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TRUST
Série Família Accorsi — 1
2º Edição
Capa: Malu Tenácio
Diagramação: Malu Tenácio
Faz uma semana desde que meu pai me deu a única notícia que ele
poderia dar para me desestabilizar. Era quinta-feira e ele me chamou em seu
escritório. Quando cheguei, ele pediu que eu sentasse, o que ativou meus
alarmes.
Antônio nunca pede que eu faça alguma coisa. Ele manda. E sem
alternativas, eu obedeço.
Naquele dia, ele mal olhou em meus olhos ao dar a notícia e a jogou na
minha direção como se estivesse me fazendo um mero favor.
— Você vai se casar.
E foi isso.
Todo aviso que recebi, todo preparo e toda informação. Antônio
despejou a novidade em cima de mim e observou atentamente minha reação a
ela.
Mais do que treinado, fui perfeitamente capaz de esconder qualquer
aversão a mais nova ordem e mantive a expressão de gelo e a conduta de um
homem feito, como é de costume. A máscara não caiu nenhum centímetro e ele
pareceu satisfeito.
— Com quem? — foi a única coisa que perguntei. Nada mais, nada
menos.
E mesmo assim ele me olhou como se fosse um aborrecimento ter de me
responder.
— Rebecca Fioderte, a filha de Vittorio — bufou. — Obviamente, sabe a
quem me refiro.
Vittorio eu sempre soube quem é. Capo da Cosa Nostra, dono de metade
da Itália, um fodido cruel do caralho, com zero propensão a pena ou acordos
amigáveis com qualquer um.
Mas de sua filha? Nunca ouvi falar.
Rebecca.
Depois daquela reunião, seu nome ficou preso na minha cabeça como
uma maldição. Ecoando e tomando cada canto da minha mente, mergulhada em
ansiedade e irritação, por estar sendo colocado nessa situação. Em determinado
momento da semana, seu nome se tornou fonte de meus novos pesadelos e
representação de algo que eu detesto, mesmo sem nunca ter usado nem a
conhecido.
Mas de qualquer jeito, hoje não quero pensar em seu nome, nem no que
significa o fato de que me casarei com alguém que nunca vi antes mesmo de
completar vinte anos.
Tudo que quero é sentar em um dos camarotes do melhor puteiro da
Accorsi e ter minhas longas horas de trabalho recompensadas com uma língua
experiente e coxas quentes.
Max guia o caminho, se sentindo em casa e nós subimos as escadas
iluminadas do bordel. A música já está estourando, a maioria dos homens lá
embaixo estão bêbados e as garotas mais soltas. Cocaína, MD, metanfetamina e
LSD rodam a todo vapor pelos cantos escuros do clube e eu enxergo cifrões em
todo doido que encontro pelo caminho.
A cada nariz estourado, estamos faturando.
— Aqui, querido. — Uma das garotas, essa com cabelos ruivos e
compridos, indica o sofá e coloca uísques em nossa mesa. Estão do jeito que eu
gosto e um gole é o suficiente para acalmar algumas das partes mais agitadas
dentro de mim. Max sorri para a garota e passa a mão pela cintura dela,
cumprimentando-a com um tapa forte na sua bunda.
Eu desvio e olho para a outra direção, a fim de lhe dar privacidade. Mas
me arrependo no instante seguinte, quando meus olhos encontram os de
Madalena.
Ela já estava vindo em nossa direção e me faz respirar fundo quando se
joga no meu colo. Os cabelos loiros coçam sobre meu rosto e eu sinto seu peso
contra meu pau, o que é reconfortante o suficiente para me fazer ignorar o monte
de chatice que está prestes a escapar da sua boca.
— Me diga, por favor, que o que eu escutei por aí não é verdade e que
eles não estão prestes a colocar uma coleira em você, gatinho!
A prostituta de Mikaela usa uma lingerie branca, que tem pouco contraste
sobre sua pele clara. Os cabelos claros e oxigenados caem ao lado do seu rosto e
eu analiso seus seios fartos, umedecendo meus lábios, motivado com a bela
visão.
— Eu não te chamei aqui, Madalena. — Mesmo afetado pela sua beleza,
sou duro em minha fala e uso o uísque em minha mão para aquecer minha
garganta. Diferente de mim, Max bebe cerveja e parece se divertir com a visita
indesejada da mulher.
— Perdão, Luca, mas eu estive tão ansiosa para saber de você a semana
inteira… — Tentadora, ela ondula seu corpo contra o meu, como se fôssemos
cachorros no cio. — E com esta notícia… — ronrona, se aproximando do meu
ouvido. — Fiquei preocupada que nunca mais fosse te ver, lindo.
Meus olhos ardem quando os coloco sobre seu rosto novamente.
Parcialmente encoberto pela luz intimista do camarote, posso apenas distinguir
as linhas finas das fortes e os seus lábios pintados de vermelho.
— Quem foi que te falou sobre essa merda? — indago, a raiva
começando a fazer morada no meu corpo.
— As meninas estão comentando... — afofa mais a bunda contra meu
colo. — Na verdade, todos estão comentando sobre como você está noivo agora.
Porra.
Eu sabia que era apenas questão de tempo até que chegasse ao grande
círculo, principalmente considerando a quantidade de vezes que meu pai e os
outros homens vem aqui para reuniões e conversas “mais íntimas”.
— Isso não é da conta de nenhuma de vocês — digo em tom de desprezo,
bebendo mais. Minha boca e meu corpo anseiam por todo álcool que eu
conseguir beber para esquecer essa merda. — Mikaela não sabe mais colocar as
putas dela na linha? Eu posso ajudá-la, se vocês não souberem mais onde devem
meter a porra das suas línguas.
Minha ameaça velada faz Madalena retesar-se, sumindo com um pouco
do brilho de seus olhos. Ela mantém o rosto afastado e me encara a certa
distância, tentando decidir se é ou não seguro se aproximar novamente.
Eu altamente recomendaria que não.
— Eu só estou preocupada que uma vadia italiana de sangue azul vá
acabar tendo controle sobre você após ter seu sobrenome, Luca... — Como uma
cadela, Madalena roça contra mim, causando fricção entre meu pau e sua xota. A
calça ajuda, mas ainda posso sentir seu calor e sua vontade de me ter dentro de
seu corpo, apenas para aumentar a ilusão de que sou qualquer merda sua. —
Sabe como isso pode mudar os homens e sabe como eu valorizo o que nós…
Antes que ela termine de falar, fecho sua boca com minha mão.
Segurando-a pelo queixo, faço com que arregale os olhos e me encare
temerosamente. Há medo explícito em seus olhos agora e eu gosto disso.
— Agora, escute, Madalena e escute bem, porque eu nunca mais vou
repetir isso — afirmo, olhando direto para seus olhos. — Primeiro, nenhuma
mulher nunca vai ter controle sobre mim. E muito menos uma puta iludida como
você que não consegue separar seu trabalho dos seus sentimentos e se acha no
direito de se meter na minha vida. Porque o que você está fazendo aqui agora,
tentando me chamar com sua boceta, como uma cadela, é patético. Dê mais
respeito a você mesma e suma, antes que eu te force a fazer isso.
Solto sua boca quando lágrimas irrompem dos seus olhos.
Madalena pula do meu colo e viro meu rosto para o lado, amansando a
fera que acaba de acordar. Preciso de longas bufadas e dois goles de uísque antes
de virar para a frente de novo, apenas para ver sua bunda redonda dando adeus e
enxergar um Max risonho, quase lamurioso, ao ver uma mulher tão bonita indo
embora.
— Precisava? — Ele questiona, me irritando ainda mais.
— Precisava — rosno. — E precisava pra caralho. Quem ela pensa que
é?
— Sua puta de estimação. — Ele diz, indiferente, sacudindo seus
ombros. — E você sabe que a trata diferente, Luca, não seja hipócrita.
— Não sou hipócrita. Sou realista. O que ela dá, todo mundo dá. Mas
você não está me vendo de aliança com qualquer uma delas, não é?
Max engole uma risada e diz:
— Não, mas em breve eu vou te ver, né?
Não penso duas vezes antes de jogar todo líquido do copo em sua cara.
Depois, atiro o copo longe e assisto o vidro se espatifar no chão,
enquanto meu primo ri e esfrega o uísque para longe dos seus olhos, parecendo
revigorado depois do banho. O cabelo loiro está pingando bebida na camisa
vermelha e eu vejo o reflexo de um sorriso, mesmo que ele esteja sujo.
Estou de pé antes que ele consiga formular qualquer frase.
— Você não pode apenas ignorar isso, Luca! — berra, quando já estou
cobrindo os ombros com a jaqueta que trouxe do carro e deixando a área VIP.
Sinto os olhos de todos os presentes me seguirem na direção da saída, inclusive
os de Mikaela Martino, a cafetina que se ilude tanto quanto Madalena — mas
essa tem lá seus motivos —, que parece preocupada com o rombo em suas
previsões financeiras de hoje comigo fora.
— Fica me olhando, então! — berro de volta, mostrando o dedo do meio
para o fodido.
Ele continua rindo.
Na manhã seguinte, encontro Max nos corredores da minha casa, após
ser convocado para a reunião que já esperávamos que fosse acontecer depois do
que fiz ontem. Mas, diferente de mim, meu primo claramente estendeu seu
tempo no puteiro por mais do que uma hora e teve sua dose extra e garantida de
diversão. Posso confirmar isso ao ver que ele usa a mesma roupa e fede a
perfume barato.
— Oi, esquentadinho — cumprimenta e eu o ignoro. Max ri, como
sempre faz. Acho que não há nada no mundo capaz de tirar seu bom humor. Até
apanhar, ele apanha rindo. Quando nota que estou de mal humor, resmunga:
— Que Deus me ajude a conviver com você…
Eu estou prestes a dizer para ele que Deus não deve dar a mínima para
nós dois, quando meu pai abre a porta e interrompe o início do diálogo. Em um
terno cinza de linhas e com o cabelo loiro-escuro do mesmo tom que o meu,
penteado para trás, ele nos recebe com o olhar duro e cauteloso de sempre.
Também temos semelhanças na cor de nossos olhos, no azul-escuro que colore
nossas íris, o que pode ser um pouco incômodo se você pensar sobre.
Eu nasceria mil vezes para não ter de ser parecido em nada com o homem
que senta na poltrona a nossa frente.
Mas essa escolha não está em minhas mãos. E na realidade em que vivo,
somos mais parecidos do que eu gostaria.
— Irão falar ou estão esperando que eu implore? — começa, passando os
olhos sobre nós dois como se fôssemos meninos maltrapilhos implorando por
uma moeda e atrapalhando toda droga do seu dia. — Bem, isso é, se
conseguirem encontrar uma explicação para a merda que fizeram na noite
passada sem o meu consentimento!
O tom de sua voz se eleva gradualmente e ambos endireitamos as
posturas nas poltronas desconfortáveis do seu escritório. Max umedece os lábios
e vejo os dedos nervosos batendo contra sua perna. Aposto que ele adoraria
puxar um cigarro agora, mas isso não é uma opção, a menos que ele queira
perder a mão.
— Uma das nossas garotas estava com um soldado de Romeu Ivanov —
digo, como se ele já não soubesse. A melhor das opções sempre é ser didático.
— Descobrimos e intervimos, em busca de informações que poderiam vir a ser
úteis.
Meu pai ri.
— E conseguiram alguma? — questiona em tom de deboche.
— Não, senhor — respondo, mantendo meu queixo empinado e as mãos
calmas e comportadas sobre o meu colo. — Ele não tinha nada.
— Então vocês só brincaram com um russo fodido na minha base?
— Bem, ele era um russo jurado à Romeu. Não vejo como isso pode ter
sido… — Max fecha a boca antes de terminar quando Tony olha em sua direção.
— Pedi que abrisse a sua boca, Maximus?
— Não, senhor.
— Então por que estou te escutando falar?
Meu primo respira fundo e eu tenho certeza de que ele queria muito um
cigarro agora. Os olhos verdes queimam na direção do nosso Capo e eu entendo
o que se passa dentro de sua mente. É o mesmo que se passa dentro da minha há
anos.
— Sinto muito, senhor. — Se redime e encolhe os ombros, cedendo ao
controle de Antônio. É o que somos obrigados a fazer, no final das contas.
Aceitar e servir às ordens de um maníaco.
— A sessão de tortura resultou em alguma coisa, Luca? — Ele questiona,
me fazendo respirar fundo, com o olhar fixo em seu rosto.
— Não, senhor. — Não falho em dizer, encarando-o do modo como sei
que ele aceita. Sem titubear, quase sem piscar.
Ele me encara de volta, apenas esperando que eu abra alguma brecha
para que me critique. Mas eu cresci e aprendi a encobrir qualquer ressalva, assim
como aprendi a cobrir as cicatrizes de uma vida inteira apanhando por não ser o
melhor.
E para isso, me tornei o melhor.
E nem mesmo ele pode dizer o contrário a isso agora, embora tente de
muitas maneiras.
— Então foi inútil — comenta, coçando o queixo. — Inútil e o suficiente
para colocar a atenção de Romeu sobre todos nós de vez.
— Ele com certeza já estava prestando atenção em todos nós, tio.
Tony encara Max por um segundo e o loiro volta a ficar em silêncio.
— Max não está errado, pai. — A palavra me causa repulsa, mas chama
sua atenção. Ele arqueia a sobrancelha e parece me desafiar a usá-la de novo. Eu
não ouso. — Ele está de volta. Não podemos negar isso. Com toda certeza,
planeja fazer algo contra nós. O seu pai foi…
— Eu sei exatamente o que aconteceu com o pai de Romeu, Luca —
rosna, deixando bem claro a fragilidade do seu ego. Ele sempre tem de sair por
cima — E não preciso que nenhum de vocês dois me expliquem o que Romeu
deve estar querendo na minha cidade. Muito menos que me avisem do que está
acontecendo. Lembrem-se, idiotas, de que Nova York é minha antes de ser
qualquer coisa de vocês dois!
Ambos assentimos, como cachorros treinados. Eu aceitaria o cigarro de
Max agora.
— Mas irei dizer, caso tenha passado despercebido, que o que menos
precisamos neste momento, é da exposição que qualquer briguinha de merda nos
traz nos jornais da cidade.
E dito isso, ele joga um exemplar do Times sobre a mesa de seu
escritório. Eu pego antes de Max e passo os olhos sobre a manchete do dia.
“Confronto entre gangues locais: entenda a posição da polícia em
relação aos tiroteios da última noite.”
— Não somos nenhuma merda de gangue — desprezo e entrego o jornal
à Max. — Podemos ir falar com a polícia, se…
— Tudo que eu menos preciso é que você faça qualquer coisa agora,
Luca — ordena. — O que preciso é que se concentre e siga minhas ordens.
Assim, garantimos que estará pronto quando sua noiva chegar aqui para a
apresentação na semana que vem.
— Semana que vem? — indago, e ele me encara de novo, como uma
inconveniência. — Pensei que…
— Adiantamos as coisas — revela, de mau humor. — Não há por que
esperar tanto para oficializar as coisas. Vittorio tem tanta pressa quanto eu, o que
é bom para todos nós.
Menos para mim.
— Eu…
— Era só isso. — Ele me corta antes que eu possa terminar de falar e
abaixa seu rosto, avaliando outros exemplares de jornal. Max está de pé antes
que ele precise pedir duas vezes, o desespero por um alívio do estresse de estar
na mesma sala que ele quase o consumindo. — Mantenham-se na linha. E pelo
menos finjam alguma maturidade quando a família Fioderte chegar aqui.
Eu não digo nada, muito menos prometo que tentarei. Tudo que faço,
acompanhado de um Max em silêncio, é deixar o escritório e me sentir aliviado
por ter sido liberado com tanta facilidade.
— Por que eu sempre penso que esse cara vai nos matar toda vez que ele
nos chama lá dentro? — Em meio a fumaça do cigarro, Max pergunta, me
fazendo balançar os ombros. Eu acabo de expulsar a mesma fumaça que ele e
por sorte, estamos na área dos fundos da mansão. Minha mãe não suporta fumo.
E eu também não sou o maior fã. Exceto quando é isso ou bater a cabeça
na parede.
— Porque é o que ele gostaria de fazer se tivesse a chance — respondo,
sem apegos emocionais de qualquer espécie ao fato de que meu pai preferia me
ter morto do que pronto para sucedê-lo algum dia. É uma espécie de ódio
inexplicável que corre entre nós dois. Algo que se originou por parte dele, mas
que hoje, corre por ambos os lados e com motivo.
— Sorte que você é o mais velho e as pessoas te conhecem, então. —
Max ironiza e eu respiro fundo, tossindo após tocar a bituca de cigarro longe, na
grama bem-cuidada e verdinha da minha mãe. — E sorte a minha ser seu primo.
— Isso já te salvou de uma boa cota de surras — comento
despretensiosamente e ele ri, me acompanhando para dentro da casa. Alegre,
apoia as mãos nos meus ombros e seguimos para a sala de jantar, onde o café da
manhã ainda deve estar sendo servido.
— Você sabe que sim — pisca e eu o empurro, arrancando outra risada.
Os cabelos loiros, herdados de nossa avó, voam conforme ele se movimenta e
posso ver a mesma agilidade que nossos inimigos também veem toda vez que
nos deparamos nas ruas. Max é o melhor parceiro que eu poderia ter e sei disso,
embora às vezes queira enforcá-lo. — Agora, sem negatividade ou palavrões.
Você sabe que a sua mãe odeia os dois.
— Esta é a minha casa, Max — reforço, porque às vezes ele esquece. —
Eu sei o que posso fazer.
— Se soubesse, era o favorito da tia Rosie. Não eu.
E dizendo isso, ele não tem mais a coragem de ficar por perto e dispara
na frente. Eu o sigo sem correr e entro em seguida na ampla sala de jantar. As
paredes em tom de creme, com papel de parede estampado com o monograma da
família, rodeiam a decoração inspirada na época vitoriana, com móveis
ornamentados em tom de branco, creme e marrom. A mesa é longa o suficiente
para abrigar mais de trinta pessoas e o tampo de vidro reflete o lustre de cristal
que pende do teto.
— Titia!
— Oh, Max, querido… que prazer te receber!
Max se aproxima da minha mãe como se fosse de casa — porque ele é —
e a abraça, bajulando-a até o último fio de cabelo ao beijar sua mão. Eu aceno
para minha mãe e todos os meus irmãos, atentando-me ao que cada um faz.
Lorenzo e Donatella, os gêmeos, nascidos depois de mim, conversam
sobre alguma coisa só deles e não se importam em compartilhar. Leonardo come
em silêncio e tenho certeza de que ele preferia estar em qualquer lugar que não
fosse ao lado de Marcus, o quinto, enquanto ele joga uma partida de alguma
coisa no seu telefone. Amanda, a penúltima, espia a tela dele quando não está
levando colheradas do seu mingau para a boca e o último, Pietro, recebe ajuda da
babá para comer.
O barulho é alto o suficiente para não ser o estilo favorito da minha mãe,
mas ela tenta não se importar tanto. Embora a etiqueta seja obrigatória, não
impede que nos movimentemos ao redor da mesa. Ela não é louca a esse ponto.
— É sempre um prazer chegar a tempo das refeições por aqui, tia. —
Max diz, ocupando a cadeira ao meu lado.
— Puxa saco… — Dona murmura e Max pisca para ela, sem discordar.
Ele é cretino a esse ponto. — Espera ganhar alguma coisa bajulando a nossa
mãe, Max?
— Mais amor do que vocês, já é óbvio que eu recebo, então… é. Nada.
— Você não tem comida em casa, Max? — Leonardo é quem pergunta,
sorrindo para o loiro.
— É que eu gosto muito de vir ver a sua cara todo dia, idiota — responde
e Leonardo arqueia uma das sobrancelhas.
— Por que Max pode falar palavrão na mesa e nós não? — Marcus
questiona, tomando um gole do seu achocolatado. Aos doze anos, ele é grande
para a idade. O cabelo é escuro e os olhos são castanhos, como os da nossa mãe.
Além dele, Amanda também é mais parecida com ela. Leonardo é como uma
mistura, enquanto eu, Lorenzo, Donatella e Pietro, somos mais parecidos com
nosso pai. Eu vejo como um castigo.
— Tenho imunidade diplomática. — Max fala e eu me empenho em
socar seu braço para que cale a boca. — E pare de ser X-9, palhaço. Olha que a
vida cobra, hein…
— Você pode, por favor, ficar quieto?
Max aceita minha sugestão e começa a comer. Eu faço o mesmo e sinto o
olhar de minha mãe sobre mim o tempo todo. Ela está assim desde que a
novidade de que irei me casar saiu. Fica me cuidando, observando, como se eu
não fosse notar.
Eu não gosto do que isso significa, mas deixo que continue.
A paz que reinava por pelo menos quinze minutos entre rodadas de
conversas informais termina, sem surpresa, quando meu pai decide se juntar a
nós e ocupa sua cadeira na ponta da mesa.
— Bom dia, querido. — Mamãe cumprimenta e faz sinal para que a
empregada o ajude a se servir. Café, ovos, bacon, o de sempre. Não é como se
ele ligasse muito para a saúde, ou precisasse, estritamente conectado a funções
de mesa. A última vez que vi meu pai voltando de um confronto, foi na noite em
que Konstantin Ivanov, o pai de Romeu, foi morto pelo meu tio Ricardo.
— Caso Luca ainda não tenha informado, teremos mudanças na agenda
para as próximas semanas — comenta, com os olhos fixos na comida à sua
frente e bem longe do semblante confuso de minha mãe. Eu permaneço neutro,
mastigando um pedaço de fruta por mais tempo do que é necessário.
A raiva, se não dosada e controlada corretamente, pode ser fatal. E eu
gasto muito do meu tempo garantindo que não estarei com as mãos no pescoço
do meu pai a qualquer instante.
— A festa de noivado e apresentação da futura esposa será na semana
que vem — anuncia, como se fosse pouca coisa. Minha mãe empertiga-se,
erguendo os ombros, com a expressão de choque. — Mais especificamente, na
sexta-feira.
— Isso me dá menos de uma semana para organizar tudo, Antônio! —
Rosalind diz, os olhos castanhos e dóceis, bem diferentes do azul metálico do
Capo, expressando sua indignação moderada. — Como eu poderia…
— Não aja como se houvesse qualquer coisa além disso para fazer,
Rosalind. Apenas foque no que é sua obrigação e pare de chororô.
A repreensão não pega nossa mãe de surpresa, nem a maioria de nós, mas
posso ver os olhinhos de Amanda sobre a cena, como se tentasse entender por
que Tony é tão grosseiro com a matriarca. A ignorância da juventude ainda a
mantém cega para muitas coisas, mas eu sei que não vai durar muito até que ela
veja nosso pai por quem ele realmente é.
Um monstro.
OITOANOSATRÁS
Tony arrasta minha mãe pelos cabelos na direção do segundo andar,
enquanto eu seguro Lorenzo e Donatella, que instintivamente, tentaram ir atrás
dos dois. Mas eu sei o que conseguiriam por isso, e não quero que a mão pesada
de Antônio recaia sobre eles.
— Você acha que é melhor do que eu, Rosalind? — Ele berra, subindo
aos tropeços, mal conseguindo conter sua fúria. Mamãe chora, é claro, mas não
faz nada além disso. Os soldados por quem passamos não moveram um dedo
para ajudá-la. Preferem fingir que ela não existe.
Preferem fingir que nenhum de nós existe.
— Luca, nós precisamos ir até lá! — Donatella grita, mais uma vez,
tentando escapar. Ela já é forte aos oito anos e Lorenzo é rápido. A sorte é que eu
sou os dois aos onze anos e consigo mantê-los sentados na minha frente.
Leonardo e Marcus estão com a babá, e se tiverem sorte, já estão dormindo. —
Mamãe está grávida!
— Ele não vai fazer nada contra o bebê, Dona — falo, a voz de uma
criança com o peso de um adulto. Os olhos azuis da minha irmã brilham na
direção do meu rosto com todas as lágrimas que ela se esforça tanto para conter,
sem sucesso. — Ele só vai…
— Bater nela? Espancá-la? — Lorenzo berra, o peso nos ombros é muito
maior do que deveria ser. O cabelo castanho escuro cobre metade dos olhos, mas
sei que devem estar vermelhos. — Não podemos só ficar sentados aqui!
— E não iremos — afirmo, porque em nenhum momento foi minha
decisão ficar aqui. Mas eu preciso que eles fiquem — Eu vou até lá em cima.
Vocês dois, vão ficar aqui e esperar que eu volte.
— Luca, mas…
— Isso é uma ordem, Donatella!
E na voz do irmão mais velho e de futuro Capo, ela entende que não
estou brincando. Eles me respeitam porque sabem que nunca tomaria qualquer
decisão que os arriscasse.
Receosa, contrária a decisão e totalmente desconfiada, ela fica sentada e
eu aceno para Enzo antes de sair correndo atrás dos nossos pais. Pulo os degraus
e estou no segundo andar rápido o suficiente para invadir o quarto dos dois antes
que meu pai possa fechar a porta.
A empurro e encontro minha mãe sentada na cama, as lágrimas cobrindo
seu rosto como um véu. Tony está na sua frente e discursa sobre alguma coisa,
gesticulando furiosamente. Eu vou rápido o suficiente para empurrá-lo antes que
a palma de sua mão encontre o rosto dela novamente e quando ele nota que eu
estou aqui, respira através de uma risada pesada, rancorosa e desprezível.
— O que pensa que está fazendo, moleque?
— Ela não fez nada — digo, arrancando toda força que consigo para não
tremer sobre seu olhar rígido. — Ela está grávida. O bebê…
Amanda.
— Quem você acha que é para me dizer o que devo fazer, Luca?
— O filho dela — falo, cerrando os punhos. — E não vou deixar que
você—
Ele me atinge antes que eu possa falar qualquer outra palavra. O soco é
duro, seco e me derruba, fazendo com que eu me encolha no chão. Mamãe grita
e eu preciso de um segundo para recobrar a consciência, mas vejo ele passando
por cima de mim, indo até ela e…
É.
Fico de pé, mas não rápido o suficiente. O rosto de minha mãe já tem
filetes de sangue escorrendo do nariz, meu sangue ferve e meu pai continua
sacudindo o corpo frágil de Rosalind.
Amanda.
Eu o seguro pela cintura e esgoto minha força para empurrá-lo para
longe. Urro, fazendo mais força do que realmente tenho e meu pai cambaleia,
bêbado como um porco e nojento como um também, para longe.
— Você vai pagar por isso, seu imbecil! — Me jura, mas eu não fico para
escutar o que mais tem a dizer. Que me coloque no porão de torturas de novo,
que me dê uma nova cicatriz.
Foda-se.
— Vamos, mãe! — digo, e a seguro pela mão. Ela é frágil, quase não
pesa, mas ainda não posso segurá-la nos braços. Não sou grande, nem forte o
suficiente para isso.
Mas um dia serei.
E nesse dia, Antônio Accorsi é que deverá ter medo de mim.
— Dois para cima, dois pra baixo! Não é tão difícil, Donatella!
— Diga por você, babaca! O saco é mais alto do que eu e meus seios
impedem que eu me abaixe tão rápido! Você está me dando um exercício feito
para um homem!
— Isso não é problema meu — sorrio, vendo a irritação óbvia no
semblante da minha irmã de dezesseis anos — E nem será do seu inimigo.
Então, se você quer lutar, aprenda a fazer de um jeito que eles não esperam.
Certo?
— Certo, chefe — ironiza, tentando esconder o cansaço atrás do suor e
da respiração ofegante. Lorenzo, parado ao seu lado, ri do esforço da gêmea e sei
que ela vai fazê-lo pagar por isso. Confio em Dona para ser maquiavélica, mas
ainda não confio em Donatella para que saia lutando por aí sozinha, como é de
seu interesse.
Desde que meu pai anunciou a todos que sua filha iria jurar sua vida à
Accorsi, eu sabia que não seria uma boa ideia. E até hoje não consigo entender
de onde a permissão para isso veio, considerando o histórico machista e
extremamente não igualitário de meu pai.
Mas enfim, não é machismo de minha parte, nem a opinião de um macho
opressor. É apenas o que é. Minha irmã é mais leve, mais baixa e mais suscetível
a tipos de perigos com os quais eu e meus irmãos nunca teremos de nos
preocupar em qualquer dia de nossas vidas. Homens no nosso ramo são criativos
quando o assunto é torturar mulheres. E eu nunca quero pensar no que um de
nossos inimigos faria ao colocar as mãos sobre ela, a filha do Capo, a menina
que quer lutar com os meninos. Eles a fariam sangrar e se gabariam disso. E eu
poderia matá-los com meus próprios punhos e não adiantaria de nada. Sua honra
estaria para sempre ferida, assim como a de nossa família.
Por isso que se ela quer sair para combater os idiotas, ela precisa estar
pronta. E eu vou me certificar disso.
— Isso, assim — aprovo o movimento agora e vejo como ela se cansa. A
fadiga começa a aparecer em seus movimentos e para mantê-la alerta, puxo uma
faca. Essa faca, levo até o pescoço de Lorenzo, que estava distraído. Grande
erro. — E se você estiver lutando contra um e outro ameaçar seu irmão, o que
você faz?
Enzo não ousa se mexer. O fio de corte da faca perigosamente perto do
seu pescoço, posso sentir o coração dele bater rápido, como se isso fosse
verdade. Mas o olhar aparenta uma calma que serve para tranquilizar Dona,
embora eu veja seu olhar hiper focado em meus movimentos.
— Eu preciso atingi-lo — diz, mais para si mesma do que para mim.
— Certo.
— Eu só preciso distraí-lo, então Lorenzo poderia sair.
— Sim, mas como você vai fazer isso?
Ela continua parada, em posição de ataque. As mãos pousadas
tranquilamente ao lado do corpo e posso ver a mente ansiosa trabalhando numa
saída.
Então o som de um clique me alerta e eu sorrio, vendo o mesmo sorriso
na face truqueira da minha irmã. Ela achou mesmo que eu ia cometer o mesmo
erro que ela?
Antes que Max, que chega de fininho no treino e que na simulação
escolhe estar do lado dela, possa colocar a arma na minha cabeça, eu me abaixo
e rolo com Lorenzo para o lado. Agora ele está embaixo de mim, de bruços e eu
o mantenho parado com meu pé sobre suas costas. Maximus, que não tem mais a
vantagem da surpresa, nem está longe o suficiente, é puxado por mim, que o
derrubo, após torcer seu braço e derrubar a arma. Rindo, meu primo reconhece
que perdeu quando eu o coloco na minha frente e finjo passar a faca na sua
garganta.
— Agora os dois estão mortos. — Finjo atirar na cabeça de Lorenzo, que
tem uma ótima interpretação de cadáver. Ele coloca a língua para fora e fecha os
olhos. — E você é a próxima.
— Nem todos têm o seu sentido aranha, Luca — ironiza. — Max poderia
derrubá-lo e Lorenzo estaria livre. Não é impossível.
— Você não deve depender dos outros para se safar de uma situação
dessas, Donatella. Nem Lorenzo deveria de você. O certo seria que ele tivesse
puxado a faca e me acertado. Eu iria me surpreender e relaxaria o aperto. Ai,
sim, você entraria, caso ele estivesse ferido.
— Ele cortaria as mãos ao puxar uma faca de você.
— Mas sairia com vida — pisco, e minha irmã revira os olhos. Entendo
que ela ainda não veja as coisas do mesmo jeito que eu, mas não há tempo para
falsos ensinamentos ou treinos em vão. É vida ou morte lá fora, todos os dias. —
Treinem mais separados. É importante que saibam se virar. Ou acham que vão
ficar grudados a vida toda?
Lorenzo e Donatella se entreolham e não dizem nada. Exaustos, se
retiram da academia e Max se aproxima, como sempre, rindo feito um idiota.
— Você parece um carrasco — comenta, mesmo sem ninguém pedir. Ele
usa sua regata de academia e sua como eu, o que indica que deveria estar na
musculação. — Eles são garotos ainda, Luca. E confiam um no outro.
— Esse é o erro — indico e puxo minha garrafa d’água. — Eles sempre
precisam estar atentos se vão sair para missões, Max. E se um for derrubado? E
se um for morto? Vão desistir?
— Ambos são promissores. Só precisam de refinamento. Acalme-se,
cara. Você vai criar rugas de tanto se preocupar.
— São meus irmãos — reforço. — Espera que eu os deixe morrer?
Max não responde e eu não entendo. Mas prefiro não entrar nessa
questão tão cedo assim.
Na verdade, prefiro não entrar nunca.
Sei que não sou o mais presente, muito menos o irmão mais velho dos
sonhos. Qualquer um dos seis escolheria qualquer outro além de mim, sem
sombra de dúvidas. Eu não participo das brincadeiras, não acompanho em festas
e me esquivo o máximo de qualquer roda de conversa, mas faço o que preciso e
o que devo durante minha vida inteira, que é mantê-los seguros e respirando.
Se faltam cicatrizes em Lorenzo e Donatella hoje, é porque elas estão em
mim e não neles. Se Leonardo pode se dedicar a ler o que quiser, sem se
preocupar com o que Antônio quer que ele faça no seu tempo livre, é porque eu
me dedico com horas extras. Se Marcus joga videogames, é porque eu deixo que
ele tenha mais um pouco de diversão antes de precisar se tornar um fodido da
cabeça e introduzo as coisas de maneira leve para ele.
E se Amanda e Pietro podem viver numa casa onde as aparências
enganam, é porque eu me esforço ao máximo para que a podridão não os alcance
enquanto ainda não podem lidar com ela.
É mais do que falar que os amo, mais do que passar tempo juntos. É fazer
o que eu tomo como preocupação e atenção.
E dane-se quem pensa que gosto menos deles por isso.
Meu pai está esperando por mim em seu escritório no último andar do
Galpão.
É um espaço amplo, num estilo mais executivo do que o que tem em
casa. As paredes são num tom profundo de cinza e a maior parte dos móveis tem
vidro ou detalhes metálicos. O lugar fede ao seu uísque favorito e a fumaça de
seu charuto, que ele guarda na primeira gaveta abaixo do tampo.
Já roubei muitos com Max.
Entro e o cumprimento de longe, ocupando uma das cadeiras com
estofamento preto, alcançando os papéis encontrados no apartamento para ele no
instante seguinte.
— Diga — fala, meneando a cabeça em minha direção. O gesto é
impaciente e posso sentir, pelas rugas em sua expressão, que não está feliz.
Raramente consegue estar na minha presença.
— Não encontramos muito além de comprovantes de pagamento em
contas no exterior — começo, sendo didático em minhas palavras. Ele não gosta
de enrolações ou detalhes demais. — Não havia números ou quaisquer outros
tipos de informações, mas Max está trabalhando nisso agora mesmo.
— Não havia nada no apartamento do rato? — Seu tom é descrente,
como se o estivesse enganando. Respiro fundo e recomeço.
— Não, pai.
— Quem estava na equipe de busca?
— Daniel Jones comandou a busca com Roger e Jeremiah.
— Eu esperava ao menos uma prova mais concreta, Luca — resmunga.
— Sabe tudo o que posso fazer com o tipo de prova que me traz? Isto.
Sem se importar, ele rasga os papéis e eu tento parecer tão calmo quanto
não me sinto. Tony avalia minha expressão e sei que cuida de cada reflexo, a fim
de apenas um motivo que me coloque em apuros por desafiá-lo. Na verdade, este
é o único motivo para que me provoque tanto: me fazer sair do controle.
Meu pai sabe que sou capaz de entregar o que ele precisa. Sabe que sou
capaz de fazer tudo que a Accorsi pede, mesmo assim, ainda me encara como
uma barata, como se pudesse tripudiar sobre mim, como se fosse melhor, mais
homem e mais chefe do que eu jamais serei. Como se me desafiasse a ir até ele e
pegar a maldita coroa pela qual ele daria a vida.
— John é peixe pequeno — digo. — Sabe que Romeu não...
— Não fale esse nome — rosna, erguendo um dedo na frente do rosto.
Sua expressão endurece como aço e eu passo a língua sobre meus lábios,
mantendo-os fechados. — Romeu não é nosso problema agora e nem mesmo
será nos próximos dias, está me entendendo, Luca? Porque eu não permitirei que
qualquer coisa seja um problema enquanto Vittorio estiver na cidade.
— Prefere ignorar a ameaça? Me desculpe, pai, mas...
— Senhor, Luca. Eu sou seu Capo quando está ao meu serviço, não a
merda do seu papai.
A repreensão me faz morder a língua. Cerro meus punhos e imagino um
universo onde posso usar toda a força pela qual ele me fez treinar e batalhar
desde que era apenas uma criança para esmagar sua cara fodida do caralho.
Uma realidade onde eu não seria enforcado por isso.
— Isso é insensato, Capo — corrijo.
Com um sorriso que entrega a diversão em seus olhos, espalhando-a
sobre mim como veneno, Tony me dispensa:
— Deixe que eu me preocupe com a sensatez, Luca. Preocupe-se apenas
em receber sua futura esposa nos próximos dias. Quem sabe isso você consiga
fazer direito — as palavras, por si só, já são altamente provocativas.
O modo como ele fala não ajuda em nada. Me reduz a um empregado
ineficiente, como se eu desse a mínima para a recepção de qualquer que seja a
imbecil que estão trazendo.
— Está dispensado, soldado.
Mas embora a raiva que está me preenchendo quando fico de pé, ainda
sou seu filho e ainda tenho um juramento responsável por nortear todas as ações
em minha vida. Sou um homem de honra e de palavra acima de tudo e cumprirei
com minhas palavras até o dia em que morrer — ou enquanto elas não se
tornarem minhas inimigas.
Por isso, apenas abaixo minha cabeça e deixo a sala. E junto dela fica
tudo que não pude dizer.
Mas que um dia irei.
A semana passa ligeira e quando a quinta chega, é difícil acreditar que
estou prestes a conhecer minha noiva e que tudo isso não passa mesmo de um
delírio no qual Antônio me colocou como parte de mais um módulo de tortura.
Acordo virado no cão e sigo assim por todo dia. Evito minha família e
seus comentários e ganho algum tempo para mim dentro da academia, onde
posso colocar todos os meus demônios para fora através dos socos disparados no
saco de pancada. A endorfina me ajuda a ficar calmo e quando paro, lá perto das
quatro da tarde, me sinto chapado o suficiente para conseguir fingir ser o bom
garoto que minha noiva provavelmente está esperando conhecer esta noite.
— Sério que você ainda não está pronto? — A pergunta de Maximus
rouba minha atenção da água que tomo desesperadamente e o vejo entrar na
academia de casa, quase tropeçando de tão rápido que anda. O fato dele estar
embalado num terno e com os cabelos penteados pela primeira vez no mês, me
pega de surpresa. — Porra, Luca, não me testa…
— Eles devem chegar às seis. São quatro horas, Max. Qual é o
problema?
— O problema é que a sua mãe está surtando lá embaixo, querendo saber
onde o noivo está! — fala e eu puxo as faixas das mãos. Os olhos dele voam
para cima delas e eu evito olhar para o seu rosto. — E você fodeu com as suas
mãos!
É. Elas estão ruins mesmo. E acho que desloquei o polegar.
— Vão querer avaliar o estado das minhas mãos também? — ironizo,
buscando algum alívio desta situação de merda. Mas não há nenhum. E nem ele
ri. — Foda-se, Max. Irão melhorar depois do banho.
— E que banho você vai ter que tomar, hein, porque você está fedendo
pra caralho — diz, como se alguém tivesse pedido sua opinião. Eu volto a
ignorá-lo e vou fazer o que esperam de mim.
Quando saio do banheiro do meu quarto, encontro meus irmãos postados
na porta, como plantas. A suíte é espaçosa o suficiente para abrigar todos eles,
mas o excesso de vozes ainda assim, me incomoda.
— Estão todos aqui para me ver pelado? Sinto muito decepcionar,
garotos, mas eu sou um homem comprometido a partir de hoje — digo,
decidindo pela melhor cor de gravata. Max está sentado na minha cama,
enquanto Lorenzo, Léo e Mark estão espalhados pelo cômodo.
— Vai se foder, Luca! — O loiro diz, me encarando atravessado. — Já
são cinco horas.
— A mamãe nos mandou para ver se você não tinha fugido — Enzo
deixa claro, cruzando os braços.
— Eu deveria — resmungo, mal-humorado. Vou até o closet e coloco a
cueca preta, depois as calças. As deixo desabotoadas e busco pela camisa branca.
Volto para o quarto e encontro os quatro atirando meus travesseiros. Não há
força em mim para mandar que eles saiam, então ignoro. — Onde está
Donatella?
— Tentando convencer a mamãe a não colocar ela no vestido mais
horroroso que já vimos na vida — Leonardo fala, arrancando risadas de Mark.
Até mesmo Enzo ri — Não sei o que ela espera nos forçando a usar essas coisas
num jantar em casa.
Ele se refere às roupas formais, claramente. Eu já estou acostumado com
elas, assim como os mais velhos, mas pode demorar até que os pirralhos se
acostumem a ter essa merda apertando a noite inteira.
Termino de abotoar a camisa, então faço o mesmo com a calça. Coloco o
casaco, então fecho a gravata. Estar nessa porcaria é útil, quando você precisa
esconder alguns hematomas e todas as cicatrizes que uma dama certamente não
consideraria agradáveis.
— Quer fazer Luca parecer mais domesticado e docinho — Max
comenta, fazendo todos rirem. Eu o detesto por isso. — A única dúvida que resta
é se vai conseguir.
Passo a mão pelo casaco e termino de alinhar as calças. Por fim, o cinto.
Até mesmo ajeito meu cabelo, porque sei que minha mãe quer a todos nós
polidos esta noite, sendo apenas aparências.
É o que ela faz, de qualquer jeito: nos mantém apresentáveis o suficiente
para sermos respeitados pela educação primorosa, costumes de etiqueta seguidos
à risca e beleza fabricada por produtos caros e roupas de primeira linha.
Ela quer esconder a podridão, óbvio.
Mas como ela vive dentro de cada um de nós, é difícil pensar que algum
dia consiga.
— Se ela não for a ragazza mais bonita de toda maldita Itália, eu boto
fogo nessa merda de roupa — defino — E comigo junto.
— Posso ver?
Quando já estamos fora da mesa de jantar, após a refeição, todos reunidos
com taças de champanhe e nos cumprimentando ao redor da sala decorada com
lírios brancos, uma moça que eu não havia visto ainda se aproxima, com um
sorriso que eu denominaria como guloso. A seguir, vem mais três, que têm traços
estranhamente similares. Minhas irmãs não estão em lugar nenhum para serem
vistas e me sinto menor em número perto da verdadeira comitiva que acaba de
chegar.
— Estava do outro lado da sala e quase fiquei cega pelo brilho disso!
Suas palavras são enérgicas e eu permito que toque minha mão. A palma
é fria contra meus dedos e ela parece dissecar cada canto da pedra. Se não fosse
indelicadeza, talvez me pedisse para experimentá-la.
— Desculpe, mas acho que não fomos apresentadas — digo em um
sorriso contorcido, examinando-a. Junto das outras três, formam uma equipe de
mulheres de olhares parecidos, quase idênticos. Eu diria que há um pouco de
incômodo neles também. — Sou Rebecca Fioder—
— Sabemos muito bem quem você é, ragazza — O sotaque italiano leva
meus olhos para cima da que parece mais velha. Ela tem os cabelos loiros mais
claros e mais curtos, acima dos ombros. — É a futura esposa do nosso primo.
— Ah, são Accorsi?
— Bianchi. — Outra delas diz. Mais baixa, com cabelo liso, até o meio
da barriga. Parece uma sereia. — Sou Carmella. Estas são minhas irmãs, Noemi
e Lúcia.
Associo rapidamente que a quarta menina não é sua irmã, tampouco
parente de meu futuro marido.
— E você? — Meus olhos vão para cima da obcecada pelo anel.
— Liliana Morelli, filha do Consigliere. — Força um sorriso. Ah. — E
uma velha amiga de Luca. Meus parabéns pelo casamento.
— Obrigada. — Recolho minha mão sutilmente, passando os olhos pelas
expressões sedentas das quatro meninas. — E obrigada por virem nos prestigiar
esta noite.
— Ah, que isso... Nunca perderíamos um evento como este. — Lúcia
acrescenta, rindo. As suas bochechas são cheias, como as de uma criança.
Imagino que não tenha mais do que vinte anos, mas parece madura em um
vestido justo e saltos altos. — Vocês dois são o futuro da organização. Estamos
honradas de estar presentes.
— Eu...
— Sabe, Luca é um ótimo homem... — Liliana volta a falar. — Você
tirou a sorte grande!
Não me sinto confortável em agradecer, então apenas sorrio.
— Muitas outras gostariam de estar em seu lugar, Rebecca. — Carmella
diz. — É melhor tomar cuidado com as outras garotas daqui.
— Pode vir até nós se tiver dúvidas ou medo de alguma delas — sorri —
As espantamos rapidinho se for o caso.
Mais uma vez, sorrio, contendo o impulso de dizer que até este momento
não havia me sentido ameaçada ou invejada. Bem longe disso. Encontrei mais
mulheres com pena do que está prestes a acontecer comigo do que o contrário.
Mas tudo parece diferente com quatro pares de olhos dissecando-me aos
poucos, como se tentassem descobrir todos os meus segredos.
— Agradeço.
— E se quiser saber algo sobre Luca ou a famiglia... — Liliana volta a
dizer, puxando meu braço suavemente. Não gosto de resvalar seus dedos contra
minha pele e me encolho. Parece estar querendo marcar território. — Eu posso te
ajudar melhor do que qualquer outra.
Seus olhos dizem mais do que a sua boca e eu finalmente entendo de que
isso se trata pelo brilho faminto em seus olhos e pelo modo desconfortável como
se dirige a mim. Já vi mulheres o suficiente com esse olhar nas festas da minha
família.
Ela já foi amante de Luca.
E aqui está, querendo conhecer a garota que parece ter se tornado um
empecilho. Um empecilho do qual ela gostaria muito de se livrar.
A ideia do que ela poderia fazer, me baseando na intensidade com que
seus olhos queimam sobre minha pele, me assusta.
— Ah, ma per l'amor di Dio! — O italiano espalhafatoso rouba a atenção
de todas e eu tento esconder meu espanto quando Max Accorsi, apresentado
como primo de Luca no dia de ontem, se aproxima e toca em minha cintura,
afastando-me rapidamente das garras delas. — Não acredito que já estão como
abutres em cima da menina. Vocês são melhores do que isso.
— Só estávamos recebendo a novata, Max... Não seja maldoso. —
Liliana o encara por trás dos longos cílios. Sua beleza é clássica, mas um
pouco... artificial. Certamente já fez muitos procedimentos estéticos.
— Acredite, isso não é um terço da maldade que Luca demonstrará ao
ver que estão abordando a noiva dele desta forma. Arranjar problemas com ela, é
arranjar problemas com ele a partir de agora. Lembrem-se disso — Seu aviso soa
o suficiente como uma ameaça para mim. — Saiam.
— Não pode falar assim conosco. — Lúcia diz, o desafiando a falar de
novo.
— Agora. — Ele apenas reforça, sem se importar com o modo afetado
como a garota estufa o peito. — Ou também terão um problema comigo.
Liliana, Noemi, Carmella e Lúcia se recolhem depois disso, despedindo-
se de mim com acenos apressados e alguns muxoxos. Não me sinto culpada,
embora minhas bochechas queimem ao pensar na grande cena que isso acaba de
ser.
O tipo de cena que nunca vivi antes.
Max afasta sua mão de meu corpo assim que elas saem e me oferece um
olhar compreensivo, como se pudesse compreender perfeitamente o motivo dos
meus ombros encolhidos e da expressão assustada.
— Tente não parecer tão frágil em seu primeiro dia, italiana — alerta. —
Há abutres perigosos por aqui.
— Elas pareciam gentis. — Até abrir a boca. — Não pensei que...
— Ainda vai aprender o suficiente sobre esta cidade, Rebecca, mas para
garantir que sobreviva, tem de saber que nem todos querem ser seus amigos.
Balanço a cabeça em afirmação, tentando evitar o rubor tolo que tenta
assumir minhas bochechas. Deveria ter me defendido.
Mas o maldito silêncio sempre me ganha...
— Ainda não tínhamos nos falado, não é mesmo?
Nego.
— Ótimo. Luca vai adorar saber que assustei você assim que nos
conhecemos.
Uma leve risada escapa dos meus lábios.
— Você não me assustou — afirmo. — Só são muitas informações.
— Entendo. Ou pelo menos, gostaria de entender.
Ambos parecemos não ter o que dizer depois disso, como se uma cortina
invisível mantivesse Max de um lado diferente e distante de mim. Ou apenas um
bando de regras e costumes que dizem que ele não deveria se dirigir diretamente
a mim sem a presença do meu noivo.
— Espero que possa ser feliz aqui, italiana — deseja, os olhos verde-
folha brilhando em minha direção. Gosto da verdade que vejo neles. Da verdade
que vejo nele. Max não me parece alguém do qual eu deveria sentir medo,
embora suas mãos provavelmente estejam tão sujas quanto as de Luca. —
Parabéns pelo noivado. E não se preocupe com essa merda do bonde das loucas.
Nós cuidaremos de você.
Ele sai pouco depois disso, deixando-me sozinha no salão mais uma vez.
Estou prestes a ir até Bianca e Petra quando noto que estão entretidas numa
conversa junto de outros adolescentes e decido não as incomodar com meus
problemas.
São novas demais para pensar em bobagem.
Sorrateiramente, dou meu jeito de ir em direção a um dos corredores que
julgo vazio, atrás de um pouco de ar. Com sorte, pararei nos fundos da casa,
onde o movimento deve ser menor. Eu não aguento mais todos os olhares que
estão fixados em mim como se eu fosse uma atração de circo. A pressão com a
qual convivi a vida toda já é esmagadora a esse ponto.
Sem saber bem por onde estou indo, continuo, com o som dos meus
sapatos de salto sendo os únicos em toda extensão do corredor. Há fotos, quadros
e documentos expostos nas paredes em tom de bege, mas eu não presto atenção
em nenhum deles. Todas as portas estão fechadas, exceto uma, que acaba me
desviando do caminho que havia proposto em minha cabeça.
A brecha da porta destrancada me permite enxergar uma estante alta o
suficiente para atrair minha atenção e eu caminho na direção do cômodo.
Delicadamente, com medo de ser enxotada, empurro a porta e entro no lugar que
se revela ser uma biblioteca.
Uma biblioteca gigante.
Escondida atrás de uma porta comum, eu descubro um cômodo alto,
amplo e vazio, com estantes que alcançam o teto, recheadas de coleções
primorosas de livros clássicos, antigos e alguns livros técnicos. Os móveis são
num tom de marrom escuro, de madeira nobre e no centro, um lustre esverdeado
pende sobre três sofás de couro marrom, posicionados de frente um para o outro.
Uma lareira está apagada no fundo da sala, pois estamos em agosto, mas eu
imagino o quão reconfortante possa ser se esconder aqui em dias frios.
Também há uma biblioteca em nossa casa, mas somente com títulos
aprovados por meu pai. Romances são tolos, na opinião dele e história,
linguagens e gramática são tudo que uma boa dama deveria aprender. Se
dependesse dele, nem mesmo saberia somar dois mais dois.
Tudo para nos manter submissas e fáceis de dominar. Filosofia e
literatura são coisas que passam longe dos desejos de Vittorio para suas filhas.
Mas aqui…
Acabo me perdendo entre as prateleiras, encantada com o aspecto e
raridade de alguns dos livros. Pego-os na mão com a sensação de estar invadindo
algo pessoal, mas faço mesmo assim, preferindo a companhia deles a qualquer
falatório.
Nunca estive tão longe da minha zona de conforto, mas aqui, no lugar
que sempre me recebeu com carinho e palavras de afago nos dias difíceis no
internato — as freiras permitiam que lêssemos mais do que os textos de italiano
da professora —, sinto que há chances de haver um cantinho onde eu ainda
possa ser eu mesma nesta cidade estranha, rodeada destas pessoas diferentes, que
parecem querer um pedaço de mim.
E que certamente se acham no direito de ter.
Distraída, estou de costas para a porta e imersa na edição de colecionador
de Romeu e Julieta que acabo de pegar nas mãos, estudando as folhas e as
palavras escritas no meu italiano doce de ler e escutar, quando algo cai sobre
meus pés. Me abaixo e pego o bilhete amarelado e amassado, lendo antes que
minha mente entenda que pode ser algo que eu não deveria ver.
Que ninguém deveria.
“A despedida é uma dor tão suave que te diria boa noite até o
amanhecer, meu anjo…”
O bilhete escrito é uma paráfrase de uma das citações do livro,
reconheço. Numa caligrafia apressada, não tem assinatura, o que me faz
questionar a quem pertence. Talvez um presente de Antônio a esposa? Embora
eu não consiga imaginar o Capo se dedicando a escrever bilhetes como esse para
alguém…
Não, é mais do que isso.
O livro, obviamente, já foi lido e quem quer que o tenha ganho, não
deveria querer que alguém o futricasse. Principalmente eu, uma visitante
enxerida.
Com cuidado, recoloco o bilhete dentro do livro, na última página, e
estou fechando a capa quando pulo para a frente e quase engulo minha língua
pelo susto.
— Boa escolha.
E me viro para encontrar Luca.
A sexta-feira passa como uma nuvem diante dos meus olhos e quando
anoitece, estou novamente vestido como o bom menino que minha família
precisa com que eu me pareça para a noite de noivado.
Como um pouco de castigo moral, sou colocado para recepcionar nossos
convidados sob o olhar vigilante e atento de minha mãe, que se responsabiliza
por guiá-los pela casa e comentar amenidades. Por isso, estou perto da porta
quando minha tia Mirella — a irmã de meu pai — chega acompanhada de toda
sua família.
— Oh meu Deus! Luca! Eu não acredito!
Mirella é casada com Donald Bianchi, um herdeiro de algum tipo de
empresa financeira na Itália. Juntos, têm três filhas, que ficaram popularmente
conhecidas nesta área como pesadelos.
Noemi, Lúcia e Carmella são belas garotas. Trigêmeas, são o retrato do
que o dinheiro pode comprar e do que o mimo em exagero pode causar. Fúteis
até os ossos, se importam com pouco além de como se parecem no espelho ou
nas fotos com as quais enchem suas redes sociais.
Mas a minha existência sempre pareceu atrair suas atenções mais do que
o esperado.
— Primo! — Noemi, a única loira delas, que assim como a mãe, herdou
isso da minha avó, comemora ao me abraçar logo após sua mãe. Suas garras se
fecham sobre meus ombros como se fossem arrancar um pedaço e eu sorrio
quando se afasta, alisando meu smoking. — Que ótimo revê-lo!
— Olá a todas vocês — digo, forçando simpatia. Lucia e Carmella me
encaram como se eu fosse um doce à mostra.
— Então não é mentira, certo? — Lu, a do meio, pergunta. Está bonita
essa noite, toda emperiquitada num vestido fino, longo e escuro como seus
cabelos. — Vai mesmo se casar e abandonar a vida de solteiro? Que pena,
Luca…
— Ainda acho que é mentira. — Noemi volta a dizer. Carmella é a mais
comportada das irmãs. — Se Luca tivesse uma noiva, ela não estaria aqui,
recebendo-nos junto dele?
— Se me conhecessem bem, saberiam que não há nada que eu deteste
mais do que festas como esta — murmuro, já sentindo a irritação de ter que dar
satisfações me dominar. — Então confiem que não estou aqui apenas para
receber vocês três.
— Nos perdoe, Luca… — Lúcia diz, dissimulada como sempre. — É só
que, família sempre será família. E se a sua noiva não for tomar conta de você…
Noemi está prestes a tocar em mim de novo — contra qualquer indicação
de que pode fazer isso —, quando Max chega e me poupa de ter que chamá-la de
vadia vendida e incestuosa do caralho por se atirar para cima de mim dessa
maneira.
Com seu sorriso e seu clássico humor desagradável, Max é como o
antídoto para a presença dessas três.
— Mas olha só o que eu vejo aqui… se não são as minhas cobrinhas
favoritas!
O seu sorriso é tão largo que se não o conhecesse, diria que está feliz de
recebê-las. Mas eu sei que essa felicidade fingida vem de um longo histórico de
provocações mútuas.
— Maximus. — Lucia praticamente cospe seu nome para fora. — Você
não morre tão cedo, não é?
— Por que, doce prima? Estava pensando em mim?
— Oh, não, me desculpe… Isso fui eu lamentando o fato de você ainda
existir.
Sem sentir nem uma pontada de ofensa, Max ri, parado ao meu lado.
Eu tenho a opinião de que isso não se trata de nada além de uma
paixonite mal curada da parte delas.
— Lembrem-se de que estamos num evento familiar, primas.
Certifiquem-se de manter as garras guardadas.
Seu alerta é recebido com grunhidos e reviradas longas de olhos.
Carmella praticamente pede desculpas a nós dois pelo olhar e se afasta junto das
duas irmãs quando chega a hora.
E eu desisto de apertar as mãos suadas e receber beijos babados.
Abandonando o posto, sei que Max está logo atrás de mim e desvio entre os
convidados que preenchem o salão, chegando até o bar, onde um barman esperto
nem mesmo precisa perguntar o que beberei.
— Rosalind virá atrás de você. — Max me alerta, acomodando-se ao
meu lado.
— Foda-se — resmungo — Minha mãe sabe o quanto eu detesto
espetáculos de merda como esse.
— Não acha que seu pai é o responsável pela metade de Nova York estar
presente em sua sala esta noite? — meu primo sugere em tom altamente
divertido — Então você é burro de não ver que isso é algo grande. Algo que ele
quer que todos saibam. Algo que ele quer que Romeu saiba.
— Meu pai não dá a mínima para Romeu, Max — desprezo. — Isso é
apenas mais uma forma dele de me torturar.
E está funcionando.
— Seu pai não iria tão longe apenas para cutucar seu ego, Luca, pense.
Isto que está acontecendo agora é o jogo começando. Com Vittorio do nosso
lado, as coisas estão bem claras. Romeu deve fugir se for esperto.
Bebo mais uma dose e ignoro os delírios de guerra de Max. Ele me
acompanha com uma dose de Bourbon.
— Ou ficar se quiser uma morte lenta — completa.
No entanto, tenho sucesso em ser o bom garoto que Rosalind precisa que
eu seja durante grande parte da noite. A entrada de Rebecca é exatamente do
jeito que precisávamos que fosse — um grande espetáculo — e depois disso, a
noite segue leve, comigo bem longe da garota que teima em parecer um cordeiro
assustado ao meu redor, mesmo que eu não tenha dado nenhum indício de que
deveria sentir medo de mim.
Isso me faz questionar o que ela sabe sobre mim. Se souber mais do que
deve, com toda certeza, tem motivos para não se sentir exatamente segura ao
redor de um homem como eu.
Mas duvido que seu pai tenha dividido detalhes das minhas atividades
profissionais com sua garotinha.
E é quando estou pensando nele que Vittorio aparece. Pensei que
estivesse livre e escondido o suficiente na entrada da festa, onde todos passam
apenas para ir embora, mas o Capo italiano não falha em me encontrar, como se
soubesse sempre exatamente onde estou.
— Estive ansioso para falar com você desde que chegamos, ragazzo. —
Vittorio Fioderte diz, deixando claro suas intenções de falar comigo a sós. —
Bela escolha de joia a que deu a Rebecca.
A revelação de que não fui eu que o escolhi, mas sim minha mãe, ameaça
chegar aos meus lábios, mas impeço antes que seja tarde. Com um sorriso
arrastado, respondo de uma maneira que me causa menos problemas.
— Achei que combinaria com ela.
— De fato — meneia a cabeça, concordando comigo. — Minha filha, por
si só, é uma joia raríssima, em minha opinião.
Como se tivesse calculado, Rebecca cruza nossa visão ao atravessar o
salão. Pelos modos refinados, altura e porte de dama, ela se destaca de todas as
outras, como se houvesse um holofote apenas sobre ela. Os cabelos escuros em
conjunto com os olhos do mesmo tom agregam muito ao seu visual. Sua beleza
é, como um poeta provavelmente descreveria, intocada e pura.
— Não se encontra este tipo de moça com facilidade hoje em dia.
— Concordo, senhor Fioderte — digo, sentindo seus olhos
acompanharem os meus e ela. Ela que nem parece sentir que está sendo
observada e apenas continua a andar e agir da maneira como faz naturalmente.
— Rebecca aparenta ser uma ótima mulher. E tem potencial para ser uma ótima
esposa.
— Ela é uma ótima mulher. — Me corrige, afirmando com um sotaque
carregado que não havia aparecido até agora. Isso indica intensidade. — E será
uma ótima esposa.
— Com certeza. Não esperaria menos — afirmo, imaginando se as
definições de boa esposa que eu tenho, são similares às que Vittorio possui.
— E é por este motivo, que estou aqui falando com você, senhor Accorsi.
— Não Luca. Não somos amigos. E ele deixa isso bem claro agora. — Para que
saiba que o que está recebendo é o que muitos homens gostariam de ter. O que
alguns matariam para receber. E que foi concedido a você. — Ele abaixa o tom
de sua voz. — Já tive sua idade, então não adianta tentar me enganar, como se eu
fosse algum velho tolo.
— Está longe de ser isso, senhor Fioderte — respondo.
— Aos dezenove anos, nossa cabeça tende a ir para... — suspira. —
caminhos tendenciosos. Focamos em coisas que não deveriam receber nossa
atenção. Tomamos um monte de decisões erradas e podemos perder grandes
oportunidades.
Ele toma um gole de sua bebida antes de finalizar o discurso moralmente
questionável.
— Mas isso não irá acontecer com a minha filha. — Agora ele fala como
mais do que um pai. Vejo o Capo em minha frente, o homem que dá ordens, não
avisa. E que não me vê como mais do que um menino. — Rebecca terá uma
casa, uma família e um marido digno. Pois é o que ela merece. É o que seu
sangue exige como forma de respeito.
— Nunca—
— O Madame Martino, aquele lugar podre onde passa metade de seu
tempo enfiado com seus semelhantes, se tornará apenas uma lembrança.
Arqueio a sobrancelha.
— Esteve me espionando, senhor Fioderte?
— Cuido dos meus interesses, Accorsi. E cuido de minha família.
— Mas certamente não deveria cuidar da minha vida.
A contrarresposta não cai bem e vejo o lampejo de raiva escurecer seu
olhar. O castanho — o mesmo que vejo em Rebecca — parece tão escuro quanto
carvão e noto seus lábios repuxando. Se pudesse – e conseguisse —, Vittorio
certamente cortaria minha jugular com o copo de vidro grosso que segura agora.
Mas esta não é uma opção.
Pelo menos não por enquanto.
— Está tentando me controlar, Vittorio e eu não gosto que tentem fazer
isso. — Eu engrosso meu tom de voz e decido esconder qualquer traço de receio
que tenha sentido pela sua pessoa, encarando-o de igual para igual. Vittorio
parece irritado, mas não surpreso. — Rebecca certamente terá todo o respeito
que merece. Mas não porque o senhor ordena que eu tenha, e sim porque eu sou
um homem de palavra e o que eu jurar, no dia de nosso casamento, será lei.
Imagino o que esteja se passando na cabeça de Vittorio agora. Imagens
minhas no chão, provavelmente. Meu pescoço rasgado e meu sangue jorrando.
Imagino que ele tenha as mãos sujas e um sorriso glorioso no rosto em seu
cenário ideal.
Mas na realidade, toda raiva que deixa transparecer são as veias saltadas
e o rubor na face.
— Está me entregando a sua filha, senhor Fioderte. O mínimo que deve
fazer é confiar em mim — arrisco, posicionando as mãos atrás de meu corpo.
Vittorio rasga os lábios com um sorriso frio.
— Eu não confio em ninguém, rapaz.
Eu sorrio em concordância, entendendo-o mais do que imagina.
— Nem eu.
E saio antes que ele se arrependa de me deixar vivo pela insubordinação.
Felizmente, estou usando minhas duas pernas, o que posso considerar
muita sorte.
Provavelmente peguei Vittorio em um dia de bom humor.
Amém.
A festa se arrasta por mais e mais tempo, e meu saco já está cheio. Não
aguento mais falar, conversar ou ter que agradar convidados inúteis e curiosos. E
já não posso mais tomar uísque se não quiser ficar bêbado e terminar fazendo
merda.
Por isso, quando a oportunidade surge, eu desapareço entre os
convidados, puxando o casaco do smoking para fora, sem me importar se minha
mãe pode me ver fazendo isso. Os passos são apressados na direção do único
lugar onde poderei ficar em paz, que é a droga do meu quarto, mas eu os
interrompo quando algo chama minha atenção.
Um vulto vestido de branco passa no corredor ao mesmo tempo em que
estou subindo as escadas e eu volto quando reconheço o penteado delicado e as
curvas generosas de Rebecca. Fora que, com a quantidade de tempo que passei a
observando esta noite, poderia reconhecê-la em qualquer lugar.
Com um sorriso divertido no rosto e o cansaço desaparecendo
subitamente, eu desço os degraus que subi e vou no mesmo caminho que a moça.
Não há convidados por onde passamos e eu permito que ela ganhe à frente,
enquanto sigo distante. Quando vira na porta da biblioteca, após se distrair com a
brecha aberta, eu paro e me encosto contra a parede, aproximando-me devagar
depois disso. A biblioteca é grande o suficiente e posso ver, pela fresta que espio,
quão pequena ela parece entre as estantes com milhares de exemplares.
Eu costumava vir muito até aqui.
Passava horas sentado naqueles sofás, estudando filósofos e matemáticos.
Há material suficiente ali para cultuar o mais tolo dos homens. E era como um
esconderijo para as surras constantes e todo terrorismo psicológico sobre não ser
bom o suficiente.
Mas eventualmente meu pai descobriu e repreendeu o comportamento.
Aumentou minhas horas de treino e dificultou os soldados a serem enfrentados
no Galpão. Além de, claro, me surrar com um livro grosso o suficiente para
arrancar um dente.
Um erudito não comanda uma máfia do jeito certo. Para Tony, um líder
só deve usar o instinto natural para comandar. Qualquer outra característica ou
qualidade é inútil.
O que não faz sentido, mas...
Quem sou eu além do seu herdeiro para discordar?
Tornou-me o mais duro dos homens para reforçar seu argumento. E hoje,
é raro que exista alguém capaz de me desafiar por saber que ele criou algo que
não pode ser destruído com facilidade.
Mas cabeça e coração andam juntos. Não há um sem o outro. E devemos
cultivar os dois, coisa que minha futura esposa, perdida entre livros e mais
livros, parecendo uma criança, parece entender.
Pelo menos isso.
A biblioteca não é o cômodo mais utilizado da mansão, mas tem um
arsenal rico em livros de temas como filosofia, história e economia. Alguns
livros da Accorsi, de ensinamentos e antigos livros de contas, também estão por
aqui. Há materiais escritos desde o século dezenove, que são de encher os olhos
de qualquer um que não julgue livros algo bobo.
Como me parece ser o caso de Rebecca.
Está de costas para mim, mas posso sentir o fascínio que a domina a cada
passo dado mais afundo no cômodo, percorrendo as estantes com os dedos.
Aqui, parece menor, mas nem um pouco intimidada pelos calhamaços
escondidos em cada prateleira.
Rebecca parece até mesmo maior do que na noite passada.
Tenho receio em interromper seu momento, por isso espero o minuto
certo para me fazer notável. Mantenho as costas apoiadas na parede até que seus
dedos parem e permaneçam em cima de um livro de lombada reluzente. Com
certo carinho, Rebecca puxa o exemplar da estante e o folheia, espalhando o pó
no ar. Quando ela o fecha, decido entrar.
— Boa escolha.
Minha voz corta o silêncio com maestria e ela pula, olhando em minha
direção, quase ofendida por ter sido interrompida. A capa de Romeu e Julieta
brilha quando a luz bate e eu sorrio, me aproximando da minha noivinha
trêmula. Com a boca comprimida e o peito subindo e descendo rapidamente,
pergunta:
— V-você conhece?
Os olhos arregalados me dizem o quão assustada ela se sente de estar
aqui sozinha comigo, e eu tento não me preocupar com isso, conforme me
aproximo, ligando o foda-se para os limites que deveriam estar pré-
estabelecidos.
Quando meu peito pode sentir o calor do seu, toco o livro, trabalhando a
capa com os dedos. Rebecca mantém os olhos sobre o meu rosto, enquanto
recito a frase que mais me lembro da obra.
— Estas alegrias violentas, têm fins violentos... — cito, num italiano
forte e claro. Subo os olhos e vejo o brilho do conhecimento no olhar casto e
imóvel de Rebecca.
Posso sentir sua respiração se acalmar mesmo estando longe. A boca está
entreaberta e gosto do modo como parece surpresa em escutar o que acaba de
sair da minha boca.
Talvez ela duvidasse que eu fosse capaz até mesmo de ler, pelo espanto.
— Acredito que todos conheçam Romeo e Julieta, senhorita Fioderte.
Mas a surpresa não é exatamente essa.
— Fala italiano?
— Muito bem — acrescento em sua língua materna. Foi a segunda língua
que aprendemos. — Por que a surpresa?
— Eu não pensei que... bem, não pensei que falassem minha língua por
aqui.
— Somos todos italianos por aqui, Rebecca — emendo. — Como você.
— Não são como eu.
Alço uma sobrancelha, gostando do modo como ela me responde, mesmo
que não olhe para meu rosto ao fazê-lo.
— E por que diz isso?
Com o tom de voz mais baixo, ela coloca o livro de volta na estante e
mantém o rosto virado para o móvel. Seu perfume é doce como imagino que seu
gosto seja e eu desço os olhos pelo seu corpo, que está sendo iluminado pela luz
tímida das arandelas da biblioteca.
Ela é bonita de um jeito perigoso para se estar aqui sozinha com um
homem como eu, concluo. Mas não estou disposto a sair tão cedo.
— Eles estão em casa — responde num sopro, distanciando-se.
Sua resposta surpreende alguma parte de mim, que havia associado sua
língua rápida ao nervosismo e cansaço da noite passada. Mas me enganei. Há um
fogo permanente — que queima devagar — dentro de Rebecca. E se
pressionada, ela o deixa escapar.
O que pode ser perigoso.
Perigoso de um jeito delicioso.
— Esta será sua casa em breve — afirmo, abandonando a pose de bom
menino ou o tom doce. Ela triplica sua atenção sobre mim, atenta a cada
movimento. — Seria bom se gastasse seu tempo a conhecendo, ao invés de
enxergar problemas onde não existem.
Rebecca parece intimidada, mas eu não posso fazer nada. E garanto que
não me esforço para que se sinta assim.
Ela só nunca teve um homem tão perto.
E com um passo para trás, eu decido respeitar seus limites por agora.
— Não deveríamos estar aqui sozinhos — murmura, insegura. Toca a
saia do vestido e eu cometo o erro de observá-la novamente, notando a curva dos
seios.
— Não estamos fazendo nada de errado — respondo, tocando no livro
que ela acaba de deixar ali. Pertence à minha mãe, se não me engano. Já a vi
lendo.
— É contra os bons costumes — responde, dando distância entre nós
dois com passos apressados. Eu sorrio, minha imaginação perversa trabalhando,
enquanto minha boca mente:
— O que de ruim poderia acontecer em uma biblioteca?
Tantas coisas…
— E de qualquer jeito, acho que pode ser um bom momento para falar
sobre como não procurava assustá-la com minhas palavras na noite passada.
A italiana mantém o cenho franzido e me encara com certa curiosidade.
— Luca, não é necessário. — Se apressa em dizer, movendo o rosto. —
Não se preocupe em pedir desculpas. O que aconteceu foi apenas um pequeno
mal-estar. A exaustão da viagem e a velocidade das coisas... Acabei me perdendo
um pouco em nosso primeiro contato e sinto muito se lhe dei a impressão de que
falou qualquer coisa errada.
Rindo, noto o que tenho em mãos.
Uma joia polida.
Uma ótima mentirosa.
Mas para seu azar, eu sou ainda melhor revelando mentiras. E posso ver
no modo como não olha em meus olhos, e em sua respiração desregulada, como
acaba de encenar uma bela peça em minha frente e de como eu a deixo ansiosa
com qualquer movimento ou palavra. Ela mal pode conter sua vontade de fugir
de mim.
Motivado pelo seu nervosismo, que já parece ter cheiro, me aproximo,
vendo-a se encolher como um animal medroso e indefeso novamente. Os
grandes olhos castanhos investigam meu rosto e ela usa os braços cruzados como
armadura. Sorrindo, me inclino e sou capaz de encarar profundamente seus
olhos, mergulhando no tom chocolate deles e em seu perfume doce.
— O que foi que te contaram sobre mim, Rebecca?
Ela tenta fugir com o olhar do meu, mas eu não permito dessa vez. Para
onde ela olha, eu sigo, impedindo que escape.
— O que você quer dizer? — rebate, pressionada pela minha presença.
— Por que tem tanto medo e por que tenta mentir para mim, noiva?
Sua boca treme nos cantos e a maquiagem delicada não pode esconder o
pavor que sente.
— Eu não estou mentindo — fala, mentindo de novo. Eu rio.
— Eu sei que está mentindo — sussurro, adorando a sensação de que ela
quer fugir desesperadamente. Imagino como seu pulso deve estar acelerado. —
Por isso, estou aqui e irei reafirmar algumas coisas — fixo o olhar no seu e dou
um passo à frente. Ela dá um para trás e é como uma encabulada valsa.
— Primeiro, não precisa ter medo de mim enquanto eu não deixar claro
que precisa — Subo mais um dedo. — Segundo, não pense que é uma boa ideia
ficar fugindo de mim como se eu fosse te devorar. Essa porra me irrita. — Subo
outro. — E terceiro, pare de se encolher. É patético para uma mulher crescida.
Rebecca tem a mesma expressão que alguém que engoliu a língua
provavelmente teria. E eu adoro cada pedaço disso e da inocência descarada que
eu acabo de provocar, tentando arrancá-la de sua zona de conforto.
— Tudo que eu quero menos do que uma esposa é uma boneca medrosa
que mal pode olhar em meus olhos quando estou por perto — digo, finalizando
num suspiro arrastado ao me endireitar, tensionando os ombros e tentando
parecer um pouco mais controlado. Então recomendo:
— Por isso, sugiro que dê um jeito em si mesma antes que tenhamos
problemas.
— Pensei que o medo fosse útil para homens como você — responde e
me pega de surpresa. Não esperava que fosse capaz de olhar em meus olhos e
falar ao mesmo tempo, mas acaba de fazer isso, com os ombros erguidos e a
respiração ofegante quase controlada. É bonitinho quando o filhote tenta lutar.
Eu gosto.
— É útil com ameaças, não com a mulher que vai ser minha — retruco e
vejo o que já estava ansioso, se tornar ainda mais, à beira de um pequeno
colapso. O castanho de seus olhos se perde no modo como rebate ao meu olhar
intenso e eu gosto da raiva que aparece nas bochechas cheias, tingindo-as de
vermelho.
Que delícia de mulher, ainda mais brava…
— Entende o que isso significa, Rebecca, ou ninguém te contou como é
ser a esposa de alguém ainda?
— Eu posso imaginar claramente o que é ser esposa de alguém como
você, Luca Accorsi — fala e expulsa meu nome de sua boca como uma maldição
suja. Eu rio ainda mais, porque está óbvio que não é a primeira vez que escuto
ele sendo dito dessa forma.
Mas é delicioso saber que este é o modo como ela se sente em relação ao
homem que irá tomá-la.
— Ótimo, Rebecca Fioderte — testo seu nome em minha língua e gosto
do sabor. — Porque será maravilhoso te ter como esposa. E mais fácil ainda se
você souber o quanto irei adorar devorar cada pedacinho de você, assim que
tiver a chance, querida.
Ela perde o que sobrava de coragem depois disso e antes que eu possa
falar o quão bonita ela fica coradinha, passos irrompem pela biblioteca e temos
companhia, o que força com que a bolha de calor ao nosso redor estoure e nos
coloque de volta no mundo real. No momento que vivemos. Em quem ainda
somos.
As irmãs de Rebecca aparentam total choque ao colocar os olhos sobre
nós dois e vejo um relance de fúria nos olhos de Bianca, a segunda mais velha,
quando se aproxima e puxa Rebecca para longe de mim, colocando-se como
uma parede entre nós dois.
É fofo.
— Vocês não deveriam estar aqui sozinhos! — engrossa a voz de
adolescente e eu sorrio para ela, admirando a coragem. Com os cabelos mais
escuros e cacheados que os da irmã, ela parece também ser a mais rigorosa. É
interessante. — Meu pai certamente não gostaria de saber disso, senhor Accorsi!
Aumento meu sorriso ao olhar em seus olhos castanhos raivosos, detalhe
que já me parece característico de sua família.
— Estava apenas recomendando romances para a sua irmã, senhorita
Fioderte... — brinco, encarando o exemplar de Romeu e Julieta. Rebecca segue
meu olhar e cora ainda mais, mordendo a boca num ato ansioso. O rosto ainda
está vermelho e com a respiração descompassada, o corpo definido no belo
vestido branco e toda a doçura que me aguarda debaixo dele, ela se torna uma
bela visão.
Uma que eu gosto de apreciar.
— No entanto, ainda tenho um aviso...
Volto a falar e meus olhos voam diretamente para a mais frágil dentre as
três, a moça que parece estremecer sob o som da minha voz e fica ainda mais
vulnerável quando meus olhos tocam sua pele. A postura de Beca assume a
defensiva, mas sei, por experiência própria, que ela não seria capaz de aguentar
mais cinco minutos comigo.
— Espero que não se entristeça com o final, Rebecca. Eles já eram uma
tragédia anunciada de qualquer jeito.
Deixo as três irmãs depois disso com um gosto doce na boca.
Nos dias que seguem a sexta e a festa de noivado, sinto meu corpo doer
como se houvesse dormido com quilos e mais quilos de rochas sobre o corpo. E
tudo se deve à minha noiva e aos minutos que compartilhamos na biblioteca.
No meio da noite, após algumas doses de uísque e um evento infernal,
tudo no que pude pensar foi em como seria gostoso pressionar seu belo e
delicado corpo contra uma das estantes empoeiradas e fazê-la minha por inteiro,
utilizando toda energia acumulada em meu corpo para ajudá-la a entender quem
sou e quem ela será para mim a partir do eu aceito.
Pensei tanto que a imagem ainda vive na minha cabeça, mesmo depois de
sua família já ter ido embora e eu não estar mais propenso a encontrá-la para
mais uma refeição infeliz, onde tudo que eu gostaria de provar está proibido para
mim até segunda ordem.
Na sexta, eu me controlei. E Rebecca retornou para o seu quarto sã e
salva, enquanto eu pude perder minha noite inteira com punhetas meia-boca
como um maldito pré-adolescente do caralho.
Eu nunca havia me rebaixado tanto e se não tivesse uma comitiva do
caralho em minha casa, teria ido até o bordel mais perto e resolvido o problema.
Mas sabendo que a maldita e sua família dormiam sob o mesmo teto…
Nunca me considerei um cara de muita fé, mas Deus deve estar tendo o
tempo de sua vida me castigando dessa forma.
Espero que valha a pena, grandão.
Aqueles olhos… a pose indefesa…
Aquela garota sabe quantas coisas sujas e proibidas um homem como eu
pode fazer com uma mulher como ela?
Puta merda, só de deixar a cama já pensei em quinze.
Deve ser pegadinha.
Na próxima, eles ficam num hotel. Que porra de hospitalidade toda é
essa? Limites estão aí para serem impostos.
Ou não.
Eu nunca fui um cara de me importar muito com eles, de qualquer jeito.
Na segunda-feira, um dia após a ida dos Fiodertes de volta para sua casa,
tudo parece ter voltado ao normal.
Sou liberado dos meus deveres em casa e posso respirar o ar da rua, dos
treinos com Max e da pólvora ao acompanhar o treino de tiro dos soldados mais
novos. Estevan, um dos melhores homens da Accorsi e algo como nosso parente
em algum grau, como a alguns outros por aqui também são, nos convida a
demonstrar como se deve abater um alvo para os novatos.
Com graça e sem esforço, eu e Max aniquilamos qualquer alvo que esteja
à nossa frente e arrancamos aplausos dos soldados. É ridícula a ovação, e eu
detesto a atenção, mas Max adora e brinca, curvando-se e agradecendo.
Acontece que quando você cresce com uma dessas na mão e todos os
gatilhos do mundo virados para você, torna-se difícil não aprender a se defender
de tudo – e todos.
Ser um Accorsi é tão satisfatório, quanto perigoso. É como se o
sobrenome contivesse uma maldição, algo obscuro, capaz de corromper até o
mais bravo e honesto dos homens, pois não somos, de modo algum, homens
bravos e honestos. Somos máquinas de guerra, formados para matar, agindo de
acordo com as vontades daquele que deve ser nosso líder e guiar a organização
para a prosperidade e segurança.
O que não é o que acontece.
Meu pai sempre teve um jeito muito pessoal de comandar: ele faz o que
diabos quiser e todos temos de obedecer.
Mas é difícil ser apenas mais um soldadinho de chumbo do caralho,
quando é com a sua merda que o velho está mexendo. O instinto de proteger o
que será minha responsabilidade uma vez que ele bater as botas é gigantesco e
por isso, o incômodo é tão grande ao notar o modo como ele optou por lidar com
a questão do traidor entre os nossos soldados.
Eles são como uma praga. E se espalham. Querendo abafar o surgimento
de um rato entre os nossos, expulsando boatos de vulnerabilidade, para garantir
integralmente o acordo com a Cosa Nostra, meu pai dá espaço para que qualquer
outro filho da puta que ousou conspirar contra nós fuja, aproveitando-se dos
pontos cegos que ele mantém ao ignorar a urgência do que pode estar
acontecendo sob nossos narizes, em nossa cidade.
E isso me irrita mais do que o esperado.
Por este motivo, e pela raiva que estou carregando desde a semana passa,
é que na quinta-feira, quando há uma apreensão de dois viciados em
metanfetamina na esquina de um dos nossos clubes, tão perdidos e alucinados na
droga que não conseguem disfarçar o sotaque russo de suas palavras, eu sou
chamado e presenteado com uma noite com eles.
São longas horas e litros de sangue sobre o chão e em minhas roupas
antes que eles abram a boca.
Sinto meu sangue quente a cada corte que faço e ao ver a dor refletida em
seus olhos, enxergo gloriosamente o reflexo do homem que sou capaz de me
tornar quando há um objetivo.
— Vão continuar fingindo que não sabem nada? — pergunto, escorado
contra a parede sem reboco da sala de torturas. Giro a faca afiada entre meus
dedos e sorrio ao ver o sangue brilhar de baixo da luz amarelada que pende sobre
suas cabeças. Suas unhas estão jogadas ao redor e um pouco escapa dos cortes
de seus pés, assim como de suas mãos. Ele escorre pela sala, indo na direção do
ralo.
Max, Daniel e Oliver, dois soldados, me acompanham, mas permanecem
calados. Sabem que não quero interferências e tenho muita energia acumulada
para gastar com Adrian e Dima, nomes que encontramos em suas identidades.
O mais desligado, Dima, está com a cabeça pendendo para frente e é por
isso que o desperto com um soco. O som do osso de seu nariz, que já está
partido, quebrando-se ainda mais, me faz rir e chama a atenção ao mesmo tempo
em que causa espanto no seu companheiro.
— Já dissemos tudo que sabemos. — Ele diz, na tentativa falha de
impedir que o amigo sofra. Eu acho digno. Mas não dou a mínima. — Não
temos associação com a Ivanov!
O sobrenome me faz afundar a mão na face destruída de Dima mais uma
vez. O russo grunhe, se engasgando em seu sangue e eu abro sua boca, enfiando
os polegares até segurar sua língua, ignorando a dor das dentadas.
— Você não escutou? — Adrian berra. — Não sabemos de nada!
Eu sorrio, com o joelho mantendo o tronco de Dima imóvel, enquanto
Adrian se debate, amarrado em sua cadeira. É fofinho ver como ele se importa.
Mas não o suficiente...
Tiro um pouquinho de sangue ao passar a ponta da faca bem afiada
contra a gengiva do russo.
Adrian grunhe enojado ao ver o sangue manchar meu punho.
Eu não me importo.
— Onde você consegue sua droga? — repito a pergunta.
— Com qualquer um que tenha!
Mentira.
Na área em que estavam, não vendemos metanfetamina. É impossível
que tenham conseguido com um dos nossos. E se não conseguiram com um dos
nossos..
Quer dizer que havia traficantes russos dentro da nossa boate.
Roubando nosso dinheiro e pior, se forem audaciosos o suficiente para ter
ratos em nossos clubes. Informações.
Arranco mais um pouco e acho que peguei mais fundo, pois o sangue
começa a ficar mais denso e vermelho. Começo a me interessar por um dente e
arranho a faca contra ele.
Dima chora.
— Vou perguntar só mais uma vez antes de rasgar seu amigo de dentro
para fora: onde compra a sua droga?
— Com Alexei! — esbraveja e eu recuo, contente por poder tirar meu
punho da goela do seu amigo. — Alexei Ostarkov! Ele mora em Brighton Beach
e...e...e...
— E o que, porra? — berro, ameaçando voltar.
— E não sei! Não sei de nada, além de que ele trabalha para Romeu!
Seu nome me faz grunhir e vejo Max se aproximar pelo canto do olho.
— Como você sabe disso? — Meu primo pergunta, exibindo a mesma
neutralidade que eu ao enxergar todo sangue que envolve a cena, sentindo,
certamente, o mesmo cheiro de ferro que eu. Duvidando da quantidade, é
possível até mesmo sentir o gosto em nossas bocas.
O gosto de podre.
— A tatuagem... eles têm uma... uma estrela. No peito.
Uma estrela de oito pontas, perto do ombro.
Eu reconheço o desenho e Max também. Ele acena com a cabeça em
minha direção e se afasta, certamente, indo fazer as ligações necessárias. Meu
primo tem olhos por toda cidade.
— Certo, Adrian — desprezo seu nome em minha boca. — Vê como
teria sido fácil se tivesse me dito isso desde o começo?
— Vai nos deixar ir embora? — O pobre coitado pergunta. Os olhos
escuros ainda apresentam efeitos da droga e penso o quanto usou esta noite. O
quanto comprou. O quanto nos deu de prejuízo.
Sabe, eu não detesto todos os russos. Eu não tenho nada contra o país e
não é como se eu fosse sair na caça por eles, indo até o último. Sou ruim, mas
não sou péssimo. E tenho mais o que fazer.
O que me irrita é a ideia de que Romeu Ivanov acha que pode
simplesmente vir até aqui e tirar tudo que temos, infiltrar-se em cada canto desta
cidade e tentar roubar o controle que estabelecemos há mais de décadas.
Como um rato.
Como praga.
— Vou dar uma lembrancinha a vocês — prometo, me afastando da
precariedade e fedor que os dois corpos exalam. Dima está prestes a desmaiar,
sangue jorrando de sua boca feito em uma cachoeira e Adrian arregala os olhos
quando Daniel tira do bolso, assim como ordenado por mim, algumas gramas do
cristal que os colocou em nossas mãos. — Prepare um pouco para os dois,
Daniel.
— Quanto? — Ele pergunta, sempre bom em seguir suas ordens. Os
olhos azuis passam pelo rosto dos homens à nossa frente e tem a mesma reação
que teria ao encarar dois patos em uma lagoa.
— O suficiente para que eles se divirtam — determino e Daniel entende
a ordem subjetiva em minhas palavras. Aceito a toalha que Oliver me oferece e
limpo os punhos. Adrian chama pelo nome de Dima em sua língua amaldiçoada
e o moribundo acorda, espiando na direção de meu soldado, enquanto ele
prepara a droga e a separa em injeções, optando por fazer isso da maneira mais
limpa possível. Quando as coloca em seringas, Adrian saliva, se sacudindo na
cadeira com animação e louvor.
— Obrigada, obrigada, obrigada, senhor...
— Não me agradeça ainda — peço, observando enquanto Oliver se
aproxima e ajuda Daniel. Os dois injetam as agulhas nas veias dos drogados ao
mesmo tempo e eu vejo o quanto eles sentem prazer ao recebê-la.
Eu exibo o mesmo sentimento quando eles começam a espumar, girando
os olhos até o fundo, convulsionando em seus lugares. E sorrio quando apagam
para sempre.
— Ah, aí está — Meu sorriso é lento, agradável, um tanto sádico e
certamente contente. — Não há agradecimento como este, não é mesmo,
rapazes?
Nenhum dos soldados responde.
— Nada?
— Nem uma migalha — Max acrescenta, enquanto bebemos no Madame
Martino no dia seguinte. A sexta é sempre movimentada, mas em nosso
camarote, somos os únicos homens, rodeados por mulheres e bebidas o
suficiente para tontear qualquer um. — Alexei é um fantasma, na melhor das
opções.
— O cabeça de peixe falou algo sobre Brighton Beach — lembro,
molhando o bico com um pouco da cerveja gelada. — Foi até lá?
— Enviei os homens que tinha à disposição, mas não conseguiram nada.
É um bairro predominantemente russa e se Romeu for esperto, já deu um jeito de
garantir o silêncio de todos eles.
Max respira fundo, ocupando-se em beber sua bebida. Volta a falar
depois da pausa:
— Mas poderíamos conseguir algo se tivéssemos recursos para isso.
Grunho com a sugestão.
— Isso envolveria o meu pai.
— Sim.
— E não vamos envolvê-lo — afirmo.
— Precisamos de homens se queremos invadir a porra da Pequena
Rússia, Luca! — Max argumenta, um tanto alterado. Eu mantenho os olhos
longe de sua figura, observando o clube de cima.
— Temos o suficiente.
— Eu e você? — Seu tom de descrença me incomoda.
— Sobrevivemos até aqui, não é?
— Por mais sorte do que habilidade, eu diria.
Reviro os olhos para o seu comentário e termino minha cerveja. O gosto
é adocicado perto do meu uísque favorito e eu faço sinal para uma das
garçonetes que nos rondam como moscas, para que troque a bebida.
— Teremos tempo para lidar com isso se tomarmos cuidado — murmuro.
— Podemos ir aos poucos, mas garantir que algo está sendo feito. Impediremos
que os ratos se multipliquem e seremos úteis, sem envolver meu pai ou seus
surtos por querer agradar a Vittorio.
— Ele é nosso Capo. Deveria saber o que fazemos.
— Eu também serei seu Capo um dia, se isto alivia sua consciência —
ironizo. — E agradeço por sua lealdade desde já.
Max solta uma risada leve, talvez um pouco embriagada.
— Você é um fodido de merda.
— Obrigada.
Termino de beber minha primeira dose de uísque depois disso e penso
que haverá um pouco de paz pelo resto da noite.
Mas me engano.
Porque Mikaela Martino acaba de chegar em nosso camarote, como se
tivesse sido convidada ou, pior ainda, fosse bem-vinda.
Em um vestido roxo, que gruda no corpo com zero gordura e o olhar
sedento como o de uma víbora escondida por trás de boas intenções, a cafetina
se aproxima de nós dois e traz junto duas de suas garotas com baldes e
champanhes. A expressão intocada de Madalena não me passa despercebida
quando ela para ao meu lado.
— Bem-vindos, garotos! — sorri, exibindo todos os dentes. A pele negra
reluz sob os focos de luz do clube e o brilho dos diamantes que tem nas orelhas
se destaca. Me pergunto se são novos presentes. — Acabei de ser avisada de que
estavam aqui.
— Quem terá sido o santo? — Max ironiza, terminando sua cerveja. Ele
aceita uma taça de champanhe de Kira, uma das garotas, e ela sorri para ele.
— O que você quer? — pergunto, recusando a aproximação sútil de
Madalena. Meu uísque continua parado entre meus dedos e a segurança de não
aceitar ofertas da cafetina é a melhor escolha.
— Mimar um pouco meus garotos — fala, exibindo pura ironia no modo
como se comunica. Seus movimentos parecem calculados, enquanto ela caminha
até o divã no canto, encoberta dos olhares de curiosos lá embaixo. — Saber
como anda o mais recente noivo desta cidade.
— Muito bem — rosno, a fim de afugentá-la. Endireito minha postura no
pequeno sofá que eu e Max dividimos e sinto o olhar dele carregado sobre mim.
Ele sabe o quanto detesto a presença da cafetina. E o quanto a desprezo
por andar por estes corredores e cidade, montando seu nome e sua fama em cima
do fardo de ser a amante do meu pai.
Há mais de vinte anos.
Em um de nossos compromissos, honrar e respeitar nossas esposas é uma
obrigação. Mas para Antônio, isto parece estar abaixo de quem ele é e de suas
vontades e desejos por ser Capo. Mikaela, tendo crescido na mesma casa que ele,
abrigada pela família como empregada, está em sua vida há mais tempo do que
qualquer um de nós, inclusive minha mãe, e todos sabem do relacionamento
mantido entre os dois e de como é ela que esquenta a cama do Capo nas noites
em que Tony não dorme em casa.
Isso explica os motivos para que minha mãe a odeie. Porque todos nós a
odiamos.
Mas nosso ódio pode ajudar em pouca coisa, considerando o quanto sua
bunda é protegida pelo homem que a come.
— Ouvi boatos sobre a beleza da filha de Vittorio Fioderte... — continua,
cruzando as pernas. — Dizem que se parece com um anjo.
— Não é da sua conta — rosno, enfrentando seu olhar por um segundo.
— Frágil como um cristal, pura como água... — Mikaela continua, me
fazendo umedecer os lábios, enquanto penso em como seria gostoso cortar sua
garganta. — Você vai estragar todo o trabalho duro de Vittorio em um segundo,
não é mesmo, meu querido Luca?
Eu pretendo, penso com um sorriso demorado, mas isso não é da conta
dela.
Nada é da conta dela.
— Meu pai não está aqui, Mikaela — aviso, em um tom cauteloso. — Se
eu fosse você, tomaria cuidado com o tipo de homem que você quer irritar esta
noite.
A ex-prostituta sorri diante da ameaça velada.
— Tony sempre está de olho em mim. — E agora quem está ameaçando
é ela, com um sorriso entre os dentes e uma pompa que me enoja. — Sabe como
seu pai pode ser... territorial.
O mistério envolto em suas palavras me dá ânsia de vômito. Max,
parecendo divertir-se muito com Kira no colo, nem me dá bola.
— Saia daqui — ordeno, mal-acostumado a ser obedecido por todos.
Mikaela, de novo, apenas sorri.
— Tenho certeza de que será um ótimo casamento — acrescenta e eu,
num pequeno impulso, bato o copo de vidro contra a mesa em minha frente.
Agora Max me olha e Mikaela, enfim, se levanta, pronta para ir embora.
Mas antes de descer as escadas que a levarão para longe da minha visão,
para ao lado de Madalena, que hoje não usa nada além de linhas finas de tecido
para cobrir sua boceta e seios, e toca os ombros da prostituta com certo carinho,
enrolando os dedos em seus cabelos dourados, com um sorriso perspicaz ao
dizer:
— Mas caso ela não seja capaz de lhe dar o que precisa, sabe que sempre
terá o Madame.
Eu desvio os olhos da prostituta no mesmo segundo e foco na cafetina.
Ela sai antes que eu me levante e isso é bom para nós dois, pois eu sei a
que situação em específico ela se refere e qual é o motivo de seus olhos
brilharem tanto quando nos enxerga em seu território.
A competição com a minha mãe vem apenas de sua parte, mas é o
suficiente para irritar qualquer um, com a inveja descarada que Mikaela exibe
pela esposa de Tony. E se pudesse, por desonrar o nome de Rosalind, eu a
despedaçaria em milhares de pedaços e a faria sofrer do mesmo modo como faz
com minha mãe, que há anos, assume a posição de outra mulher na vida de
Antônio, longe de ser a principal e única.
Mas talvez meu erro seja pensar em despedaçar a amante e não o marido.
Ou talvez, minha raiva tenha, de fato, alguma razão no modo como conduz as
coisas.
Porque matar meu pai não apenas me traria problemas.
Me mataria.
DOISMESES
DEPOIS
Perto do início de Dezembro, estou praticamente morando no ateliê.
Nesta época, o croqui já foi feito e sabemos qual caminho seguir. Visto
mais branco do que pensei que poderia usar um dia, testando o contraste dos
tecidos na frente da minha mãe e dos estilistas. E por eles possuírem uma sede
em Nova York, o trabalho será finalizado na minha futura casa. Por isso,
precisamos adiantar o necessário para que todo o trabalho não se sobreponha
uma vez que estivermos por lá.
Aulas de reforço no inglês também são uma adição na minha rotina já
bastante movimentada. Treino por horas à conversação e diálogos. O intuito da
minha mãe é que eu perca o sotaque e pareça uma legítima americana, como se
Luca não estivesse se casando comigo justamente por ser italiana.
Mas todos agem como se ninguém fosse aceitar, muito menos querer,
uma garota que apenas finge ser algo. Querem a dama perfeita, com o sotaque
nova-iorquino e a capacidade de acenar, andar e cumprimentar. Nada além disso.
Nada em exagero. Nada faltando.
Como uma maldita boneca.
Entrar é fácil.
Dois tiros, um em cada cabeça na porta. A fila imediatamente se dispersa,
com gritos altos e o anúncio de confronto. A polícia provavelmente chegará
logo.
Ou não, dependendo dos acordos que a Ivanov mantém nesta área.
Também precisamos nos preocupar com os reforços, o que significa que
rapidez é nosso foco. Fazer o serviço e sair fora dessa pocilga.
Vou pela frente e sigo por um corredor porcamente iluminado, com neons
nas paredes e uma trilha de luzes que indica o caminho. Já posso sentir o cheiro
de sexo barato e perfume vagabundo nele e quando viro na primeira curva, me
abaixo para escapar do soco desleixado de um soldado forte, mas não ágil o
suficiente. Subo com a faca já enganchada entre os dedos e acerto embaixo de
seu braço, arrancando o sangue que vem direto para meu peito. Empurro a
cabeça do soldado russo contra a parede e puxo a faca para cravá-la em seu
pescoço. Ele cai de joelhos e engasga no próprio sangue.
— Isso é pela Accorsi.
Depois desse, mais três vêm em socorro do homem caído e eu sorrio,
puxando a próxima lâmina. Levo alguns golpes — mais do que deveria — e
sinto meu queixo tremer quando um homem com mais de dois metros me acerta,
mas sou ligeiro e consigo chutá-lo para cima dos outros na barriga. Meu dedo
procura o gatilho da arma em seguida e eu faço questão de fazer um estrago.
Minha arma trabalha mais do que deveria, quando minhas facas não são
o suficiente para vencer a força dos russos, o que acaba alertando os clientes
presentes na festa e os envia diretamente para cima de mim, numa tentativa falha
de fugir.
Assim que me enxergam, banhado no sangue dos homens que deveriam
protegê-los de loucos como eu, correm na direção contrária e alguns tolos tentam
lutar. Mas eu quebro seus braços e os jogo de cara na parede antes que possam
pensar em fazê-lo.
Não é que eu seja bom, mas eu sou esperto. E meu corpo e mente
trabalham juntos, para garantir que o resultado seja sempre o que eu preciso que
seja. Isso faz a diferença em qualquer luta.
Talvez seja o único momento em que não sou completamente impulsivo.
A corrida do rebanho de pessoas em vestidos de festa e ternos fedendo a
charuto e perfume de puta cessa quando notam que as outras saídas estão
bloqueadas. Os espertos buscam esconderijo e eu vejo Max e Fred chegando,
com alguns respingos de sangue, mas nada tão exagerado quanto eu. Meu primo
parece reprovar meu visual sanguinário, mas eu não ligo e vou até um grupo
ajoelhado no centro. Puxo uma vadia loira pelos cabelos e a coloco de pé.
— Quem é o chefe aqui?
— Eu não sei! — O sotaque russo forte me diz o contrário e eu enrolo
seu cabelo ao redor do meu punho. Ela grunhe de dor e lágrimas pesadas
escorrem sobre suas bochechas.
— Dois minutos antes que eu exploda a tua cabeça — sentencio e a
coloco de joelhos novamente, dessa vez, na minha frente. — Eu garanto que
ninguém vai se importar por uma puta. Por que se importa por eles?
Dou a volta e me coloco à frente dela, enquanto Max e Fred puxam
armas dos homens encurralados. Maximus se diverte estapeando alguns deles e
escuto o som que fazem ao serem chutados como lixo.
— Eu não…
A ponta da minha arma encontra seu queixo e eu escuto o som do seu
cuspe, quando ela expulsa o sangue da boca.
— Covarde.
Eu me inclino e deixo o rosto na altura do seu.
— Só me diz quem eu preciso acertar para que você não suba mais cedo,
vadia.
Com olhos carregados de uma raiva que não é só dela, a prostituta Ivanov
levanta os olhos e aponta na direção do centro, onde um homem nos encara com
pouca paciência ou importância. Eu faço o sinal para Max que o levanta do
chão.
— E então, quem é você? — pergunto ao me aproximar.
— Vá para o inferno, pedaço de merda americano! — Ele chega com
atitude e cospe nos meus pés. Eu sorrio, porque é realmente fofo que ele pense
que vai ganhar algo por isso. Talvez Romeu trate todos como seus cachorrinhos
e eles esperem recompensas por lamber suas bolas brancas.
— Quem me disser qual é o nome dele sai daqui com vida — anuncio
para o grande grupo e não demora para que uma garota franzina levante a mão.
As marcas de roxo em seus ombros me dizem que ela já teve o suficiente disso
tudo.
— Sergei — diz e eu vejo o russo se contorcer de raiva a minha frente.
— Sobrenome? — Max questiona.
— Vitkov.
Parece que não podem confiar neles mesmos, hm? Que graça.
— Tire a garota daqui, Fred — ordeno, sem olhar para ela duas vezes.
Duvido que dure muito depois de entregar um compatriota dessa forma, mas não
é problema meu. — Então, Vitkov… qual vai ser?
— O que você quer aqui, Accorsi? — rosna, mordendo o lábio inchado.
Acho que foi ele quem Max chutou.
Os cabelos escuros como petróleo cobrem a testa, mas não os olhos
claros como vidro. É grande o suficiente para ser pesado, mas não parece
experiente com nada além de correntes de ouro grossas e pelo corporal. Chutaria
ter entre quarenta e quarenta e cinco anos. E um problema sério de calvície
começando.
— Quero mandar um recado para o seu chefe — sorrio e dou dois passos
à frente. — Você sabe me dizer como eu poderia fazer isso?
— Romeu não dá a mínima para os surtos de um garoto inofensivo,
pirralho — cospe as palavras, assim como fez com meu sobrenome. — Deixe os
garotos grandes lidarem com isso e suma daqui enquanto há tempo.
— Eu faço o tempo aqui, Sergei — sussurro. — E se abrir a boca para
me chamar de inofensivo de novo, vou pedir que a mensagem seja entregue entre
seus dentes recém-arrancados.
Ele me desafia a cumprir a promessa com meu olhar, mas não chega a
exprimir esse desejo em palavras. Ninguém seria tão burro. E ele vê bem a
coleção de facas em minha cintura. Além do sangue de seus parceiros
manchando minha bochecha e escorrendo pelo meu corpo, como tinta, como
merda. É este detalhe que o dá noção de que eu não sou um pirralho. E que,
talvez, não devesse brincar comigo quando está ajoelhado na minha frente
esperando pela minha clemência.
— Eu quero que você mande uma mensagem muito clara ao seu chefe,
certo? — Falo o nome da posição mais alta em sua organização com desgosto e
apoio a mão em seu ombro. — Quero que deixe claro a ele que a Accorsi não vai
se curvar ou aceitar o que ele faz calado. E que isto é apenas o começo do que
faremos com ele caso continue fodendo com a nossa cidade.
Ele ri.
— Não vi nenhum de vocês realmente fazer nada, garoto. Acha que
alguns soldados me fazem falta?
Uma risada seca escapa da minha garganta.
— E você acha que faz diferença para mim, vivo ou morto? Acha que
tenho medo do que um mero cafetão de merda pode fazer? Acha que você é
ameaça em qualquer nível para mim, seu idiota, podre, burro e estúpido?
As ofensas o motivam a sentir raiva. Observo-o espumar e gosto da
visão, pois não há nenhuma corda ao seu redor e mesmo assim ele sabe que não
pode fazer nada.
— Ah, Sergei… Você realmente não me conhece. — Tomo uma breve
pausa e sorrio. — Mas não se preocupe, você vai ter tempo para conhecer.
Meu sorriso não é exatamente hospitaleiro e eu dou alguns tapas no seu
rosto, afastando-me do seu cheiro de medo e derrota.
Puxo a faca que usei para cortar uma linha grossa no pescoço de um
soldado e caminho de volta até Sergei. Ele está imóvel, mas quando vê a faca,
tenta escapar e acaba tombando para trás, puxando força para escapar nas mãos.
É como se cavasse o chão para se afastar, mas tudo que consegue é uma cena
patética e quando chego até ele, agarro-o pelo pescoço.
— Acalme-se ou o desenho vai sair torto de tanto que está tremendo,
Vitkov — ordeno, mantendo-o perto. Os pés tentam lutar contra os meus até que
eu o forço a ficar parado. Puxo os dois lados da sua camisa de tecido e gosto
quando ele silva, absorvendo a dor do corte quando a lâmina entra em contato
com a sua barriga flácida.
Demoro apenas cinco minutos para marcar sua pele e termino com um
sorriso que me permite ignorar as mãos encharcadas com seu sangue. Sergei,
surpreendentemente, continua consciente, embora eu possa imaginar a dor que
sente ao ter um pedaço lacerado.
O Accorsi escrito em sua barriga, no entanto, está bem bonito.
— O que acha dessa para sua coleção? — sorrio, e me coloco de pé. —
Mostre-a ao seu chefe quando ele perguntar das novidades. Aposto que ele vai
apreciar uma boa arte.
— Vy dorogo zaplatite za eto, amerikanets! Nastol'ko dorogo, chto nichto
v mire ne smozhet vam pomoch'!
Suas palavras são ditas em meio a agonia de sentir a ardência do corte e
eu não dou a mínima ou busco por qualquer significado. Não faz diferença o que
ele pensa. Faz diferença o que ele demonstra agora.
Ser um fraco.
Se é isso que Romeu coloca para defender suas propriedades, me
preocupa que esta guerra acabe sendo fácil demais.
— Também adorei fazer negócios com você, Sergei. Aproveite a
lembrança. — É tudo que digo para me despedir antes de deixar a boate ao lado
de Max e Fred.
Na manhã seguinte, recebo a recompensa pelo que fiz com um belo soco
de bom dia proporcionado pelo meu pai e tenho a breve ideia de que o recado
deve ter chegado até Romeu — e além dele.
Talvez toda maldita cidade já saiba do que Luca Accorsi foi capaz de
fazer a essa altura.
Eu mal tenho chances de abrir os olhos antes dele me arrancar da cama
pela gola da camiseta e me atirar contra a parede. O som do baque vibra através
dos meus ossos e imagino que também ocupe o andar inteiro.
Reagir parece ser o óbvio a fazer, considerando que eu já sou fisicamente
mais forte a este ponto, depois de anos de treinamento ferrenho, mas meu pai
ganha em experiência e tem o pequeno detalhe dele ser meu Capo e eu precisar
respeitar isso quando estou encarando-o dessa forma. Isso me mantém preso
como se eu usasse algemas, enquanto ele engancha sua mão ao redor do meu
pescoço e corta qualquer entrada de ar, sentenciando-me, sem chances de defesa.
Também, baseando-se no meu histórico…
Seus olhos azuis brilham com algo que vai muito além do perigo que
normalmente mora neles e tento engolir, mas não consigo e acabo me
engasgando em minha própria saliva, enquanto meu rosto fica cada vez mais
vermelho.
Ele não se importa, claro. Não é a primeira vez.
E antes que comece a falar, Tony não consegue conter o impulso de
acertar um soco em meu estômago.
Eu controlo bem a dor, mordendo o interior da boca e cerrando meus
dentes.
— Você, seu fodidinho de merda — começa, chiando como uma chaleira
prestes a estourar. — Eu quero saber onde foi o que você enfiou a porra do teu
juízo!
Não tento falar, nem penso em começar a pedir desculpas.
Não me arrependo de nada para me obrigar a fazer isso.
— Vinte homens Ivanov — anuncia, me fazendo sentir triunfante.
Mas só por dentro.
— É isso que você matou na noite passada, seu moleque de bosta! Sem
autorização!
Ainda engasgado, não soco seu peito, nem tento empurrá-lo. Tenho a
sensação de que meus olhos podem explodir a qualquer momento, enchendo-se
d’água, pois não pisco. Mesmo assim não tento me defender. Seria desonroso.
Eu posso aguentar isso.
Posso aguentar pior.
— É com isso que nos conseguiu uma guerra, estúpido!
Seu berro ecoa pelo quarto e sou solto, após ele provavelmente
considerar que será mais valioso e prazeroso me castigar pelo resto da sua vida,
do que por apenas um instante. Eu massageio minha garganta e tento não tossir
muito alto, enquanto ele bufa e respira fundo, passando a mão sobre os cabelos e
andando em círculos.
Não sei que horas são, mas deve ser cedo. O sol mal nasceu por
completo. De todo jeito, ele já está vestido para trabalhar, o que indica que teve
tempo o suficiente para ser informado do que eu fiz. Bernardino deve ter sido
sua primeira chamada esta manhã.
Sou surpreendido quando passos ecoam pelo corredor e um segundo
depois, minha mãe entra no quarto, parecendo tão revirada quanto eu. A
impressão é de que caiu da cama, e só teve tempo de se vestir antes de sair
correndo atrás do marido, provavelmente temendo que ele arrancasse minha
cabeça fora.
— Tony, por favor...
— Some daqui, Rosalind! — Ela recua quando ele berra. Eu movo meus
olhos sobre a cena e vejo a mão que ele mantém na frente do rosto, controlando
a si mesmo, o que é raro. E não irá durar.
Mas minha mãe não liga para o aviso da pouca paciência do meu pai e
tenta se aproximar de mim. Isso é um erro — e ela sabe disso —, e faz com que
Tony exploda e a empurre para cima da cama, onde ela cai, encolhida.
— Eu falei pra sumir, Rosalind, caralho! Quer levar um pouco também,
sua puta desgraçada?!
Eu pisco forte uma ou duas vezes e me apoio contra a parede para ficar
de pé. Sinto minha garganta arranhando enquanto tento forçar que algum som
saia dela, e fico na altura de Tony. Mamãe cobre o rosto e chora copiosamente,
enchendo meu peito de uma raiva maior do que ele poderia causar fazendo
qualquer coisa contra mim.
— O seu filho acaba de nos conseguir uma guerra! Uma guerra quando
ele está prestes a se casar, Rosalind, você entende o que é isso, sua estúpida?
Entende o que isso significa ou vai tentar apenas proteger este incompetente
mais um pouquinho?
Ela só chora um pouco mais alto, e quando nota que estou de pé, me
chama baixinho, como se implorasse para eu ficar parado.
Mas essa merda não vai colar.
Tony também nota e se vira em minha direção.
— Minha mãe não merece nenhuma parte disso. Ela não é seu saco de
pancadas. — Sinto o gosto concentrado do sangue em minha língua e cuspo na
direção dos seus pés. A dor latejante de seus socos já não é novidade, nem a
queimação na boca do estômago. — E se espera que eu sinta qualquer pingo de
remorso pelos russos mortos, não me conhece.
Meu pai não aceita a resposta bem e voa para cima de mim novamente.
Dessa vez, recebo um soco que vai direto em meu olho e o grito agudo da minha
mãe o faz parecer a pior coisa do mundo. Falho em minha respiração e ele se
aproveita disso, chutando meu corpo contra a parede de novo, acertando minha
barriga com um pontapé.
Nenhum músculo em mim se move para contra-atacar. Minha cabeça,
mais poderosa e sábia do que meu peito, me diz para aceitar quieto. Para permitir
que ele desconte em mim, e não nela. Afinal, fui eu que atirei contra todos
aqueles homens e provocou sua ira. Não ela.
Ela só quer me proteger, como toda boa mãe faria. E de uma maneira que
meu pai nunca entenderia.
Se ela não estivesse aqui, eu poderia ajudá-lo a entender por que eu não
sou mais o garoto que ele surrava na academia.
Tony aproveita-se da clara vantagem e agarra meu queixo, fechando-o
com sua garra. Cerro meus dentes e mordo a língua, encarando-o por cima da
raiva que colore minha visão e faz meu coração bater acelerado.
Eu poderia matá-lo sem piscar agora.
— Eu quero que você, seu moleque fodido do cacete — começa,
cravando as unhas curtas nas minhas bochechas. Posso senti-las cortando minha
pele, o que é sua intenção. —, entenda que esta é a última vez em que me
desrespeita.
Seu sorriso é doentio ao me ameaçar e eu sei que não ficará apenas nisso.
Tony vai encontrar uma forma de me castigar que será dolorosa e longa, como
ele gosta. Vai me fazer sangrar para aprender.
— E que a primeira pessoa que entregarei a Romeu, quando ele vier
cobrar pelas merdas que você faz sem pensar no futuro, será Rosalind. Afinal,
acho que ele pode ver valor nessa puta que chama de mãe, certo?
Meus olhos brilham quando a resposta vem na ponta da língua e eu não
me seguro.
— Quem sabe Mikaela não o satisfaça mais, Tony? Ela já é treinada para
dar a boceta para qualquer um mesmo.
Não preciso me castigar mentalmente por respondê-lo. Tony o faz e
acerta outro soco forte contra meu rosto. Dessa vez, muito mais intenso, com
ódio acumulado.
— O próximo vai ser nela — ameaça, os olhos brilhando em fúria.
Chefe de merda, pai de merda e marido de merda.
Angústia domina meu corpo só de pensar no que ele poderia causar a
minha mãe e olho na direção do seu corpo encolhido, enquanto ela reza em seus
joelhos por mim, sabendo perfeitamente do que meu pai é capaz. E de que
nenhum santo tem mais espaço para ter piedade de um cara que brinca com a
sorte como eu.
Por ela, e pela sua vulnerabilidade, me calo e engulo qualquer resposta
que poderia ter sobre como entregar-se não deveria nem mesmo ser uma opção a
se considerar para um verdadeiro Capo.
Engulo em seco, assimilando suas palavras e aceno, me entregando. O
sangue ferve o dobro e Tony tira a mão de meu rosto, que arde onde ele acertou.
Provavelmente, ficará roxo. Me pergunto como ele espera que eu explique isso a
todos na noite de Natal.
— Ande na linha — resmunga, me dando as costas. Passa por Rosalind e
nem mesmo olha na direção da esposa, como se ela fosse insignificante em seu
choro lamurioso. — É o último aviso que vou te dar.
Eu só percebo que é tarde demais para voltar atrás quando coloco meus
pés dentro da Yorker, a boate da qual Petra ouviu falar na internet e que por
sorte, segundo informações repassadas por Matteo, pertence à Accorsi.
O que é basicamente um dos principais motivos para nosso irmão mais
velho ter concordado com este plano estúpido e imbecil e nos trazido até aqui,
junto de três soldados, considerando uma sombra para cada.
Outro motivo, com toda certeza, foi o fato de eu estar prestes a ser presa
a um homem que ele não aprova. Por dentro, sei que Matteo adora a ideia de
estarmos aqui sem o conhecimento — ou aprovação — de Luca e que deve
torcer, no fundo, para que isso chegue até ele, para ferir sua honra e mostrá-lo
que não devemos nenhuma gota de submissão a ele.
Ele nos guia até o camarote que conseguiu ao dar seu nome na entrada e
mantém as rédeas curtas enquanto cruzamos a pista na direção das escadas. A
junção de corpos praticamente me sufoca e nunca vi algo como isso.
As luzes coloridas iluminam as brechas, evitando que a balada esteja
entregue ao total breu e a música alta convida todos para se esfregarem uns nos
outros, exalando perfumes que eu, sinceramente, nunca senti na vida. Ainda há
uma fumaça no ar, que me lembra erva e o inesquecível cheiro do álcool que
deve estar correndo no corpo de todos os presentes, colocando-os no limite de
suas emoções.
A Yorker é uma boate moderna, predominantemente preta, com um bar
iluminado no centro. Enquanto subimos as escadas, posso acompanhar o
movimento dos atendentes atrás do balcão de led, que nunca param, funcionando
num ritmo impressionante.
Matteo me dá um leve empurrão quando empaco na escada e eu
cumprimento o segurança que guarda a entrada da área VIP. Meu irmão não olha
para seu rosto.
Chegamos ao espaço reservado, com três sofás bordô e baldes de bebida
que me fazem pensar que nossa chegada era esperada.
Assim que nos acomodamos, meu irmão manda os soldados para a
entrada do nosso camarote e senta ao lado de Petra, passando os olhos sobre nós
três.
— Alguns avisos: nenhuma de vocês deixa essa área desacompanhada.
Nem para mijar, nem pra porra nenhuma. Não aceitarão copos de qualquer um
que não seja aprovado pelos nossos homens ou por mim. Nem tocarão nessa
porcaria que está aqui — indica os baldes — Petra, Bia, ninguém encosta em
vocês. De jeito nenhum. E para você, Beca, ninguém deve nem olhar. Estamos
entendidos?
— Qual a graça de virmos se você vai nos manter presas aqui? — Petra
arrisca. Ela está com o cabelo liso até a cintura e usa um vestido roxo que
combina com passarelas de moda em Paris, mas também cai bem aqui. Bianca e
eu usamos preto, básicas, numa tentativa inútil de passarmos despercebidas.
— A graça é todo mundo sobreviver até amanhã e o pai nunca descobrir
que eu fui louco o suficiente para fazer isso, Petra — desabafa, e eu me sinto
culpada por tê-lo arrastado para isso com meu teatro de futura noiva
enclausurada. Mas embora sinta isso, me permito aproveitar a noite e o ambiente
novo ao meu redor, que parece tão atrativo – embora um pouco menos
organizado – quanto sempre imaginei.
Talvez seja algo no cheiro ou na iluminação. A combinação de músicas.
Ou apenas meu corpo querendo ser livre e dançar como uma jovem normal de
dezessete anos é capaz de fazer numa sexta à noite na companhia dos seus
melhores amigos.
E embora esteja frio lá fora, não somos as únicas usando vestidos. E há
mulheres tão bonitas e homens tão assustadores… Alguns casais, vejo pelo canto
do olho, se grudam de maneiras descabidas pelos cantos, inclusive casais nos
camarotes vizinhos, o que me torna um pouco inquieta.
— Fazem isso assim? — pergunto, interrompendo uma breve conversa
entre meus irmãos. Todos seguem meu olhar na direção das escadas, onde um
homem pressiona uma mulher contra a parede. As mãos dela estão em todo lugar
e as dele também. Posso praticamente sentir a afobação dos dois em se tocar,
suprimindo à vontade um do outro. É quase desesperador. — Para todos verem?
Matteo, com um sorriso que indica reconhecimento, se vira para nós três
após estudar a cena e diz:
— Você ainda não viu nada, Becky. — Então fica de pé e acena para os
soldados. Eles se aproximam. — Irei buscar alguma bebida que preste e seja
segura. Fiquem aqui e não ousem me desobedecer.
Um minuto depois, nosso irmão deixa a área reservada na qual estamos
presas e se une a multidão eufórica lá embaixo, sendo engolido pelos corpos
dançantes e a liberdade que eu gostaria de provar, sendo um homem sem medos
ou receios, que apenas vê o que quer e vai atrás.
Minhas irmãs parecem tão invejosas quanto eu.
E Petra certamente não aceitará isso calada.
— Mas ele está muito louco se acha que vou ficar aqui a noite toda... —
sussurra num inglês corrido, que talvez confunda nossos soldados. — Agora é a
nossa chance, meninas. Temos que aproveitar.
— Não seja atrevida, Petra… Ele já nos trouxe até aqui. — Bianca, a
ousada de mais cedo, agora parece ter receio, o que é engraçado. — Vamos curtir
as bebidas que ele trouxer e ir embora. É o suficiente.
— Eu não vou me contentar com essa mixaria, Bianca! — decidida, Petra
fica de pé, chamando a atenção dos rapazes. — E nem vocês deveriam! Quando
eu sair, um soldado vai me acompanhar. Sobrarão dois, um para cada. Sejam
espertas como eu e vivam um pouco!
— Isso é arriscado demais, Petra, você não… — Antes que eu possa
terminar de falar, Pê já está fazendo sinal para Fiorello, o pobre guarda-costas
novo, e pedindo para ir ao banheiro. Ele parece mais do que receoso em relação
a isso, mas após confirmar com os outros dois, sai, sem exibir nada além da
calma e segurança de um homem feito.
Poderia assassinar qualquer um que ouse olhar na direção de Petra e isso
é bom.
E é claro que motivada pelo surto de Petra, Bianca também quer sentir o
gostinho da liberdade esta noite. E é assim que ela inventa toda uma história
sobre precisar entregar um absorvente à Petra antes que um acidente aconteça e
sai na frente de Mário, um guarda-costas mais experiente e mais atento às
enganações.
Eu fico com Aldo, que tem de idade e experiência a mesma quantidade
que tem de cicatrizes marcando a pele avermelhada e nem sonho em tentar
enganá-lo com qualquer teatro, quando ele me lança um olhar significativo,
expressando saber bem das mentiras das minhas irmãs.
Mas que comigo é diferente.
Sentada em meu sofá bordô, tudo que ganho é dor na bunda, até Matteo
retornar com três baldes que o acompanham num carrinho, empurrado por um
atendente, e se deparar com o ninho vazio.
Não há nada como a expressão em seu rosto ao me encontrar sozinha.
— Onde estão?
Mas a pergunta não é para mim e sim para Aldo, que mantém a posição.
— As duas meninas foram ao banheiro, senhor.
— Há quanto tempo?
— Vinte minutos.
— Malditas do cacete...
Ele sai sem se importar que eu permaneça aqui, mas, pelo menos, posso
aceitar a bebida que o garoto traz e com ansiedade, encho minha boca com o
primeiro gole do líquido amargo, que parece caro. Faço uma careta tenebrosa e
vejo Aldo rir.
— Por Jesus, José e Maria, o que é isso?!
Posso sentir a língua arder e contorço todo meu rosto. O gole senta mal
em minha barriga e tenho até mesmo ânsia de vômito.
Mas Aldo não responde, já que não é necessário, uma vez que outra
pessoa resolve fazer isso:
— Chamamos de líquido do mal, gata. — A voz grossa responde, sentada
atrás de mim, e eu olho para além da barreira que divide as áreas vips. — A
maioria de nós, pelo menos. E realmente não é tão saborosa na primeira vez.
É um homem, o que faz Aldo dar passos ligeiros em minha direção,
tornando sua presença notável.
— Ele não é uma ameaça — digo numa ordem em italiano, para que o
jovem não compreenda. O soldado para, respeitando minha posição, mas não se
afasta.
Os olhos acinzentados do rapaz se movem dele para mim e vejo
constrangimento manchando-os:
— Opa, desculpa… Eu pensei que estivesse sozinha.
— E estou — sorrio, subindo o copo na altura dos olhos para que ele
possa ver. — O que você estava dizendo sobre isso?
— É vodca — fala, o sorriso brilhante, cintilando com algo que não
reconheço. — Algo que conheço bem.
Um estalo corre pelo meu corpo e recuo um centímetro da divisória.
— Você é russo?!
O garoto ri e eu passo os olhos sobre suas companhias. Mulheres e
homens, mas todos distraídos em sua própria conversa. Ele é um à parte, mas
que se destaca. Tem um belo sorriso e músculos torneados, marcados debaixo da
camisa branca de linho.
— Não, linda, só sou cachaceiro mesmo… — Sinto alívio inundar meu
peito e ele ri, obviamente notando meus estranhos maneirismos. — Você não é
daqui, né?
— Não… Sou da Itália. — Passo minha mão por cima da divisória e ele a
aperta. — Rebecca.
— Luke — devolve, desenvolto de uma maneira que não reconheço. O
nariz é adunco, marcando o rosto que não é delicado, mas sim bonito de um jeito
menos óbvio. Chutaria que é algo como um jogador de futebol americano, pelo
porte atlético. E pelo dinheiro que deve estar gastando aqui esta noite. — Você é
muito bonita, Rebecca… O que me faz questionar por que está sozinha esta
noite… — Ele olha para Aldo por um segundo, depois volta para cima de mim.
— Alguém te deu um bolo?
— Meu irmão está ocupado demais caçando minhas outras irmãs pela
balada — falo, escondendo qualquer sotaque. — E bem, talvez só você tenha me
achado interessante. A muralha atrás de mim dificulta um pouco as coisas.
— A Yorker é segura, sabe — fala, como se eu não fosse nada além de
uma estrangeira perdida. — O pessoal que comanda aqui sabe como impedir
qualquer bagunça. Poderia dispensar seu guarda-costas.
Com um sorriso educado, balanço a cabeça.
— Temo que não funcione assim, Luke.
Ele aguça seu olhar sobre meu rosto e abre um sorriso ladino.
— Quantos anos você tem, Becky?
A pergunta traz um leve tom de suspeita.
— Vinte e um — minto, pois sei que seria a idade mínima para que eu
estivesse aqui. — E você?
— Oh, ainda bem… Cheguei a pensar que estava perdida, mas só é um
pouco tímida, certo?
Rindo, afirmo.
— Falar com estranhos não é algo que eu faça normalmente.
Ele parece consternado por este detalhe e eu me pergunto que tipo de
pessoa me pareço. Uma idiota, com certeza.
— Per Dío1 — força um sotaque quase ofensivo e eu acompanho quando
ele deixa seu lugar e depois de um momento tenso com Aldo, ocupa o banco à
minha frente, espalhando seu perfume forte pelo espaço. Eu sinto uma onda de
calor se abater sobre mim e gosto de ver o resto de seu corpo, notando as calças
cinza de bom e fino tecido, além dos sapatos mocassim de couro. — Vamos
resolver isso agora, então, boneca.
Nervosa, eu sorrio e concordo, tomando outro gole da minha bebida do
mal. Ele faz o mesmo com a sua que se parece muito com uísque.
A partir disso, uma conversa se desenrola e eu adoro o fato dele não fazer
ideia de quem eu sou. Posso apenas falar sem me preocupar em estar parecendo
polida e educada o suficiente, enquanto ele me olha do jeito como homens
normalmente olham para mulheres pela qual se sentem atraídos. Aldo faz vista
grossa sobre isso, mas permanece parado ao seu lado, de pé, como uma sombra.
Se ele tentar qualquer coisa, não tenho dúvidas de que meu guarda-costas será
capaz de matá-lo antes.
E eu me sinto normal o suficiente para me sentir feliz.
Depois de horas, deixo o Galpão como se meu corpo também tivesse
ficado por lá. A cabeça pesa horrores, minha boca está inchada pelos golpes de
mais cedo e praticamente implora por uma dose farta de qualquer merda que
ajude a entorpecer meus sentidos e praticamente me jogo dentro da droga do
carro, pois a minha moto foi confiscada.
Como forma de punição, é claro.
Então sou obrigado a aguentar o dobro de tempo que duraria para chegar
até o lugar onde Max está bebendo hoje e me estressar mais um pouco pelo
furdunço na entrada da Yorker.
Eu não sou um cara de baladas. E para ser sincero, nunca fui. Meu lance
é mais casual, mais íntimo e reservado, sem todo esse frenesi causado por uma
porrada de álcool e droga na mente, além de uma música ensurdecedora, capaz
de irritar qualquer um.
Não sei como sou capaz, mas depois de tantas horas na companhia de
meu pai, Bernardino e Ricardo ditando e planejando rotas para escapar de um
confronto direto com os russos nos próximos meses, tudo que preciso é de uma
distração justamente como essa.
Uma onde mal posso escutar meus pensamentos desgraçados pra
caralho.
Antes de ir procurar por Max na área VIP, no maldito camarote onde ele
sempre gosta de ficar quando me arrasta para essa porcaria de festa – mas que
nos rende uma bela fortuna – eu me dirijo ao bar. Se não houver um copo de
uísque na minha mão em cinco minutos, começarei a descontar o fogo que corre
na cabeça do primeiro que me olhar.
Não sei como Max ainda consegue me convencer destas merdas.
Me debruço sobre o balcão iluminado e a atenção da atendente
automaticamente vem para cima de mim.
— Uísque — peço num rosnado abafado. Uma garota bate em mim com
o cotovelo e se arrepende de ter nascido quando nossos olhares se encontram. O
menino com ela a puxa para longe, obviamente me reconhecendo.
Espertos de não entrar no meu território sem saber quem sou.
A atendente sorridente, usando o uniforme preto dos pés à cabeça,
alcança o que pedi e eu olho ao redor, virando o copo num gole. A bebida desce
queimando e eu pigarreio no final, batendo o vidro por uma segunda dose.
— É novo por aqui? — A atendente pergunta, completando o copo. Meus
olhos encontram seu rosto inexpressivo e me dedico a descobrir seu nome,
escrito na placa metálica sobre seu peito. Tracy. — Nunca vi você.
— Então acho que você é a nova por aqui — resmungo, mal-humorado.
Bebo mais um pouco do uísque, pegando mais leve dessa vez. — Começou
quando?
— Há seis meses — explica, me fazendo olhar a equipe que divide o
espaço com ela. Três homens, mais duas garotas. Nenhum nos dá atenção. — E
seria difícil esquecer seu rosto se eu o tivesse visto, acredite.
Sua tentativa de dar em cima de mim é honrosa, mas terrível. Mesmo
assim, esboço um sorrisinho forçado e tento não parecer tão amargurado.
Ela tem um belo corpo, seios volumosos e um rosto bonito. Os olhos são
profundos e claros, de um modo diferente. E a boca é cheia o suficiente para
chamar minha atenção.
Poderia descarregar o resto nela.
Mais especificamente, dentro dela.
Isso se eu estivesse fodendo algo além da minha própria mão.
Respiro fundo e me recomponho em frente à bancada. A música
eletrônica que me dá vontade de esmagar a porra da minha cabeça contra o chão
não ajuda em nada.
— Sou Tracy. — Me oferece a mão. — E você?
Que graça, penso, ela finge não saber quem eu sou.
— Luca — afirmo, segurando sua mão. Demoro mais do que deveria
para soltar-lhe, sustentando seu olhar o suficiente para que ela prefira desviar. —
Luca Accorsi, se isso for ajudar a sua memória.
Pressiono a ponta de meus dedos contra sua mão por um instante a mais e
noto o modo como arregala os olhos, como se a revelação de meu nome — ou
outra coisa — tivesse lhe chocado.
Ainda não soltei sua mão quando falo:
— Podia fazer melhor que isso se pretendia abrir as pernas para mim,
querida — pisco.
A loira permanece num silêncio incômodo e eu termino minha bebida.
Decido abandonar sua curiosidade imbecil e seu jeito de moça
desentendida e afrouxo o colarinho da minha camiseta enquanto ela volta ao
trabalho, nem um terço tão eficiente quanto deveria para suprir a demanda. Noto
o modo como se bate contra algumas garrafas e se confunde com os medidores,
precisando de instruções.
Seis meses, ela disse.
E meu uísque foi servido além da conta… Todos sabem que não se enche
um copo.
Todos, menos alguém que provavelmente não passou mais de uma
semana aqui.
E que agora tenta desesperadamente se esconder atrás dos longos cílios
ou dos clientes. Mas mal sabe a fofinha que quando eu tenho uma presa, é difícil
perdê-la.
A menos que outra mais interessante surja.
— Puta merda, finalmente te encontrei! — Felizmente, escuto a voz de
Max antes de sentir o empurrão em meu ombro. Isso o faz não ganhar um soco
bem no meio da fuça. — Onde você se meteu, seu merda?
— Estou aqui, não estou? — O tecido da camisa social branca coça
contra minha maldita pele e me arrependo de nem mesmo ter passado em casa
antes de vir.
Mas a pressa era tanta para sair das garras de Tony que não raciocinei e
apenas vim.
— O que você quer?
Max está suado e parece destrambelhado também. A pele reluz com uma
fina camada de suor e eu não gosto do brilho lunático que cobre seus olhos,
tornando seu visual um tanto histérico para o meu gosto.
— Primeiro, precisa me prometer que não vai matar ninguém — pede. E
eu já sei que é mal sinal.
Estou de pé no instante seguinte e meu semblante muda. Max nota isso e
apoia as mãos sobre meus ombros, na tentativa de me frear.
— Explica direito essa merda antes que eu mate você.
Meu primo parece ainda pior do que quando chegou e noto as gotas de
suor que escorrem pelo seu rosto. Ele olha na direção das escadas da área VIP do
clube e parece ponderar a respeito de muita coisa ao mesmo tempo, até que
decide o que é melhor e felizmente, o melhor parece ser me contar do que todo
esse teatro de merda se trata.
— Vem comigo — desiste de me fazer prometer algo que provavelmente
não iria cumprir e me guia entre as pessoas espalhadas na pista. Seus passos são
urgentes o suficiente para me deixar consciente de que provavelmente há um
incêndio ocorrendo em algum lugar e isso apressa minha caminhada também.
Esbarramos na maioria das pessoas pelas quais passamos e eu evito
qualquer indício de briga, seguindo o loiro afoito em minha frente. Ele chega as
escadas e nós pulamos vários degraus, até pisarmos no segundo andar, onde a
área VIP se divide em diversos espaços reservados para os mais ricos,
considerando os valores.
— Então, é o seguinte… — Ele coça sua nuca. — A sua noiva está aqui.
Eu tenho uma pequena sensação esquisita quando ele diz isso. Como se
desse reset.
Mas Max não se inibe pelo meu aparente choque.
— Na penúltima cabine — afirma, acenando na direção da fileira de
reservados. — Com um cara que eu não sei quem é. Bem, pensei que fosse o
irmão quando passei, mas não é. Eles estão muito próximos para que seja ele…
se é que você me entende.
Eu espero apenas um segundo.
Apenas um, para que ele desminta tudo e diga que não passa de uma
pegadinha. Seria típico de Max, me enfurecer desse jeito e depois, rir da minha
cara.
Mas ele não fala.
Ele não desmente e apenas me encara numa expectativa preocupante,
como se tentasse ler meus pensamentos e falhasse, sem entender do que sou
capaz, uma vez que sei do que sei, por que nunca passamos por situação
parecida.
Nenhuma mulher nunca foi minha o suficiente para que eu me
preocupasse com quem fala ou não. Mas Rebecca? Minha noiva?
Então, eu giro meu corpo e começo a caminhar. Não, não, eu começo a
marchar.
Ando pelo corredor estreito e espio dentro de todas as cabines até chegar
a penúltima, como ele disse. E demoro apenas mais um segundo para reconhecer
Rebecca ali.
Com um homem ao seu lado.
Um homem que tem o braço sobre o encosto do seu sofá e está virado na
direção do seu corpo, parando de desejá-la apenas quando minha chegada se
torna a novidade da vez, ao invés dos seios porcamente cobertos da mulher que
carrega minha aliança nas mãos.
Ele parece saber quem eu sou imediatamente.
O guarda-costas de merda que está com ela me avalia por um segundo,
então recua, após me reconhecer. E eu marco seu rosto, porque ele sabe que está
fodido.
Ele e qualquer um que esteja envolvido nessa merda do caralho.
Rebecca mal pode se mover antes que eu esteja no centro da cabine,
escancarando a vergonha que ela causa a nós dois agora.
— Luca?
Se ela grita depois de me reconhecer, eu não me importo. Mas eu tenho
punhos ansiosos para descontar tudo que tive de aguentar no dia de hoje – e
agora isso – na cara estúpida do homem que ousou almejar o que é meu.
O que foi dado a mim.
E o que é apenas meu.
— Luca, seu puto do caralho, para com essa merda! Vão chamar a
polícia e o seu pai vai comer a porra do nosso cu, seu desgraçado!
Meu primo tenta me tirar de cima do rapaz inconsciente, jogado sobre o
sofá, com o rosto aberto e manchado com o sangue que arranquei de sua pele
com meus dedos ansiosos, moendo os ossos do seu nariz na porrada.
Rebecca, puxada pelo soldado Fioderte, chora e pede que eu pare, mas se
ela acha que isso vai adiantar, está enganada pra caralho. E não me conhece.
Bem, ela certamente não me conhece, se não me teme. E isto é um erro.
Não há respeito se não há medo.
Eu aprendi isso cedo, como fui capaz de esquecer?
— Eu não fiz nada! Ele não tocou em mim! Aldo esteve aqui o tempo
todo, Luca, por favor, pare!
Seus berros enchem minha cabeça e eu apenas esmurro, esmurro e
esmurro mais. Os vizinhos da cabine ao lado saíram correndo e seguranças
apareceram. Mas ninguém ousou se meter. Nem mesmo quando meus braços já
estão manchados com o sangue escarlate que arranco da sua face amassada.
Eu me afasto quando o toque começa a ficar mole e saio de cima dele e
seu look de playboy – agora destruído – limpando o suor que escorre pela minha
têmpora. Isso espalha sangue em meu rosto, mas estou além de me importar com
isso.
Ou com a expressão de choque da minha futura esposa.
— Puta que pariu, Luca! Olha a merda! A porra desse cara deve estar
morto, seu bosta!
Fixo meus olhos no semblante choroso de Rebecca e ignoro os berros ou
ordens de Max. Sei que ele está com o telefone na mão e vejo, por um lampejo, a
expressão do fodido irmão de Rebecca, aproximando-se da cena.
Então ele é o culpado por isso?
Eu o impeço de tocar nela antes que tente e seu olhar trava uma batalha
clara contra o meu.
— Ela vem comigo. — Sou claro em minha ordem e reivindicação. O
olhar marrom de Matteo Fioderte arde na minha direção e vejo seu movimento
para pegar a arma. Eu faço o mesmo. — Só tenta, seu fodido do caralho! Tenta e
eu destroço essa tua cara de merda!
Matteo ri.
— Você não vai a lugar nenhum com a minha irmã — promete, correndo
os olhos para cima dela, que ainda chora copiosamente atrás de nós dois. — Ela
não tem culpa de nada.
— Ah, eu sei muito bem que Rebecca não tem culpa de nada — sorrio.
— Mas eu acerto as contas com você mais tarde.
Certo de que ele não tentará nada – e sabe o que significaria sacar sua
arma para mim – eu me viro para sua irmã e seguro seu pulso. Beca não luta
contra mim e me segue, aos tropeços, enquanto rumo na direção das escadas.
Consigo ouvir suas irmãs gritando atrás de nós dois, mas eu quero mais é que se
fodam.
Eu não havia dado tanta bola ao que a aliança em seu dedo representava
antes, mas agora, com o sangue do fodido que tentou tocar nela em meus dedos e
nada além de pensamentos muito perigosos rondando minha mente tumultuada,
agradeço por ter controle sobre onde vai e com quem anda.
Porque ela nunca mais sai da minha vista.
Nunca mais.
Não me importo em ligar para os soldados e pedir que limpem a bagunça,
pois sei que Max cuidará disso. Sigo reto, passando pela pista um pouco vazia
agora e só paro quando chegamos ao meu carro. Rebecca choraminga como uma
criança que se machucou e eu detesto cada parte disso.
Se fez, assume.
Eu a coloco no banco de carona e passo o cinto. Ela continua chorando,
puxando a boca como se faltasse ar.
Dou a volta e sento no banco do motorista, mas não saio da vaga antes de
respirar fundo três vezes e esticar meus dedos doloridos.
— Me desculpe, por favor… — Ela volta a falar, me fazendo respirar
fundo pela quarta vez. O peito nem enche mais. — Eu não queria vir… Eu não
queria fazer nada… Eu não fiz nada! Por favor…
— Quer dizer que alguém te obrigou a vir até aqui, vestindo essa roupa
de puta do cacete e ficar sozinha num reservado com aquele cara? — Meu berro
ecoa pelo espaço fechado e vejo o queixo de Beca tremer. O estacionamento está
vazio e eu imagino a bagunça que consegui lá dentro, surrando quem quer que
aquele fosse. — Você abriu a porra das suas pernas para ele, Rebecca? Por que
se fez isso, porra…
— Não fizemos nada! — esbraveja de volta. — Tudo que fizemos foi
conversar!
A fúria retorna e frustrado com minha inabilidade em controlá-la, soco o
volante. Vittorio não consegue controlar a própria filha? Que homem em sã
consciência permitiria que uma noiva viesse a um clube? Quando os russos
acabam de ser atacados e fariam de tudo para foder com qualquer plano que
temos?
— Aquilo parecia tudo menos a porra de uma conversinha para mim,
Rebecca — giro a chave na ignição. — Parecia que ele estava te cantando e você
estava gostando. Talvez estivesse falando de como seria gostoso se ele pudesse
enfiar o pa...
— EU NÃO FIZ NADA! — Ela grita e eu mordo o interior da minha
boca, remoendo as bochechas a ponto de sentir doer. Agora ela grita comigo? —
Me leve onde quiser para confirmar isso! Eu sou noiva e fiel a você, Luca, e
nunca seria tola de fazer o que pensa que eu poderia estar fazendo!
— Fodendo? — digo e a palavra a faz pressionar os olhos, claramente
desconfortável. Mantenho meu olhar sobre seu rosto, encarando-a com o
máximo de desprezo que consigo, controlando-me ao máximo para não voltar lá
e socar o que restou daquele desgraçado. — Gozando gostosinho nos dedos
daquele filho da puta?
— Eu nunca deixaria ninguém tocar em mim sabendo que pertenço a
você — dizer isso parece custar algo a ela e eu volto a tentar controlar minha
respiração, colocando a atenção na nossa frente. Meu peito bate forte demais e
tudo que não precisamos agora é que eu tenha a porra de um ataque cardíaco.
Com o meu silêncio, ela volta a chorar e eu respiro fundo, mas fundo
mesmo, para não gritar. Tudo dentro de mim se contorce numa mistura de raiva e
algo mais profundo do que isso, próximo do ódio, e forçadamente, pensando em
minha mãe e no que significaria fazer o que eu gostaria, controlo a minha raiva e
tento ser racional.
— Pare de chorar agora, Rebecca — ordeno. Ela se esforça para
controlar o choro e eu valorizo seu esforço, mas não é o suficiente. Ela ainda
soluça como uma criança. — Agora, Rebecca!
— Eu não consigo! — devolve num grito.
E a minha paciência vai para o saco.
— Mas vai ter que conseguir! Ou eu vou te colocar para fora da porra
desse carro e…
Antes que eu termine de falar – e amaldiçoe a porra dessa relação para
sempre – o som do vidro blindado sendo atingido nos silencia. Por reflexo,
minha mão voa para o pescoço de Rebecca e a empurro para baixo, buscando a
arma que carrego no coldre da cintura. Meus olhos se movem para cima do
espelho retrovisor e eu xingo alto o suficiente para fazer minha noiva se
contorcer.
Não é difícil para mim reconhecer o som de tiros.
Minha mão chega a tocar à porta para abri-la e enfrentar o que quer que
esteja lá fora, mas eu xingo ainda mais ao me lembrar de que Rebecca está aqui.
E estamos sendo alvejados.
Puta que me pariu.
Puta que me pariu!
Sua vida é minha responsabilidade e imagine que beleza, ter a filha de
Vittorio Fioderte morta em minhas mãos? Eu teria que me matar em seguida para
poupar seu trabalho.
Eu espio em sua direção por um segundo e com surpresa, a encontro
encolhida, entregando que foi treinada para isso.
— Fique abaixada — ordeno, nada gentil. — Vou tirar você daqui.
Giro a chave e enxergo de onde vem os tiros. Dois carros fecham a
entrada do estacionamento, mas não a saída e é para lá que eu vou, queimando
os pneus no maldito asfalto para chegar antes deles. O volante gira em uma das
minhas mãos, enquanto mantenho a outra na cintura. Eu afundo meu pé tão
fundo no acelerador que sinto o carro deslizar pela rua quando chegamos a
avenida. Os dois carros disparam atrás de nós dois e amaldiçoo o dia em que
resolvi sair de casa.
Amaldiçoo o puto dia em que nasci.
Com um toque, virando na esquina – e quase provocando um acidente –
toco o painel do carro e busco pelo número de Max. Rebecca começou a chorar,
mas eu não consigo lidar com essa merda agora.
Ou ela vive ou ela ganha um colinho.
Meu primo atende no segundo toque.
— Ouvi tiros. — É ligeiro em dizer.
— Sim, porra! São na gente!
Ele solta uma enxurrada de xingamentos em sequência e começa a
distribuir ordens.
— Onde você está, caralho?
— Acabei de deixar o estacionamento! — berro, cuidando os que me
seguem pelo espelho. Quero tirar a arma e contra-atacar, mas perderia controle
da direção. — Só podem ser os putos dos russos, Max! Porra, eu vou matar cada
um deles…
Soco o volante repetidas vezes, tentando colocar para fora toda raiva que
assume meu corpo aos poucos. Foda-se, foda-se, foda-se. Foda-se essa merda.
— Eu tô indo, porra! Só não morre!
Ele desliga e eu foco em fazer o que pediu.
Não morrer.
O que é difícil ao considerar que tenho dois carros em cima de mim, uma
noiva chorona e nenhum reforço. A busca por uma solução para isso me faz
abaixar todo o vidro e tentar acertar pelo menos a mão de algum dos filhos da
puta, mas não tenho sucesso e volto para dentro do carro ainda mais irritado,
lutando para reassumir o controle do volante.
Rebecca grita o suficiente para me enlouquecer agora.
— Se segura no banco! — ordeno, um pouco ofegante. — Essa porra vai
ficar meio complicada agora.
Meu aviso não é em vão, pois no segundo seguinte, giro todo o volante
para a esquerda e enfio o carro na direção de uma rua estreita, que por Deus,
espero que termine onde acho que termina.
Os dois carros vêm atrás de nós, quase colados na bunda do veículo e eu
passo por buracos, arranhando as laterais nas paredes do beco. Rebecca
descobriu que gritar é a única coisa que pode fazer e eu afundo o pé no
acelerador no mesmo momento em que um tiro explode um de meus espelhos.
Por sorte, saímos numa avenida larga o suficiente para ter um minuto de
alívio.
Que não dura muito.
— Eles vão nos matar! — Beca berra, deixando de lado qualquer sinal de
calmaria.
— Não, eles não vão! — eu berro de volta.
Meu telefone toca de novo e eu aceito a ligação, desviando dos carros
como se essa porra fosse GTA.
— Aonde? — Max sabe que estou fodido e não gasta meu tempo com
perguntas idiotas. Entrego nossa localização a ele e ele assente. — Estarei com
você em dois minutos. Matteo está comigo e puxei homens do seu apartamento.
Os tiros voltam com força total quando ele desliga e eu baixo minha
cabeça. O vidro é blindado, mas não é invencível. E dois minutos são o
suficiente para que ele comece a chover sobre nós dois.
Porra.
— Abaixa a cabeça, Rebecca!
Minha ordem ecoa pelo carro no momento em que puxo o freio de mão e
faço o carro girar na avenida. Minha noiva berra, eu puxo a arma e quando
paramos, me inclino sobre ela e aproveito sua janela para atirar. Nosso carro está
atravessado na rua e eu preciso de um segundo para recarregar a arma.
Se era uma execução que eles queriam, não vão ter.
Porque meus reforços acabam de chegar e um deles vai com tudo para
cima de um dos carros, se chocando contra sua lateral e empurrando o veículo na
direção de um prédio. Pedestres correm e gritam. Eu não me importo.
O outro carro é atingido por Max quando este surge num dos carros e
rodopia na avenida, com os pneus furados. Ele assume o controle da situação e
eu me permito um segundo para respirar contra o estofado do carro, absorvendo
tudo que acabou de acontecer e o fato de que saímos vivos dessa merda. Rebecca
me encara com um espanto óbvio e eu vejo a curva do seu peito subir e descer,
enquanto ela se acalma e tenta absorver os últimos acontecimentos.
Mas está viva.
Estamos vivos.
Ainda bem.
Segundo Fiona, que me aborda quando procuro por ele após deixar o
banho, uma hora depois de deixar a cozinha às pressas, desesperada por um
lugar onde pudesse gritar até meus ouvidos estourarem, Luca não está em casa,
mas volta logo.
E este foi o único aviso que deixou.
Infelizmente, sobre o grito, tudo que pude fazer foi encenar um grito
mudo debaixo da ducha potente, mas foi o suficiente.
Com os cabelos pingando sobre o carpete felpudo, usando um conjunto
de moletom que talvez agradasse outra mulher — uma mais esportiva,
certamente — mas não a mim, que me sinto como uma alienígena em tecidos tão
confortáveis, sem uma boa cinta, me movimento pela casa, tentando escapar dos
olhos atentos de Fiona, que parece muito disposta a seguir suas prováveis ordens
de manter os olhos em mim enquanto varre a sala.
Acho interessante, então, retornar para meu quarto, após uma rápida
inspeção do espaço — com portas trancadas, as quais não tive chance de futricar
— quando uma forte dor de cabeça volta como lembrança do que fiz na noite
passada.
De quão longe fui. De quão feio cometi um deslize.
Sinto falta de meu telefone quando deito no mesmo colchão de ontem,
mas já procurei por ele em todo lugar e sei que ou se perdeu, ou foi pego por
qualquer um dos homens responsáveis por limpar a bagunça que fiz, a fim de me
impedirem de ligar para meu pai e confessar tudo, antes dele mesmo descobrir e
me castigar.
Esperto da parte deles.
Mas acaba me deixando sem outra opção senão pegar no sono,
abandonada pelo meu noivo relapso e sua tendência de sair sem explicações.
Poderia, ao menos, contribuir com minha ansiedade pelo desenrolar de tudo e ter
me deixado com meu pai antes de ter ido resolver o que quer que seja que
demandou sua atenção e o impediu de dar fim ao meu sofrimento da maneira
adequada.
Mas talvez isso seja apenas parte do meu castigo.
Estou perto de pegar no sono profundamente quando sons de passos me
puxam de volta e me desenrolo da coberta fina. Batidas suaves na porta me
mandam sentar e após oferecer permissão para entrar, Fiona aparece estendendo
um telefone para mim.
— É para a senhorita — diz, atravessando o quarto amplo.
— Quem?
— Max Accorsi — fala seu nome num sussurro corrido, como se fosse
proibido e coloca o telefone em minhas mãos. Sai antes mesmo que eu possa
levar o aparelho até minha orelha e quando cumprimento o primo de Luca, não
há mais sinal algum da senhora.
— Alô?
— Buongiorno!
O grito ensurdecedor do Accorsi do outro lado da linha me tonteia e
torço meu rosto, absorvendo o baque disso.
— Já é uma da tarde… — lembro.
— Hmm. Pela sua voz, acaba de acordar do porre da sua vida… não
estou certo?
Nem tenho coragem de parecer envergonhada.
— Acordei há algumas horas.
— Porra. Luca sempre foi chato para a cacete com horários. Perdão por
não avisar.
— Acho que nem mesmo o aviso me pouparia disso — ironizo. Escuto
Max rindo do outro lado.
— Sinto muito por isso também… — Sua voz suaviza. — Mas não liguei
para te oferecer meus sentimentos pelo seu casamento com meu primo. Liguei
porque o dito cujo pediu que eu verificasse você.
— Está com ele?
Max solta uma respiração abafada.
— Sim, mas ele não pode falar agora.
E eu entendo isso como um sinal de que ele também não pode.
— Precisa de alguma coisa? — questiona, como se tivesse itens a riscar
de uma lista.
— Não… Estou bem. Só gostaria de saber por que ele saiu sem avisar e
bem… deve estar zangado comigo, considerando tudo…
Jogo verde. Quero saber onde Luca foi e se eu deveria considerar
começar a correr agora. Mas Max é mais esperto do que isso e quase posso sentir
o sorriso em seu rosto quando me responde:
— Poucas esposas fazem o que você faz e saem vivas, italiana — diz. —
Deveria se sentir grata por isso. E nada mais.
— Eu ainda não sou esposa dele — retruco, com o anel coçando entre os
dedos.
Agora Max ri de verdade.
— Talvez seja esse o motivo pelo qual ainda está viva.
Eu estremeço, assimilando cada sílaba de suas palavras, além da ameaça
implícita escondida sobre elas.
Não haverá tanta compreensão quando formos casados.
É um aviso.
— Preciso ir, bonequinha. Só liguei por ordens do seu marido, mas ótimo
papo. Podemos conversar de novo quando quiser. Eu sou zona livre, de qualquer
jeito.
— Ei, Max, só uma última coisa antes de ir…
— Diga, querida?
Não levo o apelido em consideração. Max se parece com o tipo de
homem que brinca e trata todos assim, desse jeito, sem qualquer motivação
diferente da boa e velha simpatia.
Mas nem sua simpatia pode aliviar o clima depois que eu pergunto:
— Luca matou o homem de ontem à noite, não foi?
Pergunto por que preciso saber. Porque me sinto profundamente culpada.
Mas Max não me responde imediatamente. Posso escutar sua respiração
pesar do outro lado da linha e o silêncio é torturante para a minha ansiedade e
todos os sentimentos que me colocam contra a parede pela incerteza do que
aconteceu.
Ele não fez nada, repito para mim mesma internamente, torcendo para
que a resposta seja qualquer uma além da que me parece clara. Da que sempre
esteve clara.
Luca não é um homem benevolente, tampouco compassivo.
— Sim.
E não existem segundas chances com homens como esse.
Não espero Rebecca sair do banho para deixar o apartamento que, de
repente, se tornou pequeno demais para mim, Rebecca e toda energia caótica que
me abraça toda vez em que fico perto dela por tempo demais.
Por isso, me enfio na primeira muda de roupa que encontro e sou capaz
apenas de avisar a Fiona de que estou de saída — mas que volto — para que
minha noiva não surte e cometa outra cagada sem supervisão.
O modo como ela me respondeu… ah, chegou a dar água na boca pensar
nos modos como eu poderia castigá-la por aquilo. Por ser uma menina mais
espertinha do que deveria, por tentar jogar coisas e pesos sobre mim das quais
não deveria ter nem mesmo consciência. Rebecca poderia pagar por cada uma de
suas palavras de mais cedo e eu iria me divertir muito assistindo-a se curvar sob
o meu poder, acatando cada uma das minhas ordens e sendo resultado de uma
parte muito criativa da minha imaginação.
Na minha cabeça, a imagem dela curvada, os lábios inchados e o corpo
em polvorosa para me receber é um dos motivos que me mantém ansioso para
que pelo menos algo de bom saia da cadeia na qual colocarão a mim e ao meu
pau em breve. Eu pretendo aproveitar cada segundo disso, porque ela me parece
o tipo que apenas espera a oportunidade para abrir as asinhas.
E eu estarei assistindo de camarote enquanto faz isso. De preferência,
com meu pau enterrado na sua boceta e com sua boca ocupada na minha.
Poupará meus ouvidos e com certeza resolverá o problema da tensão de sermos
dois desconhecidos.
Afinal, não há forma melhor de se conhecer alguém do que estando nu
em sua frente.
— O que pretende fazer com essa daí? — A voz de Max entope meus
ouvidos e eu giro a faca afiada contra meus dedos, pressionando minha barriga e
o ferimento causado por Tracy numa tentativa desesperada e inútil de escapar
das minhas mãos, com uma faca que guardava na borda da calça.
Só conseguiu me deixou mais bravo.
— Não torturamos mulheres, Luca. — Max resmunga. Ele acaba de me
dar informações sobre o bem-estar de Beca e talvez esteja amolecido por isso. —
Oferecemos morte limpa a elas.
— Ela é uma puta russa, Max — sorrio, avaliando a bagunça que Tracy
é. A estrela da Ivanova brilha em seu ombro, coberta por um pouco de sangue
que eu consegui para deixá-la mais brilhante. — Há uma boa diferença.
— Ainda é uma mulher — retruca. — E temos mais o que fazer além
disso.
Vejo o movimento sutil de meu primo ao puxar sua arma. O cabo
cromado da Beretta — sua arma de estimação — reluz contra a luz da sala mal
iluminada e eu grunho, reconhecendo o olhar de decisão no rosto de Maximus.
Normalmente, meu primo apoia a maioria das minhas ideias. Se eu sou
louco, ele é o dobro. Mas Max tem limites bem estabelecidos no que fazer ou
não, e ver uma mulher sofrendo não é algo que meu primo aguente, o que pode
ser considerado uma fraqueza, mas… É quem ele é. E não é como se houvesse
muita compaixão, considerando o fato de que ele tem coragem de sobra para
puxar a arma, apontar e disparar sem qualquer peso na consciência
posteriormente.
É apenas o sofrimento que o incomoda.
— Espere — ordeno, quando ele já está com o dedo roçando contra o
gatilho. — Ela pode saber algo sobre Alexei.
— Está aqui há quarenta minutos e não disse nada, Luca — resmunga e
minha paciência se encerra. Considero expulsar Max da sala, mas para sua sorte,
Oliver entra com uma foto nas mãos no mesmo instante em que a ideia passa na
minha cabeça.
— Nome? — É tudo que pergunto, esticando os dedos para me
aproximar novamente da mulher no centro da sala. Sua cabeça pende para frente
e os cabelos há muito já sumiram, criando um pequeno tapete dourado sob
nossos pés.
— Inessa Sidorova — enuncia, passando a foto para meus dedos
sangrentos. — Nasceu em Moscou. Mudou-se para cá aos quinze anos e trabalha
numa das casas dê prostituição da Ivanov.
Oh, que surpresa…
— E este da foto seria…
A cabeça de Inessa sobe e vejo seus olhos buscando a fotografia. A boca
inchada não é capaz de emitir algum som reconhecível, mas reconheço o
desespero quando o vejo e é isso que há em sua expressão ao enxergar o pequeno
menino de cabelos castanhos do qual tenho conhecimento agora.
— Leonid, seu filho.
Tenho a mesma sensação de ter ganho na loteria.
Vejo em Max as pequenas fagulhas de realização enquanto percebe o que
podemos conseguir aqui.
— Maldito… — A vaca sussurra em russo, mas eu posso entender essa
palavra. Já me acostumei com ela a esse ponto.
Para corresponder, coloco a foto em preto e branco de um menino de
aparentemente sete anos, uniformizado como um pequeno jogador de futebol, na
frente do seu rosto.
— Não toque nele — fala, deixando sangue escorrer pelo queixo.
— Leonid é importante para você, então?
— Não toque nele.
Volto a olhar para Oliver.
— Onde ele mora?
— Não!
— Brighton Beach, senhor. — A pequena Rússia. Sempre ela. —
Consigo uma equipe em trinta minutos.
— E aí será o fim do pequeno Leonid… — cantarolo.
— O que você quer, demônio?
Ela usa sua língua materna novamente e eu paro em sua frente, agarrando
seu frágil queixo. Será que Inessa tem noção da minha força? Será que tem
noção do quanto estou me controlando agora?
— Na minha língua, puta — xingo.
Ela fecha os dentes e se remexe na cadeira frágil de madeira.
— O que você quer para entre-lo em paz?
Um sorriso toma conta dos meus lábios.
— Quero saber quem é Alexei Ostarkov e onde posso pegá-lo.
Pelo lampejo de medo em seus olhos, tenho certeza de que ela sabe muito
bem quem ele é.
E o que significará entregá-lo. Mas entre o filho e o traficante, tenho
certeza de que seus limites estão bem estabelecidos. Pessoas comuns são assim.
Assumem suas fraquezas num piscar, sem nem mesmo pensar. São apenas...
Fracas.
Uma hora depois, permito que Max dispare e o corpo de Inessa cai com
um baque contra o chão.
A frustração me invade em vários níveis, pelo monte de buracos aos
quais a Sidorova não soube responder — não importando o estímulo para tal.
Tudo que me deu foi a descrição superficial de Alexei, que bate com a de outros
milhares de russos vivendo em nosso estado e seus clubes favoritos. Opala
Cocktails, o clube que invadimos, foi mencionado, mas imagino que eu tenha
perdido a chance de colocar as mãos num homem de maior poder dentro da
hierarquia Ivanov, considerando o que Inessa nos passou, de que ele comanda o
tráfico local.
Ela não foi capaz de me dar horários, localizações e tampouco mais
nomes. A puta manteve a boca fechada até o final e fez o que podia, como se
para proteger algo muito maior do que ela e sua vida. Do que seu filho.
Mandei que executassem o menino há cinco minutos, sob um olhar bravo
de Max. Mas ele não foi louco de falar nada.
Ninguém é, considerando meu humor de bosta.
Tudo que faço, depois de trocar a camiseta e limpar o sangue de Inessa
das mãos, é esperar a equipe de limpeza chegar e dar-lhe instruções muito claras
sobre o que fazer com o corpo. Dessa vez, Max não parece incomodado.
Eu o deixo ali, pois ambos sabemos que tenho coisas importantes a fazer
antes do final do dia. Um pouco de sangue mancha os nós de meus dedos e eu
esfrego com ainda mais força e a ajuda de lenços umedecidos, antes de
estacionar o carro na garagem do prédio e chegar ao elevador.
Ao parar na cobertura, sou recebido por uma casa bem diferente daquela
que deixei há algumas horas. O chão lustrado brilha, refletindo o lustre que
pende do teto, e o perfume é aquele que aprovei, nada doce ou irritante como
minha mãe espalha pela mansão. O sumiço do cheiro de vômito de minha doce
noiva é uma grata surpresa.
Melhor ainda seria se ela não estivesse sentada em meu sofá, como uma
estátua, encarando as janelas, como se houvesse algum mistério por trás da vista
do entardecer. O céu está disposto em tons de laranja e azul, mas nada fora do
comum. Nada que valha meu tempo.
Ao me fazer notar, ela abandona a paisagem e vira-se para me olhar, com
certo alívio expresso nos olhos que hoje parecem mais caramelos do que
castanhos.
No mesmo segundo em que ensaio algo para dizer sobre seu estado —
muito melhor do que ao acordar — o telefone toca e sou obrigado a puxá-lo.
Recuso a ligação ao ver o nome de meu pai, mas não posso escapar das
mensagens que ele deixou em sequência. Em especial, não da última:
TONY: A garota deve estar na minha frente em trinta minutos.
Com a ordem, afasto qualquer gracinha e volto a encarar Rebecca, que se
pôs de pé.
— Estamos saindo em quinze minutos — anuncio, pouco antes de lhe dar
as costas e subir os degraus, amaldiçoando o dia em que decidi me meter nessa
confusão desgraçada.
A ordem de Luca para que eu me apresse e recolha tudo parece tão
ríspida quanto ele pretendia que soasse, mas eu não me surpreendo com qualquer
falta de explicações do porquê de ter me mantido aqui durante todo dia, e corro
para o quarto a fim de recolher tudo que parece ser meu. Estou de volta na sala
em menos de dez minutos e me sento em seu sofá cinza e espaçoso, com uma
aparência de que acaba de sair da loja, para esperá-lo. Passo meus olhos sobre a
decoração do apartamento uma última vez e decido que é refinado o suficiente
para agradar ao meu gosto.
Talvez tenha objetos cinza demais e falte qualquer traço de personalidade
da pessoa que mora nele, mas se considerarmos a vista da selva de pedra que se
estende além da janela e o poço de frieza que é o proprietário, faz sentido que o
lugar pareça tão frio e se olharmos com cuidado, vazio.
Não estamos mais na Itália.
Aqui temos prédios em exagero e cor em falta. As pessoas são
mecânicas, há pouco afeto ou qualquer sentimento no modo como falam e
comemoram, e um bando de julgamentos toda vez que se entra em algum lugar.
Nestas pequenas diferenças, penso como irei me acostumar. Não venho
de um lugar exatamente caloroso, mas… temos códigos diferentes. Costumes
diferentes. Somos como uma grande família por lá e eu conheço todo mundo
desde que nasci. Além disso, eles me conhecem. E respeitam. Fui intocável a
vida inteira, mas é diferente aqui. É diferente com Luca, porque ele não me vê
como Rebecca Fioderte. Ele me vê como algo que possui.
Talvez conviver com ele vá ser meu maior desafio.
Isso se ainda houver um casamento.
Embora confie em Matteo para manter o acordo que provavelmente fez
com Luca sobre a mentira de ontem à noite, Bianca e Petra são um caso diferente
e com certa pressão, assim como eu, quebram. Ainda mais se a pressão vier de
Vittorio e sua cinta.
Há anos, não precisa usá-la em mim, mas ainda posso sentir a ardência
de seus castigos por pisar fora da linha ou fazer qualquer coisa para envergonhá-
lo. Apenas um olhar torto sempre pode nos custar muito, portanto, eu e minhas
irmãs nos acostumamos a viver dentro dos seus padrões e de suas regras.
Quebrá-las nunca soou como algo atrativo a se fazer. Pelo menos não para mim.
Não até ontem.
Observo o relógio posicionado sobre a mesa de centro e enrugo meu
rosto ao ver que já se passaram trinta minutos desde que ele chegou.
Ele não estava sujo de sangue, então por que demoraria se aparentava
tanta pressa é praticamente rosnou que eu deveria correr?
Impaciente com a sua demora, decido subir as escadas e ir ver o que está
fazendo. Que se dane o que ele pensará disso, se pode me apressar, também
posso exigir que cumpra seus horários.
Meus pés se arrastam contra o piso do corredor e eu ultrapasso o quarto
onde ele me colocou ontem. Há mais três portas no corredor e não é difícil
descobrir qual é a do seu quarto.
A última.
E a única que está entreaberta.
Devagar, sem intenção de alertá-lo ou assustá-lo, me aproximo da porta
tingida de preto e coloco meus pés no carpete felpudo no interior do cômodo.
Rapidamente olho ao redor, analisando superficialmente o seu gosto
pessoal para decoração — cinza, cinza e mais cinza, com pintadas de preto e
branco — e pouso meu olhar sobre a sua figura. Ele está virado de costas para a
porta, com a cabeça baixa e o tronco nu novamente, dessa vez com o detalhe das
gotas d’água que ainda escorrem pelas suas costas.
E com uma dose de concentração que me permite passar despercebida
nos primeiros minutos, ele parece estar ajeitando alguma coisa em sua barriga.
Vejo os ombros se movendo e as mãos trabalhando em alguma coisa, e penso se
deveria me aproximar ou simplesmente correr, mas todos os pensamentos são
interrompidos quando encontro, espalhado sobre a cama, materiais de primeiros-
socorros, como gaze, álcool, medicamentos antissépticos, agulhas e linha.
— A curiosidade matou o gato…
Seu murmuro rouba minha atenção dos objetos e movo meu olhar para
cima dele, encontrando na lateral do seu abdômen definido, um corte que não
pode ter menos de quinze centímetros. O tecido vermelho aparece, mas não
parece profundo o suficiente para que tenha de ir ao hospital, embora sangue
escorra e manche a calça que ele usa, posicionada abaixo da linha da cintura.
Bem abaixo. Dá para ver as entradas bem-marcadas da sua pélvis e ter a breve
noção de que ele não tem pelo algum na barriga.
Desvio os olhos assim que alcanço o ponto mais baixo onde posso ir e
miro seu rosto. O ferimento não parece simpático, fruto de alguma
brincadeirinha.
— O que aconteceu? — Minha pergunta escapa num sussurro.
Luca já tirou os olhos de mim e um gemido baixinho escapa da sua boca,
fazendo-o cravar os dentes no lábio, quando passa a agulha contra a própria pele.
As mãos, num momento de fraquejo, deixam a agulha cair e ela fica pendurada
pela linha.
Luca respira fundo.
— Nada fora do comum — responde, frustrado. — Só um sábado
normal.
— Costuma sofrer tentativas de homicídio com facas aos sábados? —
arqueio uma sobrancelha.
— Claro — ironiza, puxando a agulha de volta. Os dedos são hábeis e
ligeiros, e parece ter uma boa resistência à dor. — Você também não deixa as
segundas reservadas para os problemas com armas de fogo?
Mais destemida do que me lembro de ser, decido me aproximar.
— Quem fez isso?
— Alguém que precisava fugir de mim — responde, com um sorriso nem
tão animado. A dor parece estar lhe incomodando, embora pareça ser algo muito
distante do que é necessário para derrubá-lo. Talvez ele só não goste de parecer
sentir alguma coisa na frente de outros.
— E conseguiu?
O olhar de Luca fica sombreado por um instante e ele me encara. Não há
fuga desse tipo de olhar e minha respiração some por um segundo.
— Você já sabe a resposta disso.
Ignoro a resposta e não procuro saber mais. O sangue que escapa do
ferimento já começou a me incomodar e sua inexperiência chocante diante de
agulha e linha também.
— Permita que eu feche isso para você — sugiro, mas não estou
realmente aberta a um não.
Pego a agulha de suas mãos sangrentas e ele mantém o olhar parado
sobre mim e em cada movimento que dou, guiando-o na direção da cama, para
que eu sente na beirada e possa enxergar o que tenho de fazer.
Não deixo de notar a risadinha cômica e abafada que ele solta. Mas
ignoro.
— Per Dío! — A exclamação escapa em italiano e corto a linha usando
os dedos. — Você só piorou isso daqui.
— Nunca aprendi a costurar… — grunhe, quando eu passo mais um
pouco de antisséptico e limpo a área. — Acho inútil. Minha mãe faz para mim
quando preciso.
Bufo.
— Poderia ter apenas me chamado. Costura é uma das coisas que
aprendemos antes mesmo de andar… — atravesso a linha pelo corte e ele chia
baixinho. — Não iria retalhar você como um açougueiro.
— Pode me culpar por pensar que sim? — ri, como se a ideia de confiar
em mim fosse uma mera piada.
Não respondo, concentrada em não lhe dar nada além de uma pequena
cicatriz e trabalho com delicadeza no machucado, que com certeza está doendo
mais do que parece. Sei que homens feitos raramente procuram o médico a não
ser que algum de seus órgãos esteja pendendo para fora do corpo, mas é uma
mania irritante que serve apenas para manter seus orgulhos de macho intocados
pela ideia de não precisar de ninguém, como se a ciência e a medicina
O silêncio domina o quarto enquanto escuto apenas meus pensamentos e
Luca mantém a cabeça baixa o tempo todo, prestando atenção no que faço na
parte inferior de sua barriga, perto demais do seu…
Não coloco os olhos ali.
Nem penso nisso.
Mordo minha boca perto do final e puxo a linha para cima, ajustando
tudo.
— Você fica muito bonita quando está concentrada em não me machucar,
italiana.
Falho em não olhar para cima e encontro seu olhar direcionado
diretamente para o meu, como se esperasse a brecha. O sorriso em seus lábios se
alarga e eu odeio a quentura que sobe, além da sensação de formigamento no pé
da barriga, bem em meu ventre.
É diferente… Estar perto assim.
Me deixa ansiosa por algo que nem mesmo sei o que é.
Para fugir da sensação de estar queimando por dentro, tento baixar a
cabeça e me livrar dos materiais, mas ele não permite ao decidir segurar meu
queixo, roçando a ponta dos dedos sujos contra a minha pele.
Embasbacada, eu deixo a linha cair ao meu lado e suspiro, sem controle
algum de minha respiração que está fora do ritmo, sem ter qualquer impulso
capaz de me afastar das mãos dele.
Luca parece estar apenas esperando que eu abra a boca novamente e que
anuncie o que ele quer ouvir, enquanto seus olhos demoram sobre meu rosto,
devorando cada detalhe, subindo o polegar pela bochecha, enquanto ele
sutilmente impõe sua presença no meio de minhas pernas, separando-as com o
seu corpo e tornando o ar ao meu redor muito difícil de ser processado. Acho até
que estou um pouquinho tonta quando digo:
— Terminei.
Seu polegar continua girando em círculos na minha bochecha e eu tento
não me sentir um pequeno cordeirinho enquanto ele faz isso. É desconcertante
estar tão perto e sentir seu cheiro assim. Mal consigo me sentir verdadeiramente
enjoada com o pouco de sangue que espalha na minha bochecha ao tocá-la, pois
estou tão concentrada em seus olhos que mal lembro de quem sou, onde estou ou
para onde devo ir.
E ele não fala nada.
Apenas continua me tocando, olhando, estudando. A boca está
entreaberta e lufadas fracas de ar escapam, acompanhando o brilho intenso dos
olhos. As íris azuis praticamente queimam, com algo mais profundo do que
posso compreender e eu não desvio.
Mas então, ele abaixa a mão e meu corpo sente falta da novidade do
toque e da asperidade da palma de sua mão contra minha bochecha. Quase peço
que faça de novo, que me faça sentir o que fez agora, mas ele parece
determinado a cessar as coisas antes que cheguemos mais longe do que
deveríamos e eu noto o brilho de seus olhos diminuindo, conforme ele pisca
algumas vezes e se afasta, como se tudo não tivesse passado de um mal-
entendido.
Eu engulo em seco e tento não ligar para a pressão surpreendente entre
minhas pernas ou a sensação estranha de que o ar ainda não está chegando da
maneira como deveria aos meus pulmões.
— Obrigada por isso — fala, sem rodeios. Mas parece bem mais distante
do que estava há um minuto e isso me pega de surpresa. O que foi aquilo? — Te
encontro em cinco minutos. Lá embaixo.
Isso parece ser uma forma de me mandar embora e eu fico de pé, com as
pernas meio bambas. Com muito esforço, encontro uma forma de sair do quarto
sem voltar e perguntá-lo o que viu que tanto lhe interessou.
Ou assustou.
Mais tarde, ao chegar na mansão Accorsi, sinto como se todos soubessem
o que fizemos. Ou o que não fizemos.
Eu e Luca mantemos uma distância respeitosa um do outro e desde que
deixamos o apartamento, dois soldados Accorsi se mantêm grudados em mim
como sombras. A presença deles, embora assustadora, também é reconfortante,
pois me traz ao lugar em que sempre estive.
Intocável.
Ainda assim, ao encontrar o olhar afoito de meu pai e a expressão
indefinida de minha mãe, sei que estou longe de escapar dessa ilesa.
Eles estão sentados ao lado de Tony e Rosalind e ficam de pé quando
entramos na sala de visitas íntimas. É menor, e menos enfeitada para
impressionar, como se aqui tratassem dos assuntos importantes e privados.
Retratos de família ocupam as paredes e os espaços vazios, tornando-a o cômodo
mais pessoal que vi em toda mansão.
Mas tudo que importa são os olhares que nossos pais oferecem na nossa
chegada. O olhar do Capo Accorsi sobre Luca é tão significativo quanto o de
meu pai sobre sua criação.
Eu.
— Senhores. — Meu noivo cumprimenta a todos, acenando com sua
cabeça na direção deles. Suas mãos estão escondidas no bolso da calça jeans e
por sorte, seu cabelo secou no caminho. Com certeza não passaria a imagem
certa se parecesse recém-saído do banho.
— Onde diabos você estava? — É a primeira coisa que deixa a boca de
Vittorio enquanto me olha como se pudesse me desmontar.
Oh, céus.
Eu me encolho e torço para que pareça invisível ao lado de Luca e sua
imponência natural, acompanhada de sua confiança inabalável, mas meu pai não
irá tirar os olhos de mim, muito menos deixar qualquer coisa passar batido, não
importa o quão grande seja o homem que ele escolheu para ser meu noivo.
Como se notasse a brecha que meu comportamento abre em seu plano,
Luca dá um passo para a frente e me cobre parcialmente, tomando a frente da
situação. Ele pigarreia, chamando a atenção para si por um momento e então
começa:
— Após o incidente da noite passada…
— Não, você não diz nada! — Vittorio esbraveja, erguendo um dedo na
frente dos olhos. — Rebecca é quem vai falar.
Quando todos os olhos da sala voam para cima de mim, me sinto tão
pequena quanto uma formiguinha. Minha barriga dá giros e giros, e tenho
certeza de que irei desmaiar caso abra a boca.
E a pressão que os olhos de Luca fazem, quando ele se vira para me
encarar, sendo muito explícito nas suas coordenadas silenciosas de que eu não
devo dizer nada além do que combinamos, não ajuda.
E eu me vejo gaguejando antes mesmo de abrir a boca.
— Papai…
Vittorio levanta sua mão antes mesmo de eu conseguir pensar em uma
mísera frase. Tony encara Luca com os punhos cerrados e eu vejo a frustração
latente na expressão de meu noivo, quando ele percebe que eu ferrei tudo.
— Todos fora! — Vittorio ordena, sua voz se sobressaindo a qualquer
outra. Antônio, ultrajado, olha em sua direção como se ele tivesse ficado louco.
— Agora!
As esposas são as primeiras a sair. No caminho da porta, Verônica me
encara com ódio o suficiente para me fazer ver que ela concorda com qualquer
coisa que esteja em meu caminho agora. Nem mesmo tenta me ajudar, porque
meu caráter talvez esteja em dúvida neste momento. E confia que meu pai seja o
homem certo para lidar com isto.
Rosalind oferece um breve sorriso para mim, mas parece imparcial ao
encarar o filho. Ainda assim, sopra uma recomendação singela para ele ao passar
por nós dois:
— Comporte-se.
Tony ainda está aqui quando meu pai começa a falar.
— Onde você estava, Rebecca?
Respiro fundo e tento reunir alguma coragem.
— Fomos ao parque, papai, e depois jantamos. Luca me fez…
Paro quando ele levanta a mão novamente.
— Me diga a verdade, bambina.
— Se quer a verdade, por que não pergunta a mim, Vittorio?
Os olhos escuros de meu pai reluzem como carvão aceso na direção de
Luca, uma vez que ele decide abrir a boca. E eu considero isso — sinceramente
— uma péssima escolha.
— Acha que pode me enganar, americano?
Luca ri e nenhuma gota de nervosismo tem espaço em seu semblante
moldado em confiança pura.
— Acho que posso tentar.
Então a voz de seu pai corta qualquer gracinha.
— Luca! No meu escritório! Agora!
Os olhos azuis do menino se chocam contra os do pai e ele não move um
músculo.
— Aguardarei o final da conversa de Rebecca com o seu pai — afirma,
voltando a encarar Vittorio. Ele parece ávido, encarando o homem ao meu lado
como um inimigo — Ele parece ter dúvidas do que fizemos na noite passada.
Como se minha palavra não bastasse.
— Ele pode perguntar à filha e ela lhe dará a resposta. — Tony rosna,
pouco se importando para o que acontece comigo. — Mas você, vem comigo. E
vem agora.
Diante da intensidade da ordem, não vejo como Luca poderia se negar a
ir. E nem ele. Rapidamente, oferece um olhar demorado sobre meu rosto uma
última vez antes de ser obrigado a se retirar por uma porta anexa, seguido pelo
pai.
E eu fico sozinha com o meu.
E não gosto nada do que vejo em seu rosto uma vez em que está livre
para fazer o que quiser.
— Você tem noção do que fez?
Arqueio a sobrancelha e dou de ombros, fazendo-me tão de desentendido
quanto possível.
— Que eu saiba, não fiz nada.
Isso não contribui para o humor de meu pai, que está parado atrás de sua
mesa. O rosto está vermelho como se fosse explodir e já desabotoou os primeiros
botões da camiseta, como se lhe faltasse ar e fôlego para continuar me xingando.
Contando no relógio cuco da parede — uma herança antiga de família,
como tudo que está dentro dessa casa — já se passaram quinze minutos desde
que entramos aqui. E nestes quinze minutos, minha cabeça não conseguiu ficar
aqui e responder atentamente às perguntas de Tony.
Felizmente, eu não preciso de muita concentração para enrolá-lo numa
mentira tão inocente quanto esta, pois sei que embora ele não acredite em um
terço do que estou dizendo, vai preferir acreditar, assustado com a outra
possibilidade — e com o que isso significaria para seu tão querido acordo.
Por isso, minha atenção está lá fora e no modo como Rebecca se
encolheu quando seu pai olhou em sua direção. Mal conseguiu abrir a boca,
deixando claro o controle que o homem é capaz de exercer sobre ela sem nem a
ameaçar diretamente e o quanto estamos fodidos, considerando que ela com
certeza não foi capaz de segurar a mentira por mais de cinco minutos depois de
olhar em seu rosto.
Porra.
Se eu tivesse tido a oportunidade de falar por ela, teríamos saído dessa
ilesos...
Mas Vittorio é esperto, tenho de dar isso a ele. Sabia por onde conseguir
a verdade e interpreta literalmente o lema de não confiar em ninguém,
principalmente em um mafioso de moral tão questionável quanto eu.
— Você continua a levar isso como uma brincadeira, Luca! É
impressionante a sua capacidade de ser um idiota!
Eu me distraio durante o sermão, mais do que acostumado a sentar nesta
cadeira e baixar a cabeça enquanto ele fala. Controlar meu temperamento nesta
situação não é tão difícil, pois tive tempo o suficiente para aprender a ignorar
tudo que meu pai diz.
O que é algo muito diferente do que acontecia com o menino no qual ele
despejava as palavras mais cruéis que possuía em seu repertório, sem dó, nem
piedade. Aquele menino, que não sabia de modo algum, como lidar com aquele
monte de merda sendo jogada sobre sua cabeça, acabou internalizando tanto
cada pedaço daquela porcaria, que hoje, já não faz mais diferença. Eu aceitei
tudo o que disse e usei para me blindar contra ele mesmo. E vem funcionando
perfeitamente.
Quando você sabe quem você é, ninguém pode machucá-lo.
Quando ele fica em silêncio por mais de um minuto, fitando-me com os
olhos pálidos, decido falar e terminar com essa merda:
— A garota está inteira, Tony — falo firmemente — Eu a mantive segura
e a devolvi intacta ao seu pai. Então, me parece óbvio que ela não deveria ser
nossa preocupação aqui e sim o ataque que sofremos ontem à noite.
Meu pai bufa e eu me inclino, aproximando-me da mesa.
— Me diga, o que o senhor já fez em relação a isso? Ou passou a manhã
inteira se preocupando com o estado de Rebecca Fioderte, depois de eu dar
minha palavra de que ela estava bem e intocada junto comigo?
Cuidado, minha mente sopra o aviso. Meu pai, através do olhar frio e da
expressão inexpressiva, parece me alertar do mesmo, sem precisar abrir a boca
para tal.
— Está me cobrando, Luca? — Sua voz escapa em um fiapo incrédulo.
— Com que autoridade acha que pode fazer isso?
Eu respiro fundo e procuro controlar a minha vontade de falar mais, ser
mais e exibir sua incapacidade de enfrentar a ameaça do jeito que precisa ser
enfrentada. Com isso, baixo o rosto novamente, encarando minhas mãos
avermelhadas e machucadas, pelo frio e por toda ação de mais cedo. Pelo
menos, Rebecca melhorou as coisas no ferimento da barriga. A dor se parece
apenas como pequenas pontadas agora.
— Coloque-se no seu lugar, soldado — diz em desprezo total. — Ou eu
farei isso por você.
— Não foi minha intenção desrespeitá-lo, senhor — murmuro,
espremendo o orgulho dentro de mim.
Minhas veias parecem arder por toda raiva que corre por meu corpo, mas
me mantenho firme e levanto a cabeça, encontrando seus olhos com a mesma
segurança de sempre, sem qualquer sinal da fragilidade que ele gostaria de
encontrar, apenas para me massacrar um pouco mais, explorando isso a seu
favor.
Ele se fortalece através da fraqueza alheia. Sempre foi assim.
— Não irá mais acontecer — prometo.
Ignorando minha presença, ele usa uma de suas canetas de ouro —
presente de algum baba-ovo com dinheiro — para rabiscar alguns papéis.
— Você tem sorte de ser necessário — declara, a atenção longe de meu
semblante. — Ou encontraria finais muito diferentes para suas aventuras,
moleque.
E diante de sua breve ameaça, tudo que posso fazer, como um bom
soldado, é ficar quieto.
A coisa que eu mais odeio em toda minha maldita vida, mas que ele me
impõe toda vez que tem a chance, a fim de se sentir superior. A fim de pisar em
mim enquanto ainda pode, vestindo seus trajes de Capo e sentando-se na cadeira
do chefão.
Mas tudo tem um fim.
E o de Tony — se depender de mim — não será doce.
Deixo seu escritório depois que ele toma um farto de me repreender por
ajudá-lo, soando como uma puta ingrata e saio pelo mesmo caminho, usando a
sala de visitas menor. Não é surpresa encontrá-la vazia, mas algo no modo como
a sala cheira, me parece errado.
Eu não temi nada durante qualquer segundo do encontro com nossos
pais, mas para Rebecca foi diferente. Durante todo o trajeto até aqui, podia notar
a tensão carregada em seus ombros e a falsa paz que exibia em sua postura e
semblante, talvez mais do que acostumada a enganar os outros sobre seus
verdadeiros sentimentos.
Mas não a mim. Surpreendentemente, posso lê-la muito bem, sem nem
fazer esforço.
E quando ela encontrou Vittorio, ficou muito claro o tipo de medo que a
fez gaguejar e declarar a verdade como melhor opção — seria a menos dolorosa.
É isso que faz com que eu abandone a sala em uma velocidade maior,
caminhando pelos amplos corredores vazios com menos paciência do que de
costume. Por sorte, topo com Donatella nas escadas que levam ao segundo andar
e seguro minha irmã por um instante.
— Sabe onde está Rebecca?
— Oi para você também — responde. — Bom ver que sobreviveu.
— Sem idiotices, Dona — rosno. — Rebecca. Você viu?
Dona revira os olhos e aponta para cima.
— Acho que está com o pai no quarto que ela ocupou da última vez.
Escutei vozes vindas da ala deles.
— Sozinha?
— Seus irmãos não vieram para cá. Sei que a mãe dela está com a
mamãe no jardim de inverno, mas... o que aconteceu? — Dona é rápida em
reconhecer quando há algo de errado e sua expressão altera-se totalmente ao
visualizar meu semblante de preocupação.
Mas eu apenas balanço a cabeça e subo as escadas, pulando de dois em
dois.
A mansão quilométrica — e velha como o diabo — é grande o suficiente
para que seja dividida em alas. A que os Fioderte ocuparam há dois meses, é a
mais distante da entrada e portanto, a mais reservada. Qualquer som poderia ser
facilmente abafado pelos quartos que vem antes.
E tenho certeza de que Vittorio sabe disso.
Não corro como um desesperado, pois não sou um idiota. E porque há
uma pequena parcela de chance de eu estar errado. Não acontece com
frequência, mas acontece.
E seria bom estar errado nisso.
Nenhum filho merece um carrasco como pai; e falo isso com mais
experiência no assunto do que gostaria.
Meus passos ligeiros logo me levam até a ala dos quartos de hóspedes e
eu reconheço a porta onde ela ficou. Mas eu não me presto a bater ao escutar um
estalo alto vindo do lado de dentro e empurro a madeira com o ombro,
adentrando o quarto de maneira tão rápida que não dou a Vittorio a chance de
ignorar minha presença.
O cinto grosso de couro pende em sua mão e Rebecca está encolhida
contra a cama. A posição quase fetal torna respirar um ato complicado para mim
e tenho certeza de que a raiva que me consome vai levar a melhor hoje, na sua
costumeira luta com a razão.
O capo da Cosa Nostra está em estado de cólera, com as bochechas
vermelhas, transpirando como se bater nas pernas da filha de dezessete anos — e
tendo deixado marcas, o canalha — tenha exercido grande esforço físico. Meus
olhos passam sobre ele com a mesma frieza que passaram sobre muitos antes.
Mesmo assim, eu permaneço longe de sua garganta. E ele continua respirando.
— Como ousa?
Vittorio umedece os lábios antes de falar, afastando-se dois passos para
longe de Rebecca. Ela chora e posso ver suas lágrimas manchando a colcha. O
cabelo cobre um pouco de seu rosto e eu detesto a sensação de ser o responsável
por esta desgraça.
— Ela é minha filha e descumpriu minhas ordens. — Vittorio fala como
um desgraçado cheio de razão e eu aperto a maçaneta, considerando arrancá-la e
enfiá-la por dentro dele, até sair na sua boca. — Isso não é da sua conta,
moleque. Saia.
— Não é da minha conta o caralho! — rosno e os olhos dele brilham em
desafio quando me coloco na sua frente. — É a minha noiva encolhida na cama à
sua frente. Ela é minha responsabilidade, Vittorio e agora, você acaba de me
ofender.
— Quer mesmo uma puta suja como esposa? — Ele gira o cinto entre os
dedos e penso no couro em volta de seu pescoço gordo. — É com o que deve
estar mais acostumado, não é, rapazinho?
— Não faz diferença para você o tipo de mulher que eu gosto. — Em
passos firmes, chego até a cama. O Capo me enxerga com desconfiança, mas
não se move. Ele sabe que a razão está do meu lado agora. Sabe que não tinha o
direito, não importa quem seja. Homens feitos devem respeitar os juramentos e
responsabilidades acima de tudo. — Mas saiba que a minha não vai carregar
marcas.
A resposta arranca uma risada curta dele, mas eu pouco me importo com
a sua merda e ajudo Rebecca a sair da cama. O rosto está inchado como se
tivesse começado a chorar desde que subiu e eu me esforço para entender o
turbilhão de sentimentos que me consomem, querendo jurar vingança contra seu
pai por desafiar a minha autoridade desta forma, mesmo sem poder nenhum para
ir contra um maldito como ele.
Há uma hierarquia na vida de toda mulher em nosso círculo. E acima de
qualquer outro, está seu marido. Vittorio, como um, reconhece isso. E sabe o
quão sério é quando se mexe no que é de outro.
E por isso recua, recolhendo seu cinto e sua fúria. Meu olhar pesa sobre
ele e Beca mantém o rosto abaixado, como se tivesse vergonha de olhar para
mim agora.
Ele está prestes a sair do quarto, após afivelar seu cinto, quando diz:
— Pare de drama e endireite-se. Sairemos em quinze minutos.
É sua última ordem antes de nos deixar sozinhos.
TRÊSMESES
DEPOIS
O cheiro da maresia, a visão da areia branquinha e a leveza do ambiente
me conquistam assim que coloco os pés nos Hamptons, que nada mais é do que
um grupo de vilas de luxo, localizado no litoral do estado de Nova York, onde os
Accorsis têm o costume de passar os dias quentes ou, como faremos nesta
semana, celebrar casamentos.
Assim como eu, minhas amigas parecem tão encantadas quanto,
enquanto adentramos a enorme mansão branco-gelo pertencente à família de
Luca. É tão grande que faz meu queixo cair, enquanto encaro as enormes
pilastras que sustentam sua fachada harmoniosa e as diversas janelas com vidros
quase transparentes de tão limpos. Com a luz do sol batendo contra, parece
ainda mais encantadora e irreal, como um castelo antigo, há muito perdido.
— Mamma mia! — Petra expressa a reação de todos nós quando
chegamos ao que se parece com o hall principal da mansão, que a separa em
várias áreas e onde há a escada dupla, que leva para os dois lados do segundo
andar.
Há um lustre de cristal pendendo sobre nós e o piso de mármore branco
nos oferece a sensação de andar na neve.
— Você se deu bem, hein, Rebecca... — Nina comenta e eu não posso
deixar de concordar.
É uma casa linda.
— Espero que a decoração as agrade. — Rosalind, que nos recebeu na
porta e acompanhou para cá, comenta, desfilando em um modelo azul-turquesa
de babar. As pernas longas e finas terminam num sapato de salto Ferragamo de
estampa que atrai a atenção de todas. E elogios também. — Fiz algumas
mudanças para poder tornar o ambiente mais confortável para os convidados.
— É uma bela casa, senhora Accorsi. — Me apresso em dizer quando
minha mãe me olha de canto. É o suficiente para eu entender que ela precisa que
eu seja a nora exemplar de agora em diante.
Rosalind acena em concordância, reconhecendo meu elogio.
— Suas malas foram levadas diretamente para os quartos — anuncia,
parando em frente as escadas após um pequeno tour. Não é difícil entender por
que nos dispensa. Há tantos trabalhadores e coisas que parecem precisar de sua
atenção, que é uma honra que ela ao menos tenha parado para recepcionar-nos.
Algo que meu pai, certamente, reconhece. — Nossa governanta irá acompanhá-
los até eles agora.
Com uma eficiência quase militar, a governanta da casa de praia que se
apresenta como Whitney e tem os cabelos grisalhos, além de uma expressão
rígida e séria, aparece e nos guia escadas acima. Caminha ao lado de meu pai, e
não na sua frente, o que permite entender que ela tem experiência o suficiente
para estar no cargo — e permanecer viva.
Somos deixados aos poucos em nossos dormitórios. Meus irmãos e
amigas ficam antes, em quartos menores. Serena, Nina e Luna dividirão um, pelo
excesso de convidados, mas não parecem incomodadas. Tampouco,
acostumadas.
Eu sou uma das últimas, apenas depois de meus pais, portanto, estou
sozinha quando Whitney empurra as portas duplas de madeira branca e me
apresenta a um quarto de tirar o fôlego. Com uma cama gigantesca centralizada
entre duas portas de correr de vidro, que permitem acesso à uma sacada ampla, é
decorado em tons de creme e dourado em certos detalhes. O papel de parede é
feminino, floral e delicado e uma penteadeira vintage está apoiada na parede
próxima a entrada do banheiro que é uma obra de arte à parte. Com chão liso e a
maioria dos detalhes em mármore creme, combinando com o quarto, parece um
spa. Há uma ducha generosa e meus olhos se animam ao enxergar a
hidromassagem no canto.
É tão luxuoso e belo que me faz sentir confortável.
Ou melhor dizendo... me faz sentir importante.
Como se eu fosse mesmo a maldita noiva da cerimônia que deve ocorrer
em dois dias.
Oh, céus...
Para minha sorte, não encontramos ninguém após voltar para casa além
dos soldados que viram o rosto ao encarar Luca e os montadores. Como um cão
de guarda, meu noivo me escolta até minha suíte.
— Sempre um prazer, noiva.
Eu bato a porta antes que ele possa abrir seu maldito sorriso de novo e
vou para o chuveiro.
Meu cabelo se tornou uma bagunça e depois da ducha, preciso trançá-lo.
Estou obviamente atrasada quando desço novamente e encontro minha mãe no
pé das escadas.
— Têm convidados a sua espera, Rebecca. Onde diabos estava? — suas
palavras em italiano entregam que estou enrascada. Estou usando um vestido
lilás de babados leves em camadas agora, com um pequeno decote em V e um
simples colar de pérolas. Pareço pura o suficiente, e com apenas meia-hora de
sol ganhei uma cor agradável.
— Conhecendo a casa, mamma — respondo, pigarreando. Sem esperar
por mim, ela começa a caminhar na direção da sala de jantar.
— Não a quero andando por aí, muito menos sozinha — diz. — Tudo
que peço é que se mantenha longe de problemas até que não seja mais problema
de seu pai. Certo, Rebecca?
Com um aceno sentido, concordo e permito que ela me conduza. Minha
mãe é alta o suficiente para não precisar de sapatos de salto, mas em cima deles,
fica ainda mais imponente. E eu ainda menor ao seu lado.
Durante o almoço, as tias de Luca elogiam meu bronze e eu
cumprimento os tios maternos de Luca com um sorriso de simpatia. São dois,
Julieta e Romero, acompanhados de sua avó materna, Francisca, está do seu
outro lado. O patriarca da família Gianotti já faleceu.
Luca também ganha elogios e eu estudo a expressão de suas primas e de
Liliana, sentada ao lado de seu pai, o consigliere da Accorsi, Bernardino Morelli
e o homem que se apresenta como seu irmão, Benito. Diferente da irmã, ele se
esforça para ser agradável.
Além deles, há mais de trinta pessoas sentadas na extensa mesa com
tampo de vidro e poltronas adornadas com cabeças de leão douradas no encosto.
É complicado dar atenção a todos, principalmente o tanto quanto exigem,
chamando a mim e Luca para todos os tipos de assuntos, mas até que
funcionamos bem. Eu mais disposta do que ele, cumprindo o papel para o qual
fui moldada a vida inteira.
E sentada ao seu lado, é impossível não sentir o perfume que exala de seu
corpo, sendo ainda mais complicado ignorar sua respiração toda vez que se
inclina para pegar algo sobre a mesa ou apertar a mão de alguém. E de propósito,
ele faz isso sobre mim, como se para implicar ou apenas demonstrar alguma
coisa.
No entanto, nem só ocupada sentindo raiva de Luca eu fico durante a
refeição e aproveito a proximidade para estudar alguns detalhes dele que haviam
me passado despercebido. A barba rala que cresce provavelmente será retirada
antes da cerimônia e ele franze o rosto toda vez que não concorda com o que está
sendo dito. Seu nariz é arrebitado e fino, como se ele tivesse acabado de sair de
uma mesa de cirurgia plástica e os lábios são rosados, ficando ainda mais toda
vez que ele toma um gole do vinho selecionado por Antônio. Encobertas pela
carranca natural, detalhes como esse podem passar despercebidas à princípio,
mas trabalham bem em conjunto para construir sua beleza.
Por Deus, deveria ser ilegal ser tão bonito assim sem fazer qualquer
esforço por isso além de ser um grande e maldito filho da mãe…
— Rebecca?
Pulo no assento ao ouvir meu nome e me deparo com uma mesa inteira
prestando atenção em mim ao sair do pequeno transe em que estive no último
minuto.
Luca solta uma risada, que é abafada pela sua taça e eu pigarreio.
— Sim?
E é a maldita Liliana que chama por mim, agora, com um sorriso azedo
entre os lábios pintados de um rosa clarinho que me enjoa.
— Perguntei se você está ansiosa pelo casamento.
— Ah, sim… claro que estou. Mal posso esperar.
A esse ponto, não sei se minto ou digo a verdade.
— Aposto que você estará linda. — Eu agradeço seu elogio com um
sorriso singelo, me esforçando para comer sob o olhar atento de todos.
Bernardino, o pai dela, parece tenso a cada palavra e Antônio Accorsi, sentado
na ponta da mesa, observa a conversa atentamente. — Assim como Luca.
Eu interrompo o caminho do garfo até minha boca quando ela completa
sua frase e tenho a estranha sensação de que muitos outros na mesa fizeram o
mesmo.
Luca apenas move os olhos para longe da sua taça e até ele parece um
tanto constrangido pelo comentário descabido.
E ao invés de ficar quieta, ela continua.
— Quero dizer, você fica lindo de qualquer jeito, mas… o terno certo
ajuda qualquer homem a ficar ainda melhor. Não é, papai? Entende melhor de
ternos do que ninguém.
Bernardino é um homem inteligente e tem duas escolhas agora. Mas seu
carinho pela filha, no entanto, supera sua noção de realidade e balançando a
cabeça, ele apenas concorda.
Incentivada pela afirmação do Consigliere, sua filha sorri para mim mais
uma vez e nesse momento, posso ver o quanto me detesta apenas pelo modo
como me encara.
— É uma mulher de sorte, Rebecca.
Posso sentir que toda a mesa, tem os olhos presos sobre mim e com um
sorriso forçado o suficiente para parecer real, passo meu braço sobre o de Luca e
o engancho a mim, acomodando a lateral do rosto em seu ombro em seguida.
Seu perfume fica impregnado no meu nariz e posso sentir quando ele tensiona os
músculos, ciente da atenção que estamos chamando agora.
— É, eu sou mesmo, não é?
E faço questão de o mantê-lo sob rédeas curtas o resto do almoço inteiro.
Minha mãe revisa os últimos detalhes e logo, podemos ir. Verônica abre
as portas e as damas de honra saem em fila. Lá embaixo, os pajens devem estar
esperando.
O barulho dos sapatos de salto de todas nós em sincronia somos o único
som que pode ser ouvido em toda mansão. Mas lá fora, a voz dos convidados se
sobressai na música e posso sentir a energia ansiosa correndo por minhas veias.
Matteo me ajuda a descer as escadas e encontramos nosso pai, que deve me levar
ao altar parado em frente as portas duplas de vidro que nos levarão ao lado de
fora.
Vittorio está com os cabelos penteados para trás e usa um terno cinza.
Me recebe com um par de beijinhos e sorri ao me analisar por completo.
Parece orgulhoso.
— Você está belíssima, minha filha. Como uma obra de arte.
Com um aceno contido, agradeço. Não há nada que eu queira falar para
ele agora. Não há nada que eu queira dizer para ele em um longo tempo, para ser
sincera.
Minha mãe toca minhas costas e avisa que chegou a hora. Segundo ela,
Luca e Rosalind já entraram e eu vejo Antônio Accorsi aparecer para
acompanhá-la. Ele beija minha mão e me elogia com um brilho ansioso nos
olhos azuis.
— Não tropece. — É tudo que Verônica tem a me dizer antes de me dar
as costas e liderar a entrada de braços dados com o pai do noivo. Eu engulo em
seco e tento não parecer magoada.
Quando eles passam pela porta, posso espiar a decoração e um pouco dos
convidados.
São muitos. E todos olham com muita atenção na direção do corredor,
onde um tapete branco se estende.
Depois disso, são os padrinhos e eu sorrio para as meninas, conforme dão
os braços aos amigos e irmãos de Luca.
Matteo e Bianca entram primeiro, seguidos por Donatella e Lorenzo.
Outros pares se misturam, como Max e Luna, Serena e Fred, Nina e Leonardo,
Petra e Marcus. Quando estes últimos deixam a mansão, eu prendo a respiração
e escuto a sinfonia de entrada começar a ser entoada pelos músicos.
É a minha hora.
— Adiante, bambina.
Papai me oferece apoio quando preciso dar o primeiro passo e eu aceito,
principalmente quando nos tornamos visíveis ao olhar de todos. Calmamente,
como ensaiamos, abandonamos a casa e caminhamos sobre o tapete. Meus olhos
estão na frente o tempo todo.
Em Luca e em como ele parece espetacular em seu traje.
Ignoro o resto dos convidados, pois sei que de nada irá me adiantar
encará-los. São muitos e não há espaço em mim para imaginar o que devem estar
pensando. Se criticam meu vestido ou se aprovam. Se acham que estou prestes a
ter um troço ou não.
Foco apenas nele e tento não parecer nervosa ou afetada pela beleza que
ostenta em um smoking preto, com o cabelo loiro aparado e a barba feita. Os
olhos brilham como turmalinas e sua postura é perfeita, encarando-me sem
fugir.
A caminhada demora — pelo menos em meu ver — mas quando me dou
conta, já estou parada à sua frente. O véu encobre um pouco da visão, mas
enxergo perfeitamente quando aperta a mão de meu pai e este se despede de mim
com um abraço ligeiro.
Luca se encarrega de me estender sua mão e eu a aceito, aproveitando
sua ajuda para subir os três degraus que me separam do nível mais alto.
Teatralmente, como o bom encantador de plateias que é, Luca beija as
costas de minha mão antes de abaixá-la. Eu ofereço um olhar demorado a ele,
que não corresponde, e posso escutar os suspiros da plateia.
Ignoram a falsidade de qualquer ato para prender-se à ilusão.
Ridículos. Todos eles.
Reprimo tais pensamentos, pois imagino o quão brava minha mãe ficaria
ao me ver de careta nas fotos. O véu me permite espiar o padre e Luca, que
permanece parado, escutando atentamente o início da cerimônia.
Sinto todos os olhos presos em mim quando ele começa a discursar.
Nervosa, abro e fecho minha mão, sem conseguir controlar os pequenos
espasmos em meu corpo. Posso ver Bianca me cuidando, sendo a primeira da
fila, mas não ligo. O que minha mãe vai fazer? Me repreender em meu próprio
casamento?
Não sou mais problema dela.
— Luca e Rebecca, vocês vieram aqui espontaneamente e sem reservas,
para darem-se um ao outro em casamento?
— Sim. — Luca confirma assim que o padre termina de falar. Depois de
um segundo, eu reafirmo.
— Sim.
A mentira dos juramentos me faz ter vontade de vomitar.
Mentir na frente de Deus é pecado, me lembro, encarando a cruz
posicionada atrás do padre.
Mas dane-se, vamos todos para o inferno de qualquer jeito.
Ele pede para que seguremos nossas mãos e neste momento, todos os
convidados ficam de pé.
Luca é rápido ao agarrar a minha e noto como a sua está quente em
comparação, que se parece como uma pedra de gelo.
Ele então se vira e fica de frente para mim. Imitando, faço o mesmo e
fixo meus olhos em seu rosto. Não há o menor sinal de qualquer emoção ali.
O padre começa de novo.
— Você, Luca, aceita Rebecca, como sua legítima esposa, para tê-la e
mantê-la, e deste dia em diante, prometes tua fidelidade, amá-la e respeitá-la, na
alegria e na tristeza, na saúde e na doença, todos os dias da tua vida, até que a
morte os separe?
Luca não tem incertezas ao responder.
— Eu aceito.
Mas quando é minha hora de responder, pareço estar cheia delas.
— Você, Rebecca, aceita Luca, como seu legítimo esposo, para tê-lo e
mantê-lo, e deste dia em diante, prometes tua fidelidade, amá-lo e respeitá-lo, na
alegria e na tristeza, na saúde e na doença, todos os dias da tua vida, até que a
morte os separe?
Mesmo assim, não falho.
— Aceito.
Quando viramos para o lado, vejo o primeiro sinal de um sorriso na
expressão nebulosa de Luca ao enxergar os irmãos entrando com as alianças.
Amanda e Pietro entram de mãos dadas. O bebê de dois anos parece
saído de um encarte, usando um smoking infantil, com os cabelos loiros
penteados para trás. Posso escutar os suspiros de encanto de todo lado e sorrio,
observando-os trazerem as alianças em uma almofada vermelha que está nas
mãos da mais velha.
Luca pega a minha primeiro e tem as palavras certas na ponta da língua
ao puxar minha mão trêmula para cima e posicioná-la sobre a sua palma.
— Rebecca, toma este anel como sinal do meu amor e fidelidade, em
nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.
Ele encaixa a aliança de ouro, e parece divertir-se quando me vê fazendo
o mesmo. Pareço ter uma bola de pelos na garganta enquanto faço isso e deslizo
o círculo dourado no dedo do meu agora marido.
— Agora, considero vocês, marido e mulher. — O padre diz abrindo um
sorriso satisfeito entre os lábios — O noivo pode beijar a noiva.
E eu apenas respiro fundo quando um sorriso malicioso surge na boca de
Luca, que se inclina para levantar meu véu. Nem mesmo penso em escapar do
que vem a seguir, tampouco poderia.
Com firmeza, e uma fome explícita, Luca firma sua mão na base da
minha coluna e me puxa sutilmente para a frente. Eu ainda estou tremendo
quando seus lábios deslizam sobre os meus e sua língua invade a minha boca,
preenchendo-me com o seu gosto e acordando o meu corpo aos poucos.
É diferente de como pensei que seria. É… calmo. Delicado, ele não faz
mais do que sente, nem provoca o limite. Apenas... Me conduz, como se
estivesse me ensinando a andar de bicicleta. Como se aproveitasse o gosto da
minha primeira vez e tirasse proveito disso, dessa sensação única de beijar
alguém que foi guardado a vida inteira para você.
Posso escutar os aplausos ao longe, mas não ligo para eles. Aperto as
unhas contra o tecido de seu smoking e tenho meu fôlego roubado pela sua boca
atrevida, entregando-o o que me exige.
É uma cena digna de mais e mais aplausos e quando Luca afasta a boca
da minha, seus olhos brilham como malditos faróis.
E eu sou sua.
Para sempre.
Deixamos a cerimônia sob os aplausos de todos os convidados e eu
amaldiçoo cada um que joga arroz sobre nós dois e acha que é uma boa ideia.
Seguindo o cronograma, receberemos os cumprimentos na tenda da festa,
onde também poderemos jantar. Entre um e outro, devemos tirar fotos e parecer
um casal de revista.
Aproveitando a luz do final do dia, Rene, a fotógrafa, nos coloca em
vários pontos do jardim, enquanto os convidados são guiados para a festa por
outro caminho. Em diversos momentos, preciso ajudar Rebecca com o vestido,
os sapatos e toda baboseira de seu véu.
E ela agradece, como se surpresa por eu impedir que ela caia, como se eu
não tivesse acabado de prometer fazer isso pelo resto de toda minha fodida vida
de merda.
De todas as loucuras que já vivi, essa é certamente a mais insana.
Me casar!
Puta que me pariu…
Depois das malditas fotos, podemos ir para a festa. Olho feio para
qualquer um que tenta se aproximar e ajeitar minha gravata no caminho. Quando
Rebecca tropeça na grama pela quinquagésima vez, embaralhada com o vestido
e os sapatos afundando na terra, agarro sua mão a contragosto e a guio.
— Não precisa me puxar desse jeito — reclama.
É claro que reclama.
— Apenas ande ou chegaremos lá só amanhã — respondo e posso
escutá-la resmungar algo em italiano. Como se eu não entendesse.
Ah, que delícia de vida será essa…
Quando o relógio marca meia-noite, meu corpo pode sentir que a festa
está prestes a acabar. Ocupada raspando o meu prato com bolo, longe do olhar da
minha mãe por costume, subo o olhar quando os primeiros murmúrios começam
e tomam conta da tenda, fazendo Luca, que estava numa conversa com os
irmãos, procurar por mim.
— Está na hora de irem para o quarto!
Um verdadeiro coro se forma e eu noto que a pista está praticamente
vazia. Engasgo com um pedaço de bolo e tomo um gole longo d’água. Luna,
sentada na cadeira ao meu lado, me encara com uma expressão penosa que me
causa úlceras. E tudo só piora quando Matteo aparece um segundo antes de
Luca, que vem para me reivindicar.
Como se estivessem numa competição de mijo para ver quem é meu
dono, os dois se encaram e travam uma pequena batalha pelos olhos. Meu irmão
range os dentes e vejo que leva cada fibra em seu corpo para não iniciar uma
briga com Luca, que jamais baixaria a crista ou a cabeça. Ele o encara como se
pudesse enfrentá-lo da maneira que preferir e eu sou obrigada a chamar atenção
antes que os dois briguem.
Matt coloca os olhos sobre mim antes de Luca.
— Irmã…
— Ficarei bem, Matteo. Ele é meu marido agora. — informo, sem olhar
para a expressão convencida de Luca. Tento firmar meu tom de voz e não
transparecer nenhuma emoção além do que é esperado. — Durma bem, irmão. E
não se preocupe com nada.
Luca não precisa de um segundo convite para segurar-me pela mão e me
guiar na direção da saída. Gritos e vivas são entoados e eu ignoro todos os
arrepios que correm pelo meu corpo quando aceno para minhas irmãs. Elas têm
uma expressão ainda pior do que a de Luna.
Como se eu estivesse caminhando para a forca.
Luca marcha à minha frente, me conduzindo pelo caminho sinuoso até a
entrada da mansão. Se não estivéssemos de mãos dadas, duvido que eu não teria
saído correndo assim que escapamos da vista de todos. Mas como ele me
mantém perto, essa não é uma opção.
Nada é uma opção.
Observo suas costas e estudo sua postura conforme caminhamos. Os
ombros são largos o suficiente para abrigar toda sua força e os músculos se
sobressaem debaixo do tecido fino. E há algo especial sobre sua nuca.
Ok, ele é um homem atraente. Nunca neguei isso. Não sou cega, apenas
imatura e inexperiente. E não sei o que metade das sensações que olhar para ele
provocam dentro de mim significam. E nem sei se quero descobrir.
Ele me fará sua essa noite, para que não haja mais dúvidas. Para que
nenhum outro homem jamais possa fazer o mesmo.
Mantenho minha boca selada enquanto ele anda, muito menos
preocupado do que eu pelo silêncio que nos envolve. Os passos são cautelosos e
quando paramos na frente de uma das últimas portas do segundo corredor, ele dá
uma espiada por cima do ombro e confirma que não fugi.
Então empurra a porta e revela uma suíte ainda maior do que a minha, o
que significa que é…
Gigante.
Parece uma suíte de noite de núpcias de hotel. A cama com dossel,
coberta por um lençol branco, está preenchida de pétalas vermelhas e o chão tem
tapetes da mesma cor. As paredes são num tom neutro, que imagino que todos os
cômodos possuam e há uma sacada para o mar, de onde uma brisa fresca entra. E
por sorte, me impede de desmaiar ao enxergar um carrinho de bebidas e dois
roupões atrás, apoiados num cabide.
Eu dou um pulo e escapo do meu transe quando o barulho da tranca me
assusta.
Luca abre um pequeno sorriso ao constatar meu estado de pânico e
desliza a chave para dentro do seu bolso.
— Ok… — suspira, passando os olhos sobre mim por um instante. —
Aceita algo para beber?
— Eu…
— Eu recomendo muito que você aceite — sugere, sustentando meu
olhar por um minuto. Parece se espantar com o que vê por um segundo e
comunica. — Não que eu queira deixar você bêbada, mas será mais tranquilo
com um gole.
Estudo o carrinho de bebidas com atenção antes de responder.
— Um gole de champanhe, então, está ótimo.
Luca assente e atravessa o quarto. Ele puxa o casaco do smoking antes de
chegar até as bebidas e sobe as mangas, claramente confortável consigo mesmo
e a situação.
A única alienígena aqui sou eu.
Quando me entrega uma taça, eu aceito e fujo com o olhar dele. Ele, é
claro, não permite que isso seja uma realidade e puxa meu rosto pelo queixo,
fixando meu olhar no seu. A droga dos seus dedos parece me fazer congelar
ainda mais.
— Isso não vai funcionar assim.
Fraquejo.
— E tem algum jeito para que isso funcione?
— Estou tentando te deixar confortável.
Uma risada folgada me escapa.
— Isso é impossível.
Ele toma um instante em silêncio para provar o uísque que serviu para si
mesmo. Os olhos azuis não saem de cima do meu rosto e eu quero me esconder.
Mas isso não é mais uma opção.
— Não me incomoda que tenha medo de mim, mas me intriga imaginar o
que exatamente você acha que eu irei fazer com você.
Ele arqueia uma sobrancelha e entendo que espera uma resposta de
minha parte. O clima do quarto parece assustadoramente quente e meu vestido
três vezes mais pesado.
— O que um marido deve fazer com a esposa na sua primeira noite
juntos — simplifico, agarrando a taça como se minha vida dependesse dela.
— E o que seria isso, Rebecca?
Umedeço os lábios como forma de postergar a resposta e mantenho a
atenção vidrada em seu rosto ilegível. Luca é mais alto e é preciso olhar para
cima, buscando algum sinal de divertimento em sua expressão. Não há nenhum.
Muito menos preocupação.
Ele está em seu habitat natural. Está no comando. Sabe o que tem de
fazer e como. Eu sou a única vulnerável aqui.
— Você deve… hm, você deve me…
— Foder?
A palavra é como um tapa na cara de todos os bons costumes que aprendi
até hoje. De olhos arregalados, o encaro, aparentando todo o choque que sinto.
— É isso que devemos fazer — explica, num tom de voz calmo. — Não
deveria se assustar com a palavra.
— Nunca a ouvi.
— Nunca?
Balanço a cabeça negativamente e Luca respira devagar, soltando o ar
enquanto deixa seu copo sobre a mesa de centro e se volta para mim.
— Tudo que sei é que é meu dever permitir que faça o que deve fazer —
aproveito seu silêncio para desenvolver o que sei. Ou pelo menos o que espero.
— E que na manhã seguinte, meu sangue estará nos lençóis. Como prova da
minha pureza e de que… O que está fazendo?
Franzo meu cenho ao notar que ele está se afastando. Com um toque
delicado, puxa o casaco do smoking para fora e o coloca sobre o sofá que ocupa
o centro do quarto. Continua me olhando enquanto faz isso, a sobrancelha
arqueada e os dedos concentrados em afastar os botões da camisa social branca,
revelando o início do seu peitoral.
— Ninguém teve a conversa com você?
De repente inquieta, estico minha mão e coloco a taça sobre a mesma
mesinha que ele.
— Que conversa?
Luca ri pelo nariz, e deixa o ar sair.
— Isso é ridículo — comenta e a frustração fica óbvia. — Me oferecem
uma noiva, mas nem mesmo te explicam o que deve acontecer na nossa primeira
noite juntos?
Oh.
— Eu não…
Cravo as unhas na palma das mãos e tento não entregar qualquer sinal do
nervosismo que me toma aos poucos agora. Não sei exatamente o que ele quer
ouvir. Não sei exatamente o que ele esperava. Não sei como posso alcançar suas
expectativas, se nem mesmo sei por onde começar.
Ele vira-se de costas para mim e continua com a camisa. Acompanho o
movimento e o vejo servir mais uísque. Não sei exatamente o que isso ajuda,
mas…
— Você está bravo — declaro o óbvio e ele passeia com o olhar
incrédulo sobre mim. — E eu não sei como consertar isso. Se estou
decepcionando, eu sinto…
— Pare de falar, por favor, Rebecca. — Seu pedido soa como uma ordem
e eu engulo qualquer que fosse as palavras que eu estivesse prestes a despejar
apenas para preencher o silêncio incômodo, quando ele ergue a palma de sua
mão e me encara como se eu fosse uma criança perdida. — Você não está
ajudando em nada. O meu problema é que… Eu esperava algo diferente. Só isso.
— Não o agrado? — A pergunta é dolorosa de se fazer. O olhar dele não
me entrega qualquer resposta, muito menos sua boca. Prefere ocupá-la com um
gole demorado da sua bebida — Ah. Eu sinto muito por isso.
— Você realmente não entende nada sobre homens, certo? — A pergunta
vem acompanhada de uma risada lenta, quase depreciativa.
Eu sacudo meus ombros.
— Os únicos que conheci nunca me olharam como você me olha.
Luca ergue o queixo.
— E como é que eu olho para você, Rebecca?
Ele fala meu nome com graça, com leveza, como se saboreasse o som
dos C’s duplos. Não é nada além de um jogo para ele.
— Eu não sei definir.
— Não sabe? — Ele dá um passo à frente e a bebida gira no copo que
segura. — Ou não quer dizer?
A proximidade é tensa e eu deixo meus ombros caírem de vez. Que se
dane a postura perfeita. Coloco toda minha atenção em tentar não desmanchar de
nervosismo na sua frente quando seus dedos encontram a linha da minha
clavícula e descem na direção da minha mão. O toque é suave, lento e serve para
espalhar um misto de sensações sobre minha pele.
— Eu te olho como alguém que te deseja desde o maldito primeiro
minuto, Rebecca — confessa. — Por que tomar você é a única coisa na qual eu
penso toda vez que te vejo desde o dia em que apareceu na minha frente. De
todas as formas possíveis. Na frente, por trás, por cima, por baixo…
Sua mão escorrega da minha palma para a cintura. Ele ainda segura o
copo, e o olhar é mantido sobre meu rosto. Habilmente, vai para trás do vestido e
chega ao zíper.
— Permita-me — pede, mas não precisava. Acho que nem consigo
respirar assim tão próxima, assim tão livre. Não há ninguém aqui. Ele pode fazer
o que quiser.
Com dois dedos, ele puxa o zíper e sinto uma folga na respiração. Seus
olhos capturam o momento de alívio e ele sorri, encantado.
— Acho que eu e você não começamos com o pé certo essa noite, Beca e
eu peço desculpas por isso, é só que… — Seu sorriso abre e nem mesmo ele
pode conter uma risada fraca e honesta, que quebra a pose de personagem mal ao
qual fui apresentado. — O que eu quero fazer com você não considerou o fato de
que você é… Você.
— O que eu sou?
Minha pergunta sai num sussurro exasperado e eu sinto sua mão na
beirada do espartilho quando o vestido já não o esconde mais na parte de trás.
Ele se dedica a desatar os nós agora, liberando-me da pressão contra minhas
costelas, que me manteve tensa durante o dia inteiro. Respirar sem sentir que
meus órgãos estão sendo esmagados é libertador.
— Inocente demais para um homem como eu — fala e se afasta,
deixando-me com um gosto estranho na boca. Ele gira e vira seu copo, batendo-
o contra a mesa de vez. Parece desistir dele agora, e quando volta para perto de
mim, tem as duas mãos livres.
Isso o ajuda a segurar os dois lados do meu rosto, puxando-me na direção
dos seus lábios, onde sela nosso contato e me faz estremecer por completo com a
sensação da sua língua deslizando para dentro da minha boca. É gostoso, com
um gostinho levemente cítrico, o que me puxa de volta ao mundo onde ele está
apenas me experimentando, definindo o ritmo da dança.
Isso me trava e eu noto Luca diminuir o ritmo. Recolhe sua língua,
diminui o contato e me faz suspirar.
Mas quando uma de suas mãos abandona meu rosto e vai até minha
cintura, encaixando-me contra seu corpo, perco um pouco do raciocínio sobre
isso e permito que ele leve o que quer, descobrindo-me aos poucos no âmbito
privado, onde somos apenas os dois.
Meu corpo gosta disso e quando ele se afasta, com os olhos brilhando
como fogo em brasa, sinto o calor em meu peito reclamar da sua falta, enquanto
respiro ofegante e busco forças para me manter de pé.
— O que isso provocou em você? — pergunta com os olhos entreabertos,
a boca rosada está inchada e a respiração quente bate contra meu rosto. Tão
perto que posso ver claramente o brilho intenso dos olhos e as linhas de antigas
cicatrizes espalhadas na pele clara. É bonito, mesmo com as imperfeições. — Te
fez querer mais?
Penso por apenas um instante, encarando-o através de meus cílios,
submissa ao que meu corpo sente em relação ao seu toque.
— Sim — confesso, num fiapo de voz, sentindo sua mão buscar o decote
do vestido e puxá-lo para baixo. Meu pensamento falha quando isso acontece e
acompanho o que acontece através do seu olhar faminto. Em questão de minutos,
o vestido está no chão, formando um pequeno monte ao redor das minhas pernas
e tudo que me cobre é a lingerie delicada e branca.
Então Luca toma um momento para me observar por completo e conclui
com um assovio baixo no final. O nervosismo me preenche e eu quero me
esconder desesperadamente do seu olhar analítico, mas não posso. Não sei se
existe algum lugar para onde poderia fugir e não ser encontrada por este homem,
especialmente ao ser encarada desta forma.
Eu acho que posso ver o desejo do qual ele falou agora.
— Me beije de novo — peço, ansiosa para que meu corpo não seja mais
o foco de sua atenção.
Luca me encara com um sorriso sustentado no canto dos lábios e é o
suficiente para me ver por completo.
— Como vou fazer isso se tudo que vejo ao olhar para você é uma
garotinha que vai se encolher sob o meu toque?
Eu encho meu peito de ar e sei exatamente o que Luca quer ouvir ao
manter seu olhar contido sobre meu rosto, analisando a vermelhidão das minhas
bochechas e minha postura falha, repleta de inseguranças que ele não gosta de
ver.
Inseguranças que sua esposa não deve ter.
— Me veja como a sua mulher e não vai ter problemas — falo,
entregando o que quero sentir e receber num suspiro ofegante.
Essa parece ser a única permissão que ele precisava desde o início e eu
acompanho quando ele decide, enfim, se livrar da sua camisa. O peito nu fica a
mostra e eu engulo em seco, buscando espaço dentro de mim para conter as
chamas que sobem ou lidar com o calor externo, do ambiente que parece
transformado pela vontade e fome que exalam de ambos nossos corpos, embora
eu não possa me ver no mesmo lugar que o de Luca e o seu desejo quase cego
sobre mim.
Sem camisa, com o cinto da calça frouxo e após chutar os sapatos de bico
fino para longe, Luca senta na beirada da cama que espera por nós dois e dá dois
tapinhas na sua coxa. O olhar diz o suficiente para eu saber que as coisas
mudaram de figura. Se intensificaram.
Se tornaram reais.
— Então venha aqui.
Em passos temerosos e rápidos, para que eu não os sinta até já ter ido, me
aproximo dele e acomodo minha bunda sobre uma de suas pernas. Ele estala a
língua em reprovação ao movimento cauteloso e passa a mão por baixo da outra,
encaixando-me de vez em cima dele, com uma perna de cada lado e o sexo
perigosamente perto do seu.
Sinto algo duro roçar contra o centro das minhas pernas e isso me faz
contraí-las no contato. Luca sorri, e puxa a presilha que mantém meu cabelo no
lugar. Ele cai sobre meus ombros e a sua mão vai até a lingerie, escorregando até
alcançar a minha e colocá-la bem em cima do seu...
— Isso é o meu pau — explica, como se eu fosse totalmente leiga e se
ajeita embaixo de mim. — A parte de mim que mais quer te conhecer.
Com o dedo habilmente sorrateiro, Luca desfaz o fecho do sutiã
reforçado e permite que o tecido se torne inútil. Estou exposta da barriga para
cima, e meus seios chamam sua completa atenção ao perderem a proteção do
tecido. Os mamilos enrijecidos são uma surpresa para mim também e quando
sua mão vai de encontro a um deles, perco o ar por um segundo.
A sensação é nova. Ser vista e tocada é novo.
— Seus peitos são…
Grandes demais? Pesados? Desproporcionais? Ridículos?
— Incríveis.
Oh.
Com a língua, Luca marca o bico de um deles e eu reafirmo minha
posição no seu colo, causando uma fricção que parece lhe agradar. Sua mão viaja
até minha cintura e ele me mantém onde estou, enquanto seu olhar acompanha o
movimento da boca e ele toma para si meu peito inteiro, fazendo parecer fácil,
simples e delicioso.
Suga e lambe e eu sinto calor de verdade quando puxa, brincando com
meu mamilo. Usa a mão que não está ocupada para segurá-lo e quando aperta,
forte o suficiente para me fazer sentir tudo, apoio minha cabeça sobre o ombro,
rendida a carícia.
— Esse é um bom começo — sussurra, os olhos flamejando contra
minha pele, enquanto roça os lábios no vão entre meus seios. Em determinado
momento, bota a língua para fora e sobe até meu pescoço, terminando num beijo
prolongado ali, que me faz perder o resto da compostura. Minhas mãos procuram
apoio e eu deixo escapar um gemido baixo, que ele reconhece e o faz rir. Sua
risada vibra através do meu corpo, mas eu mal tenho tempo para prestar atenção
nela quando Luca toma a decisão de me pegar no colo e girar contra a cama.
Sou colocada sobre ela sem aviso e inspiro fundo ao ter a visão do seu
corpo de baixo. Um elogio pela boa forma fica preso na minha garganta quando
ele se deita sobre mim e alcança minha boca com a sua, capturando meus
sentidos em mais um beijo. Mas esse é diferente de todos os outros.
Luca ondula seu corpo contra o meu e posiciona a mão em minha nuca,
permitindo que a combinação seja confortável e perfeita. Sutilmente, se infiltra
entre minhas coxas e eu permito, recebendo seu peso, seu calor e a pressão que
empurra contra minha cintura.
É um beijo instintivo, que exige, que rouba meu ar e acende um monte de
partes minhas nas quais nunca pensei. Quando ele segura um de meus braços e
passa ao redor de seu pescoço, ganho alguns centímetros e inclino meu corpo,
indo até onde ele pede. Um gemido de satisfação escapa quando ele puxa meu
lábio entre os dentes e eu abro meus olhos para ver sua boca vermelha, cheia e
umedecida pela minha saliva.
— Você está me segurando aqui embaixo — revela como se fosse um
segredo ou apenas uma novidade engraçada e eu expresso preocupação nos
olhos. Isso o faz tomar a decisão de descer a mão direita até o meio das minhas
pernas e me explicar do que se trata. — Aqui, Beca.
Sua mão cobre minha calcinha e eu sinto seu dedo indicador roçar contra
a fenda entre minhas pernas. O movimento é leve, intuitivo e ele não força nada,
apenas descobre o pedaço, que está quente e molhado o suficiente para me
causar estranheza. Com a outra mão, afasta minha coxa e eu suspiro ao sentir
seus dedos escorregarem no interior dela, indo até a beirada da calcinha,
puxando-a de leve. O tecido faz o trabalho por ele e roça contra meu ponto
sensível, fazendo-me morder o lábio, torcendo por alívio.
— Solta a bucetinha pra mim, linda.
O ar some por inteiro e eu deixo de pensar. Luca consegue que eu separe
minhas pernas por vontade própria e com um toque certeiro, pressionando o
ponto mais alto da minha vagina, consegue um gemido prazeroso da minha
parte.
— De novo — peço.
Vejo um sorriso rasgar seus lábios ao meio.
— Para que perder tempo com isso se o que você precisa é maior e está
pronto?
Neste momento, ele fica de pé e abre o zíper da calça. Eu me sento, ainda
entorpecida pelo que acaba de acontecer e assisto meu marido empurrar a calça,
seguida da cueca, para baixo.
Por instinto, eu desvio quando ele fica pelado e ri, levando sua mão até o
membro que está levantado e rígido, praticamente me dando oi. A ponta é rosada
e redonda, e há veias. Tantas veias…
— Não seja tímida — murmura. — Ele está prestes a se tornar o seu
melhor amigo.
Olho direto para o seu rosto quando diz isso e ignoro o que acontece lá
embaixo, enquanto ele se aproxima. Há mais velocidade nisso do que houve em
toda noite. Com agilidade, apoia as mãos do lado do meu corpo e fixa seu olhar
transparente como água no meu.
— Agora, você vai tirar a sua calcinha.
Se é uma ordem ou não, eu não sei. Eu apenas faço o que ele pede.
Chuto a calcinha para longe e ele observa a cena sem fazer nada.
— E vai me deixar provar o que é meu.
Quando tento espiar, ele me segura pelo queixo. O movimento é ligeiro e
sua mão tem meu cheiro. O seu olhar sustenta o meu e me falta fôlego, imersa no
azul que nunca esteve mais claro.
— Eu aliviei as coisas, mas será desconfortável de primeira de qualquer
jeito. Você é… bem...
Ele não termina e eu engasgo com a sensação de seu pênis roçando
contra minhas coxas.
No automático, contraio minhas pernas e Luca ri, apoiando todo seu peso
contra mim. Seu pau aponta nas minhas coxas e eu suspiro ao sentir ele investir
contra elas, tão ansioso que mal pode se conter.
— Vai me fazer pedir que você solte a buceta de novo?
A impaciência assume lugar na postura que antes não exibia nada além
de um prazer apreciativo e eu busco algum controle no que acontece.
Luca para de olhar para mim e se concentra no que precisa ser feito. Eu
tento não olhar para nada além do teto e raspo os dentes uns nos outros quando a
ponta do seu pau investe contra a entrada do meu corpo.
Na minha boceta.
Então, quando ele começa a se afundar dentro de mim, eu sinto se
espalhar por todo o meu corpo, pequenos golpes de uma dor tímida, mas
desconfortável o suficiente para me manter alerta e soltar alguns grunhidos. Ele
solta um gemido baixo e cai contra meu ombro, escondendo o rosto. Contraio
ainda mais minhas pernas e sinto sua boca chupar minha pele, enquanto ele entra
devagar e devagar e devagar…
— Porra, mulher…
Eu tento relaxar mais, mas a cada estocada… ah.
Luca se curva sobre mim e esconde a boca na curva do meu pescoço. Eu
adoro a sensação do seu hálito quente contra minha pele e passo as mãos sobre
seus ombros, puxando-o até que estejamos grudados. Isso sela e elimina todo
espaço que restava entre nós dois e com um gemido alto, próximo de um urro,
ele se enterra dentro de mim e parece ganhar uma força extra.
O que faz minha dor aumentar.
Mas no ponto em que estamos, não parece mais ser a preocupação de
Luca, que está concentrado demais em entrar e sair de mim o mais rápido que
consegue, numa velocidade que faz a cama sacudir e suas bolas baterem contra
minhas coxas. O som ocupa todo o cômodo e eu cerro os dentes, recebendo-o da
forma que parece ser meu dever.
Mas a dor é… nossa, ela é péssima.
E sei que estou sangrando apenas pelo modo duro com que ele faz, com
certeza mais concentrado em si mesmo do que em mim e no que eu
provavelmente deveria estar sentindo.
Tudo que ele fez antes desaparece e eu fecho meus olhos para não
acompanhar o final. O terror de não saber até onde vai me assume e eu olho para
cima, buscando amparo no teto claro.
Mas quando acaba, eu sei que foi e tenho certeza de que ele está
satisfeito pelo gemido que escapa da sua boca. Com a cabeça baixa e suor
deslizando pelo seu rosto, Luca ainda tem a capacidade de depositar um beijo no
vão do meu pescoço antes de se afastar, saindo de dentro de mim.
O golpe final vem quando ele abre a boca depois disso e faz com que eu
me sinta pior do que em qualquer outro momento, arrastando qualquer esperança
disso ter sido apenas um aquecimento para o ralo.
— Isso foi ótimo. Obrigada. Eu estava precisando pra caralho.
Ele acaba de me agradecer por sexo…
Sem dizer mais nada, Luca caminha para longe da cama e eu acompanho
seu movimento descontraído antes dele sumir para dentro do banheiro.
E é isso.
A noite de ontem é como um borrão em minha memória quando acordo.
Tudo parece apenas uma mistura de acontecimentos aos quais não posso
distinguir.
Menos a parte onde Rebecca estava nua.
A imagem da minha esposa nua, sua pele clara marcada pela minha boca
e aquecida pelo seu suor, que a fez reluzir, fraca e sensibilizada pelo meu toque,
gemendo a cada movimento de meus dedos e me permitindo, enfim, senti-la por
inteiro, recebendo-me exatamente da forma como eu torcia para que o fizesse,
vive de graça na minha cabeça e tenho certeza de que não irá sumir tão cedo.
Foi mais do que eu esperava, com certeza. A garota não se conteve e me
dou grande crédito por isso. Saber o que fazer antes de chegar aonde eu mais
queria foi essencial para que ela nem notasse o sangue que escorreu (em pequena
quantidade) por suas pernas, entregando aos tradicionalistas desgraçados o
último marco de sua pureza e de minha virilidade.
Em determinado momento, perdi o pouco que me mantinha na linha e me
afundei do jeito que meu corpo implorava que eu fizesse desde o começo. Talvez
tenha sido demais e talvez doa nela hoje, mas não sou eu que pedirei desculpas
por isso. Ela consentiu tudo. E por Deus, quem entrega uma mulher na mão de
um homem como eu sem nem mesmo prepará-la para o que viria? Se eu fosse
um homem pior, as coisas poderiam ter sido muito ruins.
Eu fui bom para ela. E isso deveria contar em alguma coisa.
De qualquer jeito, não posso dizer que hoje de manhã me sinto
compelido a mimá-la e amaciá-la, já que acabo de notar, após sair do banho, que
o anel em meu dedo não vai sumir tão cedo e que ser seu marido não é apenas
sobre dividir a cama e gozar sem preocupações dentro dela.
Eu também irei vê-la todos os dias.
E se ela estiver com a mesma expressão de merda que está agora, todo
dia, vai ser muito difícil não me atirar direto no rio Hudson no primeiro mês de
casamento.
Coloco a camisa social azul que está sobre a cama quando saio do
banheiro e as calças. Dou um jeito ligeiro na gravata e a vejo sair do closet. Os
lençóis já foram levados, e ela não faz menção alguma a isto, tampouco fala
comigo. Caminhando em um vestido azul-cobalto, o rosto de Rebecca é uma
máscara de mármore e eu acho graça da plenitude que ela tenta demonstrar ao
sentar em frente à penteadeira.
Muito mais teimosa do que o peixe que me foi vendido.
— Bom dia — cumprimento, terminando de apertar a gravata ao redor do
meu pescoço. Seus movimentos são treinados, como uma boneca ou um robô.
— Bom dia — responde, enchendo os pulmões de ar. O cabelo está solto
e imagino que eu tenha deixado marcas das quais ela não quer falar.
Será que fui forte demais?
— Como está se sentindo? — A pergunta soa um pouco desconexa
escapando pela minha boca antes que eu pense no quão ridículo é querer saber
isso. Ainda assim, chamo a atenção de Rebecca, que parece menos engessada ao
me enxergar pelo reflexo no espelho a sua frente.
— Bem. — E fica óbvio que está mentindo.
— Se precisar de remédios para dor, temos…
— Eu estou bem — reforça, mantendo as mãos grudadas na penteadeira.
Segura a escova como uma faca, o que pode soar como um alarme. Decido
recuar nessa e dou as costas para seu pequeno chilique.
Eu tentei ser gentil. Espero que ela se lembre de ter recusado isto quando
chegar a hora de me conhecer de verdade.
Se ela prefere não falar comigo, tudo bem. Não é como se eu esperasse
ter uma amiga.
Apenas um lugar para foder já está de bom tamanho.
Trinta minutos depois, uma empregada avisa que nossa presença está
sendo solicitada no café da manhã. Rebecca dispara na frente, mas não tem fuga
de mim, uma vez que meus passos são firmes o suficiente para alcançá-la antes
que tente qualquer gracinha. Fixo minha mão na base da sua coluna e assumo o
controle sobre o que faz, cessando sua relutância.
Descemos as escadas e cumprimento os homens pelos quais passamos
com acenos. Eles não olham na direção de Rebecca. A sala onde os lençóis estão
sendo exibidos fica na direção contrária da sala de jantar e imagino que já
tenham passado por lá. Como cães, devem farejar meu cheiro em cima dela e o
alerta claro para se manterem distantes.
Rumamos até a ampla sala de jantar onde todos estão reunidos e somos
recebidos com celebrações tímidas. Me irrita ver o brilho nos olhos de meu pai e
ainda mais a expressão de nojo no rosto de Liliana. Ela esteve em cima de mim a
noite toda, insinuando-se, querendo me roubar em meu próprio casamento. Foi
insuportável.
Puxo a cadeira para Rebecca sentar como manda o cavalheirismo, e faço
o mesmo em seguida, acenando para todos os homens na mesa. Minha mãe sorri
para nós dois, sentada ao lado de meu pai.
— Já foi ver o lençol? — Tony pergunta, sem tempo para meias-palavras.
Rebecca, que está aceitando uma xícara de café, estremece.
— Eu os fiz — retruco, encarando meu pai. — Não preciso revê-los.
— Confiante… — Sorri como um tubarão. — Espero que tenha dado
uma boa noite para sua esposa, Luca.
Rebecca parece ainda mais pálida quando ele se dirige a ela.
— Ah, sim, senhor — assentiu, encolhendo conforme o olhar de meu pai
se aprofunda sobre ela. Eu o encaro em alerta de que não deve fazer isto e ele, é
claro, ignora. Só deixa de examiná-la quando bem entende e parece satisfeito
com o que vê.
De fato, a pele dela brilha, mas não é a primeira vez. E o rosto está mais
corado, assim como os lábios mais cheios. Noto um pequeno avermelhado na
ponta e rio sozinho ao me lembrar de como fiz isso.
O café da manhã segue bem e nenhum outro tem coragem de mencionar
qualquer coisa referente à nossa noite de núpcias. Bem, pelo menos não na frente
de minha esposa.
Quando vou a sala de estar anexada ao escritório de meu pai, para
receber cumprimentos e discutir sobre negócios oportunos, todos têm
curiosidades e é necessário muito autocontrole para evitar o instinto de voltar a
afiar minha faca em suas gargantas.
Pelo menos não preciso mais me fingir de bom moço.
— Chegamos! — Luca anuncia assim que o carro estaciona. Ele abre sua
porta e como a boa dama que fui treinada para ser, espero que alguém abra a
minha por mim. Meu marido, esforçando-se o suficiente para me agradar, abre
para mim com uma expressão mista e eu desço do carro.
É um restaurante com uma bela fachada, mas a proximidade da praia é o
que me conquista. Estamos praticamente na areia, separados apenas por uma
faixa estreita onde carros passam. Luca grunhe ao ter areia invadindo seus
sapatos Oxford de couro escovado e caminha na frente. Eu aceito a mão de um
Roger atencioso, que me ajuda a chegar até a entrada em meus sapatos de salto.
— Estaremos aqui fora — anuncia, quando meu marido reassume a
responsabilidade de me conduzir e ele assente. A hostess nos recebe com um
sorriso agradável e só basta que ele fale seu nome para nos guiar até uma das
melhores mesas da casa.
Há vista para o mar à nossa frente. A ideia de almoçar com o som das
ondas quebrando é tentadora e reconfortante. A praia, em si, é leve e pode
favorecer muito o clima tenso que existe constantemente entre mim e Luca.
Talvez eu consiga me sentir relaxada pela primeira vez desde que me
tornei sua esposa. Seria bom se isso acontecesse.
A presença de dois soldados na porta, examinando todos que entram
como águias, também é reconfortante. Eles transparecem um tipo de lealdade
que me acostumei a ver no olhar dos homens de meu pai ou em meu próprio
irmão. Sei que são capazes de dar sua vida por Luca, por mim e pela famiglia
sem pensar duas vezes e me sinto confortável por saber que meu marido confia o
suficiente no juramento que ambos fizeram para que andem conosco.
Então tento não pensar muito em nossa segurança e deixo isso a cargo
deles.
Um pensamento inoportuno sobre Donatella e seu relacionamento
secreto, me vem à mente e eu corro para expulsá-lo ao estudar a expressão
concentrada de Luca enquanto ele lê o cardápio. O que ele faria se soubesse que
há um homem dormindo com a sua irmã?
Certamente colocaria seus homens para caçá-lo como um animal para
abate.
Por Deus, eu nunca gostaria de ter que descobrir…
Quando o garçom se aproxima, Luca tem nossos pedidos na ponta da
língua e pede um vinho que nunca ouvi falar. Logo, nossas bocas ficam
ocupadas apenas com a comida deliciosa — vieiras cruas acompanhadas de
vinagre de romã e folhas verdes — e um agradável vinho que faz minha língua
pinicar de tão bom.
Já estamos perto do fim quando um sorriso idiota se instala no canto da
minha boca e não passa despercebido pelo meu companheiro, que limpa os
cantos dos seus lábios antes de se dirigir a mim:
— Por que está sorrindo?
— É a primeira vez que almoçamos sozinhos sem brigar.
Luca parece tirar um segundo para conferir se não estou confusa. Nos
últimos dois dias, brigamos por pequenas razões. Nada demais, mas não é como
se concordássemos em muitas coisas.
Seus olhos passam sobre meu rosto e eu me sinto um pouco tola por
compartilhar minha percepção. Não é o tipo de coisa com o qual ele certamente
gasta seu tempo.
— Ah, sim — toma um gole de vinho. — E está sendo uma merda para
você também?
A resposta me faz parar com os talheres no ar.
— Uau — deixo escapar, descrente de que ele tenha sido mesmo capaz
de arrastar minha companhia para a lama sem dó nem piedade.
— O silêncio me incomoda — acrescenta, me fazendo estudar o modo
inquieto como move os pés debaixo da mesa. — Você não?
— Na verdade, me sinto confortável o suficiente nele…
— Esquisita — resmunga baixinho. Eu solto os talheres de vez e me
dedico a encará-lo. — Quer me dizer que gosta da sensação de escutar seus
próprios pensamentos?
— Não tenho problema com eles — limpo os cantos da boca. Tomo
cuidado extra para não borrar meu batom. — Você tem?
— Posso dizer que eles não são agradáveis o suficiente. — Num impulso,
que quase parece afobado, ele toma um gole da água posta ao lado do vinho. Eu
observo a cena e vejo meus pensamentos se moverem para uma direção menos
educada.
Luca tem belas mãos… E o modo como engole. Posso ver certo valor
nisso também.
— Então diga alguma coisa — sugiro. — Quem sabe possa te ajudar a
lidar com eles?
Ele me encara com um leve tom de incredulidade, como se eu fosse, de
certa forma, incapaz de respondê-lo ou manter um diálogo.
— Todos meus pensamentos envolvem coisas que não devem chegar aos
seus ouvidos, Rebecca — anuncia, tocando a beirada da taça. Eu acompanho o
movimento dos dedos. — Pelo menos não se eu for um marido competente.
— Envolvem os russos, então?
Ele não assente, mas nem mesmo precisaria.
— Não tenho problema em falar sobre eles — começo. — De certa
forma, sei do que são capazes e do que está em jogo. Mas… estou tranquila. Não
tenho medo. Pelo menos não até agora.
— Se sente tão segura assim comigo por perto de repente? — pergunta,
subindo um dos lados de sua boca num sorriso ladino, malicioso do jeito que
melhor lhe cabe. Eu me esforço de verdade para não corar as bochechas.
— Você me parece um homem habilidoso. É como meu irmão, imagino.
Sabe o que fazer e vai me manter segura.
Então Luca ri, quebrando o clima de seriedade.
— Uau… — comenta, tomando fôlego. — Bela forma de broxar as
coisas.
— Broxar?
Luca quase engasga ao me encarar de novo. Há certo brilho divertido em
seus olhos que não passa despercebido e ele usa o guardanapo antes de falar de
novo.
— Esquece que eu falei isso — ordena. — Só quis deixar claro que me
comparar com o seu irmão não é algo que eu aprecie. Ou goste. Na verdade, é
algo que me irrita.
— Matteo é um ótimo soldado, filho e quando for a hora, será um Capo
exemplar. Confio a minha vida ao meu irmão… Não vejo como compará-lo com
ele possa ser algo negativo.
— É que eu não sou o seu irmão — lembra, como se não fosse óbvio. —
E terá que confiar sua vida a mim de qualquer maneira. Então, esse tipo de
comparação só gasta nosso tempo e te ilude.
— Me iludo ao pensar que você possa ser um bom homem?
— Muito. — Não faz questão de adoçar suas palavras. — E se ilude
ainda mais pensando que seu irmão é tão bonzinho quanto imagina…
Não espera que eu responda qualquer coisa antes de ocupar a boca com
um pouco de vinho.
— Meu irmão nunca me tratou mal. Ele foi bom para mim e sempre
será.
Minha afronta não parece ser bem recebida por Luca. Seu olhar é menos
amigável, sua postura menos neutra e noto o modo como me encara,
umedecendo os lábios.
— O que ele faz fora de casa, então, não importa para você?
— Se importasse, não me preocuparia em tentar conversar com você.
Afinal, fazem as mesmas coisas, não é? Matam, extorquem, cobram e tomam…
— digo por alto apenas as funções das quais me lembro e Luca continua me
observando. — Uma mulher em nosso mundo tem que aprender desde cedo a
separar a pessoa de suas funções. Não há solução se não essa.
— Não entendo por que acharia que sou bom — murmura, um sorriso
conflituoso correndo em seus lábios. — Mas entendo o que motiva suas
palavras. Minha mãe, de fato, faz a mesma coisa.
— Vê algo que possa ser salvo em você? — arrisco e vejo o modo ácido
como me encara. O impulso de uma risada me ocorre e eu preciso morder a boca
para não soltar. Luca, ao contrário de mim, se permite rir.
— Não seria tão otimista assim, esposa.
E eu concordo com um gole de vinho. O silêncio parece abrir brechas
para que ele decida falar e eu o encaro com surpresa quando resolve, por vontade
própria, compartilhar detalhes do que está acontecendo comigo. Os olhos, por
um milagre, não estão fixados nos meus e sim nos fundos do restaurante, atrás de
mim, como se pressentissem alguma ameaça.
Acaba sendo apenas o garçom com mais vinho.
— Romeu está fechando o cerco cada dia mais em torno de Nova York
— confessa. — As coisas não estão boas, mas meu pai prefere pensar que sim.
Alguma merda sobre estabilidade nos negócios. Mas eu não acredito nisso…
Acredito que deveríamos agir e cortar essa merda pela raiz.
Me pergunto se tenho abertura para falar e arrisco:
— Seu pai tem medo dos russos?
A pergunta é mais ousada do que eu pretendia e vejo um brilho ambíguo
nos olhos de Luca ao escutá-la. Estou prestes a me retratar, quando ele volta a
falar.
— Meu pai faria acordos até com o Diabo para não ter de se envolver
numa guerra — explica, e eu tento não pensar que se refere a nós dois. —
Guerras são caras, italiana. E fodem as coisas. Mas Romeu Ivanov quer o que é
nosso, e não é permitindo que ele fique cada dia mais perto, que vamos impedi-
lo de cobiçar nossa cidade.
— Então lutar contra eles seria a melhor opção? — Sou totalmente leiga
no assunto, mas ganhei algum conhecimento ao longo dos anos. Quando homens
discordam, eles brigam.
E há sangue.
— Sim.
A resposta dele é óbvia e não esconde nenhuma de suas intenções. Luca
não tem medo de derrubar o sangue de quem quer seja para manter sua cidade
protegida e seus negócios acontecendo. Mesmo que isso custe alguma coisa a
ele.
— Se queria nos afetar de verdade, teve a oportunidade perfeita em
nosso casamento. E a perdeu. Cabeças de peixe não são conhecidos por serem
inteligentes, de qualquer modo…
O apelido me causa estranhamento.
— Cabeças de peixe?
Luca me encara como se eu tivesse dois pés na cabeça.
— É. Apelido que damos aos Ivanov. Se notar, todos eles se parecem
como peixes, com os olhos esbugalhados e a pele clara, como se nunca tivessem
visto calor na vida.
— Você que surgiu com ele?
— Sou criativo, mas não tanto. Isso foi coisa do meu pai e dos meus tios
e me lembro de tê-los escutado pela primeira vez quando voltaram da noite em
que mataram o pai de Romeu, Konstantin.
— Isso deu início à guerra que vivemos hoje — acrescento, pois é
conhecimento básico. Matar um Capo, ou na máfia russa, um Pakhan, como é
chamado, é como pedir retaliação. E é atingir uma organização em seu ponto
mais vital.
Quem está seguro se o chefe não está?
— Não nos arrependemos por uma gota de sangue derramada — diz,
buscando minha reação a tais palavras. Me avalia como se eu pudesse ser uma
traidora em determinados momentos. Como se eu pudesse usar a faca que está
sobre a mesa para apunhalá-lo pelas costas ou talvez oferecê-la a alguém para
fazer isso por mim.
— E de qualquer jeito, é uma besteira que eu e Max usamos mais do que
os outros. Donatella diz que é o pior apelido do mundo. Lorenzo acha imaturo.
— Seu irmão de dezesseis anos considera você imaturo?
— Lorenzo nasceu com sessenta anos, Beca — informa, arrancando uma
risada alta e genuína de mim. — Você só não teve tempo de ver ainda, mas
acredite, verá.
Ele, como se para me acompanhar, solta uma risada frouxa e eu me
pergunto se é assim que sorri quando é natural, sem ter intenção de impressionar
ou manipular a conversa para o seu lado. O canto esquerdo da sua boca é
repuxado e seus olhos ficam mais claros e leves por um instante que dura o
suficiente para capturar minha atenção.
— Ele me parece ser um ótimo garoto. Aliás, todos os seus irmãos
parecem ser.
— Não somos iguais. — Luca fala, com certo pesar. — Talvez haja
alguma esperança para eles.
— Donatella e Angelina também são ótimas.
— Fico contente de que goste delas. E surpreso. Você não é o tipo de
mulher com o qual Dona geralmente se dá bem.
— O que isso quer dizer?
Luca pisca.
— Ela abomina as boas meninas.
Eu pigarreio, encobrindo a tosse com um gole d’água.
— Talvez tenha visto algo em mim que a confortou.
— É, talvez. — Luca deixa a frase em aberto. — Me preocupo mais com
a ideia de que você tenha visto algo nela que a reconforte. Minha irmã pode
ser… — Pensa por um segundo, buscando uma boa definição. — Perigosa.
— Toda mulher pode ser um pouco perigosa — digo. Luca arqueia as
sobrancelhas diante de minhas palavras. — É apenas uma questão de
perspectiva, entende? Temos sentimentos como os homens. Mas somos
ensinadas a escondê-los e suprimi-los. No entanto, existem situações em que
qualquer mulher vai escolher pela raiva. E se houver a oportunidade, não vejo
por que uma mulher não deve ser tão letal quanto um homem.
Ele se reclina na cadeira e apoia a mão no queixo.
— Você acha que poderia ser perigosa, Rebecca?
— Nem de longe, mas eu sou honesta o suficiente a ponto de assumir
isso. — Ele não consegue evitar rir da minha revelação. Eu rio também. — Mas
não duvide que eu seria capaz de lutar por mim ou por aqueles que me importam
do jeito que estivesse nas minhas mãos. É uma questão de instinto, no final das
contas.
— Está querendo dizer que encobre seus instintos? Os controla, como
um cachorrinho de madame?
— Hm… De certa forma, é. Podemos encarar assim. — As palavras
parecem ter perdido um pouco de sentido para mim. Ou quem sabe, o peso. Só
saem, como se a conversa corresse normalmente, sem qualquer pressão.
— Então o que aconteceria se você os deixasse sair?
Eu engulo em seco ao olhar para seu rosto novamente. A expressão está
mais obscurecida. Falta o brilho amigável que havia ali antes, que foi substituído
por algo carregado, um pouco incitante e certamente, nada puro. Luca transita
entre os dois lados de sua personalidade com facilidade e agora posso ver
claramente a divisão.
Só preciso tentar não ser esmagada por ela.
— Isso não seria…
— Bonzinho, como você aprecia?
— O que está tentando fazer, Luca? — retruco, tentando não parecer
ofegante. Perguntas de assalto podem me assustar. Isso reflete diretamente no
modo como me porto.
— Quero ver quem você é quando não precisa fingir que é perfeita e
imaculada como uma santa.
— Isso não…
Ele me interrompe com um assovio. Pede a conta para o garçom, que a
traz de bom grado e eu mantenho os olhos sobre ele durante todo tempo.
— Acho que seria bom pegarmos um pouco de sol. — E é toda
explicação que me dá, finalizando o almoço.
Minha família não espera nada para nos tirar do Havaí e eu descubro, no
caminho para o aeroporto, que já se passou um dia desde a explosão. A máfia
local fez questão de deixar claro que não tiveram nada a ver com isso e se
disponibilizaram para ajudar-nos. Mas não é necessário nenhum tipo de
investigação para saber que isso, nada mais é, do que Romeu correndo atrás do
tempo perdido.
A guerra começou pra valer agora. E aquele filho da puta vai vir com
força para cima de gente.
É apenas uma questão de sorte que eu e Rebecca estejamos vivos. Um
centímetro a mais e ela teria explodido. Se eu tivesse aberto aquela caixa,
também já teria ido dessa para uma melhor. Foi como se o destino tivesse
decidido jogar conosco, levando-nos ao limite. Ou apenas o tipo de susto
necessário para que meu pai tomasse decisões e colocasse planos de defesa
eficazes em prática.
— Donatella está indo em outro avião com Rebecca e uma equipe
médica. — Max avisa, quando se joga na poltrona creme a minha frente. Estou
imobilizado e praticamente preso a cadeira.
A ideia de que só a verei daqui dez horas me toma de assalto e preciso
conter minha impaciência quando meu pai passa, indo se sentar no fundo da
aeronave:
— Como ela está? — indago.
— Com dores, mas estável. Os ferimentos dela foram nos pulmões. Você
melhorou as coisas deixando-a cair por cima de você.
Arqueio uma sobrancelha.
— Como você sabe disso?
Meu primo me oferece um sorriso irônico.
— Quando algo explode, você é arrastado. Rebecca deveria ter batido a
cabeça e provavelmente morrido naquele momento. Mas você sacrificou suas
costelas boas para isso.
Max fala isso sem peso algum e começa a folhear uma revista de
automóveis, enquanto eu preciso de um segundo para absorver a dor e tentar
falar qualquer coisa novamente.
Instinto. Foi ele o responsável por me fazer puxá-la para dentro do
quarto, na esperança de que não tivesse todos os seus órgãos estourados pela
bomba. Até mesmo tentei fechar a porta, o que pode ter nos ganhado tempo — e
proteção. Ainda assim, foi atingida pela explosão, e deve ter sofrido dos efeitos
dela, assim como eu. Há marcas de cortes espalhados por todo meu corpo. E
sinceramente, eu não sei como fui capaz de tanto num momento de tanta cólera,
ansiedade e urgência. Pelo visto, o treinamento serviu para algo.
Mas fico contente que ela esteja viva por causa disso.
Se depender de mim, Romeu não vive mais um dia. Ele deveria parar de
sonhar em tomar o controle da nossa cidade e começar a procurar um bom
bueiro onde se esconder.
Eu não perderei nada para aquele filho da puta.
Nada.
— Então… vamos ter férias! Que delícia! Para onde nós vamos?
Cancún? Aruba? Quem sabe Brasil? Escutei coisas boas sobre aquele lugar.
As palavras e sugestões animadas de Max são responsáveis por me fazer
bufar. Lorenzo e Donatella, que entram no quarto logo após nós dois, apenas
observam enquanto pareço lutar contra meu próprio corpo ao me sentar na cama.
Tudo dói. Exatamente tudo.
Eu nunca estive tão fodido.
— Não vamos a lugar nenhum — rosno. — Essa porra de repouso é uma
babaquice! Não preciso dessa merda, nem da pena de ninguém.
— Custa ser menos teimoso e aceitar que você quase morreu? — Dona
resmunga, me lembrando da sua infeliz presença. Eu empurro Max quando tenta
me ajudar a me deitar. Apenas me encosto contra os travesseiros e absorvo cada
cantinho da dor enquanto meu corpo relaxa e tudo piora. — Então, a menos que
busque o suicídio, você precisa sim ficar parado.
— Posso acertar quem for e em qualquer lugar até mesmo deitado,
Donatella — respondo. Minha irmã revira os olhos e parece pertinho de desistir
de me convencer de qualquer coisa.
— Romeu não seria nada dócil com você só porque está machucadinho,
irmão. — Enzo fala, reacendendo minha vontade de chutá-lo. — Aquiete a sua
bunda e aceite que precisa de descanso, como qualquer ser-humano normal.
— Além do mais… algumas semanas são tudo que precisamos para
comemorar seu aniversário em paz.
Minha vontade de quebrar a cara de alguém se dirige a Max quando ele
se refere a um assunto que eu pensei estar proibido. Mas aparentemente não fui
firme o suficiente sobre o fato de não querer comemorações.
Agora, Donatella acaba de se dar conta de em que altura do mês estamos
e já posso ver o brilho das ideias invadindo seu olhar tão azul quanto o meu.
— Obrigada, Maximus… — ironizo.
— Meu Deus! Luca, seu aniversário está chegando! É claro! Você vai
fazer vinte anos daqui menos de um mês!
Bufo tão alto que tenho certeza de que qualquer um aqui presente nesta
casa pode escutar minha insatisfação diante do assunto. Max está rindo, assim
como Lorenzo e eu observo enquanto Donatella digita compulsivamente em seu
telefone. As unhas roídas não me passam despercebidas, mas certamente
passaram pela minha mãe, se ainda estão assim.
— Não quero festa ou qualquer outro tipo de merda de comemoração,
Dona. Desista.
— Mas é seu aniversário!
— E?
— E daí que nós vamos comemorar! Óbvio que sim!
Eu não me sinto muito esperançoso sobre conseguir que ela desista. E
não tenho mais condições de discutir qualquer coisa. Não agora, pelo menos.
Deixo que Donatella fique com suas ideias ridiculamente irritantes e
expulso todos do meu quarto pouco antes de me entupir de remédios para dor e
um gole d’água. Eles me derrubam em pouco tempo e logo tudo no que penso é
em quando meu corpo irá voltar a me ajudar.
Afinal, tenho uma guerra para enfrentar.
O dia seguinte a viagem de volta é o primeiro em que consigo, de fato,
despertar. A enfermeira que me monitora me alerta, assim que abro os olhos
devagarinho, que a dose do remédio diminuiu e por isso estou acordando e me
atentando a tudo ao meu redor.
Mas é estranho acordar e não sentir a presença de qualquer um dos rostos
com os quais me acostumei a ver toda vez que estive doente. Mamãe com seus
comentários sobre como eu poderia ter impedido isso, mas um chá quente,
Matteo preocupado sobre minha temperatura, Bianca com um livro para me
fazer companhia e Petra tentando ficar doente junto comigo para se livrar das
tarefas.
Não que ela fosse desejar ter sido vítima de uma explosão que por
centímetros não a matou.
Eu não desejaria isso nem para o meu pior inimigo.
Agora, quando consigo pensar pela primeira vez, sem sentir a névoa
causada pelos remédios encobrindo tudo que sinto e penso, não sei muito bem o
que aconteceu nos minutos que sucederam a explosão. Tudo de que me lembro é
do calor em minhas orelhas e de ser empurrada para frente. Então, bati contra
algo e apaguei.
Os dias seguintes — se passaram dois desde o acidente, pelo que Susan
me diz — são como um borrão. Desde notar que estava viva, até chegarmos em
Nova York e eu ser colocada aqui.
Estou no quarto que ocupei quando vim a cidade e fiquei hospedada na
mansão Accorsi. Na mansão da família de meu marido, lembro, engolindo em
seco. A enfermeira nota e me oferece um gole d’água. Aceito.
Será que ao menos sabem que acordei?
— Onde estão todos? — pergunto, forçando minha garganta e sentindo-a
arranhar a cada sílaba.
Alguém pelo menos torcia que eu acordasse?
— A senhorita Accorsi ainda não veio hoje, porque é cedo, mas avisarei
a ela que acordou.
Dito isso, Susan desaparece atrás da porta e eu me sinto menor do que
antes, se possível, enfaixada e encolhida na cama gigante. A dimensão do quarto
também parece assustadoramente grande agora. Ou talvez seja apenas a dor que
sinto ao respirar e me mover que esteja fazendo com que eu me encolha.
Noto, após uma leve estudada, que tenho queimaduras leves espalhadas
pelas mãos. Uma bomba. O mínimo que eu poderia ter depois de estar tão perto
da explosão de uma e, por Deus e sua vontade, sobreviver.
Luca.
Luca sobreviveu?
Me lembro de ver seu rosto como um borrão depois que tudo aconteceu,
mas não sei até que ponto o que me lembro é real. O quanto sou confiável.
Por sorte, a porta é aberta menos de cinco minutos depois de Susan sair e
Donatella entra como um furacão. Diminui a intensidade da sua corrida quando
chega perto o suficiente de mim e eu mordo os lábios ao sentir seu abraço.
— Ah, finalmente!
Eu me sinto maior ao ver que ela está feliz e pelo modo como me abraça,
contida, pois a força que pretendia usar seria demais contra meus ossos
fragilizados.
Ela ainda está em seu pijama e nem mesmo escovou os dentes. Isso me
arranca uma risada leve.
— Já estava pensando que você iria ficar só na promessa de entrar para a
família!
— Acho que sou oficialmente uma de vocês se já recebo ameaças de
morte pelo correio, não é? — falo, a voz falhando. Donatella não consegue
conter uma risada e me examina, uma vez que se afasta o suficiente. Uma tosse
chata interrompe sua análise e eu preciso de um segundo para respirar
normalmente de novo.
— Aí, onde estou com a cabeça? Você não deve forçar nada. Muito
menos falar. Os seus pulmões absorveram grande parte do impacto, Becky.
Por isso está ruim respirar. Pareço uma carroça.
— Grave?
— Irá sobreviver e com tratamento, estará nova em folha em breve — diz
com um sorriso sentido, como se lamentasse me dar a notícia. Eu não ligo.
Pelo menos estou viva.
— E Luca?
— Está bem. Pelo que sabemos, ele estava mais longe do que você e se
saiu melhor. Alguns ferimentos na perna e costelas quebradas.
Isso não deve ser nada para ele, penso, com alívio. Não imagino o que
pensaria se estivesse morto. O quanto me culparia, pois, tecnicamente, é como se
tivesse sido culpa minha.
— Como isso… — Preciso de uma pausa para respirar e isso alerta
minha cunhada. Silenciosamente, através do olhar, parece implorar que eu me
cale. — Como eles conseguiram?
Outra sequência de tosse e ela me oferece água.
— Tudo começou com uma carta enviada ao seu pai na Itália. —
Donatella diz, após uma longa respiração. Eu finco minha atenção nela e tento
não permitir que todos os pressentimentos ruins me dominem ao entender qual
era a preocupação de meus irmãos. — Romeu tem um fundo travesso em suas
ações. Ele gosta de instigar o caos, antes de propriamente criá-lo. Então, por
isso, enviou algo a sua família que desejava felicidades pelo casamento e
assinou. Foi o suficiente para criar alertas em todos. Mas ninguém poderia
imaginar que invadiriam seu quarto.
— Como entraram nele? — estou devidamente rouca agora. A voz é
apenas um fio e eu me esforço para falar.
— Luca já havia falado sobre a teoria de dois soldados de Romeu
rondando vocês dois no hotel — diz e eu concordo, lembrando-me do homem no
restaurante. — A teoria óbvia é de que foram eles com a ajuda dos dois soldados
que guardavam sua porta na hora da explosão.
Os dois homens que não reconheci.
— Eles haviam passado a maior parte do tempo na sala de câmeras do
hotel e conseguiram sumir com as filmagens.
— Isso foi confirmado?
— Não precisamos de confirmação para crimes óbvios, mas os dois já
tiveram o que mereciam por nos trair desta forma. Soldados testemunharam que
eles eram próximos de outro rato que tivemos nos negócios há alguns meses.
Ratos são traidores. Homens desprezíveis que vão contra sua palavra e
entregam segredos ou favorecem inimigos.
Estivemos rodeados por dois durante todo tempo. Quantos mais devem
existir?
— Fique tranquila. — Donatella coloca sua mão sobre a minha. — Está
segura agora. Nada desse tipo nunca mais irá acontecer a você.
Como ela pode garantir uma coisa dessas?
De qualquer jeito, a admiro por tentar.
— E minha família? Por que… por que não estão aqui?
— Seu pai achou melhor não voarem para cá quando as coisas estão tão
instáveis — explica, notando a tristeza que me assola por um instante. — Mas
prometemos que iríamos tomar conta de você. E eu dei minha palavra, como
mulher de honra.
Um sorriso frágil brota entre meus lábios e eu aperto a mão de Donatella
em resposta ao carinho que demonstra comigo. Sinto tanta verdade na minha
cunhada que já a considero uma amiga, quase uma irmã. E se como Luca diz, eu
realmente não for seu tipo favorito de amiga, me intrigo por pensar no que ela vê
de tão especial em mim, possibilitando que sejamos amigas.
Ganhamos companhia pouco depois de sua explicação terminar e meus
olhos registram a entrada de Rosalind Accorsi, que educadamente e sutilmente,
se aproxima da cama e me avalia com seu olhar cuidadoso de mãe.
— Que bom ver você acordada, minha querida…
Ela afaga meus cabelos e eu sorrio ao sentir seu carinho em minhas
bochechas. Rosalind não se esforça para ser doce e atenciosa, ela simplesmente
é.
— Sinto muito pelo que vocês passaram. Atitudes como essa me enjoam.
Perturbar um casal recém-formado… Dois jovens! Que tipo de monstro se tem
de ser para fazer algo assim?
— Não se preocupe. Seremos ainda piores ao devolver tudo que fizeram.
Rosalind lança um olhar duro na direção da filha.
— Não perturbe Rebecca com mais violência enquanto ela se recupera,
Donatella! — ordena. — Não acha que ela já teve o bastante disso?
Donatella não se encolhe, mas noto que parece menos decidida depois
das palavras de sua mãe. Não entendo de onde vem, mas posso notar o
desconforto óbvio de Rosalind quando sua filha menciona assuntos típicos de
homens. Há algo entre as duas.
— Tudo de que precisa, assim como Luca, é de paz e sossego enquanto
se recuperam. — Volta a falar. — E eu garantirei que terão isso.
Não duvido de nenhuma vírgula das palavras da matriarca Accorsi. E
vejo que Donatella também não.
Meu quarto, diferente do que eu temia, não fica vazio nem por um
minuto depois que a notícia de que estou acordada se espalha pelos corredores
da mansão.
Os irmãos de Luca, em uma verdadeira comitiva, me visitam logo depois
do almoço. Lorenzo, Leonardo, Marcus, Amanda e até o pequeno Pietro, que se
enrola nos lençóis e meio sonolento, fica esparramado na cama ao meu lado até
que a babá o recolha. E eu me sinto tola por sorrir quando noto como eles
demonstram preocupação, fazendo-me sentir acolhida e parte disso tudo.
Quando eles saem, recebo Max, a animada Angelina e seu irmão mais
novo, ao qual eu ainda não havia conhecido diretamente, Giovanni. Ele é o mais
silencioso, mas educado o suficiente para demonstrar interesse pela minha
recuperação. Com termos difíceis e uma inteligência que se demonstra óbvia,
fala sobre tudo que estou sentindo e é incomodado por Max com tapas na
cabeça.
Até mesmo Tony Accorsi vem em meu quarto e numa visita ligeira,
confere se tenho tudo que preciso e se estou me sentindo bem. É uma conversa
esquisita, mas me sinto importante por ganhar cinco minutos da agenda do
Capo.
Como verdadeira parte de sua família.
No entanto, uma pessoa não aparece por todo dia. Pelo menos não até
que escureça e eu já me sinta pronta para dormir novamente, após o jantar
delicioso que a governanta me traz e os remédios para dor que a enfermeira
coloca em minha veia.
Sou tomada por uma sensação diferente de ânimo quando ele aparece
atrás da porta. O ímpeto de pentear meus cabelos surge, mas estou dolorida
demais para isso. Sei também que devo estar extremamente pálida e com os
lábios rachados, mas se estou assim tão horrível, ele não deixa transparecer em
sua expressão neutra.
A enfermeira pede licença quando ele chega e fecha a porta antes de sair.
Eu estranho, mas então me lembro de que somos casados. Não há problemas em
ficarmos sozinhos no cômodo, sem supervisão.
Noto que ele manca e tem a perna enfaixada enquanto se desloca até a
poltrona colocada ao lado da minha cama. Ainda não diz uma palavra, mas
entendo que sente dor, assim como eu. Há algumas escoriações leves espalhadas
pelos braços e vejo um corte na lateral do seu rosto. A pele bronzeada não é o
suficiente para esconder o avermelhado dos hematomas.
— Olá. — Sou a primeira a falar, assim que ele se acomoda com um
suspiro relaxado. — É bom ver que está vivo.
— Digo o mesmo sobre você — cumprimenta, sucinto. O olhar está um
pouco encoberto, o que me intriga. Parece mais carrancudo do que nunca vi e
atribuo isso a dor física que deve estar sentindo.
— Como está se sentindo? — pergunto, para quebrar o gelo e acabar com
o silêncio. Tento não soar tão rouca ou frágil. Sei que fui mais afetada do que
ele, mas ainda assim, não quero parecer como algo que escapou por tão pouco
assim.
— É a quinquagésima vez que escuto essa pergunta hoje — resmunga,
apoiando o queixo entre os dedos. Contenho meu impulso de chamá-lo de
estúpido, mas ele parece notar que não gostei do tom que usou. — Mas estou
bem e ficarei melhor. Já passei por coisas piores. E você, como está?
— Nunca passei por nada pior do que uma explosão logo atrás de mim,
mas acho que também ficarei bem. — Meu sorriso ao responder é de puro
escárnio e o vejo repuxar seus lábios num sorriso parecido.
— Você entendeu o que eu perguntei. E sabe que se não tivesse aberto
aquela caixa sem perguntar nada a ninguém, como deveria ter feito, nada teria
explodido e nenhum de nós dois estaria nessa situação de merda.
A acusação vem como uma surpresa para cima de mim e eu o encaro,
tentando entender de onde isso chega. Então sou eu o motivo de sua brabeza,
realizo, estudando a postura inconformada e os toques de impaciência na sua
expressão. Mal parece conseguir olhar para mim sem bufar.
— Está querendo dizer que o fato de ter uma bomba no nosso quarto é
culpa minha? — sussurro, afundando a mão em meu peito, como se acusasse a
mim mesma.
— Não distorça as minhas palavras — ordena e eu tento endireitar minha
postura ao receber sua versão autoritária. — Isso não é tão engraçadinho quanto
você pensa e a esse ponto, já se torna um pouco estúpido.
— Agora me chama de estúpida? — soo tão ofendida quanto me sinto.
Ele respira fundo, como se tentasse recuperar a paciência perdida.
— O que eu quis dizer, Rebecca, é que se não tivesse impulsivamente
aberto uma caixa estranha sem minha permissão, não estaríamos nesta situação e
Romeu não estaria rindo por ter nos atingido e da nossa incapacidade de nos
mantermos seguros!
— Ah, me desculpe, Luca Accorsi, se nem todos são tão espertos quanto
você! E me perdoe por não reconhecer uma ameaça encaixotada quando estou na
minha maldita lua de mel! — Num impulso furioso, eu me endireito na cama e
grudo as costas na cabeceira. A dor é pesada, mas eu a ignoro. — E diferente do
que você tenta colocar na minha cabeça agora, eu sei que a culpa não é minha. A
culpa é sua, por não ter me deixado ligar para minha família por causa da sua
insegurança idiota!
Eu só percebo o modo como o enfrentei depois que o enfrento. O rosto
de Luca é uma máscara óbvia de como a raiva crua se parece e eu vejo quando
sua pele avermelha, conforme a irritação borbulha dentro de seu corpo. Ele
reconhece o que eu fiz e como fui desrespeitosa agora, elevando meu tom de
voz, como se fôssemos iguais, quando obviamente deveria ter baixado minha
cabeça e aceitado o que ele tinha a dizer.
E eu sinto medo do que meu marido é capaz de fazer com essa raiva.
A quem eu recorreria, se ele decidisse me castigar pelas minhas palavras
agora? A quem pediria por ajuda? Ninguém. Ninguém me protegeria dele.
Ele pode fazer o que quiser.
Mas contrariando todas as estatísticas, ele não move um dedo contra
mim. Na verdade, tudo o que faz é ficar de pé e manter seu olhar duro em cima
do que sobrou. A boca é uma linha comprimida e eu sufoco qualquer reação de
medo aos seus movimentos, observando-o com atenção.
— Em nenhum momento eu a proibi de ligar para o seu pai, Rebecca —
fala, com uma voz mansa que simplesmente não condiz com quem é e o que
sente agora. Não entendo por que se controla, mas aprecio o fato de que sua mão
não esteja em minha garganta agora. — Não abra a boca de novo para me acusar
de coisas que não fiz ou, pelo seu próprio bem, para dizer que sou inseguro.
— Então, por favor, nunca mais transfira a raiva que sente dos outros
para cima de mim — peço, sem olhar diretamente para seu rosto. De pé, é muito
maior do que eu e eu sinto se quebrar em caquinhos qualquer esperança que eu
poderia ter tido das coisas melhorarem após a praia. — Romeu Ivanov é o único
culpado. E eu sou tão vítima quanto você.
A bolha que parecia ter se criado ao nosso redor após o sexo na areia,
estoura. Vejo no modo como Luca se distancia, primeiro emocionalmente,
depois fisicamente. Nenhum som escapa da sua boca e ele poderia muito bem ser
um estranho. Eu ainda não entendo o impulso descontrolado que me fez falar
tanto, mas eu não me sinto nenhum pouco culpada por isso.
O silêncio não pode continuar sendo minha escolha de proteção para
sempre.
Luca não diz mais nada antes de deixar o quarto e a mim.
Demoram duas semanas para que eu possa andar pela casa. Rosalind
afrouxa os cuidados e posso me sentir menos boneca de porcelana sob sua
supervisão atenciosa. Voltei a fazer minhas refeições na companhia de todos há
dois dias e é muito melhor do que ter de comer sobre a cama, sozinha.
Mas ainda que agora eu possa conviver com a família numerosa de Luca
e saciar essa parte de mim que necessita do conforto de uma companhia familiar,
ainda há uma parte de mim que se ressente de saudades de meu próprio sangue e
pensa na falta que me fazem. Os Accorsi, embora estejam fazendo um trabalho
fenomenal para me receber e acolher em sua vida, não são a minha família. E
não me trazem o mesmo conforto que os Fiodertes.
Mas também é um pouco injusto me prender a isso, considerando que
Donatella sempre está comigo e me apresentou toda casa, além de fazer de tudo
para não permitir que eu me sinta deslocada. E além dela, os irmãos também se
fazem presentes da maneira que podem. Leonardo sempre compartilha algum
minuto comigo no lado de fora e falamos sobre nossos livros favoritos. E é
excelente ter alguém que se importe em conversar comigo sobre algo além de
machucados, casamento e recuperação. Além de ser uma delícia trocar
recomendações e visitar a biblioteca sob sua orientação.
Mas nenhuma palavra foi trocada com Luca.
É claro que nos encontramos no horário das refeições e nos esbarramos
pela casa, mas não houve qualquer menção de interesse de sua parte para iniciar
uma conversa comigo. E vou ser sincera: a repulsa fica óbvia em seu olhar toda
vez que me encontra. Eu sou algo que ele prefere ignorar e dormindo em quartos
separados, é fácil. Na maioria das noites, até esqueço de que sou casada.
Segundo Donatella, ele está proibido de sair de casa para missões ou
festas, o que me traz certo alívio, pois segundo sua irmã, quando ele não está
aqui, só pode estar com Max. A ideia de já estar sendo traída em minha terceira
semana de casamento não é algo que me traga qualquer conforto ou orgulho.
Não que ser ignorada seja melhor. De certa forma, anseio para que ele
finalmente fale comigo e reconheça minha presença, mas isso não parece ser
uma prioridade em sua agenda. E se não é, quer dizer que não está pronto, então
eu evito torcer que me note. Não sei se aguentaria a adrenalina de outro encontro
como o último que tivemos. Nas regras da famiglia, esposas nunca deveriam
erguer o tom de voz para os maridos, como eu fiz.
Luca estava em seu direito de me castigar, mas não fez. Por isso, temo a
tensão que há em volta da expectativa agonizante sobre ele ser capaz de se
manter assim toda vez em que tivermos uma discussão.
— Acha que bolo é necessário num aniversário de vinte anos ou é
infantil demais?
A pergunta de Donatella me resgata dos questionamentos nos quais
mergulhei ao observar Luca atravessar o jardim, para ir na direção de Max, que o
aguarda com luvas de boxe. Eles treinam ao ar livre uma vez por semana, pelo
menos, mas longe da área de lazer, porque os mais novos costumam atrapalhar,
como Dona me explicou.
Eu e ela, aliás, levamos muito a sério o compromisso de tomar sol todas
as manhãs. O que explica o fato de estarmos posicionadas na mesa perto da
piscina que foi limpa esta manhã. O clima é gostoso o suficiente para que não
usemos nada além de cardigãs leves e sandálias. Dona tem seu cabelo trançado e
está concentrada em anotar o máximo de coisas possíveis numa agenda toda
rabiscada. Eu apenas acompanho.
— Do que está falando?
— Do aniversário de Luca. É sem ser nessa, na próxima semana. — Ela
sobe os olhos da agenda para me olhar. — Eu havia comentado com você sobre.
Lembra?
Movo meu olhar para cima de Luca novamente e noto como ele já está
caminhando melhor. A postura já é a mesma de antes do ataque, assim como os
movimentos ligeiros característicos. Sua recuperação foi mais tranquila do que a
minha, que ainda preciso de consultas e exames frequentes para cuidar do estado
de meus pulmões.
— Ah, claro — suspiro, voltando a me concentrar no assunto quando ele
olha por cima do ombro e move seu olhar diretamente sobre nós duas. — O
jantar, certo? No dia quatorze?
— Exato, cunhadinha. — Parece aliviada por eu me lembrar. — Mas
esse, felizmente, eu entreguei nas mãos da minha mãe. Estou cuidando da
segunda parte.
— Que parte?
— A festa mais descontraída e não oficial que acontecerá depois do
jantar — diz, com um sorriso divertido surgindo nos lábios pintados por um
gloss clarinho. A beleza de Donatella é natural, então ela quase nunca usa
maquiagem. Eu, com tantos hematomas a cobrir e sardas insistentes, sempre
estou usando. — Assim eu agrado os dois lados.
— O que planeja?
— Uma festa com tudo que se tem direito em um de nossos clubes. Luca
recusou veementemente a Yorker e o Madame Martino está fora de questão,
então...
Apenas o nome da Yorker é capaz de me causar calafrios e eu entendo
por que Luca não quer sua festa acontecendo naquele lugar. Por Deus, o tanto de
vezes que já andei na corda bamba...
— O que é o Madame Martino? — O nome me dá algumas ideias, mas
prefiro perguntar antes de tirar conclusões precipitadas.
— Hm, bem... — Donatella se ajeita na esteira. — Eu esqueço que você
ainda é nova nessa bagunça toda, mas resumindo, o Madame Martino é o puteiro
que a amante do meu pai comanda.
Engasgo mesmo sem estar tomando nada. Donatella assume isso como
uma reação natural a novidade e apenas espera que eu me recupere, oferecendo-
me um copo d’água.
— O seu pai tem...
— Mikaela Martino é sua amante há mais de vinte anos, Becky — diz,
com um sorrisinho impertinente entre os lábios. A expressão não é de alguém
que demonstra qualquer incômodo além do esperado. — Não é bem um segredo
para qualquer um do círculo. Só não é algo que comentamos em respeito à
minha mãe.
— E ela comanda uma de suas casas? — questiono, ainda meio zonza. —
Como isso... Rosalind sabe que...
— Você viu pouco do meu pai até agora, mas já deve ter notado que ele
não se importa muito com a opinião de outros além da sua. E minha mãe
certamente não é alguém que ele valorize.
Tony, de fato, nunca pareceu alguém aberto a qualquer tipo de conversa e
nas refeições, sempre ocupa sua cadeira na ponta da mesa e sai antes que todos
terminem. Não deseja boa noite a esposa ou se preocupa com o que ela fez
durante o dia. E todos sempre parecem tensos sempre que ele chega no cômodo.
Mas eu nunca pensei que ele fosse o tipo de homem que assume uma amante
quase que oficialmente e deixa que todos saibam.
Isso não faz parte do que se espera de um Capo, mas não posso ser
ingênua a ponto de fingir que nunca soube sobre os casos extraconjugais de meu
pai. No entanto, nunca foi algo que mencionamos ou falamos abertamente.
Mas aqui, as regras parecem ser diferentes.
Me imagino no lugar de Rosalind e penso como me sentiria se Luca
valorizasse uma amante desta forma. Ser chefe de uma das principais fontes de
renda da organização é algo grande, especialmente para uma... prostituta. Eu
certamente não aceitaria isso quieta. Mas também não sei bem o que faria.
O que qualquer uma de nós pode fazer, aliás, contra o que os homens
querem?
Decido, de imediato, não ter Antônio Accorsi ou Mikaela Martino em
meu lado bom.
Chego em casa pouco depois de uma hora, após resolver mais algumas
pendências na rua. Uma chuva fraca cai pela cidade e minha roupa está úmida,
mas vou direto para a cozinha, colocando os sacos de papel em cima da
bancada.
O apartamento está silencioso, mas sei que Beca está acordada pelo som
do chuveiro. Há alguns minutos, enviei uma mensagem para Fiona sobre a vaga
de emprego. Ela é ágil, eficiente e principalmente: sabe manter a boca fechada.
Fora que não podemos comer fora todos os dias.
E eu não confio que minha esposa ao menos saiba acender o fogão.
Controlo o impulso de ir até Rebecca avisar que já cheguei com o almoço
tardio e me sento numa das banquetas em frente à ilha de mármore. Evito olhar
na direção da sua refeição enquanto desembalo a minha e inspiro o cheiro
delicioso de lasanha. É uma das minhas comidas favoritas.
Passa-se algum tempo até que eu ganhe companhia e Rebecca aparece,
pisando suavemente, como se não quisesse perturbar, ignorando o fato de que é
sua casa também. Os cabelos estão molhados e o castanho dos olhos parece
aceso, como chocolate derretido. É uma grata surpresa ver que ele usa um
vestido leve, de ombros caídos. Posso ver o suficiente dela para me lembrar com
prazer da manhã que tivemos.
Este talvez seja o motivo pelo qual ela se encolhe ao aproximar-se da
ilha, do outro lado.
— Boa tarde — sopro o cumprimento na sua direção, mastigando. Ela
levanta os olhos das sacolas e tenta erguer os ombros, mas falha. — Trouxe seu
almoço.
Ela evita olhar muito para o meu rosto e pega a sua embalagem de
comida. Tão silenciosa quanto um fantasma, anda até o micro-ondas e volta
minutos depois, com o prato fumegante, sentando-se à minha frente. Observo
todo o processo até que ela coma a primeira garfada.
— Arancino — reconhece com prazer após morder um dos bolinhos
fritos e recheados com ragu de carne que a moça falou serem típicos da Sicília.
— É uma das minhas comidas favoritas. Obrigada.
— Eu não sabia disso. — Me apresso em dizer, como um verdadeiro
idiota. Ela arqueia as sobrancelhas, confusa. — A atendente recomendou.
O sorriso trêmulo de Beca falha por um instante.
— É claro que sim — concorda, puxando outro até a boca.
Boca que é gostosa pra caralho, assim como ela.
E que rouba minha atenção da farta lasanha por alguns segundos, até ela
me flagrar e a situação se tornar um pouco constrangedora.
Para ela.
— Tivemos uma manhã… atípica — comenta, com o sotaque carregado
na última palavra. — Eu nem vi o tempo passando.
— É, isso acontece quando você está se divertindo.
Aposto cem dólares que ela acaba de morder a língua pela careta que faz.
— Você gostou?
Se fazendo de desentendida, franze o rosto, esperando que eu complete a
sentença.
— De transar comigo, Rebecca — completo, com um leve tom de
impaciência. — Você se divertiu?
— Hm, sim… foi ótimo.
— Ótimo — suspiro. — Eu não costumo fazer aquilo, sabe.
— Aquilo o que?
— Chupar buceta.
O bolinho voa para fora da sua boca e eu engasgo numa risada. Ela
parece prestes a explodir e sem perguntar, rouba meu copo d’água.
— Qual é, Rebecca… Você sabe que é isso que você tem no meio das
pernas, né?
— Não costumo chamá-la por um nome tão chulo em voz alta.
— O que tem de chulo nessa palavra?
— Tudo.
— Não acho.
Ela não responde e devolve minha água. Agora pela metade.
— Eu vou continuar chamando assim.
— Contanto que eu não esteja comendo quando fizer isso.
Rio.
— A roupa de puritana não combina mais com você, linda — Sorrio. —
Não depois de hoje.
Beca me encara por um longo segundo antes de dizer:
— Não a quero mais, de qualquer jeito.
A afirmação me traz certo alívio.
— Fico feliz em ouvir isso — murmuro.
Ficamos em silêncio por algum tempo, até ela se sentir confortável o
suficiente para puxar assunto comigo.
— Você gosta de lasanha?
— Não. Detesto.
Minha ironia não é percebida e ela franze o cenho, me encarando como
se eu fosse louco.
— Estou brincando, Rebecca.
— Ah.
— Você realmente não é adepta do sarcasmo?
— Costumamos falar o que pretendemos de onde eu venho.
— Interessante jeito de viver — comento, despretensiosamente. — Mas
deveria aprender um pouco mais sobre isso, já que vive aqui agora.
— Para me defender das suas piadinhas?
— Para sobreviver a elas, esposa — pisco. Tudo que ela faz é continuar
se servindo.
Acabamos ficando em silêncio pelo resto da refeição.
Meia hora depois, Rebecca desce e eu a conduzo até o carro. Ela pintou
seu rosto e sua pele parece marfim, com os lábios pintados num tom de
vermelho escuro que praticamente me tira do chão, mas não fez nada nos cabelos
além de ajustá-los com uma delicada presilha de brilhantes. Os cachos se
formam nas pontas e eu gosto de vê-la assim, ao natural.
Eu vou dirigindo e tenho Mathias e Roger num carro de apoio. Rebecca
parece nervosa durante todo caminho, até que eu estacione em frente ao melhor
restaurante que conheço.
— É da família da minha mãe — explico, entrelaçando seu braço ao
meu. Todos na rua viram para olhar quando ela desce do carro e eu deixo que
olhem a bela mulher que me acompanha essa noite. — Os Gianotti.
— É um belo restaurante — diz, ainda sem jeito. Eu me pergunto se não
é porque a deixei sem sutiã e calcinha. Ou se é apenas por estar ao meu lado.
A hostess nos conduz até uma das salas reservadas. Não sei se ela gosta
disso ou não, mas é a melhor opção se eu perder o controle e precisar estar sobre
ela antes de chegarmos em casa.
E para que ninguém mais tenha acesso ao tipo de beleza que me
acompanha essa noite. Uma desmedida, incomparável, quase irreal.
Uma que estou enxergando pela primeira vez.
— Você pede?
Afirmo, e ela nem se digna a olhar o cardápio. Quando faço os pedidos,
apenas pede uma taça de água para acompanhar o vinho. O garçom se retira e
promete voltar logo.
— Então… — começo, abrindo os últimos botões do terno.
— Então... — responde, escondendo um breve sorriso atrás da máscara
impessoal. — Obrigada por me trazer para jantar.
— Pensei que seria a melhor forma de conversarmos.
— Fora de casa? — Arqueia a sobrancelha, confusa.
— E de me desculpar — emendo, antes que ela tire todas as conclusões.
O garçom volta com o vinho e nos serve. Tomo um gole antes de continuar e o
aprovo. Ele a serve depois disso. — Pelo que disse na noite do meu aniversário.
— Não sabia que você pretendia se desculpar por aquilo — diz,
desconfortável, ajeitando as pulseiras Cartier nos pulsos. Ela usa três. Eu tenho
vontade de lhe dar mais uma, pois não gosto de números ímpares. — Pensei que
tinha ficado para trás.
— E ficou. Mas aquilo não é jeito de falar com uma esposa.
— Não é jeito de se falar com mulher nenhuma — corrige, e vejo o
brilho incômodo no canto dos seus olhos. Ela bebe um gole de vinho para
ignorar isso e eu me ajeito na cadeira.
— Naquela noite… — bufo, me perguntando como falar dessa merda.
Acho que não tem jeito além de expulsar tudo que der. — Eu tive uma discussão
com o meu pai. E foi a primeira vez que o enfrentei.
Isso capta a atenção dispersa de Rebecca e eu vejo que quer saber tudo
sobre isso.
— Você nunca…
— Ele bateu no meu irmão — interrompo antes que pergunte. — E foi…
porra, foi demais para mim. Talvez já tenha ficado óbvio que eu sou um pouco
fodido, Beca, mas eu sou assim porque apanhei a vida toda. Apanhei para
aprender e para que ele não tocasse neles, entende? Fiz o que eu tinha que fazer
e pagava o preço para que nenhum deles fosse nem um terço do que eu sou hoje.
Meu pai me ensinou a não confiar e muito menos me sacrificar pelos outros,
porque eles me trairiam na primeira oportunidade, e eu cresci tendo que lidar
com esses dois lados. O lado que se preocupa e o que não enxerga ninguém
além dos meus próprios objetivos e das minhas próprias vontades, por que eu fui
ensinado a ver as merdas desse jeito, ok?
Bufo. As palavras se complicam quando ficam pessoais demais e eu
odeio a sensação de urgência que elas me oferecem. Como se eu precisasse
correr antes de meu peito explodir.
— Então você não é a primeira a achar ruim que eu não me dedique a te
entender, Rebecca — digo. — Minha família teve de conviver com essa parte da
minha personalidade por toda vida e acredite, foi tão difícil para eles quanto é
para você. Mas… nunca houve realmente nada que eu pudesse fazer para mudar
isso. Nada que eu quisesse fazer.
— Eu não quero te forçar a fazer coisas que você não quer. — Se apressa
em dizer, encarando-me como um caso de pena.
— Ninguém me força a fazer o que eu não quero, Beca — afirmo, com
certeza. — E nem vão.
— Eu só gostaria que você quisesse me ter do seu lado — explica,
tentando defender a si mesma e suas vontades. — Eu não… Não queria colocá-
lo num lugar tão complicado de se estar.
— Linda, você não está me colocando em lugar nenhum... — Minha fala
sai acompanhada de um sorriso fraco, que eu nem mesmo sei de onde vem, mas
vem. E faz com que me encare com algo que se parece menos como pena e mais
como compreensão. — Nós só estamos começando. E embora você tenha me
irritado pra caralho, e dado um tapa na minha cara, coisa que nenhuma mulher
nunca fez — ressalto com uma pausa. Ela ri, um pouco intimidada. Eu acho
bonitinho. —, foi um bom jeito de me arrancar da minha zona de conforto. Dou
isso a você.
Ela deixa escapar uma risadinha.
— Eu me arrependo de ter batido em você — confessa.
— Não mente, Rebecca. O tapa foi merecido.
Ela ri de novo.
— Você pode bater mais, se eu merecer, aliás. Não é como se eu já não
tivesse sentido coisa pior.
Estou indo alcançar minha taça quando sou surpreendido pelo toque da
sua mão contra a minha. É surpresa e eu a encaro, tentando entender o que
significa o fato dela estar me tocando.
— Eu sinto muito que tenha passado por isso — diz, num suspiro
cansado. Os olhos exprimem mais do que pena, algo que não entendo ao certo.
Talvez seja compaixão. Talvez seja carinho. Talvez seja… algo no meio disso.
— Ninguém nunca deveria ter de passar por isso. Nem você, nem seus irmãos,
nem os meus, nem eu…
— Eu não o culpo por me bater, Rebecca — murmuro, passando longe
da imagem de garotinho ressentido. — Nem acho que não tenha merecido,
mas…
— Ninguém merece apanhar, Luca. Ninguém. E o fato de você ter
defendido seus irmãos e enfrentado o seu pai, assim como eu o vi enfrentando
para defender sua mãe, é importante. E significa que você também acha o
mesmo do que eu.
Ela se endireita na sua cadeira, mas não tira a mão da minha. Na verdade,
ela apenas a fecha ainda mais ao redor dos meus dedos.
— Violência é algo que devemos usar fora de casa, não dentro dela —
diz, a voz suave o suficiente para me fazer relaxar os ombros. — Algo com o
qual você se acostumou, mas que não deve estar presente em todos os
relacionamentos que têm. Algo que alguém como um pai certamente não deveria
usar para punir os próprios filhos. E algo que te tornou o que você é hoje, mas
que não precisa te definir pelo resto da vida.
Eu aperto sua mão de volta.
— Algo que não vai te definir pelo resto da vida — reafirma.
Sua voz sai forte e eu penso que gosto dessa mulher. Gosto dessa versão
dela, disso que se demonstra sendo agora. Da mulher que está do meu lado e
estará por todo tempo. E me pergunto o que gostar dela representa para tudo que
tento suprimir há tanto tempo.
Acho que não vai adiantar mais.
— Você é melhor do que eu pensei que seria, Rebecca Accorsi..
Ela faz um carinho suave contra minha mão.
— E você é menos complicado do que eu esperava, Luca Accorsi…
Sua resposta é o suficiente para mim. Ela solta minha mão e o jantar
chega. É uma boa noite.
Um bom começo.
Na volta para casa, no entanto, não estou mais tão controlado quanto
estava na ida. Bebemos mais de uma garrafa de vinho e o corpo de Rebecca
parece mais tentador do que antes — se é que isso é possível.
Eu estaciono o carro e no estacionamento do prédio mesmo, encontro
meu caminho até o meio das suas pernas. Rebecca geme gostoso quando meus
dedos entram na sua boceta e eu quero rasgar seu vestido.
— Você sabia que esse era o meu plano a noite toda, certo? — sussurro
no pé do seu ouvido.
Ela sorri, e vejo refletido nos seus olhos o mesmo brilho selvagem que
aparento nos meus.
— Você ainda não é nenhum santo — diz e busca meu rosto com fome,
espalhando seu gosto e calor pelos meus lábios, enquanto bombeio meus dedos
para dentro do seu corpo. Eu sinto suas mãos no meu cabelo e rindo, a puxo do
banco, trazendo-a para o meu colo, ansioso para tê-la.
— Nós temos uma cama lá em cima… — murmura, grunhindo ao sentir
minha língua quente passear em seu pescoço. — Vamos para lá.
— Eu posso resolver tudo aqui mesmo. Tudo mesmo.
E afundo ainda mais meus dedos.
Ela fecha as pernas, contraindo as coxas e eu sinto sua mão tocando meu
pau por cima das calças.
Acho que aqui não vai ter espaço para tudo que eu quero fazer com ela.
— Foda-se. — Desisto de ser jovenzinho e deixo o carro. Ela ainda está
no meu colo e gargalhando, prende as pernas ao redor do meu corpo enquanto
caminho até o elevador. Travo o carro sem olhar duas vezes para trás e quando a
cabine abre as portas, prendo seu corpo contra o espelho. Rebecca ri, como uma
menina travessa e eu mordo sua boca, sugando seus lábios. Ela mói seu corpo
contra o meu e eu seguro firme abaixo da sua bunda, apertando-a até que sinta
que não há mais espaço para isso.
— Nós chegamos no andar, Luca — diz, sem fôlego e eu seguro debaixo
das duas pernas. Chuto a porta de casa, não ligo para a porra nenhuma e vou reto
em direção a escada. Beca desfaz os nós das costas sem olhar e quando a deito
sobre a cama, o tecido cai e me revela tudo que preciso para ser feliz.
Seus mamilos estão duros e eu os coloco na boca, pressionando meu
corpo contra o seu. Beca geme apenas pelo contato entre nossos sexos e eu passo
as mãos por dentro do vestido que me tenta há tempo demais. Ele rasga nos
lados e Beca grunhe irritada, mas não há nada que ela possa fazer.
— Eu compro outro — resumo a história e concluo o serviço. Sua pele
está a mostra para mim e eu beijo dos seus seios ao fim da barriga, tocando tudo
que posso, sentindo tudo que posso. É mais sobre necessidade do que vontade.
Eu preciso do seu corpo.
Porra, o que essa italiana fez comigo?
Vou mais pra baixo e beijo a fenda entre suas coxas, mas ela me impede
de continuar e me puxa pelos ombros para cima.
— Me fode logo.
Eu engasgo numa risada.
— O que você disse?
— O que você ouviu — resmunga irritada e eu beijo o canto da sua boca.
— Seu desejo é uma ordem, linda.
Empurro as calças e tudo entre estar fora dela e dentro passa em branco.
Rebecca me recebe com o calor com o qual já me acostumei e eu vou relaxando
conforme entro, sentindo seu corpo me abraçar com força. Ela espalma as mãos
no meu peito e eu seguro os seus seios. A mistura é um pouco caótica, mas
quando encontro o ritmo, é delicioso estar envolvido nessa bagunça fodida com
ela.
Rebecca geme alto o suficiente para provavelmente alertar nossa visita
— Luna — de que estamos tendo o tempo de nossas vidas, mas não parece se
importar de que ela saiba o que fazemos. E eu adoro que ela não dê a mínima.
Minha mão vai por trás do seu pescoço e seguro seus cabelos, mantendo-
a rente à cama. O suor escorre por toda sua pele banhada apenas pela luz natural
que invade pela janela aberta e eu não prolongo as coisas. Gozo antes e não me
arrependo. A ajudo a encontrar seu clímax com os dedos e minha respiração
ofegante pertinho do seu ouvido. Ela recebe seus espasmos de prazer com alívio
e se agarra a mim como se sua vida dependesse disso. Eu gosto da sensação das
suas unhas cravadas contra minha pele.
— Porra…
Ela está rindo e prestes a abrir a boca para falar alguma coisa quando o
som de algo se quebrando no andar debaixo interrompe tudo e nos traz de volta à
realidade.
— Você escutou isso? — indaga e eu me afasto do seu corpo, subindo o
jeans. Correndo, ela puxa o lençol e cobre seus seios, sentada na cama
bagunçada. Eu estou de pé antes que ela se mova novamente e puxo a
semiautomática do aparador, recarregando-a sem tirar os olhos da porta. —
Luca…
— Fica aqui.
Estou longe de ser o garoto despreocupado de minutos atrás quando
deixo o quarto. Descalço, ando devagar o suficiente para não ser notado. O
corredor está escuro e vazio, pois já passa da meia-noite. Tudo que tenho é a luz
que vem das vidraças e quando chego ao topo das escadas, sem enxergar nada,
desço.
O apartamento só tem uma entrada.
Chego ao primeiro andar e noto que tudo está no mesmo lugar. Tudo
menos o vaso da mesa de centro.
Esse está espatifado no chão.
Eu empunho a arma com mais firmeza e coloco as coisas numa nova
perspectiva. Mas de nada adianta pensar por ela, pois sou atingido na nuca antes
de conseguir conter a ameaça.
Caio, mas não apago. A pancada foi forte o suficiente para me deixar
zonzo, mas consigo lidar com essa sensação e chuto quem quer que esteja atrás
de mim. O chute acerta seu joelho, e o homem fraqueja, curvando-se por um
segundo, me permitindo acertar outro chute no topo da sua garganta. Ele engasga
e cai contra as escadas.
Eu rolo para longe dos degraus e puxo minha arma de vez, mirando-a no
seu pescoço. O homem é pálido como o inferno e tem os ombros lotados de
tatuagens.
— Quem é você e o que quer na minha casa?
— Surpresa, filho da puta — responde, exibindo um sorriso sangrento.
Eu o acertei no queixo também, com o chute. Sua voz sai fraca e quase rouca.
Meu dedo raspa o gatilho e eu vou atirar quando o calor de um cano no
meu ouvido me faz parar. Arregalo os olhos e os subo lentamente, espiando a
lateral de um corpo que não me é estranho, embora eu nunca o tenha visto
pessoalmente.
— Abaixe a arma, Accorsi e nos poupe de todo esse trabalho.
O sotaque forte de Romeu Ivanov me faz gelar pela primeira vez em
muito tempo.
Meus olhos imediatamente buscam pela escada e penso se Rebecca teve
tempo de se esconder. Mas os gritos que ecoam do segundo andar são o
suficiente para me mostrar que não.
Porra, porra, porra.
— Vai abaixar ou quer que meu irmão a traga aqui embaixo para que sua
amada assista eu explodir a sua cabeça?
Irmão.
Rodrik Ivanov.
Jogo a arma nos meus pés e subo as mãos. O homem à minha frente
ainda sorri, como se o sangue lhe animasse e fica de pé. Quando se sustenta nas
duas pernas, seu pé encontra o caminho até meu estômago e eu rolo para longe
depois do chute, até bater na parte de trás do meu sofá. Romeu permite que o
homem passe e circule a área da sala, virando-se para mim.
Eu respiro fundo, engulo a dor e me apoio nos cotovelos para ficar de
pé.
— Como vocês entraram aqui?
— Bela performance lá em cima, amigão. — Romeu volta a dizer e cada
sílaba que diz me enjoa. O seu capanga ri. — Aposto que ela ainda está
lubrificadinha, né? Rodrik vai gostar…
Eu estou de pé tão rápido que é inútil que seu capanga se aproxime. Eu
chego até Romeu e minha mão acerta seu pescoço. Ele engasga, mas não se
rende. O ajudante me puxa pelos ombros e torce meu braço até que o som do
meu osso sendo fodido ecoe pela sala.
Eu urro e recebo os gritos de Rebecca de volta. Ela sabe que estou
ferrado também agora.
Porra.
— Se você encostar um dedo na minha esposa…
— Ah, Luca, não vamos fingir falsa moralidade agora. O que vocês têm?
Um mês de casamento? Nem isso? Não finja que se importa com a puta italiana
que está lá em cima.
Eu assimilo a dor do braço e me levanto, sentindo cada fibra em meu
corpo se dedicando a me manter de pé. Romeu admira o esforço.
Ele é mais alto do que eu, mais forte também. A idade com certeza tem
fator decisivo nisso. Seu cabelo loiro é raspado, o maxilar é duro e os olhos
verdes brilham na minha direção com diversão.
— Foi uma pena que eu não tenha ido à cerimônia. Sinto muito por isso,
aliás. Mas acho que vocês receberam meu presente de casamento, certo? Era o
do pacote vermelho. Foi bem caro…
Rebecca está sozinha com o irmão dele.
Rebecca.
— Vá se foder, Romeu — cuspo as palavras. — Me diga o que quer de
uma vez e suma daqui.
— O que eu quero? Ah, Luca, você é muito engraçado pessoalmente para
achar que você vai conseguir me dar o que eu quero… E certamente pensa muito
de si mesmo.
— Se livre do seu guardinha de merda e me deixe te mostrar como eu
sou o que dizem que sou por aí, Ivanov — rio, mesmo que meu braço doa como
o inferno, minha arma esteja no chão e minha esposa esteja sozinha com o irmão
de Romeu.
O irmão psicopata de Romeu.
— Acha que está na posição de fazer exigências, Luca?
Ele guarda sua arma no coldre em sua cintura e eu calculo quantas armas
deve ter. Cinco, provavelmente. Eu teria seis, mas ele não deve ser tão
inteligente.
E se estou vivo ainda, significa que não pretende me matar.
— Veio aqui apenas olhar para mim, seu imbecil, ou vai fazer alguma
coisa?
— Já fiz — antecipa. — Já fiz muito. Assim como você, italiano. E
confesso… Pensei que seria capaz de mais para proteger a cidade tão adorada de
vocês.
— Ah, por que você não enfia suas opiniões na…
Seu capanga surge antes que eu termine e acerta um soco na minha
bochecha. Não posso revidar, não com Rebecca em jogo. Não posso fazer porra
nenhuma e isso é o que me deixa louco.
Caralho!
— Mas tenho uma proposta para você, caso já esteja tão cansado quanto
eu estou de toda essa merda.
Ele passeia pela minha sala e vai até o carrinho de bebidas. Analisa
umas, faz cara feia para outras e no final, volta a me olhar.
— Cancele a aliança com Vittorio Fioderte e se junte a mim.
— Eu sou casado com a filha dele — digo, em um tom que beira a graça.
— Me desculpe, Ivanov, mas não vou largá-la para comer a sua bunda. Não é
meu tipo de coisa.
— Continuará até mesmo se meu irmão já tiver começado a fodê-la da
maneira que estava ansioso para fazer? Até sangrar, doer, implorar que ele e a
mate... — sorri. E eu sinto o mesmo tipo de calafrio que preenche pessoas em
salas de espera na busca de soluções impossíveis. Meu corpo inteiro treme e meu
olhar está super focado agora. — Entende que não está em posição de escolher
aqui, certo?
— Entendo que você está desesperado para que não coloquemos o
exército Fioderte atrás de você, mas não viu que isso já é uma realidade. Se fosse
esperto o suficiente, já estaria longe daqui.
— Eu não tenho medo de vocês, Luca.
— Nem eu de você, Ivanov — grunho. — Então por que não sai da
minha casa, deixa minha esposa em paz e resolvemos nossos problemas em
outro momento? Apenas eu e você, como homens de verdade.
— Não preciso de rituais tão imbecis de autoafirmação, Accorsi — ri. —
Eu só preciso vencer no final.
Um sorriso rasga meus lábios e eu ignoro a dor por um instante.
— Isso não vai acontecer.
Ele sorri.
— Veremos.
Rebecca grita de novo. E sua voz ecoa pelo apartamento inteiro.
E reverbera em meus ouvidos, pois não sei do que se trata. Não sei o que
está acontecendo lá em cima.
Porra.
E ele enxerga toda parte de mim que se contorce em agonia por imaginar
o que está acontecendo lá em cima, sem poder ir ao seu socorro, sem poder
explodir a maldita cabeça de Romeu até que não sobre nada do homem que
ousou invadir minha casa e perturbar minha esposa.
— Sabe que uma vez que o adversário sabe sua fraqueza… — murmura,
divertido com as manifestações vindas do segundo andar. — O jogo se torna
dele, certo?
Uma gargalhada alta escapa dele.
— Esse é o meu jogo agora, Luca. Então tudo só se torna uma questão de
quem irá dar a última jogada.
Não respondo. Não preciso disso. Dessa disputa de ego do cacete.
— Ou fode ou sai de cima, Romeu.
E ele ri, rodopiando os dedos no ar. Mais seis homens surgem dos
corredores e eu penso que chegou finalmente o momento de conhecer o capeta.
Certo, eu já o provoquei várias vezes demais. Já chega para mim. Até que
durou bastante.
Mas os homens apenas fazem uma formação ao lado do chefe. Todos
altos como paredes, tatuados e brancos até o osso. Me detestam por respirar e
poderiam fazer cacos de mim bem agora, sem esforço nenhum.
Mas ficam parados. E observam.
— Não derrubo quem já está no chão. — Romeu volta a dizer e eu escuto
passos nas escadas. Dali, um homem que se parece muito com ele desce. E seu
nariz está sangrando. Pingando, na verdade, quase jorrando sangue, que mancha
toda sua camiseta.
Rodrik.
Romeu revira os olhos ao ver o estado do irmão, mas eu comemoro. Até
ver a braguilha da sua calça aberta.
— Então apenas considere isso como um aviso do que realmente está em
jogo aqui. — O fodido russo volta a sorrir. A boca faz uma curva no rosto cheio
de alegria e eu queria rasgar cada um dos seus dentes para fora.
— Eu a deixei quentinha para você. — É tudo que seu fodido irmão diz.
Eu fico de pé, abandono a razão e vou para cima dele. Mas me impedem de
chegar perto e sou atirado contra meu sofá novamente. Um dos capangas saca a
arma e a aponta para a minha cabeça.
Ele só precisa da ordem.
— Nos acertamos na próxima, Luca. — O Pakhan russo diz, declarando
o fim da sua visita. — Tenha uma adorável noite.
Romeu bate em retirada e tudo que resta é a dor, o nervosismo e a
incerteza de que encontrarei a mesma mulher que deixei lá em cima.
Luca desce rápido o suficiente para que eu nem escute seus passos
ecoando pelo andar de cima. Eu continuo parada, escondida pelo lençol,
torcendo que não seja nada. O impulso de colocar a mesma camisola que deixei
pendurada nos cabides antes me invade e eu a coloco, voltando para cima da
cama.
Penso em fechar os olhos, mas o impulso passa quando me convenço de
que não vai ser necessário.
Não vai ser nada. Luca vai voltar aqui para cima e…
Oh, Deus... Luna.
O som de algo caindo no andar debaixo me ativa todos os alarmes
possíveis. Eu grito e busco pelo meu telefone na cama. Mas não chego a
encontrá-lo, pois desisto quando escuto sons de passos no andar que estou.
— Luna? — chamo, sem dar um passo. Todo meu corpo está fervendo
em antecipação e Deus, como eu espero que seja apenas a minha amiga, tão
assustada quanto eu…
Mas não é.
Eu pulo para trás e choco minhas costas contra a cabeceira quando um
homem que nunca vi antes invade nosso quarto.
Ele é alto, mais alto do que eu jamais vi alguém ser e têm cicatrizes feias
no rosto. O cabelo é loiro num tom quase cinza de tão claro. E há algo doentio
no modo como olha em minha direção, passeando com os olhos pela cama que
ocupo, parando, finalmente, sobre mim.
— Oi, gracinha.
O som de seus coturnos contra o chão faz com que eu me encolha ainda
mais. O lençol é grande o suficiente para me cobrir, mas não é proteção
nenhuma. Lágrimas irrompem pelos meus olhos com força antes que eu pense
sobre isso e soluço, tentando me esconder do que já me viu.
— Quem é você?
— O seu amor, linda... — ri, caminhando na direção da cama. Ele faz
isso devagar, como se apreciasse o medo que eu expresso sem saber ao certo o
que ele pretende. — Vim continuar o que Luca não terminou.
— Saia da minha casa agora! — berro. Mas isso só lhe faz sorrir. — Saia,
maldito!
Alcanço o vaso no aparador e atiro na sua direção. Ele se abaixa e não é
atingido. Eu grito ainda mais quando ele corre, e finalmente me alcança. Toca
minha perna e eu o chuto, enojando-me da forma como grunhe e rosna,
praticamente latindo, ao tentar tocar mais e descobrir tudo.
Luto sem enxergar direito e rolo na cama quando ele puxa um canivete
do bolso e acerta o lençol branco. O rasga no meio, bem onde eu estava e caída
no chão, ao lado da cama, tento raciocinar para onde ir.
Antes que eu pense em chegar até a porta, ele fica entre mim e ela e sorri.
— Não seja difícil, Rebecca… Me deixe descobrir que gosto você tem.
Ou como é a sua cara quando está comigo dentro de você.
Eu grito mais e alcanço o que quer que seja para acertá-lo. Quando não
há mais nada em meu alcance, corro para trás e tento me encolher contra a
parede. Não consigo. Não consigo fazer nada.
Só consigo gritar e quando ele vem para cima de mim, o acerto com
tapas e arranhões, mas nada é o suficiente.
— Por que se fazer de difícil quando você quer tanto, Rebecca?
— SAI DE CIMA DE MIM!
Meu berro é mais forte, mais potente, mas quase não tem efeito.
— Meu nome é Rodrik, aliás. — Ele toca meu queixo e beija minha
bochecha. Na verdade, ele a lambe. Eu choro e soco seu peito. Soco tanto que sei
que está doendo, mas ele parece ser resistente a isso — E você é ainda mais
bonita do que eu pensava.
Ele se afasta para olhar em meu rosto e quando tenta me beijar, fecho
meu punho e acerto seu rosto. A mão que estava prestes a tocar minha barriga é
recolhida para conter o sangue e eu corro para longe, até chegar ao banheiro. Lá,
na primeira gaveta, pego uma tesoura.
Escuto os passos dele no quarto e sua risada. Lá embaixo, Luca grita. Eu
choro ainda mais por pensar que já o pegaram e grito por socorro, sem parar.
— Becaaaaa! — Rodrik chama meu nome num tom de voz estranho. —
Não torne isso mais difícil!
Procuro por mais alguma coisa na bancada e encontro um alicate. E a
gilete da barba de Luca. Puxo a navalha para fora, corto a ponta dos dedos
fazendo isso, mas quando Rodrik chega ao banheiro, eu o ameaço com isso.
— Você ia gritar bem mais do que fez com o seu marido, querida. Não
quer saber como isso seria? Como seria ter um homem de verdade?
Ele toca na sua braguilha e eu rosno, olhando para seu rosto. Ele está
doente. Doente ao ponto de achar que o que fala, é a verdade.
— SOME DA MINHA CASA!
— Sabe o que meu irmão já fez com o seu marido a essa altura?
Transformou ele em pó. Em adubo. Então seja uma boa garota, abaixe as armas e
aceite que sua vida nova é comigo.
Eu grito e num impulso, vou para cima dele. A navalha corta ainda mais
minha mão e eu a afundo onde posso, bem no meio do seu rosto. Ele grunhe pela
dor instantânea, mas consegue segurar meu rosto e me jogar contra a bancada.
Bato com tudo contra o mármore e espalho tudo que estava em cima da pia,
sujando meus pés.
Filetes grossos de sangue escapam e ensopam sua camiseta cinza, mas
não são o suficiente para fazê-lo desistir.
Até que algo apita no seu ouvido e ele para, com um sorriso avaliador.
— Eu não terminei ainda, Romeu.
Russo. Ele está falando russo. Língua que eu entendo, porque meu pai
me fez aprender.
Saber a língua do inimigo é essencial, Rebecca.
E Romeu… Rodrik…
A família Ivanov.
Os russos estão aqui.
— Não, porra!
Ele para e escuta o que quer que o irmão tenha a dizer.
— Vá se foder com suas promessas idiotas! — grunhe e toca no ouvido,
desligando o fone. Então sorri de novo para mim.
— Eu te vejo de novo em breve, florzinha. Espero que melhore o jeito
como me recebe até lá.
E sem mais nem menos, ele deixa o banheiro e em seguida, o quarto.
Tenho alguns minutos depois disso para absorver o baque e não consigo. Não
consigo assimilar nenhuma gota do que acaba de acontecer. Tudo que faço é cair
de joelhos, chorando copiosamente, enquanto meu corpo inteiro parece trabalhar
para se livrar de toda adrenalina que corre em minhas veias e me mantém alerta
a tudo. Minhas mãos estão tremendo e eu vejo tudo duplo, sem conseguir
discernir os móveis ou quem quer que tenha acabado de entrar.
Há sangue em meus braços. Sangue daquele monstro.
Eu preciso me limpar.
— Beca?
A voz de Luca soa rouca quando me encontra e ao ficar de pé, o vejo
chegando no banheiro. Seu braço está torto, na melhor das definições, sua boca
inchada e vejo que não teve nada fácil lá embaixo. Mesmo assim, parece melhor
do que eu.
— Beca, o que ele fez a você?
Eu continuo a chorar. E muito. Tanto que escondo meus olhos e tento não
tremer por inteira, mas é impossível. Tudo em mim está em colapso agora.
O jeito que aquele homem me olhou… o que ele queria fazer… o que se
achou no direito de fazer.
— Beca, me responde, por favor…
Luca enfim se aproxima de mim e parece deixar o próprio medo de me
tocar para fora. Suas mãos encontram meus ombros e mais uma vez, estou
escondida contra seu peito, enquanto o choque de uma vida fora da proteção
integral de meu pai me atinge. Uma realidade dura, onde eu não sou mais
intocável. Onde nenhum de nós é.
— Eu preciso saber o que ele fez, Rebecca…
Agora ele parece estar apelando, mas eu ainda não consigo falar. Não
quero dizer. Luca sabe o que ele pretendia ter feito. Sabe que riscos um homem
representa para uma mulher. E teme que a pior das coisas tenha acontecido
comigo, sem se preocupar com o braço que praticamente pende em seu corpo ou
os inchaços em seu rosto cansado.
— Ele não conseguiu fazer nada… — confesso, me encolhendo ao
lembrar das expressões do homem. Do modo predatório como se divertiu me
caçando em meu próprio quarto. Em minha casa.
Os ombros de Luca relaxam um tanto ao escutar as palavras. E ele me
abraça mais forte, embora mal possa mover os ombros.
— Mas ele encostou em mim… Ele… ele queria me…
— Está tudo bem — responde, alisando minhas costas. — Está tudo bem
agora. Ele nunca mais vai respirar no mesmo lugar que você. Nunca mais. Por
Deus, se depender de mim ele não chega vivo ao dia de amanhã, Beca…
— Não — clamo, chamando sua atenção para cima de mim. — Eu não
quero você perto dele… Não, não, não…
O choro volta. E volta com o dobro de força. Eu estou tremendo e Luca
me encara como se não soubesse o que fazer, como se nunca tivesse pensado
sobre chegar em algum lugar como esse.
— Becky…
Então eu colapso de vez, enxergando o sangue em meus dedos, sentindo
o fantasma das mãos nojentas de Rodrik em cima de mim e o despreparo de
Luca em lidar com uma mulher em pânico. Choro e choro alto. Extraio toda
energia que há em mim e sucumbo ao chão do banheiro.
Choro tanto e canso tanto, que apago. Mas eu não sei se por exaustão ou
se é apenas meu corpo tentando me livrar de todas as sensações ruins que me
inundam agora.
Como se não enxergar nada fosse muito melhor do que ver alguma coisa.
Quando acordo, não é meu marido que está ao meu lado. Donatella
segura a minha mão com força e me encara com uma doçura que é nova em sua
expressão sempre tão decidida. Noto o rosto inchado e me pergunto se é de sono
ou de choro. Não consigo chegar a uma resposta exata.
— Oi, Becky…
— Oi — respondo e até mesmo tento sorrir. Ao puxar meu braço, sinto
uma fisgada no braço. Há algo na minha veia. — O que é isso?
— O médico achou que fosse bom te dar algumas coisas… hm, Luca
também pensou que seria melhor se você dormisse mais um pouquinho.
— Me doparam? — questiono, com a voz escapando rouca, bem
baixinha. Não dói falar, mas sinto meu corpo pesado. É difícil até mesmo abrir
os olhos.
Ela não nega, nem concorda.
— Tudo bem.
— Como você está se sentindo?
— Só cansada… — E mesmo assim, tento me sentar. Donatella não
aprova minha decisão, mas me ajuda, afofando o travesseiro em minhas costas.
— Obrigada pelos curativos nos dedos.
Noto como as pontas dos meus dedos estão cobertas e gosto de ver que o
anel ainda está presente. Ninguém tocou nele.
— Onde está o Luca?
Sua irmã se ajusta na poltrona que arrastou para perto da cama e não
entendo ao certo o que se passa em sua cabeça. Se é preocupação ou medo que
vejo.
— Onde ele está, Donatella?
— Ele saiu para ver algumas coisas, hm… mas eu vou avisar que você
acordou. — Puxa o telefone do aparador e digita rapidamente. Parece mais
jovem do que nunca agora e eu me lembro de que têm apenas dezesseis anos. —
Ele vai voltar logo.
— Dona, o que ele saiu para fazer?
— Ele está com Max, Beca. Vai ficar tudo bem.
— Eu pedi que ele não fosse atrás de ninguém.
— Ele não… Beca, com o que eles fizeram contra vocês…
— Nenhum deles fez nada contra nós dois. Rodrik não encostou em mim.
Eu não deixei que fizesse. E deixaram Luca vivo quando saiu. Não há motivo
para ele estar lá fora os caçando ao invés de estar aqui…
— Há questões que superam a relatividade de se estar vivo ou não, Beca.
Questões que você talvez não entenda, mas eu, que nasci e cresci com Luca,
posso enxergar claramente… — Ela respira fundo. — Ele não vai sossegar até
que você seja vingada.
— Mas eu não quero! Eu não preciso disso! Eu preciso que ele esteja
aqui!
Meus gritos são quase histéricos e Dona se espanta.
A porta é aberta e sem mais força nenhuma para chorar, enxergo Luna se
aproximando. Ela, que provavelmente não estava aqui na hora que tudo
aconteceu.
Mas que me olha como se preferisse estar no meu lugar.
— Becky…
Minha amiga me dá um abraço tão apertado que sinto partes de mim nas
quais não havia prestado atenção reclamarem pela pressão. Talvez ele tenha me
apertado, talvez tenha tocado mais do que realmente notei…
Me sinto suja.
— Eu sinto tanto, tanto, tanto por não ter estado aqui, amiga… — Chora
em meus ombros e eu apenas a abraço de volta, me afastando quando ela escolhe
fazer o mesmo.
— Foi apenas um ataque. — O segundo, como minha mente faz questão
de lembrar. — Eu sobreviverei.
Eu sobrevivi.
— E fico feliz que você estivesse longe na hora… — sorrio, sendo mais
do que sincera. O que Romeu e Rodrik poderiam fazer ao encontrar alguém tão
valioso para a Cosa Nostra como a filha solteira de seu Consigliere? As coisas
que fariam com ela… — Onde estava, aliás?
Seu olhar corre pelo quarto e com um sorriso tímido direcionado para
Donatella, sei na mesma hora que vai mentir.
— Fui visitar uma amiga que mora aqui. Você a conhece, certamente.
Massima.
— Massima? — Eu nunca ouvi esse nome em toda a minha vida.
— Massima Fiore… uma querida. Sobrinha da minha tia.
— Então ela é sua prima? — Donatella questiona, tão curiosa quanto eu.
Luna procura pelo rosto dela com uma expressão terrível de quem foi pega no
pulo.
— Não, é da parte do marido dela.
Fingindo que caiu nesse teatro terrível, Donatella concorda e nos pede
licença. Luna ocupa a poltrona na qual ela estava antes e segura minha mão da
mesma forma carinhosa.
— Você é uma péssima mentirosa — digo, feliz em não ser o tópico de
conversa agora. O rosto fino de Luna enrubesce e eu tento encontrar alguma
pista do que está acontecendo na sua postura. — O que você fez, Luna?
— Não é o momento de falarmos sobre isso.
— Pelo contrário. Aceito qualquer coisa que não me faça pensar sobre o
que aconteceu. Ande, fale.
Com o olhar baixo e insegura de um jeito que eu nunca vi, Luna expulsa
todo ar dos seus pulmões e ri como uma criança travessa, como se estivesse
guardando uma ótima piada. Ou uma brincadeira de muito mau gosto.
— Eu dormi com Max.
— Max?!
— Max.
Estou lenta pelos remédios, então preciso de um minuto inteiro até
entender o que suas sobrancelhas arqueadas querem me dizer.
— MAX?
Meu Deus.
— Luna…
— Eu sei.
— Não, você não sabe!
— Acredite, eu sei — reforça, torcendo os lábios. — Fiz a maior merda
da minha vida.
— Per Dio! Você é… meu Deus, você era… Luna, você…
— Sinceramente, eu preferia não falar sobre isso, mas vou apenas dizer
que aconteceu na noite do aniversário de Luca. Você me deixou sozinha, eu bebi
um pouco demais, ele me ajudou com algumas coisas que aconteceram na pista
e… é.
— Você dormiu com alguém antes do casamento!
Minha melhor amiga sorri.
— Um ponto para o livre arbítrio — pisca, mostrando que não se
arrepende de nada. Ou pelo menos não tanto quanto deveria.
Oh, céus, o tamanho da bagunça que isso pode se tornar…
Max.
O primo do meu marido.
Meu primo Max.
Ela dormiu com Max.
— Se o seu pai souber…
— Ele nunca saberá — diz, recobrando a consciência num repente. —
Nunca, Beca.
Meu peito se aperta por um segundo.
— E meu irmão? Luna, Matteo talvez pretendesse casar com você…
— Eu transei, Rebecca, não jurei amor eterno. Por favor, não faça eu me
sentir mais culpada do que já me sinto…
Com seu pedido, prefiro guardar para mim tudo que ainda possa haver a
ser dito e tomo um instante para assimilar e respirar fundo. Esse é o tipo de
notícia que pode mudar tudo.
Tudo mesmo.
Antes que possamos retomar o assunto, no entanto, a porta do quarto é
aberta e todo meu mundo volta a girar ao redor de apenas uma pessoa.
Luca.
Ele entra no quarto como uma força da natureza, rápido e decidido. Luna
está de pé antes que ele se aproxime da cama e seus olhos registram mesmo que
eu: o sangue que mancha as roupas de meu esposo, que me pergunto se existem
chances de o líquido escarlate pertencer a ele. Mas está seco. E a tipoia de tecido
na qual seu braço está imobilizado.
Ele não aparenta nenhuma dor quando se aproxima, ocupando a lateral da
cama.
— Eu vou deixar vocês dois sozinhos. — É tudo que minha amiga diz
antes de deixar o quarto. O barulho da porta se fechando é o único durante algum
tempo, enquanto Luca apenas me observa.
Ele levanta a mão do braço bom e a coloca no meu queixo, então vira
meu rosto para um lado, depois para o outro. Não fala nada, apenas me analisa,
buscando por alguma coisa. Sua mão escorrega pela minha clavícula e chega aos
braços. Ele estuda cada um deles cuidadosamente e quando está prestes a puxar a
coberta, o impeço.
— O que está fazendo?
— Quero ver como você está.
— Então me pergunte como estou — falo, em tom de obviedade. É a
primeira vez que seus olhos encontram os meus desde que entrou. — Eu estou
bem.
— Não minta para mim.
— Eu estou bem, Luca.
— Ele tocou em você.
E ele fala isso com a certeza de quem sabe do que está falando. Talvez,
quando o doutor veio, ele tenha estado junto. Talvez tenha visto coisas que não
vi e nem quero ver.
— Isso é culpa minha.
— Quê? — grunho em choque. — Luca, não fala besteira…
— Eu deveria ter te protegido. Eu não consegui fazer isso e você teve de
ficar sozinha com aquele fodido. Rebecca, eu nunca vou me perdoar por isso.
— Luca, você me protegeu. Você foi emboscado. Está tudo bem.
— Eu fiz um juramento. — Volta a dizer, cerrando os dentes. — Um
juramento onde eu prometi cuidar de você. Para que coisas assim nunca
acontecessem.
— Luca…
— Você pode me culpar por isso, assim como pode me odiar. Eu aceito
isso. Aceito o que for que vier de você depois de falhar desse jeito e…
Sou eu quem segura seu rosto agora e puxo sua atenção até que seus
olhos estejam concentrados apenas nos meus e em nada mais. O seu peito desce
e sobe num ritmo inconstante e o olhar azul parece tão exausto quanto
desesperado. Não tem uma expressão de glória, como a que costumo enxergar
todos os dias. Muito pelo contrário. Luca parece derrotado.
— Você nem mesmo tomou banho depois do ataque — falo, indo para
uma direção diferente.
— Beca, isso não é…
— Por que você não tomou banho?
— Você não precisa se preocupar comigo.
— O que fizeram com o seu braço?
Ele olha na direção da tipoia. Olha como se nem mesmo tivesse
percebido que a colocaram.
— Isso não importa.
— Importa para mim — falo, enchendo meu peito de ar, ignorando a dor
e as lágrimas. — Por que foi por minha culpa que você não pode se defender do
jeito que precisava, certo?
Ele me encara por trás dos cílios longos. Tão longos que eu os invejo
toda vez que olho para seus olhos.
Ele não nega.
— O que significa que estamos empatados, se precisamos mesmo buscar
culpados pelos ferimentos um do outro dentro deste quarto.
— As coisas não funcionam assim. É minha responsabilidade manter
você segura, não o contrário.
— Me desculpe, mas se não me engano, fizemos o mesmo juramento,
Luca. — Minha resposta o pega de surpresa e vejo um punhado de quem ele é,
retornar à superfície. O olhar se acende como se tivesse gostado da resposta. —
E o manteremos até o final.
Meu marido não é do tipo que chora e nem eu espero que faça isso.
Também, porque ele não parece nenhum pouco triste. Ele parece apenas…
compassivo. Visual que lhe cai bem, e me permite ver um novo lado de sua
personalidade, que a cada dia, se expande mais. Vejo um pouco de carinho no
modo como me olha e com certeza vejo alguma importância pelo jeito como se
culpa e ao lembrar de como me olhou quando me encontrou…
Eu sou alguém para ele. E ele é o mesmo para mim.
E estamos aqui um pelo outro.
— Você é mais teimosa do que eu esperava, Rebecca Accorsi.
O nome parece trazer orgulho a ele.
— E você é menos do que eu temia, Luca Accorsi.
Então como se houvesse um novo acordo onde abraços são comuns, ele
me puxa para perto do seu corpo e me fecha ao redor de seus braços. O sangue
que suja sua roupa não me incomoda e nem o preocupa. E eu apenas permito que
me sinta aqui, viva e segura.
Parece ser o que ele precisa.
— Eu nunca mais te deixarei sozinha.
Quando Rebecca caiu no banheiro, eu não soube direito o que fazer. Um
pavor bem diferente de tudo que já senti assumiu o controle e eu apenas tive a
reação de impedir que ela batesse sua cabeça contra o piso frio. Toquei seu rosto
o suficiente para deixar marcas nas suas bochechas, na esperança de que me
respondesse e dissesse que estava tudo bem, até eu ter a capacidade de virar a
chavinha e permitir que o meu outro lado assumisse.
Só vendo pelo lado lógico, fui capaz de pegar o telefone e discar o
número de Max. Ele fez todo o resto e uma hora depois, um médico examinava
minha esposa, após Donatella limpar e cuidar dos ferimentos pequenos em suas
mãos. Quando trocou a roupa dela, eu vi o roxo que o combate deixou em seu
quadril e eu só esperei que o doutor terminasse sua avaliação para escoltá-lo até
a porta e não voltar mais até aquele quarto.
E eu não voltei até ela acordar, porque não havia descoberto um modo de
controlar minha raiva. Eu precisei escapar do apartamento, sem banho mesmo,
acompanhado apenas por Max. Eu rastreei cada canto ao redor do nosso
apartamento e soquei alguns idiotas no caminho. Exigi mais dos meus soldados.
Exigi nomes. Exigi saber como Romeu soube meu endereço e como ele entrou
em minha casa. Max apenas acompanhou, sendo meu apoio e talvez meu limite
para não ir tão longe assim e não passar da linha invisível que nos mantém
conectados aquele pequeno pedaço de humanidade que ainda nos resta.
Pedaço este que faz com que eu me preocupe mais do que deveria com a
mulher deitada à minha frente, dormindo depois de nossa conversa. E motivo
pelo qual eu abandonei tudo que estava fazendo na rua para vir até aqui uma vez
que minha irmã me avisou do fato dela ter despertado.
Eu não sosseguei até ver com os meus próprios olhos, porque, por um
momento naquele banheiro, eu me perguntei o que eu faria se ela não voltasse.
Se Rodrik tivesse a matado. Se Romeu tivesse dado a ordem definitiva.
Se tivesse feito alguém tão puro pagar pelos erros de homens imundos...
Eu acho que perderia esse pequeno pedaço que ainda resta e tenho medo
do que viria de um Luca que só enxerga as trevas.
Mas agora, enquanto a observo dormir, de banho tomado, penso se não é
ainda mais perigoso que eu sinta que a última pontinha de luz que resta em mim
tenha se apegado tanto à menina que dorme na cama à minha frente.
Sabe que uma vez que o adversário sabe sua fraqueza… O jogo se torna
dele, certo?
Foi o que Romeu disse. O que ele falou pensando no desespero óbvio em
meus olhos ao saber que Rebecca estava sozinha com o seu irmão, no que ele
poderia fazer contra ela.
Contra a mulher que eu deixei desprotegida.
Os juramentos são sérios para nós. Definem quem somos, o que fazemos
e o que defendemos. E quando falhamos com eles, falhamos com alguém. Ou
com nós mesmos, ou com aqueles que dependem de nós. E eu nunca havia
falhado dessa forma. Nunca havia permitido que alguém sob minha proteção
ficasse tão vulnerável a qualquer coisa.
Principalmente porque, até o dia de hoje, todos com os quais me
preocupei, eram membros da minha família. Me iludia pensando que mamãe
estava segura com a frota de guardas e sempre preferi pensar que eu estava
apanhando no lugar dos meus irmãos, para que eles não precisassem. Mas eu
falhei com isso tudo também, não é?
Uma puta fraude.
Dizer que ver minha esposa em risco acordou um lado de mim que
estava dormente há muito tempo, é um exagero. Ver que meus irmãos foram para
sua cama, numa tentativa de escapar dos gritos da mãe, foi o início. Ver as
marcas em Rosalind, a continuação. E o roxo em Marcus… o estopim. Agora,
encarando Beca dormir, apenas me sinto mergulhado numa onda tão profunda de
cólera, ódio e fúria que me sinto cego em relação à maior parte das coisas.
E metade dessa raiva é direcionada a mim.
Eu estou de pé, mas a que custo?
Permitindo que todos ao meu redor caiam todos os dias? Me fechando
para o exterior, preferindo me preocupar apenas com o que posso controlar? E
com que motivo?
Fugir da ira do papai?
Ser o melhor soldado possível?
Orgulhar meia dúzia de velhos que irão caçar minha cabeça na primeira
oportunidade?
Porra, não. Nada disso deveria importar mais do que não ter de ver
aqueles que confiam em mim para protegê-los bem, seguros e felizes.
Com este pensamento, deixo o quarto nos mesmos passos leves de antes.
Rebecca nem mesmo se move na cama e eu acho melhor assim.
Não gostaria que ela me pedisse para deitar ao seu lado essa noite.
Encontro a sala cheia, o que talvez não seja minha coisa favorita em todo
mundo, mas é o que preciso hoje. Max está soprando a fumaça de seu cigarro,
enquanto Lorenzo estuda alguns relatórios e mapas, concentrado. Donatella
mexe no telefone, distraída, e na poltrona da ponta, Luna parece perdida dentro
de uma xícara de chá.
— Ei, cara… como ela está? — Maximus é o primeiro a me enxergar e
eu me sento ao lado dos gêmeos. Na verdade, bem no meio deles.
— Dormindo — simplifico. — Os remédios fizeram efeito.
— Um ponto para o doutor açougue. — Dona diz, engatando numa
risadinha sem graça. — Ela vai ficar bem, Lu.
Será?
— Eu estou estudando algumas rotas possíveis pelas quais Romeu
poderia ter entrado aqui sem ser notado pela segurança. — Enzo diz, a cabeça
sempre à frente. — Mas o prédio tem apenas duas entradas e não há jeito desse
filho da puta ter usado um helicóptero para descer aqui.
— Ele pode ter os meios.
— Não, é apenas uma questão de logística… Luca não viu equipamentos
de escalada em lugar nenhum. E os viu sair. Além de que, seria uma péssima
ideia de discrição.
— Então ele já deveria estar aqui antes — comento, tentando entender o
monte de linhas que Enzo rabiscou sobre plantas do prédio e da minha casa. —
Alguém facilitou a entrada dele.
— Ficam guardas nas duas entradas. Toda noite. Todo dia. Você acha
que…
— Acho que é óbvio que traidores já não são mais casos isolados dentro
dessa merda de organização — resmungo, e assumo uma das plantas. —
Facilitaram no Havaí, facilitaram aqui.
— Vocês têm um alvo nas costas. — Max conclui a sentença, resumindo
o que todos já entendemos a este ponto. Vejo a melhor amiga de Rebecca se
mexer pelo canto do olho e fixo minha atenção nela.
Luna não estava aqui.
— Onde você estava essa noite?
A pergunta parece puxá-la de supetão de um monte de pensamentos que
não envolviam nossa conversa e eu endureço a postura ao ver sua expressão de
espanto.
— Eu?
— Algum problema em responder?
Seus olhos passeiam pela sala e param sobre Maximus. Eu sigo, sem
entender por que ela recorreria a ele.
— Eu não…
— Ela estava comigo. — Ele diz, sem enrolação. Apaga o cigarro no
cinzeiro em cima da mesa e balança os ombros, despreocupado. — Não foi
responsável por furar a sua segurança e ameaçar Rebecca. Acalme-se.
— Vocês estavam… juntos? — Lorenzo pergunta e parece ser o único
chocado.
Eu sabia que esse filho da puta não ia aguentar muito tempo sem fazer
merda.
Mas a italiana boazinha e solteira, filha do consigliere da Cosa Nostra e
afilhada do Capo? Que porra…
— Isso não vai dar certo. — Dona verbaliza o que todos pensamos e eu
encaro a boa menina no canto da sala. Os cabelos loiros podem até passar um ar
de inocência, mas ela não engana. Não a mim, pelo menos. — Nenhum pouco.
— Eu pensei que vocês não se suportassem. — Enzo volta a falar,
sempre prezando pelo óbvio. Max ri.
— Quem sabe guardem as opiniões para vocês? Eu e Luna acertaremos
isso.
Burro.
— Tudo bem, então… — respiro fundo. Não tem espaço dentro de mim
para se preocupar com os problemas de todo mundo. — Meu pai já foi avisado
do que aconteceu aqui essa noite?
— Os soldados repassaram a ele. — Dona fala, já que Max está ocupado
demais conversando por olharzinho com sua nova diversão. — Marcou uma
reunião.
— Já? Que surpresa…
— Você está fora do tempo que te deram para se recuperar. As coisas
podem acontecer agora. Podemos ir contra eles e fazê-los pagar por se meterem
conosco.
As palavras de Max me despertam para isso e alívio passa por minhas
veias pela primeira vez ao realizar que poderei me vingar. Que poderei fazê-los
sentirem-se tão impotentes quanto fizeram comigo.
E de que me divertirei muito fazendo isso.
Quando chegamos em casa, minha mãe nos recebe na garagem. Seu rosto
não demonstra nada além do mais óbvio terror e eu tento parecer um pouco
melhorzinho quando ela coloca suas mãos ao meu redor, abraçando-me como se
tivesse a certeza de que nunca mais iria me ver.
Seu choro é estrangulado, quase sufocante e eu vejo a expressão de
Estevan, ainda sentado no banco de motorista, observando a cena. Observando o
alívio de Rosa.
— O que ele fez com você, meu bebê? — Ela toca meu rosto como se
fosse de vidro e eu vejo um pouco do meu sangue manchar seus dedos,
escorrendo entre seus anéis. A aliança de casamento continua ali, intacta e
brilhante. — O que aquele monstro teve coragem de fazer a você, meu filho?!
Eu entro em estado de alerta imediatamente e corro meus olhos para o
soldado fiel de Antônio. Ela não deve se arriscar desta forma.
— Estou bem, mãe…
— Antônio o deixou na academia após uma lição, Rosalind — A voz de
Estevan se sobressai as nossas. — Deu ordens de que não deveríamos tirá-lo de
lá, a menos que…
O soldado não termina sua explicação e eu vejo no rosto temperado em
fúria de minha mãe que não precisa. Todos sabemos o que Tony deve ter dito.
A menos que ele morra.
— O sangue me preocupou e sinceramente, acho que quebrou o braço. —
O soldado continua. — O seu…
— Já chamei o médico. Ele está a caminho, eu só… Por favor, me ajude
a tirá-lo daqui. Preciso colocá-lo em seu quarto.
— Tony está? — Estevan pergunta e eu pareço ter me tornado mero
coadjuvante diante dos olhares que ambos oferecem um ao outro. Não entendo
bem o que acontece, mas há algo aqui. Algo como confiança. Algo como…
— Hoje é dia de estar com Mikaela. — Rosalind diz em desprezo e me
liberta do cinto. Mesmo tendo nove anos, já sou grande demais para seu corpo
frágil e ela não consegue me carregar.
Vendo seu esforço, Estevan desce do carro e me toma nos braços antes
que ambos despencássemos contra o chão da garagem silenciosa.
O soldado me carrega nos braços sem esforço nenhum e eu vejo minha
casa passar num borrão até estarmos no segundo andar, onde ele me deita sobre
minha cama. Grunhidos tímidos de dor escapam da minha boca quando meu
corpo se acostuma com a nova superfície e engulo o choro, vendo como meu
braço está ferrado.
Mas minha mãe chora como se a dor fosse nela.
— Eu vou matá-lo — fala, com um tom decidido o suficiente para me
fazer arregalar os olhos. — Eu juro por Deus, Luca, por você e por seus irmãos,
que eu vou matá-lo..
— Mãe, não diga coisas como essa na frente de um soldado, por favor…
— choramingo, temendo que Estevan saia daqui e vá direto até ele, contar tudo.
Ganharia uma estrelinha por entregar a esposa do Capo dessa forma. Talvez
ganhasse até a chance de dar o tiro de misericórdia em seu corpo depois que meu
pai a castigasse. — Ele vai machucar a senhora…
— Não tenha pensamentos como esse, Rosalind, por favor. — Estevan
pede, a voz calma, terna, de um jeito que nunca escutei antes. Mamãe dá voltas
no quarto e eu me pergunto onde estarão Lorenzo e Donatella, ou os bebês
Leonardo e Marcus, de três e um ano. Se estão seguros. — Mantenha a calma.
— É o meu filho que está nessa cama, Estevan! O meu filho! E Tony
acha que pode… Acha que pode fazer isso com uma criança? Acha que pode
machucá-lo dessa forma por não cumprir suas ordens maníacas desgraçadas?!
Eu tento falar, mas não consigo. Está doendo demais e agora eu só quero
chorar, não importa o quão fraco isso me torne. O quanto Estevan nunca vá me
respeitar como seu futuro chefe depois de me ver nesse estado. Eu não me
importo.
Eu só tenho nove anos e meu pai me bateu. Eu quero chorar.
Então eu choro. Copiosamente, sem fôlego, sem pausa, eu choro,
derramando toda minha dor sobre os ferimentos, tornando o rosto da minha mãe
num espelho da minha própria dor, enquanto ela se aproxima e tenta me acalmar,
me puxando para seu abraço, esquecendo toda raiva que a dominava há um
segundo.
— Vai ficar tudo bem, amore mio… vai dar tudo certo. Irá parar de doer
em um segundo, a mamãe promete…
— Eu não quero que ele te machuque, mãe… — falo, soluçando e me
agarro nela com um braço só, não importa o quanto dia fazer isso. — Por favor,
mãe, não faça nada…
Ela me abraça com ainda mais força depois disso.
— A mamãe não vai a lugar nenhum, amor… está tudo bem.
— Ele vai fazer o mesmo que fez comigo a senhora… — murmuro,
chorão, engasgado em lágrimas — Porque eu fui fraco, mãe. Porque eu não… eu
não consegui me levantar do chão e Estevan precisou me tirar de lá… E eu sou
uma vergonha, mamãe. Eu o envergonho e coloco a senhora em perigo… E eu…
— Ei, Luca… Luca? Pare com isso! Agora!
Ela me segura pelos ombros, estrategicamente onde não dói e eu tento
parar de chorar, mas ainda não consigo. Então ela sobe as mãos até meu rosto e
com carinho, cuidado e uma atenção que nunca esquecerei, faz carinho sobre os
machucados de uma forma que não doam, esfregando minhas lágrimas para
longe.
— Escute bem o que vou dizer a você agora, ok? Não importa o que seu
pai disse, não importa o que saia da boca daquele homem… Não há vergonha
nenhuma em precisar de outras pessoas. Vergonha nenhuma em confiar em outra
pessoa. E não há erro nenhum em se permitir sentir as coisas. Está certo? O seu
pai não passa de um monstro cuja alma foi levada há muito tempo, Luca, mas
você é o meu filho. E eu não vou permitir que ele destrua tudo de bom que vejo
em você, meu amor.
— Eu deveria ter me cuidado sozinho…
Ela toca minha nuca e esconde meu rosto na curva do seu pescoço. A
essa altura já não sei se Estevan ainda está aqui ou não. Parece que somos apenas
nós dois e eu aceito isso. Aceito seu amor, seu carinho e seu cuidado.
— Não há problema nenhum em precisar que os outros cuidem de nós às
vezes. É para isso que a família deve servir. Sempre.
E eu faço questão de não esquecer desse conselho.
— Você fez mesmo tudo aquilo por mim?
A pergunta de Rebecca assim que cruzamos a porta da cobertura me pega
de surpresa e desatento, olho para seu rosto, tentando entender de onde vem a
curiosidade. Sou capturado pelo seu olhar no primeiro instante e fujo logo
depois, me dedicando a livrar-me da jaqueta pesada — um pouco molhada da
chuva que pegamos ao sair da mansão — e tiro os sapatos.
— Não fiz nada demais.
— O que…? Luca, você fez algo incrível!
A sua voz expressa encanto e algo além, que me incomoda. Admiração.
Como se eu fosse digno disso…
— Chamou toda minha família porque sabia que eu precisava vê-los, não
é?
Eu não respondo. Ao invés disso, caminho até o sofá, onde pedi que
Mathias deixasse o que reservei há alguns dias.
Rebecca me segue, mantendo uma distância controlada.
— O que é isso? — pergunta, conduzindo toda a conversa, enquanto eu
pego o pacote com um laço rosa, separando-o do segundo, um pouco maior.
— São meus presentes para você — explico, cuidando de sua reação.
— Você não precisava gastar dinheiro comigo…
— Sério mesmo que você acha que dinheiro é um problema? — penso
por um segundo. — É por isso que não usa os cartões que te dei?
Há algumas semanas, os cartões que pedi na lua de mel chegaram. Eu os
entreguei em sua mão, mas tudo que Beca faz é gastar no débito e quantias
mínimas. Quantias que certamente não se adequam ao padrão de vida que
sempre teve e deve continuar tendo agora.
— Eu não quero usar algo que é seu…
— Nosso, Rebecca. O meu dinheiro é o nosso dinheiro — corrijo, um
pouco irritado demais para o momento. Ela se encolhe. — Me incomoda que
pense que não posso te comprar um presente ou que não possa gastar no que
quiser. Eu pareço pobre para você?
— Não. Longe disso…
— Então aceite o que tenho a te oferecer — falo, num tom próximo de
ordem. Se ela se ofende, não demonstra e eu realmente espero que não tenha,
pois não foi com essa intenção que falei. Apenas quis deixar claro.
Me sento no sofá e a entrego o primeiro pacote.
— Primeiro esse — indico e como uma criança que foi malcriada, Beca
se aproxima e senta ao meu lado, aceitando o presente. Eu tento não rir da sua
cara de quem fez merda e a observo desfazer o laço. — Sem bombas dessa vez
— garanto e vejo sua careta se abrir num sorriso.
Só dois perturbados para rirem de uma situação como essa, mas é bom
ver leveza em seus ombros. Pelo lado positivo, saímos vivos. Não há motivos
para remoer aquilo.
— E para que eu não seja egoísta e leve todo o crédito... — Ela me
encara rapidamente e posso ver o que diz através dos seus olhos “como se isso
fosse problema pra você”. —, Donatella me ajudou a escolher.
Ela sorri ainda mais depois disso, como se fosse especial ter duas pessoas
teimosas discutindo qual seria o melhor presente para ela e ao abrir a tampa da
caixa larga de veludo, parece encantada e imagino Donatella ao saber que a
minha escolha foi a melhor.
É uma gargantilha de diamantes, fina, e delicada, mas que não deixa de
ter custado uma fortuna. Ainda assim, sem problemas. Teria pagado o dobro para
vê-la usando o que fosse que a fizesse feliz.
Merda.
Tentando me distrair rápido, não penso nas implicações do que acabo de
pensar.
— É tão linda, Luca… — suspira, como se estivesse sem fôlego. Seus
dedos passam por cima das pedras e ela analisa uma a uma, com cuidado e
atenção. — Tão, tão linda…
— Donatella falou que as mulheres sempre deveriam receber três coisas
em seu aniversário…
Eu me inclino e pego o segundo pacote. Aquele que estava atrás dela.
Beca acompanha meu movimento e ambos prestamos atenção na caixa de
madeira marcada com seu nome.
Rebecca Accorsi.
Mas seu sorriso some assim que abre a pequena fechadura da caixa e
enxerga, envolvida por espuma, uma arma.
Mais especificamente, uma Beretta 9mm, preta, para que não se destaque
de tudo que leva em sua bolsa.
— … as primeiras duas coisas são joias e armas — continuo a frase e a
vejo tocar o cabo da arma, tirando-a da caixa. Me lembro dos berros de
Donatella sobre a não necessidade de personalizá-la com um cabo rosa e vejo
sentido nisso agora. Foi um inferno fazer compras com a minha irmã, mas nisso
ela tinha razão. Talvez o rosa assustasse Beca.
— Você me deu uma arma — diz, em choque. — E eu nem sei atirar,
Luca…
Seu rosto inteiro se contorce em algo que me diz que está indo de volta
às memórias do que aconteceu no outro dia, quando ela não conseguiu disparar.
Eu me apresso em puxá-la para longe deste momento.
— Você sabe o básico. Carregar e mirar. Também sabe para que serve o
gatilho — indico cada parte da arma e ela acompanha meus dedos. — E terá
aulas com Estevan, um de nossos soldados, no Galpão.
O seu olhar procura o meu no mesmo instante e me preocupo em ver algo
que me desaprove dentro deles, mas por sorte, não encontro. Há apenas algo que
não reconheço. Ou que talvez prefira não enxergar na maioria dos dias.
Medo.
— Eu não…
— Ele ensinou Dona, Max e Lorenzo e ensinará aos meus outros irmãos.
É um ótimo professor.
— Ele não foi o seu professor? — questiona, com a suspeita clara no
modo como franze o rosto. A arma continua em suas mãos.
— Tive lições com Antônio — simplifico e ele não procura saber mais.
Sem precisar dizer, concordamos em não estragar o bom clima que nos rodeia
agora.
— Ele vai querer me matar quando ver que não sou nem mesmo capaz de
atirar — despreza a si mesma e eu balanço a cabeça, negando no mesmo
momento.
— Ele é o melhor soldado e o melhor professor. Contanto que você não
faça como Max, que acertou seu pé na primeira aula, ficará tudo bem.
Não conto a ela que Estevan é o melhor por motivos que vão além da
concepção que qualquer um fora da bolha tem de um bom soldado. Além de ser
habilidoso, por tudo que já fez, é possível saber que tem algo que falta em
muitos de nós: empatia.
— Max fez isso?
Eu rio.
— Max era péssimo, Beca. Ele demorou uns seis meses para conseguir
acertar um alvo parado. Sinceramente, Estevan fez milagre…
Minha esposa ri, reagindo como se descobrir que Max é capaz de falhar
mesmo sendo um de nós, assim como todos os seres humanos podem, fizesse-a
se sentir bem.
E eu gosto de ver como seu rosto se abre quando ela sorri sem se
importar com nada, nem com quem está ao redor. Rebecca foi criada para agir
como a dama perfeita na frente de todos e saber que comigo, ela se permite
deixar sair o que realmente sente, é bom. Bom de um jeito que me deixa
intrigado. Bom de um jeito com o qual não estou acostumado.
É isso que eu quero ver.
Grande parte da hipocrisia do nosso mundo está em querer manter as
mulheres comportadas, reprimidas, caladas, enquanto soltamos nossos demônios
diariamente e entregamos a elas o fardo de carregar o nome da família com
honra, como se fosse sua responsabilidade purificar-nos, como um homem de
verdade nunca deveria fazer.
Não que eu queira que ela saia do que se é esperado. Que ela se rebele.
Mas quero que ela seja feliz, pelo menos em momentos como este, quando
estiver apenas comigo, quando formos apenas nós dois e nada além disso
importar.
Eu nunca desejei uma mulher como a desejo e ao mesmo tempo em que
isto me anima, me assusta. E eu não estou acostumado a ficar assustado.
O que significa me sentir inteiramente conquistado pela mulher que está
a minha frente?
O que significa não conseguir desejar nenhuma outra, nem pensar que
seria capaz de deixá-la desprotegida ou sozinha a qualquer minuto?
O que significa sentir que minha única missão nessa vida fodida do
cacete, desde o dia em que coloquei um bendito anel em seu dedo, é torná-la a
mulher mais feliz da porra do mundo inteiro, sem permitir que nada lhe alcance,
nem perturbe?
Fodido.
Eu estou fodido, porque me apaixonei pela mulher com quem me casei.
E não sei como devo lidar com isso.
— Já podemos ir dormir agora? — Beca pergunta, depois de falar uma
série de coisas com as quais apenas concordei. Acho que me perdi dentro dos
seus olhos em algum momento. — Tudo que eu quero é um banho.
— Ainda falta um presente.
Ela parece chocada por um segundo, até entender que as aulas foram um
complemento do segundo. Decidido, então, a não deixar o que se aquece dentro
de mim e revira tudo que mantive calmo por tanto tempo, suma, eu tiro os
presentes da sua mão e a seguro, puxando-a para longe do sofá.
— O que mais você poderia me dar hoje, Luca? — pergunta, como se o
mundo fosse tão pequeno assim, e eu não fosse um filho da puta do cacete capaz
de colocá-lo todo aos seus joelhos apenas para vê-la sorrir.
No entanto, eu não respondo até estarmos no segundo andar e depois,
dentro do nosso banheiro. Posiciono Rebecca no centro do cômodo e vou até o
chuveiro. O box é de vidro e ela pode me ver enquanto giro o registro,
permitindo que a água caia.
— Sexo — digo e a resposta soa tão leve e sincera, que a faz rir,
chacoalhando os ombros. Eu chuto os sapatos e puxo a camisa, jogando-a longe.
Beca acompanha o trajeto da camisa com as bochechas virando.
— Donatella quem sugeriu que isso seria um ótimo presente também?
— Nah, nesse eu pensei sozinho. — Sorrio, vendo o modo como seu
corpo dá pequenos sinais em reação a mim. Os mamilos enrijecem, não
consegue manter as pernas separadas, a boca se abre e o olhar foca, as íris acesas
como fogo. — E gostaria de levar todo crédito.
Usando apenas a calça, me aproximo da minha bela esposa, que ainda
está toda escondida em seu bonito vestido de aniversário, parecendo a garota
comportada que gosta de ser e a garotinha que seus pais adoraram ver, sem ter
ideia do monstro que eu tiro da jaula aos poucos.
O sorriso guloso em seu rosto quando me aproximo e toco sua cintura,
espalhando o toque dos meus dedos sobre sua carne ansiosa para me sentir,
entrega isso.
— Mas se você estiver muito cansada…
— Não — fala, fazendo meu corpo reagir. — Você pode começar a pedir
pelos créditos.
Então eu faço exatamente o que ela pede e levo meus dedos até a parte de
trás do vestido. A umidade da água quente começa a subir pelas paredes e eu
poderia dizer o mesmo de seu corpo. Posso sentir a antecipação, a respiração
entrecortada quando minha mão invade o tecido fino do vestido após abrir o
zíper lateral, forçando caminho até seus seios pesados e suculentos.
Os peitos mais lindos que já vi.
Beca não se move e eu empurro o vestido, revelando uma peça fina de
renda, que em nada me agrada, embora contribua para a beleza da visão. Eu a
tiro, colando meu peito no dela e atiro longe a lingerie, para o inferno, que seja.
Sua respiração bate contra a minha nuca e eu subo a outra mão, que não está
apertando e tocando seu peito, para sua cabeça, agarrando seus cabelos. Ela
grunhe quando puxo forte demais e eu deposito um beijo na pele descoberta,
chupando-a com a minha língua, enquanto sinto seu calor começar a se espalhar
por seu corpo e emanar para o meu.
Com o pau duro, preciso me controlar, mas sua boceta quente me atrai e
eu passo meus dedos por cima da calcinha. Ainda não sinto a umidade que eu
gostaria e faço círculos sobre seu grelo, sentindo seu corpo responder ao meu
com leves gemidos baixos.
— Você pode gritar, se quiser, amor.
A voz de Beca falha.
— Então me dê motivos — arrisca de volta e meu corpo se enche de um
tipo muito perigoso de chama, aquela que combina perfeitamente bem com meu
orgulho.
Roubo um beijo de sua boca avermelhada e quando ela responde a ele,
consumindo-me com o mesmo desejo com que a provo, me afasto, deixando-a
com os lábios inchados entreabertos e praticamente implorando por mais apenas
com os olhos.
Me ajoelho à sua frente e escorrego meus dedos pela sua barriga,
levando-os até a barra da sua calcinha. É branca, fina e mal cobre os pelos que
ela prefere manter. Eu não me importo com eles e quando roço os dedos contra
eles, sei que ela sente.
Volto para sua calcinha e a puxo pra baixo, passando o tecido pelas suas
coxas grossas que poderiam me sufocar até a morte — e eu agradeceria —,
terminando em seus pés, com as unhas pintadas de vermelho.
Gosto como tudo em Rebecca é provocativo quando se observa os
detalhes, as nuances, e as camadas, mas nunca óbvio. É a calcinha fina, o sutiã
quase transparente, as cores ousadas que escolhe de batom ou esmalte e o modo
embriagado como me olha quando estou afundando a boca na sua boceta e a
cumprimentando com minha língua gentil, deslizando por toda extensão de sua
fenda, chupando-a com vontade absurda de sentir seu gosto e fazê-la gozar na
minha cara.
Sua respiração falha no primeiro segundo e eu agarro suas coxas,
escorregando até sua bunda, quando ela corre para se recostar contra a parede e
eu subo uma de suas pernas para meu ombro. Minha língua suga cada canto que
encontra e eu a beijo com vontade o suficiente para que enfim grite.
E meu corpo inteiro se aquece com isso.
Porra, que doença é essa de ficar excitado por que minha parceira está
excitada? Que porra de vontade do caralho é essa de querer que ela berre até se
esgoelar, com as pernas bambas e o corpo inteiro suado, comigo dentro, perto ou
apenas a lambendo, como faço agora?
Italiana desgraçada do caralho.
Fodeu a minha vida e agora está fodendo a minha cabeça.
Chupo com mais vontade, mais força, mais motivação. Cravo as mãos na
sua bunda grande e a trago para mais perto, assistindo seu corpo se encher, seu
peito inflar e sem conseguir me conter, aperto um de seus seios, enquanto minha
língua gira sobre seu clitóris e faço pressão o suficiente até que goze, acariciando
seu mamilo rosado e duro, com sua boceta doce na boca.
Quando fico de pé de novo, seu corpo reflete o suor que causei e ela mal
pode manter os olhos abertos. Gosto disso e gosto ainda mais quando ela me
puxa para frente e fecha a boca na minha, permitindo que eu suba suas pernas até
encontrarem minha cintura. Meu pau duro lateja contra sua boceta quente e
molhada e eu quero fodê-la tanto e tão forte que preciso de um segundo antes de
gozar sem nem ter lhe sentido direito.
Era só o que faltava daí...
Finalmente, caminhamos até o box e eu coloco nossos corpos debaixo da
água. Aperto sua bunda, estapeio um dos lados e ela grita e ri, passando a mão
sobre meu cacete duro, adorando senti-lo assim.
Beca ri, feliz pela grata surpresa e enrola a mão ao redor da minha cabeça
rodada, lambuzada do líquido que sai antes de gozar. Eu sinto sua mão macia
escorregar por todo o meu comprimento e pressiono meus dedos contra sua
boceta, investindo, deslizando por seus lábios, enquanto ela geme e arfa com as
costas arqueadas contra a parede e os olhos entreabertos. A água caí entre nós
dois e falha em tentar conter o fogo antes que ele nos consuma.
— Você é tão grande, amor… — sussurra contra meu ouvido e meu
corpo inteiro entra em pane. Eu rosno, investindo contra o centro das suas pernas
pela primeira vez. Meu pau desliza e ela geme, mordendo o lábio. — E eu gosto
tanto quando você me chama assim… — diz, ronronando contra meu ouvido, a
boca escorregando contra minha pele. Chorosa, quase implorando que eu a foda,
ela fecha os braços ao redor do meu pescoço e beija meu peito.
— Eu gosto tanto de você, Luca… — confessa e eu ignoro a resposta do
meu corpo a isso. Ignoro sua confissão de olhos entreabertos, ignoro o que
significa que ela goste de mim. Ignoro o peso de saber que irei destruir essa
garota se me tornar quem estou destinado a ser.
Porra.
Fecho a mão ao redor dos seus cabelos mais uma vez, deixando o seu
rosto livre para mim e subo seu rosto para que ela possa me enxergar
completamente quando digo:
— E eu gosto de você, Rebecca.
Como se estivesse embriagada, ela ri, e eu me afundo nela, empurrando
meu pau até o fundo, fechando a boca ao sentir seu calor me receber, sua boceta
molhada me apertando com força.
Ela geme contra meu ouvido, agora de verdade e por completo, como se
eu lhe desse tudo que sempre quis e eu fecho a boca em seu ombro, tentando
controlar as batidas do meu coração e a minha vontade de ir até o fim. Ela geme
em um grito quando aumento a velocidade e rindo, enquanto geme, diz:
— A água do planeta vai acabar…
Sorrindo, viro seu corpo e ela bate contra a parede. Agarro seu cabelo e
ela geme, empinando a bunda, na qual eu bato, apenas porque posso, porque
quero, porque é meu.
— Que se foda o planeta.
Desesperado para senti-la, entro nela por trás e Beca grita seu gemido,
com minhas bolas batendo contra sua bunda.
Ela curva seu corpo contra a parede e a água cai em minhas costas, mas
que se foda toda essa merda. Eu a fodo do jeito que quis desde o início e ela
amolece, quase grata por isso. Seu corpo me recebe e eu passo a mão sobre sua
boceta, feliz demais em senti-la molhada enquanto me afundo nela, fazendo-a
gritar.
Invoco todos os palavrões que me lembro, penso em qualquer porra,
tento não encarar sua bunda gostosa sacudindo com meu pau passando no meio
dela, mas nada adianta e eu gozo, liberando-me por inteiro dentro dela. Beca
ainda está gemendo e eu a ajudo a atingir o clímax com os dedos, sentindo o
exato momento em que derrama seu prazer para fora.
E é uma bela forma de encerrar o dia.
O dia seguinte amanhece diferente e eu gosto de acordar com leveza, me
sentindo feliz sem nenhum motivo específico além de ter fodido e festejado com
minha esposa.
Eu acordo antes dela e posso enxergar sua beleza calma enquanto dorme.
Penso em acordá-la com um pouco mais de diversão, mas minha fome ganha do
meu tesão e eu deixo a cama sem perturbar Rebecca e seu sono precioso.
É bom estar em casa e eu desço as escadas sem esperar nada fora da
rotina que criamos. Mas não é nada disso que recebo, pois encontro Max sentado
em minha cozinha.
Comendo meu cereal.
Sem camisa.
— Que porra—
Ele levanta o rosto e sorri ao me reconhecer.
— Oi, primo.
— Que merda você está fazendo aqui, Max? — Confiro o relógio na
parede. — Não são nem dez da manhã, seu psicopata!
Eu caminho até a geladeira e pego um galão de leite. Puxo uma tigela dos
armários e roubo meu cereal de volta.
Parecendo meio desnorteado, além de vítima de uma ressaca, ele coça
sua nuca e foge com o olhar do meu.
— Hmm, eu meio que… dormi aqui.
— Quê? Por que você…
Um. Dois. Três.
Demoram três segundos até que eu junte dois mais dois.
— Vai se foder, Max.
— Eu posso explicar como aconteceu!
— Você acha que eu quero saber como aconteceu?
— Eu só estava trazendo-a da casa dos seus pais, eu juro! Só que ela
tropeçou ao sair do carro e eu precisei carregá-la até aqui em cima, porque nem
você, nem sua esposa atendiam ao telefone, e… — Ele parece frustrado ao
chegar à conclusão óbvia. — Porra, as coisas acabaram acontecendo.
— Acha que “as coisas acabaram acontecendo” é uma boa desculpa,
seu fodido do cacete?
Ele encolhe os ombros.
— Acho?
— Vai se foder. De novo. Burro do cacete. Idiota. Estúpido. Você fodeu a
filha do consigliere da Cosa Nostra. Pela segunda vez!
Ele tosse e eu sei que vem bomba.
Sempre vem.
— Ah, não, Max…
— Você passou dias fora! Ela ficou sozinha na cidade! O que você
pensou que ia acontecer?
Jogo todas as frutas da cesta em cima dele. Consecutivamente. E acerto a
maioria.
— Ei, porra! Para! — esbraveja, mas essa duas vezes antes de me contra-
atacar. — Você tem que pensar pelo lado bom: não é como se eu pudesse romper
o hímen dela duas vezes, certo?
— Você é um homem morto — dou de ombros. — Espero que saiba
disso.
— Vai ter valido a pena — responde e seu sorriso é podre de tão
malicioso e sujo.
— Espero que já tenha separado o smoking, então, por que você vai ser
obrigado a se casar com ela assim que o pai dela descobrir.
— Vira essa boca para lá, seu idiota!
Eu como algumas colheradas de cereal e o ignoro. Ele não faz o mesmo e
parece estar me analisando, como o filho da mãe enxerido que é.
— Se bem que você parece bem satisfeito como um homem casado…
Eu preciso analisar seu rosto por um segundo para entender onde quer
chegar.
— Vocês nos escutaram?
— Acho que o quarteirão todo escutou, primo.
Eu sorrio.
— Que bom.
— Podre — ri.
— É você, fodendo garotas que não deveria.
Rindo, como o idiota que é, sem medir nenhuma consequência, ele ergue
sua tigela e bate contra a minha.
— Um brinde a nós dois, então, primo, caindo no encanto dessas
italianas ardilosas…
E eu prefiro deixar todo o estresse para depois do almoço.
— Rebecca! Rebecca! Amiga! Oi! Per Dio, eu preciso muito que você
acorde! E preciso que seja agora…
Sabe quando você está dormindo e no fundo, escuta uma voz te
chamando? Como se você ainda estivesse sonhando, preso dentro da sua própria
cabeça com um eco que não vai embora e atrapalha o seu sono, até se dar conta
de que a voz não vem de dentro, mas sim de fora, te forçando a abrir os olhos
para entender o que está acontecendo?
É exatamente assim que me sinto quando Luna vem ao meu quarto e me
desperta, empurrando minha perna, como um cachorro insistente. Preciso piscar
algumas vezes, me situando ao universo, a luz do sol que invade pelas janelas
abertas, consciente do frio que me cobre de repente e a minha noção imediata de
que estou nua por baixo do lençol branco.
Antes que Luna possa ver mais do que deve, agarro a borda do tecido e o
puxo para cima. De todo jeito, ela não está nenhum pouco consciente da minha
nudez e eu entendo por que quando enxergo seus olhos inchados, o cabelo preso
num coque que se desmancha mais a cada segundo e o uso de uma camisola
meio amassada, que não indica, de forma alguma, que teve uma boa noite de
sono.
— O que houve? Algo aconteceu?
Me sento na cama de imediato e continuo segundo o pano contra meus
seios. Meu cabelo cai sobre meus ombros e eu me sinto leve de um jeito
esquisito, enquanto tento me concentrar na expressão chorosa da minha amiga.
— M-Max… — fala, gaguejando.
— Max? O que tem ele?
— E-e-eu e e-ele, nós… — Ela funga com o nariz e coça. Os olhos
castanhos brilham com as lágrimas e eu não entendo nada.
— Desembucha, criatura!
— Nós transamos, amiga…
Então ela começa a chorar copiosamente e eu preciso de alguns segundos
em silêncio enquanto absorvo a bomba que ela joga sobre meu colo, assim, sem
aviso. Acho que não consigo nem somar dois mais dois agora, mas Luna falou
como se eu fosse capaz de entender que diabos ela fez.
Max.
— Você ficou com o Max? De novo?
— S-s-sim… — chorando, encolhe os ombros, reconhecendo a burrada
que acaba de fazer. — Eu precisei que ele me ajudasse a subir e nós acabamos
ficando. E eu nem sei como isso aconteceu!
— Per Dio… — Tento ajeitar meu penteado ou descobrir que horas são,
olhando em volta, mas não consigo nenhum dos dois. Então, enquanto minha
amiga chora e eu não faço a mínima ideia do que fazer, um pensamento imediato
me ocorre.
— Meu irmão está na cidade.
Luna chora ainda mais.
— Eu seeeei….
E eu entendo do que o choro se trata.
— Estive com ele ontem à noite, na sua festa, hm… Nós conversamos. E
eu me senti tão mal por apenas olhar nos olhos dele, Beca… Como se eu o
estivesse enganando depois de tudo! Como se eu fosse… menos. Menos do que
ele me toma como.
— Não havia motivos para isso, Luna, não há como ele saber que você se
deitou com outro antes do casamento…
— Claro que não havia! — Ela limpa mais algumas lágrimas e olha para
meu rosto antes de derrubar a bomba final: — Por isso que eu contei!
— Você fez o quê?!
— Não sou eu que irei enganar o herdeiro da Cosa Nostra e fazê-lo
acreditar que sou a futura esposa dos seus sonhos ou uma mulher que não toma
suas próprias decisões… Eu apenas fui honesta. Com ele e comigo. Fiz o que
deveria fazer.
— E ele? — Estou tão concentrada agora que é difícil pensar que estava
dormindo há menos de dez minutos.
O sorriso triste de Luna fica ainda mais deprimido quando exprime sua
dor, sua ofensa e sua memória na resposta que pedi:
— Disse que eu era uma vagabunda.
Oh.
Eu não esperava isso.
Por um segundo, fico sem resposta. Nem reação. Eu apenas encaro Luna,
minha melhor amiga, chorando após contar ao meu irmão sobre ter dormido com
meu primo, sobre ter feito suas próprias escolhas antes de permitir que fizessem
por ela, assim como tomaram por mim.
E ele a xingou.
Pensando em quem Matteo é, no meu Matteo, é difícil acreditar nisso.
Mas além de ser meu irmão mais velho, aquele que sempre me protegeu para
que eu fosse a melhor dentre todas as outras garotas da minha idade, Matt
também é o filho de nosso pai, um homem criado sobre os limites rígidos da
Cosa Nostra e um futuro Capo.
— Eu sinto muito, Luna — digo, pois qualquer outra palavra seria em
vão, mentira ou enganação. E não precisamos disso entre nós duas.
Reconhecemos a situação pelo que ela é. — Talvez ele tenha dito de cabeça
quente. Talvez hoje ele se arrependa e—
— Você sabe que eu sei que ele sempre gostou de mim, certo? E que o
sonho da minha mãe era que eu me casasse com ele? Que fosse mãe dos seus
filhos? — continua a chorar, mas agora, consegue dialogar, como se doesse
menos — Mas nunca foi o meu, Becky… Nunca foi meu sonho me tornar a
esposinha perfeita que alguém como Matteo precisa e deseja. Ficar presa, sem
conhecer o mundo, sem sentir a vida! Eu sempre quis isso, sabe? O poder de
fazer o que diabos eu quisesse. De ser minha própria dona.
Eu apenas a observo enquanto fala.
— Então, me diga, por que eu me sinto tão culpada por ter feito isso? Por
que sinto que fiz tudo errado?
— Porque talvez você saiba, assim como eu, que Matteo te aceitaria de
qualquer jeito. Com perfeição ou sem.
Minha confissão pesa o clima ao nosso redor e eu vejo o quanto minha
amiga concorda comigo quando se debruça sobre mim e me abraça, procurando
por conforto.
— Eu estraguei tudo… — diz, agarrada em mim.
E eu não discordo.
No dia seguinte, Rebecca ainda está envolvida com seus irmãos e eu dou
espaço para que eles aproveitem a companhia um do outro, antes de todos eles
— inclusive Luna, graças a Deus — embarcarem para casa também.
Isso me faz buscar atividades fora de casa e por sorte, minha rotina está
cheia de motivos para treinar cada vez mais, melhorando minha pontaria e
resistência. Por isso, na terça à tarde, estou no estande de tiro dentro do Galpão
quando Max interrompe meu treino e retira meus fones de ouvido no momento
em que meu dedo raspa no gatilho.
— Reunião. Agora.
Eu retiro também os óculos de proteção e abaixo a arma, amaldiçoando
meu primo por me interromper.
— Que porra?
— Uma reunião de última hora foi convocada no Madame Martino há
dez minutos.
— Com quem, caralho? Eu estava ocupado!
Ele revira os olhos, desprezando o que eu digo. Tenho vontade de
afundar minha arma na sua goela.
— Seu pai, meu pai, Bernardino, os subchefes. Reunião da alta cúpula.
Até mesmo Donatella e Lorenzo já foram.
Torço meu nariz.
— Isso cheira a merda.
— E das grandes — complementa.
Não preciso de mais convencimento para abandonar meu posto no centro
de treinamento e o acompanho para o lado de fora, pegando meu casaco antes de
deixarmos o prédio. Max decide vir comigo e deixa seu veículo no Galpão, por
velocidade, mas também por segurança. As recomendações são de que sempre
andemos em dupla ou com segurança, quando possível. Os ataques vêm se
tornando mais corriqueiros e as coisas estão ficando cada vez mais selvagens.
— Não houve nenhuma indicação do que se trata? Houve alguma
ameaça? Ou finalmente decidiram a data para colocarmos o plano em ação?
Eu quase sorrio ao imaginar que a hora de enfiar a bala na cabeça dos
Ivanov se aproxima. Meu sangue ferve em antecipação e é quase difícil me
controlar no trânsito.
— Ninguém disse nada. Tudo que meu pai disse é que era urgente
quando me ligou. Pode ser qualquer coisa, cara… — Max fica em silêncio por
um minuto, então volta, a postura altamente interrogatória. — Não falou para
ninguém sobre o que descobri das filhas de Romeu e Rodrik, certo?
— Nem me lembre dessa merda… — Filhos. Não há maior
vulnerabilidade do que isso, ainda mais se são crianças. Ter essa carta e não usar
é burrice. — Você me pediu que não falasse nada, Max, então é óbvio que não
falei.
— Bom. Ou talvez essa reunião pudesse ser apenas uma votação sobre
como gostaríamos de torturar uma menina de quatro anos por crimes que não
cometeu.
Estalo a língua e ignoro seu papinho de boa moral.
Max têm seus limites, como já destaquei e os tem bem estabelecidos
desde que se uniu a organização de maneira oficial. Crianças estão simplesmente
fora dos limites, sempre que possível. E sua lealdade pela família é
inquestionável. E quando digo família, somos nós — seu sangue.
Max daria de tudo pelos Accorsi, mas tenho minhas dúvidas se faria o
mesmo pela organização. Ou se apenas se juntou a ela por obrigação.
Nem todos gostam do sangue, nem todos aprovam o modo como
conduzimos as coisas, mas eu aprecio como meu primo pode detestar o quão
podre somos e ainda irá celebrar cada vitória e triunfo sobre sangue inimigo.
Porque é isso que um Accorsi faz. Ele defende o que é seu e tem orgulho de
quem é.
E nós somos a sujeira, a escuridão e os demônios que mantêm crianças
acordadas a noite. É assim que mantemos o respeito e assim que conseguimos
manter as coisas funcionando.
Chegamos ao Madame em quinze minutos e eu estaciono o carro em
frente ao bordel, que não funciona durante o dia. O único movimento é dos
seguranças e dos outros carros a nossa volta. As garotas, obviamente, foram
dispensadas. Não são exatamente ouvintes nas quais você pode confiar.
— Talvez tenha algo a ver com as armas que seu pai comprou. Quem
sabe, finalmente, as coloquemos em uso. — Max continua jogando sugestões e
eu cumprimento alguns homens pelos quais passamos. Pela imediaticidade da
reunião, meu pai conseguiu reunir um bom número de subchefes.
Cruzamos a área comum e chegamos até o escritório no segundo andar. É
grande o suficiente para receber todos os homens, mas eu e Max optamos por
ficar de pé, perto da porta, assim, temos visão total do que acontece e podemos
premeditar qualquer ataque.
Tony ocupa a poltrona atrás da mesa de mogno escura e Bernardino e
Ricardo assumem suas laterais. O Consigliere conversa com o subchefe da
Carolina do Sul e eu aceno para Dona. O tom das vozes começa a subir e o calor,
consequentemente, também. Há uma troca intensa de opiniões e quando isso
acontece, geralmente há descontrole.
Homens como estes não estão acostumados a discutir sem empunhar suas
armas e convocarem seus soldados.
— Luca. — Meu nome se sobressai a bagunça e eu encaro Antônio, que
me convoca. Max permanece no lugar enquanto eu me aproximo e cumprimento
os três no comando.
— O que está acontecendo? — indago, analisando as expressões sólidas
deles. Pedras poderiam substituí-los e não saberíamos nada.
— Iremos propor algo que muitos não irão aprovar. Preciso saber que
terei seu apoio. Como futuro chefe. — Meu pai quase engasga em suas próprias
palavras e eu espero que continue, de braços cruzados e as costas viradas para o
público. — É importante. Eles irão considerar sua opinião.
Não só por ser o futuro chefe. Mas porque eu sou o melhor que temos
também.
Mas é claro que meu pai não vai pontuar isso.
Acima dele? Só ele mesmo.
— Por que não vão gostar do que irão propor?
— É arriscado, caro e coloca seus homens em jogo. — Bernardino
explica, o tom de voz calmo e tranquilo. — Mas é nossa melhor chance de
causar danos nos esquemas de Romeu. Ele está ganhando força e isso é um
problema.
— Mais algum ataque relatado?
— Tem homens infiltrando-se até em Staten Island. — Ricardo diz,
expressando sua fúria. Ele sempre se controla, o que significa que o caos está
quase completo, armado sobre nossas cabeças. — E não há maneira efetiva de
combatê-los. É como se cortasse uma cabeça apenas para crescerem muitas
mais.
— Reunimos muitos inimigos ao longo dos anos — lembro, focando meu
olhar na expressão não tão serena de meu pai. Ele olha sobre meu ombro, vendo
a frente. — Eles devem estar fortificando a causa dos Ivanov.
— O problema é que estamos passando como covardes para outras
organizações. — Bernardino volta a dizer, em tom baixo, cuidando quem está ao
redor. Max, notando os semblantes carregados dos homens, decidiu se aproximar
e está ao meu lado, se inteirando da conversa com o pai. — Há boatos da
Califórnia estar interessada em cortar conosco, já que talvez sejamos superados
pelos russos. Nossos próprios aliados! E se ele tocar na polícia…
— Há esse risco? — Max indaga, pesquisando nos olhares perdidos de
todos que deveriam ter as respostas. Ele parece tão irritado quanto eu, bufando,
— Pensei que a polícia fosse nossa. E que você fosse o responsável por
mantê-la sob controle, Bernardino — falo, encarando o consigliere. Meu tom é
de indignação e ele nota, aprumando sua postura quando meu olhar cruza com o
seu e o coloca na posição de interrogado.
Se for sua culpa, sua incompetência já chega a níveis alarmantes e espero
que meu pai esteja ciente dessa merda.
— Romeu está oferecendo o dobro de qualquer valor que coloquemos na
mesa. — Sua resposta soa confiante, sem maiores problemas, nem culpa.
— Que superemos as ofertas deles, então. — Max diz, simplesmente, as
mãos apoiadas na cintura.
— O número de clientes está em queda, Maximus. — Ricardo responde,
encarando o filho. — A guerra diminui os pontos e com todos com medo de
estarem no meio do fogo cruzado ao se envolverem em nossos negócios,
perdemos dinheiro em todos os segmentos. Não querem nossas putas, nem nossa
droga. E Romeu acaba ficando com o lucro.
— Pensei que havia reforços na segurança. Eu mesmo cuidei disso há
algumas semanas. — Max diz — E nossos clientes fiéis?
Ele não desiste, assim como eu.
— O medo atinge a todos quando se espalha, Max. — Tony diz, tentando
retomar o controle da conversa, de certa forma. Ele pareceu distante durante a
maior parte. — Cagões de merda — resmunga e se endireita na poltrona.
— E não há medo ou confiança nenhuma da parte deles que nós
ataquemos? — questiono e não recebo a resposta que esperava. Então se torna
óbvio.
Eles não nos temem.
Acham que estamos condenados.
Acham que é nosso fim.
São ratos que abandonam o barco antes de afundar.
— Ah, filhos da puta… — murmuro e soco a mesa. O silêncio se faz na
sala e eu preciso de um instante para me controlar, buscando a calma e a
racionalidade — Então iremos atacar. Avise a todos. Enfiar balas na cabeça
desses ratos de merda é tudo que quero. Estou dentro de qualquer plano que
envolva isso.
— E eu também. — Max diz, tão consciente quanto eu da situação de
merda em que nos encontramos.
E de como precisamos cavar nosso caminho até o topo.
Bernardino, com um aceno, concorda com o que precisa ser feito e
recebe nosso apoio com aprovação. Em seguida, ele pede o silêncio de todos os
presentes para que o chefe fale.
E ele começa.
Quando acordo na quarta-feira e desço para tomar café da manhã, é
estranho encontrar a mesa vazia e montada só para uma pessoa. Luca já saiu e
Luna foi embora ontem à noite, junto dos meus irmãos, partindo da mansão onde
nos despedimos, após um jantar oferecido por Rosalind, atenciosa como sempre.
Eu me sento na cadeira da ponta e é impossível não me sentir
extremamente sozinha, observando a cadeira em que me acostumei a ver minha
amiga sentada todos os dias. Eu nem havia notado o quanto havia me apegado à
sua presença na minha rotina.
Fiona, a empregada, até mesmo parece estar sentindo pena de mim e vem
várias vezes perguntar se preciso de alguma coisa. Eu fico tentada em convidá-la
a se sentar comigo, mas penso que ela poderia se sentir coagida e mantenho a
proposta para mim. Acabo comendo sozinha e tenho oportunidade de me
lembrar da última noite que tive com Luca, que pareceu muito grato por
finalmente ter a casa apenas para nós dois.
Foi demais. E eu nem sei como estou sentada agora. Ele foi forte, quase
selvagem, como se quisesse aproveitar, marcar e provar cada canto do meu corpo
antes de ter que acordar e enfrentar a vida lá fora.
E embora nossos momentos estejam sendo mais intensos do que jamais
me vi experienciando, eu adoro. Gosto da sensação magnífica que é vê-lo
entrando dentro de mim, com força e vontade, além da sua voz rouca toda vez
que me chama de apelidos que variam, entre besteiras e coisas doces, ou me dá
boa noite com um simples beijo, que para ele, talvez não passe apenas de uma
formalidade, mas para mim é a expressão de muitas coisas. Eu nunca imaginei
que Luca se dedicaria a me beijar apenas porque quer, porque é o certo. Não
esperava nada além da frieza que vi entre tantos casais ao longo dos anos,
principalmente em meus próprios pais. Mas conosco é diferente.
Nós queremos estar juntos. Não estamos cumprindo nenhum
compromisso, nem agenda, estamos apenas fazendo o que nossos corpos pedem,
o que nossas mentes desejam.
Luca está se saindo um marido tão bom que é estranho me lembrar de
onde começamos, de como eu o temia, de como ele se recusava a dividir a cama
comigo e de como eu não via nenhuma perspectiva de melhora em qualquer
momento da nossa jornada para nós dois. Mas depois do que passamos juntos,
depois do que senti, é como se o laço que formamos estivesse se endurecendo, se
firmando, crescendo e se desenvolvendo com o tempo.
São mais do que estes anéis, são as palavras, os gestos, os atos, as
carícias no meio da noite e o modo como só existe ele para mim em qualquer
ambiente, em qualquer sala e em qualquer lugar.
O compromisso.
A esse ponto, sou como uma boba apaixonada, e tenho consciência disso,
pois apenas pensar em seu nome faz com que eu me arrepie. E me leva a todos
os momentos em que Luca demonstrou que eu sou algo além de uma obrigação.
E eu gosto de você, Rebecca Accorsi.
As palavras ainda moram em minha cabeça e não pretendem sair nunca.
Embora gostar seja a parte mais básica na escadinha da vida, eu não me
incomodo. Os sentimentos de alguém como o meu marido foram forjados e de
certa forma, impostos sobre ele. Luca foi treinado para não ter fraquezas e ao se
permitir apegar-se e preocupar-se comigo, ele renuncia a uma série de proteções
que, talvez, o tenham mantido invicto até aqui. Mas não há sensação mais
gostosa do que saber que eu, Rebecca Accorsi, sou a única capaz de derreter
pedra.
De qualquer jeito, preciso me manter realista e consciente. Em meio a
tudo isso, temo que meus sentimentos possam se expandir, enquanto os dele
mantêm-se básicos, e eu não gostaria de descobrir como é amar mais do que ser
amada.
Embora eu nem mesmo saiba se o amo ainda…
É tudo tão confuso, tudo tão novo… E nenhum de nós dois parece ter a
mínima experiência, o que só torna as coisas ainda mais emocionantes.
Mas enfim, de uma coisa eu sei e dessa eu tenho certeza (embora também
fuja do meu controle): tesão. Isso eu sinto todos os dias, sempre que olho para o
deus grego que é o homem com quem me casei, sempre que estou perto dele e
sinto seu aroma ou apenas o observo após sair do banho, com a toalha pendendo
da cintura e as gotas d’água fazendo todo caminho sobre seu abdômen sarado.
Luca é… quente. Forte. Gostoso. Grande.
E puta merda, eu queria que ele estivesse aqui agora. Queria muito.
Queria tanto que, assim que termino o café da manhã, deixo a mesa e
subo as escadas de maneira apressada. Meu rosto praticamente pega fogo
enquanto caminho até meu banheiro e me livro da camisola, ainda sentindo o
suor que restou da noite passada sobre mim. Ainda sentindo seu cheiro. Suas
mãos. Sua fome. Seu corpo.
Eu entro debaixo do chuveiro rindo e me convenço de que não
conseguirei esperar até a noite para sentir tudo que Luca me proporciona. Eu
preciso sentir agora.
Debaixo da ducha quente, onde ele já me comeu contra a parede,
marcando-me ainda mais, eu escorrego a mão pela minha barriga, após descer
pelos meus seios cheios e chego até minha vagina. Fecho os olhos e me recordo
dos seus beijos pelo meu corpo, da maneira como seus olhos me fitam quando
está me provando, me dizendo o quão delicioso é meu gosto.
Nunca fiz isso antes, mas Luca fez em mim e posso reconhecer os
movimentos que me proporcionam pequenos choques. Giro meu indicador em
movimentos circulares, no pequeno botão onde Luca dedica muito de seu tempo
e minha boca deixa escapar um gemido contido, quando grudo minhas costas na
parede do box e me lembro da sensação dele deslizando por entre minhas coxas,
dedilhando minha carne até separar meus lábios e chupá-los.
Mordo minha boca e separo minhas pernas, deslizando meu dedo um
pouco mais pra baixo e mais pra baixo, até chegar lá. Com receio, brinco na
parte úmida e quando uso meu dedo, contraio os músculos e grunho de verdade,
voltando com o toque na parte de cima. Meus seios são banhados pela água do
chuveiro e meu cabelo está úmido, uma bagunça contra a pedra da parede,
enquanto meu rosto pega fogo, assim como todo o meu corpo.
Pensando nele.
E eu não sei bem mais o que estou fazendo, em determinado momento
meu corpo assume as rédeas de meus movimentos e eu apenas me dedico a
aproveitar ao máximo o que estou sentindo, o que estou proporcionando a mim
mesma, o quanto sou capaz de me dar prazer. Estou soltando gemidos
consecutivos agora, com a boca entreaberta e os olhos fechados, tentando
segurar essa sensação até o limite, até não conseguir mais e sentir a força do
espasmo que me tira do eixo por looongos segundos, suspendendo a vida e todos
os seus sentidos até que eu retorne, com o peito aberto, ofegante e as mãos
meladas com meu gozo.
Uau.
Quando eu, aos dezesseis anos, tive o meu primeiro contato com uma
ginecologista – quando minha mãe obviamente já estava me preparando para um
casamento do qual eu ainda nem tinha ideia –, fiquei assustada com todas as
explicações e com os desenhos detalhados de como uma vagina era. Cheguei em
casa, estranha por ter deixado uma mulher aleatória ver a minha parte mais
preciosa, como minha mãe sempre chamou, e fui para a internet pesquisar sobre
tudo que ela havia dito.
E lá, eu encontrei muitas coisas sobre as quais ela não havia falado, como
a masturbação. De fato, eu não deveria esperar que a mulher que era médica da
minha mãe há trinta anos, desde que ela se casou com o meu pai, fosse tão
liberal a ponto de me falar sobre isso ou qualquer outra. Mas eu esperava que ela
fosse sincera comigo, que me contasse tudo, não que me enchesse de exames e
chamasse minha vagina de bonitinha.
E bem, eu fiquei tão assustada depois de ver um vídeo de uma mulher
fazendo isso, se tocando, e gostando disso, que fechei todas as abas do
navegador, desliguei o computador e fui chorar debaixo das cobertas com medo,
como uma besta, uma adolescente protegida demais do mundo real e seus
desejos.
Mas agora…
Eu me sinto bem. E bem demais.
Eu me tornei a mulher do vídeo (com um pouco menos de gritos,
certamente).
Uma mulher sexualmente ativa que consegue se proporcionar prazer
sozinha. E isso é simplesmente demais. A minha versão do passado certamente
ficaria assustada se visse a cena, mas tudo que eu consegui sentir após terminar e
sair do banho, foi alívio, alegria e relaxamento.
Enquanto seco os meus cabelos, cantarolo e me sinto animada para que
Luca chegue de uma vez, como me informou por mensagem, para me buscar
para minha primeira aula.
Estou tão ansiosa quanto temerosa em relação a usar meu presente.
Tenho medo de congelar na hora que Estevan, o tal professor, me mande fazer
algo. Medo de fazer tudo errado. Medo de nem mesmo conseguir segurar a
arma.
Imagino que Luca não vá gostar caso eu fuja das aulas. Talvez me julgue
fraca e se decepcione, talvez veja que não sou tudo o que ele pensou que eu
poderia ser.
E eu não quero que isso aconteça.
Termino de me arrumar em alguns minutos e assim que finalizo, pego
meu telefone e mando mensagem para Donatella, que ficou de ir ao médico
comigo na sexta-feira. Ela confirma que irá e eu agradeço.
Descobri, no jantar de despedida das minhas irmãs, que Bianca havia
marcado consulta com a mesma médica que cuida de Dona. E ela disse que é
uma ótima doutora, que sabe manter a privacidade das pacientes. Isso me deixou
mais tranquila, admito. Embora eu não tenha nada a esconder, considerando que
sou uma mulher casada.
É, certamente já não sou mais aquela menininha assustada…
Depois de falar com Dona, tento me entreter com algum programa sobre
culinária na televisão mas não tenho sucesso, já que sou péssima na cozinha.
Ainda me lembro da massa horrenda que forcei Luca a comer. Que
desastre. Eu poderia ter matado o pobre coitado com um veneno daqueles.
Inspirada, penso em pedir algumas aulas à Fiona sobre isso. Eu gostaria
de ser útil, de alguma forma, sabendo colocar as mãos na massa. Quando tiver
filhos, seria bom poder preparar suas refeições, como me lembro de minha mãe
fazendo conosco. Sua comida sempre foi melhor do que a das outras cozinheiras,
tinha um tempero especial.
Eu gostaria que meus filhos pudessem sentir o mesmo na minha
também.
Me distraio com todas as ideias e memórias de uma infância que há
muito se foi, quando a porta do quarto é aberta e eu coloco meus olhos sobre
Luca. Estou esparramada sobre a cama, usando a roupa mais básica que pude
encontrar, mas meu marido chega se parecendo como um modelo masculino da
Calvin Klein, com um terno escuro e o cabelo num novo corte.
Um novo corte que me faz surtar internamente.
Puta merda.
Me lembro de que seu cabelo estava grande, mas não notei que estava tão
grande assim. Ele trocou o corte sem sentido por algo mais jovem, com o cabelo
mais raspado nos lados, mas não no número zero da máquina e aparado o topo,
realçando a beleza e o brilho do seu cabelo loiro-escuro. Também destacou seus
olhos azuis, que agora me observam com uma curiosidade quase obscena.
E ele também fez a barba.
Oh.
Eu poderia ir ao chuveiro de novo.
— Por que você está me olhando desse jeito? — pergunta, com uma
risada presa entre os dentes.
— Você cortou o cabelo — eu respondo.
— Ah, isso. Max me forçou a ir ao barbeiro com ele. Você gostou? — ele
pergunta enquanto caminha até o espelho que toma toda uma parede do quarto
para se enxergar.
— Eu poderia falar o que pensei, mas acho que o horário não permite —
suspiro e vejo um sorriso brotar nos seus lábios.
Ele me olha de canto e sei que ele percebeu a malícia explícita no
comentário. E parece tão animado quanto eu ao constatar o quanto estou disposta
a ter pelo menos trinta minutos de diversão.
— Obrigada pelo elogio descaradamente sexual, senhora Accorsi. Você
conseguiu me deixar de pau duro antes de uma reunião com o meu pai, para a
qual já estou quase atrasado.
Choramingo.
— Isso significa que não temos tempo?
Ele ri.
— Não, querida, nós não temos.
A contragosto, fico de pé e desisto do chuveiro, da cama ou até mesmo
do chão do quarto.
— Você já está pronta? — Ele pergunta, soltando um longo suspiro após
ajeitar suas calças. Eu desvio os olhos do volume, porque de nada vai adiantar
ficar cobiçando o que não posso ter agora.
Eu afirmo e vou até o closet pegar meus tênis.
— Pronta — respondo, pegando o celular de cima do criado-mudo e o
enfiando no bolso traseiro da calça jeans com um largo sorriso entre os lábios.
Tudo parece se tornar mais animador, mais alegre, quando ele está por perto. Eu
já nem mesmo me lembro da sensação de estar sozinha antes.
— Ótimo. Então vamos antes que eu mande meu pai se danar e te dê o
que você queria.
Luca nos conduz através da cidade por um carro que gosto de chamar de
Pavoroso. O Pavoroso tem o símbolo famoso do cavalo de fundo amarelo e
segundo meu marido, que diz isso com graça, faz mais de 320 km/h. Não que ele
chegue a essa velocidade nas ruas engarrafadas de Nova York, mas apenas saber
que estou presa num bicho de ferro capaz de correr tanto, é tenebroso.
Então, quando ele enfim estaciona o carro, no andar subsolo do que é um
grande prédio espelhado quase no centro de Manhattan, eu sinto que posso
respirar pela primeira vez desde que saímos do apartamento.
— Nem foi tão ruim assim — provoca ao descer. Eu vou em seguida.
— Meu sonho é que você compre uma minivan.
Nos aproximamos no caminho até o elevador e duas coisas acontecem.
Primeiro, Luca ri, de uma maneira leve que me dá cócegas no pé da barriga e
segundo, ele une sua mão a minha como se isto fosse nossa naturalidade, me
guiando na direção dos elevadores.
— Você nunca me verá dirigindo uma minivan, Rebecca.
Ele não diz nada sobre a mão, muito menos eu. Apenas aproveito a
sensação de ter seus dedos entre os meus e o conforto surpreendente que isso
traz.
— E onde nós estamos, afinal? — questiono, quando o apito soa e as
portas metálicas se abrem. Não há soldados em volta, mas sei que fomos
escoltados até aqui.
Eu entro primeiro, depois ele.
— No Galpão.
— Espera… Esse é o Galpão? O lugar no qual você treina todo dia?
— Exato. — Me olha de lado, como se eu fosse louca. — Qual o
problema?
— Eu pensei que esse lugar fosse um casebre! Não um prédio como este,
no meio da cidade!
— Por que nós passaríamos o dia no meio do mato?
— Para manter as coisas discretas, é claro. — Dou de ombros, como se
fosse óbvio. Agora pensem: eu, dando aulas a Luca sobre discrição. Ele. Luca
Accorsi.
Luca.
Rindo da minha presunção, eu imagino, ele se vira para a frente e se dá
ao trabalho de explicar:
— Antigamente, nossos homens treinavam nos galpões dos portos.
Dominamos as cargas há muito tempo, desde a década de trinta, então era mais
fácil que permanecêssemos por perto. Com o tempo, as coisas se aprimoraram e
quando meu avô ainda era vivo, construiu este prédio para manter as operações
mais… refinadas. — Este é o seu jeito de me dizer com pouco sangue. — Nossa
academia mais equipada fica aqui, assim como as salas de luta e o melhor
estande de tiro. Estou te levando até lá.
— E os russos sabem sobre este lugar?
Sua postura fica tensa quando pergunto, mas não posso evitar. Se ele está
pretendendo me deixar aqui sozinha, preciso saber.
— Entenda, Beca, que não temos motivos para nos esconder de ninguém.
Esta é a nossa cidade. Se tivéssemos, não teríamos um terço do que temos hoje.
Nem seríamos quem somos.
Suas palavras não parecem ser a brecha para uma discussão ou espaço
para qualquer tipo de contra-argumento e eu respeito isso, optando pelo silêncio.
É um pouco incômodo, mas ainda sei quais são seus limites.
As portas do elevador se abrem depois de um tempo em silêncio e ele me
guia para fora. Não memorizo o andar em que estamos, mas ao andar no
corredor posso ver que é alto, já que enxergo a maioria dos prédios em volta de
cima.
O corredor é majoritariamente cinza, com paredes escuras, num material
que se parece muito com borracha. Há salas amplas em ambos os lados, com
sons altos que ecoam para fora e fazem com que eu me encolha. Estamos prestes
a dobrar no final, quando o som de um homem derrubando outro no chão faz
Luca parar de andar e consequentemente, eu.
Em um tom que foge do meu conhecimento, meu marido os encara como
se fossem ratos.
— Saiam.
E eles se apressam em sair do caminho, recolhendo e reprimindo
qualquer que sejam suas dores.
— Ignore. São animais que não sabem o que fazem.
Não olho para trás com medo de ver sangue e Luca se mantém na rota.
Seus ombros são largos o suficiente para esconder qualquer coisa que esteja à
nossa frente e ele só para quando chegamos a portas duplas escuras. Ele empurra
um dos lados e meus olhos imediatamente voam para todos os alvos, espaços,
estandes e o som abafado dos tiros que são disparados pelos mais variados
homens. Há poucas mulheres no ambiente agressivo, mas eu reconheço a
silhueta de Donatella, que se vira ao escutar o assovio de Luca, como se o
reconhecesse.
— Ahhhhh! Eu não acredito que você está mesmo aqui!
Sem se preocupar com muito, ela derruba a arma com a qual disparava
perfeitamente bem e eu analiso o seu alvo.
Todos os pontos principais foram acertados.
Ela pula em cima de mim com seu cheiro de suor e pele pegajosa, rindo
como se fosse manhã de Natal. Dona é mais baixa do que eu, mas sua forma
física é perfeita. Ela poderia derrubar um homem adulto.
Quem sabe, poderia derrubar até mesmo Luca.
— A coisa que eu mais queria era outra Accorsi andando por aqui! —
Pisca para o irmão, que não lhe dá muita bola. Eu curto sua animação.
— Ela só veio treinar a mira com o Estevan, Donatella. Nada além.
Seu tom de seriedade alerta Donatella de que são ordens, não
recomendações e ela revira os olhos, com certeza, o julgando estúpido
mentalmente.
— Não é como se fôssemos colocar fogo no lugar, Luca, relaxa —
despreza. — Sua esposa perfeita ainda será sua esposa perfeita no final do dia.
Dito isso, ela pisca para mim e eu tento não me animar muito com as
chances de quebrar algumas regras com Dona, surpresa com esse lado meu.
— Onde está Estevan? — Luca pergunta, cumprimentando todos que
passam. Eles acenam para ele como se fosse uma autoridade. Eu reconheço o
respeito que tem e me aproximo ainda mais do homem ao meu lado.
— No estande privado — explica, me dando frio na barriga. — Posso
levar Beca até lá. Sei da reunião que tem.
O tom de voz de Donatella demonstra certa acidez quando fala na
reunião e eu olho para Luca ao mesmo tempo em que olha para mim. Espero por
um beijo na boca, mas tento não parecer decepcionada quando ele beija minha
bochecha.
— Seja uma boa garota enquanto estou longe, certo? — pede e eu
assinto, olhando no fundo dos seus olhos. São tão azuis e parecem tão calmos
quando estão dentro dos meus. Gosto de imaginar que não se parecem tão
serenos para mais ninguém. — Nos vemos mais tarde.
Ele solta minha mão pela primeira vez desde que deixamos o carro e eu
sorrio, acompanhando-o se afastar após se despedir de Dona. Não posso deixar
de me sentir levemente tristinha ao vê-lo sumindo no corredor.
— Meeeeeeeu Deus! Vocês dois são… — Donatella ri, como uma
criança implicante e bufa. — Grudentos.
Eu tento não corar e minha cunhada ri, passando o braço ao redor dos
meus ombros.
— Vamos para a aula de uma vez antes que você vá correndo atrás do
meu irmão e implore que ele nunca mais saia do seu lado.
— Não seja patética, Dô… — apenas acompanho seus passos e tento não
pensar no que me aguarda atrás da porta. — Por que você também não foi à
reunião?
Sua animação some conforme andamos e eu noto que nenhum homem
olha em nossa direção. Não sei se temem mais ao meu marido, seu pai ou a sua
irmã, que me soa tão perigosa quanto todos os outros homens aqui presentes.
— É uma reunião sobre a missão de sexta — explica, como se eu tivesse
conhecimento sobre algo. — E eu não estou convocada para a missão de sexta.
— Por quê? Pelo que eu vi ali, você é excelente no que faz…
Tímida, de um jeito que nunca vi, com um sorriso muxoxo entre os
lábios finos, Dona recebe o elogio que não parece lhe dizer nada.
— Porque eu sou uma mulher, Beca. E Antônio não quer sua filha metida
em coisas fora do seu interesse.
— Mas ele permite que você treine…
Dona respira fundo.
— Ele tem seus motivos para permitir isso. Mas ainda tenho limitações.
Não sou como Luca ou Lorenzo. Tony apenas me dá algo para que me ocupe
enquanto não me vende como carne.
Ouch.
Tento não me ofender, mas é esquisito sentir que sua crítica se relaciona
diretamente ao que aconteceu comigo.
E ela percebe.
— Aí, B, eu sinto muito…
— Tudo bem — forço um sorriso de canto e coloco a mão sobre a
maçaneta do estande privado. — Está em seu direito de reclamar.
— Mas não de ofender você — suspira e me impede de empurrar a porta
ao tocar meu ombro. — Saiba que é a melhor coisa que poderia ter acontecido ao
meu irmão. E sou muito grata de ter você por aqui agora, por que, se não, com
quem eu iria poder reclamar?
— Angelina.
— Ela não entende. Diz que minhas críticas são sem sentido porque
podemos usar vestidos bonitos e usar maquiagem cara — fala, totalmente contra
cada uma dessas ideias. — Angel é… conformada. Ela não vê as coisas do
mesmo jeito que nós duas.
— E como vemos as coisas?
Dona respira fundo e seus olhos cintilam ao olhar para mim novamente,
como se a verdade fosse feia demais para ser vista.
— Como quem já foi vítima dela.
Sem me dar direito a resposta, ela abre a porta e eu olho para dentro,
encontrando o professor a quem Luca designou meu caso.
Ele é alto, mas mais velho do que eu pensei que fosse ser. Expressa
maturidade no olhar e de braços cruzados, mostra sua força. Ele é gigante. Há
cicatrizes longas nos braços tatuados e uma barba rala escura. Eu chutaria que
tem ascendência latina, pelo tom de pele e traços fortes.
— Estevan!
O grito de Donatella o faz virar os olhos escuros, num tom profundo de
castanho, para cima de nós duas e eu me encolho, oprimida demais pela força
que vejo na expressão carregada.
Não parece ser raiva, ele só é… sério.
— Garotinha. — Mas aí ele sorri para Donatella, cumprimentando-a com
um aceno respeitoso e eu tento entender quem ele é de verdade. — E esta deve
ser a senhora Luca Accorsi.
Sorrio e ergo uma mão.
— Culpada.
— Não é uma tarefa fácil carregar um nome como esse, menina. — Ele
caminha em nossa direção, mas para no único estande ocupado. Há uma arma
sobre ele.
A minha arma.
— É bom que esteja preparada para tudo.
— Não a assuste, Estevan… — Donatella fala, revirando os olhos e o
homem ri para ela. — Becky, Luca te contou que foi ele quem ensinou a maioria
de nós a atirar?
— Uhum.
— Então já te adianto que não precisa ter medo. Ele tem essa cara de
bravo, mas não morde. Nem late.
— Diga isso na frente de alguém que se preocupe e irei me complicar
com o seu pai, Donatella — rindo, o homem parece leve. Eu diria bonito, mas
não quero ir tão longe assim. — Aproxime-se, senhora Accorsi.
— Pode me chamar de Rebecca — adianto e me afasto de Donatella.
Ando sozinha até ele e estendo minha mão. Ele a aperta, menos forte do que sei
que pode. Anoto a gentileza.
— E você pode me chamar de Estevan. Começaremos aqui. Coloque
seus óculos e o fone de proteção.
Ele olha para cima.
— Irá nos acompanhar, Donatella?
A garota dá de ombros.
— Se me permitem…
— Você quer que ela fique, Rebecca?
— Quero — digo, mas tento não passar qualquer receio em relação a
Estevan no tom de voz. De qualquer jeito, acho que ele entende que não me sinto
segura sozinha com desconhecidos que parecem máquinas de matar altamente
treinadas e não se afeta com isso.
— Certo. Mas fique em silêncio.
Donatella assente e passa um zíper nos lábios.
Eu me dedico a colocar as proteções que ele mencionou e ao encarar a
arma, tento não tremer.
— Meu marido falou algo sobre mim para você?
Estevan arqueia uma das sobrancelhas.
— Ele deveria ter me dito alguma coisa?
— Não, eu só…
— Não quero que se preocupe com nada que aconteceu fora desta sala a
partir de agora, Rebecca. Nem com o que pode ter acontecido com você antes
quando segurou uma arma ou precisava de uma, mas não a tinha.
Então ele sabe.
Com uma olhadela, afirmo, tentando passar confiança.
Mas eu simplesmente sei que ele sabe que não sinto nenhum pingo disso.
— Somos apenas você, eu, um alvo e sua cunhada enxerida.
— Ei…
— Silêncio — ordena e Dona ri no fundo. Eu gosto do modo como é
descontraída ao redor dele.
— Pegue a arma — indica e eu me assusto.
— Já?
— Já tentou aprender a andar de bicicleta sem bicicleta, Rebecca?
Sua ironia me pega de surpresa e eu penso se devo corrigi-lo pelo
desrespeito.
— É o que veio aqui fazer. Agora, pegue.
O tom parece mais autoritário e eu alcanço o cabo cromado numa
respiração só. Eu deslizo os dedos para a empunhadura, sentindo o metal frio
contra minha mão. É uma sensação ruim.
Fecho os olhos, tentando lidar com ela e tento mantê-la parada.
— Já começou errado. — Estevan se apressa em dizer e com certo
cuidado, toca meu rosto e o levanta. — Nunca pegue uma arma e feche os olhos.
Eu abro os meus no mesmo instante.
— Você precisa saber onde está mirando e garantir que não esteja na sua
própria cabeça. E depois, se não houver alvo, a mantenha abaixada. É mais
seguro para todos.
Ele puxa meu ombro e cola meu braço na lateral do meu corpo. Embora
decididos, os toques são sutis e nada ameaçadores.
— Pare de tremer, menina.
Suspiro.
— Eu não consigo.
— Do que é que você tem medo?
Eu olho para os olhos chocolate dele e tento pensar claramente.
— Não quero falhar — sussurro, com medo de que Donatella escute isso
e me julgue ridícula. — Não posso falhar.
— Então você pelo menos tem que tentar, não é?
Não respondo e mantenho meu olhar concentrado no que seguro. Estevan
respira fundo e quando sinto que vai mandar que eu saia da sua aula, dá novas
ordens:
— Destrave a trava de segurança. Polegar e indicador, puxe a corrediça
de volta e mantenha atenção no que está fazendo.
Eu sei o nome e localização de cada peça graças às aulas de Luca e por
isso, faço o que pede, ignorando a moleza dos movimentos.
— Sabe o nome de cada parte da arma? — Ele parece surpreso.
— Luca me ensinou.
— Ótimo.
Ele não gasta muito tempo com elogios.
— Cano para baixo, dedo fora do gatilho. — Eu obedeço. — A arma na
mão não-dominante, então abra a outra.
Obedeço mais uma vez.
— Agora, posicione a empunhadura na pele que fica entre seu indicador
e polegar. É o lugar certo.
Tento, mas não consigo me ajeitar. Estevan me ajuda.
— Polegar de um lado e os outros dedos em volta do cabo, abaixo do
gatilho.
Exercito minha respiração e mantenho o controle.
— Segure-a como se fosse apertar minha mão. Você precisa mostrar que
é forte e consegue, certo? Então, faça força até que pare de tremer. Ótimo.
Assim… aos poucos. Perfeito.
— Vai, Beca!!
— Quieta — Ele chia e Dona fica em silêncio de novo. — Agora aponte
— ordena.
Eu aponto como um robô e tento não pensar em quão ridícula pareço
para ele.
— Abra as pernas na largura dos seus ombros.
Respiro fundo.
— Isso não parece tão difícil nos filmes…
— Não é tão fácil segurar aquilo que tem força o suficiente para arrancar
uma vida, Rebecca. Esse tipo de coisa exige regras.
A fala de Estevan é séria e eu não ouso discordar do que está fazendo.
Mantenho minha boca fechada e escuto sua lição super demorada sobre miras.
Ele também me faz refazer a posição perfeita — os pés abertos na largura dos
ombros, a postura reta mas um pouco inclinada para a frente — mais de cinco
vezes.
Quando enfim permite que eu coloque o dedo no gatilho, já estou
cansada.
— Você vai coordenar o tiro com a sua respiração. Toma fôlego, expira e
atira. Simples assim.
— Simples assim?!
— Você entendeu o que eu quis dizer — murmura. — Agora, foco.
Eu foco no que está acontecendo e respiro fundo, cuidando na hora de
expirar. Mas é como se houvesse um alarme que me faz parar, entrando em
guerra contra minhas vontades. Estou estagnada e não consigo disparar. Meu
estômago dá voltas dentro da minha barriga e eu gostaria de um chá de
camomila.
— Ok… Agora eu preciso que você dispare, Rebecca.
Eu respiro de novo e penso com confiança no que preciso fazer. No que
vou fazer. É agora. Lembro de todas as regras, táticas, técnicas e ao expirar, sei
que não vou mais chegar ao final disso. Abaixo o braço antes de disparar, com
meu corpo em alerta máximo e frustrada, puxo os óculos e os atiro longe.
— Me desculpe, eu não—
— Chega de choro. Pegue os óculos e endireite sua postura.
— Mas eu não—
— Óculos e postura, Rebecca. Agora.
— Eu não quero.
— Sim, você quer. Só está com medo. Agora endireite-se.
O esporro faz com que eu me sinta uma criancinha e procuro apenas um
motivo para xingá-lo, mas não encontro. Ele não está mentindo.
— Lembro de pedir a você que ignorasse tudo que aconteceu antes, mas
já vi que não vai funcionar assim. Você não é impulsiva como os maníacos que
treinei. Você precisa de um bom motivo. Então pense no pior que tem. Na coisa
que mais te dá ódio. No que você quer destruir.
O nome de Rodrik surge como um pisca-pisca em minha mente. O
maldito que ousou encostar em mim. Que me cobiçou. Que invadiu minha casa,
meu quarto, com seu irmão desgraçado que machucou meu marido e explodiu
uma bomba em nosso quarto. Ele fez com que eu me sentisse fraca. Suja.
Indigna.
Fez com que eu fosse menos do que sou.
E isso não…
Isso nunca.
Eu sei o meu valor, sei do que sou capaz e sei que bastardos desgraçados
como aquele não deveriam mais ter a chance de andar por aí e fazer o mesmo
que causaram a mim com outras pessoas.
E de onde eu venho, de onde sou, e no mundo em que me encaixo, coisas
como essa são resolvidas com sangue.
Por isso, quando aperto o dedo no gatilho e o tiro ecoa, é a primeira coisa
na qual penso. O som se espalha seco pelo ambiente e Donatella comemora atrás
de nós dois, enquanto vejo Estevan sorrir de aprovação, mesmo que eu não tenha
acertado nada de interessante.
Mas eu espio mesmo assim e quando estou prestes a comemorar o quanto
sou péssima, o impulso do vômito chega a minha garganta e eu me debruço
contra a proteção, despejando tudo que escapa da minha boca no chão a nossa
frente.
Enquanto caminho na direção do meu carro após a reunião, penso e
concluo, sem dúvidas, que acabo de sair das piores duas horas e meia de toda
minha vida.
Caminho o mais rápido que consigo para escapar do olhar atento do meu
pai ou dos elogios desesperados dos subchefes, que chupariam meu pau por
qualquer migalha de atenção. Os berros e desavenças dos homens dentro da sala
de reuniões do Madame Martino ainda ecoam na minha cabeça e o modo como
tive de desarmar um deles para impedir que uma fodida guerra civil começasse
me tira do eixo.
Um bando de crianças. Crianças com poder, para ser mais exato. Não
possuem a mínima compostura, assim como seu chefe. E a presença de Mikaela
nos arredores, sendo cumprimentada por todos… Sendo reconhecida por meu
pai.
Como podem confiar num homem que nunca respeitou a mulher? Que
mantém a outra tão perto, tão assumida, tão cheia de si, sem dar a mínima para a
reputação da minha mãe, que já está cansada da porra do seu comportamento de
merda?
Fodido do caralho.
Aguentar tudo isso de cara limpa foi pior do que tortura. Pior do que
qualquer castigo que eu poderia imaginar. E felizmente, agora estou livre.
Entro no meu carro e como Max me alertou sobre ir para casa com seu
pai, eu deixo o estacionamento do maldito bordel antes de ser perseguido por
Madalena, que ficou me cuidando desde que entrei. Não tenho nada a conversar
com a garota. Só espero que ela tenha uma boa vida.
Dou a volta o mais rápido possível e logo estou voando pela avenida, me
questionando se ser parado pela polícia é uma possibilidade, agora que há
instabilidade no comando. Agora que Romeu quer comprar nossa parte. Agora
que Romeu tem chances de fazer isso.
O sangue ferve em minhas veias só de pensar no que significaria não
estar no topo. O que significaria perder nossa cidade.
Mas na sexta, tudo mudará. Nosso plano entrará em ação e faremos o que
for necessário para reafirmar o comando sobre nossa casa. O pegaremos de jeito,
de um jeito que ele nunca previu e do qual dificilmente poderá se recuperar.
Assim que colocar minhas mãos sobre Romeu, não haverá cansaço que
me pare. Eu arrancarei cada pedaço da sua maldita pele marcada pelas tatuagens
de sua organização adorada e o farei assistir enquanto disseco seu puto irmão por
ousar tentar encostar na minha esposa. Eu o farei implorar por clemência. Eu
terei seu sangue nas mãos e irei rir.
Irei triunfar sobre a porra do seu cadáver.
É com isso que sonho há certo tempo.
Antes de pegar o caminho para casa, desvio para o Galpão e confiro
novamente se houve alguma tentativa de ligação no tempo em que estive fora.
Nada. Nem mensagem. O que só pode significar que ou as coisas foram muito
bem ou muito mal.
Minha mente tende a ir para o lado mais pessimista, então imagino que
vá encontrar Rebecca encolhida no canto aos prantos. A ideia me incomoda até o
último fio de cabelo, apenas em pensar que ela pode estar vulnerável num lugar
onde não estou. Onde todos são predadores treinados.
Porra.
Talvez não tenha sido uma boa ideia colocá-la para treinar sem a minha
supervisão. Mesmo Donatella poderia ser derrubada.
Tudo que eu menos queria era mais uma preocupação para minha lista
infinita, mas é como se eu não tivesse escolha sobre como me sinto em relação
às responsabilidades que sinto ter com a menina de olhos castanhos mais
sinceros e gentis que já vi.
Olhar para eles é como anular tudo que vem de fora. Me dá uma
sensação de calma que nunca experienciei em nenhum lugar e sinceramente, me
vicia, me faz querer mais. Mais olhares, mais sorrisos, mais beijos, mais
momentos em que somos apenas nós dois e toda feiura dessa merda de mundo
não nos atinge.
Rebecca é minha prioridade número um e é esquisito pensar que sou
capaz de assumir isso assim, tão fácil.
Ela quase me faz desejar que nada disso existisse. Que eu não fosse quem
sou. Que eu fosse apenas um homem justo, honesto e que a merece. Que não a
deixa em perigo.
Talvez eu não seja o certo. Talvez ela estivesse melhor com outro. Talvez
fosse mais justo se sua vida fosse rodeada de belezas, como a minha nunca foi,
nem será. Mas…
O que seria de mim sem ela?
Me sinto mais humano do que nunca fui em vinte anos. Mais propenso a
estar presente. Mais propenso a ser alguém que nunca fui permitido ser.
Eu gosto da minha versão quando estou perto dela. Gosto de quem sou
quando estou com ela.
E não permitirei que ninguém ameace isso ou me tire o privilégio de ter
Rebecca Accorsi.
Eu mataria para deixá-la segura.
E morreria também.
Pegamos a sessão das seis horas e eu obrigo Luca a pegar o maior balde
de pipoca, além dos copos mais generosos de refrigerante da bomboniere, não
importa o quanto ele reclame sobre não poder exagerar pela missão de amanhã.
Eu não estou nem aí, ele não deveria estar também. Ainda pego um monte de
balas quando estamos no caixa, sem me preocupar com nada além de quão
gostosas se parecem.
Meu marido paga por tudo e nos encaminhamos para a pequena fila que
há para entrar na sessão. Ele mantém sua atenção ao redor como se qualquer um
que circula por perto fosse uma ameaça e eu cuido das posições estratégicas de
Mathias e Roger. Eles sempre estão por perto, embora pareçam como sombras, o
que me deixa mais segura.
— Então, o que vocês realmente vão fazer amanhã?
Luca desvia os olhos do casal à nossa frente e me encara. Ele é tão
grande, sério e exibe tanta confiança apenas no modo com que se porta, que se
diferencia de todos os outros. De longe, você pode saber que ele é alguém com
quem não deve se meter e por consequência, eu também.
Eu me sinto mais segura com meu marido do que jamais me senti em
toda vida. Imagino se ele sente isso.
— Eu falei a você que…
— Eu gostaria de saber — interrompo, antes que tente me enrolar de
novo. — Para não ficar preocupada.
Minhas palavras são exigentes e ele nota isso. Ainda assim, parece
receoso.
— Vai ser justamente o contrário.
— Então devo apenas esperar que você volte, sem saber de onde ou para
que saiu?
Luca não gosta de ser cobrado e tudo bem. Mas eu sou sua esposa. Eu
preciso saber se devo esperar que volte vivo.
— Não falamos sobre negócios onde outros podem nos ouvir, Rebecca.
— E falará quando não puderem?
Ele torce os lábios e vejo o desprezo pelo modo com que falo agora.
— As coisas são mais fáceis se você se mantiver longe dessa merda —
sussurra, a mão protetoramente colocada na minha cintura. — E se quer mesmo
que continuemos em público, por favor, não me irrite.
— Por quê?
— Eu não sou uma boa companhia quando estou irritado, Rebecca.
Não sinto medo pelo que diz, bem pelo contrário. Sinto raiva que ele
esteja optando por me manter de fora. Durante o caminho, conversamos sobre
minha aula e compartilhei tudo sobre meu dia. Por que ele não pode fazer o
mesmo?
Engulo minhas palavras de raiva e viro para o lado. Neste momento, me
arrependo de ter decidido sair de casa ao colocar os olhos sobre a última pessoa
que gostaria de ver quando pareço estar em maus lençóis com meu esposo.
Liliana Morelli.
— Oh, meu Deus! Eu não acredito que vocês estão aqui!
Endureço minha postura na mesma hora e desinteressado, Luca se vira
para acompanhar o som.
Os cabelos loiros estão ondulados e usa um vestido rosa justo. Me sinto
feia em meu modelo preto, simples demais em comparação ao brilho que sua
pele produz cheia de maquiagem e joias.
Maldição...
— Liliana. — Luca se encarrega de cumprimentá-la em meu lugar e eu
sorrio, acenando para as duas amigas que a acompanham. As reconheço do meu
casamento, mas não sei seus nomes, nem quero saber. — Como vai?
— Muito bem. E vocês? Parecem felizes!
Seu olhar desce por nós dois e eu me endireito, abrindo ainda mais meu
sorriso para ela. Se acha que parecemos felizes, eu a mostrarei o que é
felicidade.
— E estamos. — Engancho meu braço no de Luca e ele me encara com
um sorriso no canto da boca, com toda certeza se lembrando da pequena
discussão de antes. Idiota. Eu o farei engolir esse sorrisinho mais tarde. — Muito
bem também.
— Que ótimo! Fico feliz por vocês dois, especialmente por você, Luca…
Meu irmão andou me falando sobre os problemas pelos quais a empresa está
passando. Imagino o estresse que esteja sentindo.
— Estamos bem, Liliana, obrigada — responde, sem dar confiança.
Admiro isso. Ele poderia me provocar um pouco mais falando de qualquer outro
jeito com ela. — Diga a Benito parar de espalhar mentiras sobre nós. É o que
está fazendo as coisas ficarem piores.
Liliana não gosta da repreensão e eu noto como ela muda. Talvez
esperasse um Luca mais simpático, mais aberto, menos satisfeito, na melhor das
definições.
Mas eu estou cuidando bem do meu homem. E ela pode ver isso apenas
no modo como me mantenho em silêncio, sem necessidade alguma de
competição.
As palavras de Julieta me cobrem agora e me enchem de uma confiança
tão nova e agradável que é bom ser Rebecca. E não há nenhum aspecto no qual
eu perca para Liliana ou me sinta ameaçada.
Luca sendo o homem fiel que prometeu ser também me ajuda nisso.
Sem mais delongas, ela se despede e eu e Luca ficamos apegados num
silêncio pavoroso, até que ele irrompe numa risada que me força a rir também,
da sua cara estúpida.
A fila já andou e continuamos parados.
— Você é maravilhosa, sabia? — diz, em tom de graça e aperta minha
cintura. Eu empurro seu peito com meu cotovelo.
— Idiota.
Finalmente, entramos na sala de cinema e eu me surpreendo ao ver todas
as poltronas vazias. Luca escolheu as poltronas lá de cima e nós vamos até o
limite, acomodando-nos em seguida.
Cinco minutos depois, quando as luzes se apagam e a tela acende, eu
olho para ele e tento entender se tem algo a ver com o fato de não haver ninguém
na sala conosco.
Luca está apoiado em sua cadeira, o rosto apoiado na mão, rindo
despretensiosamente, evitando olhar para mim.
— Você não fez isso…
— O quê?
— Onde estão todas as outras pessoas da sessão, Luca?
— Devem ter esquecido…
Eu rio, incrédula.
— Você é ridículo, Luca Accorsi.
— Eu? Ridículo?
— Você comprou todas as poltronas da sessão, não comprou?
Os trailers estão rolando e meu marido ri, roubando uma pipoca.
— Você tem provas disso? — desafia.
— Você está rindo como um culpado.
— Linda, eu nunca entrego a culpa… Vai ter que ser melhor do que isso.
— Eu sei que você fez isso, Luca.
— Se eu tiver feito, o que é apenas uma possibilidade, o que tem de mal?
Você tem seu cinema e eu garanto nossa segurança. Nenhum enxerido ou fodido
que eu tenha que surrar por nos incomodar.
— Essa não é a intenção da coisa…
— A intenção é que você se divirta no seu teatrinho de que somos um
casal normal. E esse é o nosso normal.
— Não podemos conviver?
— Temos dinheiro o suficiente para isolar qualquer canto dessa cidade.
Trabalhamos para garantir que possamos fazer isso. E há um motivo.
— Não há perigo em tudo e todos, Luca.
Ele ri como se eu tivesse contado uma piada.
— Para mim, há — diz, concluindo o assunto. — E para você também.
Opto pelo silêncio e me recolho com minha pipoca. Teimoso como eu,
ele nem mesmo parece estar respirando enquanto o clima de lua-de-mel passa e
fura nossa bolha.
Eu entendo que seja perigoso, mas ele irá me proteger do mundo para
sempre? Fará justamente como meu pai?
Sei da vida que levamos, sei dos riscos que correndo, mas após ser
atingida e atacada dentro dos lugares nos quais mais me senti segura, não vejo
por que não devo viver, se posso morrer a qualquer instante. Se ele pode morrer
amanhã, fazendo o que quer que seja.
O filme já começou e eu não entendo porcaria nenhuma sobre ele, nem
quero saber. Como toda pipoca e não dou nem um grão para ele.
E é só quando o casal principal está prestes a morrer, que ele dá o braço a
torcer — notando que eu certamente não irei — e toca minha perna.
— Você não vai mesmo falar comigo?
— Eu estou falando com você — minto.
— Você está brava porque eu comprei a sala inteira.
Olho para seu rosto.
— Então você admite.
— Nunca neguei.
Reviro meus olhos e tento evitar sua expressão convencida. Luca
consegue ser muito irritante. Não sei se ele tem noção de como seu ego é
inflado.
— Por que ao invés de se preocupar com pessoas que não fazem
diferença, que só iriam fazer barulho e te incomodar, você não pensa pelo lado
bom?
— E qual seria o lado bom disso, Luca?
Ele aproxima o rosto do meu pescoço e empurra meu cabelo para o lado.
Eu odeio como me arrepio quando sua respiração bate contra a minha pele e me
mantenho parada, fingindo costume.
— Estamos sozinhos.
— Sempre estamos sozinhos…
— Você queria o romance de uma sala de cinema, Becky. Eu dei isso a
você. Do jeito que eu consigo.
Continuo em silêncio.
— Se há melhor opção ou melhor homem, eu sinto muito, mas eu sou o
que você tem. E essa é a nossa realidade. Gosto de salas vazias, gosto de me
certificar que ninguém vai nos incomodar e prefiro te ver brava do que saber que
alguém pode te fazer alguma coisa. Se ainda acha que isso é ruim…
— Pare de ser tão dramático, Luca… Eu nunca disse nenhuma dessas
coisas.
— Eu leio bem as pessoas, Rebecca.
— Então você só não consegue ler a mim — esbravejo, virando para
encará-lo.
Ele não responde a isso. O filme continua rolando. Mas, sinceramente,
que se foda o filme.
— Eu estou feliz, Luca. Eu confio em você. Eu aceito o que temos e
cresci no mesmo mundo em que estou hoje. Eu só não quero sentir que estou
sendo enganada, nem quero que você me presenteie com falsos teatros como se
eu fosse uma criança. Também não quero ficar de fora do que acontece com
você, mesmo que signifique que não irei dormir esperando que chegue.
— Eu não sou o tipo de homem acostumado a compartilhar as coisas,
Beca…
— Mas eu sou sua esposa. E quando Liliana olhar para nós dois, quero
que ela sempre nos veja como um maldito casal feliz.
— Isso tudo é por que encontramos Liliana? — pergunta em tom de
graça e eu desfaço minha cara de brava, odiando-o por ser tão bom. Sua boca
raspa na minha bochecha e eu entendo a diferença sobre estarmos sozinhos e
acompanhados.
Ele é assim quando estamos sozinhos. O meu Luca. E talvez priorize
isso, talvez goste de quem se permite ser quando somos apenas nós dois.
— Isso tudo é porque me casei com você — falo, deixando o ar escapar
enquanto ele segura meu rosto. — E você é…
— Espetacular?
— Não.
— Incrível?
— Não.
— O dono da sua…
— Nem termine — ordeno e ele ri. — Seu tempo com Max está
começando a se tornar preocupante.
— Ele te mataria por te escutar reclamar do nosso tempo juntos… — rio.
— Você não o deixaria fazer isso.
— Não, não deixaria mesmo. — E assim, ele consegue que a brabeza
suma e me puxa para um beijo.
Eu o odeio ainda mais por beijar tão bem. Por ser tão bom com o que diz.
Por ser o único homem que eu me vejo confiando, querendo, cuidando, gostando
e…
É.
Amando.
Eu o amo. E sei disso há mais tempo do que admitiria, porque entendo as
complicações em colocar meus sentimentos nas mãos de alguém como ele,
alguém que leva a vida que ele leva. Suas intenções podem ser boas comigo, mas
a organização sempre estará em primeiro lugar. E eu sempre serei apenas sua
esposa.
Só Deus sabe o que o futuro nos guarda, mas em meu peito e em minha
mente otimista, eu torço para que sejam apenas coisas boas. E para que este frio
na barriga que ele me causa toda vez que me olha ou me beija nunca passa, nem
a sensação de que estou exatamente no lugar certo na hora certa com a pessoa
certa.
Eu amo Luca.
E estou aberta para tudo que isso for trazer, contanto que sempre
terminemos deste jeito.
Juntos.
Embora Luca não me conte o que fará na sexta, nem abra brecha para
que o assunto surja, o fim de nossa noite é bom e calmo, do jeito que
precisamos. Após o jantar, como manda o figurino e o roteiro de “como ser um
casal normal” escrito por mim, ele me leva para jantar numa cantina italiana e eu
gosto de pensar que nos pequenos detalhes, Luca está tentando me tornar
confortável.
A noite está tão estrelada quanto o meu olhar enquanto o admiro
escolhendo o vinho e então conversando com o garçom por mais de dez minutos
sobre os pratos, porque ele tem que ser o melhor em tudo sempre. De qualquer
jeito, ele tinha razão, porque a Tagliata está deliciosa e eu sinto que estou
comendo nas nuvens.
No final, ele vai dirigindo e a voz de Frank Sinatra numa rádio antiga que
eu encontro zapeando entre as estações, nos leva para casa. É tão agradável
quanto um filme poderia ser e eu penso que, de algum jeito, estou tendo meu
conto de fadas.
Principalmente quando ele beija todo meu corpo e me deixa ofegante
sobre a nossa cama mais uma vez, derramando todo seu desejo e sua vontade
sobre mim, tornando-me mais sua do que poderia imaginar, me encantando e
roubando mais e mais a cada segundo que passa na minha companhia. Quando
terminamos, minhas pernas estão moles, e ele continua por perto, a boca
perigosamente próxima da minha, os olhos fixados no meu e sua mão fazendo
carinho na minha cintura, deslizando para minha bunda de vez em quando, por
que Luca é Luca e eu nunca esperaria bom comportamento dele.
Ele é perfeito do jeito que é.
E eu sou louca por gostar até das imperfeições.
— Você também sente? — ouso perguntar, interrompendo o silêncio que
é mágico, que nos permite vermos um ao outro com tanta clareza, que é um
crime perturbá-lo.
Falamos mais no silêncio do que jamais falaremos ao abrir a boca. Eu
vejo tanto de Luca quando me olha assim, depois de estar comigo, depois de
dedicar seu tempo e atenção a mim, que mal posso me lembrar de como era não
conhecer Luca Accorsi, não me interessar por cada canto de sua personalidade,
por seu humor, por seus problemas…
É como se não existisse uma Rebecca antes dele.
— O quê? — pergunta, me encarando de volta, a mão subindo da minha
cintura para meu queixo.
— A calma — digo, tocando seu peito e indo até onde as cicatrizes
marcam seus ombros. Luca usa uma corrente fina esta noite, prateada. Ela fica
bem contra sua pele bronzeada, combina demais com seu cabelo mais claro e é
distração o suficiente enquanto espero por sua resposta.
— Com você? — afirmo e ele respira fundo — Sempre.
E sua resposta me dá vontade de nunca mais sair daqui, nunca mais
escapar deste abraço e nem ser atingida ou ver a feiura do lado de fora. A feiura
que seu olhar preocupado quer esconder de mim quando me dá boa noite e apaga
as luzes. E a feiura com a qual sonho a noite toda, rastejando sobre meus pés,
corroendo-me por dentro e por fora…
A sala da doutora Alice Turner é clara demais e tem cheiro de álcool gel.
Há quadros com desenhos de vulvas, dos mais variados tipos e paredes rosinhas,
altamente sugestivas.
Assim que me sento na poltrona no consultório, eu me sinto meio tonta
pela quantidade de informações dispostas sobre a mesa e foco na figura atrás da
mesa, me encarando com um sorriso gentil, embora um pouco aterrorizante.
Donatella veio antes, por ter mais familiaridade e me confessou que
Alice é a pessoa na qual mais confia com seu corpo. Eu me vejo propensa a fazer
o mesmo, especialmente considerando que ela sabe sobre o que Donatella já fez
e se mantém calada.
— Então você é a esposa de Luca Accorsi?
Alice tem um sorriso largo, cabelo cacheado e parece simpática. Não
deve passar dos quarenta anos de idade, pois parece mais jovem do que a minha
mãe.
— Eu mesma. — Sorrio.
— Meus parabéns pelo casamento.
— O conhece? — questiono, com medo do que possa dizer.
— Há alguém que more nesta cidade e não conheça Luca Accorsi,
querida? — Seu tom foge da intimidade. É apenas um comentário, de alguém
que tem consciência de quem são os Accorsi e provavelmente, o que fazem.
Afinal, foi aprovada por eles.
Eu respondo com um sorrisinho envergonhado e ela nota. Não estou
acostumada a ser famosa.
— Vamos dar início às coisas, então, certo? O que te trouxe aqui,
Rebecca?
Eu respondo e ela dá seguimento a conversa, mantendo as coisas num
tom leve. Eu me sinto confortável o suficiente para falar sobre tudo, por que de
nada adianta mentir para alguém como uma ginecologista, mas as coisas mudam
de figura quando chegamos a parte mais delicadas
— Você faz uso de algum método contraceptivo?
— Não — respondo, com certo pesar de culpa. Não sei por quê.
— Hm… E vem sentindo enjoos, como relatou?
— Começaram há dois dias. Acho que comi alguma coisa que…
— Está tentando engravidar, senhora Accorsi? — Ela continua
deslizando sua caneta sobre o papel, sem qualquer julgamento. Eu ainda me
sinto estranha em relação a não ter minha mãe aqui policiando tudo que digo.
— Não é como se eu estivesse evitando — falo num suspiro relaxado,
tentando não tensionar os ombros.
— Ótimo… Isso é bom. Significa que já está preparada.
— Para? — Me endireito na cadeira, agarrando minha bolsa. — Para o
que estou preparada, doutora?
Então ela me dá um sorriso doce.
— Para o bebezinho que provavelmente está dentro de você, senhora
Accorsi.
A concentração de homens para a missão de hoje no Galpão é tão
radioativa quanto Chernobyl após a explosão, exagerando na dose de tensão e
piadas sujas o suficiente para que qualquer mulher ou ser com um terço de
consciência pense duas vezes antes de se aproximar do prédio.
Meu pai está sentado no canto, perto de dois subchefes mais próximos,
que estão aqui por causa dos soldados que disponibilizaram para a operação de
hoje. Além deles, Bernardino e Ricardo conversam com alguns dos homens, que
preparam as armas e se certificam de que tudo está certo para funcionar daqui
um par de horas.
De longe, acompanhado de Max, Lorenzo e Fred, eu observo como meu
pai é bom em lidar com suas preocupações ou melhor dizendo, em ignorá-las. Eu
não almejo ser como ele, em nenhum aspecto da minha vida, mas não posso
dizer que ele tem capacidade de enganar a todos e muito bem, manipulando-os e
os colocando exatamente onde precisa, como fez com todos os seus homens na
reunião em que definimos este ataque.
Tony é um péssimo pai, péssimo marido e péssimo homem, mas do seu
jeito, consegue dar certo com seu cargo de chefe, fazendo o mínimo possível.
Não que haja qualquer mérito nisso, no fato de meu pai ser medíocre na maioria
das áreas da sua vida, mas é surpreendente ver que em pelo menos uma área de
sua vida, ele se dedica.
— Ei, Luca. — Max me chama e puxa minha atenção de cima de
Antônio. Eu considero isso um presente. — Quando pegarmos Romeu, posso ter
cinco minutinhos antes de você colocar as mãos nele?
Ele já usa o colete à prova de balas e o coldre está carregado.
— Então eu perderia o privilégio de saber que é só do meu rosto que ele
se lembra no inferno — digo, e Max ri. Ele com certeza entende. — Mas eu
posso te entregar ele, se me der Rodrik.
— Isso é um trato feito, primo — acena.
Eu sinto falta da presença notável de Donatella e noto que talvez não seja
o único, considerando o silêncio de Lorenzo enquanto recarrega suas armas e
garante que estejam funcionando. Eu perguntei a Tony do porquê não a ter
convocado, mas é claro que não consegui nada além de um monte de merda
saindo da sua boca. E merda mentirosa.
Todos sabemos que Donatella tem capacidade de fazer muito. E até
mesmo melhor do que nós. Podemos tentar nos convencer do contrário por que
acreditar que ela está segura em casa, assim como nos acomodamos a pensar em
nossas mulheres e irmãs, é mais confortável, mas não há um soldado nesta sala
hoje que não reconheça a capacidade de Donatella Accorsi em usar o gatilho ou
arrancar sangue.
E é injusto que ela não possa estar aqui hoje.
— Mal posso esperar para irmos de uma vez. — Fred diz, escondendo as
mãos nos bolsos da calça jeans. Ele parece mais cansado, mais velho e um pouco
menos concentrado do que deveria estar, agitado demais para o meu gosto, mas
foi convocado porque é bom no que faz. Sua vida pessoal não é da minha conta,
a menos que se torne um problema.
— Lembrem-se: temos ordens explícitas para não matar ninguém antes
de conseguirmos informações. — Enzo diz, sendo o careta de sempre. — Até
mesmo os Ivanov.
Reviro meus olhos e rio, treinando a mira na parede a frente. Não
disparo, mas a alinho.
— Espero que diga isso quando estiver com ele sob a sua mira, Enzo —
digo e todos riem. Menos ele. Lorenzo tem uma tendência sinistra a seguir
ordens.
A conversa segue e meu irmão ignora as provocações. Eu termino de me
preparar e quando nosso pai fica de pé e chama a atenção de todos, o silêncio se
faz.
Ele passa as instruções finais e termina com um brinde. Um brinde do
qual não compartilhamos, pela necessidade de estarmos em nosso melhor foco
essa noite.
Quando somos dispensados, antes de seguir com minha equipe para o
carro, meu telefone vibra e eu peço um segundo.
Paro nas escadas de incêndio e me sento num dos degraus para atender
Rebecca.
— O que houve? Como você está?
— Ahn, oi, Luca… — Ela gagueja é isso nunca é bom sinal. —
Donatella me falou que está quase na hora de vocês saírem. Eu achei bom ligar,
para, ahn, você sabe…
Eu passei o dia inteiro sem falar com ela. Agora já é tarde, quase onze da
noite. No meio de tanta merda para resolver e verificar, acabei esquecendo de
saber da minha esposa.
— Ah, sim. Para garantir que ainda estou vivo?
Ela estala a língua do outro lado da linha.
— Não fale uma besteira dessas!
— Não é besteira estar preocupada com o seu marido incrível.
Posso imaginá-la revirando os olhos. É divertido.
Me sinto menos tenso do que me senti durante todo dia.
— Eu liguei para desejar boa noite e sorte no que quer que vá fazer.
Donatella me pediu para fazer o mesmo por ela, aliás, só que não de verdade…
Ela está aqui, aliás. Vai dormir comigo esta noite.
— Entendi. Isso é ótimo. Agradeça a ela por mim.
Beca murmura algo como hm-hm no telefone e eu checo meu relógio.
Estou dois minutos atrasado, mas ninguém vai morrer por isso.
— E como foi o médico?
Seu silêncio é um pequeno alarme e eu escuto atentamente o que não é
dito também.
No fundo, acho que posso ouvir Donatella dizer algo como “quero só ver
a reação dele” e isso me alarma.
— Rebecca?
— Hm?
— Eu perguntei como foi o médico — repito e fico de pé. Posso escutar
os homens indo na direção dos elevadores, ignorando as escadas por saberem
que estou aqui.
— Foi tudo bem. Hm, fiz apenas um exame de sangue.
— Por qual motivo?
Outra pausa, e então a resposta.
— Coisas de rotina — simplifica, mas tenho certeza de que há mais por
trás. Quem sabe ela esteja doente? Porra, isso seria péssimo. — Já está de saída?
— Sim. Preciso ir.
— Tudo bem…
— Tem alguma coisa que não está me dizendo, não tem?
— Não. Não há nada. Eu só quero que você se cuide.
Achando graça de sua preocupação, eu rio, permitindo que minha
respiração escape e me sinta menos tenso.
— Eu não vou fazer nada que já não tenha feito.
— Não me importa o que já fez. Nós…
— Luca.
O chamado pelo meu nome me dispersa da chamada e eu olho para o
topo das escadas, encontrando meu pai parado ao lado da porta.
— Quero falar com você — diz e não é um pedido.
Eu aceno.
— Preciso ir, Beca. Nos vemos quando eu chegar em casa, certo?
Não espero que ela responda e desligo. A sensação de que algo ficou por
dizer me perturba, mas será apenas mais uma motivação para fazer logo o que
tenho de fazer e voltar para casa.
— Esposa preocupada em casa? — Tony pergunta, em tom de
descontração e eu o encaro de cima a baixo, tentando entender que porra ele
acha que vou responder.
Somos amiguinhos de repente?
— Não há nada a dizer sobre Rebecca — encerro qualquer outro
comentário de merda com o quão ele poderia surgir e foco meu olhar no seu.
Estou alguns degraus abaixo, então preciso olhar para cima. É péssimo. — Do
que você precisa, senhor?
— Quero garantir que temos os interesses da missão de hoje à noite
alinhados. Você será meu representante em campo. Preciso que esteja pronto
para fazer o que deve.
— Nunca o decepcionei em campo antes, não será agora que isso vai
acontecer.
— Lorenzo me falou sobre não ter visto você no treino de ontem. E
verifiquei com Estevan sobre as horas que vem passando nas salas de treino.
Elas diminuíram.
Eu rio. É claro que isso nunca seria apenas mais uma conversa.
— Está me perseguindo, senhor?
Minha resposta irônica faz um meio sorriso se abrir entre seus lábios.
Tony desce dois degraus e para mais perto, seu perfume de cigarro e bebida
preenchendo todo ar das escadarias, enquanto eu estufo o peito, encarando-o da
mesma forma que faz comigo.
— É ótimo que esteja se entendendo com a sua esposa, mas bocetas são
diversão, não nossa prioridade. E irresponsabilidades geralmente cobram seu
preço.
Ah, não me diga?
Aposto que sua puta de estimação cobra caro pela exclusividade.
Grunho, me esforçando muito para engolir tudo que eu poderia dizer para
ele agora em relação aos seus achismos sobre meu casamento. Eu não posso
socar seu estômago, nem acertar seu pescoço com a faca que penduro em minha
cintura. Seria difícil esconder o corpo e o sangue, e certamente me matariam por
fazer isso.
— Entendido.
— E nós não queremos problema nenhum que me faça ver que trazer
Rebecca para essa família não foi uma boa ideia, não é?
A ameaça está clara no seu olhar. E eu entendo o que cada uma de suas
palavras quer dizer.
Sou soldado. E devo ser sempre isso, em primeiro lugar.
— Não se envolva em meu casamento — alerto, sem conseguir manter o
tom amigável ou a expressão de obediência que ele exige. — E não se preocupe
com meu desempenho. Posso derrubar quem for e fazer tudo que preciso. Não se
esqueça de que esta é a minha missão.
— E não se esqueça de que fui eu quem o treinei, Luca.
Me batendo.
Me surrando.
Fodendo a minha cabeça até eu não confiar nem mesmo na minha própria
sombra.
— Sei os seus pontos fracos, filho. E saberei como usá-los se não for o
homem que eu preciso que seja.
Sua mão aperta meu ombro e eu cuido o movimento com o mesmo
cuidado que analisaria a aproximação de um predador. Não há nada de paternal
entre nós dois, nem porra de laço nenhum. Tony me destruiria se precisasse e eu
com toda certeza farei o mesmo com ele, assim que a oportunidade surgir.
É apenas uma questão de esperar pelo momento certo para nós dois.
Ele se retira antes de mim e eu passo mais alguns instantes nas
escadarias, acendo uma cigarro e espero que meu corpo volte ao normal, que
minha mente entre no lugar certo é que a raiva não seja tudo que vejo. Preciso
entrar na missão de hoje de cabeça fria.
E é isso que eu farei.
As cicatrizes que meu pai me deu durante toda vida não irão me alcançar
hoje.
Dormimos juntos na cama que nunca pareceu tão boa, tão macia e tão
grande demais, pois não há necessidade alguma de tanto espaço, uma vez que
encontro o conforto em seu peito e ele parece fazer o mesmo em mim.
Quando acordo, Luca não está mais debaixo de mim, mas sei que está em
casa pelo som leve da água do banheiro correndo. Encontro esparadrapos soltos
pelo aparador e gazes com sangue, além de alguns anti-inflamatórios e
analgésicos. Vou recolhendo as pistas até chegar ao banheiro e o encontro saindo
do banho.
— Bom dia… — digo, examinando-o de longe. Seu corpo continua
lindo, mas machucado, chega a me dar dor no coração. Uma sensação ruim. —
Como você está hoje?
— Bem — mente. É óbvio que tudo isso só pode estar doendo. —
Lorenzo passou aqui mais cedo. Trouxe remédios o suficiente para dopar um
elefante.
Olho para a janela do banheiro e tento descobrir que horas são.
— São três da tarde, B — diz, lendo meus pensamentos, enquanto sofre
para colocar sua cueca. Consegue sem minha ajuda de qualquer jeito.
— Já?
Nossa.
Que bela enfermeira eu me saí.
— Por que você não me acordou?
— Depois da noite que teve, pensei que seria bom descansar. — Ele
grunhe ao movimentar os braços e eu vejo que alguém costurou os cortes mais
profundos.
— Quem cuidou de você? — Não pretendo soar ciumenta, nenhum
pouco, mas quando ele me olha, parece ser exatamente isso que encontra.
— Donatella remendou o que podia…
— Deveria ter me acordado — afirmo, cruzando os braços. Não sei se é
ridículo que eu pense em mim como alguém que deveria estar lá até mesmo para
segurar a mão de Luca enquanto ele é costurado, coisa que ele obviamente não
precisa, mas não importa. Eu queria estar com ele. Queria mostrar que estou
disponível para o que der e vier.
— Estou bem agora.
Sua afirmação parece ser tanto para mim, quanto para ele. Não procuro
discordar disso e o encaro pelo reflexo do espelho acima da pia, o qual ele
encara.
Então minha boca formula a pergunta que esteve morando na minha
cabeça desde que ele chegou.
— O que foi que aconteceu afinal, Luca?
E ele vê que não tem mais como fugir da explicação.
— Nós invadimos a casa de Romeu Ivanov em North Haven. É o que
vínhamos planejando há algumas semanas. Tinha tudo para ser o plano perfeito
de execução. Tínhamos tudo controlado, Becky. Mas não contávamos com a
velocidade com que os reforços chegariam. Não esperávamos que houvesse
espécies de túneis subterrâneos para trazerem-nos direto onde estávamos. Então,
eu enfrentei Romeu e… bem, considere sorte que não estou morto. Ele poderia
ter feito.
— Ele tinha você sob a mira dele? — Só de falar, meu peito gela. Aliás,
eu estou toda gelada e acho que minhas mãos tremem. É como se uma onda de
agonia assumisse forma dentro de mim, revirando tudo.
— Rodrik tinha — anuncia e as coisas só pioram. Um choro involuntário
brota de meus olhos e droga, acho que agora meu peito simplesmente afundou.
— Mas Romeu me quis vivo. Então, eles apenas nos apagaram e acordamos no
meio do nada. Tinha minhas mãos amarradas e meu corpo doía como se apenas
tivessem me jogado de um barranco. Encontrei Lorenzo alguns metros depois e
conseguimos voltar até a cidade.
— Meu Deus…
— Não precisa ficar assustada.
— Ele te tinha desacordado, Luca? Ele poderia… Meu Deus…
Me falta força para materializar as palavras e meu marido deixa de lado a
toalha com a qual secava o cabelo para vir até onde estou, apoiando as mãos em
meus braços. Seu olhar encontra o meu num apelo silencioso para que eu pare de
tremer, mas não há força dentro de mim para isso. Todo pânico me abraça de
novo e ele precisa agir antes que eu me entregue completamente ao choro.
— Ele não o fez.
— Mas poderia! — esbravejo, histérica. — Tem noção de como se
arriscou? De como esteve em perigo? E por uma vingança que não—
— Não é só por vingança — reforça, o olhar mais duro, as palavras bem
colocadas. Me encara com a mesma intensidade que encararia um de seus
soldados — Eles ousaram mexer conosco, Rebecca. E ninguém faz isso e
continua vivo. É por nossa honra também.
— Não adianta de nada se ter honra e estar morto, Luca!
— Foi o juramento que fiz, Beca. A Accorsi é o que sou. E se uma parte
de mim está em risco, nada além de me doar completamente para impedir que
nos prejudiquem faz sentido.
— Mesmo que o preço seja a sua vida? — Essa pergunta eu faço com dor
no coração. Uma bem específica, que reflete em mais do que meu medo de não
ter mais aquilo com que me acostumei, aquilo que faz com que eu me sinta
segura.
Reflete também no filho que está na minha barriga. Aquele do qual ele
ainda não sabe. Aquele do qual não tenho coragem de contar ao homem que
parece longe de qualquer lugar feliz no momento, focado em riscos, vitórias e
derrotas.
Como eu encaixo uma criança no meio disso?
— Mesmo que o preço seja a minha vida — suspira em confirmação,
retirando a mão do meu rosto. Eu não posso impedir a lágrima que cai diante de
suas palavras e o choque terrível que nunca calculei.
O de não ser a prioridade na vida dele. O de ser apenas mais uma parte.
Me casei com um homem feito, um mafioso, um homem de guerra e
sangue, e em nenhum momento me dei conta de que isso poderia acontecer.
Eu me dar conta de que tudo é tão instável que parece que corremos
contra o tempo em tudo que fazemos. Que vamos contra a sorte, que jogamos
com a boa vontade de Deus, nos mantendo vivos por mais tempo do que
deveríamos.
A tristeza se reflete em meu olhar e ele vê. Mas a interpreta por todos os
motivos errados.
— Você estaria bem cuidada, Rebecca. Para o resto da vida. É nova,
poderia se casar de novo, mas eu tenho bens que iriam para você. Você não
precisa se…
Eu me afasto dele na mesma hora.
— Do que você está falando?
Choque passa por seus olhos, mas não fica. Ele acha que está certo. Acha
que lê a situação da maneira certa.
— Você tem medo de que eu morra, não é? Mas não precisa. Você não
iria ficar desprotegida.
— Acha que isso é com o que me preocupo?
Um instante de silêncio, então, ele sacode os ombros.
— Penso que é o óbvio. O com que toda mulher em sua posição se
preocuparia.
— Minha posição?
Ele fecha os olhos e respira fundo.
— Você me entendeu…
— Não, é lógico que eu não te entendi!
— Por que você está complicando as coisas?
— Por que você está complicando as coisas?
Ele finca sua atenção em cima de mim.
— O que você quer dizer com isso? — E parece cansado demais para que
eu dê seguimento a esta conversa do modo que ele merece.
E então eu penso. As palavras chegam à ponta da minha língua e meu
corpo inteiro parece implorar que eu apenas alivie a tensão de estar guardando
um segredo como esse é despeje tudo, revele a ele que apenas alguns exames me
separam de confirmar o que já sei há certo tempo. O que minha ginecologista
soube assim que tocou em mim.
Mas não consigo. Não quero. Não posso.
Não agora.
Eu não quero falar agora.
— Não importa — falo, deixando o ar sair e a tensão escapar aos poucos,
enquanto meu corpo se prepara para acomodar o segredo por mais um tempo. —
Nada importa.
— Você parecia como alguém que tinha algo a dizer, Rebecca… Então
por que não corta esse drama do cacete e apenas diz de uma vez?
— Eu não tenho nada para falar com você! — Ressalto, rindo com
escárnio de sua expressão ofensiva — Nada!
— Vai preferir ficar brava? Sem falar comigo? É essa a solução que
encontra para tudo no final, não é?
— É melhor do que gastar meu tempo com alguém que não consegue
nem mesmo entender do que tudo isso se trata!
Dou as costas para ele, mas isso é sempre um erro. Luca chega tão rápido
até onde estou, que sou parada bruscamente pela força com que segura meu
braço, me puxando na direção do seu corpo.
— E do que tudo isso se trata, Rebecca? Hm? Me diga, Beca! Que porra
você está escondendo de mim?
— A questão é justamente essa, Luca! — sorrio. — Eu não estou
escondendo nada de você. Só não vê por que não quer. Porque talvez nunca
tenha visto. Porque talvez não queira ver!
Ele respira fundo, examinando meu rosto com atenção total a cada
detalhe, a cada coisa que não quero passar, a cada segredo que estou tentando
guardar. Sua armadura parece enfraquecer quando se dá conta da coisa mais
óbvia de todas. Daquilo que já não é mistério há um tempo.
— Vê agora? — pergunto, mergulhada em uma mágoa que me atravessa
ao enxergar seu espanto e o modo como recua, afrouxando o aperto em meu
braço. — Consegue enxergar que o problema é que eu amo você?
A revelação escapa amarga de meus lábios e eu puxo meu braço do seu
aperto. Estou chorando como uma criança, como alguém que não tem para onde
correr e Luca apenas me encara, a atenção parecendo focada em milhares de
coisas que não aqui, que não eu, que tola, ainda espero escutar algo que não vai
vir. Uma confirmação que não existe, porque eu me deixei levar por coisas que
talvez tenha criado apenas na minha cabeça, coisas que me tornaram essa idiota
que chora na frente de um homem que não está nem aí agora.
Merda, merda, merda.
— Rebecca, isso…
Ele franze seu rosto e eu limpo minhas lágrimas, tentando reencontrar
meu autocontrole, mas não há como. Eu só quero fugir daqui agora.
— Não importa, como eu disse, Luca. Você não precisa fingir que sim.
— Eu nunca…
— Não importa! — berro, porque tudo que ele diz só piora o que sinto.
Só piora como me sinto. — Nada disso importa, Luca!
Deixo o quarto antes que ele se dê ao trabalho de falar mais uma vírgula
e não me arrependo de não olhar para trás.
Eu acho que não encontraria nada lá de qualquer jeito.
Tensão. Aquele sentimento que te deixa em alerta, que te faz pensar que
está enxergando o mundo do jeito errado e que tudo que vem de fora é uma
ameaça. Que deixa pronto para os que vier, mas que não te prepara realmente
para o que você vai receber. Que apenas te deixa mais vulnerável, mais aberto,
mais consciente dos riscos.
Se eu não tivesse relaxado tanto ao redor de Rebecca, agora, a tensão não
teria permitido que as coisas fossem tão longe. Que a menina revelasse seus
sentimentos em gritos, que me colocasse num lugar para o qual eu não me sinto
pronto. Para o qual eu sinto que não pertenço, embora meu corpo todo pareça
mais do que alinhado para corresponder às suas expectativas e entregar-lhe o
conto de fadas que merece, minha cabeça é melhor do que isso e vê as coisas de
forma clara.
A pior coisa que eu poderia fazer é admitir para Rebecca que a amo de
volta.
Por ela e por mim.
Por que os riscos… Os riscos são de me tornar cada vez mais fraco, de
me decepcionar cada vez mais, de decepcionar a Tony, de não ser o homem que
preciso ser fora desta casa e dessa bolha que construímos, como se ela pudesse
nos fortalecer para o que há lá fora, quando faz justamente o contrário.
Quando nos enfraquece.
Confiar é fraquejar.
Amar é perder.
E eu não estou disposto a perder mais nada.
Chego a quinta ainda sem notícias, mas é quando a sexta bate na porta
que sinto que perdi tudo.
Nenhum dos membros da sua família têm notícias, nem mesmo sua mãe,
o que é um problema. Donatella me garantiu que Max não está mentindo. Mas só
Deus sabe o que se passa na minha cabeça.
Ele com certeza foi me trair. Só pode ser isso.
O que tínhamos, acabou antes mesmo de se firmar. De uma forma muito
contraditória, eu o afastei com meu amor. Revelei a pior parte dele: a que não
sabe aceitar sentimentos bons. E agora me encontro assim. Sozinha.
Mas mesmo que esteja sozinha, preciso continuar e não é esperando Luca
voltar, me agarrando à nossa cama como se ela fosse um bote salva-vidas que
isso vai acontecer. Por isso, não declino quando Beth Hayes, a noiva de Fred, o
soldado Accorsi, me convida para um almoço em sua casa.
Me arrumo mais do que fiz durante toda a semana e faço questão de estar
em sapatos de salto alto. Penteio o cabelo e o deixo liso, a maquiagem um pouco
mais escura do que de costume. Uso a gargantilha que ganhei de aniversário e
tento não pensar em como as coisas mudaram tão rápido desde então.
Deixo o apartamento escoltada por Mathias, Roger e mais três soldados
aos quais não lembro o nome. Por sorte, nenhum deles me fala uma vírgula sobre
ordens deixadas por Luca, o que significa que elas não existem.
Ele nem se preocupou em me prender dentro de casa.
Talvez esteja apenas esperando que os russos me alcancem em algum
lugar e o livrem de uma vez de ter que conviver comigo. Será mais fácil do que
ter uma conversa com sua esposa.
Aviso a Mathias que vamos para a casa de Beth e Fred Hayes e ele
concorda, comunicando alguma coisa a alguém no rádio de intercomunicação da
segurança. Roger vai no banco de carona e mantém os olhos na cidade.
E eu também olho, me dando conta de que é a primeira vez que saio
sozinha em muito tempo.
Nova York ainda parece a mesma, mas quando você a vê por tanto tempo
de cima, consegue parecer menor. Menos aterrorizante. E sendo uma Accorsi,
pode ser facilmente considerada algo que você domina.
Não tenho medo das ruas, nem das pessoas que andam apressadas entre
as calçadas, todas parecendo ter um lugar para ir. Gosto do movimento, pois é
bem melhor do que o silêncio sepulcral da minha casa. Me distrai dela. Me faz
pensar que ainda há alguma vida por aí.
Não demora muito para chegarmos até o apartamento de Beth. Os
soldados me escoltam do estacionamento até o andar e quando a francesa abre a
porta, eu sorrio ao ver sua barriga quase explodindo.
— Bem-vinda! — Comemora, me puxando para dentro. Com um aceno,
me despeço dos soldados, que guardam a porta. Ela a fecha depois que eu entro.
— Beth, você está—
— Gigante? — Seu tom de voz não é dos melhores, mas ela não parece
nada além de radiante.
— Linda! — Corrijo.
Seu apartamento é menor do que o meu, mas a decoração é
extremamente superior. Posso ver o bom-gosto francês em cada detalhe. É
decorada em tons mais sóbrios, com excelentes livros sobre arte e esculturas que
parecem feitas sob encomenda pelo modo perfeito como se encaixam com a
decoração.
— Mas você não está cansada demais para me receber? — comento,
acompanhando-a se mover pelo extenso corredor da casa. — Eu deveria ter
recusado…
— Ne dites pas de bêtises! Eu tenho nove meses de gestação, Beca… Já
não aguento mais ficar sentada. Só estou esperando a hora de pop! — Ela imita o
som de um estouro com a boca e eu sorrio, tentando não me sentir
inconveniente.
Seus cabelos estão lisos, como os meus, mas são mais escuros, perto do
preto. E mais finos também. Beth tem cabelo até a cintura e é magra, enquanto
eu tenho mais curvas.
Não que exista comparação entre nós duas.
É só minha mente tentando me sabotar.
— Eu não vejo a hora de ter meu corpo só para mim… — Faz carícias na
barriga ao se sentar na cadeira em frente à mesa de almoço, lindamente
decorada. — Pardonne moi, Lucie.
— Escolheram o nome? — Pergunto, baseada em meu raso
conhecimento em francês.
— Sim! Lucy, como a minha mãe! — Abre um sorriso orgulhoso e eu
acho a homenagem linda. — Que, aliás, está bem saltitante hoje… — faz mais
carinhos e eu cumprimento a equipe que nos serve o almoço. — Ela deve gostar
de você.
— É uma das poucas — brinco, mas minha amiga não parece ver tanta
graça quanto eu. Ocupo minha boca com o copo d’água que me é servido. Tanta
sede de repente…
— Algo de errado aconteceu? — pergunta, arqueando a sobrancelha.
— Não…
— Está tudo bem entre você e Luca?
Não quero mentir agora, mas também não vou revelar a ela que sinto que
meu casamento acabou.
Tento mudar de assunto.
— Fred se juntará a nós?
Ela nota.
— Hm, não… Ele raramente está em casa nessa hora.
Sorrio em concordância.
— Luca também não…
Luca não vai mais para casa há uma semana.
— Você é uma péssima mentirosa, italiana, mas não perguntarei
novamente — comenta, sorrindo para mim. É o melhor que pode fazer.
Seguimos o almoço depois disso. Ela me apresenta pratos franceses que
não conhecia, eu gosto da maioria e detesto um deles que me anoja até o último
fio de cabelo e me força a segurar o vômito. Peço mais água do que deveria e
recuso o vinho que ela me oferece. Minto que é para acompanhá-la.
Mas é claro que Beth percebe.
Depois do almoço e da sobremesa — na qual eu não como muito —
vamos para o sofá da sua sala de estar em tons de creme e terracota.
É um ambiente de paz completa.
Sua funcionária nos oferece café, chá ou água e eu aceito uma boa xícara
de chá, para que me ajude na digestão que simplesmente parece não estar
acontecendo.
— Certo… — Beth começa depois que nos acomodamos. — Agora você
vai me contar o que há, ou ainda prefere fingir que está tudo certo?
Beth é dois anos mais velha do que eu. Não posso dizer que é muito mais
madura, mas parece estar num local muito mais seguro do que eu em relação a
sua vida, seu relacionamento e sua família.
— Como você reage quando Fred sai para missões?
A pergunta parece acertá-la precisamente.
— Do pior jeito possível — responde, me atraindo diretamente para sua
conversa. — É a pior parte.
— Mas como você aceita isso? Como consegue lidar? Eu… —
inconscientemente, posiciono as mãos sobre a barriga, unidas sobre ela. — Eles
tiveram aquela grande missão na última sexta. E eu, bem, reagi da pior forma
possível…
— É simples: eu não aceito. Não há como fazer isso, se você se importa.
Eles saem todos os dias e prometem que não vão morrer, que não vão nos deixar,
mas não é humanamente possível prometer uma coisa dessas.
— Mas é o trabalho deles. É como os conhecemos.
— Claro, não podemos ser hipócritas… Mas, B, essa preocupação não é
ruim se os motiva a voltar para casa. Eu penso que é minha preocupação e o
nascimento de Lucy que farão com que ele volte para nós. Que ele tenha um
motivo para isso. Se fingíssemos costume, é como se mostrássemos que ele não
tem pelo que lutar.
Eu me endireito no sofá, levemente incomodada, como se as palavras de
Beth cutucassem no fundo da minha alma. Ou talvez muito.
— E se nossos sentimentos apenas os afastarem? Se eles não tiverem
como lidar com o que sentimos e preferirem apenas… — Penso por um
segundo. — Não lidar?
Beth me avalia com atenção.
— Tenho para mim que apenas sentimentos ruins afastam. Tudo que é
bom, vem e fica. Faz alguma diferença. O que pode acontecer é apenas uma
mudança para a qual não estamos preparados. Algo que muda o eixo.
Eu respiro fundo e ignoro os calafrios. Minha boca treme um pouco e eu
tiro os olhos dela para ter coragem de colocar para fora:
— Eu disse a Luca que o amava. E ele não reagiu bem. Nós não… —
Fungo um pouco pelo nariz, tentando manter o controle. — Ele não está em
casa.
— Por que você disse que o amava? — Estranha, franzindo seu rosto. Eu
afirmo, em silêncio, tremendamente envergonhada. — Becky, isso é…
— Isso é Luca — simplifico.
Beth ignora o que eu disse, como se nunca tivesse falado.
— O seu medo é que ele não te ame de volta?
Eu rio e deixo uma lágrima escapar.
— O meu medo é que ele não volte. Pelo menos, não por mim. Que eu
não seja motivo o suficiente para trazê-lo de volta para casa.
Ela suspira.
— E que ele não volte nem mesmo ao saber que você está grávida?
Eu a encaro em espanto.
— Como você…
— Seu nariz está gigante. Você não para de tocar na barriga. Não bebeu,
mal comeu e dá para ver que tem algo te incomodando. Agora entendo o que.
Estranhamente, me dá vontade de rir. E eu rio, junto dela. A situação é
tão ridícula e cômica que não há nada a fazer além de rir.
— É apenas uma suspeita, até ter o resultado dos testes, mas... — Eu rio
mais um pouco, perdida em minha própria situação. — Que desastre… —
murmuro, me ajeitando no sofá.
— Eu considero apenas o início de uma bela história — comenta e se
inclina, me puxando para os seus braços. — Parabéns, Rebecca. Você será uma
ótima mãe.
— Mesmo que… — Não termino.
— Ele vai voltar, B. E você sabe.
Fique bem. Eu volto.
Foi o que ele disse.
Eu volto.
Mas quando?
Meu telefone toca e me distraio da conversa. Peço um segundo para
Beth, que concorda e atendo sem nem ver quem é. Poucas pessoas têm meu
número. E duvido que o telemarketing vá ser um problema.
As palavras são apressadas e eu apenas balbucio, respondendo ao que me
é dito e concordando com o que é contado para mim.
Me afastei apenas alguns passos de Beth, então quando abaixo o telefone,
ela pode ver tudo que mostro em meu rosto e como meu corpo reage a
confirmação do que eu já sabia.
Grávida de um mês.
— Estou mesmo grávida — confirmo, pois meu exame de sangue indicou
isso, confirmou isso.
E agora não há mais fuga.
Puta merda.
Então é verdade mesmo...
Estou grávida.
Não aguento mais.
Nenhum segundo, nenhum momento, nenhum instante.
Eu não aguento mais um mísero minuto vivendo dentro da minha cabeça.
Depois de vinte anos, eu pensei que talvez já estivesse acostumado com
os pensamentos auto sabotadores e toda merda que há por trás de cada um deles,
mas não. A verdade é que estou cada minuto mais longe de saber lidar com a
quantidade de besteira que sou capaz de produzir apenas para me colocar num
lugar que julgo merecer.
Apenas para me derrubar a cada segundo mais.
Sou o meu pior inimigo e posso afirmar isso com todas as letras, sem
nenhuma mentira. Não há ninguém acima do que eu mesmo tenho capacidade de
fazer contra mim.
Ninguém que poderia me destruir tanto.
Por isso, durante a semana em que estou fora de casa, forçado por ideias
que criei em minha mente, paranoias que me afastaram de qualquer grau de
felicidade que eu possa ter sentido, precisei recorrer a todos os tipos de porcarias
que pudessem me colocar apenas um pouco fora de foco.
Bebi, fumei, cheirei… Só não beijei. Muito menos cobicei qualquer
outra.
Isso nunca. De jeito nenhum.
Também, porque nenhuma das mulheres com as quais cruzei caminho,
especialmente aqui no Madame Martino, onde estou com Fred e Max em mais
uma noite, me chamaram a atenção.
Nenhuma delas tem aquilo que meu corpo inteiro procura, aquilo que
parece estar faltando.
Não são nada perto dela.
E isso talvez explique minha cara de rabo, assim como minhas respostas
balbuciadas a qualquer pergunta feita para mim pelos dois homens com quem
divido o camarote.
— Aposto cinquenta pratas que ele se alegraria rapidinho se deixasse
uma dessas meninas chegar perto. — Fred comenta, sua risada fazendo com que
eu me arrepie. Ele está para além de bêbado, estirado sobre um sofá. Batom
mancha sua camisa e ele fede a perfume de quenga.
Belo pai você arranjou para sua filha, Beth.
Pena que não dá para se arrepender agora.
Na frente dele, no telefone, está Max, que digita muito e fala pouco. Ele
não está no melhor dos termos comigo, mas está me deixando ficar em um
apartamento que comprou há muito tempo e não usa. Ninguém nem sabe que
aquele lugar existe, o que torna mais fácil passar despercebido.
Eu só não quero nenhuma atenção enquanto preciso aprender a lidar com
tudo que está mudando dentro de mim.
Tudo que me vejo sentindo de repente, toda raiva que preciso deixar de
lado, tudo a que tenho de me permitir se quiser estar de corpo inteiro na frente de
Rebecca para dizer a ela o que merece escutar.
— Aposto que eu me divertiria bem mais arrancando a sua língua para te
impedir de falar merda — rebato, saciando meu uísque. O gosto é familiar o
suficiente a ponto de nem ser sentido ao todo.
Ele estremece diante da ameaça que de vazia não tem nada e me ignora,
pegando mais uma cerveja. Depois disso, ele puxa Didi, uma das garotas que nos
rodeia, para o seu colo e a beija como se o mundo fosse acabar amanhã.
E não preciso dizer que não há nada que eu odeie mais nesse mundo do
que traição. É o que meu pai fez com a minha mãe durante todos esses anos.
Algo que me lembra dele e do nojo que sinto pelo homem que nunca valorizou a
família ou a esposa.
Repugnando a cena, me viro para o outro lado e bebo mais. Max abaixa o
telefone pela primeira vez e se aproxima ao notar meu desconforto.
— Ei, cara… Você não pode ficar assim para sempre, sabe? — Dispara,
ignorando a nojeira que Fred faz, assim como eu. — Nem beber todo estoque do
Madame.
Ele tira a garrafa de bebida pela metade que ainda estava em minhas
mãos e grunho, irritado por sua audácia. Max nem dá bola, como se eu não
passasse de um pinscher irritado.
— Isso não está te fazendo bem, cara. E para início de conversa, nem sei
por que estamos aqui.
— O lugar mais privado da cidade — resumo, pois ele entende que não
quero ser visto. E se tem uma coisa que o Madame Martino promete, é o sigilo.
— Está de fugitivo por acaso, porra?
— Estou a porra que eu quiser, Max!
— Não, não. Já deu. Esse rolê todo de autopiedade já está insuportável.
Te dei a semana toda para beber e tirar isso de você, mas já chega. Estou te
levando para casa.
Ele agarra meu braço e eu puxo de volta.
— Vai se foder. Eu pareço bêbado para você?
— Você parece na merda para mim — responde e eu contenho a vontade
de socar sua cara.
Fred interrompe a sessão de amassos com Didi e nos encara.
— Ei, caras, ei… Vocês estão arruinando o momento. Eu já falei: tudo
que Luca precisa é de um pouco de carinho. E ele vai encontrar isso exatamente
na…
— Vai se foder, Fred! — Gritamos em uníssono e o moreno ri, tão
bêbado quanto poderia às três e meia da tarde.
— Isso não pode continuar, Luca — resmunga, focando o olhar
esverdeado em mim. — Rebecca me liga todos os dias. Eu não posso mais
mentir para sua esposa por você.
— Não sabe mais mentir, seu idiota? O quê? Quer tanto assim ir para o
céu?
— Fugir nunca foi seu lance. O que foi que Tony te disse que—
— Foda-se Tony — respondo, batendo meu copo contra a mesa de
centro. — E foda-se R…
— Você sabe que não quer dizer isso. — Me interrompe, colocando um
pouco de juízo em mim antes que eu fale besteira. — E eu te conheço bem o
suficiente para saber que preferia mil vezes estar com ela ao invés de estar aqui
se embriagando enquanto assiste Fred trair a noiva. Então, me diga, por que nós
estamos aqui, Luca? Como penitência?! Só tem tarados e pervertidos aqui a essa
hora, cacete!
Rosno, deixando a raiva de lado por um instante.
— Eu não tenho mais para onde ir, Max.
— Luca, essa bosta é mentira e você sabe. A mulher me ligou a semana
inteira atrás de você! Todos estão atrás de você!
— Ela não merece alguém como eu…
— De onde você está tirando essa porcaria, Luca?
— Eu só estou dizendo o que penso — dou de ombros. — Se é melhor
para Rebecca que eu não apareça mais, então eu não apareço.
— Meu Deus, isso é a droga falando? A bebida? Ou você só perdeu o
juízo, degringolou de vez?
— Vai se fo—
— Vai se foder você, Luca! Para de falar merda! Para de pensar nessas
merdas! Acha que deixar Rebecca lá sozinha é a melhor opção? Nunca. Isso é só
a sua parte afetada pelo Tony falando e nós todos sabemos que essa parte não
tem credibilidade nenhuma.
Não respondo, me limitando a encarar o fundo do bordel com raiva. Max
está falando porcaria demais.
— Se a mulher disse que ama você, é porque ama. Eu não sou o cara que
vai levantar a tua bola e falar que o amor é uma coisa bonita e toda essa
ladainha, mas vou te dizer o que eu entendo por essa porra, certo? Entendo que é
estar com a pessoa, até quando ela está na merda. Entendo que é dividir esse
fardo que você carregou a vida inteira, de tentar ser o melhor para um cara que
nunca mereceu porra nenhuma, com quem você sabe que vai aguentar. E sabe
por que ela vai aguentar você ser esse pacote de merda e cheio de defeitos,
Luca? Porque ela te aaaaaama, seu idiota! Ama!
— Meu conceito de amor é diferente do seu, Max — digo, rindo entre os
dentes.
— É diferente porque você cresceu com um pai fodido que te fez
enxergar a si mesmo como um pedaço de bosta. Mas pense na sua mãe, certo?
Algum dia ela te deixou mesmo sabendo dos seus defeitos? Mesmo sabendo do
monte de problemas que você traz, dos defeitos que você tem? Não, né? Ela não
fez.
— Rebecca não é a minha mãe…
— Porra, Luca, para de se fazer de burro! Olha o que você já me fez
falar! Nós parecemos dois idiotas aqui falando sobre amor enquanto Fred fode
uma puta! Não é isso que a gente faz, cara…
— Então o que você acha que deveríamos fazer?
— Acho que você deveria recolher os caquinhos do que sobrou e ir até a
mulher que você ama, porque pela fossa que você está, tá na cara que você não
consegue mais viver sem aquela italiana! Aí, você pede perdão por ser um trouxa
do caralho que precisou de uma semana inteira longe para descobrir o que você
já sabia. E torce muito para que ela te aceite de volta, porque se ela não aceitar,
não sei o que vai ser de você.
Eu olho diretamente para Max pela primeira vez desde que essa maldita
conversa se iniciou.
— Você acha que ela vai…
— Óbvio que ela vai, Luca. É a Rebecca. Ela não faria mal a uma mosca.
Muito menos a você.
E então eu não respondo, por que não há o que responder. Nem como
rebater. Max está falando da mulher que conheço bem e eu sei que ela nunca me
largaria à própria sorte, mesmo se tivesse opção. Por que isso simplesmente não
faz parte de quem ela é.
Perdoar, aceitar e remendar faz parte de quem ela é.
E deixá-la sozinha, fugindo ao primeiro sinal de embate, de complicação
ou problema, não pode mais fazer parte de quem eu sou.
Não se eu quiser manter a garota.
Fico de pé e vejo um sorriso orgulhoso e aliviado brotar no canto da boca
de Max. Ele me imita e fica de pé também, mas nós dois paramos quando um
telefone toca.
É o de Fred, por sorte. Quando ele vê o nome de Beth, decide atender e
pede licença para a garota.
Nós a acompanhamos sair pelo olhar e algo me prende quando ele atende
o telefone.
Algo me diz para ficar e escutar do que se trata.
— Alô? Oi, querida. Sim… Está tudo bem. Não. Hm, claro… Por que ele
estaria comigo? Ah, certo… Eu posso descobrir. Sim. É urgente? Não, Beth, está
cortando. Eu não escutei… Acho que o sinal aqui é ruim. Quê? Você pode
repetir? Beth? Oi? Por que você está chorando? BETH! Beth! Porra!
Ele abaixa o telefone na mesma hora e não sei se está sóbrio ou se
esforça para ficar, mas está de pé de repente. E o semblante expressa
nervosismo.
— O que houve, Fred? — Max indaga, com a mão protetoramente
colocada sobre meu ombro, como se eu pudesse desistir a qualquer instante e
voltar para o limbo de onde ele precisou me puxar.
— Beth… — fala seu nome e fica sem ar por um segundo, passando a
mão sobre o rosto suado, tentando se livrar de tudo. Como se essa merda fosse
sumir com o suor, o cheiro de puta, a bebida e a droga — Porra, eu acho que
Beth está parindo!
Não sei como, mas chegamos. Max dirigiu, porque segundo ele, um de
nós estava bêbado demais e outro tremia, mas o caminho não deixou de ser tenso
só porque o mais concentrado estava no volante.
Ele estaciona de qualquer jeito no meio-fio e eu contenho o impulso de
perguntar o que diabos estamos fazendo aqui, por que eu não faço a mínima
ideia de como fazer a droga de um parto, por ver que talvez Fred só precise de
apoio.
No entanto, talvez quem vá precisar de apoio seja eu.
E isso porque quando chegamos ao seu apartamento, é Rebecca quem
está chorando, encolhida no sofá, enquanto Beth tenta acalmá-la, parecendo
ainda mais nervosa.
Minha esposa, tudo que me importa, está com o rosto escondido numa
almofada e soluça, parecendo sem ar de tanto que chora. Quando pisamos, de
vez, na sala de estar, ela levanta o rosto e parece uma bagunça ainda pior.
E eu me sinto imediatamente culpado por isso.
— Beth! Puta merda, o que aconteceu?
Fred entra gritando e por pouco não pula os móveis. Se aproxima da
noiva e a segura pelo rosto, o qual ela franze ao sentir seu cheiro de bebida.
Eu ainda estou imóvel ao lado da porta.
— A cabeça já está saindo? Você já pode senti-la?
— Que cabeça, Frederico? Tá maluco?
— Mas, querida, você não…
— Eu liguei porque Rebecca começou a chorar! E muito! Você disse que
iria sair com os meninos, então pensei automaticamente que Luca estivesse
junto… E estava! Você mentiu para mim, Fred!
— Nós quase morremos no caminho porque eu pensei que você estivesse
parindo, mulher!
— Não é o caso, Fred — diz a contragosto. — Mas agradeço a
preocupação. Tenho certeza de que um pai bêbado iria ajudar muito.
Fred não liga muito para suas palavras. Ou só não está com paciência
para lidar com ela.
— Se você não está parindo, por que Beca está chorando? — Max
questiona, mais capaz do que eu de falar o nome dela.
Nenhum de nós consegue se mover. Estamos concentrados demais no
rosto um do outro. Ela, com um sentimento que não me passa despercebido. Eu,
com a maior cara de idiota, enquanto tento acalmar meu corpo e não disparar em
sua direção, tentando arrancar o que aconteceu, tentando descobrir quem causou
essas lágrimas a ela.
Apenas para ter um motivo para quebrar minha própria cara.
O silêncio de Beth pesa e ela encara seu noivo.
— Talvez seja melhor que eles fiquem sozinhos… — anuncia e não
precisa ser gênio para entender que se refere a nós dois.
A tensão é óbvia.
— Venham. Explico a vocês na cozinha.
Ela toma a frente e Beca parece grata pela atitude da amiga. Eu ainda não
sei ao certo o que dizer, se agradeço ou reclamo.
Mas quando ficamos sozinhos, tenho coragem de ir para perto.
De me sentar ao seu lado.
De olhar para o seu rosto.
E perguntar:
— Quem fez isso com você?
Ela não tenta se esconder e me encara de volta no primeiro instante. Eu
cerro meus punhos e tento não transparecer tudo que sinto.
— Você.
Agora, ela tenta se esconder e eu a impeço, prendendo seu queixo entre
meu polegar e meu indicador, impedindo que fuja de mim. Seu rosto é tão
delicado e em contato com a minha mão, parece ainda mais puro.
Eu não a mereço.
— Não se esconda de mim — peço, quase imploro. Seus olhos estão
inchados como bolinhas de gude. Eu me odeio por sentir que causei isso. — Por
favor.
— Você sumiu, Luca.
— Eu disse que voltaria.
— Mas não disse quando — murmura. — Você me deixou…
— Eu nunca te deixei, B. Nunca seria capaz disso.
— Você me deixou sim, Luca! Você me deixou quando eu mais precisei
de você e agora ressurge do nada e acha que eu… Acha que eu…
— Eu já cansei de perder tempo, Beca. Já cansei de brigar, de fugir, de
toda essa merda… — Passo o polegar em sua bochecha e tento limpar as
lágrimas que molham seu rosto tão bonito. — Eu gosto tanto de você, que não
consigo mais viver sem você por perto. Gosto tanto de você, Rebecca, que a vida
parece sem sentido quando não estou com você. E te amo tanto, a ponto de me
achar indigno para alguém tão puro e doce como você amar de volta.
Suas lágrimas aumentam. Agora sim está soluçando ainda mais. E eu não
sei se disse a coisa certa ou a errada.
Ela chora de todo jeito.
— Sua doçura não combina com o meu mundo, Rebecca.
— Mas eu não quero fazer parte do seu mundo, Luca… — suspira, me
encarando tão a fundo que não há para onde fugir — Eu só queria que você me
deixasse entrar.
— Mas eu deixo! Porra, Becky, para ser sincero eu nem tenho escolha.
Você já está em cada parte de mim. Em todo canto do que eu sou. Eu sou todo
seu, mulher. Do início ao fim.
Seguro seu rosto com mais afinco, tentando fazer com que pare de
chorar, tentando melhorar o que sente e o que sinto. Me sinto responsável por
cada gota d’água que escapa dos seus olhos. Me sinto responsável por tudo de
ruim que já aconteceu e ainda acontecerá a essa garota estando comigo.
— Eu te am—
— Eu estou grávida — dispara, com a mesma leveza de um míssil sendo
atirado.
E eu paraliso.
Por um instante, acho que nem respiro.
Eu morro e revivo.
Minha vida inteira passa diante dos meus olhos e eu entendo muito
pouco, absorvendo muito menos. Chego a enjoar, sentindo o gosto da minha
própria bile.
Até um piiiiiiiiiiiii eu escuto no fundo. Sinto que fiquei surdo. Que não
escuto mais nada.
— Hã?
— Eu estou…
— Hm, não… Certo. Eu entendi essa parte. Eu só…
— Tem um bebê na minha barriga — diz.
— Certo.
O zumbido fica ainda mais forte.
— O nosso bebê… — adiciona. — O que você acha disso?
— O que eu deveria achar?
Ela funga com o nariz e tenta se ajeitar.
— Se for me deixar de novo, deveria dizer agora. Será melhor se eu não
criar qualquer expectativa baseado no que disse antes de saber e se eu souber,
posso dar um jeito de—
— Beca, por Deus, você não vê que eu só estou em choque? —
respondo, gesticulando, as mãos sem pouso certo. Há energia demais correndo
dentro de mim. — Eu não… Nada mudou. Nada mesmo.
— Então você não vai embora?
Como poderia?
— Nunca mais — afirmo.
— Nem ao saber que…
Um sorriso invade meu rosto e eu ignoro qualquer coisa que esteja saindo
da sua boca neste instante. Já não faz mais diferença. Ela só está tentando
sabotar isso, assim como eu fiz. E eu não permitirei que mais nada estrague essa
família.
Família.
Um filho.
— Beca, saber disso só torna as coisas ainda mais fáceis… E só mostra
como eu tomei a decisão certa.
— Que decisão?
— A de amar você, italiana.
DOISMESES
DEPOIS
A mansão Accorsi parece ainda maior depois de dois meses sem vê-la.
Ao descer do carro, posso notar que Rosalind mudou a cor das esquadrias
da janela e renovou a decoração do paisagismo.
Luca me conduz pela mão e leva a sacola de presente que levamos duas
horas para escolher na noite passada. Ele parece tenso, como eu já deveria
esperar, mas está reagindo bem a estar pisando aqui depois de ter prometido que
nunca mais o faria.
Por sorte, aniversário de nove anos de Amanda o fez mudar de ideia.
Não há nada que ele não faria pelos irmãos. Até mesmo enfrentar o pai
novamente.
Oito semanas depois do ocorrido, posso entender melhor que o que quer
que tenha sido discutido naquele dia, foi o suficiente para fixar algumas ideias
que Luca já tinha dentro de si há muito tempo. E que fez mais mal do que bem,
mas que em conclusão, conseguiu libertar uma parte dele que estava se
mantendo sufocada por tempo demais.
A parte que se importa.
E que não se incomoda em mostrar a todos.
Desde que descobriu sobre a gravidez, Luca me trata como se fosse de
vidro. Se preocupa além da conta em diversas situações e se pudesse, me
manteria enrolada em plástico bolha para que ninguém viesse tocar ou me
importunar. De preferência, para que nem lembrassem que eu existo.
Mas não é assim que as coisas funcionam e aos três meses de gestação,
felizmente, já estou lidando melhor que no começo. Os enjoos diminuíram
consideravelmente, consigo comer — embora tenha emagrecido um pouco pelos
vômitos — e a vida pode se manter normal, na medida do possível.
E eu digo isso porque, de certa forma, nada está normal.
Minha família ficou extasiada com a novidade. Tão extasiada que eu
nunca fui tão bem tratada pela minha mãe ou pelo meu pai, que se dignou a
mandar um presente através do maldito oceano para o futuro neto. E falo no
masculino, porque para Vittorio, não é como se houvesse outra possibilidade.
E para ser sincera, nem para Luca. Todos me olham como se eu estivesse
prestes a ser a galinha de ouro da família Accorsi, entregando-os a continuidade
da linhagem de chefes.
Não sei se isso me deixa tão tensa quanto relaxada.
— Você poderia sorrir um pouco. Pelo menos ao cumprimentá-la —
digo, encaixando meu braço no dele pois uso sapatos de salto, mesmo a
contragosto do meu marido e da médica. — Ela vai gostar de ver que está aqui,
Luca.
— Poderíamos muito bem parabenizar Amanda em outro dia. Em nossa
casa. Ou eu poderia até mesmo alugar um maldito castelo para ela.
— O aniversário dela é hoje, querido. E você é o seu irmão mais velho.
Agora, sorria.
Indo contra o comportamento com o qual me acostumei, Luca aperta a
campainha e nós esperamos que alguém abra. Já não aparecemos nos almoços de
domingo clássicos há muito tempo. Luca ignora todos os convites com um
empenho exemplar e não cedeu nem mesmo quando sua mãe caiu da escada e
torceu o tornozelo. Sua fúria ficou ainda mais explícita neste momento, porque
ele esteve convicto de que não foi isso que ocorreu. E ninguém se esforçou em
tentar fazê-lo pensar o contrário.
Ainda assim, felizmente posso recebê-los em nossa casa. Rosalind é uma
ótima companheira e vem me ajudando muito neste período inicial da gravidez.
Não coloca as mesmas expectativas que todos colocam sobre mim e me ajuda a
manter a sanidade, pois já esteve em meu lugar. Donatella não para de comprar
roupinhas em tons de amarelo, porque não quer forçar nada nem a mim, nem ao
sobrinho — que ela insiste para que se chame Bernardo ou Isabella, nomes de
seu agrado — e até mesmo Lorenzo parece mais afeiçoado a mim, mais aberto.
Aliás, os dois voltaram a se falar pouco mais de um mês depois de toda briga
sobre a qual Luca me contou. Ambos parecem melhor-humorados agora que
convivem novamente.
— Vocês vieram! — Rosalind diz em um suspiro surpreso, ao nos
encontrar no corredor. Não posso deixar de notar a emoção em seus olhos
quando analisa o filho de expressão de ferro. Eu o cutuco suavemente.
— Oi, mãe — responde e se inclina para beijar seu rosto. Ela relaxa
quando o puxa para um abraço e eu sorrio, amando a interação.
Luca evoluiu, mas ainda há um longo caminho por vir no que se refere a
deixar as pessoas entrarem.
— Onde está Mandy?
— Lá fora — indica e Luca volta a segurar minha mão. Não sei se para
apoio ou proteção. — Ela está super ansiosa para encostar na casinha do bebê de
novo.
Rosalind se vira e nos conduz na direção do quintal. É amplo, como se
nunca tivesse fim e hoje está dominado por crianças com asinhas de fada,
saltando pelo gramado. Há um castelo inflável cor de rosa e uma gigantesca
parede de rosas, onde uma fada atende as crianças para fotos. É verão, e isso
explica o moço que distribui sorvetes a todos que se aproximam.
Tudo fica ainda mais encantador quando coloco os olhos na
aniversariante, que vem de encontro a nós dois, atravessando o gramado.
Amanda tem o cabelo preso num coque justo e usa um vestido lilás, junto de
gigantes asas de fada com glitter, que a deixam ainda menor. Ela está tão linda e
arrumada que sinto vontade de chorar.
— Luca!!! Você veio!
Seu berro alcança o irmão e ele a pega no colo quando se aproxima. Eu
abro um sorriso ainda maior, vendo como ela se agarra a ele. Nem mesmo o
homem de gelo do meu lado pode se manter duro quando isso acontece.
É a primeira vez que o vejo sorrir desde que pisamos aqui.
— Feliz aniversário, fadinha…
— Você estava demorando! — Amanda responde, encarando o irmão.
Não são tão parecidos quanto Luca e Dona, mas há certa similaridade no perfil.
A pele de Mandy é mais bronzeada.
— Você sabe como as mulheres demoram para se arrumar, certo, cuore?
Ele chamá-la de coração é a cereja do bolo para mim. Luca não parece
nem perceber que fez isso, colocando-a no chão.
— Especialmente Beca, que demora três vezes mais… — implica e eu o
olho feio, mas não tenho tempo de desenvolver nenhum argumento contra sua
mentira, pois agora a aniversariante está se agarrando a mim.
— O bebê ainda está aí dentro? — O brilho juvenil de encanto em seus
olhos me faz sorrir. Eu pareço uma boba afirmando. — Posso tocar?
Eu permito e ela coloca as duas mãozinhas sobre a minha barriga. Luca
sorri mais uma vez acompanhando a cena e eu gostaria de ter um retrato dessa
cena guardada para sempre.
— Ele ainda é muito pequeno para responder, mas logo você vai poder
senti-lo chutar — adianto, e ela me olha.
— Sério? Você me avisa quando isso acontecer?
— Claro que sim! Ele vai adorar conversar com você, querida. — Ela me
abraça mais uma vez. — Buon compleanno, principessa!
— Grazie!
Ela agradece, me mostrando que seu italiano está em dia e não demora
muito mais para voltar a se divertir, correndo para o amontoado de crianças que
a recebem com sorrisos e comemorações.
E é observando-os, enquanto Luca me leva até uma mesa, que penso
sobre como será quando houver uma criança minha e dele correndo junto das
outras. Se brincará com Amanda, embora tenham a diferença de nove anos, ou se
curtirá apenas com Pietro, que têm apenas dois. Fora eles, ele tem tantos outros
tios… Não imagino Dona permitindo que ele respire sem estar por perto. E ainda
há Marcus e Leonardo, que são novos, mas estão igualmente animados com a
ideia de um novo membro.
Será que meu bebê gostará de ter um monte de tios? Uma família assim
tão grande? Pode se sentir sufocado… Pode até mesmo acabar não gostando
tanto assim de todos nós ou do que seu pai faz.
Penso se poderia estar gerando alguém capaz de odiar o próprio sangue e
me reteso, tentando escapar de meus pensamentos ao tocar minha barriga. É bom
sentir que está seguro e quentinho aqui dentro de mim e que nenhuma dessas
paranoias do mundo real pode atingi-lo ainda.
O manteria sempre assim, se pudesse.
— Quer comer alguma coisa? — Luca pergunta, chamando o garçom.
Ele usa uma gravata-borboleta pink e eu acho o máximo.
— Não, estou bem. Apenas água.
Ele pede uma dose de uísque e minha água. Recebemos ambos em tempo
recorde.
— Já viu Beth por aqui? Estou louca para ver Lucy.
Lucy é a coisinha mais linda de todo mundo. Tem olhos castanhos e
parece um pacote. Já nasceu tem um mês e ainda não paro de me sentir
encantada pela menina cujo apadrinhamento Fred e Beth confiaram a mim e
Luca. Eu achei incrível. Meu marido apenas reagiu como se fosse mais um
compromisso a ser riscado da lista. Ainda assim, toda vez que a segura, sei que
ele se contém muito para não derreter. Especialmente quando ela aperta seus
dedos.
— Ainda não. Fred chegou tarde, talvez eles demorem.
— Saiu ontem à noite?
— Estivemos juntos. Então, ele foi para o Madame Martino com Max.
— Ele acabou de ter uma filha e continua indo até lá? O que tanto há
para se fazer no—
Luca ri.
— Não seja inocente, amor, não combina mais com você.
— Ele vai trai-la?
— Não é óbvio?
Eu permaneço em choque por um instante. Fred parece sempre tão
apaixonado. Tão dedicado.
— Aquele lugar está infestado de homens que escondem a aliança, linda.
Não fique tão perplexa.
— Eu só… — Novamente, levo as mãos à barriga. Se tornou um reflexo
involuntário a este ponto. Como se o bebê me desse calma.
— Não se preocupe com isso… — Luca murmura, provando sua bebida.
— Mas ela não deveria saber?
— Não é problema nosso, Rebecca. — Ele ajeita as mangas da camisa
azul-claro e eu o analiso. Não parece nem de longe preocupado que Beth tenha
seu nome arrastado na lama todos os dias.
Indiferente, até, eu diria.
— Ela é minha amiga…
— Não é problema nosso — repete, menos paciente. E eu também me
sinto menos disposta a aceitar isso quieta agora. — Eu apenas comentei porque
você perguntou. Esqueça disso.
A contragosto, fecho minha boca. Apenas pensar na cara cretina de Fred
está me dando ânsia, mas Luca está certo, não é correto que eu chegue me
metendo no casamento dos outros. Ainda devo saber meu lugar como esposa e
mulher. As coisas não mudaram tanto assim.
Bato meu pé contra o gramado e aceno para conhecidos, reconhecendo as
tias de Luca e todos seus primos distantes. São muitos, pois sua família tem uma
quantidade infinita de parentes espalhados pelo globo, como ele já me disse.
Ele faz o mesmo, se esforçando muito para permanecer aqui, um pouco
mais a cada segundo. Por sorte, não avistamos seu pai em nenhum momento.
Depois de provar alguns petiscos e tomar água o suficiente, fico de pé e
ele entra em estado de alerta como se tivessem ordenado evacuação imediata do
local.
— O que é, Luca?
— Vou com você — anuncia, como meu guarda-costas particular.
— Eu vou ao banheiro.
— Certo.
— E vou sozinha — reforço, arqueando uma sobrancelha. Meu marido,
quase duas vezes o meu tamanho, faz o mesmo. — Estamos em uma festa de
aniversário, querido. Vá conversar com os convidados. Não há perigo. Ou
ameaças.
— Não gosto da ideia de você andando sozinha neste pesadelo —
resmunga, olhando com desprezo na direção da mansão.
— Eu vou ao banheiro, Luca. E você vai encontrar algo para fazer longe
de mim. Certo?
— Algum problema com a minha companhia?
— Nunca! — afirmo, ajeitando a gola de sua camisa. — Mas você já está
sendo paranoico, querido. E eu preciso respirar. Volto logo.
Dou um beijo na sua bochecha e me afasto, sentindo o olhar das outras
mulheres presentes sobre mim, todas provavelmente se questionando o que foi
que eu fiz, ou se eu não temo pela minha integridade. Há um pouco de
julgamento no modo como me encaram também, como se eu fosse algo que não
se encaixa.
Uma peça adjacente.
Mas, se acham isso, sinto muito. Eu vim para ficar, de qualquer jeito. E
Nova York, a esse ponto, já é quase minha casa.
Luca é minha casa.
Chego ao banheiro e sou rápida. Faço xixi várias vezes ao dia agora,
graças ao bebê dentro de mim, mas não acho ruim. Gosto de me movimentar e
com todo cuidado exagerado de Luca, não é como se eu andasse tendo chances
de fazer isso.
Então aproveito toda que surge.
Seco as mãos e deixo o banheiro quando outras mulheres entram. Elas
me parabenizam pela gravidez e eu agradeço, evitando que suas mãos ansiosas
toquem minha barriga.
Ele é meu.
Só eu toco.
Estou caminhando de volta para a festa ou ao menos tentando, quando
recebo companhia em meu percurso. Há poucos passos da porta de saída, Tony
surge de um dos corredores e seu olhar se acende de uma maneira incômoda ao
me enxergar atravessando uma de suas salas de estar.
Esta é mais adaptada para as necessidades daqueles que vêm do lado de
fora. Há menos relíquias ou objetos caros. Funciona como um corredor de
passagem, quase neutro.
— Ora, ora, se não é a mãe do meu neto quem eu encontro por aqui…
Eu não sei como ele soube, mas já deveria ser óbvio que Antônio saberia.
Ele é o chefe de todos os chefes, afinal.
Por todos os Deuses, se Luca me encontrar sozinha com seu pai, terá três
infartos. Então sair correndo não vai ajudar em nada. Eu só preciso ser simpática
e me afastar antes que ele se aproxime.
Sorrindo, aceno para meu sogro e o acompanho parar do outro lado do
sofá branco que nos separa. Me sinto naturalmente espreitada por ele.
— Boa tarde, senhor Accorsi. — Não temos intimidade alguma (ainda
bem?), então não serei eu que o chamarei pelo primeiro nome. Ainda é um
Capo, embora Luca me passe uma visão totalmente nova do homem que ocupa o
cargo.
— Que milagre estar aqui, Rebecca… — murmura, ignorando minhas
palavras ou tom cordial de falar. — O meu filho finalmente deixou de ser um
maldito malcriado?
— Não poderíamos deixar de felicitar Amanda. — Sorrio o sorriso mais
podre de todos. Minhas mãos estão ansiosas e todo meu corpo me diz para correr
antes que ele se aproxime. — Parabéns pelo aniversário da filha, aliás.
Um silêncio difícil se constrói.
— Luca estar aqui pela pequena Amanda pode acabar fazendo com que
todos pensem que ele se importa com os irmãos, afinal… — comenta em um
tom tão venenoso que me dá reação.
Eu engasgo na minha própria saliva e franzo meu rosto novamente,
prevendo uma quantidade alarmante de rugas.
— Me desculpe, mas Luca gosta muito dos seus irmãos. Ele e os gêmeos
estão—
— Sempre juntos me decepcionando? — diz ao me interromper. — É
óbvio que sim. Como você acha que os mais novos aprenderam a ser tão
patéticos? — termina sua fala com uma risada e eu sinto uma sensação nova de
ódio tomando conta de mim. É algo mais profundo, algo que pude deixar
guardado por certo tempo, mas não agora, quando este homem desprezível tem a
coragem de vir até mim e criticar meu marido.
Se eu tivesse minha arma em mãos agora, eu atiraria. Porque toda minha
raiva está canalizada em de que forma eu poderia fazer Antônio Accorsi pagar
pelas palavras danosas que profere sobre seu filho.
As aulas de tiro com Estevan foram suspensas há um mês, por ordem de
Luca e seus cuidados (já falamos sobre eles…), mas eu tive considerável avanço.
E por isso, eu digo que consigo disparar. Estevan me ensinou a canalizar toda
raiva para um ponto só, não a deixar me dominar, nem afetar. E me contou que,
quando bem utilizada, a raiva é muito útil.
E se não pode ser por ações, que seja pelas palavras.
— Você terá de me perdoar, senhor Accorsi, mas…
Uma mão desliza sobre minha cintura de forma protetora o suficiente
para que seja facilmente reconhecida. Eu contenho minha língua neste momento,
pela surpresa e encontro o olhar preocupado de Luca posicionado sobre nós dois,
a postura levemente mais agressiva do que quando estávamos apenas os dois.
— Beca, o que está fazendo aqui dentro?
O aperto em minha cintura se torna mais marcante quando ele encontra o
olhar de Tony. É protetor e agressivo ao mesmo tempo.
— Eu estava vindo do banheiro e…
— Aproveitei a companhia da sua esposa para discutir pontos
importantes sobre você, filho. Por exemplo, o de como pode se demonstrar cada
vez mais um fracasso. Felizmente, Rebecca foi capaz de concordar em diversos
aspectos.
É a primeira vez que vejo Luca sem resposta. Quase despreparado, como
se Tony soubesse exatamente onde jogar para desarmá-lo, como um maldito
doente que estudou a presa por tempo demais. Que a testou por tempo demais
para saber exatamente como ela reage.
E em seus olhos, posso ver a dúvida florescendo, a insegurança. Pensa,
por um segundo, que concordei com seu pai.
Então eu pigarreio e deixo claro que nunca, em um milhão de anos,
concordaria com alguém tão podre.
— Como eu estava dizendo antes, Tony, terá de me perdoar, mas não
concordo com nada do que sai da sua boca. Meu marido é um excelente soldado,
marido e irmão. E quando chegar a feliz hora, será um magnífico Capo, sem
dúvida nenhuma. O único fracasso que eu conheço, está na minha frente e é o
senhor, que além de fracassado, ainda é mentiroso.
Termino de falar com um peso a menos no peito. Luca está em estado de
choque, Tony quer me enforcar com as próprias mãos. Eu passei de todos os
limites agora. Todos mesmo.
Eu enfrentei o Capo.
Quem eu acho que sou?
Respiro fundo e piro por dentro, enquanto as peças desse maldito
tabuleiro vão se encaixando na mente de ambos os homens que me cercam e a
respiração de ambos se torna lenta, ritmada.
Adrenalina pura corre pelas minhas veias quando meu sogro abre a boca.
— Você sabe quem eu sou, garota? — pergunta isso com um sorriso
ácido entre os lábios pálidos. Eu engulo em seco, mantendo o silêncio. — Sabe o
que acabou de fazer?
— Mas ela não falou nenhuma mentira, né, pai?
Luca se impõe sobre mim e agora sou mero acessório, pois ele assumiu a
briga.
— Você se lembra da ameaça que fiz a você? — Tony devolve, os olhos
fixados no filho, pois isso nunca deixou de ser um jogo dos dois. Eu só
representei meu lado. — Sabe que eu aproveito ainda mais as atrevidas, certo?
A raiva é substituída por nojo. Um nojo profundo, que toca partes
desconhecidas de mim, ou ao menos, esquecidas. Nojo que envolve medo,
repulsa, insegurança. Tony passa o olhar frio sobre meu rosto e vejo pontos de
reconhecimento que me levam a expressão sedenta de Rodrik Ivanov.
Eu estremeço e Luca nota.
— Faça isso e eu serei capaz de fazer muito pior com a puta que mantém
guardada naquele puteiro podre, Antônio.
Agora quem parece estremecer é o Capo. Mas sua raiva não é facilmente
reconhecível como a nossa. Ele parece ter bem treinada essa parte de si mesmo,
a ponto de mantê-la imperceptível para qualquer um. Ainda assim, praticamente
posso sentir que ele irá abrir a boca e chamar os soldados que nos levarão para
os porões, onde seremos torturados até não sobrar mais nada.
Mas como um anjo da morte — porque de angelical esse homem não tem
nada — Bernardino, seu Consigliere, surge e vem apressado até seu ouvido,
tornando-nos meros coadjuvantes da conversa que se desenrola aos sussurros.
Então a expressão do chefe se torna menos divertida.
— Agora? — pergunta.
— Sim. Ela está no escritório.
Luca rapidamente entende que se trata de algo e se atenta a conversa.
— Ricardo?
— Está junto. Max se juntou neste momento. Rosalind está cuidando de
Olívia.
Ricardo, Olívia… São os tios de Luca, pais de Max, Angelina e
Giovanni.
— Então vamos até ele antes que Maximus faça alguma merda — diz aos
berros e os dois saem em passos mais do que apressados, quase correndo para
dentro da mansão. Eu permaneço imóvel, ainda em choque por tudo que
aconteceu e Luca chama minha atenção com sua voz.
— Rebecca, eu preciso descobrir o que aconteceu. Encontre minha mãe
ou Dona. Fique perto delas até que eu volte.
Eu balanço a cabeça, liberando-o e ele sai ainda mais rápido do que os
outros dois, seguindo o mesmo caminho.
Eles tentaram.
Tentaram revidar o que fizemos atacando sua casa há dois meses e foram
certeiros em seu alvo. Mas como nós, também falharam e é apenas por causa
disso que Angelina está viva na nossa frente, cheia de escoriações e arranhões
por ter pulado do carro em movimento quando este foi sequestrado.
Era para ela estar morta, foi a primeira coisa que passou pela minha
cabeça quando me inteirei da história, escutando seu relato. E isso veio como
alívio para todos os presentes, porque de todos os cenários, este é o melhor.
Ela está viva.
Os malditos Ivanov tentaram foder com mais uma Accorsi, mas não
conseguiram.
— Ricardo, eu preciso que você se acalme… — pede o desgraçado do
meu pai, apoiando a mão sobre o ombro do irmão. — Ela está conosco. Está
tudo bem.
O médico chamado com urgência acaba de injetar algo em seu braço e
dou a ele o crédito por Angel estar dormindo. É melhor para ela, do que ter de
acompanhar a bagunça que é esta sala com seu pai e irmão à beira de um ataque
de nervos, Donatella chorando e meu pai falando merda.
— Óbvio que não está tudo bem, Antônio! Os filhos da puta tentaram
pegar minha filha! Minha Angelina!
— E nós vamos devolver isso a eles. Você sabe que sim.
— Quando? Daqui alguns meses, como fizemos quando eles explodiram
uma fodida bomba no quarto de Luca e Rebecca? — Subo meus olhos até o
rosto de meu primo. — Ou vamos esperar que eles tentem matar Donatella para
ter motivo o suficiente para você mover sua bunda da cadeira?
A reclamação de Max vem em alto e bom som e todos nós viramos para
ele. Sua raiva não é nenhum pouco silenciosa. Pelo contrário, sai fazendo
estrago.
Ele está com raiva o suficiente para parar de raciocinar, enquanto observa
a irmã inconsciente, dopada para não sentir dor — ou surtar.
— Se estivesse com ela, sabe que nada disso teria acontecido, certo,
Maximus? — Ricardo diz, mais bravo do que o vejo há um bom tempo. — A
culpa é sua por priorizar qualquer outra besteira ao invés da sua família! Eu
ordenei que andassem juntos!
— Ela estava com dois seguranças! Eu pensei que estaria segura!
— Seu pensamento não impediu que sua irmã quase morresse! Então não
me serve de nada!
— Vê, Luca, o que tempo em exagero na sua companhia pode causar a
todos? Transformou Max em outro merda imprestável que não consegue nem
mesmo proteger a própria família. — Eu não quero nem ver no que será de um
filho seu.
— Pai, para quê…
— Calada, Donatella! — Ele ralha, a mão levantada. Vejo, pelo canto do
olho, Lorenzo apertar seu ombro.
Eu opto pelo silêncio, porque nada do que eu poderia dizer a ele agora
seria bom para o nervosismo de meu primo e eu prefiro apoiá-lo, a entrar em
mais uma discussão inconclusiva.
— Oliver — Ele chama o soldado de sua confiança, que está presente na
sala. — Coloque Angelina em um quarto. Doutor, fique com ela e se certifique
de que se mantenha calma. Já basta meu irmão e seu filho tendo um ataque de
nervos do cacete.
— Eu levo minha filha. Fique longe dela. — Ricardo ordena para o
soldado que já se prontificava a carregá-la e vai para perto da adolescente,
puxando-a para seus braços. Parece desesperado para abandonar essa sala e o
faz, escoltado pelo médico e Oliver.
— Todos vocês já podem ir também! — Tony acena com a mão e senta
em sua cadeira. — O show já acabou.
— O que faremos? As coisas não podem ficar assim… — Lorenzo diz,
recebendo a atenção de nosso pai. Eu ainda acompanho os movimentos de Max,
introspectivo demais.
— O ataque à casa dos russos nos deu uma baixa significativa. Ainda
estou tentando recuperar os homens que Luca guiou para a morte certa. Angelina
está viva, então ganhamos tempo para…
— A máfia tem regras, tio. — Max ressurge na conversa e fica de pé. —
Todo ataque deve ser vingado. Ainda mais quando se ataca a família.
Tony o encara como se não passasse de uma criança.
— Garoto, hoje realmente não é o dia que você vai escolher para me
irritar mais do que já irritaram… — E sei que ele se refere a Rebecca.
Eu preferia que ele não se lembrasse do que ela falou.
— Se contestar mais uma vez minhas decisões, haverá consequências e
você…
— Eu o quê? Não tenho medo nenhum das suas consequências.
— Max… — chamo, tentando ser o sensato dessa vez. — Não, primo.
— Não, Luca, deixe o garoto falar. Talvez você possa aprender como ser
um homem e dizer o que pensa com ele. Ande, Maximus, me diga o que está na
sua mente, querido sobrinho… — Tony sorri, como o puto sádico que é. — Isso
é uma ordem.
Porra…
— Penso que não tenho medo nenhum de você.
— Deveria — Tony responde, simplesmente.
— E por que isso? Já está na cara que sua capacidade como chefe é
reduzida. Que não consegue nos livrar desse problema. Que todo dia estamos
sendo mais e mais cercados em nossa própria cidade por uma ameaça que não
tem poder para conter. Então que nos deixe fazer o que sabemos, que nos deixe
agir, ao invés de esperar que nos dê uma ordem!
Meu pai fica em silêncio por um loooongo minuto depois da fala de Max
e eu mantenho meus braços cruzados, pronto para tudo. Meu primo não
demonstra medo nenhum. E meu pai ri, quando faz um sinal para Bernardino
com os dedos e cochicha algo em seu ouvido.
O Consigliere sai um segundo depois e deixa a porta aberta.
— O que ele foi fazer? — Enzo questiona.
— Vocês verão. — Tony responde.
Quando Bernardino retorna, Tony fica de pé e todos observamos o
retorno de Oliver, que como já disse, é aquele no qual ele mais confia. Seu
soldadinho de chumbo, pau-mandado do cacete.
Tony dá a volta na mesa e para no centro da sala. Então acena na direção
de Max e eu acompanho os movimentos decididos do soldado, que não tem
remorso nenhum quando puxa o loiro pela gola e o atira no chão com um soco
capaz de quase nocauteá-lo.
Max não reage.
Donatella grita e Lorenzo amaldiçoa em voz alta. Eu começo a andar na
direção deles e sou parado pela mão do Capo.
— Será melhor se ficar de fora dessa, garoto — resmunga de qualquer
jeito e eu fico parado.
Por que Max não está reagindo?
Oliver está socando seu rosto como um saco de pancadas, sem dó, sem
parar. Consegue arrancar um pouco de sangue, mas todos sabemos que pode ser
ainda mais.
— Oliver, a arma, por favor. — Em tom de paz total, Tony pede e o
soldado saca sua semiautomática da cintura com um movimento rápido. Está
com o pé no peito de Max e todos observamos a cena quando ele mira na sua
cabeça, apenas esperando a permissão.
Eu não vou ficar parado assistindo a isso.
Dou outro passo e ele destrava a arma.
— Mais um passo e eu mato o loirinho. — Antônio diz, atrás de mim.
Então eu paro.
— Pai! Que merda é essa—
Donatella começa, mas não termina.
— Mais uma palavra e eu mato o loirinho e o seu irmão.
— É assim que espera que eu tema você, tio? — Max cospe um pouco de
sangue no tapete e todos observamos. — Mandando seu soldado bater em mim
por que não tem capacidade de fazer isso você mesmo?
Pelo amor de Deus, cale a boca, Maximus!
Seu peito sobe e desce rápido demais e agora há bastante sangue,
manchando seu queixo e sua roupa.
— É óbvio que não. Eu quero que você tenha consciência de que deveria
cuidar melhor suas palavras, porque eu sou o cara que tem poder para matá-lo
apenas com uma palavra.
O silêncio continua.
— O que é algo que alguém como você, nunca terá, fedelho. Porque é
fraco, Max… Como seu pai. Aquele que nunca alcançou o posto de chefe, nem
de porra nenhuma. Que está condicionado a ser o segundo pelo resto da vida. E
tem de se dobrar aqueles que realmente tem voz para alguma coisa.
Mas é o silêncio de Max que mais incomoda. Apenas sua respiração
ruidosa pode ser ouvida, enquanto Oliver permanece com aquela arma apontada,
sem ver nada além das ordens da qual é servo.
— Espero que entenda o quão fácil teria sido para que eu matasse você,
garoto… E que entenda que não vou fazer isso, apenas porque é parte da minha
família. E em respeito ao meu irmão.
Todos respiramos novamente.
— Saia, Oliver.
O soldado recua e recolhe a arma.
Eu não sinto raiva dele. Sinto raiva de quem está por trás.
Max apoia as mãos no chão e posso ver que o terror de morrer dessa
forma o alcançou também. Disfarça bem para todos os outros, mas não para
mim. Eu o conheço.
— Aprenda essa lição e nós nunca mais teremos problemas.
O loiro fica de pé e eu vejo o quanto a surra o afetou. Ele limpa um
pouco do sangue que escorre com as costas da mão e mantém o olhar enviesado,
a raiva fazendo morada nele.
Então ele cospe no rosto do meu pai.
— Eu vou fazer festa no teu enterro, filho da puta!
E sai.
Nenhum de nós quer ficar na sala depois disso e saímos antes que meu
pai se dê conta do que aconteceu.
Eu fico sozinha por pouco tempo antes de ser resgatada por Rosalind. Ela
tem o rosto inchado, mas eu não adereço isso, sendo guiada para a sala onde
todas as mulheres parecem estar reunidas.
O que pode ser um pesadelo para alguém como eu.
O tópico principal da conversa? Minha vida.
— Engravidou em tão pouco tempo… — Uma das mulheres comenta. —
Que sonho. Eu demorei tanto…
— O nojo que eu sentia por Fabrício no início do casamento foi o
suficiente para me fazer repugná-lo. — Outra diz, rindo. As demais
acompanham e eu enrugo meu rosto.
— Não sinto nojo de Luca.
E pareço pegá-las totalmente de surpresa.
— Ah, não? — Parecem observar uma criança delirante. Mirella e
Julieta, suas tias, são as únicas que não parecem tão chocadas.
— Nem medo?
Nego.
— Nada. Eu o amo, para ser sincera.
O efeito é o mesmo de ter soltado uma bomba de gás.
— Isso é… — Uma delas começa, claramente sem saber o que dizer.
Não sei se o que vejo é inveja, admiração ou temor por uma menina que admite
amar um homem tão terrível para todas ouvirem.
— Incrível, Rebecca, querida. — Rosalind diz, tocando minha mão.
Olívia se mantém em silêncio ao seu lado, totalmente introspectiva e eu ainda
me pergunto o que está acontecendo. — Luca não é como os outros, senhoras.
Meu filho é diferente e muito especial.
— Certamente não é o que seu marido acha… — murmuro
despretensiosamente e todos os olhares se voltam para mim novamente.
— O que quis dizer com isso? — Mirella questiona, inclinando-se para
ouvir melhor a história.
Eu concluo que falei demais quando todas fazem a mesma coisa.
Penso em algo para falar e ensaio em minha mente, abrindo a boca para
continuar, mas me interrompo quando Rosalind pede.
— Olhe como o tempo voa… Já está quase na hora do parabéns.
Rebecca, querida, talvez possa me ajudar na cozinha por um instante?
Seu chamado é quase uma ordem de fuga e eu concordo. Ela pede, em
sequência, para que Mirella leve Olívia para o andar de cima e Julieta se oferece
para ajudar. As outras seguem em manada para o lado de fora e nós duas nos
separamos, indo para a cozinha.
— Ao que se referia ali na roda? — Ela pergunta, caminhando devagar
do meu lado.
— Ahn, me desculpe por mencionar qualquer coisa na frente das suas
convidadas...
— Tudo bem. Só não faça de novo ou elas irão pensar que há algo errado
— diz, rindo, e tento descobrir se ela está sendo irônica ou não. Não consigo.
— Tony chamou Luca de fracassado. E que ele não se importa com os
irmãos.
— Quando?
— Antes de você me encontrar e todos correrem para apagar algum
incêndio…
Rosalind estala a língua na boca.
— Isso é besteira. Luca é o seu melhor soldado. E sempre está disponível
para os irmãos.
Aceno em concordância.
— As coisas mudaram desde o ataque aos russos…
Rosalind respira fundo como se entendesse ao que me refiro. Me
pergunto se Tony dividiu com ela o que pensou do filho após sua falha.
Atravessamos um pequeno corredor até chegarmos à gigantesca cozinha
da casa. Com o conhecimento de dona, Rosalind vai direto até uma das gavetas e
começa a procurar por algo.
— Tony nunca soube valorizar os filhos que têm… — Murmura,
vasculhando as próprias gavetas.
Eu me aproximo do balcão e me acomodo em uma das banquetas,
observando-a girar entre os móveis.
Rosalind parece muito mais nova do que Tony, pois, claro, é obrigada a
se manter sempre impecável. Além disso, pelo que Dona me disse, têm apenas
trinta e seis anos, enquanto o Capo tem quarenta e um.
O cabelo levemente acobreado da primeira-dama está preso em um coque
e seu vestido é lindo, num tom de verde pastel que realça seus olhos castanhos.
Tudo em sua postura grita que teve aulas infinitas de boa etiqueta antes de se
casar — assim como eu — e que as levou para a vida.
Não há ninguém mais educado e gentil do que ela.
Mas sua felicidade parece tão forçada… Como se fosse apenas um show.
Como minha mãe, está presa em um casamento com um homem que
nunca escolheria se tivesse escolha.
E não tem fuga disso.
— Por que você continua com ele? — pergunto, de repente, tomada por
uma curiosidade profunda.
— De quem você está falando, querida? — Ela continua de costas para
mim.
— De Tony. Ele não é… hm, exatamente o melhor marido do mundo,
certo?
Rosalind ri e continua mexendo nos utensílios de cozinha.
— Longe disso…
— Então por que…
— Você sabe muito bem que não existe divórcio de onde viemos.
— Não, mas… Existem outras coisas. Coisas nas quais já deve ter
pensado. Por que você não…
— Estamos juntos há vinte e um anos. Nada do que está vendo agora é
novidade para mim. Inclusive a rigidez com Luca.
Ela se vira.
— Que já é um homem e pode cuidar de si mesmo — argumenta. — Por
que espera que eu me separe de meu marido por causa disso?
Não encaro suas palavras como grosseria. É apenas uma pergunta, sem
fundo maldoso. Rosalind não seria capaz.
— Não estou falando por Luca. Estou falando por você. Me perdoe,
Rosalind, mas Tony é um monstro. E você não merece alguém como ele.
O seu sorriso agora é forçado.
— Me desculpe se soarei indelicada, mas como pode saber o que mereço,
Rebecca?
Ok, agora ela é um pouco indelicada.
— Qualquer um pode — dou de ombros. — Você é superior a ele.
Ela fica em silêncio por um longo instante e se aproxima do balcão e de
mim.
Deixa os ombros caírem e relaxa, mordendo a boca.
— Agradeço as doces palavras, mas… Eu não posso, nem gostaria de me
separar dele, Rebecca.
E em separar, ambas sabemos que nos referimos a mais do que isso. Até
que a morte os separe.
— Por quê?
Falta de coragem é um dos motivos nos quais penso, mas quando
Rosalind puxa a faca que procurava, vejo que não é isso. É algo muito mais
profundo.
— Ele tiraria os meus filhos de mim.
O sorriso com que me encara depois disso é fraco, triste e sincero. Como
o sorriso de alguém que acaba de revelar seu maior medo.
— Ele não—
— Luca, Lorenzo e Donatella já são praticamente adultos. Mas e os
outros? Leonardo, Marcus, Amanda e o jovem Pietro… Pode imaginar como
todos eles ficariam sem a mãe?
Ela parece prestes a chorar só de pensar em não poder estar perto dos
filhos.
— Eles me dão força para seguir todos os dias. Me fazem ignorar tudo
que há de ruim. Com Tony, eu tenho eles e nada mais importa. Posso aguentar o
que for, se significar que nunca iremos nos separar.
— Mas se você…
— Pedirei a você que pare de surgir com sugestões impossíveis, Rebecca
— interrompe com uma risada nervosa. — Meu marido é um homem de poder.
E um homem que sabe brincar com ele. Se ao menos souber que estamos
falando sobre isso…
Eu suspiro e me calo, acatando seu pedido.
— Ele não é um bom homem, Rosalind.
— Não, claro que não… Nenhum deles é.
Estou prestes a abrir a boca de novo, para perguntar se ela inclui Luca
nesta lista, quando gritos e sons de correria nos despertam de nossa pequena
conversa melancólica. A matriarca Accorsi deixa a faca sobre o balcão e dispara
na minha frente, enquanto eu a sigo com meus passos cautelosos. Tropeçar não
seria uma boa ideia.
Chegamos à sala principal, no hall que divide a casa em alas e possui as
escadas principais para o segundo andar e avistamos o início de uma confusão
que tem como peça central Max, com sangue escapando do nariz e manchando
sua camisa branca.
Luca está logo atrás dele.
Eles descem as escadas e passam correndo por nós duas. Donatella e
Lorenzo, afobados, vem atrás.
— Max, aonde você vai? — Donatella grita e todos nós acompanhamos o
loiro em sua corrida. Até mesmo eu.
— Dar um aviso! — grita, já do lado de fora. Há milhares de carros
estacionados em frente à mansão, mas ele encontra o seu facilmente.
— O seu pai disse que você não deveria sair dessa casa! — Lorenzo
esbraveja.
— Foda-se o que meu pai disse! — Berra de volta e eu nunca vi Max tão
irritado. Lorenzo e Donatella, sem precisar de mais avisos ou explicações,
seguindo seus instintos, descem as escadas e eu vejo o gêmeo roubar uma das
chaves dos carros de segurança.
E Luca já está quase dentro do veículo quando eu chamo por ele.
— LUCA! — Meu berro faz com que ele pare. — Onde você está indo?
Ele está na base dos degraus, mas os sobe novamente para falar comigo.
— O que está acontecendo? — indago, minha pressão com certeza mais
acelerada do que deveria estar.
— Não tenho tempo para explicar agora ou Max vai fazer merda sozinho.
Eu digo tudo a você quando voltarmos. Só fique perto da minha mãe! Por favor!
Não respondo nada, pois não tenho a chance. Ele deposita um selinho
rápido em meus lábios e sai correndo novamente, puxando o telefone da cintura.
Max já está dando ré em seu veículo conversível e sai cantando pneu na direção
dos portões. Luca acaba indo no carro dos irmãos.
— Que Deus os proteja…
É tudo que Rosalind tem capacidade de dizer.
Max está louco.
Fodidamente louco.
Como alguém que acaba de fugir do hospício.
Dirige a mais de 100 km/h em rodovias que não suportam esse tipo de
velocidade e certamente quer provocar um acidente.
Lorenzo, banhado em cautela, falha em acompanhá-lo rápido o suficiente
e eu peço reforços a torto e a direito, pois sei exatamente para onde meu primo
está indo.
Falar com Romeu.
E não é que eu tenha medo disso, mas as chances não estão do nosso lado
quando ele decide fazer coisas assim, impensadas. Entrar no território que os
Ivanov reivindicaram é arriscado. É como pedir para que afundem uma bala na
nossa cabeça.
Mas como eu sei que ele não vai parar, também não há escolha para mim.
Estamos juntos nessa, porque ele faria o mesmo por mim e me seguiria até o
inferno.
Quarenta minutos depois, seu carro para, atravessado na rua de pouco
movimento. O cheiro de areia e mar, há alguns metros de distância, pinicam o
nariz e é fácil ver que estamos em Brighton Beach. Tudo fede a russo, a peixe e
tem seu alfabeto estampado.
Pequena Odessa é outro apelido para essa parte de Nova York que
preferimos esquecer.
— Max! — Chamo seu nome assim que desço do carro, enquanto
Lorenzo ainda estaciona. Donatella prepara suas armas e eu estou mais nervoso
do que estaria se estivesse aqui sem os dois.
O loiro acaba de descer do conversível e eu o alcanço antes que caminhe
na direção da casa de festas, que parece reunir todos os russos do bairro. A
segurança obviamente já sabe que estamos aqui e temos pouco tempo antes de
sermos abordados.
— Você precisa decidir como quer que isso aconteça — falo, o braço
prensando seu pescoço contra o carro. O seu sangue mancha minha pele e eu me
esforço para controlar sua respiração. — Devemos ter menos de dois minutos
antes deles saírem. Romeu deve estar sendo avisado agora. Qual o seu plano?
Ele deixa de lado a postura impulsiva e parece calcular por um segundo.
Sua mente sempre foi boa, sua noção muito melhor do que a minha, mas agora
preciso forçá-lo a usar os malditos neurônios.
— Não vamos matar ninguém — diz, precisando de muita força para
uma afirmação dessas. Eu concordo. — Eu só quero conversar.
— Vamos bancar os inocentes, então?
— Acha que ele acreditaria nisso?
— Acho que podemos fazer funcionar — explico, com minha adrenalina
subindo, atingindo novos níveis a cada instante. As luzes da casa de festas estão
mais fortes, o som dos passos dos homens de Romeu mais perto.
Lorenzo e Dona acabam de descer do carro e eu faço sinal para que
parem.
— Abaixem as armas — ordeno, encarando Max uma última vez. Agora
encaro meus irmãos. — Abaixem!
— Isso é loucura, Luca, olhe onde estamos e—
— Eu dei uma ordem, Donatella — repito e o barulho da porta sendo
aberta é o que me faz virar.
E um rosto que eu reconheço é o que enxergo.
— O que um bando de italianos imundos faz na nossa porta?
Alexei Ostarkov.
O fodido que esteve no Havaí conosco. O fodido que implantou uma
bomba no meu quarto e da minha esposa.
Ele abre caminho para uma verdadeira tropa. Romeu está no centro e do
lado direito, Rodrik. Ambos sorriem. Há pelo menos seis homens para cada e
todos armados até os dentes.
E eu mandei meus irmãos baixarem as armas...
— Ora, ora, se não é uma bela surpresa que recebo a essa hora… —
Romeu diz. Meu peito sobe e desce num ritmo controlado. Mas posso ver pelo
canto do olho a raiva que Dona exala no seu modo de olhar para os irmãos.
Ela nunca os tinha visto pessoalmente.
— O Natal chegou mais cedo?
Fodido arrombado do cacete.
— Eu quero conversar com você. — Max fala, alto o suficiente para que
sua voz ecoe na rua. Tudo parece ter se calado para este momento, toda atenção
do bairro concentrado nos invasores.
Sei que deve haver no mínimo quatro atiradores nos telhados, mirando
em cada um de nós.
Cada movimento precisa ser calculado.
— Gostou do meu presente, imagino? — Romeu responde, a boca
formando um sorriso maldoso e sujo até o osso. Eu calculo o que precisaria para
acertar seu pescoço com minha faca daqui.
— Posso falar a você o quanto gostei se aceitar conversar comigo como
um homem.
— Não está exatamente na posição de fazer demandas, não é, Maximus
Accorsi?
Max ri.
— Será que não estou mesmo, Romeu?
E todos podem ver que há mais no seu movimento do que ele entrega de
cara. Eu entendo imediatamente a que se refere, mas é só quando ele puxa o
telefone que os irmãos Ivanov entendem do que se trata.
E eu julgo que meu primo pode ser um maníaco tão bom quanto eu.
— Diana, Natasha, Nadine e Nikolai. Reconhece algum desses nomes?
Rodrik é quem fala primeiro.
— Filho da puta.
— Atualmente localizados no número 500 da rua Clarence, em Brighton
Beach. Há menos de doze quilômetros daqui, eu diria…
— Como você sabe disso, maldito? — Romeu questiona e vejo uma
queda na postura de confiança de Alexei. Ele é o elo mais fraco, o fodido mais
alcançável.
— Não importa como eu sei. — Max responde, dando destaque a arma
que pende em sua cintura. — O que importa é que eu tenho a informação. E que
sua irmã, sua filha e seus sobrinhos não estão seguros. Especialmente agora,
quando você achou tão divertido se meter com a minha.
— Pedi que a tratassem com carinho. Não é minha culpa se ela achou
melhor saltar a seguir viagem. — O russo ri, como se fôssemos uma maldita
piada. Os outros o acompanham e vejo em suas mentes sujas, o que gostariam de
ter feito à minha prima. Do que sua coragem a salvou.
De como Max está certo em usar todas as cartas que têm agora.
— Cem mil dólares. — Meu primo diz, de repente. Romeu parece
confuso, assim como todos nós. — É a mixaria que preciso pagar para que meu
homem acerte a cabeça da sua irmãzinha agora e a mande para o inferno. Ou,
trezentos, se quiser que ele acerte a de um dos fedelhos imundos dela ou do
pervertido que é o seu irmão.
Max ri.
— Consegue adivinhar quanto vale a cabeça da sua filha?
Romeu reforça sua postura, tensionando os ombros. Ah, então ele
realmente se preocupa com a sua criança.
Engraçado.
— Cinco milhões.
O silêncio se faz do outro lado. Donatella e Lorenzo estão parados logo
atrás de mim e eu mantenho minha mão parada sobre minha arma.
— Mais barato ainda, considerando a porcaria da qual eu estaria livrando
o mundo.
Romeu dá um passo à frente e toda sua segurança faz o mesmo. Eu ando
também, parando ao lado de Max.
Seus olhos registram minha presença pela primeira vez.
— Acha que está me intimidando falando sobre valores, mas se esquece
de que me custaria zero acertar a sua cabeça agora. Ou, quem sabe, a da
bonitinha metida a macho ali no canto…
Todos os olhos se viram para Donatella de repente e nem se eu pedisse,
ela manteria sua arma baixa.
— Tire os olhos da minha irmã antes que eu os arranque! — Lorenzo
quem fala, não eu. O que é uma considerável surpresa.
E das boas.
Ele parece até mesmo crescer depois de defender Donatella e vejo seu
olhar de admiração sendo direcionado para ele.
— Ah, o certinho sabe falar… Deve ser Lorenzo, certo? O irmão gêmeo
da gracinha ao seu lado… — Romeu abre um sorriso ainda maior, tirando a
atenção da conversa com Max. — Agora posso ver por que meu informante
gosta tanto de você, Donatella Accorsi.
Minha irmã franze o rosto, tão perdida quanto nós, mas não há tempo
para desenvolvermos esse sentimento, pois Max acaba de disparar numa
caminhada até a frente do clube, onde todos estão posicionados.
As armas vão se fechando a sua frente e antes que alcance os três no
centro, um soldado o para, o cano grudado na sua cabeça. Max nem pisca.
Eu o odeio por isso.
— Deixe-o passar. — Romeu ordena, sucumbindo à própria impulsão. —
Está dando uma de homem hoje, no lugar do primo, que deve ter perdido as
bolas depois da última vez…
Todos riem do outro lado. Eu mantenho minha expressão impassível.
Então meu primo anda até ele e o peita.
— Você acha que deve ter medo de Luca ou do meu tio, mas não sabe
quem está por trás de todas as informações que eles têm sobre você e sua família
imunda, Ivanov. — Max diz, a voz calma, a postura firme. Um verdadeiro
homem feito. Moldado no sangue, fortalecido pela guerra. — Eu poderia te
destruir agora sem mover um dedo, seu fodido do cacete. Poderia explodir essa
porcaria que você chama de clube e todas as casas que possui. Poderia mandar
que meus homens cortassem sua filha em pedaços e a espalhassem pela cidade.
Mas não o faço.
Romeu permanece em silêncio e a sensação de vê-lo calado é deliciosa.
— E sabe por quê?
Max dá mais um passo e ele poderia beijar Romeu agora. A respiração
dos dois se combina e eu cuido atentamente dos movimentos de Rodrik. Alexei é
apenas um cabrito temeroso, mas o irmão mais novo é perigoso.
Uma piscada e eu o derrubo.
Só uma.
— Porque o pior está por vir. E quando você cair, vai ser tão delicioso,
que tudo que mencionei aqui agora vai parecer brincadeira de criança.
O russo não reage.
— Apenas espere pelo que está vindo no seu caminho, Romeu.
Dito isso, meu primo dá as costas para os guardas armados e anda de
volta até seu carro. Acena para mim, que faço sinal para que Lorenzo e
Donatella voltem aos seus. Eu opto por ir com Max, porque será mais fácil nos
defendermos se formos dois em cada carro.
Romeu, Rodrik e todos os seus homens continuam parados quando entro
no carro, dando uma última olhada neles. Donatella dirige agora e dispara na
nossa frente, enquanto vamos na retaguarda.
Só quando Brighton Beach já está para trás é que qualquer um de nós
consegue falar alguma coisa.
— Não estão mesmo vindo atrás da gente? — Max questiona, as mãos
firmemente colocadas sobre o volante. Rindo, por um alívio que eu nunca pensei
que fosse sentir, nego, revisando os espelhos retrovisores.
Então quem ri é Max.
— Puta que pariu, cara, eu pensei que fosse morrer!
Minha vontade é de socar sua cara até tirar sangue pelo que nos fez
passar.
— Vamos sumir daqui antes que eles mudem de ideia — aviso e ele
concorda.
*
ANTES
— Luca?
Minha voz escapa tão seca quanto minha boca se parece agora. Mas ele
consegue me escutar e fica de pé para aproximar-se da maca.
Já acordei algumas vezes desde que voltei da cirurgia e em todas,
chamei seu nome. Ele sempre atendeu. Sem cara feia, nem demonstrando
qualquer reação além da mais carinhosa ternura nos olhos azuis. Mas mesmo
eles não foram capaz de disfarçar a tristeza impressa em seu rosto.
— Oi, meu amor — diz, num sussurro arrastado. Ainda usa a camisa
branca com a qual lutou pela minha vida, pela sua e pela de…
— Luca, ele…
— Está tudo bem, minha linda — suspira, tocando minha mão com o
dobro de força. Seus dedos calejados raspam contra minha palma macia e eu
faço esforço para devolver o carinho, mas falho.
A luz do quarto está muito forte. E me sinto mole, mole, mole… O rosto
de Luca está um tanto torto, também. Embaçado. Não o vejo com clareza, mas
posso enxergar os acessos e a pulseirinha de identificação em meu pulso. Estou
pálida, como se todo meu sangue tivesse sido drenado. Mas ele continua me
olhando como se eu fosse a única coisa na qual seus olhos conseguem focar.
Confirmando isso, ele puxa minha mão até sua boca e beija os nós de
meus dedos.
— Ele está bem agora, Becky — suspira. — Por que você não descansa
mais um pouco, hm?Eu cuido de você.
Balanço a cabeça, concordando com o que quer que seja que ele diz. Ele
mantém minha mão perto do rosto e aos poucos, apago de novo.
ATUALMENTE
Ele esteve ali em todas as vezes que acordei. E quando eu despertei de
verdade, esteve ali para me abraçar. Me cuidar. Me proteger. Luca nunca foi tão
meu quanto naquelas horas onde eu precisei assimilar tudo. Tampouco imagino
que tenha se doado tanto a alguém.
Mesmo sem nosso filho presente, eu vi o outro lado do meu marido e tive
a chance de conhecer o que a personalidade de Luca conseguiu esconder por
tanto tempo. O que Tony fez com que ele guardasse dentro de si mesmo até se
sufocar com tudo que nunca teve a chance de dizer.
Vi o quanto ele se preocupa.
E o quanto está disposto a fazer de tudo para que aqueles que ama sejam
bem-cuidados, protegidos e amados.
Exatamente como ele não foi.
Exatamente como nosso filho não teve a chance de ser.
Por isso, agora, quando dançamos em uma noite agitada do verão de
Capri, apenas nós dois, eu entendo o quanto ele quer que eu me sinta bem e por
que insistiu tanto que viéssemos para essa viagem. O quanto insistiu para que
deixássemos Nova York, nem que fosse por uma, duas, três, quatro ou infinitas
semanas…
Meu marido não parece ter pressa para voltar pra casa e eu entendo por
que.
Aqui, não estamos rodeados por memórias. Não estamos nos afogando
no que poderia ter sido e podemos ser apenas isso.
O que somos.
Luca e Beca. Beca e Luca.
Um casal improvável, que superou tantas coisas quanto possíveis para
chegar onde estamos agora. Um casal que, embora improvável, está se mantendo
firme. Um casal que vê as dores do outro e as compreende.
Essa dor… Ela sempre estará presente. Não há qualquer magia ou
tratamento de choque que poderá mandá-la embora. Ou que irá permitir que nos
esqueçamos de quem Nathanael Accorsi foi. De quem ele poderia ter sido. De
quem somos, hoje, por causa dele.
Não há remédio no mundo que vá tapar o buraco que sua ausência deixou
em nosso peito.
Mas não podemos permitir que ela nos consuma. Ou que nos mantenha
acorrentados. Temos que… aprender a conviver com isso. Aprender que, às
vezes, o amor não é linear, muito menos segue regras. E que nem tudo que
amamos precisa estar fisicamente conosco.
Por que eu vou amar Nate até o final dos meus dias.
Assim como amarei Luca.
E não há qualquer regra no mundo que me impeça de fazer os dois.
Beca está melhor hoje do que esteve nos últimos seis meses. E talvez seja
o clima de Capri, o ar italiano, a proximidade de casa. Ou talvez sejam apenas as
estrelas que a mantém animada e a leveza que a praia traz causando o efeito
desejado em seu humor, assim como eu torcia para que fizessem.
Com o agito de um verão como o daqui, ela mal pode pensar em
qualquer coisa e eu aprecio que isso traga o brilho dos seus olhos de volta. Que
me permita enxergar a minha Rebecca.
Foram meses difíceis.
Tão difíceis que eu ainda me pergunto como estamos de pé.
Mas… estamos.
Talvez seja pelo pirralho que nós nunca chegamos a conhecer.
Talvez seja por que somos todo apoio que temos no meio do caos que
nossa vida se tornou.
Ou talvez — só talvez — seja pela raiva que me mantém de pé e
seguindo em frente, com um único objetivo em mente.
Fazer com que Romeu Ivanov pague pelo que seu irmão fez.
Sim, por que o filho da puta não desistiu. Não se rendeu.
Enquanto eu acudia Rebecca, e garantia que meus irmãos chamassem a
ambulância, o rato fugiu.
E nunca mais foi visto.
Brighton Beach se parece com uma cidade quase fantasma agora, por que
as forças russas se retiraram em peso. Segundo relatos de Max, restam
pouquíssimos soldados pela cidade. E os estamos aniquilando sempre que
possível.
Mas nada disso é o suficiente para amenizar a agonia que me toma de
assalto todos os dias desde que Rodrik — esse morto, felizmente — tirou meu
filho de mim.
Só o sangue de Romeu derramado sobre meus pés será.
Só o fim da linhagem Ivanov será.
E por isso eu vou lutar até o final dos meus dias.
Por que só assim, Beca estará segura. Só assim eu não terei de me
preocupar com os perigos que a rodeiam vinte e quatro horas. Só assim eu terei
paz.
E só assim…
A morte do meu filho não consumirá mais de mim a cada dia.
E a culpa pela escolha que Beca foi obrigada a fazer, quando era eu ou
ele, irá pesar menos. Custar menos.
Me destruir menos.
E permitirá que um dia eu consiga focar apenas no motivo principal de
estar disposto a mover o céu e o inferno para que a justiça seja feita.
Rebecca.
Minha Rebecca.
A única razão de eu não ter desistido.
A única razão para que a vida, finalmente, tenha algum sentido além do
sangue.
A única razão para que a raiva que eu sinto todos os dias não consiga —
embora se esforce — dominar tudo que sou.
Ela.
Que encanta meus dias sem nem saber e me faz ver que…
Rodrik não me tirou tudo.
Não se eu ainda a tenho.
E eu juro, pela minha vida, meu sangue e minha honra que ninguém
nunca irá ameaçá-la novamente.
— Por que está me olhando assim? — pergunta, enquanto caminhamos
de volta para o quarto após nos esgotarmos na pista. Sua mão está dentro da
minha e ela guia o caminho, caminhando de costas para a nossa frente, com os
olhos grudados nos meus.
Eu cuido do que vem à frente.
Com o cabelo mais curto, o rosto aparece mais. As sardas estão se
destacando na pele bronzeada e eu gosto de como ela não se importa com o que
há ao redor, por que ainda acredita que eu seja capaz de mantê-la segura. Ou
confia que eu nunca erraria duas vezes.
— Por que você é… — suspiro, me perdendo nas palavras por um
instante. — Você é incrível, B. E eu estou me perguntando o que eu devo ter
feito para merecer você... Uma mulher que me faz sentir tão...
— Forte? — sorri, mostrando as covinhas. Eu as adoro. Adoro tudo que
vem dela. Tudo que ela é e representa.
Uma vez, Antônio me ensinou que o amor nos torna fracos. Que confiar
nos leva a lugares ruins.
Mas…
Não.
Não com ela.
— É. — Sorrio, sem forçar. — Exatamente assim, minha linda...
Ela sorri mais uma vez e me puxa para perto.
Nossos corpos estão grudados e eu aproveito o silêncio e a privacidade
para encostá-la contra a parede. Não é um movimento inteiramente malicioso,
não é completamente sujo e não pretendo apenas arrancar suas roupas. É apenas
a forma como fazemos as coisas agora. Olho no olho, mão na mão.
Eu sou totalmente dela.
E ela é totalmente minha.
— Não se esqueça, Luca Accorsi, de que foi o amor que te trouxe até
aqui — fala e com certeza não é capaz de enxergar o quanto essa frase se
encaixa.
Nem o quanto faz sentido.
— É, Beca… Certamente foi.
E é ele que continuará a me guiar a partir de agora.
Tudo por ela.
Tudo por ele.
TRUST não é um projeto que foi feito sozinho. Aliás, sozinho a gente
não chega a lugar nenhum e eu aprendi isso nesses últimos (quase) oito meses.
Então eu quero agradecer às minhas meninas! As minhas consultoras oficiais de
assuntos Accorsi — que tem hora que sabem muito mais do que eu — e as que
aguentam meus surtos, sejam eles na madrugada ou em qualquer outro horário:
Julia Andrade e Geovanna Vasques vocês são tudo para mim! Muito, muito,
muito obrigada por serem as melhores que eu poderia ter comigo durante toda
essa jornada e por me defenderem, ajudarem e (às vezes) surtarem junto comigo
com todo amor do mundo! Amo vocês!
Também quero agradecer as meninas que leram os primeiros capítulos do
livro e me deram suas opiniões sinceras e que também me dão o MELHOR
apoio do mundo todiiiinho (espero que estejam prontas por que a gente ainda
tem mais CINCO livros pela frente): Ana Clara, Maria Isabela e Carolina
(Carola pros íntimos), vocês são DEMAIS! Obrigada mesmo!
E quero deixar meu muito obrigada também à todas as minhas leitoras e
leitores. Seja você do Wattpad, seja você aquela que me manda mensagem
surtando no instagram (coisa que eu AMO!), aquela que tá no grupo do
Telegram e também aquelas que me acompanham de longe, mas sempre tão ali,
só esperando o próximo capítulo. Ah, e a você que tá chegando agora! Seja bem-
vinda! Somos loucas, mas somos legais! Prometo!
Obrigada por acreditarem que o que essa doida (a doida sou eu!) escreve
é bom! Vocês são parte da família Accorsi também!
Quando eu postei esse livro no Wattpad, em 2016, eu só queria poder
compartilhar minhas histórias e nem me preocupava se alguém fosse ler ou não.
Mas aí, vocês surgiram. Muitas e muitas de vocês e foram chegando. E eu
descobri como é bom quando alguém gosta do que a gente faz. Como é bom
quando amam aquilo que a gente também ama. E descobri que eu não conseguia
mais viver sem ler aqueles comentários de surto, sem discutir teorias, sem me
sentir a mais maldosa das autoras e ver vocês se descabelando porque os
Accorsis simplesmente tiram a sanidade de qualquer um (acreditem, até a
minha!).
Já faz cinco anos desde o dia em que eu postei TRUST no Wattpad. E
desde então, a gente percorreu um longo caminho, né, mores? Mas agora,
estamos começando tudo de novo e posso dizer? O frio na barriga é o mesmo.
Eu espero que, assim como quando vocês leram pela primeira vez,
tenham se emocionado, se apegado e escolhido seus favoritos (e os odiados). E
que tenham ficado curiosas e ansiosas pelo que ainda temos pela frente.
Sentir é o que nos diz que uma história é boa. E que ela cumpriu seu
propósito. E eu espero — de verdade — que TRUST tenha conquistado espaço
no coraçãozinho de vocês. E que não me odeiem tanto depois desse final hehe
(um pouquinho pode!). Prometo que nem sempre tem tanta lágrima envolvida!
rsrsrsrs
A gente se vê no próximo, tá combinado?
Com todo amor do mundo,
Malu Tenácio
@autoramaluu
(Olha o spoiler do livro 2 na próxima página! hehehe)
O próximo livro é RUN, onde veremos a história da Donatella e do Lorenzo (os gêmeos) com seus
respectivos pares. Ele tem previsão de lançamento para 2022 e aqui você já pode ver a capa!
Me acompanhe nas redes sociais!
TWITTER: @autoramalut
INSTAGRAM: @autoramaluu