsolo. Balanço a cabeça afirmativamente de modo a demonstrar que aceitava o local
que estávamos indo.
Descemos as escadarias e o lugar onde ficavam partes dos nossos alimentos parecia
vazio. Já havíamos jantado, por isso não havia mais circulação de pessoas.
— Onde vocês estão… — A voz de Giulio muito próxima indica que ele ainda não
havia encontrado Max, mas que logo nos encontraria. Mammina me empurra para o lado para me
esconder com seu corpo. Não contenho a satisfação em ter mia mammina se divertindo conosco e
acabo soltando um riso frouxo.
— Shiiii… — ela faz para mim, em seguida sorri, balançando os ombros de modo
conspiratória. — Venha. Vou te esconder e me esconder também, va benne? — Só meneio a
cabeço e deixo com que mammina me conduza. Ela nos fecha dentro da despensa e caminha nas
pontas dos pés.
Olho para os lados, tentando ouvir se Giulio seguiu para longe.
— Mammina, acho que ele já foi, se sairmos agora, possa dar tempo de correr até o
pique e…
— Calma, figlio. O legal é ser o último a ser encontrado no esconde-esconde, e não ser
salvo. Entra aqui — Ela abre uma porta e sinto o ar gelado. Mammina me olha com um sorriso
travesso nos lábios, mas seus olhos estão diferentes, como se escondessem algo.
— Fausto, amore mio, voi pode se esconder aqui no freezer por um tempinho. Prometo
que estarei ali atrás do armário — ela diz com uma voz suave, mas a maneira como ela fala me
deixa um pouco nervoso.
— Dentro do freezer, mamãe? — Olho para ela, confuso. Ela assente, parecendo muito
animada.
— Sim, lá dentro mesmo. Será tão divertido! Giulio não vai te encontrar nunca lá. —
Não gosto muito da ideia, mas não quero desapontar mia mammina. Sinto o calafrio percorrer
meu corpo e gostaria de enxergar melhor seus olhos para ter certeza de que não é o fantasma,
porém a pouca luz me impede. Ainda assim, eu digo:
— Tudo bem, mammina. Eu me escondo lá.
Ela abre o freezer e eu entro, sentindo o ar gelado me abraçar instantaneamente. É
quando consigo ver os olhos opacos através da iluminação interna do eletrodoméstico
congelante. Não tenho tempo de oscilar a decisão, pois ela fecha a porta de imediato.
— Mammina? Você está aqui, né? — indago, querendo ouvir sua voz para espantar a
má impressão dos seus olhos.
— Claro que estou, caro mio. Não se preocupe. — Todavia, me preocupo ao ouvir os
saltos de mammina se afastarem segundos após da porta do freezer se fechar.
— Mammina! Mammina! Por favor, não me deixe aqui. Estou com frio… — Espero,
contando mentalmente até 50, pois mammina poderia retornar logo. Ela logo abriria a porta do
freezer e tudo não passaria de uma brincadeira.
A contagem termina e quando percebo, já estou em 155. Ela não voltou. Tento abrir a
porta, mas a pressão interna não me permite sair, estando preso em meio à carnes congeladas e
alguns legumes. Meus joelhos estão dobrados por conta do espaço pequeno.
Sinto um frio intenso, cortante, enquanto me encolho dentro do freezer.
— Mammina… mammina… Alguém! Signora Isabel! Per favore… — Bato diversas
vezes na tampa. Talvez alguém possa me ouvir. Nada.
As lágrimas escorrem pelo meu rosto, mas não sei se é por causa do frio ou do medo
que me consome por dentro. Mammina disse que voltaria logo, no entanto o tempo parece ter
parado dentro desta caixa gelada.
Mammina não me faria mal… ela jamais me machucaria. E estava tão feliz em brincar
conosco, eu faria qualquer coisa para deixá-la feliz. Ela disse que ia voltar logo. Eu só queria
agradá-la e… e agora meu corpo todo dói.
O ar gelado me arrepia por inteiro, e meus dedos doem. O frio é como mil agulhas
perfurando minha pele, cada respiração é um suspiro doloroso que queima meus pulmões.
Minhas mãos estão dormentes, meus dedos roxos mal conseguem se mexer. Sinto o ar gélido
penetrar nos meus ossos, como se estivesse congelando cada parte do meu corpo.
Tento parar de chorar, tento ser um menino corajoso como mammina sempre diz que eu
sou. Mas estou com medo. Medo do fantasma que toma seu corpo… medo de ficar preso aqui
para sempre.
Tremo incontrolavelmente e as lufadas de ar se tornam um vapor branco. Choro, mas as
lágrimas congelam em minhas bochechas. A sensação de abandono é angustiante.
A escuridão dentro do freezer é como um vazio que se estende para sempre. Estou
sozinho, tão pequeno e tão frágil. Só queria que alguém me encontrasse, que alguém viesse me
tirar daqui, que alguém me abraçasse e me dissesse que tudo ficaria bem.
Por que mammina não voltou ainda? Será que o fantasma ainda está dentro dela?
Meus lábios estão roxos, meu corpo todo está tremendo. O frio é tão intenso que parece
penetrar nos meus ossos. Eu não aguento mais ficar aqui, não aguento mais sentir esse frio
cortante, essa solidão assustadora.
Tento pensar em coisas boas, nos miei fratteli, Giulio e Maximus. Eles estão sentindo a
minha falta? Será que já passou quanto tempo?
Quero chorar alto, quero gritar por socorro, mas não consigo… mal posso respirar.
Espero que mamãe perceba logo o que fez, espero que ela venha me tirar daqui. Per
favore, mammina… per favore… me tira daqui.
Sinto minhas pálpebras pesarem como se fossem feitas de chumbo. O frio intenso
parece sugar toda a minha energia, e meus olhos se fecham lentamente, apesar dos meus esforços
para mantê-los abertos. É como se o gelo estivesse congelando não só meu corpo, mas também
minha vontade de continuar lutando.
Em meio a essa quase rendição ao sono doloroso e congelante, uma voz quebra o
silêncio.
— Fausto! Fausto, onde você está? — É a voz de Giulio, mio fratello. Um lampejo de
esperança irrompe dentro de mim, como um raio de sol penetrando a escuridão.
Eu reúno todas as forças que ainda restam em meu corpo frágil e desesperado. Com os
punhos gelados, começo a socar o interior do freezer, gritando com toda a energia que me resta.
Cada pancada parece um esforço monumental, mas eu me recuso a desistir.
— Giulio! Aqui! Estou aqui! — Em minha cabeça, estou gritando, ao passo que na
realidade, mal ouço minha voz. Cada soco é uma oração silenciosa para ser ouvido, para ser
encontrado antes que o frio me leve para um sono do qual eu possa nunca mais acordar.
A esperança se mistura com a dor e a exaustão, mas é como uma chama delicada que se
recusa a se apagar. Eu luto contra o frio, contra a escuridão, contra o medo, tudo na esperança de
que Giulio possa me ouvir e me encontrar logo.
Então, a porta se abre e vejo os olhos escuros e assustados de mio fratello mais velho.
— Finalmente te encontrei — ele diz, puxando-me para fora do espaço gelado e me
aconchegando em seus pequenos braços calorosos. — Papà! Ele está aqui! Papà! — Giulio grita
e mais que depressa sou envolvido por braços maiores e sinto meu corpo ser levado para fora da
despensa.
— Está tudo bem, figlio. Vai ficar tudo bem. — E ouvindo as últimas palavras vindas de
Papà, do homem que sempre me protegia dos fantasmas, deixei-me envolver de vez pela
escuridão.
Ao lado de mio Papà e mio fratello Giulio eu estaria seguro. Ao lado deles eu poderia
enfrentar o escuro tranquilo, pois nenhum fantasma seria páreo para eles.
MICHELA ZANCHETTA

A blusinha de linho branca decidiu entrar em guerra comigo na segunda dobra. Estou
quase fazendo o tecido virar uma bola de tênis, a ser empaçocada no fundo da mala juntamente
com as peças de roupa que irei doar assim que me instalar em Palermo.
Por que estou levando roupas que nunca irei usar por lá?
Porque Signora Zanchetta não me deixaria fazer a mala sozinha, se não prometesse
colocar alguns dos vestidos que comprou para mim. Ela me fez usar alguns nos últimos jantares
em casa e só por ser a melhor mammina do mundo, estou levando os ditos vestidos.
Até gosto de algumas peças na verdade. E se isso agrada mia mammina, não vejo por
que não. Ela tem arriscado seu posto de damigella todas as vezes em que levamos croquis
pessoalmente até a boutique da Signora Affonso. Sorrio, recordando-me desses momentos.
Tenho a impressão de que Annunziatta Zanchetta gosta do perigo.
Mammina já deixou tudo certo inclusive para que consigamos manter o fornecimento de
novos modelos de Éloise Dufour, mesmo estando fora. Signora Affonso tem enviado áudios das
clientes para que eu possa fazer os modelos exclusivos e também sugeriu que deixasse alguns
para a próxima estação.
Como uso de aquarela para pintar alguns dos desenhos, Signora Affonso precisa do
croqui no físico para manter a originalidade da minha assinatura. E não é recomendado o envio
pelo correio, pois vivemos num mundo no qual não confiamos em ninguém. Por isso, mammina
é quem fará a intermediação. Talvez Giulio também, não sei ao certo o que ele e mammina
conversaram no último jantar de família.
Diante de tudo isso, o que é perder um pouco de espaço em uma das malas que estou
preparando para minha mudança para Palermo, hum?
Nada. Absolutamente nada.
— Me dá aqui essa blusa, vai. — Valentina toma o tecido de minhas mãos e com
maestria dobra em três movimentos, e minha blusinha favorita assume o formato perfeito para
ser colocada na mala. — Pronto. Agora guarda logo aí antes que eu pegue para mim. Você sabe
o quanto gosto dessa blusa.
— Nem pense. — Coloco rapidamente e fecho a mala, finalizando com o deslizar do
zíper por toda a extensão. — Já te dei muita coisa fazendo aquelas duas malas ali. — Aponto as
maiores, posicionadas perto da cômoda.
— Parece mentira que você está indo para Palermo. Que Merda isso. — Valentina bufa,
jogando-se de costas sob o espaço que vagou em minha cama quando desço a maleta. — Por que
Zio Zanchetta não deixa você fazer faculdade aqui comigo? — ela choraminga as últimas
palavras.
— Ele até deixou, Val. Mas mio cognato sugeriu no último jantar, comentando que seria
bom para Francesca e para que mio sposo — coloco uma mão sobre o peito em um gesto
dramático — me conhecesse melhor. Tudo indica que é para termos algum tipo de
relacionamento antes do casamento.
— Isso eu acho muito romântico — Valentina, a louca, diz.
— Romântico onde, sua doida? Te contei o que aconteceu no aniversário da Tchesca,
esqueceu? — Balanço a cabeça incrédula, jogando-me ao seu lado. Então, nós duas passamos a
encarar o teto do quarto. — Ele quer me humilhar, isso sim.
— Você disse que gostou da pegada do mafioso nerd, Chela.
— Eu não disse isso — contesto. Valentina se apoia em um cotovelo, virando o corpo
para mim e fitando-me com uma careta acusatória. Suspiro cansada. — Eu disse que menti
quando falei que ele beijava mal…
— Não é a mesma coisa? — Ela ergue uma sobrancelha em desafio.
— Não, não é. E se a faculdade de design de modas não fosse melhor, teria insistido
para ficar em Messina. — Jogo um braço sobre o rosto, fechando os olhos para evitar o
escrutínio de mia cugina. Percebo que consigo meu intento quando a sinto afundar novamente ao
meu lado no colchão.
— Acho que vou pedir para Papà me deixar estudar em Palermo. Não quero ficar
sozinha aqui.
— Não seja boba, Valentina. Você não estará sozinha, Alessio ainda estuda lá,
esqueceu? — indico o stronzo que não enxerga a ragazza extraordinária que sempre foi
apaixonada por ele. Caspita. Se não fosse por ele ser tão cabeça dura, eu não teria inventado a
mentira.
— Ele mal tem falado comigo desde que Fausto assumiu o compromisso. — Valentina
soa chateada. Eu gosto muito do mio cugino Alessio, mas em alguns momentos tenho vontade de
bater a cabeça dele na parede.
Ele gosta de Valentina também, só que ficou tão obcecado com a ideia de ter algo
comigo e ficou cego. Confesso que as brincadeiras idiotas de mio fratello não ajudaram em nada.
— Ele é um stronzo.
— Não fale assim… ele é apenas apaixonado por você. — Perdi a quantidade de vezes
que disse para Valentina o contrário. Alessio apenas se acostumou com a ideia. Sei bem que
ficou mexido após a brincadeira de sete minutos no paraíso, na qual beijou mia cugina e não a
mim.
Ele só não quer dar o braço a torcer. Agora não é o momento de discutir com a ragazza
que precisa ser incentivada a me ajudar e meu plano de unir miei cugini, bem como sair de vez
da lista de candidatas a damigella da Cosa Nostra se concretize. Pelo visto é o único jeito de
realizar meus sonhos e entrar no meio da moda não como Éloise Decour, mas como Michela
Zanchetta.
— Mas eu não… E você é por ele. Então, trata logo de conquistar esse cabeça dura para
que eu possa voltar ao meu status de solteira, per favore. — Faço beicinho.
Valentina sorri sem humor, mas posso ver o pequeno brilho de esperança em seus olhos.
Sei muito bem que o fato do amor de Alessio nunca ter sido correspondido por mim foi um
alento para o coraçãozinho de mia cugina.
— E se Fausto não desmanchar o noivado?
— Eu brinco que você é louca, Valentina. Mas se continuar falando besteira, eu mesma
coloco em você uma camisa de força — brinco por fora, tentando não transparecer o reboliço em
meu estômago. — Fausto Moretto não quer nada comigo. Ainda vou conseguir contar tudo para
ele. Tenho certeza de que vai entender e me deixar livre para viver feliz a vida de solteirona
dentro da Cosa Nostra.
— Bom… acho que você nunca deixou de aproveitar isso não. — Viro o rosto com uma
cara de espanto diante da afirmação de mia cugina.
— Do jeito que fala parece que já conheci um milhão de homens, Valentina. Ainda sou
virgem, sabia?
— Mas beijou mais bocas que eu possa contar. — Ela ri descaradamente. Dou-lhe um
soquinho no ombro, acompanhando o riso em seguida. — Até julgou o beijo do Moretto número
dois.
O riso cessa e toco os lábios, suspirando sem perceber. Fausto Moretto pode ser um
stronzo, mas ele beija bem pra caralho.
— Pelo suspiro, aposto que a nota do mafioso-nerd foi alta. — Valentina se vira de novo
na cama e me encara com feição sapeca. — Já que quer ser uma solteirona, por que não aproveita
e perde a virgindade com ele?
— Pirou de vez, foi? Se Papà descobre…
— É só você mentir de novo — Ela mostra a língua. — Zio Enrico acreditou tão fácil
em você…
— Isso por conta do que Francesca passou nas mãos daquele stronzo. Agora se depois
de tudo, ele descobre que perdi a virgindade com Fausto, aí que terei que me casar mesmo.
— Ah, é… — Ela faz um biquinho para o lado, considerando. — Uma pena… eu acho
que todo nerd deve saber muito bem o que faz, né? E pelo que ouvimos daquelas donne viuvas,
seu sposo sabe mesmo.
— Nem me lembre. — Emburro a cara. — Como que elas não têm vergonha em
conversar descaradamente sobre o mesmo ragazzo.
— Cuidado, hein Chela. Você está aprendendo a mentir tão bem que quase acreditei que
estava com ciúmes.
Levanto-me rapidamente e entro em meu closet, saindo com um casaco branco.
— Vem aqui já, Valentina. Isso aqui não é uma camisa de força, mas vou costurar em
você até se tornar uma. — Valentina fica em pé em minha cama enquanto tento cercá-la com a
peça de roupa, dando gritinhos e rindo.
Demoro alguns minutos até conseguir enrolá-la na roupa e fazê-la cair sobre o colchão.
Rimos muito até perder o fôlego.
— Vou sentir sua falta, Chela — mia cugina diz baixinho, modificando a expressão
alegre para nostálgica. Beijo o topo de sua cabeça, envolvendo-a em meus braços.
— Eu também…
MICHELA ZANCHETTA

Duas semanas depois e ainda estou desempacotando minha pequena mudança. Precisei
implorar para Papà não aceitar a proposta de Francesca para morar em sua cobertura com meu
caro cognato.
Como ele se prontificou em liberar um dos apartamentos do mesmo prédio da residência
dos Moretto, foi fácil conseguir pelo menos ter um cantinho apenas meu. Assim, pude montar
meu ateliê em um dos quartos, tendo que inventar uma mentirinha para Signora Isabel. Ela tem
cuidado da limpeza e vira e mexe me vê desenhando os novos modelos de vestidos, bem como
moldando os tecidos no manequim
Mammina pode parecer liberal e completamente fora dos padrões da sociedade em que
vivemos dentro da Cosa Nostra, porém, descobri que não é a presidente do consiglio del
damigelle à toa. Por isso, fui cercada de recomendações para manter a discrição.
Ela soube o momento de falar antes que nosso Don pudesse me castigar por estar
mentindo para as outras donne da famiglia, bem como para Papà. A minha vinda para a
faculdade de Palermo foi exigência de Giulio. Que absurdo! Tudo para ficar de olho em mim!
Pensei que iria me prejudicar com as encomendas da Éloise Ducour. Estava enganada.
Eu tinha duas pendências de entrega de modelos, que não terminei a tempo antes da viagem. E
adivinhe? Mio cognato levou meus croquis e entregou pessoalmente à Signora Affonso.
Mordi minha língua três vezes em represália, então estou punida de acordo, va benne?
Respiro fundo, sentando-me de frente para a mesa com meus lápis de cor, pinceis e
alguns rascunhos. A fita métrica está jogada na gaveta aberta, onde guardo alguns alfinetes,
agulhas, linhas e outros objetos de costura. Também posso deixar abertamente as amostras de
tecidos sem me preocupar como fazia em casa.
Se soubesse que a postura de Papà não seria tão grave, mammina poderia ter-lhe
contado mais cedo. No entanto, ele pensa que soube assim que a ideia surgiu. Talvez o fato de
Giulio ter ficado do lado de mammina quanto a manter meu segredo, ajudou. Não sei.
Uma coisa é certa. Preciso encontrar um meio de conversar com Fausto e pedir sua
ajuda. Como tudo tem dado certo para mim, estou com esperanças. Ele mora no penúltimo andar
e estou dois abaixo do dele. Meu apartamento não corresponde a uma mansão como as dos
irmãos Moretto, porém é suficientemente grande para uma famiglia. Imagine para uma pessoa
só?
O luxo da Cosa Nostra sempre me pareceu algo em que eu não me encaixava. Não
preciso de um apartamento com quatro quartos, sendo duas suítes, para sobreviver. Espero que
quando meu status for definitivamente a solteirice, possa me sustentar com o meu trabalho. Sei
que Papà jamais me desampararia, mas ele não é para sempre e não quero ser um fardo para
Francesca ou para Luigi.
A tela do meu celular se ilumina tirando-me do devaneio. Uma mensagem de Valentina
com uma carinha triste. Observo o horário e me assusto ao constatar ser duas da manhã. Mal
tenho tempo de pensar quando recebo outra foto da loira, mostrando sua habilidade em virar
doses de tequila. Tento ver onde ela está e apenas enxergo uma mesa de bilhar. Parece um salão
de jogos.
Ainda não contente, mia cugina[71] manda mais uma foto com os dizeres abaixo: ‘essa
aqui é pra você’. Vadia. Sorrio, vendo a maluca se divertir.
Deve ter fugido de novo de casa para ir em alguma festa da faculdade. Suas aulas
começaram semana passada e a safada já foi em mais festas do que dias de aula. Como ela
consegue tendo um padre tão rigoroso?
Esse mistério é outra história. Valentina diz ser uma exímia escaladora e aprendeu como
ninguém a fazer esculturas de travesseiros. Das vezes que insisti para contar a verdade, mia
cugina parecia outra pessoa. Então, desisti.
Bom… meu problema agora é outro e chama-se Fausto Moretto. O mafioso-nerd, como
Valentina o chama, parece um peixe ensaboado. Sempre que penso que vou conseguir falar com
ele, o infelicce arruma alguma desculpa e desaparece.
Será que ele dorme em casa todas as noites?
Se sim, poderia tentar abordá-lo em um horário que ninguém interferisse. Papà chegou
algumas vezes tarde do trabalho, mas era excepcional. Já Luigi costumava chegar de madrugada.
Por isso, quis morar na casa da piscina. Eu e Francesca sabíamos exatamente quando ele
chegava. Desconfio que mammina também.
E se eu… tiver sorte hoje. Duas da manhã para quem possui uma vida noturna agitada
não é um horário de perturbação, correto?
Não aguento mais ficar nesse impasse. Preciso resolver logo para seguir com o noivado
que pretendo ser mais uma mentira em meu currículo.
Madonna mia, fique do meu lado. Ayudame[72] para falar de uma vez com mio sposo
provisório e então ele embarcar em meu plano, per favore?
Respiro fundo, levantando-me em seguida imbuída de uma coragem que adquirimos
quando estamos bêbados de sono. Pronto. Decidi. Vou tocar sua campainha três vezes e contar
até vinte. Se ele aparecer, foi começar a falar sem parar até ele ouvir tudo. Caso contrário, vou
tentar depois.
Tropeço em um tecido que estava jogado, mas não caio firmando-me sobre meus pés e
em minha decisão. Alcanço a porta de entrada do meu apartamento e repenso. Será?
Três toques, Michela. Apenas vou tocar rapidinho e contar até vinte. Não tem outro
apartamento no andar dele mesmo. Então, não vou incomodar qualquer vizinho. Os vizinhos
começam a partir do meu.
Entro no elevador e aperto o andar respectivo. Dio Santo, que loucura… é possível ficar
bêbada por tabela em razão da tequila que Valentina tomou por mim? Estou acreditando que sim
no momento em que vejo a porta preta com os números em dourado de Fausto, notando que subi
até seu andar vestida apenas com uma regata branca e short de dormir cor-de-rosa.
— Ain… Michela, sua maluca — falo sozinha. Está vendo? Completamente maluca.
Devo estar com sono. É isso. Trata-se de um sonho, só por isso aperto a campainha a primeira
vez.
Oddio! Eu fiz… e agora? Conto até vinte e aperto de novo ou era para apertar três vezes
e contar? Madonna mia… já esqueci. Vou contar. Um, dois, três… não aguento e aperto de novo
duas vezes rapidinho.
Pronto. Apertei três vezes. Agora eu conto.
— Um, dois, três… — fecho os olhos para manter a realidade de que tudo é um sonho.
A loucura de Valentina é contagiosa, só pode. — Treze, catorze… — Sorrio, aliviada, vou
chegar no vinte e ele não vai abrir a porta. Graças a Deus. Onde eu estava com a cabeça? A ideia
antes parecia tão certa… — Dezesseis, dezessete…
— Michela? — Ouço a voz masculina, mas continuo de olhos fechados.
— Não! Não vale. Já estou no dezoito e você abre a porra da porta! — Abro os olhos
com uma carranca e empurro o peito de Fausto, querendo que ele volte para dentro do
apartamento. — Eu vou chegar no número vinte, vou descer para meu apartamento e não vou
conversar com você hoje. Nã-não. Você perdeu a chance quando eu passei do quinze.
— Mas você disse que contaria até o vinte. Então, eu ainda tenho praticamente três
segundos, não? — Fausto soa brincalhão, indicando que me ouvia há algum tempo. Caspita! Ele
ainda segura minha mão que está em seu peito… nu?
Oddio! Averiguo a realidade e constato que ele está sem camisa, vestindo uma calça
escura de moletom. Sinto o calor de sua pele se estender pela palma. Puxo o ar com um som
sofrido que revela o magnetismo que momentaneamente surgiu entre minha mão e o peitoral
rigoroso de mio sposo provisório.
Meus dedos tomam vida própria e apertam sem a minha permissão a superfície do
monumento em formato de homem.
Madonna, juro que não vou reclamar a próxima vez que mammina me fizer comer jiló
se o tempo parar um minutinho.
Faço a bobagem de descer o olhar para seu abdômen e… Dio Santo, quero virar
pedreiro se isso significa pegar cada tijolinho que compõe essa barriga.
Impossível ser indiferente à beleza do clã Moretto, por isso qualquer mulher que aprecie
o sexo masculino fica atraída. Talvez usufruir um pouquinho mais desse corpinho não prejudique
meus planos, penso.
— Não vou dizer que meus olhos são aqui em cima, pois odeio cortar a alegria de
qualquer ragazza — Fausto graceja, apoiando-se no batente da porta com um dos braços.
Dou um passo para trás de imediato e limpo a garganta, pois a saliva ficou grossa de
repente.
— Você costuma atender à porta sempre semi-nu? — contraponho, empinando o nariz.
— Bom… — Ele coça a barba rala —, geralmente estou vestido durante o dia, mas
quem toca minha campainha às duas da manhã gosta de me ver com menos roupa. É isso que
você quer, Colibrì?
Pisco algumas vezes para voltar a raciocinar e então franzo o cenho emburrada,
percebendo o que mio sposo[73] acaba de revelar.
— Costuma receber muitas visitas em seu apartamento, meu noivo? — praticamente
grasno a pergunta. O farabuto ri. Ele ri da minha cara, passando a mão do braço apoiado sobre o
rosto.
— Colibrì, Colibrì… você me diverte.
— Fico feliz em ser sua palhaça particular.
— Eu gostaria muito de assistir um pouco mais ao espetáculo, mas tenho trabalho a
fazer. Então, vou dispensar a aula de beijo que provavelmente veio me dar — ele ergue as
sobrancelhas, deixando claro a ironia. Claro que Fausto Moretto sabe que beija bem.
— Não é por isso que vim até aqui. — Estufo o peito, querendo assumir a coragem que
me fez bater à sua porta, e empurro-o pelo peito para dentro do apartamento, entrando na
sequência. — Precisamos conversar.
— E não pode esperar até o dia clarear? — Fausto questiona, caminhando atrás de mim.
Eu não faço ideia aonde estou indo, mas sigo em direção ao centro imaginando que vou
encontrar uma sala de estar. Bingo.
Os irmãos Moretto parecem manter um padrão no tocante à mobilia, posto que vejo um
sofá preto e móveis modernos adornando o ambiente. Sento-me, cruzando as pernas e indicando
a poltrona para que mio sposo se sente.
— Não estou conseguindo te encontrar sozinho durante o dia e esta conversa precisa ser
sigilosa — pontuo. — Per favore, sente-se e me ouça. — Fausto bufa nitidamente contrariado,
mas atende meu comando.
— Seja breve — gesticula com uma mão no ar, escorando-se no assento de pernas
abertas de modo desleixado. Quero sorrir por ver mio sposo com uma postura relaxada, porém
me contenho.
— Primeiro, quero te pedir desculpas. — Entrelaço os dedos em meu colo com a coluna
ereta, tentando demonstrar minha melhor forma de damigella. — Você acabou sendo vítima de
uma mentirinha inocente que usei para escapar de me casar com meu primo Alessio.
— Cara mia… acredito ter demonstrado que sua mentirinha passou longe de ser
inocente. — A voz inundada de sarcasmo indica que a conversa está tomando um rumo
completamente oposto ao que pretendia. Ergo o olhar e vejo Fausto apoiar os cotovelos sobre os
joelhos, aproximando-se de mim. — Ou talvez sua expertise seja maior do que me revelou e
queira me ensinar mais a beijar, é isso? Por este motivo está em minha casa de madrugada?
Engulo em seco ao notar o quanto a proximidade de Fausto me desconserta. Caspita!
— Nã-não é nada disso. E por mais que a mentira não fosse inocente dessa forma, quero
dizer — Acabo afastando-me sem desgrudar a bunda do sofá para o lado. Oddio, o que está
acontecendo comigo? Já fiquei próxima de homens bonitos antes. Esse é um fardo que não dá
para evitar tendo nascido dentre os Zanchetta. Mas Dio, mi aiuti![74] Nunca senti tanto calor. —
Eu me assustei quando ouvi mio padre aceitar a sugestão de mio fratello para firmar meu
noivado com Alessio. Seria o mesmo que te pedissem para se casar com Donato.
Ele precisa entender que jamais poderia me casar com mio cugino. Aliás, que meu
futuro não é dentro da Cosa Nostra mas como uma mulher solteira que tem vontades e quer ditar
o próprio destino.
— Se Donato tivesse uma boceta, não veria problema — diz, afastando-se de mim e
voltando para o encosto da poltrona. — Todavia, já atestei mais vezes do que gostaria que o
infelicce possui um pau entre as pernas.
— Co-com Maximus, então — apresso-me em emendar a justificativa.
— Por mais que admiro os cabelos longos de mio fratello, garanto que ele não é uma
ragazza. Mas se mio Don exigisse o casamento, também não me importaria. No entanto, a
famiglia preza pela procriação e sabemos quão inviável seria com o parentesco tão próximo.
— Você não tem sentimentos? É um poço vazio por acaso? — Altero o tom calmo para
agressivo e só registro que estava em pé à sua frente quando Fausto enlaça minha cintura e me
faz cair sentada em seu colo de lado.
— Eu não me casaria com alguém tão próximo, mesmo no caso de Donato se ele fosse
Donatela. Só a provoquei porque estava incomodado ao vê-la se arrastando pelo assento para
longe de mim. — Mio sposo afunda o rosto em meu pescoço e estremeço. — Agora vamos ver se
entendi, você veio até aqui para se desculpar porque inventou uma mentira para me ter como
fianzatto[75], pois não queria se casar com o figlio de Demetrio Zanchetta — sussurra ao pé do
meu ouvido.
Sei que não é uma pergunta, mas assinto com um gesto de cabeça.
— Isso… e você pode desmanchar o compromisso. Só peço que espere um pouco até
Alessio ficar noivo de Valentina — revelo meu plano.
— Ah… tua cugina[76] também inventará algo para conseguir o noivado — constata e
antes que a raiva por sua afirmação chegue ao meu cérebro, Fausto começa uma tortura de beijos
molhados numa linha entre meu ombro e o lóbulo da orelha. — Então, eu fui um mero
instrumento do seu plano.
— Uh-hum… — Fausto Moretto indica como consegue tornar alguém monossilábica ao
roçar suavemente os lábios em pontos específicos da minha pele.
— E depois que suoi cugini[77] fiquem noivos, eu posso terminar nosso compromisso?
— ele indaga com a voz rouca e sedutora, parecendo estar proclamando palavras românticas.
— É… — respondo, tombando a cabeça para o lado e dando-lhe mais acesso.
— Não se importa em se tornar uma damigella que ninguém queira por ser rejeitada por
um Moretto, pelo visto.
— Não me importo… — digo sôfrega, sentindo os dentes de Fausto deslizarem sobre
minha jugular. Ele provavelmente está notando a pulsação acelerada.
Eu sabia. O segundo Moretto é o mais sensato, ele vai entender que meu desejo é ser
uma mulher independente e fora da famiglia.
— Você quer minhas desculpas, Colibrì?
— Si-sim… — Seus dedos enroscam na alça fina da regata.
— Está tão empenhada em ter minhas desculpas que veio ao meu apartamento no meio
da noite, hum? Quanto empenho está disposta a demonstrar? — O pouco tecido é uma
contradição à grandiosidade de sensações que causa em meu ventre.
— Muito empenhada… — consigo murmurar, embebida de desejo. Sinto o tecido
descer revelando um seio enquanto Fausto mordisca meu maxilar até o queixo. Sua mão envolve
o monte abaixo do mamilo como uma taça e ele faz uma pinça com o indicador e o polegar,
pressionando o bico.
Aperto os lábios, querendo esconder o gemido que rasga minha garganta. Mio fianzatto
aumenta a pressão, movimentando os dedos, rosnando baixo descontente com minha atitude para
me silenciar.
O prazer causado pela pequena dor que estragou por completo minha calcinha fica
incontrolável, bem como o som que emito na sequência, no instante em que os dedos são
substituídos pela boca quente e molhada de Fausto.
A sucção forte e o aperto ao redor me enlouquecem. Ele chupa e apalpa, torcendo a
pele. O movimento bruto parece uma punição deliciosa por toda situação embaraçosa que o fiz
passar por conta da mentira.
Os músculos internos do meu sexo iniciam pequenos espasmos até tornarem-se
contrações vigorosas. Desta vez não contenho o gemido e me contorço, tentando escapar do
ataque de Fausto. Ele me segura com a mão envolta em meio seio.
— Fausto… — ofego, sentindo uma onda crescer entre o vão das minhas coxas. A
sensação aumenta e me vejo próxima ao precipício, a queda é certa. Mais duas sucções e caio.
Oddio! Caio por um penhasco repleto de arbustos que me arranham no percurso até o
solo, deixando marcas tatuadas em minha memória como meu primeiro orgasmo dado por um
homem e pior, apenas com uma chupada bem dada num seio.
Caralho! Se Fausto Moretto conseguiu esse feito imagine o que ele poderia fazer com
meu corpo inteiro.
O som de prazer que emito preenche o cômodo e sou amparada por uma das mãos de
mio sposo em minhas costas, que evitam meu encontro ao solo no momento do êxtase. Estou
fraca, cambaleando para frente e apoiando a cabeça em seu ombro.
Minha respiração ainda está irregular quando o sinto retornar a regata para o lugar e
encarar meu rosto com um sorriso presunçoso.
— Ainda não te desculpei, Colibrì. Mas adorei ouvir seu canto. Quem sabe se ouvi-lo
um pouco mais possa pensar no caso — diz, deslizando a ponta dos dedos em cima do mamilo
sensível, agora coberto pelo tecido.
— Vo-você pode esperar, então?
— Até o casamento? — Fausto indaga, diminuindo o sorriso porém mantendo o olhar
astuto.
— Não. Até Valentina e Alessio se acertarem.
— Scusami, Colibrì.[78] Mas acredito que tal fato acontecerá após nosso casamento.
— Mas não haverá casamento.
— Oras, seus primos não ficarão noivos?
— Nosso casamento. Esse é o segundo motivo que me fez vir até aqui. Falar para você
que não precisa se casar comigo — informo, soando como uma louca.
— Mas eu vou me casar com você.
— Mas você… — gesticulo para meu seio e a situação por estar sentada em seu colo
fica ainda mais embaraçosa. Levanto-me num salto. — Você perguntou se eu estava empenhada!
— Ah, sim… empenhada em ter minhas desculpas — declara, voltando à postura
relaxada e cruzando as pernas de modo a colocar apenas o tornozelo sobre o joelho. — Acredito
que deveríamos aprimorar a forma com que me pede desculpas, aliás. Na próxima, aconselho a
ficar de joelhos.
— Você é… você é… — esbravejo, dando um passo à frente e quando percebo que
posso cair em tentação novamente, dou dois para trás.
— Um monstro. Eu sei… — Ele boceja falsamente, demonstrando-se entediado. — Já
passamos dessa fase. Está na hora de acompanhar a evolução de nível, Colibrì. — Fausto
levanta-se a seguir, passando por mim e caminhando para a saída. Vejo-o no fim do corredor,
abrindo a porta por onde entrei. — Agora, affrettarsi![79] Vá descansar. Suas aulas começam
daqui a dois dias.
Estou sentindo-me patética pisoteando no lugar como uma garota mimada, algo que
sempre me gabei em não ser. Merda.
Não se ganha uma guerra vencendo-se todas as vezes. Encaro de novo o mafioso-nerd
com a maxilar doendo de tanto que o aperto, querendo esganá-lo. Fui uma boba, pensando que
seria fácil. Rosno baixinho alguns palavrões xingando-o para me acalmar, e decido escolher
minhas batalhas ao caminhar em direção à porta aberta.
— Ainda não acabou — digo, pegando a maçaneta querendo fechá-la com força num
impulso para demonstrar minha insatisfação no gesto de birra. Estou certa de que vou conseguir
até notar uma resistência no meio do caminho. Fausto está segurando a porta.
— Não. Eu sei que não. — Ele gentilmente retira minha mão da maçaneta e fecha a
porta sem o menor estrondo, fico encarando o pedaço de madeira pintado na cor preta com lava
vazando de meus olhos, pois me nego a dizer que são lágrimas de ódio. Não. Esse mafioso testa
de minchia não me fez chorar de raiva. Não mesmo.
Viro-me para o elevador, agradecendo por ser madrugada e não ter ninguém a
testemunhar esse vexame até que as portas metálicas se abrem e Maximus Moretto surge como
um anjo negro, vestido em sua jaqueta de couro preta, jeans e coturnos.
É sério?
— Está tudo bem? — Ele olha por cima do meu ombro em direção ao apartamento de
Fausto, dando um passo indicando que iria questionar o irmão. Enxugo rapidamente o rosto e o
empurro de volta para dentro da caixa de metal.
— Sim. Está tudo certo. E por favor não interfira. — falo sem parcimônia, uma vez que
dos três irmãos, Max tem sido sim o mais fácil de lidar. Deveria ter dito seu nome na mentira do
beijo escandaloso. Por que merda fui pensar que o mafioso-nerd entenderia?
Dentro do elevador, aperto meu andar e aguardo a parada no antepenúltimo que o caçula
Moretto desceria por ser ali sua casa. Ele deveria estar saindo da casa do Don. Reflito um pouco
sobre a vida corrida e sem horários que a Cosa Nostra exige e levo em consideração a oferta de
Fausto para me empenhar mais para ter minha vida desvinculada à famiglia.
Maximus está saindo do elevador em seu andar, e o medo em ferir ainda mais meu
orgulho por ser objeto de discussão entre os Moretto me faz segurar seu braço.
— Não diga nada, per favore — peço, com meu melhor olhar de cachorrinho. Ele
primeiro encara minha mão para em seguida subir até meus olhos suplicantes.
Oddio! A humilhação tinha que ser maior?
— Fique tranquila, futura cognata. Prometo que não vou dizer nada sobre suas lágrimas.
— Grazie — devolvo e me afasto de cabeça baixa. As portas se fecham e permaneço no
elevador, pedindo mentalmente para que ele cumpra a promessa e não interfira.
Madonna mia, melhore a sorte dessa tua figlia. Prometo ir à igreja e tentar ficar dentro
dela uma missa inteira sem escapulir de mammina.
Prometo.
MICHELA ZANCHETTA

A SUV preta estaciona na entrada do prédio da universidade de Palermo. Admiro alguns


segundos a construção que lembra mais uma igreja antiga restaurada, onde há uma escadaria
larga com imensos arcos na parte frontal.
Sinto o frio na barriga por começar algo novo e respiro fundo, bufando o ar
vagarosamente.
— Estou aqui, Chela. Vai dar tudo certo — Francesca fala docilmente, segurando minha
mão trazendo a lembrança nostálgica de quando saímos do ensino domiciliar para a escola
normal.
— Eu sei… — devolvo, aceitando o apoio, carinhosamente. Mia frattela[80] foi por
muito tempo o exemplo que segui. E mesmo que meus sonhos me levam para um destino
completamente diferente, ainda é minha heroína. Sempre será.
A porta se abre e o homem de terno e rosto fechado que faz a segurança de Francesca é
a visão errada que tinha para meu primeiro dia de aula. Todavia, é o que temos.
Confesso que a imagem que formava em minha mente era entrar no estacionamento de
uma universidade dentro da BMW M4 vermelha de Valentina, assistindo seu sorriso de
satisfação por me carregar para longe dos nossos seguranças, tentando novamente me fazer sentir
como uma garota comum.
Ok… não tão comum assim. Mas pelo menos sem homens de terno nos cercando,
chamando a atenção de todo mundo.
— Você pode entrar aqui comigo e despistamos Zaccheo mais à frente, o que acha? —
Tchesca sugere, percebendo meu incômodo.
— E isso é possível? Tuo marito não vai surtar?
— Giulio surta com qualquer coisa. — Ela dá de ombros, sorrindo marota. — Andiamo!
Quero que tenha um ótimo primeiro dia. Só saiba que eles sempre estão de olho, mesmo que não
possamos vê-los, va benne?
— Então, não vamos despistá-los? Porra! — reclamo.
— Geralmente não são eles, eles… entende? — mia frattela cochicha de modo
conspiratório. — A famiglia está em todos os lugares, Chela. Eles podem ou não usar ternos
caros, mas estão por aqui e sabem quem somos.
— Eles, como diz, sabe mais quem você é, Tchela. Ninguém se preocupa muito comigo
— informo o que sempre percebi e nunca me incomodei. Na realidade, a beleza de Francesca era
um chamariz que me dava comodidade em passar despercebida e fugir diversas vezes com
Valentina.
Talvez a preocupação com a prometida do futuro Don tenha levado mia frattela para
este destino também.
— Não seja boba, Chela. Você sempre foi vista por todos e é uma garota esplendorosa
— ela afirma pensando que tenho minha autoestima abalada. Só que não tenho. Sei como me
destacar quando quero e sou feliz com meu corpo e minha aparência. Não ser notada em nosso
mundo é um alento.
— Eu sei, eu sei, Tchela. Não é isso que quero dizer. Saiba apenas que estarei bem. E
essa preocupação em ser vigiada por eles não me alcança, capisco?[81] — Francesca assopra um
sorriso contido, dando por encerrada a conversa. Ela joga a mochila de couro caramelo sobre o
ombro direito contendo seu MacBook e alguns livros que a vi colocar mais cedo após o café da
manhã e pega meu braço apoiando no seu para segui-la.
Hoje mais cedo meu despertador foi uma mulher de 20 anos enlouquecida que me
arrastou para tomar café da manhã em sua cobertura luxuosa, após me presentear com uma
mochila similar a dela para irmos juntas à faculdade. A minha mochila, no entanto, é na cor café.
Tive que observar de perto e ter enjoo matinal com o excesso de amor entre mia frattela
e tuo marito. Ainda é estranho ver Giulio Moretto tão carinhoso com Tchesca. É uma
contradição gigantesca com o homem que só a esnobou desde o dia que a escolheu como noiva.
Infelizmente, Francesca desejava ansiosa para conquistar o coração daquele stronzo. Ela
podia se fazer de forte, mas nunca me enganou.
Observo mia frattela que vestindo jeans, sandália de tiras e uma camisa de linho com o
colarinho aberto, passaria despercebida como uma das alunas mais estilosas da universidade.
Exceto pela aliança de noivado que ainda mantém com a letra “M” junto a de casada que
praticamente fecha seu dedo anelar esquerdo por conta da argola de ouro.
Acredito que já afirmei mais de uma vez sobre o sonho de Francesca em ser a damigella
do Don da Cosa Nostra, não é?
Mas como ela entende o fato de que a atenção toda não me agrada e quer me ajudar, não
vejo motivo para desperdiçar a sugestão e fugir dos soldados.
— Vamos, então! — Tchesca me puxa pela mão, subindo a escadaria.
— Mostre-me o seu pior, frattela. — Aperto a alça larga da mochila em meu ombro
esquerdo, sorrindo para ela.
Seguimos pelo corredor largo e noto que a presença de mia frattela caminhando pelo
campus não é novidade, por isso somos alvo apenas de poucos estudantes que cochicham
enquanto passamos por eles.
— Seu prédio fica naquela direção. — Francesca aponta para além de um vasto jardim,
gramado com algumas árvores que serviam como ponto de encontro de grupos de alunos que
faziam a integração inicial de fraternidades, e conversavam animadamente, o que parecia o
reencontro pós férias.
— E Zaccheo e Carlo vão ficar com você, bem como o terceiro integrante da banda? —
Aponto para o soltato incluso para mim, chamado Paolo. Desde sempre vejo Zaccheo fazendo a
segurança de Francesca com mais um soltato, mas este último fora somado por minha causa.
Don Moretto fez questão de justificar o fato antes de se despedir de sua moglie[82] mais cedo.
— Ele voltará para minha redoma se você obtiver êxito, cara mia. — Francesca agora
soa como uma comandante brincalhona. Ela pega o celular e mostra o aplicativo da universidade
com um pequeno mapa. — Vou te soltar e apontar a direção, como eles esperam. E você vai
apressar o passo assim que virar neste corredor aqui — ela mostra a planta baixa na tela
luminosa. Assim que passar o segundo bloco, terá acesso a outro jardim como este. Lá as salas
são maiores e por ser um bloco voltado à arte, você verá algumas estátuas pelo caminho.
Aproveite bem os esconderijos.
— Você planejou muito bem uma fuga, não? — Ergo a sobrancelha, desconfiada das
artimanhas de mia frattela. — Quantas vezes?
— O quê?
— Quantas vezes despistou os soldados?
— Poucas. — Ela desvia o olhar.
— Por que você faria isso, frattela? É perigoso… — repreendo-a com a voz pequena. Já
sofri o suficiente com o medo de perder mia frattela para o câncer. Sei que para mim e Valentina
brincar em despistar os soldados não é tão perigoso quanto para a moglie do Don. Ainda mais
após a morte ressente do anterior.
— Eu precisava fazer algo sem que Giulio soubesse.
Franzo o cenho, pensando em mil e um motivos para que Francesca escondesse seja lá o
que fosse de mio cognato mafioso.
— Tchesca… está acontecendo algo? — indago preocupada. Ela parece chateada e não
me encara.
— Nada… não é nada. — Tenho impressão de vê-la colocar a mão sobre o abdômen e
fico consternada, pois sempre que via este movimento vindo de Francesca, sou assombrada por
seu martírio para sobreviver à doença duplicado com a tristeza do dia em que raspei sua cabeça.
Foi um momento que marcou nosso coração com brasa, encrostando um vínculo de amor e
cumplicidade sentido por poucos. — Não é isso, Chela.
Francesca é rápida para identificar meus pensamentos.
— Mas você…
— Não. Vou te contar depois. Só me mostre que será uma excelente discípula desta
mestra de fuga aqui — ela brinca e aponta para si mesma, terminando com a sessão nostalgia.
— Está vendo por que sou maluca? Tenho você e Valentina que não me deixam ser uma
boa ragazza. A culpa de ser louca assim é de vocês — esclareço, dando uma última olhada na
tela do celular de Francesca. — Preciso deste aplicativo.
— Já coloquei no seu celular. Pega aí, Chela. — Inclino a cabeça, não me recordando
quando desbloqueei a tela para Tchesca ter acesso ao aparelho.
— Não te passei a senha.
— Como se o dia do meu aniversário fosse surpresa… — contesta com deboche. — É a
mesma senha de mammina. Você demorou muito no banho hoje cedo e aproveitei. Não me olhe
com essa cara. — Estou embasbacada com o atrevimento dela. — Não vi nada demais, só
adicionei o aplicativo. E você também não me esconde nada, ou esconde?
Poderia ficar puta da vida com ela pela invasão de privacidade. Mas sim… não consigo
esconder nada de mia frattela. Pensei que minha identidade secreta de Éloise Duffour fosse o
mais longe que consegui, mas meu segredo durou pouco.
Vamos dizer que mammina insistiu demais para que fizesse um vestido exclusivo para
Francesca, e mia frattela logo descobriu tratar-se de um modelo da famosa estilista dentre as
damigelle.
— Não… — bufo o ar, resmungando um “enxerida” e pego meu celular do bolso da
calça de linho. Hoje nada de calça jeans. Quis me vestir bem para o primeiro dia de aula na
faculdade de moda. Não com excessos, mas uma calça de linho creme, sandálias anabela baixa
com tiras na cor laranja e uma blusa com mangas evasê de estampas assimétricas me destacaram
um pouquinho.
É… talvez despistar o soltato seja mais difícil do que pareça. Só para constar… quando
escolhi as roupas nesta manhã, Francesca não tinha passado seu plano em me ajudar. Eu estava
conformada com o homem de terno que ficaria a certos metros de distância. Todavia, a ideia de
estar por conta própria é muito mais atraente.
— Boa sorte — Francesca fala, dando um beijinho em minha bochecha e segue para a
outra direção, caminhando e sendo seguida por seus soldados logo atrás. Será que eles têm
reportado ao Giulio quando Tchesca consegue escapulir deles?
Algo me diz que alguns soldados estenderam sua lealdade além do Don da famiglia…
não sei.
Sigo para o corredor conforme Francesca orientou e logo vejo o imenso jardim,
diferente por ter monumentos com bustos em bronze de personalidades importantes para a
universidade, penso.
A quantidade de estudantes aumenta e preciso pedir licença para passar e me direcionar
à primeira aula. E sinceramente, acredito que o infelicce atrás de mim deve saber meu
cronograma decorado. Só se invertesse algum horário poderia tapeá-lo, ou se…
Caspita, Tchesca!
Mando uma mensagem para ela.

“Como você consegue sumir, se eles sabem muito bem seus horários
de aula?”

Demora menos de dois segundos quando vejo os três pontinhos indicando que está
respondendo.

“E quem disse que possuem o cronograma correto?”

Sorrio… a danada ficou boa nisso, então?


Mais um ponto para descobrir o motivo, penso, e a sensação descontraída passa a ter
uma pontada de preocupação. Faço uma anotação mental para colocar Francesca na parede e
descobrir o que está acontecendo. Por ora, me atento em ficar satisfeita com sua astúcia.

“Quando precisar fugir, me lembre de contratar seus serviços.”

Ela manda um emoji mostrando a língua com uma piscadinha. Fecho o aplicativo e abro
novamente o mapa da universidade, traçando a melhor rota para percorrer e ser encoberta pelo
mar de cores que se inicia por conta das camisas e blusas coloridas que inundam o corredor.
Pelo visto, não estou tão fora do padrão dos alunos do prédio de artes.
Acelero o passo assim que alcanço o ponto em que Francesca elegeu como início da
corrida e vou na sequência de suas orientações, virando os cantos e então…
— Aiii… Está louca! — Uma garota de cabelos negros e lisos berra.
— Shiii — coloco a mão sobre sua boca, empurrando-a para o lado. — Se me ajudar,
ganha 50 euros. — Ergo a nota, quase esfregando no rosto da ragazza. Ela fica parada e olha ao
longe o homem de terno que estou praticamente despistando.
— 100 euros — negocia de pronto. Dou uma olhadela para trás, vendo que Paolo se
aproxima. Merda.
— Va benne… — esbravejo, retirando outra nota de 50 do bolso da mochila. Xingo
baixinho repensando se vale a pena perder 100 euros no primeiro dia de aula. Não tenho tempo,
pois a agiota agarra as notas enfiando-as dentro da calça jeans larga na parte da frente e me puxa,
trocando nossas posições e inclinando-se sobre mim, com cada uma das mãos ao lado de minha
cabeça. Ela se tornou uma barreira para qualquer um que passasse pelo corredor.
A ragazza mesmo que franzina consegue formar uma barreira com o camisão preto
sobre o cropped sem alças na mesma cor. Como consigo visualizar tudo isso?
Vamos dizer que a proximidade menor que um braço de distância e estar praticamente
enjaulada por ela ajudou um pouquinho.
Abaixo-me, conseguindo enxergar o soltato no vão da axila da morena. Ele rodopia no
lugar até que segue para a outra direção. Respiro aliviada e empurro a usurpadora do meu
dinheiro.
— Não vai me agradecer? — indaga, a desaforada.
— Meu dinheiro o fez por mim, não? — devolvo, dando um solavanco na mochila para
acertá-la sobre o meu ombro. Vejo a ragazza escorar na parede e pegar um celular muito
parecido com… — Ei! Você está com o meu celular! — acuso-a, avançando para pegar de volta
quando ela o coloca atrás do seu corpo.
— Se gritar, seu soltato ainda pode retornar para te ajudar — cantarola irônica. Então,
dou-me conta de que ela sabe que Paolo não é um segurança qualquer ao mencionar o cargo da
máfia. Estaco no lugar, olhando para os lados e averiguando se alguém ouviu. — Nossa… sua
cara foi a melhor. — Ela desencosta e me oferece o aparelho. — Toma. Melhor responder logo a
tal Francesca. Ela parece muito preocupada se conseguiu fugir.
— Você vai contar para alguém?
— Está vendo isso aqui? — Ela coloca a língua para fora e aponta com o indicador. —
Não entrou em bocas suficientes para ser cortada. Então não, principessa. Seu segredo está a
salvo.
— Como sabia?
— Você tem noção de onde mora, ragazza? — Ela estende os braços, aproveitando que
diminuiu a circulação de alunos por conta do horário. — Isso aqui é a Sicília. Só idiotas não
reconhecem a tatuagem na mão de um soltato.
Faço uma análise do que me recordo sobre as mãos de Paolo e a imagem do crucifixo
invertido com uma espada transpassada na perpendicular salta em minha mente. Franzo o cenho,
estudando com outros olhos a morena, pois o símbolo não é divulgado da forma com a qual
mencionou.
Até porque não é um item obrigatório na organização e poucos soldados fazem a
tatuagem. Mas o significado está lá, um lembrete da Cosa Nostra existente no submundo.
— Existem muitos idiotas então — constato.
— Sorte a minha que não sou uma — diz, rasgando com o canino um papel de chiclete
numa postura descontraída. — Quer?
— Não, grazie — respondo, digitando ao mesmo tempo uma mensagem para Tchesca,
indagando sobre minha primeira aula.
— Então vamos logo, ou vai chegar muito atrasada na sua primeira aula de história da
arte. — Ela engata em meu braço, arrastando-me como se fossemos íntimas e demonstrando que
leu mais do que o necessário nas mensagens do meu celular.
— Como você sabe…? — A ragazza ergue uma sobrancelha sugestivamente, fitando o
visor luminoso agora aberto no aplicativo de mensagens. Ela pegou o aparelho antes do tempo
para ativar a tela de bloqueio. — Ah… esquece.
— A propósito, meu nome é Anitta. Anitta Catto.
— Prazer. Me chamo Michela Zanchetta.
— É… eu sei. — Viro o rosto incrédula. — Você deveria aprender a deixar poucas
informações no seu telefone — informa sorridente. Expiro um riso sem humor e encaro meu
celular, notando apenas o nome Michela sem o sobrenome. Então…
Balanço a cabeça em negativa. A ragazza parece saber muito sobre o mundo no qual
vivo, melhor mantê-la por perto até entender o tipo de problema que estou me metendo.
— Pronto. — Ela para em frente à uma porta de auditório. — Se entrar sem fazer
barulho, Signora Aurea não vai notar seu atraso.
— Grazie.
— Ah… e toma. — Anitta devolve as duas notas de 50 euros. Enrugo a testa, não
entendendo nada. — Anda logo, pega seu dinheiro.
— Mas você…
— Não se tira de onde se ganha o pão, principessa — Ela pisca para mim e sai
apressada sem me dar tempo de questioná-la.
Será que?
Francesca disse que a famiglia possui olhos e ouvidos que não vestem terno, só não
pensei que vestiriam calça big e camisão, mas…
Será?
FAUSTO MORETTO

Mordo com mais força do que o habitual meu almoço que, nesta tarde, se resume ao
sanduíche, praticamente desmantelado em uma das minhas mãos.
Se pudesse concretizar com um simples pensamento as operações que devo efetuar na
bolsa e não com uma das mãos ocupadas em digitar no teclado e a outra em manusear o mouse,
poderia ter mais vitelo dentro do pão do que fora dele.
Signora Isabel passou todo o sermão do homem franzino que vou me tornar se manter
minha dieta apenas no paninho com la milza[83] em momento de refeições que devem ser as
principais… para ela, pelo menos.
Porém, se todos os sermões da donna pequena e rechonchuda que criou a mim e meus
irmãos fossem verdade, eu estaria pior que apenas um homem franzino. Bufo um riso sem
humor, assoprando sem querer migalhas do pão crocante sobre a mesa.
Cazzo! Minha governanta pode não ter razão quanto ao meu crescimento muscular, mas
avisou-me em relação à sujeira que faria.
Engulo o bolo formado em minha boca com a ajuda da limonada doce demais para meu
gosto e em seguida assopro a mesa na tentativa de melhorar a situação.
Neste momento, as cores antes vermelhas na tela à minha frente passam a diminuir
dando ênfase ao verde que tanto me agrada.
As velas[84] do token[85] Imperium passam a subir indicando novos investidores numa
sequência cadenciada. Sorrio.
Foi difícil até formatar de modo convincente o objetivo, mas consegui. O projeto
específico do meu token fantasma é um aplicativo voltado para facilitar a parte contábil tributária
de pequenas e médias empresas.
O fator definitivo foi a indicação de diversos sistemas tributários abarcando os 50 países
da Europa, bem como os 35 países da América e outros 10 países da Ásia para garantir a
inclusão do won sul-coreano, iene japonês e com certeza o yuan da China.
Por este motivo, estou extremamente confiante na potencialidade do Token Imperium.
Meu projeto anterior foi tão grandioso quanto, mas ainda estava começando e acabei usando
aplicativos para aprimorar vídeos na mídia social e usei como blockchain[86] a criptomoeda
Ethereum[87].
Agora, a especificidade é direcionada para empreendedores em potencial por conta do
objeto e escolhi a moeda mãe… Bitcoin.
Suspiro alto, entorpecido com a genialidade da minha criação. Sinto-me entorpecido
nesse prazer como mestre do jogo que envolve cifras digitais.
— Ufa… você está gemendo encarando a tela que estou habituado — Maximus invade
meu QG sem aviso e aponta a tela em minha frente. — Se te visse de novo suspirando enquanto
encara o beija-flor, saberia que finalmente Donato teria chance em admirar seu traseiro. — Não
penso duas vezes e arremesso o restante do sanduíche em meu fratello caçula.
O stronzo[88] pega no ar o pedaço de pão e enfia na boca, saboreando o final da minha
refeição. Porra… era praticamente nada, mas ainda assim, arrependo-me. Geralmente a última
mordida sempre é a melhor.
— Ainda corto o dedo da digital que cadastrou na minha fechadura… — grasno, antes
de beber até o fim meu suco, com receio do maledetto se aproveitar também da bebida.
Estremeço com o arrepio na base do maxilar por conta do azedo e do sabor adocicado da
limonada, fazendo uma careta inconscientemente.
— Como que um cara tão bom em logística é tão ruim de matemática, hein? Ainda teria
nove digitais, fratello — Max cantarola, balançando os dedos e sentando-se sem permissão no
sofá que amaldiçoo sempre.
— A intenção em decepar um dedo é servir de aviso para evitar perder os demais,
stronzo — pontuo a ameaça.
— Você sabe que não trabalho bem com ameaças... perderia todos e ainda usaria as
digitais dos pés — Max esclarece, mantendo o ar brincalhão e se acomodando mais ainda no
assento. — Mas você vai ficar feliz com as novidades, então vamos barganhar sobre a
manutenção dos meus dedinhos outra hora, va benne?
— Você escolheu o iate Lady Moura — declaro parte da novidade. O rosto estupefato
de Max, com a informação que julgou ser sigilosa, massageia meu ego tanto quanto a nova forma
de investimento, que faz parte do faturamento da Cosa Nostra.
Claro que o lucro foi bem maior que a previsão exposta ao Consiglio[89], motivo que
incentivou a decisão dos membros da mesa em dar seguimento ao novo projeto.
Sempre mantive nossos investimentos um degrau acima por conta das informações
privilegiadas, que obtenho quando hackeio os sistemas bancários e acesso as transações
efetuadas pelos grupos empresarias envolvidos, antes mesmo que aconteçam no mercado.
Estar um passo à frente é uma vantagem, e eu estou a dez passos ou mais além. Não se
trata de arrogância. Apenas atesto um fato.
Papà tinha receio para me dar alvará e competir no ramo das criptomoedas em virtude
de enxergar o mundo digital como incerto. Para ele, burlar o fisco demandava no encobrimento
de cadernos físicos, o que eu consegui conquistar aos poucos quando demonstrei com êxito
encobrir nossos rastros.
Porém, a moeda digital assustava o antigo Don. Foi o motivo pelo qual mantive em
sigilo meu envolvimento, colocando apenas meu fundo pessoal em risco.
Agora não…
Agora tínhamos valores investidos e valores esperados pela famiglia.
— Que será ancorado na próxima semana na Marina Bella Sirena — diz rápido,
querendo que esta novidade não esteja nos dados que capturei anteontem. Não contenho o riso.
— Você é um estraga prazeres, Fausto. Sabia disso?
Viro a cadeira gamer para estar com o corpo voltado para ele, escorando a cabeça no
encosto e cruzando as pernas com o tornozelo sobre um joelho.
— Grazie, fratello — digo com um sorriso ameno. — Eu posso saber de tudo, mas é
você quem tem feito todo o trabalho. Tenho certeza de que você está cuidando de tudo nos
mínimos detalhes. É um projeto ambicioso. Grazie e complimenti.[90]
O rosto carrancudo de ragazzo mimado de Max muda com um sorrisinho de canto. Ele
replica minha postura na cadeira, cruzando os braços, satisfeito.
— Deu trabalho mesmo — continua sorrindo. — Você não faz ideia… Tem noção de
que consegui a presença de mais de 20 celebridades? Você pediu só 10!
— Deve ter sido muito difícil colocar Xavier Dolan na lista — falo, incentivando-o com
ânimo renovado. Este ator não negaria o convite inclusive por ser diretor e roteirista, pode
parecer inocente sua vinda em nossos eventos, mas sei bem que sua mente funciona para nos ver
e fomentar seu repertório criativo.
— Alba Flores virá, fratello! Sabe quantas veze assisti La Casa de Papel? —
Infelizmente sei, pois ele fazia questão de me contar. — Maisie Willians de Game of Thrones
também! — Max ergue os braços de modo glorioso. — Você sabia que Lady Moura possui um
milhão de ambientes e que precisei correr atrás de 5 DJs e duas bandas para preencher todos?
— Sei… Como também sei que você possui amizade com boa parte deles, e uma
simples ligação do irmão Moretto caçula era suficiente para que todos comparecessem —
informo de pronto.
— E sabe o trabalho que tive para estudar tudo o que passou e ensinar todos os caras
que vão palestrar na festa? — reclama sobre a tarefa que lhe passei. Para tudo possuir a
veracidade precisa, contratamos freelancers. — Sem contar que você exigiu a presença dos
membros do Consiglio.
Pedi para que fosse garantido um espaço para os mais velhos, longe da orgia dos mais
novos. Eles farão parte da socialização com os investidores tradicionais.
Os demais ambientes estão direcionados ao entretenimento noturno, que estimularão a
visão dos futuros clientes com linguagem subliminar relacionadas ao token Imperium em todos
os cantos do iate.
E sim… tudo isso foi feito por Maximus Moretto.
— Caralho, fratello! Pode dizer, vai… — gesticula com uma das mãos, virando o rosto
para o lado no intuito de indicar o ouvido, que seria visto salvo a cabeleira comprida.
— O que exatamente você quer ouvir, caro mio? — indago, esfregando o queixo e
expirando um riso frouxo.
— Que eu sou o Maximus!? Caralho! Que faço jus ao nome que carrego, porra! — Max
me encara, em seguida volta na posição anterior, desta vez colocando a mecha de cabelo detrás
do ouvido. — Vai… pode dizer.
— Maximus, Maximus, Maximus… ó grande Maximus… o que seria do Token
Imperium sem o organizador de festas perfeito? — A pergunta saiu com uma pontada de ironia.
Não foi uma afirmação falsa, porém. — Somente um Maximus conseguiria ter tantas funções —
comento, ficando um pouco mais sério ao final.
Max cobre rapidamente o ouvido e vira o rosto com o cenho franzido até que… o
entendimento surge rápido na linha fina formada por sua boca.
Sim… Maximus tem sido o máximo. Mas sei que pode ser melhor.
Ele está no penúltimo semestre da faculdade com aulas teóricas. No próximo ano será
apenas estágios supervisionados, e sua última prova de Traumatologia e Ortopedia não refletiu
em nada a inteligência de mio fratello.
O que ele estava pensando?
Bom… eu sei em quê. O motivo que levou mio fratello nota 10 ter sua nota reduzida
para 6,8 tem nome e sobrenome, e nenhum deles consta a palavra Imperium.
— Se não tivesse passado o final de semana fora com Simona, sua nota seria melhor do
que isso. — Dou um impulso com a cadeira, pegando seu celular e abrindo no aplicativo da
universidade bem sobre a última nota.
— Ei! — Ele dá um salto e captura de volta o aparelho da minha mão, ficando de pé. —
A prova estava difícil.
— Desde quando você não sabe nada sobre realocar um ombro, fratello?
— Não foi essa questão que errei — replica com um bico feio.
— Ah, não… — Fico em pé também e retiro meu celular do bolso, visualizando a
prova. — Descreva qual o procedimento correto a ser empregado na questão acima, tendo em
vista as imagens de radiografia apresentadas. — Ouço-o começar a tossir. — Você realmente não
sabia?
— Eu estava de ressaca.
— Você não tem ressaca — esclareço com firmeza algo que gostaria de estar errado,
pois sua tolerância à bebida e substâncias entorpecentes não trazem boas memórias. Limpo a
garganta para prosseguir. — O caso era de um ombro deslocado, Max. Você só tinha que
escrever sobre a redução fechada que perdi as contas de quantas vezes já fez inclusive no próprio
ombro!
— Só fiz duas vezes em mim. — Inclino a cabeça com olhar incriminador. — Va
benne… Mas Mona não respondia às minhas mensagens e estava naquela pista das donne[91]
desaparecidas. Fiquei preocupado — revela, cabisbaixo.
— Fratello, la tua ragazza[92] é melhor que muitos soldados — afirmo, confortando-o
com um aperto no ombro. Max suspira, deixando o ar que sai dos pulmões carregar o sentimento
pesado. A seguir, estampa um sorriso maroto e ergue os olhos para mim.
— Você tem certeza? — refaço a frase em minha mente e pressiono as pálpebras
sabendo que cometi um erro. “La tua ragazza” saltando em um letreiro luminoso como os olhos
castanhos de Max. Dou-lhe as costas, virando o corpo e saindo do meu QG. — Não vale voltar
atrás. — Max grita às minhas costas.
Ele não precisa saber todas as minhas intenções em ajudá-lo com seu caso de amor. Não
ainda.
Mas dentre todas as pessoas em nossa famiglia, ele e Giulio são as pessoas por quem eu
lutaria todos os dias para ver felizes. Mesmo que significasse modificar tradições de décadas.
O que convenhamos não deve ser tão difícil quanto inserir a ganância em moedas
digitais do que cédulas de papel num bando de senhores mais velhos, não é mesmo?
FAUSTO MORETTO – PASSADO

Examino novamente a tela do celular no suporte ao lado do volante e acelero. O veículo


é impulsionado à velocidade além do permitido, correspondendo ao desespero em meu peito.
Ainda faltam cinco quadras até o local.
Tudo parece mais lento ao meu redor, salvo a imagem de Maximus convulsionando até
perder os sentidos. O semáforo fica vermelho no exato momento em que me aproximo.
— Porra! Não… caralho, não! — Afundo o pé, tentando captar se algum carro poderia
invadir de antemão a pista. Estou rápido demais e consigo atravessar, ouvindo apenas o eco de
algumas buzinas.
Cada rotação do motor costuma ser uma descarga de adrenalina em minha corrente
sanguínea, mas estou emocionalmente muito além para que faça diferença.
Já participei de algumas corridas clandestinas por curiosidade. A adrenalina obtida pela
velocidade nunca foi atraente para mim como é para mio fratello mais novo. Ele sente-se à
vontade no ambiente repleto de faróis e barulhos ensurdecedores.
Finalmente ouço a competição de batidas eletrônicas dos alto-falantes e motores
rangendo. Confiro a tela com o mapa. Mais duas quadras e… desacelero para não rodopiar
enquanto faço a curva.
As pessoas abrem espaço reconhecendo o Bugatti Chiron preto com as faixas
alaranjadas no capô, fazendo um detalhe ao centro que forma a letra “M”. Um dos carros de
Maximus.
Ninguém se atreveu a ir embora… Porém, abro o vidro e gesticulo para sumirem.
Observo que quem não entendeu foi logo informado por algum soldato acostumado comigo,
começando a desaparecer aos poucos.
O lugar estava repleto de carros e algumas motos, a maioria dos veículos estavam
ligados, exibindo o roncar dos motores, o que facilitou a evasão rápida da pequena multidão.
As cores vibrantes e luzes de neon se afastando, remetiam às cenas de velozes e
furiosos.
Max era um dos pilotos da corrida de hoje.
Ele vinha organizando há algum tempo esses rachas, escolhendo lugares mais afastados
e entrando em contato com toda tribo do meio automobilístico do submundo.
Em suas corridas, pilotos do mais alto escalão da nobreza, bem como da elite das ruas se
faziam presentes. Aqui, eles eram iguais, a depender do carro de corrida, claro.
O negócio cresceu e todos queriam participar das crepe dell'auto[93] de Maximus
Moretto.
Confesso que fiquei orgulhoso quando o vi sorrindo embaixo de uma chuva de euros
após vencer uma corrida. Esse entretenimento calava a boca dos vecchio, pois Max pagava o
tributo exigido pela Cosa Nostra e mostrava serviço além de ser calouro na faculdade de
medicina.
Os estudos para parte do Consiglio era uma fachada e o respeito tão somente viria com o
dinheiro obtido do modo tradicional da famiglia.
Então… vendo Max no caminho que aprendemos, fiquei displicente na vigilância.
Pensava que ele dava alguns shots esporadicamente com seus amigos. Afinal, todos nós
passamos por isso e usar todo tipo de droga era normal vez ou outra em nosso meio, não?
Não sei mais a resposta para essa pergunta.
Sinto-me culpado, pois eu vi mio fratello chapado diversas vezes e deveria saber que
dentre todos em nosso meio, ele seria o único que conseguiria me ludibriar com facilidade. Via
suas pupilas dilatadas e quando o indagava aceitava a resposta, me contentando com a simples
mentira que afirmava todas as vezes: “resultado da ressaca”. Porém, pensando melhor, ele podia
nem ter dormido para ter uma.
Mio fratello aprendeu os pontos cegos da mansão Moretto e seu organismo de modo
surpreendente passou a não responder ao excesso de entorpecentes do modo habitual a qualquer
pessoa. Sua mente poderia estar completamente entorpecida enquanto que seu corpo refletia
movimentos comuns. Como não percebi?
Maximus não tinha ressaca em nossas noites na boate Illusione di Rose[94].
Caralho! Como não me atentei aos sinais que começaram numa maldita festa de
noivado?
Lembro-me de que Max ainda não havia chegado, nostro padre[95] estava furioso e
chamou a atenção de Giulio por não saber o paradeiro dele. Não tinha como mio fratello saber,
pois usava das informações que seus soldados[96] forneciam, e Maximus, aprendeu rápido a
despistá-los.
Mas eu… porra! Meus olhos vigiavam a Sicília. E mio fratello… Arg! Prenso os dentes,
sentindo o maxilar estralar pela raiva.
Saio do carro, batendo a porta com força e caminho apressadamente até o veículo de
Max, onde ele está acomodado no banco baixado do motorista. A visão da boca roxa e os olhos
fechados de mio fratello inconsciente apertam meu peito, minhas costelas se contraem
dificultando a respiração.
A sensação de impotência abala completamente meus sentidos. Ele não pode estar
morto. Não pode.
De repente o mundo gira e o quadro se transforma em um borrão rodopiando à minha
frente. Aperto as pálpebras sem entender, a saliva mal descendo por minha garganta.
Che cazzo![97]
Abro os olhos e sinto ter viajado quilômetros de distância. Estou em uma dimensão
paralela, na qual o chão está mais próximo do meu rosto e minha calça social preta mudou para
um short de algodão verde; meus sapatos lustrosos são um par de tênis e no mesmo movimento
rotacional de antes, o cenário se altera para a sala de estar da mansão Moretto. Percebo estar
perto do acesso às escadas.
— Chiao, bambino mio[98]. Quer brincar com tua mammina[99]? — Ela está tão bela
como sempre. Seus cabelos escuros num penteado preso, usando um vestido branco de verão.
Mammina parece um anjo. Mas seus olhos… não consigo ver os brilhos em seus olhos. — Tuo
fratello também quer brincar. — Maximus estava dormindo em seu colo, com a cabeça tombada
em seu ombro.
Ela voltou depois de muito tempo do lugar que papà a levou para exorcizar o fantasma.
Ele não apareceu mais. No dia em que voltei do hospital, recuperado da hipotermia por conta de
ficar em nosso freezer, não a vi em casa. Papà contou que mammina estava doente e por isso
precisava se cuidar. Ele não entendia.
Fiquei triste, pois Giulio chorava todos os dias escondido. Ele pensa que não sabia das
vezes em que trancava nossos quartos à noite. Eu sabia. Mio fratello mais velho sempre cuidou
de nós. Era o certo. O mais velho cuida do mais novo. Então, Maximus era minha
responsabilidade também.
— Do que vamos brincar mammina? — indago apreensivo. Será que Giulio está em seu
quarto? Será que mammina o colocou de novo no armário? Ouço vozes masculinas se
aproximarem. Papà deve ter voltado mais cedo do trabalho. Alívio. Mas mia mammina ainda
está no alto com Maximus desacordado. — Podemos chamar Giulio? — tento ganhar tempo e
olho para trás, constatando a presença de mio padre. Ele ainda não notou que mammina está no
mezanino com Max.
— Tuo fratello dormiu dizendo que queria voar, caro mio. Vamos ver se ele consegue?
— Não! Grito em pensamento, o corpo pequeno de mio fratello caindo com seus braços e pernas
acima do tronco. Mesmo tudo acontecendo muito rápido, para mim está em câmera lenta.
— Chiara, NÃO! — Ouço o grito de papá, sentindo o empurrão para o lado; na
sequência, vejo-o saltar após o impulso que conseguiu pisando no sofá. Ele pega mio fratello no
ar e cai, batendo as costas no chão. Logo, o choro de Max ecoa na sala, indicando que acordou
durante a queda.
Estou sentado no chão sem me mover. Mio fratello estava em uma situação de risco e eu
assisti sem fazer nada. Olho para cima em busca de mammina que não está mais lá.
Não era ela… era o fantasma.
Papà reconforta Max dando palmadinhas em suas costas, dizendo baixinho que estava
tutto benne. Não está. Eu não me movi para salvá-lo. Eu… podia ter perdido mio fratello. Minha
garganta arranha no instante em que libero o choro, tornando-se compulsivo a cada segundo em
que a cena de Max caindo se repete em minha mente com o final triste do seu corpo no assoalho
de madeira.
Ele podia ter morrido, Dio Santo! E eu não fiz nada…
— Fausto? Fausto, fratello, calma… passou. — Giulio me envolve em seus braços.
— Ma-mammina… e-eu… — soluço, com a culpa que machuca meu coração.
— Não é culpa sua, bambino — papà se aproxima, sentando-se ao nosso lado,
abraçando-nos desajeitadamente, querendo que seus três filhos caibam em seu colo. Ele nos
consola. — Papà está em casa agora. Está tutto benne — ele afirma, acariciando minhas costas e
as de Giulio, com Max ao centro pendurado em seu pescoço.
Meu peito ainda dói. Não está nada bem.
Preciso arrumar um meio para proteger miei fratteli do fantasma. Tenho que saber antes
de todos para que nada aconteça com quem amo.
Mas como? Como enxergar os olhos de mammina e descobrir se é ela ou não?
Se eu pudesse estar em todos os lugares… Abraço de volta e aperto o máximo que posso
papà, Giulio e Maximus. Não posso fraquejar de novo. Preciso ser como papà e agir antes do
infortúnio. Ainda não sei o modo que farei, mas vou descobrir.

— Fausto! Fausto! Responda, stronzo! Está com ele? — A voz de homem rugindo do
outro lado do telefone em minha orelha indica que voltei ao presente e Giulio parece tão aflito
quanto eu.
Em algum momento atendi ao telefone e me agachei pegando o pulso de Maximus.
— Está com a pulsação fraca. Vou levá-lo ao hospital. Não se preocupe. — Aceno para
que outro soldato me ajude a carregar Max até meu carro.
— Va benne. Vou chegar logo. Não deixe o stronzo morrer. Eu quero matá-lo quando
chegar aí. — Giulio esbraveja, porém, noto a preocupação pela entonação da sua voz. Bufo um
riso de escárnio em resposta.
— E papà? — indago.
— Vou ligar para ele agora.
— Faça antes que descubra por outra pessoa. — Giulio não se despede ao desligar,
enquanto que eu dou alguns comandos no aplicativo do celular que criei para facilitar minha vida
no trânsito de Palermo antes de acionar a ignição do Bugatti. Não quero ter os mesmos
problemas com os faróis, então, deixo-os todos livres pelo caminho até o hospital.
Olho algumas vezes no banco do carona, ajeitando a cabeça de Maximus que tomba
para os lados nas curvas.
— Stronzo! Não ouse morrer antes de mim — brigo com ele.
Assim que estaciono no setor de emergência, alerto os plantonistas sobre o caso de
overdose. Mio fratello é levado em uma maca ainda desacordado, mas agora com enfermeiros e
médicos ao seu redor.
A equipe médica movia-se com eficiência quase mecânica, enquanto eu caminhava
junto à maca.
Fico ansioso e sinto um arrepio se misturar à combustão de emoções. A porta de entrada
para ala mais reservada era como um portal do meu inferno pessoal, sugando não apenas Max,
mas também minha alma sombria. Eu merecia estar em seu lugar. Falhei de novo com mio
fratello.
Seu rosto está mais pálido do que antes. Os lábios num tom azulado que me assusta e
agora seu corpo parece dar pequenos espasmos. Porra, Max!
— Ele está tendo uma parada cardíaca! — Um médico grita. Dio… não! Não! Entramos
em um setor aberto, pessoas me empurram para longe, mas eu luto para ficar.
Não posso perder mio fratello! NÃO!
Aparelhos são alocados na lateral da maca, uma médica faz massagem cardíaca
enquanto outro prepara o desfibrilador. O som elétrico seguido do corpo de Max subindo da
maca com o impulso remontam emoções que pensei jamais reviver. Maximus… per favore…
Levo as mãos e seguro meu rosto molhado de lágrimas. Mio fratello não pode morrer.
Ele não pode…
Dou um passo à frente, mas alguém me segura dizendo que ali era o máximo permitido.
Maximus não reage. Oddio! Uma onda de angústia toma conta de mim, apertando meu peito com
uma intensidade sufocante.
A equipe médica parece estar desestimulada e diminuem a frequência do choque que
alavanca o corpo de Maximus.
— NÃO! NÃO PAREM! CONTINUEM OU TODOS AQUI MORREM! — ameaço, e
mesmo parecendo atender ao meu torpor, fazem mais duas vezes e então… Finalmente, o apito
do monitor que colocaram em algum momento traz esperanças. Choro e rio ao mesmo tempo.
Ele voltou. Mio fratello me ouviu e voltou para nós.
Outros procedimentos são realizados e as palavras mais calmas dos médicos
demonstram que o perigo passou. Respiro aliviado.
— Signore, é melhor esperar lá fora agora. Vamos cuidar do tuo fratello — uma
enfermeira me guia para fora. Estou anestesiado pela pós combustão de emoções que apenas
meneio a cabeça e sigo na direção guiada.
Caminho sem rumo, sentindo o celular vibrar constantemente. Giulio deve ter chegado.
Ando perdido e enfim, adentro a sala de espera, encontrando cadeiras vazias e um
silêncio que pesava mais do que uma tonelada.
Sento-me, apoiando os cotovelos nos joelhos e esfrego o rosto, entrelaçando os dedos
atrás da nuca. Meus olhos encaram o chão e meus ombros pesam pelo sentimento que carrego.
Eu falhei.
Passos e duas vozes muito conhecidas se aproximando me tira do momento de
autopiedade.
O Don da Cosa Nostra e o mais novo Sottocapo estão caminhando pelo corredor como
donos do hospital, com um pequeno grupo de soldados e mio Zio Marcelino.
— Onde ele está? — Mio padre se direciona para mim e eu aponto as portas duplas por
onde passei minutos atrás. — Giulio, quando Maximus sair daqui ele irá para a clínica e você
não irá me impedir desta vez.
Giulio não responde, baixando o olhar culpado tanto quanto o meu.
— Como ele está? — Giulio indaga.
— Estável, acho. Agora só podemos esperar — respondo.
Mio padre respira fundo e antes que mio fratello mais velho possa antever seus
movimentos, ele puxa a nuca de Giulio, colocando seu rosto na curvatura do pescoço, segurando-
o firme num abraço.
Mio fratello fica parado, sem se mover em resposta. Era o máximo de carinho que
conseguia.
Papà me olha e acena para fazer o mesmo com o outro braço. Levanto-me e como tuei
figli aceitamos o abraço de nostro padre, que mesmo seguido de soldados como o Don da Cosa
Nostra demonstra seus sentimentos como qualquer italiano emotivo.
Giulio costuma ser arredio na maior parte do tempo com papà, por um motivo que ainda
desconheço, mas agora não se afasta.
— Ele é um bambino forte. Vai sobreviver, va benne? — Papà dá dois tapinhas em
nossas nucas e nos libera, sentando-se em seguida em uma das cadeiras. Ele nos encara por certo
tempo. — Ouçam bem. E Maximus ouvirá assim que estiver no quarto. É uma ordem. — Ele
inspira o ar com força e expira como se preparando para dizer algo extremamente importante. —
Vocês só podem morrer depois de mim, va benne?
— Está louco, Tony? — Zio Marcelino pergunta e senta ao seu lado. — Como os
bambini podem prometer isso?
— Cuida dos seus que cuido dos meus, Tchelino. Eles estão proibidos.
E na sequência, os irmãos Moretto mais velhos passam a discutir sobre o dever de
sobrevivência que os mais novos devem, ou não, aos pais.
— Café? — Giulio vira para mim, erguendo uma sobrancelha, revelando que não está
em condições de suportar a conversa. Assinto, vendo uma enfermeira arriscar a vida ao ir até os
vecchio que estão no topo da Cosa Nostra fazerem silêncio.
Passado quase uma hora, retornamos vendo que papà e Zio Marcelino não estavam mais
na sala de espera. Uma enfermeira surgiu do nada informando o número do quarto no qual
haviam transferido Maximus.
Entramos no quarto, e nostro padre está segurando a mão de Max, fazendo carinho no
dorso com pesar estampado no rosto. Ele também se sente culpado.
Os olhos de Max estão fechados no momento. Ele possui acesso no braço com uma
bolsa de medicamento pendurada na haste de metal por onde a cânula segue até seu braço. A
imagem é dolorida, mas estou aliviado ao constatar que seus lábios estão rosados.
Maximus está vivo. Ele sobreviveu.
Grazie Dio. Grazie.
Encaro o corpo inconsciente de Max e faço uma promessa: Vou cumprir com o pedido
de nostro padre, protegendo todos os que amo, mesmo que signifique ir até o inferno para trazê-
los de volta.
MICHELA ZANCHETTA – PRESENTE

Gostaria de poder usar óculos de sol em aulas tão chatas como essa, juro. A sala está
imersa em um silêncio aterrorizante, quebrado apenas pelo barulho de digitação que alguns
alunos conseguem fazer nos notebooks. Como é possível?
Também não sei. Mas eles fazem por prazer em torturar os pobres computadores
portáteis.
Estou aqui, sentada na última fileira da sala de aula da morte, tentando entender como
diabos a Antropologia Cultural da Moda se tornou uma disciplina obrigatória.
Não me entendam mal, eu amo a faculdade, mas essa matéria é como um vestido justo
demais que estrangula nossos quadris, parecendo que vai explodir o zíper a qualquer momento.
A professora, com seu entusiasmo desmedido por tecidos, tendências e subculturas
fashion, tenta me convencer de que o estudo da moda é como decifrar um código secreto da
humanidade. Enquanto ela fala sobre a revolução representada por uma bota over-the-knee,
penso em enviar mensagens desesperadas para Tchesca.
Suas aulas costumam ser tão entediantes quanto essas e para deixar claro o quanto temos
gostos diferentes, mia frattela adora digitar informações em seu MacBook. Aff…
Olho para a porta, e sinceramente, sentar tão próxima a ela tem sido uma tentação
terrível. Torço o nariz para o lado analisando minhas opções: ficar, fugir ou pegar o celular?
O monitor já passou a lista de chamada, sair antes que a aula termine não seria um
sacrilégio e nem apareceria para a coordenação. Aliás, eu estaria fazendo um serviço para a
humanidade, mostrando que é possível sobreviver a essa tortura sem perder a sanidade.
Enviar mensagens para Tchesca parece a opção mais fácil:

"Tchesca, estou na aula de Antropologia da Moda e me sinto como se estivesse


num desfile de moda alienígena. Socorro!"

Ela, a sábia futura advogada da Cosa Nostra, responde com seu pragmatismo
característico em quem pretende defender os soldados pegos sem querer:

"Frattela, absorve o máximo que conseguir. Impossível não aproveitar um


pouquinho das nuances da sociedade através da moda na elaboração dos seus
croquis."

Minha amada irmã tenta me incentivar a permanecer na sala de tortura. Neste momento,
assusto-me com o excesso de tec-tec ao meu lado. Uma colega deve ter digitado um parágrafo
inteiro errado já que está trucidando a tecla backspace. O que será que o mafioso-nerd faria numa
situação como essas?
Balanço a cabeça para retomar o juízo. Por que fui pensar no infelicce? Caspita! Digito
apressada outra mensagem para desviar o pensamento.

"Tchesca, a única coisa útil que aprendi até agora é que jeans rasgado é
considerado 'expressão artística'. O que será que Michelangelo diria sobre isso?"

Ela manda emojis de gargalhadas, o que me faz sorrir naquela sala de aula cinza. Pelo
menos alguém está se divertindo com minha agonia antropológica.
Enquanto a professora desvenda os segredos escondidos nas dobras de cada saia e nas
cores de cada blusa, eu tento me manter sã e me consolo pensando que, no final, posso usar essa
bagagem cultural para impressionar alguém em um dos eventos da famiglia. Imagine a cara da
Signora Spadotto quando eu lhe dissesse: "Você sabia que a escolha entre saltos altos e
sapatilhas pode definir o destino de uma civilização? Ah… e o vestido que a Signora está usando
fui eu quem desenhei, va benne?”
Tudo bem que a segunda parte é um sonho impossível. Mas quem está sob tortura
possui a tendência em se autoflagelar mentalmente, não é mesmo?
Espero do fundo do meu coração que ninguém saiba a resposta para minha pergunta
maluca. Veja bem, Universo, se serve de consolo, a Signora alta de cabelos num corte chanel
perfeito, usando uma saia mid xadrez e cropped preto soltinho, está fazendo um ótimo trabalho
como carrasco.
Por ora, vou sobreviver ao meu inferno particular independentemente do que seja.
Afinal, ouvi certo dia que apenas quando se chega ao fundo do poço é que começamos a escalar.
Se já não tivesse guardado meu Macbook teria anotado a frase para usar em um
momento marcante e não apenas para descrever minha agonia ao notar que o relógio parou no
instante em que a aula começou. Gemo baixinho de desgosto.
Olho para a porta novamente que possui uma janela de vidro ao centro e noto uma
ragazza de cabelos escuros presos num rabo de cavalo alto. Ela vasculha a sala de aula até me
encontrar encarando-a de volta.
Anitta gesticula, mimicando com a boca para que saia da aula. Dio Santo, o que é isso?
Quer que eu seja uma brava ragazza, mas fica mandando a tentação?
Aponto para a frente, indicando que a tortura está em seu ápice. No entanto, minha mais
nova amiga gesticula com mais voracidade. Não adianta falar que não tentei… não é?
Coloco meu celular no pequeno zíper que costurei nas costas da mochila, um adereço
que se fez necessário ao constatar que uma garota de mãos leves passou a conviver comigo, e
saio da sala.
Assim que fecho a porta, fito minha salvadora com uma carranca falsa.
— Sabia que a aula estava muito interessante?
— Ah sim… deu pra ver o quanto você estava prestando atenção enquanto digitava algo
no celular — ela informa, colocando uma mão na cintura. — Nem adianta mentir, principessa.
Você odeia as aulas teóricas.
Franzo o nariz fechando os olhos numa careta engraçada, pois fui pega pela mentira.
— Eu tento, juro. Mas caspita! É muito difícil.
— Alguém disse que era fácil? — ela emenda. — Anda. Vem comigo que preciso ir à
biblioteca. Tenho que devolver o livro de química avançada.
Essa é a senha para: vou vender oásis para algum nerd. Descobri depois de uma semana
o significado da frase que a ragazza disse no meu primeiro dia de aula ao devolver os 100 euros.
Ela, como tantos outros dentro da universidade, é fornecedora da pílula mágica da Cosa
Nostra chamada Oásis, um comprimido lilás que promete tornar os estudantes mais focados, e
consequentemente, permite passar horas, às vezes alguns dias, acordado.
Estou bem interessada em usá-la quando precisar estudar para antropologia.
— É o mesmo gatinho que comprou da última vez? — pergunto animada. O sujeito
possuía aquele estilo tímido, sabe? No corpo de um jogador de Hóquei, cabelo loiro e olhos
verdes atrás de óculos. Cazzo! Como é sexy um homem usando óculos.
— Tá ligada que você é noiva, né? Tipo assim… Não quero estragar o seu barato, mas o
Sottocapo é bem diferente do Marco. — Bufo o ar, enfadada. Ela não precisava me lembrar. Tem
sido difícil suficientemente não pensar em mio sposo provisório. Ainda mais quando ele aparece
em todos os meus sonhos eróticos. Não consigo nem ao menos bater uma siririca sem pensar no
infelicce. Tesão reprimido é foda.
Talvez a ideia maluca de Valentina não seja tão ruim. Perder a virgindade com o
Sottocapo antes do rompimento pode ser uma oportunidade única, não é mesmo?
— É… eu sei. Mas uma ragazza pode sonhar. — Suspiro, refletindo não mais sobre o
nerd, mas sim o mafioso-nerd.
— Só tenho essa entrega e aí podemos ir naquele café que gosta, o que acha? Chama a
[100]
regina para ir também — Anitta sempre se refere à Francesca com o apelido de rainha.
— Ela tem um compromisso depois.
Francesca contou por cima que tem ido com frequência ao médico. Fiquei preocupada,
porém ela insistiu que o tratamento é algo parecido com o ortomolecular que mammina tem feito.
— Está de carro, então? — Consegui depois de insistir muito ter a liberdade de dirigir
pelo menos. Não que esteja sozinha, pois o carro de Paolo está colado e me segue por todos os
lugares. Mas… a certa distância que me dá a ilusão de ser normal.
— Estou — respondo.
— Sozinha?
— Se está perguntando dentro do carro, sim. — Ela estala a língua e me puxa para
acompanhá-la.
— Que pena… adoro ver as bochechas de Paolo vermelhas quando falo putaria. — Ela
faz bico e seguimos para a biblioteca.
Caminhamos pelos corredores até a letra da tal pesquisa que minha amiga pediu para a
bibliotecária. O ragazzo já estava lá, escorado na prateleira, folheando um livro distraidamente.
— Demorou, bella — fala, sem nos fitar nos olhos. Ele mantém sua atenção no livro. Às
vezes, sinto que esses ragazzi tratam muito mal mia amiga. É como se eles a desprezassem de
graça. Não entendo. Ela é quem mais fornece o Oásis para eles. Também não sei como consegue
ter uma quantidade maior do que os demais, no entanto nunca perguntei a respeito.
— Aqui — Anitta joga o pacote e Marco ergue o olhar tão somente para agarrar suas
pílulas no ar. Neste instante, detecta minha presença e sorri. — Onde está meu dinheiro?
— E ela está acompanhada… ora, ora… — o bonitão graceja. Ele passa a mão livre pelo
cabelo e dá um passo à frente alcançando minha mão, beijando-a em seguida. Viro o rosto,
enrubescida. — Como está, carino?
— Ela está muito bem e acho melhor você manter distância. — Anitta o empurra ao
mesmo tempo em que me coloca atrás de seu corpo protetivamente.
— Não perguntei para você, zanzara (mosquito), e sim para a bella Zanchetta. — É…
meu sobrenome tem sua fama não apenas como as preferidas do clã Moretto, mas também pelo
patrimônio que mio padre possui no grupo empresarial da famiglia.
O detalhe é que boa parte da fortuna foi adquirida não por aquilo que a mídia propaga
nas notícias.
— Eu estou muito bem e gostaria que tratasse melhor minha amiga — devolvo
emburrada. Quem ele pensa que é para ser desaforado com alguém que vende justamente aquilo
que precisa? Deveria ter receio das informações que Anitta possui e não ser desrespeitoso.
O ragazzo fita Anitta agora com uma sobrancelha erguida.
— Tornou-se uma protegida, agora? — indaga, mantendo o ar de superioridade.
— Não te interessa — ela replica, insegura.
— Não se trata de proteção e sim de amizade. — Seguro o braço de Anitta, prostrando-a
ao meu lado. — Espero que saiba o significado de ser amiga de uma Zanchetta.
Começo a sair do corredor escuro puxando Anitta comigo.
— Esperem! — Marco nos chama. — Prometo tratar tua amiga melhor, bella, se vier ao
meu aniversário esta noite. — Ele joga para cima o saquinho cheio das pílulas lilases. Miro de
súbito Anitta sem entender o motivo que fez o sujeito comprar tantos comprimidos para uma
festa, já que ouvi falar apenas sobre a necessidade deles para os estudos.
— Você quem sabe… se você for, eu vou, acho… — Minha amiga dá de ombros,
deixando claro que a decisão era minha.
— Será bem-vinda se trouxer a principessa Zanchetta — ele declara, passando por nós.
— Pub The Hole Bar. É só dizer “sou uma farfalla Rocatti”. Esta é a senha para minhas
convidadas especiais — Marco fala baixo por cima do ombro e desaparece virando no final do
corredor.
No instante que tenho certeza de estarmos sozinhas, seguro os ombros de Anitta.
— Por que caralho o sujeito nerd comprou Oásis para uma festa?
Ela expira um riso sem humor, com os olhos para o lado.
— Jura mesmo que não sabe? — Permaneço na mesma posição, aguardando até que a
ragazza tão maluca quanto eu, me encara de volta. — O Oásis misturado com outra coisa
promete viagens diferentes, principessa. Por isso, vende tanto, capito?
Libero seus ombros e dou um passo para trás desnorteada. Caralho. Como sou
ingênua… pisco algumas vezes, pensando que meu cérebro de certa forma buscava diminuir os
pecados da famiglia.
Veja bem, se o Oásis fosse apenas uma pílula que ajudasse os alunos, não seria tão mal
para a sociedade como uma droga qualquer que destrói o cérebro de alguém. E talvez o comércio
ilegal não seria tão péssimo assim. Ingênua… não disse?
— Ow… — Anitta estrala os dedos em minha frente. Saio do perfeito mundo de
Michela e bufo, torcendo os cantos da boca para baixo. — Acordou… — diz debochada. — E
aí? Vamos à festinha? Marco pode ser um stronzo, mas suas festas são épicas.
— Acho que sim… Só preciso descobrir um jeito de manter Paulo longe ou pelo menos
com uma roupa casual.
— Roupa casual não é problema. Já vi seu segurança gato sem o uniforme de terno e
cazzo… pegaria fácil.
— Já viu é? — trombo em sua lateral com o ombro enquanto saímos da biblioteca.
— Sabia que os soldados têm vida além de seguir as principesse da Cosa Nostra, não
sabia?
— Jura? Achava que Paolo ficava 24 horas atrás de mim — retruco, debochada.
— Sciocca[101]. — Finalmente chegamos ao meu carro e noto mio soldato a alguns
metros de distância nos seguindo. — Não precisa pedir para tuo papà, não? — A pergunta foi
feita para tirar sarro da minha cara, todavia eu realmente penso para quem deveria pedir
permissão.
— Andiamo. — Destravo o alarme do meu FIAT 500 branco.
— Para uma principessa da máfia, seu carro é muito classe média, Chela — Anitta
reclama ajeitando a mochila entre as pernas e sentando-se no carona.
— É a melhor forma de levar apenas minha amiga sem espaço para soldato e também…
encontro vaga em qualquer lugar — estalo a língua.
— Com certeza. Essa lata de sardinhas cabe em qualquer buraco. — Devolvo com uma
careta.
Aciono a ignição e sigo para a melhor cafeteria que encontrei no bairro próximo à
faculdade. Ficamos caladas ouvindo Rose Villain cantanho “Io, me Ed altri guai”, pelo caminho,
as duas perdidas em seus pensamentos.
Em Messina, por mais que tinha a falsa impressão de estar escapulindo nas noites de
balada com Valentina, dois soldados me acompanhavam. Parece até que sabiam o horário que
sairia pela sacada, descendo cuidadosamente pelos degraus feitos de suportes de plantas de
mammina. Foi uma das muitas ideias preciosas de Valentina quando se ofereceu para mostrar ao
jardineiro onde deveria perfurar a parede. Muito prestativa mia cugina, não? Aqui não teria como
descer por minha janela.
Assopro o ar conforme me sinto abatida pela frustração.
Teria que pedir ao Don Moretto para ir a minha primeira festa de faculdade?
O farol verde em minha frente parece iluminar justamente neste momento.
Merda.
MICHELA ZANCHETTA

A brisa salgada do mar acaricia meu rosto enquanto eu e Anitta caminhamos em direção
ao pub à beira mar. Aquele som das ondas batendo na praia cria uma sinfonia perfeita para a
noite que se desenha diante de nós.
Anitta está linda com uma calça justa preta e uma blusa de alças finas vermelha. A
maquiagem carregada nos olhos combina com os fios lisos e sedosos de seu cabelo escuro que
desce por suas costas. Ela reflete a imagem da sedução feminina.
Como não queria me destacar, optei por um macaquinho nude, porém aprimorei o look
com acessórios dourados. A peça de roupa tão simples não corresponde à dificuldade que passei
para subir o zíper e fechar o colchete nas costas. Ainda bem que Francesca me ajudou.
Na verdade, mia frattela interviu por mim inclusive com tuo marito que a princípio
negou meu pedido. Todavia, Tchesca soube fazê-lo mudar de opinião rapidinho. Não sei o que
ela barganhou além da presença de não um soldato, mas três em meu encalço. Enfim. Eu estou
aqui. Isso que importa.
A ansiedade já me envolve, e é quase como voltar para casa, um pouco da vida noturna
furtiva que vivia em Messina… com só dois soldados, no entanto. Repuxo o lábio para o lado,
averiguando sobre o ombro os uomini d’onore vestidos sem os ternos, mas com a feição séria
que todos carregam quando estão em missão.
Mesmo que a missão seja ser babá de uma donna de 19 anos. Balanço a cabeça,
querendo esquecer-me dos detalhes.
No minuto que alcançamos a entrada, damos a senha que Marco havia dito na
biblioteca. Os seguranças nos dão acesso barrando por dois segundos os soldados que falam algo
em tom baixo e tão logo são liberados para nos seguir.
É… nada diferente, afinal.
Volto minha atenção para o lugar. O pub se revela uma explosão de luzes dançantes e
risadas animadas. As notas de músicas misturam-se ao burburinho das conversas, e sinto a
energia pulsante.
Anitta, ao meu lado, domina o ritmo da balada, balançando os quadris suavemente, seus
olhos me fitam, brilhando e indicando que a noite promete muita diversão.
— Quer uma bebida? — mia amica[102] pergunta próxima ao meu ouvido, já que é
impossível conversar por conta do volume da música.
— Quero algo com vodca — indico a preferência pela bebida que Valentina me ensinou
ser a melhor escolha para esquecer nosso mundo. Ela só se esqueceu de dizer na primeira vez
que tomei, que também esquecemos tudo o que acontece depois do quarto copo.
Bom… Estou no território de Don Moretto, com segurança reforçada. Então… foda-se.
Anitta sorri satisfeita com minha escolha e acena em direção ao bar. Sigo-a, balançando
no ritmo que fomos envolvidas pelos corpos ao redor.
A cada passo, o mar de rostos conhecidos e desconhecidos se mescla. Alunos da
faculdade que, durante o dia, parecem seres pacatos, agora se entregam à dança e à orgia, já que
alguns estão grudados ao ponto de não saber onde começa o braço de um e termina o do outro.
Sorrio, sentindo-me uma universitária como outra qualquer.
Os DJs em cantos estratégicos mantém o ritmo da festa, cada batida ecoando nos meus
ouvidos e fazendo meu corpo responder automaticamente com sensualidade.
Caminhamos em direção ao bar, onde um leque de bebidas coloridas se destaca. Minha
sede se mistura ao entusiasmo que apenas a liberdade pode oferecer, por isso aceito de bom
grado a taça grande com uma bebida vermelha que Anitta me oferece.
Seguro o canudo e dou o primeiro gole, saboreando o doce da melancia com um
pequeno ardor na garganta pelo excesso de vodca. Anitta pede outra bebida parecida, mas num
tom azulado.
— Vem! Vamos aproveitar. — Ela nos conduz para o meio da multidão.
A pista de dança está abarrotada de gente, e eu me entrego aos movimentos, sentindo a
música envolver cada centímetro do meu corpo.
Quem diria que Anitta seria a companheira de dança perfeita, hum? Ela envolve minha
cintura e fazemos movimentos com os quadris descendo e subindo. Alguns rapazes tentam se
aproximar e miei soldados[103] os impedem. Olho-os com repreensão, mas sem surtir efeito.
Cazzo[104]. Eles devem estar defendendo a honra do sposo[105] provisório. Outro detalhe
que gostaria muito que não existisse esta noite. Anitta me puxa novamente fazendo-me esquecer
por um momento, me chacoalhando junto ao seu corpo no ritmo da música.
— Calma, principessa. A noite está começando, daqui a pouco eles ficam menos
apreensivos e você poderá cornear seu noivo — ela sussurra gritado em meu ouvido. Sorrio, pois
dentre tantas amigas malucas, por que Dio foi colocar uma tão parecida com Valentina em minha
vida?
De fato, após mais copos da bebida que descobri ter seis cores diferentes à base de
vodca, os soldados[106] ficaram menos rigorosos com os ragazzi que se aproximavam de nós.
Porque nem havia motivos quando alguns colegas da faculdade pareciam mais interessados neles
do que em mim e Anitta.
Conseguimos ficar em algumas rodas de pessoas que queriam fazer shots um no corpo
do outro. Evitei participar por conta do macaquinho, uma vez que um dos lugares mais pedidos
era o umbigo. Anitta, no entanto, demonstrou ter talento para ser um copo.
Em dado momento, estou absorta pela música e repeti as cores em tantos copos
diferentes que bebi o arco-íris. Fito o líquido, elevando a taça acima da cabeça. É… desta vez,
parece alaranjada, acho.
Continuo a análise minuciosa, querendo desvendar o mistério sobre a bebida conforme
as luzes passam através do vidro. Cazzo! Acho que o líquido é amarelo.
Bufo brava quando a luz azul resolve transpassar novamente o vidro, perturbando minha
pesquisa. Sorrio em seguida sem qualquer motivo.
Na verdade, minha situação mental indica que estou completamente bêbada.
Ergo a taça brindando com um ser invisível que concordou em pensamento comigo.
Depois, volto a mover o corpo na batida da música.
Enquanto mexo os quadris, vejo uma loira muito bonita se aproximar. Ela sorri para
mim. Valentina…
Assim que se aproxima não enxergo os olhos claros, e sim duas amêndoas que me
deixam desolada. Faço um bico e franzo o cenho, indicando o descontentamento. Quero chorar…
A saudade de mia cugina[107] misturada à insanidade causada pelo álcool me tornam uma
completa idiota.
Fecho os olhos dando um passo para trás, o que desencoraja a aproximação da ragazza.
Ótimo. Ela não é minha loira maluca preferida.
Sinto falta das noites inesquecíveis, das risadas compartilhadas e da cumplicidade que
só ela entendia.
— Está bem, principessa? — A voz conhecida de Anitta em meu cangote está num
vibrato diferente. — Por que parece que está chorando? — Ela passa a mão por minha bochecha
constatando o óbvio.
— Para… — empurro seu braço com lentidão por conta do excesso de vodca em meu
corpo. — Vai estragar a maquiagem. — Passo os dedos da mão livre por baixo dos olhos,
tentando arrumar sabe-se lá o quê.
— Hoje não é para você ficar triste, principesssaaaaa… — ela indica estar num nível
acima da bebedeira. E, enlaçando meu pescoço, Anitta me vira de modo a dar as costas para os
soldados que se acomodaram em uma mesa à esquerda no meio da noite e nunca mais saíram de
lá. — Toma. Engole a pílula da felicidade. — Ela me oferece o Oásis.
— Eu não tomo essas coisas — afasto sua mão da minha frente.
— Você está triste numa festa como essa! — pontua, gesticulando e abrindo um braço.
— É proibido ficar triste aqui. Confie em mim, va benne? O paraíso está bem aqui na sua frente.
— Ela exibe o comprimido que nem sei identificar a cor mais.
— Luigi sempre me proibiu de experimentar qualquer coisa além da bebida —
murmuro, pensando estar falando para mim.
— Tuo fratello não te deixava, mas duvido que nunca tomou a água do deserto,
principessa. Todos esses soldados já experimentaram — Ela meneia a cabeça na direção de
Paolo e seu colega. Fito-a refletindo em como ela poderia saber a respeito, então penso há quanto
tempo Anitta trabalha para a famiglia. De acordo com ela, desde sempre. — Até seu noivo
Moretto…
Não aguardo que termine a frase, posto que quando mencionou noivo eu já havia
engolido antes de ouvir o sobrenome.
— Brava ragazza[108]. Daqui a pouco vai ficar tão feliz quanto aquele maluco ali. —
aponta para cima do balcão do bar onde um sujeito começou a tirar a camisa e rodar sobre a
cabeça. A situação não seria tão estranha se o ragazzo não fosse o presidente do corpo estudantil
da faculdade de direito. Emito um suspiro invertido de espanto, colocando uma mão sobre a
boca. — Viu só. Todo mundo toma, principessa. Você vai adorar.
À medida que a noite avança e meu corpo flutua suavemente, deixo as sensações de
anestesia tomar conta da minha mente.
Mergulho na atmosfera da festa, encantada com as cores que dançam sob nossas cabeças
e tocam nossos corpos deslizando como tecidos leves acariciados pelo vento.
Em dado momento, as portas que davam acesso à praia são abertas e pessoas se movem
para o exterior. Sou guiada pela loira que sorri de novo para mim.
Elevo minha taça nos lábios, mas ela está vazia e como mágica outra surge
resplendorosa na cor lilás. Sorrio, sendo preenchida pela euforia desconhecida.
Caspita! Não consigo parar de sorrir. Minhas emoções estão no ápice da alegria que
saboreio com as risadas ao meu redor.
A melancolia pela ausência de Valentina é esquecida por ora. De repente, sinto algo frio
tocar meus pés e quando olho para baixo constato estar caminhando sobre as ondas.
Libero uma risada alta que sai descontrolada. Quero gritar para mammina e contar para
ela que consegui andar sobre a água, viu? Não é difícil.
A sensação fria continua a subir por minhas pernas. Continuo rindo e sentindo as ondas
que parecem nuvens embaixo dos meus pés. As águas não me obedecem e passam a subir em
meus tornozelos.
Não, não… Eu estava flutuando, andando sobre às águas. Não quero parar de plainar,
está tudo errado. Eu vou conseguir de novo. A água fria arrepia meu corpo, mas não me deixo
abater, vou perseguir meu objetivo.
Sigo dando mais passos e ao erguer os olhos sou cativada pelo brilho acima de mim.
Como a lua está linda… caminho em sua direção. Ela me capturou por seu brilho hipnotizante.
Parece uma pérola gigante, ofuscando as estrelas mais do que diamante. A lua está no céu e no
mar, que lhe serve como espelho.
Ouço meu nome ao longe e encaro a pérola gigantesca que enfeita o céu noturno. Tão
brilhante… tão bella…
— Michela… Michela… — ela chama e eu sigo ao seu encontro. Sempre imaginei que
a voz da lua seria aveludada e suave como a de mammina, mas sou surpreendida com o tom
profundo e másculo. Libero um riso frouxo, sentindo o impulso da onda em meu peito. Na onda
seguinte, abaixo, ficando submersa. — Michelaaaaa… — ouço e viro para praia vendo um anjo
negro de cabelos longos invocar meu nome. Ele retira a jaqueta de couro e abre suas asas vindo
até mim.
O anjo negro está vindo me levar para a lua…
Rio, balançando os ombros e engulo um pouco da água salgada. Tudo está tão perfeito.
Sinto a próxima onda me cobrir novamente e deixo-a levar meu corpo completamente entregue e
dormente.
Não ouço a música.
Não vejo a luz da lua.
Não sinto mais frio.
Não há mais nada.
FAUSTO MORETTO

A madrugada fria abraça o porto de Palermo e eu caminho ao lado de mio fratello mais
velho em passadas confiantes em direção ao local de atracamento dos navios. Este tipo de ação,
fazemos esporadicamente sem aviso prévio, o que auxilia o combate a eventuais transgressões
durante o recebimento das mercadorias.
Aparecer de surpresa faz parte de nossas tarefas. Todavia hoje, serviu para aplacar parte
da frustração que tenho sentido desde o início da noite. Repasso mentalmente a conversa que tive
com Giulio.
— Você fez o quê? — indaguei-o, incerto se meus ouvidos reproduziram o zunir das
palavras que saíram da boca de Giulio apenas para brincar com minha sanidade.
— Dei permissão para que Michela fosse a tal festa. — Mio fratello me deu as costas e
começou a mexer numa escultura de porcelana branca em cima na mesinha de canto da sala de
estar do meu apartamento. — Saiba que não tive escolha.
Liberei o riso com sarcasmo. Mio fratello deixou claro mais de uma vez não ser bom com
escolhas.
— Eu falei a você tudo sobre o tal Marco Rocatti e mesmo assim sua escolha foi dar
permissão para que Michela fosse à maleddeta festa?
— Quando você for casado… irá entender. — Minha estátua aprendeu um passo de balé
ao rodopiar e retornar ao lugar. — Sem contar que você está em débito comigo.
Giulio mencionou o fato de não responder sobre aonde Francesca tem ido durante suas
escapadas da faculdade. Ela tem feito isso desde o início das aulas, fiquei surpreso por Giulio ter
notado tão somente agora.
— E minha incompetência diante da habilidade de tua moglie em fugir é minha sina para
você permitir que mia sposa fique em perigo?
— Ela vai estar acompanhada de dois soldados e em nosso território. O herdeiro dos
Rocatti não é idiota ao ponto de encostar em uma Zanchetta — declarou com tanta propriedade
que me convenceu. Por isso, segui-o até aqui quando sugeriu uma batida noturna.
Posso estar bravo com mio fratello, mas o orgulho e dever são os alicerces que conduzem
meu âmago no tocante à função de fiscalizar os livros de registro. É o que me motiva a
acompanhá-lo.
O serviço fiscal poderia ter sido passado adiante quando assumi o cargo de Sottocapo.
Não quis. Delegar tal trabalho é o mesmo que perder um dos meus olhos sobre uma das
atividades mais importantes da organização. Neste sentido, não. Não quis e jamais vou querer
perder parte da visão sobre nossos subalternos e colaboradores.
Os livros costumam refletir as transações comerciais de recebimento e envio das
mercadorias declaradas por nossos corsários.
Como os corsários são os responsáveis pelas armas do navio, nada mais justo de serem
eles a manter registros sobre tais mercadorias.
Tudo é registrado nas pautas de brochuras de capa dura, mesmo que cada operação esteja
presente no sistema que criei através de um aplicativo, os livros são tradições. E a Cosa Nostra
sobrevive há décadas justamente por conta dessas tradições.
Todas as vezes em que assume sua versão Don Moretto, Giulio costuma ficar calado.
Acredito que a visão de papà no comando ainda é um fantasma em suas memórias.
No entanto, mio fratello, está inquieto. Sei que não poderei negar por muito mais tempo
sobre o conhecimento que ele como marito quer tanto saber. Chega a ser cômica sua atitude em
ora ou outra resmungar, encarando-me e travando antes de prosseguir com a fala que parece
entalada em sua garganta.
Estou acostumado com o seu mau humor rotineiro, mas é a primeira vez que o vejo
irrequieto. Inspiro o ar fresco da noite, sentindo o cheiro do mar. O aroma da água salgada se
mistura com o de fumaça, sinalizando a chegada iminente dos nossos navios.
A frota desta noite era composta de três navios, dentre eles Alexsandro Magno, o
diamante aos olhos de Giulio com a equipe que escolheu a dedo no dia em que ganhou a
embarcação. Lino Sanches, o kraken dos sete mares, era seu capitão.
Mio fratello confiava no velho como se ele fosse o próprio monstro deixado para cuidar
de seu tridente. Por conseguinte, o corsário e a navegadora da tripulação, leais ao capitão,
acabavam sendo leais ao mio fratello.
A comparação perfeita entre os registros lançados por ele nos livros e os dados fornecidos
pelo aplicativo fulminou em minha confiança para com o velho também. Acredito que de todos
os nossos marinheiros, a equipe de Alexsandro era a mais confiável.
Vejo as luzes do porto refletindo nas águas inquietas, e o murmúrio das ondas é
acompanhado pela movimentação frenética dos imediatos, cujo cansaço após a longa jornada é
palpável.
A frota majestosa dos três navios cargueiros alcança o píer, carregados de containers.
Faço um desejo para que desta vez não tenhamos outra surpresa como há duas semanas.
Vamos dizer que a cada dois meses temos uma surpresa na qual o conteúdo de um dos
containers está recheado de produtos com braços e pernas e costumam emitir sons similares a
palavras.
Expiro o ar com força, ajeitando o paletó do terno preto que escolhi. A seguir, observo
em silêncio, enquanto mais de 300 containers se erguem como torres de um castelo moderno.
Giulio, com sua expressão sóbria, parece absorver a grandiosidade do momento.
— Fratello, pelo menos hoje parece uma noite normal — constata. — A famiglia vive
nos mares como as sereias que todos dizem existir, mas nunca viram — divaga, olhando para os
horizontes distantes, onde o mar se estende até perder de vista.
Deixo um canto dos lábios se erguer com o comentário bobo, pois as sereias são uma
ilusão, já a Cosa Nostra… existe. Fato comprovado pelos navios que atestam nosso legado,
repousando no porto, testemunhas da fortuna que acumulamos através das rotas comerciais
legais e ilegais.
Ao aproximar-me, percebo o agito no convés principal costumeiro. Lino, o capitão de
Alexsandro, sempre enérgico, dá ordens com um vigor que denuncia os desafios enfrentados
durante a travessia.
— Todos a postos! Fixem as amarras! — Um sujeito esbarra na corda, tropeçando. —
Esta noite não é para os fracos, carino! — brada Lino num tom zombeteiro, fazendo outros
marinheiros gargalharem pela falha do primeiro.
Todos estão cansados, mas os imediatos respondem prontamente, executando os
comandos com a precisão de uma dança coreografada.
Giulio e eu observamos do píer, ele com os braços atrás do corpo e eu com as mãos nos
bolsos da calça, aguardando o momento de caminhar até a lancha atracada alguns metros a
frente. Lá, os corsários deixariam os livros para conferência.
Passada meia hora, Lino acena mostrando saber de nossa presença, seus olhos fixos nos
marinheiros que, como sombras velozes, manipulam as cordas e os cabos. Não demora para
Venon surgir por detrás, saltando para a rampa e vindo em nossa direção com os demais.
Os navios, agora seguros no porto, seguem a rotina na extração dos containers para o
local de depósito. Lá outra equipe aguarda para catalogar toda a carga e direcionar para os
fornecedores respectivos.
Eu e mio fratello seguimos para o próximo destino da fiscalização, mantendo certa
distância dos três corsários que andam à nossa frente. Eles entram na embarcação após uma
pequena inspeção de nossa equipe de segurança.
Uma ordem imposta por prevenção após o assassinato de nostro padre. A determinação
do consiglio dell vecchio foi uma prevenção necessária para lidar com a insegurança causada
pelo perigo em ter o cabeça da organização morto. Essa era uma atitude que nos lembrava fazer
parte de uma organização criada há décadas e nossas vontades estavam vinculadas a outras
pessoas.
Manter o Don da Cosa Nostra vivo e a salvo reflete no poder que possuímos perante
outras famiglias que tentam invadir nosso território.
Entro na lancha preta, seguindo para minha sala, uma filial flutuante do meu quartel
general, onde os destinos de muitos se encontram sob a obscura égide de nosso império.
Os três corsários, dentre eles Venon, aguardam-me silenciosamente, com os livros em
frente ao corpo. Estendo a mão para que o primeiro entregue, acenando levemente a cabeça
dando-lhe a autorização para que saia. A seguir, o segundo segue o mesmo procedimento até que
Venon para em minha frente.
— Signore, há uma anotação diferente no dia 9 desse mês. O capitão pediu para aguardar
um momento antes que saia com os livros — Venon diz cabisbaixo, pois tem conhecimento do
meu método nada amistoso quando alteram o roteiro para manutenção da escrituração.
Nisso, ouço o som do capitão Lino entrando na sala adjacente conversando com Giulio.
— Acredito que nossa conversa será na sala do Don — aponto para a porta e Venon vai à
minha frente para encontrar mio fratello e seu capitão.
Consigo sentir o ar pesado no instante em que atravesso o batente da saleta um pouco
maior que a minha em razão de não possuir outra mesa com parte do meu equipamento de
vigilância. Giulio está sentado servindo-se da bebida que costuma manter em uma das gavetas da
mesa. Ele oferece para o capitão, acomodado em sua frente, que aceita e vira o copo numa
golada.
O cômodo do Don Moretto possui uma mesa de carvalho, duas poltronas à frente e um
minúsculo sofá no qual me acomodo, segurando a pasta que Venon entregou.
— Cinco crianças… isso mesmo? — Giulio indaga após esfregar o rosto algumas vezes
com uma das mãos.
— Isso. — Lino Sanches limpa o resquício da bebida com o dorso da mão e deposita o
copo sobre a mesa com um baque. — Na ilha de Marettimo.
— Quantos anos? — indago, com o livro aberto na anotação a mais que Venon havia
mencionado com os nomes das crianças e seus respectivos pais.
— A mais velha tinha 11 anos. E havia dois bambini de sete — Lino responde, parecendo
atordoado agora. — As mães estavam com medo, mas o pai dessa bambina foi quem me
chamou. Parecia que receberam ordens para não pedir ajuda ou outras crianças iriam sumir como
as primeiras.
— A bambina é a única filha do casal. Está desnorteado — Venon informa, cruzando os
braços encostado na porta da sala fechada.
— Vocês acham que eles foram ameaçados por alguém da famiglia? — Giulio se exalta.
Ambos, capitão e corsário, permanecem em silêncio. — Isso é um despautério! Quem teria
coragem de…?
Então, mio fratello se cala, pois tiveram coragem de assassinar inclusive nostro Don. O
que seria sequestrar cinco crianças de uma das aldeias protegidas por nós?
— Quem mais sabe sobre o desaparecimento das crianças? — questiono, tirando uma
foto da página com as informações e pegando meu isqueiro na sequência.
— De dentro, apenas nós — Lino responde. Incinero a folha vendo-a queimar enquanto
seguro a ponta do papel.
— Que fique assim por enquanto. Preciso de mais informações para ter o início de onde
procurar… e quem. — Subo o olhar para Giulio. Ele entende que existe uma ligação muito maior
entre as mulheres e crianças que vêm aparecendo em nossos containers, bem como agora o
desaparecimento de nossas crianças.
A Cosa Nostra é composta por tubarões, mas que juram lealdades em busca das fortunas
em comum. Todavia, alguém queria derrubar nosso clã desestruturando a base com a morte de
nostro padre, e agora, com os aldeões protegidos pela famiglia.
Os fatores diversos indicam a existência não apenas de um traidor, mas um conjunto
muito bem articulado embaixo de nossos narizes. Precisamos apenas apurar o olfato para
encontrar de uma vez por todas de onde vem o odor podre da urina dos ratos.
Minha mente, normalmente imersa em números, é envolvida pela logística dos últimos
acontecimentos. A próxima reunião do Consiglio está próxima e será o ponto alto para analisar
pequenas discussões dentre nossos Caporegime.
A saleta de mio Don está impregnada de seriedade, e minha atenção está totalmente
voltada para a conversa que segue entre Lino, Venon e Giulio. Mio fratello indaga sobre as
expressões e condições dos pescadores, se algum deles parecia menos aflito ou alguma mãe
exaltada demais.
Cada palavra trocada é uma peça no intricado jogo de detetive na busca dos culpados.
Principalmente, na busca do caminho para encontrar as crianças desaparecidas.
É então que sinto a vibração insistente no meu bolso, interrompendo abruptamente meus
pensamentos. Uma mistura de frustração e raiva se acumula enquanto retiro o celular, esperando
que seja extremamente importante.
— Chiao, Maximus — atendo rispidamente.
— Fratello, olha agora o vídeo que enviei para você — ele comanda sério. A irritação se
espalha como fogo, pois o timing não poderia ser pior.
— Max, estou em uma reunião importante e…
— Abra! Agora! — Assusto-me com o tom enérgico de Maximus. Mio Fratello costuma
ser o despreocupado e por isso sigo a orientação.
Assim que aperto play, sinto a principio uma mescla de ira e ciúmes. Michela está
dançando com dois ragazzi que desconheço, esfregando-se de modo indecente.
Na sequência, vejo-a tropeçando mais de uma vez o que determina nitidamente seu
estado de embriaguez.
— Quem está com ela?
— Paolo me enviou os primeiros vídeos, pois não conseguia entrar em contato com você
e com Giulio. — Analiso as chamadas perdidas e realmente constato a veracidade do alegado
pelo soldato. Provavelmente era ele tentando nos interromper mais cedo no carro enquanto
discutíamos. Senti a vibração do celular como agora, mas vendo tratar-se do número de um reles
soldato não me atendei para a importância. — Aquilo não é só bebida, Fausto.
Na realidade, estava tão puto com Giulio, que até me esqueci sobre o nome do soldato
que faz a segurança de Michela.
— Estou a caminho. Consegue chegar antes de mim? — ingado-o.
— Já estou dirigindo para lá. — Ouço o carro acelerar, antes que Max desligue indicando
que mio fratello estava tomando as providências para mim.
— O que foi? — Giulio me observa quando me levanto furioso.
— Tudo indica que drogaram minha noiva — esbravejo, saindo da sala sem olhar para
trás. Entro rapidamente para levar comigo os outros livros e saio em disparada para o píer em
direção ao estacionamento na marina.
— Espera! — Giulio grita. Estou tão irritado com mio fratello por ter permitido que ela
fosse. Eu sabia que o tal Rocatti era um sujeito suspeito.
— Isso não estaria acontecendo se…
— Não adianta colocar a culpa em mim. Tua sposa é uma garota que sempre deu trabalho
para seu clã. Se eu não permitisse, ela iria de qualquer jeito e sem segurança — mio fratello
pontua a desculpa. Mas se ele não tivesse permitido, eu não ficaria com raiva de sua atitude e
teria vigiado-a mais de perto.
Porcatroita![109]
Por que caralho a sensação de falha alojada em meu peito incomoda tanto?
Ela foi quem se pôs em perigo.
Ela é sua responsabilidade. Minha consciência emenda.
Ela será apenas minha moglie.
Não… Ela ocupa um lugar muito maior do que esse.
MICHELA ZANCHETTA

Minha cabeça está rodando, rodando, até… uma cena maluca estar acontecendo em meu
quarto. Estou deitada de qualquer jeito na cama, enquanto que os irmãos Moretto discutem.
Oddio! Eles são imensos…
Como os três homens gigantes couberam aqui?
— Ela tentou se matar? — Fausto indaga preocupado, mirando o chão.
— Ou ela queria brincar de sereia… — Max replica, sem o ar de deboche costumeiro.
Mas que porra… eu não tentei me matar, eu… Aiiiii… minha cabeça está dando looping numa
montanha-russa sem fim.
Preciso me lembrar… Mesmo com a mente nublada, forço para recobrar o mínimo de
discernimento do que aconteceu para a realeza da Cosa Nostra estar em meu quarto.
— Preciso chamar Francesca — o Don diz, passando uma mão sobre o queixo.
— E dizer o quê? Scusami, amore mio, mas tua frattela foi encontrada chapada se
afogando no mar? — Maximus fala com ironia, entrelaçando os dedos das mãos e inclinando a
cabeça para o lado, sentado na cadeira da penteadeira. Devo estar em uma dimensão paralela,
pois nunca vi o caçula dos Moretto agir assim.
— Desta vez, Max tem razão — mio sposo provisório atesta escorado na parede ao lado
da cama de braços cruzados.
— Eu sempre tenho razão — Max graceja atestando que ainda é ele.
— Cazzo! — Giulio resmunga. — Ela está tão contente por ter a frattela por perto. Não
posso mandá-la de volta.
— E quem disse que vai? — Fausto retruca de pronto.
— O fato dos seus soldados não darem conta de manter tua sposa em segurança?
— Primeiro que você quem permitiu a ida dela nesta festa. Por mim, ela não sairia
nunca deste apartamento — meu noivo provisório contesta.
— O amor em cárcere privado é lindo — Max acrescenta para instigar ainda mais as
frases grotescas dos irmãos. E como mais uma assertiva da noite, Giulio gesticula com a mão
num movimento de revólver, apontando para ele, a título de aprovação.
— Você deveria ter vigiado de perto tua ragazza — Giulio quer encontrar culpados. Dio
Santo, meu estômago está revirando.
— Só não estava porque alguém quis fazer uma inspeção surpresa no cais, lembra? —
Fausto se defende. — E mandei Maximus.
— Oh… como adoro festas de faculdade — Maximus novamente soa diferente, desta
vez com sarcasmo. Ele não gosta de festas? Pensei que dentre os irmãos, ele fosse o mais
festeiro.
— O que fez com os soldados? Já os levaram para a cutelaria?
— Paolo não teve culpa. — Max responde sério. — Ele só tirou os olhos de Michela
porque eu pedi para estacionar meu carro. Não imaginei que o outro pensava estar realmente em
uma festa e não a trabalho. Quando entrei no pub, o stronzo estava pegando uma ragazza e nem
fazia ideia de onde estava Michela.
— Onde ele está? — Giulio olha para o fratello mais novo.
— Creio que suas cinzas saíram do forno há pouco — Maximus olha o relógio e é a
deixa para a última torcida em meu estômago resultar no vômito que revelou estar acordada.
Contorço-me no colchão, tentando expelir o resto do líquido azedo de cor âmbar no
assoalho. Sinto meus cabelos serem erguidos em um rabo de cavalo.
— Urgh! Se ficar aqui vou vomitar. Addio, fratello — Max declara e ouço seus coturnos
conforme se afasta.
— Vou chamar Signora Isabel — Giulio se prontifica.
— Não precisa. Vá logo para casa ficar com tua moglie. Eu vou cuidar de mia sposa. —
Don Moretto demora alguns segundos até que atendesse o pedido do irmão.
A terceira onda de ânsia de vomito me atinge e cambaleio até estar com a cabeça
praticamente dentro do vaso sanitário. Fausto está logo atrás de mim, segurando meus cabelos e
dando descarga na sequência.
— O que você bebeu, Colibrì? O cheiro é doce.
Limpo a boca, fitando-o de baixo para cima na posição mais deplorável, sentada no
banheiro e ele em pé.
— Está tão apaixonado por mim que até meu vômito é doce, mafioso-nerd? — Ele
demora alguns segundo e sorri de canto. Madonna mia, como é bello o safado.
— Mafioso-nerd?
— Isso. Mafioso-nerd… — resmungo, abraçando meu amigo que leva todos os dias o
meu coco e xixi embora. — Mafioso-nerd gosssstoso. Pra ser ainda melhor, só se usasse óculos.
Aí você seria completo: nerd, gossstoso e sexy — emendo, enumerando com os dedos da mão.
— Você fica uma gracinha bêbada. Mas vamos combinar que só vai beber assim quando
estiver comigo, va benne?
— Não. Eu nunca mais vou beber. — Nego, enfatizando com o movimento da mão de
modo descoordenado.
— Va benne… va benne. Todos dizem isso. — Ele me ajuda a ficar de pé. — Tome um
banho que vou limpar seu quarto. Ele abre o chuveiro e ajeita a temperatura da água, colocando o
banquinho que uso para raspar a perna embaixo do chuveiro. Antes que saia, seguro seu braço.
— Preciso de ajuda.
— Eu adoraria te dar banho, Colibrì. Mas quero que lembre todas as vezes que te tocar e
no seu estado, é bem possível que esqueça.
— Não… não é isso. — Ele me estuda como um experimento científico. Arg! — Não
vou conseguir abrir o zíper. — Aponto o “x” da questão. Fausto demora dois segundos até estar
novamente em minhas costas e começar sua árdua tarefa… ou minha.
O infelicce desliza o objeto vagarosamente roçando os nós grossos da mão em minha
coluna. Tesão reprimido da porra… Seguro meus seios, pois estava sem sutiã e aguardo que
termine.
— Pronto. Mais alguma coisa? — indaga com a voz rouca ao pé do meu ouvido.
Balanço a cabeça em negativa. Ele foi treinado para torturar assim também? Só pode. Minha
musculatura interna se comprime involuntariamente tantas vezes que tenho certeza de estar
fazendo a maratona da boceta assassina: senta, levanta, senta, rodopia e quica. — Tome seu
banho. Vou limpar seu quarto.
Engulo em seco, me concentrando ao máximo para não desequilibrar e piorar ainda mais
o constrangimento da noite.
A água morna aquece meu corpo ainda frio por conta do banho de mar noturno. A pouca
sensatez que possuo retomando meu consciente, penso que não deveria ter aceitado o Oásis. Não
posso deixar que descubram sobre Anitta. Se o colega de Paolo virou churrasquinho, imagine o
que poderiam fazer com minha amiga?
Respiro fundo, deixando a água cair em meus ombros, em seguida passo a lavar os
cabelos e o corpo. Saio do chuveiro me secando e enrolando-me na toalha. Escovo os dentes
duas vezes, pois por mais que Fausto tenha apreciado o cheiro que despejei no vaso sanitário, o
gosto em minha boa não é nada agradável.
Vou para meu quarto, esperando ver o estrago no cobre-leito. No entanto, a roupa de
cama está trocada e uma camisola de algodão rosa com o desenho da pantera cor de rosa está sob
o colchão. Visto-a, deitando-me em seguida.
— Já deitou? — Fausto surge, caminhando até mim. Murmuro um som afirmativo. Ele
coloca uma xícara de chá na mesinha de cabeceira e senta-se ao meu lado sobre a cama. — É chá
de boldo. O gosto é horrível, mas vai te fazer bem, Colibrì.
Tomo um gole, fazendo careta no instante que minha boca amarga por conta do sabor do
remedio caseiro. Mio sposo provisório faz um carinho em meu cabelo e se levanta. Seguro seu
braço novamente. Ele me estuda.
— Não me deixe sozinha — peço baixinho. — Não quero ficar sozinha. — A
melancolia pela falta de casa num misto de ressaca emocional me abate. Não posso ir até Tchela
assim, e Fausto, foi quem me restou.
Ele suspira cansado, mas não me repele, colocando minha mão de volta ao lado do meu
corpo. O que eu esperava? Que mio sposo me bajulasse?
A amargura da rejeição é bem pior que o gosto do chá de boldo.
Afundo a cabeça no travesseiro, pegando a pequena almofada para esconder o rosto.
Ouço o barulho de sapatos caindo no assoalho, em seguida um zíper se abaixando. Espio,
abrindo um pequeno vão no material fofo vendo Fausto retirar a camisa social. Prendo a
respiração no instante em que se deita ao meu lado.
— Vem aqui — fala baixo. Numa emoção esquisita de satisfação viro-me rapidamente
para ele, abraçando-o como meu ursinho de pelúcia favorito. Ainda estou bêbada. E
provavelmente sonhando.
Mas… quem se importa?

Meu travesseiro está tão cheiroso que penso em pedir para a Signora que fez a limpeza
semana passada manter o mesmo amaciante em toda minha roupa de cama. Abraço um pouco
mais, dobrando o joelho de modo a envolvê-lo com todo meu corpo. Está tão quentinho que faço
um recapitulado da noite anterior, tentando lembrar se peguei a colcha elétrica. E…
Abro os olhos de súbito, dando um grito estrondoso de pavor.
— Che cazzo! O que foi, Colibrì? — Fausto indaga, esfregando o ouvido, depois
virando para o lado dando-me as costas exibindo uma bunda perfeita demais para um homem.
Para piorar a situação, ele está de cueca boxer vermelha, apenas cueca boxer VER-ME-LHA!
— Aaaaah! — grito um pouco mais, colocando as mãos em meu rosto.
— Pare de gritar — o homem semi-nu em meu quarto reclama. Espera. Meu quarto?
Tento lembrar um pouco mais e analiso os lados verificando que sim, estou em meu quarto.
Então, abraço-me envolvendo os braços na cintura e percebo estar de CA.MI.SO.LA. Minha
camisola da Pantera cor-de-rosa. Inflo os pulmões novamente e antes que outro grito ecoe pelo
ambiente, uma mão cobre meus lábios enquanto que um peitoral gruda em minhas costas. — Por
mais que seja difícil tua frattela ouvi-la daqui, isso não o é para o soldato que é seu vizinho. E a
moglie dele acabou de dar à luz. Então, que tal respeitar um pouquinho a pequena famiglia e
parar de gritar?
Arregalo os olhos, envergonhada ao quadrado. Respiro, hiperventilando com a sensação
embaraçosa por parecer extremamente assustada, bem como outra coisa que vai muito além da
vã filosofia em permanecer casta até o casamento com um homem como Fausto me agarrando
por trás. Dio Santo!
— Vou confiar em você, Colibrì e vou te soltar, va benne? — Meneio cabeça
afirmativamente. Fausto libera minha boca devagar tal qual faria com um animal arisco. Na atual
conjuntura, sinto-me um mico de circo.
Em seguida, o homem musculoso de cabelos escuros desgrenhados senta-se em minha
cama e me puxa para sentar-me em seu colo de lado.
— Vo-você quem trocou a minha roupa? — indago baixinho. Ele bufa o ar com um riso
sem humor, indicando que esse era o menor dos meus problemas.
— O que você se lembra de ontem, Michela?
Michela. Nada de Colibrì. É… a bronca será feia.
Fecho os olhos, tentando aplicar óleo nas engrenagens do meu cérebro para que a
memória perdida venha à tona. O que sinceramente aconteceria apenas por um milagre.
— Eu fui à festa de Marco com uma amiga. — Ele assente com um movimento de
queixo, ficando em silêncio para que continue. — Então, bebi um pouquinho? — pergunto com
um sorriso sem graça, e Fausto pressiona os lábios numa linha fina. — Bebi muito. Va benne —
concluo, deixando os ombros caírem.
— E? — Ele pergunta a continuação. Madonna Mia dei Pazze[110], o que foi que eu fiz?
Aperto as pálpebras, vendo flashbacks surgirem em minha frente em slides movendo-se
num zoom constante. A loira se aproximando. Anitta me oferecendo Oásis. As pessoas indo para
o mar. Eu entrando até o fundo. Maximus nadando como um anjo salvador em minha direção.
Max… Ele me salvou.
— Onde está Maximus? — indago, procurando algo para me cobrir. — Ele me salvou.
Preciso agradecer.
— Agradecer a Maximus? — Fausto insiste, com uma carranca.
— Sim. Ele me tirou do mar quando eu estava chapada.
— Mio fratello deve estar com Simona agora. Você poderá agradecê-lo depois. —
Fausto parece emburrado. — E depois disso?
— Depois? — Inclino a cabeça, querendo entender o que mais preciso me lembrar. —
Vim para casa e… espera. Você aproveitou para tirar minha roupa? — pergunto assustada. Mio
sposo desvia o olhar soprando um riso de escárnio.
— Você realmente pensa isso? — Ele me olha ofendido. Então, porque ele está em
minha cama e só de cueca?
Outras memórias destacadas vêm à tona e elevo a mão para tocar minha nuca. Alguém
segurando meus cabelos. Eu caminhando cambaleante até o banheiro. Meu macaquinho caindo a
meus pés. Fausto olhando diretamente em meu rosto e jamais em meu corpo.
Engulo a saliva grossa de ressaca e vejo minha dignidade escorregar até o chão.
— Você cuidou de mim… — digo baixinho num fiapo de voz.
— Mas você quer agradecer mio fratello. — Ele se levanta e começa a se vestir. —
Talvez o encontre mais tarde e passarei sua gratidão. Fique tranquila. — Ele joga a camisa
branca sobre os ombros e em movimentos ágeis desaparece pelo corredor de minha casa.
Dio Santo! Ele quer minha gratidão também? Pronto. Ele a tem, só devia esperar um
pouquinho e então conseguiria suportar a vergonha para expressar em palavras.
Merda…
Nunca mais vou beber na minha vida. Prometo.
MICHELA ZANCHETTA

Após passar mais tempo em minha higiene matinal do que o habitual, saio do banheiro
enxugando meus cabelos. Resolvi tomar outro banho para sobreviver melhor ao dia da ressaca
em todos os sentidos. Acredito que a ressaca moral será eterna, mas… a do corpo físico poderia
ser amenizada com minutos a mais embaixo do chuveiro e alguns analgésicos.
Devo ter algo na caixinha de remédios que mammina montou para mim e deixou na
cozinha. Subo o olhar vendo Francesca sentada em minha cama, perdida em pensamentos. Assim
que dou um passo, ela me fita com o cenho franzido.
— Que porra você estava pensando, Michela? — Mia frattela dá um salto, parando em
minha frente. — Por que merda você entrou no mar de madrugada? — Ela chacoalha meus
ombros com tanta força que preciso olhar duas vezes para ter certeza de que estou lidando com a
ragazza delicada que conheço.
— Não é nada disso. — Afasto-a gentilmente, colocando a toalha molhada no cabideiro
ao canto e vou até o closet escolher um vestido confortável. Encontro um até a altura dos joelhos
na cor azul royal, e separo uma lingerie marfim de algodão.
— Como não? Giulio tentou amenizar, mas Paolo deixou claro que se não fosse por
Max você poderia estar morta. — esbraveja, sentando com tanta raiva que se sua bunda tivesse
lâminas teria furado meu colchão.
— Eu estava chapada, ok? Já tinha bebido além da conta e vi uma ragazza parecida com
a Valentina. Fiquei com saudades…
— E por isso achou por bem dar um mergulho?
— Na verdade, não. — Torço os lábios para o lado imaginando o quanto iria ouvir se
mia frattela descobrisse sobre o Oásis. É… melhor não. — Eu queria pegar a lua.
— A lua? — Francesca reflete por alguns segundos. — Sabia que essa loucura custou a
vida de uma pessoa?
E a ressaca moral aumenta numa escala de 30%.
Mais do que isso somente se vivesse no mundo normal. Afinal, sou uma figlia na máfia,
ver pessoas morrerem por bobagens faz parte do meu cotidiano. Não importa quanto papà e
Luigi tentaram nos proteger do mundo sujo, de certa forma acabávamos descobrindo uma coisa
ou outra.
Francesca sempre foi muito mais antenada e nunca gostou de viver desinformada dos
acontecimentos. Eu, por outro lado, preferia ter conhecimento do inevitável.
— Olha só… pelo que entendi durante a reuniãozinha dos irmãos Moretto em meu
quarto, só foi a gota d’água. O tal soldato estava pedindo para morrer. — Coloco a calcinha e
começo a fechar os colchetes do sutiã. — Eu chapei, va benne? Acabei sendo encantada pela
lua… ou sei lá. — Enfio o vestido pela cabeça. — Não quis me matar.
— Michela… — Tchesca balança a cabeça para os lados. — Você não é mais
adolescente para cometer esses erros. Chapar numa festa sozinha? Sério?
— Opa! Eu não estava sozinha. Estava com uma amiga, esqueceu?
— Essa sua amiga sumiu. Você ficou por conta própria numa praia. Dois minutos que
Paolo tirou os olhos de você para estacionar o carro do Maximus, e você se apaixona pela lua…
— Viro de costas para que Francesca suba o zíper do vestido. Ela quase destrói o adereço com a
força que usou.
— Não foi culpa dela…
— Ninguém está acusando-a, Chela. Só que… — Francesca esconde o rosto nas mãos,
irritada e emotiva demais. — Se você está passando por algo, qualquer coisa, frattela, não
esconda de mim. Eu estou aqui por você.
— Eu não estou escondendo nada — replico, cansada de ser tachada como a errada.
Ainda mais por ela que foi dopada numa festa. Francesca mais do que ninguém deveria saber que
adversidades acontecem. — Já você…
Francesca abre a boca para contestar e repensa, fechando-a, confessando explicitamente
seu pecado.
— Se está sentindo alguma dor ou mal estar, Tchesca, fale. Não tenha medo de dividir
comigo.
— Não é nada disso.
— Então, o que é? Aonde você vai quando cabula aula?
Francesca suspira, em seguida, expira o ar vagarosamente conforme os ombros
desfazem a posição altiva.
— Eu estou indo à clínica de fertilização — murmura com o tom de voz tão baixo que
penso ter ouvido errado. Meu silêncio de certa forma a encoraja. — Há alguns meses, Giulio e eu
fomos num batizado, e a madre do bambino insistiu para que segurasse o bebê. — Sento-me ao
seu lado, incentivando a continuar. — Ela queria uma foto com o Don e sua dama de honra. —
Assopra o ar pelas narinas, mostrando-se indiferente ao título.
— E você…?
— Eu senti os olhos de mio marito brilharem com a cena. Por mais que diga o tempo
todo que apenas nós dois é o bastante, percebo o quanto ele quer um figlio.
— Tuo marito querer um herdeiro não te obrigada a nada, Francesca.
— Não… é que… eu também quero. — Outro suspiro de lamento. — Sentir aquele
bebê tão pequenino em meus braços. Aconchegá-lo em meu peito e senti-lo… — Ela faz o gesto
como se embalasse uma criança em seus braços, logo após, os deixa cair no colo. — Eu quero
ser mãe, Michela. Eu quero dar afeto e cuidar de alguém. Quero… dar o meu amor.
— Santa Madonna… estou surpresa — declaro, tentando entender o que mia frattela
está sentindo.
— Giulio não pode saber, pois doutor Ângelo disse que seria arriscado para eu tentar o
procedimento de fertilização. — Ela desvia o olhar com pesar. — Vi aquele olhar receoso de
quando tive o cisto.
— Então, você encontrou um médico que está adepto a passar por uma ordem do Don
da Cosa Nostra?
Francesca franze o rosto, apertando os olhos, emitindo um som parecendo o ronronar de
uma gatinha culpada, desfazendo a tristeza de antes.
— Vamos dizer que ser ameaçado pela damigella Moretto surtiu mais efeito? — Ela
encara as próprias unhas, num gesto de indiferença, antes de emendar: — Ou talvez ajudá-la a
dar um herdeiro ao Don massageou o ego do doutor Soprano.
— Você ameaçou um médico?
— Uh-hum.
— E está em conluio com seus seguranças para Giulio não saber?
— Uh-hum.
Fico algum tempo em silêncio, deixando o suspense consumi-la.
— Caspita! Tenho orgulho de ser tua frattela, Tchesca! — Abraço-a, jogando nossos
corpos sobre a cama.
Rimos juntas.
— Eu vou contar a Giulio, va benne? Até porque preciso dele para concluir a
fertilização.
— Tudo indica que sim. — Reviro os olhos, sorrindo.
— É que primeiro estou passando pelo procedimento para expelir mais óvulos. A coleta
será na próxima semana.
Estagno no lugar, fazendo cálculos mentais sobre o tempo que ela tem feito o
tratamento.
— Fausto sabe?
— Acredito que seja impossível esconder qualquer coisa dele.
— E ele não contou para Giulio?
— Nem quando passei dois meses na Inglaterra, ele contou.
— Ele sabia? — Francesca assente com um movimento de cabeça. — E não contou? —
Repete o gesto.
Fausto Moretto realmente é um ser diferenciado. Essa atitude demonstra que ele não
ficou ao lado do irmão quando o stronzo fez merda. Foi decente em esconder seu paradeiro, pois
Luigi reclamou por diversas vezes como Giulio o importunava para descobrir o paradeiro de
Tchesca. E, para mim, ela estava tão bem escondida, que nem o mafioso nerd sabia.
— Aiiii… — Sinto uma fisgada nas têmporas lembrando-me que infelizmente não sou
imune à ressaca física.
— Aqui, tome. Trouxe água para tomar com o remédio que Fausto deixou para você. —
Ergo o olhar receosa pelo fato de Tchesca saber que mio sposo provisório passou a noite em meu
quarto. Ela sorri de canto. — Seu segredo está guardado — cochicha brincalhona.
— Boba — replico, pegando o copo para engolir o analgésico.
— Gostaria de poder tomar também. Mas o médico disse para evitar. — Ela esfrega a
testa.
— É apenas isso que está tendo? Nada mais?
— Tomei injeções diárias para ovular mais, é normal. E por favor, pare. — Ela empurra
minha lateral com o ombro. — Eu não sou de porcelana para ser tão frágil.
— Pode não ser de porcelana, mas ainda assim é a bambola do nosso Don — devolvo
com um sorriso maroto. Ela sorri de volta. — Então, logo, logo, vou ser titia?
Tchesca aumenta o sorriso, ficando mais bela e balança a cabeça em positivo.
— A coleta está marcada para próxima semana. Até lá preciso contar tudo a mio marito.
A fertilização é feita no mesmo dia.
— Se você está tomando hormônios para ovular mais, por que não tenta o tradicional?
— questiono sem entender. Francesca pressiona os lábios, antes de responder:
— Porque é mais seguro para a equipe médica selecionar os óvulos sadios — explica, e
murmuro a compreensão.
Estou emocionada com a coragem de Francesca… de verdade.
Mas a imagem da cara de Giulio quando descobrir que terá que gozar num potinho me
vem à mente, por isso, não contenho a risada. Não queria rir tanto, pois minha cabeça ainda dói.
— Que foi? — Mia frattela indaga, sorrindo por reflexo.
— Queria ser uma mosquinha para ver a reação de Giulio Moretto quando descobrir que
vai doar esperma.
Francesca fecha a cara de imediato, preocupada.
— Não havia pensado a respeito.
— Sabe… pai é quem cria, frattela. Se precisar, vou te ajudar a encontrar um doador —
brinco.
— Não seja boba — recebo agora um tapa no ombro. Primeiro foi um empurrão, agora
um tapa? Começo a ficar preocupada com a evolução dos gestos de Tchesca, então levanto-me.
— Anda! Vá logo contar a tuo marito. Aproveita a coragem por já ter começado por
mim. — Estendo a mão para a incentivar a levantar da minha cama. — Lembre-se que não sou
boa em guardar segredos.
— Salvo os seus, não é, espertinha?
Estalo a língua e dou-lhe as costas, escapulindo no timing perfeito antes de receber outra
represália. Acredito que já tinha passado a cota do dia.
E Francesca tinha assuntos mais importantes do que falar de Éloise Dufour, que aliás,
tinha algumas encomendas para finalizar.
FAUSTO MORETTO

A grandiosidade da sala de reuniões do Consiglio costumava me deixar deslumbrado. O


ar de poder emanava de cada fresta encontrada desde o assoalho de madeira e acompanhava a
parede central atrás da mesa.
Nada é como antes. A partir do momento em que entrei após a morte de papà, o
ambiente frio contamina não apenas o subsolo da mansão Moretto, mas também meu coração.
A manta sombria dos assuntos da famiglia não me incomoda, mas a disputa de poder
envolta dos egos inflados que alguns vecchio mantinham embrulhava meu estômago.
Minha nomeação como Sottocapo por ser o segundo herdeiro era esperada, porém
quando Giulio anunciou houve burburinhos de retaliação. Mio fratello havia demonstrado ao
vivo seu temperamento nada gentil ao cortar a língua de um tenente de Ragusa, território de
Germano Vacchio.
A cena foi chocante e inesperada para a maioria, exceto por mim, Max, Zio Marcelino e
papà, que inclusive deu a autorização e pediu para Signora Isabel tirar com antecedência seu
tapete persa favorito que costumava ficar debaixo da mesa da assembleia.
O tapete nunca mais voltou. Quando nossa governanta compareceu com a equipe de
limpeza vendo o estrago, ficou com medo de que outro filme de terror acontecesse. Papà acatou
sua sugestão em manter o tapete no escritório.
— A minha vontade impera… — Giulio dá início aos trabalhos.
— Enquanto a famiglia prospera — todos respondem em uníssono.
Nosso Don senta-se e em seguida todos os membros, na mesa central e os demais
presentes nos assentos laterais atrás do parapeito. A sala da assembleia era um imenso teatro,
literalmente.
Eu e todos os membros da Cosa Nostra fomos moldados a respeitar este lugar como um
santuário. As decisões tomadas na mesa central eram sagradas e obrigatoriamente deveriam ser
acatadas, sob a pena de se submeter ao escrutínio da nobreza do submundo.
Meu mundo é tenebroso. Por isso, todos aqui dentro buscam na beleza e promessa de
carinho das esposas o consolo para nossas almas quebradas.
Visualizo a tela de fundo do meu celular com a imagem de um Colibrì. Necessito elevar
o pensamento para a ragazza petulante, que tem aparecido com frequência em meus sonhos, para
apaziguar a ferocidade que sinto. Sentar-me ao lado de miei fratteli tão próximo de alguém que
pode ter causado a morte de nostro padre é mais difícil do que parece.
Por fora estou sereno, enquanto que por dentro, fito cada vecchio suspeito com ódio
bestial.
À sombra de Giulio, Zio Marcelino, mantém-se calado.
— Creio que todos estão curiosos pelo fato de ter adiantado nossa reunião. — Mio
fratello abre a pasta de couro preta, com os gráficos que imprimi mais cedo. — Mas foram
apenas alguns dias, por isso não deve ter atrapalhado muito a rotina de vocês, não é mesmo? —
Não é uma pergunta, mesmo assim, Giulio a faz com um sorriso irônico.
Cruzo os braços, escorando-me no encosto da cadeira e aguardo se alguém morde a isca.
Todos estão calados. É difícil não analisar a postura dos Caporegimes que fazem parte da
famiglia sem desconfiança. Por mais que alguns deles demonstram lealdade cegamente, outros
não conseguem esconder a calda de raposa.
No momento que corro os olhos pelos soldados e tenentes mais próximos, sinto a
ausência de Maximus ao meu lado. Bufo raivoso. Seu atraso poderia ter justificativa, mas…
daria tempo se quisesse.
E como evocação do meu pensamento, a porta central é escancarada de súbito e o
barulho estrondoso dá um ar teatral para a entrada de mio fratello caçula. Cazzo, Maximus!
Giulio limpa a garganta chamando a atenção, enquanto Max acena sem jeito,
caminhando sem nos fitar até o assento. Quando finalmente seus olhos me encontram, encaro-o
com os lábios franzidos numa carranca de repreensão.
Ele, como sempre, balança um ombro erguendo as sobrancelhas no costumeiro pedido
de desculpas.
— Vamos continuar? — Giulio se prontifica, tentando amenizar os burburinhos.
— Não deveria repreender o Caporegime de Palermo? Agora ele não é mais tenente.
Deveria dar o respeito merecido ao Consiglio — Romero Colombo, Caporegime de Caltanisseta
esbraveja.
— A repreensão viria se mio fratello não estivesse a mando de seu Don em uma missão,
que o fez chegar atrasado. — Giulio bate a caneta algumas vezes na mesa, mirando velho
barbudo em desafio. Como todos os outros que temem o novo Don Moretto, Romero se silencia.
— Recebi o balancete do mês e, alguns números menores do que o esperado chamaram
minha atenção. —
— Mas a diminuição aconteceu inclusive no Grupo Moretto, Don. Discutimos a pauta
semana passada. Houve uma queda no mercado recentemente. — Demetrio Zanchetta, Zio de
Michela e Francesca justifica.
— Não se trata de nada relacionado ao comércio. — Mio fratello endireita-se na
cadeira, encarando quem deveria se explicar. — O que tem a dizer Signore Colombo?
O Caporegime de Agrigento, Ermano Colombo, ergue o canto dos lábios, dando uma
leve soprada de narinas com desdém.
— Caro Don Moretto, reportei ao Sottocapo sobre a carga roubada. O tributo foi abatido
quanto a este valor.
— A porcentagem de perda não condiz com a realidade, Ermano. — Neste momento,
Giulio passa cópias dos gráficos para Enrico Zanchetta, seu sogro, que se senta à minha frente,
pegando uma e dando para o seguinte, até finalizar em mim.
Enquanto todos observam os números, estudo seus rostos. Fui eu quem encontrou a
discrepância e sabia decorado o conteúdo.
— Ma-mas eu paguei além do que consta neste balancete — Ermano contrapõe.
— Você tem como provar?
A vermelhidão subindo pelo pescoço mostra raiva e surpresa. Giulio e eu trocamos
olhares cúmplices. O valor recebido era menor, no entanto, não condizia com a movimentação
bancária do Caporegime acuado.
Mas a conclusão de sua inocência viria apenas com a reunião do Consiglio. Nós
precisávamos ver não a atitude de Ermano Colombo, mas dos outros sete.
O murmúrio de vozes enche o espaço. Germano Vacchio vinha indicando em mais de
uma ocasião movimentos corporais de possível culpado. E novamente, visualizei o pulsar da
artéria em seu pescoço, bem como a mania em circular o polegar no indicador.
Faltava algo concreto para justificar sua morte. Nossa famiglia foi embasada num
código de honra, e Germano possuía tenentes e soldados fiéis a ele. Por mais que todos juraram
suas vidas ao Don da Cosa Nostra, era necessário o vínculo de confiança criado pela hierarquia.
Expiro o ar frustrado, sentindo Giulio fazer o mesmo. Maximus, contudo, rodopiava
distraidamente a caneta colocada à sua frente como para os demais.
— Eu paguei o tributo, Don Moretto. Não sei o que houve, mas não foi esse o valor
transferido — Romero insiste.
— Você tem uma semana para provar, Romero — Giulio impõe. — Após, se considerar
culpado, nos veremos no Anello di Cotello. — O barbudo pisca duro, assustado com a
possibilidade.
Infelizmente, ele não viraria picadinho pois quanto à sua inocência tínhamos provas, não
tínhamos para culpar Germano Vacchio.
Zio Marcelo aproxima-se e cochicha no ouvido de Giulio. Ele possuía a habilidade de
movimentar os lábios de modo a ser impossível fazer leitura labial e a sagacidade peculiar para
aconselhar com cautela.
Apenas o Don ouvia suas palavras sussurradas. Giulio balança a cabeça concordando
com algo.
— Maximus, quantas ragazze você encaminhou para Milão? — Todos se silenciam,
notando que o assunto havia mudado.
A caneta de Max estagna de pronto e seus olhos se voltam para nosso fratello.
— Seis. Uma delas tinha doze anos — informa secamente. — Pediu para retornar ao
México.
— Todas eram mexicanas? — Agora é Nino Basile, o desafeto de Giulio, por conta da
disputa por Francesca, quem indaga.
— Não. Algumas eram da Colômbia.
— Onde foram recepcionadas? — Enrico Zanchetta intervém.
— No porto de Cefalú. Chegaram como todas as outras, em meio aos containers.
— E a polizia? A Europol foi chamada de novo? — Nino novamente busca se inteirar.
— Simona estava comigo. — E Maximus pede para ser crucificado. Meu pescoço chega
a doer com a virada para encarar o stronzo. Ele mantém os olhos na mesa. — Ela… — ele
respira fundo e continua: — não chamou ninguém. Só pediu para ajudarmos as ragazze. Há
traidores em todos os lugares para até uma polizia pedir ajuda à Cosa Nostra.
— E você tem alguma dúvida? — Giulio pergunta com sarcasmo. — Nossa folha de
pagamentos não é suficiente?
— Eu não tenho dúvidas. Mas… — Suspira chateado. — Ela tinha. Foi como se visse
uma criança descobrir que Papai Noel não existe.
O assopro de risada vinda de Nino e seu fratello Tito é seguido pelos demais vecchios.
— Que foi? — Maximus fica sério. — Odeio essas reuniões. Max ameaça levantar, mas
seguro seu braço, tentando esconder o sorriso com a pressão dos lábios. Giulio virou o rosto.
Assim que as risadas cessam, outros assuntos são relatados e a reunião prossegue
ordinariamente.
No final, entoamos o lema da famiglia e a sala começa a esvaziar aos poucos. Enrico e
Demétrio Zanchetta acertam os detalhes do jantar de mais tarde na casa do Don com as suas
damigelle, e nossas. Bom… minha futura damigella.
Luigi Zanchetta aguardava o tio e o padre no anteparo que separava a mesa dos vecchio
dos assentos. Ele nunca deixou de estar presente desde que se tornou fatto dell uomono.
Giulio informou o quanto Francesca estava animada. Ela ainda não havia conseguido
conversar com mio fratello. E seu tempo estava se esgotando.
Notei que Michela descobriu por conta dos cochichos entre elas nos dois últimos dias.
— Eu odeio esse tipo de encontro — Max reclama.
— Mais tarde você esquece comendo o assado da Signora Isabel — Giulio bagunça seu
cabelo, tirando alguns fios do rabo de cavalo baixo.
— Posso levar minha namorada? — Ergue uma sobrancelha, com um sorriso maroto.
— Você acabou de dizer que tirou o sonho de infância dela, e acha que vai aceitar jantar
com três Caporegime da famiglia e seu Don? — digo debochado, não consegui perder a piada.
— Pelo menos ela nunca saiu do meu apartamento chorando de madrugada — Maximus
retruca e eu emburro na mesma hora, relembrando da noite em que mio Colibrì esteve em minha
casa.
— O que você está falando?
— Isso mesmo que ouviu. — Ele diz, amarrando novamente o cabelo. — Não foi por
querer. Estava descendo para meu apê, voltando da cobertura de Giulio quando o elevador parou
no seu andar. — Max diz caminhando em minha frente, e olha por cima do ombro: — Pensei que
fosse bom com as donne, fratello. A tua sposa saiu do seu apartamento aos prantos.
Fico absorto relembrando aquela madrugada. A lembrança serviu diversas vezes como
estímulo enquanto me masturbava. Pensei que… que ela tivesse gostado tanto quanto eu.
Saio apressado da sala de reuniões querendo rever o tape daquela noite, a pegar esse
momento que Maximus revelou. Cazzo.
A imagem do seu corpo se contorcendo em meu colo de prazer fazia-me salivar. Eu
queria mais de Michela. Queria satisfazê-la e ver seus olhos cor de mel escurecerem ao meu
toque.
Sabia que teria um casamento arranjado com alguma damigella. Isso era fato. Não
haveria opção em encontrar uma ragazza e me apaixonar. A única escolha que tinha era observar
o vasto catálogo de eleitas fornecido pela Cosa Nostra.
Fiquei puto quando ela arrancou de mim a única escolha.
Fui escolhido.
Naquela noite, ela revelou que a mentira foi para se esquivar do noivado com seu
cugino. No entanto, Michela poderia mencionar qualquer um para sua mentira, mas… ela me
escolheu.
Então, eu aceitei.
A irmã de mia cognata sempre me intrigou. De certo modo, ela aparecia com frequência
em minha mente quando pensava em uma noiva. E após ensiná-la o significado de um beijo
escandaloso, senti a química fluir entre nós.
O casamento vai acontecer de qualquer forma. Ela vai se casar e será comigo. Sua
aparição de madrugada, em um baby-doll indecente para pedir perdão pela mentira, foi a
oportunidade perfeita.
Queria mostrar a ela que nosso casamento pode ser mais do que aparências.
O desejo carnal é uma ferramenta grandiosa para a construção de uma relação funcional
no matrimônio.
Ela não precisa me amar. Não me importo com sentimentalismo, basta me desejar tanto
quanto a desejo. Nossos corpos vão produzir o restante esperado pela Cosa Nostra… herdeiros.
E caso Michela queira ter sua boutique e finalmente revelar que é a tão aclamada Éloise
Decour que as damas de honra veneram, farei acontecer. Ela poderá ser a estilista mais quista
pelas celebridades se a fizer feliz.
Mas…
Não imaginei que havia a magoado tanto para chorar após ser contrariada. Vi em seus
olhos que não estava contente com minha decisão. Para mim, foi apenas o reflexo da ragazza
mimada. Talvez fazê-la gozar e negar-lhe um pedido não era o caminho para conquistar sua
confiança.
Na noite em que voltou da festa bêbada, pensei… pensei que quando pediu para ficar ao
seu lado, foi por entender que sou a melhor opção. Mas… na manhã seguinte, pensou primeiro
em Maximus. Senti raiva.
Talvez ela ainda estivesse com raiva também.
Será que por isso preferiu agradecer a Maximus do que a mim?
Se Michela chorou assim que saiu do meu apartamento em nosso primeiro encontro, ela
ainda está magoada.
Stronzo. Estou sendo um stronzo.
Senti uma pontada de ciúmes por não ser preterido em sua gratidão. Fiquei bravo e
deixei-a sozinha, uma porque meu pau estava latejando por roçar a noite toda em sua bunda; e
dois, porque me senti rejeitado.
Michela precisa descobrir que posso satisfazê-la e que sua mentira tornou-se nossa
realidade. Não pensei ser necessário persuadi-la. No entanto… sou ótimo jogador.
Eu preciso me redimir com minha noiva.
Quero que nosso casamente dê certo e magoá-la quando quero conquistá-la não é o
melhor caminho.
MICHELA ZANCHETTA

O aroma irresistível do ossobuco[111] temperado por Signora Isabel perfuma a cozinha.


Francesca, por sua vez, movimenta lentamente a colher na panela de risoto. Ela está destemida a
impressionar mammina na melhoria de seus dotes culinários. Algo que convenhamos, eu mesma
achava impossível de acontecer, até provar seu caldo de legumes.
Na hora em que subi até a cobertura, prontifiquei-me em oferecer ajuda, estava
habituada a ajudar em nossa casa em Messina, mia frattela era geralmente incumbida na
montagem da mesa.
Esses momentos aconteciam apenas em ocasiões especiais quando as damigelle querem
impressionar, demonstram que não apenas sabem comandar a manutenção de uma casa, mas
também sabem fazer todas as tarefas. Somos criadas para ser as perfeitas esposas, seja na
educação para se portar em jantares requintados como também preparar um.
Minha aversão a condição das mulheres dentro da Cosa Nostra deveria ver a situação de
Francesca, revelando-se uma perfeita cozinheira com represália. No entanto, o carinho com que
escolheu o cardápio, bem como o sorriso satisfeito por ajudar no preparo enchem meu coração de
alegria.
Mia frattela sempre sonhou com seu conto de fadas às avessas. O final dele foi se tornar
a esposa de Giulio Moretto.
Em meio ao alvoroço de panelas e o calor de um fogão trabalhando a pleno vapor,
encho novamente minha taça de vinho branco. Eu precisava provar se a bebida escolhida para o
ossobuco era adequada, afinal.
Francesca prova o risoto, depositando um pouco do caldo em sua palma. Em seguida,
vai até o forno para auferir o dourado do assado. Signora Isabel mantém-se na pia lavando
alguns utensílios já usados.
— Tchesca, da forma que dança nesta cozinha, estou na dúvida se a inscrevo no
Masterchef ou no programa Ballando con le Stelle[112] — digo, divertida, bebericando o vinho.
— Engraçadinha… — Ela faz uma careta e sorri. — Você deveria parar de beber, ainda
não comeu nada.
— Como não? Aqui, olha. — Pego uma cenoura, mastigando rapidamente e
empurrando com outro gole da bebida de uva deliciosa. — Estou alimentada para beber.
Francesca balança a cabeça em desaprovação, liberando um riso solto.
— E também estou me preparando psicologicamente para o ossobuco que está
prometendo para o jantar — comento, piscando para Isabel, que ajusta o tempero com maestria.
Sei que deve estar maravilhoso, mas não posso deixar de me recordar de suas tentativas em
cozinhar na casa de nossos pais.
Francesca tenta não rir, fazendo uma carranca de repreensão.
— Você verá como sou uma exímia chef de cozinha agora, frattela. Signora Isabel,
como estamos nos pratos?
Isabel, com seu avental impecável, enxuga as mãos, indo até a bancada onde outra
auxiliar termina de empilhar as massas frescas para a sequência de uma refeição esplendorosa.
— Tudo está indo conforme o esperado, mia Signora. Vai surpreender a todos, e as
massas frescas estão prestes a conquistar os corações na mesa. — Ela gesticula para a jovem
ragazza que sorri timidamente.
— Vou perder o troféu de melhor cozinheira para mia frattela… que lástima. — Deixo
escapar um suspiro dramático.
— Isso nunca. Até porque logo, logo, será você a oferecer um jantar como Signora
Moretto, Chela. Impossível competir — Tchesca fala com tanta naturalidade que penso na
possibilidade por um breve momento.
Não.
Não quero e não posso pensar no assunto com leviandade. Fausto Moretto merece uma
moglie digna da Cosa Nostra e eu… eu não sou essa pessoa. Pretendo trabalhar, o que não se
admite no mundo das damigelle. Seria ultrajada, bem como mio sposo provisório.
Oddio… estou pensando nele, não em mim?
Isso não é bom. Não é nada bom.
Fausto Moretto é o Sottocapo da Cosa Nostra e aceitou assumir um noivado em virtude
das tradições de nosso mundo. Ele pode saber sobre meu segredo, mas nada indica que permitirá
que continue após o casamento.
Mas que casamento, Michela?
Cazzo. Estou realmente pensando nessa alternativa?
Não… não estou. Balanço a cabeça em negativa interna, enchendo outra vez a taça de
cristal. Fausto é meu noivo provisório, apenas isso. Uma situação temporária que logo terá um
fim. Seguirei com o plano de mostrar a ele que não somos compatíveis.
A lembrança de seu cheiro impregnado na fronha do travesseiro que dormiu ao meu
lado não ajuda em nada em minha tese. Dio Santo!
Não posso me casar com ele! É tão difícil assim de entender? Se o casamento acontecer,
adeus todos os meus sonhos em ser estilista. Terei que me contentar em manter o segredo e
engolir o fardo de me tornar uma dama de honra nesse mundo sujo repleto de proibições arcaicas
para as mulheres.
De repente tenho a visão do meu vestido de noiva, em seguida do meu reflexo no
espelho. Fausto me esperando no altar com o sorriso de canto que o deixa ainda mais charmoso.
Suspiro.
— Michela? Michelaaaaa… — A voz de mia frattela ao meu lado me tira do devaneio.
— Hum?
— Abra a boca — comanda e faço por reflexo, sentindo a colher ultrapassar meus
lábios, sentindo na sequência o sabor exótico do risoto comum toque de limão siciliano e a
textura dos grãos de arroz.
Elevo uma mão para limpar o canto da boca.
— E então? — Francesca parece incerta.
— Acredito que precise de outra colherada para ter certeza. — Aproveito e tomo-lhe de
assalto o utensílio correndo até a panela para saborear mais um pouquinho o prato delicioso.
— Chelaaaa… — Ela berra e ri, mas não me detém. Assopro um pouquinho e sorrio,
murmurando a aprovação que tanto queria, gesticulando com um biquinho estar delicioso.
— O que seria de um jantar italiano sem uma boa dose de caos e risadas na cozinha? —
Signora Isabel divaga em meio ao caos que criamos.
Enquanto nós finalizamos os últimos detalhes, a porta da cozinha se abre, revelando
Giulio em roupas menos formais como o habitual terno. Ele veste uma camisa branca com o
colarinho aberto e calça jeans de lavagem escura.
Antes que consiga dizer algo, Maximus surge atrás dele.
— Ufa… todas estão vivas. Cheguei a tempo — Maximus ofega, colocando a mão sobre
o peito. Na sequência, Giulio lhe dá um tapa na nuca.
— Stronzo. Só queria ver mia moglie — Giulio diz carrancudo ao encarar o irmão, mas
assim que o deixa para trás seguindo em direção a Francesca, vejo o vislumbre de um sorriso.
A cumplicidade entre os irmãos Moretto e suas implicâncias uns com os outros sempre
me pareceu uma distração bem-vinda. Por mais que a implicância seja direcionada mais vezes ao
caçula, Max nunca me pareceu se importar.
— Como stai, Bambola? Passou a dor de cabeça? — Fito mia frattela de pronto,
querendo saber se finalmente teve coragem de contar ao tuo marito o que tem aprontado. Ele
precisa saber, afinal faltam poucos dias para esporrar num potinho.
Francesca o abraça, encarando-me sobre seu ombro com os olhos arregalados. É… pelo
visto não.
— Sai daqui bambino! — Ouço a Signorina que até então parecia amigável, repreender
o caçula dos Moretto. — Ela lhe dá um tapinha no dorso da mão para que solte um pedaço da
massa talharim que pegava. — Ainda está crua.
— Aiii… só queria um pedacinho para brincar.
— Você não é mais criança para brincar com a comida.
Maximus faz biquinho, e depois abraça Signora Isabel pela cintura, fazendo cosquinhas
na mulher que praticamente o criou. Ela ri ao mesmo tempo que lhe bate com um guardanapo de
pano.
— Seus pais e fratello chegaram, amore mio. Pode deixar que Signora Isabel termine,
va benne?
Francesca se volta para a governanta que meneia a cabeça.
— Sì, per favore, levem o bambino com vocês — ela abana o tecido de cozinha nas
costas de Maximus, que exibe ter capturado um macarrão, saindo sorrateiro pela porta. —
Piccoloooo!
— Piccolo? — indago, estranhando a forma como a Signora chamou um dos homens
mais altos que conheço. Maximus regulava de altura com Fausto, no entanto Giulio ainda
ganhava na estatura.
— Para mim, esses bambini serão sempre piccoli — ela responde, sorrindo. — Agora,
vão todos.
— Mas… — Francesca ainda insiste.
— Está tudo encaminhado, cara mia. Fique tranquila que irei servir como orientou. —
Tchesca fica mais tranquila e deixa que Giulio a conduza.
Antes que eu saia, aproveito para encher novamente a taça de vinho.
— Você prometeu que não ia beber mais, lembra? — Tchesca ainda consegue me vigiar
da porta.
— Nem menos… — devolvo, seguindo-a, ouvido as risadas de Signora Isabel e sua
ajudante.
Ao nos aproximarmos da sala na qual os convidados da noite estavam, sinto um frio na
barriga. A sensação esquisita que vinha sentindo todas as vezes em que Fausto poderia estar por
perto assemelhava-se à tormenta em alto mar, só que as ondas gigantescas aconteciam no meu
estômago.
Na sala de estar, Luigi está ao canto com um copo de uísque em mãos, contemplando a
cidade através das portas duplas que davam à extensa sacada, enquanto papà e mammina,
sentados no sofá sorriam e conversavam animadamente.
Às vezes que presenciava essa cena em minha casa, entendia o motivo que levou mia
frattela a querer tanto se apaixonar, mesmo que fosse pelo stronzo de tuo marito. Ela aceitou sua
sina e fez de tudo para alimentar qualquer sombra de esperança sobre a possibilidade de amor.
— Piccola! Como stai bella — papà que ainda não havia nos visto, por ter ido direto à
reunião do Consiglio, abraça Francesca. — Tem se alimentado bem, cara mia. Está com o rosto
cheio. — Ele aperta suas bochechas. Sorrio, vendo a interação do meu clã, sentindo-me em casa,
com a pequena diferença das piruetas que meu estômago teimava em dar.
— Para papà… — Francesca segura suas mãos. — Estou do mesmo jeito.
— Ah, mia piccola[113]… não está não. Olhe como sorri — mammina acrescenta. — Tuo
padre quer dizer que está cheia de vida.
— E de hormônios — balbucio, sendo de imediato repreendida pelo olhar de Tchesca.
Dou de ombros e caminho até o outro lado de papà. — E eu, papà? Também estou mais bella?
— Vocês duas estão belas, bambina. Mas você emagreceu. Não pode. Um uomo gosta
de carne — Nostro padre me abraça com o outro braço.
— Pois eu gosto de como ela está. — E ali está a razão do suco gástrico borbulhar em
meu interior. A voz profunda e aveludada que invade meus sonhos ressoa da boca desenhada
pelo diabo. Olho por cima do ombro, notando a figura de Fausto sentada na poltrona mais
afastada.
Caspita! Hoje é dia de desfile da Dolce & Gabbana e não me avisaram?
Giulio e Fausto estão vestidos com camisas da grife e sim, eu sei muito bem identificar
o corte. Ao passo em que o irmão mais velho usa camisa branca, Fausto está com uma na cor
azul marinho e calça na cor cáqui. Consigo ver que está sem meia e até a penugem do seu
tornozelo é sexy acima do mocassim caramelo
Não resisto em fazer uma avaliação minuciosa de cada detalhe de mio sposo provisório,
elevando o olhar até encontrá-lo me fitando descaradamente com um sorriso de canto. Papà
limpa a garganta tirando-me do torpor. Resmungo baixinho, fechando os olhos e virando de volta
o corpo para os meus.
— Acredito que também mereça um abraço, não? — Luigi me salva, tirando meu copo
e entregando-o à mammina para em seguida me erguer no ar. Solto um gritinho, enlaçando o seu
pescoço. — Senti tua falta, encrenqueira.
Solto um riso frouxo.
— Nem imagino como sua vida está monótona sem mim — replico, com ar zombeteiro.
— Completamente entediante — ele bufa o riso.
— Jura mesmo, cognato? Posso deixar sua vida mais agitada se é o que quer — Fausto
anuncia sem tirar os olhos de mim. Em seguida, levanta-se caminhando em nossa direção. Sinto
um arrepio percorrer minha espinha a cada passada. Meu noivo provisório pega minha mão,
beijando-a e dando um leve puxão para meu corpo desequilibrar, escorando-se no dele.
— Você ainda não é meu cunhado. E eu amo sentir tédio — Luigi contesta, segurando
minha mão livre na tentativa de me tirar dos braços de Fausto.
Estaco entre os dois, apoiando-me com as mãos em cada peito disposto nas minhas
laterais.
— Parem com isso que não sou cabo de guerra — proclamo, saindo do fogo cruzado e
sentando-me ao lado de mammina. Ela ajeita a saia do meu vestido e depois encara Luigi com o
cenho fechado.
— Sua vida não está nada tediosa. Para mim, poderia tirar férias — Signora Zanchetta
comenta e os homens da sala dão risinhos.
— Seria inédito um membro da máfia tirar férias — Maximus é quem fala. — Fratello,
se puder, sou o primeiro da lista — direciona a fala à Giulio.
— Podemos não tirar férias, mas alguns dias num iate, o que acham? — Fausto sugere e
noto as sobrancelhas de Don Moretto arquearem em dúvida.
— Após a festa do lançamento da Imperium poderíamos passar alguns dias no iate. —
Dá de ombros, sentando-se despretensiosamente ao meu lado. Endireito-me para disfarçar os
calafrios que percorrem o meu corpo.
— Pensei que a festa fosse dirigida apenas aos homens — Anunziatta Zanchetta
comenta, voltando-se a sentar, agora na poltrona ao lado do sofá.
— Na realidade, os convites serão enviados a todos os Caporegimes, bem como alguns
clãs mais importantes.
— Você quer dizer mais influentes — emendo. Fausto olha para o teto, fazendo um
beicinho pensativo. Dio Santo, como queria chupar aquele beicinho.
Madonna das ragazze del pazze perdona esta figlia!
Olha o pensamento suicida que estou tendo sentada bem ao lado de mammina. Balanço
a cabeça, com os olhos apertados, querendo que minha mente suja pare já com a sequência de
lembranças vindas do que a boca de Fausto pode fazer.
— Posso servir o jantar, Signora Moretto? — Signora Isabel salva minha alma.
Francesca que havia sentado do outro lado com Giulio em uma namoradeira levanta-se
de pronto. Era como se mio cognato estivesse dizendo algo ao pé do seu ouvido e a governanta
viesse para salvar não apenas minha alma.
Que merda esses irmãos Moretto pensam que estão fazendo bem na frente de nossos
pais?
— Cla-claro. — Ela ajeita o vestido de linho branco. — Estou ansiosa para que
mammina prove meu risoto.
— Você cozinhou? — Mammina parece com medo.
— Sim… — Tchesca responde um pouco ofendida. — Melhorei muito, Signora
Zanchetta.
— Tomara Deus! — Luigi glorifica, gesticulando para o alto.
— É verdade… demorou um pouco, mas… — Giulio não termina, pois leva um tapa no
ombro. Ele pega a mão da esposa rapidamente, deixando um beijo em sua palma. Ela sorri,
seduzida.
Logo após estamos todos sentados e jantando como uma típica família italiana. As vozes
em volume alto, com risadas e piadinhas entre irmãos dominam o ambiente.
— O que é Imperium? — indago, recordando-me das não férias dos mafiosos.
— É um token de criptomoeda que Fausto criou — Max é quem responde, deixando-me
tão em dúvida quanto antes.
— Trata-se de um negócio no qual preciso de investidores e para tanto é necessário um
evento grandioso — Fausto acrescenta, melhorando um pouquinho.
— Teremos uma grande festa em um iate e todos serão convidados. Muitos não são da
famiglia, então será um evento à paisana. — Giulio é quem consegue esclarecer de modo que eu,
mammina e Francesca entendamos.
— Posso levar uma amiga? — indago, colocando uma garfada de ossobuco na boca.
— Se ela puder, eu também posso — Max intrometeu-se apressadamente.
Giulio bufa o ar, parecendo cansado de discutir algum assunto repetitivo com o irmão
caçula. Ele meneia a cabeça afirmativamente, e Max sorri satisfeito.
— Mesmo levando uma amiga, saiba que será minha acompanhante, va benne? —
Fausto que está ao meu lado, segura novamente minha mão. Engulo com dificuldade o pedaço de
carne que se tornou um bolo em minha boca. Cazzo! Respira, Michela!
— Ela é sua noiva. — Papà aponta como se a resposta fosse óbvia. Mas a forma com
que Fausto colocou era mais uma pergunta e não uma afirmação.
Assinto, murmurando baixinho. Acredito que não teria escolha de qualquer forma.
MICHELA ZANCHETTA

A entrada do iate Lady Moura parece um sonho! Estou acostumada com festas
sofisticadas, mas essa ultrapassou meu conceito de glamour. Na realidade, elevou a patamares
que nunca imaginei.
Para cada lugar que olho, noto um artista seja uma atriz conhecida, um ator, DJ,
modelos e…
— Aquela ali é Maisie Willians de Game of Thrones? — Anitta cochicha em meu
ouvido.
— Acho que sim — respondo, tão surpresa quanto minha amiga.
— Também estou surpresa. Quando que pudemos ficar tão perto de artistas assim? —
Valentina emenda, do meu outro lado.
— A festa está bombando, cheia de gente chique — Anitta comenta, aceitando uma das
bebidas de guarda-chuvinha oferecidas pelo garçom. — Não sei se deveria ter vindo. Esse lugar
não é para mim. — Balança a cabeça com o canudo nos lábios, fitando o líquido azul na taça.
Valentina continua analisando se conhece outra celebridade presente.
Anitta parece tímida por um instante. Quando a convidei para me acompanhar, a
primeira resposta foi que não tinha roupa, o que para mim não era problema algum ajudá-la. Ela
está tão chique quanto qualquer pessoa neste iate, vestido com um tubinho de lantejoulas
douradas foscas e um scarpin branco. Passamos a tarde em meu quarto, eu, ela e Valentina.
Confesso que esperava ver mia cugina mais receptiva à minha nova amizade.
Tem algo de estranho nessa ragazza.
Ela está com ciúmes.
Anitta, pelo contrário, foi receptiva e tentou inclui-la em todos os assuntos que
conversávamos. Depois do primeiro contato, dei início à transformação de minha amiga. Ela
ficou receosa quanto ao penteado e maquiagem que pedi para fazer. Seu rosto ficou com ar
angelical sem os olhos com sombras marcadas, seu habitual. E os cabelos parte presos e a outra
parte descendo em ondas pelas costas deram o toque final.
— Você está maravilhosa. Pare com isso e aproveite. — Puxo as duas para me
acompanharem para ver os demais ambientes. — Quem disse que topava tudo com bebida e
comida grátis, hum? — direciono-me à Anitta.
— Pensei que seria uma festinha da famiglia… e não isso aqui. — Ela rodopia o olhar
sinalizando seu argumento até centralizar em um ponto e seu queixo cair de uma vez. Viro para
descobrir o que a abalou e também fico absorta com a entrada do iate.
— Caspita! — Valentina diz admirada.
O nível de luxo subiu mais um pouquinho. Os degraus dourados dão as boas-vindas, e a
música pulsando conforme as luzes piscam é surreal. Tudo parece sincronizado numa perfeição
estonteante.
A música não é agitada e condiz com a iluminação aconchegante que serve de base para
os demais jatos de luzes.
O som produz certo magnetismo, fazendo as pessoas se moverem automaticamente
envolvidas pelo ritmo. Sigo, interessada em ver o máximo possível, antes de encontrar meu
acompanhante.
Fausto informou mais cedo que não poderia vir comigo, pois estaria no iate desde cedo
providenciando os detalhes finais do evento. Ele iria se arrumar na suíte localizada no andar
destinado aos irmãos Moretto no próprio iate. Assim, pude ter uma tarde de meninas com minha
mais nova amiga e Valentina, que exigiu um penteado mais elaborado só para me castigar por
cuidar primeiro de Anitta.
Ela deixou claro não se tratar de ciúmes. Uh-hum… sei.
O vestido dela, diferente do de Anitta, era exclusivo da minha próxima coleção.
Fiquei envaidecida ao notar o brilho no olhar de mia cugina quando segurou o vestido.
Essa sensação em ver minha criação ser admirada é indescritível. Aquece meu interior e arrepia
todo o couro cabeludo de um modo gostoso.
A peça foi confeccionada em veludo na cor rosê com elastano para se ajustar ao corpo,
dando ênfase às curvas de quem usasse. O decote é um v profundo, com duas pontas elevadas
acima do busto. Para não ser mais ousado, mantive o comprimento longo, com uma fenda
discreta na lateral direita para possibilitar a locomoção. A sandália em tiras douradas nos pés de
Valentina deixou o visual perfeito.
— Chela? — Valentina chama fitando um canto de cara fechada. Observo o que chama
a sua atenção. Luigi, Dario e Alessio conversam animadamente com duas ragazze. Eles parecem
não notar nossa presença.
— Eles só estão conversando — tranquilizo-a, e como se me ouvisse, o atentado do
Alessio coloca uma mão atrevida na lombar de uma delas. A ragazza é morena, o que de certo
modo parece machucar ainda mais Valentina.
Será que se ele tivesse feito isso na loira, a feição de mia cugina seria menos sisuda?
— Pra quem vocês estão olhando? — Anitta indaga, fitando a mesma direção. — Porra!
Quem são os gostosos?
— Mio fratello e cugini[114]— respondo rápido para ela não dar outro fora. — Tina? Va
tutto bene[115]?
— Preciso de uma bebida — replica, virando-se e andando magicamente rápido demais
para quem está naqueles saltos.
Madonna mia, me ajuda porque meus sapatos não foram feitos para corrida. Saltito os
degraus, tomando cuidado para acertar a plataforma e o salto ao mesmo tempo. E meu vestido
não possui uma fenda, ele é justo até a altura dos joelhos, com mangas três quarto na cor rosa
maravilha. O detalhe ficou para a parte frontal na qual aprofundei um decote até o umbigo
disfarçado pelo tule que une o tecido acetinado.
— Tinaaaaa… per favore! — chamo-a, e ela para. Grazie Dio! Vejo-a pegar uma taça,
jogar o guarda-chuvinha e virar de uma vez um líquido vermelho. Dou uma olhadela sobre o
ombro, para conferir se Anitta está comigo. Ela pega a mesma bebida de Valentina, mas
diferente de mia cugina, segura delicadamente o canudinho.
— Estou bem melhor… — Tina limpa os lábios, como se tivesse absorvido a bebida dos
deuses. — Só mais alguns desses e vou esquecer o stronzo.
— Como consegue? — Anitta a indaga, curiosa.
— O quê?
— Ficar bêbada com suco de uva — Anitta responde.
— Mas, mas…
— Suco de uva branca pode ser um pouquinho mais ácido, mas ainda continua sendo
suco. Quer ficar louca mesmo? — Tina assente e Anitta sorri, levando a mão livre até a bolsinha
discreta pendurada na transversal em seu tronco. Imagino o que ela vai pegar e seguro a mão,
mantendo fechada.
— Vamos beber algo forte e nada de ser encantada pela lua. Aqui não estamos à beira-
mar e não tenho tendência a virar sereia. — Balanço a cabeça em negativa para Anitta que tenta
abrir a clutch[116].
— Va benne… estraga prazeres. Mas eu não me encanto pela lua e gosto das minhas
viagens.
— Você pode viajar para Narnia mais tarde. Ainda estamos no começo da festa. Vamos
conhecer o restante do iate. Ainda temos muito a explorar.
Por um milagre elas concordam, e desta vez pegamos bebidas com teor alcoólico para
todas de um dos bares distribuídos em lugares estratégicos.
Os ambientes do iate são sensacionais. Lá fora, somos presenteadas com a vista do mar
à noite em um deck incrível. Sofás que parecem nuvens estão distribuídos formando salas sob as
estrelas.
Maximus escolheu um palácio flutuante para atender a grandiosidade exigida e
mencionada tantas vezes por Giulio no jantar no qual fomos convocadas. Mio sposo provisório
manteve os olhos o tempo todo sobre mim, o que me deixou constrangida um pouco. Circulei o
olhar pelos rostos estranhos e conhecidos, procurando por ele.
Caspita! Não acredito que estou fazendo isso.
A noite está só começando, e o iate se transforma na festa que eu nunca imaginei viver.
De repente, ouvimos uma explosão e alguns fogos de artifício iluminam o céu. Fausto
finalmente aparece na parte superior do iate ao lado dos irmãos, tomando a atenção de todos.
— Buonasera, famiglia e amici![117] Sejam bem-vindos! Quero agradecer a cada um de
vocês por estarem presentes neste evento tão especial para nós. — Fausto diz com desenvoltura,
abrindo os braços. — É incrível ver tantos rostos conhecidos e entusiastas com o token
Imperium.
Aplausos aclamam a fala do mafioso nerd. Até mesmo Anitta parece envolvida com o
discurso.
— Quero compartilhar uma notícia fantástica. O investimento tem alcançado métricas
além do esperado, o que indica nosso sucesso. — Uma projeção imensa surge atrás dos irmãos
com o símbolo do Imperium, um triângulo dourado com uma espada sobreposta voltada a lâmina
para baixo.
Penso na imagem subliminar que indica o perigo preeminente em caminhar abaixo de
uma espada. Assopro um leve riso ao constatar o que os investidores seduzidos pela riqueza não
veem.
— Grazie! E aproveitem — Fausto finaliza e os três somem para o interior do iate com
uma salva de palmas.
— É isso aí! Vamos nos divertir — Valentina pega num movimento fluido outra bebida
que passava sobre a bandeja de outro garçom.
— Melhor se divertir de outra maneira — Alessio aparece do nada, retirando a taça da
mão de Tina e enlaçando sua cintura para ela não cair. — Tudo bem, Chela?
— Tutto benne[118]. — Não percebi que Valentina já havia tomado o suficiente para ficar
altinha.
— Então, me leva para dançar — Tina diz com a voz amolecida. Será?
— Que tal primeiro um pouco de água? — ele sugere.
— Va benne… depois dança — mia cugina faz beicinho. Inclino a cabeça para o lado.
Alessio suspira, mas com um sorriso de canto.
— Água — afirma e conduz minha prima que se apoia, segurando seu braço.
— E eu pensando que sua cugina era boba — Anitta sussurra em meu ouvido.
— Hum? — Olho para o casal se distanciando, e Valentina consegue virar um pouco o
rosto para dar aquela piscada marota. Safada. Sorrio.
— Eu vou no banheiro, principessa. Quer ir?
— Não, vai lá. Espero aqui. — Anitta meneia a cabeça e caminha para a lateral do iate,
onde havíamos visto os toilettes.
Olho ao redor e vejo todo mundo se divertindo como se não houvesse amanhã. Não sei
nem como descrever, só sei que essa experiência vai ficar marcada na minha memória.
— Sozinha, Colibrì? — Dou um pulinho com o susto. Fausto está tão perto que me sinto
encoberta por sua figura num terno escuro de três peças. Quando viro o corpo de frente, seus
olhos percorrem meu corpo concentrando-se na pele à mostra através do tule entre meus seios.
Um arrepio gostoso percorre meu corpo acompanhando seu olhar, enquanto minhas
bochechas aquecem com o rubor.
— Nunca. Olhe em volta — indico os soldados que estavam próximos e nos
acompanharam o tempo todo. A presença deles é tão comum que meu cérebro se tornou seletivo
para os ver, mas não enxergar. Faz sentido?
Fausto sorri, percebendo que apontei com os olhos a direção inclusive do seu soldato e
não apenas Paolo.
— Você está na quarta taça. Bebeu água? — Quarta taça? Pensei que fosse a segunda.
— Stalker… — cantarolo, rolando os olhos.
— Faz parte do meu trabalho.
— Contar as taças que bebo?
— Isso foi distração. Estava entediado aguardando o momento da apresentação.
— Estou agraciada — digo debochada. — Mas não podia ser um nerd comum e jogar
algo?
— Não sou comum.
— Não posso discordar.
— Venha! Vamos jantar — oferece o braço para mim.
— Estou esperando uma amiga.
— Ela não vai voltar.
— O que você fez com a Anitta? — Estufo o peito para aumentar meu tamanho.
Impossível. Mas eu tento.
— Não fiz nada. — Fausto segura meus braços e vira meu corpo para enxergar a cena
atrás de mim. Anitta está engolindo o rosto de um ragazzo, com cabelo descolorido e roupas de
gala num estilo próprio. — Agora vamos?
Volto-me devagar para encará-lo e dou meu melhor sorriso amarelo, aceitando seu
braço.
— O restaurante está aberto para a festa?
— Só para os mais próximos. Tua frattela não pode ficar muito tempo em pé após o
procedimento. — Fausto revela a situação de Tchesca por conta da fertilização. — Acredito que
você gostaria de jantar com ela antes que vá embora.
— Ela não vai ficar?
— Giulio acha arriscado e eles estão esperançosos. Por ele, Francesca não sairia da
cama até ter certeza de que houve fecundação.
Bufo um riso frouxo.
— Francesca estava com tanto medo de contar para ele.
— Vamos dizer que mio fratello ficou bravo com todos menos com ela. — Fausto
informa, aguardando pacientemente para que eu desça os três degraus para o próximo ambiente.
— O maior medo de Giulio é perder tua frattela, Colibrì. Se ela quer um filho, ele fará de tudo
para realizar seu desejo. Ele lhe daria a Sícilia inteira.
— Eu sei… — Depois de ver o cuidado que mio cognato mostrou ao carregar Francesca
todos esses dias e como reagiu ao descobrir seu pequeno segredo, confesso que ele subiu em meu
conceito.
Francesca lhe pediu perdão e Giulio deu-lhe a prova do seu amor dizendo que ele é
quem deveria se ajoelhar pelo fato de deixá-la passar por tudo sozinha. Sim. Eu ouvi atrás da
porta.
— Depois do jantar podemos voltar — Fausto oferece.
— Para festa? — Ele assente. — E o mafioso nerd dança?
— Faço muitas coisas, Colibrì. — Ele sorri. Dio Santo! Acabo de derreter só em ver seu
sorriso perfeito. — Quer que te carregue?
Limpo a garganta, aprumando o corpo.
— Não. — devolvo de pronto. — Está tutto bene. Tutto benne. — Oddio! Desde que ele
não confira minha calcinha, eu sairia desta com um pouquinho de dignidade.
FAUSTO MORETTO

O camaleão é um réptil conhecido por sua habilidade de camuflagem, alterando a cor


para se adaptar aos diferentes ambientes e assim se tornar invisível para os predadores.
Às vezes, sinto-me como um camaleão. Passar imperceptível costuma auxiliar na
vigilância. Ainda mais quando não se confia em outras pessoas para alocar câmeras de alta
tecnologia.
E camuflar sob a pele do herdeiro Moretto que desenvolveu o token Imperium,
demonstrando alegria ao dançar com sua noiva na pista de dança central do evento, pode tornar-
se muito além de camuflagem.
Michela Zanchetta se divertindo e sorrindo de modo espontâneo é um momento tão
precioso que deveria ser eternizado num quadro. Talvez não conseguisse a imagem com a
quantidade de pixels suficientes para mantê-la nítida, porém, faço um cálculo rápido do melhor
ângulo para capturar posteriormente através das câmeras.
A explosão de substâncias eufóricas que meu cérebro derrama em meu organismo,
diante da sensibilidade ao seu toque, reflete a compatibilidade sexual latente.
Após jantarmos no restaurante do iate afastado da festa, com Giulio e Francesca, cumpri
minha palavra trazendo-a de volta aos ambientes destinados para o evento.
Mio fratello mais velho pediu para vigiar Maximus de perto, o que fiz apenas no
caminho até a danceteria na qual Michela arrastou-me ao centro, desafiadoramente. Mesmo que a
música soava agitada, puxei-a para meu corpo, movimentando-a de modo lento.
Seduzi-la.
Esse é o objetivo. Até para ela desistir de mencionar sobre eventual término.
Em dado momento da nossa dança, ritmada na bolha que criamos, Michela vira as
costas escorada em meu peito, enlaçando os braços em meu pescoço. Abaixo o rosto na altura do
seu pescoço, inspirando o suave aroma do perfume do lado oposto à trança que prendia seu
cabelo no penteado da noite.
A bunda redonda movia-se, friccionando com exatidão meu pau posicionado na calça de
alfaiataria. Ela dedilhava minha nuca e rebolava, arqueando as costas. Segurei a cintura fina e
imaginei como seria foder a sua boceta virgem nesta posição. Teria que erguer seu corpo para
alcançar a entrada. Noto o balcão do bar mais a frente, vendo outra possível cena que
concretizaria minha lascívia.
— Se continuar rebolando no meu pau, vou pensar que quer ser fodida naquele bar,
Colibrì — sussurro, assoprando em seu ouvido e chupando em seguida o lóbulo da orelha. Ela
para por alguns segundos. Consigo sentir a respiração alterada.
Michela eleva o rosto para alcançar meu ouvido.
— Você me deixaria nua na frente de todas essas pessoas? — desafia. Acabo sendo
fisgado pela isca e analisando ao redor.
— Posso te foder quando todos saírem — provoco.
— E como seria? — Ela agora sobe e desce, percebendo meu membro duro.
— Como ainda é virgem, Colibrì, usaria a língua. Beijaria suas pernas, elevaria o
vestido até poder visualizar a calcinha minúscula que deve estar enfiada nessa bunda gostosa. —
Passo a mão na lateral sentindo apenas uma tira fina.
— E depois? — ela ofega. Aproveito para segurar seu pescoço e descer uma mão logo
acima do seu sexo. Haviam muitas pessoas dançando, dificilmente alguém notaria meu
movimento. Passo o dedo em círculo acima do triângulo formado pela sua virilha.
— Talvez sua calcinha não sobreviveria à fome que sinto por você, Colibrì. Então, não
prometeria poupá-la. Mas seria uma ferramenta útil para o que pretendo fazer.
— Quanto tempo mais essa festa vai demorar?
Miro o Apple Watch, notando passar das três da manhã.
— Posso fazê-la acabar em uma hora. Mas… como me pagaria? — Neste instante, sou
surpreendido com Michela virando rapidamente para mim, colocando uma mão entre nossos
corpos e apertando meu pau dolorido. Arfo, inspirando o ar entre os dentes desejoso.
— De joelhos. — Então, fico cego, colidindo nossas bocas num beijo esfomeado. Sinto
vontade de sugar os lábios do meu Colibrì com verocidade para aplacar a luxúria crescente
destacada em minha virilha.
— Colibrì, por que diabos fez um vestido assim pra você? Podia ser parecido com o da
sua amiga ou cugina?
— Por que diz isso?
— Porque queria sentir o quanto está molhada.
Ela ri, mordendo o canto da boca numa imagem sedutora. Talvez o Consiglio dell
Vecchi teria em sua mesa outra marca de lençol forjada, pois não sei se consigo passar desta
noite.
Saímos do ambiente mais agitado para o lounge com sofás espalhados. Alguns casais
aproveitavam dos assentos confortáveis para se conhecerem melhor, usando a língua para algo
além da fala.
— Acho que não tem lugar — meu Colibrì fala baixinho, com uma nota de
desapontamento na voz. Fico envaidecido por perceber o que não me enganei em relação ao
desejo que sente por mim.
— A festa é minha, Colibrì. Temos o iate todo para nós. — Guio-a, segurando sua mão
com nossos dedos entrelaçados. Caminhamos para o interior novamente, mas não ficamos no
salão com DJs. Conforme seguimos, a quantidade de pessoas começa a diminuir gradativamente.
Então, visualizo uma das passagens que nos levaria até a proa. Não queria uma cena do
Titanic, mas por incrível que pareça, Jack sabia que no meio de uma festa este é o lugar mais
isolado.
— Se você me chamar de Rose, vou ligar agora para papà e pedir para uma lancha vir
me buscar — ela diz, sorridente. — Este iate é tão luxuoso quanto o Titanic e não estamos no
mar gelado, mas eu morreria afogada se tentasse nadar até a praia.
Rodopio seu corpo, colando suas costas em meu peito e abraçando-a por trás.
— Jack queria mostrar para Rose a liberdade do mundo aristocrata, cara mia. Algo que
sou egoísta demais para te oferecer — sussurro, afundando o rosto na curvatura entre o ombro e
o maxilar. Michela, a princípio fica com o corpo rígido por conta da fala, mas aos poucos
derrete, na medida em que deslizo a ponta do nariz apreciando o cheiro adocicado do perfume.
— Mas posso libertá-la desse vestido.
— Estamos numa festa, Fausto — contrapõe, a voz melosa.
— A festa está do outro lado, Colibrì — aponta, mantendo o deslizar das mãos subindo
por suas laterais. — Ninguém vem aqui.
— Ninguém? — Michela tomba a cabeça para o lado enquanto deposito beijos por toda
extensão até a nuca. Elevo as mãos até o fecho do vestido.
— Quero fazer você se sentir bem… — Saboreio a epiderme de suas costas, lambendo
um caminho decrescente. — Confie em mim, Colibrì.
— Eu confio… — diz e é o suficiente para me ajoelhar à suas costas conforme desço o
zíper, admirando o corpo delgado da mulher que será minha esposa.
Ela está sem sutiã, com uma calcinha minúscula de renda branca. Cazzo. A apologia ao
filme Titanic pode parecer piegas, mas Michela Zanchetta merecia a porra de um quadro para
eternização suas curvas perfeitas.
Assim que o vestido, torna-se um amontoado em seus pés, ajudo-a a tirar dos saltos um
de cada vez. Estou apoiado em um joelho, admirando-a de baixo para cima. A bunda em formato
de coração tão convidativa para minha mente sórdida. Quero cravar minhas digitais em suas
nádegas ao mesmo tempo em que quero beijá-la.
Aproximo o rosto, cheirando a pele, é possível sentir a penugem clara de pelos
arrepiados por conta da brisa noturna.
— Com frio, Colibrì?
Michela me olha por cima do ombro, segurando os seios.
— Nenhum um pouco — declara rouca, embebida de tesão. Mordo a carne
rechonchuda, fazendo-a dar um gritinho surpresa. Ela não se afasta, aguardando meu próximo
passo. Enfio o nariz no vão, abrindo a bunda gostosa e puxando o tecido de renda da calcinha
com os dentes juntamente com parte dos grandes lábios.
Mio Colibrì arfa, mantendo-se firme em pé sem qualquer apoio. Sinto o sabor de seu
gosto e imagino-a sentada com as pernas abertas para mim como um banquete. Quero comer essa
mulher com a boca até que fique sem voz de tanto gritar meu nome.
— Você gosta de lingerie assim, Colibrì? Ou só vestiu para mim?
— Eu não fazia ideia que mostraria minha calcinha para você, Fausto. — Seguro o
tecido, dando um puxão para cima, afundando o material em sua fenda. Ela arfa com um gritinho
abafado. Não esperava pelo movimento brusco.
— Não minta pra mim, Colibrì. Eu sou os olhos e ouvidos da famiglia. Mentir para mim
é pura ilusão. — Retorço a calcinha entre os dedos, sentindo o tecido rasgar aos poucos.
Dou uma lambida lânguida na sua fenda, ainda ajoelhado atrás de seu corpo.
— Pensei na possibilidade, va benne? — confessa baixinho, um pouco ranzinza por ser
descoberta. Não busquei nada nas câmeras e mensagens que tenho acesso para saber sua intenção
em ficar sem o vestido para mim. Porém, gostei de saber que ela pensou.
— Se a vestiu para mim… — Começo a diminuir a pressão do puxão para cima,
deslizando a lingerie aos poucos pelas coxas grossas até os tornozelos. — É minha. — Como
uma ragazza obediente, ela deixa que tire, saindo para o lado. Guardo meu presente no bolso
interno do paletó e quando ergo o olhar dou de cara com a boceta depilada, mantido um triângulo
bem aparado de pelos.
A saliva se acumula em minha boca, cobiçando a virgindade de minha noiva.
— E agora, mafioso nerd, o que vai fazer? — Michela me desafia, erguendo uma
sobrancelha querendo ter o controle da situação, mas ainda tímida pois esconde os seios com os
braços. Sorrio de canto, gostando da versão safada de meu Colibrì.
— Já vi seus seios, Colibrì. Não tem motivo para escondê-los de mim — informo-a. Ela
abre e fecha a boca sem reação. Michela deveria saber que não precisa esconder nada de mim,
muito menos o que sente. No entanto, a fachada de garota petulante e destemida me agrada tanto
quanto sua timidez.
Aos poucos, meu Colibrì deixa os braços cair para os lados do corpo. Observo o ferro
comprido que se estende na ponta do navio como um poste alto. Para o que quero fazer, Michela
precisa um lugar para se apoiar.
Levanto-me, e segurando sua nuca e cintura, beijo a boca carnuda da minha noiva. Ela
demora segundos até corresponder, segurando meu pescoço enquanto dou passos empurrando-a
até escorar as costas no ferro.
Chupo seus lábios, ora rápido, ora lento. Michela geme meu nome, arranhando acima do
colarinho da camisa. Deslizo uma mão até sua bunda e impulsiono para que eleve o joelho,
abrindo-se para mim. Ela arfa assim que pressiono meu membro coberto por camadas de tecido,
e aproveito para aprofundar o beijo, buscando sua língua e acariciando-a com lascívia.
— Confia em mim, Colibrì? — indago-a, pois preciso de confirmação.
— Confio… — diz ofegante. Sorrio.
— Segure aqui — elevo suas mãos indicando o cilindro de metal em suas costas. —
Não solte, va benne?
Ela meneia a cabeça. Afasto-me só para visualizar a bella ragazza que mia sposa se
transformou, faminto de desejo. Inclino sobre seu corpo, beijando agora seu maxilar e descendo
numa trilha pecaminosa pelo vale dos seus seios. Michela se contorce, perdendo o equilíbrio,
mas seguro seu quadril para mantê-la alinhada.
Seus gemidos deixam de ser tímidos no instante em que abocanho um mamilo. Dedico
um tempo, sugando-o e brincando com o roçar da língua até senti-lo durinho. Em seguida, faço a
mesma tortura com o outro. Apalpo ambos, apertando os bicos entre o polegar e indicador como
duas pinças e admiro a visão de uma deusa.
— Tão bella, meu Colibrì. A visão do paraíso.
— Então aproveite da melhor forma, meu noivo, pois tudo indica que seu caminho é
para o inferno.
— Por isso vou me fartar o quanto posso. — Faço um trajeto, descendo com uma trilha
de beijos molhados por seu abdômen até alcançar o triângulo entre suas pernas.
Pego sua coxa colocando uma delas em meu ombro, abrindo a rosa delicada desenhada
no seu centro. A excitação fluía da entrada do meu paraíso.
Mordo uma porção de carne próxima de sua virilha, e Michela arfa, projetando o quadril
para frente. Na sequência, beijo e deslizo a língua ao redor, evitando o interior rosado.
— Você está me torturando, mio sposo[119]. — Rio pela súplica com a voz dengosa.
— Paciência… Colibrì. Prometo que vai gostar.
Desta vez, acaricio com a ponta da língua os pequenos lábios, subindo e descendo,
passando ao redor do clitóris, mas não sobre ele. Sigo o caminho, desenhando ao redor da
entrada, sentindo o sabor agridoce da sua excitação. A tortura também era minha, pois meu pau
estava enjaulado na cueca sofrendo totalmente rígido.
Talvez minha noiva conseguisse de mim sua oferta de tirar sua pureza antes do
casamento. Mas não os demais pedidos. Michela será minha esposa de qualquer forma.
Subo a língua delicadamente até o broto inchado, fechando os lábios ao redor e
chupando preguiçosamente como um beijo lento e apaixonado.
Michela geme alto, me incentivando a repetir. Beijo novamente, e introduzo minha
língua encontrando o ponto sensível. Movimento algumas vezes, percebendo estar no local certo
quando ela ergue a outra coxa, e fica pendurada como uma bela imagem de proa invertida.
— Me chupa, Fausto. Me chupa, per favore — implora, esfregando a boceta gostosa em
minha boca. Seguro-a pelo quadril, querendo dominá-la e percebendo que meu Colibrì é quem se
tornou a condutora do próprio prazer.
— Você me deixa louco, Colibrì — murmuro. — Vou ficar viciado nessa boceta
gostosa.
Ela rebola mais, então, chupo novamente o clitóris, sugando com mais intensidade. Sigo
mamando, e esfregando a barba rala em sua entrada. A excitação lambuzando meu rosto
deliciosamente.
Michela começa a gemer, parecendo o ronronar de uma gata.
Com a ponta do indicador, testo sua entrada melando o dedo. Ela reduz o movimento do
quadril, esperando e me observando com o olhar repleto de luxúria. Quando Michela morde o
lábio, não aguento e aos poucos enfio o dedo no seu sexo.
Retomo os beijos molhados em seu clitóris, até tornarem-se mamadas ritmadas. O
indicador indo e vindo sentindo as paredes apertadas se contraírem conforme aumento a
velocidade.
— Aaaah… Fausto… — ela geme alto, uma contração esmaga meu dedo ao passo que
suas costas arqueiam no poste de ferro. Chupo mais forte, sugando o monte de nervos mais e
mais. — Faustoooo… — grita meu nome, gozando em minha boca completamente entregue.
A contração se torna pequenos espasmos e sigo o ritmo diminuindo a chupada com
pequenos beijos. Michela relaxa e solta a barra de ferro. Fico em pé rápido, seu corpo
desfalecendo em meus braços.
A cabeça de Michela tomba para frente, deixando-me preocupado. Elevo seu rosto e o
sorriso estampado me tranquiliza.
— Você está tão encrencado — ela fala ainda de olhos fechados.
— Por quê?
— Porque seu paraíso é uma safada que quer pecar muito com você.
Libero uma gargalhada alta, sentindo-a vibrar rindo também. Estamos no ápice da
alegria pós orgasmo, quando noto outro som se juntar a nós… Palmas.
Alguém está aplaudindo?
Percebo uma figura atrás de nós pelo canto do olho. Rapidamente, desço Michela dos
ombros, envolvendo-a em meu peito e fechando o paletó, tentando protegê-la.
— Sabia que o evento Imperium seria grandioso, mas nunca imaginei assistir a um
espetáculo privativo — Fabrizio Bonano regozija cinicamente.
— O que faz aqui, maledetto? — Aperto o tecido no corpo de Michela, pensando em
quanto tempo os meus soldados demorariam até chegar aqui.
A ‘Ndrangheta acordou com a trégua proposta por Giulio logo após a morte de papà.
Mas eles não costumavam vir até nosso território sem aviso. Talvez Luciana Bonanno, a
Consiglieri calabresa, perdeu de vez as rédeas do seu filho e este era o motivo de estar na festa
do iate sem que soubéssemos.
— Faço o que todos estão fazendo… bebendo, comendo… e assistindo o tão cauteloso
Sottocapo da Cosa Nostra chupar a noiva à luz do luar — ele ergue os braços teatralmente.
— Temos um acordo — esbravejo. — Seu Zio não ficará feliz em saber onde está —
contesto, mudando a mão devagar para segurar o paletó e acionar o aplicativo de segurança pelo
Apple Watch.
— Oddio… que vergonha… — Michela choraminga em meu peito. Fico com os nervos
borbulhando de ódio por esse stronzo estragar nosso momento.
Não queria que Michela se lembrasse desta noite envergonhada, mas sim como uma
aventura nossa.
A forma como se entregou indicava que meu plano em conquistá-la estava sendo bem
sucedido. Iria usar da atração física para lhe guiar até a aceitação do casamento.
Só não contava com a testemunha inimiga ao final.
Consigo finalmente acionar o alerta. Miei soldados[120] teriam minha localização em
tempo real e logo apareceriam. Então, sinto o corpo pequeno remexer em meus braços. Michela
ainda está nua. Porra.
A realização dos fatos fomenta ainda mais a raiva feroz ladeando meu peito. O
desgraçado viu meu Colibrì nua…
Vejo-me cortando uma das suas pernas. Ele a ouviu gemer… o filme continua com
minha faca cortando suas orelhas. Ele a viu gozar… Prenso o maxilar, rangendo os dentes,
querendo matá-lo.
O maledetto é a nobreza da ‘Ndrangheta, matar alguns soldados já ocasionou
transtornos suficientes para a famiglia. Não posso simplesmente cravar uma bala na testa desse
infelicce.
Bufo o ar quente que corresponde à minha frustração.
Estou calculando como proceder quando sinto o soluço contido de meu Colibrì. Ódio.
Não me importo com o acordo com a “Ndrangheta.
Fabrizio Bonanno vai morrer.
— Mio zio [121]não se importou com a morte do meu melhor amigo, lembra? Aquele que
você matou? — Ali está o porquê do stronzo se arriscar tanto.
Passos firmes ressoam apressados, chamando sua atenção. Aproveito para pegar
rapidamente o vestido de Michela, colocando-me entre ela e o perigo para que se vista. Ela
entende e rapidamente coloca puxa o tecido pelas coxas, enfiando os braços nas mangas. Viro
seu corpo, subindo o zíper. Tento olhar seu rosto rapidamente e acaricio de leve, sentindo-o
molhado de lágrimas.
Ela está chorando.
Ódio, ciúmes, impotência… sentimentos tão intensos parecem similares, mas sinto-os
em sua singularidade borbulhando um a um.
Ele vai morrer.
Meus homens surgem pela lateral esquerda, armados e apontando as armas na direção
do farabutto. Coloco Michela atrás de mim protetivamente.
— E eu pensando que Fausto Moretto não era covarde — Fabrizio provoca com ironia.
Não demora, e os soldados da ‘Ndrangheta aparecem em defesa do figlio de sua
Consiglieri. Deveria saber que Fabrizio Bonanno não estaria sozinho.
Analiso ao redor, contando seis soldados. Meus pensamentos vagueiam para saber quem
mais assistiu meu momento a sós com minha noiva. Encaro cada soldato da ‘Ndrangheta que
assinou sua sentença de morte.
— Infelizmente sua plateia foi de um homem só, mio caro Fausto. Chamei meus
homens no instante em que o vi mexer no relógio. — Ergo uma sobrancelha, surpreso com a
astúcia do infelicce.
— O que quer? — indago.
— Sua cabeça. Óbvio. E era a minha intenção até ser agraciado com o show da noite. —
Rosno como reflexo, e Michela choraminga, afundando o rosto em minhas costas.
Estreito os olhos na direção do inimigo, querendo estrangulá-lo. Seus homens estão em
quantidade equivalente aos meus. Porém, Michela poderia se ferir.
Cazzo.
Penso e então… a solução tradicional revela-se a melhor alternativa.
No caso, poderia até manter a trégua que Giulio havia conseguido.
Fabrizio acabou me dando a justificativa perfeita para matá-lo sem violar o comando de
meu Don.
— Não sou covarde. Mas e você?
— Chamei meus homens depois de você — retruca.
— Tinha que proteger minha ragazza. E como sua conduta atinge sua honra, exijo o
desafio — imponho a lei que nenhuma famiglia negou.
— A honra dela foi você que ofendeu — devolve. — Mas como quero arrancar sua
cabeça, aceito.
— E eu quero arrancar seus olhos. — Ele ri.
— Será em território neutro, va benne? — Fabrizio dá alguns passos para trás, voltado
para nós. — Te vejo em uma semana na Calábria, Fausto Moretto. E… — eleva as mãos,
aparentemente rendido —, estou sob o manto do desafio, eu e meus homens vamos embora
tranquilamente.
O maleddeto invoca a lei a seu favor. Figlio de una puttana. O local a que se refere é a
Vila San Giovanni na Reggio Calábria, primeiro ponto de encontro da famiglia após cruzar o
cabo de Messina.
Fiquei tão absorto com as pontas soltas na teia de intrigas que causou a morte de mio
padre, que desconsiderei qualquer ameaça vinda dos Bonanno.
O soluço feminino escondido em minhas costas, tira-me do torpor. Viro-me de frente
para ela, abraçando-a de modo a escondê-la em meus braços. Ela libera a angústia em forma de
lágrimas e pequenos soluços.
— Não chore, Colibrì — Seguro seu rosto com as duas mãos.
— Nã-não quero que morra por minha causa — gagueja por conta do choro.
— Não vou morrer, cara mia. Sou bom em tudo, lembra? — Ela assopra um riso triste
misturado com as lágrimas. Abraço-a novamente e embalo-a em meus braços. — Não se
preocupe. Tudo ficará bem.
Beijo o topo de sua cabeça, em seguida, caminho com ela ao meu lado para o interior do
iate. Tinha reservado um andar de quartos apenas para nossos clãs. Levaria minha noiva até seu
quarto para descansar.
Caminhamos em silêncio até sua porta. Michela me surpreende beijando meu rosto
antes de fechar a porta. Elevo uma mão, querendo guardar a sensação de seus lábios ali.
Meu Colibrì é uma das pérolas da famiglia e como aprendi desde minha iniciação, devo
protegê-la.
Fabrizio vai morrer por muitos motivos, e em especial, por fazer meu Colibrì chorar.
MICHELA ZANCHETTA

— Me fala de novo como conseguiu tapear o mafioso nerd? — Valentina questiona


empolgada com a aventura que nos meti do banco do carona.
— Ele é metódico. Fui a sua casa em horários diferentes essa semana. Descobri a rotina
das câmeras de vigilância e voilà.
— Nossa… você parece uma espiã, falando assim — Anitta, a outra companheira de
missão sentada no banco traseiro ao centro, emenda, satirizando meu plano.
— Eu precisava saber quando que ele me vigiava — estalo a língua. — Enfim… Fausto
estava mais receptivo depois de… de… da festa no iate. Consegui entra na sua sala de game
algumas vezes.
— Ele é realmente os olhos e ouvidos da Cosa Nostra, hein? Me fala — Valentina pede,
abrindo um pacote de salgadinhos. — Eu também tenho uma câmera em minha cabeça?
— É uma geral, parece. Acho que ele mantém uma câmera em cada casa e só instala
outras se sente algo suspeito.
— Que medo… — Anitta comenta com ar brincalhão, mas posso ver o receio no olhar.
— E você conseguiu ver tudo isso… — mia cugina [122]fala como elogio. — O que
alguns beijos não fazem com a confiança de um homem — Tina zomba.
Se ela soubesse que os beijos não foram só na boca… Melhor não.
— Bom… consegui gravar a rotina que ele está acostumado e coloquei a filmagem no
looping. Assim, quando Fausto abre o quadro para me vigiar, vê as cenas habituais. Não foi
difícil — respondo, dando de ombros.
Foi muito difícil fazer as mesmas coisas por três dias seguidos. Mas meu noivo
provisório parecia mais aéreo nos últimos dias, o que só me deixou mais preocupada.
— Sem contar que ele e Maximus vieram há dois dias.
— O que contou pra regina[123]? — Anitta indaga, referindo-se à Francesca.
— A verdade… oras. Eu precisava de alguém para me acobertar com Paolo e na
faculdade.
— Sorte sua que algumas pessoas ficaram realmente doente depois da festa do
Imperium — Valentina recorda. — Fingir uma gripe para o soldato pensar que está enclausurada
até soa como mentira de criança.
— E uma prima linda que alugou uma SUV sem suspeitas também — pontuo a tarefa
que destinei a ela. Mia cugina[124] sorri envaidecida. Em seguida, joga o pó de salgadinhos de
batata no assoalho do carona e vira a garrafinha d’água, bebendo mais da metade de uma vez.
Todos sabiam que eu sou péssima em obedecer à ordens, mas não podia ficar em casa
como se nada do que está acontecendo não fosse minha culpa. Sei que não vou poder fazer
qualquer coisa a respeito.
Impedir um duelo é praticamente impossível. Todavia, estar presente para ver Fausto e
torcer por ele mesmo que escondida, deve valer para alguma coisa, penso.
Não sei. Mas não queria ficar em minha casa fazendo de conta que tudo está bem.
Merda de lei do caralho. Foda-se minha reputação. Foda-se essa história de rivalidade
entre as famiglie[125]. Por que nosso mundo não pode ter um pouquinho de normalidade, onde se
discute os crimes num tribunal e a ofensa se resolve com o pagamento de uma multa, ou a
privação de liberdade nos casos mais graves, hum?
Por que sempre tudo tem que ser de vida ou morte?
Entendi que o tal Fabrizio já queria a cabeça de mio sposo por outro motivo. No entanto,
a fúria de Fausto foi o que fomentou a proposta do duelo. Eu sei que a Cosa Nostra e a
‘Ndranghetta está sob uma trégua firmada por Giulio após a morte de seu pai.
— Per favore, minha bexiga não aguenta mais. Preciso fazer xixi ou vou explodir —
Valentina reclama.
— A gente parou não faz nem uma hora, ragazza. O que você tem, hein? Não aguenta
segurar até Reggio não? — Anitta esbraveja, exteriorizando até meus pensamentos.
A viagem de Palermo até a comuna[126] que Fabrizio disse no iate era umas cinco horas.
— Jura mesmo que não consegue segurar?
— A batata deu sede, vai… — reclama. — Não dá para invadir uma cutelaria com
vontade de fazer xixi. — Ela coloca as mãos na virilha, fazendo beicinho.
— Che cazzo[127], Valentina! Vamos chegar atrasadas — brado, aciono o pisca-alerta
para a direita, saindo da rodovia num ponto de atendimento com banheiros.
Vinte minutos depois, retornamos para a viagem clandestina. Nossa chegada estava
prevista para às duas da manhã e o desafio costuma ocorrer de madrugada. Contava com o poder
de mia frattela em bisbilhotar os assuntos da famiglia para saber o horário marcado. Francesca
disse que seria às duas e meia.
Merda. Teríamos apenas meia hora para entrar na Cutelaria Vintage, nome dado à
fachada do local onde existe uma das sedes mais antigas do submundo no subterrâneo do prédio.
Zio Demetrio costumava contar histórias sobre a época que o território ainda era da
Cosa Nostra, até se tornar neutro para o término da disputa com a ‘Ndranghetta.
Eles cederam. Nós também. E a ponta da Calábria próxima à Sicília transformou-se em
terra de ninguém.
Mas… a cutelaria nunca deixou de existir.
De certo modo, os calabreses tomaram gosto para usá-la tanto quanto nós, como espaço
para conversar com seus desafetos. Usada inclusive para os tão aclamados desafios.
A morte dentro do anello[128] era vista como legítima e ninguém deveria se vingar do
oponente vencedor.
Assim, se Fabrizio Bonanno vencer, Giulio Moretto não poderá se vingar pelo irmão, e
vice-versa.
Estou apreensiva, pois se não gosto de assistir as lutas de MMA com Luigi, imagine ao
vivo e a cores?
Ver a violência nua e crua fazia meu estômago revirar de um modo ruim, muito ruim.
Salvo o pouco de sangue exibido em meus doramas, o que acontece muito pouco, minha
tolerância é praticamente zero.
Acredito que já mencionei sobre minha ideia em ser feliz vivendo na ignorância quanto
ao trabalho de papà e Luigi, não?
— Como mesmo vamos entrar na cutelaria? — Anitta quebra o silêncio que imperou no
carro no instante em que chegamos à cidade. — Vocês disseram que só homens podem entrar.
— Isso é fácil… vamos pegar carona com as donne de burca — Valentina se prontifica
em responder.
— Oi?
— Geralmente, algumas mulheres comparecem no desafio. Ainda mais nesses casos em
que são famiglias rivais — retifico a fala de mia cugina[129].
— Espera… — Anitta libera um riso sem humor. — Está me dizendo que… — ela
encara o teto resmungando um Oddio[130] e depois continua: — Estamos contando com a sorte
para encontrar mulheres com burcas andando de madrugada na rua?
— Basicamente — Tina responde.
— É praticamente certeza, va benne? — posiciono-a. — Max deixou escapar que dez
lugares foram separados para olhares delicados.
— E olhar delicado significa mulheres com roupa de mulçumanas? — Anitta sibila,
rindo na sequência com sarcasmo. — Bom… não tinha mais nada divertido pra fazer mesmo. —
Franzo o cenho, fitando-a pelo retrovisor. Ela ergue as duas sobrancelhas, cruzando os braços
como se me desafiasse.
Mantenho os olhos fixos no navegador para não errar qualquer rua. Nosso tempo está
escasso e além de contar em ver mulheres em trajes que mostrassem apenas os olhos, ainda
tínhamos que conseguir encontrá-las a tempo antes que entrassem na cutelaria.
Por fim, chegamos ao endereço e o excesso de carros de luxo em um bairro da periferia,
mais afastado, indica que estamos no lugar certo. Estaciono a SUV preta, atrás de um furgão.
Valentina por ter o cabelo loiro e ser mais chamativa, colocou uma peruca na cor castanho e
todas estávamos com o cabelo amarrados em coques perfeitos.
Colocamos roupas escuras, calças e moletons pretos, para tentar nos camuflar na sombra
o máximo que fosse possível. Corremos até o muro da lateral, analisando a entrada de homens
com diferentes vestimentas. Alguns seguiam o padrão da Cosa Nostra com ternos de três peças,
mas outros eram mais despojados e me lembravam as roupas que Maximus gostava de usar.
— Só tem essa entrada? — Valentina cochicha, com as costas no muro, imitando minha
postura ao meu lado. Espio novamente e vejo dois soldados guardando as portas duplas
enferrujadas, abaixo do letreiro quebrado.
— Acho que podemos entrar por aqui… — É Anitta que diz, então verifico que minha
amiga encontrou uma janela quebrada, que abria erguendo um trilho de metal.
Empurro Valentina para a seguir, ajudando-a a pular para o lado de dentro. Na
sequência, faço o mesmo desenrolando devagar para não fazer barulho e chamar atenção dos
morcegos de vigia.
A saleta estava vazia, mas o cheiro característico de carniça inundava o ambiente.
— Oddio… alguém morreu aqui e esqueceram de enterrar — Tina balbucia, reclamando
e abanando em frente do nariz.
— Não tenha dúvida — Anitta dispara e nós duas nos encaramos. — Jura mesmo que
vocês são inocentes ao ponto de não saber o que acontece aqui?
Sabíamos… Mas assumir o que nossos pais, irmãos e primos faziam era quase que um
assunto proibido entre nós. Aprendemos desde cedo a jamais falar nada sobre a famiglia e
confesso que ouvir de forma descarada que minha amiga falou soou estranho.
Seguimos nos esgueirando pelos corredores descendo por uma escada diferente daquela
usada por todos. Tinha a impressão que o lado pelo qual entramos estava abandonado até que ao
virar numa esquina, vozes nos fizeram estacar no lugar.
— Vai apostar hoje, Catarina? — a voz feminina, num tom grave, indaga. Faço sinal
com o indicador sobre os lábios para mia cugina não falar nada. Podia ser apenas coincidência a
mulher se direcionar ao mesmo nome da sua madre.
— Os Moretto que me perdoem, mas apostei no herdeiro Bonanno. Duvido que o novo
Sottocapo da Cosa Nostra vença esta noite — E Valentina, leva as duas mãos em sua boca ao
constatar que sim, a tal Catarina era a Signora Esposito, sua mãe.
— Você vai perder dinheiro então, cara mia. Nunca vi Fausto Moretto perder uma luta.
— Uma terceira voz se faz presente, e nós duas enrugamos a testa para reconhecer quem seria. E
a conclusão nos atinge concomitantemente quando nos encaramos. Era a Signora Vacchio,
esposo do Caporegime Germano Vacchio.
Agora, e a primeira? Precisávamos que ela falasse novamente.
— E quantas vezes a Signora assistiu Fausto Moretto? — Dio Santo, era uma quarta voz
mais jovem. Não… não pode ser.
— Desde sua iniciação. Fausto e Giulio entram no anello todo ano. Alguns anos foram
mais de uma vez, Erica, mia cara — Nossas cabeças balançam negativamente não querendo crer
no que nossos ouvidos ouviam.
Erica Spadotto estava aqui? Mas como?
Então a primeira voz era… a Signora Spadotto.
— Apostou em alguém? — Catarina Vacchio parece se direcionar à Spadotto mais
nova.
— Nem sabia que podia.
— Bom, agora não dá mais tempo. Fazemos isso no caminho até a saleta privada — a
mãe de Erica esclarece. — Vamos colocar de uma vez o lenço antes que venham. A última vez
quem nos conduziu foi um dos soldato do Signore Colombo e ele agiu como se não fossemos
damigelle[131]
Neste instante, sinto Anitta colocar algo em minha mão, bem como de Valentina.
— Coloquem sobre a cabeça — ela cochicha. Vejo tratar-se de uma meia calça. —
Temos que agir agora.
— Mas são quatro lá dentro — Tina aponta.
— Vamos pegar só as mulheres mais velhas — afirmo com veemência.
— Tem certeza? Consigo derrubar muito fácil duas delas rapidinho — Anitta enaltece
as habilidades que nem sabia ter.
Meneio a cabeça afirmativamente.
— Sim. Tenho. — Abro a mochila, entregando três lenços e despejando formol na
sequência. Dou uma espiadela para auferir a localização de cada damigella. Duas estavam à
direita, Signora Spadotto em pé ao centro e Erica sentada ao fundo da sala.
Tudo acontece muito rápido. A sala estava com pouca iluminação, e como elas estavam
distraídas pensando que os vultos eram soldados,[132] conseguimos dominá-las com facilidade.
No momento que sinto o corpo da mãe de Erica desfalecer, encaro-a, esperando tudo,
menos que estivesse sorrindo. Começo a dizer:
— Você tem duas opções…
— Não vou falar nada se puder ir com vocês — Me interrompe de pronto.
— Melhor não confiar — Anitta dá um passo e antes que prossiga, seguro seu braço.
— Não… — Retiro a meia-calça da cabeça. — Eu confio.
Minha amiga bufa, mas se afasta. Tiramos as burcas das damas de honra do consiglio,
que estavam com roupas simples por baixo, amarrando-as apertando uma fita silvertape na boca
e colocando-as no banheiro do quarto em que estávamos.
A seguir, Erica Spadotto nos mostrou a forma como fora orientada a finalizar o lenço
sobre o rosto e minutos depois, estávamos sendo escoltadas por dois soldados para o centro do
prédio.
Parecia que quanto mais avançávamos, mas amplo o lugar ficava, até pararmos em uma
espécie de arquibancada. Nossos lugares ficavam afastados em um mezanino separado, e alguns
metros abaixo podíamos ver o anello[133].
Ao centro havia uma fornalha que podia ser a porta do inferno por conta das labaredas
visíveis através do visor de uma portinhola. Nas laterais haviam duas bancadas dispostas com
equipamentos diferentes e dois cuteleiros trabalhavam arduamente na confecção de suas armas.
O aroma pesado e metálico paira no ar, numa combinação de óleo lubrificante, fumaça
de solda e o característico cheiro de aço.
Meu coração acelera no peito quando observo Fabrizio Bonnano, seus traços rudes
escondendo uma beleza máscula, destacada pelos olhos verdes e cabelos castanhos bagunçados.
Abaixo do avental de proteção, ele vestia uma camiseta cinza escura e calça jeans com rasgos
nos joelhos.
Fausto, por sua vez, movimentava-se de modo preciso, atraente mesmo usando um
avental e luvas de proteção. A presença imponente de um soldado estava estampada na calça
cargo de exército e camiseta preta.
O suor nas têmporas e a sujeira no tecido de proteção na cor camurça indicavam o
tempo em que vinham trabalhando em suas lâminas.
Eu me sentia agitada, assistindo o calor da forja dançando nas sombras inquietas,
refletia a agitação em meu peito.
— Não era mais fácil comprar uma faca? — Anitta aponta, indicando desconhecer essa
parte tradicional da famiglia.
— Este é o pecado original da Cosa Nostra, cara mia. Talvez se não houvesse morte no
primeiro desafio, nossos clãs não teriam assumido o submundo — Erica é quem responde.
— O desafio vai além da morte, mas em confeccionar a melhor arma — Tina inclui a
informação que fomos ensinadas desde bambini.[134]
— Não para os calabreses. Eles apreciam só a parte de matar um ao outro — digo, com
o coração apertado. Mas como o desafio é para limpar minha honra. Fabrizio não teve escolha a
não ser compor todo o figurino.
— Ele não é bom, não é? — pergunto, preocupada.
— Não sei quanto a martelar um ferro, mas ouvi dizer que sabe lutar muito bem.
Resmungo baixinho.
Eu abomino a violência e a intensidade do odor de sangue pairava no ar como se cada
lâmina presente carregasse a essência das disputas sangrentas que aconteceram aqui.
— Que horas começa a ação? — Anitta questiona impaciente. — Amanhã vamos faltar
da aula, né?
— O que você acha?
— Cazzo![135] Você me deve o dia de amanhã, então, principessa. Vou perder um dia de
venda.
— Eu pago. Agora, shiu… — peço, não querendo parecer rude. — O horário de início
da luta era volátil, mas contava-se a partir de 10 horas após o início da confecção das lâminas. As
mulheres compareciam no horário próximo para ver tão somente a parte sangrenta. Irônico, não?
O aroma robusto do metal aquecido preenchendo o ar estava me sufocando aos poucos.
Fabrizio já havia retirado da fornalha o metal mais de uma vez após nossa entrada, e martelava
com tamanha precisão que quando enfiou o ferro em brasa no balde, senti meu corpo chiar com
medo.
Fausto também martelava o aço incandescente, moldando-o com golpes ritmados. Cada
batida ressoava como uma sinfonia acompanhando as batidas em meu peito. De certo modo, o
calor da fornalha intensificava as emoções que propagavam no ambiente.
Cada cuteleiro macetava o metal sob uma bigorna distinta, suportando a carga do
trabalho artesanal nas lâminas, as quais uma delas seria a fatalidade do outro.
As lâminas, agora com curvaturas graciosamente calculadas, começam a refletir a luz da
forja, indício do brilho que virá a seguir. Inspiro o ar, prendendo a respiração em antecipação ao
momento. Eles erguem as facas que reluzem para aprovação da plateia.
Os presentes urram e uivam, batendo os pés proclamando a finalização de uma etapa.
É tão emocionante quanto amedrontador.
Após, os dois herdeiros iniciam o processo para confecção do cabo.
Fabrizio escolhe um pedaço de madeira polida, usando um cabo de esculpir até cravar a
lâmina firmemente.
Mio sposo[136], imbuído de uma fita de couro grosso, começa a tecer meticulosamente o
ferro, de modo a indicar o trabalho de um tricoteiro habilidoso.
Assim que ambos terminam, eles giram as facas recém-criadas no ar, testando o peso e
rodopiando com destreza. Em seguida, eles comparecem no centro, onde um pedaço de carne
estava pendurado em um gancho, fatiando e cravando as lâminas.
— Per favore, me fale que aquilo é bisteca de cordeiro — Valentina balbucia ao meu
lado.
— Mas é uma bisteca — Erica é quem responde, e mia cugina respira aliviada, — só
não sei dizer qual animal. — Ela sorri diabólica dando segundas intenções às suas palavras.
Oddio!
MICHELA ZANCHETTA

A atmosfera no anello[137] atinge um ponto de ebulição quando os cuteleiros se desfazem


dos aventais e luvas de proteção. O som ovacionando a ambos, repetindo as batidas de pés
espancando o chão, chega a torturar meus ouvidos e bagunçar minha mente.
Não consigo permanecer sentada, ao ver Fausto e Fabrizio adentrando no ringue.
O rugir da multidão espera ansiosamente pela batalha iminente. Os espectadores,
membros de ambas as famiglie, eletrizados, expressam sua empolgação através de palmas
ensurdecedoras e gritos que reverberam por todo o recinto.
Os dois herdeiros agora assumem a versão de guerreiros e não mais cuteleiros artesãos.
— Finalmente… — Anitta comenta. E sinto uma mão em meu braço, me puxando para
retornar ao meu assento. Erica.
— Não adianta entrar em desespero. Confie — fala, sem me olhar.
Confie em mim, Colibrì. A voz de Fausto ecoa em minha lembrança. Respiro fundo,
buscando controlar a ânsia de correr até ele e pedir para que pare.
Os olhos de todos estão fixos no anello, ansiosos por cada movimento, cada golpe,
como se estivessem prestes a participar pessoalmente da luta. A vibração coletiva é como uma
onda que se propaga por entre os soldados e demais membros de ambas as famiglie, Cosa Nostra
e ‘Ndrangheta.
Fabrizio é o primeiro a adentrar ao ringue, usando sua faca para cortar a camiseta,
revelando o peito musculoso coberto de tatuagens. Estamos distantes, mas consigo notar o
delineado de um lobo do lado direito do peito e traços de tribal delicado.
Um dia, ainda faria uma tatuagem. A imagem de um beija-flor com o bico pontudo em
uma flor que desenhei sem perceber outro dia invade meus pensamentos. Pisco algumas vezes,
acordando para o tempo presente após o urro que o herdeiro da ‘Ndrangheta dá como se
chamasse Fausto para a luta.
Não… minha cabeça chacoalha para os lados de modo espontâneo. Eu não quero que
entre lá. Mas minha vontade é tão ínfima quanto nossa presença no meio de tantos soldados.
Oddio! O que pode acontecer quando descobrirem o que fizemos?
— Ninguém vai descobrir… — Erica é quem responde a pergunta que não percebi
expressar em voz alta. Ela mantém a atenção no ringue. — Aquelas velhas nem sabem o que as
atingiram. Vocês foram espertas em esconder a cabeleira loira da Valentina. Aproveite o show e
pare de se preocupar.
Maddona mia, aproveitar o show?
Como aproveitar a carnificina que estaria prestes a assistir? Ainda me perguntava o que
pensei ao vir até aqui…
Nem sabia o que fazer para impedir a tragédia que seria minha culpa… Merda.
Minha cabeça rodopia conforme o vendaval de incertezas embaralha meu juízo.
De repente, as reações alcançam seu ápice. A plateia explode em um frenesi. Ouço a
sinfonia caótica de aplausos, gritos e batidas de pés no assoalham que vibram o lugar como um
todo. Fausto havia entrado no anello.
O homem recomposto e centrado com quem estou acostumada não é nada parecido com
aquele que movimenta a faca em círculos ao redor do punho, como se fosse um objeto acrobático
e não uma arma perigosa.
Fabrizio arremessa sua lâmina de uma mão para a outra, indicando similaridade com
esse tipo de luta. Claro… todos aqui, exceto as mulheres, já seguraram uma faca e até perfuraram
alguém.
O que esperava?
A sensação de repulsa em meu peito aumenta com a realização da minha condição como
uma verdadeira princesa da máfia. Pura e inocente… sem conhecimento da vida sangrenta que os
homens da famiglia são obrigados a se submeter desde cedo.
Não vejo os homens inteligentes e sagazes que conquistam mulheres com um simples
olhar e poder, mas sim dois selvagens se encarando para buscar o melhor ataque.
O herdeiro calabrês é quem investe primeiro, com um passo à frente e a faca cortando o
ar no formato de arco. Fausto se esquiva, e… sorri. Um sorriso diabólico que nunca pensei ver
no rosto que vem aparecendo em meus sonhos.
— Sexy pra caralho… — Anitta assobia. — Está explicado porque os Moretto têm fama
com as mulheres.
— Eles vão se matar e você acha sexy? — minha voz sai esganiçada.
— Um deles só morre, cara mia. O outro pode sair gravemente ferido, mas… — Erica
assume que estava em dúvida quanto à mortalidade que acontece no Anello di Cutello.
Che cazzo! Saber que vivo com o dinheiro da Cosa Nostra e seu poder pela violência é
bem diferente de assisti-la de camarote!
Pelo menos é assim que estou me sentindo ao ver meu noivo provisório que julgava ser
a pessoa mais sensata do mundo, desviar mais de uma vez de uma faca, rindo para provocar seu
adversário.
— Você está preocupada com Fausto. Por isso está nervosa. Já te falei para ficar
tranquila. Não ouviu a velha Vacchio? Ele nunca perdeu uma luta — Erica insiste em me
confortar do modo errado.
Meus olhos seguem atentos à dança mortal, e então Fabrizio arremessa a faca para o
alto. Fausto observa o objeto pontudo girar, sem notar que o herdeiro calabrês impulsiona seu
corpo com um salto, acertando-o em cheio com uma voadora.
Meu instinto é ficar em pé novamente, vendo mio sposo receber o chute forte no rosto,
cuspindo sangue e cambaleando para o lado. Fabrizio como exímio lutador, pega a faca antes de
retornar ao solo.
Dio Santo… ele vai morrer… Por minha culpa…
Sinto mãos me puxarem para sentar novamente. Erica de um lado e Valentina do outro.
Tapo os olhos em completo desespero.
— Não quero olhar…
— Então vai perder… — Erica mantém o tom seco, com que costuma dedicar à amizade
estranha que criamos.
De um modo estranho, ela acaba me provocando e entreabro os dedos, vendo a luta pelo
vão do indicador e dedo médio.
Fausto apruma o corpo, após cuspir sangue. Ainda sorri possuído por um demônio que
se caracteriza ainda mais por conta do vermelho que tinge seus dentes. Ele avança e desta vez é
Fabrizio que se esquiva para a direita e acaba recebendo um golpe de punho fechado vindo do
lado oposto.
Parece que Fausto quis revidar o corte nos lábios para permanecer páreo a páreo. Na
sequência, os dois homens se enfrentam mais com socos e pontapés, lembrando uma luta de
MMA. Até que Fabrizio é quem parece cansar primeiro, usando novamente a lâmina para cortar
a lateral do corpo de Fausto.
Meu noivo salta para trás e logo depois, com dois passos rápido ganha impulso ao
apoiar um dos pés na lateral do ringue e voar no ar com a lâmina direcionada no rosto do seu
oponente. Tudo fica vermelho.
— Oddio, Oddio, Oddio…[138] — Agora é Valentina que tampa os olhos. Eu estou
completamente em choque com a visão grotesca que fica pior, quando Fabrizio sorri parecendo o
coringa do Batman por conta do alongamento que ganhos nos lábios.
Neste momento, a plateia retoma a vibração de antes, em total fervor pelo sangue
derramado. É tanto sangue que a imagem parece estar tingida em minha frente. Passo a analisar
ao redor e as figuras de Maximus, Luigi e Alessio, sentados no banco próximo às grades como se
fossem a equipe de Fausto, não me passa despercebida.
Giulio não deve ter vindo por conta da situação delicada de Francesca, penso.
Os homens de idades mais próximas à minha, assistindo ao show de horrores como algo
natural embrulha meu estômago. Como eles conseguem ver isso e não parecerem assustados?
A celebração coletiva continua nos próximos movimentos de Fausto que circula o corpo
de Fabrizio, como um predador cercando sua presa.
O herdeiro calabrês levanta-se e ainda consegue desferir alguns golpes, desta vez,
rebatidos com movimentos de defesa. Fausto golpeia o coringa da Calábria, ficando banhado de
sangue. Ele usa o cabo da faca para intensificar os socos do estômago de Fabrizio, que urra
consternado.
Então, noto que o cabo tornou-se a lâmina. Não sei se alguma entidade soprou no
ouvido do infelicce minha presença no anello, mas juro que seus olhos encontraram os meus.
Fabrizio sorriu com uma vitória interna, pois sabia que eu estava ali assistindo meu noivo em sua
pior versão.
Infelizmente, meus olhos assustados foram a última visão do herdeiro calabrês, já que
Fausto ergueu sua cabeça enquanto estava ajoelhado e enfia a lâmina em um dos olhos o outro
era perfurado com seu polegar.
Tapo os ouvidos, não querendo ouvir os berros de dor do homem que era massacrado
em um palco imundo e fétido.
A celebração coletiva revelava o mundo podre no qual vivíamos. Quando consigo abrir
os olhos, vejo tudo borrado pelas lágrimas. A plateia ainda se deliciava com paixão no
sofrimento humano, indicando a escuridão que pairava na alma de cada membro de ambas as
famiglie.[139]
— Ele faria pior com Fausto se estivesse em vantagem — a ruiva diz numa tentativa em
diminuir o asco que estou sentindo.
Outros gritos se iniciam, e tenho a péssima ideia em retomar a atenção ao filme de
terror. Fabrizio agora com líquido preto e vermelho escorrendo em seu rosto, está com o corpo
deitado de barriga para baixo enquanto Fausto corta os dedos de sua mão um a um.
— Ele não vai matar logo e acabar com isso? — Minha voz soa embargada pelo choro.
Viro para os três homens que julgava serem de honra, percebendo que o título é apenas no nome.
Qual a honra em destruir seu oponente já caído e aplaudir a cena de tortura?
Aperto as pálpebras sentindo as lágrimas molharem o tecido da burca que cobre meu
rosto.
— Podemos ir embora? — Valentina que também chorava pede. Volto-me para Erica
que era quem foi instruída como proceder, por ter sua vinda autorizada como uma damigella.
— Vou tentar. Esperem um pouco — a ruiva levanta-se e vai até o corredor de onde
viemos. Um soldato nada feliz surge atrás dela, acenando para que o acompanhasse.
Caminhamos em silêncio, ouvindo o resmungar do homem que julga estar sendo
privado da melhor luta de todos os tempos da famiglia.
A cada esbravejar repreendo-nos por tirar o prazer em assistir o espetáculo tenebroso,
meu peito se enchia de desprezo por tudo o que o poder representava. Será que mio padre lutou
assim algum dia?
E Luigi?
Maddona mia… com quem eu tenho vivido desde que nasci? Que mundo é esse que
desconheço?
Estou completamente em transe quando chegamos ao pequeno quarto de depósito
destinado às damigelle[140]. Entramos e nos trancamos ali. As signore[141] ainda estavam
desacordadas.
— Andem. Me amarrem antes que acordem — Erica que havia tirado a burca, oferece
os punhos.
Anitta é quem faz tudo, parecendo ser a única pessoa consciente dentre nós três que
invadimos o anello. Eu e Valentina tirávamos as vestes ainda em câmera lenta.
Ela tira a silvertape do bolso e coloca um pedaço nos lábios da jovem Spadotto que
segue para sentar-se ao lado das demais.
— Vamos! Se continuarmos aqui, seremos pegas. — Minha amiga praticamente nos
empurra para fora e acaba dirigindo todo o caminho de volta à Palermo. Eu e Valentina
estávamos em choque.
Não conseguia acreditar que vivia em um castelo onde a base foi construída em meio ao
inferno de tantas pessoas.
A Cosa Nostra refletia tudo o que eu abominava no mundo. Mas enquanto não havia
presenciado o caos sangrento, contentava-me em mentir para mim mesma que os membros da
famiglia não tinham escolha.
No entanto, o que vi, foram homens ovacionando e se deliciando com a violência nua e
crua.
Como poderia fadar minha vida ao lado de pessoas que não possuíam o dever básico em
respeitar a dignidade humana?
Fausto tinha razão… ele foi criado para se tornar um monstro.
Maddona mia…
Jamais me casaria com ele.
FAUSTO MORETTO
ALGUMAS SEMANAS DEPOIS.

E novamente, observo a câmera de segurança, assistindo Michela sair apressada como


se estivesse atrasada para a aula. Ela nunca está.
O mais curioso é que a ragazza tem descido pelas escadas algumas vezes e não utilizado
o elevador.
Se nosso último encontro não estivesse tão vívido em minha memória, com seu corpo
derretendo em meus braços, diria que ela está fugindo de mim.
Mas tivemos algumas refeições no decorrer das semanas. Não conversamos diretamente,
porém, parecíamos o que é esperado a título de um casal para a famiglia.
Ela parecia feliz comentando com Francesca sobre alguns modelos que criou para a
próxima estação.
Não sou um exímio analítico de moda, no entanto, acredito que minha noiva terá um
futuro brilhante. Ela já tem feito sucesso dentre as damigelle. E soube por intermédio das
reclamações de Giulio, que é seu emissário para com a Signora dona da boutique na qual ela
trabalha, que os pedidos aumentaram, abrangendo um público diferente do habitual.
Apoio o antebraço na mesa da sala de jantar, analisando os últimos gráficos em meu
notebook com os números do token Imperium. Signora Isabel havia deixado um sanduíche de
parma para mim e exigiu que saísse do meu QG para o jantar antes de ir embora. Aquela donna
era a única que eu obedeceria, salvo se Michela mandar que a fodesse com força. Hum…
inconscientemente, suspiro alto.
Talvez vá até a faculdade amanhã, no horário da saída, para dar uma carona à Michela,
penso.
Tenho mantido certo afastamento, pois caso não tivéssemos sido interrompidos na noite
do iate, com certeza a faria minha.
Não quero estragar esse momento por conta da minha ânsia em tê-la em meus braços.
Sei bem que a primeira vez é muito importante para una donna. Ainda mais quando se guardou o
tempo todo para seu marito.
Michela sugeriu que a violasse antes da hora, mas tenho medo de se o fizer, ela possa se
arrepender.
Ela não mentiu ao afirmar que eu conhecia muito bem algumas das viúvas da famiglia.
A maioria falava que se guardar para o casamento era um fardo das damigelle. Mas uma delas
me contou o quanto sentia falta do falecido marido. Disse como ele foi carinhoso em sua noite de
núpcias e como teria estragado o momento se tivessem antecipado por conta do desejo.
Não sei por qual motivo uma única opinião me fez retroceder. Mas fez. Se Michela
pudesse guardar na memória uma primeira vez esplendorosa, e falasse com o mesmo brilho no
olhar que vi naquela donna, saberia que todo o tormento que vivo por ser um fatto del uomo[142],
valeu a pena.
Fabrizio Bonanno acabou estragando a lembrança da primeira vez em que coloquei a
boca em Michela, mas fez uma boa ação, afinal.
Que queime no inferno, o stronzo.
Ele me provocou o tempo todo durante o desafio na cutelaria, falando dos atributos do
meu Colibrì e insinuando o que faria após a minha morte com ela. Não respondi às suas
provocações. Guardei toda raiva para quando estivéssemos dentro do anello.
O puto falou que enfiaria todos os dedos na potta[143] apertada de minha noiva. Garanti
que não lhe restasse nenhum.
E como prometido, tirei sua visão, pois seus olhos imundos não mereciam passar
impunes por ter a audácia de vê-la gozar.
Ninguém veria além de mim. Dou um soco sobre a mesa.
— Você tem feito muitas coisas estranhas ultimamente, fratello — Maximus fala, após
surgir do corredor de entrada do meu apartamento.
— E você tem que parar de aparecer sem ser convidado. Por acaso tem faro para os
sanduíches da Signora Isabel? — gesticulo o pão no ar. Desta vez me policiaria para não
arremessa em sua direção.
— Eu não queria vir… mas ela insistiu — Então, repenso sobre o arremesso, mas seria
algo mais pesado do que um pedaço de pão quando noto uma ragazza. Simona Ferrucchi
caminha despretensiosamente ao seu lado, como se estivesse admirando os móveis da minha
casa. Sei…
— Por que diabos trouxe a polizia aqui?
— Opa! A polizia tem nome. Simona Ferruchi, prazer — Ela estende a mão,
zombeteira. Será que a palhaçada de Maximus é contagiosa?
Não devolvo o cumprimento por se tratar mais de uma resposta à minha afronta. A
maledetta sorri só com os lábios, erguendo a sobrancelha numa versão derrotada, mas ainda
brincalhona.
Enfio o último pedaço do sanduíche na boca, mastigando com força e esquecendo-me de
saborear. Maximus tem a tendência em estragar sempre a última mordida.
— Sabia que Fabrizio Bonanno morreu em um acidente de carro? — a donna indaga,
surpreendendo Max que pelo visto foi enganado pela polizia. O que ela disse para que mio
fratello a trouxesse aqui não tem nada a ver com sua pergunta.
— Soube.
— O enterro foi de caixão fechado. Curioso não? — Ela cruza os braços, evitando o
olhar acusatório do namorado. — Encontraram o corpo completamente carbonizado.
— É mesmo? — Aliso a barba com uma das mãos. — E o que eu tenho a ver com isso?
— Simona! — Agora Maximus intervém de modo rígido. — O que você pretende? —
Finalmente.
Tenho certeza de que mio fratello tem um pau entre as pernas, mas após começar esse
relacionamento, pensei que a polizia havia cortado.
— Não estou aqui para acusar, va benne? — estala a língua, descruzando os braços e
caminhando mais próxima de mim. — Fabrizio foi visto na festa do Imperium.
— Foi visto… ou você o viu? — indago, inclinando a cabeça e encarando Maximus. Eu
sabia que ele havia levado a polizia. Autorizei essa porra e agora estava arrependido.
— Va benne… eu o vi. — Ergue os braços, rendida.
— A festa era privada. Fabrizio entrou de penetra.
— Não diminui a coincidência entre o herdeiro da ‘Ndranghetta comparecer a um
evento da Cosa Nostra e uma semana depois estar morto — pontua.
— Até onde sei veio me fazer uma visita e não um interrogatório. — Escoro no espaldar
da cadeira, olhando-a de cima abaixo para a intimidar.
— Fale de uma vez e pare com o jogo, Simona — Maximus não parece feliz com as
perguntas. Eu muito menos.
Ela bufa o ar, puxando uma das cadeiras de minha mesa de jantar, acomodando-se sem
ser convidada.
— Fabrizio me procurou no início do mês. Ele sabia do caso que venho investigando
sobre a rota do tráfico humano. — Agora a polizia tinha minha atenção. Após a menção sobre o
desaparecimento de algumas de nossas crianças, passei a investigar os possíveis caminhos que os
sequestradores pudessem usar.
Maximus senta-se ao lado de Simona, mais satisfeito com a conduta da namorada.
— Aqui nunca foi o destino final das ragazze[144] que apareceram nos nossos portos —
enfatizo o que a fez cooperar para devolver as mulheres e crianças que brotavam nos containers
vindos em nossas frotas. — Não admitimos tráfico humano.
— E por isso tenho feito vistas grossas para tantas coisas como um token de
criptomoedas fantasma. — Não gosto dessa mulher. Mas admito que tem coragem.
— Prove! — desafio-a.
— Não tenho como e você sabe disso.
— Porque não é um token fantasma, mia cara.
— Não precisa mentir. Max contou que não há aplicativo algum. — Estreito os olhos
para mio fratello que desvia o olhar, sabendo que falou demais com a polizia.
Viro a tela do notebook com o programa aberto e se Simona Ferrucci tivesse o mínimo
de conhecimento em programação, saberia se tratar da concretização do investimento de
Imperium.
— Mas, mas… — diz, surpresa, virando o pescoço para Max e para a tela.
— Fiquei empolgado com a ideia. — Volto a tela em minha frente, vendo Max sorrir
pelo canto do olho. — Agora quanto ao sumiço de crianças calabreses. Não temos qualquer
relação com o ocorrido.
— O caminho que Fabrizio encontrou passava por um dos portos da Sicília — ela
afirma.
— Impossível ser em Palermo — Max contesta.
— Não é… mas ele veio até aqui porque encontrou uma pista.
— E ele morreu sem passar a informação pra você — completo, recebendo a
confirmação com um balançar de cabeça positivo.
— Max falou que estão investigando o desaparecimento de outras crianças. Podemos
nos ajudar e… — elevo a palma para que pare e na sequência aponto o indicador para mio
fratello.
— Vou costurar sua boca — ameaço. Depois, respiro fundo, cruzando as mãos abaixo
do queixo.
Analiso os pormenores em unir esforços com ela para investigar o desaparecimento de
bambini de nossas aldeias. Fornecer informações em troca de outras não comprometeria assuntos
da famiglia.
— O que precisa, Signorina Ferrucci? — A donna[145] sorri satisfeita.
— Hackear o computador de Fabrizio e descobrir com quem ele ia se encontrar —
declara, indicando claramente saber quem poderia ajudá-la.
— A Europol não possui bons hackers? — indago-a, mas fitando Max, pois ele mesmo
havia comentado a respeito. Precisava ter certeza dos reais motivos que levou a namorada de mio
fratello me procurar.
— Meu capitão não permite a invasão sem uma ordem de cima. — Ela dá de ombros. —
Peticionei, só que estão demorando a liberar para Enzo trabalhar.
Inspiro e expiro devagar, refletindo mais um pouco sobre tal cooperação. Pelo que
entendi, possuía mais mecanismos para a investigação do que ela. Esfrego novamente a barba,
pensativo.
— Tenho os nomes das famílias das crianças desaparecidas e alguns portos além do
território da Itália que serviram de rotas em outros casos — Simona faz sua oferta.
— Mande o endereço de e-mail de Fabrizio. Vou começar dali. Agora sumam —
determino, gesticulando no ar para que saiam.
Maximus sorri de lado, dando a mão para sua ragazza acompanhá-lo. Talvez ter uma
polizia por perto não era algo tão ruim, afinal.
MICHELA ZANCHETTA

Os raios de sol invadem meu quarto, revelando a desordem dos lençóis e travesseiros.
Viro-me na cama, tentando afastar as imagens assustadoras que assombraram meus sonhos
durante a noite.
Merda. Meus olhos estão pesados, e meu corpo parece um campo de batalha. Olhos…
Seria bom se as sombras que me perseguiam tivessem olhos. Um arrepio percorre minha
coluna, fazendo-me chacoalhar para afastar a sensação ruim.
O sonho começou com a cena de uma manhã normal, eu caminhava tranquilamente até
uma de minhas aulas, quando tive o pressentimento tenebroso. Apressei o passo, sentindo o
perigo iminente.
De repente, figuras macabras, sem o globo ocular com manchas pretas escorrendo pelas
bochechas surgiram atrás de mim.
Desesperada, corri como uma louca pedindo ajuda. Sempre que encontrava alguém, este
se virava possuído do mesmo demônio sem olhos.
Acordei assustada. Existe um motivo para não gostar de filmes de terror, mas como
fugir quando os monstros vivem literalmente na porta ao lado?
Cazzo. Esfrego o rosto com as duas mãos querendo lavar minha mente.
Não tenho dormido direito desde a noite na qual vi a brutalidade que pessoas do meu
convívio enfrentam com naturalidade.
Fausto, meu noivo provisório, por mais que me desafiasse em nossos embates, sempre
manteve seu toque cuidadoso. Mas ele…
Suspiro, assoprando o ar com força. Estou cansada.
Não apenas ele, mas todos estavam presentes vangloriando o ato bárbaro que torturou e
matou uma pessoa. E desde então, minhas noites estão fadadas a suportar pesadelos criativos
demais para meu consciente lidar durante o dia.
Algumas vezes eu revivia o espetáculo de horrores. Tinha sorte quando acordava antes
da carnificina começar. Assim, era mais fácil encarar os soldados [146]e até mesmo Fausto, sem
apresentar as emoções de repulsa.
Cada pesadelo deixava sua marca, uma sensação de inquietação que persistia mesmo
depois de acordar.
O sono, ao invés de ser um refúgio, tornou-se um martírio, repleto de sombras e figuras
fantasmagóricas, como os de hoje.
Levanto-me devagar, tentando reunir a coragem para enfrentar mais um dia de aula.
Ontem cheguei a cogitar pedir para Francesca dormir comigo. Mas o medo de revelar o
real motivo por detrás do pedido me fez recuar.
Ela sabia que presenciei a luta de Fausto e Fabrizio, porém não sabia que vi algo tão
abominável. Mia frattela[147] ainda tinha a falsa noção de vivermos ao lado de homens com
honra.
Todavia, para a famiglia havia uma enorme diferença em ser um homem de honra e um
homem com honra.
Agora eu sei…
Não podia dividir meus medos com ela. Francesca estava radiante com a notícia que se
firmou ao ver o resultado do exame de sangue.
Ela finalmente seria mãe.
Mia frattela podia estar carregando em seu ventre o futuro Don da Cosa Nostra.
Arrepio-me inteira com o pensamento. Rezo para ser uma ragazza. Mesmo que fadada às
tradições da famiglia, não mancharia sua alma como os homens que nos cercavam.
Ergo meus braços doloridos acima da cabeça, espreguiçando-me. Em seguida, encaro o
relógio, preciso correr para dar tempo de descer as escadas. Tenho evitado usar o elevador por
conta de tremer quando estou próxima a um soldato sem rota de fuga. O pesadelo de hoje
chacoalhava meu corpo de modo a demonstrar medo. Eles sentem o cheiro.
Giulio é o único que parece ter notado o que realmente passa em minha cabeça. Todas
as vezes que percebo estar me analisando, tento disfarçar com assuntos frívolos e os sorrisos
plastificados que aprendemos desde cedo.
Perguntei para Francesca se ela revelou minha escapadela para tuo marito, mas ela disse
que estava em débito comigo, por isso não havia falado uma só palavra.
Mas… logo, tudo não fará mais sentido.
Faltava pouco… muito pouco.

Estou sentada na sala de aula de artes, onde a fragrância de tintas e a empolgação vinda
de burburinhos de alunos preenchem a atmosfera.
Distração.
Precisava de distração constante.
À minha frente, um manequim vestia roupas elegantes, pronto para ser idealizado em
croquis de moda. A professora, Signora Piera, uma mulher de estatura mediana, vestindo uma
calça skiny roxa e blusão colorido de manga três quartos, cantarola com voz estritente a
explicação sobre possíveis formas a serem usadas para criar modelos com originalidade.
Com meu caderno aberto e lapiseira em mãos, sigo traçando linhas finas até encontrar o
caminho que surge de um sopro de inspiração. As curvas da imagem do tecido ganham vida no
papel.
A sala de aula tornou-se meu refúgio, onde a imaginação em criar novos modelos ofusca
a lembrança doentia do anello di cutelo.
Minha mente voa numa divagação entre rabiscos e traços que ganham vida. Estou
absorta nos detalhes da estampa quando sinto um leve cutucão na lateral do corpo.
A situação tornou-se tão corriqueira que nem sequer me assusto mais.
— Ei! — A ragazza de cabelos loiros e encaracolados senta-se ao meu lado. — Não vou
conseguir ficar para o grupo de estudos na biblioteca — atesta num cochicho. Encaro a porta por
onde passou e deixou aberta. Eu devia estar distraída demais, pois não percebi sua entrada.
Ana não parece uma viciada à primeira vista, mas consome o Oásis tanto quanto os
outros. Ela está no terceiro ano de engenharia e justifica a necessidade da droga por conta de
ajudar com o excesso de cálculos da faculdade.
Mas para quem escolhe exatas, acredito que ter a facilidade com números seja um bônus
e não um ônus que faça buscar subterfúgios, não?
Enfim. Não posso julgá-la.
Ela e os outros clientes que costumavam pegar a pílula lilás com a Anitta, agora, pegam
comigo. Foi o meio que minha amiga ofereceu para ajudar a pagar por minha liberdade.
— Não trouxe todos os livros que pediu aqui — uso das palavras em código. Nosso
encontro era para acontecer no período da tarde, quando conseguiria pegar a quantidade para ela
e para Marco. — Só tenho o que está aí na bolsa.
Num movimento discreto, vejo-a puxar minha mochila que estava no chão e abrir,
pegando o saquinho com dez comprimidos. Limpo a garganta, projetando o queixo num gesto
para que coloque o dinheiro no mesmo lugar, o que ela faz a seguir.
— Meu namorado também quer alguns livros para sexta — faz o novo pedido. Eu nunca
a vi com alguém antes, então duvidava que fosse para outra pessoa. Balanço o ombro indiferente,
e depois meneio a cabeça receptiva.
No início, sentia-me suja por passar a droga da Cosa Nostra para frente. Mas Anitta me
convenceu que os fins justificam os meios. E no caso, meu futuro bem longe de tudo aquilo que
presenciei era um fim mais do que justo.
— Perfeito. Sexta na biblioteca — Ana confirma, levantando-se e saindo da sala de aula
como um fantasma.
Por mais que tentasse não me importar, tinha medo dos movimentos extremamente
precisos serem reflexos do Oásis, devido à ragazza estar tomando-o como um remédio diário.
Dio Santo. Espero que não cause danos permanentes ao cérebro da pobre.
Os fins justificam os meios. A voz de Anitta ressoa em minha mente. Faltava pouco para
ter a quantia necessária e financiar minha fuga.
Nos dias seguintes após nossa aventura, Anitta percebeu que estava diferente. Valentina
retornou para casa dois dias depois por ser final de semana, ela também ficou abalada. Então,
minha mais nova amiga sugeriu a opção que frequentemente pensava nas vezes que me sentia
podada pelas tradições da famiglia. Fugir.
Mas como?
Sabia despistar os soldados encarregados da minha segurança, porém me locomover
para outras cidades e sumir do radar da Cosa Nostra demandaria uma alta quantia de dinheiro.
Por mais que possuía uma pequena fortuna, ainda mais com o trabalho de Éloise Dufour, não
tinha sua administração.
— Como não tem dinheiro? — Anitta indagou quando lhe contei, sem entender.
— Minha conta bancária está vinculada à de mammina, e todos os meus gastos são
fiscalizados. Não dá para tirar dinheiro do nada. — A expressão dela era de confusão e desprezo.
Percebi que mesmo vivendo através da venda do Oásis, Anitta possuía aversão às tradições da
famiglia.
Bom… ela não era a única. A repulsa que passei a sentir aumentou nosso laço de
amizade.
Por essa razão, conheci Cassio, primo de Anitta e chefe dos Cani Selvatici[148], uma
gangue associada da Cosa Nostra. Ele contou ter ajudado mais de uma vez pessoas a sumirem do
radar da famiglia. Pensei que estaria tudo resolvido até ele colocar o preço.
Cem mil euros foi o valor pedido por ele.
Como poderia retirar essa quantia de minha conta sem gerar dúvidas? Ou melhor, com
tempo hábil para me locomover antes que os verdadeiros cães selvagens começassem a farejar?
Descobririam antes de tudo acontecer, e eu nem viraria a esquina sozinha.
Anitta trouxe a solução: dividiria comigo seus clientes por um período. Foi a melhor
forma de demonstrar seu apreço por mim. Claro que devia lhe repassar certa porcentagem para
ela não se prejudicar.
Pensei que demoraria. Mas diante da quantidade que tenho vendido, não seria difícil.
Minha amiga também se prontificou em manter o valor em sua conta bancária para nada
servir de indícios do que estava fazendo.
O plano é juntar mais que cem mil euros, assim teria um valor para me manter durante
um tempo. Vou embarcar com documentos falsos, em rotas diferentes para confundir quem
começar a me procurar. Meu destino final é algum lugar no Canadá.
Lá, começaria do zero, e tentaria após me reestabelecer, trabalhar novamente com moda.
Talvez em alguma boutique.
Anitta vinha me incentivando com as possibilidades que surgiriam para mim longe das
garras da Cosa Nostra.
Ela era a única pessoa que me encorajava, pois era a única que sabia. Disse que o
melhor seria manter segredo até mesmo de Valentina. Todos estariam se arriscando se me
ajudassem.
Os pesadelos constantes eram o combustível e bengala que usava para manter meu
segredo. Mia cugina[149] é mulher e por ser uma principessa da famiglia não seria condenada à
morte. Mas quanto a castigos físicos, não duvidava.
Confesso que algumas vezes, estar na presença do Fausto me remetia aos momentos
íntimos que tivemos juntos, e meu corpo tendia a se torturar com a memória do seu toque. Ainda
mais quando seu olhar penetrante durante as refeições que fizemos na cobertura de Giulio e
Francesca mexiam com meus nervos.
Tornei-me exímia em evitá-lo. O desejo cru e insano não iria me prender a uma
realidade falsa que ofuscava o submundo do crime. Contudo, ficar no mesmo espaço em que
Fausto Moretto me confundia.
Mal percebo quando a aula terminou, perdida nos pensamentos, encaro o desenho que
criei envolta da confusão de emoções. O modelo com pontas soltas parecia um vestido feito com
fitas, algumas voando ao vento, outras expremendo o corpo de modo doloroso.
Suspiro sonoramente. Merda.
Ao passo que estou firme no propósito em deixar a vida de damigella para trás, meu
peito se contrai com a ideia de nunca mais ver meus familiares.
Escolhas. A vida é feita de escolhas e eu tinha feito a minha.
Fecho o caderno, colocando sem qualquer cuidado os itens usados durante a aula. Minha
cliente viciada do dia havia pegado sua mercadoria antes da hora, e por isso não precisaria ficar
para outra sessão de estudos na biblioteca. Iria para casa.
Quem sabe tentar dormir um pouco?
Sonhos ruins tendem a vir durante a noite, não é mesmo?
Estou tão cansada que queria simplesmente deitar em minha cama. Sigo como um
zumbi, cabisbaixa até o estacionamento.
— Colibrì? — Devo ter dormido enquanto caminhava, pois tenho a nítida impressão
que Fausto está escorado no capô do seu carro do outro lado da rua. Automaticamente, meus pés
vão até ele. — Está tudo bem? Alguém te fez mal?
Suas mãos seguram meus braços e os olhos escuros preocupados parecem tão reais que
pisco algumas vezes para retornar ao meu corpo.
— E-estou cansada… — digo, avançando para que me circule em seu abraço. Fausto é
um monstro, eu sei… Mas agora, eu só queria que afastasse de mim os fantasmas que ele mesmo
criou.
O príncipe da Cosa Nostra me envolve, e estou escondida do mundo encostando o rosto
em seu peito.
— Se fizeram algo com você… — A voz baixa sobre minha cabeça em tom de ameça,
relembra o motivo pelo qual quero sumir. Afasto-me, balançando a cabeça em negativa.
— Não… só estou preocupada com as provas. Não tenho dormido direito. — A última
parte não é mentira. Meu noivo me encara, estudando minha feição de modo analítico. Dou-lhe
um sorriso torto. — O que faz aqui, mio sposo[150]?
— Pensei em te dar uma carona. Mas… — Ele encara o prédio, relutante. Dio Santo.
Preciso desmanchar a má impressão ou algum aluno corre risco de morte.
— Eu vim de carro, e… — Inclino para o lado, vendo meu Fiat 500 se locomover
enquanto as chaves continuam em meu bolso. Fito Fausto boquiaberta.
— Paolo vai levá-lo para você. Não se preocupe. Agora… que tal almoçar e depois
fazer um programa de casal? — sugere, abrindo a porta do passageiro para mim.
— Pro-programa de casal? — gaguejo. — Com você?
— Claro que comigo. Não existe outra pessoa para você, Colibrì. Você me escolheu,
lembra? — pontua meu momento de loucura ao contar aquela mentira para papà.
Neste instante, vejo Marco descendo as escadas da biblioteca no prédio próximo, ele
deve estar me procurando já que Ana pegou todos os comprimidos e não fui até ele para sua
entrega. Caspita.
Entro no carro tentando não parecer apressada. Fausto fecha a porta e se dirige para o
assento do motorista. Encolho-me querendo criar a habilidade de ficar invisível.
— Podemos ir a um lugar em que possamos ficar sozinhos? — ofereço assim que aciona
a ignição. Fausto sorri de canto.
Maddona, por que ele tem duas versões?
— Não, Colibrì. Não posso ficar sozinho com você ou temo agir por impulso. Não
quero que se arrependa de nenhum momento comigo — diz, ainda sorrindo, olhando o trânsito
conforme nos distanciamos da universidade.
Se ele soubesse o quanto me arrependo de um momento que nem sequer sabe que eu
estava presente… Viro o pescoço para o lado, vendo o jardim central da avenida que estamos
para que Fausto não consiga ver minha expressão.
— Sabe… não leve pelo lado pessoal, mas não quero me casar. Não tem como você
repensar na possibilidade em seguir com o meu plano?
— Você pareceu bem interessada em mim na festa do Imperium. Não leve pelo lado
pessoal, mas gostei de sentir o seu gosto.
— E… — ergo o indicador, querendo parecer convincente — você pode experimentar à
vontade, só não precisa enfiar um anel no meu dedo para isso.
— Eu quero enfiar outra coisa em outro lugar. — Ele brinca, com um sorriso que me faz
esquecer tudo que tem me levado a querer fugir. — E vou ser paciente até o casamento.
— Arg! Não consegue entender que sou contra o casamento?
— E você não consegue entender que sua opinião não importa? — O sorriso morre. —
Por que continua sendo tão teimosa?
— Não me vejo como uma damigella.
— Acostume-se. Não há escolhas no mundo em que vivemos. Eu tinha uma… que me
foi tomada — relembra minha a mentira que pagaria até o fim dos meus dias. Emburro de vez e
mantenho a visão concentrada na paisagem que passava pela janela do carona.
Minha cabeça gira com o excesso de pensamentos sobre o que tenho vivido: a decisão
que tomei; o homem ao meu lado que provoca minha libido intensamente; a possibilidade de um
futuro sem amarras; a saudade que vou sentir… Dio Santo, como é difícil! Suspiro, expirando o
ar e deixando os ombros relaxarem no processo.
— Vamos a algum lugar que eu possa ver o mar, per favore — peço, ajeitando-me no
assento, tentando sorrir. Fausto franze o cenho, mas como insisto nos lábios esticados, ele logo
acompanha. — Tem algum motivo especial para nosso encontro, além da louca saudade que está
de mim, Fausto Moretto?
Ele bufa um riso solto, segurando o volante com uma das mãos e escorando o cotovelo
oposto no apoio da porta.
— Va benne… — decide em revelar. — Quero conversar sobre nosso noivado. Tua
madre está organizando uma grande festa, mas se quiser algo diferente, posso arranjar.
Ali estava o motivo real da presença do meu noivo provisório na saída da faculdade.
Não tinha a ver com sentimentos ou desejo… e sim, tão somente, as tradições da famiglia
ditando nossos passos.
— Não quero tirar a alegria de mia mammina. Ela parece feliz organizando festas.
Ainda mais sendo outro noivado.
— Então saiba que farei o pedido dentro de um mês. Quer um anel em específico? Qual
pedra mais gosta? — Ele movimenta o volante, e mantém a atenção no trânsito como se falasse
de algo do cotidiano. — Melhor, vou enviar-lhe um catálogo e você escolhe o que mais lhe
agrada.
Suas indagações me deixam confusas. De verdade, me magoam, pois gostaria que meu
noivo, mesmo que por obrigação, escolhesse o anel pensando em mim. Giulio podia ter o motivo
errado ao firmar o noivado com mia frattela, mas sei que foi ele quem escolheu o anel, pois
dedicou um pouco do seu tempo para determinar a inclusão da letra M como pingente.
Por que esse farabutto não aprende como se pedir uma damigella em casamento com o
irmão?
Não vai acontecer…
Não. Então, foda-se a porcaria do anel de noivado.
Respiro fundo, para que a sensação em ser menosprezada não reflita em minha voz.
— Va benne. Você sabe o endereço do meu e-mail. Mande que escolho o modelo a
tempo.
Fausto sorri satisfeito. Pelo visto, tinha aprendido a ser convincente, e finalmente me
tornado uma bela mentirosa.
MICHELA ZANCHETTA

Informei Francesca de última hora minha decisão de vir para Messina. Não queria que
me acompanhasse e também evitaria qualquer companhia além de Paolo. A insistência de Fausto
colocar outro segurança em meu encalço estava dando mais trabalho do que o normal.
Paolo era discreto. O soldato acostumou a vir em um carro separado atrás de mim, o que
se tornou meu alento por dar privacidade e assim pude cantar em plenos pulmões todas as
músicas da minha playlist.
Sou uma péssima cantora, só para constar.
Estava em casa. Estranhamente, sentia estar de viagem e não no lugar que vivi por
tantos anos. Assim que cheguei, deixei a bagagem no meu antigo quarto e fui atrás de mammina.
Encontrei-a na cozinha, parecendo ocupada anotando fervorosamente em sua agenda. Nada de
tecnologia para Signora Zanchetta. Elevo o pescoço e descubro tratar-se de uma checklist da
festa de noivado.
Sento-me à mesa, observando-a com um brilho de entusiasmo nos olhos. Um mês
poderia passar rápido demais ou uma eternidade a depender do que se espera. Para mammina não
havia tempo para nada. Ela estava imersa na tarefa de tornar cada elemento memorável.
— Mammina? — Por fim, ela me nota, sorrindo de orelha a orelha como se tivesse
ganhado um presente de Natal. Ela amava ganhar presentes.
— Figlia, que bom que chegou! — Ela vem até mim, beijando cada lado do meu rosto.
A seguir, expõe suas anotações para dividir comigo no que vinha trabalhando.
— Sei que você possui gosto diferente do meu. Então, quis encontrar um lugar especial
com ar de modernidade para seu noivado. Olhe! — Ela mostra um endereço em Palermo como
se tivesse a obrigação de saber a localização. Ainda não possuía o mesmo talento que o Google
Maps, mas antes que falasse algo, Signora Zanchetta puxa o celular, abrindo a galeria de fotos.
— Mammina, é… é… — fico sem palavras ao constatar que ela buscou algo diferente
do costumeiro castelo medieval da famiglia. — Perfeito.
O salão de festas moderno se revelava como um espaço deslumbrante, possuindo um
design contemporâneo com paredes escuras e móveis claros. O pé direito alto amplificava a
grandiosidade do ambiente, conferindo uma sensação de amplitude e elegância.
Passo as fotos, encantada, vendo a dedicação que mia mammina se prontificou em
solicitar antes de fechar o contrato. Haviam imagens mostrando a iluminação estrategicamente
planejada para destacar a sofisticação. Sou tomada pela emoção ao notar o cuidado que ela teve
em me agradar.
— Agora aqui. — Ela se aproxima, virando a página da agenda com anotações sobre o
cardápio. — Chela, preciso que seja sincera sobre o buffet, va benne? Seu noivo pediu
claramente para ser servido o que você mais gosta.
E engulo em seco a notícia sobre a preocupação de Fausto.
Merda. Por que ele não deixa tudo mais fácil e age como o homem sem coração que vi
destruir o herdeiro calabrês?
— Para os canapés, pensei em começar com camarões crocantes com molho de limão,
mini quiches de queijo de cabra e damascos, e, é claro, bruschettas de tomate fresco com
manjericão. O que acha, bambina? Bruschettas são as suas favoritas, não? — Concordo,
meneando a cabeça.
Ela continuou discorrendo a lista, mencionando os pratos principais, sendo tão
minuciosa que parecia ter palpitado inclusive na forma do preparo.
Enquanto observo mammina, um nó de incerteza aperta meu coração. Ela mostrava
detalhes minuciosos com um sorriso irradiando alegria genuína.
Em um breve momento, quis esquecer de tudo e fantasiar que aquilo era real. Desejei
estar apaixonada e decidida a me casar com um homem bom, que me levaria a restaurantes caros,
me incentivaria no trabalho e me tratasse com amor e respeito.
Ali, nos olhos da Signora Zanchetta vi a mesma euforia que um dia contagiou mia
frattela. Francesca vivenciou situações que fariam qualquer ragazza fugir do noivado com um
Moretto. Do pico mais alto de alegria ela caiu até o fundo do poço, para só depois escalar. É…
pelo visto eu não alcancei o alto da montanha, mas rolei direto para o abismo do desespero.
Pressiono os lábios, não querendo estragar a felicidade de mammina. No entanto, a
consciência pesa, pois sei que estou prestes a fugir, escapando desse futuro que ela
meticulosamente planejou para mim.
— Mammina, já pensou em trabalhar com isso? — Minha fala a pega desprevenida.
— Che succede, Chela? Está maluca? Damigella não trabalha — responde de pronto.
— Sim… eu sei… Mas supondo que pudesse. A Signora sonhou alguma vez em
organizar eventos além da famiglia?
Mammina bate a caneta em seus lábios, pensativa, decidindo se poderia ou não revelar
algo tão íntimo.
— Mia madre era quem antes organizava as festas e, por conseguinte, assumi seu posto,
já que a moglie de Don Antonio era da Camorra, e por isso, nosso consiglio[151] não acatava suas
decisões. Mas… — Ela suspira. — Sempre gostei de festas. Organizar os eventos satisfaz minha
pequena ambição, cara mia.
— A Signora nunca quis receber algo que valorizasse seu empenho, mammina? —
insisto. Ela me estuda, depois libera um riso sem humor.
— Ser valorizada… — balbucia. — Tuo padre me valoriza, Michela. Ele me protege e
cuida de mim. Sou abençoada pelos filhos que tenho e agora meu futuro neto. Mas sim… já fui
jovem e tinha sonhos. — Ela fecha a agenda, fitando-me de modo curioso.
— Quais eram seus sonhos, mammina?
Ela suspira, passando a mão sobre o pequeno caderno na mesa.
— Quando se é jovem, cara mia, pensamos que tudo é possível… o futuro é incerto e
até a primeira queda acontecer, não temos noção do quanto podemos cair. — Seus olhos brilham,
mas agora marejados de uma emoção diferente.
— Mammina… — Seguro sua mão, querendo que continue.
— Eu cantava…
Hum? Acabo de desenvolver um tique nervoso nas pálpebras, porque não paro de
piscar.
— Surpresa? — Quero responder, juro que quero… Mas quando abro a boca, um som
esquisito sai e entendo por bem fechá-la. — Sim… eu cantava lindamente, cara mia. Sonhava
com minha vida em palcos das mais lindas festas.
Seu fascínio por festas passa a fazer sentido.
— A Signora cantava nas festas da famiglia?
— Ham? Nada disso — estala a língua. — Jamais. Eu saía escondida e cantava nas
boates… mascarada — ela cochicha a última palavra. — Pensava que ninguém me descobriria,
até o figlio do Don pedir para passar a noite com a cantora misteriosa.
Ela para de contar, fazendo suspense.
— E o que aconteceu, mammina?
— Um soldato me ajudou. — Papà… Ela não precisava dizer, porque ficou
subentendido no ato. A obsessão de Don Antonio, pai de Giulio, Fausto e Max, quanto à mia
mammina deixou de ser um segredo em nossa casa há algum tempo.
— Você já amava papà… — concluo em voz alta.
— Não. Eu não sabia o que era amor entre um homem e uma mulher. Meu sonho falava
mais alto. Eu queria as luzes do palco, a plateia acompanhando minha voz e os aplausos finais.
Ah… era perfeito.
— Se era perfeito… não valia a pena lutar?
Signora Zanchetta nega com a cabeça, enxugando uma lágrima desobediente.
— Tony descobriu minha identidade, figlia. Fez promessas nas quais meu sonho poderia
milagrosamente se conciliar com os deveres de uma damigella d’onore. — Ela funga. — Fui
ingênua e boba. Acreditando em suas palavras doces, me apaixonei. Ou achava que tinha me
apaixonado… não sei dizer.
— Mas ele teve que assumir o compromisso com Chiara Pascale — comento a parte da
história que é conhecida de todos.
— Sim… e eu perdi a vontade de cantar. Casar com o futuro Don era o meio que
supostamente alcançaria meu maior sonho. Pensei que… Dio Santo. Eu era tão ingênua.
— Por que nunca mais cantou mammina? A Signora se apaixonou por papà depois…
ele… ele…
— Tuo padre me deixaria cantar em um palco? — Silencio-me, sentindo o quanto a
esperança pode embaraçar a razão do possível. — Só se fugisse… — fala baixinho, como se
fosse só para ela ouvir. — Mas a dor do primeiro coração partido calou-me de qualquer modo.
Agora consigo perceber que mammina sempre teve o olhar opaco e sua alegria era tão
plastificada quanto àquela que nos ensinou a expressar. Seu sonho foi enclausurado juntamente
com sua liberdade por conta das tradições da famiglia.
— Signora poderia cantar para nós — sugiro um pequeno alento.
— Não, cara mia. Seria dar migalhas para alguém faminto. Não se preocupe comigo, va
benne? Eu sou feliz com o que construí ao lado de tuo padre. E guardo meu sonho num espaço
sagrado bem aqui — mammina coloca as duas mãos em seu peito —, em meu coração.
Neste momento, levanto-me e abraço-a apertado, o máximo que posso. Signora
Zanchetta não faz ideia do quanto me ajudou contando sua história. A pequena dúvida que
pairava em minha cabeça sendo sanada conforme a frase dita em segredo se repetia uma, duas,
três vezes: Só se fugisse…
— Eu te amo tanto, mammina… tanto — falo com o rosto escondido em seu ombro.
— Ah… amore mio, eu também te amo muito. A todos vocês — mammina retorna a
frase, enfatizando o amor amplo para com meus fratteli[152].
Suspiro, envolvendo-a em meus braços, e sentindo a ansiedade triste, como se minha
fuga já estivesse deixando suas marcas no presente.
Mammina está aqui, sem saber da tempestade que se aproxima, corroborando a saudade
antecipada que se instala em meu peito.
Cada momento dessa despedida inconscientemente parece ecoar como um suspiro
melancólico. Aconchego-me no abraço caloroso, tentando absorver os detalhes de sua presença,
e querendo congelar o tempo.
O adeus disfarçado de carinho é uma despedida que Signora Zanchetta não compreende,
ainda.
Que ironia, não?
Ao revelar os segredos que foram escondidos por tanto tempo, mia mammina
inadvertidamente selou meu destino. As palavras que revelaram a destruição dos seus sonhos
foram o combustível para me encorajar a buscar os meus.
Inspiro o cheiro delicioso do seu perfume adocicado com toque de maçã. Em breve,
terei que partir, deixando para trás a segurança desse abraço e enfrentando o desconhecido.
A saudade antecipada é um prelúdio sombrio e silencioso da dor que vou sentir quando
não mais poderei vê-la. Mammina nem sequer imagina, mas minha vinda foi muito além para
escolhas de um cardápio, e sim, para escolhas da minha vida.
MICHELA ZANCHETTA

Minha barriga poderia não dar indícios de nervosismo se contorcendo na medida em que
caminho ao lado de Francesca, não é mesmo?
Mas não… justamente hoje, parece que engoli um furacão que está rodopiando forte em
meu ventre, movimentando minhas tripas para todos os lados.
A futura mammina está tão perdida em sua própria bolha, que nem sequer notou que meus
passos passaram a ser tortuosos para embalar meu intestino e tentar fazê-lo dormir.
Ela não para de falar e estou ficando zonza com o excesso de informações sobre vitaminas;
tamanho do embrião; e desenvolvimento do feto no primeiro trimestre.
Sabia que os assuntos de mia frattela mudariam assim que todos soubessem de sua
gravidez, pois ela parecia que ia explodir por não poder conversar sobre essas pequenas coisas.
Sinceramente, se não fosse meus últimos momentos com Francesca iria escapulir para a
direita com qualquer desculpa esfarrapada. Mas se tudo correr como deve ser, talvez este seja
meus últimos minutos ao lado dela.
Respiro fundo e meneio a cabeça concordando com a feiura de um macacão marrom para
grávidas que não conferia nenhum atributo à beleza do momento.
— Que farabutto! Não podia ter adicionado algum bordado no bolso da frente? — Ela
praticamente bate na tela do celular que lhe servia de vitrine. — E olha as costuras grosseiras.
Mais parece um saco de estopa do que uma roupa para grávidas.
É a primeira vez que ouço Francesca reclamar e xingar uma pessoa por algo tão ínfimo.
Pobre do estilista que desenhou o modelo de roupa, penso.
O tal macacão não estava focado em beleza, mas no conforto que poderia proporcionar à
gestante. Mia frattela demonstrava os indícios da alteração de humor causada pelos hormônios.
Ainda bem que por ora sua fúria está concentrada apenas num pedaço de pano.
Nunca pensei que um dia teria pena de Giulio Moretto… Se mia frattela está agressiva
agora, imagine daqui a alguns meses?
— Você precisa desenhar uma coleção para grávidas, Chela. Eu não quero ser refém de
algo horroroso assim. — Francesca esfrega a tela em meu nariz. O que leva as pessoas a
aproximarem o celular no rosto das outras quando querem mostrar algo?
Sinceramente gostaria de descobrir se existe alguém que consiga enxergar através do
olfato, porque ainda não desenvolvi a visão das minhas narinas.
— Va benne, Tchesca. Vou desenhar uma coleção especialmente para você. Fique
tranquila — minto. Francesca parecia irritada o suficiente para estirpar o designer de modas que
criou o macacão, e ser espancada pela Signora Moretto não estava em meus planos.
Não… Começo a fazer a lista de todas as tarefas que teria que cumprir logo mais.
Preciso ir até a biblioteca para me trocar. Durante a semana toda, trouxe pequenas mudas
de roupa e minha amiga foi montando uma mala para mim em sua casa. Em um dos armários da
biblioteca, deixamos escondido uma peruca, boné e óculos escuros, juntamente com outro casaco
que trocaria antes de sair do prédio.
Anitta vestiria minhas roupas de agora para confundir Paolo. Essa dor de barriga veio a
calhar como desculpa para não ficar até o fim da aula. Coloquei um casaco com capuz
intencionalmente, assim ela sairá e levara meu carro de volta ao meu prédio.
Outro ponto a meu favor é o soldato manter-se afastado, sempre em carro distinto do meu.
Vou pegar o caminho da saída de incêndio da biblioteca e pedir um uber até o aeroporto.
Alguém de confiança de Cássio disse que alguém estará lá, para me entregar o documento falso,
bem como a passagem aérea.
Ainda não sabia os lugares por onde vou passar até finalmente seguir viagem para o
Canadá. Tudo é incerto… por isso minha barriga resolveu ajudar com a desculpa. Não precisava
ser tão convincente, pelo menos.
Cazzo!
— Por que está andando assim, frattela? — Francesca finalmente percebe. — Até onde sei
você desenha para modelos desfilarem e não o contrário.
Já ouviu dizer que mulheres mudam drasticamente quando se tornam mães, mas do nada a
ragazza comportada se tornar piadista é demais.
— Modelos caminham de modo sexy, va benne? E não estou nem perto disso. —
Massageio a barriga, revelando o motivo de estar caminhando diferente. — Algo não me caiu
bem. Estou com dor de barriga.
— Está nervosa com o noivado, não é?
— Por que estaria? — A pergunta sai de modo espontâneo. Não teria como estar nervosa
com algo que não vai acontecer.
— Ah… — Francesca murmura decepcionada. Acredito que para ela entender minhas
preocupações, comparando com o que vivenciou seja mais fácil. Por conta de seu atual estado
emocional, tento remediar:
— Estou nervosa por não ter escolhido um anel. Fausto enviou o catálogo, mas…
— Eu posso te ajudar depois da aula — replica, retomando o brilho nos olhos. Sorrio. —
Nem acredito que ele te mandou um catálogo…
— Pois é… agora não dá mais para Giulio ensiná-lo como se faz um pedido de noivado
decente.
— Acredite, Chela, Giulio é tão ruim quanto. Os irmãos Moretto possuem muitas
habilidades. Mas pedir em casamento não é uma delas — ela diz com um sorriso que esboça
segundas intenções.
É… eu também já conhecia outras habilidades que eles possuíam. Talvez uma ou outra mia
frattela nem sequer podia imaginar… como, por exemplo, furar os olhos de um homem e
arrancar seus dedos.
— Tchesca, preciso ir ao banheiro antes do primeiro período, ou não vou sobreviver, va
benne? — informo, segurando levemente seu braço.
Nossos caminhos costumávem se bifurcar no próximo jardim interno da universidade de
qualquer forma, e como eu realmente vou ter que sossegar meu intestino, melhor me despedir
agora.
— Quer que vá com você? Posso pedir para Zaccheo pegar um remédio e…
— Não precisa, frattela. Acho que ficarei livre do incômodo rapidinho e você não pode
ficar em ambientes tóxicos — digo em tom de brincadeira.
— Va benne… me ligue se alguém morrer lá dentro — Francesca replica, afastando-se.
Mas quando ainda estamos a um palmo de distância, puxo-a num abraço apertado.
A princípio, mia fratella não entende nada. Porém, corresponde no impulso.
— Prometo um dia fazer uma coleção inteirinha de gestante com seu nome, Tchesca —
falo bem baixinho em seu ouvido para que não identifique a emoção em minha voz.
— Está tudo bem mesmo, Michela? Sabe que pode contar qualquer coisa pra mim —
ressalta, afagando minhas costas com o carinho que sentirei tanta falta. Caspita! Não posso
deixar que perceba.
— Se piorar, te ligo. Agora, vá ou chegará atrasada futura defensora de mafiosos. — Dou
tapinhas em suas costas e me afasto. Seguindo na direção do banheiro.
Francesca provavelmente ficou me vendo afastar até perder de vista como sempre fazia.
Desse modo, a parada para esvaziar a barriga sabe-se lá do que sairia de mim, foi mais do que
estratégica.
Meia hora depois, deixo o ambiente do banheiro inabitado por uma década e sigo no
sentido da biblioteca. Olho por todos os lados, procurando por Paolo. O soldato está fitando a
tela do celular distraidamente na parede oposta. Saio sorrateiramente, deixando-o para trás.
Na sequência, entro no imenso salão de estudos, vendo parte dos alunos debruçados em
livros, com suas anotações enquanto outros estão na redoma de vidro destinada para as
discussões em grupo.
Continuo até o corredor mais vazio onde escondi uma mochila no armário da última
estante. Respiro fundo, buscando a coragem que titubeia quando viro a esquina e dou de cara
com Marco.
— E olha o que temos aqui… — cantarola irônico. — Uma ratinha que fugiu de mim
noutro dia.
— Não fugi de você. Precisei sair mais cedo, só isso.
— Você se comprometeu comigo e vazou me deixando na mão, cara mia. — Ele empurra
minhas costas de encontro à parede ao fundo.
— Ana pegou tudo o que eu tinha. Ia pegar mais para você, eu juro — contesto, insegura
por estar sendo prensada contra minha vontade. Dio Santo! Isso nunca aconteceu antes. Cadê
mio soldato?
Michela, sua stronza, você mesma o despistou para vir até aqui, lembra?
O homem que um dia pensei ser meu tipo assopra um riso maldoso. Ele segura meu
pescoço pressionando-o até que sou privada de ar.
— Acho que mereço um bônus por aceitar as migalhas que consegui de sua amiga, não? —
Marco cochicha em meu ouvido. — Ela me vendeu o suficiente, mas não tudo o que havia
pedido a você.
Arranho suas mãos envoltas da minha garganta, na tentativa inútil de fazê-lo parar.
— Per favore… pare — peço com a voz esganiçada. Para piorar, ele apalpa meu seio sobre
o casaco, apertando dolorosamente.
— Implore, ratinha, eu amo quando imploram — declara perto demais do meu rosto.
Minha visão começa a ficar turva e minhas pernas estão amolecendo.
Ele vai me matar…
Meus sonhos são extraídos de minha mente, um a um, como se um dementador[153] imenso
estivesse sugando cada esperança de vida.
Então, ouço uma batida abafada e o farabutto do Marco fica estrábico, antes do seu corpo
se envergar para o lado, caindo em seguida.
Meu pescoço é liberado, e puxo o ar com brusquidão chegando a arder meus pulmões.
Quando elevo o olhar, vejo Paolo apontando a arma com um silenciador na cabeça do peso,
ainda não, mais quase morto.
— Paolo, não!
— Ele colocou as mãos em você. As ordens do Sottocapo são claras — diz
mecanicamente.
— Em matar alguém dentro da universidade? — O soldato parece sair do transe,
analisando ao redor. Ergo as sobrancelhas para dar ênfase ao meu argumeto.
Um minuto depois, Paolo guarda a arma dentro do casaco pesado. Grazzie, Dio. Mas pega
o celular e liga para alguém. Sabe a dor de barriga que pensei ter superado? Voltou com força
total.
— Saída 10. Preciso de ajuda — solicita de pronto.
Saída 10? Será que é justamente minha rota de fuga?
Urg!
— O Sottocapo dizia para ficar de olho no infelicce caso se aproximasse de você,
Signorina. Mantive distância todas as vezes por parecer inofensivo. Signore Fausto pediu para
não intervir. E eu cumpro as ordens que me são dadas.
Paolo se prontifica em mencionar claramente que sempre esteve me vigiando. Claro. O que
pensei que fizesse andando atrás de mim o tempo todo? Apenas me protegendo?
E Madonna… Fausto sabia quando me encontrava com todo mundo?
— Não é o que você está pensando, Paolo.
— Não importa, Signorina. Não é para mim que vai se reportar.
Meu queixo cai. O que esperava também?
— Vá direto para a aula. Preciso limpar a biblioteca da universidade — determina, dando-
me outra oportunidade para desaparecer sem pistas.
Envio uma mensagem de texto para que Anitta me encontre no banheiro do prédio de belas
artes. Tenho que improvisar.
O plano em deixar a mochila com minha roupa de volta no armário foi por água abaixo.
Agora, teríamos que contar com a sorte de todos estarem preocupados com o embuste do Marco
para minha amiga se passar por mim no trajeto devolta ao apartamento.
Alguns minutos depois, estou completamente trocada, com uma peruca de cabelos loiros
escuros e um casaco na cor café.
— Marco é um figlio de puttana. Nunca gostei dele — Anitta dispara, terminando de fazer
uma trança e colocando o cabelo dentro do capuz.
— Sim… mas minha preocupação agora é outra. O que vamos fazer quanto às câmeras do
corredor. Elas me pegaram vindo para cá e você também.
— E daí?
— Você pode se tornar suspeita.
— Até chegarem a mim, você estará fora do país. Fique tranquila. Não tenho medo.
— Se pressionarem você, vá até Francesca, va benne? Mia frattela jamais deixará que
machuquem você.
— Não estou cometendo nenhum crime, Michela. O código da famiglia é rigoroso, mas
eles não têm nenhuma lei contra ser chantageada pela noiva do Sottocapo a ajudá-la a fugir.
E meu queixo cai pela segunda vez nesta manhã.
— Eu não te ameacei a nada e… — Ela começa a rir. Compreendo. — Va benne, va benne.
É a melhor saída.
— Agora vamos, principessa. Seu futuro longe da Cosa Nostra a espera. — Sorrio,
satisfeita em ainda estar dentro do plano.
Tudo acontecerá como deve ser e eu vou viver como uma ragazza normal, sem me tornar
cumplice dos crimes bárbaros da máfia.
FAUSTO MORETTO

A partir do momento em que o aplicativo Imperium tornou-se real, meu token ficou
ainda mais valioso. É impossível mensurar a quantidade de pessoas e empresas utilizando-se do
programa formatado num simples aplicativo.
O sucesso é tamanho, que acredito que se tivesse optado pela criação de uma nova
criptomoeda, não lucraria tanto.
As velas verdes em minha tela num movimento crescente enaltecem essa afirmação.
Quem diria que num ramo no qual pretendia aplicar golpes, acabei trabalhando
legalmente? As negociações do Grupo Moretto quanto ao transporte marítimo também é, salvo
quando recepcionamos e transportamos mercadorias não admitidas em nosso território.
A venda de armas para guerrilhas internas em países subdesenvolvidos ainda possui
lucratividade atrativa demais para que possamos abandonar.
Enquanto em uma das telas sigo com a análise do Imperium, na outra continuo a
vasculhar a caixa de entrada do e-mail de Fabrizio. O infelicce, pelo visto, deletava as mensagens
comprometedoras, e encontrar o fio para puxar tem dado mais trabalho do que pensei.
Meu celular vibra sobre a mesa e minha mão vai direto a arma que costumo deixar ao
lado do teclado. Cazzo. Estava tão concentrado que me assustei com uma simples ligação.
— Chiao, Paolo. Che succede? — indago, afastando a cadeira de frente das telas e
girando 180º.
— Signore Moretto, tivemos uma situação com sua noiva.
— O que aconteceu? — indago de súbito, com palpitação no peito.
— O ragazzo Marco estava estrangulando sua noiva, Sottocapo. Estamos com ele no
porta-malas.
— E Michela? — Tento não passar em minha voz as emoções quanto ao meu Colibrì.
— A Signorina está bem, deixei-a na faculdade. Ela foi para a aula e mandei Lucca no
meu lugar. Sottocapo… não devia falar, mas… avisei.
— Realmente não devia, Paolo. Por acaso está repreendendo seu Sottocapo? — O
soldato vinha me alertando sobre os encontros que Michela vinha tendo com Marco na biblioteca
e em outros lugares.
Ele também afirmou que o sujeito não passava dos limites e que Michela o afastava com
frequência. Minha necessidade em saber sobre os sentimentos de minha noiva foi meu erro. Não
posso cometer erros.
— Leve-o para a cutelaria. Preparem a carne. Estou a caminho — determino, em
seguida coloco minha arma no coldre e pego o paletó do terno que estava no encosto da cadeira.
Aquele infelicce sabia que Michela é minha noiva e ultrapassou todos os limites.
Acredito que os membros da família Rocatti estão precisando de um lembrete do motivo pelo
qual todos temem a Cosa Nostra, e eu seria o mensageiro deles.
Chego à cutelaria meia hora depois. Paolo havia prendido nosso convidado nas
correntes penduradas ao centro numa viga do teto. A boca cortada e os hematomas surgindo na
região dos olhos indicavam o começo da surra.
— E eu pensando que o cornutto não viria — o desgraçado ainda tem a coragem de me
ofender. Faria questão de ajudá-lo a engolir essa coragem.
Caminho lentamente até a mesa com as ferramentas para moldar nossas lâminas.
Escolho o martelo de cabeça quadrada e aproximo-me do corpo suspenso.
Impulsiono a ferramenta para trás e miro no joelho esquerdo num movimento de
beisebol. Ele urra com a dor lancinante. A rótula é esmagada de imediato, deixando a perna
atingida mais comprida do que a outra.
— Soube que vem falando com minha noiva — falo após os berros se tornarem
lamentos.
— Ela tinha o que eu queria — replica, e ergo o martelo novamente para acertá-lo nas
costelas. Agora ele cospe sangue, fazendo apenas um som abafado. Que pena. Minha raiva está
fazendo com que quebre o brinquedo rápido demais.
— Michela é comprometida, putto. Quero relembrá-lo — Ele respira com dificuldade.
— Anitta passou a carteira para ela. Não tinha como não falar com ela — diz ofegante,
tossindo sangue.
— Venda… — reflito. Anitta era um dos repasses de Oásis, por que passou a carteira de
clientes para Michela?
Não faz sentido. Embalo novamente o martelo acertando o outro joelho. Sou
extremamente metódico e não gosto de coisas assimétricas, precisava igualar a altura das pernas
do ragazzo.
— Per favore… per favore… — suplica.
— Você comprava Oásis de minha noiva? — Ele afirma com a cabeça. Geralmente,
passo pente fino nas contas bancárias quando vejo algo suspeito.
E Michela…
Precisava ver suas últimas movimentações financeiras.
— Sabe, Marco… você podia ficar quieto sem falar nada. Isso aqui nunca foi um
interrogatório. — Arremesso de baixo para cima, martelando seu queixo. A cabeça tomba para
trás, mas em seguida retoma baixa, com o queixo colocado em seu peito. — É sua sentença de
morte.
Não lido bem com ansiedade e por isso, dou-lhe o golpe final, num movimento de leque
acertando em cheio a lateral de sua cabeça.
A necessidade em voltar para frente das telas dos computadores e descobrir sobre essa
informação antes de confrontar Michela fez com que eu fosse misericordioso, afinal.

A última coisa que queria hoje era subir até a cobertura de Giulio a pedido de minha
cunhada. Estou concentrado no mistério que o figlio de una puttana revelou à tarde.
Nada corroborava com sua alegação. A conta bancária de minha noiva regulava com
seus gastos e a mesada que Enrico Zanchetta enviava a ela.
Mas a criatividade da desculpa de Marco me intrigou. O sujeito tomava Oásis com
frequência por um motivo. Suas notas não indicavam QI elevado, muito menos a forma como
entrou na faculdade. O dedo do seu pai com a doação exorbitante comprou sua nota do
vestibular.
Algo não batia.
Libero minha entrada posicionando o polegar na fechadura e caminho automaticamente
com o pensamento longe.
— Giulio! Coloque-me no chão! — A voz enfezada de Francesca me traz para o
presente, então me dou conta que estou entrando em uma das salas centrais da cobertura.
— Bambola, o médico disse para fazer repouso o máximo possível. Aceitei sua
frequência na faculdade, mas aqui em nossa casa, quero cuidar da mia moglie.
— E me carregar pra lá e pra cá como uma bambolina é cuidado?
— Você é mia bambolina — ouço Giulio soar jovial, numa voz que direciona tão
somente para sua esposa. Para quem queria apenas desonrá-la, evoluiu bastante. — Io ti amo
tanto, Bambola… tanto. E agora nosso bambino também.
— E se for uma bambina?
— Vou trancafiá-la no quarto até completar 30 anos.
— Giulio! — Francesca o repreende, dando um tapinha em seu ombro. Ele ri. Ambos
estão no sofá maior da sala, minha cunhada com as pernas no estofado e mio fratello sentado ao
seu lado.
Arranho a garganta para indicar minha presença.
— Vocês poderiam apertar a campainha, não? — Giulio pontua, me fitando com uma
pequena carranca. — Assim Francesca não ficaria tão insegura quando fodemos aqui.
— Giulio Moretto! — ela diz exaltada.
— É verdade, Bambola. — Giulio a puxa para que fique em seus braços. — Temos que
aproveitar todos os lugares de nossa casa agora. Quando nosso figlio nascer não poderei mais te
pegar desprevenida.
— Se quiserem posso voltar outra hora — falo, indicando com o polegar a entrada.
— Não, não… — Francesca ergue o tronco, se acomodando ao lado de Giulio,
permanecendo com os joelhos dobrados e as pernas em cima do sofá. — Preciso conversar com
você, cognato. — Ela gesticula a poltrona à sua frente.
Sento-me, aguardando que revele o motivo da minha convocação. Duvido que fosse
para presenciar um momento fofo de casal entre eles.
— Michela me contou sobre o catálogo, Fausto. É tão difícil assim pensar em mia
frattela para comprar o anel de noivado? — Ela cruza os braços emburrada.
Confesso que quando mencionou catálogo, de imediato pensei que minha noiva tivesse
revelado algo sobre a distribuição de Oásis. Mas a sequência da frase demonstrou que não. Bufo
o ar com um riso sem humor. Estou preocupado com algo muito maior do que uma simples joia.
— Qual o problema? Assim não tem como errar. Ela é quem vai usar — respondo com
indiferença. Mas por dentro estou completamente confuso. — E se escolho algum que ela não
goste?
— Impossível não gostar de um anel de noivado, cognato. Todos são lindos, mas saber
que você escolheu faz muita diferença — enfatiza, com um bico que me lembra de Michela.
Inspiro e solto o ar pesadamente, não querendo discutir um assunto que deveria se ater
entre mim e minha noiva. Eu escolhi o anel de noivado e ando com ele no bolso praticamente
todos os dias. Quando busquei Michela na faculdade, pensei em colocá-lo em seu dedo para ser
nosso noivado particular, longe do espetáculo esperado pela famiglia.
Porém, ela estava tão distante com os olhos apagados, que me desmotivou
completamente. Vê-la daquela forma sem saber o porquê me mostrou o quanto ainda preciso
conhecer minha noiva. E por isso, fiquei inseguro se iria ou não gostar do que escolhi.
— Va benne… vou eu mesmo escolher e me retratar com tua frattela — dou a solução
que ela quer ouvir. — Se quiser vou agora mesmo até seu apartamento.
— Não. Não vá agora. Ela não está bem. Mandou mensagem mais cedo dizendo que ia
tomar um remédio para dormir — devolve. — Chela fala que não está nervosa com o noivado,
mas sei que está. Ela não anda dormindo direito e até passou mal na faculdade hoje.
— Passou mal?
— Sì, Sì… comeu algo que lhe fez mal. Então, não vá perturbá-la. Deixe-a descansar.
— Hum… — murmuro, esfregando a barba.
Outra coincidência estranha para deixar de lado. Estou tendo muitas informações sobre
Michela de uma vez, e não tenho um bom pressentimento por nenhuma delas.
— Mudando o assunto muito importante do anel de noivado… — Giulio leva outro tapa
no ombro, e sorrindo, pega a mão de Francesca, depositando um beijo, antes de me fitar nos
olhos. — Descobriu algo no e-mail de Fabrizio?
— Descobri que quem recebia os e-mails usava uma conta nova a cada resposta.
— Cazzo! — Ele bate na perna, insatisfeito tanto quanto eu.
— Mas descobri que todas as contas foram criadas em uma Lan House no centro —
apresento o início do carretel para mio fratello.
— Já é um começo.
Meneio a cabeça positivamente.
— Bom… já levei a bronca da noite. Posso me retirar, Signora Moretto? — indago com
uma ironia divertida.
— Está liberado por ora, cognato. Mas saiba que estou de olho em você — Francesca
responde sorridente, fazendo um gesto de dispensa com a mão.
Dou-lhe uma leve reverência com um sorriso de canto e saio, deixando-os novamente a
sós. Faço uma anotação mental de tocar a campainha nas próximas vezes que vir na casa de mio
fratello mais velho.
Por mais que ver minha cognata nua devesse ser uma visão e tanto, seria muito
constrangedor para todos nós. Até porque, não gostaria que ninguém visse mia moglie na mesma
situação.
Entro no elevador, refletindo sobre a possibilidade de Michela estar magoada, por lhe
dar a opção de escolha do anel de noivado, e a informação dada pelo Rocatti morto.
Nada fazia sentido…
Pelo menos, tinha trabalho para distrair minha mente. Preciso comparar as filmagens da
câmera de segurança da Lan House com os horários dos envios de e-mails para Fabrizio. Dali
teria a pista que Simona apresentou noutro dia.
Em breve, a rota para encontrar as crianças desaparecidas seria revelada e, enfim,
descobriremos quem é nosso novo inimigo.
É… de todos os mistérios que me rodeiam, ao menos um comecei a desvendar.
MICHELA ZANCHETTA

Minha cabeça está coçando por ficar tanto tempo de peruca. Estou arrependida de não
ter comprado uma de cabelos curtos para trocar durante a viagem.
O voo até Sevilha teve duas escalas que pareceram uma eternidade. Fiquei uma hora e
meia em Roma, circulando de cabeça baixa, e até quando comprei um lanche na cafeteria do
aeroporto como almoço, tentei localizar as câmeras de segurança para esconder o rosto.
É algo novo, mas me acostumei a escapar das câmeras de segurança de minha casa para
sair com Valentina à noite. Consigo identificar os pontos nos quais esse tipo de tecnologia é
colocado em lugares públicos tão bem quanto.
Na sequência, embarquei num voo para Amsterdã e lá precisei aguardar mais duas horas
e quarenta minutos até o novo embarque. Estou levando apenas uma bagagem de mão com os
itens que consegui juntar no decorrer da semana com Anitta. Outros produtos de higiene estão na
mochila que ganhei de Francesca para a faculdade.
Pelo menos pude trazer comigo meu caderno e o conjunto de lápis e canetas pincéis.
Acabei desenhando alguns modelos enquanto aguardava os voos. E adivinhe?
Pela primeira vez desenhei modelos para grávidas.
Meu coração se apertou quando finalizei e lembrei-me da vida que estava deixando para
trás. Será que realmente tomei a melhor decisão?
Vou perder toda a gestação de mia frattela… Sinto uma lágrima escorrer por meu rosto
e esqueço-me de limpar.
Quando cheguei ao aeroporto de Palermo, um homem baixo e grisalho, por volta dos
cinquenta anos, me aguardava com a passagem aérea. Ali soube meu destino: Servilha.
Questionei sobre a sequência de viagens, mas o sujeito tão somente sabia informar que aquele
seria o primeiro lugar para onde iria.
Não tinha mais tempo para questionar, uma vez que o já estavam chamando para
embarque. Estava sem meu aparelho celular que Anitta se prontificou de levar juntamente com
meu carro para o prédio depois que nos despedimos.
Espero que ninguém a machuque por ter me ajudado. Anitta enfatizou que conhecia as
leis da famiglia e que seu primo interviria por ela. Eu devia me preocupar apenas comigo e meus
sonhos.
Teria uma vida nova sem as imposições antiquadas para as mulheres da Cosa Nostra.
Iria estudar e trabalhar como qualquer outra pessoa e quando surgisse alguém especial me
apaixonaria para dali então pensar em me casar.
A visão de Fausto sem camisa apoiado no batente da porta na minha noite de loucura
que invadi seu apartamento de madrugada me vem à mente. Ele poderia ser a pessoa especial…
Sim, poderia… se não fosse um membro da organização mais sangrenta da Sicília.
Dio Santo! Será que um dia os pesadelos cessariam? Na noite passada sonhei que estava
na cutelaria dentro do ringue e lá enfrentava outra mulher, de olhos escuros e cabelos longos no
mesmo tom. Ela usava uma máscara, mas vinha até mim com tanto furor que acabei mais me
defendendo do que atancando-a com a faca que segurava. O sonho terminou no ápice da luta,
quando a ragazza misteriosa afundou sua lâmina em cheio no meu peito.
Respiro fundo, seguindo meu caminho para fora dos portões de embarque. Minha visão
está turva pelo cansaço, porém consigo ver o nome ‘Sofia Durant’ escrito em letra bastão num
papelão.
Esse era meu novo nome: Sofia Petit Durant. Recebi o passaporte juntamente com a
passagem de ida. Achei que o sobrenome francês tenha sido sugestão de Anitta, que sabia sobre
Éloise Duffor e sua fama em ser uma estilista francesa.
Não importa. Eu gostava do nome Sofia, penso. Poderia sim recomeçar com este nome.
Caminho, cansada até o homem que segura a placa mal feita. Ele é corpulento e está
vestindo apenas uma camisa com uma jaqueta jeans desbotada. O outono revelava temperaturas
mais frias e hoje parecia estar em torno dos quinze graus Celsius.
— Hola! Soy Sofia Durant[154] — apresento-me em espanhol. O homem me encara,
analisando-me de cima abaixo. Não aparenta ser alguém gentil, mas fui tratada com gentileza por
pessoas que fazem coisas horríveis. Então, não deveria me preocupar com um simples motorista.
— !Venga![155] — diz secamente em espanhol. Sem amizades na Espanha? Tudo bem.
Consigo sobreviver.
Obedeço e caminho atrás do sujeito até estarmos nos guichês da recepção do aeroporto.
Bom… acho que aqui me separo do zangado.
— Você pode me dar a passagem. Posso seguir sozinha.
— O chefe disse para te levar até ele.
Chefe? Será que é o contato do Cássio aqui na Espanha? A situação parece suspeita,
mas convenhamos, estou fugindo de uma das máfias italianas mais temidas do mundo. E não
tenho dinheiro suficiente para uma próxima passagem de avião, então…
— Ele não te deu uma passagem aérea para meu próximo destino? Assim… em nome
de Sofia, hum? — Ergo a sobrancelha com um sorriso simpático.
— Não. — E recebo uma resposta curta e grossa. Continuamos saindo do aeroporto e
meu sexto sentido de conviver desde sempre com o perigo começa a apitar em minha cabeça. —
O Chefe vai te encaminhar para o próximo destino.
Está bem. Devo ter me preciptado. Quem vê cara não vê coração, não é mesmo?
Esse bruta-montes pode estar vivendo um dia de merda e vir me buscar talvez não
fizesse parte do seu cronograma. Luigi também ficava puto quando precisava me pegar em
algum lugar por conta das minhas escapadelas noturnas.
Enfim. Um milhão de possibilidades. Foda-se, grandão. Cara feia para mim é fome, e a
minha está tão feia quanto. Apresso o passo para alcançar o guia turístico mal humorado.
A noite fria de Servilha me dá as boas vindas com uma rajada de ar frio raspando em
minhas bochechas. Tremulo o corpo com o arrepio repentino.
Mais que depressa, meu gentil motorista arremessa minha bagagem de mãos no porta-
malas, entrando no veículo à frente. Corro para sentar logo no banco do carona antes que seja
deixada para trás, segurando firmemente a mochila em meu colo. Meus lápis de cor ficaram a
salvo da pancada que a mala sofreu.
O caminho até uma propriedade fora da cidade é feito em silêncio. Depois da recepção
no aeroporto, penso que mais falaria sozinha do que com um estranho. Não converse com
estranhos. A voz de mammina ressoa em minha mente.
Merda. O que ela diria se soubesse que entrei no carro de um?
Balanço a cabeça em negativa, não querendo pensar nos avisos constantes para minha
segurança. Claro que estaria segura na Sicília, pois vivia no covil das cobras com os piores
monstros.
— Suba — ouço o comando. Será que ele é de outro país e por isso fala o básico. O
chefe isso, o chefe aquilo… Se começasse a falar em Don, passaria a pensar diferente.
Antes que desça, ele agarra minha mochila, indicando com o olhar para deixá-la no
carro. Dou um leve puxão, negando. Mas o balançar da cabeça em negativa dele, com a
possibilidade em arrebentar a alça, me fazem desistir. Merda.
— Minha bagagem? — Tento de novo, seguindo o padrão do maluco. Quem sabe assim
ele passa a me entender melhor.
— Não é preciso. — Bufo, descontente.
A seguir, volto-me para a construção antiga, mas requintada, com uma escadaria
revestida de mármore polido, digna de tapete vermelho. Analiso com mais afinco a edificação,
com aproximadamente três andares. As paredes em tons terrosos destacavam tratar-se de uma
propriedade muito elegante no campo.
A entrada majestosa com portas de madeira maciça no tamanho de dois bruta-montes
assusta à primeira vista.
Como está semiaberta, continuo invadindo a residência do Chefe, observando a
decoração refinada que se mescla com a simplicidade rústica dos móveis.
— Señorita? — a voz trêmula de uma mulher idosa chama minha atenção. Ela está em
trajes de governanta simples e se apresenta com um menear de cabeça. — Por aqui. — Acato a
sugestão, sentindo uma familiaridade estranha. A mulher me lembra de uma de nossas antigas
funcionárias, mantendo o rosto sempre para o chão de modo submisso.
Não questiono, porque estou cansada demais para um interrogatório. O cansaço da
viagem batendo com força em meu corpo. Suspiro alto. Até que dormir em um dos muitos
quartos de hóspedes que devem existir neste lugar, não seria ruim antes de embarcar para o
Canadá.
Ela empurra uma porta, acenando para que entre e dando-me passagem. Assim que
ultrapasso o batente, ela fecha de súbito, o que me faz saltar com o susto.
E se aquela mulher fosse uma serviçal do conde Drácula, e sua função é trazer as
próximas refeições?
De imediato, levo uma das mãos em meu pescoço.
— A caçula Zanchetta em minha sala… — outra voz, agora máscula, soa indiferente,
me fazendo rodopiar em meu eixo para encontrá-la. Caspita! — Disseram que era uma moça
bonita. — Um homem dos seus trinta anos se aproxima lentamente como um felino. Dou passos
para trás por instinto. — Mas não é tanto assim.
Sua proximidade é tanta que passo a estudar suas feições. Ele possui uma beleza
peculiar, cabelos escuros lisos num corte que permite sua franja cair sobre um dos olhos, de
forma proposital na verdade. Consigo notar o tom esverdeado do olho que me encara curioso. As
roupas são de bom gosto, mas nada sofisticado, apenas o terno que estou habituada a ver dentre
os meus, e…
Terno… mansão… chefe?
Oddio! Existe alguma chance de estar na casa de algum inimigo da Cosa Nostra?
Sou tomada por um assombro, puxando o ar pela boca com um gritinho abafado.
— Ah… cara mia, não precisa ter medo de mim. — Ele estagna ao centro, enfiando as
mãos nos bolsos da calça de alfaiataria.
Sua parada me dá tempo de observar onde estou. A sala que me lembra do escritório de
papà, com as paredes revestidas de madeira, uma mesa de mogno à frente, e ao lado uma saleta
apartada no mesmo ambiente com uma namoradeira com detalhes barrocos, estofada de veludo
bordô e poltronas nas laterais, no mesmo estilo.
Ali dois outros homens, também de ternos escuros, estão sentados despreocupadamente.
— Que-quem é você? — sussurro a indagação. Ele dá dois passos e já está inclinado
sobre mim, fazendo-me curvar a coluna para trás.
— Alguém que viabilizou a sua fuga — diz, e no movimento de cabeça percebo uma
cicatriz que dilacera seu rosto sobre o outro olho. Este parece não ter cor definida, é no tom cinza
e… sem pupila.
Viabilizou sua fuga… É isso. Não conseguiria fugir da famiglia sem a ajuda de alguém
poderoso tanto quanto. Talvez seja alguém misericordioso que ajuda os desertores, penso.
Ele se afasta, tão devagar quanto se aproximou, dando-me as costas.
— Levem-na daqui e prossigam como as demais — ordena e os homens levantam-se
vindo até mim.
Provavelmente vou ser levada ao aeroporto agora. Está tudo bem, Michela. Não precisa
se desesperar. Você está acostumada a duvidar de todos por ter sido criada numa bolha de vidro.
Pessoas do bem existiam e esse homem era uma delas.
— Mas meu passaporte? Não posso embarcar sem ele.
— Você receberá seus pertences, cara mia. Agora facilite meu trabalho em levá-la para
longe da famiglia, va benne? — responde com um sorriso estranho, depois gesticula para que me
levem.
— Ma-mas… — Não consigo retrucar, pois sou carregada para fora. Os amigos do guia
turístico, que me aguarda lá fora, seguram meus braços, irritando-me profundamente pela
lembrança que possuo dos momentos nos quais tive minha vontade tolhida em casa. Merda. Só
mais algumas horas de viagem, e acabaria. — Eu sei andar — reclamo, empurrando um deles e
passando a caminhar na frente deles. Se fosse para retornar para o carro de onde vim, eu sabia
muito bem o caminho.
Desço as escadas de encontro ao grandalhão.
— O chefe mandou que a levassem para embarcar ainda hoje — um dos sabichões do
escritório informa ao meu motorista. — Ah… e dê à princesa o tratamento de sempre.
Finalmente… Será que agora seria tratada como alguém que pagou 100 mil euros por
uma viagem?
A resposta vem quando o neandertal à minha frente me joga por cima do ombro, abrindo
o porta-malas rapidamente e me atirando como um saco de batatas. Sinto a dureza da mala de
mão acerta minha coluna. Caralho.
Não tenho tempo de questionar, pois com uma habilidade absurda tenho meus punhos
amarrados e uma fita é colocada em minha boca. Tento chutar e me debater, mas sou empurrada
de volta ao cubículo do porta-malas vendo a escuridão aumentar conforme a tampa fecha.
Dio Santo! Não!
Fugi do purgatório para cair direto no inferno?
O arrepio de mais cedo invade meu peito com o medo por minha segurança. Quis fugir
por empatia e desejo de não mais ser cúmplice dos crimes da famiglia. No entanto, minha vida
nunca esteve em jogo.
Só que agora… Maddona mia, me ajude!
O veículo entra em movimento e minha cabeça cria todas as formas horríveis que
pudessem me matar. Não… não pode ser… tudo estava correndo como o esperado.
Algo deve estar errado. Muito errado.
Minhas costas doem com o sacolejar do carro que parece ter entrado numa estrada de
pedregulhos. Eu vou morrer. Certeza. O embarque deve ser direto para o necrotério.
Fecho os olhos e começo a rezer todas as orações que mammina me fez decorar para a
primeira eucaristia. Minutos parecem horas quando estamos trancafiadas no porta-malas escuro.
Então, sinto a velocidade diminuir até que para.
Dio mio, me perdoa por todos os meus pecados e me deixe entrar no céu. Prometo que
serei uma excelente ajudante aí em cima.
Volto às orações de costume, pedindo que mia mammina não sofra. Que ninguém da
minha família sofra.
Eles iriam sofrer de qualquer forma.
Grito comigo, sendo o som abafado por conta da fita em minha boca. Eu só queria uma
vida normal… choramingo internamente. Não queria um casamento forçado com alguém que
nem sequer me ama.
Fausto me via tão somente como uma obrigação e nada mais. Ele estava se divertindo
comigo. E eu… eu queria me apaixonar.
Eu estava me apaixonando por ele… A consciência beta que me motivou ainda mais
com essa viagem buzinha o óbvio. Tive tanto medo de sofrer como Francesca, e viver de
migalhas como Valentina, que fugir pareceu-me a melhor solução.
Tudo parecia tão certo. O apoio de Anitta, enfatizando a monstruosidade da famiglia, e
que meu noivo era incapaz de ter sentimentos, que fiquei cega.
Por que merda fui dar ouvidos a uma amiga que nunca fez parte do meu mundo como
uma damigella?
Eu estava completamente enfeitiçada.
De repente, minha visão é fuzilada pela claridade. Pisco algumas vezes até ser içada por
baixo do braço, ficando em pé. O bruta-montes me arrasta ao seu lado, guiado pela luz da
lanterna que quase me cegou.
Tento observar alguma coisa na esperança de ver alguém que possa me ajudar.
Impossível. Estamos caminhando por gramíneas rasteiras similares às que encontramos próximas
do mar na Sicília.
Há o som de buzinas abafadas e homens gritando, parecendo o cais em que papà e Luigi
trabalham no porto de Messina. Elevo a cabeça de imediato, e percebo que sou arrastada para a
zona de containers.
Viramos em uma fila que possuía um corredor estreito. Vou ser morta e jogada ao mar
como comida para os peixes.
É isso… o fim.
Assim que dobramos a esquina vejo uma fila de mulheres e crianças entrando em uma
das imensas caixas de aço. Alguém está na porta, dando um saco de plástico preto para cada uma
delas.
— Fila. — O troglodita volta a se comunicar por intermédio de uma única palavra.
Tendo em vista a pequena gentileza em não me matar, aproveito para gesticular,
erguendo os punhos para que desamarre. Ele bufa para o lado e puxa o laço, liberando-me. Estou
erguendo as mãos para liberar a boca, quando sou impedida pela mão que praticamente cobre
meu rosto.
— Fila ou morte. — Sou novamente informada das minhas opções e meu instinto de
sobrevivência opta pela primeira. Balanço a cabeça, dando a entender que iria cooperar. Ele puxa
de uma vez a fita adesiva, fornecendo gratuitamente uma depilação em meu bigode.
Passo a mão acima dos lábios, notando o quão hábil o infellice seria no salão que
mammina costumava me levar.
Sou gentilmente empurrada na direção que devo seguir. Um lampejo de esperança estala
em meu peito. Eu ainda estava seguindo viagem. Repenso se este não seria o único meio para a
famiglia não descobrir meu paradeiro.
Pego o saco preto ofertado, identificando a princípio uma manta. Frio não vou passar.
Respiro fundo, e encaro as consequências de minhas escolhas.
É… a viagem, aparentemente, não será de primeira classe.
FAUSTO MORETTO

Não sou do tipo exibicionista, mas no caminho para o banho, completamente nu, passo a
analisar meu reflexo no imenso espelho do banheiro da minha suíte. Viro o corpo para os lados,
até o tronco torcer e conseguir ver os músculos laterais das costas.
Uma cicatriz fina ultrapassa a cintura até a frente do abdômen, flexiono-o, analisando a
pele esticar conforme os gomos ficam mais visíveis pela contração da musculatura. Esta foi
presente de Fabrizio Bonanno. Muito pouco pela forma com a qual entreguei seu corpo de volta
para a ‘Ndrangheta.
Giulio sabia que a trégua estava por um fio. E mesmo tendo respeitado todas as regras
exigidas pelo desafio, ainda lidaria no futuro com a vontade de vingança que costumava ser uma
característica dos nossos rivais.
Deslizo o indicador, acompanhando outros desenhos, lembretes do mundo obscuro no
qual fui criado.
As mulheres que me viram assim admiraram meu corpo, independemente das marcas.
Será que Michela se importaria com elas?
Cazzo! Chacoalho a cabeça no instante em que o pensamento se faz presente. Nunca me
senti inseguro antes, por que isso agora?
Esse dia está muito estranho. Tive sensações diferentes ouvindo os relatos dos
pescadores, mais uma vez, sobre as crianças desaparecidas. Fiquei com a garganta seca e precisei
lidar com uma palpitação incômoda ao imaginar como seria desconhecer o paradeiro do seu
filho.
Estou com as emoções bagunçadas nos últimos dias.
Muito provável que a conversa de ontem com Francesca tenha culpa sobre isso. O
assunto sobre o anel de noivado ficou batento em minha mente como uma britadeira.
Michela é uma ragazza que me deixa constantemente em dúvida. Nunca sei se estou
agindo da melhor forma. Dentro da logística entre ação e consequência, ela foge de todos os
padrões que conheço.
Pensei que estávamos nos acertando até que seu tratamento indiferente na saída da
faculdade demonstrou o contrário.
Assim, busquei ocupar minha mente com o barulho do cais que costumava ser alto o
suficiente para silenciar minha mente. Contudo, fui abordado com uma enxurrada de perguntas
sobre a investigação das crianças desaparecidas.
O pai da bambina mais velha foi quem surgiu e passou a fazer uma indagação atrás da
outra. O homem informou que sua moglie está desolada. Não sabe mais o que fazer para animá-
la, e quando soube da minha visita ao cais, correu para saber se haviam notícias.
Infelizmente, o que consegui eram fragmentos de informações.
A pessoa que enviava os e-mails para Fabrizio foi esperta o suficiente para escolher os
horários de pico. Então, a câmera da rua não adiantou de nada, pois eram várias pessoas entrando
e saindo.
Quem ainda usava de estabelecimentos para enviar e-mails?
Quase ninguém. Mas o lugar era ponto de encontro de gamers. Por isso, precisei acessar
o sistema precário de segurança interno. O dono da Lan House não havia investido nesse setor,
pois as imagens obtidas nas filmagens eram de baixa qualidade.
Identifiquei apenas o boné branco de aba preta que cobria o rosto do mesmo sujeito. Ele
sentava com frequência no canto, de costas para a câmera. Parecia um frequentador assíduo e
sempre se sentava no lugar mais escondido.
No entanto, não foi isso que chamou minha atenção, mas o documento falso usado no
cadastro. Pedi para um soldato seguir a pista de manhã. Ele ainda não retornou. Poderia ser mera
coincidência…
Bom… já passamos mais de um dia em campana em casos semelhantes. O soldato deve
estar observando de perto para trazer algo de concreto.
Libero uma lufada de ar, exausto, e caminho para o dentro do box, abrindo a ducha em
seguida. Abaixo a cabeça, sentindo a água escoar por minha nuca. A sensação de relaxamento
me ajuda a pensar.
As possibilidades num investigação neste porte são inúmeras. O sujeito de boné poderia
ser um dos muitos gamers que usavam as máquinas para jogar e não apenas para enviar e-mails.
Até porque, Fabrizio estava morto há algum tempo e o sujeito continuava a frequentar o
lugar. E se…?
Se o calabrês não fosse o único a trocar mensagens com o figlio de puttana, que parecia
interessado em vender informações sobre as pistas dos infantes sequestrados? Esse era o
conteúdo dos e-mails que consegui hackear.
Minutos depois, estou entrando em meu quarto com uma toalha preta enrolada na
cintura, secando os cabelos com o sacolejar dos dedos nos fios do topo da cabeça. Vou até a
mesinha de cabeceira, auferindo ter passado vinte e quatro horas da conversa que tive com
Francesca.
Diante da correria em que me enfiei, participando do recebimento de merdorias
transportadas pela frota que atracou à tarde em nosso porto, deixei de lado a rotina em espiar o
retorno da faculdade de meu Colibrì.
Abro o aplicativo, selecionando a câmera alocada em sua porta de entrada, mas ela
devia estar dentro do apartamento, desenhando algum novo modelo de roupa.
Para satisfazer minha necessidade em vê-la, me socorro das redes sociais. As damigellas
podiam ter conta desde que privadas. Eu fiz questão de enviar uma solicitação, aguardando seu
aceite, após sua mudança para Palermo. Eu era seu noivo, afinal. Não que isso me impedisse de
qualquer modo.
Havia um limite para meus olhos e ouvidos. Um deles era manter a privacidade das
pessoas quanto às suas mensagens pessoais. A quebra de sigilo era feita quando existiam indícios
para sua necessidade.
Arrasto para cima, vendo as últimas fotos que postou ao lado de Francesca e Valentina.
Presto mais atenção em uma na qual tira em frente ao espelho, com o vestido que usou para a
festa do Imperium.
Minha boca saliva com a visão do decote profundo que aparecia através do tule.
Aumento a imagem sobre o vale dos seios, expostos discretamente. Ter tirado aquele vestido sem
me afundar nela, prova o quanto quero entrar não apenas em sua boceta doce, mas também em
seu coração.
Cazzo! O excesso de sentimentalismo estava me deixando nervoso e inseguro. Era
isso…
A raiva que senti por conta da mentira que gerou nosso noivado era por ter sido tirado
de mim a escolha em encontrar uma possível mulher por quem realmente pudesse me apaixonar.
E no final… fui escolhido.

— Bambola! Bambola, espere! — Ouço mio fratello esbravejar, o som aumentando


gradativamente.
— Pode ter acontecido algo, Giulio. Não dá pra esperar.
Quando abro os olhos ainda estou no escuro do meu quarto. Lembro-me apenas de
vestir uma cueca e me deitar, apagando a luz, que não permanece neste estado por muito tempo.
— Ah… não dá para falar sem acender as luzes? — reclamo, jogando um braço sobre os
olhos. — Não sou de acordar tarde. Mas passei horas acordado, olhando as fotos da minha noiva.
— Não dá, Fausto. Eu não sou coruja para enxergar no escuro e já passa das dez da
manhã — Francesca responde num tom agressivo que geralmente é dirigido apenas a Giulio.
Ergo o tronco, acomodando-me de modo a escorar minhas costas na cabeceira da cama.
Sinto minha calça de moleton ser arremessa para que eu vista.
— Anda logo, é urgente — mia cognata soa num misto de irritação e medo.
— Amore mio, você precisa se acalmar, Paolo já começou as buscas.
Buscas? Meu peito se contrai dolorosamente de um modo que nunca senti antes. Em um
gesto rápido, coloco a calça, saltando da cama.
— Quem desapareceu? — indago, vestindo a camiseta disposta na poltrona de leitura do
quarto.
— Michela, Cazzo. Mia frattela! — Francesca entoa a voz mais alto, gesticulando com
os braços abertos, aflita.
— Você disse que ela parou de responder agora de manhã. Calma. Pode estar tudo bem.
— Giulio conduz sua esposa, para fora do meu quarto e me olha sério por cima do ombro,
indicando que não, não estava nada bem.
Passo a frente do casal, indo direto para meu QG. Sento-me na cadeira, puxando o
assento para frente e digito freneticamente no teclado. Algumas caixas de programas começam a
surgir, conforme meus comandos.
As telas que nunca desligam parecem indicar todos os lugares menos aquele que
procuro, que é qualquer local onde meu Colibrì esteja.
Faria de uma vez todas as opções de busca para identificar possíveis destinos. A
primeira tela indica a localização de seu celular. Clico para obter a imagem do satélite. Esta
converge na tela como um mapa, aumentando gradativavemente até ser possível visualizar a
avenida próxima a faculdade, apontando localização de uma lixeira.
Deslizo a mão sobre o rosto, criando diversas versões nas quais Michela estivesse
alguns andares abaixo em segurança.
— Você disse que ela respondeu suas mensagens, Francesca. Que horas ela parou de
responder? — Não quero soar agressivo, mas o fato do meu Colibrì estar há mais tempo
desaparecida transforma a calmaria em vendaval.
— Ontem… veja. — Ela me entrega o celular e há uma quantidade de textos pessoais.

“Como você está? Melhorou?”

Michela: “Estou melhor. Só preciso descansar mais um


pouco.”

“Quer que leve um chá?”

Michela: “Já tomei, grazie. Está tudo bem. Fique


tranquila.”

Essas são mensagens trocadas anteontem. No dia em que estava com o fabutto de Marco
Roccati na cutelaria. A sequência de textos se segue, que vão de ontem pela manhã até hoje cedo.

Michela: “Não vou à aula hoje.”

“Por quê? Não melhorou?”

Michela: “Acho que peguei uma virose, frattela. Não vem


aqui não, va benne?”
“Se não melhorou eu vou sim. Mammina me mata se não
cuidar de você?”

Michela: “E mammina me mata se você pegar virose


grávida!”

“Va benne… Me mande fotos para eu ver que está tudo


bem.”

Na sequência, há algumas fotos de Michela deitada na cama, com seu caderno de


desenho visto de cima.

Michela: “Estou bem! Não se preocupe.”

Tempo depois, Francesca ainda insistiu para ver a irmã, mas ela enviou mensagens
dispensando-a, enfatizando sobre os sintomas da virose e o que acarretaria à uma gestante no
início da gravidez. Então, as últimas mensagens sem respostas:

“Está atrasada de novo, frattela?”


“Ande, Chela! Vou perder a aula por sua causa!”

— Ela não respondia. Subi até seu apartamento e ela não antedeu a porta. Eu não tinha a
chave, porque ela dizia que a campanhia precisava de serventia — Francesca declara,
encolhendo-se no sofá, com as mãos unidas entre as pernas. Giulio acaricia suas costas.
— Tive que arrombar — Giulio revela. — Michela não estava lá.
— Mas todas as suas coisas estão. Suas roupas, seus desenhos, o MacBook… — mia
cognata enfatiza, em seguida cobre o rosto com as duas mãos, deixando o desespero escorrer em
lágrimas.
O chão se desfez sob meus pés, e o ar entrando em meus pulmões tornou-se denso,
como se eu estivesse sufocando lentamente. Minha mente gira em um turbilhão de pensamentos,
incapaz de aceitar a realidade.
— Quando foi a última vez que realmente esteve com Michela, Francesca? —
questiono, para saber por onde poderia começar.
— Anteontem. Na faculdade — fala em meio às lágrimas. — Ela passou mal, lembra?
— Lembro… — Angústia toma conta de mim, enchendo-me de uma sensação de
impotência avassaladora. As pistas se encaixavam, fazendo sentido uma a uma.
Ainda precisava da confirmação para as pontas soltas deslizarem, desfazendo o
emaranhado de suposições. Michela podia ter fugido… ou pior, estar sendo chantageada até
sumirem com o corpo. Não quero pensar na última opção.
Novamente estava confuso no quesito em entender as circunstâncias sobre o
desaparecimento da ragazza com PhD em embaralhar minhas emoções.
Por que Michela fugiria? Seria por sentir tanta repugnância à ideia de se casar comigo?
Todas as vezes que consegui um momento a sós com ela, seu corpo se derreteu em meus
braços. Sabia como seduzir uma mulher. E agora que finalmente identifiquei meus sentimentos,
faria de tudo para conquistá-la. A atração entre nós é tão ardente que chegava a esquentar a
atmosfera ao nosso redor.
Eu pensei que… não sei o que pensei.
O choramingo de Francesca me tira do torpor de autoflagelação sentimental.
— Per favore, Fausto… per favore… encontre mia frattela. Encontre-a. Ela é maluca e
tem o hábito de fazer péssimas escolhas.
Escolhas… Mio Colibrì havia me escolhido por algum motivo. Ela podia não ter certeza
quando mencionou meu nome na mentira que criou, tentando se safar de um noivado, mas foi
meu nome que saiu de seus lábios.
Então, lembro-me dos detalhes que o turbilhão de emoções passou a me cegar. A
afirmação sobre minha noiva estar com a carteira de clientes de Anitta, indicava-a como suspeita
nas duas vertentes, tanto como ajudante da fuga ou como chantagista.
Cada segundo sem respostas é aterrorizante de qualquer forma.
— Eu vou encontrá-la — digo num volume grave e baixo. Ela iria olhar em meus olhos
para afirmar que não sente nada por mim. Michela teria que parecer extremamente convincente
para me fazer desistir de conquistá-la.
Se existisse um mínimo de chance para nós, iria lutar.
— Vamos encontrá-la, Bambola — Giulio conforta sua esposa, abraçando-a.
— Nem que tenha que ir no fim do mundo. Eu juro — faço a promessa para minha
cunhada, no entanto, é para mim também.
Não vou descansar até lhe encontrar, Colibrì. Onde quer que esteja, espere por mim.
MICHELA ZANCHETTA

Estou sentada em silêncio há algumas horas, ouvindo os burburinhos ora em italiano,


ora em línguas estrangeiras. Acredito que este deve ter sido o meu recorde em ficar calada.
Ainda estou assustada e recapitulando em minha mente cada momento que passei ao lado de
Anitta.
É absurda a ideia de que ela soubesse a respeito do meio de transporte no qual fossem
me colocar. Não… Ela teria me dito. Afinal, somos amigas.
Meu estômago faz um barulho alto, indicando a quanto tempo estou sem uma refeição.
Tento visualizar ao meu redor com a pouca iluminação que entra numa fissura no aço do
container. Deduzi que estamos no topo da pilha de containers do navio cargueiro, pois há certa
iluminação que vem diretamente da cabine do comandante.
— Está com fome ragazza? — Uma voz feminina suave cochicha ao meu lado. Não
havia notado que tinha alguém tão próximo. — Tome. É um pedaço de pão que consegui trazer
escondido.
Trazer escondido… E a forma com a qual fui enfiada na caixa de metal berra aos quatro
ventos que estou numa enrascada.
— Você é italiana?
— Uh-hum… — murmura, dando a entender que está comendo.
— Sabe para onde estamos indo?
— Acho que sei — diz indiferente, calma demais. Devo estar me preocupando à toa. Se
essa ragazza sabe para onde estamos indo e parece tão tranquila… Não deve ser o que estou
pensando. Não…
Esse é apenas o meio que preciso enfrentar para chegar ao meu destino. Ninguém disse
que fugir da famiglia seria fácil. Viajar num container é o preço da minha liberdade.
— Você sabe também quanto tempo de viagem? — arrisco.
— Seis dias e meio. Se ouvi direito, o chefe está nos mandando para o lugar em que me
encontrou na primeira vez.
— E esse lugar seria?
— Asilá, em Marrocos.
— Marrocos? — Soei esganiçada, o pão acabou de entrar no buraco errado. Caspita! Se
não tivesse engasgado, teria gritado.
Dou soquinhos no peito, tossindo para ensinar a rota certa ao carboidrato atrevido.
— Você disse que é italiana… o que fazia tão longe de casa em… Marrocos?
— Ah… meu pai me vendeu — responde tranquilamente.
— O quê? — Desta vez não consigo, e sou aclama com um xiado vindo de todos os
lados em línguas distintas. No entanto, consegui decifrar que era por conta de algumas crianças
que haviam dormido.
— Foi há muito tempo — cochicha, justificando sua indiferença. — E não demorou
muito para o Chefe me encontrar e me levar para trabalhar em sua casa.
— Você trabalha há muito tempo para o tal Chefe?
— 10 anos.
— E… — fico com medo de falar em voz alta a pergunta seguinte. — O que você fazia
em Marrocos?
— Eu era pequena… quem me comprou tinha uma rede de boates, acho. Me colocaram
para limpar os banheiros. Nada demais.
— Boates? Tipo danceterias?
Ela gargalha e logo é repreendida por outra onda de xiados também.
— Tipo prostíbulos — responde.
Minha respiração fica descompassada e sinto-me hiperventilando. Dio Santo! Se ela
estiver certa… Maddona…
O ar fica cada vez mais rarefeito.
Não… Não pode ser.
Eu… eu paguei 100 mil euros. Eu…
Merda! Como eu paguei este valor se nunca nem ao menos saquei isso?
Oddio! Anitta não fez…
Não… Ela não pode ter feito algo tão terrível assim comigo.
— O que foi? — A ragazza desconhecida começa a afagar minhas costas na tentativa de
me acalmar. — Fique tranquila. Você é bonita. Vão te colocar para atender pessoas da elite.
Inspiro o ar com força e não vem.
Eu fui… fui vendida? É isso?
Bato a parte detrás na parede de aço na qual estou encostada, uma, duas, três vezes.
Como fui inocente…
E minha amiga… como ela?
Amiga? Que raios de amiga vende alguém assim?
E ainda por cima me fez traficar Oásis para ela lucrar ainda mais às minhas custas?
Sinto a região do couro cabeludo ficar dormente pelo excesso de pancadas que não
consigo parar de dar, socando minha nuca no aço. Desta vez, não me importo com a
recriminação vinda das pessoas ao meu redor.
Afinal, o que elas fazem aqui?
E por que entraram de bom grado neste lugar?
Reduzo a velocidade das batidas de cabeça até cessar, sentindo meu rosto encharcado
pelas lágrimas que desceram impiedosamente.
Não deveria chorar… Eu não mereço chorar.
— Calma… calma… — A ragazza me envolve nos braços e começa a embalar meu
corpo.
— Você disse que o chefe te encontrou, mas você está sendo devolvida? — não
contenho a pergunta.
— Ele… ele… é complicado.
— Acredite, minha vida não tem sido nada simples.
— Ele se apaixonou por mim — revela.
— Esse é o motivo para te mandar de volta a um prostíbulo?
— Ele não quer amar ninguém, entende?
— Ham… não.
— Eu disse que era complicado.
— Tudo bem. É complicado. Mas você aparenta estar muito calma para alguém que não
sabe se vai limpar urina de pervertidos, ou se vai ter que dormir com eles.
— É que… — Ela suspira audivelmente. — Ele virá me buscar. Sei disso. Ele é bom.
Um riso sem humor me escapa sem querer. Não conhecia o homem que me enviou para
esse destino, mas com certeza a benevolência passou longe dele.
— Como ele chama? — Não tinha me atentado que até agora só ouvi a todos ao seu
redor chamá-lo de chefe.
— Não posso dizer. Ele não gosta.
— Ele não está aqui.
— Não posso… — ela hesita. — É para segurança dele, e… eu o amo.
Quando estudei sobre a bomba de Yroshima e Nagasaki nunca entendi o motivo para
arrasarem duas cidades de uma vez com bombas nucleares. Agora sei… é para destruir a vontade
de lutar. O interior fica tão quebrado, que batalhar contra o inimigo torna-se impossível.
— Bom… — Limpo a garganta, empurrando minha decepção por ter ao lado uma
ragazza quebrada há anos. Eu precisaria de aliados para conseguir escapar de um triste destino.
— E o seu nome, ragazza? Qual é?
— Belinda. Belinda Rossi.
— Prazer, Belinda Rossi. Eu me chamo Michela Zanchetta. — Busco sua mão no
escuro para dar-lhe um aperto de cumprimento.
O nome falso não serviu para seu propósito e quem sabe o real me ajudasse de algum
modo. Enfim. Esperança é a última que morre e a minha precisava aprender a nadar contra a
maré, literalmente.
Seis dias depois, aprendi muitas coisas. A primeira delas foi controlar a ânsia de vômito
por conta de diversos odores que o corpo humano produz, bem como o fato de que consigo viver
de migalhas, desde que haja um gole d’água por dia.
Descobrimos depois de dois dias, que um dos recipientes de latão no interior do
container tinha água. Não faço a mínima ideia se era ou não potável, apenas que Belinda sabia
conduzir a viagem com experiência e determinou uma quantidade certa para cada tripulante.
Sua imposição rigorosa no meio de desesperados dava a esperança de que, ao acatar sua
ordem, sobreviveríamos. Juntos.
No instante que abriram o container e pudemos ver a luz do dia, meus olhos arderam
como se milhares de cristais tivessem sido colocados em minhas pálpebras.
Separaram nosso grupo em três partes, onde em um, estavam apenas crianças, noutro
mulheres mais velhas, e eu com outras três garotas mais jovens, dentre elas Belinda, estávamos
em outro.
Na sequência, cada um dos grupos seguiu para caminhos diferentes, levado por
caminhões estilo do exército, com bancos nas carrocerias.
Os homens que lidavam conosco agiam de forma rotineira, indicando não ser a primeira
vez, e infelizmente, não a última, que faziam isso.
Estou lutando para permanecer firme, segurando o banco feito de tábua áspera, sem me
importar com as farpas que furam minhas mãos. Minha mente parece ter entrado em um estado
catatônico, pois as imagens captadas estão embaçadas como um sonho distante.
Adentramos ao centro da cidade, onde vejo outros caminhões que parecem um meio de
locomoção comum por aqui.
Assim que chegamos a um hotel aparentemente de luxo, somos guiadas para entrar
numa passagem que parecia um alçapão ao lado da entrada de funcionários.
Ninguém nos encara por muito tempo. É como se houvesse um aviso estampado em
nossas testas e todos sabiam como viemos e o motivo que nos trouxe até aqui. E, o pior de tudo,
não se importavam.
Eu, em minha inocência, tive empatia com as vítimas de uma organização criminosa,
que matavam pessoas, abominava o tráfico de pessoas. E olhe só a ironia: tornei-me vítima do
crime.
A Cosa Nostra que conhecia matava com requintes de crueldade por rivalidade, e pelo
que sabia, não haviam inocentes. Agora, as pessoas que me sequestraram trouxeram crianças.
Algumas choravam com saudade dos pais. A língua podia ser estrangeira, mas papà e mammina
não alteravam tanto de um dialeto para outro.
Minhas pernas se moviam seguindo o rumo indicado sem lembrar que havia um cérebro
acima delas. Seis dias vivendo de migalhas pode deixar qualquer um atordoado. Quanto mais ao
choque de realidade por ter sido enganada.
Não sabia mais de nada.
— ¡Qué hermosa eres, niña![156] — Uma mulher robusta por volta dos cinquenta anos,
com roupas em cores vivas e lábios vermelhos, segura meu rosto, virando-o de um lado para o
outro. Ela fala em espanhol, misturando algumas palavras em arábe. — Um bom banho, roupas
novas e ficará como uma princesa. — Consigo entender.
— Madame? — Um dos homens, que pelo visto, seguia o padrão do linguajar rebuscada
da Signora, entrega-lhe um bilhete, dando-lhe uma breve reverência e saindo sem lhe dar as
costas, virando apenas quando passa a porta.
A madame para com a inspeção e abre o bilhete. Em seguida, me encara extremamente
sorridente.
— No creo… Há meses não leiloamos uma virgem! — proclama para todos.
Minhas companheiras seguravam os restos dos sacos pretos que recebemos no começo
da viagem com os olhos tão nublados quanto os meus. Porém, ao final da frase da mulher, todas
me encaram com pesar.
Oddio! As tradições da Cosa Nostra me deixaram ainda mais valiosa. Merda.
FAUSTO MORETTO

A movimentação constante na mansão Moretto era parecida com os dias de grandes


festas da famiglia.
Há algumas semanas passo dia e noite num dos imensos cômodos que transformei com
tecnologias avançadas para investigação. Sem contar que meu apartamento tornou-se pequeno
para a quantidade de pessoas que entravam e saíam trazendo nomes e fragmentos de
informações.
Montei uma equipe de pessoas especializadas em buscas de desaparecidos. Eu precisava
de ajuda para olhar o máximo de lugares possíveis e meu apartamento não acomodaria os
equipamentos, muito menos os mais novos integrantes da Cosa Nostra.
Relutei em aceitar a derrota nos primeiros dias sem qualquer notícia de Michela. Mas o
desespero aumentava a cada minuto sem informação, ao som incômodo dos choros constantes da
mãe, irmã e prima da minha noiva perdida.
O clã Zanchetta havia praticamente se mudado para Palermo no dia em que
comunicamos o desaparecimento de Michela.
Enrico deixou o porto de Messina a cargo de seu irmão Demetrio e o filho mais velho
Dario. Mesmo que todos quisessem participar das buscas, o cabo era uma região muito
importante para ficar desprotegida. Ademais, Michela poderia retornar para lá. Manter pessoas
de confiança era essencial.
Meus futuros sogros estavam acomodados em um dos quartos na cobertura de Giulio,
enquanto Luigi e Alessio se acomodaram na mansão. Eu tinha meu quarto no andar superior,
mas devo ter ido até lá apenas quando Signora Isabel me obrigou para que tomasse um banho.
Ela deixou claro que fedia, e a torção de narizes ao meu redor incentivaram minha decisão.
Confesso que se não fosse pela nossa governanta cuidar de mim, nem sequer me
lembraria de comer. Não conseguia sair de frente das telas de computador. A busca por meu
Colibrì era o mesmo que procurar uma agulha no palheiro.
Pensei que quando colocasse as mãos sobre sua amiga Anitta, minhas respostas seriam
sanadas e sua localização revelada. Todavia, primeiro teríamos que encontrá-la. A ragazza
também estava desaparecida.
O painel feito à minha frente, com linhas interligando os últimos lugares nos quais
Michela foi vista, não indica qualquer anormalidade em sua rotina. A cafeteria favorita próxima
à faculdade, a loja na qual costumava comprar materiais de papelaria, o shopping e tão logo
nosso prédio.
— Aqui, Sottocapo, eles chegaram — o soldato que fugia ao padrão da famiglia usando
óculos, moleton escuro de capuz, me chama. Ele aponta a tela que ocupa toda a parede com
quadrantes de imagens de pessoas indo e vindo.
— Amplie — determino, vendo Alessio e Luigi apontarem nos portões do aeroporto,
com uma figura feminina entre os dois. — Finalmente.
Michela aprendeu desde nova a burlar as câmeras de segurança. A prática leva a
perfeição e meu Colibrì usou de sua habilidade para despistar qualquer filmagem do aeroporto.
Havia a possibilidade de seu início de viagem ter começado de carro ou ônibus.
Vasculhei todas as possibilidades, não encontrando similaridade nos rostos captados nos
vídeos.
Então, a primeira opção tornou-se a única: precisávamos encontrar a amiga, que
assumiu seu lugar no dia em que Paolo arrastou Marco até a cutelaria. Logo que constatamos seu
desaparecimento, pensei que ela pudesse estar em algum canto com Michela, porém Anitta Catto
podia ter muitas habilidades, só que esconder seu rosto o tempo todo das câmeras de seguranças
não era uma delas.
Ela estava escondida em algum bueiro nos quinze dias seguintes ao sumiço de minha
noiva. E ao embarcar para Berlim, não pensou que estávamos de olho em todas as câmeras do
aeroporto, incluindo a entrada e saída dos banheiros. Foi num mero movimento para ajeitar o
cabelo que captamos seu rosto.
Luigi e Alessio embarcaram no dia seguinte atrás dela. Como não foi fácil encontrá-la
por lá também, tive certeza de que não sabíamos muitas coisas sobre a ragazza.
— Eles estão a caminho, fratello — Max informa, após retirar o celular do ouvido e
enfiá-lo no bolso da calça jeans. — Simona também. Per favore, lembre-se que ela está do nosso
lado, va benne?
— Ela me fez perder tempo — devolvo, cruzando os braços sobre o peito.
— Ela apresentou opções para a busca. Não encontrar Michela em nenhuma delas não
foi sua culpa.
Viro a cadeira usando dos pés giratórios até fitar meu irmão.
— Sua namorada me usou para fazer o serviço dela, Max — grasno, irritado por me
sentir frustrado quando segui os direcionamentos que Simona apresentou como pontos de
partida. Em todos os lugares encontrei sim pessoas sequestradas e vítimas do tráfico, porém,
nenhuma delas era meu Colibrì.
— Você fez uma boa ação para o universo, fratello. Tenha certeza de que estamos
muitos passos à frente nas investigações do que antes.
— Explique.
— Sabemos onde Michela não está. — Bufo o ar com um riso sarcástico, não me dando
ao trabalho de responder. E com isso, Max entende que pode falar novamente. — Não a mate, va
benne?
— Está se referindo à sua namorada ou Anitta Catto?
— A última… Quer dizer, às duas… não queira matar o amor da vida do tuo fratello
favorito — ele emenda de pronto, querendo manter o nível habitual de gracinhas.
— Giulio é meu irmão favorito — devolvo secamente.
— Obrigado. — Mio fratello mais velho agradece, adentrando no recinto. — Mas é
mentira.
Max não diz nada, apenas aponta o dedo para ele, me fitando com as sobrancelhas
erguidas para indicar que até mesmo Giulio sabia. Libero uma lufada de ar, mais entediado do
que uma lesma numa competição de caracóis. Desvio a atenção de ambos, concentrando-me em
aguardar nossa visita ilustre.
— Francesca está bem? — Nosso caçula pergunta, seguindo Giulio que caminha até
estar diante do quadro com o emaranhado de linhas.
— O médico disse que o sangramento foi pequeno — ele responde, puxando com mais
força do que necessário uma das fotos que compunham o mural.
Minha cunhada parecia forte amparando sua mammina que estava inconsolável. Porém,
seu corpo demonstrou o nível de estresse através do sangramento que teve há dois dias. Se antes
Giulio mal a deixava andar, agora, então…
O medo de meu irmão aumentou com o resultado do ultrassom que identificou não
apenas um bebê, mas três. A fertilização tinha sido tão bem sucedida, que os Moretto ganhariam
herdeiros em triplo.
Foi quando pude rever um pouco do lindo sorriso de minha cognata ao dizer sobre meus
sobrinhos. Podiam ser três meninos, três meninas, ou um pouco dos dois. Infelizmente, a
sequência da sua fala foi um lágrima silenciosamente pela ausência de Michela.
Giulio me fez prometer como seu Don que traria a ragazza de volta para a famiglia. Eu
a traria de volta a qualquer custo.
O celular de Giulio toca e ele atende, balançando levemente a cabeça, conforme
murmura em concordância.
— Entraram na estufa — ele diz, assim que desliga.
Alguns soldados queriam levá-la para a cutelaria, mas tínhamos um código de honra a
zelar, e como herdeiros do clã Moretto, precisávamos dar o exemplo. Nenhuma mulher tinha
sido interrogada em meio às nossas ferramentas de artesãos. Não começaria agora.
A punição para mulheres em nosso meio costumava ser nos porões das boates. No
entanto, não queria passar muito tempo longe das telas em minha frente. Olhar através das
janelas que continham boa parte dos portões de embarque da Itália supria a necessidade da
procura.
Uma ilusão, eu sei…
— Vamos. — Giulio caminha para fora com olhar assassino. Max deveria ter pedido
pela vida de Anitta não apenas para mim, penso.
No instante em que entramos no imenso galpão de vidro, repleto de fileiras das mais
diversas plantas, ouvimos um gemido feminino de dor, seguida de uma gargalhada.
— Vadia! — Luigi berra. — Ela gostava de você.
— E eu gostava dela — a mulher replica, caída no chão. — Ainda mais quando minha
conta triplicou com sua ajuda — diz debochada.
O irmão de Michela deve ter se segurado o voo inteiro para não matar a figlia de una
puttana. Alessio parece tão raivoso quanto Luigi para avançar sobre ela.
— Basta! Ela não vai falar se estiver morta, stronzo! — Giulio dá um passo até eles,
revelando nossa chegada.
— O trio Moretto… — Anitta cospe sangue para o lado. — Finalmente a realeza da
Cosa Nostra veio brincar.
— Onde está Michela? — Giulio indaga, curvando o corpo tão somente para erguer a
mulher pelo pescoço.
— Ou o quê? Vai me matar como matou meu irmão?
Ele a arremessa contra os suportes que continham alguns vasos de barro, que não
resistem à queda espatifando-se no chão.
— Iiih… Signora Isabel não vai gostar disso — Max comenta, emitindo alguns “tsc,
tsc…”. — Eu disse para usar a boate.
— Não temos tempo pra isso. — Agora sou eu que avanço, erguendo-a pelos cabelos e
arqueando suas costas para trás. — Diga de uma vez, onde ela está?
A puttana sorri com os dentes vermelhos, parecendo um demônio se divertindo às
nossas custas.
— Ela está onde me pediu para ir… bem longe de vocês. — A revelação da suspeita se
concretizando a cada palavra. Libero-a por instinto. — Michela implorou para ajudá-la a fugir.
Ela viu o que vocês são… monstros.
— Você é o monstro. Mentiu para minha frattela, para enganá-la. Por acaso contou
alguma vez que você era chefe de uma gangue, maleddeta? Contou? — Luigi se descontrola,
revelando nosso conhecimento sobre sua real identidade.
Algo que ela não escondeu em momento algum. No entanto, seu irmão era tão
insignificante que quando ouvi pela primeira vez o sobrenome da nova amiga de Michela, não
relacionei com um dos traidores que morreram na cutelaria.
— Sua irmã sabia que fazia parte de uma… só não fazia ideia que a comandava. Para
ela, meu primo Cássio era o sucessor de Ulisses.
Este é o nome do irmão, Ulisses Catto. Um imbecil que vendeu informações sobre
nossos negócios, fazendo com que perdêssemos alguns carregamentos no passado.
— Ela sempre soube quem éramos. Já você… — Alessio é quem contesta.
— Sabia? É mesmo? — Ela senta-se, encarando-nos um a um. — Não foi o que pareceu
quando voltamos de Villa San Giovanni. — Passamos a nos encarar uns aos outros sem entender.
— Ah… vocês não sabiam dessa, não é? — A vadia ri. — Assistimos de camarote quando você
enfiou uma faca nos olhos daquele calabrês. Confesso que gostaria de ficar até o final, mas
Michela estava quase vomitando quando decepou o terceiro dedo do homem.
— Que porra você está dizendo? — Acabou erguendo-a com uma das mãos e
chacoalhando-a como uma marionete sem cordas.
— Ela sabia que algumas das damigelle assistiam às lutas na cutelaria. Pediu para que a
acompanhasse … Queria me vingar e vocês me deram a principessa de bandeja.
Michela me viu na cutelaria… Ela assistiu minha versão mais cruel que jamais queria
que conhecesse. Apenas algumas mulheres podem assistir ao embate da cutelaria e sempre são
autorizadas por seus responsáveis. Enrico Zanchetta não permitiria que uma alma delicada como
meu Colibrì visse a crueldade na qual a famiglia está alicerçada.
Eu jamais permitiria… Ela é pura, ingênua… A doçura com a qual compensamos o
amargor com o qual nossas almas lidam diariamente.
Ah… meu Colibrì…
— Você está mentindo! — descontrolo-me.
— Não… não estou. — Ela ri. — Michela sentia-se responsável e com medo por você
estar em perigo por causa dela. — Ela ri ainda mais alto. — Uma idiota. A burra estava tão
atordoada, não querendo acreditar no que viu lá dentro, que foi muito fácil manipulá-la. Vocês
protegeram tanto a principessa de vocês que ela esqueceu que era guardada não por príncipes,
mas por dragões ferozes.
— Cale a boca! — Atiro seu corpo com força ao solo e Max me segura, empurrando-me
para trás.
— Não suja suas mãos com uma vadia, fratello. Ela não merece. — Fomos criados a
tratar crianças e mulheres com respeito, educados para cuidar de suas formas vulneráveis. Manter
a violência longe de suas figuras era a salvação encontrada para diminuir os nossos pecados.
Porém, alguns dos nossos homens não acreditavam em céu ou inferno para que tal gesto
valesse a pena. E mio fratello sabia conduzir a ânsia por violência deles.
— Traga o anzol — Giulio gesticula para o alto e vejo Homero, empurrar uma viga
larga, com uma corrente pregada de travessado e um gancho de açougue pendurado ao centro. —
Não gosto de torturar mulheres, sabe? — Ele inclina o corpo sobre ela, segurando seu queixo,
fazendo-a fitar o objeto. — Mas meu soldato ali é sádico, sabe? Ele está louco para brincar com
você.
— Não tenho medo.
— Eu sei que não… — O Don da Cosa Nostra estala a língua e meneia a cabeça,
autorizando seu soldato a começar.
O homem sanguinário que parece ter nascido para torturar, agarra Anitta, erguendo-a
com uma mão até ficar de costas para a corrente. De modo hábil, retira o canivete de borboleta
do bolso e enfia entre o ombro e o peito de Anitta. Ela grita de dor.
Todos estamos assistindo ao espetáculo, aguardando ansiosos os próximos passos. A
ragazza é levantada e o gancho serve como um suporte para o corpo ser pendurado pelo buraco
criado pelo canivete.
Ouço Max assobiar e vejo de esguelha quando desvia o olhar. Assistir à tortura de um
homem exigia certa frieza como ser humano, e ver o ato brutal acontecer ao corpo de alguém
mais vulnerável não é para qualquer um.
— O medo geralmente faz o entretenimento dos monstros durarem pouco, cara mia. E
não sei se você sabe, mas a Cosa Nostra precisa permitir certos tipos de diversão — Giulio
explica.
— Ela está confortável demais — Luigi declara. Não temos outras correntes?
— Isso aqui é a estufa — Max ergue os braços — Foi sorte Homero encontrar esse
gancho.
— É um suporte de vaso — explano a real função do objeto. — Signora Isabel me pediu
para comprar.
— Imagino o tipo de planta que sua governanta vem cultivando neste lugar — Alessio
gira os olhos ao redor.
O buraco sangrento abre um pouco enquanto Homero fica parado em frente de Anitta,
observando ansioso seu próximo grito.
— Peso — Giulio orienta e Homero agacha-se enroscando uma anilha amarrada por
uma corda em um dos tornozelos pendurados. O sangue começa a respingar ao solo. Outros
gritos agoniantes ecoam pelo ambiente e desta vez os olhos da mulher afrontosa parecem
tremeluzir.
— Michela está desaparecida há mais de um mês, Anitta. Não sabemos se está viva ou
morta. Então, podemos ficar aqui mais algum tempo assistindo sua performance — Giulio ressoa
indiferente. Eu não poderia jamais falar com tanta calmaria.
— Eu não tenho… Aaaah… — Ela grita mais alto, quando o soldato balança seu corpo.
— Não sei onde ela está… eu não sei…
— Don Moretto! Don? — Um dos meu mais novos recrutos se aproxima, estacando-se
no lugar ao constatar a mulher pendurada. Seus olhos ficam assustados, mas tão logo voltam a se
contrar em sua tarefa. — Don Giulio, aqui. — Ele estende um papel e olho sobre o ombro de mio
fratello para identificar do que se trata.
Ele assopra o ar com tédio e me entrega o papel. Ali havia a decodificação dos últimos
locais que Anitta ligou em seu aparelho celular. A maioria eram chamadas efetuadas para
Palermo, mas uma delas exibia um código diferente.
Coloco o indicador sobre o número, exibindo-o para que Giulio também analisasse.
— Sevilha, Anitta? Mandou minha cunhada para a Espanha? — O olhar incrédulo da
ragazza com a informação obtida demonstrava que tínhamos algo. — Homero, leve essa planta
para ornamentar outro jardim. Creio que Signora Isabel não vai gostar dela aqui — ele informa
ao soldato que meneia a cabeça em compreensão. Anitta nos encara num misto de dor e medo.
Passamos a caminhar de volta para o interior da mansão.
— Sevilha? — Luigi indaga.
— É a única ligação fora dos códigos de área de Sicília — respondo, explicando o
motivo.
— Ela pode estar lá… Ela está viva… — Alessio fala para si mesmo, buscando
reafirmar suas esperanças.
Todos de algum modo precisavam reafirmar sua fé em descobrir o paradeiro de minha
noiva. Eu precisava… O desespero me consumia, mas a chama de determinação queima dentro
de mim.
Falta pouco.
Logo vou tê-la de volta em meus braços. Sei que vou…
MICHELA ZANCHETTA

Não sei como ainda possuo cabelos grudados em minha cabeça por conta da escovação
da tortura, que o maleddeto capacho de Madame Carmelita faz todas as vezes que devo subir
naquele palco dos horrores.
Ser leiloada tem me conferido dias de luxo nas noites de lance, quando sou banhada e
vestida de trajes de gala com excesso de brilho, extremamente apertados. A sequência é o início
da tortura física, uma vez que sou obrigada a me sentar de frente para uma penteadeira estilo
camarim, completamente equipada de adereços de fazer inveja às damigelle.
O infelicce, apelidado de Guapo, e acredite em mim quando digo que de guapo o
ragazzo só possui o apelido, demonstrou ter imenso talento em esticar meu cabelo de todas as
formas possíveis.
Durante o dia, como estou descansada, sou colocada para trabalhar em atividades
domésticas em alguma das mansões de Madame Carmelita. A maioria das propriedades é
distante da cidade e extremamente vigiada por homens que andam com fuzis pendurados como
bolsas de grife.
Aqui a lei é feita pelo mais forte, ou seja, quem sabe investir naquilo que dá lucro.
Chio baixinho quando sinto a escova aprofundar no meu couro cabeludo. Pressiono o
maxilar com força, tentando mexer o mínimo possível, conforme sou impulsionada de um lado
para o outro de acordo com os movimentos da escova assassina.
Tentei lutar nas primeiras vezes, e confesso que até consegui algum êxito em me ver
livre da noite de exibição. Até que Madame Carmelita passou a ameaçar Belinda, Rosa e Lana,
as ragazzas que se tornaram minhas companheiras no inferno.
Elas são obrigadas a se prostituírem todas as noites e não foram resistentes à ideia. Não
podia julgá-las, descobri que a fome e cansaço que sentiam eram maiores.
Cada uma possuía sua história triste. Excluindo Belinda que foi encantada pelo
demônio, elas foram enganadas e colocadas no navio com a ilusão de um trabalho decente.
Lana já se prostituía e queria mudar de vida. Caiu no golpe da proposta de se tornar
modelo fora da Itália.
Fiquei aliviada quando mencionou que trabalhava em uma das boates da Camorra em
Florença, e não da Cosa Nostra.
Rosa, por sua vez, uma italiana da região da Calábria, apanhava do marido drogado.
Chegou a abortar duas vezes por conta da violência. Ela foi agraciada com a promessa de
recomeçar em um lugar em que seu abusador jamais a encontraria.
Convenhamos… não foi totalmente mentira, não é mesmo?
Mas duvido que eles mencionassem sobre o que a aguardava no final da estrada de
tijolinhos amarelos. O nosso Mágico de Oz mais parece um abutre com unhas postiças pontudas,
lábios ressecados pintados de vermelho e uma pinta gigante na bochecha, feita pelo delineador.
Na terceira vez que me rebelei, as ragazze sofreram lesões em lugares no corpo que não
as prejudicariam nas funções noturnas. E, para enfatizar minha responsabilidade, Lana perdeu o
dedo mindinho. Um dos seguranças cortou com o canivete de bolso.
Tenho pedido perdão todos os dias. A ragazza disse que não era minha culpa. Mas
sim… era.
Suspiro alto, no instante em que sinto minha cabeça parar de ser espetada por uma
quantidade absurda de grampos. Meu cabelo está preso num coque que parece um buquê de
rosas.
Para finalizar, Guapo escolhe uma presilha com brilhantes, e a posiciona do lado acima
da orelha esquerda.
— Este é seu melhor ângulo, principessa — enfatiza, segurando meu queixo. O apelido
usado por Anitta faz meu corpo tremer involuntariamente. — Agora o toque final.
Ele pega a máscara, desta vez adornada com pérolas, e posiciona sobre meus olhos,
amarrando na parte detrás da cabeça com uma fita de cetim.
Meu vestido na cor off White acetinato é completamente diferente do usado no último
leilão, fracassado, segundo Madame Carmelita.
— Não a vista mais de vermelho, Guapo. Tive que defender de novo para não perder
dinheiro. Lembre-se que posso descontar o valor do leiloeiro de você — ela reclamou com seu
capacho, que movimentava a cabeça concordando por ser o culpado do meu valor não ser aquilo
que a bruxa almejava.
Fico em pé, segurando a barra do vestido para seguir até a gaiola de ouro, onde me
sentava num balanço enfeitado com flores que subiam pelos cabos de aço. A pequena cela era
suspensa e passeava por toda a boate num aparato feito com trilhos no teto.
Marcho pelo corredor, escoltada por dois seguranças. Eles não eram tão grandes quanto
os soldados, mas impunham respeito. Suas roupas eram túnicas pretas ao invés do terno de três
peças.
Assim que nos aproximamos do palco, percebo a facilidade com a qual é possível se
enganar ao ver um lugar tão belo.
O ambiente era luxuoso, com mesas dispostas de maneira estratégica ao redor do palco
central, feitas de madeira escura polida e adornadas com toalhas de linho vermelho vivo. Poderia
admirar o luxo e sofisticação se não fosse o antro do diabo.
A iluminação aconchegante, com tons de âmbar e violeta, cria uma atmosfera de
mistério e elegância. Geralmente, um holofote dançava pela gaiola, realçando os detalhes
dourados.
Não conhecia ninguém, mas podia jurar que eram pessoas elitizadas. Alguns padrões
são os mesmos em qualquer lugar. Taças de champanhe são servidas no instante em que a
música, que antecedia minha entrada, começa.
Meu nariz coça com o aroma de perfumes caros misturando-se com o sutil perfume de
charutos finos.
— Anda, niña! Quer que a coloque lá dentro na marra? — Um deles, que falava
espanhol, esbraveja. Acredito que todos os seguranças imaginavam que soubéssemos a língua.
Bufo o ar, fechando os olhos e pensando que tudo não passava de um pesadelo. Era
assim que conseguia suportar todas as vezes que era exibida como uma cacatua rara.
Quando estou posicionada, a gaiola é fechada e costumava dar um tranco todas as vezes
que subia até o alto. A seguir, Madame Carmelita caminha até o palco com um microfone sem
fio, apresentando-me primeiro em árabe, para depois dizer em sua língua materna.
— Senhores… é com grande prazer que trago à sua atenção a joia desta noite: ela… —
aponta em minha direção. — Uma beleza incomparável que certamente fará o coração de
qualquer homem bater mais forte. Estamos diante de uma deusa majestosa, caída do céu. Virgem
e imaculada, que encanta com sua juventude e graça. Então, amigos, quem será o felizardo a
possuir a virtude desse anjo?
Os lances começam lentamente, mas logo se transformam em uma frenética competição
entre os presentes, todos ansiosos para me possuir.
Meu estômago gira à medida que os valores aumentam. O medo me faz segurar com
mais força os cabos de aço. Maddona mia… talvez não consiga escapar ilesa esta noite.
— Vamos, senhores… não é qualquer um que consegue a primeira noite de uma dama
imaculada. Sei que possuem muito mais do que isso para se esbaldarem no sangue virginal.
E sou tomado por uma onda de ânsia de vômito repentina. Minha vontade é mirar no
careca que ergue o braço na sequência.
Os valores continuam a subir, ultrapassando o último lance dado no leilão tido como
fracassado. O vestido na cor clara realmente empolgou a libido dos clientes da boate.
Minha jaula de ouro suspensa continua o caminho de costume, desfilando acima das
mesas vagarosamente. Sinto-me como uma isca presa num anzol sobre o cardume de tubarões.
A sensação de medo me faz contrair o corpo e quase caio do balanço ao deixar os
ombros caírem. Seguro rapidamente de volta, na busca de preservar ao menos minha vida,
porque minha dignidade desapareceu por completo.
O sorriso vitorioso de Madame Carmelita indica que alcançou o montante que desejava.
Dio Santo. E agora?
Ela ainda não bateu o martelo.
A gaiola começa a percorrer de modo acelerado o caminho que fazia, enfatizando o
término e minha desgraça. Aperto com força as pálpebras, sentindo lágrimas silenciosas
escorrerem por detrás da máscara.
— Dou-lhe uma…
Ninguém fala nada. A música para.
— Dou-lhe duas…
O suspense está impregnado no ar.
— Dou-lhe três! — Ouço a batida que dilacera em pedacinhos o meu último fiapo de
esperança. — Vendida ao Magnata Mustafá!
Abro os olhos, vendo um homem dos seus quarenta anos, robusto, usando um turbante
com características arábes ser cumprimentado por seus parceiros.
É isso. Ao que tudo indica, minha virgindade foi vendida para um mafioso das arábias.
Seus olhos escuros me fitavam de um modo arrepilante, prometendo terror e angústia no
próximo ato.
Nos minutos seguintes, minha gaiola de ouro é descida na altura do palco. Madame
Carmelita retira a chave do vão entre os seios num movimento exagerado e abre a gaiola
teatralmente. Ela oferece a mão para que eu saia através da portinhola.
Assim que saio, vejo que o homem faminto por meu sangue virginal caminha
apressadamente entre as mesas no intuito de me alcançar.
Penso que subirá até o palco, mas me surpreende fazendo um gesto com queixo
indicando a escadaria do seu lado direito para a leiloeira. Ela meneia a cabeça, entendendo o
recado silencioso. Sob aplausos sou retirada do circo, sendo conduzida pelo cotovelo, sentindo as
unhas pontiagudas cravarem em minha pele.
— Não tente gracinhas, cariño, ou suas amigas aprenderão a tocar piano com a língua,
porque não lhe restarão mais dedos. — A ameaça me atinge em cheio, fazendo-me balbuciar em
concordância. — Muito bem. E trate de sangrar. — Dá tapinhas em meu rosto, empurrando-me
para um dos capangas me guiarem até o quarto no qual o magnata me esperava.
Dio Santo! Trate de sangrar? E se eu tivesse hímen complascente?
Tropeço em meus pés por conta da barra do vestido que me esqueci de erguer no
caminho. Entro em um corredor com diversas portas enumeradas, lembrando-me o de um hotel,
salvo as mulheres seminuas que circulam e homens entrando e saindo.
— Seu destino é no final do corredor. — Um dos meus carrascos informa num italiano
enferrujado.
— Olá, ragazzo! — Uma das minhas futuras colegas de profissão aborda o homem à
minha esquerda. Ela deixa a alça da camisola cair e ele sorri, indo até ela.
Seu nome era Martha. Uma portuguesa que vive aqui há mais de um ano. Ela costumava
se isolar no interior do vestiário no qual as ragazze se trocavam para a noite, com o olhar sempre
triste e distante.
Continuo o percurso, sentindo meu lado direito se soltar aos poucos, e o outro homem é
envolvido por outras duas mulheres, ficando também para trás.
Caspita! Teria que ir para o abatedouro sozinha?
Não havia opção de fugir, ou Belinda e as demais estariam em perigo.
No instante em que me aproximo da porta, meu corpo é puxado para o lado.
— Rápido! Tira a roupa! — Ouço a voz feminina conhecida sussurrar. Belinda está em
minha frente com o cabelo num penteado igual ao meu. — Anda logo, ragazza!
— Mas… por quê?
— Porque vou assumir o seu lugar — responde como se fosse uma coisa óbvia. Encaro-
a catatônica. Ela libera o ar, frustrada. — Não tenho tempo de explicar, va benne? — Ela me vira
de costas e desce o zíper do vestido. Fico só de calcinha e então vejo que estou sendo escondida
atrás de duas das outras garotas.
— Belinda, você disse que não é mais virgem. Ele vai saber… — comento, emocionada
por sua atitude.
— Não se eu sangrar. — Ela ergue uma faquinha que mais parece de brinqueda pelo
tamanho, cabendo na palma da mão. — Disseram que esse homem é viciado em fazer virgens
gritarem de dor. A primeira vez é dolorosa, mas pode ser menos traumática.
— Você vai sentir dor também e ficará traumatizada.
— Passei vasilina e pomada anestésica. A dor será ínfima — estala a língua. — E
quanto ao trauma, creio que acreditar num amor falso tenha sido o meu maior. O magnata será
mais um dos muitos clientes que venho antendendo todas as noites. Agora a máscara. Anda!
Hesito em tirar e novamente tenho minha mobilidade rendida por ela que desfaz o laço
de cetim e amarra a máscara em seu rosto.
— Se vista e vá com as meninas. Elas irão te esconder até que termine.
— Belinda… — choramingo, não querendo passar esse fardo para ela.
— Não se preocupe comigo. Vamos dar um jeito de fugir deste inferno. — Ela me
entrega um vestido simples de algodão que vinha usando durante o dia, e acena para que seja
levada.
O anjo salvador tinha que se sacrificar em meu lugar, Dio? Tinha?
— Fique aqui. — A ragazza mais alta, Fernanda, uma brasileira de pele oliva, abre uma
porta. Todas parecem ter unido forças para me proteger. Meus olhos ficam marejados pelo
cuidado que estão tendo comigo, mesmo que arriscando suas vidas.
— Não saia de forma alguma. Espere até que uma de nós venha te buscar. — Olívia é
quem diz, uma boliviana atrevida, me enfia dentro de uma espécie de guarda-volumes escondido
pela viga do prédio.
Mais uma vez agradeço mentalmente mammina por me obrigar a aprender espanhol e
inglês. Mesmo que meu destino fosse fadado a ser uma damigella, aprender idiomas era um
requisito a mais que Francesca e eu possuíamos em nosso currículo para ocupar o cargo de
perfeita esposa.
Meu passado diante de todo desespero que tenho vivido e convivido parece algo tão
distante…
Assinto com a cabeça para as ragazze, enxugando o rosto molhado. Elas sorriem e
apertam meus ombros, indicando que me protegeriam.
Belinda, Rosa e Lana devem ter arquitetado o plano com as ragazze enquanto eu
passava o dia fora. Será que desconfiavam que esta fosse a noite da venda?
Talvez… Madame Carmelita parecia mais irritada a cada leilão, com certeza se
empenhou na publicidade deste através dos sites na deepweb.
Ajeito-me melhor, enfiada no armário de despensa. É como se tivesse decidido
participar de uma partida de esconde-esconde com objetos de limpeza.
Aqui dentro, estou espremida entre vassouras e rodos como se fossem meus parceiros de
esconderijo, e confesso que eles não são os melhores companheiros para um jogo confortável.
Cada objeto parece competir para ver quem me aperta mais, como se estivessem
conspirando contra minha liberdade. Que ironia, não?
Tento respirar de maneira tão discreta que até mesmo um ninja invejaria minha
habilidade. A inspiração é um desafio, mesmo para alguém sem rinite alérgica, está praticamente
impossível evitar pequenos espirros.
Coço o nariz, fungando baixinho, querendo permanecer inaudível. Não apenas as três
italianas, mas todas que participaram do plano estariam em perigo.
Permaneço expremida, tentando identificar o que ocorria do lado de fora. Quanto tempo
demora o sexo pago?
Já ouvi dizer que a cobrança é feita por hora. Será que ficaria aqui por todo esse tempo.
Do que estou reclamando?
Belinda está lá, em meu lugar, sofrendo por mim. Maddona mia, cuide dela, per
favore…
O tempo passa e nada acontece de diferente. Ouço mais de uma vez portas se abrindo e
fechando. Agacho-me no cubículo e abraço os joelhos, descansando a cabeça neles.
De repente, um estrondo. Consigo ouvir os berros de um homem furioso em árabe.
Não…
Mulheres gritam, o som de pessoas correndo. Encontro a maçaneta e tento abrir, mas
está trancada. Merda.
O som seco de um tiro ecoa lá fora. Não!
Começo a chorar e esmurrar a porta. Por fim, ela se abre e caio de joelhos no meio do
corredor. Ergo os olhos… e a cena que presencio é pior do que eu imaginava.
MICHELA ZANCHETTA

Sou erguida pelos cabelos que desenrolam do coque com o puxão. Meus pés sacolejam
no ar, mas meus braços buscam alcançar Belinda que está sendo carregada pelos capangas que
me trouxeram.
— Não! Per favore… é minha culpa. Eu vou… — Um tapa forte me cala, virando meu
rosto e cortando meu lábio com a força implacável.
— Cale-se sua puta! O estrago foi feito! Disse para não tentar gracinhas, não disse? —
Madame Carmelita belisca meu braço com as unhas, arrancando pedacinhos de pele conforme
crava na carne e arranha com fúria. — Mustafá era meu melhor cliente e pagou caro por essa
boceta virgem.
Sou arremessada ao solo e sinto chutes por todos os lados, almejando meu corpo.
— Parem! — A mulher maldosa grita. — Ela primeiro irá ver a consequência de sua
idiotice.
O primeiro carrasco de túnica preta me levanta e carrega, conduzindo-me através do
corredor.
— E agora, Madame? — Guapo é quem indaga ao seu lado.
— A imbecil da Belinda pensou que podia enganar meu melhor cliente. Quase
conseguiu, mas Mustafá encontrou a faca com que se cortou quando a virou de quatro pra
terminar o serviço. — Ela rosna e grita ao mesmo tempo. — Idiotas! Não prestam nem para se
salvarem.
— O que ele exigiu? — o capacho insiste.
— Que eu perca a mercadoria colocando-a na cela — responde, desta vez decepcionada.
— Eu ainda podia ter minha pequena fortuna… — choraminga. — Mas ele quer ver o corpo
depois.
Eles conversam em código para mim, mas a última frase deixa clara a intenção do
magnata: minha morte.
— Então, preserva a outra italiana, Madame — sugere. — O prejuízo será menor.
— NÃO! A maldita vai sofrer e esta idiota levará para o túmulo a dor que causou à sua
amiga — diz, raivosa.
Maddona mia…
Descemos até um porão escuro, abaixo da boate. Enquanto meus olhos se ajustam à
escuridão, vejo apenas sombras difusas e formas indistintas ao meu redor. Cerro o cenho, minha
visão lutando para encontrar algum ponto de referência.
Aos poucos, percebos os contornos vagos das paredes. Os tons de cinza e preto dão
lugar a nuances de tijolos gastos pelo tempo.
A cada passo angustiante, a atmosfera sombria aumenta. O cheiro de mofo e umidade
invade minhas narinas, fazendo-me torcer o nariz.
O ambiente é escuro, iluminado apenas pela luz fraca de uma lâmpada que oscila no
teto. O chão está coberto de detritos variados, desde caixas empilhadas até sacos de lixo
rasgados.
Inesperadamente, gritos e súplicas em vozes femininas ecoam pelo lugar. O odor de
antes se modifica, intensificado por uma nuvem pesada e repugnante de urina misturado com
algo a mais. É um fedor acre que se agarra ao ar, conferindo um plus ao antro do terror.
Quero fechar os olhos, mas preciso manter a coragem e implorar para que descontem a
raiva apenas em mim.
Novamente, meu corpo é lançado ao chão. Madame Carmelita ergue meu rosto
segurando de modo doloroso meu queixo.
— Olhe, vadia! Olhe o que seu ato impensado fez! — Ela vira meu rosto para ver
algumas das ragazze presas em corrente, sem roupas, sendo chicoteadas em diversas partes do
corpo. Nem ao menos o rosto é poupado.
— Madame! São muitas garotas! — Guapo não contém a surpresa, porque ele também
nos vê como mercadorias.
— Terei nova leva amanhã de manhã. Até essas se recuperarem, teremos outras no lugar
— relata com desdém.
Não posso dizer que sinto alívio por saber que serão poupadas da morte, pois ainda
estão sendo submetidas à tortura, por minha causa…
O som abafado de lamúria chama minha atenção do outro lado da parede, vejo Belinda
sendo espancada por outro homem. Ele usa soco inglês e desfere golpes como se estivesse
treinando boxe.
— Não… — peço, com a voz rouca por conta do choro. — Per favore… eu imploro.
Batam em mim! EM MIM! Não nelas… — choro. O soluço do choro compulsivo torna minha
fala falha.
— Agora pede por elas? — Madame Carmelita chuta minha coxa. — Tarde demais,
maldita. É isso o que acontece com quem me desafia — diz, impiedosa. — Que sirva de lição
para todas vocês.
— Não… não… não… per favore…
— Virgem dos infernos… Você não terá um fim melhor do que o elas. — E então levo
um chute no rosto com tanta força que caio no poço sem fundo… sem luz… completamente na
escuridão.
Meu corpo todo dói.
Consigo a muito custo levantar o tronco, ficando numa posição sentada. Está escuro…
não consigo identificar o lugar que jogaram desta vez.
Aparenta ser uma cela pequena e úmida, onde o frio parece penetrar em meus ossos,
adentrando minha pele.
O cheiro característico de paredes de barro carrega o ar, misturando-se com a umidade
que paira no ambiente. Não há assoalho, apenas o solo frio e irregular embaixo de mim.
Sinto-me como se estivesse afundando em um abismo sombrio, isolada de todo mundo.
Levanto com dificuldade e caminho até a pequena janela, uma abertura no formato de um
quadrado pequeno fechada com barras de ferro na vertical.
Aqui deve ser a tal cela, que o magnata árabe exigiu que fosse colocada. Há ferrugem
espalhada nas barras. Minha esperança grita, pedindo para chacoalhar a grade. Tento, mas é o
mesmo que pedir para o chão balançar.
Olho através do vão e percebo estar fora da cidade. A luz da lua ilumina a vastidão de
gramínea, onde apenas uma árvore sobrevive, antecedendo um emaranhado de arbustos.
— Chiao! Hola! — grito, e em resposta, obtenho os sons combinados da paisagem
deserta.
Um arrepio percorre meu corpo quando o uivo distante de um chacal ecoa, juntamente
com o chilrear de corujas. Avisto uma emergir das sombras, dando um rasante para pegar a presa
que estaria no solo. Dou um passo para trás, assustada.
Balanço a cabeça, notando que seria impossível ser alimento de animais, estando
enclausurada. Se não dá para sair, também não dá para entrar, não é mesmo?
A ideia é me abandonar aqui à própria sorte?
Que sorte, Michela? Eu poderia ter alguma sorte no passado em minhas escapadelas e
por este motivo pensei que o mesmo aconteceria ao embarcar nessa loucura.
Madame Carmelita tinha razão. Sou uma completa idiota.
À medida que a noite avança, a solidão se torna mais intensa, acompanhada por uma
tristeza profunda que aperta meu peito.
Meus pensamentos voam até mammina, papà, Francesca e Luigi…
Caspita! Até meu noivo provisório se torna uma figura de conforto na atual conjuntura.
O horror que vivi assistindo Fausto matar Fabrizio na cutelaria não chega nem perto
daquilo que senti mais cedo. A luta podia ter terminado de modo sanguinário, mas ambos
lutaram de igual para igual.
Agora, hoje… Penso nas ragazze, acorrentadas naquelas paredes, sendo torturadas com
cada chicotada. Todas tinham famílias deixadas em algum lugar. Algumas ainda esperavam por
seus regressos, mas elas sabiam melhor.
Jamais voltariam…
As feridas externas deixadas pelos carrascos de Madame Carmelita refletiam os traumas
emocionais, por estarem ali contra a sua vontade.
O motivo por detrás do meu salvamento era fomentar o mínimo de esperança. Elas
precisavam do êxito para motivá-las a continuar lutando e…
Merda. Nem para isso eu servi.
Esfrego o rosto, sentindo a sujeira arranhar a pele sensível das bochechas.
Quanto tempo mais elas ficariam no porão?
E Belinda? Dio Santo… ela estava desacordada com a vi pela última vez.
O medo de que estejam todas mortas por minha causa acrescenta um peso extra ao meu
coração já pesaroso. Per favore… não morram…
Minha garganta está seca quando sinto as lágrimas escorrerem até meus lábios. Passo a
língua, sentindo as gotas salgadas. Talvez se tivesse ficado em Palermo e aceitado meu destino
como futura esposa do Sottocapo, essas garotas poderiam estar fora de perigo.
Que absurdo! Todas elas se uniram em prol da minha honra. Um riso fruto da loucura
eclode do meu ser, explodindo em uma gargalhada insana, e então… transforma-se em um choro
alto.
As lágrimas escorrem livremente pelo meu rosto, transborando uma torrente de emoções
incontroláveis dentro de mim. Cada soluço parece arrancar um pedaço do meu coração, enquanto
me afundo mais fundo na agonia sem fim.
Sinto meu peito apertado, como se estivesse sendo espremido por mãos invisíveis, e
minha respiração vem em soluços entrecortados.
— Alguém? Per favore… — tento de novo, num volume mais alto. Agora o farfalhar de
folhas secas indica que afugentei um animal maior do que uma coruja.
Bato nas grades, sentando-me de volta no chão frio.
Meu corpo treme com a intensidade do meu desespero. Sinto-me completamente
vulnerável, como se estivesse desabando diante de um abismo… um poço, sem qualquer aparato
para escalar.
Neste momento, tudo o que posso fazer é deixar as lágrimas fluírem, permitindo-me ser
consumida pela turbulência emocional que me envolve.
Estou confinada numa cela úmida e sombria, meu coração pesando com a preocupação
por Belinda.
A última vez que a vi, ela estava ferida e frágil, e a incerteza sobre seu estado me
consome.
Ela tentou me salvar… e se colocou em risco.
FAUSTO MORETTO

A madrugada silenciosa servia para camuflar nossa chegada à propriedade vizinha da


mesma forma que a camada de película escura escondia-nos sobre os vidros do veículo alugado.
Meu peito palpitava com o sacolejar do furgão conforme via a localização exata, obtida
pelas coordenadas de satélite, se aproximar através da tela do Ipad.
Precisei cobrar alguns favores para que o avião particular do Grupo Empresarial
Moretto aterrizasse o mais próximo possível da localidade. Ainda sentia que algo estava errado,
pois o número de telefone que ligou para Anitta era fixo. A sensação de que tudo não passava de
uma armação envenenava minha mente.
No instante em que alcançamos o solo, questionei-me se minha ansiedade em ver meu
Colibrì não havia me cegado, dando ao inimigo certa vantagem.
Por mais que toda a famiglia tinha conhecimento sobre o desaparecimento de Michela, o
andamento das buscas vinha sendo mantido em sigilo. Contudo, permiti que Maximus passasse a
informação para Simona, ligando diretamente para uma linha da Europol.
A polizia não era o problema. Até porque, ela parecia genuína em sua ânsia em nos
ajudar, uma vez que quem vinha sendo beneficiado fossem outras vítimas e ela tinha ganhado
pontos em sua seção por este motivo.
A confiança para com quem é de fora da Cosa Nostra é conquistada. Mas para quem
nasce com o brasão da Famiglia é pressuposto. Deveria ser assim para todos.
Eu costumava confiar nos membros da famiglia, pois, independentemente do que
justificasse sua lealdade, havia o respeito por quem se sentava na cadeira do Don. Até que papà
morreu.
Sua morte foi a prova concreta da existência de um traidor entre nós. Muitos dos ataques
nos quais perdemos cargas valiosas, só obtiveram êxito por conta do excesso de informações.
Alguém estava repassando datas, horários e locais precisos de movimentações pertinentes à Cosa
Nostra.
Quem? Ah, se soubesse…
Foi mantendo um pé atrás com todos que no passado pudemos chegar até Ulisses Catto.
Um dos primeiros ratos a morder o queijo da ratoeira. Na sequência, sua irmã, que o diabo a
tenha.
— Qual o problema, fratello? — Max me indaga, percebendo minha inquietação assim
que consigo ver as luzes da casa grande mais à frente. Tinha conseguido acessar as câmeras de
segurança e estava percorrendo através delas todos os cômodos da residência.
— Não sei… parece… fácil demais. — Não havia qualquer sistema para ser derrubado
quando captei os sinais das câmeras.
Estacionamos há alguns metros de distância, com o intuito de caminhar sorrateiramente
até lá. Após o início da invasão, o motorista possuía as instruções de se aproximar para ajudar no
resgate.
Tratava-se de uma propriedade rural, bem afastada da zona urbana. A noite melancólica
estava clara o suficiente para dar a belíssima visão dos campos vistosos por conta da plantação
de oliveiras. A lua, escondia-se por detrás de nuvens furtivas, lançando sombras sobre a mansão
imponente.
Consegui ver três casas menores de funcionários que prestavam serviços para os donos
da mansão, bem como para a colheita de azeitonas. Era possível ver corredores de oliveiras por
todos os lados da residência. A entrada lembrava aquelas casas coloniais, com uma imensa
escadaria até uma porta central.
— Nada está sendo fácil, Fausto. Há dias não tínhamos qualquer pista. Concentre-se —
Giulio é quem comanda. Dou um aceno duro de cabeça, querendo que esteja certo. Em seguida,
verifica o cartucho da pistola automática que gostava de usar nesse tipo de missão. Sabia que
carregava outras duas em seu coldre.
O sobretudo elegante que cobria o terno de três peças escuro podia conter em seus
bolsos outras armas menores, incluindo pequenas granadas que escolhemos como boa pedida em
virtude de impactar da melhor forma uma invasão em terras estrangeiras. Nossas roupas
costumavam ser semelhantes, exceto que enquanto Giulio gostava do preto, eu preferia o
chumbo.
Já Max, usava ternos apenas nos dias de eventos da famiglia. Dificilmente colocava
gravata. Acredito que nem ao menos em seu casamento usaria uma.
— Quantos são? — Luigi indaga, com o olhar direcionado para a janela. Não era
preciso exigir concentração para ele e seu primo Alessio, que pareciam em alerta o tempo todo.
Michela não fazia ideia do quão preciosa era para seu clã.
— Os empregados rurais estão nas casas vizinhas. Na sede, encontrei oito seguranças
armados. Dois guardam a saída norte, dois a entrada e outros dois a ala leste.
— Três andares? — Max indaga, puxando a luva com os dedos à mostra, abrindo e
fechando a mão e fazendo o couro ranger.
— Sì. Os outros estão espalhados na região central do térreo — informo, sentindo-me
agoniado.
— Eu, você e Homero vamos pela frente. Luigi e Alessio procurem uma entrada ao
leste. — Giulio determina. — Max, vá com Gustave pelos fundos.
Fecho os olhos sem pensar, embuindo uma oração para que meu Colibrì esteja bem.
— Vamos! — mio fratello mais velho dá a ordem e seguimos. Avançamos, silenciosos
como o vento que nos envolvia, através das oliveiras. Separamo-nos em determinado ponto para
circular toda a residência maior.
Chegamos à entrada da casa, imponente, construída numa arquitetura que demonstrava
estar erguida há gerações. Os dois primeiros seguranças caem assim que Giulio atira acertando
primeiro um e na sequência o outro na cabeça.
Eles pareciam completamente inexperientes para servirem como guardas de uma
propriedade de grande porte. Subimos a escadaria, pulando os degraus na quantidade que nossas
pernas permitiam.
Em seguida, empurramos a imensa porta de carvalho aguardando certa resistência,
porém nossos corpos se desequilibram ao constatar que estava aberta. Entramos em alerta, com
as armas em punho aguardando algum ataque. Nada. Continuamos mais à frente.
Passos apressados vêm em nossa direção, e a adrenalina do momento me faz apontar a
arma. Não eram inimigos, mas sim Luigi e Alessio que caminhavam com altivez demonstrando
que também obtiveram sucesso em dominar quem quer que estivesse de vigia na lateral da casa.
Continuamos a invasão conforme combinado, dirigindo-nos ao centro para vasculhar o
lugar em busca do meu Colibrì. Tão logo avançamos, damos de cara com Max e Gustave fitando
algo acima de suas cabeças com os rostos perplexos.
O saguão, amplo e majestoso, que cria o perfeito cenário onde sombras dançavam à luz
do luar um baile macabro.
Mio fratello caçula e Gustave estavam absortos com a cena. Sigo o olhar e de imediato
um calafrio irradia por todo meu corpo com a visão grotesca.
Dez corpos pendiam em lugares diversos, com as pernas e braços soltos, como se
dançassem no ar pelo saguão de entrada. Alguns desciam pelo parapeito do mezanino.
— O Halloween não é em outubro? — Max indaga sem tirar os olhos de uma senhora
vestida de governanta que rodopiava conforme a brisa passava pela porta atrás de nós.
— Pode ser diferente aqui na Espanha… — Gustave é quem responde. Haviam homens,
mulheres, velhos, novos…
Um grito agudo nos acorda e sem me importar com mais nada subo as escadas em
direção ao pedido de socorro sem palavra definida. A imensidão do corredor escuro não é uma
barreira quando o desespero em não chegar a tempo cresce em meu peito.
— Michela! Michela? — berro, angustiado com a cena horripilante do salão. Outro grito
de dor. Era como se alguém estivesse gritando e correndo pelo escuro.
Abro uma porta e avisto apenas um quarto vazio. Sigo chamando e abrindo uma porta
atrás de outra.
— Fausto? Fratello? — Giulio ressoa atrás de mim. Não lhe dou ouvido e continuo,
angustiado, sendo tomado pela aflição em ver meu Colibrì pendurado daquela forma sem vida.
Dio… não!
Quando alcanço o último quarto é que percebo a loucura que estou fazendo, esquecendo
completamente a missão, imerso no terror em viver em um mundo no qual o amor da minha vida
foi tomado de mim. É como se uma gargalhada ecoasse por todos os lados, rindo da minha
insensatez.
Na penumbra do quarto, um gato rajado emerge das sombras com agilidade. Seu salto o
lançou à janela, e no instante em que seus olhos refletiram nos meus, me senti completamente
estúpido.
Meu peito pulsou de raiva ao constatar que meus ouvidos captaram o miado que se
assemelhava a um lamento feminino. Uma ilusão criada por minha mente febril. Aponto a arma
na direção da figura felina que me encara etérea e altiva, zombando de mim.
— Ela não está aqui — Giulio fala atrás de mim, impondo sua mão em meu ombro a
título de conforto.
Assopro o ar, frustrado, mirando na cabeça do gato, quando vou atirar, abro os olhos e
desvio para que a bala pegue na parede. Assisto a miragem auditiva saltando na noite lá fora.
— Eu sei…
— Nós vamos encontrá-la, fratello.
— Por mais que tenha dito isso tantas vezes, não sei mais se acredito — confesso,
sentindo meus ombros caírem.
— Você é a melhor pessoa para encontrá-la, Fausto. Eu confio em mio fratello.
— Grazie.
— GIULIO! FAUSTO! FRATTELI!? — Maximus grita do andar de baixo. — Acho que
encontrei um escritório aqui.
Eu e Giulio nos encaramos e voltamos para junto de nosso caçula. Entramos em uma
saleta com duas paredes repletas de livros, todos com títulos em italiano. A pessoa que montou
esse lugar ou gostava da língua ou era nativo.
Todos estão procurando por pistas dentre os livros e um armário de madeira em formato
de arquivo. Começamos a vasculhar sem cessar até que ao puxar um dos livros, percebemos
tratar-se de uma alavanca para um mecanismo sofisticado de esconderijo. Uma das prateleiras da
estante maior é alocada para o lado, expondo um pequeno cofre.
Vou até lá e acoplo um dispositivo que conecta ao meu ipad para decodificar a senha.
Logo, após a tentativa de algumas combinações, o cofre se abre.
Havia dentre maços de euros e dólares, alguns documentos. Jogo os maços de dinheiro,
separados com elásticos, para cada um dos soldados que nos acompanharam e passo a analisar a
documentação. Eram contratos de compra e venda de safra e uma certidão de propriedade.
— Eu devia ganhar dinheiro também, sabia? Não pagam bem como Caporegime, não?
— Max reclama zombeteiro.
— Não deve estar arrecadando suficiente, então. Em Messina, ninguém reclama —
Luigi é quem devolve, de modo grosseiro mostrando-se inapto a participar de qualquer
brincadeira.
Mio fratello mostra-lhe o dedo do meio, e em seguida a atende o telefone manhoso.
Provavelmente era Simona, perguntando sobre a missão.
Giulio estava apoiado pelo quadril no canto da mesa, com o cigarro pendente nos lábios
e analisando parte da documentação comigo, que estava sentado na cadeira, conjunto da grande
mesa de madeira maciça.
— Estou lendo corretamente este sobrenome? — mio fratello mais velho questiona.
— Tudo indica que sim.
— Vacchio tem muito a explicar.
— Ainda sinto que algo não se encaixa — afirmo, constatando a sensação que vem me
assombrando desde que chegamos em Sevilha.
Maximus resmunga, dizendo todo tipo de palavrão que conhecemos. Ele desliga e nos
encara, perdendo a fala momentaneamente.
— Si-simona encontrou Michela — fala, soando entristecido. Levanto-me, causando um
ruído pelo empurrar da cadeira pesada. Maximus não entende a deixa e desvia o olhar para o
chão, o que me deixa num misto de desespero e medo.
— Onde? — Luigi se adianta e Alessio dá um passo para ficar ao lado de seu cugino
como se fosse necessário o apoio. Maximus expira o ar numa lufada longa demais.
— Max? Onde Michela está? — Giulio é quem se prontifica em fazer nosso fratello
falar.
— Ela foi vendida… — ele cochicha. — Em Marrocos.
Caio de volta na cadeira, sem reação. A agonia serpenteia pelas entranhas do meu ser,
enroscando em cada fibra da minha alma.
— Vendida? Como assim? — Giulio continua o interrogatório. Os dois Zanchetta
começam a caminhar em círculos. E eu estou aprendendo a lidar com as novas emoções que
rodopiam em meu interior de modo a me deixar confuso e com o raciocínio perdido.
— Leiloada seria a palavra correta. O hacker da Europol encontrou uma chamada nesses
sites de leilões de virgens. O programa de comparação de rostos apontou a semelhança. Mas…
— Max hesita. — Pode não ser… Simona disse que a mulher estava mascarada, então… não
perca a esperança, fratello.
— Ela está viva? — É a única coisa que realmente importa. — Simona disse se ela está
viva?
— Disse que o leilão ocorreu há alguns dias e…
— Ela não sabe… — constato.
— O avião está pronto — Giulio diz, desligando o celular. — Ainda não temos um
corpo. Então, sim. Michela está viva. — Novamente recebo outro aperto no ombro. — Peguem
tudo. Vou pedir para outros soldados virem terminar a faxina enquanto seguimos para Marrocos.
Max e os outros começam a colocar toda a documentação em sacos para levarmos.
Havia indícios demais nesta propriedade indicando o nome de um dos nossos Caporegimes, o
que podia justificar sua sentença por traição. No entanto, quando há provas demais, o diabo
desconfia.
Hoje, a prioridade da missão era outra e finalmente Simona demonstrava sua valia em
nos ajudar. Estava na hora.
Expiro o ar com força, tentando lidar com os sentimentos tumultuados em meu peito. A
esperança, frágil e titubeante, erguia-se como uma chama teimosa em meio à escuridão, pois
descobri o paradeiro de Michela.
Ela foi vendida?
Vendida… meu Colibrì…
A descoberta sobre seu paradeiro é um destino traçado por mãos cruéis, que se torna um
nó apertado em minha garganta, sufocando-me com amargor.
Ela está em Marrocos.
Foi leiloada por ser virgem…
Nunca senti tanto medo de perdê-la como agora… talvez porque nessa circusntância…
podia ser para sempre.
MICHELA ZANCHETTA

O pequeno buraco que escavei no peitoril da janela era a taça mais requintada do meu
novo castelo. A bebida podia não ser tão saborosa quanto as batidas de vodca que costumava
tomar, mas eu estava me fartando o máximo que conseguia.
Tradução? Passar dois dias sem água num ambiente árido me fazia lamber aquele
mísero buraquinho o máximo que conseguia. A ínfima pancada de chuva desta madrugada era a
esperança que tinha para consumir um pouco d’água.
Minha boca estava seca e meu estômago provavelmente sofreu com o vácuo pela
ausência de comida.
Em meus dias de glória como faxineira de Madame Carmelita conseguia ao menos duas
refeições decentes. Cheguei a sonhar que abraçava um frango assado gigante, mordendo-o em
seguida. O frango infelizmente gritou, então percebi que eu mesma havia ecoado o som por ter
mordido a região do meu braço, que servia de travesseiro.
A tão aclamada cela onde fui trancafiada na verdade estava dentro de um casebre caindo
aos pedaços. Saí de uma gaiola de ouro para outra, com grades que podíam estar enferrujadas,
mas ainda assim, grossas o suficiente para me manter atrás delas.
— Sai, sai, sai… — assopro os mosquitinhos que teimavam nadar na minha taça
favorita. Enfio a língua para sentir o resquício de umidade e começo a cuspir imediatamente.
Passando o dorso da mão que julgo mais limpo que as outras partes do meu corpo em minha
língua, tirando um dos ditos mosquitos nadadores.
Merda!
Ainda havia a tortura visual da árvore repleta de bolinhas vermelhas do lado de fora, que
os pássaros se fartavam, dando a crer que eram comestíveis. Conseguia ver através da janela, que
possuía barras de ferro para impedir eventual fuga, e passar horas encarando a abertura para o
mundo exterior doía. Mas a paisagem era tão bela que imaginei pintá-la diversas vezes de formas
variadas.
Tudo indicava que a cabana estava localizada em um dos poucos oásis com grama
verdinha e algumas árvores ao redor. Que ironia, não? Meu fim começou com a venda de Oásis,
para terminar exatamente em um.
— Ei! Você! Não quer dividir seu almoço comigo? — dirijo-me ao pequeno lagarto que
esticava a língua do galho em direção a um dos cachos com frutos. — Anda, amigo, só um
pouquinho, você tem um monte aí?
— Não tenho, Signora. É muito pouco. — A voz de um bambino responde. Hum?
Minha cabeça tomba para o lado incrédula.
Por acaso o lagarto respondeu?
Se respondeu, por que fala italiano e não árabe?
Estou ficando maluca. É isso. Os traumas recentes mexeram com meu intelecto e estou
criando uma ilusão.
Mas… será?
Cerro os olhos, na tentativa de apurar a visão. O réptil continua na árdua tarefa em
esticar sua língua para alcançar o alimento. Chacoalho a cabeça, incrédula. Impossível.
Passei seis dias dentro de um container com o mínimo para subsistência e em momento
algum sofri alucinações. Dois dias nesta cela, e um lagarto do deserto começa a falar?
O infelicce me encara em desafio, dando uma lapada tão forte com a língua que algumas
frutinhas caem. Se ele quer jogar, vou provocá-lo.
— Estou vendo daqui ragazzo. Não precisa mentir — insisto, de olho para ver se a boca
do bichinho iria se mover.
Nada. Silêncio…
Sorrio, expirando uma leve lufada de ar por ter encerrado a discussão. Dou as costas
para a janela, satisfeita.
— Va benne. Toma.
Dio Santo! Viro tão rapidamente que quase caio, mas consigo ver uma mãozinha passar
entre as grades com um pedaço de pão.
Impossível o lagarto sofrer uma metamorfose assim. Não… Subo o olhar de imediato
para o galho da árvore e não vejo o danado do réptil mais lá. Pisco mais de uma vez, estudando a
insanidade que minha mente atordoada passou a criar.
— Não quer mais? — A mão inicia o movimento inverso e corro para alcançar o
alimento valioso.
— Grazie, grazie, grazie… — agradeço, mastigando de olhos fechados. Em seguida,
dou-me conta de que minha mente cabulosa idealizou o devaneio do lagarto se transformando em
um bambino.
Aproximo-me lentamente da janela, esticando o pescoço para enxergar o lado de fora.
— Por que está presa, Signora? — Antes que chegue mais perto, o pequeno menino
aparece com metade do rosto acima do parapeito, indicando estar pendurado pelas mãos para me
ver lá dentro. — Os homens maus pegaram você também?
Respiro aliviada, ao constatar que ele não possuía qualquer indício de ser um lagarto
minutos atrás, mas sim apenas um bambino maltrapilho como tantos outros que vi andando nas
ruas. Ele usava um short marrom, amarrado com uma corda por ser maior do que seu tamanho e
uma camiseta que um dia fora branca, mas seu uso contínuo a coloriu com as cores do abandono.
Espera… Ele perguntou se os homens maus me pegaram também? Meu semblante
automaticamente cai para uma feição de tristeza, constatando que ele podia ser uma das crianças
que foram traficadas comigo.
— Sì… — Suspiro, consternada. Essa é a melhor explicação para tudo.
— E você conheceu alguma Maria? — o bambino indaga, eufórico. — Ela se parece
comigo, mas tem cabelo comprido. É minha cugina.
O bambino vira o rosto de um lado para o outro para se mostrar.
— Você veio parar em Marrocos com sua prima? — Ele balança a cabeça
afirmativamente. — Como? — Quero confirmar minhas suspeitas.
— Estávamos na praia brincando e alguns homens disseram que nossos pais estavam
nos chamando. — Como estou mais próxima da janela, o bambino despendura do parapeito,
sentando-se no chão e me fitando com o olhar erguido.
— Onde é essa praia, ragazzo?
— Marettimo, conhece? — Sicília… Meu coração se aperta. — Os homens maus
colocaram a gente no porão de um navio. Ficamos no escuro por dias. Eles jogavam a comida no
chão. Mia mammina jamais permitia que eu comesse algo do chão, Signora. — A voz ressoa
com vergonha.
— Sua mammina deve te achar muito corajoso. — Quero dizer algo para melhorar o
rostinho chateado, e consigo, vendo-o esboçar um leve sorriso. — Qual seu nome, bambino? E
quantos anos tem?
— Airton. E tenho quase oito. — Estufa o peito, orgulhoso de sua idade. — Mas não
consegui salvar Maria. — O sorriso vascila. — Eu tentei, sabe?
— Eu acredito em você. — Tenho vontade de fazer-lhe um afago. Imagine essas
crianças com as outras que passaram pela travessia toda. E por onde será que vieram? —
Quantos anos tem sua cugina?
— Onze — responde cabisbaixo. — Disseram que ela não ia para fábrica com a gente…
Eu preciso salvá-la. — Ele me encara, com um brilho resplandescendo coragem.
Meu interior se contrai automaticamente com o medo que tal brilho causou em minhas
amigas.
— Você precisa fugir, Airton. Fuja — peço, querendo fazer com que desista. Sabe-se lá
quem sequestrou essas crianças? Se ele conseguir voltar para casa, já é uma vitória.
— Eu já fugi, Signora. Olhe — Então, ele ergue um dos punhos e um dos tornozelos,
ambos machucados ao redor. — Eles nos acorrentaram nas mesinhas da fábrica de tecido. E
ninguém podia dormir ou apanhava.
— O que vocês faziam acorrentados nessas mesinhas?
— Eles nos ensinaram a costurar as emendas de tecidos. Fomos vendidos para uma
fábrica de malharia.
A crueldade do ser humano é horripilante.
— Todos eram crianças? — Ele confirma com a cabeça.
— Quando cheguei, eu era mais rechonchudo, mas perdi peso e aproveitei assim que as
algemas das correntes ficaram largas. — Airton massageia ao redor do pulso. — Tentei levar
alguns amigos comigo, mas só dois quiseram sair. Os outros… tiveram medo.
Não posso deixar de sentir um peso no coração ao testemunhar a crueldade do homem
para com aqueles que são mais vulneráveis e desprotegidos.
A realidade que me atingiu é tão triste que criou cicatrizes em minha alma. Imagino as
crianças que estão sofrendo nessas fábricas, sendo escravas da ganância desmedida.
Como podem alguns seres humanos infligirem tanta dor e sofrimento a pequenas almas
inocentes?
Pensava que não conseguiria mais chorar, mas diante de tanta dor e injustiça, sinto-me
revoltada. Ainda mais por estar presa nesta cela e não poder fazer nada.
— Queria te ajudar, caro mio. Mas os homens maus me colocaram nessa cela e jogaram
a chave fora.
— E não te dera nem água ou comida? — Nego com a cabeça. Ele parece surpreso. —
Na fábrica, eles davam uma vez no dia. E conseguíamos revesar para dormir quando o guarda
descansava. Espere aí.
O bambino dá um salto e sai correndo para a esquerda.
— Não tenho intenção alguma de sair daqui — digo irônica, soando brincalhona.
Alguns minutos depois ele retorna, com um copinho feito de palha cheio de um pouco
d’água.
— Dio Santo! Grazie, bambino! — Bebo, sentindo minha língua perder a dormência
pela secura. — Onde você encontrou água?
— Tem um lago, logo ali. — Ele aponta para detrás da casinha.
— Você sabe subir em árvores, Airton? — Tento, apontando para a árvore frutífera.
Quem sabe ele não poderia se transformar em um lagartinho, não?
O bambino sorri em resposta e de pronto inicia sua escalada.
Eu podia ter caído no fundo do poço, mas Dio enviou um anjo para jogar uma corda e
me ensinar a escalar. Talvez, só talvez, conseguiria subir e sair da escuridão.
FAUSTO MORETTO

O velho galpão erguido no solo árido marroquino é o local no qual descemos após a
aterrisagem. A estrutura com paredes de tijolos desgastados e portas entreabertas indicam de
forma gritante estarmos chegando em um território fora dos ditames da famiglia.
À minha volta, a vastidão do cerrado se estende como um tapete árido, com espinheiros
retorcidos que gritavam pela falta d’água.
Éramos cinco homens da Cosa Nostra, mais a tripulação da aeronave, aguardando num
galpão praticamente abandonado por pessoas com quem vinha tratando durante o percurso.
Gustave e Homero retornaram com a documentação para Palermo e foram orientados a entregar
apenas para zio Marcelino o que encontramos.
Giulio tentou persuadir para que Luigi e Alessio retornassem também, pois tinha medo
de que suas emoções atrapalhassem o resgate. Não conseguiu. Mio fratello ainda não sabia, mas
meus sentimentos intensos por Michela podiam ser tão fortes quanto os deles.
— Dá sede só de olhar — Max comenta, mirando a paisagem à nossa frente e ajeitando
o óculos escuros sobre os olhos.
— Não sei como está com sede depois de tudo o que bebeu durante o voo — Giulio
devolve, acenando para dois Jipes que seriam nosso meio de locomoção nas terras estrangeiras.
— Você realmente impressionou a aeromoça com seus talentos.
— Eu não fiz nada desta vez. — Ergue as palmas das mãos, eximindo-se da culpa. —
Respeito minha namorada. A ragazza que estava com medo de vocês.
— Ela é paga para servir mafiosos em pleno voo. Seria absurdo não ter medo —
emendo de pronto.
— Você sabe que para a maioria das ragazze somos apenas três ricaços que seriam
ótimos partidos, não? — Max sonha com a possibilidade de ninguém saber quem de fato somos.
— E eu não assinei um contrato pré-nupcial quando Francesca ainda tinha 15 anos —
Giulio soa irônico.
— Mas você só assumiu o noivado real quando ela tinha 18 — nosso caçula retruca,
querendo manter seu ponto de vista.
— Como esquecer essa merda? — Luigi acrescenta, colocando um cigarro na boca e
batendo nos bolsos, provavelmente em busca do isqueiro. Giulio pega o seu e acende para o
stronzo.
— Não sabia que fumava, cognato — comenta.
— Só em situações de crise. E todos sabem quem somos, Maximus. Apenas fingem que
não.
— Vocês que vivem de terno e armas nos coldres, talvez. Mas eu — ele puxa para cima
a gola da jaqueta de couro —, não.
— Va benne, Max. Simona Ferrucchi se apaixonou por você sabendo sua origem. Então,
por que se importa com o que outras donne pensam? — Giulio devolve.
— Você acha que ela está apaixonada por mim? — Max indaga empolgado. — Ela está,
né? Eu sei… — conclui por si só. Nosso fratello mais velho balança a cabeça negativamente,
com um sorriso de canto.
— Vou precisar de mais sessões de terapia quando voltar — Alessio que estava calado,
comenta.
— Você está fodendo a terapeuta — Luigi pontua, assoprando a fumaça para cima.
— Cada paciente precisa de um tratamento específico.
— Que merda… — Eles riem.
Afasto-me um pouco, tentando captar melhor o sinal de internet.
— Você acha também? — Max se aproxima de mim. Ergo as sobrancelhas sem
entender a questão. — Simona, fratello. Também acha que ela está apaixonada por mim?
— Pergunte para ela — sugiro. — Assim você tira a dúvida. — Vou para fora do galpão
e começo a caminhar ao redor.
Maximus podia ter amadurecido e se mostrado confiante no que se referia à polizia, mas
tudo levava a crer que sua insegurança quanto à imagem não era sobre o que outras mulheres
pensavam a nosso respeito.
Ele queria assumir o relacionamento com a policial da Europol. E por mais que faziam
vistas grossas sobre quem éramos, um membro da lei namorar, noivar e casar com um de nós, é
bem diferente.
Ao que parece, nossa imagem perante a sociedade era um dos argumentos usados por
nosso irmãozinho para convencer sua namorada a ficar com ele.
Não importa. Essa interação pelo menos me fez esquecer momentaneamente sobre o
vídeo que Simona nos enviou, no qual foi feita a comparação e assim encontrada Michela.
O vídeo foi feito em uma boate que poderia se confundir com uma das nossas de strip-
tease. Porém, havia uma bela ragazza em um vestido perolado com uma máscara sobre os olhos
dentro de uma gaiola de ouro, que flutuava acima das mesas. A região da tela correspondente aos
frequentadores do lugar estava desfocada propositalmente para não revelar suas identidades.
Fiquei fascinado com a beleza do corpo da mulher delineado no vestido justo. Era
possível ver as curvas da cintura fina, bem como os membros delicados. Ela estava com um
penteado elaborado, e os lábios na cor de carmim refletiam o pecado, um contraste imenso com a
sua roupa que entoava um ar angelical. A legenda abaixo provocou minha ira imediata assim que
li os dizeres: leilão de virgem.
Senti ódio ao constatar que tal situação poderia ter sido remediada se não tivéssemos
sido interrompidos na noite do iate. Ou caso minha insegurança não me segurasse.
No instante em que encontrei os olhos da ragazza, pude ver o medo irradiar conforme os
lances para sua compra passavam a subir. A cada berro masculino, suas mãos apertavam mais
forte barras enfeitadas de flores, que serviam como suporte de um pequeno balanço no qual
estava sentada. Um pequeno Colibrì preso em uma gaiola. Mio Colibrì.
Marrocos era um território neutro, no qual tínhamos zero aliados. Então, cavar por
informações foi o mesmo que encontrar um atum-rabilho[157] no oceano. Mas consegui mediante
o pagamento de uma pequena fortuna contratar alguns soldados provisórios.
Fiz toda a operação durante o voo quando a conexão via internet não oscilava muito. O
avanço da tecnologia foi o que possibilitou meu trabalho para estarmos em Marrocos totalmente
assessorados.
Em um lugar onde a lei que impera é a do mais forte, não foi tão difícil encontrar
pessoas capacitadas. A máfia existia em todos os lugares, apenas com nomes diferentes.
O melhor de tudo foi deparar com alguém tão antagonista ao tráfico humano quanto nós,
Raja. Alguns de seus homens inclusive estavam com ele desde pequenos quando foram
resgatados de cidades fantasmas.
Questionei sobre o que seriam essas localidades e ele contou tratar-se de uma vila
ambulante. O lugar nunca se estabelecia num território específico para dificultar ser encontrado.
Lá, os traficantes costumavam levar crianças e mulheres raptadas até lhes darem o fim para o
qual foram tiradas de suas famílias.
Poderia arriscar dizer que o mafioso marroquino seria um exímio cumpridor da lei, se
suas outras atividades o permitissem. Nosso barco navegava nas mesmas marés, o que gerou
interesse de outros negócios no decorrer da conversa até acertarmos o que era preciso para o
resgate de Michela. Ele precisava do fornecimentos de armas e nós éramos uma oferta.
Os dois jipes e o hangar estavam no pacote oferecido por Raja. Estávamos agora a
caminho de Asilá, eu e Giulio no Jipe da frente enquanto Maximus, Luigi e Alessio vinham no
detrás. Na cidade, encontraríamos com Raja e os homens que nos acompanhariam até a
residência da dona da boate.
— Mais alguma coisa? — Giulio indaga, conduzindo o veículo ao passo que eu
verificava novamente o ipad.
— Não… disse que nos aguarda com uma surpresa.
— Não viemos aqui pra isso — mio fratello diz com o cenho franzido, imaginando ser
algo similar ao que a Camorra entendia como recepção: Mulheres.
— Ele sabe. Deve ser sobre Michela. — Ele demonstra compreensão meneando a
cabeça.
O sol do deserto, inclemente e dourado, estava implacável. A temperatura do outono
podia ser amena, o que nos fez manter a vestimenta de sempre, mas uma coisa era estar na
sombra, outra era estar enfrentando a estrada sem pavimentação num veículo sem teto.
Sentia o suor escorrer em minhas têmporas a medida em que avançávamos adentro do
cerrado. Algumas plantas desafiavam permanecer verdes, resistentes ao clima do deserto. Penso
em minha noiva, tão frágil e delicada sofrendo fora de casa… gostaria que sua petulância a
fizesse forte como essas plantas que teimavam viver em um ambiente hostil.
Aos poucos, algumas casas humildes construídas de barro começam a mesclar com a
paisagem árida. Pessoas saem para nos ver passar como se fossemos carros alegóricos. Metros à
frente, as casas aumentam, tornando-se quarteirões em formatos distintos.
— Temos que virar à esquerda e subir — aponto o caminho que o aplicativo nos
mandava. A residência de Raja era à beira mar, precisávamos atravessar a cidade, pois era mais
afastada.
Olho para trás, vendo o outro veículo sendo conduzido por Alessio, Max no banco do
carona com um dos pés no painel, sentado de modo despojado, e Luigi em pé, segurando o
suporte onde deveria passar a cobertura do jipe.
— Eles estão logo atrás, Fausto. Não se preocupe — Giulio diz, lendo meus
pensamentos. As situações pelas quais vínhamos passando fugiam do meu controle de modo a
me deixar atento a todos os detalhes. Não haviam câmeras aqui para me mostrar em pequenos
quadrantes as imagens que costumava ver. Por isso, contava apenas com os meus olhos.
Por fim, chegamos até uma portaria que estava protegida por homens armados.
Concluímos estar de fato no local correto, pois as características indicavam algo similar ao que
teríamos se vivêssemos aqui.
A portaria erguida em alvenaria possuía um arco à moda árabe, imponente como uma
sentinela aposta a alguns metros da praia.
O sol do deserto destacava as pedras envelhecidas. A ausência de portões
convencionais, era justificada pela ousadia dos soldados, vestidos em túnicas e expondo suas
armas sem receio.
Giulio informa nossos nomes e somos liberados para atravessar o portal e continuar por
uma estrada estreita de paralelepípedos até uma mansão vultuosa, que seguia a arquitetura árabe,
perdida na areia da praia.
— Francesca ia adorar esse lugar — Giulio diz assim que desliga o motor do jipe. Eu
me via repetindo seu pensamento no tocante à minha noiva, o que demonstrava o quanto meu
coração já era completamente de Michela.
Todos os lugares belos que vi durante nossa jornada pensava em como poderia estar
desfrutando de sua companhia se fosse em outra situação. Infelizmente um lugar tão belo ficaria
cravado em sua memória como gatilho de momentos de medo.
Ela jamais absorveria a beleza da construção majestosa de alvenaria em tonalidades
quentes que harmonizavam com o dourado do deserto. Com o seu talento, meu Colibrì
desenharia facilmente essa paisagem, penso.
Assim que descemos, somos todos guiados para dentro, caminhando pelo pátio interno
com um jardim adornado por uma fonte ao centro.
— Amigos! Sejam bem-vindos — um homem de pele escura, com olhos amendoados e
expressivos, caminhava até nós de braços abertos, vestindo uma túnica bege e um turbante na
cabeça no mesmo tom. Ao se aproximar, estende a mão para o cumprimento. Ele falava em
italiano com um sotaque carregado, mas conhecedor da língua.
— Raja, correto? — Giulio confirma, e ele meneia a cabeça afirmativamente. Meu
irmão corresponde ao aperto de mão, se apresentando: — Sou Giulio Moretto. Estes são meus
irmãos, Fausto e Maximus; meu cunhado, Luigi, e seu primo, Alessio.
— Como vão? — Raja inclina o corpo levemente para frente com as mãos unidas. —
Espero que tenham feito uma boa viagem.
— Seria excelente se o motivo que nos trouxesse fosse outro… amigo — Giulio tenta
chamá-lo da mesma forma.
— Sim, sim… por isso, vamos logo, se meu informante está correto, cada segundo é
valioso para encontrar a ragazza.
Ele nos direciona para segui-lo até um tipo de terraço com balaustradas de ferro forjado,
com uma vista panorâmica do mar azul-turquesa. Novamente, meu coração perde o compasso,
pensando que uma terra tão bela machucou alguém de alma tão preciosa.
— Sentem-se, por favor — Raja indica uma mesa, que deveria ser um lugar para
refeições frequentes. Sentamo-nos, porém apreensivos com o que viria a seguir. — Tragam o
menino. — Ele acena para um dos seus homens que estavam aguardando de canto.
Não demora para um ragazzo franzino, porém completamente diferente das
características das pessoas locais aparece. Ele era branco demais, e possuía marcas em uma das
mãos e em um dos tornozelos.
— Fale, filho. Pode falar. — Raja faz um gesto com uma das mãos para que o menino
tenha confiança em nós. No segundo em que seus olhos nos encontram, vejo a emoção
transbordar por eles. O bambino cai de joelhos e começa a chorar, falando enrolado e mesmo
sendo em italiano não conseguimos entendê-lo. Maximus se levanta e vai até ele.
— Não chore, bambino. Não chore — Max acaricia seu rosto. — Venha aqui. — Ele
coloca o garoto sentado em uma das cadeiras e segura suas mãos. — Se você chorar, não vamos
conseguir te ajudar.
— Signore Moretto. Vocês estão aqui… vocês vieram nos salvar — O bambino diz
entre os soluços.
— Sì… viemos — Max nos encara, para que não neguemos a esperança do menino.
Mas não era mentira, pois também estávamos em busca das nossas crianças perdidas, se ele
fosse… — Como se chama, bambino?
— Airton — ele responde, soluçando.
— Airton… — Max testa o nome. — Nosso amigo Raja disse que uma ragazza está em
perigo. Você sabe dizer onde ela está?
— Signorina Zanchetta? — Ele ofega, passando o braço por baixo do nariz para limpar
a coriza do choro. Só de ouvir seu sobrenome pronunciado pelo pequeno faz meu coração saltar
no peito.
— Isso. Signorina Zanchetta. — Mio fratello que leva mais jeito com crianças confirma.
— Ela está muito longe… tenho ido todo dia levar comida para ela, e durmo lá, sabe?
Pra não se sentir muito sozinha. Dio Santo… Está tarde, preciso ir logo — Ele recorda-se,
levantando rapidamente.
— Nós vamos, bambino. Nós vamos… — Raja nos encara para informar melhor sobre
as informações do bambino. — Ele estava vagando na estrada ao norte. Não sabemos com
exatidão onde fica o lugar. Pensava que a ragazza que procuram estivesse em uma das mansões
de madame Carmelita. Mas confirmamos com algumas pessoas e disseram que ela foi mesmo
levada.
— Eu sei onde ela está — Airton insiste. — Signorina Zanchetta precisa de mim. Deixei
um copo d’água antes de sair. Posso levar um pedaço de pão para ela? Acabei vindo para cá e
não consegui pedir para ninguém na cidade — ele fala sobre a forma que vem sobrevivendo e
cuidando do meu Colibrì.
Dio Santo! Como ela está?
— Você vem para a cidade pedir por comida? — Giulio indaga.
— E também estou procurando mia cugina — Airton responde de pronto. — Signorina
pediu para fugir e tentar entrar num navio de volta para a Itália. Mas não posso fazer isso agora.
Eu vou salvá-la e também a Maria.
— Maria… — O nome não parece estranho. — De onde você é Airton?
— Ilha de Marettimo, signore. — A resposta confirmando minhas suspeitas. Ele era
uma das crianças perdidas e Maria, sua cugina, provavelmente a filha única daquele pescador.
— Consegue mostrar a direção de onde Michela está, Airton? — Giulio levanta-se,
ajeitando o paletó.
— Claro que sei, Don Moretto — O bambino declara, devolvendo-me a esperança.
— Então, você será nosso guia. Depois de Michela, vamos encontrar sua cugina, va
benne? — mio fratello negocia.
— Sì…
Neste momento, meu coração está mergulhado em uma mistura de ansiedade e
esperança. A incerteza sobre seu paradeiro tem sido um tormento constante que me consome.
Mas, a afirmação do bambino com tanta convicção alimentou a expectativa do
reencontro. A esperança seria minha bússola, apontando para o futuro que imagino ao lado dela.
Meu Colibrì…
Logo, ela estaria em meus braços e eu nunca mais a deixaria sofrer nesta vida. Ninguém
nunca mais a machucaria, nem que para isso eu precisasse destruir o mundo, pois descobri que
sem ela… não há mundo para mim.
FAUSTO MORETTO

Desta vez, saímos com mais dois outros veículos, nos escoltando nos moldes de
Marrocos. Os homens de Raja, que nos acompanhavam, estavam com seus fuzis pendurados de
travessado no corpo e viajar em pé nos jipes, segurando no apoio de ferro devia ser um padrão.
Tive a impressão de estar em um ambiente de guerra, porque não havia qualquer
fiscalização sobre o porte de armas pela polícia local.
Confesso que fiquei tentado a me levantar durante o percurso para ver os três outros
veículos, um deles com Luigi e Alessio. Observar e ouvir tudo ao meu redor era um vício
incontrolável, e eu estava sofrendo de abstinência. Mas conversar com Airton, o bambino,
pareceu-me mais interessante para saber como Michela estava.
— A Signorina não disse que a roubaram do seu noivo. Coitadinha. — Airton se
comove quando o informo sobre minha relação com sua amiga. Achei melhor abster sobre o real
motivo de Michela ter caído nas garras dos homens maus, como ele vinha relatando.
Coitadinha… Pressiono os lábios, meneando a cabeça concordando com o estado de
minha noiva.
— Ainda falta muito para chegar até a cela? — pergunto, ansioso.
— Assim que o chão começar a ficar verdinho, estaremos perto — ele aponta alguns
metros adiante. Era curioso como a vegetação se transformava de repente em pequenas glebas de
um paraíso no meio do deserto.
Airton mencionou que Michela estava num casebre e pelas características que elencou,
foi construído em algum tipo de Oásis. Interessante escolha de local para um castigo no qual as
ragazze rebeldes eram mandadas. Morreriam de sede onde havia água.
O Oásis na vastidão do deserto sempre serviu para dar esperança aos viajantes, que
atravessavam terras tão secas que tiravam de qualquer ser vivo a esperança de vida. No entanto,
para minha noiva e as outras moças que Madame Carmelita enviou para a cela, o local
transformou-se no covil de suas mortes.
Não… não seria jamais a morte do meu Colibrì.
— Depois que encontrarmos Michela, vamos atrás das demais crianças. Devemos isso
aos nossos protegidos — Giulio reforça o que disse ao bambino.
— Mia cugina não está na fábrica. Levaram ela para outro lugar, mas não sei onde pode
ser.
— Raja iniciou as buscas nos lugares que conhece. Ele nos dará um norte, bambino —
pontuo. O marroquino justiceiro estava em busca da localização da cidade fantasma há dias. Suas
operações conseguiram desmantelar alguns comércios ilegais de crianças no centro de Alijá e
cidades próximas. No entanto, não haviam italianos dentre as vítimas.
Todos retornaram às suas origens, com a ajuda de membros da ONU com quem Raja
tinha contato.
O fato da bambina não ter sido encontrada podia ser um alívio por ainda não ter sido
violentada sexualmente, mas podia estar morta ou a caminho de, caso vendam seus órgãos no
mercado clandestino.
O destino cruel de almas inocentes que caíam sem pecado no inferno costuma ser o
motivo de muitas pessoas perderem a fé. Sabia que minha criação me moldou para encarar o
diabo de frente no dia do juízo final, mas minha fé continuava intacta.
— É ali! — Airton berra, apontando com o indicador o tal casebre feito de barro. De
longe parecia uma casa humilde como tantas outras que vimos no caminho.
— Vamos! Vamos! — O ânimo em rever meu Colibrì resplandece eufórico em meu
peito. Ela está tão perto… encaro a visão desoladora do casebre, erguido solitário numa
paisagem que não condiz com o horror de sua finalidade.
Giulio acelera, afetado pela emoção que nos envolve por encontrar alguém que estava
perdido. As rodas traseiras derrapam fervorosamente no solo assim que o veículo para com
brusquidão. Seguro o corpo pequeno de Airton num dos braços enquanto que o outro me mantém
pendurado no suporte do jipe. Assim que estacionamos, salto imediatamente e corro apressado
até a porta fechada.
Com o coração batendo descontrolado, tento chacoalhar a corrente que serve como
tranca enfiada num buraco feito na parede. Não tenho tempo. Inclino o tronco para trás e a
madeira podre da porta range com o impacto do meu pontapé.
A penumbra do interior é quebrada pelos raios solares que teimam clarear o local
resumido a um único ambiente. Meus olhos não demoram a encontrar o corpo detrás de grades
enferrujadas que servem como divisória entre nós. Meu Colibrì, meu amor, está ali, em um canto
mais escuro.
O cheiro de desespero e abandono se mistura ao ar empoeirado das paredes de barro. O
lugar é pequeno, mal aguentando o peso dos dias que ela suportou aqui. Sua figura encolhida e
frágil, desprovida de cuidado, é uma visão que quebra meu coração em pedaços.
— Porco Dio! — Giulio profana. — Que merda é essa? Onde ela está? E… Cazzo!
Michela Zanchetta é melhor você não estar morta, stronza! — Mio fratello encara o corpo
deitado no solo inerte. Sutilmente, a cabeça de meu Colibrì se ergue, seus olhos piscando
vagarosamente. É notória a mistura de surpresa e esperança.
— Chela! Chela! — Luigi a chama, transparecendo desespero em sua voz. Ele corre
apressado e se vê impedido de alcançar sua frattela por conta das grades. Alessio está logo atrás
dele absorto num mundo paralelo, parecendo não acreditar em seus olhos. O sentimento de
impotência os cega, limitando suas ações a mero espectadores.
— Esse lugar é estranho… estou alucinando agora de verdade, vendo Giulio e Fausto
Moretto, e ouvindo mio fratello — resmunga, levantando-se com dificuldade. Ela não enxerga
Alessio na sombra de seu irmão.
— Não é alucinação, Colibrì. Estamos aqui — digo baixinho, aproximando-me lento de
mais comparado a ânsia que tenho em envolvê-la em meus braços. Seguro uma das barras
enferrujadas e aperto como se pudesse transformá-la em cinzas.
Seu olhar encontra o meu e vejo as sobrancelhas se unirem, deixando seu rosto
entristecido. A luminosidade precária destaca sua palidez, bem como o vestido simples e sujo,
sem vida, que são os testemunhos do abandono.
Uma lágrima escorre no canto do seu olho direito e o suspiro trêmulo, carregado de
sofrimento, soa como um alívio em meio ao martírio que ela tem vivido. Michela deixa o corpo
cair para o lado, virando de barriga para cima, sem forças para ficar em pé.
— Signorina! Olhe quem eu trouxe para te tirar daqui! — Airton revela sua chegada
dentro do casebre entusiasmado pelo resgate. Ele foi um dos últimos a entrar. Meu Colibrì
soluça, colocando uma das mãos sobre a boca.
— Eu vi, lagartinho. Mas receio que seja tarde. — Ela diz, sem se levantar, apenas
virando o rosto entristecido para nós.
Tuo fratello apenas choraminga, sem saber o que fazer agachado ainda vendo meu amor
por detrás das barras de ferro. O cugino que tanto prolatava ter sentimentos para com mio Colibrì
permanece estático, sem reação.
— Por quê, Signorina? Não é não… levante-se. Lembra do que falei das picadas. — O
bambino se aproxima e eu passo a analisar o lugar com calma, vendo a fechadura da cela.
— Cazzo, Michela! Esse povo gosta de te colocar atrás das grades, hein? A gaiola de
ouro podia até ser uma fantasia entre você e Fausto já que ele insiste em te chamar de Colibrì,
mas isso aqui… — Max assobia, enfatizando a zombaria assim que passa pelo batente. — Você
realmente ofendeu feio algum marroquino, foi?
— Não fiz nada… eles… eles… — Não aguardo o término da discussão, e saco a arma
disparando diretamente na fechadura da cela. Meu Colibrì me encara, tentando erguer o tronco,
em vão.
A aflição da situação ser mais grave do que parece se apodera do meu ser como uma
trovoada. O bambino sabia sobre o perigo não apenas da escassez de água e comida, mas
também das picadas de insetos peçonhentos. E este casebre podia ser a residência de muitos
deles.
Agacho-me próximo ao corpo vulnerável, não sabendo qual seria a melhor forma para
tomá-la num abraço. Haviam alguns hematomas espalhados por suas pernas e braços. A boca
rachada, indicava a desidratação do seu corpo.
— E-eu tive tanto medo… — ela sussurra fraca. — Per favore… me abrace. Tenho
pouco tempo.
Meus dedos deslizam por seu rosto, trazendo sua cabeça para escorar em meu ombro,
dando-me acesso para afagar suas costas.
— Estou aqui agora… — digo em seu ouvido. — Por que você não tem tempo?
Ao apontar para o tornozelo, meu olhar segue o gesto trêmulo, revelando uma picada
envolta de inchaço e vermelhidão.
— Chela, o que aconteceu com você? — Luigi se aproxima, empurrando uma mecha de
cabelo para detrás do seu ombro.
— Um escorpião me picou. Já faz um tempinho… — O arrepio percorre minha espinha,
e meu coração entra numa maratona no mesmo instante. — Mas eu dei conta de assassinar meu
agressor. Olhe!
Ela aponta para o escorpião numa tonalidade marrom, completamente amassado por
uma pedra. O horror se apossa de mim com toda sua fúria. Demoramos para chegar até aqui, e
uma picada dessas pode ser fatal se não ministrado o soro antiofídico a tempo.
— A arte de atrair escorpiões é meu novo talento — ela brinca, uma leveza notável em
suas palavras, mesmo em meio ao sofrimento.
— Temos soro na casa de Raja — um dos soldados marroquinos informa.
— Talvez não haja tempo… — Giulio murmura, fitando o chão, desolado mais com a
ideia de como revelaria tal situação para sua moglie.
Meu peito aperta dolorosamente com a possibilidade em perder a mulher que escolhi,
após ter sido por ela escolhido. O medo se transforma em um pesadelo que estou vivendo
acordado. Meu Colibrì, com uma força sobrenatural, ergue a mão trêmula, acariciando meu
rosto.
— Está tudo bem… você está aqui.
— Só estará bem quando você estiver a salvo, mio Colibrì — replico, com urgência.
Sem hesitar mais, coloco um braço em suas costas e outro abaixo dos joelhos, erguendo-a
comigo. Michela se aconchega em meu peito, encolhida e tão pequena. Sinto-a suspirar com o
alívio por se sentir segura.
— Você veio... — ela murmura, meio acordada, meio perdida nos recantos de algum
devaneio. Sua voz é como um sussurro frágil, uma melodia quebrada.
— Eu iria até o fim do mundo por você, Colibrì — reafirmo a promessa que fiz para
mim, vendo a luz que resta nos seus olhos, teimando em permanecer viva. Eu preciso dessa
teimosia, mi amore. Mais do que tudo agora.
Cada passo para fora do casebre é uma marcha contra a incerteza. A brisa do Oásis
acaricia nossos rostos como um sopro de esperança.
Sento-me de volta no jipe, Giulio gritando para todos se apressarem. Ele grita para Max
entrar em contato com Raja e informar sobre o ocorrido. O barulho ao redor parece um zumbido
distante, pois meus ouvidos captam apenas os pequenos sons que meu Colibrì faz, se
aconchegando em meu peito.
Ao atravessar o deserto, murmúrios ressoam pensamentos tumultuados em minha
mente.
Sabe… não leve pelo lado pessoal, mas não quero me casar.
Não me vejo como uma damigella.
As palavras que antes pareciam mera birra de uma ragazza mimada agora ecoam como
gritos de desespero. A voz se une às sombras que rodopiam em meu peito com o medo de perdê-
la para um mundo no qual jamais poderei entrar.
Se Michela morrer, nunca mais irei vê-la. Para nós não há um encontro na vida pós
morte. Sua alma terá um caminho oposto ao meu e lá não terei câmeras para nem sequer admirar
meu Colibrì.
A sensação da mulher delicada em meus braços, reflete como um eco persistente da
minha própria falha. Ela está entre a vida e a morte, vítima de um destino que minha insistência
em controlar tudo desencadeou.
Meus pensamentos são um turbilhão de autorreprovação. Ela fugiu porque não queria o
casamento, e eu, stronzo, mantive o compromisso para aprisioná-la em outro tipo de cela. Que
imensa ironia…
Seu corpo treme enquanto que gotículas de suor frio brotam em suas têmporas. Ela está
completamente inconsciente.
Dio… não a leve ainda.
Cada instante em que a vejo lutando pela vida reforça o peso da minha culpa.
— Io ti amo, Colibrì. Lute mais um pouco — sussurro baixinho. — Prometo deixá-la
voar. Se depender de mim, você nunca mais ficará presa em uma gaiola. Só lute.
Se Giulio me ouviu, não disse nada, apenas continuou sua tarefa em dirigir para
chegarmos logo. Era possível que minhas escolhas causassem certo tumulto nas tradições da
famiglia, mas um dos pilares da oposição ia cair de qualquer modo. Haviam provas suficientes
de traição contra Germano Vacchio, e com as ondas da maré, poderíamos dar início às
mudanças.
O sacolejar do veículo por passar em uma pedra faz meu Colibrì lamuriar baixinho,
indicando ainda estar ali comigo.
— Mais rápido, fratello — peço. Giulio não se desconcentra, mantendo a atenção do
caminho que ficava menos visível por conta do crepúsculo.
O tempo se torna uma entidade elusiva, enquanto eu tento pensar com clareza. Mio
fratello consegue ir ainda mais rápido.
A vida dela está pendurada em um fio numa corda bamba, que dança no palco do
destino da morte. Então, a culpa que pesa em meus ombros torna-se uma promessa silenciosa
para meu Colibrì: Viva… viva para que eu possa te ver todos os dias… mesmo que de longe.
MICHELA ZANCHETTA

O gosto da sopa de legumes que Rosa insiste em enfiar em minha boca não chega aos
pés da pasta ao sugo de mammina. Sinto saudade de sentir o fio de espaguete escorregando por
meus lábios e deixando o líquido saboroso vermelho pelo caminho a cada garfada.
Estou sendo exigente demais para alguém que estava a dias sem uma refeição decente,
eu sei.
Só que bebericar o líquido repleto de vegetais pela quarta vez me faz navegar em
lembranças para conseguir manter uma cara de satisfação, e assim, agradar quem tem se
dedicado a mim com tanto carinho.
— Queria que Belinda tomasse a sopa tão bem quanto você — Rosa comenta,
dispensando o prato fundo sobre a mesinha de cabeceira.
— Ela ainda não acordou? — indago, compartilhando a tristeza sobre o estado de nossa
amiga. Rosa suspira e balança a cabeça em negativa. — Mas ela consegue comer algo, pelo
menos?
— Sì… Belinda é forte. Está inconsciente desde aquele dia, mas sabe que precisa se
alimentar. Seu corpo acaba aceitando o caldo, engolindo de pouquinho em pouquinho. — Rosa
explica a forma que vem cuidando dela.
Após a sessão de tortura coletiva, as moças foram enviadas para uma das casas mais
simples que Madame Carmelita possuía na cidade. Algumas voltaram ao trabalho na semana
seguinte, mesmo com hematomas no corpo.
Deixei de contar os dias que estava na cela, mas tudo indica que fiquei confinada por
aproximadamente 15 dias. E este é o período no qual minha amiga que me salvou de ser
estuprada está desacordada.
Belinda voltaria comigo para a Itália. Ela precisava de cuidados médicos e eu garantiria
pessoalmente para sua recuperação.
— Ela não devia ter trocado de lugar comigo… — murmuro com pesar. — Se eu não
tivesse aceitado… se…
— Shiii… Belinda não ia gostar de te ver assim. Ela sabia dos riscos e não queria que
você ficasse traumatizada por ser violentada na sua primeira vez — Rosa explica os motivos que
levou todas elas a me ajudarem. — Pelo menos conseguimos salvar uma de nós desse destino
cruel.
— A que custo, Rosa? Eu podia ter morrido naquela cela — aponto a falha no plano.
— Mas não morreu. E agora estamos todas aqui. — Ela pega de volta o prato da tortura,
mergulhando a colher e captura um pendaço de cenoura gigante com outro mato que não consigo
distinguir, enfiando na sequência em minha boca. — Agora coma mais um pouco.
Rosa possuía a qualidade de ver a vida em sua positividade nos momentos mais difíceis.
De certo modo, esta forma de encarar a realidade trazia alento quando nossa mente precisava de
conforto.
Ela sempre dizia que nos momentos tristes, devemos nos ater às memórias felizes
construídas no passado. E quando o passado é assombrado, viva o presente. Contudo, se nem o
passado ou o presente fossem favoráveis, sonhe com o futuro. Neste, o mundo é incerto e repleto
de possibilidades.
O futuro das meninas salvas na boate onde eu estava iam mudar de verdade. Nem todas
voltariam para a Itália conosco no avião dos Moretto, mas Raja estava providenciando o retorno
junto às autoridades internacionais que o ajudavam no resgate de pessoas.
Ainda haviam crianças em fábricas que utilizavam da escravidão infantil como mão de
obra, uma vez que manter crianças vinte quatro horas trabalhando acorrentadas até a exaustão,
significava menos de um por cento comparado ao lucro líquido auferido.
As autoridades locais não intervinham ao passo que o pequeno ser humano era
objetificado pela própria família, quando vendido pelos pais. A maioria das crianças nem sequer
fugiam, porque eram mandados de volta às fábricas.
Por isso, Rosa havia comentado por cima que iria continuar em Alijá. Aparentemente,
quer trabalhar para Raja no intento de auxiliar com as vítimas resgatadas do tráfico.
Muitas crianças demandavam cuidados até retornarem para suas casas, ainda mais
quando eram bebês.
Então, Raja fez uma oferta: Ele gostaria de ter a segunda esposa e se interessou
nitidamente pela beleza de Rosa. Ela não demonstrou aversão à ideia.
Algumas mulheres se habituam com facilidade em dividir a atenção de um homem.
Jamais julgaria minha amiga caso seu veredicto final fosse realmente o casamento com o chefe
da máfia de Marrocos. Cada mulher deve fazer suas escolhas por si mesmas, independentemente
de serem boas ou ruins.
Neste sentido, foi interessante perceber que algumas ragazze[158] não quiseram sair e
permaneceram na boate de Madame Carmelita por opção. Não dá para salvar quem não quer ser
salva. Elas disseram com todas as letras que pertenciam àquele lugar.
Fiquei atordoada quando Lana contou sobre as mexicanas que me ajudaram e quiseram
ficar por lá. Elas fizeram uma votação aberta, coordenando quem saía e quem ficava após o lugar
ter sido dominado pelo trio Moretto e os homens de Raja.
Nem ao menos as casas e a mansão de Madame Carmelita foram poupadas. Parece que a
cidade inteira virou cinzas por conta da guerrilha armada.
Infelizmente, a mulher asqueirosa soube em tempo e desapareceu como fumaça. Raja
informou que não é a primeira vez que acontece. Ele ainda complementou:
— Geralmente quando a poeira abaixa, ela retorna das cinzas como uma fênix.
Fiquei com raiva por uma lenda tão bonita ser relacionada à figura daquela mulher
horrenda. Até porque, eu me sentia uma ave fênix, oras.
Começo a enumerar em minha mente as situações nas quais a lenda caberia mais em
mim do que àquela demônia: Fui traficada; leiloada; salva por amigas; trancafiada em uma cela
no meio do deserto — detalhe que estava num oásis, mas sem acesso à água. E por fim, picada
por um escorpião.
Quer mais o quê?
Passei três dias desacordada após ser resgatada. De acordo com Rosa e Lana, por pouco
não passo dessa para uma melhor. O soro antiofídico foi ministrado assim que chegamos à casa
de Raja, mas a picada havia ocorrido há horas.
Em meus delírios, a visão de Fausto ao meu lado era uma constante. Suspiro com a falsa
lembrança. A cena era tão perfeita… porra.
Não passava de ilusão, já que esse homem beijava minha testa com carinho e pedia
como alguém apaixonado para não o deixar. Tive a certeza de que se tratava de pura doidice
quando o ouvi dizer que me amava.
Impossível.
— Eles chegaram — Lana surge, vindo apressado do corredor e parando no batente da
porta.
— Encontraram os bambini? — Rosa indaga, esperançosa e Lana responde com um
lindo sorriso nos lábios, meneando a cabeça afirmativamente. — São quantos?
— Mais de 10 e menos de 20. Venha! Vamos lá ver. — Ela acena com a mão e Rosa
vira o rosto para mim, insegura em me deixar sozinha.
— Pode ir, cara mia. Eu estou bem e fortificada pela incrível sopa. — Faço um muque
com o braço. Ela e Lana estavam ansiosas com a chegada dos pequeninos. Os irmãos Moretto
como prometido, encontraram a tal cidade fantasma com ajuda de membros da Europol que
brotaram do nada para ajudar. Se não me equivoquei na audição, creio que um deles era a famosa
namorada de Maximus.
Lembro de vê-la de longe no evento do Imperium. Uma mulher de cabelos dourados
muito bonita.
Rosa faz um barulhinho de empolgação, espremendo os olhos e sai em disparada ao
lado de Lana. Minhas mais novas amigas entraram em êxtase quando Raja informou que
algumas dessas crianças vieram conosco no mesmo navio de Sevilha. Era como se estivessem
resgatando parte delas mesmas.
Ouço a balburdia de conversas animadas e o ânimo de crianças que revigorava a
esperança de todos os soldados dessa guerra contra um inimigo em comum. Expiro uma risada
feliz repleta de alívio. Vou descendo meu corpo, vagarosamente até estar mais deitada do que
sentada na cama.
Então, pego o pequeno caderno de desenho que Luigi havia me dado assim que acordei,
e passo a traçar riscos formando a paisagem que admirei através das grades na cela. O tempo
passa sem que eu me dê conta quando estou perdida nos cantos de minha imaginação.
De repente, um homem alto de ombros largos, que se pudesse dormiria de terno, adentra
no quarto.
— Acho que precisamos conversar, Michela — Giulio, senta-se na cadeira antes
ocupada por Rosa. Endireito-me no colchão, encostando na cabeceira da cama.
— Sì, cognato… — Suspiro alto. — Precisamos.
Ele hesita, demonstrando que fora instruído por Francesca com antecedência para me
abordar. Acredito que só assim, o brutamontes de Giulio Moretto ficaria contido para não me
estrangular.
— Você foi burra. Não pensei que diante de tanta genialidade por conta dos seus
desenhos, fosse tão obstruída de raciocínio. — Direto. É… Talvez Francesca não falou nada para
o stronzo.
— Aprendi há algum tempo que para entrar no clã Moretto era preciso perder alguns
neurônios. O homem que casou com mia frattela me ensinou a respeito — não contenho a
malcriação. Veja bem… ele me chamou de burra. E se quase morri duas vezes, mas ainda estou
aqui, acabo por me sentir como o Highlander[159].
Giulio fica sério por alguns segundos até extravasar a tensão, soprando um riso
debochado.
— Você é uma dor de cabeça do caralho, mas à mia Bambola pegar leve. Acredito que
muitas pessoas irão dar sermões que você vai merecer ouvir. — Ele recosta no espaldar da
cadeira e cruza as pernas. — Tua frattela está feliz com o seu retorno, e ela será uma dessas
pessoas. Então, seja menos petulante, ragazza. Não serei bonzinho se entristecer mia moglie.
— Jamais queria entristecer ninguém… Muito menos Tchesca que está esperando meu
sobrinho.
— Sobrinhos. Plural. — O maledetto encara as unhas ao invés de olhar para mim. —
São três para ser mais exato. Dois meninos e uma principessa.
— O quê? — Impulsiono o tronco para a frente com a notícia tardia. A sensação de ser a
última a saber sobre algo tão importante golpeia meu peito com a decepção.
— Graças a você, ela teve um pequeno sangramento e não pode mais frequentar às aulas
neste semestre. Que porra pensou ao fugir num momento tão importante para ela? — Agora ele
me fuzila com o olhar. — Sabia que era uma ragazza mimada, Michela. Mas egoísta? Isso foi
novidade.
Não consigo encará-lo, porque está completamente certo. Pensei apenas em mim o
tempo todo em que planejei essa fuga de merda. Sabia da condição de Francesca e por mais que
repeti diversas vezes que ela estaria assessorada por nosso clã e tuo marito, eu não estaria
presente. A frattela que sempre esteve lá por ela… e ela por mim…
Merda.
— E-ela está bem? — gaguejo. — Digo agora… ela está bem?
— Sì, está. E como sua condição é delicada. Vim aqui para te alertar quanto às palavras
que pensa em retrucar quando a ouvir. — Giulio soa áspero. Em seguida, respira fundo,
parecendo ter findado a primeira parte da conversa. É… deveria saber que seria uma palestra. —
Agora, preciso saber tudo o que aconteceu com você até terminar numa gaiola enfeitada.
Gaiola enfeitada? Ele viu o leilão?
Pisco algumas vezes, sem entender o sentimento que rodopia meu peito. Fausto me viu
naquela gaiola?
Oddio! Que vergonha…
— Como você sabe da gaiola?
— Foi assim que te achamos. Ou melhor, que a Europol te achou. Madame Carmelita
parece ter divulgado um vídeo leiloando uma virgem e fizeram a comparação de rostos.
Oddio! Oddio! Oddio! É muito pior…Passo as mãos pelo rosto, afundando o globo
ocular para dentro do cérebro. Eu fui vista não apenas pelo trio Moretto, mas por várias pessoas
naquele lugar horrível. Aqueles homens todos gritando abaixo de mim, e…
— Já vi muitas coisas, Michela. Se não fosse a porra daquele vídeo, você poderia estar
morta naquela cela. Então, não tenha vergonha por ser uma sobrevivente. Você não estava lá por
escolha própria. — Ele estala a língua e repensa. — Foi por uma péssima escolha, mas sua
vontade não era terminar como um passarinho de verdade.
Mio Colibrì… A voz de Fausto ecoando em minha memória foi o que me deu forças
para segurar mais firmemente naquelas barras e não cair.
— Anitta foi quem planejou tudo na verdade. — Abaixo a cabeça, sentindo-me burra
por ter sido manipulada por quem julgava sendo uma amiga. — Ela me apresentou seu primo,
chefe de uma gangue, e associado da famiglia. Você deve conhecê-lo… Cassio Catto? —
apresento o nome que me foi informado. Na atual conjuntura, duvido de tudo.
— Ele não era o chefe. Mas sim sua amiguinha. Ela queria vingar o irmão e acabou
comprando uma briga sem medir as consequências. Uma figlia del puttana, que encontrou o
irmão no inferno. — Giulio gesticula com a mão, de modo desdenhoso.
— Anitta? Mas ela… — ele ergue uma sobrancelha, desafiando meu intelecto com a
feição arrogante. — Ela armou tudo… — concluo, vendo mio cognato balançar a cabeça.
— Mas preciso de mais, Michela. Seja útil.
Rosno baixinho, querendo retrucar à altura. Contudo, o que poderia contradizê-lo se me
sinto tão estúpida quanto ele sugere.
— Tiraram meus passaportes assim que cheguei em Sevilha. Bom… estava na minha
mochila com os documentos falsos que me deram. — Chacoalho o ombro indiferente. — Um
homem me levou até uma mansão fora da cidade, pois seu chefe queria me conhecer.
— Como era esse tal chefe? É alguém da famiglia?
Balanço a cabeça em negativa, recordando-me daqueles olhos maldosos.
— Ele tinha cabelos lisos e escuros. Os olhos eram claros e havia uma cicatriz sobre
parte do rosto que parecia um raio de cima a baixo — revelo, abraçando-me por sentir a solidão
que senti até Belinda se aproximar de mim no navio. — Mas ele se vestia como um membro da
máfia, e tinha soldados.
— Tem certeza que nunca o viu antes?
— Tenho. Ele não é o tipo de pessoa que passa despercebido sem ser notado. Porém…
ele me lembrava alguém. — Bato o indicador sobre o queixo, pensativa.
— Quem?
A pergunta vinha rondando minha mente desde que enfiada naquele container. Mas
nenhuma imagem se concretizava ao ponto de afirmar saber com quem o infelicce se parecia.
— Belinda sabe o nome dele — afirmo de pronto, como se fosse uma pista certeira.
— Quem é Belinda?
— A ragazza que está desacordada. Ela logo irá acordar e poderá contar tudo para a
famiglia.
— Sua amiga que está em coma? — Libera o ar numa lufada pelas narinas, frustrado. —
Talvez nem chegue à Palermo com vida.
— Não diga isso. Aiiii… — Sinto a fisgada de dor latejante em meu abdômen. Fui
também espancada com fervor antes de ser jogada na cela. A escassez de alimento e água não
ajudaram em nada em minha recuperação. Ainda precisava de mais tempo de repouso.
— Não fui eu que a coloquei naquele estado deprimente, cognata. Concentre seus
esforços em orações poderosas. Sua amiga vai precisar de um milagre para acordar, e se…
acordar.
— Ela vai… e vou pedir para papà ajudar e…
— Eu pago o tratamento da ragazza, Michela. Foi ela que protegeu sua virtude, não foi?
A porra de uma virtude que me fez valiosa para ser leiloada como um animal numa
gaiola? Sì… foi. Merda. Não prolato o pensamento em voz alta. Acredito que meus créditos
como Highlander haviam acabado.
Meneio em afirmativo.
— Signorina Zanchetta! SINGNORINA! — Os gritos de Airton imperam nos arredores
até pararem em minha porta. — Te achei, Signorina! — O bambino me olha alegre, cortando
minha conversa com Giulio. Glória! — Olha! Quero te apresentar à minha cugina, Maria. — Ele
empurra-a para dentro do cômodo.
A bambina mais alta do que ele, mas com traços similares, me olha ressabiada, com as
mãos entrelaçadas na frente do corpo.
— Buona notte, Signora — cumprimenta tímida.
— Buona notte, Maria. Ouvi muito a seu respeito — informo-a, sorrindo. Mio cognato
pega a deixa e começa a se levantar.
— Vou deixar vocês conversarem à vontade. Ah… já conte para a Signorina Zanchetta
que retornaremos dentro de dois dias. Va benne, Airton? — Ele bagunça os cabelos do lagartinho
de modo divertido.
— Sente-se aqui, Maria, quero muito conhecê-la. — Dou batidinhas no colchão ao meu
lado. Ela se senta devagar enquanto Airton dá um salto do meu outro lado, pegando o pequeno
porta-joias que enfeitava a mesinha de cabeceira. Ele o abre revelando uma pequena escultura de
bailarina em porcelana. Em seguida, rodopia o botão abaixo, deixando a música delicada ressoar
pelo ambiente.
— Airton contou que a Signorina estava em uma cela… — Ela gira os dedinhos da mão
em seu colo. — Eu também estava.
Engulo em seco, com medo do que a pequena iria me contar. Ela observa seu cugino
entretido com a caxinha musical.
— Te fizeram mal, Maria?
— Não mais do que fizeram para Airton. Me deram pouca comida, me fizeram dormir
no chão. Parece que meu coração era valioso. — Ela coloca as mãozinhas sobre o peito. — Eles
iam me entregar hoje para alguém, mas me salvaram a tempo.
— Don Moretto é muito bom — Airton acrescenta à conversa. É… dependendo do
ponto de vista, podia se dizer que sim.
— Sì… nem acredito que vou ver mammina de novo.
— Nem eu… — Novamente meu lagartinho emenda.
— Nem eu — também enfatizo. Não pensei que viria mia mammina tão cedo. Então,
mesmo que antes estava ciente de que veria mammina apenas daqui alguns anos, passei por
momentos em que pensei jamais vê-la novamente. À vista disso, estou tão empolgada quanto as
crianças para rever sua madre.
Não importa que vou ser recebida com uma carranca e promessas de castigos eternos
por ela e por todos do meu clã. O simples fato de saber que poderei abraçá-los me conforta
imensamente.
— Desta vez, vou prometer que serei um bom ragazzo. — Airton estufa o peito,
revelando formas de compensar sua ausência.
— Também vou. Nunca mais vou brigar com mia mammina — Agora é a bambina
Maria.
— Digo o mesmo. Vou prometer cumprir meus deveres como damigella e nunca mais
decepcionar minha família. — Sinto-me participando de uma pequena competição com as
crianças.
Contudo, minha promessa ia um pouco além das meras obrigações infantis e sim
assumir de vez o compromisso pelo qual fugi.
Casar-me com Fausto Moretto não parece mais um destino tão cruel, afinal.
MICHELA ZANCHETTA

Sempre tive a impressão que o elevador privativo para a cobertura de Don Moretto era
gigante. Mas estar dentro dele acompanhada do trio de irmãos, Luigi e Alessio, correspondia à
sensação de estar completamente exprimida em uma lata de sardinha.
A ansiedade angustiante em chegar no último andar fazia com que a distância a ser
percorrida do térreo até a cobertura luxuosa aumentasse para mais de 30 andares. Não sabia
como seria minha recepção, porém meu peito cavalgava com as batidas frenéticas do coração
desde o momento em que aterrissamos.
A viagem para Palermo não demorou seis dias, e também não passei fome ou sede
durante o trajeto. No entanto, a tempestade de emoções que agitava meu ser tornava cada
momento em um desafio digno da cutelaria.
— Podia ter usado o outro elevador… — Max reclama, indicando estar tão
claustrofóbico quanto eu.
— Pensasse nisso no térreo — Giulio esbraveja, de braços cruzados, balançando o
indicador como se estivesse contanto. Deve estar ansioso para rever sua moglie.
Permaneço calada, tentando ser tão invisível quanto eles demonstraram que eu era. Senti
que estava sendo ignorada propositalmente pelos irmãos Moretto.
Não me incomodei pela falta de interação com mio cognato. Até porque, nas poucas
vezes em que conversamos ou começava ruim, ou terminava pior ainda.
Don Moretto sabia manipular as mentes das pessoas de modo a torturar
psicologicamente seus inimigos. E, pelo visto, passou a me encarar como tal. Não podia
reclamar, pois estava sofrendo as consequências da minha escolha errada.
Confesso que meu real incômodo estava pela indiferença nos olhos de Fausto. No avião,
ele sentou-se ao lado de Airton e passou boa parte da viagem me ignorando. Todas as vezes que
tentava participar da conversa entre ele e as crianças, sentia-me excluída.
Merda…
Havia aprendido minha lição e estava voltando para Sicília com o rabinho entre as
pernas. Não reclamei em momento algum e aceitei meu destino como a futura esposa do
Sottocapo. Será que acabei magoando o mafioso nerd? Ele parece chateado…
Não… Ainda devo estar alucinando por conta do veneno de escorpião. Esses homens
são forjados em aço.
Fausto aceitou o compromisso comigo por ser uma determinação do seu Don. Deve
estar com o orgulho ferido. Suspiro alto, constatando que ainda passávamos pelo quinto andar.
Acabei causando sensações de estresse em todos, reflito.
No instante em que desci da aeronave particular pude sentir a amargura dos membros da
famiglia para comigo. Paolo e os demais soldados que costumavam fazer minha segurança
estavam no hangar, e eles soaram ainda mais robóticos do que antes ao me cumprimentarem.
Era como se a obrigação em me aturar passasse do nível de um mero incômodo para
desgosto. Infelizmente meu emocional está completamente abalado, e tal situação só piorou
ainda mais a angústia que me consumia ao imaginar como seria minha recepção por quem
realmente importava.
Todos estavam me julgando pelo fato de não dar valor à famiglia que me tratava como
uma princesa, título que deveria compor qualquer currículo de damigella. A opinião alheia para
mim era o mesmo que nada, no entanto, como revelei, meus sentimentos estão à flor da pele.
Por isso, o olhar acusatório com o qual vinha sendo fuzilada passou a me chatear.
Encolho-me querendo ser engolida pelo casaco que estou vestindo.
Gostaria que mammina me recebesse com o mesmo abraço carinhoso que presenciei há
pouco quando os pais reencontraram seus filhos desaparecidos.
Três famílias de pescadores estavam presentes no instante em que aterrissamos, e quatro
crianças retornaram ao seus lares, duas delas eram irmãs. Infelizmente, um infante nunca mais
sentiria o afago de sua mammina. O bambino de oito anos já tinha sido levado e seu corpo foi
encontrado com a maioria dos órgãos faltando.
Chorei ao ouvir o relato de Raja ontem à noite durante o jantar. Nosso anfitrião havia
preparado uma bela refeição de despedida, na qual todos aqueles que o ajudaram nos últimos
resgates estavam presentes.
— Você ficará bem, ragazza. Não se esqueça do quanto foi corajosa. — Lembro-me da
última conversa que tive com Rosa. Ela realmente permaneceu em Marrocos e aceitou se tornar a
segunda esposa do mafioso marroquino.
— Eu tive muito medo, isso sim.
— O medo não diminui sua coragem, mas a alimenta. Continue erguendo esse narizinho
arrebitado para o mundo, que conseguirá todos os seus sonhos — minha amiga disse com tanta
convicção que não quis revelar ter entrado para o grupo de desertores. Enfretei batalhas
suficientes e fui ferozmente derrotada na guerra para alcançar meus sonhos.
Diante de tanto sofrimento, percebi que meu lugar jamais seria de minha escolha. Nasci
no meio da máfia e filha de um clã poderoso, ou seja, possuía grilhões invisíveis e totalmente
inquebráveis.
O máximo que conseguiria era estender meu escudo de proteção para minhas amigas.
Rosa está protegida agora por seu futuro marido, enquanto que Lana e Belinda ficariam
conosco.
Embarcar no avião particular do clã Moretto foi uma experiência agridoce, carregada de
emoções conflitantes. Belinda permanecia desacordada, seu corpo fragilizado repousando
serenamente numa maca especial. Lana passou a viagem inteira ao seu lado. Algumas vezes a
peguei conversando como se nossa amiga pudesse respondê-la. Era de cortar o coração.
Como prometido, uma ambulância aguardava para levar Belinda até o hospital. Lana se
prontificou em acompanhá-la. Mais tarde ela viria para cá passar a noite em meu apartamento.
Vou ajudar minha amiga a se reestabelecer aqui na Sicília.
Ela quer trabalhar para juntar dinheiro e abrir uma confeitaria. Não lhe contei nada, mas
ainda tenho dinheiro de Éloise Dufour guardado em minha antiga conta no banco, e pretendo
investir no mercado de doces caseiros.
Só de pensar em retomar meu trabalho fico emocionada. Teria que pedir permissão à
Fausto após o casamento para manter meu trabalho, e nisso vou insistir com unhas e dentes.
Espero que mio sposo definitivo permita.
O elevador finalmente chega ao andar respectivo. À medida que as portas deslizam
abertas, sinto o frio na barriga por antecipação. Estou ansiosa para rever meus familiares, em
especial mia frattela grávida de trigêmeos. Caspita!
Como será que ela está?
A imagem de Francesca com uma pequena protuberância no abdômen surge em minha
mente, o que imediatamente irradia uma alegria desconhecida em meu peito. Eu vou ser zia[160]!
Giulio me ultrapassa, colocando a digital na porta e entrando em sua casa como uma
trovoada impiedosa.
— Bambola! Amore mio! — Ouço-o, ainda no interior da caixa metálica.
Maximus segue o irmão mais velho. Ele ainda estava emburrado porque queria ir direto
ao encontro de sua namorada, mas Don Moretto não permitiu. Na sequência mio fratello e
Alessio acompanham a carreata, deixando-me para trás.
— Anda, Michela. Venha — Fausto é quem me chama, segurando com um braço a
porta do elevador.
Pisco algumas vezes, saindo do transe pelo fato de ver mio cognato se comportar
desesperado em busca de sua moglie. Neste momento, percebo a ferroada de tristeza que me
atinge estranhamente por não ouvir o mafioso nerd me chamar de Colibrì.
Louca… estou completamente louca. Faço uma anotação mental para visitar algum
psiquiatra assim que possível. Minhas emoções parecem tomar proporções absurdas em situações
tão pequenas.
— Scusami… — digo baixinho, e caminho cabisbaixa, passando por ele sentindo-me
extremamente pequena. Dou um passo atrás do outro cautelosamente até que chego à sala de
estar da cobertura.
Meus olhos encontram um cenário que desafia a realidade. Mio papà, com os olhos
marejados, se levanta abruptamente do sofá, sua expressão de incredulidade transformando-se
em pura alegria ao me ver. Mia mammina, com as mãos trêmulas, vem até mim, chorando
copiosamente. Eles me abraçam e beijam meu rosto insistentemente.
— Figlia, tive tanto medo… — mammina diz entre os soluços do choro. — Você está
bem… não está? — A indagação soa retórica, já que ela mesma balança a cabeça
afirmativamente.
— Claro que está, amore mio. Nossa figlia está aqui… viva — Papà me envolve num
abraço de urso, beijando o topo de minha cabeça. Ele suspira, não se importando em estar
chorando na frente de outros homens da famiglia.
As lágrimas escapam dos meus olhos numa cachoeira incontrolável. Estou sorrindo,
chorando, e sendo acolhida pelos braços de i miei genitori.[161]
Após a recepção acalorada, vagueio o olhar constatando que Francesca me observava
com o semblante sério, sentada no sofá com uma manta sobre as pernas ao lado de Giulio,
aparentando estar de repouso. Ele comentou sobre o sangramento e que mia frattela não poderia
frequentar as aulas neste semestre.
A sombra da culpa me envolve, fazendo meu coração pesar como se fosse feito de
chumbo. Mio cognato cochicha algo no ouvido de Tchesca, e mia frattela balança a cabeça para
os lados em negação.
Abro os braços, querendo sentir a conexão que sempre tive com Tchesca. Ela fica em
pé, sua imagem turva por conta dos meus olhos encharcados caminhando até mim. Então,
aguardo seus braços me envolverem, mas…
Meu rosto é jogado para o lado com o tapa estralado que recebo, ardendo minha
bochecha. Fico parada. Outro tapa desta vez acerta meu pescoço e em seguida outro e mais
outro.
— Francesca, não! — Mammina é quem pede por mim. — Luigi, faça algo.
Vejo mio fratello pelo canto dos olhos cruzar os braços.
— Giulio! Ela não pode se esforçar — Annunziata Zanchetta usa das armas que possui
para me proteger, o que aparentemente surte efeito, pois mio cognato levanta-se e segurando os
braços de modo delicado afasta mia frattela, colocando-a de volta sentada no sofá.
Ele lhe dá um beijo casto, e começa a enxugar suas lágrimas que escorriam pelo seu
rosto pálido. Meu coração fica pequeno ao ver Tchesca suspirar derrotada. Em seguida, os olhos
verdes retomam sua fúria para me encarar.
— Como você pôde fazer isso comigo, Michela? — A voz de mia frattela ressoa
embargada. — Como resolveu fugir sem nem ao menos me contar?
— Se tivesse contado não seria uma fuga, Tchesca — respondo, tentando não
transparecer a petulância que Giulio me alertou. — Eu… eu sinto muito.
— Ah…você sente?
— Bambola, você não pode…
— Não posso o quê? Ficar brava com uma ragazza que não se importa com sua família?
— Ela praticamente volta sua raiva agora para Giulio. Será que por ser três, o fator hormonal
aumenta?
Mio cognato suspira como se este não fosse o primeiro surto de Francesca. Ele passa as
mãos pelo rosto, em seguida fita Fausto, elevando o queixo em minha direção num leve
movimento que não precisa de maiores explicações.
Ergo a palma antes que meu noivo se aproxime e me dirijo a Francesca, caindo-me de
joelhos em sua frente. Mia frattela fica em silêncio.
— Eu não mereço seu perdão, Tchesca. Sei que não… mas farei de tudo para que me
perdoe. — Ergo o olhar e vasculho toda a sala, incluindo mio sposo. — O perdão de todos vocês.
Estou levantando-me vagarosamente quando sinto uma mão quente envolver a minha.
Francesca me puxa de volta para baixo e quase caio, mas me rendo novamente aos meus joelhos.
— Tive tanto medo de nunca mais te ver, Chela. Tanto medo. Nunca mais se atreva a
sumir assim. Nunca mais… — Mia frattela me abraça apertado. — Tenho três crianças a
caminho e preciso da tia deles por perto.
— Eu estarei aqui, Tchesca. Estarei de agora em diante para sempre aqui — sussurro,
chorosa, deixando as lágrimas retomarem seu curso.
Talvez nunca revelaria para Francesca o que me levou a fugir da famiglia, pois não
quero que olhe para os homens com quem convivemos de modo diferente. Ademais, todos eles
podiam ser o terror de muitos rivais, mas nunca foram para nós. Até mesmo Giulio Moretto, que
é o Don da Cosa Nostra, aqui, dentro de sua casa, era apenas o marido perfeito de mia frattela, e
nada mudaria isso.

Minutos depois, Fausto me acompanhou até meu apartamento, calado. Pensei em mil e
uma formas de começar uma conversa e parei antes que qualquer som saísse de minha boca.
Cada gesto, que outrora estava repleto de carícias com segundas intenções em nossos
momentos a sós, parece agora envolto em uma névoa de distância. Algo parecia errado. Muito
errado. Não gosto de me sentir insegura, no entanto não vejo nem sequer argumentos para
questionar a forma com a qual meu noivo vem me tratando.
Da mesma forma que mereci os tapas dados por Francesca, sinto ser merecedora da
indiferença de Fausto Moretto. Ele antes queria me seduzir para ter uma esposa em sua cama, e
agora, estando novamente tão perto, o sinto a quilômetros longe de mim.
— Signora Isabel limpou seu apartamento enquanto estava fora — ele disse assim que
parei em frente à porta para destravar com a digital.
— Grazie — agradeci.
— E Paolo informou que Lana passará esta noite no hospital. Parece que sua amiga
ainda não confia nas pessoas para deixar Belinda aos cuidados das enfermeiras. — Ele passou
uma das mãos em sua nuca. Percebi que evitava meu olhar, deflagrando em mim uma
inquietação por conta da mudança. Era como se algo importante escapava entre meus dedos.
Então, ele se despediu brevemente sem me dar tempo de falar mais nada. Achei
esquisito quando tomou o caminho das escadas para não aguardar o elevador ao meu lado.
Entrei em meu apartamento catalogando cada pedacinho da vida, que pensei em me
desfazer pela ilusão de que viver fora de casa estaria sendo livre das sombras da famiglia. Pura
ilusão. Acabei caindo em um poço muito mais escuro do que a penumbra na qual tentei fugir.
Tiro o casaco pesado arremessando-o no sofá. Estava usando roupas compradas em
Alijá e as lembranças de onde estive me sufocavam ao ponto de me fazer tirar tudo, quase
rasgando o tecido. Entro no banheiro, indo direto para o chuveiro querendo lavar os sentimentos
que me estrangulam formando um nó na garganta.
Despejo minha aflição em um choro desesperado. As lágrimas se confundem com a
água quente que escorre por meu rosto. Que merda eu fiz… Francesca podia ter perdido seus
bebês por minha causa…
Carregarei o peso de arrependimentos, cada um se sobrepondo ao outro, amplificando a
sensação de falha.
Quando meus dedos estão mais enrugados do que um tecido amassado, decido sair e
encarar as consequências dos meus atos. Agora é o momento para me redimir.
Cada olhar decepcionado que encontrei torna-se um lembrete constante de que preciso
mudar, e buscar o perdão de quem julguei e condenei à vergonha por ter uma noiva fujona.
Entro em meu closet, buscando por um dos vestidos que mammina aprovaria como de
uma damigella de respeito. O tecido cor-de-rosa que vai até a altura dos joelhos com um cintinho
fino, de mangas finas, é o escolhido.
A temperatura dentro do prédio não correspondia à noite fria lá de fora por conta do
aquecedor geral. Acredito também que minha pulsação acelerada pela decisão que havia tomado
estava interferindo em minha sensação térmica.
Em seguida, busco um sapato simples claro. Quando me encaro no espelho tenho a
certeza de estar com as roupas adequadas que mammina aprovaria.
Pronto.
Aguarde, Fausto Moretto. Eu estou indo até você e pretendo atropelar toda essa
indiferença que tem o afastado de mim na marra.
FAUSTO MORETTO

Precisei me conter para não cortar os membros de alguns soldados que olharam meu
Colibrì enviesado em sua chegada. Ela havia acabado de sobreviver ao inferno e eu não
permitiria que ninguém a julgasse.
Michela não seria a primeira damigella a tentar fugir de um casamento por obrigação,
independentemente de com quem esteja se casando.
Os homens da famiglia eram leais e estavam criticando sua atitude com base naquilo
que vinham ouvindo dentro de suas casas. Pelo visto, até mesmo as próprias mulheres da Cosa
Nostra estavam fazendo a caveira de minha noiva… ou seria ex noiva? Não sei…
De qualquer forma, essa decisão ainda precisava ser comunicada formalmente ao meu
Don, e creio que após o rompante de Francesca, aguardar um ou dois dias seria melhor.
Meus passos cansados ecoam pelo apartamento, estou exausto. Minha cabeça está
latejando, o que revela o ápice de esgotamento no qual me encontro, físico e psicologicamente.
Passar horas perto de Michela e controlar a vontade de tocá-la, demonstrou ser algo
extremamente doloroso.
O paletó do terno cai dos meus ombros, e deixo-o largado no chão. Poderia pegar ao
invés de transformar meu caminho num closet, mas o desânimo tomou conta de mim.
Bufo o ar lentamente, liberando toda minha frustração. Sigo, jogando o coldre com as
armas pelo corredor, em seguida puxo a gravata e desabotoo o colarinho.
Precisava ao menos saciar o vício que quase me enlouqueceu pela ausência das telas
luminosas.
Meu QG encontrava-se da mesma forma que o deixei dias atrás. O brilho frio dos
monitores revelava as vidas interligadas de modo a cumprir o destino, permitido pela Cosa
Nostra.
Tudo fazia parte de um imenso espetáculo, no qual os personagens seguiam seus
roteiros minunciosamente. Desde o Caporegime corrupto até a damigella de maior prestígio que
traía o marido.
Afundo-me na cadeira gamer, observando as imagens que se desenrolam diante de mim.
Meu vício de vigilância se alimenta, enquanto meu olhar varre cada quadrante. É como se meu
cérebro se saciasse a cada nova imagem capturada. Todos estão sob controle, e seguem a rotina
permitida por nós. São meras marionetes ocultas no jogo de interesses que o Consiglio
administra.
A ideia em ter a vida limitada aos anseios da famiglia foi o motivo real que levou meu
Colibrì para longe, numa tentativa falha de liberdade. O ambiente começa a me sufocar aos
poucos, por isso abro os botões da camisa, e na sequência puxo o tecido da calça, deixando a
peça aberta e expondo meu tronco.
Os pensamentos sobre o futuro surgem como uma enxurrada enquanto observo as
imagens das ruas piscando nos monitores. Pessoas com casacos indicam a queda de temperatura,
o frio lá de fora não se comparando à frieza que se instala em meu peito.
A decisão de romper o noivado segue pesando em minha mente, machucando meu
coração com a escolha dolorosa, mas necessária.
Passo as mãos sobre o rosto, percebendo que minha visão está embaçada.
Ela fugiu, buscando escapar das correntes que amarravam sua vontade à mim. A trágica
fuga quase a destruiu. Meu Colibrì sobreviveu ao terror da crueldade humana, emergindo dos
escombros da mesma forma que a luz resplandece em meio à escuridão.
Sinto o peso da culpa repousar sobre meus ombros. Francesca está errada, pois Michela
não foi egoísta, eu fui.
Eu quis prendê-la a mim. Um pequeno Colibrì que bate suas asas ferozmente em busca
de tantas flores não foi feito para ficar preso em uma gaiola. Não…
Ela nunca quis esse noivado. Apoio a cabeça no encosto, suspirando alto. Não houve
escolhas, mas sim, imposições. Primeiro tentou escapar do compromisso com Alessio, e depois
acabou ligada à mim na esperança de que fosse ceder ao seu pedido.
“Eu não quero me casar”. A frase replicada em minha mente indica o quanto fui tolo.
Pensei que por ser virgem, Michela seria facilmente seduzida. Ela não é como as outras…
deveria saber.
E eu… Cazzo! Eu é quem fui seduzido.
Minha decisão não é apenas um ato de renúncia, mas um presente de liberdade por meu
amor. Ela viverá onde quiser e como quiser, e eu me contentarei apenas em assisti-la.
Neste instante, clico para ter acesso da visão à porta do seu apartamento, encarando os
números e a fechadura. De repente, ela se abre e meu Colibrì aparece, tão bela quanto antes.
Assim que fecha a porta e se volta para a saída, noto seu peito subir e descer com uma
respiração alongada, aparentando tomar coragem. Ela dá passos contidos até entrar na caixa
metálica. Transfiro a tela para a câmera do elevador, vendo-a apertar o botão correspondente ao
meu andar.
A sensação de nostalgia me pega desprevenido, remetendo-me à madrugada na qual a
recebi tão somente de pijamas em minha porta.
Que porra ela está fazendo?
Desta vez, suas roupas são discretas e aproximam-se daquelas que a costumava ver nos
dias que sua mammina estava conosco. A perfeita damigella.
Michela para em frente à minha porta, completamente absorta em pensamentos. Não
resisto e dou o comando para a fechadura automatizada se abrir de súbito. O olhar surpreso que
capto na filmagem me faz sorrir. Ela é linda…
Ao observá-la, meu coração bate em um ritmo acelerado. Seus olhos, tão expressivos,
transmitem uma confiança emprestada, diferente de quando veio pedir para ajudá-la na mentira.
Com passos hesitantes, mio Colibrì adentra em meu apartamento. Induzo seu percurso
acendendo as luzes respectivas para que ela venha até mim. Meu corpo todo se arrepiando em
antecipação.
A cada passo que ela dá em direção ao meu QG, sinto um misto de euforia e
inquietação. Ela transforma minhas decisões em folhas ao vento, conforme a vontade de tocá-la
torna-se absurdamente insana.
Enfim, ela me encontra. A sala está iluminada apenas pelas telas dos monitores, minha
cadeira ao centro deixa meu corpo voltado para ela.
Seus olhos estudam o cômodo, primeiro passeando pelas telas luminosas, acostumando-
se à penumbra. E então, nossos olhares se cruzam.
Ah… mio Colibrì, por que diabos veio servir como refeição para um leão faminto?
— O que está fazendo aqui, Michela?
Ela enruga o nariz arrebitado, o que me deixa curioso acerca de sua reação. Inclino a
cabeça para o lado, analisando-a.
Meu amor se aproxima, colocando um pé na frente do outro, fazendo com que o quadril
balance para os lados exageradamente.
A cena me entorpece de tal maneira que não me atento ao momento em que ela apoia
um joelho em minha cadeira e entre as minhas pernas, debruçando-se sobre mim.
— Não sou mais seu Colibrì? — Desvio o rosto para o lado, com um riso frouxo de
nervoso. Meu pau deu sinal de vida assim que a vi sair de seu apartamento, bem como meu tolo
coração. Chamá-la pelo apelido carinhoso me faria ainda mais patético.
Seus dedos delicados seguram meu queixo, virando minha cabeça para ela. Caralho.
Isso é ser dominado por uma mulher? Acredito que sim.
— Me chama de Colibrì… per favore — Os olhos suplicantes me hipnotizam, fazendo-
me mergulhar no mar aberto sem bote salva-vidas.
— Colibrì… mio belo Colibrì… — atendo à ordem, com um sussurro rouco, inebriado
pela nuvem de sedução na qual Michela me enfeitiçou. Ela me presenteia com seu sorriso doce,
em seguida vejo as pálpebras se fecharem e sinto o toque suave de seus lábios macios.
Um sonho… Estou vivendo a porra de um sonho.
— Quero te ouvir me chamar assim… a noite toda, va benne? — Meneio a cabeça em
positivo, completamente entregue e obediente.
A boca deliciosamente se entreabre assoprando o ar quente, antes de retomar o contato
com a minha. Sinto a ponta de sua língua desenhar meu lábio superior numa lentidão torturante.
— Colibrì… mio Colibrì — murmuro, extasiado.
— Isso… mio Mafioso Nerd.
Saboreio a pele macia de sua boca, envolvendo seus lábios nos meus, seguindo o ritmo
lento da dança na qual ela me puxou para o centro do baile. Minhas mãos tomam vida própria,
subindo sem pressa pelas laterais de suas coxas. Sinto a pele lisa e delicada nas pontas dos dedos,
à medida que a saia do vestido sobe com o movimento.
Ela ofega, gemendo baixinho. Continuo o caminho, testando as águas devagar. Meu
Colibrì engalfinha os dedos em minha nuca, puxando-me para si, forçando meus lábios a se
abrirem para receber sua língua exigente.
O beijo deixa de ser delicado, e me permito submergir nas ondas que Michela conduz,
nadando e nos arrastando cada vez mais para o fundo do oceano. Ela suga meus lábios
desesperadamente, expondo a mesma necessidade que impera em meu ser. A língua rodopia
deslizando na minha de modo sensual. Jamais fui beijado com tamanha paixão, pois sempre
mantive o controle.
Esta noite, o controle será completamente dela…
Seus beijos deslizam por meu maxilar, desenhando uma trilha molhada descendo
suavemente por meu pescoço. Ela se detém em meu mamilo, e por mais que não seja fã de ser
tocado nesta região, permito-a explorar meu corpo ao seu bel prazer.
Alguns homens possuem sensibilidades diferentes o que não acontecia comigo. Eu
simplesmente possuía as características padrões dos espécimes masculinos, me atraindo com a
visão do corpo feminino e o toque em meu pau.
Gostava de propiciar prazer às mulheres que vinham para minha cama, mas em mim, me
contentava com a simples chupada e enfiar meu membro nos buracos que me fossem permitidos.
Para Michela, eu cederia deixando-a explorar meu corpo da forma que quisesse por
saber que nosso tempo era limitado. No meu QG, onde o controle é meu vício, consinto-me
soltar as rédeas, desejando criar na memória de meu Colibrì algo que a fizesse se lembrar de
mim.
Aos poucos, seu corpo desliza até o chão. Os dedos trêmulos abrem meu cinto e seguro
sua mão, impedindo-a.
— O que está fazendo, Colibrì?
— Estou de joelhos… meu noivo… de joelhos para você.
— Você não precisa ficar de joelhos. Nunca… — Ameaço a me levantar, e ela me
empurra de volta para a cadeira com a palma da mão em meu abdômen.
— Não… eu quero. Quero sentir você em minha boca como você me sentiu no iate. —
Mordo o lábio inferior, sentindo-me momentaneamente egoísta por ter perdido boa parte do
sangue do cérebro para a cabeça pulsante do meu pau. — Fique quietinho, va benne?
Meneio a cabeça, vendo-a puxar o cinto de couro que escorrega pelos passadores da
calça. Ela abre o botão, descendo o zíper e meu membro surge vigoroso absurdamente duro de
tesão. A cabeça rosada exposta estava brilhando pelo pré-gozo liberado na cueca.
Michela me encara insegura e antes que possa remediar a situação, esclarecendo que
nada precisava acontecer, sou arremetido para um dos meus sonhos eróticos onde a boca carnuda
de meu Colibrì chupa meu pau.
— Ah… Colibrì… — arfo, emitindo um som de prazer o que a incentiva em me tomar
ainda mais fundo em sua garganta. A boca quente sobe e desce por toda a extensão.
A visão erótica de ver a mulher por quem me apaixonei ajoelhada me sugando
fervorosamente será a recordação perfeita que guardarei em minha memória.
Sinto-a segurar minha base, rodopiando a mão com facilidade pelo excesso de saliva
que passou a escorrer dos seus lábios. Não contenho o pequeno movimento de quadril que me
arremete para cima, na busca de acelerar a sucção.
Ela percebe e segue com o ritmo que me agrada, enlouquecendo-me ao saber que nunca
sentirei prazer equiparável em outra chupada como essa.
Perfeita… mio Colibrì sempre será meu sonho inalcançável.
Minhas bolas se comprimem, antecipando o pico do prazer numa avalanche inclemente
que permeia a região pélvica em ondas elétricas constantes, explodindo em um turbilhão de
sensações que deveriam se concentrar tão somente no membro acariciado e envolto da boca de
Michela. Porém… meu gozo é ainda mais forte por unir a saciedade física com a emocional que
ansiava pelo seu contato.
Minhas pálpebras pesadas teimam em se abrir com receio de tudo não passar de um
devaneio, que minha mente doentia projetou para aumentar meu martírio.
— Gostou, noivo? — A voz melodiosa, momentaneamente insegura, me obriga a
retomar os sentidos.
Molho os lábios com a ponta da língua, elevando-os ao canto, querendo demonstrar o
quanto ela me agradou.
— Você não faz ideia, Colibrì… não faz ideia.
Ela assume a postura audaciosa, escalando-me e afundando os joelhos na lateral do meu
corpo na cadeira. Seguro sua cintura com uma das mãos ao mesmo tempo em que com a outra
puxo sua nuca, para retomar sua boca com um beijo lascivo.
Voltamos a nos perder um no outro, entre lábios, línguas e carícias envolvendo o
deslizar de mãos.
— Me leve para o quarto, Fausto — ela sussurra.
— Por quê?
— Porque eu quero ser sua…
— Michela… — alerto-a, num impasse que bagunça por completo meu raciocínio.
— Eu fui leiloada por ser virgem — pontua.
— E poderia ter sido estuprada se não fosse.
— A única amiga que fiz fora da famiglia está entre a vida e a morte por conta disso.
— Ela fez sua escolha.
— E eu quero fazer a minha. — Sua fala me cala. Ela quer que respeite a sua escolha?
O sonho de Michela sempre foi viver fora dos ditames da famiglia, e manter sua
virgindade para a noite de núpcias é uma das tradições mais desiguais que temos em nosso meio
social.
A noiva virgem e casta que deve entregar-se para ser corrompida por alguém impuro
desde os treze anos de idade. É o auge da mentalidade machista. Se tirar sua virgindade, não será
mais valiosa para a Cosa Nostra, penso.
Ela nunca quis ser…
Na essência livre de sua alma, mio Colibrì nunca quis viver nas molduras convencionais
da máfia italiana. Ela anseia por estender suas asas ao vento, nos horizontes distantes das regras
patriarcais. Eu prometi que faria de tudo para que realizasse seus sonhos e se…
Caralho… Tenho medo de estar arrumando desculpas em minha cabeça tão somente
para alcançar meu desejo em tê-la em meus braços. Respiro profundamente.
— Não pense, il mio dolce angelo[162]— Arregalo os olhos completamente desnorteado
pelo apelido carinhoso que recebo de minha amada. Michela quer realmente me enlouquecer.
— Não quero que se arrependa…
— Não vou. — Ela segura meu rosto, beijando-me novamente, insistindo em sua
insensatez. E, outra vez, deixo-a me dominar por completo, erguendo-a em meu colo assim que
levanto-me da cadeira.
Mio Colibrì envolve minha cintura com as pernas enquanto conduzo-nos para meu
quarto, seguindo seu comando.
Passamos o batente com os lábios grudados, e continuo me esbaldando do contato de
seu corpo empoleirado no meu. Quando afundo o joelho no colchão, Michela toma consciência
de que estamos em outro ambiente. Ela observa ao redor e me dá um breve sorriso, tomando
meus lábios em outro beijo repleto de promessas.
Deito-a sobre a cama de modo delicado, ela ajeita o corpo para ocupar o centro e
começa a puxar vagarosamente o vestido para cima. Fico absorto na cena que se desenrola à
minha frente, completamente inerte aguardando a próxima ordem.
— O que você quer, Colibrì? — indago, salivando com a visão perfeita do sutiã sem
alças e a calcinha de renda branca.
— Quero te ver nu… — Ela exige, massageando os seios sobre o tecido.
Arremesso a camisa para um canto e deixo a calça escorregar por minhas pernas, tirando
os sapatos e as meias na sequência. Meu pau está ainda mais duro do que antes dela me chupar
até a última gota. Seus olhos vagueiam por meu peitoral, e a boca flexiona num sorriso
malicioso.
Ela desliza as mãos até sua virilha, abrindo as pernas lentamente. A seguir, afasta o
tecido da renda revelando a carne rosada, desenhada como pétalas de rosa. Sua excitação brilha
como uma joia preciosa, revelando o quanto me quer.
Chio, sugando o ar entre os dentes, fascinado com sua coragem e confiança em mim.
— E agora? — indago, necessitado da certeza da sua decisão.
— E agora eu quero tudo o que você pode me dar.
— Eu vou te dar, Colibrì. Vou te foder tão gostoso que essa noite ficará tatuada em sua
memória para sempre — prometo, inclinando-me sobre ela de modo a beijar o interior da coxa
aberta. Ela geme baixinho.
Deposito um beijo molhado na dobra detrás do joelho e sigo tracejando um caminho
indecente até sua virilha. A maledetta sabe muito bem o que fazer para me enlouquecer, abrindo
ainda mais as pernas e demonstrando que seria uma perfeita bailarina a depender do espacate.
Roço o nariz sobre os grandes lábios, sentindo a essência de mulher que meu Colibrì
exala. A fragrância de um perfume viciante que me atormentaria por toda a eternidade.
O som delicado que escapa de sua garganta no instante em que minha língua desenha
uma linha fina em sua fenda multiplica a intensidade do meu desejo ao quíntuplo. Estou
completamente fodido nesta vida sofredora que vai me condenar a viver às sombras dessa
lembrança. Cazzo.
Eu faria valer a pena. Sì… faria com que essa memória fosse suficiente para uma vida
inteira.
Abro a boca sobre a boceta lisa, fartando-me do néctar que estou extraindo da rosa
perfeita do meu amor, meu Colibrì. Ela ofega assim que chupo o pequeno broto durinho entre
meus lábios. Sinto o pequeno ponto inchado que exige minha atenção.
Inicio o movimento vagaroso com a ponta da língua sobre seu clitórios, circulando-o e
acariciando. Quero memorizar a sensação da pele delicada que desliza em minhas papilas
gustativas, que saltitam de modo a indicar meu deleite.
O vibrato das cordas vocais da bela mulher em meu quarto ressoam insistentemente, o
que me deixa ainda mais eufórico. Porcamiseria, eu a amo tanto que chega a doer meu coração.
Ergo os olhos, incomodado com o tecido fino que Michela segura para o lado. Dou uma
mordidinha sobre seus dedos para que solte, e afasto-me tão somente para tirar a lingerie.
— Essa aqui eu vou devolver…
— Pode ficar… — Ela dá de ombros. — É só uma calcinha.
— Signora Isabel já achou muito estranho uma calcinha em minhas gavetas, Colibrì. —
Ela me encara assustada e depois, estreita os olhos.
— Como se ela nunca tivesse visto uma calcinha em seu apartamento.
— Eu não disse que ela nunca viu em meu apartamento. Mas estranhou ver guardada em
meus pertences.
— Você nunca guardou lingerie antes? — Balanço a cabeça em negativa. — Por quê?
— Porque nenhuma delas era sua. — E antes que suas perguntas continuem, avanço de
volta na missão em beijar sua pequena boceta. Ela resmunga um palavrão, mas não me detém,
recebendo minhas carícias de língua.
Abro os lábios querendo ter melhor acesso ao montinho de nervos sensível pela sucção.
Admiro o rosto retorcido de mio amore, buscando entender o quanto seu corpo aceitaria ao
introduzir o indicador calmamente em sua abertura. Ela geme e se contorce para o lado, então a
seguro sobre o colchão, chupando com mais fervor.
— Fausto… Oh, Fausto…
— Geme meu nome, amore mio… Quero te ouvir. — Enfio outro dedo, preparando-a
para o que viria a seguir. Meus dedos rodopiam, pressionando a parte superior de modo a
alcançar o local que as primeiras mulheres que estiveram em minha cama me ensinaram ter mais
prazer. O movimento de vaivém contínuo é mantido num ritmo seguido das chupadas em seu
clitóris.
Suas costas se elevam do colchão e o gritinho dengoso indica que alcançou o primeiro
orgasmo. Esperava dar-lhe mais alguns até o amanhecer. Nossa noite seria a mais longa possível.
Mantenho a sucção, enfiando e tirando os dedos que deslizam por seu canal lubrificado.
Aos poucos diminuo os movimentos até parar para pegar a camisinha dentro da gaveta da
mesinha de cabeceira.
— Por que será que todos os homens têm camisinhas ao lado da cama?
— Não é para responder, correto? — Ergo uma sobrancelha sugestivamente. — Se eu
disser que mulheres viúvas também têm você ficará brava?
Ela vira a cabeça para o lado, e iludo-me com a falsa ideia de que Michela sentiria
ciúmes. Mas sei melhor. É apenas insegurança por não ter a experiência com a qual poderia
vivenciar como uma mulher que não deve mais nada à famiglia. Hoje eu sei disso.
E sinceramente, meu pau dolorido de tesão não quer divagar enquanto não se esvair por
completo e de preferência dentro dela.
Mas a sensação embutida em meu coração de homem de honra me faz questioná-la:
— Ainda tem certeza? — Mostro o envólucro laminado. Ela contesta sem titubear,
tomando-o de mim.
— Absoluta. — Mio Colibrì é quem abre com a pontinha dos dentes, puxando o látex e
torcendo o bico para escorregar por meu membro.
No instante em que começa a desenrolar a camisinha, expiro um riso bem-humorado.
— Por acaso você treinou fazer isso, Colibrì?
— O que você acha? — Ela sorri de volta. — Um milhão de vezes com Valentina.
— Valentina é hermafrodita?
— Não! — sibila alto. — A gente fazia em bananas, oras. Tivemos aula de sexualidade
na escola, sabia?
— Hum… — murmuro, pressionando os lábios para conter outro excesso de riso. Não
que fosse brochar com a ideia de mio amore e sua prima brincando com bananas. Não…
Por isso, assim que ela finaliza a tarefa em cobrir meu pau, a empurro de volta para os
lençóis.
— Que tal voltarmos para a conversa onde as palavras se resumem em “oh Fausto” e
“mais Fausto”?
— Estou aqui ansiosa pra isso.
— Ansiosa, é? — Tomo sua boca entre os lábios, chupando o lábio inferior e soltando-o
de súbito. — Vamos ver o que posso fazer…
Beijo-a mais uma vez, de modo lento, e aumento a velocidade aos poucos até se tornar
no ritmo que definimos como o ponto de partida para nos enlouquecer. Sei que está tão
envolvida quanto eu por conta dos sons que emite vez ou outra.
Abaixo a cabeça abocanhando o mamilo intumescido, chupando uma, duas, três vezes.
Deslizo a ponta da língua ao redor, enquanto massageio o outro com a mão. Suas pernas estão
enroladas em minha cintura e meu membro roça a boceta melada.
— Colibrì…? Não sei se aguento mais — digo, retomando sua boca.
— Não aguente, Fausto. Não aguente mais nada, il mio dolce angelo. — E o apelido é
minha ruína quando posiciono a cabeça do pau na entrada apertada.
Inicio a penetração, sendo esmagado pelas paredes de seu canal virgem. Cazzo. Ela é
apertada. Ouço-a resmungar e xingar. Fico parado, estático, querendo que se acostume com meu
tamanho para continuar.
— Cazzo, Fausto! Anda logo! — E a maluca segura minha bunda com ambas as mãos e
com o auxílio das pernas me empurra de uma vez para dentro, gritando com o movimento. —
Aaaaaaaaaaaaaah.
Pressiono o maxilar por também sentir um pouco de dor, mas nada se equipara ao que
ela está passando.
— Eu tentei evitar e…
— Cale a boca. Per favore… — ela esbraveja a malcriação, seguida do pedido. Fito-a,
pressionando os lábios numa linha fina. — Só… espere um pouquinho.
Essa noite tem sido extremamente inusitada para mim, ao ponto de descobrir o quanto
sou obediente aos comandos de uma mulher.
Observo-a atento a cada gesto. Seus cabelos bagunçados e espalhados por minha cama
parece uma miragem para alguém sedento. Inicio uma trilha de pequenos beijos na curvatura de
seu ombro, subindo até alcançar seus lábios. Ela aceita minha boca, mordiscando meus lábios e
sugando logo depois.
O sorriso de antes brota em seu rosto, e nossas línguas retomam uma batalha num beijo
lascivo. Seus músculos internos diminuem a pressão e reconheço como permissão para voltar a
me mover.
Aos poucos, movimento o quadril para frente e para trás, passeando com o pau inchado
pelo caminho de sua entrada até o fundo.
— Fausto…?
— Sì — respondo, sofrido.
— Eu preciso de mais.
— Grazie, Dio! — E então, passo a mover-me mais rápido numa sequência de
movimentos curtos e profundos, testando as àguas do seu calor.
— Oh, Fausto… mio angelo… — Pequenos espasmos espremem a cabeça do meu pau,
deixando-me completamente alucinado.
— Colibrì, mio amore… você consegue…?
— Aaaah… Fausto — O grito de êxtase veio antes que finalizasse a pergunta sobre seu
orgasmo. Sorrio. Remetendo ainda mais rápido até ser atingido pelo turbilhão de sensações
avassaladoras que percorrem todo meu corpo numa corrente elétrica feroz.
Neste momento, meu corpo e minha mente fundem-se em uma sinfonia de pura euforia.
Cada célula vibra com a intensidade do prazer, e sinto-me envolto por uma energia renovada.
É um arrebatamento que irradia por todos os meus membros. Meu coração bate
descompassado, com a sensação de saciedade que percorre as extremidades do meu corpo. Fico
relaxado ao ponto de perder as forças sobre meus músculos. Jogo-me para o lado, não querendo
esmagar mio amore.
— Caspita! É sempre assim? — ela parece tão ofegante quanto eu.
— Não… — respondo, ainda tomando fôlego.
Ela sorri enviesado, orgulhosa.
— Parece que acabou de correu uma maratona. — Libera um riso alegre. — Quem diria
que uma boceta virgem acabaria com o Mafioso Nerd, hum?
Rio pela leveza que mio Colibrì consegue transmitir em todos os momentos, sendo que
o pós orgasmo é muito mais favorável do que quando a tirei da cela.
— Dois minutos e volto a correr por você, Colibrì.
Ela ergue o tronco, estudando meu membro meia bomba.
— Dois minutos, hein? Audacioso — comenta.
— Você não faz ideia — Sobreponho meu corpo sobre o seu, beijando a pontinha do
seu nariz antes de tomar de novo sua boca. — Não faz ideia.
E eu a mostraria com todo meu empenho o quanto audocioso eu poderia ser até de
manhã cedo, quando o sol traria com sua luz a extinção da escuridão de sua vida, e assim… me
levaria para longe dela…
MICHELA ZANCHETTA

Minhas pernas se esticam no habitual movimento de espreguiçamento da manhã, e meus


braços seguem na direção inversa, da mesma maneira que faço todos os dias. Mas a sensação
dolorida no interior de minhas coxas, indicam que nada mais é como antes.
As lembranças da noite passada surgem vívidas em minha mente, parecendo que
maratonei uma série inteira com cenas picantes do início ao fim. Talvez as mais sensuais que já
assisti. No caso, o 3D da tela foi tão real que meus membros estão todos doloridos.
Levanto apenas o tronco, empurrando meu corpo para me sentar escorada na cabeceira
da cama muito maior do que a minha.
Na sequência, puxo o lençol superior em busca de alguma mancha de sangue que
demonstraria a veracidade do que parecia um sonho extremamente erótico.
É possível ver uma marca pequena que mais parece um borrão marrom pelo fato do
lençol ser cinza escuro. Acredito que uma marca assim não passaria pelo Consiglio atestando o
término de minha pureza. Aqueles maledettos iam pensar que eu havia cagado ao invés de ter
sangrado.
Expiro uma lufada de ar indiferente… Que vão todos à merda.
Perdi as contas de quantas vezes amaldiçoei o lacre sagrado da virgindade, nas noites
que fui obrigada a vaguear como um pássaro raro naquela gaiola dourada. Um beija-flor de
verdade teria morrido dentro daquelas grades, pois tentaria incessantemente sair de lá. Nem ao
menos sua capacidade em voar para trás iria ajudar.
Fausto errou ao me apelidar de Colibrì, penso. Em Marrocos, mantive-me passiva,
entrando e saindo da pequena jaula suspensa, conforme era mandado.
Não… eu apenas segui meu instinto de sobrevivência num ambiente hostil.
Foi preciso…
Se fosse um pouco mais inteligente nem sequer teria caído na lábia ardil de Anitta Catto.
Nunca deveria ter confiado em alguém que me oferecia drogas, independente de ser ou não
vendidas pela famiglia.
Nada mais importa.
Sorrio, satisfeita. A noite passada não deixou de ser uma libertação dentre tantas
algemas e escolhas perdidas, pude concretizar uma das minhas vontades. Perder a virgindade
com o Mafioso nerd antes do casamento. O reles fato de ele ser meu futuro marido era o de
menos.
Sei que daremos um jeito como Giulio e Francesca fizeram quanto à prova da minha
virtude.
Seguro o lençol cobrindo o seio, no momento em que vejo a porta do quarto abrir
devagar. As costas nuas de Fausto surgem primeiro e quando seu tronco vira, percebo que
carrega uma bandeja de café da manhã farta, com aqueles suportes de colocar na cama.
Seus olhos estão concentrados na refeição, para não derrubar o que quer que tenha
preparado para mim.
— Uma manhã digna de principessa, hum? — gracejo, fazendo-o erguer o olhar com
um sorriso maroto. Meu nerd mafioso vestindo apenas a calça de moleton cinza é uma tentanção
tremenda.
— Espero ter acertado no cardápio — retruca. — Tentei colocar tudo o que você gosta.
— E o que geralmente eu gosto, meu noivo? — Percebo o sorriso vacilar com a forma
pela qual o chamo. Deveria repetir mio angelo?
Não sei… não sei até que ponto nossa relação evoluiu em uma noite.
Ele balança a cabeça rapidinho, atentando-se em concluir sua tarefa, e se aproxima,
colocando a bandeja em minha frente e senta-se ao meu lado, com um joelho dobrado sobre a
cama e a outra perna estendida para fora.
— Temos suco de morango, brioche, cappuccino e uma bela fatia de pão com geleia de
damasco. Tem também frutas, iogurte natural; café expresso e torradas com mel. — Fausto
explica, apontando cada item. — Esses últimos são para mim.
— Então, você não fez tudo isso só para mim… — brinco, pegando uma uva.
— Claro que fiz. Geralmente tomo apenas um expresso e vou trabalhar. — Trabalhar…
repuxo o nariz, recordando-me do trabalho que a Cosa Nostra exige dos homens.
— O que foi? — ele indaga, estudando meu rosto.
— Nada… — pego um cacho de uva, passando a comer a fruta em tom verde,
extremamente doce. Fausto pega a xícara do expresso e beberica, colocando-a a seguir sobre a
mesinha ao lado.
— Fale, Colibrì. Prefiro que fale o que pensa. Não tenho acesso ao seu hd interno e não
saber qual a versão que estou lidando me incomoda.
Suspiro alto, roubando uma das fatias de torrada com mel que nem sequer gostava. Mas
parecia o que manteria minha boca mais ocupada, forçando o maxilar do que o brioche.
Fausto continua atento, aguardando-me falar algo. Expiro o ar derrotada, então digo:
— Não gosto do tipo de trabalho que os homens da famiglia fazem. É isso. — Devolvo
o carboidrato desidratado para a bandeja. — Além, de toda essa tradição machista em pleno
século 21. Isso… — Gesticulo com as palmas para o alto. — É demais para mim.
— Você nasceu em meio a essa tradição. — Ele fala de modo cibernético, parecendo
mais um cientista me encarando como um experimento.
— Exatamente… eu nasci. Não quer dizer que eu goste… e…
— Você sabe que está falando com o Sottocapo da famigilia? — Engulo em seco. A
torrada dura me encarando de volta com os dizeres desenhados pelo mel: devore-me e pare de
falar merda. Nada estava escrito, era apenas minha consciência me alertando. — E que acabou
de passar a noite comigo?
— Eu sei… — o reconhecimento saindo num fiapo de voz. — Mas nós vamos nos
casar. Então, não fiz nada de errado e…
— Por que você está se justificando, Colibrì?
— Ué… Você acabou de dizer que é o Sottocapo… e tal — cantarolo uma voz de medo
debochada. — Estou me defendendo do sermão de sempre. — Dou de ombros.
— Que seria?
— Que a famiglia nos protege e se não fossem as tradições, a Cosa Nostra estaria
extinta? — Pego o copo de suco, pois falar demais sempre foi meu maior defeito. — O que
convenhamos não seria ruim, já que estamos falando de uma Organização Criminosa.
Fausto libera um riso sem humor e eu percebo que a última parte poderia ter sido
trancafiada em minha cabeça ao invés de sair para o mundo.
— Você ao menos sabe o que está falando, Michela? — Iiih… não disse? O Colibrì
acabou de bater em cheio na parede. — O que fazemos sempre existiu e sempre vai existir. Sabia
que o sistema de leis que você diz que não respeitamos fomenta o fornecimento de armas
indiretamente?
— Como? — desafio.
— Criando a desigualdade no submundo e gerando a pobreza. Nossos maiores clientes
são inclusive governos decadentes que preferem fornecer armas para rebeldes e assim cegar a
sociedade quanto aos problemas reais.
— Matar e torturar pessoas não são problemas reais, Fausto? — Empurro a bandeja e
acabo derrubando todo o líquido do suco e cappuccino sobre o colchão. Não me importo,
levanto-me e puxo comigo o lençol, cobrindo meu corpo. A lembrança do que vi na cutelaria
assombrando meus pensamentos. — Eu vi muito bem o que você é capaz de fazer.
O mafioso passa uma das mãos sobre o rosto, nitidamente frustrado. Ele respira
profundamente, encarando o teto antes de se direcionar para mim.
— Eu sei que você viu… — Baixa o olhar, me fitando. Anitta deve ter contado antes de
morrer.
— Vo-você já tinha dominado a luta e… vo-você… — gaguejo, sentindo um nó na
garganta. Dou-lhe as costas, procurando meu vestido no assoalho do quarto.
— Ele não merecia enxergar, pois viu a mulher que amo nua. Nem merecia permanecer
com os dedos, quando prometeu durante todo o desafio enfiá-los nela, me provocando o tempo
todo. — A revelação dos motivos que justificou a tortura do herdeiro da Camorra não diminui
em nada a sensação de medo que replica em meu peito, da mesma forma que senti naquele dia.
Mas… ele disse a mulher que ama?
Minha cabeça rodopia com as palavras, mergulhando em lembranças embaçadas,
trazendo à tona o som sussurrado de promessas que pensei ter ouvido no devaneio, enquanto
estive sob o efeito do veneno de escorpião.
— A mulher que ama? — indago, querendo confirmar a loucura. Ele meneia a cabeça.
— Nua?
— Sì.
— Por acaso essa mulher estava no mastro de um iate? — Ele bufa um riso sem humor,
desviando o olhar para o lado.
Sinto-me completamente perdida agora, envolvida pela confusão de sensações,
parecendo um cata-vento de cores diferentes na qual o medo possui variações de tonalidade. Sua
cor se confundindo com a insegurança de me entregar ao sentimento maior alojado em meu
peito.
A escuridão que vivi durante a fuga catastrófica, que quase me matou, tornou-se um
borrão escuro acobertando as emoções que me levaram até lá. De fato, o que vi na cutelaria é
ínfimo aos horrores que fui obrigada a presenciar.
A famiglia, no entanto, demonstrou-se ser a minha salvação, como mencionado por
Fausto, que… me ama?
Coloco o indicador sobre a cartilagem interna da orelha, chacoalhando para auferir se a
cera cumulada não havia prejudicado minha audição. Não vinha limpando o ouvido desde que
entrei naquele container em Sevilha. Talvez além do psiquiatra, visitar um otorrino se faria
necessário.
— Você não me ama — contesto, com os olhos direcionados ao chão até firmar o
raciocínio para encará-lo. — Você não pode me amar.
— Por que não? — Ele me observa, cruzando os braços sobre o peito, ainda sentado na
cama.
— Porque… porque… Você é o Sottocapo — concluo de pronto.
— E meu cargo na famiglia interfere em meus sentimentos…? — ele afirma, numa
entonação de pergunta, como se estivesse concordando comigo de modo irônico.
— Exatamente — gesticulo com uma das mãos, baixando o olhar, sentindo-me idiota.
— Sinto muito, Colibrì. Mas eu sei exatamente o que sinto. E não tem qualquer vínculo
com meu posto na famiglia. — Ele ameaça a se levantar, mas ergo a mão para que permaneça ali.
A conversa estava tomando um rumo muito mais complicado do que lidar com meus
medos e repúdio às tradições da máfia.
— Eu… e-eu… estou confusa. — Fausto suspira alto, em seguida xinga-se baixinho.
Seu tronco se apruma sobre a cama, me fitando com o olhar cálido. Permanecemos em silêncio
por um momento, que torna tudo ainda mais bagunçado dentro de mim.
— Nesta manhã, quando acordei com você em meus braços, pensei em rever a decisão
que havia tomado ontem à noite. — Ele pressiona os lábios, aparentando descontentamento. —
Só que… vendo-a assim, arredia, querendo que meu amor fosse mentira, confirmo que me
equivoquei novamente.
— Eu não… não estou entendendo.
— Sei que você não me ama, Colibrì. Mas em algum momento pensou em se abrir pra
tentar? — Fito-o, tornando-me agora a cientista ao estudar um animal raro. Dio Santo!
— Eu… não sei.
A gratidão, estranhamente, se mistura à confiança que sinto por ele. Agradeço porque
me salvou e não desistiu de mim
— Não sabe o que sente por mim, ou não sabe se tentaria?
Caralho! Existe diferença? Minha testa chega a doer com a ruga que se formou entre as
sobrancelhas.
— Não sei para as duas — respondo de pronto, em seguida repenso. — Acho… —
Fausto me dá as costas, apoiando os cotovelos sobre os joelhos, curvando o tronco para frente,
deixando-me com a visão tão somente dos músculos de suas costas. Ai merda.
— Não sei contém a negação, Michela. Não existe um talvez, ou a palavra provável na
sua frase. — Ele levanta-se, ficando em pé do outro lado da cama. — Eu não quero mais me
casar com você.
— O quê? — Minha voz sai uma oitava acima.
— Pretendo honrar com meu matrimônio como fui ensinado desde pequeno. Então, será
para a vida toda e não quero passar minha vida ao lado de alguém que nunca vai me amar —
revela numa calmaria, que vai contra o que a conversa demanda. Ele enlouqueceu?
— Você quer que um casamento arranjado tenha amor?
— Sì. — Dá de ombros como se fosse algo simples. — Não espero um amor
avassalador, mas um sentimento construído com base no respeito e na amizade. Por isso, Sì. Eu
quero alguém que pelo menos tente me amar.
— Isso é impossível… — Sorrio nervosa. Meu coração batendo forte no peito, num
ritmo descompassado que ecoa a confusão em meu interior.
— Por que acha que fiquei tão puto quando você inventou aquela mentira? — Olho-o,
ainda incrédula e de queixo caído. — Eu queria encontrar uma damigella disposta a tentar. Você
tirou minha escolha.
— Eu… cazzo! — Estou em choque. — Eu passei a noite com você. Dei minha
virgindade a você.
— E mesmo assim não sabe se poderia abrir seu coração para mim — constata,
ressaltando a conclusão das minhas palavras. — Seu medo é sobre o Consiglio? Você ainda
pensa em se casar com alguém da famiglia que tanto despreza?
Acabei de virar peixe. Juro que faria um bom serviço ao lado de Nemo neste exato
momento. Um, porque minha boca abre e fecha sem parar; dois, porque perdi a habilidade de
raciocinar.
— Eu sou uma Zanchetta. Nasci na famiglia. Você mesmo disse.
— E você não gosta… — a palavra dita com uma pontada de sarcasmo, me faz esquecer
o homem que a pouco declarou o seu amor.
Não disse… Procure Marlin[163] com urgência, ele não encontrará Nemo sem a minha
ajuda.
— Fausto, acredito que você conferiu várias vezes que tenho uma boceta. Dentro da
Cosa Nostra, a opinião de uma mulher é o mesmo que nada. — Bato o pé no chão, relembrando a
noite em que vim em seu apartamento pedir para participar do meu teatro. — Se eu não me casar
com você, meu pai vai me obrigar a me casar com Alessio, lembra?
Estala a língua, numa forma de negação.
— Ele não fará isso.
— Como não? — Meu peito sacode como se uma tempestade estivesse prestes a
desabar.
— Ele é um Caporegime e eu sou o Sottocapo. Seu pai ainda me deve respeito e vou
revelar que não quero.
— Simples assim… — passo a mão numa linha invisível em frente ao meu corpo. —
Você dirá: “Signore Zanchetta, não quero mais sua filha e ninguém mais se casará com ela”.
— Exatamente.
— E se um dia eu quiser me casar?
— Até lá, eu já terei te esquecido.
Assopro um riso, que aos poucos se torna uma gargalhada nervosa. Meu orgulho ferido
repetindo a última frase. Sou tão fácil assim de esquecer?
Fausto me observa, aguardando meu rompante de loucura como a estátua de um deus
grego, exceto pela calça de moletom que esconde um pau gigante.
— Você está me rejeitando, é isso?
— Sì — assente sério, meneando a cabeça.
Meus dedos tremem de raiva enquanto seguro o lençol com força, envolvendo meu
corpo. E antes que lágrimas escorram pelo meu rosto, saio em disparada, desistindo de encontrar
quaisquer peças de roupa que pudesse estar no cômodo.
Assim que ultrapasso o batente de sua porta, permito que a primeira lágrima dê a partida
no motor que conduz minhas emoções conturbadas.
Experimento uma mistura de dor… liberação e frustração.
Fausto Moretto estava me rejeitando e me dando a liberdade que tanto sonhei…
Deveria ao menos sentir um pouquinho de alegria nessa miscelânea de sentimentos, não
é?
Então, por que não sinto?
FAUSTO MORETTO

Aperto com força o cabo da faca, sentindo a textura áspera da madeira contrastar
com a suavidade da lâmina que acabo de forjar. Os vapores do metal aquecido ainda pairavam no
ar, misturando-se com a tensão que envolvia a cutelaria.
— Vocês não podem fazer isso comigo. Eu sou o Caporegime de Ragusa… — Não
lhe dou tempo para continuar, avançando com uma fúria descomunal. — Aaaaaah… — grita
assim que afundo a lâmina afiada em sua coxa, e para piorar, rodopio a faca em seu eixo algumas
vezes. — Pare! Pare, stronzo!
— Ainda não entendeu, Vacchio? O único motivo pelo qual ainda tem língua, é
porque preciso que fale — Giulio diz com austeridade em sua frente, há um passo de distância.
Vacchio permanece amarrado à cadeira, com seu olhar desafiador. Sua postura
contradizia com a vulnerabilidade de sua posição. Mas havíamos acabado de começar os
trabalhos.
Não sou o melhor executor, pois a título de tortura, Homero, o soldado de Giulio,
costuma ser convocado obrigatoriamente. Somos treinados para encontrar os pontos fracos de
nosso adversário, mas sabemos das habilidades que cada membro da famiglia possui para que
seja direcionado àquilo que tem talento. E torturar estava longe de ser uma das minhas melhores
habilidades.
Mas minhas emoções estão abaladas e quando se trata de buscar vingança contra
aqueles que fizeram mal ao meu Colibrì, assumo minha versão monstro com fúria ardendo nos
olhos, disposto a torturar mil almas, se necessário fosse.
Nos dois meses que se seguiram do nosso retorno de Marrocos, tivemos que resolver
algumas pendências. Dentre elas, meticulosamente esmiuçar todos os documentos que trouxemos
de Sevilha, independentemente de terem sido implantados para serem facilmente encontrados.
Os indícios apontavam claramente para Germano Vacchio como o traidor. Inclusive,
no dia em que papà morreu, o velho idiota estava em uma das marinas de Palermo. Ele havia
solicitado uma reunião com o Don, que descobri por acaso em uma mensagem que constava
exclusivamente em seu aparelho e não no de nosso pai.
A investigação parecia rodopiar e cair sempre no mesmo lugar, o Caporegime de
Ragusa, que ora está impossibilitado de escrever seu próprio nome por estar totalmente amarrado
à cadeira, mas que havia assinado o contrato de compra e venda da fazenda de oliveiras.
A perícia feita no documento em sua íntegra foi certeira ao confirmar a veracidade
dos traços exagerados da assinatura do maledetto, bem como as rubricas em cada folha.
Curiosamente, ele tem negado desde o início da reunião que começou hoje cedo na
mansão Moretto.
— Eu não fiz nada de errado, Don Moretto. Não sou dono de porra alguma em
Sevilha — afronta mio fratello, mantendo o tom de petulância, mesmo ofegante.
Giulio observa atentamente a expressão de Vacchio. Ele queria esse confronto o
quanto antes, mas zio Marcelino o aconselhou a aguardar.
O Consiglieri era a sabedoria frente à nossa temeridade. Anos de experiência
lidando com as mais diversas situações, conferia a experiência que nos faltava nos momentos de
crise. E Giulio, seguindo o exemplo de papà, respeitava os conselhos de nosso tio.
Infelizmente, não obtivemos nada de novo. As únicas testemunhas que poderiam
atestar quem era o real proprietário da fazenda de Sevilha estavam mortos, ou seja, todos os
funcionários que prestavam serviços à propriedade rural.
Outra imprudência causada pelas emoções que nos tomaram no dia em que
invadimos o local. Os seguranças inexperientes que encontramos na casa sede eram os únicos
sobreviventes que poderiam fornecer informações. O próprio dono fez questão de pendurar os
demais como enfeites de uma festa de terror.
Então, tínhamos que nos socorrer da única pista que ligava as pontas soltas…
Vacchio. Todavia, sua inteligência não condizia com a astúcia de quem nos ludibriou ao ponto
de assassinar nosso pai. Não…
Sem contar que a propriedade rural foi muito bem escondida, pois nunca foi
reportada à famiglia, e a compra tinha sido feita há cinco anos. Caso Germano verdadeiramente
comprou há tanto tempo, eu teria descoberto antes.
Estávamos lidando de igual para igual com um inimigo agora. Um mestre da
manipulação que queria nos confundir. Provavelmente, Germano Vacchio era uma jogada
ardilosa.
Maximus afia uma adaga ao lado de Donato, encostado na parede lateral,
produzindo uma música ambiente que condizia ao momento.
— Pense antes de falar, Germano. Giulio é nosso Don. Mentir para ele, é o mesmo
que mentir para a Cosa Nostra — zio Marcelino pontua e o velho Vacchio analisa-o com
cuidado.
A voz de nosso tio era profunda e rouca pelos anos de fumante. Ele não era o tipo de
pessoa que conversava abertamente, salvo quando estava com mio papà. E agora, conosco. Por
isso, ouvi-lo diretamente, fez com que o velho diminuísse o tom de altivez.
— Aposto 50 euros que ele começa a falar em cinco minutos — Donato oferta a
Max.
— Aposto o dobro em dois — Max aumenta a aposta.
— Eu nunca fiz nada que prejudicasse a famiglia… Assumi o posto de Caporegime
após meu pai e desde então, cumpro com o meu dever — diz entre os dentes.
— Nunca mesmo, Vacchio? — Giulio o encara, roçando uma mão sobre a barba. —
Pode afirmar que nunca ofendeu nossas tradições também?
— Do que está falando…? Aaaah. — Puxo a faca assim que responde de modo
desaforado com uma pergunta.
— Ele perguntou se nunca desonrou uma ragazza da famiglia, stronzo? — emendo a
pergunta, rasgando a pele da outra coxa de travessado, de modo superficial, mas para deixar uma
cicatriz.
— Me casei com quem mio padre escolheu. E se tivesse sido sequestrada e
retornado, não terminaria o noivado se sua pureza estivesse intacta — joga a notícia que tem
circulado sobre meu término com Michela, destilando seu veneno. Minha raiva flui como uma
corrente elétrica cegando meu juízo.
Elevo a lâmina no intuito desta vez de decapitar o infelicce. Giulio coloca a mão
sobre meu ombro. Essa atitude tem se tornado uma mania de mio fratello para me acalmar.
Merda.
Foi a forma que encontrei para que ninguém mais comentasse a seu respeito. Minha
noiva não fugiu. Ela foi sequestrada e conseguimos resgatá-la antes de ser deflorada.
A influência de Signora Zanchetta dentre as damigelle foi extremamente bem-vinda.
Forjei um exame clínico constatando a virgindade intacta de meu Colibrì e o enviei para todos os
membros do Conselho.
E fiz como prometido para ela, chamando seu pai para conversar na presença do
nosso Don, mio fratello mais velho. Mostrei-lhe o vídeo de sua filha na gaiola de ouro, bem
como as fotos que Maximus tirou da cela no dia que a resgatamos.
Ver o estado deplorável no qual encontramos meu Colibrì, bem como a ragazza
ainda desacordada que a salvou, deve ter convencido o Caporegime de Messina a dar a liberdade
para sua filha caçula. Tudo bem que ele precisou opinar entre ficar para sempre solteira ou
escolher um membro da famiglia. Nesta posição, não pudemos intervir.
Giulio me contou posteriormente que mio amore não replicou em momento algum,
aceitando o que lhe fora dado de bom grado.
Até porque, eu que a rejeitei, e este fator pesaria em sua reputação como damigella
para sempre. Meu alento era que ela não se importava. E finalmente, foi ouvida para não se casar
com o primo.
— A pergunta não foi para essa resposta, Vacchio. E antes que autorize mio fratello
a terminar com sua vida degradante, vou lhe dar uma última chance — Giulio, sutilmente, afasta-
me de perto do maledetto. — Já ofendeu a honra de alguma damigella? — E antes que continue,
estala a língua no seu da boca. — Pense bem antes de responder.
Vacchio desvia o olhar, travando o maxilar por ter que falar abertamente sobre seus
pecados.
— Foi há muito tempo… — diz mais para si. — Ela me provocou. Sabia que estava
noivo — defende-se, começando a revelar aos poucos.
Fizemos suposições que apenas vieram à tona porque ele se tornou o foco de todas
pistas. E por asqueiroso que Vacchio pudesse ser, sua conduta junto à famiglia era íntegra, no
máximo que um mafioso mulherengo pode ser. — Mas foi só uma vez e não prejudiquei
ninguém.
— Até onde sei, ela nunca se casou — zio Marcelino acrescenta.
— Porque nunca quis. Seu cognato[164] aceitou demais as vontades daquela
troietta[165] — cospe mais veneno.
Giulio, com a expressão sombria, pega uma adaga recém-afiada e a gira habilmente
entre os dedos. Engraçado como certas palavras geram gatilhos nas pessoas, e troietta meio que
se tornou algo extremamente doloroso para mio fratello. Infelizmente, para Vacchio, ele não sabe
disso.
— Você deveria tratar as mulheres da famiglia com mais respeito — Giulio termina
de fazer o “X” na coxa esquerda, deixando a marca de tortura da Cosa Nostra. Vacchio fugiria
das saunas masculinas de agora em diante, se não quisesse revelar com a cicatriz que passou pela
cutelaria e foi interrogado.
Algo que em nosso mundo maculava a imagem de reputação ilibada. Germano
Vacchio não é o primeiro e nem seria o último com uma cicatriz como essa. Tratava-se de uma
marca para ser vigiado.
O Caporegime de Ragusa encara a perna cortada, dando-se conta de que estava
cumprindo hora extra no mundo dos vivos.
— A perícia indicou que a assinatura do contrato da fazenda é realmente sua —
Maximus explica, frustrado pela ausência de neurônios do velho. — Você comprou a porra de
uma fazenda de azeitonas, capisco[166]?
Germano finalmente tomava consciência de que poderíamos matá-lo a qualquer
momento.
— Alguém quer sua cabeça, Vacchio — zio Marcelino declara para ele. O homem
rechonchudo volta-se com o olhar menos soberbo.
— Mas você possui um cargo alto na Organização… — Giulio acrescenta,
expirando um ar cansado. Em seguida, mio fratello caminha para detrás da cadeira e esfrega o
rosto, voltando-se a si.
— Ela jamais… não tem como — Germano parece usar os poucos neurônios para
juntar as peças sobre sua incriminação quanto ao sequestro de Michela e o que fez no passado.
— Enquanto for um caporegime, será protegido — digo, vestindo de volta o paletó
do terno que estava no balcão.
— Enquanto for? — indaga, com um indício de assombro.
Só não sabia que havia se tornado uma isca.
— Se encontrarmos mais provas contra você, será um corpo morto, não entendeu?
— Maximus volta a explicar. A seguir volta-se para Donato com a mão estendida. — 100 euros
— exige.
— Merda… — nosso primo reclama, tirando do bolso o valor acordado.
Giulio pega uma faca, passando em uma das cordas que amarrava um dos punhos de
Vacchio, liberando-o, que logo começa a se desamarrar.
— Seus tenentes estão de sobreaviso, Germano. — zio Marcelino pontua. — E, pelo
visto, estão descontentes com o chefe há alguns anos. Então, não tente gracinhas, ou a pessoa que
quer sua cabeça, a terá numa bandeja.
— Eles são fiéis a mim.
— Errado. Eles são fiéis à Cosa Nostra e eu sou seu Don. — Giulio alcança a porta
da saída primeiro que todos.
Foi curioso aprender como conduzir a política de aceitação do novo Don Moretto
àqueles que resistiam. O império do submundo é governado pelos mais fortes e também que
proporcionam mais vantagens. E são os operários que determinam quem fica no topo.
Assim, nós, os irmãos Moretto, havíamos aumentado o patrimônio de quem ocupava
a base, reforçando a lealdade não ao Consiglio, mas ao clã Moretto. E quem estivesse ao nosso
lado.
As provas contra Germano Vacchio eram suficientes para sua morte, sim. Mas
tínhamos finalmente uma isca e ela precisava se movimentar para atrair o peixe misterioso.
Meia hora depois, eu e Giulio estávamos a caminho de casa. Maximus havia ido de
moto até a cutelaria e nos dispensou assim que saiu, avisando que passaria a noite com Simona.
Zio Marcelino e Donato seguiram para lados opostos, já que meu primo queria
assistir ao show da nova contratada da boate.
— Preciso contar algo pra você — Giulio diz, parando o carro por conta do
semáforo vermelho.
— O que foi? Algum problema? — indago, despretensiosamente.
— Michela pediu minha autorização para ir morar em Milão — revela, sem me
encarar, acelerando o carro na sequência.
— Ela vai transferir a faculdade?
— Sì. Disse que lá é melhor e como não quer mais viver na sombra como Éloise
Dufour… — conclui, como se a notícia sobre a estilista fosse uma explicação suficiente. —
Aliás, engraçado que a Signora Affonso parou de ameaçá-la essa semana — diz soando irônico.
— E eu nem fui visitar àquela velha ainda.
— Signora Affonso mereceu o susto — informo pragmático. — Ela vinha
chantageando Michela desde que ela falou que não queria mais fazer os croquis como Éloise.
— E você se prontificou em enviar toda a vida pregressa da dona da Boutique como
um alerta, correto?
A senhora, dona da Boutique, não vendeu tantos vestidos quanto gostaria sem os
croquis de Michela. E pensou ser interessante ameaçá-la revelando para suas clientes quem era a
real estilista francesa.
Meu Colibrì ficou com receio por conta de sua mammina que acabaria envolvida
pela mentira e se prejudicaria no Consiglio d’ell Damigelle[167].
Sem contar que ela só havia pedido certo tempo, para depois enviar os croquis como
Michela Zanchetta. Contudo, a queda brusca nos ganhos da boutique fez com que a lojista
pressionasse meu Colibrì.
— Quem tem teto de vidro deveria saber que não é aconselhável ameaçar os outros
— retruco de pronto.
— Eu iria resolver, Fausto. Não precisava enviar fotos de quando ela era uma das
ragazze da boate.
— Michela estava com muito medo.
— E você soube disso como?
— Você sabe como. — Giulio sabia que vigiá-la era a única forma de acalmar meu
coração. Ainda mais depois do rompimento.
— Espionar todos os passos de Michela não é a melhor forma de esquecê-la.
Bufo o ar pesadamente, jogando a cabeça no encosto do banco.
— Eu sei… vou parar. Só preciso… — Como explicar para Giulio que vigiar
Michela fazia parte do meu vício de controle. Ainda mais quando meu primeiro pensamento do
dia é sempre dela.
— Precisa se casar.
A fala me atinge de surpresa, fazendo-me virar o pescoço tão rápido para mio
fratello que sinto o estralar da cervical.
— Você ainda pode exigir o casamento. Basta reatar o noivado.
— Não posso.
— Por que caralho não pode, fratello? — Giulio soa irritado. Ele tem visto meu
sofrimento e sua possessividade o impede de ver como me sinto. — Você disse que a ama.
— Sì… eu a amo. Mas para amá-la, preciso me amar primeiro. E por isso, não a
quero presa a mim.
— Preciso te lembrar que seu casamento tem que ser com uma damigella? Porque já
cansei de tentar com Maximus. — Outra questão que precisava tratar com mio fratello como Don
Moretto: Tentar suavizar a tradição para ver nosso irmão caçula feliz.
— Será com uma damigella, Giulio — garanto. — Mas com uma que eu escolha, e
que pelo menos queira estar ao meu lado.
Eu amo a Michela, mio Colibrì, mas não quero aprisioná-la a mim sem que possa
me dar seu amor em troca. Ela não sabe o que sente por mim, está confusa. Outrossim, a mistura
de gratidão tem nublado ainda mais suas emoções.
Não sou possessivo como Giulio, e muito menos masoquista ao ponto de me casar
com uma mulher por quem sou apaixonado, mas que quer viver em liberdade fora da famiglia.
Eu jamais deixaria de ser o Sottocapo.
Talvez nunca esqueça meu Colibrì, mas com o tempo essa necessidade de fiscalizá-
la possa diminuir… assim espero.
MICHELA ZANCHETTA
3 MESES DEPOIS

Meu apartamento estava uma confusão de tecidos jogados, folhas de papel e melhor
nem relatar sobre os carreteis de linha.
Precisava arrumá-lo antes de que Lana chegasse. Ela disse que pegaria o ônibus amanhã
de manhã. Se deixasse tudo organizado hoje, poderia ir tranquila para a aula na faculdade.
Da última vez que recebi minha amiga em casa, ela fez questão de ligar para Rosa por
chamada de vídeo, só para me dar uma bronca em conjunto por conta da bagunça. Recordo-me,
enquanto continuo a arrumação.
— Você pode ao menos usar estampas? — indaguei Rosa após o discurso sobre
arrumação de quartos. — Poderia enviar algumas túnicas bem mais bonitas se Raja a deixar usar.
— O que tem de errado com essa? — Rosa perguntou puxando o tecido da túnica longa
marrom que usava. Havia ainda um capuz que cobria sua cabeça.
— Está meio apagadinha, não acha? — Repuxei o nariz indicando meu desgosto com a
vestimenta de esposa que usava. Rosa casou-se na semana seguinte que viemos embora de Alijá
e por incrível que pareça, ela estava muito feliz com o posto de segunda esposa.
Pelo seu relato, tinha feito amizade com Samira, a primeira. E as duas costumavam ir
fazer compras para a casa juntas.
Raja vinha cuidando muito bem da minha amiga, não deixando nada lhe faltar e sendo
grato por seu auxílio com algumas das crianças que ainda estavam com eles.
— Raja nos permite usar uma roupa mais bonita nas festas. Acho que pode ser colorida
sim, mas precisa ser a túnica, va benne? E mande para Samira também. Temos o mesmo corpo
— pontuou sua exigência, incluindo roupas para a outra esposa.
— Va benne… Ela poderia participar das nossas conversas também. Como vocês
conversam? Ela fala italiano?
— Ela está aprendendo e eu também estou aprendendo árabe pra gente se entender
melhor. Geralmente nos comunicamos com o aplicativo do celular que Raja deu para cada uma
de nós. Ele é um bom marido — Ela contou com um sorriso nos lábios, o que me fazia crer
corresponder à verdade. — E a confeitaria, Lana? Como anda?
— Está tão linda… — Lana olhou para o teto como se estivesse se transportando
mentalmente para lá. — Nem estou acreditando. A decoração ficou exatamente como eu
sonhava, com tons suaves de rosa e azul, e as mesas com aquelas louças vintage que tanto amo.
Ah, Rosa, você ia amar!
— Parece incrível! Mande-me fotos. — Rosa sorriu, contagiada pela empolgação de
Lana.
Eu estava tão feliz por ter conseguido ajudar minha amiga com seu sonho. Meu dinheiro
como Éloise Dufour estava intacto e mammina não me deteve quando disse que iria ser sócia de
Lana. Na verdade, Signora Zanchetta me elogiou pelo empreendedorismo.
Suspiro alto, pegando o último tecido caído no sofá e dobrando-o para colocar na minha
mesa de desenhos. Em seguida, coloco os carreteis na gavetinha acoplada abaixo, juntamente
com minhas tesouras e fita métrica.
Minha vida estava caminhando.
Após um mês de aulas intensas e mergulhada em projetos criativos, as coisas
começaram a se encaixar. Surpreendentemente, consegui um estágio no ateliê da renomada
estilista Isabella Rossi.
Trabalhar ao lado de alguém tão conceituada na indústria da moda era um sonho que eu
mal podia acreditar que estava se tornando realidade. Valentina surtou quando lhe contei e
depois fez uma pausa dramática antes de falar se algum certo Moretto não havia mexido seus
pauzinhos.
Liguei imediatamente para Giulio no seu celular pessoal e mio cognato jurou que não
fazia ideia que estava participando de um processo seletivo para estágio.
Suspirei aliviada então.
Sem contar que a própria Isa falou que gostou do meu portifólio e ninguém tinha acesso
aos currículos enviados além dela mesma.
Enfim… muita coisa havia mudado em minha vida no decorrer de três meses. Meus dias
às vezes pareciam extremamente longos e outras vezes tão curtos como um piscar de olhos.
Após vivenciar o inferno, todos os dias contavam e muito. Por isso, eu admirava cada
momento, até mesmo os mais desastrosos como o cappuccino que fez questão de estragar minha
echarpe azul clara que usei ontem.
A rotina de acordar cedo, enfrentar o trânsito caótico de Milão e mergulhar em meu
trabalho no ateliê tem sido exaustiva, mas incrivelmente boa.
Rosa estava casada e encontrou uma amiga na primeira esposa de Raja. Lana estava
realizando seu sonho. Apenas Belinda, minha querida amiga, ainda estava desacordada num leito
de hospital.
Lana costuma visitá-la dia sim, dia não. Fui para Palermo cinco vezes depois que me
mudei para Milão, e todas as vezes, visitei minha amiga. Segurava sua mão inerte como se isso
pudesse transmitir-lhe alguma força.
Os médicos diziam que ela poderia acordar a qualquer momento. Eu esperava que fosse
logo, pois queria pedir-lhe perdão. Seu estado era por ter me ajudado quando havia perdido a
esperança. E agora… eu tinha esperança por ela.
Belinda vai acordar, eu sei que vai.
Meu estômago ronca remetendo-me para o agora, que seria a hora do jantar. Essa era a
parte que eu mais sentia falta de Palermo, os momentos de fome no qual não podia me socorrer
dos lanches da Signora Isabel.
Vou até a cozinha que ficava apenas atrás de um balcão no pequeno apartamento. Pedi
para papà não exagerar quando viemos alugar um imóvel para minha estadia durante a
faculdade. Então, eu me deleitava nos 60 metros quadrados dividido entre dois quartos, um
banheiro, sala e cozinha. Tudo muito simples e de bom gosto.
Abro a geladeira constatando que tinha o necessário para montar um paninho com la
milza. Enquanto monto, recordo-me da última vez que comi o sanduíche preparado pela
governanta dos Moretto.
Ela disse que era o favorito de Fausto. Ao passo que organizo os ingredientes com
cuidado, uma onda de emoções bagunçam minha cabeça. É como se estivesse navegando em um
mar revolto, entre nossas interações antes da minha fuga e depois dela.
Assim que termino, sento-me em frente ao meu MacBook, pegando meu sanduíche com
uma mão e simultaneamente uso a outra para manusear a tela, abrindo uma janela no intuito de
ver meus e-mails.
E como se o universo estivesse esfregando em minha cara o que perdi, sou bombardeada
com a primeira manchete na qual uma foto de Fausto Moretto, em seu terno impecável, acena
com aquele maledetto sorriso de canto que invade meus sonhos.
A reportagem tratava-se do sucesso do token Imperium, e sua alavancada nos negócios
do Grupo Empresarial Moretto. A chamada era: “O token que chacoalhou o mercado das
criptomoedas”. Sem querer passo a ler o primeiro parágrafo, usando a desculpa mental ser pelo
motivo de meu clã estar envolvido.
Sì… Só por isso continuo a leitura: “O sucesso do token Imperium é o real motivo da
fortuna dos Moretto ter triplicado. Giulio Moretto deixou o posto de herdeiro mais cobiçado por
estar três vezes grávido, mas dois outros solteiros do Grupo Moretto estão à solta. E Fausto
Moretto ocupa hoje o primeiro lugar nessa lista. Consegui tomar um drink com essa beldade na
última festa no Night Club e confesso que estou completamente apaixonada…”
— Quem será que escreve essa merda? — pergunto em voz alta, rodando a tela até o
rodapé para auferir o autor da nota. O nome de uma mulher aparece, fazendo-me morder com
mais força do que necessário o pão crocante.
Em seguida, jogo o nome da cadela no Google, clicando em imagens só para ver a cara
da infelicce. Uma loira oxigenada aparece, com um batom vermelho vivo. Sinto uma vontade
imensa de circular a mão naquele pescoço fino, e apertar até ver se a cor do cabelo acompanharia
o roxo do seu rosto, depois que a privasse de ar.
— Será que ele saiu com ela? — continuo o monólogo. — Não… — Estalo a língua. —
Ela não faz o tipo dele… — Olho novamente para a tela. — Ou faz?
Novamente, sou tomada por uma onda de impulsividade e retorno para a reportagem,
clicando sobre a foto dele. Aumento a imagem, analisando o sorriso perfeito do meu mafioso
nerd. Sorrio, inconscientemente. Ele é lindo…
A recordação dos seus lábios acariciando os meus de modo delicado até assumir uma
fúria insana de desejo faz meu sexo contrair deliciosamente. Em nossa noite juntos, ele estava tão
receoso com medo de me machucar, que precisei puxá-lo de uma vez e quase morri com sua
grossura.
Dio, por que tinha que ser um negócio grande daqueles?
Depois entendi… se Dio fez para encaixar, encaixaria. Mas tinha que doer tanto na
primeira vez?
A segunda e terceira foram tranquilas. Sei que a depender de Fausto teriam mais vezes
para eu recordar com carinho, só que eu apaguei com o último orgasmo. Ele foi carinhoso e
atencioso o tempo todo.
Está doendo, amore mio? Quer que eu pare? — Perdi a conta de quantas vezes o ouvi
perguntar. E minha resposta era previsível demais para repetir.
Acabei comprano um vibrador no tamanho real, e o Mafioso Nerd — nome carinhoso do
meu brinquedinho roxo — só cabia após muito estímulo.
Uma melancolia dolorosa se aflora em meu peito com a possibilidade de que nunca mais
o terei em meus braços como a noite que perdi minha virgindade.
Todas as noites, peço para que Dio o proteja no trabalho como mammina havia me
ensinado a fazer por papà e Luigi.
Precisamos sempre rezar pelos homens que amamos. — Mammina dizia. Não sei em
que momento, Fausto Moretto entrou em minha lista. Mas sei que peço por ele.
Tracejo com a ponta dos dedos a tela, e por conta do touch screen[168] a imagem retoma
o tamanho normal, o que me faz expirar o ar, aborrecida. Queria continuar vendo seu sorriso no
mais próximo do tamanho real que me lembrava.
Ele não desistiu de mim. Mesmo sabendo que havia fugido, ele foi me resgatar.
Até mês passado, pensava que ele estava certo em me rejeitar por não saber o que se
passava em meu coração. Eu realmente não sabia. Estava abalada por conta dos momentos que
passei em Marrocos e o fato dele ter me resgatado e cuidado de mim, fez com que a gratidão
imperasse em meu interior.
Senti um alívio tão grandioso por estar em casa e a salvo, que entender o turbilhão de
emoções que rodopiavam em meu peito foi extremamente trabalhoso junto à minha terapeuta.
As sessões começaram na semana em que voltei para casa. E depois, quando me mudei
para Milão, uma vez por semana on line tenho um encontro marcado com Regina. Que não é
qualquer apelido para minha frattela não, minha terapeuta realmente se chama Regina.
E, certo dia, tive uma revelação. Foi como acender a luz num quarto escuro.
Por diversas vezes, comecei a digitar uma mensagem de texto para Fausto, ora pedindo
para conversar, ora perguntando se estava bem. Mas nenhuma vez tive coragem para enviar.
Nossa última conversa havia deixado um gostinho amargo em meu ego. Ele me rejeitou.
O mafioso nerd que me provocava… que disse que me amava, me rejeitou tão
facilmente…
E ainda disse de boca cheia que quando eu quisesse me casar, já teria me esquecido.
Quem consegue esquecer um amor assim, hum?
Não importa.
Não era por mensagem que resolveria minha situação de amor rejeitado e
correspondido. Eu tinha um plano.
No mesmo segundo, meu celular toca, mostrando o pedido para uma chamada de vídeo
com Valentina.
— Chiao, Tina! — atendo, ainda com a voz entorpecida pela raiva de Fausto.
— Che succede, Chela? Atende o telefone já emburrada. Não queria falar comigo, não
antendesse.
— Scusami… scusami… Estava vendo uma notícia do Fausto na internet.
— Ah, do token, né? Alessio comentou que ele ficou puto com a mentira da safada.
— Qual mentira?
— Que ele tomou um drink com ela ou algo assim… não sei. Não li a notícia. Só fiquei
ouvindo Alessio falando com tuo fratello na faculdade.
— Eles são muito fofoqueiros.
— São, né? — Valentina assente, dando uma risadinha contida. — Mas não é por isso
que estou te ligando, cugina.
— Não… Tem alguma novidade do plano com Alessio?
— Tenho uma novidade sim… e também é sobre um plano, mas não tem nada a ver
com Alessio.
— Valentina! Se depois de tudo você me falar que desistiu…
— Pare de ser boba. Eu amo Alessio. E… estou empenhada a conquistá-lo, agora.
— Ainda bem. Porque acho que o infelicce sempre te amou também, e…
— Chela, cale a boca um pouquinho! — Passo um zíper imaginário sobre meus lábios.
— Sabe a festa do clã D’amico?
— Uh-hum… — gracejo, pois ela pediu para calar a boca.
Mammina falou da festa de aniversário de Elena mês passado. Erica e até mesmo
Valentina já haviam pedido para fazer seus vestidos, que eu não só desenhava, mas também
costurava para elas.
Mammina e Francesca levavam para a costureira, agora que estávamos de relações
cortadas com Signora Affonso.
— Ai, per favore… fale algo — mia cugina gesticula com a mão para que deixe de ser
muda.
— Sei… a festa de 20 anos da ragazza — digo entediada.
— Sabia que a festa mudou de endereço também?
Minha testa acaba de ganhar uma ruga no centro com o ponto de interrogação.
— Castelo Tirrena — ela une o indicador e polegar, querendo explicar com as mãos
num gesto que coubesse na tela do celular.
O Castelo era na região de Messina e é onde acontece muitos eventos da famiglia,
inclusive o aniversário de 15 anos de Francesca.
— Signore D’amico é um dos Tenentes de papà. Deve ser por isso…
— Você não está entendendo. Somente cargos de Caporegime para cima dão festas no
castelo.
— Va benne… Ela vai completar vinte anos, é normal anunciar um noivado nesse tipo
de festa. Seu pai deve ter lhe arranjado um casamento com alguém importante. — Dou de
ombros.
— Isso mesmo. Não será apenas a festa de aniversário de Elena, cara mia. Será o
noivado da ragazza. — ela ainda mantém o tom de antecipação.
Eu apenas faço cara de paisagem, mostrando que não era nada de mais a tal novidade.
Mas sim algo normal que sempre acontecia na famiglia.
— E quem vai pedir a mão de Elena na festa… é Fausto Moretto — joga a bomba
nuclear em meu colo sem nem ao menos fazer contagem regressiva. Ou fez… e eu boba, não
percebi.
FAUSTO MORETTO

À medida que eu e Maximus adentramos o majestoso salão do castelo, somos


bombardeados pelos burburinhos que se mesclam à música ambiente do castelo Tirrena. O salão,
elegantemente decorado, exala luxo e requinte, num excesso de cor pink fluorescente, que me faz
duvidar sobre o vigésimo aniversário da ragazza D’amico.
Os lustres reluzentes pendem do teto abobadado, lançando uma luz suave sobre um
casal de recepcionistas, fantasiado como personagens de um conto infantil, maquiados
exageradamente, no intuito de manter os sorrisos que poderiam faltar nos anfitriões da festa.
O Tenente D’amico não é conhecido como uma pessoa cortês, e sua esposa tenta manter
o sorriso plastificado o tempo todo, mesmo que ao lado de um rabugento. Está na moda a
contratação de recepcionistas com roupas alegóricas em alguns eventos, só não pensei que Elena
escolheria justamente para hoje.
— A peruca deles parece de algodão doce — Max comenta com um riso, meneando a
cabeça para a visão que é impossível de ignorar.
A princesa da Disney está completamente rosa dos pés à cabeça, tirando a maquiagem
branca em seu rosto com uma pintura nada sútil de boneca. O vestido de ombreiras opulentas e
saia rodada parece combinar com o rosa escolhido para as toalhas de mesa dispostas ao redor da
pista de dança.
O homem-recepcionista está vestido como um príncipe do século XVIII, num casaco
confeccionado em tecido azul claro brilhoso, ornado com detalhes em dourado. As calças, no
mesmo tom, vão até o topo das botas de cano alto, com fivelas douradas, que possuem
plataformas avantajadas para a imagem se destacar ainda mais.
— Acho que você acaba de descobrir que sua futura noiva tem tara por homens de meia-
calça — Mio fratello continua zombando do gosto excêntrico da aniversariante, fitando a
composição do pobre artista que mantém um sorriso amistoso para todos que surgem no salão.
— Ela só seguiu o que todos têm feito. Signora Spadotto que começou essa merda —
recordo-o sobre a última festa de 17 anos da filha caçula daquele clã, em que comparecemos.
Infelizmente, a competição de glamour das damigelle acabava em situações
embaraçosas para alguns membros, demonstrando o quanto suas mulheres têm ou não poder
dentro de suas casas.
Signora Spadotto ganha esses brindes quando seu marido passa da conta em seus
pecados… que são muitos. Ele permite tais extravagâncias como forma de compensação.
Relatei diversas vezes para mio papà, antes de passar a mencionar para Giulio, sobre os
vídeos que flagravam as situações de risco daquelas mulheres. Mas, os dois tínham a mesma
opinião, que acabei aceitando. Não podíamos intervir nos problemas internos dos clãs que
compõem a famiglia, salvo se fossem trazidos para a mesa do Don.
Até o momento, nenhuma das mulheres Spadotto veio até nós para pedir ajuda. Então,
Giulio seguiu da mesma forma que nosso padre.
— Mesmo assim, fratello. Se depois do casamento aparecer uma meia-calça branca no
meio das suas cuecas, você já saberá o que fazer — o stronzo insiste na piada. Inclino a cabeça
em seu ombro, mantendo os olhos nas pessoas.
— Vá se foder, Max! — cochicho, num tom áspero. Ele solta o riso bobo, satisfeito por
me tirar do sério. — Agora, vamos logo cumprimentar os pais de Elena.
— Os pais, beleza, vou com você. Mas me esquece quando for dizer oi para a louca —
mio fratello avisa seu comprometimento com a minha causa. — Se tudo acontecer conforme
espera, não quero nem chegar perto da ragazza que quer nosso sobrenome a qualquer custo. Aff.
Mia Mona me mata.
— Não consigo imaginar Simona com ciúmes de você, fratello.
— Não? Na corrida de ontem, ela atirou numa donna[169].
— Ninguém morreu noite passada, Max — declaro o que analisei nas filmagens hoje
cedo.
— Não disse que ela acertou. Foi só de aviso para ficar longe de mim, capisco? — Rio
num murmúrio divertido, pois não aguento a entonação de orgulho que ele impõe ao revelar
sobre a possessividade da polizia.
— Va benne… Não precisa vir comigo quando for até Elena — concedo.
Quando minhas escolhas para uma noiva estavam em aberto, confesso que a filha do
Signore D’amico sempre esteve na lista de pretendentes, justamente por sua gana em se tornar
uma Moretto.
Ela sabe o que o sobrenome carrega e sua fascinação por nós três nunca nos passou
despercebida. Assim, foi a escolha perfeita para minha empreitada.
Sem contar que, se caso der merda, há a possibilidade de manter o compromisso. Elena
possui todas as características que eu buscava em uma noiva antes de Michela. Ela é bela, com
um corpo atlético; inteligente o suficiente para conversar assuntos variados; estuda enfermagem,
o que me ajudaria nos momentos que precisasse de um curativo em casa; e, o mais importante de
todos… quer ser uma damigella casada.
Desta forma, sei que poderia sim, construir uma relação de respeito e carinho caso seja o
que me restará desta noite.
A música ressoa no salão de festas, misturando-se aos risos e conversas animadas,
enquanto mio fratello e eu seguimos em direção aos pais de minha futura noiva. O tenente
D’amico que nunca sorri, estica os lábios forçosamente assim que estende sua mão para mim.
— Boa noite, Signore. Como vai? — Aperto a mão estendida.
— Muito bem, Sottocapo. Feliz com sua presença — o homem aparentemente revela
estar contente.
— Como vai, D’amico? — Max empertiga, oferecendo a mão ao lado da minha com um
sorriso provocativo. — Espero que nossas avenças tenham acabado, agora que vamos estreitar os
laços.
O tenente fecha a cara de imediato, dando-nos sua feição enrugada com a qual estamos
acostumados. Viro o pescoço para o lado, tendo acesso ao ouvido do meu irmão caçula.
— Cale a boca, Max — digo baixo. — Não é hora para isso. Ele me ignora.
— Espero que saiba que não foi pessoal colocar fogo no carro do seu filho. Ele foi quem
me obrigou — Max continua. Pensei que ele não fosse trazer à tona justamente hoje a desavença
que existe entre os dois. O filho de D’amico trapaceou numa corrida e mio fratello o puniu de
acordo.
A situação não tomou maiores proporções, pois Max soube antes de explodir o carro do
ragazzo unir provas suficientes para que o Consiglio ficasse do seu lado.
— Fecha essa maledetta boca — rosno para ele, e o homem corpulento, tão alto quanto
Giulio, troca o peso de uma perna para a outra algumas vezes.
— Que isso, fratello. Temos que demonstrar que são águas passadas, não é mesmo,
Tenente? — Max continua oferecendo a mão com um sorriso maroto.
O rosto do homem passa por diversas tonalidades de vermelho até que sua boca inicia
um movimento estranho, elevando os lábios numa figura similar ao coringa em sua pior versão.
— Va benne… Maximus Moretto.. Hoje é uma noite de festa. E logo mais teremos um
grande momento, então… — E finalmente, há um aperto de mãos. Max sorri para mim, como se
soubesse que aquele seria o resultado.
Ele não sabia.
— Você não faz ideia… — E mio fratello quer provocar a todos, inclusive a mim. — A
festa está belíssima, Signora. — Ele muda sua atenção para a esposa do tenente que aguardava
ansiosa ser notada ao lado do marido. — Parabéns. Está tudo muito… muito… rosa. — Maximus
não encontra outro adjetivo, e neste momento pego dois copos de uísque da bandeja que passa
por nós, colocando um em sua mão.
— Sì… a festa está maravilhosa, Signora D’amico — emendo. — Está como sua filha
esperava?
Max bebe o líquido de uma vez e tão logo pega outro copo. É… a festa será muito,
muito longa.
— Está, sim, Sottocapo. Ela ficou muito feliz por realizar sua festa no castelo. Muito
obrigada — agradece, exibindo um sorriso largo.
Quando mencionei sobre meu interesse em propor noivado à sua filha, a mulher de
pronto ofereceu a data de aniversário, bem como solicitou o castelo para a realização da festa.
Os aniversários das aspirantes à damigella nunca foram menos pomposos. Mas apenas
as filhas de Caporegimes com certa fortuna usam do salão em Tirrena. Ostentar a festa aqui,
significa muito mais.
Após uma pequena conversa cordial, afastamo-nos e seguimos para a mesa na qual
Giulio e Francesca estão acomodados. Eles vieram na frente, pois mia cognata passou a
demonstrar menos paciência para suportar os eventos da famiglia agora que sua barriga está
muito avantajada e o peso de três parece prejudicar sua locomoção.
O humor de Francesca tem oscilado e mio fratello mais velho vem tentando ao máximo
seguir à risca as orientações médicas para não aborrecê-la. Contudo, certos dias, é impossível.
Ela mesma cria situações complicadas demais para a mente distorcida do Don da Cosa Nostra.
Acredito que Giulio já deu um milhão de soluções para todas as hipóteses em que Francesca
revela temer quanto ao nascimento dos trigêmeos.
No último mês, ele deixou de ir até o cais, aumentando meu rol de tarefas para que
pudesse passar mais tempo em sua casa ao lado dela. Tudo porque Tchesca não quer entrar em
trabalho de parto sem que mio fratello esteja por perto.
Existe não apenas duas equipes de médicos prontas para socorrê-la, mas quatro. Todas
estão de sobreaviso, pois os meus sobrinhos podem vir a qualquer momento.
— Por que demoraram tanto? — a leoa grávida é quem indaga assim que nos sentamos à
mesa.
— Fausto não sabia qual gravata colocar — Max responde, depois eleva o copo para a
decoração ao nosso redor. — Acho que se tivesse ligado para Elena, saberia que rosa era a
pedida.
De imediato, Francesca encara meu pescoço com uma carranca, que só desmancha ao
constatar que estou usando a gravata na cor chumbo tradicional.
— Papà e mammina já chegaram. — Ela aponta mais adiante uma roda de damigelle
que conversam animadamente, e depois outra com alguns homens, destacando os Zanchetta e
alguns dos Caporegimes.
— Logo mais irei até eles para cumprimentar… só preciso…
— Se precisar se acostumar com a poluição cor-de-rosa, desculpe avisá-lo que só está
começando. Olhe… — Giulio complementa o gracejo de Maximus, erguendo o queixo em
direção às escadas.
Elena desce os degraus devagar, com um vestido de festas elegante e exagerado. O
corpete ajustado realça suavemente a silhueta, contrastando com a expansão da saia, em camadas
ondulantes de babados. A tonalidade de rosa é tão vibrante que ofusca momentaneamente minha
visão.
— Se ligou o pisca-alerta, é melhor usar os dois olhos. Eu mesmo fiquei cego — Max
relata, virando outro copo de uísque.
— Por que está bebendo tanto, fratello? — Giulio é quem pergunta, estranhando o
pequeno descontrole de Max.
— Só estou com sede.
— Simona atirou em uma ragazza ontem por ciúmes — pontuo, afastando meu olhar da
expansão cor-de-rosa que vem em minha direção.
— Quero aprender a atirar — Francesca diz de pronto para Giulio.
— Pra quê? Eu só tenho olhos para você, amore mio. — Ele eleva a mão de mia
cognata até seus lábios. Ela sorri, transparecendo tratar-se de uma brincadeira.
Às vezes, eu não sei mais em que momento Francesca brinca ou soa séria, em virtude de
sua rápida troca de humor.
— Chiao, Fausto! Tudo bem? — Elena diz, assim que se aproxima de nossa mesa.
Prontifico-me em ficar em pé para cumprimentá-la.
— Ela não devia primeiro ir até os pais dela e depois eles a trariam até aqui? —
Maximus indaga Giulio em minhas costas.
— É o protocolo — Francesca responde secamente. Não vejo a interação do meu clã,
por estar de costas para eles, mas pela aspereza na voz de mia cognata, consigo imaginar sua
feição fechada. Ainda mais pela forma sem jeito que a ragazza em minha frente passa a se mover
encabulada.
— Ah… peço desculpas… eu posso…
— Não. Não peça. Está tudo bem, Elena. — Seguro sua mão e deposito um beijo cálido
no dorso. Ela me oferece um sorriso gentil. Uma ragazza passiva.
Diferente do meu Colibrì petulante.
— Don Moretto, Sigonora… — Ela faz uma suave mesura, cumprimentando mio
fratello e Francesca. — Maximus. Como vão?
— Estamos bem, Elena. Feliz aniversário, aliás — Francesca é quem responde por
todos, Giulio apenas acena com a cabeça, como se emendasse à educação da esposa. — Espero
que goste do presente.
— Com certeza irei — devolve, educada. Todos foram orientados a entregar os
presentes de aniversário na entrada. Não faço a mínima ideia do que minha cunhada comprou em
nome de todos nós, mas com certeza é de bom gosto. No entanto, quando ela diz num tom baixo
“só que não…” fico na dúvida.
Volto minha atenção para minha talvez futura noiva, se mia cognata não a matar antes,
e ela felizmente parece aérea demais admirando ao redor.
— Acredito que sua mãe está te chamando. — Aponto na direção da senhora que
gesticula para que a aniversariante vá até ela.
— Ah, sim. Com licença — Ela se despede, mantendo o sorriso.
Assim que me sento de volta ao lado de Maximus, Francesca passa a me encarar de
modo estranho.
— Bonita. Mas vazia… — comenta mal-humorada.
— Talvez… — Dou de ombros, sabendo que é suicídio discordar de uma grávida de
trigêmeos prestes a parir.
Ela não sabe… Mas meu intuito com o pedido é provocar justamente alguém de seu clã
a finalmente tomar coragem e assumir seus sentimentos.
Não pude deixar de vigiar meu Colibrì. E durante esses meses, confesso que acabei
intensificando mais do que deveria.
Fui até sua casa em Milão enquanto estava fora e instalei câmeras de vigilância em
todos os cômodos. Sim… em todos. Não fazia ideia de como poderia ter visão de tantos ângulos
com 36 câmeras num espaço de 60 metros quadrados.
No primeiro mês, visualizar sua rotina com pequenos indícios de que eu estava ainda em
seus pensamentos tanto quanto ela estava no meu, fomenta uma faísca de esperança. Ainda podia
ser apenas gratidão… até que… meu nome passou a sair dos seus lábios em momentos íntimos
no chuveiro. Depois, em seu quarto.
O auge do meu ego inflado foi quando a maledetta comprou um vibrador e apelidou de
mafioso nerd.
Meu plano ganhou forças com as mensagens de texto que ela começava a escrever, mas
nunca me enviava. Eu li… com todas as letras aquilo que queria tanto ouvi-la dizer.
Aquele foi o momento que decidi estar na hora de dar um ponta-pé. Estava cansado de
esperar. Precisava ter ao meu lado uma mulher corajosa e esta noite será a prova final de
Michela.
Será o zero da contagem regressiva de minha espera por ela. Caso, seu amor por mim
seja raso ao ponto de permitir formalizar este noivado, eu terei a resposta do meu destino… que
infelizmente será cor-de-rosa num sentido estranho da palavra.
O jantar da festa começa a ser servido e passamos a conversar sobre frivolidades de
bebês e os nomes que ainda não haviam sido definidos para os trigêmeos. Francesca convenceu
Giulio de que precisavam encarar seus filhos cara a cara, para saber qual nome escolher.
E por isso, bombardeá-los com sugestões tornou-se a melhor estratégia para passar o
tempo nos eventos da famiglia.
As horas se arrastam, e a esperança que brilhava nos meus olhos no início da noite
começa a se transformar em uma sombra de frustração.
Cada vez que alguém surge pelo arco de entrada do salão do castelo, meu coração
dispara na expectativa de vê-la entrar. Tomo cuidado para não demonstrar minha tristeza, e
sorrio vez ou outra para Elena, mantendo a farsa.
As batidas em meu peito aceleram conforme a música se transforma numa melodia
voltada para a valsa. A ragazza que aguarda o pedido de noivado me encara em expectativa.
Suspiro alto, virando-me para Giulio e pressiono os lábios, com um balançar de cabeça,
indicando minha desistência quanto à espera.
Michela não veio.
Ela foi convidada para o aniversário e pensei que viesse com sua cugina. Mas Valentina
está do outro lado do salão conversando com Erica Spadotto, ambas usando modelitos
desenhados e costurados por minha amada.
As duas me observam de modo a me dar a entender que sabem o que eu realmente
quero.
Eu deveria estar paranoico.
Olho ao redor, buscando seu rosto entre a multidão uma última vez antes de encarar meu
destino.
Levanto-me, fechando o paletó, numa contagem regressiva que finda a esperança em
mio Colibrì. Ela não foi corajosa o suficiente para assumir seu amor. Seu sentimento devia ser
tão pequeno que lutar por mim era irrelevante em seus planos.
Fui um idiota romântico à espera de que na sensação de me perder para outra, seu
coração a fizesse correr para meus braços, aceitando-me como sou.
Dez… começo a contagem dos passos de modo decadente até minha futura noiva.
Nove… sinto uma ansiedade crescente, uma mistura de expectativa e temor.
Oito… meu peito se comprime dolorosamente, como se uma mão invisível apertasse
meu coração.
Sete... a decisão que tomei ao libertá-la quando a vi desfalecida e quase a perdi ecoa
como uma certeza.
Seis… uma tristeza insidiosa começa a envolver meus pensamentos.
Cinco... as esperanças e sonhos que nutri para este momento parecem distantes.
Quatro... a nostalgia se instala, e a contagem regressiva torna-se um eco de despedidas
do futuro que não vivi.
Três... eu a deixaria voar se me escolhesse. Só pediria um espaço nas nuvens para
acompanhá-la.
Dois… suspiro, percebendo que meu amor por ela sempre foi muito maior do que ela
poderia corresponder.
Um… ergo o olhar, percebendo só agora que fiz o caminho todo de cabeça baixa.
Então, minha mente aturdida cria uma miragem para me enlouquecer.
Mio Colibrì está caminhando em minha direção. A mulher que ainda preenche meus
pensamentos e sonhos. A cada passo vejo-a ainda mais real, caminhando para mim,
deslumbrante em um vestido que destaca suas curvas...
Seus olhos encontram os meus, e nesse momento, o mundo ao nosso redor parece
desaparecer.
Minha noiva oficial tenta me envolver em uma dança, mas meu olhar permanece fixo
nela. A mulher que amo, agora a apenas alguns passos de distância. Não acompanho Elena no
movimento, estando estático no lugar.
— Posso ter a honra dessa dança? — Michela diz logo atrás de Elena que a olha sobre o
ombro.
— Esse momento não é mais seu — a ragazza que antes parecia tão passiva mostra as
garras.
— Não perguntei a você, Elena. — Ela devolve com um olhar assassino. — Quer dançar
comigo, Sottocapo?
Meus olhos brilham sem saber se meus ouvidos estão me enganando apenas para
satisfazer as necessidades do meu coração.
— Ele está comprometido — Elena se prontifica, em defesa.
— Não estou vendo um anel em seu dedo, cara mia. Então, você está errada.
Elena me fita, buscando auxílio para contradizê-la. Eu, por minha vez, analiso sua mão,
que de fato não possui qualquer anel de noivado, dando de ombros. Em seguida, estudo o rosto
de mio Colibrì.
— O que você quer, Michela? — indago.
— Dançar com você.
— Você pode dançar comigo depois que oficializar o noivado.
— Não. Não posso.
— Por quê?
— Porque você não vai oficializar quando já está noivo de outra pessoa.
— Até onde sei, não pedi ninguém em casamento.
— É verdade… não pediu. Mas quem tem o anel na mão direita é sua noiva, e eu tenho.
— Ela ergue a mão, exibindo a aliança com o diamante solitário e a letra M como pingente,
abrindo a boca num ó perfeito, numa feição de escárnio para Elena. — Está vendo, querida, eu
sou a noiva. Então, se quer dançar a valsa de vinte anos com alguém, escolha outro.
E Michela simplesmente empurra a aniversariante para o lado, me puxando para si.
— Você está criando uma cena na frente de toda a famiglia, está sabendo disso? — falo,
agora com humor renovado.
— Ninguém mandou me dar um anel de noivado. — Inclino sobre ela, me apossando da
cintura fina que tanto senti falta de apertar.
— Eu não te dei nenhum anel de noivado e tua frattela está exibindo apenas a aliança de
casada esta noite — cochicho em seu ouvido.
— Eu tive que improvisar — cochicha de volta.
— O que te faz pensar que vou te aceitar de volta, Colibrì?
— Tenho algumas coisas para enumerar.
— É mesmo? Gostaria de dividir comigo?
— O fato de que encontrei 10 cameras de vigilância em meu apartamento.
— Foram 36. — Ela abre a boca com assombro.
— E porque você me ama.
— Nunca menti quanto a isso. Mas eu te vigiar é o que faço com vários membros da
famiglia.
— 36 câmeras — enfatiza, como se fosse uma justificativa. Balanço o ombro com
indiferença. — Você me deixou porque quer ser amado, não é?
— E…
— Então, não tem mais o motivo que te impede de ficar comigo. Eu te amo — Desta
vez é ela quem fala as três palavras como se fosse algo banal.
— Desculpa, mas acho que entendi errado.
— Io. Ti. Amo. Meu mafioso nerd. E quero ser sua moglie. — Puxo o ar com força,
querendo estagnar o relógio para que o tempo retorne 10 segundos e reviver sua fala em minha
mente.
O alívio e a euforia desabrocham em meu peito como explosões de fogos de artifício.
Seguro seu rosto com as mãos trêmulas e os olhos repletos de emoção, tomando sua boca em
meio a pista de dança. Protagonizo um beijo mais do que escandaloso, mas carregado de fúria,
paixão e todo o meu amor.
— Ei! Fratello! — Giulio berra da mesa, ajudando Francesca a se levantar. — Se já
decidiu quem será sua noiva. Acaba o teatro e venha me ajudar!
— Dio Santo! — A voz da signora Zanchetta é que se sobressai no meio da multidão.
— Abram espaço, agora!
— O que foi? O que está acontecendo? — indago.
Michela regozija dando saltinhos e dá alguns passos à minha frente, para depois retornar
e pegar minha mão para acompanhá-la.
— Venha, mio nerd mafioso, nossos sobrinhos estão a caminho!

Observação: A cena do nascimento dos trigêmeos estará no Livro 3, que contará a história
de Maximus e Simona.
FAUSTO MORETTO

À beira-mar, o cenário que se desdobra diante de mim é uma obra-prima da


simplicidade. O sol pendura-se no horizonte, lançando seus últimos raios dourados sobre o
oceano sereno.
O altar improvisado revela um arco delicado, adornado por flores campestres que
dançam suavemente com a brisa no final de tarde da primavera.
Nos bancos de madeira rústica, dispostos nas laterais de um pequeno corredor, estão
nossos amigos e os clãs que escolhemos para compartilhar esse momento especial.
Observo cada detalhe com olhos que transbordam gratidão por tudo o que
conquistamos. Escolhemos a praia de pescadores na ilha de Marettimo. Os pais de Airton e
Maria estão presentes, bem como Raja e suas duas esposas, Samira e Rosa, a amiga que Michela
fez em Marrocos.
Minha noiva pediu para que nosso casamento não seguisse a tradição repleta de pompas
dos membros de alto escalão da famiglia, pois não gostaria de dividir esse momento íntimo com
outras pessoas que não aquelas que realmente importam.
O maior problema enfrentado por mio Colibrì foi convencer sua mammina, posto que
para mim, eu só precisava de sua presença e um celebrante para atestar que dali em diante ela
seria mia moglie.
Talvez a presença de meus irmãos, cunhada e sobrinhos também se fizesse necessária
para meu coração resplandecer com a alegria que o sacramento do matrimônio tem a oferecer,
confesso.
Não haveria uma festa estrondosa, mas um pequeno jantar que se realizará ali mesmo,
na praia, a alguns metros de distância. Foi o máximo que mio Colibrì permitiu que Anunziatta
Zanchetta organizasse.
Sob uma tenda branca, a confeiteira Lana, outra das amizades verdadeiras de Michela,
deixou sua marca artística em cada detalhe ao confeccionar nosso bolo de casamento. A estrutura
de três andares possui pequenas flores delicadas em pasta americana nos tons pastéis. Os doces
caseiros exibem uma variedade de cores e formas, revelando seu talento.
Ao meu lado estão Max e Giulio, cada um com um dos meus sobrinhos em seu colo.
Todos vestem o terno marfim e a camisa branca sem gravata, orientação da noiva. Até mesmo os
bambini[170], Antonio e Angelo, a terceira geração Moretto, estão mais fofos com os pequenos
paletós.
Meus sobrinhos são a versão miniatura de Giulio, só que em dose dupla. Já a pequena
Chiara, sorri alegremente no colo de Francesca, sentada no primeiro banco ao lado de sua
mammina. Ela é a verdadeira bambolina[171], uma mistura de mia mammina e Francesca, seus
cílios grossos e olhos na cor chocolate encantam a todos.
O trio fará um ano daqui a 15 dias e essa é a data limite para meu retorno e de Michela
de nossa lua de mel. Viajaremos logo após a recepção para as Ilhas Seychelles em Madagascar e
pretendo passar alguns dias isolado no bangalô apreciando o corpo de mia moglie.
Um resmungo me tira do devaneio e sorrio, ao constatar tratar-se de Maximus, quando
Angelo puxa uma mecha do seu cabelo que escapou do rabo de cavalo.
Simona, no mesmo instante, se prontifica a vir socorrer mio fratello e prender
novamente as madeixas dele. Ela se oferece para pegar Angelo, que lhe dá as costas de imediato,
querendo permanecer no colo de zio Max.
E então… a vibração no ar muda e ouço o violino ecoar as notas com suavidade pelo
ambiente nos acordes da melodia delicada de "All of Me" de John Legend[1].
A música diz minha declaração eterna ao meu Colibrì, pois eu dareiba ela tudo de mim,
e serei dela, todos os dias que me permitir estar ao seu lado.
Inspiro lentamente, soltando o ar numa respiração profunda, preenchendo de oxigênio
todas as células do meu ser para fortalecer a memória e eternizar este momento com a imagem da
beleza personificada, caminhando vagarosamente em minha direção.
Cada detalhe de sua graça brilha como diamante, numa sinfonia encantadora. Seu
vestido, de corte simples, com pequenos apliques de renda, envolve-a delicadamente,
contornando as curvas suaves. Uma coroa de flores adorna os cabelos, que caem em cascata,
movendo-se com a brisa do mar.
Em seus olhos vejo a promessa de um futuro cheio de aventuras compartilhadas, risos
infindáveis e um amor que só crescerá com o passar dos anos. Ela é minha… e eu sou
completamente dela.
— Respire, amore mio — Michela fala baixinho assim que seu pai a entrega para mim.
— Está difícil vendo-a neste vestido — devolvo. — O vestido tinha que ser tão justo?
— Era para estar mais largo, mas aconteceu um imprevisto no último mês — revela,
mirando o padre celebrante que gesticula para que nos aproximemos.
— Signora Affonso causou-lhe algum transtorno? Disse que era só falar e… — Mio
Colibrì expira um riso gracioso, negando com a cabeça.
— Confie em mim… Não tem nada a ver com as vontades daquela velha.
Signora Affonso pediu desculpas a mio amore, e pediu para retomar os trabalhos,
propondo inclusive uma parceria na venda dos vestidos. Desta vez, não foi um pedido ou ameaça
minha, apenas o reflexo do talento de Michela, que vem se destacando novamente.
Ela passou a assinar com seu nome real e logo este será Michela Moretto.
— Mas então?
— Shiiii… futuro marito. Fique quietinho ou nunca vamos passar de nível — diz,
apontando para frente, e vejo o padre me encarar com uma carranca para que me cale.
Pressiono os lábios numa linha fina, com uma imensa vontade de tirar o canivete do
paletó e conferir um colar vermelho ao redor do pescoço do homem a nossa frente pela
impertinência. No entanto, contenho-me, pois quero muito mais ouvi-lo dizer “agora, os declaro
marido e mulher”, que inicio uma contagem mental até o desejo assassino esvair-se.
— Agora os votos… — O celebrante gesticula para que ela comece. O ar ao meu redor
torna-se denso e meu coração acelera a cada segundo, admirando o olhar penetrante da mulher
que amo.
— Fausto, minha vida sempre foi regida por leis que fugiam do meu controle, e… de
modo inconsequente, fiz muitas escolhas erradas para fugir. — Signore Zanchetta dá uma
tossidela, mas Michela não se sente acuada. — Mas foi escolhendo o noivo errado, que tomei a
melhor decisão da minha vida… você.
Meu peito parece expandir a cada palavra. Ela fecha os olhos e respira fundo para
continuar.
— Você foi a água no deserto que trouxe esperança para minha vida. Demorei para
ouvir meu coração, que repetia incessantemente seu nome. Fui teimosa por ter uma ideia errada
de liberdade, pois esta só pode existir quando tenho asas, amore mio. — Michela segura meu
rosto, passando o polegar por debaixo dos meus olhos, secando minhas lágrimas. — E elas… são
você, meu Mafioso Nerd.
Libero o riso com uma lufada de ar, não querendo que meu soluço irradie para mais
longe do que seus ouvidos.
— Agora é sua vez, fratello — Maximus me apressa, fazendo-me rosnar para ele. Giulio
o repreende num “cale a boca” entredentes.
— Michela, mio Colibrì, ser seu noivo foi… desafiador. — Alguns riem. — Eu amo um
desafio. Por isso, foi fácil me apaixonar por você. Descobri que meus dias não tinham cor e seu
sorriso era uma aquarela completa. Fiquei viciado. Você foi minha escolha certa. Ao seu lado,
sinto-me mais forte e invencível. — Ela sorri, enrugando o narizinho arrebitado. — Que a cada
amanhecer eu possa tê-la em meus braços. Que a cada noite, você possa retornar para eles. Se
sou suas asas, saiba que você é meu céu. Io ti amo, mio Colibrì.
— Anch'io ti amo[172] — fala baixinho, com a voz embargada e um sorriso majestoso.
Neste momento, as notas musicais de Aleluia imperam nas cordas do violino, único
instrumento a dar sonoridade ao ambiente.
— Muito bem… as alianças. — O celebrante anuncia. Voltamo-nos para o corredor de
onde Michela veio, vendo Airton e Maria caminharem lado a lado, segurando uma almofadinha
com nossos anéis, símbolo do amor eterno amarrados num laço de cetim.
As crianças seguem com as roupas dos trigêmeos numa versão maior. A ragazza tão
bela quanto minha sobrinha em seu vestido rodado, mais justo sobre o peito, onde apliques de
renda fazem desenhos delicados. Seu cabelo está preso em uma trança, na qual pequenas flores
enfeitam até a ponta.
Airton está com o peito inflado, sentindo-se importante segurando com orgulho a gola
do paletó.
Eu e Michela vamos até eles e recepcionamos nossas alianças. As crianças sorriem
alegres, sendo elogiadas pela signora Zanchetta e Valentina que efetuam uma ótima função de
cerimonialistas substitutas.
Alguns atos depois e, finalmente, ouço as palavras com as quais sonhei por diversas
vezes, além de ter minha noiva declarada oficialmente minha mulher.
— Enfim… pode beijar a noiva. — Enlaço a cintura de mio Colibrì, cobrindo sua boca
com a minha num beijo que dá início a nossa vida de casados e à sequência do nosso felizes para
sempre.
Caminhamos para a tenda com alguns garçons aguardando para conduzir os poucos
convidados até seus assentos.
— Agora você vai me revelar se precisa ou não lembrar aquela Signora Affonso com
quem está lidando?
— Do que está falando, Fausto?
— Você disse que teve problemas com o seu vestido — relembro-a.
— Ah… sì… mas Signora Affonso não teve culpa, não.
— Sei… — digo, de forma irônica. Ainda faria uma nova visita àquela donna. — Se não
foi ela, de quem foi a culpa?
— Sua.
— Minha?
— Sim… sua. E do excesso de espermatozoides que carrega no saco, talvez.
— Colibrì… não estou entendendo e…
— Vou desenhar. Espere um momento. — Ela puxa a saia do vestido, revelando os pés
descalços, e com a ponta do dedão passa a desenhar um círculo e em seguida o formato de um
‘u’ longo. — Você tem me fodido com isso aqui, e despejado uma porção de porra em minha
bo…
Tampo sua boca no instante em que Giulio e Francesca passam por nós. Sinto o chão
tornar-se areia movediça quando meus joelhos amolecem de imediato e então… A euforia ganha
espaço em meu peito, dando-me forças, explodindo com uma gargalhada espontânea.
Agarro mia moglie, erguendo-a do chão e rodopiando-a no meio de todos que nos
observam, imaginando tratar-se de um rompante de felicidade pelo casamento.
Deixo-os nessa ilusão, sem revelar em voz alta, pois por mais que nossos convidados
sejam restritos aos mais íntimos, alguns não são tanto assim. A celebração foge do esperado pela
famiglia, e precisamos manter as aparências, infelizmente.
— Você tem certeza?
— Uh-hum… — Inclino-me sobre ela, afundando o rosto em seu pescoço.
— Você está com meu figlio na barriga?
— Claro. Queria que botasse um ovo? — Mordo levemente seu ombro pela resposta. Ela
ri. — Sì, amore mio. Estou esperando tuo figlio.
Afasto-me sorrindo, sem conter a felicidade do momento.
— Io ti amo mais que tudo, Colibrì.
— Io ti amo, meu Mafioso Nerd.
Assim, em meio ao caos que a vida nos reservou, descobrimos que o amor muitas vezes
surge nos lugares menos imaginados. No nosso caso, de uma mentirinha boba… nada inocente.

FIM
MICHELA ZANCHETTA

O espartilho de renda e lycra moldam meu tronco, finalizando com as taças que dão
suportes aos seios mais inchados. Fito meu reflexo no espelho, conferindo a cinta-liga vermelha
que envolve meu quadril, presa à calcinha minúscula.
Se a temperatura do quarto não estivesse agradável, teria optado pela ausência da meia
sete oitavos, mas então a composição seria completamente diferente.
Não entendia as sensações exageradas de Francesca durante a gestação dos trigêmeos,
contudo, agora, com apenas um ser vivo dentro de mim, entendo o quando a TPM elevada ao
grau máximo pode fazer uma gota d’água tornar-se uma tempestade.
— Colibrì? Está tudo bem? — Ouço Fausto questionar do quarto. Pedi para me dar um
momento e assim pude me preparar para a noite de núpcias conforme vinha planejando em meus
sonhos.
— Já estou indo… — acalmo-o, escovando por uma última vez meus cabelos. Respiro
fundo e saio do banheiro luxuoso do bangalô que escolhemos na ilha de Seychelles.
O espaço escolhido era praticamente um pequeno apartamento, com vista para o mar de
uma sacada com piscina de borda infinita. O céu extremamente limpo confere liberdade para os
raios solares invadirem o quarto através das cortinas que se estendem pelas portas duplas de
vidro.
A cama king size possui um dossel, com tule claro, que corresponde ao romantismo do
lugar.
Antes de ouvir a segunda chamada, entro no quarto, admirando o espetáculo de homem
que me aguarda, sentado na beirada da cama, com os braços estirados atrás do corpo e os olhos
voltados para a imensidão do mar, totalmente distraído.
Os músculos das costas tensionados, indicam estar relaxado enquanto me aguarda
pacientemente.
— Se quiser, posso ficar de pé… e nu — diz, com a voz divertida e assim que o pescoço
vira para trás e toma ciência das peças que adornam meu corpo, a expressão escurece numa
nuvem repleta de luxúria.
Um orgulho repentino me invade e sinto-me empoderada por causar tal reação em
mio marito.
O olhar de Fausto carrega o desejo carnal que acaricia de modo invisível cada local por
onde passa, causando uma onda de magnetismo que me faz caminhar vagarosamente até ele.
— Colibrì… Colibrì… quer me matar de tesão? — Ele praticamente faz um exame
cuidadoso por todo meu corpo.
— Quero que seu tesão o faça queimar por mim.
Meu Mafioso Nerd exibe um sorriso malicioso, e pra piorar, mordisca o canto da boca,
me encarando sem desviar o olhar. Ele inspira fundo e solta o ar bem devagar, sonoramente.
— Não mereço tudo isso, amore mio. Mas não me importo e vou aproveitar todos os
dias que puder ao seu lado — ele fala, com a voz rouca e sedutora. Seus olhos ardem em luxúria
quando ele agarra meu quadril me puxando entre suas pernas.
O perfume de sua pele invade minhas narinas e ele aproxima o rosto da minha barriga,
fechando os olhos e inalando profundamente, apontando sua necessidade.
— Você vai precisar tomar as rédeas, Colibrì, tenho medo de perder o controle e te
foder forte demais. — Acaricia com os lábios a região do meu umbigo sobre o tecido do corpete
fino. As mãos descem pelas laterais até apertarem minha bunda com vontade.
Minha respiração acelera em meu peito, que sobe e desce mais rápido que o normal.
Percorro com os dedos os fios no topo de sua cabeça, fazendo-o olhar para cima e me encarar.
Ele umedece os lábios de uma forma tão sensual que sou invadida por um calor
instantaneamente.
Minhas mãos tracejam seus ombros, sentindo as ondulações dos músculos vigorosos. A
saliva aumenta, desejando senti-lo em meus lábios. Fausto é lindo, o homem mais lindo que já vi.
Nos encaramos por tempo suficiente para que meu corpo entre em combustão. Então,
suas mãos abaixam lentamente as alças do espartilho, deslizando os dedos suaves na pele
exposta, sem desviar dos meus olhos.
Contenho um gemido, pressionando meus lábios quando ele engole saliva ao checar
meus mamilos duros apontando para ele. A tortura gostosa continua com as pontas dos dedos que
seguem revelando meu corpo ao passo que Fausto empurra o tecido num amontoado em minha
cintura.
— Tão bella, mio Colibrì. — Ele beija delicadamente o bico de um seio, puxando-o com
os lábios numa espécie de pinça. — Tão gostosa… — Repete o gesto do outro lado. Arfo,
sentindo meu sexo apertar com pequenas contrações.
Fausto sabe o quanto gosto desse estímulo e passa a dar atenção aos meus seios. Ele
rodopia a ponta da língua, chupando no final cada um deles, mais de uma vez. Minhas pernas se
tornam gelatina, e tombo para frente, segurando-me em seus ombros.
Meu joelho direito é o primeiro que busca apoio sobre o colchão, para na sequência, o
outro, até que empurro Fausto para o centro da cama, inclinando-me sobre ele.
— E eu pensando que precisava ir mais devagar… — diz, debochado.
— Não precisa… — ofego, possuída de desejo. — Não precisa mudar nada, amore mio.
Só continue me fodendo do jeito que gosto ou se contente em ter filho único.
— Você pensa em ter outro filho? Esse nem nasceu… — Faz a pergunta em tom de
brincadeira, mas sei que possui interesse na resposta.
— Meu marido é um multimilionário das criptomoedas, e acabo de descobrir que os
hormônios da gestação elevam minha libido. Então… a resposta é sim. Se ele me foder gostoso
todos os dias, pode contar que dou a ele uns cinco filhos — esclareço. — Se tiver umas duas
babás, pelo menos. — Não deixo de enfatizar a necessidade.
A resposta é a ignição para que Fausto tome a iniciativa. Ele une nossas bocas num
beijo faminto, com chupadas e sua língua buscando a minha com necessidade. Correspondo,
lambendo e mordicando, roçando os lábios impiedosamente.
De repente, tudo para. Fausto diminui a frequência, colando nossas testas por um
instante, os olhos apertados tentando controlar a respiração descompassada, eu ainda por cima e
suas mãos apertando forte minha cintura.
— Mesmo que fosse só eu e você, mio Colibrì, seria suficiente — ele sussurra, voltando
a me beijar e acariciar com as duas mãos que deslizam por minhas costas, bunda e coxas, de um
jeito que me faz sentir desejada.
Fausto muda nossas posições, enquanto beija meu pescoço, a barba aparada arranhando
a curvatura entre meu ombro. Num impulso, ele me coloca de quatro, abaixando meu tronco até
os seios encostarem sobre os lençóis. Por conseguinte, segue beijando minhas costas em direção
a minha bunda empinada. Ele se afasta, admirando a vista da calcinha fio dental que cobre quase
nada do meu sexo.
— Se foder seu cu, não vou cutucar o bambino… — constata, passando levemente a
ponta dos dedos no local.
— Se foder minha boceta, também não. Faça a garagem da frente bem feita que penso
com carinho em abrir a dos fundos. — Balanço o quadril sutilmente. Ele dá um tapa estralado em
uma banda, massageando a região. A ardência costumeira de sua palma refletindo
instantaneamente numa contração gostosa entre minhas pernas.
— Você gosta, Colibrì, e sempre goza.
— Porque você sabe me convencer. Então pare de enrolação. — Mio marito acata meu
comando puxando o fio para cima até o tecido entrar em meus grandes lábios, e a aspereza da
renda roça sobre o clitóris. Gemo baixinho.
— É assim que você gosta, hum? — Ele continua movimentando. — Fale, mia donna.
— Isso… assim…
— Mas eu quero mais… — revela. Fausto enrola os dedos pelas laterais e tira minha
calcinha.
Sinto sua respiração se aproximar do meu sexo, meu Mafioso nerd dá uma lambida
languida por toda minha extensão. Libero um gemido mais alto que o esperado.
— Meu nome, amore mio. Geme meu nome — pede, voltando a se afundar entre
minhas pernas por trás.
— Fausto… Fausto Moretto… — Uma lambida seguida de uma chupada. — Mio
marito… — digo, fitando-o sobre o ombro. Seus olhos completamente em chamas. — l'amore
della mia vita[173].
Ele começa a beijar e mordiscar minha boceta, circulando meu clitóris com a ponta da
língua que depois é enfiada em minha entrada várias vezes.
Agarro os lençóis, que enrugam nas palmas de minhas mãos. Ele aperta minhas coxas e
seus movimentos parecem ler os desejos do meu corpo mudando o ritmo. Minha respiração fica
cada vez mais superficial e não consigo parar de gemer. Rebolo em sua cara enlouquecida,
totalmente entregue. Mio marito suga com força, e eu arfo um grito agudo assim que o prazer do
primeiro orgasmo me consome.
Assim que retorno ao meu corpo, deixo o tronco deslizar sobre o colchão, e Fausto deita
ao meu lado.
— Sobe em mim, Colibrì. Quero que se encaixe no meu pau e vá no seu ritmo.
— Não precisa ter medo, Fausto. O médico disse…
— Só preciso ter certeza do quanto posso ir. Se você me guiar, fica mais fácil. Sem
contar que adoro te ver pulando em mim. — E recebo aquela piscadinha safada. Sorrio, mais que
depressa, e posiciono-me sobre seu corpo, porém de costas para ele.
— Vou te dar uma visão do que deseja tanto, pra continuar empolgado. — Arrebito
mais a bunda, sentindo um tapa estralado. Rio alto.
— Safada… — A palavra é o gatilho para uma mulher devassa possuir meu corpo,
fazendo-me subir e descer em seu pau completamente rígido e grosso.
Fausto aperta minha bunda, e sinto-o acariciar meu buraco apertado até invadi-lo com o
polegar.
— Delícia… vai, minha gostosa. Cavalga no meu pau. — O polegar inicia um vaivém
no mesmo ritmo. A incoerência da pequena ardência somatizando ao prazer é uma combustão de
sensações. Elevo as mãos sobre meus seios, apertando os bicos durinhos.
Mantenho a velocidade constante e então, Fausto inicia uma elevação pélvica, estocando
mais rápido.
Ele aumenta a velocidade e o barulho dos nossos corpos colidindo tomam conta de todo
o quarto. Meu orgasmo se aproxima com um formigamento insuportável atrás de minhas coxas a
caminho do meu centro, ao mesmo tempo que os tremores sobem por meu abdômen.
— Aaahhh… Fausto… — não consigo conter a explosão de prazer que sinto. O ápice
me atinge como um vendaval rodopiando incessantemente, elevando-me para o alto, parecendo
que vou bater no teto.
Mio marito segura meu quadril, estocando mais algumas vezes até que ouço um som
gutural e rouco arranhar sua garganta. Seu corpo treme embaixo de mim, subindo e descendo
num vaivém mais lento. Observo-o sobre o ombro, admirando o rosto retorcido de puro prazer.
— Amo te ver gozando — revelo, saindo de cima dele, aconchegando-me com a cabeça
em seu peitoral. — É quando sinto que perde o controle para mim.
— Colibrì… ainda não entendeu? — Ergo o olhar para fitá-lo. — Meu controle te
pertence há muito tempo. — Ele acaricia meus cabelos com as pontas dos dedos. — Mas não me
importo que me faça gozar… Faço tudo para a felicidade do meu Colibrì. — Expira o ar com um
riso, que acompanho.
— Nunca mais vou fugir de você…
— E eu nunca mais vou te rejeitar, amore mio. — Então, selamos nosso pacto com um
beijo lento e carinhoso, até nossos corpos vibrarem novamente com a necessidade um do outro.
Precisei vivenciar uma aventura repleta da crueldade humana para descobrir que a
famiglia é o meu lugar, ao lado do Sottocapo da Cosa Nostra.
Agora, enquanto aguardamos a chegada de um novo capítulo em nossas vidas, meu
coração anseia pela fuga definitiva, não para escapar, mas para correr diretamente para os braços
do meu Mafioso Nerd, onde o amor floresce clandestino e eterno, com nosso futuro aconchegado
em nossos braços.
Que desafiooooo!
Oddio!!! Nosso Mafioso Nerd finalmente entre nós!
Uhuuuu!
Gratidão a você, leitora maravilhosa, que chegou até aqui e veio conferir quem fez parte
deste lançamento.
Cada livro é escrito com dedicação e carinho, mas só se tornou meio trabalho efetivo por
conta da equipe que me auxilia sem pestanejar. Até nas loucuras em acabar o livro na véspera
(risos).
Gratidão a minha beta Flavinha (@leituras_da_fley), que surtou e abraçou este projeto
comigo. Você faz toda diferença no caminhar dos textos. E por isso, logo vou alterar a ordem dos
Fallen Angels por sua causa, rsrs.
Gabiiiii, @leitoraa.compulsiva, minha pérola! Amo tu, gatinha! Você mora no meu
coração, viu? Gratidão pelo seu apoio como assessora, me auxiliando e resolvendo os
perrengues. Sempre disposta a me ajudar, surtando com nosso Fausto e me empolgando na
escrita! Obrigada, amore mio!
Narjara Predoso, desta vez, eu joguei um texto em suas mãos no último minuto do
segundo tempo… Obrigada por não me abandonar e me ajudar com a correção do livro.
Muito obrigada às minhas designers @id.infinitydesigns, Fran e Vitorinha, vocês
deixaram tudo tão lindo que eu perdia a noção do tempo admirando meu feed. Obrigada por me
ouvirem, e por entregarem um trabalho tão lindo.

Não posso esquecer das minhas parceiras, que estão me ajudando no lançamento! Vocês
são demais, amadas! Obrigada por toda dedicação.

Enfim, minhas Damigelle, obrigada!

E por favor, não se esqueçam de avaliar no site da Amazon. Cada avaliação é importante, especialmente para nós que
estamos começando.

Por favor! Por favor! Avaliem.


Isso ajuda muito todas nós autoras.
Um super beijo e até breve,
Sou uma mulher que se realizou profissionalmente quando publicou o primeiro livro. Minha carreira sempre caminhou no
sentido inverso à minha personalidade até que veio a pandemia.
Como tantas outras pessoas, acabei me encontrando ao ficar isolada em casa com meu marido, dois filhos e naquela
época, 5 cachorros (hoje temos 4 cachorros e um gato).
Enclausurada, resolvi escrever as histórias que berravam em minha cabeça… e foi libertador.
Encontrei em meio ao caos um caminho que não é fácil, mas que no final do dia, com minhas palavras escritas no Word,
vale a pena.
Pois então, queridos leitores, sejam muito bem-vindos ao Silvieverso!
Me sigam nas Redes Sociais, lá você saberá tudo sobre os lançamentos:

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Damigelle da Sil
Trilogia IRMÃOS MORETTO
O DON DA MÁFIA: A redenção do Mafioso
Livro 1

Giulio Moretto é o filho mais velho do Don da Cosa Nostra. Herdeiro por direito do trono
do submundo, conseguiu por mérito próprio se tornar o Sottocapo. Alguns não aceitam seu
comando e querem seu posto. Por isso, o Conselho exige que seja cumprida a lei da famiglia
quando um membro de alta patente atinge seu 25º aniversário:
Ele precisa de uma noiva.
E vai escolher alguém que espera há anos para concretizar sua vingança.
Francesca Zanchetta foi criada como uma princesinha da máfia, tendo sua virgindade
como uma virtude. A perfeita esposa que qualquer Capo gostaria de ter. Mas ela tem um segredo.
A proteção excessiva de seu clã não é para proteger sua honra, e sim, para que ninguém saiba o
que aconteceu quando ela tinha catorze anos.
Ele é tempestuoso.
Ela é recatada.
Ele não acredita no amor.
Ela quer viver um romance.
Enquanto, como Sottocapo, Giulio enfrenta as artimanhas de um traidor dentro da Cosa
Nostra, como filho do Don, ele quer vingança e dará o seu pior para conseguir.
Aqui você vai encontrar: Dark Romance, Age Gap, Haters to lovers, uma reviravolta
surpreendente e um mafioso em busca de redenção.
S é rie New Adult - Universidade de Braveton

Todos os livros podem ser lidos separadamente, mas recomenda-se a leitura na sequência.
Atenção: Os livros da Série Braveton University estão passando por revisão e nova
diagramação.
CAÇADA — Conto de Halloween — Livro 1
CAÇADA é o 1º conto da Série Fallen Angels, que originou Reconquistada, a pedido de
muitas leitoras que quiseram mais do casal Elisa e Alec.
Sinopse:
O que poderia dar errado em uma simples festa de faculdade?
Sou uma caloura prestes a enfrentar um dos mais conhecidos trotes da Universidade de
Braveton. Algo que começou com os pais dos malfadados Fallen Angels, ou melhor, os quatro
cavaleiros do Apocalipse, como carinhosamente eu os chamo.
É assim que se intitulam quatro riquinhos que se acham donos do mundo, herdeiros de
fortunas imensuráveis e idolatrados por todo o corpo estudantil.
Clichê, não é mesmo?
E agora teria que participar do “trote” ou eu e minhas amigas estaríamos excluídas da vida
social durante toda a faculdade.
A Caçada começa à meia-noite do dia 31 de outubro.
Qual a graça em ser perseguida no meio de uma floresta por rapazes lindos e
maravilhosos?
Enfim…
Para as garotas deste lugar ser uma das escolhidas dos quatro era um troféu, enquanto que
para mim, parecia mais um castigo.
NÃO ME ODEIE - Livro 2
Não me Odeie é o relançamento de Encanto — 2º livro da Série Fallen Angels.
Conta a história de Aline Cooper e Gabriel Henderson, um dos herdeiros do quarteto
Fallen Angels, formado por quatro famílias que comandam a Universidade de Braveton.
Um New Adult com plot de Bully Romance.
Sinopse:
Eles se conhecem desde a infância, e depois de um acontecimento, a amizade tornou-se
ódio… ou não.
Aline:
“Ele era meu amigo… até não ser mais.
Gabriel pode ter me humilhado um milhão de vezes, e deixou meu coração em cacos.
Mas isso acaba agora.
Seu ódio não pode alcançar alguém inocente. A pessoa que amo mais que a mim mesma,
muito mais do que o amei.
Ele jamais saberá que me deu o maior presente de todos:
Nosso filho.”
NAMORADA — Livro 3
NAMORADA é o 3º conto da Série Falling Angels que conta a história de Henry e Debby.
Sinopse:
Descobri que existem sentimentos inexplicáveis e que o amor da sua vida pode surgir de
forma inesperada. A verdade é que eu me apaixonei naquela floresta.
Ela usava asas de fada, me mandou fechar os olhos e a última coisa que vi foram os
sapatos de pompom. Depois disso, eu me perdi em sua boca macia e no desejo ardente em meu
peito.
E ela desapareceu como mágica.
Eu sou Henry Raymond, o terceiro dos Falling Angels, também conhecido como "O
Exibicionista". E fui enfeitiçado na última festa de Halloween.
Agora, eu acredito em fadas e vou descobrir quem ela é.
ENGANO — Livro 4
ENGANO é o 4.º livro da Série Falling Angels que conta a história de Brina e Will.

Sinopse:
Um cara popular e que, inevitavelmente, faz parte da elite na Universidade de Braveton. O
último Falling Angel, o mais fechado, o cara calado, que ostenta a pose e um sobrenome muito
desejado, não só pelas garotas.
Willian King se esconde nos cantos da velha biblioteca, intrigando o corpo estudantil por não ser
do tipo que se rende e aceita apenas uma noite de prazer.
Ele guarda sua virgindade para uma garota digna de suas virtudes.
Brina Heinz é a rainha e não apenas nos corredores da faculdade. Dentro de campo, ela é titular
do time feminino de futebol.
Ele sonha em se entregar à sua princesa eleita, e tem uma rainha inversa disposta à sua frente.
Will deseja um relacionamento duradouro.
Brina é inconstante.
Quando duas coroas ocupam seus lugares de ordem, um engano colocará tudo à prova.
RECONQUISTADA — Livro 5
RECONQUISTADA é um Romance New Adult - enemies to lovers, ambientado na
universidade.
Faz parte da Série Falling Angels que conta a história de Elisa e Alec. O casal protagonista de
CAÇADA - um conto de Halloween.
Cada livro pode ser lido separadamente.
Sinopse:
Eu deveria ter confiado que tudo daria errado naquela porcaria de trote universitário, certo?
Naquele dia, fui caçada desde os primeiros milissegundos de trinta e um de outubro.
Totalmente seduzida por ele, me rendi.
Meu demônio particular não poderia ser ninguém menos que ele, Alec Winston: o verdadeiro
líder dos anjos-demônio. Fatalmente apaixonada.
Seria uma pena dizer que descobri que além de duas faces, ele também tem duas vidas?
É… e eu não faço parte de uma delas.
Pobre do meu coração, pois é tarde demais para fazê-lo entender o quanto realmente dói se
apaixonar pelo proibido: O herdeiro número 1.
Novelas
Novelas

A PROPOSTA

Sinopse:
Conhece o ditado:
“Onde se ganha o pão, não se come a carne”?
Pois é…
Tentei arduamente cumpri-lo e falhei miseravelmente.
Meu nome é Daniela Vegaz, sou secretária do CEO do Grupo Empresarial Rodrigues.
Amo meu trabalho e estava muito feliz com ele, até meu chefe se aposentar e seu filho assumir
sua posição. Foi quando o conheci…
Já ouviu falar que o diabo é lindo?
Isso eu posso confirmar para vocês, com provas verídicas: Ele geralmente usa ternos finos,
tem um belo sorriso sarcástico, exibe um corpo que mais parece um playground para as mulheres
deste universo e, passa o dia na sala ao lado.
Nesta vida, a personificação de Satã resolveu se chamar Carlos Eduardo Rodrigues.
Ele é meu atual chefe.
Para completar o ciclo, Satã me fez uma proposta contratual. No papel, ele diz querer
apenas meu corpo, mas estamos falando de Satã, não é mesmo?
Bem…
Eu assinei.
E adivinha?
Vendi a minha alma.
LIVROS INDIVIDUAIS

CONSULTA MÉDICA e Consulta Íntima

Sinopse:
Valentina estava se adaptando a uma rotina que basicamente envolvia reaprender a viver
sozinha.
Tudo aconteceu de uma vez.
Lidar com a repercussão da traição do marido, um divórcio turbulento e um trabalho
completamente alheio à sua formação consumia toda sua energia. Cansada, frustrada e mãe solo
de gêmeos pré-adolescentes, desabafou para um desconhecido qualquer na fila do supermercado.
Um desconhecido muito peculiar…
O homem ouviu tudo com muita atenção, foi gentil e lhe entregou um cartão bastante
misterioso, apenas com dois números de telefone, recomendando uma consulta médica num
consultório especial.
“Envie uma mensagem para o segundo número. Prometo que vai mudar sua vida”.
Então… que tal marcar uma consulta?
MEU AVESSO é todo seu

Sinopse:
"Minha vida está do avesso.
Eu tenho uma irmã gêmea…
E nunca soube de sua existência, até agora.
Não sei explicar o motivo, mas preciso encontrá-la.
A única pista?
O inquérito arquivado no porão de uma delegacia. Precisei pegar emprestado.
Só não contava que o delegado turrão viria atrás de mim. Muito menos que ele fosse o cowboy
com quem passei a noite.
Já contei que minha vida está do avesso?"
Beatriz Fonseca é a bagunça em pessoa.
Zé Henrique é o extremamente correto.
Entre o certo e o errado, ele escolhe o errado.
Sua ajuda é para encontrar a irmã perdida. Porém, ele vai além… e acaba sendo cúmplice de uma
mentira, infiltrando uma doida num Mosteiro de freiras.
Meu Avesso é uma comédia romântica que promete muitas risadas, friends to lovers e cenas hots
de tirar o fôlego.
JOGO PROIBIDO – Spin Off Série Artilheiros
New Adult - Romance Jogador de Futebol - Amor Proibido
Duda Marques pega e não se apega, jogador em campo e no amor, é um safado de carteirinha.
Recém-contratado como centroavante no Bluedogs, está de volta ao Rio de Janeiro, sua cidade
natal.
Agora, além de precisar provar seu valor como titular do time de coração, próximo da família,
vai resistir à sua maior tentação: segurar com todas as forças o desejo que sente por Maitê, sua
prima.
Ela é uma artista sinestésica, que sente o sabor das cores e palavras.
Apaixonada pelo jogador desde a infância, Maitê é uma garota sonhadora e ingênua demais para
perceber que sempre foi correspondida.
Ele é um cafajeste.
Ela é romântica.
Ele é baladeiro.
Ela mal sai de casa.
Eles são primos e se amam ardentemente.
A união dos dois pode separar a família e macular a amizade intensa entre seus pais.
Quanto vale lutar por um amor proibido?
Duda e Maitê irão descobrir.
Jogo Proibido é o segundo livro do spin-off da Série Artilheiros.
Trilogia Minha Escolha

Tudo em Preto é um romance New Adult, repleto de aventura com aquele enemies to lovers que amamos.
Este é o Livro 1 da Trilogia Minha Escolha. Cada livro conta a história de um casal diferente.
Sinopse
Vivian Delacour está de volta à cidade que evita há anos, contratada para intermediar um acordo bilionário do Grupo Empresarial
de uma família muito conhecida.
Um reencontro inesperado com alguém do passado abala nossa heroína.
Eric Silverstone, o ex capitão do time de futebol, ainda é indecifrável para ela. Contudo, a atração entre os dois é irresistível.
Ela é destemida.
Ele é persistente.
Ela é rebelde.
Ele o golden boy.
Algo aconteceu há 10 anos e separou o casal nada perfeito.
Coloque o seu capacete e venha de carona na moto de Black para se deliciar com esse romance clichê - cão e gato -, repleto de
emoções que vão de lágrimas à euforia, com muita, muita adrenalina.
Branco como a Neve é o 2º livro da trilogia Minha Escolha e pode ser lido separadamente.
Meu nome é Elisie Marie Romanets. Minhas amigas me chamam de Lizie, às vezes Barbie, outros de White.
Gosto de me vestir de branco como a cor da minha moto, para esconder a sujeira que tenho dentro de mim.
Escolhi a cor da pureza para limpar o passado e o presente.
Um dia, precisei ser salva.
Ainda criança tive minha inocência roubada. E lá, no passado, foi a primeira vez que o vi… Meu anjo.
Ele passou por minha vida e quis ficar.
Eu o rejeitei e empurrei para longe.

Ele é o Golden boy.


De jogador de futebol americano no colégio para CEO na vida adulta.
Ela é a Barbie estereotipada por fora.
De líder de torcida para herdeira da Máfia.
Ele foi rejeitado.
Ela quer uma segunda chance.
Quantas vezes um coração pode ser partido?
Não sei…
Mas o Ken não vive sem a sua Barbie, não é verdade?
Eu Sou Vermelho - Livro 3 da série Minha Escolha.
Pode ser lido separadamente.
O que você irá encontrar:
New Adult- Passado sombrio - Herdeiro rendido - paixão avassaladora
Raquel
Ele me enfurece só com o olhar.
O que esse cowboy arrogante e prepotente quer aqui, afinal?
Brian não precisa de mais títulos do que tem. Sem contar que sua fortuna como herdeiro de um senador é imensurável.
Tudo indica que sua vinda está além de ser meu treinador no Rancho New Hope.
Seu olhar sedutor não me engana
O pior é saber que mesmo sendo um inimigo, meu corpo reage por vontade própria.
É um desejo insano e confuso.
Eu quero quebrar a sua cara e beijá-lo em seguida.
Como resistir quando o corpo não obedece ao cérebro?
Não sei… mas irei descobrir.

[1]
Entendeu?
[2]
Minha prima.
[3]
Minha irmã.
[4]
Pode ser tido como “minha nossa”.
[5]
Caramba!
[6]
Nossa Senhora das meninas más, me ajuda!
[7]
Que ódio!
[8]
Cargo da Cosa Nostra.
[9]
Caralho!
[10]
Deus, todo poderoso…
[11]
Olá…
[12]
Senhorita.
[13]
Minha prima.
[14]
Vaca, cretina.
[15]
Sua prima.
[16]
Garotas (em italiano, garota no plural é ragazze).
[17]
Nosso primo.
[18]
Uma das melhores universidade de moda do mundo.
[19]
Idiotas.
[20]
Seu pai.
[21]
Como é que é?
[22]
Xingamento: um monte de merda, alguém muito feio.
[23]
Lugar onde os homens lutam, como um ringue.
[24]
Meu noivo hoje.
[25]
Conselho das Damas de Honra.
[26]
Beija-flor.
[27]
Mulheres.
[28]
Beija-flor? Ó Deus! Não me importa.
[29]
O que está acontecendo?
[30]
Nossa Senhora das Garotas Malucas.
[31]
Mulheres.
[32]
Ó Deus!
[33]
Caralho! Eu sou uma boa menina.
[34]
Graças à Deus.
[35]
O que passa?
[36]
Oque você disse?
[37]
Xingamento: cabeça de caralho.
[38]
Como é boca suja.
[39]
Damas de honra.
[40]
Nossa pequena – apelido de Francesca dentro do seu clã.
[41]
Já era.
[42]
Mulheres.
[43]
Mulher da família.
[44]
Não dou a mínima.
[45]
Minha prima.
[46]
Senhorita.
[47]
Não, princesa.
[48]
Não acredito.
[49]
Pessoas de fora da máfia.
[50]
O que foi isso?
[51]
Dama de honra.
[52]
Que merda!
[53]
Que merda…
[54]
Meus primos.
[55]
Tomb Raider é o nome do vídeo game com a personagem Lara Croft. Trata-se de uma franquia de mídia que se originou com
uma série de videogames de ação e aventura criada pela desenvolvedora britânica de videogames Core Design. Temos filmes nos
quais Angelina Jolie atuou como a protagonista.
[56]
Corrida.
[57]
Desculpa…
[58]
Racha de rua, corrida.
[59]
Corno.
[60]
Cornos (lembrar que italiano o plural para masculino acrescenta o ‘i’ e para o feminino o ‘e’).
[61]
Vírus enviado por sites maliciosos para hackers invadirem o sistema do computador.
[62]
Pirralho.
[63]
Minha cunhada.
[64]
Policial.
[65]
Vai tomar no cu, irmão!
[66]
Meninos.
[67]
Seus irmãos.
[68]
Meus filhos.
[69]
Meus irmãos.
[70]
Está bem?
[71]
Minha prima.
[72]
Me ajude.
[73]
Meu noivo.
[74]
Deus, me ajude!
[75]
Noivo.
[76]
Sua prima.
[77]
Seus primos.
[78]
Me desculpe, Beija-flor.
[79]
Vá logo.
[80]
Minha irmã.
[81]
Entende?
[82]
Esposa.
[83]
sanduíche tradicional da Sicília, consiste em um pão macio e crocante, geralmente pão de "tumminia" ou "muffuletta",
recheado com baço de vitela cozido em gordura de porco, temperado com sal, pimenta e suco de limão.
[84]
Trata-se de elementos gráficos que indicam a subida e descida de valores em plataformas de investimentos financeiros.
[85]
Tokens são ativos digitais. Pode ser coisas, como ativos físicos, utilidades, e no caso do nosso mafioso, ele cria projetos de
aplicativos de diversas funcionalidades.
[86]
É como se fosse um caderno imenso que contém todas as transações realizadas com esta moeda digital. Assim quanto mais
operações realizadas, a moeda ganha credibilidade. Trata-se de uma corrente de informações.
[87]
Um tipo de criptomoeda, avaliada no dia 08/01/2024 em R$ 11.393,38.
[88]
Idiota.
[89]
Conselho.
[90]
Obrigado e parabéns.
[91]
Mulheres.
[92]
Irmão, sua garota…
[93]
Corridas de carro
[94]
A favorita dos irmãos Moretto. Citada no primeiro livro O Don da Máfia: a Redenção do Mafioso.
[95]
Nosso pai.
[96]
Soldados (lembrar que em italiano não usa o ‘s’, e sim a alteração das vogais para ‘i’ no masculino e ‘e’ no feminino.
[97]
Que porra!
[98]
Olá, meu menino.
[99]
Sua mãe.
[100]
Rainha.
[101]
Boba.
[102]
Minha amiga.
[103]
Meus soldados.
[104]
Caralho ou porra, na forma de expressar frustração.
[105]
Noivo.
[106]
Soldados.
[107]
Minha prima.
[108]
Boa menina!
[109]
Similar à PQP.
[110]
Nossa Senhora das garotas loucas.
[111]
[112]
Espécie de dança dos famosos na Itália.
[113]
Minha pequena.
[114]
Meu irmão e primos.
[115]
Está tudo bem?
[116]
Bolsa de festa.
[117]
Boa noite, famiglia e amigos.
[118]
Tudo bem.
[119]
Meu noivo.
[120]
Meus soldados.
[121]
Meu tio.
[122]
Minha prima.
[123]
Rainha.
[124]
Minha prima.
[125]
Famílias.
[126]
Na Itália, as Províncias correspondem aos Estados e as comunas às cidades.
[127]
Que porra, Valentina!
[128]
Anel.
[129]
Minha prima.
[130]
Oh, Deus.
[131]
Damas de honra.
[132]
Soldados.
[133]
Ringue.
[134]
Crianças.
[135]
Caralho.
[136]
Meu noivo.
[137]
Anel, ringue.
[138]
Meu Deus, Meu Deus, Meus Deus…
[139]
Famílias.
[140]
Damas de honra.
[141]
Senhoras.
[142]
Homem feito da máfia.
[143]
Boceta.
[144]
Garotas.
[145]
Mulher.
[146]
Soldados.
[147]
Minha irmã.
[148]
Cães selvagens.
[149]
Minha prima.
[150]
Meu noivo.
[151]
Conselho.
[152]
Irmãos.
[153]
Referência à série Harry Potter. Dementador é um ser das trevas que consomem a alegria humana, criando um ambiente de
frio, escuridão, tristeza e desespero.
[154]
Olá! Sou Sofia Durant.
[155]
Venha!
[156]
Como e bonita, menina!
[157]
Peixe difícil de se encontrar. Essa espécie de atum é altamente valorizada, especialmente no mercado de sushi e sashimi.
[158]
Garotas.
[159]
Referência quanto ao filme “O Guerreiro Imortal”.
[160]
Tia!
[161]
Meus pais.
[162]
Meu doce anjo.
[163]
Pai de Nemo no filme “Procurando Nemo”.
[164]
Cunhado.
[165]
Putinha.
[166]
Entende?
[167]
Conselho das damas de honra.
[168]
Tela sensível ao toque.
[169]
Mulher.
[170]
Crianças.
[171]
Bonequinha.
[172]
Também te amo.
[173]
O amor da minha vida.

[1]Amo demais essa música

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