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Carmen Weiz

A Jovem na Floresta

Romance thriller
serie Swiss Stories
Críticas literárias para este livro

''A leitura é agradável… Carrega um pouco de mistério quase o tempo todo e


isso ti desperta ainda mais vontade de ler.''
''A narrativa sobre o ponto de cada personagem ti faz imergir ainda mais no
romance. Os personagens de personalidades bem construídas e misteriosas
dominam a narrativa que a autora minuciosamente cria.''
''Carmen criou também momentos de tensão vivenciados pela Anna e Thomas,
tornando ainda mais uma leitura intensa, continua e apaixonante. O final bem
construído, mas deixa um pouco curioso de como as coisas vão ficar, o que faz
desejar o segundo livro logo.''

Paulo Henrique - Contando Livros

"A história é dividida entre os pontos de vista dos nossos personagens,


fazendo assim, que seja carregada nos detalhes. Mas não se preocupe, eles
deixam a história super rica e envolvente."
"A leitura é leve e fluida, te enlaçando de uma maneira, que você só vai
querer respirar depois da última página."
"Com mistério, tensão, traição e amor na medida certa.
Você não vai querer perder essa, vai?!»
Morena - Nosso amor Literário
Índice

CRÍTICAS LITERÁRIAS PARA ESTE LIVRO


1. A CASCATA
2. ESPERANÇA
3. A MINHA ‘VELHA VIDA’
4. O ENCONTRO
5. O HOSPITAL
6. ELE
7. ELA
8. TOMANDO NOTA
9. DOUTOR ‘PATRÓN’
10. A HISTÓRIA
11. O PLANO
12. A FAZENDA
13. NOVOS SENTIMENTOS
14. ATRAÇÃO
15. 'GRANDE AMIGO'?
16. NOVO AMIGO
17. CONSCIÊNCIA
18. A REUNIÃO
19. O TEMPORAL
20. A PRAIA NO RIO
21. SENTIMENTOS EM JOGO
22. ARRISCANDO TUDO
23. PURO PRAZER
24. ADEUS?
25. A FLORESTA
26. ENTREGA DA MERCADORIA
27. ACERTO DE CONTAS
28. DESOLAÇÃO
29. DÚVIDAS
30. XEQUE-MATE
31. ADEUS
32. CHEGANDO AO FIM
33. DESESPERO
34. ALGUNS ANOS DEPOIS...
ALGO SOBRE MIM E OS MEUS AGRADECIMENTOS
A Jovem na Floresta
© 2018 Carmen Weiz
carmen.weiz@gmx.ch
www.facebook.com/carmenweiz.books

Publicação: Edizioni Quest - Suiça, Outubro de 2018


edizioniquest@gmx.ch

Nenhuma parte neste livro pode ser copiada, utilizada ou transferida sem a
autorização da autora. O conteúdo deste romance é fruto de fantasia.
Qualquer referimento a fatos realmente acontecidos, coisas ou pessoas, em
vida ou defuntas, são da considerar-se puramente casuais.
(rev. 02 Dez 2018)
A minha irmã,
porque você é simplesmente… você.
Os negócios humanos apresentam altas como as do mar:
aproveitadas, levam-nos as correntes à fortuna;
mas, uma vez perdidas, corre a viagem da vida
entre baixios e perigos.

William Shakespeare, Julio Cesar, Ato IV, cena III.


1. A cascata

Thomas
Inspiro pelo nariz em quatro...
Expiro pela boca em quatro...
Verifico os meus passos...
Inspiração: um, dois, três, quatro...
Expiração: um, dois, três, quatro.
O ritmo da música... ar para dentro... ar para fora... passos... respiração...
dentro... fora.
Era sensacional poder sentir o ritmo da música que pulsava nos fones de
ouvido durante a corrida na floresta. Essa emoção sempre foi um dos meus
passatempos favoritos.
Junto com Betsy, meu Border Collie, eu poderia correr por muitos
quilômetros. Sentir o sol ao amanhecer, filtrando entre a copa das árvores, e
poder observar os detalhes desta floresta incrível, eram suficientes para
recarregar as energias e começar bem o meu dia.
Fazer parte do corpo de polícia da pequena cidade onde nasci era um bom
trabalho para mim. Eu tinha a sorte de morar neste país e sabia disso. Quando eu
era mais jovem, viver em uma pequena cidade no meio do nada, sempre foi
motivo de discussão com meus pais: os mesmos amigos, as mesmas garotas, as
mesmas festas. Não podia fazer nada errado, porque, em uma questão de horas,
todos saberiam.
Crescendo e servindo ao exército e depois fazendo parte da Swissint, o grupo
de forças especiais de paz na Suíça, acabei atuando em países em conflito como
a Bósnia-Herzegovina e regiões como a Caxemira, entre a Índia e o Paquistão.
Nesses lugares, os meus olhos viram o mundo fora do meu pequeno e perfeito
país e ficaram chocados. Na maioria das vezes, era triste, muito triste.
Para sempre vão ficar impressas em minha memória as recordações da
crueldade humana.
Depois de voltar para casa, estava muito feliz com minha vida. Agora sim, eu
poderia aproveitar todos esses momentos, fazendo uma boa corrida com o meu
cachorro.
Betsy foi meu primeiro cão quando ingressei na Swissint. Ela foi treinada
para, com o seu olfato aguçado, encontrar bombas, diferentes tipos de drogas e
dinheiro escondido. Isso se deu em função do aumento do terrorismo na Europa.
Betsy se tornou parte integrante da minha vida, nos últimos anos. Quando
terminei meu trabalho no corpo de paz, ela já estava próxima à aposentadoria,
para um cachorro da polícia. Então pedi ao meu superior que a deixasse ficar
comigo. Hoje, seu trabalho é esporádico, desde que voltamos para nossa pequena
cidade, na Suíça.
Quando corríamos juntos, ela não precisava de coleira e estava sempre ao meu
lado, mantendo o ritmo. Uma cachorra incrível! Com o corpo e a atenção
desenvolvidos durante os anos de treinamento e trabalho, ela estava mais em
forma do que eu.
Embora eu conhecesse essa floresta como a palma da mão, eu sempre prestava
atenção nela e no nosso caminho, para evitar uma trilha errada, especialmente
nessa época do fim de primavera, em que tudo estava escondido embaixo de
tantas folhas caídas no último outono. Era realmente fácil perder-se nessas
trilhas.
Naquele amanhecer, eu e Betsy estávamos chegando ao meio do nosso
percurso habitual, na base da colina mais íngreme. Nessa parte da trilha, eu tinha
que prestar ainda mais atenção, porque as partes superiores das árvores eram tão
retorcidas que impediam que a luz do sol penetrasse. A claridade era tão pouca
que o solo ficava úmido e as folhas se tornavam escorregadias.
Lembro-me bem que, no final desse trecho, iríamos encontrar uma parte plana
na qual deveríamos aproveitar para diminuir o ritmo e recuperar a respiração. A
colina continuava a subir por vários metros com a trilha à direita. Como diria o
meu instrutor na academia de polícia, “esse seria o nosso último esforço antes de
um merecido descanso”.
À nossa direita, a mais ou menos três metros abaixo de nós, o rio Reno
passava pela nossa cidade. Nesse trecho, o rio era bastante turbulento, e
derramava suas águas na cachoeira de Neuhausen, considerada a mais extensa da
Europa. O encanto dela residia no fato de que não era tão alta, mas tinha quase
cento e cinquenta metros de largura. Na verdade, de onde nós estávamos, já era
possível ouvir o barulho da água, sobrepondo-se ao da minha música.
Eu estava tão concentrado nos meus pensamentos que não tinha notado que
Betsy tinha desaparecido. Eu me virei e a vi há alguns metros. Ela havia parado
de repente enquanto, com as orelhas em pé, observava um ponto na colina. Esse
era o seu sinal de que estava atenta. Eu já sabia que não era um esquilo ou algum
outro habitante da floresta. Ela fora treinada para não os incomodar e para que
nunca se distraísse com eles.
Quando eu me aproximei dela, perguntei-lhe:
— Ei menina, o que acontece?
Nesse momento, aproveitei a pausa para amarrar meu tênis e percebi que sua
atenção continuava fixa sempre no mesmo ponto da colina. Ela está agindo de
forma incomum. Com um pequeno uivado, que parecia um rosnado, ela abaixou-
se no chão como se estivesse pronta para atacar. Olhou para mim esperando um
sinal.
Não percebendo o que ela tinha visto, cheguei ainda mais perto, ao seu lado, e
sussurrei:
— O que está acontecendo? Você viu alguma coisa?
Perguntei-lhe com uma voz brincalhona, acariciando-a entre as orelhas,
enquanto controlava a área.
Quando usava esse tom de voz, ela rapidamente entendia que era hora de
brincar e estava pronta para começar qualquer jogo que eu propusesse.
Em vez disso, ela se manteve atenta, na mesma posição usada para trabalhar
no exército, enquanto olhava firmemente na mesma direção.
Nesse momento, dei toda a minha atenção a ela. Ainda agachado, ao seu lado,
tirei meus fones do ouvido e estava pronto para me levantar e controlar melhor o
que acontecia nos arredores. Escutei, à distância, vozes irritadas; por segurança
decidi ficar onde estava. Por sorte, os arbustos eram altos o suficiente para
esconder-nos.
Eram duas ou mais vozes masculinas e não consegui entender o que diziam.
Se reconheci bem, esse idioma era da Europa Oriental. Agora que eu tinha
ouvido as vozes, consegui localizá-las mais adiante, ao lado, na parte plana da
colina. Em dois, estavam puxando algo para fora, daquilo que parecia ser uma
pequena caverna. Estavam irritados e gritavam tão alto que eu podia ouvi-los
apesar do ruído da cachoeira.
Betsy ainda estava esperando minhas ordens, enquanto eu estava pensando
qual era a melhor coisa a fazer, diante daquela situação. Eu estava tirando o
telefone da proteção que eu tinha em meu braço para chamar reforços, porque o
comportamento desses dois não me parecia ser nada de bom. Enquanto isso, um
grito de mulher, desesperado, superou as vozes masculinas e ecoou pela floresta.
Um deles a puxou da caverna com a mesma ferocidade com que se arranca um
animal do seu esconderijo, enquanto o outro segurava-a pela mão apontando-lhe
o que eu imaginei ser uma arma. A mulher estava lutando e pedindo para deixá-
la viver. Pelo tom de sua voz, era possível perceber seu desespero, enquanto
implorava que a deixassem ir embora.
Quando o homem que a dominava conseguiu fazê-la se levantar, eu já estava
com o telefone na mão, tentando identificar o ponto em que me encontrava, para
tentar fornecer a minha posição. Eu precisava de reforços; normalmente, corria
com Adam, meu colega da polícia. Infelizmente, nesse dia, ele não estava
comigo.
Eu havia desbloqueado a tela principal do telefone quando o barulho de uma
bofetada brutal me interrompeu. De relance, vi a cabeça da mulher voando para
o lado, de maneira tão rápida que achei que ele tinha quebrado o pescoço dela. O
homem sacudiu-a com ferocidade, enquanto o outro estava rindo. Seus gritos
gelaram o meu sangue.
Naquele momento, meu instinto assumiu o controle. Me levantei de onde
estava escondido e corri para trás de uma árvore. Dali, gritei com toda a minha
força:
— Parem onde estão. Polícia! Soltem o refém e mantenham suas mãos à vista!
Esta é a melhor abordagem antes que os monstros a matem. Na verdade, essa
é a única atitude possível na minha situação desesperada.
Eles não perderam tempo. Aquele que segurava a arma se virou para a direção
de onde veio minha voz e disparou. Eu já havia mudado minha posição,
escondendo-me em outra árvore, enquanto me xingava por não ter levado minha
arma.
— Ie të shkojë! Iënë atë!
Ouvi-os gritando um para o outro.
Reconheço esse idioma… estão dizendo... qualquer coisa como... andar e
fazer algo...
O que realmente chamou minha atenção foi o homem que segurava a mulher.
Percebi o quão perto ele estava da beira da colina. Aquilo que eu mais temia, ele
fez. Não pensou duas vezes antes de agir. Em um piscar de olhos, jogou a
mulher, que até aquele momento estava presa em seus braços, em direção ao
penhasco, fugindo, em seguida, junto com o outro.
Eu vi, como em um filme em câmera lenta, seus cabelos ondulando ao vento,
seus braços inclinados para a frente na tentativa desesperada e inútil de agarrar-
se a algo, enquanto seu perfil desaparecia no penhasco. Meu coração parou
naquele momento e um arrepio percorreu as minhas costas. Abaixo de onde ela
estava, o rio atingia toda sua força antes de mergulhar na cachoeira. Seus gritos
acompanharam sua queda e desapareceram no barulho da água.
O covarde deixou-me sem escolha. Com um rápido assovio, eu já tinha Betsy
ao meu lado, enquanto corria para o ponto em que a mulher desapareceu da
minha área de visão. Tentei calcular o quão alto era aquele trecho do penhasco.
Eu desejava que meu aviso falso os tivesse assustado o suficiente para não fazê-
los voltar.
Eu não queria chegar ao topo, no ponto em que os dois homens estavam antes.
Eu corria entre as árvores, me abaixando, procurando um ponto a partir do qual
eu pudesse descer a encosta. Eu tinha que encontrar uma forma rápida de
resgatá-la, sem arriscar quebrar meu pescoço ou cair na água. Depois disso,
deveria esperar que ela caísse às margens do rio. Não queria nem pensar no que
aconteceria se ela tivesse caído na água com aquela corrente forte. Betsy descia
ao meu lado, alternando a sua atenção entre mim e a encosta. Deus, ajude-a por
favor!
Depois de metros de corrida desesperada naquela descida, eu a vi, desmaiada
na borda da água. Ela terminou a sua queda de lado como uma boneca em
pedaços, seus cabelos e parte de seu rosto estavam imersos na água enquanto o
resto do corpo estava jogado sobre as pedras e arbustos baixos que cresciam no
início da encosta íngreme. Pode-se dizer que ela teve sorte, porque podia ter
caído alguns metros mais para a frente, onde a margem do rio dava lugar a uma
parede de pedra, construída para conter a fúria das águas.
Olhando para cima, para garantir que ninguém esperasse por mim no topo, eu
continuava me aproximando com cuidado e mentalmente contava a altura da sua
queda. Mais ou menos sete metros. Eu via lá em cima algumas árvores quebradas
que, provavelmente, atenuaram a sua queda. Espero, realmente, estar certo na
minha análise.
Estou em uma área muito exposta, sem proteção, mas não posso deixá-la ali e
ir chamar reforços. Se ela ainda estiver viva, certamente morrerá afogada.
Infelizmente, eu não podia me expor mais aproximando-me para agarrá-la.
Era muito arriscado. Sabia que precisava girá-la com grande delicadeza e
começar as manobras esperadas em caso de acidentes graves. Caso ela tivesse
uma fratura no pescoço ou na coluna, por exemplo, os meus movimentos
poderiam evitar de deixá-la paralisada para sempre e até mesmo salvar sua vida.
Nesse momento, cada segundo poderia ser decisivo. Eu tinha que tomar uma
decisão. O mais importante era tirar a parte de seu rosto que estava imerso.
Felizmente eu podia ver que o nariz dela estava fora, mas ela ainda corria o risco
de afogar-se. A parte mais próxima de mim eram os seus pés.
Eu me abaixei, procurando uma posição estável no meio de todas aquelas
pedras e agarrei seus tornozelos tentando permanecer o mais escondido possível
na colina. Comecei a arrastá-la lentamente para mim. Rezei para não prejudicá-la
ainda mais.
Sentia uma dor no peito, como uma facada, cada vez que o rosto e a cabeça
dela batiam em uma pedra, enquanto a arrastava.
Seus cabelos soltos, faziam um efeito espectral na água corrente. Eles se
misturavam ao sangue das feridas sofridas durante a queda. Agora era apenas
uma questão de sorte. A minha de não ser descoberto, a dela de não ter danos
irreparáveis ou ainda de não morrer.
Enquanto estava tentando desesperadamente puxá-la, analisei a sua condição.
Suas pernas estavam intactas, pelo menos me pareciam. Seu braço estava
quebrado. Parecia visível um pedaço de osso perto do seu cotovelo. Fratura
exposta. Seu pulso estava estranhamente dobrado de modo que seus dedos
tocavam o antebraço. Certamente havia outras fraturas. Foi uma queda enorme.
Talvez isso explique por que ela não reage? Tomara que não tenha morrido.
Quando ela estava perto o suficiente de mim, eu me inclinei e agarrei-a pelos
seus quadris. Definitivamente, não podia mais arrastá-la daquele jeito.
Estava completamente transtornado, sentia o suor escorrendo no meu rosto e
costas, o som do meu coração batendo nos ouvidos. Momentos mortais.
— Mas que merda!
Eu sussurrava em voz baixa com toda a minha raiva. Eu estava tão envolvido
na situação que comecei a murmurar, esperando que ela pudesse pelo menos me
escutar.
— Por favor, reaja, me diga que você está viva. Estou aqui para te ajudar. Me
dê um sinal se você me sentir. Por favor!
Enquanto falava com ela, peguei no seu pulso e procurei os batimentos
cardíacos. Minha mão tremia tanto que tive que respirar fundo para me acalmar.
Eu não poderia me dar ao luxo de adicionar meu stress à situação que já era
muito crítica. Eu me encontrei em situações assim no exército, mas sempre
estávamos em pares ou em grupos. Estar ali sozinho naquele momento, era
realmente muito difícil para mim.
Por favor, não me deixe aqui sozinho. Por um momento, o que me pareceu o
mais longo da minha vida, seu corpo não deu sinais de vida. Eu ainda tentei
deslizar meus dedos no seu pulso. Eu sabia perfeitamente onde tinha que colocá-
los para ouvir os batimentos cardíacos, mas eu não queria me enganar.
— Me dê um sinal de que você está viva. Por favor!
De repente, senti seu pulso e me pareceu um milagre. Era fraco e desigual,
mas existia. Sim! Boa senhora. Fique comigo.
Respirei aliviado e, usando o que aprendi nos meus anos de academia,
aproximei-me tentando deslizar meu braço em volta do seu pescoço, bloqueando
a palma da minha mão no queixo e suavemente colocando meus dedos no seu
rosto.
— Agora estou aqui com você. Não se preocupe. Ficará tudo bem.
Mantive a voz suave; usava as frases que aprendemos para confortar e acalmar
as vítimas enquanto aguardávamos o resgate. Falar com essas pessoas em
situações estressantes sempre ajudava. Eu estava descobrindo que, nesse caso, eu
também me sentia mais confiante. Podia ouvir minha voz distante, como se
pertencesse a outra pessoa, e isso acalmou minha respiração.
Betsy me alcançou e sentou-se nas folhas, observou-nos e aguardou
comandos. Ela percebia a gravidade da situação. Tenho certeza de que ela
entendia o desespero da minha voz.
Mudei minha outra mão atrás de seu pescoço para que pudesse bloqueá-lo e,
usando o cotovelo que estava inclinado entre seus seios como uma alavanca,
lentamente comecei a girá-la em minha direção. Esperava que ela não acordasse
nesse momento, era melhor permanecer inconsciente. Aparentemente ela não
tinha nenhuma outra fratura, pelo menos externa, mas precisava de ajuda o mais
rápido possível. Seus batimentos cardíacos eram instáveis e ela estava
inconsciente. Situação crítica.
Vendo seu rosto pela primeira vez percebi que ela era muito jovem; tinha
cerca de vinte anos e, com certeza, nunca a tinha visto antes. Todo o lado direito
do rosto estava ferido e começando a inchar. Suas roupas estavam rasgadas e eu
podia ver as feridas que cobriam seu corpo. O que me preocupava mais do que
feridas e sangue era que ela não respondia a nenhum estímulo.
Apoiando-a suavemente na minha perna, tirei o telefone do bolso dos shorts
onde eu o tinha colocado rapidamente e usei a lanterna para controlar suas
pupilas; uma das quais não reagia à luz. Paralisia cerebral… talvez.
Tirei a minha camiseta e rasguei-a em tiras, colocando-as sobre a fratura. Eu
tenho que transportá-la até o estacionamento, onde deixei minha bicicleta. De
lá, aguardaremos o socorro.
Seus lábios estavam se tornando azulados e não tinha nada para aquecê-la.
Mantendo-a apoiada em minha perna, liguei para o número do meu colega.
Aquele que eu confiaria a minha própria vida.
No terceiro sinal, respondeu com uma voz ainda sonolenta.
— Cacete, Thom boy, eu te disse não, hoje é...
Antes que ele continuasse sua imprecação, eu o interrompi.
— Adam, escuta. Agora!
O desespero da minha voz também me surpreendeu.
— Uma garota foi jogada de um penhasco perto da trilha em que eu e Betsy
estávamos correndo, na última curva antes da cachoeira. Encontre-nos ali, no
início da trilha sul. Você sabe onde deixamos nossas bicicletas na área do castelo
quando corremos juntos? Não no estacionamento para turistas, o outro.
— Ok.
Eu o ouvi respirando abruptamente pelo nariz.
— Estou chegando. Você precisa de uma ambulância?
— Não. A estrada daquele pequeno estacionamento onde eu deixei a bicicleta
antes de começar a corrida não é adequada para um veículo pesado. A
ambulância poderia se atolar no lodo.
— Você quer que eu vá até você, para te ajudar a carregá-la?
— Não. Aguarde onde eu deixei a bicicleta. Podemos nos desencontrar.
— Vem Adam, corre, ela está péssima. Obrigado.
Meu coração sofreu com essa afirmação. Eu não gostaria que essa garota
morresse em meus braços.
— Estou indo.
Foi sua resposta rápida. A linha ficou muda.
Sem fazer movimentos abruptos, comecei a me preparar para carregá-la. Eu
tinha que escolher onde colocaria meus pés. A área onde nos encontrávamos
estava cheia de lama e pedras de diferentes tamanhos. Primeiro, deveria ser
capaz de pegá-la com segurança, enquanto eu ainda estava ajoelhado e depois
me levantar lentamente tentando manter o equilíbrio. Eu não posso cair, em
hipótese alguma.
Betsy estava pronta, ao meu lado, quando eu passei um braço debaixo dos
joelhos da garota e com a outra mão eu envolvi suas costas na altura de suas
axilas. Contei até três para fazer o primeiro movimento. Este será o mais difícil.
Meus pés afundaram na lama e a falta de uma superfície regular e estável tornou
ainda mais complicada a minha tarefa. Como vou escalar a margem do penhasco
com ela em meus braços?
Graças a Deus, ela é leve. Provavelmente é a adrenalina que, neste momento
corre, ou melhor, voa pelo meu corpo.
Eu não queria nem pensar no que tinha acontecido com essa garota antes; os
rasgos na sua roupa pareciam causados pela queda. Espero que ela não tenha
sido estuprada. Malditos porcos!
Seus batimentos, mesmo que fracos, existem. Eu sabia que tinha que me
encorajar. Isso era o suficiente nesse momento. Mais tarde, seria outra história,
caso ela se lembrasse do que tinha passado, e fosse capaz de reportar. Feridas
emocionais não se curam tão rápido quanto as físicas. Vivo em primeira pessoa
há anos.
Eu caminhava com a garota em meus braços, mantendo-me tão próximo
quanto possível da borda do rio. Mesmo que o chão fosse instável, o barranco e
os arbustos nos manteriam escondidos.
Ao longo do caminho pensei: se eu andasse por cerca de meio quilômetro
nessa direção, eu chegaria a um ponto onde o declive diminuiria
consideravelmente e eu poderia subir com mais facilidade. Provavelmente,
obtive ajuda do céu.
Estava exausto, mas fiz um último esforço para chegar ao estacionamento
onde eu vi Adam correndo em nossa direção. Felizmente, tivemos um ótimo
treino na academia de polícia.
— Merda Thomas!
Eu sabia que o estado da garota era muito crítico, mas ver a expressão
angustiada no rosto do meu amigo, e colega acabou com as minhas esperanças.
2. esperança

Thomas
Sem dizer mais nada, Adam abriu o porta-malas do seu carro para que Betsy
entrasse e depois me ajudou, porque a jovem estava nos meus braços e tinha que
entrar com a maior atenção possível. Antes de partir, ele me passou o cobertor
isotérmico que sempre mantinha no carro, juntamente com tantas outras coisas
úteis. Muito bem, Adam, nós, os policiais, estamos sempre preparados.
A parte do rosto da jovem que se apresentava menos ferida estava apoiada na
curva do meu pescoço e eu a abraçava, tentando transmitir-lhe um pouco do meu
calor. Resisti! Estamos partindo.
Adam partiu rapidamente para o hospital. Estávamos nos olhando pelo
espelho retrovisor enquanto eu contava a história e, atrás de mim, eu sentia
Betsy, a primeira a perceber o perigo, dando uma esperança de salvação para a
garota. Nesse momento, eu desejava de todo o coração, que ela sobrevivesse.
Para nós, essa era uma situação absurda. Vivíamos nessa pequena cidade
tranquila onde eventos como esses nunca aconteciam. As florestas e os bosques,
que existiam na maior parte do território, eram geralmente usados por
professores que traziam crianças e adolescentes para brincar à tarde: um lugar
calmo e ideal para fazer churrascos no verão, com trilhas para praticar inúmeros
esportes. No pior dos casos, os espaços eram aproveitados pelos jovens para, de
modo inconveniente, fazer festas, eventos e noites românticas nos fins de
semana.
Enquanto contava a história para Adam, meu foco estava concentrado na
jovem, porque estava desejando desesperadamente a sua recuperação. A verdade
é que temia que ela morresse nos meus braços.
A história estava chegando ao fim e a expressão no rosto de Adam era cada
vez mais furiosa.
Eu tinha esperança que, falando com o meu amigo, ela escutasse a minha voz,
mas sabia que estava me iludindo. O seu corpo estava completamente
abandonado entre os meus braços. Se não tivesse mantido meus dedos na parte
inferior de seu pulso para controlar as pulsações, eu juraria que ela estava morta.
Fica comigo.
Enquanto Adam dirigia, disse-me:
— No caminho até aqui, liguei para o hospital. Alertei os médicos e eles nos
esperam. Pega meu telefone e liga lá para explicar melhor a situação.
— Enquanto respondia as questões de rotina da enfermeira, no modo viva voz
do telefone, olhava para fora da janela, porque sabia que estávamos quase
chegando.
Nossa pequena cidade tinha apenas alguns centros médicos de clínicos gerais
e pediatras. Para qualquer outra necessidade, tínhamos que viajar em média vinte
quilômetros para chegar a uma cidade maior, onde encontraríamos clínicas
especializadas ou o hospital para emergências.
Olhando pela janela, tudo aquilo que podia ver eram as extensas pastagens
verdes e campos cultivados. A linha do horizonte era traçada pelas cúpulas de
grossos pinheiros, a Floresta Negra, na Alemanha. Ela se estendia além das
fronteiras com o nosso país e era chamada assim pela sua vegetação densa e
intrincada que, mesmo durante o dia, impedia a penetração dos raios de sol,
tornando-a eternamente escura.
A Suíça era um país onde a paisagem mudava profundamente, numa área de
poucos quilômetros, mas, o que era mais importante, era o respeito à natureza.
Ela reinava em harmonia absoluta com as gerações que evoluíram ao longo dos
séculos. Esse respeito nos foi ensinado desde pequenos, transmitidos pelos
nossos pais e depois, na educação escolar, com a finalidade de melhorarmos e
preservarmos, constantemente, o ecossistema.
Nossos habitantes se ofereciam como voluntários para proteger espécies como
falcões, raposas, porcos-espinhos e cegonhas. Dirigindo ou passeando pela
montanha, era normal parar o carro para deixar passar um pastor com o rebanho
ou uma pequena família de patos que cruzava tranquila a estrada na planície.
Terminando a ligação para o hospital, notei que entramos naquela cidade que,
com trinta e cinco mil habitantes, era a maior da nossa região: Schaffhausen.
Ainda era de manhã e a cidade já estava em movimento. No final da
primavera, todos se levantavam mais cedo para aproveitar os dias que se
tornavam cada vez mais longos.
Chegando ao hospital, Adam seguiu pela entrada de emergência; mas antes de
parar o carro, tinha que lhe pedir um favor:
— Por favor, chame um dos rapazes na delegacia de polícia e peça-lhe para ir
buscar a minha bicicleta. Deixei-a no estacionamento perto da escada, onde você
parou o carro antes. Você a viu lá, não?
— Depois, leve Betsy na casa da minha mãe e explique o que aconteceu.
Assim que as enfermeiras me derem informações sobre o estado da jovem,
chamo um táxi e passo rápido em casa para tomar um banho. Depois vou à
delegacia de polícia para decidirmos com o capitão como proceder.
— Obrigado Adam... de verdade.
— Não tem problema, Thom, fica tranquilo. Vou fazer tudo. Os agentes já
estarão inspecionando a área e espero, realmente, encontrar alguém... Eu só
quero colocar as minhas mãos neles.
— Eu também quero Adam... pode apostar.
Meu sangue fervia só de pensar nisso. A voz de Adam tornou-se ainda mais
séria.
— Qualquer outra coisa me chama. Não, espera! Ligue-me e eu venho te
buscar aqui. É melhor do que pegar um táxi.
Meu amigo estacionou o carro na área de emergência do hospital, desligou o
motor e virou-se para mim enquanto tirava a sua blusa de moletom.
— Você está só de shorts, pegue esse moletom. Nos veremos em breve, com
boas notícias... espero.
Ele me entregou a blusa e com um pequeno gesto, acariciou suavemente o
ombro da jovem.
— Boa sorte, garota.
Este era o hospital de base para toda a nossa região. Estava inserido no meio
de um belo bosque de castanheiras e pinheiros. Um paradoxo: a maioria das
pessoas que usava seus serviços considerava o hospital um lugar bucólico.
Infelizmente, eu não o via desta forma. Evitava esse lugar a todo custo, porque,
estar ali, poderia implicar em outra chance de encontrar a doutora Werni, minha
primeira e última namorada e mãe da minha filha. Não quero pensar nela agora.
Fora da entrada do hospital, duas enfermeiras e um assistente com uma maca
estavam esperando por nós. A primeira enfermeira abriu a porta do carro do qual
saí com a jovem ainda em meus braços, enquanto a segunda, que se aproximava,
me perguntou.
— Bom dia, senhor. Essa é a garota encontrada na floresta?
Percebendo o meu curto sim com a cabeça, ela continuou.
— O senhor pode passá-la para o assistente ou deixá-la na maca. Daqui para a
frente, nós nos ocuparemos dela.
Percebendo a minha relutância, a enfermeira chamou, com um aceno de
cabeça, o assistente. Instintivamente, recuei, trazendo o corpo da jovem ainda
mais junto ao meu.
— Não! Eu entro com ela. É minha responsabilidade.
Não era uma resposta, era uma ordem. Escutei Adam, que provavelmente
tinha parado para ver a situação, falando baixo atrás de mim.
— É melhor deixá-la Thomas. Eles sabem como lidar com esses casos. A sua
mão apertou firmemente o meu ombro como que para confirmar suas palavras.
A verdade era que nem eu entendia o porquê de estar tão convencido de que
eu tinha que mantê-la comigo ou, de qualquer modo, não a deixar sozinha.
Estamos no hospital, Cristo Santo. Eu tenho que deixá-la ir.
Aproximei-me da maca e, com muita delicadeza, comecei a deitá-la. O
assistente deu um passo para trás, certamente assustado pelo jeito mortal que eu
olhava para ele. Não podia evitar; dentro de mim, o senso de proteção à jovem
prevalecia. Por que meu coração dói tanto?
Ao ver que a situação melhorava, a enfermeira continuou dizendo:
— O médico de plantão, Dr. Neumann, já está chegando. Ele teve que atender
outra emergência. O senhor pode se dirigir à entrada, atrás daquela porta à
esquerda, onde encontrará a colega que preencherá os formulários de entrada no
hospital e explicará os procedimentos a serem adotados.
Dito isto, ela apontou para uma porta vermelha e fez um sinal com a cabeça
enquanto começavam a empurrar a maca para a entrada principal.
Nem ferrando, eles vão levá-la embora! Fiz o primeiro passo para segui-los,
quando a mão determinada de Adam segurou de novo o meu ombro.
— Confia neles Thomas. Ela estará bem. Olha aqui... pega a minha blusa.
Você a esqueceu no carro e está assustando as pessoas.
Ele apontou meu corpo com um aceno de cabeça.
Naquele momento, notei algumas pessoas que saíam do ônibus de linha e
observavam a cena, estarrecidas. O que mais me assustou, de fato, foi meu peito
coberto de sangue. Quanto sangue ela perdeu?
Finalmente vesti o moletom enquanto ouvia a voz nervosa do médico que,
vindo do interior do hospital, encontrou as enfermeiras e o assistente que
estavam entrando com a maca. Ele começou a examinar a jovem, enquanto ainda
estavam no corredor.
— Vamos levá-la para o quarto dois. Rápido! Pega o desfibrilador portátil na
sala um. Força pessoal! Avisa a TAC que uma tomografia vai ser necessária. Ela
está sangrando de uma orelha, possível choque cerebral. Pulso fraco. Avisa
também a cirurgia ortopédica. Vamos correr, porque ela está tendo um ataque
cardíaco.
Nesse ponto, ele gritava seus comandos e a enfermeira que acabava de
cumprimentar-me subiu na maca e se colocou sobre a jovem para iniciar a
massagem cardíaca, enquanto a outra deslocava-se, com pressa, pelo corredor. O
assistente e outra enfermeira que havia acabado de chegar, rapidamente,
puxaram a maca, passando por uma segunda porta, com o médico ao lado deles.
Meu coração parou pela segunda vez naquele dia. Uma sensação de
impotência tomou conta de mim, naquele momento. Agora, o destino jogava
todas as suas cartas. Deus, eu realmente espero não perdê-la.
E com isso, as portas automáticas se fecharam, levando-a embora. Eu ainda
estava olhando para a porta fechada, tentando entender o que tinha acontecido,
quando Adam sussurrou para mim.
— Aceite a situação, Thom. Vai, porque eles vão precisar das suas
informações. É melhor que espere por você?
Ele me olhou preocupado.
— Não. Você pode ir, obrigado. Eu vou embora quando receber notícias.
Avise o capitão, por favor. Minha voz parece debilitada, sem forças.
— Certo, fique tranquilo que aviso tudo. Vamos pedir reforços e voltaremos a
procurar outras pistas. Nesse momento, eles já emitiram um alerta nas fronteiras.
Certamente eles estavam a bordo de um veículo, mas sem mais informações,
será difícil rastreá-lo. Mas não nos custa tentar.
Dando-me um leve tapa no ombro, ele foi embora.
Sentindo-me mortalmente cansado, caminhei para a entrada dos
acompanhantes.
3. A minha ‘velha vida’

Anna
Tinha uma névoa que circundava a minha cabeça e sentia fadiga em todos os
ossos do meu corpo. Isso era um pesadelo? Não, o pesadelo era antes dele. A sua
voz suave... eu tinha que continuar correndo. Meu corpo cedia ao cansaço e o
pânico que me envolvia poderia ser meu pior inimigo.
— Parada... Força, jovem.... conosco…

***

Qualquer mês antes…


O que deveria ser uma viagem a um novo país para servir como voluntária,
rapidamente, se tornou uma realidade terrível.
Quando comecei a entender o que aconteceu com as irmãs da minha
comunidade, a única solução para me salvar foi escapar. Se eu não fizesse isso
quando podia, provavelmente teria uma grande chance de terminar minha vida
como elas e quem sabe quantas outras mulheres. Uma estatística triste: rostos
sem nomes e perguntas sem respostas.
Nos últimos anos vivi no sul do Brasil, perto da fronteira com o Uruguai em
uma comunidade religiosa. Ela era a minha família.
Eu fazia parte da quarta geração de imigrantes europeus que veio àquele país,
fugindo da Primeira Guerra Mundial. O início do século XX foi uma época de
desespero. Famílias inteiras embarcaram em navios sem ter conhecimento do
destino, confiando suas vidas ao desconhecido e rezando a Deus por um futuro
melhor.
Em muitos casos, eles chegaram àquele imenso país e ganharam um terreno
em uma área agrícola ou um pequeno espaço de terra, destinado ao uso
comercial, em algumas das cidades emergentes. Tudo isso foi oferecido pelo
governo local, que considerou isso uma troca justa, dada à falta de mão de obra
especializada que sempre caracterizou o país. Geração após geração da minha
família, bem como muitas outras famílias de imigrantes, cultivaram e criaram
rebanhos naquela terra. Infelizmente, a situação nos tempos modernos mudou. A
pobreza e a corrupção, que reinava no país há décadas, minou todos os recursos
das pessoas honestas.
No nosso país, em pequenas regiões agrícolas, quando nascia uma criança do
sexo feminino, em uma família de muitos filhos, era normal que fossem doadas a
uma igreja ou uma comunidade.
Essas instituições existiam e ajudavam em todas as regiões pobres do Brasil,
fazendo o trabalho que seria do governo, enquanto esse, mergulhava-se na
corrupção.
Minha situação era ainda mais complicada porque eu possuía, o que minha
mãe descreveria como, um 'temperamento único' e estava 'ficando velha', como
ela não hesitava em me lembrar. Quando eu comemorei meu aniversário de
dezesseis anos, pude escolher entre casar com o filho de um fazendeiro da
vizinhança, alguém que provavelmente nunca tinha visto na vida, ou podia
trabalhar e viver em uma das muitas comunidades religiosas que existiam em
nosso país.
Para os meus pais, ter uma filha adulta para alimentar, a longo prazo, não era
parte dos planos. Para meu pai, como mulher, eu não substituía a força e o
trabalho dos meus irmãos na nossa pequena fazenda e isso foi agravado pelo
surgimento de outras bocas menores para alimentar. Eu estava me tornando um
fardo para a família.
Para os meninos, a vida familiar era mais pacífica. Eles recebiam uma boa
educação na escola mais próxima à região onde morávamos, jogavam com os
amigos, ouviam e aprendiam as velhas histórias contadas pelos mais idosos.
Desde jovens, começavam a trabalhar na fazenda do meu pai, depois se casavam
com as meninas das fazendas vizinhas com as quais eles tinham vários filhos,
homens de preferência, e faziam a mesma coisa que faziam por aqui por
gerações inteiras: viver e trabalhar a terra.
Para nós mulheres, o começo de vida era quase o mesmo. Nós aprendíamos
também fazer o trabalho que uma 'mulher deveria saber fazer', como: cozinhar,
lavar roupa, costurar, cuidar de crianças, idosos e animais da fazenda.
Crescendo, o nosso futuro era encontrar um 'bom homem' para se casar, ser uma
boa esposa e uma mulher forte para dar à luz a vários filhos, de preferência do
sexo masculino, e assim repetir o ciclo de vida que fizeram nossas mães e, antes
delas, nossas avós. Não éramos autorizadas a ter grandes aspirações e,
certamente, não tínhamos tempo para sonhar. O mundo lá fora, conhecíamos
pelos episódios de qualquer novela que, às vezes, tínhamos tempo para assistir,
nas noites de fim de semana.
O melhor que poderia nos acontecer era se casar com um dos jovens da nossa
cidade que gostávamos ou, um rapaz da escola local, ou, com muita sorte,
alguém conhecido em uma das duas festas anuais celebradas perto de onde
morávamos. Como segunda opção restava a possibilidade de viver em
comunidades religiosas, que foram sempre muito respeitadas no nosso país.
Nelas, poderíamos construir um futuro como uma pessoa religiosa, ou com certa
dose certa de inteligência e sorte, um futuro fora da comunidade, mas em
qualquer dos casos, sempre ligadas ao interesse comum do grupo.
Eu tentava ser feliz e convencida de que, com essa decisão de participar da
comunidade religiosa, eu iria ajudar a minha família. Decisão certa, de acordo
com minha mãe, que achava que casar a sua 'filha irascível' com o filho de um
fazendeiro local poderia facilmente tornar-se um pesadelo. Meu marido poderia
ficar insatisfeito e seria capaz de enviar-me de volta para a casa dos meus pais.
Assim, minha mãe entrou em contato com a nossa paróquia e, algumas
semanas depois, eu disse adeus à minha família e parti para a minha nova casa.
Não foi uma decisão difícil de tomar: sem argumentos ou lágrimas derramadas.
Tínhamos consciência da nossa situação precária porque éramos mulheres e
possuíamos poucas oportunidades de emprego.
Para dirigir-me à minha nova comunidade, partimos ao amanhecer; por quase
três horas de percurso, meu pai e eu viajamos em um pequeno caminhão, por
estradas que até então só conheciam os cascos dos animais. Depois de um início
de dia com o silêncio de meu pai, sempre um homem de poucas palavras,
chegamos à cidade mais próxima: Alegrete.
Despedi-me dele e dali a minha jornada continuou completamente sozinha,
pela primeira vez na minha vida. Ainda viajei meio dia de ônibus, em direção a
Santa Rosa. Quando cheguei, tinha tanto medo daquela enorme cidade e da ideia
de me perder, que nem fui ao banheiro enquanto esperava a pessoa que me
levaria para o meu novo lar.
Sentei-me num banco da estação com minha pequena mala aos meus pés e
comi meu sanduíche; o último que minha mãe preparou para mim.
Meus olhos olhavam encantados a pulseira de prata que minha mãe me deu
um dia antes, e que estava no meu pulso. Ela me disse que ela pertenceu à minha
bisavó quando ela imigrou para o novo país. O Arcanjo Miguel brilhava em uma
pequena medalha anexa e me protegeria, disse minha mãe, enquanto a fechava
no meu pulso.
Eu estava tão nervosa e cansada que, durante a viagem, quase não troquei
palavras com o jovem que veio me buscar. Sentei-me no segundo caminhão do
dia e olhei pela janela os campos que passavam em rápido movimento sob meus
olhos e o céu que o pôr do sol estava tingindo de rosa. Era um belo crepúsculo, o
último da minha velha vida.
Eu ainda tinha algumas horas de viagem antes de chegar à comunidade, ou
melhor, à minha nova casa.
Nesse lugar, embora quase ninguém tivesse laços de sangue, éramos todos
irmãos e irmãs. Vivíamos em harmonia como em uma grande família.
Muitas das meninas que chegavam estavam em uma situação como a minha.
A comunidade também hospedava crianças órfãs, filhos de mulheres doentes ou
solteiras, pessoas idosas que já não conseguiam mais trabalhar e se tornavam um
fardo para as famílias, mas também irmãs ou senhoras religiosas mais velhas que
não tinham um lugar para viver.
Para manter essas comunidades, as irmãs laicas que, muito embora não
usassem batinas como as freiras, realizavam trabalhos de assistência social e se
envolviam nos afazeres domésticos. Elas também faziam votos religiosos como
a pobreza, a castidade e a obediência.
Eu gostava da minha nova casa. Minha mãe quando falou com a irmã
superiora alertou-a do meu caráter 'único', por assim dizer, e então ela me fez
ajudar também no trabalho agrícola. Trabalhava com outras mulheres, mas
também com os meninos e os poucos homens que viviam na comunidade.
A lição mais importante que aprendi, durante os anos de convivência com as
irmãs, foi melhorar a minha natureza rebelde para me tornar uma mulher forte e
determinada. Com esse conhecimento,
transformei-me em uma pessoa melhor.
A verdade era que na minha vida eu não conhecia amor e carinho. Eu
conhecia o respeito, mas com elas eu aprendi uma forma de vida diferente.
Estava vivendo lá por quase seis anos e me sentia confortável na minha casa.
Então, numa noite, após o jantar, a irmã mais velha me chamou ao escritório
dela, para conversarmos. Fui com prazer e muito curiosa, porque, do tempo em
que estava lá, ainda não tinha passado por situação semelhante. Além disso, essa
sala era usada apenas pelas irmãs mais velhas, quando discutiam sobre falta de
fundos, por exemplo.
Pelo que eu tinha ouvido falar das histórias, sabia que as comunidades
estavam em contato umas com as outras, não só no nosso país, mas também no
exterior. A maioria do dinheiro que precisávamos para viver, vinha de
associações internacionais. Viver em uma região pobre significava receber
pagamentos na forma de alimentos, animais ou trocas de objetos, mas raramente
dinheiro. Esses eram trazidos do exterior por alguma irmã fiel ou, outras vezes,
por um padre franciscano.
Então, naquela noite, quando abri a porta do escritório, pensava em encontrar
um desses viajantes. Sentado em frente à mesa, encontrei um jovem que o rosto
me parecia familiar; de fato, lembrei-me que ele uma vez viveu na comunidade
com a gente, nos primeiros anos da minha estadia. Se eu me lembrava bem, ele
era mais velho que eu e tinha sido enviado para viver em Santa Rosa.
Provavelmente, ele era uma criança astuta e inteligente, e foi enviado pela irmã
superiora que o colocou em uma comunidade de uma cidade grande. Isso
porque, ela pensou que ele poderia fazer carreira e trazer uma ajuda para a nossa
casa.
Algo que eu aprendi ao longo dos anos foi que as irmãs que cuidavam de nós
estavam em contínuo projeto, planejando o futuro. Elas faziam investimentos nas
pessoas certas e usavam todos os recursos disponíveis de maneira honesta, junto
a uma rede de contatos. Isso significava muito para nós que estávamos vivendo
em um país pobre e, ainda mais, se os governantes do país também eram
corruptos.
— Boa noite, Anna. Eu desejo que você se sente com a gente por um minuto,
por favor.
Irmã Benedetta tinha uma voz baixa e tranquila, que combinava muito bem
com seu cabelo grisalho. Alguém podia se iludir com a sua aparência delicada,
mas eu sabia que dentro daquele pequeno corpo vivia uma alma forte e
determinada. Eu nunca tinha conhecido alguém com essa força interior e isso era
o que eu mais admirava nela. Ela sempre foi justa e honesta e eu sabia que
mesmo se ela parecesse distante, ela nos amava a todas, igualmente.
— Por acaso você se lembra do Joaquim? Ele foi buscar você na estação,
quando você chegou aqui, há tantos anos.
Enquanto ela nos falava, ele virou-se na cadeira e estendeu a sua mão, com
uma expressão amigável no rosto.
— Olá, Anna. Que bom te ver.
Ele me olhou diretamente e tive o prazer de observar seus olhos castanhos
expressivos e o constante sorriso nos seus lábios. Ele era alto e usava roupas que
me pareciam muito bonitas e modernas. Eu estava tão fascinada pela sua
presença, que ele me pareceu fora de lugar, no nosso humilde escritório. Era
como se ele fosse um príncipe no estábulo!
Mas eu?! Eu tinha tomado um banho antes do jantar e vestia minhas antigas
roupas. Meu cabelo, ainda molhado, estava amarrado com um nó. Normalmente,
à noite não íamos em nenhum lugar e, obviamente, eu não tinha muitas roupas,
especialmente bonitas. Senti-me um pouco desconfortável na frente desse belo
rapaz vindo da cidade.
Eu tinha que parar de sonhar de olhos abertos. Podia continuar a sonhá-lo
mais tarde, sobre o que eu usaria ou como eu teria penteado meus cabelos se eu
o conhecesse em uma das poucas festas em que íamos.
— Oh! Oi Joaquim. Pensei que fosse a irmã Livia que estivesse aqui. Você a
conhece, não é? Aquela que geralmente nos traz as doações.
Santo Deus... o que estou dizendo, estou muito nervosa. Devo fechar a boca,
antes que seja tarde demais.
Eu estava esperando que ele fosse gentil e fingisse não notar a vergonha que
tinha coberto todo o meu rosto. No entanto, quando ele abriu a boca e vi a sua
expressão, soube que ele nunca iria perdoar o mal-entendido.
— Obrigado Anna.
Seu sorriso bonito alargou-se.
— Confundir-me com a irmã Livia foi realmente gentil. Estou honrado, mas
por favor, pelo menos, na próxima vez, me confunda com o padre. Pelo menos
ele é um homem.
A irmã superiora nos olhava da sua cadeira com a expressão de alguém que
está tentando entender uma piada. Ela era uma pessoa religiosa e possuía um
grande conhecimento, mas não na arte do cortejo.
— Anna!
Ela interrompeu nossos olhares brincalhões.
— Liguei para o Joaquim e pedi que ele viesse aqui hoje à noite, porque eu
preciso de uma opinião dele. Na nossa última conversa telefônica, ele
mencionou o seu nome. É por isso que você está aqui, também.
Obviamente, ela ligou para ele de propósito. Naquele momento, eu estava
realmente curiosa para saber como ele sabia meu nome. Então, a minha atenção
se voltou ainda mais para eles.
— Você se lembra das duas irmãs que enviamos, no mês passado, para a
comunidade da Itália para ajudar no campo de refugiados?
— Sim, lembro delas.
Claro que lembrava. Eu ainda estava um pouco triste com ela e a irmã
Aparecida. Estava tentando aceitar o fato de que as duas irmãs tinham ido
embora e eu não. Por que eu não poderia ir se dava toda a ajuda possível?
Naquela época, a irmã Benedetta me explicou que eles não poderiam ficar
sem mim na comunidade; eu estava ciente de que nós éramos poucos para
realizar o trabalho árduo e muitos para alimentar e cuidar. Ela me elogiou, disse-
me que eu conseguia lidar com o velho trator e com o pequeno caminhão que
tínhamos disponível e que eu também era muito prestativa nos trabalhos de casa.
Em suma, elas precisavam de mim lá. Meu trabalho era realmente importante
para nossa comunidade.
Obviamente, esse discurso me fez imensamente feliz. Eu era útil e elas
necessitavam da minha ajuda. Finalmente me sentia amada!
Embora isso não tenha mudado o fato de ter derramado algumas lágrimas,
quando as vi preparar suas malas e quando percebi a alegria em seus rostos, ao
discutirem como seria bom passar alguns meses no país dos nossos
antepassados. Quanta sorte elas tinham!
Imaginava que a irmã Benedetta estava retribuindo um favor que alguma
comunidade do outro lado do mundo nos havia feito antes. Como o ditado
popular dizia: uma mão lava a outra.
Todos nós sabíamos que elas teriam que trabalhar duro em um ambiente
estressante, com pessoas que perderam tudo, pessoas que não esperavam nada
além de comida e um leito na comunidade. Mas, essa era basicamente a situação
diária em que vivíamos.
Quem entre nós era mais sensível, em certos momentos do ano percebia a
tensão transmitida pela irmã Benedetta e as irmãs mais velhas quando a doação
estava chegando do exterior. A mesma tensão que era criada quando íamos nas
feiras ou mercados das pequenas cidades da região para vender o que restava da
nossa pequena produção ou nosso artesanato. Tínhamos que vender tudo! Era
sempre uma vida difícil.
— Anna, filha, acorde. Pare de sonhar!
A voz da irmã Benedetta chamou minha atenção. Pedi desculpas e prestei
atenção no que ela me falava.
— Recebi um telefonema da nossa comunidade na Itália alguns dias atrás. Eu
não pude falar pessoalmente com Fernanda e Ellen para saber como elas estão,
mas a irmã com quem eu conversei me tranquilizou, dizendo que as nossas duas
meninas fizeram uma viagem tranquila e já estão realizando suas funções na
ajuda aos refugiados. Fiquei muito feliz por receber esse telefonema, visto que
estava esperando por notícias.
— A irmã da comunidade elogiou o trabalho das nossas duas meninas e, ao
me agradecer por ter enviado duas trabalhadoras corajosas e responsáveis,
perguntou-me se havia pelo menos mais duas outras pessoas disponíveis em
nosso grupo para enviar à comunidade italiana.
Naquele momento, eu estava concentrada apenas nas suas palavras. Talvez ela
proporá o que sonho! Meu coração galopava no meu peito.
— Em outra situação, eu teria educadamente dito que não, porque para nós
ficarmos sem duas outras jovens significaria muito. Porém, ela mencionou um
ultimo argumento; uma generosa doação, que Joaquim, gentilmente, vinha nos
trazer. Eu não poderia recusar o pedido deles.
Eu já estava na ponta dos pés para ouvir o final da história. Senhor, diga-me
que agora eu posso ir também! Talvez seja por isso que o Joaquim mencionou
meu nome.
— Você gostaria de ir a Anna? O trabalho e as condições-
— Sim! Claro!
Eu nem deixei que ela terminasse a frase. Isso era tudo aquilo que eu esperava
por tanto tempo. Uma lágrima escorreu no meu rosto. Conhecer a terra dos meus
antepassados sempre foi o meu maior sonho. Tudo o que eu tinha ouvido quando
era pequena sobre lugares encantados que guardavam milhares de anos de
histórias. Eu não me importava a que condições teria que me submeter, ou para
que cidade eu estava indo, a única coisa que interessava era que, finalmente, eu
estava partindo para aquela aventura.
— Você não gostaria de pensar nisso por alguns dias?
O rosto preocupado da irmã chamou a minha atenção.
Joaquim estava sentado nos observando e aguardando a minha resposta. Por
sorte, eu estava pronta para ela.
— De forma alguma, irmã Benedetta, eu não preciso pensar. Eu vou. Estarei
pronta para ir quando a senhora quiser. Agradeço-lhe de coração por pensar em
mim.
Nunca tinha escutado tanta alegria na minha voz. Quando ela me respondeu, o
seu rosto apresentava uma expressão pensativa.
— Para minhas irmãs na Itália, ainda não relatei a triste verdade de ter que
satisfazê-las com somente uma pessoa, não podemos enviar mais moças.
Pensamos em você, porque a tristeza que você expressou pela viagem das outras
duas jovens não nos passou despercebida.
Sua voz se suavizou quando ela pronunciou a última frase.
— É por isso que me lembrei de pedir ao Joaquim para estar presente hoje
conosco. Ele é o nosso principal contato com esta comunidade e nos ajudou
gentilmente com as questões burocráticas necessárias para a realização da
viagem de Fernanda e Ellen. Ele atualmente trabalha na polícia local, em Santa
Rosa e inspira toda a minha confiança, porque já morou aqui.
— Assim que recebi o telefonema da comunidade na Itália, liguei e pedi sua
opinião sobre o assunto. Ele já havia sugerido o seu nome para a viagem anterior
e então achei que você seria a pessoa que reúne mais qualidades para essa nova
aventura.
Enquanto falava, Joaquim abriu uma mochila que estava no chão ao lado dele
e puxou um computador; apoiou-o na ponta da mesa, ligou-o e, enquanto
esperava, ele começou a me explicar:
— Quando a irmã Benedetta me chamou essa última vez, a comunidade já
havia entrado em contato comigo. Eu tomei a liberdade de usar algumas fotos do
trabalho deles nos campos de refugiados. A irmã Benedetta já as viu quando vim
aqui para encaminhar Fernanda e Ellen. Talvez seja melhor que você também as
veja antes de dar seu consentimento para esta viagem.
Meus olhos já estavam colados no monitor, enquanto ele me mostrava o botão
que eu tinha que apertar para continuar a visualizar as outras imagens. Olhando
para o meu rosto atônito que olhava as fotos, ele continuou:
— Eu sabia que vocês ainda não tinham a conexão com a Internet, então tive
que improvisar um pouco com as fotos. Quando estivermos em Santa Rosa,
antes da sua partida, vou mostrar-lhe o site com todas as informações sobre a
organização.
Enquanto olhava as imagens do incrível trabalho feito com aquelas pessoas
pobres, que foram para o novo país apenas com suas habilidades pessoais,
muitas vezes depois de meses de percurso, percebi o que realmente me inspirou
a embarcar nessa jornada. Foi exatamente assim que meus ancestrais imigraram
para aquela nova terra e foram recebidos por pessoas boas que os ajudaram a
construir uma nova vida. Era isso o que eu queria fazer: ajudar as pessoas menos
favorecidas a construírem uma nova vida. Obrigada Senhor por esta
oportunidade!
Pelo canto dos meus olhos, vi que Joaquim havia aproveitado enquanto eu via
as fotos, para retirar um envelope espesso, cor creme, da mochila e entregá-lo à
irmã Benedetta.
— Aqui está uma parte das doações vindas da Itália.
Enquanto a irmã Benedetta pegava o envelope e colocava-o em um pequeno
baú de madeira, notei a expressão de seu rosto se relaxar. Espero que esse
dinheiro seja suficiente para bancar as despesas da comunidade por um longo
período.
Vendo no seu rosto uma expressão tranquila, eu sabia que já havia feito a
escolha certa.
A reunião terminou após a explicação de Joaquim sobre o processo de viagem.
Eu escutei apenas a metade, a outra metade de mim sonhava com as velhas
histórias e contos que eu tinha ouvido quando era criança.
4. O encontro

Thomas
Eles me deixaram ir embora depois de recolher as poucas informações que
tinha da jovem, mas quando viram que eu não iria para casa sem ter informações
do seu estado de saúde, um médico com a expressão cansada veio até mim, na
sala de espera.
— Conseguimos estabilizá-la, mas a situação continua crítica. Essas primeiras
vinte e quatro horas serão decisivas para a paciente. Você pode deixar o hospital,
porque não saberemos nada até amanhã de manhã.
Com uma estranha expressão no seu rosto que parecia gratidão, ele
acrescentou: — Você agiu bem, oficial Graff. Você fez o seu melhor em
circunstâncias difíceis. Agora vá para casa, nós temos o seu número de telefone,
assim que tivermos mais informações, entraremos em contato. Vamos torcer para
não ter que chamá-lo por outro motivo.
Com essas palavras ele se despediu.
Eu tinha que chegar à delegacia de polícia o mais rápido possível para
fornecer informações sobre o que tinha acontecido para o capitão, mas antes
deveria ir para casa tomar banho e lavar o sangue que cobria o meu peito. Era
importante começar a investigar para descobrir o que poderia ter acontecido, mas
não tinha informações suficientes.
Quando Adam voltou para me buscar, eu tinha um plano claro na minha
cabeça. Quando cheguei em casa, deixei-o na sala, enquanto procurava
informações sobre outras jovens desaparecidas.
Tomei um banho rápido. Por sorte, não tinha ninguém em casa quando
chegamos, para precisarmos dar explicações, porque não havia tempo, nem
desejava naquele momento.
Decidimos juntos retornar ao local da descoberta da jovem. Depois de
procurar novamente em toda a área, encontrei-me na mesma colina de onde os
dois homens tinham lançado a garota.
Eu via o rio correndo rapidamente abaixo de mim e escutava o barulho que
vinha da cachoeira enquanto imaginava o desespero daquela jovem sentindo-se
jogada no vazio. Quem são os humanos capazes de um ato tão terrível contra
uma pessoa indefesa? Por quê?
Um único objeto anômalo foi encontrado perto de uma pequena caverna
formada pela queda de dois grandes pinheiros, onde os homens haviam
surpreendido a jovem. Poucos momentos depois, ele estava no bolso do meu
uniforme da polícia, dentro de um pequeno envelope de plástico. Era uma
pulseira com uma delicada medalhinha.
Durante o resto do dia, depois de sentar-me no escritório da delegacia entre
telefonemas, buscas e conversações com meus colegas de trabalho, não descobri
nenhuma novidade.
A repreensão do capitão chegou rápida. Ele estava bravo comigo porque,
depois de chamar Adam, não liguei imediatamente para pedir os reforços para
inspecionar a área. Ele estava certo, porque eu não levei em consideração o
procedimento básico que deve ser iniciado em situações de emergência. Isso
ocorreu em função da grande pressão psicológica sobre mim, naquele momento.
Com a minha falta de reação rápida, dei aos bandidos bastante tempo para
escaparem. Quem são eles?
Sem a informação que só essa garota poderia nos dar, não tínhamos muita
esperança de encontrá-los. Quando organizei a pouca informação que tinha do
novo caso, percebi que era a primeira vez que me acontecia uma coisa desse
tipo, desde que eu trabalhava na polícia. Quanto mais eu refletia sobre a
estranheza dos fatos, mais eu me convencia de que era um possível caso de
sequestro de pessoa.
No final do dia, o capitão me encontrou, ainda sentado em frente ao
computador, e me disse para ir para casa e recuperar as forças porque momentos
difíceis nos esperavam. Ele me confirmou que, apesar de ter agido de forma
errada, eu daria continuidade à investigação. Assegurou-me que isso era apenas
por pura sorte, pois eu era o único a ter uma conexão direta com a vítima.

***

Passei a noite girando na cama com pesadelos e, ao amanhecer, liguei para o


hospital. Depois de fornecer minha identificação para a enfermeira responsável
pela UTI, ela começou, com uma voz monótona, a ler as informações deixadas
pelo médico.
— Jovem, sexo feminino de pele clara, cerca de vinte anos, chegou no dia 20
de julho às 8 horas e 10 minutos, inconsciente. Traumatismo craniano com
edema cerebral. Fratura exposta da ulna, altura do cotovelo. Múltiplas fraturas
do rádio. Lacerações e abrasões profundas na maior parte do corpo. Costelas
terceira e quarta, lado direito, trincadas. Nos relatórios de exames de sangue há
vestígios de anestésico veterinário dissociativo -
Antes dela continuar a ler, eu a interrompi.
— O quê? Anestésico veterinário? Misericórdia, deram à menina um
anestésico veterinário! Mas que bastardos!
— Posso ir agora de manhã ao hospital, para falar com o médico? A jovem
acordou? Vocês já pegaram as impressões digitais dela? Fizeram algumas fotos
do seu rosto para reconhecimento facial?
A enfermeira não hesitou em interromper a minha série de perguntas:
— Oficial Graff. Eu ainda estava lendo as informações sobre a paciente. Se o
senhor me deixar continuar, eu lhe darei as respostas às suas perguntas.
Ela disse, com um tom de voz mais alto, para me fazer perceber que a tinha
interrompido implacavelmente. No entanto, ela ainda manteve a calma, um dote
atribuído aos anos passados no setor de emergência, e assim ela continuou:
— No que diz respeito à anestesia veterinária, ainda não sabemos exatamente
o que é. Descobriremos maiores detalhes na segunda-feira porque hoje o
laboratório de análises clínicas está fechado. O médico disse que é
provavelmente uma fenotiazina anestésica, usada para sedar animais pequenos e
grandes. O senhor também me perguntou se fizemos fotos. Sim, já estão aqui
junto com as impressões digitais. O material está esperando pelo senhor.
Antes que eu pudesse interrompê-la outra vez, ela disse:
— O médico terminou o relatório escrevendo que a paciente não recuperou a
consciência, de modo que a equipe médica decidiu mantê-la em coma
farmacológico na UTI, pelo menos por alguns dias. Você tem permissão para
fazer as perguntas pessoalmente à jovem quando ela recuperar a consciência. Eu
recordo o senhor de que as condições da paciente ainda são consideradas críticas
devido ao edema cerebral. Se o senhor quiser pegar as fotos e as impressões
digitais pode vir, mas a jovem não pode se comunicar. O senhor ainda precisa de
alguma informação? Caso contrário, como última coisa, eu lhe informo os
horários da UTI.
— Sim… isto é, não. Tudo bem, por enquanto.
Não querendo incomodá-la ainda mais, anotei os horários e agradeci pela
atenção. Eu não tinha todas as informações, mas nem sequer os médicos as
tinham.
Aproveitei o tempo para terminar meu café da manhã enquanto liguei para
Adam, para agradecê-lo novamente e saber se havia alguma notícia sobre a
pesquisa dos criminais. Depois saí da cozinha para procurar alguém da minha
família.
Todos nós moramos juntos na fazenda que meu avô paterno comprou no final
do século XIX. Uma boa área de solo fértil que minha família vinha cultivando
há gerações.
Após a morte de meu pai, há alguns anos, minha mãe, minha irmã e eu
decidimos alugar metade da nossa fazenda para um vizinho, também fazendeiro.
Com o resto do terreno, realizamos o sonho da minha irmã: construímos um
haras, uma espécie de pensão de luxo para o cuidado e a manutenção de cavalos.
Na Suíça, muitas pessoas possuíam esses animais, mas não dispunham de um
local para deixá-los. Alguns não tinham tempo suficiente para cuidar deles. A
minha família se ocupava disso. Com um grande galpão remodelado para
acomodar estábulos e uma grande área ao ar livre para exercício e pasto,
encontramos uma boa ocupação para minha mãe e minha irmã, que era
veterinária. Dessa forma, ela atuava em sua área de conhecimento e, ao mesmo
tempo, mantinha a propriedade das terras pertencentes aos nossos antepassados.
Pouco tempo depois, renovamos e dividimos a casa da fazenda para que
pudéssemos obter três habitações independentes, mas, perto umas das outras.
Cada um de nós vivia na sua própria casa, mas com os benefícios de vivermos
próximos à família.
A situação era muito conveniente para mim. Eu tinha minha casa e, a uma
pequena distância, minha mãe e minha irmã, com o marido. Eles me ajudavam a
cuidar de Mia, minha filha pequena e da minha cachorra.
— Bom dia Thom.
Minha mãe me cumprimentou, com uma expressão preocupada em seu rosto,
quando saiu do galpão com Betsy ao seu lado.
— Como está a garota que você encontrou ontem? Espero que bem.
Minha mãe era uma pessoa muito vivaz. Com quase sessenta anos ainda
cavalgando e adestrando cavalos de uma maneira singular, com a sua figura
esbelta e a sua graça
— Oi mã, obrigado pelo bichermusli que você me deixou para o café da
manhã.
Agradeci-lhe com um beijo e acariciei Betsy. Caminhando juntos para casa,
comecei a dar a pouca informação que eu tinha sobre a misteriosa garota.
Eu procurava ouvir a voz da minha filha quando minha mãe me lembrou que
minha irmã tinha ido visitar uma vaca doente em uma fazenda nas proximidades
e tinha levado junto a pequena Mia. Eu vou ver a minha pequenina depois.
— Depois de ir ao hospital, irei à delegacia para me encontrar com a equipe e
decidir como proceder. Não gosto dessa situação, de jeito nenhum. Entraremos
em contato com a delegacia nas vizinhas Alemanha e Áustria e enviaremos fotos
e as impressões digitais da jovem. Esperamos que alguém a reconheça ou esteja
procurando por ela. Eu voltarei para casa mais tarde, te falo depois a que horas.
Eu tinha que correr, porque sábado estávamos trabalhando na delegacia
somente até as 13 horas. Mais tarde, estávamos disponíveis somente para
emergências.
Com essas palavras, eu me despedi e acariciei Betsy, que ficaria em casa com
minha família hoje. Outro dos seus passatempos favoritos.

***

O sábado era um dia agitado no hospital.


A enfermeira do turno, na entrada principal, rapidamente, entregou-me um
envelope enquanto atendia o telefone e, ao mesmo tempo, escrevia dados em
uma pasta. No topo do envelope encontrei um pequeno post-it com meu
sobrenome. Agradeci e saí o mais rápido possível daquele lugar.
Entrei no carro e abri o envelope. Um arrepio percorreu minhas costas, e
fiquei petrificado ao ver uma folha em que havia a foto do rosto da jovem,
quando ela chegou ao hospital. Eu não sabia se o nosso técnico de computador
seria capaz de reconstruir os traços da moça, sem feridas, para enviá-lo para
outros escritórios policiais nas fronteiras. O lado direito estava parcialmente
intacto com pequenas escoriações e contusões acentuadas. O lado esquerdo
estava completamente machucado. Ela não tinha perdido a visão por alguns
milímetros, pensei, enquanto observava a ferida que da sua testa cobria toda a
lateral até o queixo sobrepondo-se ao arco-íris violeta formado pelas contusões.
O nariz permanecia milagrosamente ileso, apenas arranhado. Os lábios não
tiveram a mesma sorte. Eu não quero ver as outras fotografias.
Respirei profundo, guardei rapidamente as outras fotos para encontrar, na
penúltima folha as suas impressões digitais, perfeitamente colocadas em um
cartão anexado aos papéis. Ótimo trabalho das enfermeiras. Na última folha,
encontrei um resumo da condição da paciente e também uma descrição precisa
das características do rosto e da roupa que usava. Sua idade presumida também
foi escrita junto com a nota do médico, que não reconheceu sinais especiais,
como cicatrizes ou tatuagens óbvias. Embaixo, a data e a assinatura do médico.
Nada que realmente possa nos ajudar a identificá-la.
Eu tenho um quebra-cabeça em minhas mãos.
Voltei à delegacia e, depois de uma reunião malsucedida com a equipe e com
o especialista em informática, que me causou uma tremenda dor de cabeça,
decidi ir para casa e pegar Mia. Não trabalharíamos mais, porque era início da
tarde. Eu a levaria para a praia, às margens do rio, perto da nossa cidade, onde à
tarde teríamos uma pequena festa para as crianças.
Eu estava com sorte porque neste fim de semana outro policial estaria de
plantão; eu poderia passar a tarde desfrutando do sol e brincando com minha
filha.
Esta era outra vantagem de trabalhar no corpo policial de uma pequena
cidade. À noite, nos feriados e domingos trabalhávamos em turnos. As
delegacias permaneciam fechadas, e os moradores locais sabiam que, em caso de
emergência, eles precisariam chamar o número gratuito.
Em seguida, a chamada seria encaminhada para o telefone do policial de
plantão. A única coisa que deveríamos lembrar era de ter os telefones pessoais
desocupados e com bateria suficiente, em caso de o policial precisar de reforços.
Antes de voltar para casa, parei para comer um pão com bratwurst, a
tradicional linguiça, no pequeno grill que montavam na praça da nossa cidade,
nos belos dias de primavera e verão. Para nossa conveniência, ele fazia esquina
com a estação de polícia.
Enquanto retornava dirigindo, mudei para a pista da direita, com a intenção de
mais tarde pegar a saída que me levaria para casa. De repente, no ângulo dos
meus olhos, vi a placa do hospital.
Com uma estranha inquietação, convencido de que eu ainda tinha bastante
tempo para a festa, decidi arriscar e passar rapidamente para ver a jovem. A
estranha ansiedade que eu sentia era diferente daquela que, quando eu precisava
ir ao hospital e poderia encontrar a doutora Werni, a mãe de Mia. Eu só estou
preocupado com o bem-estar da jovem.
Estacionei o carro sob uma bela castanheira, peguei o meu tablet e me
encaminhei em direção à entrada do hospital, porque sabia que eu estava dentro
do horário de visitas.
Na sala de permissão para entrar na UTI, eles me pediram para mostrar um
documento. Não era um costume comum, mas eu mesmo tinha solicitado no dia
anterior, como precaução de segurança. Ninguém vai levá-la de volta.
Cheguei ao andar indicado e encontrei-me em frente à enfermaria e uma sala
de espera.
Com o documento na mão, fui até o balcão e esperei que a jovem enfermeira
acabasse de falar ao telefone. Havia um intenso movimento entre enfermeiros,
médicos e visitantes que esperavam no corredor pela sua vez para visitar.
— Boa tarde, oficial Graff.
Disse ela sorrindo, enquanto lia meu nome no documento e discretamente me
olhava da cabeça aos pés.
— Como posso ajudá-lo?
Eu sei... o uniforme tem esse efeito nas mulheres.
— Boa tarde. Ontem de manhã, trouxe uma jovem para ser atendida e me
disseram que a paciente está neste andar. Por favor, eu posso obter mais
informações, a respeito da moça?
— Ah... você que encontrou a jovem no floresta? Uma tristeza!
Com uma expressão que rapidamente se transformou em séria, ela continuou:
— Espere um minuto, enquanto pego os registros médicos. Você tem sorte,
porque o Dr. Haff está terminando o seu turno e eu vou perguntar se ele pode
falar com você. Espere por mim aqui, por favor.
Com uma certa euforia abri meu tablet e me preparei para qualquer nova
informação.
Ela voltou, falando com um médico que tinha algumas pastas cor pastel na
mão e, quando se sentou à mesa, ele cumprimentou-me, abrindo uma delas.
— Boa tarde, oficial. Infelizmente não temos novas informações. Eu li aqui
que o senhor nos chamou hoje de manhã e já obteve as informações deixadas
pelo médico de emergência, doutor Neumann, o primeiro a examinar a paciente.
Nós não chamamos o senhor, porque a equipe ainda não decidiu acordá-la. O
coma induzido acaba por ser uma terapia eficaz em casos de traumatismo
craniano. Posso adicionar como novas informações que a paciente passou por
uma cirurgia para fixar a ulna, esse osso do antebraço.
Enquanto ele estava falando comigo, mostrava a parte baixa do seu antebraço.
— A fratura era bastante complexa e o colega ortopedista optou pela
utilização de fixadores externos. Se você decidir ver a paciente não se assuste,
porque a visão estética não é agradável. Após a recuperação da parte danificada,
no entanto, serão removidos.
— A jovem tem também o pulso quebrado, costelas trincadas e algumas das
suas escoriações são profundas e correm o risco de infectar. Nossa maior
preocupação é com o edema causado pelo traumatismo craniano. Felizmente na
tomografia computadorizada que fizemos ontem, ele foi diagnosticado como
sendo menos extenso do que tínhamos pensado antes. E isso pode ser
considerado uma boa notícia. Vamos também acrescentar o fato de que ela
respira sem auxílio do respirador artificial e que o exame de sangue deu negativo
para qualquer outro tipo de droga, somente o sedativo veterinário. Isso sem dizer
que a paciente não sofreu qualquer fratura facial. As escoriações faciais, embora
visualmente desagradáveis, podem ser consideradas superficiais e, com o
tratamento correto, vão deixar poucas cicatrizes. Até seus dentes estão
milagrosamente intactos. Temos um incisivo superior e um inferior que estão
instáveis, mas eles devem se firmar novamente.
Com um pequeno aceno de cabeça, ele continuou lendo as anotações da pasta.
— Para a próxima semana, sempre que a situação continuar estável,
realizaremos uma nova tomografia e, se os resultados forem satisfatórios,
gradualmente diminuiremos a medicação que está induzindo o coma. A partir
daí, cruzaremos os dedos e esperaremos que a paciente acorde naturalmente. Se
seu cérebro não sofreu mais danos, ela tem boas chances de acordar. Percebemos
pela sua constituição física, que ela é uma jovem saudável e bem nutrida.
Com uma expressão muito mais séria, ele acrescentou:
— Continuando o procedimento de exames em tais casos, descobrimos que a
paciente não possui sinais externos nos pulsos ou nos tornozelos. Como você
sabe, estes são frequentes em casos de sequestro por um longo período de tempo.
Isso quer dizer que, se a jovem foi sequestrada, ela não foi mantida em cativeiro
por muito tempo. Para concluir, posso afirmar que a paciente não sofreu
nenhuma violência sexual. Na verdade, ela nunca teve relações sexuais, pelo
menos não completa.
— Por uma questão de tranquilidade e privacidade da paciente, a equipe
decidiu deixá-la sozinha em um quarto, quando for removida da UTI.
Eu tinha um estranho barulho nos meus ouvidos, como um zumbido, enquanto
ele me explicava os últimos fatos. Como alguém pode pensar em aprisionar
outro ser humano? Algemar? Violência sexual? Senti a tensão que escorria
embaixo da minha pele. Pegar uma menina indefesa.... Não consigo entender.
— Você quer vê-la?
A pergunta do médico trouxe-me para o presente. Depois que acenei firme a
minha decisão, ele continuou:
— Nós a colocamos na última cama do quarto 204, este aqui à direita. Sua
cama é aquela perto da janela. Eu pedirei que você fale com ela. Obviamente, ela
não responderá, mas em casos como esse, descobrimos que as palavras
realmente fazem milagres. E como a paciente não tem mais ninguém...
Ele deixou a frase em suspenso com uma expressão triste. Olhando para a
pasta, para ver se não havia esquecido alguma informação, o médico fechou-a e
me olhou à espera de perguntas.
Agradeci, fechei o tablet sem praticamente escrever uma palavra e dirigi-me
para o quarto. A voz do médico ecoou atrás dos meus ombros.
— Oficial Graff, uma última coisa. Espero realmente que aqueles que
infligiram dor a essa pobre jovem sejam capturados e exemplarmente punidos.
Sem olhar para trás, eu respondi:
— Eu também, doutor. Eu também.
Em frente à porta, apoiei o tablet e esterilizei minhas mãos com o desinfetante
que havia sido especialmente colocado lá. Minhas mãos tremiam. Enquanto
respirava fundo, entrei.
O mais silenciosamente possível, fechei a porta atrás de mim. A primeira coisa
que notei foi o grande quarto. Depois disso, o ruído das diferentes máquinas e o
cheiro forte do produto usado para desinfecção. Eu via várias cortinas, algumas
fechadas e outras abertas, que delimitavam as camas. Minha mente estava
focalizada na última cama e caminhei decidido naquela direção. Movendo
cautelosamente a cortina, fiquei lá sem saber o que fazer. Eu não pensei que a
veria assim. Na verdade, não pensei em nada naquele momento. Fiquei parado
ali em pé ao lado do leito com ela na frente dos meus olhos. Deus, ela é tão
jovem.
Ela estava deitada de costas e, não fosse pelo sinal constante dos aparelhos
que a rodeavam, eu poderia jurar que ela estava morta. Qual parte do rosto dela
está menos danificada?
Meus pés me moveram para a frente, ecoando no silêncio.
Ao pé da cama, eu vi todo o seu rosto claramente, depois do que tinha
acontecido com ela. A raiva que me investiu naquele momento era indescritível.
Senti o calor subir às minhas costas e eu tive que fazer algumas torções com a
cabeça para a direita e esquerda para abrandar um pouco aquela fúria. Se eu
conseguisse colocar minhas mãos nos indivíduos que fizeram isso, eu não seria
responsável pelas minhas ações.
O lado esquerdo do rosto, que a mim parecia mais danificado, tinha ainda
mais escoriações e hematomas do que apareciam nas fotografias. O olho estava
tão inchado que parecia querer saltar da pálpebra fechada. As feridas deste lado
eram muito mais profundas, pensei com tristeza. Seus lábios estavam
praticamente cobertos de crostas sangrentas.
Seu cabelo tinha sido puxado para trás e caía em ondas sobre o travesseiro e
os ombros.
O braço que sofreu a fratura tinha uma cor de cera e estava inclinado sobre
uma almofada ao longo do seu corpo. Estava encaixado em uma malha metálica
que o circundava do pulso ao cotovelo e da pele saíam fios, ligados a essa
estrutura com pequenos parafusos. Parecia que ela tinha um pedaço de braço tipo
Frankenstein. É realmente impressionante.
Um barulho monótono vinha do monitor que controlava os seus batimentos
cardíacos, junto com outras máquinas que controlavam seus sinais vitais. O
cobertor estava puxado até a cintura e, no seu pescoço, eu podia ver tubos saindo
da camisola rosa do hospital.
Uma cânula emergia do outro lado, nela, a mão se apoiava sobre seus seios.
Outras partes dos seus braços estavam enfaixadas, provavelmente pelas feridas
que a enfermeira me havia dito.
Olhando ao redor do pequeno cubículo, onde estava sua cama, notei uma
janela com uma bela vista do bosque adjacente. Pelo menos, eles a colocaram no
melhor lugar desta sala. Abaixo da janela, havia um carrinho com uma pasta
apoiada sobre ele. Eu estava indeciso entre ficar de pé ou me sentar em uma
pequena cadeira de plástico que estava perto da cabeceira da cama. Optei pela
cadeira que me dava a chance de olhar melhor para ela.
Apoiei o tablet no chão e sentei-me com o corpo inclinado para frente, com os
cotovelos apoiados nas coxas e a cabeça entre as mãos. Permaneci olhando entre
a jovem e o chão, deixando meus pensamentos voarem. Certamente ela possuía
características europeias, mas havia algo mais que eu não conseguia identificar.
Ela não tem traços do Leste europeu, mas talvez seja russa. Ela possuía pele
clara e seus cabelos eram castanhos. Comecei a falar com ela quase num
sussurro, como tinha feito na floresta.
— Olá... sou Thomas, o policial que te ajudou ontem. Passei para saber como
você está e te fazer algumas perguntas. A enfermeira não me disse muito, parece
que você não gosta muito de falar.
Um leve sorriso surgiu nos meus lábios.
Eu tinha que interrogá-la, mas não dependia de mim quando isso aconteceria.
— Nós temos que descobrir o que aconteceu com você. É a primeira vez que
encontro alguém em perigo na floresta. Você sabia que eu não vivo longe de lá?
Uma coincidência incrível encontrar você. Você deve agradecer à Betsy, minha
cachorra e companheira de aventuras. Graças à sua audição incrível, nós te
recuperamos.
À medida que as lembranças brutais voltavam à minha cabeça, várias
hipóteses surgiam. Por que ela estava lá? Talvez um caso de tráfico humano
tenha terminado mal? Poderia ter acontecido que ela estava fugindo até a
fronteira com a Alemanha, a poucos quilômetros a oeste, com o propósito de
escapar daqueles dois homens e quem sabe quantos outros. Quantas outras
mulheres poderiam estar com ela?
— O que aconteceu com você? Por favor, acorde e me ajude.
Eu repetia a frase mais para mim do que para ela.
Sentindo-me ainda mais inquieto, decidi voltar para casa. Era quase final do
dia e a festa na praia perto do rio não duraria muito.
Eles tinham meu número no caso de ela acordar, mas já havia decidido que eu
iria continuar a telefonar. Levantando-me sem fazer barulho, preparei-me para ir
embora.
— Volto em breve. Descanse e aproveite para retomar as forças. Eu acho que
teremos muito para descobrir a seu respeito.
Ao fechar a cortina, tive a impressão de ouvir um murmúrio.
Impossível!
Esperançoso, a reabri esperando que ela pudesse falar comigo, mas... depois...
silêncio.
5. O hospital

Anna
Este lugar... onde eu estou... uma voz me diz... tudo depende de mim.... estou
tão cansada.

***

Algo me perturbava. Um barulho... um zumbido. Quanto mais eu queria


silêncio, mais o barulho aumentava, como um mosquito irritante que não cessa
seu voo.
Vá embora ... deixe-me em paz.
— Olá... jovem. Você me ouve?... Não desista. Volte para nós.
Agora, isso. Não é a voz que eu quero ouvir. Eu quero aquela voz linda, forte,
segura. Ele me trouxe à segurança... mas, do quê ?
Os ruídos que me rodeavam ganhavam vida. Além do zumbido irritante, uma
voz de mulher falava alegremente.
O que ela está me dizendo? Que devo acordar? Mas é hoje o feriado? Temos
que pegar todas as crianças e, com as outras irmãs, precisamos ir embora.
Força, Anna. Levante-se! Minha cabeça pulsava, tinha que respirar devagar,
porque uma dor no meu peito estava me matando.
Oh, Deus! Será que estou com pneumonia como a irmã Gislene?
Abri os olhos muito devagar. Por que tudo está tão desfocado? Eu sinto dores
em todo o corpo! Fechei-os rapidamente. O zumbido em torno de mim
aumentava, um ruído contínuo de máquinas, que ficava cada vez mais forte e
rápido.
— Agora respire fundo e tente acalmar-se. Está tudo bem. Você está no
hospital e já chamei o médico. Se você percebeu a minha presença, aperte a
minha mão. Ela está aqui, perto da sua.
Senti uma mão quente acariciando a minha palma suavemente. Concentrei as
poucas forças que tinha e respondi, movendo meus dedos na sua mão.
— Ótimo, senhorita. Isso é suficiente neste momento. Estou muito feliz que
você esteja acordada, que está aqui com a gente. Eu vou fechar a cortina, assim a
luz não vai incomodá-la... pronto! Agora vamos ver se você pode abrir os olhos.
— Boa tarde, senhorita. Sou o Dr. Feldbuch. A enfermeira informou-me que
você acabou de acordar. Você me ouve?
Senti a pressão cada vez mais insistente de uma mão na minha. Será que eu
tenho que responder? Eu só quero dormir. Por que toda essa bagunça? Tenho
pneumonia, não? É por isso que estou no hospital.
— Força, jovem! Pressione fortemente minha mão.... Você me escuta?
Mas que miséria. Eu ouço você!
Talvez se pressionar a mão dele, esse chato vai embora. Pressionei-a
ligeiramente.
— Muito bom. Agora vejamos esses olhos. Abra-os, se você conseguir.
Vamos lá! Você está indo muito bem!
Eu estava tão cansada e desorientada que eu teria concordado com qualquer
coisa que ele tivesse proposto, desde que me deixasse em paz. Muito lentamente,
tentei abri-los novamente. O quarto estava no crepúsculo e podia ver os
movimentos de algumas silhuetas desfocadas ao meu redor. Não conseguia abrir
meu olho direito, então levantei minha mão para tocá-lo e entender o porquê.
Ahiiiii... que dor! Um gemido saiu da minha boca. A dor na mão subiu
fulminante pelo braço, agora meus olhos estavam lacrimejando.
Mas por que essas pessoas infelizes não me deixam em paz!
— Ouça-me. Você sofreu um acidente e está no hospital. Não mova o braço
direito. Nós o imobilizamos com uma tala especial. Não se preocupe. Vou
explicar tudo enquanto te examino. Força, me ajuda! Como você se chama?
Acidente... quando?
— Anna, eu sou Anna. O que aconteceu comigo? Me dói... todo o corpo. Essa
não é a minha voz. Não a reconheço. Fraca, cansada… Minha mente estava
embaçada, o único olho que eu poderia abrir, ou pelo menos tentar, não
conseguia mantê-lo aberto por mais de poucos segundos e não era capaz de
entender bem o que as pessoas diziam. As vozes iam e vinham como se
estivessem ecoando em um túnel. Por enquanto, queria apenas tranquilidade,
queria dormir. Minha barriga estava fazendo barulho e doía. Será que era fome?
Enquanto o doutor estava me examinando, perguntando-me onde eu sentia
mais dor e desligando um dos aparelhos com barulho irritante, ele me contou
como cheguei ali: o resgate, a chegada ao hospital, a droga no meu sangue, a
cirurgia de braço, o diagnóstico preliminar. Sua voz tranquila me repetia que eu
tinha uma sorte incrível, dada à altura da minha queda.
Ele me descreveu uma colina... como eu cheguei lá? Eu caí? Drogas? Não
entendo nada...
Ele repetia que estava indo muito bem e que estava protegida ali no hospital.
Muito bem... certamente. Como não! Protegida?!
Enquanto o médico me contava sobre isso, imagens confusas e desfocadas
alternavam-se na minha cabeça, comecei a conectar fragmentos de recordações,
à medida em que ele falava comigo, meu corpo começou a tremer, estava
tentando não chorar. Por que minhas memórias estão tão confusas? O que é
verdade daquilo que me vem à mente?
A enfermeira percebeu minha tensão e as lágrimas que caíam no meu rosto,
assim, ela começou a falar-me suavemente, com uma voz baixa, quase um
sussurro, enquanto o médico continuava a examinar-me. Ela era boa na sua
profissão e sabia que, naquele momento, eu precisava de uma distração.
Informou que eles me colocariam em um quarto mais tranquilo e que, nos
próximos dias, eu iria receber visitas de policiais para esclarecer o grave
acidente.
Era impossível não pensar ou não me preocupar. Assim que eu fechava os
olhos, flashes vinham à minha frente.
Se a polícia está envolvida, então tudo o que minha mente me mostra deve ser
real. Certo? Eu tenho um pressentimento horrível.
Não conseguia conectar a sequência de imagens que vinham à minha cabeça e
isso me perturbava ainda mais. O médico saiu do quarto para pegar outra pasta e,
quando voltou, informou que eu estava em estado de choque e que, devido à
grande dor que eu expressava, ele continuaria me dando uma leve dose de
sedativos.
— Este botão…
Ele me mostrou um pequeno botão vermelho que apoiou perto da minha
barriga, ao lado da minha mão.
— Se você precisar de ajuda é só apertar. Por qualquer coisa, que eu te
prometo que alguém virá, imediatamente, sempre.
Quando ele pegou as pastas para ir embora, me disse:
— Por hoje é tudo. Descansa, que nos veremos em breve.
Agradeci a ele no meu pensamento, porque meus olhos já se fechavam.
Naquele momento, eu não sabia se queria me lembrar de tudo, ou não me
lembrar de nada.
As enfermeiras me perguntaram se havia alguém para entrar em contato?
Quem eu chamaria? Irmã Benedetta? Joaquim? Como eles poderiam me
ajudar? Não tinha ninguém para entrar em contato. Eu estava sozinha naquele
país e sozinha resolveria essa situação.
***

Onde estou? No hospital. Há quanto tempo?


Imagens aterrorizantes se alternavam na minha cabeça. Não quero mais fechar
os olhos.
Abri-os e vi o pequeno botão vermelho perto da minha mão, tentei pressioná-
lo. Nenhum resultado. Tentei novamente. Sentia a sensação que precede as
lágrimas nos meus olhos, e, para tentar distrair-me, olhei ao redor e percebi que
eu estava em um lugar diferente, em um quarto diferente. Uma luz vermelha em
cima da minha cama estava acesa.
Parecia que meu corpo estava completamente enfaixado, como uma múmia.
Sentia a pele do rosto enrugada em algumas partes, enquanto em outras, ela
repuxava. Tinha medo de me tocar para entender melhor a situação. Nos meus
lábios sentia as camadas de pele que faltavam e eu só conseguia abrir um dos
olhos. Estranho....
Via um aparelho esquisito que envolvia meu braço direito, do pulso ao
cotovelo e que me impressionava um pouco. Lembrei-me das palavras do
médico sobre uma fratura e um fixador externo. Isso é um fixador externo?
Tinha tanto medo de me mover e sentir ainda mais dor, que eu estava petrificada.
Movia devagar a cabeça e os olhos. Eu não quero sentir a dor que senti antes.
Aquela, eu me lembro bem.
Eu tentava descobrir se eu poderia mover meus dedos dos pés quando eu ouvi
alguém batendo gentilmente na porta e logo depois vi uma enfermeira com um
rosto feliz me olhando.
— Bom dia, senhorita. Eu vi que você pressionou o botão vermelho e, aqui
estou eu. Espere um momento, vou te trazer algo leve para você comer. Você
está com fome, não?
Ela não tinha ideia de quanta fome eu tinha. Parecia-me que havia se passado
anos, desde que tinha comido qualquer coisa, nem me lembrava mais quando.
Acenei um sim com a cabeça.
Quando ela voltou, trazia uma bandeja da qual dispersava um cheiro
extraordinário. Olhei para ela com gratidão e notei que era uma senhora com
uma expressão serena no rosto. Havia algo em seus olhos que me dizia que ela
era uma boa pessoa. Eu gosto dela. Assemelha-se à Irmã Lurdes.
Ela me disse para chamá-la de Brigid, enquanto empurrava na minha direção
uma pequena mesa portátil com rodas, sobre a qual ela colocou a bandeja.
— Estávamos esperando ansiosamente por sua chamada. Você dormiu alguns
dias antes de acordar pela primeira vez. Nós não te acordamos por ordem do
médico. Ele prescreveu dezoito horas de sono, depois disso, devíamos começar a
acordá-la, ou, pelo menos, tentar. Imagino que, depois de todo esse tempo
descansando, você estará com fome?
Disse-me sorrindo enquanto lentamente levantava as costas da cama com um
controle remoto, fazendo-me sentar.
— Obrigada.
Tentei responder, mas minha voz era tão fraca e rouca que ouvi somente um
sussurro estranho. Tossi na esperança de recuperá-la um pouco, mas minha
respiração bloqueou-se ao meio. Senti uma dor tão forte, que me inclinei para
frente, apoiando-me na mesa e arriscando derrubá-la. Por sorte, a enfermeira
ainda estava ao meu lado, rapidamente, me ajudou, enquanto eu tentava me
recuperar.
— Faça respiros curtos, com calma.
Brigid acrescentou:
— Suas costelas ainda estão sensíveis.
Tenho também alguma coisa nas costelas. Santo Cristo! Notando meu rosto
angustiado, ela disse:
— Você sabe quanta sorte você teve? Você se agarrou àquelas árvores como
uma macaquinha, e funcionou. Você só quebrou seu braço e pulso em uma queda
de uma altura considerável. Foi o que me disseram. Todo mundo no hospital fala
sobre a sorte que você teve. Você é a nossa paciente mais famosa!
Abaixei minha cabeça para esconder meu rosto, porque estava com vergonha
de seus elogios, mas agradeci-lhe.
— Obrigada novamente.
Eu disse enquanto pensava quando foi a última vez que eu tinha falado. Há
quantos dias estou aqui?
Brigid me retirou o tubo, ao lado do soro, para que eu pudesse pegar a colher
com mais liberdade e, enquanto eu comia como um lobo faminto, ela continuava
a sussurrar para si mesma enquanto pressionava os botões das máquinas em
torno de mim, tomando nota em uma pasta rosa.
Eu terminei minhas últimas colheradas com olhos que já se fechavam
lentamente. A última lembrança foi a voz da enfermeira que me pedia para
pressionar o botão vermelho assim que acordasse porque elas me ajudariam a
tomar banho. Eu queria fazer tantas perguntas, mas o cansaço era maior. Nada
mais importava. A escuridão...
***

Em outro momento, ouvi uma voz, semelhante àquela de quem me ajudou,


não as outras vozes, zangadas na floresta. Ele me contava coisas. O que me
impressionou foi o tom gentil, mas preocupado, com o qual ele me falou. Eu
queria tranquilizá-lo, respondendo algumas de suas perguntas, mas não
conseguia. Meu cérebro e minha boca não coordenavam entre eles, os meus
movimentos, naqueles dias. Eu tinha certeza de que, depois de um esforço que
me parecia sobre-humano, eu consegui dizer-lhe que o percebia, que minha alma
e meu coração o ouviam.

***

De repente, lembrei que tinha acordado com tanta sede e apertei o botão. Elas
me trouxeram algo para beber enquanto uma voz doce me sussurrou algumas
palavras. Depois sentia as faixas serem trocadas e uma esponja quente, banhando
meu corpo. Alguém disse que talvez fosse necessário cortar partes do meu
cabelo, porque havia embaraçado muito. Eu ainda estava meio adormecida, mas
fiz o meu melhor para cooperar, porque não queria que meus cabelos fossem
cortados. Elas me deram comida e caí de volta em um sono profundo.

***

Naquele dia, quando acordei, sentia-me melhor. Eu ainda tinha dores em todo
o corpo, mas eu me sentia mentalmente mais lúcida. Eu não queria incomodar as
enfermeiras, mas precisava ir ao banheiro. Eu vi o pequeno botão vermelho perto
da minha mão e apertei-o suavemente, enquanto eu me desculpava mentalmente
pelo incômodo. Eu não estava acostumada a ser dependente dos outros. Se eu
continuar a incomodá-las, as enfermeiras vão me jogar pela janela.
Infelizmente, eu não conseguia me mexer. Eu tinha no meu braço uma estrutura
com pedaços de metal saindo da pele, no outro lado estava presa ao soro e, sentia
fios presos ao meu tórax. Minhas costelas doíam e minha cabeça pulsava
levemente. Eu sou um desastre! Malditos... o que eles fizeram comigo? Não
consigo nem enxugar as lágrimas. Ao levantar a mão lentamente para tentar
secá-las, a enfermeira entrou com uma bandeja.
— Olá Anna.
Quando eu disse a ela que eu tinha que ir ao banheiro, ela respondeu que iria
me ajudar, porque era difícil se mover com todos os tubos e o soro que eu tinha
anexados ao meu corpo. Enquanto ela ia por detrás de mim, pegava lenços que
estavam sobre uma mesa, na entrada do quarto, onde apoiou a bandeja e passou-
os a mim.
Limpei os olhos lentamente enquanto ela tirava a sonda. Como ela sabia que
era um pouco dolorido, tentava me distrair explicando aquilo que iria fazer.
Quando ela terminou, fiz um esforço sobre-humano para sentar à beira da cama,
com a sua ajuda. Minhas pernas não se moviam e sentia muita dor. Para me
levantar, ela ofereceu o seu corpo como um suporte para que me apoiasse.
Consegui atravessar os três metros de espaço que me separavam do banheiro,
com ela me apoiando e carregando o suporte do soro.
— Depois de comer, se você se sentir bem, tiramos essas ataduras e pergunto
ao médico, se podemos remover alguns dos aparelhos que estão anexados em
você, para que você possa tomar um bom banho. Depois vamos refazer as
ataduras e ver se podemos fazer você ficar com menos decorações... você sabe,
não? É como decorarmos uma árvore de Natal. Colocamos e tiramos as
decorações. Em vez de decorações... nós, aqui no hospital, colocamos e tiramos
os aparelhos conectados aos corpos dos pacientes.
Disse ela, piscando para mim, enquanto eu a olhava de uma forma estranha
pelo seu comentário.
— Desculpe... eu sou brincalhona e tento minimizar o sofrimento das pessoas.
Se você não gosta, é só me avisar.
Usando o meu silêncio como uma aceitação, ela continuou a me ajudar a
sentar-me na cama. Depois aproximou de mim o carrinho com a bandeja que
continha a comida.
— Nós encontramos algumas roupas para você. Geralmente, recebemos boas
doações de pacientes e suas famílias, outras, trazemos nós mesmas, as
enfermeiras. Você não sabe, mas você é famosa aqui no hospital. Vamos ver
quais podem te servir. Não é confortável ter que usar essa camisola do hospital,
você não concorda? Quando você estiver vestida, também podemos dar uma
pequena caminhada pelo corredor, o que você acha? É hora de começar a se
mover.
Mas quanto fala essa enfermeira?
Eu nem tinha tido tempo de responder a primeira pergunta, e ela já havia
chegado à porta. Com a mão na maçaneta, estava prestes a sair, quando se virou
como se ela se lembrasse de alguma coisa e disse:
— Eu quase esqueci, que cabeça! Na sua pasta, em letras garrafais, está
escrito para chamar o oficial Graff assim que você estivesse acordada e lúcida.
Você sabe, não é? Essa notícia, ele está esperando há dias.
Seu sorriso crescia exageradamente, como se ela estivesse pensando em algo
muito especial.
— Ele passou aqui e ligou para pedir notícias suas várias vezes, sempre
preocupado com a sua condição de saúde. Espero que você se lembre dele. É o
belo policial que te salvou na floresta. Agora eu vou ligar para o seu anjo da
guarda. Oh Deus! O que eu não faria com ele, se ele tivesse me salvado.
Antes que eu pudesse lhe pedir algumas informações sobre esse policial
misterioso ou, pelo menos, agradecê-la, ela já estava saindo, fazendo gestos com
as mãos, de maneira teatral e me deixava com uma infinidade de perguntas.
Enquanto eu provava o que parecia ser uma deliciosa sopa de verduras e
mordendo, como eu conseguia, uma fatia de pão, estava pensando em Joaquim e
na irmã Benedetta, em todos os esforços que eles fizeram para me trazer até
aqui. A ideia da viagem, que me havia proposto Joaquim, parecia maravilhosa.
Uma verdadeira aventura! Nunca pensei em começá-la no hospital. Eu estava
ainda mais determinada a não voltar para casa, enquanto não tivesse uma
resposta para aquela que era, naquele momento, a minha única pergunta. Onde
estão as duas irmãs da minha comunidade?
Eu também tinha que lidar com tudo aquilo que tinha perdido. Documentos,
mala com minhas poucas coisas, sem mencionar o pouco dinheiro que tinha. Não
tenho mais nada! Como vou fazer agora?

***

No início da noite com a ajuda de duas enfermeiras, depois de me lavar, trocar


as ataduras e vestir aquelas que eram as minhas novas e únicas roupas, saí para
uma caminhada no corredor. O projeto acabou por ser mais difícil do que o
esperado; pelo menos para mim.
As dificuldades começaram quando eu ainda nem estava de pé, para fazer
entrar o meu braço, com a estrutura de metal, no suéter que, por sorte, era
bastante grande. A enfermeira que ajudava Brigid, aquela que falava por todos
nós e que descobri, se chamava Sarah, sugeriu que cortássemos a manga, mas
não concordei. Eu já não tinha roupas e se as poucas que recebi fossem
destruídas, o que eu usaria?
O soro foi removido pela Brigid, e, com isso, foi embora o suporte de metal
pesado, no qual as bolsas de soro estavam penduradas. Enquanto isso, ambas
riam e brincavam dizendo que estavam se livrando das minhas decorações, como
na árvore de Natal, como Sarah havia dito. No final, eu também ria timidamente,
com elas. São realmente muito boas essas duas!
Para me mover, tinha que me concentrar muito e fazer um tremendo esforço,
enquanto levava em conta a minha escassez de forças. Em cada passo, sentia
uma dor tão forte que me faltava o ar.
Eu me considerava uma mulher robusta. Eu tinha crescido em uma fazenda no
meio do nada, mas não estava preparada para isso.
Brigid me explicou que a dor era principalmente causada pelas costelas que,
para minha sorte, estavam apenas trincadas. Eu nem queria imaginar o quanto eu
sofreria se estivessem quebradas.
Com muito esforço, cheguei ao meio do corredor, desejando
desesperadamente que alguém trouxesse a minha cama onde eu estava. Apenas
em pensar em voltar para o quarto, já sentia lágrimas nos olhos. A única coisa
que me dava força para voltar ao meu quarto era a ideia de que depois, elas me
deixariam descansar.
Mas o que realmente me deu força para continuar foi a solidariedade de todas
as enfermeiras e médicos que passaram por nós, durante a nossa caminhada e
que, junto com Brigid e Sarah, me faziam elogios e me encorajavam a continuar.
Essa foi sempre a minha fonte de força.
Nunca e nunca desiste! Ela é teimosa como uma mula. Sempre dizia a irmã
Benedetta!
Finalmente, depois do que me parecia uma eternidade, consegui me deitar e
adormeci antes de poder cumprimentar ou agradecer, pela ajuda e apoio, as
minhas duas novas amigas.
6. Ele

Anna
De acordo com a psicologia, resiliência é uma palavra que indica a capacidade
de lidar positivamente com eventos traumáticos; sem alienar a própria
identidade, reorganizar a vida de forma positiva. As pessoas ‘resilientes’ são
aquelas que, em circunstâncias consideradas extremas, conseguem lidar com as
dificuldades, dando um novo ímpeto à própria existência e atingindo metas de
grande valor. Para reforçar esse conceito, vou parafrasear Nietzsche: aquilo que
não me destrói me faz mais forte.

***

Se eu pensasse que, há poucos dias, eu quase chorava para caminhar até o


meio do corredor e que, dias depois, eu poderia fazer o mesmo trecho somente
fazendo algumas caretas, eu poderia me considerar a mulher mais ‘resiliente’ do
mundo. Isso sem levar em consideração o fato de que eu estava viva. Sim! Estou
viva. Respiro, sinto e, mesmo que os pesadelos me persigam, ainda estou aqui!
Quando o ortopedista veio tirar a tala do meu braço, a primeira pergunta que
eu fiz foi se eu poderia tomar banho e lavar meu cabelo. Eles chegaram até o
meio das minhas costas e eram volumosos. As enfermeiras me disseram que
tinham encontrado várias ‘recordações’ que os meus cabelos tinham ‘recolhido’
enquanto eu rolava da encosta: galhos, terra, pedras e até alguns insetos.
Infelizmente, elas tiveram que cortar algumas partes que não conseguiram
desembaraçar. Eu ficaria com um novo corte em escadas por um tempo, elas me
contaram brincando. Adorava meus cabelos longos, mas eu me amava ainda
mais.
Eu queria tomar banho porque, nos dias anteriores quando usei o banheiro,
notei que o espelho não estava no seu lugar habitual na parede. Usando toda a
coragem que tinha, perguntei a Brigid o motivo. Tenho tanto medo de estar de
rosto deformado. Ela me acalmou dizendo que o espelho havia sido removido
porque eu ainda tinha feridas com espessas crostas e algumas contusões no meu
rosto, que poderiam me impressionar. Ela propôs um acordo: assim que
conseguisse me lavar sozinha, o espelho voltaria ao seu lugar. É por isso que
esperava aquele momento com tanta ansiedade.
Quando tocava meu rosto, sentia que as crostas eram grossas e irregulares,
mas a dermatologista que veio visitar-me deixou um creme especifico baseado
em várias plantas medicinais. Ela dizia que fazia milagres em casos como o meu.
Não me considerava uma pessoa vaidosa. De onde eu vinha, nem tinha tempo
para essas ‘bobagens’, como a Irmã Lurdes teria dito, mas eu ainda era uma
mulher.
Naquele dia, pela primeira vez, eu me lavaria sozinha. Sarah ficaria perto do
banheiro apenas para uma eventual ajuda. Eu estava imensamente feliz. Estou
me curando!
Quando saí do chuveiro com uma toalha enrolada em meu corpo e outra no
meu cabelo, notei que o espelho estava de volta ao seu lugar. Brigid estava perto
da porta no lugar da Sarah e me esperava pacientemente.
Aproximei-me do espelho até que estivesse de frente para a superfície que
ainda era embaçada com vapor de água e, naquele momento, toda minha
coragem desapareceu. Eu não quero mais me ver. Estou bem assim... Olhei
tristemente para o meu pulso enquanto procurava a medalhinha do Arcanjo
Miguel que me daria conforto naquele momento. Onde estará a minha pulseira?
Brigid percebeu que o meu olhar era triste e baixo, assim, ela se aproximou e
pegou a minha mão que estava começando a tremer. Ela falou comigo com uma
voz reconfortante, enquanto, com uma toalha que pegou ao lado da pia, ela
começava lentamente a limpar o espelho.
— Olha-te menina. Não tenha medo, esses monstros não tiraram a tua beleza.
Na verdade, eles não levaram nada embora. Você é uma mulher forte, corajosa e
bela. Sua família ficaria orgulhosa de você.
Eu sentia o calor da palma da sua mão na minha e isso me deu força.
Ao usar o termo ‘família’, ela me trouxe de volta à minha velha vida, sem
mesmo que ela soubesse. Na minha mente, vi os rostos das irmãs que, com
coragem, força e determinação, ajudaram-me a tornar a mulher que sou hoje.
— Obrigada por tudo, Brigid...
Eu não sabia mais o que dizer para aquela incrível mulher que, com suas
poucas palavras, me fazia voltar a ser a mulher de antes. Respirei fundo, deixei
sua mão e olhei para frente.
O espelho refletiu um rosto magro com olhos verdes grandes demais para
serem os meus. A toalha que envolvia a minha cabeça deixou todo o rosto em
exibição. O inchaço tinha quase desaparecido, mas ainda via as cores dos
hematomas. Ao redor do olho esquerdo, as cores roxas, amareladas e
esverdeadas misturaram-se e coloriam o meu rosto por toda a bochecha até a
mandíbula. Naquela parte, via um corte cuja cicatriz me acompanharia toda a
minha vida. Avermelhada, atravessava o meu rosto desde a sobrancelha até o
queixo. Felizmente, o corte não era muito profundo e a cicatriz não era muito
espessa. Nos meus lábios ainda tinham algumas crostas, como em tantas partes
do rosto e corpo, mas eu sabia que elas cairiam com o tempo. Agradece Anna.
Agradece por estar viva! O som da máquina que Brigid carregava com ela me
trouxe para o presente.
— Eles precisam de mim na enfermaria. Você está bem?
Depois de meu pequeno aceno, ela continuou me dizendo que pressionasse o
botão que eu tinha na cama em qualquer caso e me mostrou as minhas roupas
que estavam sobre o armário, no banheiro. Com um sorriso orgulhoso, todo para
mim, ela apertou minha mão mais uma vez com gentileza e saiu. Eu queria
abraçá-la, mas algo me segurava. Senti a porta do quarto que se fechava
lentamente.
Depois de me vestir e me olhar no espelho pelo tempo que me pareceu uma
eternidade, encontrei o secador de cabelos que me deixou Sarah e comecei a
enxugá-los com os movimentos mais delicados possíveis, embora em meu braço
não sentisse mais tanta dor. Eu já havia passado pelo fisioterapeuta, que me disse
que eu deveria movimentá-lo para exercitar os músculos e os tendões. A dor
mais forte vinha ainda das costelas.
De acordo com o ortopedista, tive uma sorte incrível de ter trincado apenas
duas costelas. Se ele tivesse alguma ideia da dor que me fez sofrer ‘apenas’ duas
costelas?!
Ele também me disse que normalmente em quedas como a minha, as costelas
não só seriam quebradas, mas também podiam perfurar alguns órgãos internos,
como os pulmões. Brincando comigo, ele acrescentou que meu braço não teve a
mesma sorte. Provavelmente, com ele, eu tentei diminuir a queda ou talvez eu o
coloquei sobre a cabeça para protegê-la.
A porta do banheiro estava meio aberta, e dentro, o secador de cabelo fazia um
barulho baixo. Eu apoiei as costas na pia para descansar as pernas e me voltei,
quando ouvi, em meio ao barulho do secador, uma voz profunda que me
chamava ‘senhorita Anna’. Esta voz nunca me chamou antes.
Do fundo do meu coração, eu sabia a quem ela pertencia, embora eu não
conhecesse suas características. Deixei o secador de cabelo ligado e fechei os
olhos para saborear esse instante. A curiosidade dentro de mim crescia.
Sarah, a enfermeira que descobri ser um pouco mais velha do que eu, numa
tarde de conversação me descreveu o policial em detalhes: 'alto, forte do
tamanho perfeito'. Eu estava pensando sobre qual o tamanho que podia ser
perfeito... boh. 'Olhos azuis, quase celestes, cabelos curtos como um sonho', para
mim os cabelos curtos pareciam ser todos iguais... 'ombros largos, olhar
incandescente'. Eu também não tinha entendido o que ela queria dizer, nesse
caso. Não importava... e a descrição continuava...
A verdade era que, o que realmente importava para mim, era apenas agradecê-
lo por seu gesto incrível e altruísta. Você salvou minha vida! Como posso te
recompensar?
Poucos dias antes, Sarah me contou que conhecia as dinâmicas do que tinha
acontecido comigo. A enfermeira que estava de plantão no momento do meu
acidente era uma amiga dela e disse-lhe tudo em uma das suas pausas.
Ela havia dito a Sarah que, naquele dia fatídico, o oficial Thomas Graff
descreveu o incidente com uma riqueza incrível de detalhes, para garantir que os
médicos soubessem exatamente o que tinha acontecido comigo e para que
pudessem decidir qual seria a melhor terapia para o meu tratamento. Ela também
me disse que ele estava extremamente preocupado comigo e que ele tinha ido ao
hospital continuamente para ter notícias sobre a minha condição.
Olhei no espelho para ter coragem porque sabia que não poderia ficar lá para
sempre. Senti uma emoção estranha em mim.
Usando toda a minha coragem, desliguei o secador de cabelo e lentamente
comecei a abrir a porta. Estava ainda escondida atrás dela, sem saber bem por
quê. Talvez estivesse escondendo meu rosto ferido. Inclinei a cabeça para um
lado e com um só olho, enquanto o outro ainda estava escondido atrás da porta,
eu o vi ao lado da porta do quarto.
Naquele momento, encontrei os olhos azuis mais bonitos que eu tinha visto na
minha vida; fiquei sem palavras. Ele estava parado perto da porta de entrada e
coçava a parte de trás do pescoço, numa clara atitude de embaraço.
Eu ainda estava no meu esconderijo improvisado, assim, ele tentou com um
sorriso um pouco envergonhado e falou em um tom muito formal.
— Boa tarde, senhorita Anna. Eu sou o oficial Thomas Graff, aquele que te
ajudou na floresta. Você se lembra de mim? Não tenha medo. Você está segura
aqui comigo, isso é, no hospital, quero dizer.
Enquanto escutava a sua voz, meus olhos se fecharam apenas para apreciar
aquele tom reconfortante. O mais excitante era que eu agora poderia conectar
sua voz ao seu belo rosto. Naquele instante, percebi que o seu rosto sempre
ficaria impresso na minha memória, que eu manteria esse momento no meu
coração para sempre. Como a irmã Maria, a mais velha e sábia da nossa
comunidade, sempre dizia: 'Nós mulheres, seremos eternamente escravas dos
nossos corações.'
No meu corpo fluía uma emoção muito forte. Estava em frente a mim aquele
que me deu outra chance de viver.
O que ele não entendia era que eu não tinha medo da sua presença. O que eu
sinto neste momento... não consigo explicar nem para mim mesma.
Quando reabri meus olhos, ele ainda estava de pé no mesmo lugar,
provavelmente não se movia para não aumentar minha agitação. Notei que ele
me mostrou, de longe, a palma da sua mão. Um gesto que queria me enviar
segurança e ao mesmo tempo, um convite para me aproximar.
— Você não quer sair do banheiro? Você quer que espere um pouco fora do
quarto enquanto você se prepara? Quer que eu chame a enfermeira? Ele me
parecia cada vez mais nervoso diante das minhas reações.
— Não, estou bem.
Consegui responder. Porque a minha voz está tão assustada?
Abri alguns centímetros da porta e focalizei os seus olhos, enquanto me
aproximava lentamente. Deixei meus sentimentos me possuírem e parei na frente
dele quando acabava de abaixar a mão.
Abracei-o com toda a força que tinha. Com isso eu queria transmitir tudo,
tudo aquilo que o meu coração gritava e a minha boca não conseguia falar.
Ele não esperava, e assim não teve tempo de reagir. Poucos segundos depois,
ele me segurou devagar, com muita cautela, como se eu fosse feita de vidro.
— Obrigada, senhor.
Disse com a voz baixa. As lágrimas que havia mantido todos esses dias,
deslizaram lentamente no meu rosto. Sentia uma mistura de gratidão,
reconhecimento e dívida para com ele.
Eu notei a sua rigidez, mas ao mesmo tempo percebi a mudança na sua
respiração. Mal alcançava no alto do seu queixo e quando o abracei, meu ouvido
se aproximou do coração dele. Senti o ritmo acelerar e eu só queria ficar com ele
ali para sempre. O calor de seu corpo me envolvia e naquele momento me senti
completamente segura. Era uma sensação indescritível que nunca tinha
experimentado na minha vida! Estou chorando.
Lentamente ele se afastou. Com uma grande delicadeza, ele deu um pequeno
passo para se livrar de mim, mas o fez com um olhar amigável. Com muita
cortesia, ele fez de conta que não viu o meu rosto banhado com as lágrimas que
caíam dos meus olhos, ou pior, a sua camisa banhada com as minhas lágrimas.
— As enfermeiras acabaram de me informar sobre seu estado de saúde. Fico
feliz que você está se recuperando. Estou ainda mais feliz por ter encontrado
você em tempo naquele dia. Seu tom de voz é muito... profissional.
— Infelizmente, o tempo joga contra nós e eu tenho que lhe fazer algumas
perguntas para que eu possa investigar o que aconteceu com você. O que você
acha se eu pedir uma cadeira de rodas e nós irmos um pouco ao jardim? Lá fora,
está um lindo pôr do sol. Ah, e você pode me chamar de Thomas, e não de
senhor. Eu não sou tão velho. E eu posso chamá-la de Anna. Ele me disse com
um pequeno sorriso. Eu gosto mais desse tom de voz. Ele é exatamente como
Sarah me descreveu.
Perdida em seus maravilhosos olhos, podia somente acenar um sim com a
cabeça.
— Ótimo.
Ele respondeu rapidamente.
— Eles lhe deram uma jaqueta? Se sim, é bom pegá-la. Estamos quase no
verão, mas é sempre fresco depois do pôr do sol.
Quando ele saiu da sala, peguei uma jaqueta dentro do pequeno armário. As
enfermeiras me deixaram também outras roupas, porque não tinha nada para
vestir.
No armário também encontrei dois pares de sapatos e um par de pantufas
brancas, uma cortesia do hospital. Coloquei uma jaqueta cor pêssego clara que
estava pendurada ao lado de outra mais pesada. Sem o braço imobilizado, era
muito mais fácil vestir-me.
Fiquei surpresa que as roupas pareciam novas, tão bem conservadas. No
Brasil, nós não dávamos nenhuma roupa ainda em boas condições, como essas.
Agradeci a todas as pessoas que, nesse momento, faziam tanto por mim e
também ao meu arcanjo Miguel. A tristeza que me investiu naquele momento foi
grande. Lembrei-me da minha pulseira, que perdi na corrida ou na queda.
Acabei de amarrar o meu primeiro sapato, uma ação que se mostrou difícil
porque ainda não conseguia fazer movimentos precisos com a mão do braço
ferido, quando o oficial bateu na porta e entrou empurrando uma cadeira de
rodas. Vendo minha dificuldade, ele me disse:
— Sente-se aqui e eu vou amarrar os seus sapatos.
Esperando pacientemente que eu me sentasse na cadeira, ele se agachou na
minha frente para me ajudar. No movimento, senti um cheiro suave que emanava
dele.
Por que não senti esse perfume antes? Fechei os meus olhos durante uma
fração de segundo, para me embriagar por aquele cheiro maravilhoso.
Vendo-me vestida com a jaqueta e os sapatos ‘adequados’, ele parecia
satisfeito com minha roupa. Assim, ele se levantou e começou a empurrar-me na
direção do jardim.
Nos corredores em que passávamos, percebi que as pessoas o saudavam com
respeito e cortesia e que a maioria das jovens enfermeiras o olhava com
apreciação e admiração. Infelizmente, eu não podia ver sua reação, porque
estava sentada de costas para ele.
Eu nunca tinha me aventurado naquela parte do hospital e, depois do que
parecia uma longa jornada, paramos no segundo andar, em frente ao elevador.
Percebi que de um lado, a parede era quase inteiramente composta de janelas
com vidros, pelos quais se podia ver um maravilhoso jardim cercado por uma
floresta vigorosa. No entanto, o que atraiu minha atenção foi, na parede oposta,
um espelho que, juntamente com alguns folhetos publicitários, estava apoiado
sobre uma prateleira. Por esse espelho, eu podia ver Thomas.
Enquanto esperamos, ele estava conversando com uma enfermeira que, como
nós, esperava o elevador. Não prestando atenção aos meus movimentos, ele me
deixou livre para observá-lo. Eu já havia notado sua altura quando o abracei.
Deveria ter um metro e oitenta. Ele era magro, mas forte. Seu cabelo era
castanho escuro, muito curto, porém, sem um corte preciso. Ele tinha
sobrancelhas grossas, lábios cheios e um nariz simplesmente perfeito. Agora eu
entendo o que Sarah quis dizer quando ela o descreveu.
O seu porte, devido ao seu trabalho, era orgulhoso e seguro. Mas o que eu
observei durante muito tempo foram seus olhos azuis, quase celestes. A camisa
azul cobalto e as calças pretas que ele estava vestindo se destacavam ainda mais.
Eu notei depois que era o uniforme da polícia. Em um ombro, ele carregava uma
mochila preta na qual havia um brasão e uma pequena bandeira que se parecia
com aquela da Suíça, bordada ao lado.
Fui flagrada pelo seu olhar, enquanto o observava. Corei rapidamente e fiquei
envergonhada. Sentia o sangue pulsando do pescoço até as bochechas. Quanto
mais eu tentava fingir que nada acontecia, mais sentia o calor fluindo no meu
rosto. Uau, se é lindo! Pare Anna, pare com isso!
Ele era, sem dúvida, mais experiente do que eu e demostrou fingir não ter
notado nada, continuando a conversar com a enfermeira. Ele me parecia sério e
respeitoso, quase severo. A impressão que eu tinha era de alguém que não tinha
ocasiões, ou razões para sorrir com frequência e aquele pensamento me
entristeceu. Mas a sua beleza não desaparecia mesmo com aquele ar rígido e o
estranho corte de cabelo.
No piso térreo, ele me empurrou para as portas deslizantes, através das quais
eu já podia ouvir os pássaros cantando. Eram muitos e, pelo canto alegre que
emitiam, imaginei que acompanhavam a tarde até o pôr do sol.
Olhava tudo, maravilhada, enquanto ele me levava para uma pérgola, onde
plantas com flores rosa e lilás se trançavam. Abaixo dela, notei alguns bancos
dispostos em um círculo, suficientemente distantes para permitir que as pessoas
falassem em particular. O lugar em si me dava uma sensação de tranquilidade,
acompanhada pelo murmúrio das águas de um rio, não muito longe. O bosque
que vi da janela, notei que circundava todo o hospital. Este lugar é lindo.
Thomas se sentou no banco ao lado da minha cadeira de rodas, abriu a
mochila e pegou o tablet. Enquanto isso, ele começou a falar comigo.
— Eu quero ser sincero com você, Anna. Na nossa cidade, episódios como o
que aconteceu com você, não são frequentes. Eu poderia adicionar, nem mesmo
em nosso país. Antes que eu possa pensar em como ajudar você, eu preciso saber
o que aconteceu antes de você chegar à floresta. Diga-me tudo o que você se
lembra, sem esquecer os detalhes. É essencial dar um passo atrás para tentar
entender. Você concorda comigo?
Olhei para ele com medo. Não sabia o quanto eu poderia ajudá-lo.
Enquanto torcia minhas mãos na frente do meu corpo com movimentos
nervosos, comecei a falar.
— Eu...
Disse sussurrando. Limpei a garganta para continuar.
— Eu realmente não me lembro de tudo o que aconteceu comigo. Minhas
memórias são desconectadas, como os flashes de uma câmera fotográfica. Estou
na Suíça certo? Assim o médico me disse.
Percebendo a minha apreensão, ele tentou me tranquilizar dizendo:
— Sim, você está no norte da Suíça, praticamente na fronteira com a
Alemanha e a Áustria. Talvez se eu te fizer algumas perguntas, você possa se
lembrar com mais facilidade. O que você acha?
— Sim. Por favor.
Sua voz reconfortante me acalmou. Ele começou a me fazer perguntas,
enquanto eu tentava ficar calma, relaxar com olhos fechados, escutando os
pássaros e sua voz envolvente. Mas como eu cheguei à Suíça?
7. Ela

Thomas
Se eu tivesse que usar um adjetivo para descrever essas duas semanas, eu
escolheria 'terrível'. De fato, a única coisa positiva desse período foi ter salvado a
jovem e, alguns dias depois, ser informado de que ela não estava mais em perigo
de morte. Quando me telefonaram do hospital, suspirei aliviado.
Toda vez que eu olhava suas fotos de quando ela chegou ao hospital, minha
mente voltava àquele dia fatídico. Naquela noite, na solidão no meu quarto,
sonhava com aqueles homens e depois com a impressionante queda da jovem do
penhasco. Nos meus sonhos, a jovem estava sendo arrastada pela corrente,
enquanto eu tentava desesperadamente, em vão, aproximar-me dela. Quando
conseguia pegá-la, seus olhos me olhavam sem vida e eu via seu corpo ferido,
continuar a destruir-se entre as pedras. Pontualmente, acordava coberto de suor e
não conseguia voltar a dormir. Naquela época, eu estava treinando até ao
esgotamento físico, na esperança de que a fatiga, pudesse fazer com que os
pesadelos desaparecerem.
Quando eu passava no hospital para encontrá-la, o médico me tranquilizava
dizendo-me que, apesar dos sinais no seu rosto serem ainda bastante visíveis, o
dano era superficial. Ele me repetia sempre, provavelmente porque ele lia nos
meus olhos, enquanto eu a olhava, e me lembrava de quanta sorte ela teve. No
inicio, falar com ela, como o médico me sugeriu, parecia estranho, e, em um
certo sentido, insano. Com o passar dos dias, no entanto, tornou-se um momento
de tranquilidade para mim, um momento apenas nosso, meu e da jovem. Aprendi
a apreciá-lo. Eu contava para ela a minha vida, falava sobre Mia e pedia-lhe para
acordar e poder nos ajudar.
Infelizmente, sem a sua ajuda, não poderíamos proceder à investigação do
caso. Eu tinha apenas suas impressões digitais, suas fotos e até mesmo um
esboço de seu rosto, com ferimentos menos visíveis, que nosso técnico em
computação havia obtido, milagrosamente, usando um programa muito
moderno.
Na delegacia de polícia, eu havia montado, em uma mesa, um espaço apenas
para documentos relativos ao caso, a qual todos os agentes podiam acessar. Era
essencial permitir que todos nós os consultássemos a qualquer momento, já que
éramos numerosos para trabalhar no seu caso e tínhamos turnos de trabalho
diferentes. Quando decidi que a mesa seria para ela, esperava que um dia ela se
tornasse tão cheia de documentos que eu precisaria de outra. Tudo em vão!
As poucas folhas que mostravam dados e informações, na sua pasta,
continuavam as mesmas. Das estações de polícia das cidades vizinhas, eles não
acrescentavam outras notícias. Das poucas jovens desaparecidas que eram
reportadas à delegacia, nenhuma tinha aparência física semelhante à dela, sua
idade ou eram sem tatuagens. Para complicar ainda mais a situação, havia o fato
de que suas impressões digitais não estavam registradas no nosso banco de
dados, e nem nas outras estações de polícia. Para o nosso país, essa garota não
existia, mas, como era óbvio, ela existia, porém tinha desaparecido sem deixar
vestígios e nem sequer alguém que a procurasse.
Alguns dias se passaram desde sua chegada ao hospital, a jovem acordou e,
em um momento de clareza, informou ao médico que não tinha ninguém para
entrar em contato. Isso, ele me contou em uma de nossas reuniões. O doutor
concluiu dizendo que, devido às fortes dores e ao stress psicológico ao qual ela
foi submetida, ela seria mantida sedada, esperando que sua condição melhorasse.
Os médicos e psicólogos que tratavam o seu caso proibiram qualquer tipo de
interrogatório até que ela mostrasse sinais de recuperação física e, na medida do
possível, psicológica.
A pressão para a resolução do caso aumentava cada vez mais, assim, o nosso
capitão estabeleceu uma consulta com uma autoridade internacional com a
esperança de obter novas informações.
A autoridade que nos ajudaria, neste caso, trabalhava em um dos escritórios da
Europol, o escritório da polícia europeia. Lá, eles usavam o SIS, o Sistema de
Informação Schengen, que também incluía dados sobre pessoas desaparecidas
em todos os estados membros da área Schengen. Essa era uma área que incluía
vinte e seis estados europeus que aboliram os controles sobre as pessoas nas
fronteiras comuns. Essas foram substituídas por uma única fronteira externa e,
portanto, funcionavam, do ponto de vista das viagens internacionais, como um
único país. Por conseguinte, a área Schengen representava um território em que a
livre circulação de pessoas era garantida. Nosso país participava do Schengen
como colaborador, já que não fazia parte da União Europeia.
Infelizmente, também nesse caso, a resposta das digitais da jovem foi
negativa. A autoridade mencionou que poderia ser um caso de tráfico de seres
humanos, como era um fenômeno crescente naquela época. Desse colaborador,
eu aprendi que esse tipo de tráfego era o segundo mais difundido no mundo,
depois das armas, e, incrivelmente antes da droga. Era absurdo descobrir até que
ponto andava a crueldade humana.
O agente, especialista em tráfico de seres humanos compartilhou conosco tudo
o que ele sabia sobre essa realidade e nos disse que se a jovem acordasse e
pudesse se lembrar, mesmo de alguns momentos da história, ela teria que ficar
no país como testemunha, mesmo que, na realidade, a mantivéssemos segura por
algum tempo, para que ela não recaísse em uma situação perigosa. Caso ela
realmente tivesse sobrevivido a uma gangue de traficantes de seres humanos, sua
colaboração seria fundamental porque, normalmente, esses homens sempre
matavam as suas vítimas para que elas não os reconhecessem e testemunhassem
contra eles.
Minha tarefa tornou-se fazer a garota se sentir segura e obter sua máxima
confiança, base para a colaboração em casos delicados como esse. Isso me
permitiria obter todas as informações que precisássemos. Não gostei da posição
em que o especialista me colocou, mas como ele me lembrou, por várias vezes
durante as reuniões, eu também era uma peça, como um peão, nesse jogo.
Uma vez que a Europol estava nos fazendo um favor, porque a Suíça não faz
parte da União Europeia, o especialista designado gozava de certa superioridade
em relação a nós. Dessa forma, ele nunca perdia a oportunidade de se comportar
de modo arrogante.
Na nossa pequena força policial, escutávamos rumores de que esse homem
procurava desesperadamente por informações sobre esse tipo de tráfico e que a
jovem era uma das poucas testemunhas que poderiam ajudá-lo.

***

Na tarde daquele dia, ela estava finalmente na frente dos meus olhos.
Assustada, mas, consciente, seu corpo mostrava sinais evidentes de recuperação.
Ela parecia tão pequena perto de mim, sentada ao meu lado no jardim.
Pensava tê-la assustado tanto, alguns minutos antes, quando cheguei ao
quarto. Ela permaneceu imóvel a me olhar por momentos infindáveis e então…
aquele abraço. Ela me pegou desatento. Certamente era uma garota muito
inocente, dava a ideia de ser dócil e estava convencido de que não provinha das
nossas vizinhanças. Na Suíça, nós não abraçamos estranhos! E seu sotaque, eu
nunca tinha ouvido antes.
Enquanto esperávamos pelo elevador, eu a peguei olhando para mim através
do espelho e a vi corar quando eu mostrei que tinha notado que eu estava sendo
observado. Tão jovem, tão bonita, coitada.
Levá-la ao jardim foi, definitivamente, uma boa ideia. Admirei a maneira pela
qual ela apreciava a paisagem, com uma curiosidade estimulante para não se
perder nenhum detalhe.
Assim que comecei a explicar a situação, percebi a tensão no seu corpo.
Quando pedi a ela que procurasse nas suas memórias para tentar reconstituir o
evento, ela se enrijeceu ainda mais e, quando tentou falar, não conseguiu. Eu não
queria fazê-la sofrer mais, então sugeri que eu fizesse as perguntas, esperando
que ela se sentisse mais à vontade. Ela nem sabe em que país se encontra!
— Como primeira pergunta, gostaria de saber como você chegou aqui e de
onde você partiu? Você não é dessa região, certo?
Ela fechou os olhos e notei, pela expressão relaxada do seu rosto, que ela
estava pensando em algo agradável. Fiquei orgulhoso com a ideia das perguntas,
de ter evitado momentos de dificuldade ou desconforto.
— Eu deixei minha cidade de origem no extremo sul do Brasil, na fronteira
com o Uruguai... espere um minuto, por favor.
Sua expressão se concentrou.
— Quando eu parti?
Ela perguntou a si mesma.
— Você esteve aqui por duas semanas. Infelizmente eu não sei quando você
saiu do seu país.
Disse para ajudá-la.
Mais relaxada, ela respondeu:
— Sim, claro que você não sabe. Espera... deixei o país no dia 18 de julho,
nunca mais esquecerei aquele dia. Eu estava tão feliz.
Ao pensar nesse sentimento, seus olhos brilhavam diante de mim.
Ela tinha uma voz baixa e melodiosa, um rosto que, apesar de algumas
contusões e uma leve cicatriz, era muito proporcional e marcado por
sobrancelhas escuras e lábios carnudos. Seu cabelo era longo e ondulado. Muito
bonito!
Eu tomava notas no meu tablet, escrevendo as palavras da jovem, que havia
deixado o outro lado do mundo para viver em uma comunidade religiosa que ela
chamava de ‘lar’.
Observar a floresta fazia com que ela se sentisse bem, mais serena. E
continuou contando:
— Saí do Brasil para encontrar as irmãs da minha comunidade, que durante
algum tempo foram trabalhar em um campo de refugiados no norte da Itália.
Cheguei a Milão ao amanhecer, com um voo vindo de São Paulo. Do Brasil, vou
contar-lhe a história em um outro momento, um país enorme.
Ela acrescentou com um pequeno sorriso, como se estivesse contando uma
parte de uma história da qual só ela poderia entender a trama.
— Em Milão, eu sabia que as mesmas pessoas que receberam Fernanda e
Ellen, as outras irmãs, esperariam por mim. Quando saí da área reservada aos
passageiros, encontrei um pastor acompanhado por uma senhora que se
apresentou como a irmã da comunidade italiana.
— Lembro-me que, quando chegamos ao estacionamento do aeroporto, uma
van nos esperava, com outras três garotas. O motorista nos levaria ao nosso
destino. O pastor explicou-me que as outras meninas vinham de países europeus
e que viajariam comigo porque também iriam ajudar no campo de refugiados.
Na verdade, a senhora falava em outro idioma com elas.
— De lá, partimos para a comunidade. Lembro-me que foi no final da manhã,
acho que perto da hora do almoço, quando estacionamos em uma parada da
estrada para comer algo. Parecia uma dessas paradas para motoristas de
caminhão, não muito longe da estrada e havia algumas mesas sob a sombra de
árvores e banheiros. Eles nos ofereceram um sanduíche e um chá quente, que a
senhora mantinha em algumas garrafas térmicas. Lembro-me de que não estava
com fome porque ainda estava cansada e nauseada do avião e da estrada. Desde
o primeiro voo do Brasil, eram passadas quase vinte e quatro horas até o meu
desembarque na Itália. Depois que terminamos de comer, partimos de novo.
Lembro-me de apoiar a cabeça na janela da van, porque queria olhar a paisagem,
mas não conseguia manter meus olhos abertos. As outras garotas adormeceram
muito antes de mim.
— O incrível é que até aqui todas as minhas memórias são muito claras, mas a
partir desse momento ficam confusas e se misturam. Elas existem na minha
cabeça, fragmentadas, quebradas, como se fossem parte de um sonho... não, na
verdade, de um pesadelo.
Sua voz começou a tremer, então a interrompi. Tinha a sensação de que o
tranquilizante animal encontrado no seu sangue, ela o tinha tomado naquele
momento do dia. Eu tinha que esclarecer essa passagem, então, tentando não
alarmá-la, perguntei-lhe a questão da forma mais espontânea que eu consegui.
— Eu acho que você estava muito cansada depois dessa longa jornada. As
náuseas e a fadiga me parecem justificadas. Mas você não notou algo incomum?
Ela parecia pensativa. Percebi que ela estava lutando para recuperar qualquer
pequeno detalhe, um fragmento de memória. Ela esfregou as mãos no rosto e
olhando para baixo, mordeu o lábio inferior, aquele que não estava tão ferido, em
uma clara expressão de concentração.
— Incomum? Talvez…
Ela continuou:
— Como já lhe disse, sou uma pessoa que há anos vive em estreito contato
com pessoas religiosas. Essas pessoas, quando falam com você, sempre te olham
direto nos olhos, para transmitir um senso de confiança e respeito. Com o pastor
em vez disso, eu não me sentia confortável.
Ainda, imersa nos seus pensamentos, ela acrescentou:
— Além de nunca ter me olhado nos olhos, ele lutava muito para ser... como
posso dizer... para parecer uma pessoa confiável, mas não conseguia. Mais de
uma vez eu o surpreendi enquanto ele me olhava, da cabeça aos pés e estudava
meu corpo. Lembro-me de que senti calafrios quando percebi, nunca esperaria
esse olhar de um pastor.
— O segundo detalhe que eu tenho marcado na minha mente é o gosto
daquele chá, muito forte e doce. Comi o sanduíche que me ofereceram, mas não
conseguia beber o chá. Eu gosto de tomar chá, mas aquele sabor era muito ruim,
nem conseguia entender o que era. Bebi com pequenos goles, fingindo saboreá-
lo, mas depois de um tempo não pude mais. Era horrível.
Olhei para ela, segurando a minha respiração. - E depois? O que aconteceu?
Exortei-a a continuar.
— Na verdade...
Ela retomou a história com um pouco de vergonha.
— Eu não queria ser grosseira. Então, quando vi que ninguém me olhava,
derramei-o na grama. Depois de um tempo, a senhora encheu meu copo
novamente, agradecendo-a, acrescentei que era muito bom e assim que tive a
chance, joguei-o fora novamente.
Antes que eu pudesse adicionar qualquer coisa, ela se virou para mim com os
olhos arregalados.
— É possível que…
— Sim.
Respondi, ela já havia entendido. A menina era corajosa, não era receosa de
ouvir a verdade e, sozinha, reconstruindo os fatos, percebeu que era muito
provável que se tratasse de um sequestro.
— Eles provavelmente colocaram o tranquilizante no chá. O açúcar e o gosto
forte servem para mascarar o sabor do remédio. Mas eu quero saber quanto um
tranquilizante veterinário pode danificar a memória. Vou conversar com minha
irmã, que é veterinária, para esclarecer essa dúvida.
Olhando para mim com aqueles intensos olhos verdes, ela acrescentou:
— Há essa imagem que eu recordo sempre na minha mente. Lembro-me de
que eu estava meio adormecida, acredito que fosse de noite, quando senti que a
van estava parando e o pastor, tenho certeza que era ele porque eu lembro do tom
de sua voz, estava conversando com uma pessoa que não era a senhora na van.
Talvez ele estivesse ao telefone... eu não sei. Eles estavam discutindo o arranjo
da mercadoria.
Com um arrepio, ela continuou:
— Eu acho que ele estava se referindo a nós.
Ela olhou para mim como que para confirmar sua ideia. Eu tinha que
permanecer imparcial, então fiz o meu melhor para não mostrar a ira que fervia
dentro de mim, contra aqueles homens. Assim ela continuou:
— Outra lembrança que me assombra é o momento em que abri os olhos e me
encontrei em um lugar, que eu acho que era fora da rodovia, porque não ouvia
nenhum barulho de carro. Eles nos pegaram uma a uma e nos retiraram da van.
Não conseguia andar, mal abria meus olhos. As outras garotas estavam ainda
piores do que eu, honestamente, pareciam mortas.
Ela olhou para mim como se a memória que acabasse de experimentar lhe
causasse uma dor física. Escutava a sua respiração acelerada e percebia o medo
que seu corpo me mostrava. Esperei que ela recuperasse, escrevendo lentamente
no tablet. Ela respirou profundamente e continuou:
— Eles nos mudaram para o que parecia outra van... ou, era um pequeno
caminhão, não tenho certeza. Colocaram-nos deitadas em colchões e depois nos
cobriram com outros trapos, caixas e sacos plásticos de diferentes tamanhos. Eu
não sabia exatamente com o que estava me cobrindo, mas me sentia quente e
provavelmente adormeci novamente.
— Outra lembrança que me incomoda é aquela do momento em que acordei
assustada sem saber onde estava ou o que estava acontecendo. Você sabe quando
você acorda no meio de um pesadelo? Minha mente já estava lúcida, mas as
lembranças eram desfocadas, estranhas. Ouvi vozes. Algumas frases, eu entendi,
outras eram em outro idioma. Eles eram dois, talvez três, certamente homens.
Discutiam sobre o fato de que eles queriam comer alguma coisa e concluíram
que eles nos dariam mais drogas quando retornassem. Naquele momento,
lembrei-me do encontro com a mulher e o pastor, mas as vozes que eu ouvia não
eram as deles. A única certeza que tinha naquele momento era o meu coração
batendo loucamente e meus instintos me dizendo para fugir… imediatamente.
Eu me sentia mal por causa do tormento que percebia nas suas palavras, mas
não podia reagir, tinha que deixá-la continuar a história.
— Em um momento de lucidez, lembro-me de ter tomado coragem. Pensei
que, se pudesse sair do caminhão enquanto eles estavam comendo, talvez eu
encontrasse alguém para me ajudar. Esperei até o momento em que não ouvi
mais vozes. Libertei-me dos sacos com os quais eu estava coberta e engatinhei
até a frente do veículo, o espaço usado pelo motorista. Eu quase morri de susto
quando bati em uma das meninas, mas isso me fez bem, porque eu acordei
completamente. Eu tinha esquecido que as outras garotas estavam lá comigo.
Tentei acordá-la em um sussurro, mas não respondeu. Pensei que ela estivesse
morta.
Enquanto falava, uma lágrima escorria pelo rosto. Eu tinha medo de que, se
ela parasse naquele momento a história, ela não conseguiria continuar. Os
médicos fizeram bem em não permitir que eu a interrogasse antes. Ela ainda
está muito traumatizada. Esperei novamente antes de falar. Com o dorso da mão,
ela limpou a lágrima e, depois de um profundo suspiro, continuou:
— Esperei, agachando-me na frente do assento do passageiro e espiei da
janela, tentando descobrir onde os homens estavam, enquanto procurava a ajuda
de alguém. Não via nada, estava muito escuro. Inicialmente, pensei que não
tinha aberto completamente os olhos, mas, depois de observar bem, percebi que
estávamos em uma estrada de terra, no que parecia ser uma praça no meio de
uma floresta. A única luz era a da lua, ao meu redor via apenas árvores e
escuridão.
— Eu já estava desesperada. Abri a porta o mais silenciosamente possível e
saí. Minhas pernas estavam tão fracas que não me sustentaram, caí no chão.
Felizmente, os homens conversavam e riam tão alto, que não me ouviram. Eu
rolei sob o caminhão, onde fiquei por alguns minutos tentando controlar o
pânico para decidir como agiria. Do outro lado da praça, vi uma luz fraca que
provavelmente era um telefone celular ou uma lanterna que me mostrava a
posição deles. Não havia mais nada nesse lugar. Nenhum posto de gasolina,
outro carro, nem uma alma. Eu tinha que escapar, isso era certo, mas eu tinha
que decidir se deveria fazê-lo em direção a floresta ou à estrada de terra. Se eu
tivesse escolhido a estrada, eles me encontrariam imediatamente, então eu optei
pela floresta.
— Rastejei no chão na direção oposta àquela em que os homens estavam, até
a borda da praça. Naquele momento, levantei e entrei na floresta. A memória
mais vívida que tenho desse momento é a terrível sensação das minhas pernas
que não me ajudavam, estavam como que desconectadas dos impulsos que o
meu cérebro mandava. Eu cambaleava e lutava para me manter em pé, mas
dentro de mim tinha tanto desespero que consegui afastar-me. Depois de um
tempo, ouvi gritos de raiva. Eles provavelmente voltaram para o caminhão e
notaram minha ausência. Talvez eu não tivesse fechado a porta.
Olhei-a com orgulho porque queria transmitir toda a minha admiração. Não só
ela conseguiu escapar nessas condições, mas também tentou salvar pessoas
desconhecidas.
— As lembranças que tenho da floresta são muito confusas. Lembro-me da
quantidade de folhas caídas no chão, dos momentos em que os ramos ou as
árvores me impediram o caminho, ferindo-me o rosto e os braços, do medo, do
frio. Momentos que pareciam infinitos para mim, passei por eles engatinhando e
caminhando, sentindo o chão com as mãos e os pés. Não via nada, tropecei e caí
inúmeras vezes. Eu nem conseguia correr. Depois de um período de tempo, que
não consegui medir, parei de ouvir as vozes e me concentrei no som da água,
indo naquela direção. Pensei que era a melhor decisão, porque senão
provavelmente teria andado em círculos e, em seguida, arriscaria me encontrar
no ponto de partida e, caso eles me seguissem, teria sido mais difícil para eles
ouvir meus movimentos por causa do barulho da água. As primeiras luzes do
amanhecer começaram a me mostrar o lugar onde eu estava, tudo o que até agora
eu só tinha tocado ou batido. Tudo ao meu redor. O rio que parecia tão próximo,
estava muito abaixo dali, então procurei um caminho para poder descer e
alcançá-lo. Naquele momento, escutei o som de vozes ameaçadoras. Por um
instante, pensei que elas estivessem só na minha cabeça, mas depois percebi que
eles me seguiram e que me encontrariam.
— Eu tremia tanto, e não conseguia mais raciocinar, meu coração estava
batendo tão forte que respirava com dificuldade. Não sabia onde eu estava, para
onde ir, onde me esconder, então, quando vi uma espécie de caverna, uma
cavidade na colina, entrei. Eles provavelmente me viram entrar, porque logo
depois os encontrei na minha frente com uma lanterna que me apontaram e me
arrastaram para fora.
Eu não queria que ela revivesse os próximos momentos porque eles eram
muito fortes. Então a interrompi:
— Sim. Você está certa. Eu te ouvi e vi sendo arrastada para fora daquela
caverna. O resto da história não é preciso que você me conte, eu a conheço.
Quanto às outras garotas, eu sei que você pode se sentir culpada por deixá-las no
caminhão, mas posso garantir-lhe que você agiu corajosamente. Eu não teria me
comportado de forma diferente se eu tivesse me encontrado na mesma situação e
nas mesmas circunstâncias.
Eu falei essas últimas palavras porque percebia a dor que ela sentia e a
preocupação que ela ainda tinha por ter tomado aquela decisão. Continuei:
— Agora você está aqui, você está segura e, juntos, podemos reconstruir o
incidente para obter justiça. Estou convencido de que as meninas não estão
mortas. Fazendo esse trabalho posso te dizer que, nesses casos, não é a intenção
deles. Elas só foram drogadas, como fizeram com você. Eu prometo-lhe que
faremos o nosso melhor para encontrá-las e resgatá-las em segurança.
— Tente colaborar comigo por mais um pouco, escavar na tua memória e
explorar até mesmo os detalhes, porque agora eu preciso das descrições físicas.
Peço desculpas, sei o quão pesado é, mas você é a única testemunha. Descreva
todas as características físicas dessas pessoas, que você conseguir se lembrar, a
cor e o modelo das vans ou caminhões nos quais vocês foram transportadas. Se
você também se lembra de alguma estrada percorrida, isso pode nos ajudar.
Nomes de ruas, sinais de trânsito, lojas. Qualquer informação será um passo em
direção à verdade.
Ela pensou por alguns minutos e me ajudou a escrever mais notas que
poderiam nos ajudar. Infelizmente, ela não tinha memórias claras do segundo
veículo no qual ela tinha sido levada, e essas informações eram muito
importantes para prosseguirmos com a investigação. Dos homens, ela não se
lembrava de minúcias. A descrição das pessoas que a receberam no aeroporto era
muito genérica. Com grande esforço, lembrou-se dos primeiros números da
placa da primeira van.
Eu tinha muito trabalho a fazer e o horário de visitas estava prestes a terminar.
Notei o cansaço no seu rosto, mesmo que ela tentasse com toda sua força se
lembrar, para me ajudar a esclarecer os fatos. Assim, decidi que, para aquele dia,
era suficiente.
— No momento tenho informações suficientes que podem me ajudar a
prosseguir. Amanhã, no final do dia, passarei aqui para atualizá-la com as
novidades. Tenho certeza de que outra noite de descanso te fará bem e talvez
você possa recuperar mais alguma memória. Você sabe que aqui no hospital você
pode ficar calma e não ter medo. Vou te deixar o meu número de telefone, para
qualquer problema.
Levantei e peguei meu cartão de visita que estava na carteira. Quando eu dei a
ela, apertou-o com força entre as mãos, quase com medo de que ele pudesse
desaparecer.
Enquanto empurrava a cadeira de rodas de volta ao hospital ela se virou para
mim. Ainda estava limpando suas lágrimas com a mão, mas com uma voz cheia
de coragem, me disse:
— Você deve saber que não vou voltar até descobrir o que aconteceu com as
duas irmãs que partiram antes de mim e as meninas que estavam comigo na van.
Cheguei até aqui e sofri como nunca na minha vida. Não irei para casa com as
mãos vazias, quero justiça. Eu devo isso às irmãs, às garotas e também aos que
aguardam minhas notícias do outro lado do mundo. Eu nunca poderia me
perdoar por deixá-las nas mãos dessas pessoas. Você pode me ajudar?
Percebi a determinação do seu olhar e, ao mesmo tempo, as palavras do
agente da Europol vieram à minha mente. Respondi-lhe no modo como me
parecia mais adequado naquele momento.
— Eu certamente farei o meu melhor para ajudá-la, mas não sei até onde
posso chegar, em primeiro lugar, tenho que falar com meu superior, depois com
a polícia alemã e com a polícia italiana. Você já sabe até quando você vai ter que
ficar no hospital?
Eu sabia que a Europol queria forçá-la a permanecer no país, mas era
importante para ela entender a situação. Ela não tinha um documento, uma
autorização de residência, dinheiro e nem um lugar para ficar quando saísse do
hospital. O único fator a seu favor era ser a principal testemunha. Se
conseguíssemos ligar todos os pontos, talvez conseguíssemos desmascarar o que
parecia ser uma gangue de traficantes de mulheres que, aparentemente, estava
tentando atravessar nosso país encaminhando-se para o norte da Europa. Era
uma sorte e uma raridade ter uma testemunha de um caso como esse.
Ela me respondeu com um tom quase triste:
— Eles me disseram que eu tenho que ficar aqui até sexta-feira para os
últimos testes e para a consulta com o psicólogo, que eu deveria ter visto hoje,
mas o doutor teve que cancelar a visita. Não sei como esta sessão poderá me
ajudar. Gostaria apenas de esquecer, sem ter que sempre recordar de novo tudo o
que me aconteceu.
O que ela me disse era exatamente aquilo que eu pensava. O que a psique
humana tende a querer esquecer são os episódios negativos, mas infelizmente às
vezes, para poder esquecê-los, precisamos revivê-los. Dessa forma, poderíamos
obter respostas, ou, nesse caso, conseguiríamos esclarecer o incidente e
alcançarmos a justiça. Todos nós precisávamos disso para poder virar as páginas
do livro que constitui, a nossa vida.
Entramos no corredor que levava ao elevador e, uma vez que chegamos perto
da porta, apertei o botão de chamada para esperá-lo. Em todos os andares, perto
do elevador, havia uma prateleira, onde se apoiavam os folhetos informativos e,
logo acima, um espelho. Naquele momento, a jovem olhava diretamente para
frente, provavelmente para evitar o desconforto que sentiu na nossa troca de
olhares de antes.
Ouvi o elevador chegar, então, movi a cadeira de rodas para o lado para que as
pessoas pudessem sair. Dentre essas pessoas, antes que as portas se abrissem
completamente, reconheci uma delas, pela voz. Essa voz, eu a conheço há anos.
Fiquei imóvel e esperei, porque sabia que o encontro era inevitável. Maldita má
sorte! Falando em experiências ruins.
— Ah..., boa noite oficial Graff? Leonie terminou a sentença e virou-se para o
médico que estava com ela, dispensando-o com uma expressão de desconforto.
Nesses segundos, ela me deu tempo para pensar sobre o que eu diria a ela, ou
melhor, o que eu não deveria dizer-lhe. Sempre que a via, o sangue fervia nas
minhas veias.
Escusando-me rapidamente, afastei a jovem Anna para mantê-la longe da
conversa e respondi-lhe:
— Boa noite, doutora Werni.
Respondi com um tom muito áspero. Toda vez eu tentava, com toda a minha
força de vontade, ser pelo menos amigável, mas eu sempre falhava.
8. Tomando nota

Anna
Quando retornamos do jardim onde minhas memórias haviam ganhado vida,
paramos em frente ao elevador para esperá-lo. As portas estavam abrindo,
quando senti uma mudança atrás de mim. Sentia uma tensão no ar, tão forte que
quase se tornara palpável. Eu me virei para olhar para Thomas e percebi uma
mudança em sua expressão; ele estava muito nervoso. Não entendi o que estava
acontecendo, mas achei que não era por minha causa, realmente esperava que
não fosse. Uma miríade de sensações e emoções passavam no seu rosto. Embora
ele fosse um homem austero, não conseguia esconder o que sentia.
Ele estava imóvel e seus músculos, contraídos, como se ele estivesse
esperando o momento certo para atacar o oponente. Sua mandíbula estava tão
cerrada que me surpreendeu, quando percebi que não conseguia escutar, da
minha cadeira de rodas, o ranger dos seus dentes.
Quando ele se afastou um pouco mais, dando-me uma desculpa qualquer e
voltando-se rapidamente para o lugar onde esperávamos o elevador, eu me virei
para descobrir a quem era dirigida toda aquela raiva. Apenas duas pessoas
deixaram o elevador: uma médica jovem, de aparência calma e um médico, que
se afastou dela quando foi rapidamente dispensado.
Ela era muito... refinada. Uma beleza clássica, cabelos loiros penteados em
uma trança bonita que caía sobre o seu ombro e olhos azuis expressivos que não
se importavam com o olhar penetrante que Thomas a abordava. Ela era pouco
mais baixa do que ele e cumprimentou-o cordialmente, com uma voz grave mas,
segura, apenas recebendo uma resposta seca, o que não a abalou, como se
estivesse acostumada com isso.
Eu não queria ouvir o que estavam falando, mas vi pela sua postura orgulhosa
que ela não se deixava intimidar por ele, de forma nenhuma.
Eu dirigi meu olhar para outro lado; a conversa não me interessava, mas eu
tinha que encontrar algo para me distrair. Peguei um panfleto na prateleira que
tinha perto de mim e tentei lê-lo quando ouvi a conversa deles e vi-os pelo canto
do meu olho. Eu entendia apenas parte do que ele dizia, em voz baixa, mas
irritada. Percebi que as respostas dela eram apenas acenos de cabeça, a atitude
clássica de médico, pensei.
— ... você nem vem vê-la, amiga... o primeiro ano letivo... viagem ao
zoológico.
Thomas continuou falando rapidamente, o rosto cada vez mais fechado,
enquanto ela esperava pacientemente em silêncio que ele terminasse. Depois de
alguns minutos de monólogo, ela sacudiu a cabeça com tristeza e pousou a mão
suavemente em seu braço, pronunciando algumas palavras acompanhadas de
uma expressão tênue no rosto.
Ele não perdeu tempo, olhou para a mão dela apoiada no seu braço, virou o
olhar para o rosto dela, balançou a cabeça com determinação e virou-se para trás
com raiva, interrompendo o que ela estava falando.
— Não... você não entende... você não se importa...
Ele tentava esconder sua raiva, mas falhava. Era óbvio que, entre eles,
existiam profundos problemas emocionais e para mim, do pouco que eu
conseguia entender, parecia que ela havia destruído o coração dele.
Fiquei triste com aquele pensamento. Nos meus olhos, ele era um herói e não
conseguia entender como era possível que uma mulher não retribuísse os seus
sentimentos. Ao contemplar sua expressão perturbada, pensei que ele era um
daqueles homens que amam apenas uma mulher na vida. Eu me dedicaria
completamente ao amor de um homem como ele e o oficial Graff era, para mim,
o melhor exemplo de alguém que merecia um amor assim tão completo.
Aquela situação e aqueles pensamentos levaram minha mente de volta ao
Brasil, onde deixei Joaquim, meu namorado, antes de partir. Era um sentimento
assim tão forte, que eu sentia por ele? Algo definitivamente sentia. Posso
chamá-lo de namorado?
Lembrei-me das palavras de conforto que ele me sussurrou, algumas noites
antes que eu partisse, seus abraços e seus beijos, como ele me fazia sentir linda,
uma mulher, até onde conseguimos chegar, em nosso curto relacionamento. Seus
suspiros, meus sussurros, os nossos rostos e tudo o que compartilhamos. Não
fazia muito tempo, mas parecia-me outra vida.
Voltei à realidade um pouco abalada pelos meus pensamentos, mas o rosto da
jovem médica imediatamente chamou minha atenção. Eu tinha perdido a última
parte da conversa, não sabia o que eles tinham dito, mas ela parecia mortificada.
Ela tentou novamente falar com ele, mas ele ignorou as suas palavras e se virou
para o meu lado, descartando-a de uma maneira muito fria. Ela balançou a
cabeça novamente com tristeza, me cumprimentou com um aceno e partiu em
direção ao corredor.
Sem cruzar o meu olhar, ele pediu desculpas por me deixar lá a esperá-lo,
empurrou-me em direção ao elevador e apertou novamente o botão.
Chegamos ao meu quarto sem haver trocado uma palavra. Já estava escuro e,
passando, a enfermeira de plantão informou-me que o jantar logo seria servido.
Assim que entramos, ele me disse adeus, depois de me dizer que em breve nos
reencontraríamos. Não tive tempo de dizer tchau, mas, acima de tudo, tempo de
agradecê-lo, porque a porta já havia fechado.
Naquela noite, meu sonho começou com a visão dos tristes olhos azuis do
oficial e depois continuou na floresta, escura, sombria, onde eu vinha seguida
por uma sombra até cair naquilo que parecia um abismo. Acordei gritando. A
enfermeira, assustada, entrou correndo no quarto e, depois de lhe contar o
conteúdo do sonho, em lágrimas, ela me tranquilizou e me deu um calmante para
que pudesse voltar a dormir. Estava convencida de ter acordado todo o andar do
hospital. Desde a minha chegada lá, e mesmo quando já estava consciente, tive
pesadelos todas as noites, mas nunca tão intenso quanto aquele.
No dia seguinte, ainda perturbada pela noite, cheguei ao meu primeiro
encontro com a psicóloga. A sessão foi melhor do que as minhas expectativas. A
jovem médica tinha acabado de se formar, mantinha uma postura reconfortante e
fascinante, que me fez sentir imediatamente à vontade. Nós não conversamos
sobre o que aconteceu comigo, mas passamos nosso tempo falando sobre o meu
país de origem. Eu sabia que, dessa forma, ela tentava quebrar o gelo e eu estava
ciente de que mais cedo ou mais tarde eu teria que enfrentar e voltar aos meus
passos, mas, naquele momento, estar com ela fazia com que eu me sentisse
menos angustiada e culpada, sentimentos que me assombraram quando eu fugi
daquela van, sozinha.
No final da nossa conversa, ela me disse que, depois de uma análise mais
aprofundada do sedativo veterinário encontrado no meu corpo, eles descobriram
que se chamava Ketamina, que podia ser comprado com muita facilidade,
utilizando apenas o número de uma licença veterinária. Ela acrescentou que
informaria imediatamente Thomas, caso os médicos ainda não o tivessem feito.
Antes de dizer adeus, perguntei-lhe se a dificuldade que tinha em reorganizar
as memórias ou mesmo em lembrar partes da história, poderia ser causada por
esse tipo de remédio. Ela respondeu que certamente isso era uma causa, mas não
a única. Isso acontecia também por causa do traumatismo craniano devido à
queda e ao processo natural realizado pela mente humana no momento em que
sofre choques fortes, que tendem a apagar algumas partes da memória e a
confundir com outras.

***

À tarde eu me sentia inquieta, não conseguia mais passar horas no meu quarto,
então decidi perguntar onde se encontrava a sala de computadores disponível
para os pacientes. Aproveitei a oportunidade para escrever um e-mail ao
Joaquim, no qual eu dizia que estava bem e pedia desculpas pelo atraso em me
manifestar. Não contei nada sobre o que aconteceu, não queria preocupá-lo com
isso. Também lhe pedi que ligasse para a Irmã Benedetta e a informasse sobre a
minha chegada. Na comunidade havia apenas um telefone e um computador
antigo, uma raridade naquelas partes. Tudo o que sabia sobre computadores, eu
devia a Joaquim, que, uns dias antes da minha partida, enquanto eu estava na
comunidade, me explicou as funções básicas.
Aproveitei meu tempo livre e investiguei o máximo de informações possíveis
sobre o trabalho de organizações sem fins lucrativos na Itália, centros de
refugiados no norte do país e, finalmente, também sobre o Ketamina. Encontrei
o site da organização, que encaminhou a mim e às outras duas irmãs à Itália.
Enviei-lhe um e-mail pedindo mais informações sobre o recrutamento de
voluntários. Eu estava esperando por uma resposta para poder compartilhá-la
com Thomas. Se eu lhe fornecer informações úteis, talvez ele me deixe ficar no
país para ajudá-lo. Eu esperava receber uma resposta antes do final da semana,
porque depois não sabia o que aconteceria comigo.
Eu ainda tinha algumas ataduras nos braços e pernas, mas, felizmente, minhas
feridas estavam cicatrizando. O médico me explicou que os cortes maiores
deixariam cicatrizes mais profundas, mas isso não me causava tantos problemas,
já estava feliz por ter sobrevivido. Eu continuava a espalhar o creme prescrito
pelo dermatologista, na esperança de diminuir pelo menos as marcas no rosto.
Eu usava confortáveis calças leggings pretas, cortesia de outra doadora, e um
confortável suéter cinza de fio, um pouco largo, com um generoso, mas muito
bonito decote. Com as crostas ainda espalhadas pelo corpo, eu só podia usar
roupas confortáveis.
O verdadeiro presente estava escondido. Eu ainda me lembrava da risada de
Sarah quando ela me viu abrir o pacote e com os olhos arregalados, tirar dois
pares deles. Um dos meus novos sutiãs era vermelho sangue, fazia par com a
calcinha mais linda que já tinha visto. Esses sim eram uma novidade para mim;
eu nunca tinha vestido nada tão bonito!
Thomas voltou para me visitar na mesma hora do dia anterior, enquanto eu
estava jantando. Ele sentou-se ao meu lado na poltrona e enquanto tirava o tablet
da mochila, ele começou a me contar sobre o andamento das investigações. Ele
tinha uma expressão estranha no rosto naquele dia, como se estivesse satisfeito
com alguma coisa. Eu não sabia o que ele tinha em mente, mas esperei
pacientemente descobrir enquanto ouvia as suas palavras.
Ele explicou que tinha enviado o pedido à polícia italiana para ter acesso às
imagens do aeroporto de Milão e da estrada até a alfândega suíça. Ele me disse
que havia colocado todas as informações que eu forneci no site de dados da
polícia suíça e que ele estava esperando receber respostas em breve. Ele
acrescentou que, se as informações sobre os homens e os veículos que ele havia
inserido no banco de dados coincidissem com dados já existentes, poderíamos
obter respostas mais rapidamente, pois teriam mais pistas para investigar.
Voltando o olhar para o tablet, ele me disse que também estava esperando a
filmagem das câmeras da estrada suíça e explicou que, no sul do país, na
fronteira com a Itália, existiam apenas duas rotas rodoviárias para chegar ao
norte do país e isso poderia facilitar a identificação do veículo. Depois disso, me
disse vagamente da presença de um agente da Europol, contatado
exclusivamente para o meu caso.
Escutei suas palavras com muita atenção. Para mim, era essencial obter
informações no menor tempo possível. Sem dar-lhe tempo para passar para o
próximo tópico, eu decidi contar-lhe sobre a pesquisa que havia feito. Enquanto
eu estava falando, notei que, ao contrário das outras vezes que eu tinha falado,
ele digitou no seu tablet apenas uma vez, quando escreveu o nome do site da
organização que nos levou até a Itália.
A informação que eu lhe comuniquei com grande prazer provocou nele o
efeito oposto do que eu esperava, em vez de ficar satisfeito com meu trabalho,
ele parecia irritado e me disse que essas investigações deveriam ser feitas por
ele.
— Peço desculpas, oficial Thomas.
Respondi irritada.
— O que devo fazer durante a tarde? Finalmente me sinto forte e pensei que
duas mãos a mais poderiam ser úteis nessa situação, ou não?
— Não, você está errada.
Eu percebi a sua irritação por meio daquelas palavras.
— Eu tenho outras ‘mãos’ que me ajudam. Você tenta relaxar e eu não sei,
você faz o que fazem... as mulheres. Vá conversar com os outros pacientes,
passear no jardim, pegar um livro, tem uma bela biblioteca no piso térreo.
A conversa estava indo para um lugar que eu não gostava. Mas com qual tipo
de mulheres esse homem é acostumado? Onde ele acha que eu estou... em férias
no exterior? Ele certamente não conhecia o caráter das mulheres na minha
comunidade. E quem é ele para me dizer o que eu tenho que fazer! Antes de
perder a minha boa educação, tomei um gole do chá que estava sobre a bandeja,
onde escondi meu rosto, vermelho de raiva. Respirei profundamente e tentei me
tranquilizar.
— Peço desculpas mais uma vez, oficial.
Sussurrei suavemente, com a expressão mais angélica que eu poderia fazer,
apesar da minha raiva. A verdade era que depois dessas palavras eu queria parar
de conversar com ele, só que eu ainda precisava da sua ajuda. Eu ainda era
jovem, mas a arte da diplomacia a conhecia muito bem. Viver em uma
comunidade junto com outras mulheres me ensinou muito sobre isso.
Naquele momento, decidi que continuaria com minhas investigações e que,
talvez, no futuro, desde que merecesse, eu compartilharia minhas informações
com ele. Eu decidia a minha vida. Certamente não havia enfrentado essa longa
jornada sozinha, para seguir as ordens de um homem, mesmo que fosse de uma
beleza única.
E com raiva ele é ainda mais bonito!
Estava sentado e passava a mão pelos cabelos curtos, pouco mais longos que a
sua barba. Enquanto o observava, por uma fração de segundo, me perguntei
como teria sido se minhas mãos os acariciassem. Enquanto eu estava perdida
nesses pensamentos agradáveis, ele virou o olhar e seus olhos se concentraram
na minha mão direita, que com movimentos nervosos moviam o meu cabelo
atrás da orelha e depois os deixavam cair atrás do ombro. Um hábito meu
quando eu estava irritada. Naquele momento, seus olhos fixaram-se na alça
vermelha do sutiã, visível em função do decote generoso. Sua boca se abriu,
como se ele me devesse dizer algo. Mas naquele momento, apenas um murmúrio
cobiçoso surgiu.
Ele imediatamente desviou o olhar e continuou a conversa como se nada
tivesse acontecido.
— Olha, eu não queria ser machista. A primeira frase me saiu errada. O que eu
queria dizer a você, isto é, sugerir para você, é de ser prudente porque ainda não
sabemos com quem estamos lidando. Existem algumas suspeitas, mas também
temos algumas questões a serem resolvidas antes de podermos prosseguir. E
isso, esclarecer as incertezas e organizar o trabalho, é minha tarefa. Desde que eu
encontrei você naquela floresta, você se tornou minha responsabilidade.
Ele parecia bastante satisfeito com seu belo discurso para recuperar minha
simpatia, mas ele não havia percebido que estava falando com uma pessoa que,
tudo o que ela possuía foi perdido ou se encontrava do outro lado do mundo,
com uma pessoa que, naquele momento, procurava desesperadamente por
respostas.
Com uma expressão presunçosa, ele se levantou para sair, como se a nossa
conversa tivesse terminado. Chegou até a porta e virou-se dizendo:
— Eu discuti a sua situação hoje com meu superior. Confie em mim, com sua
ajuda, vou encontrar uma solução para o seu caso. Na verdade, eu já fiz isso. Se -
— Oficial Thomas...
Antes que ele continuasse com seu pequeno discurso, eu o interrompi, não
tinha mais paciência para ouvi-lo. Eu ainda não terminei de falar.
Ainda com um sorriso que era tão falso quanto melado, acrescentei:
— Obrigada pelos seus esforços. Aproveito a oportunidade para me desculpar
por todos os problemas e dificuldades que se seguiram ao incidente. Eu faria
qualquer coisa que você me pedisse...
Ele parecia ainda mais satisfeito e feliz com a minha resposta e, quando ele
resolveu esboçar um pequeno sorriso, começou a voltar para perto da minha
cama.
Você acreditou nas minhas palavras? Muito ruim para você porque ainda não
terminei! Concluí a frase:
— Não vou voltar para o meu país sem respostas, e nem ficar aqui por muito
tempo, como uma senhora, esperando indefinidamente. Eu já lhe disse isso e,
para mim, mesmo depois do seu belo discurso, nada mudou.
Terminei a frase com palavras mais duras, sem abrir uma possibilidade de
diálogo.
O sorriso desapareceu dos seus lábios, voltando a sua séria expressão habitual.
Ele me virou as costas e, falou com a voz baixa, dirigindo-se outra vez irritado
para a porta:
— Nós quase não nos conhecemos, mas por algum motivo não esperaria de
você nenhum outro tipo de resposta.
Ele colocou a mão na maçaneta e estava prestes a sair, quando eu virei para
ele uma última vez com o meu melhor sorriso.
— Grande! Eu prevejo que nos entenderemos perfeitamente. Ao fazê-lo,
poderíamos até nos tornar grandes amigos.
— Definitivamente!
Ele respondeu, irritado, abrindo somente um pouco a porta atrás dele, antes de
fechá-la, decidido.
Muito prazer em conhecê-lo, oficial Graff. Essa sou eu, Anna Giulianni!
9. Doutor ‘Patrón’

Thomas
Com a minha sorte habitual, eu conseguia encontrar a única pessoa no hospital
capaz de me irritar apenas com um olhar.
Leonie, na frente dos meus olhos, saía do elevador conversando sobre isso e
aquilo com outro triunfante médico. Era aquele tipo de atitude que provocava a
minha fúria. Ela possuía a capacidade de tratar todas as pessoas com a mesma
distância, sem qualquer emoção, como se ela fosse um ser superior; atitude que
me incomodava muito. Talvez fosse assim que se sentiam tantos outros médicos?
Ela me cumprimentou como se eu fosse seu paciente!
Eu não conseguia entender como depois de todo o tempo passado, ela ainda
causava esse efeito em mim. Quanto mais eu pensava, mais a minha raiva
aumentava. Mesmo diante do que diziam a família e os amigos mais próximos,
toda vez que a via, percebia que ela era a única mulher capaz de me aniquilar.
Ela já havia feito isso, involuntariamente, mas havia feito. Ela me marcou por
toda a vida. Essa foi a razão pela qual eu escolhi ir embora, mantendo-me o mais
distante possível dos lugares em que poderia encontrá-la. Felizmente a maior
parte do seu tempo, era passado no hospital que além de seu trabalho era a sua
casa, o seu único amor verdadeiro. Nem mesmo o nascimento de nossa filha
conseguiu fazê-la mudar de ideia.
Eu me encontrei, sem mesmo fazê-lo de propósito, a lembrá-la de todas as
etapas do crescimento de Mia que ela estava perdendo.
— Você nem vem vê-la. Você poderia pelo menos, tentar aproximar-se dela,
poderíamos dizer que você é uma amiga minha, a Mia nem sequer notaria. Mas
como você faz, Leonie, para ser tão fria?
Atacá-la não me fazia sentir melhor, mas eu perdia a lucidez na sua presença.
Ela era muito educada para interromper o meu discurso, então continuei furioso:
— Você sabia que ela começaria o primeiro ano letivo em agosto, eles
provavelmente farão a excursão ao zoológico. Todos os pais estarão na
apresentação que acontecerá logo depois. E Mia, onde estará a mãe dela?
Ela me olhou com dó, com uma piedade de merda! Quando ela tocou meu
braço e me lembrou de que já havíamos discutido nossa situação, tive que pensar
onde eu estava naquele momento, para não começar a gritar. Geralmente nossas
discussões terminavam assim: eu, que gritava como um louco e ela, com
dignidade, falava comigo como se eu fosse um demente. Acrescentei, com
maldade:
— Realmente vamos esquecer, você simplesmente não entende nada, não se
importa com ela...
Nem comigo.
Ela tentou novamente falar comigo e eu a ignorei, tratando-a com frieza.
Então, dirigi-me para aquela que eu tinha deixado me esperando.
Pedi desculpas a Anna, sentia-me envergonhado. Levei-a de volta ao seu
quarto, rapidamente, pelos corredores compridos. Toda a discussão de antes
girava na minha cabeça e quanto mais eu pensava, mais a fúria aumentava.
Naquele momento, esperava apenas chegar em casa e encontrar aquela velha
garrafa de Patrón para me fazer companhia.
Despedi-me da jovem e saí dali o mais rápido possível. No estado em que eu
estava, eu só queria fugir, ver minha filha e encontrar aquela garrafa.
Quando finalmente cheguei em casa, era praticamente hora de Mia ir para a
cama. Corri até a casa da minha irmã para cumprimentá-la.
Emma, minha irmã, morava com o seu marido no outro lado da nossa casa.
Mia era uma menina de sorte, ela tinha três quartos, um em cada casa, embora,
quando estava com a minha mãe, compartilhavam a cama, que a morte do meu
pai deixou vazia. Minha irmã estava tentando há algum tempo, sem sucesso, ter
filhos e Mia parecia mais filha sua do que minha.
Todos nós tentávamos preencher a lacuna deixada pela ausência da sua
verdadeira mãe. Mia tinha seis anos e, até aquele momento o nosso amor parecia
ser suficiente. O meu maior medo era: até quando o nosso amor bastaria para
ela?
Bati na porta da minha irmã e entrei. Nós quase nunca fechávamos nossas
portas.
— Oi Thom.
Minha irmã e Hans, seu marido, me cumprimentaram em uníssono. Eles
estavam na cozinha terminando de jantar.
— Mia está esperando por você, depois, passe por aqui que eu cozinhei para
você também.
Agradeci-lhes e subi as escadas dois a dois para chegar à minha filha. Quando
cheguei à porta de seu quarto, ouvi-a cantando suavemente. Apenas ouvir a sua
voz tinha o poder de trazer um sorriso aos meus lábios. Mia era a única coisa
bonita na minha vida.
Eu a ouvia cantando um verso da canção de ninar que minha mãe tinha
ensinado quando ela era criança:
— Nana nenê... pegar... no cafezal.
Eu ainda fiquei escutando a sua voz inocente, enquanto meu coração se enchia
de alegria. Abri a porta lentamente e sussurrei:
— Olá bebê, você está pronta para dormir?
De debaixo do edredom, vi seus olhos azuis se iluminarem sob a franjinha,
sabia que o seu maravilhoso sorriso escondido ali embaixo, era todo para mim.
Ao seu lado, seu inseparável e antigo ursinho de pelúcia. Ele estava todo liso e
macio, resultado de infinitas passagens pela máquina de lavar.
— Olá, papai. Miffy e eu estamos prontas para dormir. Papai é amanhã que eu
tenho que ir à escola, aquela dos grandes? Já fizemos a mochila.
Ela apontou para Miffy e imediatamente para uma mochila em cima da mesa.
Ela tinha os cabelos loiros ainda mais claros do que aqueles da sua mãe e um
caráter doce e tranquilo. Seus olhos, sempre brilhantes, se destacavam nas suas
bochechas vermelhas; resultado da vida ao ar livre. Ela chegou como uma
dádiva, no mesmo ano em que perdemos meu pai. A alegria que trouxe consigo
foi a salvação, naquele período sombrio. Juntamente com Betsy, era responsável
pelos momentos mais felizes da minha vida nos últimos anos.
— Não, Mia, as aulas começarão daqui a dois meses, não se preocupe, na
noite anterior te avisamos, eu ou a tia. Você pode dormir tranquila.
Sentei ao lado dela na cama e beijei a sua testa. Ela ainda tinha aquele
delicioso cheiro que só as crianças possuem.
— Papai, hoje eu fui visitar, com a tia Emma, uma égua que tinha uma barriga
enorme. A tia Emma me disse que tinha um pequeno cavalinho lá dentro.
Senti a emoção em sua voz pela sua incrível descoberta. Ela continuou me
dizendo:
— Quando ele nascer, posso vê-lo?
— Eu penso que sim, mas temos que perguntar à tia se ela pode levá-la junto
quando o potrinho nascer. Enquanto isso, você deve se comportar bem e ajudar
em casa. Agora é hora de dormir.
Ela fechou os olhos, mas eu ainda podia ver o seu sorriso embaixo do
edredom. Permaneci por alguns minutos para contemplá-la, meu coração cheio
de alegria, comecei a cantar junto com ela, esperando que ela adormecesse.
Quando voltei para a cozinha, encontrei minha irmã que comia a sua fruta.
Hans tinha ido verificar o antigo trator da fazenda. Aproveitei a tranquilidade do
momento para esquecer o encontro desagradável com Leonie. Sentei-me com a
refeição na minha frente.
Emma levantou-se para colocar os pratos na máquina de lavar louça e
começamos a conversar sobre o nosso dia. Ela, como nossa mãe, estava curiosa
para ter mais informações sobre a garota que eu havia encontrado. Contei a ela
que havia descoberto sobre a jovem e como as investigações prosseguiam.
Deixei fora da história o meu desagradável encontro com a doutora. Minha irmã,
que não era boba, notou que algo estava errado, não fez nenhuma pergunta, mas
eu sabia que ela estava preocupada comigo.
Eu terminei o jantar, agradeci-lhe e fui buscar Betsy. Ela tinha tanta sorte
quanto Mia. Possuía caminhas espalhadas por toda a fazenda e aproveitava a
atenção de todos, incluindo o senhor Schmidt, que ajudava com os cavalos e
outros trabalhos.
Encontrei minha mãe, sentada na cadeira que tinha sido do meu pai, lendo um
livro, com Betsy dormindo a seus pés, no tapete. Betsy me recebeu abanando o
rabo, sem se levantar.
— Boa noite, Thomas.
Minha mãe me falou levantando os seus olhos, com os óculos de leitura,
enquanto fechava o livro:
— Sente-se aqui comigo, se você tiver tempo.
Antes que ela pudesse me perguntar sobre o meu dia, porque eu sabia que não
seria capaz de enganá-la, como havia feito com Emma, disse:
— Olá mã, eu vim só buscar Betsy, ela nos ajudará amanhã na estação.
Faremos controles extras na alfândega de Jestetten e o cão deles está na fronteira
com a Áustria.
Caminhei em direção à porta, tinha que ir embora, se quisesse evitar
perguntas. Além disso, precisava de um pouco de solidão.
Obviamente, ela entendeu meu estado de espírito. Com um assovio, fiz
levantar Betsy que, relutantemente, veio até mim.
— Tudo bem, vejo que você está com pressa. Se você precisar de algo, eu
ainda vou estar aqui por uma hora, depois vou para a cama. Amanhã, chegará
um novo cavalo pela manhã. Você pode levar Mia para a escola? Hans tem que ir
até a cidade para pegar uma peça de reposição para o trator. O senhor Schimdt
quer substituí-la após o almoço, se você estiver livre, venha ajudá-los.
Mandei um beijo a ela, quando abri a porta e deixei Betsy sair.
— Se eu tiver tempo, venho com prazer. No final do dia eu tenho que ir ao
hospital para encontrar Anna e, depois, à noite, vou precisar do seu conselho
sobre algo que tenho em mente. Boa noite, mã.
Ouvi que ela perguntou sobre a garota, enquanto fechava a porta atrás de mim.
Era melhor se as coisas fossem assim. Os últimos anos foram bastante
tranquilos, mas passamos por momentos difíceis e não queria acrescentar novas
preocupações com meus problemas pessoais.
Deixei Betsy dar um passeio no pátio, sentei-me no velho banco de madeira
perto da fonte, construída pelo meu bisavô há quase um século, que naquela
época do ano estava coberta de flores e hera. Normalmente, ouvir o som da água
e ver as inúmeras estrelas no céu me acalmava. Eu ainda tentei por alguns
minutos me aquietar, mas no fim, a única coisa que queria realmente era a
garrafa de tequila. Muitas vezes, no passado, eu tentei entender a mente da
minha ex. Se eu não podia entendê-la sendo sóbrio, talvez o Dr. Patrón me
ajudaria a clarear a minha mente, ou então, cairia no oblívio.
Entrei em casa com Betsy correndo na direção da sua caminha ao lado da
pequena lareira na sala de estar. A minha cozinha era aberta, ligada à sala de
estar por um balcão que servia como mesa de jantar. Ao lado, um corredor
levava ao quarto de Mia e depois ao meu e, no fim dele, ao banheiro. Ao lado da
entrada, uma escada conduzia ao andar de cima, onde eu tinha montado, no
sótão, uma pequena academia. Ali eu havia pendurado um velho saco de boxe,
uma barra para fazer flexões, um banco com pesos e um tatami. Esse era um dos
lugares favoritos de Mia em dias frios ou chuvosos. Eu tinha montado espelhos
na parede, na frente do tatami, onde ela gostava de fazer seus saltos e piruetas
enquanto se observava.
Fui à cozinha e abri a porta da geladeira. Não era difícil vê-la, já que não tinha
muitas coisas dentro. A garrafa estava na metade, mas decidi que seria o
suficiente; no dia seguinte eu ainda tinha que ir trabalhar. Nem pensei em pegar
um copo ou uma fatia de limão; naquele momento, eles eram dispensáveis.
Sentei-me confortavelmente no sofá, tirei meus sapatos, meias e o cinto,
deixando tudo no chão. Olhei a garrafa por alguns instantes, quase me
arrependendo, então tomei o primeiro gole. E, daí, continuei direto.
Quando cheguei quase ao final da garrafa, veio a força de pensar e lembrar o
passado, decidi descontar a minha raiva no saco de boxe. Com certo esforço,
levantei-me do sofá e fui até as escadas. Tropecei e xinguei quando tentei tirar
minha camisa e, com alguma dificuldade, cheguei ao andar de cima. Liguei o
telefone aos alto-falantes e coloquei a música. Eu tinha algumas playlists para os
exercícios, mas com os olhos que se cruzavam, demorei um pouco para
encontrar o que eu queria.
Nem perdi tempo enfaixando as minhas mãos com as bandagens, era tudo
muito difícil naquele momento. Tirei as calças ‘cargo’ do uniforme, sem elas
estava mais confortável. Se eu tivesse que descer para procurar os shorts de
ginástica, seria difícil encontrar as escadas para subir de novo.
O primeiro soco tocou o saco um pouco fora do centro, mas com a justa dose
de raiva incorporada. Depois de um aquecimento com os punhos, quando senti o
suor começar a escorrer na minha nuca, comecei a chutar.
Escutei a música, deixei-me guiar pelo ritmo. Eu simplesmente não queria
pensar em Leonie e em toda a dor que eu levava dentro de mim há tanto tempo.
Porque eu não consigo esquecê-la?
Claro, eu já tinha ficado com outras mulheres. Mas não conseguia me apegar,
criar raízes. A verdade era que eu não confiava mais em ninguém.
Parei de repente e me olhei no espelho, apenas com as cuecas boxer pretas. Eu
não era uma beleza, certamente não de capa de revista de moda. Minha
mandíbula era quadrada, meu nariz era reto, tinha uma expressão muito intensa,
quase dura. Meus cabelos castanho-escuros, entre os quais, no passado, Leonie e
as outras garotas adoravam passar os dedos, mantinha-os curtos praticamente a
zero. Nos meus olhos azuis, ressaltados pelas sobrancelhas escuras, eu podia
perceber a falta da alegria que neles existia. Meu sorriso era reservado apenas
para Mia. Meu corpo era perfeitamente esculpido, mantê-lo assim era
fundamental para o meu trabalho. Mas dentro de mim, o vazio prevalecia
supremo. Nesses anos, em quem me transformei?
Eu respirava fortemente e sentia o suor correr pelas minhas costas e abdômen.
Verifiquei as mãos e os pés para ver o dano feito, eles estavam bastante
vermelhos, já machucados, assim decidi fazer uma pausa para beber água no
pequeno banheiro que existia ali.
Quando voltei, agachei na inútil tentativa de fazer um pouco de flexões, não
confiava em mim mesmo para fazê-las na barra, mas colapsei no tatami, bati a
cabeça no chão. Sentia um pouco de frio devido ao suor e ao fato de estar sem
roupas, mas a posição era muito confortável para levantar-me e ir para a cama.
Quando estava prestes a adormecer, vi o rosto de Anna, quando conversamos
no hospital. Ela me pediu para deixá-la ficar aqui, talvez fosse mais seguro
mandá-la de volta. Mas, depois de tudo o que ela tinha passado, tínhamos pelo
menos que investigar. Eu entrevi a determinação nos seus olhos e sabia que ela
não iria desistir facilmente. A garota é uma pimentinha!
Um sorriso estranho nos lábios e uma sensação quase irreconhecível de bem-
estar me embalaram o sono.
No dia seguinte, felizmente, Adam me acordou com o barulho irritante do
telefone. Eu cambaleei até as caixas acústicas para pegá-lo, enquanto tentava me
recordar como eu tinha acabado lá em cima.
— Bom dia, Thom boy. Mas quanto tempo você leva pra responder, cacete,
pensei que você estivesse morto! É a segunda vez que eu ligo para você, a
primeira caiu na secretária. Você sabe que é segunda-feira, vamos à academia
antes do trabalho, lembra? Onde você está?
Ele tinha o mau hábito de falar muito rápido e não esperar a resposta. Naquele
momento, a coisa me confundia muito.
— Merda Adam, vai devagar. Acabei de acordar.
Tentei voltar para o tatami quando lembrei, pelas suas palavras, que tinha que
ir trabalhar. Felizmente, entrava mais tarde. Minha cabeça latejava, estava todo
suado e sentia um gosto terrível na boca.
— Eu vou à academia mais tarde, comece sem mim. Espera, na verdade, não
vou hoje porque já treinei ontem, depois de passar no hospital.
Se é que você pudesse chamar de treinamento o que eu tinha feito. Eu estava
sentado no chão, olhando os meus pés e mãos, que estavam muito esfolados por
não ter usado as proteções.
— O que aconteceu, Thomas? Eu conheço esse seu tom de voz. Eu não sou
tua mulher, mas posso jurar com essa sua voz rouca e nebulosa que você bebeu
muito ontem. Você esteve no hospital, no domingo? Espera... não precisa me
responder. Deixe-me adivinhar por que não te vimos no jogo de voleibol.
Quando o tempo estava bom, nos encontrávamos no fim de semana para jogar
voleibol ou basquete nos campos esportivos que eram perto da escola. Eles
estavam à disposição dos cidadãos nos fins de semana e feriados. Na Suíça, os
jardins de infância e as escolas primárias eram construídos perto uns dos outros.
As crianças iam para a escola junto com os amigos do bairro. Aqueles que
tinham mais de seis anos de idade podiam ir sozinhos, sem serem acompanhados
por um adulto. Era obrigatório para os alunos, até o final da escola secundária,
frequentar a escola do bairro, isso significava menos tráfego e,
consequentemente, menos poluição.
— Não vamos iniciar Adam. Sim, eu fui até o hospital para ver a jovem, Anna
Giulianni, infelizmente eu cruzei a Leonie e sim, eu bebi!
Não gritava porque minha cabeça estava doendo demais, mas o tom da minha
voz era um aviso. Adam era um querido amigo há muito tempo, ele conhecia
toda a minha história e, assim como aqueles da minha família e outros
conhecidos, não conseguia entender minha fixação por aquela mulher. Merda,
nem eu entendia!
Antes que ele começasse a falar, acrescentei:
— Estou bem, não se preocupe. Apenas me dê tempo para tomar banho, levar
Mia à escola e nos vemos na estação.
— Ok Thom, até breve. Veja se você chega com uma cara feliz e sorridente ou
eu vou te mandar hoje de noite ao clube de strip-tease para eliminar o stress. Os
caras encontraram um fantástico, perto da alfândega de Konstanz.
Eu ainda ouvia sua risada quando desliguei o telefone.
Eu tinha que me trocar, Mia tinha que ir à escola e não tinha muito tempo.
Tomei um banho rápido, recuperei tudo o que tinha jogado pela casa, e,
apressadamente, bebi um cappuccino da cafeteira eletrônica que eu me
presenteei no Natal anterior. Coloquei-a em exibição acima do balcão da cozinha
e, graças a ela, minha mãe e minha irmã muitas vezes vinham me visitar e me
agradeciam oferecendo-me refeições ou roupas lavadas. Essa era outra vantagem
da nossa vida na fazenda. Geralmente a esposa do senhor Schmidt cuidava das
tarefas domésticas. Só que, nos últimos meses, não desfrutando de excelente
saúde, ela havia diminuído os seus esforços e, portanto, tínhamos que dividir
esses trabalhos entre nós.
Depois de me despedir de todos, deixei Mia no maternal e fui para a estação
de polícia. Tínhamos ido de bicicleta, Mia queria mostrar a todos a pequena
cesta de vime, que o senhor Schmidt tinha montado na sua bicicleta para levar
Miffy.
Cheguei cedo para trabalhar e atualizei o capitão da situação de Anna.
Coloquei outros dados no computador e aproveitei para verificar os pedidos que
fizemos para a polícia italiana, bem como vídeos das nossas estradas, nas
fronteiras austríacas e alemães.
Como matéria opcional na escola, podíamos aprender os três idiomas do nosso
país: ao norte e ao leste falávamos alemão, a oeste, francês e ao sul, italiano. Isso
nos beneficiava na comunicação com os países vizinhos.
Quando Adam chegou, discutimos as diferentes tarefas do dia, que exigiam
nossa atenção. Era uma semana bastante tranquila e isso nos permitiu dedicar
tempo à investigação de gangues de tráfico de seres humanos.
Com o aumento do número de refugiados, tivemos que aumentar
drasticamente o controle nas nossas fronteiras. A Suíça se encontrava no centro
do continente europeu, mas não fazendo parte da comunidade europeia, não
seguia as mesmas leis sobre imigração e sobre o asilo político dos outros países
membros.
Eu queria falar com o capitão sobre esse assunto. Nós possuímos permissões
de residência, especiais para pessoas que solicitam asilo como refugiados ou
imigrantes. Se existia alguém, que poderia fazer Anna ficar aqui, era ele. Eu só
deveria convencê-lo de que ela era necessária para o sucesso da nossa
investigação. Ter a chance de eliminar uma gangue era uma fonte de grande
satisfação para nós policiais. Com o passar dos anos, acumulávamos cada vez
mais vitórias e isso nos levava a trabalhar de forma ainda mais intensificada,
muito embora, trabalhar em equipe com a polícia dos países vizinhos nem
sempre era uma tarefa fácil.

***

No final do dia, sem perceber, encontrei-me novamente na estrada do hospital.


Deixei minha identidade na entrada principal e subi as escadas para chegar ao
segundo andar. Hoje eu estava muito mais calmo, sabia que a jovem estava se
recuperando bem e tinha boas notícias para contar a ela. Ela ficaria feliz.
Quando cheguei, ela estava jantando, ainda tinha algumas bandagens nos seus
braços, felizmente as cicatrizes faciais estavam curando-se bem. Nos seus olhos,
vislumbrava quanto nervosa e cansada ela ainda estava. No entanto, eu também
conseguia ver uma espécie de alegria em seu semblante, sentimentos que só
podem expressar aqueles que tiveram uma segunda chance de viver.
Sentei-me na cadeira ao lado dela e, enquanto estava comendo, contei a ela
sobre os desenvolvimentos do dia. Obviamente eu deixei de lado a parte que
passei na companhia do doutor Patrón. Deixei a melhor notícia para o final,
minha ideia assumia sempre mais e mais forma, em qualquer caso, eu tinha
certeza de que seria capaz de obter aquilo que eu tinha em mente.
Ela pendia dos meus lábios quando falava, especialmente quando mencionei
as informações que poderíamos obter dos países vizinhos. Eu me sentia
orgulhoso, estava fazendo um bom trabalho em tão pouco tempo.
Estava me preparando para contar-lhe a notícia mais importante, quando ela
começou a contar-me sobre o que ela tinha feito durante a tarde. Passei-lhe
educadamente a palavra. O problema era que, quanto mais ela me contava que
havia feito aquilo que era, definitivamente, o 'meu' trabalho, mais eu ficava com
raiva, sem sequer tentar disfarçar. A paciência não era uma das minhas virtudes.
Quando, gentilmente, disse a ela para passar, por exemplo, uma tarde tranquila
na biblioteca do hospital, ela se enervou. Era incrível! No seu rosto, eu podia ver
a fúria, tentava escondê-la e conseguiu porque, quando ela abriu a boca, me
respondeu suavemente. O contraste era impressionante. Eu assistia na primeira
fila duas emoções opostas que duelavam na sua alma.
Infelizmente não foi o suficiente para distrair-me; com raiva, esfregava as
mãos nos cabelos. Se fossem mais longos, eu seria capaz de arrancá-los. Olhei
para ela duramente e percebi que ela estava ciente das minhas emoções. Ela
olhou para o chão e colocou um faixo de cabelos atrás da orelha direita e então,
com um movimento gracioso, trouxe o pequeno faixo atrás de seus ombros.
Certamente ela fazia isso muitas vezes sem nem sequer perceber.
Aquele simples movimento teve o poder de me bloquear. Havia algo nele que
me enfeitiçava. A situação tornou-se ainda mais embaraçosa quando vislumbrei,
pelo decote do seu suéter, uma alcinha vermelha na delicada pele do seu ombro.
Mas que diabo, onde ela encontrou um sutiã vermelho?
A minha respiração tremeu, mas me recuperei rápido enquanto me desculpava
pelo comentário que tinha feito antes. Levantei-me, como se fosse embora. A
verdade era que eu não me lembrava mais tão bem sobre o que havia falado
antes: planejamento ou responsabilidade, algo assim. Por que estou assim tão
atormentado? Que cacete está acontecendo comigo?
De repente, lembrei-me da ideia, da qual ainda não tinha falado com ela, e
quando voltei para contar sobre o assunto, ela me cortou. Finalmente, começou a
dizer as palavras que eu queria ouvir, talvez nós dois concordássemos que aquele
era o meu trabalho, e que eu estava mais que preparado para fazê-lo. Aquelas
deveriam ser as suas palavras, certo? Não, estava tudo errado!
Ela girou todas as suas e as minhas palavras novamente, aquilo me deixou
furioso, então ela acabou dizendo que faria o que ela queria fazer. Como e
quando ela desejasse! Você deve estar brincando comigo?!
Não podia encontrar uma garota quieta e obediente na floresta? Não! Eu tinha
que encontrar uma teimosa que batia de frente comigo. E, pior ainda, sob a
minha responsabilidade! Se alguma coisa tivesse acontecido com aquela garota,
nunca teria me perdoado e o capitão teria me arruinado.
Para terminar, ela teve a coragem de concluir a discussão com um sorriso
luminoso e um aceno a uma futura amizade entre nós. Certamente... como não!
10. A história

Anna
Eu havia ganhado aquela rodada, mas a batalha seria longa e difícil. Teria que
usar de toda a minha astúcia para implementar o meu plano: um plano
desesperado. Naquele momento eu só queria ficar no país e encontrar as irmãs e,
com sorte, as jovens da van. Depois, voltar para casa e para Joaquim.
Para isso, eu tinha que me manter submissa e fazer o oficial acreditar que faria
tudo o que ele quisesse. Conversando com algumas enfermeiras, descobri que se
podia fazer voluntariado no departamento pediátrico ou geriátrico, por algumas
horas de manhã ou à tarde, no mesmo horário da sala de informática.
Naquela tarde, decidi passear para conhecer os dois departamentos. Eu estava
acostumada a cuidar de crianças e idosos, mas, acima de tudo, eu estava cansada
de 'descansar' o dia todo.
Saí do meu quarto e disse à enfermeira que iria visitar a ala pediátrica.
Cheguei à ala, apresentei-me à enfermeira de plantão e conheci-os. Fiquei feliz
em ver que, mesmo doentes, as crianças não perdiam a alegria de viver. Passei
algum tempo com eles, depois avisei a enfermeira que iria até o jardim para
fazer uma caminhada. Em vez de ir até lá, fui visitar os idosos. Eles também
alegravam o meu coração, mas de uma maneira diferente. Embora alguns não
tivessem mais muita alegria de viver, a maioria procurava apenas um bom
ouvinte para compartilhar suas histórias. Era possível aprender muito com as
pessoas idosas. Passei também algum tempo com eles.
Antes de sair, informei à enfermeira que voltaria à pediatria e, finalmente, fui
à sala de informática. Como não gostava de mentir, se Thomas tivesse me
perguntado onde eu tinha estado, tinha, pelo menos, três lugares diferentes para
usar como desculpa.
Na sala de computadores, chequei meus e-mails com a esperança de que
alguém da associação me tivesse respondido. Somente Joaquim havia escrito,
dizendo que havia entrado em contato com a irmã Benedetta e a tinha informado
sobre mim. Ele pedia mais informações sobre minha estadia no país e, nas
poucas linhas que escreveu, parecia preocupado comigo. Quando eu havia
escrito para ele, tinha sido muito vaga sobre a minha chegada e sobre onde
estava. Talvez isso o preocupasse. Eu realmente não sou boa em dissimulações.
Eu queria contar-lhe tudo sobre o incidente, mas primeiro, queria obter algumas
respostas. Temia que ele me obrigasse a voltar se eu lhe contasse tudo o que me
aconteceu, então decidi, por enquanto, não responder seu e-mail. Não estou lhe
dizendo uma mentira, mas estou apenas ganhando tempo antes de dizer a
verdade.
Rapidamente, agrupei e imprimi algumas informações que me seriam úteis e
me encaminhei em direção à biblioteca que se encontrava ao lado. Lá, peguei
emprestado o livro mais grosso que encontrei e escondi os papéis que eu havia
impresso. Nos dias seguintes, eu continuaria a procurar mais informações sobre
tráfico na Europa. Eu ainda tinha que decidir sobre o tipo de tráfico que iria
investigar. O tráfico humano parecia-me o mais provável, mas procuraria
também informações sobre drogas, onde poderíamos ter servido como
mercadoria de barganha. Fiquei fascinada com todas as informações que podiam
ser encontradas na internet. Que coisa incrível!
Naquele momento, tinha material suficiente para trabalhar. Sentei-me
confortavelmente no jardim com o meu lindo livro no colo e comecei a ler os
papéis que havia escondido dentro dele, aguardando o charmoso policial que
viria visitar-me.
Como eu não tinha muitas roupas, optei pelas confortáveis calças leggings
pretas, um par de tênis e uma camiseta lilás que, na minha opinião, pertencia
anteriormente a uma dançarina. Era um modelo largo, mas que se apertava em
torno dos quadris, cobrindo-os. Ela tinha sapatilhas de dança desenhadas na
frente e as mangas eram três quartos. Era de um tecido macio que se moldava ao
corpo. Adorei-a à primeira vista, nunca tinha possuído nada tão bonito.
Ganhei dois vestidos considerados 'decorosos', como os descreveria a irmã
Maria, que terminavam nos joelhos e que eu também gostava. Mas nada
parecido com isso, que se moldasse ao corpo e que me fazia sentir bonita e
sedutora. Juntamente com o meu novo conjunto de sutiã e calcinha vermelhos
eram, por enquanto, minhas roupas favoritas.
O pôr-do-sol veio e trouxe com ele um leve ar fresco que me fez pensar
imediatamente na jaqueta que tinha esquecido no quarto. Estranho, como
naquelas semanas minha vida foi completamente alterada. Naquele momento, eu
estava pensando no anônimo quarto de hospital como 'meu quarto' e aquelas
poucas peças de roupas, que, todas juntas, ocupavam um pequeno guarda-roupa,
tornaram-se os meus únicos bens. Estava do outro lado do mundo
completamente sozinha, sem respostas, com apenas meias verdades e poucas
perspectivas para o futuro.
Com certa tristeza que eu queria me convencer, não estava ligada à ausência
de um certo oficial, mas sim à distância de todos os meus entes queridos, decidi
voltar para o quarto.
Quando passei no corredor, reconheci Sarah, que estava de serviço e ela me
informou que meu anjo da guarda, como gostava de chamá-lo, havia telefonado
e perguntado sobre o meu estado de saúde. Ele também pediu a ela para dizer-me
que não poderia vir naquela noite, porque tinha outros compromissos. Agradeci
com um sorriso pouco convincente e fugi para o quarto.
Quando ela veio para recolher a bandeja do jantar, parou ao lado da cama e me
falou em voz baixa, em tom de conspiração.
— Eu vi seu rosto triste quando você voltou.
Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, acrescentou:
— Você é uma boa garota, Anna. Se você quiser falar comigo, estou
terminando o meu turno e sempre tenho alguns minutos para uma boa conversa.
Concluiu com uma piscadinha.
Eu não sabia por onde começar, mas me parecia certo falar com alguém que
tinha quase minha idade. Assim, contei-lhe uma parte da minha história.
Sem me interromper, sentada confortavelmente ao meu lado, fazendo apenas
alguns acenos de assentimento ou negação, ela me deixou abrir a minha alma e o
meu coração. Não lhe contei nada sobre Joaquim e nós dois, esses eram
momentos que pertenciam só a mim. Quando cheguei ao final da história, ela
estava com uma expressão incrédula e sua boca se abriu para emitir um pequeno
assobio.
— Caramba Anna, você é uma garota realmente corajosa e com uma sorte
impressionante. Sua história poderia ser contada em um livro.
Acrescentou enquanto sorria:
— Nessas semanas, entre nós, enfermeiras, conversamos muito sobre você.
Fizemos diversas conjecturas sobre sua história, mas honestamente nunca
pensaria sobre isso. O simples fato de ter viajado sozinha para se tornar uma
voluntária é incrível, sem mencionar o que aconteceu com você mais tarde.
Ela me olhou interrogativamente, mas quando viu que não iria adicionar mais
informações, prosseguiu:
— Em uma das nossas conversas entre enfermeiras, também falamos sobre
seu anjo da guarda. Obviamente, você não sabe, mas o seu esplêndido policial
também tem uma história triste por trás dele. Não se trata de uma história que
podemos provar, mas visto que somos todas uma grande família neste hospital, e
sendo nós enfermeiras famosas pelas nossas 'fofocas saudáveis'…
Ela acrescentou, enquanto o sorriso no seu rosto crescia cada vez mais.
— Se você estiver interessada e já vejo nos seus olhos, que o tema lhe causa
muito interesse, poderíamos falar sobre ele.
Por que ela definiu o policial 'meu' esplêndido? Não entendi...
A história de Thomas, sim conte-me!
Eu tinha vindo de outro país, mas as 'fofocas saudáveis' das enfermeiras,
também eram conhecidas no nosso território. Sem esconder minha curiosidade,
me acomodei na cama e aceitei, com firmeza, que ela dissesse o que sabia,
enquanto me preparava para a história de Thomas. Obviamente, por pura
curiosidade feminina. Nada mais.
— Bem, começamos. O oficial Thomas Graff é conhecido no nosso hospital.
Eu ouvi de uma fonte confiável, que vocês acidentalmente encontraram a
doutora Werni, quando vocês estavam voltando do jardim. Thomas e a médica
tiveram uma história que poderíamos dizer, terminou anos atrás neste hospital.
— As vozes dizem que eles se conheceram na escola, parece. Lembro-me
dela, Leonie Werni, ainda uma jovem estudante, aqui no hospital. Uma garota
decidida e apaixonada, sempre ao lado do seu pai, um dos mais famosos
obstetras da Suíça. Naquela época, ela já sabia exatamente onde queria chegar,
assim como ainda hoje. É considerada uma das nossas melhores pediatras,
apesar de ser ainda jovem. Imagine que ela é considerada referência no
departamento pediátrico de todo o estado! O que aconteceu com ela e com o
oficial foi uma casualidade ditada quando eles eram ainda muito jovens. Você
sabe do que estou falando?
Eu não tinha ideia a que coisa ela se referia, mas antes que eu pudesse
responder a sua pergunta, continuou a sua história:
— Mia, eu acho que esse é o nome dela. A filha deles nasceu aqui, seis ou sete
anos atrás, se eu me lembro corretamente. Um pequeno anjinho.
Embora minha boca estivesse aberta com consternação, ela continuou:
— O fato é que a médica não estava preparada para se tornar mãe. Uma pena,
mas para nós que trabalhamos no âmbito hospitalar, perfeitamente
compreensível. Nós doamos uma parte significativa das nossas vidas aos
pacientes e o fazemos de bom grado. É uma carreira cansativa que, na minha
opinião, é amplamente recompensada pela gratidão dos nossos pacientes e suas
famílias. Em qualquer caso, a doutora escolheu não manter o bebê. Desde o
início da gravidez, pontualmente, ela passava pelas visitas mensais. Todos nós
sabíamos que, se a família Graff não quisesse o bebê, seria deixado para adoção.
Não sabia como reagir a tudo o que ela estava me contando. O oficial Thomas
é pai..., uma criança, com a doutora... adoção? Aquele era o motivo da
discussão na entrada do elevador. Agora entendia o seu ressentimento com a
médica por não querer sua própria filha. Qual é a mulher que não tem instinto
maternal?
— Aquela situação, como você pode imaginar, gerou muito stress no policial.
Ele queria ambas, mãe e filha, você entende? Infelizmente ela não compartilhava
da mesma ideia dele. Se existe uma coisa que você percebe de longe é a
determinação daquela médica. Ela nasceu para fazer este trabalho e o adora
acima de tudo, infelizmente também acima dele e do bebê.
Quando notou a minha expressão consternada ela acrescentou:
— Espera Anna, antes de tirar as suas conclusões, deixe-me terminar a
história. Quero fazer você entender por que, na minha opinião, a doutora tomou
essa decisão drástica.
— Nosso hospital, como muitos outros na Europa, manda jovens médicos
todos os anos em frentes de guerra. Eles são enviados para campos de refugiados
na Síria, Grécia, Turquia, África e onde quer que sejam necessários. Eles
trabalham sob um stress terrível, arriscando a vida diariamente e, muitas vezes,
por meses, vivem praticamente isolados do resto do mundo. A doutora Werni
está terminando sua especialização e provavelmente partirá no outono, para
trabalhar junto com o pai. Daqueles que a conhecem bem e, confie em mim
quando te digo que são poucos, parece que esse sempre foi seu objetivo depois
de anos de estudos e trabalho duro.
— Para terminar a história, eu te faço uma pergunta. A doutora tem ou não
tem razão em ter deixado tudo para perseguir seu sonho? Quem somos nós para
julgá-la?
Sarah poderia estar certa. Eu não quero julgar a médica, aliás, quem sou eu
para julgá-la. No Brasil, crianças são abandonadas por muito menos. Eu as vi
com meus próprios olhos, acolhi-as nos meus braços. De certa forma, eu
também fui uma criança abandonada.
Eu me lembrava da expressão transtornada da doutora e agora que sabia o
motivo da discussão, conseguia entendê-la melhor. Ela tinha feito uma escolha
de vida que ele obviamente não concordava. Ela continuou perseguindo seus
sonhos, enquanto ele aparentemente, permaneceu prisioneiro do passado.
Sarah levantou-se da cadeira e, pegando a bandeja que tinha deixado na mesa,
foi até a porta.
— Tenha uma ótima noite e um bom descanso, Anna.
— Use como lição aquilo que acabei de te contar. Com a minha experiência
de trabalho, posso dizer com segurança que podemos encontrar a felicidade onde
menos esperamos.
Acrescentou com uma expressão séria:
— E, nos momentos mais sombrios da nossa vida. Nós somente precisamos
dar-nos a oportunidade.
E com isso, sorrindo de novo, ela me deu outra das suas piscadinhas e saiu,
fechando lentamente a porta.
Naquela noite, tive outro pesadelo. Sonhei com uma criança cujo rosto não
conhecia, que estava correndo desesperadamente comigo, com as irmãs e
Thomas em uma floresta escura. Dele ouvia apenas os gritos desesperados. Nós
nos procurávamos em uma semi-escuridão, sem conseguirmos nos encontrar.
Quando acordei, meu rosto estava banhado em lágrimas. Já era de manhã,
quando liguei na enfermaria para pedir o sedativo. Eu tinha medo de fechar os
olhos e tinha esperança de que o remédio me garantiria algumas horas de sono
tranquilo. Por favor...
11. O plano

Thomas
Comecei meu dia indo à academia no início da manhã; não consegui dormir
por muito tempo. As palavras insolentes da jovem Anna ainda atormentavam a
minha cabeça. Normalmente, as minhas discussões não acabavam até que eu
vencesse ou até estar totalmente convencido do meu erro. Obviamente, não
nesse caso.
No final, fui embora sem explicar o plano que desenvolvi junto ao capitão e
ao agente da Europol. Eu ainda tinha que ver com a minha mãe o último e mais
importante detalhe, mas a ideia amadurecida era boa.
O agente italiano queria vir pessoalmente questioná-la no hospital, coisa que
eu claramente não aprovava. Antes de nossa discussão se transformar em algo
inesperado e áspero, o capitão interveio a meu favor. Ele concordava comigo,
não fazia sentido começar a estressar a testemunha enquanto ela ainda estava
hospitalizada. Seria eu mesmo, com confiança e com o vínculo criado, a pessoa
mais indicada para reunir as informações de que precisávamos. Não aquele
oficial arrogante disfarçado de ''James Bond".
Não conseguia entender por que não gostava que o agente acompanhasse o
nosso caso. O ponto era que eu aprendi a confiar em meus instintos e havia algo
nele que parecia excessivo, quase falso. Talvez tenha sido por causa das
maneiras despóticas como ele se referia às pessoas que ele considerava 'de baixa
qualificação'. Ou, ainda, pelo seu hábito de não deixar os outros falarem, como
se ele fosse o detentor do conhecimento universal, e isso só porque trabalhava na
Europol. Também, poderia ser, como Adam brincando havia dito um dia, eu
estava com ciúmes de suas roupas, sempre da última moda: 'senhor Mauricinho',
como ele o definiu.

***

Quando cheguei à academia, encontrei alguns colegas de trabalho e amigos,


que, como eu, gostavam de frequentar-la no início da manhã para fazer um treino
saudável antes de começar o dia.
O dono da academia era um policial aposentado que gostava de manter o lugar
impecável. Dispúnhamos de uma grande sala de treinamento equipada com
pesos, esteiras, aparelhos de musculação e, de lado, um ringue de boxe. Outra
sala era reservada para aulas de autodefesa. Em alguns dias da semana, essas
lições eram específicas para os policiais e colegas bombeiros, que tinham a sua
base na vizinhança.
Depois de treinar e fazer uma sessão de sparing no ringue, já me sentia
melhor, a academia fazia esse efeito em mim. Relaxei alguns minutos na sauna,
tomei banho e, quando terminei, fui em casa buscar Betsy. Juntos, iríamos
trabalhar.
Passamos o resto do dia trabalhando, Betsy substituía um cachorro doente, na
grande alfândega de Thayngen, na fronteira com a Alemanha. Enquanto estava
lá, perguntei-me se essa poderia ter sido a passagem escolhida pelos traficantes
para sair da Suíça naquele dia fatídico. Imediatamente, rejeitei a ideia; era uma
das passagens mais controladas do norte do país. Nós fiscalizávamos mais de mil
caminhões por dia naquela alfândega, sem contar o tráfego de veículos que
passava diariamente.
Naquela manhã eu tinha Betsy comigo na área dos veículos. Os policiais, que
permaneciam na barreira, selecionavam os veículos a serem verificados e depois
começava nosso trabalho de equipe. Enquanto averiguávamos os documentos do
carro, do motorista e dos passageiros, que tinham que sair do veículo, eu andava
com Betsy, primeiro ao redor do carro, depois me aproximava das pessoas. Ela
procurava drogas e grandes quantidades de dinheiro. Sua capacidade de cheirar
notas provou ser essencial para descobrir quantidades elevadas que deveriam ser
declaradas antes de serem introduzidas no país. Na Suíça, dinheiro não declarado
era considerado ilegal porque poderia ser usado para financiar atos terroristas.
Nos controles, colaborávamos com a comunidade europeia.
Para Betsy não era nada mais do que um jogo, e ela o jogava perfeitamente.
Os cães treinados pela polícia eram divididos em cães de patrulha e cães
olfativos. Os primeiros eram pastores alemães, que com seu tamanho
intimidador patrulhavam estradas, trens e aeroportos acompanhados de um
agente.
Betsy fazia parte do segundo grupo de cães. Sendo uma raça menor e mais
sociável, mas com uma inteligência extraordinária, ela havia sido treinada desde
filhote para procurar dinheiro, pessoas ou drogas. Raramente, os cães eram
treinados para mais de uma função, mas ela sempre demonstrou um talento
excepcional, e um olfato incomum. Assim, ela se tornou parte de um
experimento, da nossa unidade cinófila, que acabou por ser um grande sucesso.
Embora ela estivesse aposentada, com quase sete anos de serviço na polícia ao
meu lado, como seu condutor, em algumas ocasiões éramos chamados para
substituir algum colega no trabalho ou nos eventos particulares. Nesses
momentos, ela passava o dia trabalhando, mas também se divertia.
No final do nosso turno quando voltávamos para casa, passávamos pelo
parque, que estava nas proximidades, onde existia uma área reservada para cães
para o treinamento da agilidade. Era um curso de obstáculos, inspirado nos
circuitos de corrida de cavalos, mas feito sob medida para cães em que, além da
diversão garantida, melhorávamos a nossa destreza e o vínculo condutor-animal
indispensável ao nosso trabalho.
Eu tinha que reconhecer que estávamos demorando no passeio, porque não
queria ir ao hospital. Na minha última visita, a discussão com a jovem Anna me
irritou e não pretendia correr o mesmo risco novamente. Muito adulto da sua
parte Thomas, fugir.
Chegamos em casa, mas, antes de entrar, sentei-me no meu banco favorito
perto da fonte. Era quase o horário do pôr-do-sol, que, além do amanhecer, fazia
parte dos meus momentos prediletos naquela época do ano. Era uma estação
muito esperada por nós, porque depois de quase oito meses de frio, finalmente
podíamos desfrutar do ar do início do verão, mas, ainda, com os aromas típicos
da primavera.
Mia correu para mim para dar-me o beijo de boas-vindas, ela estava indo com
minha irmã e Hans procurar vaga-lumes no rio. Ela falava rapidamente, ainda
carregava o seu 'equipamento' e Miffy, quase não consegui abraçá-la. Adorava
me sentir perto dela, só que naquele momento, ela não tinha tempo para me
dedicar. Era a sua recompensa merecida depois de um dia escolar e de 'tarefas' na
fazenda.
Quando passou novamente correndo, eu consegui agarrá-la e escutar algumas
risadinhas felizes enquanto a beijava. Depois, de mãos dadas, a acompanhei até
as bicicletas onde Emma e Hans nos esperavam. Saudei-os quando partiram,
agradecendo, novamente, minha irmã.
Quando não consegui mais vê-los, respirei fundo, peguei o telefone e liguei
para o hospital para pedir novidades de Anna e avisar que não a visitaria.
Perguntei à enfermeira o que a jovem havia feito durante o dia e, quando ela
respondeu que Anna se ofereceu como voluntária com as crianças, não me
surpreendeu o seu altruísmo. De qualquer forma iria passar na ala para confirmar
se ela realmente esteve lá. Eu queria ter certeza de que a jovem entendeu o que
eu quis dizer quando pedi a ela que deixasse a investigação por minha conta.
Afinal de contas, quem era o policial?
Cheguei à casa da minha mãe no momento exato do jantar. Minha
pontualidade era perfeita. Aproveitando o momento de tranquilidade, comecei a
conversa:
— Mã, não me lembro se eu já havia lhe contado sobre os meus planos para a
garota encontrada na floresta.
Minha mãe, que estava adicionando um lugar à mesa, olhou-me com
expectativa.
— Anna Giulianni. Você já conhece uma parte da sua história, contei há
alguns dias. Junto com o capitão, pensamos em um plano, que talvez precise da
sua cooperação. Desde que você esteja disposta a nos ajudar.
Acabando de trazer os pratos à mesa, ela me deu um aceno silencioso,
convidando-me a sentar. Betsy, que já havia acabado de comer, descansava na
sua cama ao pé do armário.
Minha mãe sentou-se na minha frente e, com aquele seu sorriso esperto olhou
direto para mim; nunca conseguia esconder nada de seu olhar. Ela me apontou
com garfo na mão como um aviso, depois falou:
— Thomas, conheço você há muito tempo. Você precisa da minha
colaboração ou da minha ajuda? Porque se eu me lembro corretamente e confio
que minha memória ainda seja muito eficiente, quando você era jovem, sempre
que pedia a minha colaboração, misteriosamente me dava o dobro de trabalho,
para a salvar a sua pele. Vamos esclarecer a situação primeiro, quero saber
exatamente como vou ser envolvida nessa ideia.
Ela sorriu do seu próprio comentário. 'Salvar a minha pele', era a sua maneira
de dizer que ela havia me salvado 'o rabo', mas, também, era uma clara alusão a
todas as vezes que me salvou de uma conquista insistente e indesejada do fim de
semana. Quanto ao 'dar o dobro do trabalho', estava se referindo a quando, ainda
pequeno, eu tinha algumas ideias 'incríveis', como ela dizia, e depois de colocá-
las em prática, escapava e deixava para ela ou Emma terminar o trabalho, limpar
e reparar algumas das minhas bagunças.
Comecei a comer para economizar tempo. O aceno da sua cabeça me indicou
que deveria continuar a história. Pelo menos, ela está interessada. Aproveite a
oportunidade, Thomas.
— Tranquila que desta vez trata-se de fazer um ato de bem, de caridade. A
jovem é nossa única testemunha em um possível caso de tráfico de seres
humanos.
Eu não queria contar a ela os detalhes que havia aprendido nos últimos dias.
Eu não quero assustá-la, só preciso da sua ajuda.
Seu olhar imediatamente se tornou sério enquanto continuava a comer.
— A jovem deverá permanecer por certo período à nossa disposição. Eu
mencionei ao comandante, desde que você obviamente concorde, que a jovem
poderia vir ficar conosco, até a conclusão da investigação. Como a senhora.
Schmidt não pode trabalhar devido a problemas de saúde, você poderia colocar
Anna em seu lugar. Você pode pensar na proposta, pelo que observei a respeito
dela, que aquilo que ela não souber fazer, estará muito disposta a aprender
rapidamente.
Estava jogando no escuro, mas eu tinha a sensação de que ela não me
decepcionaria. Eu vi a tenacidade no olhar da jovem. Assim, continuei com mais
confiança:
— Ela poderia dormir no antigo estúdio do papai, em cima do galpão dos
cavalos. Ali tem o banheiro e a pequena cozinha à disposição dela. Eu deveria
simplesmente trazer uma cama, e, se Emma puder me ajudar a limpar a sala,
quando Anna for liberada do hospital, estaremos prontos para hospedá-la. Eu
sinto muito precisar envolver-te nessa história, mas a outra solução seria colocá-
la no abrigo antibombas ou na área de espera que usamos para os refugiados
enquanto esperamos a permissão para que eles possam ficar no país. Eu acho que
nenhuma dessas duas soluções é boa para a jovem, uma vez que ainda está
bastante traumatizada e estou certo de que, vindo ficar conosco, também poderia
melhorar as suas condições de saúde. O fato é que, no hospital, ela não pode
mais ficar e não podemos esperar mais tempo para continuar a investigação.
Quem sabe onde já estão os criminosos com as outras jovens?
Não compartilhei com minha mãe a sugestão do agente italiano de levar a
jovem à Milão, caso não encontrássemos acomodações adequadas em nosso
país. Com o cacete que ela vai embora com ele.
As palavras da minha mãe me trouxeram de volta ao presente.
— Thomas, você sabe que eu confio no seu julgamento e eu respeito o
trabalho que você faz. Certamente, podemos recebê-la em nossa casa. Nós
estamos sempre precisando de ajuda, isso sem mencionar que será paga pelo seu
trabalho. Mas aqui trabalhamos duro e espero que ela saiba disso, se escolher
ficar conosco.
Minha mãe era severa, mas também era indulgente. Ela era a líder da nossa
família e conduzia o haras com diligência. Ela superou a falta de meu pai,
dedicando-se completamente ao seu trabalho. Às vezes, notávamos que, em
alguns de seus momentos nostálgicos, ela ainda sentia a falta ele.
— Obrigado, mã. Tenho certeza de que Anna não vai decepcioná-la. Embora
eu ainda não a conheça muito bem, posso dizer que a menina tem um certo
temperamento, por assim dizer.
Nesse comentário, senti meus lábios que se esforçavam para conter um
sorriso. A resposta da minha mãe veio rapidamente:
— Eu espero que você tenha razão. Caso contrário, você terá que fazer o
trabalho dela.
Ela me deu uma piscadinha brincalhona.
— Amanhã, irei comunicar as boas novas ao comandante e à jovem.
Levantei-me para ajudá-la com os pratos e trazer as frutas.
Quando terminamos a cozinha, agradeci-a pelo jantar. Assobiei para Betsy,
chamando-a para vir comigo, mas ela apenas levantou uma orelha, ignorando-
me. Como era uma criatura abençoada e não precisaria trabalhar no dia seguinte,
deixei-a na minha mãe.
Passei na casa da minha irmã para convidar Mia para dormir comigo. Fiquei
desapontado quando Emma me respondeu que a pequena tinha ido dormir mais
cedo porque estava cansada demais. Ela me disse que eles haviam coletado
vários vaga-lumes na praia e depois os liberaram perto da floresta.
Eu subi as escadas para vê-la. Enquanto estava sentado na penumbra do
quarto, ao lado dela, vi-a dormir tranquilamente e pensava em como ela cresceu
rapidamente. Já sentia falta da minha bebê. Ao reunir os pedaços do meu
coração, que foram barbaramente destruídos pela sua mãe, os anos passaram e
perdi os momentos mais bonitos da sua infância, que nunca mais voltariam.
Eu sempre agradeceria a minha irmã e o seu marido pela ajuda; eles
acolheram Mia como uma filha, dedicando-se a ela com muito amor.
Dei-lhe um beijo na testa e, quando cheguei ao fim da escada, encontrei o
casal que se beijava no sofá da sala de estar. Limpei a garganta para anunciar a
minha presença e cumprimentei-os rapidamente. Ouvi a risada da minha irmã
quando fechei a porta, e a ouvi dizer algo sobre a temperatura basal e Carpe
Diem, se entendi corretamente. Em qualquer caso, eu não voltaria a pedir mais
informações.
12. A fazenda

Anna
De manhã, depois de uma noite cheia de pesadelos, estava ainda mais cansada
do que no dia anterior. Na visita à psicóloga, decidi que queria falar sobre aquilo
que, naquele momento, me assustava mais.
Quando mencionei os pesadelos insistentes que me atormentavam com uma
enorme riqueza de detalhes, desde quando eu tinha acordado no hospital e que,
em função deles, o médico me prescreveu pílulas para dormir, a doutora não se
impressionou e me pediu para contar sobre eles.
Decidi começar com o último sonho angustiado, aquele que era diferente de
todos os outros, ainda mais assustador, pois envolvia a filha de Thomas. Eu tinha
que confiar na médica sobre aquilo que eu escutei em relação à vida privada do
oficial.
Com as mãos trêmulas, procurei a pulseira que me proporcionaria conforto.
Eu a mantive comigo por tão pouco tempo, desculpe, bisavó! Com lágrimas
escorrendo pelo meu rosto, contei sobre o terror, a escuridão e o desespero ainda
maiores, porque eu tinha a bebê comigo. Ela me explicou que isso poderia
acontecer devido ao fato de eu ter conhecido recentemente a história do oficial e
que essa descoberta havia ficado impressa no meu subconsciente. Depois de
examinarmos também os outros pesadelos, senti-me mais leve como se uma
grande carga tivesse sido tirada dos meus ombros. Quando eu contei a ela sobre
o meu estado de espírito, ela terminou a nossa sessão dizendo-me que o tempo
era o meu melhor aliado, pois somente ele me ajudaria a esquecer aquele
momento trágico da minha vida.
Quando me levantei para sair, eu respondi que esqueceria aquele episódio com
muito prazer, apenas se encontrasse as irmãs da minha comunidade. Ela me
respondeu secamente que seria melhor deixar os profissionais fazerem esse
trabalho.
Sempre a mesma resposta, a que já ouvi e não gostei.
Após essa afirmação, eu não estava mais ansiosa para minha próxima e última
sessão, definida para os dias seguintes. Eu queria respostas e eu as queria
rapidamente.
A médica me explicou que eu poderia continuar nossas sessões, se eu sentisse
necessidade, no estúdio que ela possuía na cidade e onde ela trabalhava, à tarde.
Nessa possibilidade, eu pensaria depois; primeiro tinha que decidir a minha vida.
***

O dia no qual deveria sair do hospital chegou rapidamente. Fizeram-me uma


pequena festa na hora do almoço, com as diretivas de Brigid e Sarah. Também
participaram enfermeiras de outros departamentos que conheci durante a minha
estadia, além dos departamentos onde eu me ofereci como voluntária.
Eu iria sentir falta das crianças com quem brinquei e dos idosos dos quais
aprendi muito naqueles dias. Para cada uma dessas pessoas, deixei um pedacinho
do meu coração.
Na festa, tínhamos muffins e brownies, feitos por algumas enfermeiras, e
bebidas típicas. Meus olhos brilhavam cheios de alegria e meu coração se
encheu de gratidão por aqueles momentos, especialmente quando vi que elas
coletaram com colegas e médicos outras roupas e sapatos, todos aparentemente
novos. Elas também me doaram uma pequena, mas cômoda mala, onde podia
colocar os meus pertences.
Com lágrimas nos olhos, cumprimentei as doces enfermeiras enquanto meus
abraços surpreendiam até aquelas que timidamente me estendiam a mão. A todas
elas doei um pedacinho do meu coração, não poderia fazer o contrário. Era da
minha natureza ser uma pessoa aberta e sociável.
Uma das coisas mais bonitas que fizeram para mim foi me dar um corte de
cabelo no salão de beleza dentro do hospital. As enfermeiras, que tiveram que
cortar parte dos meus cabelos à minha chegada, fizeram uma coleta e assim me
encontrei, depois da pequena festa de despedida, no salão da cabeleireira.
Aquela amável senhora também conhecia a minha história e não só me fez um
belo corte, mantendo meu cabelo comprido, escalando e escondendo as falhas
deixadas pelas enfermeiras, mas também me deu algumas pequenas noções de
maquiagem. Com ela, passei belos momentos, aprendi a esconder a leve cicatriz
que estava no meu rosto, a embelezar os meus olhos com rímel e a passar o
batom corretamente. No final, ela me pediu o que mais eu queria saber sobre
maquiagem, mas no momento eu me sentia linda e não me interessava saber
mais sobre o assunto. Eu tinha a sensação de que, se eu usasse muita
maquiagem, eu não mais seria eu mesma. Eu sou assim, simples e natural.
Enquanto ela estava limpando os seus objetos, ela me disse que esses também
eram momentos de lazer para ela. Ao elogiar o meu cabelo, ela explicou que a
maior parte de seu trabalho consistia em comprar perucas para mulheres que
perderam o cabelo, devido a sessões de quimioterapia. Quando ela viu a minha
expressão triste, ela me explicou que fazer esse trabalho era um prazer,
considerando o tratamento cada vez mais direcionado capaz de vencer a doença.
Ela também me contou dos bons momentos nos quais ela iria pentear e maquiar
as novas mamães para receber as visitas.
Antes de sair, ao me despedir, estava tão feliz que, sem perceber, eu a abracei
e fiquei surpresa quando ela retornou o meu abraço. Ela me disse que no seu país
de origem, as pessoas também se cumprimentavam assim. Eu a fiz rir quando lhe
contei sobre as estranhas reações que recebi aos meus abraços, começando com
as de Thomas. Explicou-me que as pessoas na Suíça não tinham esse hábito com
estranhos mas, considerando que eu era jovem e não morava aqui, eu tinha
permissão para cometer esses pequenos erros. Ela riu da minha expressão
preocupada, quando percebi que tinha feito algo que não deveria, assim ela me
abraçou novamente com ternura e me disse que nunca deveria mudar, que os
meus bons hábitos nunca deveriam ser alterados. Antes de me deixar ir, ela ainda
contou, enquanto ria, que ela era casada com um suíço há 35 anos e que, depois
de todo esse tempo juntos, ele gostava mais de abraços do que ela.
Enquanto voltava para o meu quarto, lembrei-me do Thomas, que, incapaz de
passar naqueles dias para me ver, disse ao telefone, entre outras coisas, da minha
nova morada. Eu estava mais do que disposta a ajudar na fazenda de sua mãe.
Eles não vão se arrepender de ter me hospedado.
Eu queria perguntar tantas coisas para ele, sobre a sua família, sobre o lugar
onde eu estava indo viver, seus hábitos, mas cada vez que ele falava comigo ao
telefone, dizia o mínimo e estava sempre pronto para desligar quando ele
percebesse que eu começava a fazer muitas perguntas. Parece que ele tem medo
das minhas perguntas, comportamento incomum para um policial!
Naquela tarde, quando terminei a minha mala, sentei-me na poltrona ao lado
da cama e olhei pela última vez o meu quarto. Embora eu tivesse chegado em
uma situação dramática, eu aprendi algo positivo. Eu ainda estava viva e uma
nova aventura começava para mim. Estou com medo? Claro! Mas estou pronta e
não vou desistir.
Meus medicamentos tinham terminado e o meu braço quase não me
incomodava mais. Com as costelas, eu apenas tinha que prestar atenção aos
movimentos repentinos. Meu rosto curou-se bem e poucas marcas
permaneceram. Esse foi o resultado do creme milagroso prescrito pelo
dermatologista.
Eu levava comigo apenas o comprimido para dormir. Teimosa por natureza,
primeiro eu tentava dormir, mas geralmente, ao amanhecer, desistia e tomava
meio comprimido. Por causa das noites sem sono, eu ainda estava pálida, mas
isso não me incomodava.
Admirei o belo dia da janela e, assim, decidi esperar por Thomas no jardim.
Daquela forma eu também diria adeus àquele lindo lugar.
Passei com minha mala nova na sala das enfermeiras onde encontrei Sarah,
que me entregou um pedaço de papel no qual ela escreveu o seu número de
telefone. Ela me disse para chamá-la quando eu tivesse tempo e quisesse sair
para dar um passeio, ir ao cinema ou mesmo se quisesse somente conversar com
alguém. Ela sabia que esses pequenos prazeres nunca fizeram parte da minha
vida.
Com lágrimas nos olhos, eu a abracei sem me incomodar em assustá-la. Ela
hesitou, mas retribuiu o abraço com carinho.
Quando nos despedimos, informei-lhe sobre onde esperaria o oficial e dirigi-
me para o jardim. Depois de todas as minhas andanças por ali, conhecia muito
bem este lugar.
No elevador, lembrei-me do livro que eu havia emprestado da biblioteca,
então fiz um pequeno desvio e fui entregá-lo. Nos dias anteriores, percebi que
alguns livros e revistas expostos na biblioteca, poderiam ser levados embora.
Aproveitei a ideia. Mesmo que tivesse uma mochila pequena onde poderia
esconder os papéis, decidi pegar, como segurança, um livro espesso. Bastaria um
exame atento e um olhar cuidadoso para descobrir que dentro de um livro de
espessura fina, havia algo escondido. Na casa nova, iria encontrar um lugar
melhor para esconder as minhas informações. Nos dias anteriores eu as
transcrevi e as resumi para que elas ocupassem o menor espaço possível.
Quando cheguei ao jardim, pensei em encontrar Thomas, já nervoso, me
aguardando. Aparentemente, não é necessário muito para irritá-lo. Esse
pensamento trouxe um sorriso malicioso aos meus lábios e, enquanto isso,
pensava em quantas diferentes maneiras eu poderia irritá-lo. Eu gosto muito
dessa ideia.
Sentei-me no mesmo banco daquela primeira tarde. Enquanto escutava os
sons da primavera, coloquei a minha jaqueta na parte de trás do banco e, usando-
a como um travesseiro, apoiei minha cabeça. Fechei os olhos, deixando os raios
do sol aquecerem o meu rosto e me concentrei no gorgolejar da água que fluía
nas proximidades. Juntamente com o canto dos pássaros, pareciam uma melodia.
Eu me deixei levar por aquela música da natureza orquestrada apenas para mim.
Perdi a noção de tempo naquele momento, mas, senti a sua presença antes
mesmo de vê-lo. Não o ouvi aproximando-se, caminhava sem rumor,
provavelmente havia passado pelo gramado que cercava o canteiro de flores.
Fiquei onde estava e, do canto dos meus olhos, que havia apenas aberto, o vi de
pé na minha frente. Eu não reconheci a expressão com a qual ele estava me
olhando, já o tinha visto irritado, triste, doce, mas nunca assim. Não consigo
decifrar a sua expressão.
Eu falei antes de levantar a minha cabeça. Ele não notou que o havia visto.
— Boa tarde, oficial Thomas. Como você está?
Eu só queria tornar a nossa reunião em algo mais agradável. Ainda me
lembrava daquele último e desagradável episódio. Ele levou um momento para
me responder, como se acordasse de um sonho, mas sem hesitação disse:
— Oi, Anna. Vejo que você se repousa ao sol. Você está pronta para ir ou
ainda precisa de alguns minutos?
Ele era sempre educado e formal, quase cerimonioso. A única pessoa que
conhecia, com uma atitude semelhante à dele, era a da irmã Maria que, até onde
eu sabia, foi a encarregada da nossa comunidade por várias décadas, até quando
a irmã Benedetta chegou, aquela que durante mais de trinta anos conduzia a
nossa casa. A irmã Maria ainda está viva e tem cerca de oitenta anos de idade.
Será que ele é assim com todos ou esse 'tratamento especial' é reservado apenas
para mim?
Senti um desejo incrível de fazê-lo sorrir, quebrar o gelo, fazê-lo sentir como
se ele tivesse a idade que mostrava. Certamente ele não era muito mais velho
que eu, talvez ele tivesse por volta de trinta e cinco anos. Enquanto eu estava
refletindo sobre o seu comportamento, cheguei à conclusão de que a Irmã Maria
conseguia ser mais simpática e animada do que ele.
— Este lugar é quase perfeito, mas estou pronta para ir embora.
Levantei para pegar a minha mala, mas ele me antecipou. Agradeci e segui-o
até a saída do hospital. Tive que dar passos rápidos para chegar ao seu lado, suas
pernas eram mais longas que as minhas e ele falava comigo enquanto caminhava
na minha frente, sem olhar para trás.
— Eu notei que você já assinou a sua carta de demissão do hospital. Eu só
queria te informar que eu também tive que assiná-la, como seu responsável.
Ele virou a cabeça apenas o suficiente e me olhou de lado, esperando a minha
reação. Pobrezinho, ele não me conhece. Eu tinha o sangue quente, como era
costume dizer no meu país, mas não era estúpida. Se ele pensava que ao me
deixar zangada se livraria de mim, estava muito enganado.
Usei a minha voz mais doce e meu sorriso meloso e respondi:
— É tudo muito claro oficial. Quer dizer que eu vou ser toda sua.
Acrescentei, sem pensar. Um momento depois, já me perguntava de onde a
última parte da frase tinha surgido. Eu senti meu rosto avermelhar e ficar quente.
Eu não era tão ousada com homens, não que eu conhecesse tantos. É culpa do
uniforme que ele está vestindo, tenho certeza! Aparentemente, ele consegue tirar
o melhor de mim... ou o pior.
Ele me olhou diretamente, franzindo a testa como se não tivesse me escutado
bem, mas não disse mais nada. Era definitivamente a melhor atitude naquele
momento.
Ao nos dirigirmos ao estacionamento, parei para cumprimentar algumas das
enfermeiras e assistentes que eu encontrei ao longo do caminho.
Thomas, apenas afastado, olhava-me de lado, enquanto com um sorriso
sincero agradecia às pessoas que timidamente falavam comigo, desejando-me
sorte e sucesso. Com algumas delas, com quem eu tive o maior contato, brincava
dizendo que nunca mais deixaria a Suíça e que eu acabaria trabalhando no
hospital com elas, de tão à vontade que me senti ali. Esta é a minha natureza e
eu não vou escondê-la desse oficial austero.
Quando percebeu que eu parava novamente para cumprimentar as senhoras
sorridentes que trabalhavam na cantina e que estavam prestes a me oferecer algo
para lanchar, ele chegou perto e me sussurrou laconicamente:
— Por favor, Anna, podemos ir embora? Na verdade, eu tenho mais o que
fazer ainda hoje, se me explico bem.
Ele tentou usar um tom tolerável, pelo menos na última frase. Sua expressão,
no entanto, me mostrava o contrário.
— Claro...
Eu respondi rapidamente. E como não podia deixar a última palavra para ele,
acrescentei:
— Visto que você me pediu com cortesia.
Eu gosto de provocá-lo, gosto cada vez mais.
Gentilmente, recusei as ofertas das senhoras e, enquanto as cumprimentava,
saí ao lado de Thomas pela porta principal.
Enquanto caminhávamos em direção ao estacionamento, ele já parecia mais
tranquilo. Abriu o porta-malas de um carro escuro, colocou dentro as minhas
coisas enquanto me explicava que, embora estivesse de uniforme, o carro que
estava usando não era aquele de serviço, mas o da fazenda, que ele dividia com
sua família. Explicou-me que, na Suíça, os transportes públicos e as bicicletas
eram voluntariamente utilizados pela população e que os carros deixavam de ser
considerados prioridade.
Quando entrei, senti imediatamente um perfume, o seu perfume. Masculino,
natural, almiscarado. Eu morreria feliz com esse cheiro em mim.
Eu nunca tinha entrado em um carro assim, era muito confortável. Espaçoso,
mas não grande e, com assentos muito macios, provavelmente em couro. Eu
sorria sozinha, porque os meus únicos passeios de carro foram feitos apenas em
tratores ou velhos caminhões. O melhor carro em que fui passear foi o do
Joaquim, mas não era comparável a este. Aquele período já me parecia outra
vida.
Ao longo do caminho para chegar ao meu lar temporário, fiquei deslumbrada
com as maravilhosas paisagens. Notei quão verde e quão exuberante era a
vegetação. A quantidade de árvores, ainda carregadas de frutas, se destacavam
ao lado da estrada. Observei o quão limpo era tudo. Pareciam paisagens de
cartão postal. Quando ele percebeu meu encanto, reduziu suavemente a
velocidade, enquanto atravessamos as paisagens mais bonitas, fez breves
comentários sobre os nomes das pequenas cidades, ou me explicou algo especial
sobre o lugar. Eu não piscava os olhos, de tantas coisas bonitas que tinha para
ver.
Como estava curiosa sobre o meu futuro destino e ele não mencionava nada,
então, perguntei:
— Thomas, uma vez que vamos para a fazenda onde você mora, você pode
me falar sobre as pessoas que eu vou encontrar lá? Eu não queria ser rude
quando chegarmos.
Com sua bela voz, ele me contou sobre sua mãe, sua irmã e seu cunhado que,
juntamente com o senhor Schmidt, trabalhavam no haras. Ele também falou
sobre Betsy e o trabalho que eles faziam juntos. Eu mal podia esperar para
agradecê-la, eu devia minha vida àquela cachorrinha corajosa. Não o ouvi falar
de seu pai, e quando perguntei timidamente, ele me explicou, sem entrar em
detalhes, que ele havia morrido anos antes. Não fiz mais perguntas enquanto
pensava por que ele não falou nada sobre a filha dele. Ele ficou um pouco em
silêncio, respirou profundamente e disse:
— A última pessoa de quem eu tenho que falar, que é a mais importante de
todas, é minha filha Mia.
Eu tentei fazer uma cara surpresa. Eu não deveria saber que ele tinha uma
filha. Esperei que ele continuasse, mas não me surpreendeu quando não disse
mais nada. A sua reserva em falar sobre a sua vida pessoal era impressionante. A
minha vida, por outro lado, era um livro aberto. Tentei gentilmente obter mais
algumas informações e decidi começar com a menina.
— Que maravilhoso ter uma criança para animar a casa. Ficarei muito feliz
em conhecê-la.
Adicionei sinceramente:
— Quantos anos ela tem, se é que eu posso te perguntar?
Ele olhou para mim, como que para avaliar as minhas intenções, mas teve que
retornar rapidamente o olhar e prestar atenção na estrada. Naquele momento, sob
o seu olhar penetrante quase levantei as mãos em sinal de rendição.
— Desculpa, eu sou muito protetivo com ela. Mia tem 6 anos.
Ele não disse mais nada e, assim, decidi abandonar a discussão. Era possível
notar a sua desconfiança ao falar nesse assunto e, em qualquer caso, eu a
conheceria pessoalmente.
O que eu observei, com imenso prazer, foi como os olhos dele se iluminaram
pela primeira vez desde que eu o conhecia. O azul das suas irises brilhou no seu
rosto, que se tornou mais jovem e, como se fosse possível, ainda mais bonito.
Naquele fugaz momento, eu vislumbrei o seu primeiro sorriso real e isso me
causou uma imensa euforia.
Até tinha um pequeno comentário na ponta da língua, sobre aquele lindo
sorriso, mas decidi não me expor. Quando me preparei para pedir mais
informações sem parecer intrusiva, felizmente ele continuou falando:
— Espero ter atenuado um pouco a sua curiosidade, porque preciso dar-lhe
algumas informações.
Minha atenção se concentrou nas suas palavras. Qualquer informação era
como ouro para mim.
— Como primeira coisa amanhã de manhã, passaremos na prefeitura. Você
precisa de documentos e, para obtê-los, tenho o pedido assinado pelo capitão.
Você receberá uma licença temporária para residir no país que te servirá como
carta de identidade.
Ele me olhou de lado para ver se eu tinha entendido tudo. Feliz com o meu
consentimento, ele continuou:
— O mais rápido possível, devemos retornar ao lugar de onde você foi
arremessada. Eu fiz algumas perguntas sobre a área e a hora em que a Betsy
ouviu os gritos de vozes masculinas e chamou a minha atenção. Queria te levar
até lá, para ver se você consegue reconstruir o que aconteceu naquele dia
fatídico. Não se preocupe, se por enquanto, você não entende o que quero dizer.
Tudo ficará claro para você quando formos lá. Você confia em mim, certo?
A entonação de voz dele demonstrava tanta ansiedade que me fez sentir pena.
— Que pergunta você me faz, Thomas? Neste momento você é a pessoa na
qual eu mais confio. Na verdade, você é a única pessoa em quem eu realmente
confio. Você salvou minha vida, lembra?
Minha resposta lhe trouxe um pequeno sorriso aos lábios, tornando-os ainda
mais bonitos e cheios. Ele deve absolutamente sorrir mais. Este é o meu novo
desafio.
Quando chegamos a sua cidade, ele me mostrou a escola onde estudou e, ao
lado, o pequeno maternal onde Mia estudava. Ele explicou que nas proximidades
se encontrava o supermercado, o banco, a padaria, a farmácia e a delegacia, onde
ele trabalhava. As cidades eram pequenas, mas tinham tudo o que os moradores
poderiam precisar. Na praça central, mostrou-me a prefeitura, onde iríamos no
dia seguinte para fazer os meus documentos e, na rua de trás, a estação de
bombeiros e outros lugares para oferecer serviços aos cidadãos. Ele me contou
algo sobre a história da cidade enquanto nos dirigíamos para casa. Depois de
cerca de cinco minutos, virou à direita e entrou em uma rua estreita de
paralelepípedos que, como todo o resto dessa região, estava perfeitamente
preservada.
— Esta é a estrada que leva à minha casa. Como você viu, estamos perto da
cidade e, muitas vezes, usamos bicicletas para irmos de um lugar a outro. Você
pode usar a da minha irmã. Peço-lhe apenas nestes primeiros dias, para não sair
de casa sozinha. Aqui estamos, chegamos.
Não pensava em sair sozinha mesmo. Com ele me sinto protegida e, por
enquanto, é o suficiente para mim.
Ele passou por um grande portão de ferro fundido, que estava aberto, e
continuou ao longo da estrada estreita, alinhada com árvores, até um grande
pátio interno de forma oval. Uma casa tipicamente suíça abria-se em semicírculo
ao redor do jardim. Era feita de pedra, com o teto de vigas de madeira escura que
contrastava com a branco do resto da casa. As janelas também eram de madeira
escura. Em todas elas havia floreiras cobertas de gerânios vermelhos. No centro
da casa, no andar superior, uma porta francesa se abria para uma pequena
varanda, também coberta de flores. O lugar tinha uma atmosfera nostálgica e era
maravilhoso.
No final do pátio, a casa era dividida. No meio de um arco passava uma
estrada de cascalho que levava a um grande galpão. No canto entre a casa e a
estrada, uma grande churrasqueira, ao lado dela, uma mesa de metal vermelho
com bancos da mesma cor e, nas proximidades, uma bela fonte de pedra cercada
por confortáveis bancos de madeira. A fonte era coberta de hera e flores e a água
brotava criando um cenário de conto de fadas. Atrás da fonte, vi um longo poste
com uma bandeira vermelha com uma cruz branca no meio, que ondulava na
brisa, com orgulho. A bandeira da Suíça.
Enquanto ele estacionava e depois descia tranquilamente do carro, fiquei
imóvel para melhor absorver toda a riqueza de detalhes. Eu também vivia em
uma fazenda, que eu considerava bonita e cuidávamos bem dela, mas não era
comparável a esse lugar. O amor e o orgulho pelo país vinham exaltados no
cuidado e nos pequenos detalhes, assim como naquela casa.
Naquele momento, Betsy chegou abanando a cauda para cumprimentar seu
dono. Eu estava prestes a abrir a porta do carro quando ela se aproximou, subiu
nas duas patas e inclinou o pequeno focinho na janela, que eu tinha deixado
aberta. Com uma curiosidade inocente naqueles olhos escuros me cheirou e nós
nos olhamos pela primeira vez. Meus olhos imediatamente se encheram de
lágrimas e ela, quando notou minha reação, inclinou o focinho suavemente na
mão que eu tinha apoiada na janela. Com um reflexo automático, inclinei minha
cabeça na dela enquanto uma lágrima descia sobre o meu rosto. Ficamos assim
enquanto com a voz baixa, a agradecia por ter-me salvado a vida.
Depois desse instante de gratidão, Thomas assobiou chamando-a com ele e
pude sair do carro. Eles estavam na frente a uma das portas da casa e enquanto
ele abriu e chamou alguém, a pequena Betsy olhou para mim como que para me
convidar a segui-la.
Não sabia bem o que fazer e decidi segui-los. Thomas levava as minhas coisas
na mão, enquanto eu segurava minha jaqueta no meu peito, para esconder meu
nervosismo. Quando percebeu que me deixava para trás, ele falou enquanto
fechava a porta:
— Vamos, eu vou te mostrar onde é o teu apartamento. Provavelmente estão
todos no galpão trabalhando.
Atravessamos o corredor entre as duas casas, que nos levaria até o galpão e,
observando as poucas bicicletas encostadas na parede, ele acrescentou:
— Emma foi buscar Mia na escola e logo elas voltarão. Venha e deixe-me
apresentá-la aos outros.
Caminhamos com Betsy ao nosso lado que cheirava a grama e as pequenas
flores que cresciam à beira da estrada. Em ambos os lados, vi as áreas de
treinamento para os cavalos delimitadas por cercas pintadas de branco, alguns
animais pastavam no ar abafado da tarde. Atrás deles, campos e bosques até
onde os olhos podiam ver.
O galpão se encontrava no final da estrada e olhei-o através das portas abertas.
Betsy entrou trotando e, quando nos aproximamos, mal conseguia ver o final do
grande edifício.
Em ambos os lados, via os olhares curiosos de alguns cavalos alojados nos
estábulos. Naquele momento, no meio do galpão, uma porta se abriu e um
senhor idoso saiu com uma caixa de ferramentas na mão. Ele se virou do outro
lado e se encaminhou em direção ao fundo, sem nos ver.
— Esse é o senhor Schmidt.
Thomas falou com um tom de voz normal, mas o senhor, que não estava muito
longe, não deu sinais de ter ouvido.
— Não se preocupe. Ele é um pouco surdo e teimoso, não gosta de usar o seu
aparelho auditivo. Devemos abordá-lo lentamente para não o assustar e depois
anunciar-nos.
Thomas deu alguns passos rápidos seguidos por uma Betsy alegre, que pulava
ao redor dele, esperando para brincar e falou em voz alta:
— Oi, senhor Schmidt. Como está sua senhora? Espero que ela esteja melhor.
O senhor, ouvindo-o, virou-se para nós e percebi os seus olhos azuis, de uma
intensidade tão profunda, como eu nunca tinha visto antes. Seu rosto, embora
marcado por rugas, tinha uma expressão sociável e aberta. Gostei dele
imediatamente.
— Oh, oi oficial. A senhora Schmidt está se recuperando bem, obrigado.
Ele colocou a caixa de ferramentas no chão e cumprimentou Thomas com um
firme aperto de mão, enquanto me olhava.
— E essa linda garota, quem é?
— Esta é a senhorita Giulianni. Acho que minha mãe lhe explicou que ela
ficará aqui conosco por algum tempo. Thomas usava sempre o mínimo de
palavras possíveis.
O senhor Schmidt, como se não o escutasse, veio em minha direção com um
sorriso aberto.
— Muito honrado, jovem.
Ele estendeu a sua mão e continuou:
— Finalmente, o jovem Thomas me apresenta uma bela dama. Eu já estava
pensando que o rapaz tinha se esquecido da nobre arte da conquista feminina.
Concluiu, piscando para mim.
Comecei a rir, não podia fazer mais nada. Suas palavras me surpreenderam e
sua simpatia era contagiosa. A forma consternada como Thomas olhava para o
senhor, não tinha preço. Certamente, o cavalheiro tinha sido informado do
motivo pelo qual eu estaria com eles, mas ele preferiu não tocar no assunto. Eu
gosto do senhor Schmidt, nos tornaremos grandes aliados.
— Olá, senhor. Meu nome é Anna e estou feliz em conhecê-lo.
Enquanto respondia, me inclinei para frente com os braços abertos, como
faziam as damas da antiguidade.
— Olá, jovem Anna. Estamos todos muito felizes por hospedá-la aqui no
haras.
Ele acrescentou, olhando para o Thomas. Talvez o senhor esperasse que ele
adicionasse algo agradável ou engraçado a suas palavras, mas eu não tinha a
mesma esperança.
Para salvar Thomas, no devido tempo, surgiu uma tranquila voz feminina que
veio do fundo do galpão, de onde uma mulher descia uma escada em espiral: a
mãe do Thomas. A senhora era austera, assim como o filho, mas era apenas a sua
postura. O rosto, ao contrário, era aberto e sorridente e, enquanto caminhava na
nossa direção, percebi o quão jovem ela parecia. Ela usava roupas de montaria e
carregava algumas pastas velhas e desbotadas na mão.
Ela sorriu para nós, enquanto se deixou ser beijada rapidamente no rosto, por
Thomas. Depois caminhou na minha direção com a mão estendida. Notei que
Thomas não a abraçou, apesar de ter um olhar meigo quando a cumprimentou.
— Oi Anna, eu sou Katrin Graff e é um prazer para nós recebê-la. Eu estava
no andar de cima, voltando do escritório, quando ouvi uma risada juvenil
maravilhosa e não pude resistir, queria conhecer a portadora de tanta alegria.
Determinada a causar uma boa impressão, peguei a sua mão com um grande
sorriso nos lábios e, enquanto os dois homens conversavam um com o outro, eu
disse a ela:
— Muito prazer, senhora Graff. Não tenho palavras para agradecê-la e a
senhora não vai se arrepender de me hospedar. Só precisa me explicar o trabalho
e, se quiser, posso começar imediatamente.
Eu estava muito nervosa e falava rápido, mas não brinquei quando disse a ela
que não se arrependeria. Eles eram boas pessoas, me hospedaram sem me
conhecer e era óbvio que eu não iria decepcioná-los.
— Tranquila, Anna.
Ela me respondeu enquanto olhava para o senhor Schmidt.
— Ele já está terminando seus afazeres e eu também, felizmente. Se você
quiser, mais tarde, pode se juntar a nós para preparar o jantar. Mia e Emma
chegarão daqui a pouco. Hans, o marido de Emma, chegará mais tarde porque
foi visitar um novo cliente.
O senhor Schmidt veio até nós, pegou a sua caixa de ferramentas,
cumprimentou-nos e caminhou em direção ao pasto, explicando que ainda tinha
que trazer os últimos cavalos antes de terminar seu dia. Olhando para Thomas
enquanto se aproximava, sua mãe lhe falou:
— Por favor, mostre a Anna o apartamento dela, e, se você ainda não
conversou com ela, explique-lhe o que nós decidimos. Eu estava procurando por
esses documentos há bastante tempo e eu tenho que verificá-los antes do jantar.
Eu deixo vocês, nos veremos em breve.
Com um sorriso e uma saudação, ela se encaminhou para a fazenda.
Apenas acenando a cabeça, Thomas levantou a minha bolsa do chão e
caminhou rumo à escada em espiral, no final do galpão.
Enquanto caminhávamos pelo galpão, notei a altura dupla do telhado com as
grandes claraboias, tornando o lugar claro, brilhante e espaçoso. Notei outros
cavalos que já estavam nos estábulos prontos para a noite. Eram animais
maravilhosos.
No final do galpão, vi aquilo que parecia ser a parede de uma oficina
mecânica. Havia muitos equipamentos no balcão de madeira antigo, pendurados,
perfeitamente, na parede. Estacionado ao lado, um velho trator maltratado, que
me lembrou o trator da comunidade e um carro coberto com um espesso tecido
protetor.
Muitas perguntas enchiam a minha mente enquanto subíamos a escada, mas
eu me segurei e esperei pacientemente que ele começasse a me contar algo mais.
Mais cedo ou mais tarde, ele vai ter que falar comigo. Infelizmente, a paciência
não era minha virtude, e, no final da escada, eu estava mordendo o lábio para
não lhe perguntar tudo o que eu queria saber. Como sempre, ele não abriu a boca
e então comecei a cantar em voz baixa com esperança de me distrair.
Sem olhar para trás, ele entrou em um corredor e, no final dele, onde eu notei
três portas fechadas, abriu a mais distante e entrou.
Parei na porta e vi um antigo escritório transformado em um quarto. A
primeira coisa que notei foi uma enorme escrivaninha de madeira escura com
uma cadeira e, atrás dela, um antigo arquivo de metal. Ao longo da parede,
prateleiras cobertas com livros e pastas, provavelmente documentos. Eu pensei
que certamente no meio de um desses livros eu encontraria um lugar para
esconder as minhas pesquisas. Um antigo guarda roupa de madeira muito bem
preservado, com duas portas, decorava a parede oposta. Na parte de trás da sala,
sob uma grande janela, uma confortável cama de ferro fundido coberta com uma
colcha colorida e, ao lado dela, uma mesinha de cabeceira com um abajur.
— Muito bem.
Thomas começou depositando no chão a minha mala e a pequena mochila,
que me deram no último momento no hospital. Ele coçou a nuca, um pouco
nervoso:
— Este é o antigo escritório do meu pai. As outras duas portas levam a um
banheiro e uma pequena cozinha, que acho que você não vai usar, porque você
sempre será bem-vinda para comer conosco.
Falou como se estivesse lendo um script e depois acrescentou:
— Tudo o que você precisa, em um primeiro momento, você vai encontrar aqui
no armário, disse enquanto olhava dentro do velho armário de madeira.
Com uma enorme curiosidade, enquanto ele falava, aproximei-me da janela e
olhei para a maravilhosa paisagem dos arredores. Eu via os campos cercados
onde os cavalos pastavam. Atrás de uma cerca, vi o que me parecia uma horta
cercada por árvores frutíferas. Um balanço pendurado ondejava de uma das
árvores.
Como em um flashback, vi a janela do meu antigo quarto no Brasil. Nós
dormíamos em seis, todas as mulheres, em um espaço como o do escritório onde
eu estava agora, mas ainda assim, era meu quarto e eu sentia falta dele.
Era o final da tarde e o sol descia sobre uma densa floresta, apenas esboçada
no horizonte.
Não escutando mais a sua voz, me virei para procurá-lo. Encontrei-o de costas
para mim, olhando a mesa com a cabeça inclinada, como se estivesse pensando.
Esperei e quando ele se virou, me olhou diretamente nos olhos. Ele não me
olhava com frequência, pelo menos assim me parecia, mas toda vez que eu
olhava para ele e os nossos olhares se cruzavam, alguns segundos depois seus
olhos se moviam para outro lugar.
Naquele momento, seu olhar tão indecifrável, incompreensível, me capturou.
As perguntas, as palavras, os meus pensamentos, tudo desapareceram nele.
Incrível o poder que os olhos dele têm sobre mim. Ficamos assim, sem palavras,
perdidos nos nossos olhares, até que ele quebrou o feitiço, limpando a garganta e
disse:
— Eu acho que isso é tudo. Vejo você em uma hora na casa da minha mãe. É
aquela primeira porta que abri, logo quando chegamos.
Sem esperar pela minha resposta, ele se afastou em direção à escada.
— Espera, Thomas!
Me apressei e quando me aproximei, toquei seu antebraço para chamar sua
atenção.
Ele parou no meio do caminho quando eu o toquei, mas não se moveu.
Parado, onde estava, olhou minha mão que o segurava. Ele a olhava com uma
estranha curiosidade, como se estivesse concentrado em algo que só ele sabia.
A sensação de tocá-lo era extremamente agradável e perturbadora. Sua pele
bronzeada era coberta de suaves pelos castanho claros. Eu podia sentir os
músculos tensos no seu antebraço, quando ele fechou a mão em forma de punho.
Um pequeno choque percorreu-me, enquanto eu tentava entender por que não
conseguia tirar a minha mão dele. Alguns pensamentos intensos passaram na
minha cabeça.
Suspirei, forcei-me e tirei a mão. Quando ele se virou para mim, aproveitei:
— Você não precisa me dizer mais nada? Ao que a sua mãe se referiu quando
disse que vocês conversaram sobre mim?
— Ah... sim, você está certa, eu quase esqueci. Nós decidimos que você
receberá um salário pelo seu trabalho e que lhe providenciarei um telefone
celular. Não é um modelo muito novo, mas funciona bem e você pode até usar
internet. Nós o tínhamos de reserva aqui e aproveitei-o. É apenas uma segurança,
se por caso precisarmos entrar em contato com você.
— Não, Thomas, está errado.
Respondi rapidamente, sem pensar.
Ele olhou para mim sem entender, mas antes que ele pudesse dizer alguma
coisa, expliquei, um pouco envergonhada:
— Desculpe, não posso aceitar dinheiro de vocês. Vou morar aqui e comer
com vocês todos os dias, não me parece certo ainda ser paga, e, além disso, um
telefone? O que eu faço com um telefone? Nunca tive um celular na minha vida.
No Brasil, a única que tinha um telefone era Irmã Benedetta e era aquele com o
fio, acrescentei para me explicar melhor.
Aquela resposta parecia ser suficiente para ele.
— Vamos fazer assim. Deixe-me tomar banho e tirar este uniforme. Quando
nos encontrarmos de novo na casa da minha mãe, você pode me fazer todas as
perguntas que você deseja. Mas, sobre o telefone não vamos nem discutir, você o
aceita e pronto. Como te expliquei anteriormente, é apenas como uma precaução.
Ele não precisava acrescentar mais nada. Já havia um grande sorriso no meu
rosto. Eu até tinha esquecido a sua ordem peremptória de manter o telefone.
Respondi rapidamente, aproveitando o momento:
— Quaisquer perguntas que eu quiser fazer? Todas elas? Uau, quanto tempo
você tem à minha disposição, oficial? E assim, você será todo meu?
Eu levantava e abaixava as minhas sobrancelhas em um claro sinal de
brincadeira. Somente depois percebi em que as minhas palavras poderiam
implicar. Quero contar-lhe mais, muito mais. Mas no que estou pensando, fecha
a sua boca, Anna. Agora!
A última pergunta obviamente me saiu, sem pensar, de impulso. Ficou no meu
subconsciente. Mas, o que diabos me acontece na presença desse homem? Eu
corei e, mentalmente, me puxei a orelha. Quando falei novamente, prestei
atenção ao que eu diria:
— Ok. Vejo você mais tarde.
Ok, muito bem Anna, é melhor assim, ao invés de falar sem sentido.
Por sorte ele já estava na escada, concordou rapidamente, e foi embora sem
acrescentar mais nada.
Voltei para o quarto e sentei-me na cama com a mão na boca, surpresa com
minhas próprias palavras. Fiquei chocada com o que eu tinha acabado de dizer e
de fazer. Era claro que eu estava com um problema de conexão entre a boca e o
cérebro. Mas, enquanto me deitava na cama com os braços estendidos acima da
cabeça, eu já tinha me perdoado.
Ele usava o uniforme de policial, o sonho de todas as mulheres e, além disso,
tinha antebraços incríveis. Eu ria sozinha no meu novo quarto. Talvez meu
problema não seja de conexão, mas hormonal. Sim... sim, tenho que me perdoar.
No final, não era culpa minha se eu me encontrava diante de um maravilhoso
exemplar de homem.
Mas o que transformou meu sorriso em uma gostosa risada foi lembrar a
palavra-chave que desencadeou a minha imaginação hiperativa: o banho! Ele me
disse que iria tomar banho! Não, de verdade! Não é minha culpa, se as palavras
saem da minha boca sem a minha permissão.
Depois de noites habitadas apenas por pesadelos, esforçava-me para continuar
a viver e, para esse fim, era fundamental que tivesse pensamentos felizes.
Naquele momento, decidi, que pelo menos durante o dia, eu ocuparia meu tempo
com esses pensamentos, adequados para não perder a razão. O tipo de
pensamento que o policial desencadeava em mim era mais do que perfeito, e
muito bem-vindo.
Abri a mala para arrumar minhas coisas e me preparar para o jantar.
13. Novos sentimentos

Thomas
Fui direto para casa tomar banho para espairecer a minha mente, precisava de
tempo para reorganizar meus pensamentos. Eu não queria que minha mãe ou
Emma me vissem naquele estado, porque elas me persuadiriam a contar-lhes
tudo. Elas demostravam esse estranho poder sobre mim e sabiam exatamente
como extrair informações.
No momento em que a minha vida dava sinais de uma tão desejada trégua,
encontrava-me diante de novos problemas.
Por que não a deixo no abrigo de refugiados? Ou no abrigo antibomba? Já
conhecia a resposta. Eu era o filho dos meus pais e especialmente meu pai, se
tivesse escolhido uma das duas possibilidades, ele teria se envergonhado de
mim. Até mesmo minha mãe, que acreditava que todas as pessoas tinham algo
de bom em seus íntimos.
Adam muitas vezes ria dos pensamentos de minha mãe. Sim, todos têm algo
de bom dentro de si, ele dizia. Porém, algumas pessoas, você precisaria espremer
muito para obter algumas gotas.
Posso deixá-la com Adam, mas é óbvio que não vou fazer isso. Anna nem o
conhecia, ao contrário de mim, que o conhecia há muitos anos e sabia o quão
'perigoso' ele era com as mulheres. Ele conseguia tê-las todas, praticamente ao
mesmo tempo, e fazia exatamente tudo o que queria com elas. Era como se fosse
coberto com um unguento e nenhuma conseguisse agarrá-lo. Incrivelmente,
todas gostavam dele e ainda continuavam sendo suas amigas. Ele tinha todos os
pré-requisitos para ser o clássico 'canalha', mas era apenas um 'mulherengo'
muito charmoso.

***

Lembrei-me de haver chegado atrasado ao hospital para pegá-la, porque fiquei


verificando as filmagens estradais que, finalmente, tinham chegado da Itália.
Olhá-las e procurar uma van ou furgão era um processo lento e eu precisava de
ajuda, só que todos na estação tinham outras atribuições. O funcionário da
Europol, que passava todo o tempo falando ao telefone enquanto fingia fazer
algo, perto da máquina de café, recusou-se quando pedi a sua ajuda, alegando
que não fazia 'esse tipo de trabalho' e que ele era pago para fornecer soluções,
não pesquisas. Que idiota! Eu teria que levá-las para casa e verificá-las à noite.
No momento em que a enfermeira me disse que Anna estava me aguardando
no pátio externo, suspirei aliviado. Eu já a imaginava no quarto, estressada e
cheia de perguntas por causa da minha demora.
Meus problemas começaram quando cheguei ao jardim.
Encontrei-a no mesmo banco da nossa primeira conversa, a cabeça apoiada
em um casaco e os olhos fechados, como se estivesse dormindo. Ao vê-la tão
calma, senti-me bem, quase alegre. Não percebi por quanto tempo eu fiquei de
pé olhando para ela, até que ela me surpreendeu. Muito bem, Thomas, como um
estúpido.
Quando abriu os seus olhos, notei que ela havia feito algo no cabelo e no
rosto. Ela parecia mais... saudável, bonita, seu olhar era mais... intenso. Por que
diabos eu estou notando isso? Recuperei-me rapidamente e ouvi as últimas
palavras de uma frase que nem escutei. O que ela disse? Merda! Ela olhava para
mim sorrindo e aguardando uma resposta. Optei pela resposta genérica:
— Olá, Anna.
Faça um comentário, imediatamente!
— Você está descansando ao sol? Está pronta para ir embora ou ainda precisa
de alguns minutos?
Mas você é realmente um tonto Thomas, parabéns! Por sorte, ela não
percebeu que eu estava falando coisas ao acaso.
Caminhávamos juntos no jardim quando a lembrei que, a partir do momento
da sua alta do hospital, ela ficaria sob minha total responsabilidade. Ela me
olhou com um sorriso forçado e, enquanto tentava entender o porquê, ela falou
algo como 'toda sua'. Mas que cacete! Ouvi bem o que ela me disse? Não,
realmente acho que não.
Mesmo antes de podermos chegar até ao carro, ela já havia cumprimentado
metade da equipe do hospital. Mas, como diabos ela conhece todas essas
pessoas? Parecia que ela trabalhava lá e para todos aqueles com quem ela falava,
dedicava um sorriso e até brincava com alguns. Ela parava, falava, caminhava
tranquilamente, acenava, outra vez parava, enquanto eu tentava, em vão, arrastá-
la até o estacionamento.
Quando vi minha salvação, nas portas de correr que sinalizavam a saída, as
senhoras da cafeteria, que se encontrava bem ao lado, a pararam novamente para
conversar e ela já estava prestes a aceitar o lanche oferecido por elas. O lanche!
Mas, por favor, Anna, eu quero somente ir embora deste lugar.
Quando lhe perguntei se podíamos ir embora, porque eu tinha outras coisas
para fazer, ela me deu uma de suas respostas com frases inconclusas. Mas por
que essa teimosa sempre deve dar a última palavra?

***

Embaixo do chuveiro, agradeci meu corte de cabelo. Quanto mais eu pensava


naquela garota, mais eu queria arrancá-los.
Eu estava vestindo o meu jeans mais antigo e mais confortável que possuía,
quando me deparei com um meio sorriso idiota no rosto. Lembrei da expressão
maravilhada de Anna, enquanto olhava pela janela do carro. Eu havia nascido e
crescido neste país, e aprendi a amá-lo ainda mais, depois de viver no exterior
por algum tempo.
Muitas pessoas do mundo todo viviam aqui e a maioria delas tinha aprendido
a amar o país como nós, suíços. Eu me orgulhava de viver em um ambiente
multicultural. Esse era um dos segredos do sucesso do nosso país e, motivo pelo
qual, possuíamos três das nossas cidades entre as dez do mundo, com o melhor
padrão de vida.
Enquanto a levava para casa, contei-lhe algumas coisas sobre a minha família
e a cidade. Nesse ponto da minha vida, estava acostumado a usar o mínimo de
palavras possível.
Adam sempre me lembrava que ficaria sozinho por toda a eternidade se não
mudasse essa minha atitude. Quando saíamos à noite para beber alguma coisa,
ele me dizia rindo, que eu assustava as mulheres com o meu rosto mal-humorado
e a carência de palavras. Infelizmente nada daquilo que ele me falava realmente
me importava. Não me interessava conhecer profundamente nenhuma mulher ou
contar a ela sobre minha vida ou, ainda, sobre os meus sonhos. A única coisa que
desejava era ser deixado em paz, trabalhar e voltar para a minha filha à noite.
Não precisava de mais nada.
Não conseguia entender como essa minha atitude não tivesse assustado Anna.
Ao contrário, ela parecia ainda mais determinada a enfrentar-me. Pobre jovem,
ela não sabe com quem está lidando.
Quando a vi rir e brincar abertamente com o senhor Schmidt no galpão, fiquei
surpreso. De onde pode vir tanta alegria? Aquela garota não possuía quase nada,
estava sozinha do outro lado do mundo e havia passado por uma experiência
terrível. Incrivelmente, ela possuía sorrisos e alegria para dar e vender. Ela
confiava cegamente em mim e quando me confirmou no carro, olhando-me com
aqueles olhos verdes cheios de esperança, a responsabilidade pesou ainda mais
sobre meus ombros.
Enquanto caminhava em direção à casa de minha mãe, lembrei-me da reação
que o meu corpo tinha tido ao dela. Eu era um homem e sabia muito bem o que
havia sentido, não podia me enganar. Quando nos olhamos intensamente no
quarto e o calafrio que me atravessou, quando ela tocou o meu braço na escada,
senti que estava muito atraído por ela; a sua vivacidade e beleza estavam
entrando lentamente sob a minha pele. Devo absolutamente me afastar dela. Ela
era uma daquelas garotas que sonham com o amor pela eternidade, só que eu não
estava interessado nessa possibilidade. A única coisa que eu poderia oferecer-lhe
era uma noite de puro e intenso prazer. Que absurdo estou pensando? É óbvio
que isso não acontecerá.
Eu não estava interessado no seu corpo curvilíneo, ou no sorriso cativante que
eu pude notar, quando ela cumprimentava as pessoas, nem nos seus cabelos
suaves e o cheiro feminino que ela havia deixado no meu carro e muito, muito
mais. Não! Definitivamente não me interessa nada disso. Sem falar sobre sua
idade, do registro do hospital, descobri que ela tinha apenas um pouco mais de
vinte anos. Ela é muito nova em comparação comigo.
Entrei na casa da minha mãe e encontrei Mia sentada no tapete, brincando
com um quebra-cabeça colorido e Betsy, que dormia ao lado dela. Eu abaixei
para beijá-la e ela me cumprimentou com um dos seus lindos sorrisos, enquanto
Betsy me levantou apenas uma orelha, quando cocei a sua cabeça. Hans estava
sentado no chão, ao lado delas e cumprimentou-me sem tirar os olhos do
telefone.
Escutei minha mãe e minha irmã conversando na cozinha. Eu as cumprimentei
e comecei a arrumar a mesa, enquanto Mia cantava baixinho. Troquei algumas
palavras com Hans. Gostava dele porque usava sempre poucas palavras;
exatamente como eu.
Mia começou a me contar sobre a caminhada que havia feito na escola,
quando ouvimos uma batida gentil na porta. Hans, que era o mais próximo,
levantou-se e abriu, deixando Anna entrar com um pequeno buquê de flores na
mão. Antes que pudesse fazer as apresentações, ela já havia estendido a mão e,
com um dos seus belos sorrisos, se apresentou ao meu cunhado.
Ela passou por mim, apenas me cumprimentou, deixando o rastro de um suave
aroma no ar, acariciou Betsy, que se levantou feliz, o que não fazia nem comigo.
Mas olha essa cachorra! Em seguida, se aproximou de Mia e, agachando-se ao
lado dela, começou a conversar:
— Olá Mia, sou Anna. Você está montando um quebra-cabeça? Posso te
ajudar?
Mia olhou para ela com curiosidade, mas quando ouviu a proposta de jogarem
juntas, prontamente consentiu com a cabeça e já abriu espaço ao seu lado. Antes
de sentar-se, Anna disse:
— Espere um momento que vou me apresentar a sua tia e entregar estas flores
a sua avó. Se você quiser, posso dar-lhe uma, para decorar o seu quarto.
Depois que Mia escolheu uma pequena margarida, Anna entrou na cozinha,
deixando-me conturbado. Eu sabia que a timidez não se adequava a ela, mas não
esperava uma atitude diferente, vinda de Anna. Em alguns minutos, ela havia se
apresentado a todos, voltava sorrindo da cozinha e começava a brincar com Mia.
Eu a ouvi contar a minha mãe, enquanto lhe entregava as flores, que era um
hábito no seu país, sempre trazer algo consigo, quando se recebia um convite
para uma visita. Ela ainda pediu desculpas pelo pequeno buquê de flores, mas
disse que as flores estavam tão exuberantes que não tinha tido coragem de
arrancar outras. Quando penso que ela não vai mais me surpreender...
Terminamos o jantar, Hans e eu, cercados por quatro mulheres que
conversavam alegremente à mesa, não aguentávamos mais e procurávamos uma
saída. Minha mãe nos salvou quando disse que os pratos deveriam ser lavados
pelos homens.
Eu coloquei as coisas com pressa na máquina de lavar louça porque sabia que
era quase hora de Mia ir para a cama, e esse era um dos meus momentos
favoritos. Quando ouviu minha irmã me chamar, Hans me fez sinal para ir, que
ele iria terminar a minha parte. Agradeci e quando entrei na sala vi Mia levantar-
se e pegar a mão de Anna, convidando-a a vir conosco. Anna sorriu suavemente,
abaixou-se e disse algo a ela. Elas me olharam no mesmo instante e foi uma
sensação única vê-las juntas. Elas já haviam se tornado amigas e, quando Anna
se aproximou de mim, não me movi. Ela chegou bem perto, olhou-me e
sussurrou:
— Mia me convidou para ir colocá-la na cama. Posso acompanhar você? Eu
gostaria tanto, Thomas.
Uma emoção percorreu-me quando ouvi meu nome sair dos seus lábios, o seu
rosto tão perto, o seu perfume quase em mim. Quando ela falava comigo assim
tão docemente, eu me propunha a dizer ou fazer qualquer coisa que ela quisesse.
Será que ela percebeu o poder que tem sobre mim? Estou ferrado!
Balancei a cabeça para clarear a mente, enquanto via do canto dos meus olhos,
minha irmã e minha mãe olhando para mim, fazendo um sinal positivo em
uníssono. Um 'sim' estrangulado saiu da minha boca. Fiquei ainda mais surpreso
quando Anna ficou na ponta dos pés, mas, sem me tocar, aproximou
perigosamente os seus lábios ao meu rosto, sussurrando um simples 'obrigada'.
Quando ela se afastou, deixei sair a respiração que eu nem lembrava de ter retido
e, sentindo uma bela sensação, nos encaminhamos para a minha casa.
Mia tinha decidido dormir comigo, porém, eu preferiria levá-la à casa da
minha irmã. Eu não queria ter memórias de Anna dentro da minha casa, mas eu
não tinha nenhuma desculpa para usar naquele momento e, assim, nos
encontramos alguns minutos depois, no pequeno quarto de Mia, que era ao lado
do meu.
Anna olhava com curiosidade os livros na prateleira ao lado da janela. Mia
escovou os dentes enquanto eu procurava um copo para colocar a flor e, quando
terminou de colocar o seu pijama, pediu à Anna para ler a sua história favorita.
Nós nos sentamos à beira da cama, enquanto Mia entrava com Miffy e Anna
começava a ler. Sua voz, enquanto lia a parte da princesa era doce e aumentava o
timbre quando ela tentava desempenhar a papel do príncipe.
— Espere!
Mia disse com a voz já com sono: –Papa é o príncipe.
Anna olhou para mim com expressão divertida e acenou um 'sim' com a
cabeça.
Para ler o livro, que estava no seu colo, eu tinha que chegar perigosamente
perto dela e isso não fazia parte dos meus planos. Sem encontrar uma desculpa
plausível, aproximei-me cautelosamente, quando senti o seu perfume
novamente. Seu perfume... Era como se estivesse em um jardim cheio de flores:
natural, feminino, intoxicante. Eu sentia o seu nervosismo; ela levou o cabelo até
atrás da orelha e, em seguida, o fez recair no ombro. Aquele simples gesto me
despertou a vontade de tocá-la. A respiração dela acelerou e o seu corpo se
enrijeceu quando meu queixo quase tocou o seu ombro. Será que ela percebeu a
atração entre nós? Talvez ela esteja desconfortável. Primeiro, ela demonstrava
uma expressão divertida, mas depois ficou preocupada. Devo tranquilizá-la?
Felizmente, Mia adormeceu rapidamente, me poupando outro sofrimento.
Agora que eu sabia da minha atração por ela, parecia que o destino estava se
divertindo as minhas custas.
Anna fechou o livro suavemente e virou-se para mim. Eu estava no mesmo
lugar, sentado quieto. Eu tinha que me levantar, eu sabia que precisava, mas na
verdade eu não podia, talvez não quisesse, não sabia bem.
— Thomas...
Ela disse meu nome mais uma vez com aquela voz e eu me perdi no seu olhar.
Seus olhos são tão verdes, cheios de vida, incríveis. E sua boca, Deus... ela é
realmente muito bonita.
Um choque me atravessou, quando senti a sua mão tocar meu rosto com
relutância. Senti o calor que emanava da sua palma e meu mundo parou naquele
gesto. A sua vitalidade e doçura foram imediatamente absorvidas pelo meu
corpo, como se eu tivesse que me alimentar desses sentimentos. Faz tanto tempo
que senti algo assim tão bonito, tão... perfeito. Meus olhos se fecharam, meu
rosto se inclinou ainda mais na sua mão, a minha respiração acelerou. Levante-
se, Thomas, levante-se! Agora!
— Com licença, Anna.
Levantei-me rapidamente, porque não sabia o que faria se ficasse mais tempo
ali, perto dela. Eu a deixei, com a sua mão ainda no ar e fui para a porta. Estava
escapando e sabia disso, mas eu precisava de espaço para respirar, para refletir.
Essa garota confunde minhas ideias. E minhas ideias sempre são muito claras,
sempre. Ponto!
Meu cérebro me gritava para encontrar uma via de fuga, imediatamente!
Quando cheguei perto da porta, disse:
— Vamos lá embaixo, eu tenho que te mostrar uma coisa. Assim nós não
acordamos Mia. Que desculpa desprezível, Thomas.
Ela se levantou devagar e colocou o livro na mesa de cabeceira, seguindo-me.
No balcão da sala de estar eu tinha deixado minha mochila com o computador.
Tentei esconder a estranha situação que tinha sido criada, quando, sem olhar para
ela, puxei o banco debaixo do balcão para que ela se sentasse. Peguei o
computador, liguei-o e sentei-me no banco ao lado dela. Mudar de assunto
parecia ser a melhor ideia, e sabia que qualquer coisa que fosse relacionada ao
seu caso, despertaria a sua atenção.
Decidi começar com as informações mais importantes: as fotografias dos
homens que correspondiam à descrição do pastor, aquela que ela me havia
fornecido no hospital. Deixei por último, a informação que nosso técnico de
informática havia descoberto, que dizia respeito à associação italiana que a
trouxe até lá.
— Eu queria mostrar-lhe algumas fotos que temos no nosso arquivo. Esses
homens são, como eu posso explicar, monitorados pela polícia suíça. Isso não
significa que eles sejam criminosos ou perigosos.
Percebi que ela já havia se voltado para o computador; com um suspiro de
alívio, continuei:
— Olhe para eles sem pressa. Os homens que você vai ver, acabaram no
arquivo porque foram controlados pelas nossas autoridades, ou as de um dos
países de Schengen.
Expliquei o que era e quais países faziam parte do acordo e continuei:
— Eles acabaram no arquivo porque tinham a autorização de residência
expirada ou não tinham um endereço correto na permissão de residência ou
simplesmente, porque suscitaram alguma suspeita naqueles que os controlavam.
Enquanto falava, ela mantinha os olhos no monitor. Deixei-lhe algum tempo
para ver as imagens. O que eu respeitava e admirava nela, era a sua capacidade
de avaliar e respeitar as prioridades.
Fiquei feliz por concordarmos quando o assunto eram prioridades. Assim, não
teríamos desperdiçado o nosso tempo em futilidades, como aqueles olhares que
trocamos antes. Eles não me interessavam minimamente. Me sentiria mal se
tivesse que parar alguns dos nossos avanços. Eu só tinha que me convencer
desse fato: simples e claro.
Então, por que estou olhando-a como um falcão? Girei rapidamente e fui
pegar uma cerveja na geladeira.
— Você quer uma cerveja, Anna? Desde que você tenha idade suficiente para
beber, certo?
Acrescentei de forma brincalhona, porque sabia que ela tinha idade.
Sem tirar os olhos do monitor, ela respondeu:
— Obrigada, oficial Thomas. Eu prefiro não beber, a minha alegria já é
demasiada quando estou sóbria. Com prazer tomarei um copo de água, por favor.
— Em qualquer caso, eu sou maior de idade, Thomas. E você, quantos anos
tem?
Ela tentou fazer a pergunta casualmente, mas senti a curiosidade por trás das
suas palavras.
Quando coloquei o copo de água na frente dela, tomei um gole da minha
cerveja, enquanto pensava se respondia ou não.
A mentira saiu suavemente dos meus lábios:
— Tenho trinta e oito anos, jovem.
Mantive um rosto sério para ver sua reação.
Lentamente, ela ergueu o rosto do computador com a boca aberta. Ela estava
espantada, mas na verdade, eu também estava. Tinha dito uma mentira e ela não
tinha percebido. Há quanto tempo não brincava com alguém assim? Eu nem me
lembro mais.
— Uau! Oficial. Você está muito bem.
Ela subia e descia as sobrancelhas para enfatizar o fato e o seu rosto espantado
me divertia.
Não fui capaz de resistir mais, senti os meus lábios se alargarem naquilo que
deveria ser um meio sorriso e acrescentei:
— Estou brincando, acabei de completar trinta anos.
Seu rosto espantado mudou, e ela me olhou com olhos meio fechados, como
se estivesse brava. Sua expressão fez meu sorriso aumentar. Mas olhe o efeito
que esta garota faz em mim!
— Mas imagina só, o oficial também sabe brincar! Pensei que fosse feito de
mármore, todo austero e frio.
Ela fez uma careta com a qual queria imitar meu rosto e terminou com uma
piscadinha e um de seus belos sorrisos, tudo para mim. Perguntei-me se
estávamos flertando? O que diabos estamos fazendo? O que Adam teria dito se
me visse naquele momento?
Ela voltou sua atenção para o computador, enquanto ainda sorria e eu me
perguntei como aquela garota que eu mal conhecia, conseguia me fazer sentir tão
alegre, apenas com uma pequena piada. Quando ela mencionou que eu estava
bem, será que ela quis dizer que eu era bonito? Senti-me leve, como se algo
volumoso estivesse derretendo dentro de mim.
Permanecemos nesse silêncio confortável, enquanto ela verificava as
fotografias. Cansei de ficar sentado naquele banco desconfortável fingindo não
olhar para ela, então, tirei meus sapatos e me deitei no sofá.
Acordei de repente com ela, sussurrando e me sacudindo lentamente,
agachada ao meu lado.
— Thomas, eu o encontrei! É ele, venha vê-lo.
A urgência na sua voz me fez sentar rapidamente e quase caí em cima dela.
Peguei-a antes que ela pudesse cair, comigo sobre ela. Uma sensação agradável
me percorreu o corpo, mas não tinha tempo naquele momento para pensar sobre
aquilo.
Em um momento, ela já estava de pé na frente do computador de onde me
olhava ansiosamente. Eu me aproximei e olhei para a fotografia que me mostrou
na tela. O que vi era um homem comum, como um pai de família, de meia-idade.
Se por acaso eu o tivesse encontrado, não teria me despertado suspeitas.
Obviamente, as fotografias não refletiam o caráter de uma pessoa. O ditado
afirma que as aparências enganam.
— Você tem certeza de que é ele?
Quando ela me confirmou que aquele homem era o pároco que a havia
recebido no aeroporto, aquele que a olhava estranhamente, alonguei os músculos
do meu pescoço para me acalmar. Este é o canalha que começou tudo! O homem
tinha um rosto bastante comum, mas sempre poderíamos compará-lo com o
vídeo do aeroporto, que nos foi enviado pela polícia italiana. Finalmente, tenho
um rosto para procurar nas imagens da rodovia.
Ela apresentava uma expressão preocupada, enquanto olhava para o
computador.
— Eu o vi bem no rosto, vou me lembrar dele para sempre. Eu não lembro
muito da mulher que o acompanhava, ela sempre ficava de lado e quase não
falou. Agora que penso nisso, ela provavelmente falava pouco o nosso idioma,
lembro-me que ela falava fluentemente com as outras duas garotas na van. Eu te
disse que eles falavam uma língua estrangeira, não?
Enquanto anotava o número com o qual a fotografia do suspeito foi registrada,
fiz uma pergunta que não tinha nada a ver com a investigação, mas que eu tinha
em mente há muito tempo.
— Anna, como você fala meu idioma? Onde você o aprendeu?
Ela me olhou de cima do computador e respondeu:
— Aonde moro, no sul do Brasil, existem várias colônias de estrangeiros:
italianos, alemães, franceses e até japoneses. Eles são os descendentes daqueles
que chegaram fugindo da grande guerra. Eles mantêm as tradições vivas, bem
como o uso da língua materna. Como te expliquei Thomas, o Brasil é um país
enorme. Se quiser, também posso te ensinar português. Agora podemos nos
concentrar na investigação?
Ela me disse já meio irritada.
Você não para de me surpreender.
— Desculpe, você está certa, vamos continuar. Você mencionou que não
conseguia reconhecer o idioma que a senhora e as outras garotas falavam.
Quando formos à estação, vou deixar você ouvir diálogos nas diferentes línguas
dos nossos países vizinhos. Talvez você consiga reconhecê-lo.
— Sim, é uma boa ideia. O que nós fazemos agora? Quem é o homem na
foto?
Eu entendia o seu desejo de respostas, só que ela teria que esperar. Eu ainda
tinha que assistir aos vídeos e não precisava de sua ajuda. Era hora de mandá-la
dormir.
— Toda a informação que tenho sobre esse homem está no computador da
central de polícia. Vamos descansar, amanhã teremos nossas respostas.
Para aumentar o efeito de minhas palavras, fiz um belo bocejo.
Ela me olhou com desconfiança, mas começou a se levantar.
— Eu posso pelo menos olhar as fotografias das mulheres, não estou cansada
e não vou conseguir adormecer sabendo que o rosto dela poderia estar no seu
computador. Por favor, Thomas.
Ela me olhava com os olhos que pareciam aqueles de uma jovem veadinha,
mas não podia atendê-la. Então, eu a cortei:
— Não, Anna, eu não tenho as fotos das mulheres aqui comigo. Por hoje é
suficiente.
Comecei a caminhar em direção à porta como se estivesse convidando-a a
sair. Ela me seguiu com a cabeça baixa enquanto bufava e murmurava qualquer
coisa. Claro que ela entendeu a tua mentira, você acha que ela é tola?
Aproximei-me da porta e abri-a, acendi a luz e parei para esperá-la.
— Eu não vou te acompanhar porque Mia está dormindo. Você pode ir
tranquila, não tem perigo, fico aqui até você chegar ao seu quarto e acender a
luz, que posso ver daqui. Boa noite, Anna.
Com aquele cumprimento, esperava que ela partisse, mas percebi que, como
eu, ela estava parada no limiar da porta e me olhava diretamente nos olhos, como
que para me desafiar. Em função da nossa proximidade inesperada, desci o
degrau, como se lhe desse passagem e, gentilmente, com a mão, convidei-a a
sair. Ela ainda permaneceu onde estava. O problema se complicou, porque
naquela posição eu a tinha praticamente na minha altura. Estávamos olhos nos
olhos e muito... muito perto.
— Você está se livrando de mim, oficial?
Seu sorriso era doce, mas seus olhos brilhavam enfurecidos na minha direção.
A sua pergunta direta me surpreendeu. Eu não estava acostumado a ver
minhas ordens desobedecidas. Eu nem sequer tinha sido duro com ela, tinha
falado de uma maneira muito cortês. Pego no ato, me esfreguei a parte de trás do
pescoço e respondi com uma voz que queria soar convencida:
— Não, obviamente, não. Já te expliquei o motivo -
Não consegui terminar porque ela se inclinou na minha direção de uma forma
alarmante e sussurrou no meu ouvido, causando-me um arrepio:
— Não se preocupe Thomas, você está certo. É melhor eu ir dormir. Muito
obrigada por tudo o que você fez por mim até agora.
Antes que pudesse reagir, seus lábios suavemente encontraram o meu rosto,
prurindo a barba, já crescida, naquele dia. Com isso, outro arrepio de prazer
percorreu todo o meu corpo. Sem pensar, fechei os olhos e minha boca virou-se
para encontrar a dela.
Mas ela já havia descido o degrau e estava partindo.
— Boa noite oficial.
Ouvi-a sussurrar enquanto caminhava na noite.
Inclinei minha cabeça contra a porta, enquanto tentava me convencer. Deixe-a
ir, é melhor assim. Mas por que eu sinto que ela leva a minha alegria embora
com ela?
14. Atração

Anna
Santo Deus. O que estou fazendo! Eu tenho um namorado, certo?
Caminhei rapidamente para o meu quarto enquanto sentia o seu perfume e o
sabor da sua pele na minha boca. Não posso perder de vista minhas prioridades.
Eu havia pensado, inocentemente, que brincar com ele seria suficiente para mim:
observá-lo, fazê-lo rir ou zangar-se, divertir-me e, com uma pitada de sorte,
sonhar com ele à noite em vez dos pesadelos usuais. Era somente isso que eu
deveria desejar, nada mais. No entanto, descobri que meus sentimentos e meu
corpo eram incontroláveis quando estava perto do Thomas... a coisa estava
fugindo do meu controle.
No Brasil, senti-me atraída pelo Joaquim. Ele era bonito, inteligente, mais
velho e tinha me ensinado muito, enquanto eu era uma hóspede da comunidade,
perto da sua casa, em Porto Alegre. Agora eu me perguntava se o que eu tinha
sentido por ele era realmente atração. Com Joaquim, nunca existiu uma reação
tão intensa da minha parte. Com Thomas, não conseguia me conter.
O sentimento por Joaquim, que no Brasil parecia ser quase amor, esfumaçava
em comparação a quanto meu coração palpitava ao lado de Thomas. Um fato
inegável.
Ter conhecido sua família, fez-me imensamente feliz. Sua filhinha era
maravilhosa e eles se uniam por meio de um amor incondicional. Eu somente
quero provar um pouquinho desse amor, é tudo!
Naquele momento, eu entendi algo importante: tinha que ficar longe do
oficial. Eu estava correndo o risco de me apaixonar e depois nunca mais vê-lo.
Eu não sou o tipo de pessoa que gosta de sofrer.
Quando a situação estiver resolvida, eu volto para o meu país, possivelmente
junto com as irmãs, e, aí sim, terei tempo de sobra para dedicar-me a esse
sentimento. Talvez com Joaquim, eu ainda não sei.
Cheguei ao galpão e abri lentamente a porta lateral, não queria assustar os
cavalos. Alguns deles olharam para mim com olhares curiosos na luz fraca que
vinha das claraboias. Passei lentamente acariciando alguns focinhos, que
pareciam seguir a minha passagem, enquanto cantarolava suavemente.
Cheguei ao quarto e, em primeiro lugar, acendi a luz e abri a janela, da qual eu
sabia que veria distante, a casa de Thomas. Sorri quando reconheci a sua silhueta
encostada no batente. Ficamos parados, cada um perdido em seus próprios
pensamentos. Não sei quanto tempo passou, até que eu o vi entrar e desligar a
luz.
Preparei-me para dormir e, quando eu estava sob o edredom, peguei um antigo
álbum de fotografias, apoiado na mesa de cabeceira, que tinha encontrado ao
esvaziar minha mala e colocar minhas pesquisas em segurança. Eram fotografias
antigas da família Graff. Eu vi a velha fazenda quando Thomas e sua irmã eram
pequenos e os olhares adoráveis de seus pais nas fotos em que a família estava
reunida. Eu sorri quando encontrei uma foto do senhor Schmidt, ainda jovem,
com uma senhora, provavelmente sua esposa, em uma festa de aniversário. Eu
virei a página e encontrei Thomas, ainda pequeno, que assoprava com um
rostinho todo sorridente as velas em um bolo de aniversário. Mesmo pequenino,
ele já era uma criança linda. O pensamento de como ele teria feito seus pais
enlouquecerem com as inúmeras namoradinhas, presenteou-me com uma
gostosa sensação, que me embalou em um doce sono.
No meio da noite, acordei sem saber onde estava. Eu havia dormido
profundamente e, ao despertar-me, percebi que não reconhecia o lugar em que
me encontrava. O terror por talvez estar de volta naquele caminhão, fez-me
trazer os joelhos para o peito, apertando-os com força enquanto eu cantava
baixinho para me acalmar. As lágrimas escorriam pelo meu rosto, quando olhei
para cima e vi uma janela iluminada pela lua. De repente, lembrei-me do quarto
e o alívio foi imediato. Lentamente, recordei-me do galpão e da fazenda.
Thomas... estou a salvo. Respirei fundo e procurei a luz na mesa de cabeceira.
Tinha sido um pesadelo. Estava com medo de voltar a dormir porque sabia que
ele voltaria. Pensei na pílula para dormir dentro da mala, a solução dos meus
problemas. Não quero tomar mais medicamentos.
Sentei-me, coloquei um par de chinelos que havia encontrado no armário e saí
para dar uma volta.
O ar estava fresco e esfreguei os braços para me aquecer, enquanto descia as
escadas. Os cavalos dormiam, exceto uma dupla, que apareceu para me observar.
Parei para acariciá-los naqueles focinhos suaves enquanto contemplava aquele
lugar tão silencioso, iluminado apenas pela luz da lua. Naquela semi-escuridão,
eu não tinha medo, na verdade, eu me sentia protegida pelos animais que
dormiam perto de mim.
Caminhando devagar, cheguei à porta lateral. Pensei se não era o caso voltar
lá em cima para pegar a jaqueta, eu estava usando apenas uma blusinha de alças
e um short curto. Uma estranha curiosidade junto com a preguiça me fez decidir.
Não vou demorar, tenho certeza.
Lá fora era noite fechada. A lua cheia estava alta no céu e um silêncio
tranquilo reinava no ar. O piar de uma coruja me acompanhou enquanto
caminhava pela estrada até a casa principal. Perdida em meus pensamentos, não
percebi que tinha chegado às bicicletas estacionadas perto da fonte, quando ouvi
um barulho que me paralisou.
Uma respiração forte, uma exalação profunda, um palavrão sussurrado.
Conheço essa voz. Não resisti, escondi-me na sombra do arco, curiosa sobre o
que Thomas poderia estar fazendo, àquela hora da noite, ali fora.
Meus olhos, já acostumados com a luz fraca, facilmente o identificaram.
Primeiro vi as suas belas costas que brilhavam sob a lua e percebi que ele estava
usando apenas um short curto branco. Suas pernas estavam estendidas e abertas,
suas mãos fechadas em torno a uma barra fixada em duas colunas acima de sua
cabeça. Seus músculos se flexionavam e se contraíam a cada respiração
profunda, enquanto olhava para o chão. Eu tentei entender o que ele estava
fazendo quando, de repente, deslocou o seu peso para os braços, cruzou os
tornozelos e subiu com o peito até tocar a barra. Ele faz flexões.
Fiquei encantada ao ver o seu poder, a beleza puramente masculina enquanto
ele subia e descia implacável. Escutei a expiração rítmica que saía dos seus
lábios enquanto ele subia e depois inalava pelo nariz enquanto descia
lentamente.
Tentei me colocar em uma posição mais confortável para ver melhor o show,
que ultrapassava todos os meus desejos, quando meu pé pisou em algo,
provavelmente um ramo, que rangeu alto no silêncio da noite. Imediatamente ele
parou, girou para verificar de onde vinha o barulho, exatamente onde eu estava,
e ficou ali parado olhando a escuridão.
Meu coração estava batendo tão forte que eu tinha certeza de que podia ouvi-
lo. Estou com sérios problemas, eu sei. O que digo a ele, se ele me vê aqui a
espioná-lo? Eu tinha que retornar imediatamente, mas não conseguia me mexer
sem ele perceber. Tentei acalmar meu coração e pensar em uma desculpa
plausível, tinha certeza de que viria até onde eu estava. Nesse momento, percebi,
que ele se moveu de lado e olhou para o fim da estrada. Certamente ele veria a
luz no quarto, que eu havia deixado acesa.
Para a minha sorte, ele se virou, pegou a toalha no banco do lado dele e,
enquanto se enxugava, caminhou para a porta da sua casa, iluminada por uma
luz fraca. Quando fechou a porta atrás de si, me lancei como uma bala, para o
meu quarto.
Eu corria, tentando fazer o menor barulho possível, sem olhar para trás, de vez
em quando aproximando-me de uma árvore esporádica atrás da qual poderia me
esconder. Se ele tivesse olhado para fora da janela, ele teria me visto. O que vou
fazer se ele voltar com uma arma para controlar melhor a causa do barulho?
Quando finalmente vi a porta lateral do galpão, diminuí o ritmo e comecei a
respirar profundamente para me acalmar. Meu coração pulsava na minha
garganta, mas um sorriso enorme se insinuava nos meus lábios, enquanto meu
braço se levantava para alcançar a maçaneta da porta. Eu havia trapaceado o
oficial. Eu o espiei involuntariamente, mas aquelas imagens me trariam uma
noite de sonhos maravilhosos. Estou pronta para voltar para a cama. Simmm
!!!!
Com um sorriso pateta ainda nos meus lábios, abri a porta lentamente. Mas
não consegui abri-la completamente porque o meu braço, felizmente aquele que
não havia sido ferido no acidente, foi agarrado e puxado para trás. Girei
rapidamente pronta para gritar com toda a força que tinha no meu corpo, quase
morri de susto, mas, antes que eu pudesse pronunciar um único som, uma mão
cobriu a minha boca e um corpo pressionou o meu contra a porta, que se fechou
às minhas costas. O seu cheiro espalhou-se no ar. Thomas.
Qualquer coisa de maciço bateu contra os meus seios. Dois olhos azuis,
realmente irritados, me olhavam de cima. Eu me senti tão pequena, fui pega em
flagrante enquanto tentava me esgueirar. Mas eu sou muito idiota! Ele tinha feito
a volta, chegou logo atrás de mim, e eu nem tinha notado nada. Oh meu Deus, o
que eu digo para ele agora!
— O que você está fazendo aqui fora a essa hora, Anna? Ele não me soltava e
sua voz era baixa e irritada. Quando ele me girou, ele tinha feito um movimento
tão fluido que, sem perceber, encontrei-me com o braço atrás das costas. Ele
pegou a mão que estava antes na maçaneta e cuidadosamente a levou sobre
minha cabeça, ele sabia que aquele era o braço ferido.
— Deixe-me ir Thomas!
Meu medo se transformou em fúria, assim que eu o reconheci. Quem é ele
para me pegar dessa maneira? Porque ele não se aproxima e fala comigo
normalmente, não sou uma criminosa.
— Não, Anna, primeiro eu quero uma resposta. Espere... deixe-me
adivinhar…
A sua expressão era ainda mais irritada.
— Você me viu lá fora e veio me observar, certo? Eu sabia que era você antes,
porque quando caminha, você faz um barulho enorme!
Antes que pudesse contestar o absurdo da sua declaração, ele se pressionou
ainda mais contra mim. Seu peito nu estava colado ao meu, protegido apenas
pela blusinha de algodão fino. Uma das suas pernas havia se encaixado entre as
minhas. Estou com raiva, deixa-me! Ao mesmo tempo, senti o calor que
emanava de seu corpo, aquecendo o meu, que, naquele momento estava com
muito frio. É uma sensação incrível! Eu podia sentir o cheiro dele no ar, um
toque de colônia com um leve vestígio de suor. Perfeito... Pare de sonhar e age!
— Mova-se Thomas. Agora!
Eu tentei controlar a raiva, mas ele me ignorou. Estava tentando me libertar,
quando ele baixou a boca a alguns centímetros da minha orelha e senti sua
respiração, profunda e nervosa, fazendo arrepiar a minha pele. Parei, toda a
minha ira desapareceu, transformou-se em puro desejo. Perdi o controle do meu
corpo.
— Você me olhou bem, garotinha. Gostou daquilo que viu?
Sua voz era ameaçadora, mas chegava em mim como lava incandescente. Eu
sabia que com ele não corria nenhum risco, então deixei meus olhos se fecharem
e mostrei para ele os meus sentimentos. Minhas costas se flexionaram
lentamente, inclinei a cabeça para trás até tocar a porta e lhe ofereci o meu
pescoço.
Sua respiração mudou, de repente, ele ficou ofegante, passional, enquanto
escorregava a ponta do nariz da curva da minha orelha para cima e para baixo,
até o meu pescoço de um lado para o outro, torturando-me ainda mais. Senti o
desejo crescer em mim e, naquele momento, percebi que estávamos jogando o
mesmo jogo. Sim!
— O que você tem para me fazer sentir assim? Por quê?
Ele me perguntou em uma voz baixa, quase um sussurro. Suas mãos liberaram
as minhas, apenas para pressioná-las suavemente na minha garganta. Abri os
olhos com consternação, e o encontrei olhando atentamente para mim.
— Perfeito, você tem razão em ter medo de mim. Eu não sou feito para você,
você entende isso?
Sua voz suave contrastava com o seu rosto. Ele não me deixava ir, eu não
conseguia e nem queria mudar mais nada naquela situação; era bom demais estar
perto dele. Deus, o que está acontecendo comigo? Como era possível sentir
sensações tão contrastantes ao mesmo tempo.
Eu queria me irritar, ele me chamou com uma voz desdenhosa de 'garotinha',
mas, ao mesmo tempo, meu corpo queria outras coisas, muito longe disso.
Tentei me defender e respondi.
— Eu estava passeando e vi você por acaso...
Minha voz estava tremendo. Sua mão no meu pescoço, sua respiração em mim
e seu corpo pressionando o meu, estava ficando louca. Eu estava a ponto de
implorar-lhe. Para fazer o que, não sabia, mas eu teria implorado. Com você eu
faço qualquer loucura!
— Por favor...
Minha voz soava cada vez menos convencida. Um suspiro trêmulo me
escapou quando senti que as suas mãos me liberavam e ele dava um pequeno
passo para trás, enquanto ainda olhava para mim. No momento em que ele se
desencostou, o meu corpo tornou-se gelado, e já reivindicava o dele.
— Vá dormir Anna, vou te falar pela última vez. E pare de vagar à noite.
Ele se virou e começou a ir embora, quando adicionei:
— Sim, senhor oficial, sim. Vou fa -
Não consegui terminar a frase, que queria parecesse alegre. Ele se girou, as
suas mãos pararam em torno do meu maxilar, e ele colou a sua boca na minha.
Minha boca se abriu de espanto e ele não perdeu tempo, enfiando a língua dentro
dela. Ele não me beijava, ele me devorava. Mantinha-me em um abraço
apertado, eu estava em seu poder e ele sabia perfeitamente o que estava fazendo.
Não era um beijo, era uma punição. Mas, se ele pensava que eu a receberia
quieta... mordi o seu lábio levemente como um aviso, mas depois, um pequeno
gemido saiu dos meus lábios. A coisa pareceu irritá-lo ainda mais. Agora
estávamos duelando com os nossos lábios. Você é incrível! Não pare, por favor.
Meu braço passou nas suas costas para aproximá-lo ainda mais, mas quando
ele percebeu o movimento, se separou, com o mesmo ímpeto com o qual havia
chegado.
— Basta, Anna! Isso é uma loucura, eu não quero.
Eu estava sem fôlego e minhas pernas quase não me mantinham em pé. Ele
foi embora caminhando como se nada tivesse acontecido.
Encontrei-me sozinha, apoiada na porta, tentando entender o que tinha
acontecido. Nós éramos fogo e combustível juntos.
Entrei no galpão e arrastei-me pela escada, com o seu gosto nos meus lábios.
Muito bem, Anna, agora você tem outro grande problema chamado Thomas.
Quando me deitei na cama e obviamente não consegui dormir, lembrei-me que
esqueci de lhe perguntar sobre o telefone. Pelo menos eu teria algo para me
distrair pelo resto da noite.
Ao amanhecer eu acordei assustada. Não me lembrava de ter adormecido.
Enquanto estava tomando banho, decidi que eu deveria enfrentar a situação
como uma pessoa adulta. Isso mesmo, esperaria para ver os movimentos dele.
Além disso, entre nós dois, ele era o mais adulto e, portanto, ele que buscasse a
solução. Essa é uma ótima ideia! Vesti-me e maquiei-me com as amostras que a
cabeleireira do hospital me havia dado.
Quando cheguei ao andar de baixo, cumprimentei o senhor Schmidt, que
estava levando alguns cavalos para fora. Era lindo observar enquanto
caminhavam sem rédeas, silenciosamente, ao lado do senhor: o professor deles.
Conversamos sobre amenidades, e depois fui para a casa de Katrin, que havia me
convidado na noite anterior para o café da manhã.
Perto da sua porta, encontrei Betsy deitada que apreciava os primeiros raios de
sol. Parei para dizer olá e imediatamente ela me mostrou a barriga para acariciar,
o que me fez sorrir. Aqui encontrei outra amiga! Era uma bela manhã e me senti
bem, mesmo que precisasse de tempo para preparar o encontro, ou talvez a
colisão, com Thomas.
Bati suavemente na porta, e fui convidada a entrar. Cumprimentei Katrin e
segui sua voz até a cozinha, onde a encontrei, terminando o café da manhã.
Percebi que a mesa estava preparada para mais três pessoas. Eu vi a xícara
colorida com o pequeno prato que pertencia a Mia e, ao seu lado, o que eu
imaginava fosse o prato e a xícara de Thomas. Ao lado deles, outro prato com
uma xícara. É para mim?! A ideia aqueceu meu coração.
Ela percebeu que eu olhava com curiosidade para os pratos, assim me disse:
— Sente-se no seu lugar e sirva-se, querida. Emma e Hans foram pegar um
cavalo novo. Eles tiveram que sair mais cedo porque o lugar onde está o animal
é muito longe, e nós preferimos que nossos novos hóspedes cheguem durante o
dia, para terem tempo de se acostumar, antes da noite.
Senti o amor em sua voz quando falou de seu 'novo hóspede', gostei. Ela
continuou, enquanto se levantava para colocar o seu prato na máquina de lavar
louça.
— Thomas e Mia já estão chegando. Ela não dorme muito quando está com o
pai, aproveita todas as oportunidades para passar o maior tempo possível com
ele. De qualquer forma, tudo o que você precisa está sobre a mesa, sirva-se como
se você estivesse em casa.
Com sincera gratidão, comecei a saborear o delicioso café da manhã,
enquanto ela me dava alguns detalhes sobre o meu trabalho na fazenda e o
funcionamento da empresa. Ela não se convenceu com os meus argumentos,
quando eu disse que não precisava pagar-me pelos meus serviços. Ao contrário,
ela tirou de uma gaveta, o que ela me explicou, seria um pequeno empréstimo,
caso eu precisasse comprar algo, sem precisar pedir nada ao seu filho. A
bondade desta senhora me emocionou e quando agradeci, ela pegou as minhas
mãos, olhando-me com carinho. Seria eternamente agradecida a esta família,
eles me receberam como se eu fosse um deles e não como uma estranha.
Enquanto ela me contava algumas histórias de seus 'hóspedes', ouvimos a
risada de Mia que se aproximava com Betsy seguidas por um Thomas sorridente.
Como pode ser tão bonito, ele me deixa sem fôlego. Corei com a memória do
nosso inesperado, mas excitante encontro na noite anterior, porém, ele não
demonstrou nada. Cumprimentou-me com indiferença, com sua habitual voz
austera. Seu lindo sorriso desapareceu! Olhei para o outro lado para escapar do
seu olhar, quando vi Katrin olhando-me pensativamente, com certeza ela havia
notado o meu rubor na chegada do seu filho. Ela não fez nenhum comentário e
lhe fui grata.
Mia cumprimentou-me com um bonito sorriso, queria abraçá-la, mas me
segurei, quando me lembrei que seu pai estava ali perto. Ela era uma garotinha
doce e vê-la interagir com Thomas aqueceu o meu coração. Com ela, ele era
todo sorrisos e atenções, seus sentimentos eram transparentes. Era um prazer
olhar para eles e fui surpreendida novamente por Katrin, enquanto olhava aquela
adorável cena familiar. Parecia-me que eu olhava para eles e ela olhava para
mim, ou talvez fosse apenas o resultado da minha imaginação.
Enquanto eles estavam terminando o café da manhã eu a ajudei a limpar a
mesa. Mia ficaria em casa com Katrin e Betsy, enquanto Thomas e eu iríamos
buscar meus documentos.
Thomas tinha levado com ele o telefone que ele me emprestaria. Depois de
despedirmos de todos, nos sentamos fora, no banco perto da fonte, para que ele
me explicasse como funcionava. Embora eu nunca tivesse tido um telefone,
Joaquim havia me mostrado alguns comandos no seu celular, e foi muito fácil de
entender.
No entanto, o que eu achei muito difícil foi estar sentada ao lado de Thomas,
como se nada tivesse acontecido. Para piorar tudo, via ao meu lado, a barra na
qual ele havia treinado. Tantas imagens provocantes povoavam a minha cabeça
enquanto ele estava explicando de forma monótona o funcionamento do
telefone. Suas costas brilhavam com o suor, sua respiração enquanto ele subia,
o seu nariz na minha orelha para cima e para baixo... e sua boca. Um arrepio
percorreu meu corpo.
— ... o carregador, deixei perto da porta do quarto. Você está ouvindo, Anna?
Fui pega no ato, enquanto estava sonhando acordada.
— Ah... Sim, é claro. Mas que pergunta! Eu entendi tudo. Dê-me aqui esse
negócio.
Irritada, tirei o telefone da mão dele, tomando cuidado para não o tocar, e
coloquei-o na pequena mochila que me deram no hospital. Levantei-me
rapidamente do banco. Vá, afaste-se dele, obviamente eu não fiz aquilo que
gostaria, nem mesmo um passo.
O que eu poderia dizer a ele? Naquele momento eu entendi como ele lidaria
com a nossa situação: com indiferença e frieza. Se você quiser, eu sei como jogar
também!
— Vamos, Thomas ou vamos chegar atrasado.
Eu caminhei até o carro, sem sequer esperar por ele.
— Por aqui, Anna, vamos com as bicicletas, a cidade fica nas proximidades.
Com um sorrisinho satisfeito, ele pegou uma bicicleta encostada na parede e
me mostrou a menor, provavelmente da Emma.
Eu não era muito boa com bicicletas, mas não queria falar isso para ele. Nós
tínhamos algumas na nossa casa, mas costumavam ser usadas pelas crianças
mais jovens para brincar. Com um pouco de medo, cruzei os meus dedos e
peguei a bicicleta.
— Espera, Thomas!
Ele já estava à frente da estrada e eu nem tinha me movido. Ele olhou para
trás com um sorriso malandrinho, acenou um não com a cabeça e continuou
pedalando.
— Maldito homem teimoso!
Falei baixo, enquanto me apressava em segui-lo.
Felizmente, apenas alguns carros passaram na estrada e a cidade não era
longe. Gostei demais da experiência; ver a cidade com a velocidade de
pedaladas, era incrível. Na praça central, vi um pequeno mercado com barracas
que ofereciam produtos locais e algumas pessoas que se cumprimentavam e
paravam para conversar. Eu me encontrei saudando, com um sorriso tímido, as
pessoas e os muitos ciclistas que encontrava.
Thomas, quando percebeu minha pouca experiência na bicicleta, diminuiu a
velocidade e, em alguns lugares, nos encontramos pedalando lado a lado. Eu fiz
perguntas sobre a cidade e a vida do país, ele milagrosamente me respondeu
dando mais informações do que os seus habituais monossílabos. Aqueles
momentos da sua atenção foram suficientes para que esquecesse a minha raiva e
trouxessem um sorriso radiante aos meus lábios.
Depois de fazer os meus novos documentos, pedi-lhe para me acompanhar ao
supermercado. Eu tinha que comprar alguns produtos de higiene feminina, do
resto, eu economizaria o máximo possível. Não podia perder a oportunidade de
provocá-lo e então, depois de estacionar perto da entrada, aproximei-me com a
expressão mais tímida que eu conseguia fazer, e pedi em voz baixa se ele podia
entrar e traduzir para mim o que estava escrito nas caixas de absorventes. Eu ri
de seu rosto desconcertado até encontrar o corredor exato.
Na saída, encontrei-o conversando com um casal de idosos. Fiquei de lado
para observar como o casal o tratava com respeito e, como ele, mesmo sem estar
vestido com o seu uniforme, respondia com o mesmo respeito. Sua postura, sua
segurança e seu carisma me encantavam.
Quando se despediu do casal e retornamos em direção à fazenda, descobri que
o que eu queria dele era receber aquela mesma atenção. Eu não quero ser
considerada como a 'garota encontrada na floresta', mas como uma mulher
normal.
Depois do almoço, já que era o fim de semana, Mia não queria fazer o seu
repouso habitual, então Thomas lhe ofereceu um passeio de bicicleta. Fiquei
muito feliz enquanto pensava em onde ele nos levaria, mas quando ele se
afastou, na frente da casa, não pude deixar de andar triste e sozinha em direção
ao galpão.
No início do pasto, reconheci o senhor Schmidt que havia testemunhado a
cena. Eu o cumprimentei tentando fazer o meu sorriso espontâneo e alegre, mas,
o que saiu foi apenas uma saudação trêmula. Ele me olhou com aqueles incríveis
olhos azuis.
— Não se preocupe jovem Anna, dê-lhe apenas um pouco de tempo. Eu
acompanhei de perto o crescimento dele e de Emma. Eles são como meus filhos,
e te posso garantir que Thomas sofreu muito nos últimos anos.
Seu rosto expressava toda a ternura que ele sentia por eles.
Suspirei e respondi:
— Ah! Senhor Schmidt, como eu gostaria que o senhor estivesse certo.
— Confie em mim, Anna, eu sei o que estou dizendo. Nenhum coração, que
ama como o de Thomas, esquece esse sentimento. No começo, ele pode negar a
si mesmo, mas aceite meu conselho, continue fazendo exatamente o que você
está fazendo.
— Mas o senhor não vê, senhor Schmidt, o que eu estou fazendo? Ele me
deixou aqui e eu queria somente dar um passeio junto com eles.
— Veja, esta é a resposta.
Ele sorriu para minha expressão duvidosa:
— Você precisa ser você mesma, não precisa de mais nada. Você já entrou no
coração dele, daqui para a frente só precisa crescer. Eu vi como ele te olhava,
quando nos conhecemos. Você despertou nele esse sentimento, deixe-o crescer e
florescer. A grande verdade é que Thomas tem medo de se afeiçoar de novo.
Seu sorriso aumentou, ele me disse:
— Venha comigo que eu vou te distrair. Estou reparando aquele carro antigo
no galpão, era o sonho do pai de Thomas, e eu preciso de um assistente para
continuar o trabalho.
Concluiu a frase com uma piscadinha.
Ao entrar no galpão, pensei em ajudá-lo por algumas horas e depois eu
verificaria meus e-mails. Eu ainda estava aguardando uma resposta da
associação à qual escrevi do hospital, com um pouco de sorte, teria chegado uma
resposta deles. Meu plano era 'desesperado', mas simples: eu daria um prazo para
Thomas e seus colegas. Se eles não propusessem um plano melhor que o meu,
tinha que convencê-los a me deixar voltar e chegar ao aeroporto de Milão, como
se estivesse vindo do Brasil. Essa era a minha última esperança para encontrar as
irmãs desaparecidas.
Usar-me como isca.

***

No dia seguinte, encontrei-me ajudando na cozinha a preparar alguns pratos,


porque teríamos visitas para o almoço.
Enquanto aprendia com Katrin e Emma algumas receitas das tradições delas,
incluindo o famoso churrasco suíço, contava para elas a minha vida na
comunidade e os costumes do meu país.
A falta do patriarca ainda era muito sentida. Enquanto Katrin me contava
algumas histórias, seus olhos enchiam-se de lágrimas. Jonah tinha sido, sem
dúvida, um marido e um pai excepcional. Emma, quando via a tristeza nos olhos
de sua mãe, lembrava-se dos momentos engraçados e então elas se viam rindo e
chorando ao mesmo tempo. Senti-me à vontade na presença delas, e apreciava
toda a informação que elas me contavam sobre um determinado oficial.
Thomas estava fora com Mia, Hans e Mr. Schmidt, acendendo a churrasqueira
e preparando a mesa. Eu conheceria a senhora Schmidt, que ainda estava por vir.
Os avós maternos de Mia haviam sido convidados, mas já tinham um
compromisso e não viriam. Descobri que os suíços, na primavera e no verão,
muitas vezes, encontravam momentos para se reunir e celebrar a bela estação,
bastante curta.
Nosso domingo se anunciava perfeito com um belo dia e a temperatura ideal.
Passei toda a tarde me divertindo, brincando com Mia e Betsy. Betsy possuía
bolinhas de tênis espalhadas por toda a fazenda e nunca se cansava de pegá-las e
trazê-las de volta.
No final da tarde, nossa pequena festa não mostrava nenhum sinal de querer
terminar. Nós estávamos sentados à mesa, quando o senhor Schmidt, depois de
algumas cervejas e copos de vinho, começou a dançar uma bela música lenta
com sua esposa. Depois de tantos anos juntos, ainda se notava o amor nos olhos
do casal. Hans e Emma, abraçados no fim da mesa, à metade da música,
levantaram-se para se unirem a eles. Mia solicitou a mão do seu pai e levou-o
para o meio do pátio, onde os outros estavam dançando. Como ela ainda era
pequena, Thomas a pegou e a abraçou e, enquanto eles dançavam, ele a
aproximava dos outros casais para receber alguns beijinhos.
Katrin, sentada mais longe, aproveitou a oportunidade para sentar-se ao meu
lado. Ela olhou para a família com uma expressão intensa, mas feliz e me disse
com a voz baixa:
— Tivemos alguns momentos difíceis nos últimos anos. Dizem que depois da
tempestade, o sol vem trazendo consigo a tranquilidade, espero ansiosamente por
esse momento.
Com a cabeça baixa como que perdida em seus pensamentos, ela continuou:
— Todos nós sofremos a perda inesperada de Jonah, meu marido. Mas
Thomas recebeu um duplo golpe quando descobriu que não seria capaz de
continuar o seu relacionamento com a mãe de Mia, Leonie.
Ela me olhou nos olhos e continuou, não sabia o que dizer-lhe, então, ouvi sua
história.
— Depois de todo esse tempo, ele ainda não conseguiu aceitar que a jovem
médica fez uma escolha que, infelizmente excluiu tanto ele quanto a criança. Eu
tentei, junto a Emma, explicar a ele que em um relacionamento você não pode
amar por dois. Leonie não queria a bebê desde o início, sua carreira estava
sempre em primeiro lugar. Aqui em casa, fizemos aquilo que achamos correto, a
criança veio viver conosco e a amamos incondicionalmente.
— Conhecendo meu filho, que tem o mesmo caráter teimoso que meu marido,
eu sabia que ele faria qualquer coisa para tentar fazê-la mudar de ideia durante a
gravidez ou, em uma última tentativa desesperada, imediatamente após o parto.
Conheço a mãe de Leonie há anos, ela é uma boa pessoa e nós duas estávamos
convencidas de que, quando ela visse a bebê pela primeira vez, pensaria
novamente. Foi um choque para todos quando, ainda no hospital, Leonie assinou
os documentos que passaram a responsabilidade na criação de Mia
exclusivamente a Thomas. Nem mesmo a sua própria mãe conseguiu convencê-
la do contrário.
Ela olhou tristemente para Mia e Thomas, que ainda dançavam, enquanto
continuava sua história:
— Eu tinha certeza de que, ao longo do tempo, as águas se acalmariam e
Leonie reconsideraria a sua decisão. A criança sempre foi mais do que bem-
vinda tanto na nossa casa, como naquela dos seus avós maternos, onde ela
frequentemente vai visitá-los. Eles, além de Mia, têm outros três ou quatro netos,
e ela sempre brinca com os primos de bom grado.
— Posso dizer-lhe que até hoje, Leonie não se arrependeu, e não penso que
isso acontecerá. Mia, no entanto, em seis anos, nunca mostrou problemas pela
falta da mãe. Afinal de contas, se você pensar sobre isso, o nome 'mãe' é apenas
um rótulo; só temos uma e, se não nos sentimos amados por ela, fica difícil
aproximar-se.
Eu entendia bem o que ela queria dizer. Na minha vida, eu havia tido várias
'mães'. Eu contei a ela sobre o relacionamento que tive, quando era criança, com
minha mãe e depois com algumas irmãs, que também se tornaram ‘minhas
mães’, sem laços de sangue. Eu esperava que minha história a tranquilizasse para
o crescimento da pequena Mia, era claro que eles fizeram as melhores escolhas
para a criança. Afinal, eu me considerava uma boa pessoa, amável e afetuosa, e
certamente não tinha sido criada com o cuidado e o amor, como aquele que Mia
recebia.
Fiquei preocupada quando terminei a minha história. Katrin me olhou com
lágrimas nos olhos, atraindo ainda mais a atenção de Thomas, que dançava uma
música alegre junto com os outros, girando em círculo, mas com os olhos
colados em nós duas, já há muito tempo.
— Mil desculpas, Katrin, não queria fazer você ficar triste. Não era a minha
intenção.
Não sabia mais o que dizer para ela, quando ela tomou o meu rosto entre as
suas mãos e me sussurrou suavemente:
— Minha querida menina. Você tem muitas coisas boas dentro do seu jovem
coração. Eu só fiquei comovida pelas tuas palavras e pela história de sua vida.
Você já fez tanto, em poucos anos. Você tem uma alma pura e bela.
Com medo, vi, pelo canto do meu olho, Thomas que deixava Mia dançando
entre Hans e Emma e vinha direto para onde nós estávamos, com sua expressão
fechada. Talvez ele pensasse que havia ofendido sua mãe de alguma forma.
Preocupada a abracei, enquanto esperava a chegada da fúria do seu filho.
Falei com ela em voz baixa, ainda envolvida em seu abraço:
— Obrigada, Katrin, pela conversa. Agora você só tem que me salvar de seu
filho, ele está vindo aqui porque provavelmente pensa que te fiz chorar de
propósito. Ajuda-me, por favor.
Disse com uma risada nervosa enquanto me afastava dela e o via chegar.
Ela olhou para mim com um sorriso nos lábios, acenou um leve 'sim' com a
cabeça enquanto se virava, no momento exato em que ele parava furiosamente
na minha frente.
— Oi, querido, você chegou no momento certo. Leva Anna para dançar, por
favor, enquanto isso, vou pegar a sobremesa.
Com essa frase, ela pegou a minha mão que estava junto com a sua e colocou-
a sobre a de Thomas, que ficou boquiaberto, com a intenção de dizer algo, mas
se conteve, quando viu as nossas mãos juntas. Sua mãe continuou acariciando o
seu rosto.
— Está tudo bem, não se preocupe comigo. Vá se divertir.
Ele ainda olhava para mim irado, enquanto Katrin entrava em casa. Eu pensei
em propor uma trégua e, educadamente, liberar a minha mão que ainda estava
junto com a dele, quando ouvimos Mia dizer:
— Dança com ela papai, você sabe que as meninas gostam de dançar.
A frase de Mia foi seguida das risadas de Emma e da senhora Schmidt.
Ele me envolveu a cintura com seus braços, minhas mãos traiçoeiras passaram
pelos seus ombros e, quando começávamos a girar lentamente, ele me
pressionou veementemente contra seu peito, sussurrando ameaçadoramente na
minha orelha:
— Qual era o tópico com minha mãe? O que você disse a ela?
— Relaxa Thomas. E não me aperte demais, nem consigo respirar!
Eu gostava de estar perto dele e como, se gostava. Mas não assim, com raiva
por algo que eu não tinha feito. Continuei:
— Olha, você não precisa ficar com raiva. Nós estávamos apenas -
Como resposta, ele me apertou ainda mais.
Nesse ponto, meu sangue começou a se aquecer nas veias. Falei baixo:
— Mas por favor, você realmente não confia nas mulheres. Ela me falava de
você, cretino teimoso. O que você acha, que eu a fiz chorar de propósito? Olha
para mim, Thomas, você acha que sou capaz disso? Depois de tudo o que vocês
fizeram por mim?
Afastei-me. Estávamos longe dos outros, para que ninguém ouvisse a nossa
discussão; melhor assim, eu não queria chamar a atenção.
Eu tinha lágrimas nos olhos, quando passei na frente dos convidados com a
cabeça baixa, e anunciei que não estava me sentindo bem. Não queria que Katrin
me visse assim. Não era justo com ela, que via em seu filho um grande homem.
Se ela soubesse do coração insensível que ele possuía...
Eu caminhei em direção ao meu quarto me sentindo em pedaços. Como ele
pode achar que sou capaz de machucar alguém da sua família? Durante um dia
inteiro havia me sentido como parte de uma família de verdade. Meu coração,
que antes dava saltos de alegria, agora vinha despedaçado por aquele ao qual não
conseguia resistir.
O pôr-do-sol era bonito, assim fui para o pomar, atrás do galpão. Eu tinha
visto um balanço pendurado em uma árvore e foi lá que chorei todas as lágrimas
que havia mantido até aquele momento, enquanto olhava para o meu pulso nu.
Ajuda-me San Miguel, por favor.
Chorei pela minha solidão, pelas irmãs cujo destino eu não conhecia, mas
principalmente por aquele que me considerava maldosa, quando estava claro, no
meu coração residia somente amor.
15. 'Grande amigo'?

Thomas
Definitivamente o destino me faz piadas de mal gosto!
Eu não conseguia me manter longe da Anna e pior, quando eu estava perto
dela, não conseguia controlar as minhas emoções, muito menos o meu corpo. Eu
passava da euforia à raiva em questão de segundos. Talvez depois me desculpe,
ou talvez não, dependendo do quanto ela ainda me irritará.
Nada disso havia acontecido com Leonie, ela não teria permitido. Nosso
relacionamento era sempre calculado e seguro, não havia espaço para erros ou
surpresas. Nós éramos colegas de escola e desde crianças todos conheciam a
nossa história. Na adolescência, entre brigas e reconciliação, estivemos sempre
juntos. Existiram outras garotas para mim, bem como rapazes para ela, mas no
meu coração ela sempre teve um lugar especial. Foi assim que, depois de
adultos, enquanto ela estudava medicina em Zurique, e eu estava no exército,
propus um relacionamento mais sério. Como um bom imbecil, pensei que
poderia convencê-la a amar-me quanto eu a amava. Leonie sempre foi muito
clara comigo: eu que deveria ter entendido que estava ocupando, talvez o
segundo, ou, um lugar ainda mais rebaixado no coração dela. Era por isso que a
chegada de Mia nos gerou sentimentos contrastantes; para mim foi a infinita
felicidade, para ela, como entendi depois, o desespero supremo.
Mais uma vez, foi tudo culpa minha. Nós sempre usávamos preservativo, que
ela pegava na clínica escolar. Eu não gostava de usá-lo, queria que ela tomasse
pílula. Assim, em meu aniversário, pedi-lhe como presente. Eu havia implorado
a ela, somente uma vez, sem usar camisinha. Eu a assegurei que tiraria antes de
ejacular. Quando finalmente consegui convencê-la e estava dentro do seu corpo,
descobri que estar assim com ela era o que eu sempre havia sonhado, e muito,
muito mais. Pecado que não consegui cumprir minha promessa. Aquela noite
nos trouxe o presente mais precioso que eu poderia sonhar: Mia. Infelizmente,
levou também a sua mãe para longe de mim. Para sempre.

***

Ignorei os olhares zangados de minha mãe, depois que Emma havia dito a ela
o que ela imaginou, houvesse acontecido entre Anna e eu. Enquanto ajudava a
limpar a mesa, pensava no que havia acontecido no galpão. Quando a segurei
contra a porta, fiquei totalmente chocado com a minha reação ao corpo dela.
Perdi completamente a cabeça, no momento em que ela abriu a boca para dizer a
última palavra, apesar de ter feito tudo para me retirar.
Aquele beijo não estava nos meus planos, mas certamente estava nos planos
do meu cérebro. Completamente fora de mim, só queria que ela fechasse aquela
boca. Eu não me comportava assim com nenhuma mulher! Meu coração era uma
zona impenetrável e os meus relacionamentos, sempre que pudesse chamá-los
assim, eram sempre e apenas de uma noite. Era o suficiente para mim, também
para as garotas, para as quais, eu explicava primeiro as minhas intenções. O jogo
tinha que ser claro para ambos os lados.
O ruído de um carro na nossa estrada me livrou desses pensamentos
inoportunos. Depois de alguns segundos, Adam apareceu no pátio. Ele saiu do
carro, assobiando alegremente, enquanto olhava para a churrasqueira que
acabávamos de desligar.
— Boa noite a todos, vejo que vocês terminaram sem a minha presença.
— Olá Adam, venha, nós temos sempre comida para você.
Minha mãe o havia 'adotado' há anos e ele não a decepcionava, chegando
sempre no momento exato. Na minha opinião, ele deveria ter sentido o cheiro da
carne grelhada da praia, onde certamente havia passado o seu dia de folga.
— Oi Katrin, obrigado, como sempre, pelo convite. Oi Thomas, onde está a
pequenininha?
— Ela já foi dormir, com a Emma. Pega algo para beber que eu te espero,
também tem a torta de maçã que você adora, adivinhe quem a fez?
Concluí com uma careta.
— Eu sei.
Ele me respondeu, piscando enquanto entrava em casa, conversando com
minha mãe. Antes de atravessar o limiar da porta, ele se virou para mim e
acrescentou:
— Katrin deveria ter tido uma segunda filha para que eu pudesse me casar
com ela. Como não aconteceu, você terá que se contentar comigo, 'brother'.
Fingi um olhar irado para o meu melhor amigo, que tinha um lugar especial
no meu coração. Ele havia me salvado, após o nascimento de Mia. Em todos
esses anos, ele me empurrava para seguir em frente com a minha vida, aliás, em
vez de me empurrar, às vezes ele me chutava brutalmente, por assim dizer.
Olhei em direção ao pasto e o vi vazio, o que significava que o senhor
Schmidt já havia fechado os últimos cavalos nas cocheiras, e tinha ido embora,
com sua esposa. Os proprietários dos animais, que tinham vindo para levá-los
para uma caminhada, já haviam ido embora. Era possível chegar ao galpão pela
estrada lateral, na qual havia um grande estacionamento, destinado a clientes e
entregas. A fazenda era circundada por uma floresta exuberante, onde eram
sinalizadas várias trilhas equestres.
Notei que a luz no quarto de Anna ainda estava apagada. Será que ainda
estará fora? Eu esperava que ela não tivesse ido ao bosque. No fim do dia é fácil
perder-se.
Enquanto eu tentava decidir se iria verificar ou a deixaria um pouco mais de
tempo, Adam voltou com dois pratos na mão. Em um, ele tinha o que me parecia
ser todos os restos do churrasco e, no outro a metade da torta. Sentou-se
tranquilamente à mesa, que eu havia acabado de limpar, e começou a comer
olhando à sua volta, intrigado.
— Agora que estamos sozinhos, onde ela está? Você sabe por que estou aqui,
não?
Ganha tempo Thomas, ganha tempo.
— Quem, Mia? Eu já te disse que ela acabou de ir dormir.
— Não banque o espertinho Thomas, onde está a garota? Estou curioso em
conhecê-la, só isso. Você nem quis me levar ao hospital com você, e você não
conseguirá escondê-la por muito tempo. Espera somente para ver o que vai
acontecer quando o 'senhor mauricinho' encontrar-se com ela. Aquele italiano é o
maior cara de pau. Eu o vi em ação, enquanto flertava com as mulheres na rua, é
incrivelmente habilidoso, um verdadeiro garanhão!
Apenas escutar meu amigo se referir ao agente italiano, senti uma vontade
incrível de bater em alguém. Olhei em volta para me distrair, respirei fundo para
me controlar e respondi:
— Por favor, Adam! Em primeiro lugar, você conhece a fama dos italianos.
Eles sempre se vestem bem e são aduladores com todas as mulheres. Está no
DNA deles, pelo menos é assim que dizem.
Com um movimento dos ombros, que queria demonstrar que o argumento não
me interessava minimamente, decidi mudar de assunto rapidamente, porque
aquele me irritava demais e eu tinha medo de que Adam percebesse meu
estranho interesse pela nossa testemunha. Em qualquer caso, tomei nota, faria
tudo para que o agente italiano nem olhasse para Anna. Ponto final!
— Eu acho que ela também já foi dormir. A luz no antigo escritório de meu
pai, onde ela dorme, está desligada, olha lá.
Apontei para o galpão.
Ele olhou para cima para ver para onde eu estava apontando, enquanto
terminava de comer o churrasco. Nesse meio tempo, eu pensava rápido em
algum tópico para fazê-lo mudar de ideia. Ela não vai demorar muito para
voltar. Pense em alguma distração, Thomas, rápido. Sim, as meninas em
Konstanz.
— Adam, quando você terminar, vamos até o Babe's? Eu quero ver se hoje a
Lilia está dançando.
O olhar dele, desconfiado, apenas se levantou de cima da torta. Estou fodido,
ele me conhece muito bem!
— Nem tenta Thomas. Conheço você desde que usávamos fraldas e não
funcionará me propor de ir ao clube de strip-tease. Nahhh... onde ela está?
Afastei-me para economizar tempo, fingi limpar o chão com uma vassoura
que peguei apoiada na parede.
Ele terminou a torta e, quando se levantou para levar o prato, eu vi Anna,
ainda distante, caminhando em direção ao galpão, vindo do pomar perto do
jardim.
Seus cabelos brilhavam com uma linda cor de cobre, graças aos últimos raios
de luz do sol que iluminavam por trás da sua cabeça. Suas pernas torneadas
apareciam na saia que balançava suavemente com o seu movimento. De um
tecido fino, macio, terminava logo acima dos joelhos, o tamanho certo para
azucrinar a minha criatividade e deixar-me com água na boca. Para completar a
imagem idílica, ela estava segurando o que parecia ser um pequeno buquê de
flores. Tantos pensamentos desabrochavam na minha hiperativa imaginação.
Naquele momento, eu era um homem 'extremamente criativo'. Seu corpo contra
o meu, aquela blusinha fina e quase transparente, o perfume dela. Porque cacete
ela anda de noite vestida assim? Chega, Adam está aqui, concentre-se nele!
Notei o repentino silêncio, e me virei na direção do Adam. Era difícil para ele
permanecer quieto por muito tempo, sem uma das suas piadas espirituosas. Sua
boca estava aberta em uma expressão de intensa admiração, encantado com a
visão que se apresentava diante dos seus olhos.
— Minha nossa senhora! É ela? Agora eu entendi por que você a estava
escondendo.
Ele colocou rapidamente os pratos nos meus braços, enquanto tomava a
vassoura das minhas mãos e rapidamente a colocava contra a parede.
— Leve-os para a Katrin, por favor. Eu absolutamente devo tirar uma dúvida.
Apontou diretamente para ela, e começou a caminhar, deixando-me ali parado
como um otário, assim o chamei.
— O que você está fazendo, Adam! Cuidado para não a assustar. Que diabo de
dúvida você tem que tirar?
— Olha, ela nem te conhece, espere que eu vou junto com você.
As palavras saíam rapidamente da minha boca, quase com desespero.
Ele nem sequer parou para me responder, seu passo era veloz. Certamente era
um homem com uma missão. Eu quase não ouvi sua voz quando, rindo, me
respondeu:
— Você quer saber que tipo de dúvida eu tenho? Eu quero só confirmar se ela
é ainda mais bonita de perto, se as fotos do nosso técnico a rendem justiça. Não
se preocupe, leva o prato lá dentro que tenho tudo sob controle.
Enquanto ele caminhava em direção ao galpão, assobiando com as mãos nos
bolsos, notei que ele estava muito bem vestido para um churrasco. Eu deveria ter
percebido antes as suas intenções. Maldito Adam!
O seu short claro, modelo cargo, contrastava com a blusa polo escura, que
enfatizava a sua musculatura. Seu cabelo castanho claro era, como ele sempre
aludia, 'perfeitamente despenteado' ou 'despenteado à regra d’arte'. Adam era um
cara muito simpático, especialmente com as mulheres. Ele sabia como deixá-las
à vontade sem parecer demasiado intrusivo ou interessado. Obviamente, as suas
táticas tinham sempre o efeito desejado e todas elas, entusiasmadas, caíam aos
seus pés e exigiam a sua atenção.
Ele mesmo, sempre contava isso aos amigos, dizendo, de brincadeira, que
colecionava amigas, como nós, de pequenos, fazíamos coleções de figurinhas de
jogadores de futebol.
Olhei para o meu short de moletom e a blusa cinza claro que usava para
treinar e entendi ao que o meu amigo se referia, quando me dizia que eu deveria
repensar meu estilo. Para tornar a minha roupa ainda mais desastrosa, quando
estava em casa e, do lado de fora fazia bom tempo, usava chinelos, porque me
sentia mais confortável.
Nem mesmo Betsy parecia notar-me, eu a via distante, trotando ao lado do
meu amigo, com uma de suas bolinhas na boca, enquanto ele se aproximava da
Anna.
Reprimi um murmúrio irritado, caminhei em direção à casa da minha mãe,
para lhe levar os pratos que ele havia deixado na minha mão, como se eu fosse
um garçom. Eu não ficaria ali para observar o Casanova entrar em ação, com a
ajuda da Betsy, a traidora.
— Obrigada, Thomas.
Minha mãe me disse, enquanto colocava as últimas coisas na máquina de
lavar louça e pegava os pratos que lhe oferecia.
— Onde está Adam?
Essa era a única pergunta que eu não queria responder. Com os dentes
cerrados, disse
— Com Anna e Betsy perto do galpão.
— Ah, vejo que ele já está fazendo uma nova amiga.
Ela concluiu, rindo:
— Não perde tempo aquele rapaz.
Com dentes ainda mais comprimidos, respondi secamente:
— Não, realmente não.
Ela se virou para mim com curiosidade e enquanto, com a cabeça fazia um
gesto para expressar um 'eu não te entendo', me disse:
— Vá com eles se a coisa te perturba.
Com um tom mais abrupto do que o necessário, respondi:
— Não, realmente não me incomoda, por que deveria? Na verdade, eu vim te
desejar boa noite, vou dormir. Sim, isso mesmo... vou dormir!
Eu a beijei com carinho, assegurei-me de que ela não precisasse da minha
ajuda, e depois fui para casa.
Uma vez lá fora, olhei de lado para o galpão e os vi conversando
tranquilamente. Anna estava sentada na cerca que servia como divisão para o
pasto e ele estava de pé ao lado dela, com os cotovelos apoiados na cerca. Anna
possuía parte das pernas em bela exibição e ele parecia estar olhando exatamente
para elas. Pelo que podia ver, à distância, eles pareciam muito próximos, demais
para o meu gosto. Adam não perde tempo mesmo. Cretino!
Eu entrei em casa fumegando, com a firme ideia de que precisava me distrair,
porque já tinha perdido completamente o sono. Em momentos de raiva, o
treinamento era a minha única salvação.
Cheguei ao sótão, tirei a blusa, liguei a música e comecei a enfaixar as mãos.
Eu as protegi, mas não vesti as luvas, porque queria sentir os golpes por
completo. Conectei o telefone ao estéreo, e escolhi a lista de músicas mais
raivosas que havia.
O som de uma guitarra rasgou o ar, o primeiro punho chegou preciso e
poderoso ao saco; aquele que eu imaginava ser o rosto sorridente do meu melhor
amigo. Eu sabia que naquela noite eu continuaria até a exaustão, era isso que eu
precisava.
16. Novo amigo

Anna
Com um pequeno impulso me balançava, enquanto tornavam-se à minha
mente as palavras do senhor Schmidt. 'Eu deveria ser eu mesma?' Como posso
fazer a coisa certa para Thomas? Era claro que ele ainda sofria pela mãe da Mia.
Mas estou ficando louca? Estou aqui somente de passagem. Na verdade, eu não
deveria sonhar com a possibilidade de uma relação entre nós; estava me
enganando se achasse que naquela família poderia existir um lugar para mim.
O que está errado comigo, como Thomas pode ter se tornado tão importante
para mim em tão pouco tempo? E como ele pode pensar que sou malvada?
Pensamentos e memórias se misturavam na minha cabeça, enquanto me
dirigia para o meu quarto e enxugava, com uma ponta de raiva, as últimas
lágrimas que ainda insistiam em umedecer o meu rosto. Eu me obrigava a
ocultar a minha decisão, infelizmente não tinha escolha.
Era crucial que me focalizasse no fato de ter ganhado uma segunda chance e
que havia um objetivo a ser alcançado. Eu tinha que encontrar as irmãs da
comunidade e depois voltar para casa, para aqueles que me amavam, não deveria
ficar aqui sofrendo por um homem, que, pior ainda, nem me queria. Mais fácil
dizer, do que fazer.
Tentei me distrair; respirei profundamente, olhei ao meu redor e admirei as
flores pequenas e coloridas que brotaram no chão. De vez em quando parava
para recolher algumas para decorar o quarto.
Ao longe, vi um homem vindo em direção ao galpão com Betsy que trotava
alegremente ao seu lado. Provavelmente, era o dono de um cavalo. Alisei a
minha saia porque não queria parecer muito descuidada, já me bastava o rosto
vermelho de lágrimas, de tanto chorar.
Pensei em me apressar para não o encontrar, mas não conseguiria chegar antes
dele na entrada do galpão.
Quando estávamos acerca de dez metros de distância um do outro, notei o
quão atraente era o rapaz. Seu corpo era maciço quase quanto o de Thomas, era
somente um pouco mais baixo. Eu olhei para baixo, porque não queria ser vista
enquanto o observava. Fixar o olhar nas pessoas não é algo que faz as moças
educadas, teria dito a irmã Maria.
Esperando que os nossos caminhos se cruzassem, olhava-o com o rabo do
olho, para abordá-lo com um aceno de cabeça, ou somente com uma saudação,
mas para a minha surpresa, ele parou na minha frente, bloqueando-me a
passagem, e me observava, sem dizer uma palavra. A situação era, no mínimo,
muito estranha. Senti o calor subindo pelo meu rosto.
— Salve Anna, eu sou o Adam, um colega de trabalho e um amigo de infância
do Thomas.
Estendeu a sua mão.
— É um prazer finalmente conhecê-la e ver que você se recuperou bem.
Como você está? Diga-me, por favor.
De perto, notei que seus encantadores olhos castanho-claros brilhavam, ele
sorria docemente para mim, apertando a mão que eu automaticamente estendi,
segurando-a entre as suas. Minha mão parecia tão pequena que quase
desaparecia no meio delas. A sua expressão transmitia calor e afeto.
— Oh, desculpa... eu... não...
As palavras se travaram na minha língua, de tão nervosa que estava. Eu não
esperava ser parada por ele e ainda menos que ele soubesse meu nome, naquele
momento eu só esperava que ele não notasse os meus olhos vermelhos de choro.
Eu me recompus e tentei novamente.
— Prazer, oficial Adam. Estou muito feliz por ter me recuperado bem e ainda
mais feliz por ter ficado neste mundo, como se tivesse uma segunda chance.
Acrescentei, sorrindo timidamente.
— Sim, eu concordo com você. Você está certa, ao afirmar que recebeu uma
segunda chance. Fui eu que dirigi o carro que te levou ao hospital e fico feliz que
você tenha se recuperado rapidamente, estou muito contente em vê-la saudável e
bem-disposta.
Ele se encostou confortavelmente na cerca que circundava o pasto e, da sua
maneira relaxada, percebi que ele tinha vindo aqui apenas para conversar
comigo.
Corei por aquilo que me parecia ser um pequeno elogio e decidi responder
educadamente, como aprendi com as irmãs.
— Obrigada, senhor, eu me sinto muito melhor nos últimos dias. Nunca
encontrarei as palavras certas para agradecê-lo. A sua ajuda oportuna, salvou-me
a vida.
Olhei diretamente nos seus olhos, queria que o valor das palavras que
transpareciam no meu coração, fosse notado por ele. Ele pareceu desconfortável,
olhou para o chão antes de olhar para mim.
— Por favor, para você, eu sou apenas Adam, nem oficial, nem mesmo
senhor.
Ele acrescentou sorrindo:
— Pelo seu resgate, você deve agradecer a Thomas, felizmente ele estava no
lugar certo no momento certo, mas tenho certeza de que você já fez isso. Eu só
cheguei depois que ele me ligou, qualquer um teria agido daquela forma. Mas
você também pode agradecer a essa linda pequena aqui ao meu lado, não é?
Ele acariciou a cabeça de uma Betsy toda alegre que, educadamente, estava
sentada com a sua bolinha.
Uma vez que as costelas ainda me incomodavam se eu ficasse muito tempo
em pé e, não havendo lugar onde eu pudesse sentar nas imediações, decidi
sentar-me na mesma cerca onde ele estava apoiado.
Quando viu que eu coloquei o buquê de flores na prancha de madeira mais
alta e, lentamente, comecei a subir na cerca, ele se ofereceu para me ajudar.
— Agradeço, Adam, mas prefiro subir sozinha, devo prosseguir devagar
devido às costelas. Não tenho mais intenções de sentir nenhum tipo de dor.
— Sim, eu entendo você pela dor, mas...
Ele colocou as mãos dramaticamente no coração.
— Você apenas descartou a incrível oportunidade que eu tinha de ajudar uma
bela jovem em caso de necessidade.
Ele terminou a frase com uma voz brincalhona.
Senti de novo o vermelhão subindo no meu rosto; obviamente ele estava
acostumado a tratar as mulheres amigavelmente. O problema era eu, que não era
acostumada a receber atenções de um homem bonito como ele. Como ele pode
ser amigo do Thomas há anos? Eles são tão diferentes. Como o dia e a noite.
Quando ele percebeu que me senti envergonhada, ele me deu tempo para me
acalmar e, rindo, pegou a bola que Betsy lhe oferecia e a jogou no meio do
campo. Ela a perseguiu feliz, trotando pelo gramado.
Sentei-me ao lado dele e começamos a conversar. Falar com ele era fácil, era
um ouvinte atento e interessado e me fazia perguntas certas, sem ser inadequado.
A noite se aproximava e eu não queria mantê-lo por muito mais tempo, assim eu
lhe expliquei o resumo da minha viagem. Certamente ele já havia escutado
algumas informações do Thomas.
— Uau...
Ele disse quando eu terminei a história.
— Certamente você saberá que nós deixamos de propósito, na delegacia de
polícia, um arquivo no qual todas as informações sobre o seu caso estão
reunidas, estou certo de que, quando formos lá, você acrescentará novas
informações. Thomas já te contou tudo, certo?
Vendo meu rosto surpreso, ele acrescentou:
— Ok, esqueça o que eu disse, por enquanto. Eu sei que meu amigo não é um
cara muito falante...
Essa frase, se não tivesse sido brutalmente verdadeira, me faria rir.
— Falante? Eu posso contar com os dedos da minha mão as frases que ele
trocou comigo desde que cheguei à fazenda.
A desolação na minha voz não passou despercebida. Certamente, não queria
queixar-me sobre o comportamento excêntrico do seu amigo, mais do que
qualquer outra coisa, a frase saiu em um ímpeto.
Adam suspirou antes de falar, o olhar perdido nos campos.
— Sinto muito, Thomas nem sempre foi assim, como posso dizer... taciturno.
Se te puder confortar, ele também atua desta forma comigo, na verdade
praticamente com todos. Ele usa sempre poucas palavras e seus sentimentos são
intricados.
Ele encolheu os ombros como se quisesse dizer que era assim e não existia
nada que pudesse ser feito.
— Sim, eu realmente percebi isso. Eu certamente não esperava nenhum
tratamento especial, apenas... não sei. Eu não quero falar sobre ele, isso é... tudo
isso.
Meus olhos começaram a se umedecer novamente, mas certamente eu não
choraria na frente de um estranho. Antes de criar uma má impressão, adicionei:
— Com licença, mas tenho que entrar.
Desci lentamente da cerca, peguei as flores e comecei a andar em direção ao
galpão.
— Boa noite Adam, obrigada pela conversa, pelas suas palavras...
Eu queria acrescentar 'de consolo', mas desisti.
— Anna espera!
Ele se aproximou.
— E se eu te levar para passear um dia destes, deixe-me pensar, por exemplo,
amanhã?
Sua proposta era uma tentação. Qual mulher não gostaria de andar com um
cavalheiro como ele? Infelizmente, minha situação era diferente.
— Desculpe, Adam, não posso. Eu tenho que trabalhar na fazenda e vou ter
que ir à delegacia de polícia. Infelizmente, não estou aqui para me divertir,
embora eu gostaria muito, pode acreditar.
Ele fez uma careta, como se estivesse sofrendo e acrescentou.
— Não! Você educadamente me cortou, de novo, em menos de meia hora!
A expressão do seu rosto mudou, e parecia aquela de um cachorrinho perdido.
Ele não perdeu tempo e acrescentou:
— Vamos fazer assim, deixe-me mostrar-lhe as coisas bonitas da cidade. Nós
sempre podemos sair um pouco depois do horário de trabalho, eu também tenho
que trabalhar.
Seu sorriso aumentou quando ele percebeu que a minha convicção diminuía.
Ele continuou, antes que eu pudesse responder:
— No verão, o pôr-do-sol é mais tarde, como você pode ver. Vamos Anna!
Você recebeu uma segunda chance, você mesma disse, não podemos desperdiçá-
la.
Nenhuma mulher poderia dizer não a um homem com aquele olhar. Seus
olhos me imploravam e as suas mãos estavam cruzadas na frente de seu coração.
O que eu tinha a perder? Ficar aqui junto com o carrancudo oficial Thomas ou
aproveitar para viver pelo menos algumas horas no meu tempo livre?
— Então penso que posso ir.
Respondi timidamente.
— Primeiro eu tenho que conversar com Katrin para pedir a permissão dela.
Se você estiver disposto a fazer isso por mim, com prazer irei junto com você.
Acrescentei com um sorriso trêmulo.
— Sim!
A euforia na sua resposta me surpreendeu.
— Sério, estou mais do que disposto a te manter entretida. Na verdade, eu sou
a pessoa certa para essa tarefa, eu só quero ver o rosto dos meus amigos quando
eles virem a minha bela nova amiga.
Imediatamente a vermelhidão voltou ao meu rosto. Eu tinha que admitir que
ele era muito bom com as palavras.
— Boa noite, Adam. Vejo você amanhã, na estação, certo?
— Sim, nos encontraremos amanhã, bela amiga.
Antes que eu percebesse, ele deu dois passos, me pegou gentilmente pelos
ombros e beijou o meu rosto duas vezes.
— Um beijo por mim e um beijo pelo meu amigo que não sabe o que está
perdendo.
Ele continuou em um sussurro:
— E, por favor, não chore Anna, você já sofreu o suficiente e, no futuro, você
deveria chorar apenas de alegria. Além disso, você é muito bonita para chorar.
Antes que eu pudesse lhe responder qualquer coisa, pelo menos um
agradecimento, ele já partia assobiando, com Betsy atrás dele.
Quando cheguei ao quarto, pensei em primeiro lugar o que poderia existir na
água ou no ar deste país para fazer crescer homens assim tão bonitos. Mais tarde,
eu me perguntei por que meu coração não poderia bater assim forte por um rapaz
bonito e despreocupado como Adam? Porque eu tinha que ser inevitavelmente
atraída por um tipo carrancudo e complicado como Thomas. Às vezes, nem eu
mesma me entendo, sou uma mulher sem esperança.
17. Consciência

Thomas
Eu me recusava a verificar, através da janela, a que ponto estava a conversa
daqueles dois, continuava a descontar a minha raiva no saco de boxe que se
curvava sob os meus ferozes golpes.
Não ouvi nenhum barulho de carro, e por isso tinha certeza de que meu amigo
ainda não tinha ido embora e, portanto, eles continuavam lá fora batendo papo.
Quantas belas histórias você tem para contar, Adam?
Os dois se assemelhavam: bonitos, desinibidos, amigáveis. O que está
passando na minha cabeça? Anna estava aqui só de passagem, apenas uma
testemunha em um caso complicado. Nesse momento, nós precisávamos dela,
mas logo, ela seria dispensada e enviada de volta ao seu país. Seu testemunho
oficial seria coletado durante a semana, o que significava, teoricamente, que não
haveria motivo para que ela permanecesse sob os meus cuidados. Como ela já
havia reconhecido um dos gângsters, cabia a nós começar a mover as
engrenagens para a prisão de todo o bando. Se as outras meninas fossem
encontradas, mortas ou vivas, elas deveriam ser enviadas de volta aos seus
respectivos países. Ninguém sabia quanto tempo demoraria para completar a
investigação. Essa era a triste verdade.
Não percebi a presença de Adam até ouvir alguém abaixar a música.
— Que diabos você está fazendo?
Eu perguntei com impaciência quando o vi.
— Você não vê que eu estou treinando?
Com o rosto surpreso, pelo meu tom de voz, levantou as mãos como se fosse
se render.
— Uau, acalme-se. Acabei de chegar para te dizer olá e ver se poderíamos nos
ver amanhã de manhã, para treinarmos. Só isso!
A sua expressão não diminuiu minha raiva, pelo contrário, os chutes
chegavam ainda mais poderosos ao saco. Eu o ignorei e continuei enquanto
bufava, lutava para manter o ritmo e a respiração; estava perdendo a minha
concentração. A raiva havia aumentado somente em ouvir sua voz. Respondi
curto:
— Não, já estou treinando e... tchau, pode ir embora.
Eu vi a expressão consternada dele atrás do saco.
— O que está acontecendo, Thomas?
Mais do que chocado, o seu rosto estava surpreso. Eu usava sempre poucas
palavras, mas nunca era grosseiro com as pessoas. Antes que eu pudesse refletir
a respeito das palavras para dar-lhe uma resposta, elas escaparam da minha boca.
— Você gostou de passar todo esse tempo com a sua nova amiga? Você tirou a
sua dúvida bem de perto?
O sarcasmo fluía nas minhas palavras. Parei de chutar o saco e olhei
diretamente nos seus olhos. Minha respiração, furiosa explodia em meu peito.
Aproximei-me lentamente, quase de uma forma ameaçadora, removendo
devagar as faixas de proteção da minha mão. Ele deu alguns passos para trás, vi
o seu rosto se iluminar como se tivesse tido uma das suas ideias brilhantes.
— Amigo, ela te pegou de jeito. Agora eu entendo...
— De que diabos você está falando, o que você tem que entender? Desculpe,
quem me pegou de jeito? Quanto você bebeu esta noite, Adam?
Nas palavras que me haviam escapado antes, ele pressentiu o meu ciúme, eu
não conseguia esconder nada dele. Decidi mudar de tática, fui em direção ao
banheiro para lavar o rosto e ganhar tempo, fechei a porta atrás de mim com
mais força do que o necessário. Escutei a sua risada.
— Não, Thomas, estou mais sóbrio do que nunca, você sabe que não posso
beber, vim de carro. De qualquer forma eu já obtive a minha resposta. Aproveito
a oportunidade para avisar-lhe que amanhã, depois do trabalho, vou levar Anna
para passear na cidade e, talvez, iremos até a praia, no rio. Não se preocupe, eu
vou cuidar dela e trazê-la de volta para o jantar.
Ele fez uma pausa como se estivesse pensando em algo e depois continuou:
— Cacete, parece que eu tenho dezesseis anos, e estou pedindo o seu
consentimento, como se você fosse o pai da garota.
A risada idiota que ele fez, por conta da sua estúpida piada, fez voltar a minha
fúria. Abri a porta como um furacão e parei na frente dele.
— Anna não vai a lugar algum com você, acredite em mim porque eu estou
falando sério!
Minha raiva estava justificada naquele momento. Ela era uma testemunha, não
uma figurinha da sua coleção. Sua resposta veio como um relâmpago.
— Se a coisa te incomoda, venha conosco. Caso contrário, amigo, saia de
perto, porque farei com que aquela garota se divirta como nunca fez na sua vida,
e isso será muito fácil, visto a vida que ela viveu até agora.
As suas palavras me atingiram fortemente e me deixaram sem resposta. O que
ele sabia sobre a vida da Anna? Eu era assim tão egoísta? Se o meu mundo era
assim tão pequeno e miserável, deveria ser também o dos outros? Que diabos
estou fazendo?
— Um aviso de amigos, Thomas.
O seu sorriso desapareceu e sua voz, de repente, tornou-se muito séria, para
que não prestasse atenção.
— Não a faça chorar novamente, não depois de tudo o que ela passou. Você
sempre foi meu amigo, eu amo você como um irmão, mas você não tem o direito
de fazer isso.
Ele se virou e se afastou despedindo-se com má vontade. Pensei em tudo
aquilo que, inconscientemente, tinha dito e feito para fazê-la chorar. Adam nunca
se comportava assim comigo, esse, geralmente era o meu papel.
Sentindo-me mais do que nunca um covarde, peguei as minhas coisas e desci
para tomar banho, antes de dormir.
As palavras de Adam me perseguiram durante a maior parte da noite, antes
que o sono conseguisse convencer a minha consciência.
18. A reunião

Anna
Antes de ir dormir, verifiquei meus e-mails, talvez houvesse alguma resposta
da organização sem fins lucrativos à qual havia escrito.
Quando consegui entrar no meu e-mail, pelo celular, fiquei impressionada
com a quantidade de mensagens do Joaquim. Ele parecia realmente preocupado
com a pouca informação que lhe havia enviado. O seu último e-mail foi o que
mais atraiu minha atenção, deixando o meu coração doloroso.

De: Joaquimsantos232@gmail.com.br
Para: Anna »Giuliani@gmail.com.br

Notícias
Anna responde às minhas mensagens, estamos realmente preocupados com você. A primeira e única notícia
que você me enviou me preocupa. Quando você falou sobre um pequeno acidente, o que você quis dizer?
Está tudo bem na comunidade? Você já encontrou as irmãs que partiram antes de você? Faz muito tempo
que você saiu e você só me escreveu uma vez. Irmã Benedetta está sofrendo com a falta de notícias.
Se você não responder este e-mail dentro de uma semana, eu vou pegar um voo para te trazer de volta
pessoalmente. Diga-me o que acontece, por favor?
Eu sinto sua falta! Seu perfume está sempre comigo.

Joaquim.

Esse e-mail foi há três dias. Oh, Deus! Eu deixei a Irmã Benedetta
preocupada. Mas o que ele disse para ela? Ele só tinha que dizer que eu havia
chegado bem e que eu enviaria notícias em breve, não deveria fazê-la se
preocupar. Era suficiente que eu não tivesse notícias sobre as outras duas irmãs.
No e-mail de resposta, além de repreendê-lo, pelo quanto ele poderia ter dito a
Irmã Benedetta e tranquilizá-lo sobre meu estado de saúde, eu o informei sobre o
que aconteceu comigo. Eu não tinha o direito de esconder a verdade dele e eu
não queria que ele viajasse até aqui porque achava que eu estava sozinha e sem
proteção. Aproveitei para lhe enviar meu número de telefone, mesmo que não
fosse ainda prática em usá-lo.
Eu dei um pequeno resumo do que havia acontecido. Fazendo isso, retirei um
grande fardo do meu coração; era libertador falar com alguém em quem eu
confiava cegamente. Eu disse a ele onde e com quem eu estava, deixei de lhe
contar apenas sobre os meus planos, porque eu sabia que ele não concordaria. Eu
só o implorei que não relatasse nada à Irmã Benedetta, pelo menos por enquanto.
Eu estava esperando para poder contar-lhe tudo, quando tivesse boas notícias.
Quando enviei o e-mail, já era tarde e fui tomar banho, antes de ir para a
cama. Eu estava vestindo a minha camiseta regata quando o telefone tocou.
Olhei com curiosidade para os dois ícones que se iluminaram, lembrei-me das
explicações de Thomas. Pressionando o pequeno botão verde com o símbolo do
telefone, ouvi a voz calorosa de Joaquim que provinha do outro lado do mundo.
— Anna, é você?
Minha alma se aconchegou nas emoções, minha voz saiu rouca e trêmula.
— Joaquim... sou eu, Anna. Que bom ouvir sua voz.
Que milagre poder ouvir assim tão perto a voz de alguém que está tão longe.
O meu coração dava saltos de alegria.
— Eu terminei de ler seu e-mail, felizmente eu ainda estou no trabalho. Agora
são cinco horas menos do que onde você está, e mesmo que seja domingo, você
sabe que estamos trabalhando.
Sua risada aqueceu a minha alma.
— Você nos fez preocupar tanto. Finalmente entendi por que você não
escreveu antes. Você deveria ter me chamado imediatamente após o incidente!
Percebi que começou a zangar, tentei acalmar-lo:
— Estou bem, tenho a situação sob controle e tenho certeza de que aqui eles
vão me ajudar a encontrar as irmãs, você não precisa se preocupar.
Ele ignorou minhas palavras e continuou. Que homem teimoso!
— Você está na casa de um oficial. Como você sabe que essa pessoa não é
perigosa? Você é muito ingênua, Anna. Eu disse para você ter cuidado, você nem
se parece brasileira, imediatamente se enfiou na casa de alguém que você nunca
viu antes!
Eu já havia ouvido essa sua conversa sobre segurança e sobre a minha
ingenuidade, estava começando a me irritar, mas primeiro eu queria que ele
entendesse que eu tinha aprendido a confiar nos meus instintos.
— Estou a salvo, Joaquim, escrevi isso já no meu primeiro e-mail! E ouça-me,
eu ainda estou aqui e nada me aconteceu.
— Como você pode dizer que nada te aconteceu! Veja o que você passou! Não
me interessa o que você diz, eu quero ver com meus próprios olhos. Assim que
eu conseguir permissão, eu irei te buscar. Chega com esses jogos de espiões,
Anna. Deixe-me lidar com isso, você é muito importante para mim.
Com o tom doce da sua última frase, a minha raiva evaporou. Ele estava
preocupado comigo? Eu, a garota simples da comunidade?
— Você quer vir até aqui? Não sei não, Joaquim. Por que não conversamos
primeiro com Thomas, o oficial que é o proprietário da fazenda onde estou
morando? Podemos perguntar o que ele pensa. Ele me disse que já estão
investigando, junto com a polícia italiana.
— O quê, a polícia italiana? E se eles forem corruptos, e se fossem eles que
estivessem enviando essas pessoas atrás de você? Não, não fale com ninguém
sobre essa nossa conversa, entendeu? Ninguém! Eu não confio neles e estou
muito longe de você para analisar a situação a sangue frio.
Não houve nada que eu pudesse dizer para fazê-lo mudar de ideia, nem
mesmo para tranquilizá-lo. Segundo ele, eu tinha que ficar esperando por ele
sem dizer nada a ninguém e sem me envolver. De acordo com seus cálculos, ele
deixaria o Brasil dentro de um máximo de dez dias. Então, esse era o tempo que
dispunha para implementar o meu plano. Pobrezinho dele, se acha que vou ficar
aqui girando os meus polegares!
— Desculpe, Joaquim, mas tenho que ir. Você está sempre em meus
pensamentos.
— Você também está nos meus pensamentos, sempre. Por favor, deixe-me
cuidar disso, e não desapareça. Vamos nos manter em contato!
— Ok, vamos fazer isso, tchau.
Com lágrimas nos olhos pelas saudades que sentia de todos, terminei a ligação
e acabei de me preparar para ir para a cama.
Ninguém conseguiria me convencer de que Thomas ou Adam eram corruptos,
era impossível! Em qualquer caso, Joaquim estava certo quando disse para não
contar nada sobre o nosso telefonema. Eu ainda me lembrava da reação irritada
do Thomas, quando lhe falei sobre minha pesquisa. Ao contrário do que pensava
a polícia suíça, para mim, a melhor coisa era agir rapidamente, sem pedir ajuda
aos países vizinhos. Meu plano era bom e perfeitamente viável. Como Thomas
havia dito claramente que ele não iria me ajudar, eu deveria encontrar alguém
para fazê-lo, talvez eu falasse com Adam. Eu poderia até fazê-lo sozinha, só que
isso levaria muito tempo e eu só tinha pouco mais de uma semana à disposição.

***

Na manhã seguinte, quando entrei ao lado do Thomas na delegacia, a tensão


se espalhou no ar. Todos os presentes pararam o que estavam fazendo para me
olhar, e, naquele momento, eu queria somente desaparecer. Avizinhei-me de
Thomas, que felizmente percebeu a minha inquietação e ficou ao meu lado,
como que para me proteger. Era incrível, apenas a sua presença era suficiente
para me tranquilizar.
Na sala que eles prepararam para o nosso encontro, vi a mesa de reunião na
qual foram colocadas algumas pastas cheias de documentos e, no centro,
garrafas de água. Uma tela branca para projeções e um mapa da Europa tinham
sido montados na parede ao lado da janela. No mapa, as fronteiras suíças foram
delineadas em azul e de lá várias linhas vermelhas partiam, conectadas a outros
países.
Olhei o mapa com curiosidade, estava tentando entender aquelas linhas
vermelhas, nem percebi que a sala tinha se enchido. Mas quão silencioso são
esses policiais? Adam acabava de fechar a porta e estava sorrindo para mim,
enquanto ocupava o lugar designado para ele por um distinto senhor vestido com
um belo uniforme azul, da polícia suíça. Ao redor da mesa, todas as cadeiras,
exceto aquela ao lado de Thomas, estavam ocupadas.
Ao seu lado, um homem de mais ou menos trinta anos abria o seu laptop. Ele
estava vestido com uma imaculada camisa branca, com os punhos dobrados até
os cotovelos. Vislumbrei os seus braços musculosos e bronzeados, no seu pulso
um lindo relógio e uma pulseira de couro faziam o acabamento perfeito. Olhei
bem para ele e me pareceu fora de lugar vestido assim tão bem. Quando me
sentei no último lugar livre, ao lado de Thomas, a reunião começou.
— Bom dia a todos.
Disse o distinto senhor.
— Especialmente a você, Anna Giuliani. Seja bem-vinda a nossa delegacia de
polícia. Eu sou o capitão Hass ou, como me chamam por aqui há mais de 20
anos, 'o capitão'.
Ele tinha o ar cordial de alguém acostumado a lidar com pessoas há anos.
— A única pessoa nesta sala que eu imagino você não conheça, além de mim,
é o colaborador da polícia europeia, o acrônimo Europol, advogado Milanese, a
quem eu pedi uma opinião externa sobre o seu caso.
O homem da camisa branca ergueu do computador, seus belos olhos azuis,
emoldurados por um lindo par de óculos, e, levantando-se da cadeira, inclinou a
sua mão na minha direção. Ele não sorria, emanava seriedade e competência.
Seu aperto de mão era caloroso e seguro, enquanto os seus olhos me
exploravam, com atenção.
— Bom dia, senhorita Giuliani. Eu sou o oficial italiano, advogado Massimo
Milanese, nomeado para o seu caso. Minhas habilidades foram solicitadas pelo
próprio capitão, pois parece que o seu caso pode nos trazer novas informações
sobre o tráfico de seres humanos, minha área de especialização.
Depois da minha saudação silenciosa, ele continuou sentando-se.
— Nesta investigação, fui enviado pela Europol como uma ajuda adicional.
Como você foi capturada e sequestrada em território italiano, assumimos esse
compromisso. Minha função aqui é facilitar o intercâmbio de informações entre
os dois países, mas, também, coletar e repassar essas informações ao meu
superior imediato. Eu poderia continuar por horas explicando em que consiste o
trabalho da Europol, mas, por enquanto, vamos nos concentrar no seu caso.
Qualquer dúvida, você me interrompe, por favor. Em primeiro lugar, eu gostaria
de saber se posso te chamar Anna?
Ele viu minha boca aberta, enquanto assimilava as suas belas palavras. À
medida em que eu acenava um tímido 'sim' com a cabeça, ele continuou sorrindo
satisfeito:
— Analisando as informações que o oficial Graff me forneceu sobre o seu
sequestro e combinando-as com aquelas que foram coletadas ao longo dos anos,
concluo, quase com certeza, que você foi atraída por uma rede de tráfico de seres
humanos, administrada por uma facção criminosa da Europa Oriental. Nós
rastreamos o nome do suspeito que você reconheceu, e isso nos levou a
encontrar um dos caminhões que te transportou.
Ele clicou no seu computador e ajustou a lente de um projetor ao seu lado,
fazendo aparecer na tela a fotografia do criminoso que eu tinha reconhecido na
casa do Thomas.
— Cavalheiros, eu apresento a vocês o senhor Zorvan Fosdovac. Para
começar, esclarecerei como esses criminosos, geralmente, costumam agir,
tomem nota.
Ele levantou-se e com um pontuador laser começou a explicar.
— O trabalho desses bandidos consiste em atrair e sequestrar não só mulheres,
mas também homens e crianças, que fogem das zonas de guerra em direção à
Itália.
O pontuador se aproximou da Turquia e do norte da África.
— Eles pegam sempre poucos prisioneiros e começam a viagem até o norte da
Europa, que geralmente é o destino final. As presas podem terminar da Rússia à
Noruega, dependendo do pedido do comprador.
O laser atravessou o norte da Europa de leste a oeste e seguiu a rota das linhas
vermelhas.
— O questionamento que, tenho certeza, vocês estão fazendo agora é: como é
que o senhor Fosdovac, que já é conhecido pelo nosso escritório na Itália e na
Europa, ainda não foi interceptado com o seu bando, visto que temos em nosso
poder todas essas informações?
Ele nem esperou pela resposta.
— A resposta é muito simples. A incrível criatividade em transportar aquilo
que vem chamado 'a mercadoria'. Adicionamos as constantes mudanças de rota e
a quantidade desproporcional de dinheiro que esse tipo de tráfico obtém, que
vem sendo parcialmente usado para fechar os olhos de alguns controles policiais
específicos, durante as verificações. E, finalmente, o último, mas não menor
motivo é a falta total de testemunhas oculares que possam nos ajudar.
Quando ele fez uma pausa para tomar água, Adam fez uma pergunta.
— Desculpe, mas você está nos dizendo que não existem testemunhas?
Ninguém vê algo incomum? Ninguém consegue escapar como no caso de Anna?
Se eu entendi corretamente, vocês estão conduzindo pesquisas como essa há
anos?
O esperto da Europol olhou para Adam impassível.
— O que eu estou dizendo é que aqueles que veem algo, ou são capazes de
escapar têm muito medo de testemunhar, e eu acrescento, se com muita sorte são
encontrados, ainda vivos, para fazê-lo. Esses traficantes têm ganchos em todos
os lados. Ameaças, dinheiro e drogas compram o silêncio da maioria das
pessoas. A morte, silencia o resto.
Ele começou a caminhar lentamente ao redor da sala enquanto continuava a
sua explicação.
— Nós, na Europol, tentamos parar essa abominação desde 1999. Ao longo
dos anos, conseguimos encontrar uma boa rede de informantes entre os
motoristas de caminhões de diferentes nacionalidades que viajam em toda a
Europa e, graças a eles, obtivemos uma boa quantidade de dados que nos
levaram, nos últimos anos, a algumas grandes detenções. O problema é que esses
grupos de criminosos nascem com a mesma velocidade se não, até maior, do que
conseguimos desmontá-los.
— Por exemplo, o senhor Fosdovac de profissão, é um motorista de
caminhão. Trabalha de forma autônoma no seu próprio caminhão ou dirigindo
outros caminhões para diferentes empresas. Chegamos a ele graças à dica de
outro caminhoneiro, nosso informante. Nós adicionamos seu nome e sua foto
com um alerta no arquivo da Europol, aguardando o momento certo para
capturá-lo. Ainda não o fizemos, porque o senhor Zorvan nos é muito útil no
momento. Se o parássemos, perderíamos a conexão, que só ele pode nos
fornecer, com os mandantes desta operação. São eles que nos interessam, os
grandes tubarões, não os pequenos peixinhos.
— Se não fosse pelo nosso informante, mesmo que o senhor Fosdovac fosse
procurado no seu país, a sua foto não apareceria no nosso arquivo pelo simples
fato de que o seu país de nascimento não faz parte da comunidade europeia.
— Em vez disso, o caminhão que levava a nossa testemunha foi denunciado à
polícia como roubado no norte da Itália, perto de Milão e foi encontrado vazio e
queimado em Luxemburgo. Conseguimos conectar o caminhão às meninas por
intermédio da filmagem da autoestrada Milão-Como, onde reconhecemos o
motorista, sempre ele, senhor Zorvan. O curioso era o tipo de caminhão que ele
dirigia. Alguém quer arriscar qual poderia ser?
Olhei para Thomas ao meu lado e vi que ele levantou a cabeça do tablet pela
primeira vez desde o início da reunião. Entre resmungos, ele havia escrito
praticamente tudo o que o outro havia dito.
O oficial Milanese, com uma expressão presunçosa, apoiou-se
silenciosamente na parede, esperando pelas respostas.
Para interromper o momento de silêncio, no qual eu mesma tentava adivinhar
qual era o tipo de caminhão, foi a voz do capitão que falava irritado.
— Força Massimo, não temos tempo para brincar de enigmas.
— Com certeza, capitão, o senhor está absolutamente certo. Dessa vez, para
transportar as presas, eles escolheram uma van da Cáritas. Essa entidade,
geralmente ligada à Igreja Católica, trabalha em defesa dos direitos humanos e
bem-estar social. Arrecadam roupas, alimentos, calçados, dentre outros objetos e
os transportam em furgões ou pequenos caminhões. Eles escolheram um desses
veículos, que recolhem os bens doados pela população. Simples e eficaz. Um
daqueles furgões que passam despercebidos e viajam carregando esses sacos por
toda a Europa. Sem falar sobre a engenhosidade de enviar um 'falso pastor' para
assegurar a presa. Quem duvidaria de uma pessoa vestida com um colar
eclesiástico? Na última vez em que encontramos algo tão engenhoso, eles
estavam transportando a mercadoria escondida em fundos falsos de caminhões
que levavam porcos para o abate.
Deus, eu realmente odeio quando ele usa a palavra mercadoria ou presa. É
tão desumano, eu não falaria assim nem sobre os animais.
Naquele momento eu descobria o motivo pelo qual fomos cobertas com
sacolas e caixas, naquela noite. Mas eu ainda tinha outra dúvida que estava na
minha mente há algum tempo.
— Com licença senhor, mas eu tenho uma pergunta.
Quando ele acenou com a cabeça, continuei encorajada pelo seu simpático
sorriso. Escutei, ao meu lado, um outro bufo de Thomas, desta vez com raiva.
— O que eu não consigo entender é por que eu? Por que as irmãs da minha
comunidade? Onde está a conexão entre nós e esse bando? Nós viemos do
Brasil, não de algum país europeu em guerra. É impossível que eles nos pegaram
por engano. O pastor tinha o meu nome escrito em um cartão, quando cheguei ao
aeroporto. Outro aspecto muito estranho da história, é que ele havia
desaparecido do outro furgão, aquele do qual eu consegui escapar. Não preciso
recordar-lhe que a organização que nos trouxe até aqui é composta de pessoas de
confiança.
Voltei-me para ver o Thomas que, naquele momento, abriu a boca como se
quisesse dizer alguma coisa, mas foi interrompido pelo oficial italiano.
— Sim, na verdade, senhorita Giulianni, vamos esclarecer alguns pontos.
Nessas viagens são usados diferentes motoristas, bem como meios de transporte.
No seu caso específico, temos algumas investigações que ainda estão em curso,
em relação às mulheres que foram trazidas de outros países, especialmente da
América do Sul e Central. Assim, também como a organização sem fins
lucrativos que 'gentilmente' lhe ofereceu a estadia. Mas, infelizmente, não sou
autorizado a compartilhar essas informações com pessoas que não são membros
da Europol.
Eu me virei para ver a reação dos outros homens, escutei os murmúrios
irritados. Por que ele enfatizou a palavra 'gentilmente' quando ele mencionou a
organização? O agente italiano não se deixou intimidar e concluiu, não dando
espaço para nenhuma discussão.
— Essa parte da investigação é confidencial. Essa discussão está fora da
minha área de competência, não estou autorizado a informá-los, nesse momento.
Por enquanto, isso é tudo.
Ele fechou o seu computador, como se a reunião estivesse acabada e começou
a coletar alguns documentos espalhados na mesa. Acima de cada pasta, notei o
nome dos oficiais.
— Senhores, despeço-me de vocês, porque vou visitar o lugar da descoberta
da jovem mais uma vez. Senhorita Giulianni, queria ter um momento do seu
tempo, por favor. Vamos tomar um café no bar aqui perto.
Como aquela não era uma pergunta e sim uma ordem expressa de forma
educada, levantei-me e olhei para o capitão, para pedir sua permissão. Tinha que
confessar que o oficial italiano me deixava um pouco hesitante. Ganhei tempo,
fazendo outra pergunta.
— Devo ir com o senhor até o lugar em que Thomas me encontrou? Por favor,
ele pode vir conosco?
Eu não retornaria naquele lugar sem Thomas. Assim voltei-me em direção ao
capitão, se necessário, para pedir a sua ajuda.
Não precisei nem abrir a boca, Thomas levantou-se e colocou-se
protetoramente na minha frente, de uma forma na qual eu não podia nem ver o
oficial italiano. Adam, ainda sentado em seu lugar, olhava a cena calmamente. O
oficial da Europol continuou falando:
— Não precisamos que o oficial Graff nos acompanhe.
Ele fechou a sua bolsa e se dirigiu para a porta.
— Vamos tomar o nosso café e depois te trago de volta aqui ou onde você
desejar ir. Você não precisa vir comigo até o local da sua descoberta, não hoje.
Antes que eu, ou o capitão, pudéssemos responder, Thomas disse:
— Você vai trazê-la de volta aqui, para mim. No final do dia, eu vou levá-la
pessoalmente onde eu a encontrei.
A voz de Thomas, que tinha um tom baixo, com a raiva apenas contida,
colocou uma ênfase na palavra 'eu'. Era óbvio que não existia uma boa
camaradagem entre eles.
— Como queira. Capitão, cavalheiros... senhorita...
Ele abriu a porta para que o precedesse. Mas primeiro esperei o consentimento
do capitão e depois do seu 'sim' com a cabeça, pedi desculpas a Thomas, que
praticamente bloqueava a minha saída, e passei. Juntamente com o oficial
italiano, caminhei até o pequeno café perto da delegacia de polícia. Ainda na
porta da frente da delegacia, eu me virei para procurar pelo Thomas e o vi atrás
de mim, ele havia me acompanhado e eu nem tinha notado. Despedi-me,
timidamente enquanto ia embora.
Era outro lindo dia de início do verão e várias pessoas estavam aproveitando a
maravilhosa temporada. O oficial italiano que caminhava ao meu lado, atraía a
atenção com o seu ar de superioridade. Ele cumprimentava as pessoas com um
aceno de cabeça e se certificava de que eu caminhasse com ele. Como um
perfeito cavalheiro, fazia algumas perguntas sobre o meu país.
Ele abriu a porta do pequeno café para me deixar passar e me acompanhou até
uma mesa isolada. Perguntou-me o que eu queria e foi ordenar com a jovem no
balcão, que o estava devorando com os olhos. Percebi que ele não era
particularmente bonito, mas, certamente, tinha muito estilo. Ele parecia um
daqueles atores de novela que assistíamos de vez em quando, nos finais de
semana.
Ele retornou com uma pequena bandeja que apoiou na nossa frente e sentou-se
ao meu lado. Foi direto ao ponto.
— Eu queria levar-te para longe deles por alguns minutos. Eu tenho uma
proposta para te fazer, mas primeiro, eu tenho que verificar se compartilhamos a
mesma ideia. Devo confessar que tenho um olfato muito preciso para discernir
pessoas, e você, senhorita Anna, parece-me muito, como posso dizer, esperta...
Fiquei surpresa pelo que havia acabado de escutar. Eu nunca esperaria tal
frase. O delicioso cappuccino que começava a experimentar, quase me fez
engasgar. Me recompus e respondi:
— Aqui estou, senhor oficial. Eu também tenho algumas informações que eu
poderia compartilhar com o senhor, como posso dizer, depende...
— Ótimo! Começaremos por nos conhecer. Só porque estamos falando assim,
intimamente, pode me chamar Massimo, ok, Anna?
O seu sorriso calculado permaneceu no ar.
19. O temporal

Thomas
Mais uma vez, Adam me deteve antes que avançasse no oficial italiano. Para
iniciar, ele entrou em nossa investigação nos ordenando como fazer, aquele que
era o nosso trabalho, depois admitiu que tinha informações que não podia ou, na
minha opinião, não queria compartilhar conosco.
Por um pedido explícito de Massimo, eu não podia dizer a Anna a verdade
sobre a organização que a havia trazido até aqui e, pior ainda, eu tinha que levá-
la de volta ao local da sua descoberta ou ele o faria sozinho. Eu não conseguia
entender que sentido havia em levá-la de volta àquele lugar, não acrescentaria
nada à investigação, só a faria sofrer novamente. Eu já carregava um peso na
minha consciência por fazê-la chorar. Essa situação estava começando a me
incomodar, como se eu fosse uma marionete nas mãos do oficial italiano.
Enquanto ele a levou para o café, voltei ao capitão para fazermos uma
atualização. Nem ele mesmo estava feliz com a falta de cooperação do oficial
italiano. Quando nos reunimos ao redor da mesa, notei que ele parecia cansado.
Eu conhecia bem o capitão e sabia que ele não estava gostando nada dessa
situação.
— Vou chamar o vice-diretor, o superior direto de Massimo, para perguntar
por que essa informação 'confidencial' não pode ser compartilhada. Devo avisá-
los de que não nutro muitas esperanças, é incrível como a falta de diálogo entre a
polícia dos vários países europeus pode dificultar muitas investigações,
colocando vidas inocentes em um risco desnecessário.

***

Verificava os meus e-mails quando o telefone tocou. Eu reconheci o seu


número e meu coração acelerou.
— Anna? Tudo bem? Algo aconteceu?
— Oi Thomas, está tudo bem. Eu só queria avisar que assim você não se
preocupa: Massimo vai me levar diretamente à fazenda.
Desde quando tem essa intimidade com ele para chamá-lo pelo primeiro
nome?
— Não, eu vou pegar você. Aguarde no bar, chegarei em poucos minutos.
Controlei o meu tom de voz; não queria que parecesse que lhe estava dando
ordens.
— Não tem necessidade, obrigada. Eu tenho que voltar para ajudar o senhor
Schmidt com os cavalos.
Ela era tão orgulhosa do seu trabalho. Respirei fundo para me acalmar e
respondi.
— Tudo bem, então cuide-se, vejo você no final do dia. Passe-me o oficial
Milanese.
Eu enfatizei o título e o sobrenome dele para lembrá-la de como ela deveria
chamá-lo.
A voz de barítono do oficial apareceu depois de um sussurro e, ao fundo, ouvi
a risada feliz de Anna. Eu não gosto nada disso, não gosto dele!
— Leve-a diretamente para a minha casa!
— Desculpe, oficial Graff, não ouvi um 'por favor'? Não se preocupe, eu vou
cuidar dela.
— Escut - A linha já havia caído. Eu quase afundei o telefone na mesa
pensando que era a cara dele. Filho da puta!

***

Quando esse dia terrível finalmente chegou ao fim, apressadamente coloquei


minhas coisas na mochila e fui procurar Adam. Eu queria saber os detalhes do
seu passeio com Anna.
Encontrei a sua mesa vazia, vi que a sua carteira e o telefone não estavam lá,
assim decidi chamá-lo. Estava perdendo a paciência e a força de ouvir o telefone
tocar, quando ele finalmente respondeu.
— Desculpe, Thom estava ocupado jogando vôlei. Eu não ouvi o telefone,
aqui é sempre a bagunça usual.
No fundo eu ouvia o barulho de música, a conversa de garotas e alguns gritos
esporádicos acompanhados pela risada dos rapazes.
— Onde está a Anna?
Eu não estava interessado no que meu amigo estava fazendo, eu queria saber
sobre ela.
— Ela está aqui comigo, apresentei-a para as outras garotas, também estão
aqui a tua irmã e Mia. Ainda está quente o suficiente, está bom demais, mesmo
que o tempo esteja começando a mudar.
Ele se referia às tempestades que atingiam nosso país em certos verões.
— Eu estou chegando, nos vemos em breve.
Já estava prestes a terminar a ligação quando Adam me disse com pressa.
— Espere, Thom, venha preparado.
Quando ele ria assim tão despreocupado, não queria dizer nada de bom.
— Para fazer o quê? Por que devo me preparar?
— Você tem que se preparar meu amigo é para ver Anna de maiô. Estamos
sem palavras!
Aquela estúpida frase fez o meu sangue ferver. Ele continuou:
— Não somente eu, mas todos os caras que felizmente estão hoje por aqui. Eu
juro que o idiota do Olie tentou até tirar algumas fotos, escondido é claro, o
imbecil! É melhor você vir rapidamente. Talvez você esteja interessado em saber
o que ele disse sobre ela?
Escutei-o rindo, enquanto terminava a ligação.
Minha paciência terminou! Eu não estava interessado se Anna estava se
divertindo, mas nunca a deixaria entreter os idiotas dos meus amigos. Às vezes,
eles ainda pareciam adolescentes.
Cumprimentei apressadamente os poucos colegas que ainda estavam
trabalhando nesse dia quente, troquei o meu uniforme pelos calções confortáveis,
peguei o carro e fui para a praia.
O município da nossa cidade, junto com o da cidade vizinha, eram
responsáveis por manter aquele trecho do rio. Uma grande área coberta por um
impecável jardim se expandia paralelamente ao rio Reno. O clube possuía uma
área equipada para churrascos, um campo de esportes de areia para jogar vôlei,
banheiros com chuveiros, um pequeno bar e uma área reservada para crianças
onde, em uma parte do rio, uma barragem de pouca extensão havia sido
construída.
Estacionei o carro perto da entrada. Felizmente, a maioria das pessoas vinha a
pé ou com veículos de duas rodas. Ouvi vozes, risos e música ao fundo.
Fui direto onde eu sabia que iria encontrá-los. Nosso grupo ficava sempre
entre o campo de voleibol e o rio, onde as árvores faziam uma sombra agradável.
Acalme-te Thomas, respire... não fique tão bravo.
Para me acalmar, procurei por Mia. Certamente ela brincava na água, sorri
lembrando do seu lugar favorito na praia. Eu via Adam e os outros jogando vôlei
e atrás deles algumas garotas, deitadas nas toalhas, observando-os e
conversando. Todos aproveitavam o calor após um dia de trabalho.
Adam me cumprimentou, continuando a jogar. Olie veio correndo na minha
direção, terminando com a pequena tranquilidade que eu tinha me esforçado
tanto para conseguir manter até chegar lá.
— Thomas, meu amigo, eu só queria te contar uma coisa.
Ele tinha um sorriso sacana e um boné virado para trás na cabeça, como se ele
tivesse quinze anos. Que idiota!
— Obrigado, amigo, pelo presente.
Fez no ar as aspas na palavra presente.
— Que você nos enviou com o Adam. Meu irmão, você é o melhor!
Ele estava prestes a me dar um tapinha nas costas quando eu o evitei e
respondi.
— Desculpe Olie, mas quantos anos você tem?
Não tinha mais paciência com os seus comentários infantis. Sua resposta me
surpreendeu.
— Por que Thomas? Quantos anos você precisa ter para apreciar uma mulher
como aquela? Não há idade, meu amigo!
Coçou o queixo pensativo.
— Definitivamente não, ela é absolutamente um tesão! Um anjo, que para nos
tentar se fez esculpir o corpo pelo diabo.
Antes que eu pudesse responder, ele virou-se para a margem do rio e olhou
para um lugar. Eu a vi saindo da água, rindo e conversando, junto com outra
garota.
Seu cabelo, amarrado em um simples rabo de cavalo, não diminuía a sua
beleza, aliás, balançava no mesmo ritmo no qual caminhava o seu corpo
maravilhoso. O maiô inteiro a tornava ainda mais sexy. Talvez o mistério
estivesse no movimento dos seus quadris ou, quem sabe, na sua pureza que,
escondida, atraía a atenção de todos os homens, sem que ela tivesse consciência
disso. Nós ficamos ali parados, como sonhadores, tentando imaginar o paraíso
que se escondia debaixo daquele maiô. A partir desse pequeno pensamento,
abria-se um mundo de sonhos incríveis!
Ela ainda não tinha me visto e quando sua amiga disse algo engraçado, ela
jogou suavemente a cabeça para trás e riu despreocupada. A curva do pescoço,
até o ápice de seus seios, apertada pelo traje vermelho escuro, fez minha boca se
encher d’água.
Aquela garota não tinha ideia do que desencadeava em mim. Era uma tortura,
o meu corpo era inexoravelmente atraído por ela e, dentro de alguns segundos,
meu cérebro teria sofrido um curto-circuito. A sensação era quase dolorosa.
Absolutamente, tinha que levá-la de lá, rapidamente. Por sorte, tinha a
desculpa certa, o clima estava mudando e as primeiras nuvens escuras estavam
se movendo com rapidez, no céu, um presságio da tempestade que se
aproximava.
— Vem, Olie, é a tua vez!
Adam o chamou, vindo na nossa direção, desviando o meu olhar. Eu nem
percebi que Olie tinha me feito uma pergunta. Antes que eu pudesse pedir para
ele repetir, ele saiu correndo, depois de dar uma piscadinha e uma cotovelada nas
minhas costelas.
— Onde está Mia?
Aproveitei para perguntar ao Adam, quando ele chegou.
— Elas já foram, o clima estava mudando. Emma pediu para avisar que você
deve levar a Anna, ela ainda queria ficar com as outras garotas. Eu percebi que o
Olie te mostrou onde elas estão.
Ele se aproximou cautelosamente, e com uma voz baixa acrescentou:
— Não se preocupe, eu a mantive longe dos rapazes. Olie se acalmou depois
que eu disse a ele a verdade.
— Que seria?
Olhei direto para ele, queria uma resposta e a inflexão no tom da minha voz
não deixava nenhuma dúvida.
— Simplesmente que ela é sua, brother.
Esse era o código de comportamento entre nós homens. Você poderia brincar,
mas você não tocava na mulher de um amigo, assim como nas suas irmãs.
Somente que ela não é minha, não tenho esse direito. Eu queria lhe dizer isso,
mas algo completamente diferente saiu da minha boca.
— Obrigado, Adam!
Eu estava com pressa, assim, cumprimentei-o e também os meninos que
continuavam jogando e me dirigi para onde a Anna estava, deitada na toalha.
— Olá garotas. Anna, vamos.
Eu não estava com vontade de jogar conversa fora; conhecia quase todas
aquelas garotas de toda uma vida. A única coisa que queria era levá-la embora.
— Ohhh, olá Thomas. Eu não tinha te visto.
Seu rosto estava avermelhado, provavelmente por causa do sol.
Aguardei, mas como sempre a paciência não era o meu forte. Se ela
demorasse um pouco mais, eu a carregaria sobre os meus ombros, mas não o fiz.
Ouvi o 'olá Thomas', seguido do murmúrio e das risadinhas das outras, que nos
observavam com curiosidade. Suas cabeças olhavam da Anna para mim como se
estivessem assistindo a uma partida de tênis.
Em silêncio, ela reuniu as suas poucas coisas e levantou-se com graça,
envolvendo-se na pequena toalha e despediu-se das garotas. Ouvi outra onda de
murmúrios excitados e risadinhas, enquanto nos afastávamos. Notei que era a
primeira vez que ela me ouvia sem acrescentar alguma frase picante.
Ao passar na frente do campo, ouvi os rapazes nos cumprimentarem, rindo e
brincando como só um grupo de homens sabe fazer. Ela respondeu timidamente
aos cumprimentos.
Quando finalmente consegui colocá-la, em segurança, no carro, decidi que
poderíamos começar uma conversa civilizada. Enquanto colocava o carro em
movimento, perguntei-lhe.
— Você se divertiu? A praia é um lugar agradável, não é?
— Sim, eu estava me divertindo, é muito bonito aqui. Por que já estamos indo
embora? Mais uma vez doces palavras. Havia algo errado no seu
comportamento.
— A tempestade está chegando. É óbvio, não?
Se ela não conseguia entender por que eu nunca a deixaria lá no meio dos
meus terríveis amigos, eu certamente não explicaria isso a ela.
Ela começou a rir, como se o meu comportamento fosse uma piada.
— Mesmo que a tempestade tivesse chegado, ainda poderíamos ter ficado.
Como todos os outros ainda ficaram lá.
Com imenso alívio, porque realmente eu não queria discutir com ela, vi do
canto do meu olho que, encantada, olhava a paisagem. Escolhi de propósito essa
estrada, que era circundada por uma maravilhosa floresta de pinheiros e abetos,
mas era pouco usada pelos moradores porque era muito mais longa do que a
estrada principal. Normalmente, os trabalhadores do município costumavam usá-
la para transportar o corte da madeira que faziam na floresta.
O cheiro de resina trazido pelo vento, que começava a soprar decisivamente,
misturando-se com aquele da chuva, fez com que ela abrisse a janela do carro,
com o objetivo de olhar para o topo das árvores, enquanto inalava
profundamente. Algumas mechas de cabelo fugiram do seu rabo de cavalo e se
agitavam com o vento, criando uma imagem etérea. Seus olhos estavam
fechados e eu não pude resistir, diminuí a velocidade do carro para apreciar
aquele show. Ela era o meu espetáculo.
— Pare o carro, por favor.
Sua voz era tão doce, aveludada, assenti com a cabeça.
Ela saiu do carro, desamarrou o cabelo e admirou maravilhada ao seu redor. O
vento se agitou, fazendo com que a pequena toalha que estava em volta do corpo
se movesse, o que, junto com os cabelos, ritmavam uma dança. Saí do carro e
olhei para ela deslumbrado. Ela era a garota mais linda que eu já havia visto. Seu
charme vinha da sua pureza, da inocência da sua alma. Olie tinha razão, ela era
um paradoxo: um anjo com a fisionomia de um diabinho.
As primeiras gotas de chuva atingiram a minha cabeça, alertando-me que seria
melhor irmos embora. Repentinamente, durante a sua dança, senti-a perto de
mim com o rosto voltado para o céu, maravilhada com aquele espetáculo. Sua
voz chegou até mim, trazida pelo vento.
— Você tem ideia, Thomas, da sorte que você tem em poder viver aqui? Este
lugar é perfeito. Vou levar isso...
Com os braços abertos, começou a girar em torno de si mesma, devagar,
observando a chuva que começava a cair lentamente.
— Este lugar, esse perfume e especialmente... você...
— Para sempre no meu coração.
O seu olhar descendeu e parou exatamente no meu. A sua boca se abriu, como
que para continuar falando, mas ela não o fez. Um arrepio percorreu as minhas
costas; estava loucamente atraído por aquela garota. Naquele momento, eu não
queria mais pensar, apenas dar uma voz ao que meus instintos diziam que era
certo fazer. Caminhei para ela, eu tinha que me aproximar!
Minha boca tocou a sua quando o primeiro trovão rugiu no céu. Chuva e vento
se erguiam ao nosso redor, mas eu sentia somente ela. Os seus lábios suaves, o
seu corpo perfeito, a sua respiração rápida. Era como saborear o pecado sob a
forma de uma mulher. Seus braços cercaram meu pescoço e me aprisionaram. A
pequena toalha escorregou do seu corpo, minhas mãos afundaram nos seus
quadris. Senti a curva da parte inferior das costas dela embaixo das pontas dos
meus dedos, seus seios, deliciosamente apertados contra meu peito. Agarrei-a
ainda mais, recebendo como prêmio um pequeno gemido de prazer. Um barulho,
como um pequeno rugido, saiu da minha garganta. Naquele momento, se o
mundo acabasse naquela tempestade, teria ido embora gloriosamente.
Perdemos a noção de quanto tempo ficamos ali nos tocando. Senti seu corpo
começar a esfriar debaixo do meu, gentilmente retirei a minha boca da dela,
enquanto ela ainda mordiscava o meu pescoço, e disse.
— Venha, está esfriando, vamos embora, vamos.
Percebi que seu corpo se enrijeceu sob o meu, assim a olhei. Seus olhos
brilhavam e eram de um verde tão estupendo que não poderia ser comparado a
qualquer outro verde deste mundo.
— Não, por favor vamos ficar aqui, eu não quero ir embora. Quero ficar aqui
com você.
A chuva começava a enfraquecer, mas não podíamos ficar lá. A temperatura
havia abaixado, o vento soprava frio.
— Não podemos ficar aqui, por que você não quer ir? Pense em um bom
banho quente, algo para comer.
Eu queria parecer brincalhão, mas não consegui causar o efeito desejado.
Ela escondeu o rosto no meu peito, tentei levá-la com pouco sucesso até o
carro, ela me sussurrou.
— Se nós sairmos daqui você mudará e não vai mais me querer. Você vai
tornar a ser o oficial Graff, eu não o quero.
Ela tentou me parar novamente, firmou os seus pequenos chinelos no chão
dizendo:
— Por favor.
Abri a porta do carro e deixei-a entrar enquanto dava a volta pelo outro lado.
Peguei a toalha que caíra no chão, abri o porta-malas, coloquei-a dentro, peguei
a jaqueta e uma camiseta de reposição que eu sempre mantinha lá. Parei na
frente da porta, desvesti a minha camiseta molhada e coloquei uma seca. Graças
a Deus, eu tinha assentos de couro aquecidos.
Entrei, fechei a porta e olhei para ela para lhe dar a jaqueta, que ainda estava
nas minhas mãos, pronto para explicar que aquilo que tinha acontecido entre nós
não era uma boa ideia, mas não consegui abrir a boca. Mantendo-me encantado
nos olhos dela, partiu para o ataque. Não que não me desse um prazer imenso,
mas quando ela passou sobre o suporte entre os dois assentos empurrando-me
delicadamente para se sentar a cavalo sobre mim, comecei a me preocupar. De
fato, se ficássemos apenas mais alguns minutos naquela deliciosa posição, eu
não seria mais responsável pelos meus atos.
Minha preocupação subiu às estrelas quando sua boca ainda fria colou na
minha. Havia um sabor que me embriagava, estava alienado. Minhas mãos
andaram sozinhas nos seus quadris.
–Desculpa.
Ela me sussurrou depois de uma emocionante eternidade.
— Eu não tinha o direito de te dizer aquilo, somente que eu te desejo tanto. Eu
não sei o que acontece comigo quando estamos juntos, eu só sei que estou aqui
de passagem. Gostaria de experimentar tudo com você, Thomas. Só com você!
— Você sabe que não posso te dar isso Anna, por favor, não faça assim!
Não podia e não queria mantê-la comigo. Eu não era feito para
relacionamentos e ela precisava saber a verdade.
— Eu sei Thomas, eu só peço o que você pode me dar, sem compromissos.
Logo vou partir, deixarei a sua vida e retornarei ao meu país. Por que não
aproveitar? Somos adultos conscienciosos. Podemos fingir que estou aqui como
uma turista qualquer, nos conhecemos e decidimos passar um bom tempo juntos.
Quando ela me olhava daquele jeito, colocando tudo em outra perspectiva era
praticamente impossível negar-lhe, além disso, sentada em cima de mim, com a
sua respiração quente na minha pele, era uma verdadeira tentação.
— Posso pensar sobre isso?
A minha resposta fazia água em todos os lados da minha boca, ela percebeu
imediatamente.
— Posso te ajudar?
Com uma risadinha perversa, ela começou a me beijar e mordiscar meu
pescoço, enviando outra onda de prazer a todo meu corpo. Cacete se é quente
dentro deste carro. Já estou suando!
— Você gosta disso?
Sua voz voraz e os pequenos movimentos do seu quadril estavam me
deixando louco.
— Anna, por favor. Assim você me mata!
Mais uma risadinha, tentava desesperadamente manter as minhas mãos
imóveis. Ela era uma torturadora nata. A coisa mais excitante era a sua falta de
experiência. Na sua inocente tentativa de agradar-me, o resultado era
amplificado exponencialmente.
A noite chegou, nós estávamos ocupados naquele carro como dois
adolescentes. Eu não sentia assim tanto prazer há anos. O fato de não poder
realizar imediatamente com ela tudo que eu queria, tudo o que eu tinha em
mente, me excitava como nunca. Com todas as mulheres que eu tinha estado
depois de Leonie, deixava sempre claras as coisas, antes mesmo de começar. E
isso, percebi apenas agora, acabava com todo o sabor do momento.
Eu já havia tomado a minha decisão. Eu daria a ela todos os momentos e
lembranças que ela queria. Eu a deixaria descobrir tudo quanto ela queria sobre o
meu corpo, como um novo brinquedo para ser explorado, e eu examinaria cada
centímetro do seu corpo com o mesmo prazer. Mas, eu não tomaria a sua
virgindade. Deixaria esse gosto para alguém de quem ela também pudesse ter o
coração. Eu não era esse homem.
Quando finalmente pegamos a estrada de volta para a fazenda já estava
escuro. Eu sabia que tinha que deixar claro alguns pontos do nosso acordo.
— Anna, ouça-me, este deve ser nosso segredo.
Eu vi o descontentamento no seu olhar, assim, acrescentei:
— Se alguém na minha casa ou Adam descobrir o que estamos fazendo, eles
vão me matar. Isso sem falar sobre o capitão. Você sabe que nosso
comportamento não está correto. Pelo menos da minha parte.
— Por que não está correto, Thomas? Somos dois adultos, solteiros, e estamos
apenas nos divertindo juntos. Mas, se é isso que você quer?
Parei o carro logo antes de entrar na estrada particular de casa.
— Não, vem aqui, não faz essa carinha.
Puxei-a suavemente para mim, percebi que seus olhos se abaixaram. Eu ainda
tinha um ás na manga, era hora de mostrá-lo.
— Será ainda mais divertido, podemos fazer muitas coisas interessantes em
segredo.
Pelo seu sorriso, percebi que a havia convencido, assim aproveitei para
roubar-lhe outro longo beijo.
— Vamos entrar, já é tarde. Amanhã eu tenho que te levar até o lugar onde eu
te encontrei. E antes de ir para a cama eu vou ter que tomar um banho frio, tudo
por sua culpa!
— Como por minha culpa? Eu te faço sentir calor?
A expressão duvidosa no seu rosto me pegou de surpresa. Eu tinha esquecido
quão pouca experiência ela tinha. Eu ri, até sair do carro. Fechei a porta e me
juntei a ela, porque queria provocá-la mais um pouquinho.
— Sim, Anna, você me aquece... muito.
Olhei para ela e em seguida olhei para os meus calções nos quais a forma do
meu 'melhor amigo' estava perfeitamente delineada. A sua expressão tímida, toda
corada, não tinha preço. Eu decidi, para aquela noite era suficiente.
— Venha, vamos para a minha casa, vamos comer alguma coisa!
— Não, obrigada.
Ela pegou as suas coisas e fechou a porta do carro.
— Eu também vou tomar um banho... frio.
O seu olhar se abaixou maliciosamente no seu corpo e imediatamente olhou
para mim. Eu também teria fantasiado sobre o seu chuveiro, enquanto eu tentava
desesperadamente me segurar. Que pequena diabinha ruim!
Ela assentiu com a cabeça enquanto caminhava em direção ao galpão, e eu ria
como um tonto na escuridão.
Naquela noite, antes de adormecer, lembrei-me de que eu ainda tinha que
perguntar a ela sobre sua conversa com o oficial Milanese.
20. A praia no rio

Anna
A manhã tinha passado tão rapidamente que eu não havia percebido. Com o
enigmático oficial Milanese, ou Massimo, como preferia ser chamado, eu tinha
feito um acordo interessante que, por enquanto, deveria permanecer um segredo.
Ele me explicou, com alguns detalhes, a investigação que estava ocorrendo
em toda a Europa. Eles estavam perseguindo um grande grupo de criminosos e
me relatou que era importante agir rapidamente, contrariamente ao que a polícia
suíça propunha. Ele disse, ainda, que o tempo era fundamental em casos como
este. Nesse ponto, eu estava plenamente de acordo com ele.
Em um ato de confiança, contei-lhe sobre Joaquim e sua ideia de viajar para
me encontrar. Eu também disse a ele sobre a minha ideia de ser usada como isca.
Massimo, no entanto, parecia muito mais interessado na ideia de colaboração
com a polícia brasileira.
No final, trocamos números de telefone. Tínhamos decidido que eu
continuaria trocando os e-mails com Joaquim e deveria informar Massimo
apenas se soubesse quando ele chegaria. Propôs que seria melhor se Joaquim
viesse a Zurique, o aeroporto mais próximo para nós. Com a chegada de
Joaquim, nós três juntos cuidaríamos de tudo. Eu gostava de colaborar com o
Massimo, não era como Thomas, que preferia que eu estivesse de lado enquanto
a sua equipe procurava uma solução. Massimo, não só me escutava, mas
elogiava as minhas ideias. Terminamos a nossa conversa com ele que me dizia
que eu era fundamental para o sucesso do plano.
Veja, Thomas, eu estava certa!

***

No final do dia de trabalho, fiquei feliz de ir à praia junto com o Adam. Ele
me contou sobre um lugar maravilhoso, eu realmente queria conhecê-lo.
Trabalhar com cavalos e o senhor Schmidt não era somente agradável, mas
também divertido. Aprendi a limpar os estábulos, pentear e lavar os animais e,
acima de tudo, a fazer a manutenção nos arreamentos. Fiquei encantada com a
lição de equitação que foi dada às crianças. Foi realizada ao ar livre e ver os
cavalos interagirem com os pequenos cavaleiros era realmente fascinante. Outra
linda lembrança para levar no meu coração.
Quando Adam veio me pegar, eu já estava vestindo o maiô vermelho que
Emma havia me emprestado para poder tomar um banho no rio. Na verdade, eu
nem queria fazê-lo, não sabia nadar; uma das muitas coisas que não tive tempo
de aprender na minha vida. Infelizmente, nenhum argumento foi capaz de fazê-
las mudar de ideia. A água do Reno, tinha me dito Emma e Katrin, era
maravilhosamente limpa e fresca, de acordo com elas, uma experiência a ser
provada pelo menos uma vez na vida. Eu também fui informada, de brincadeira,
de que Adam era um nadador muito bom, até tinha uma licença de salva-vidas,
e, portanto, não precisava me preocupar. Mas o que realmente me convenceu foi
ver o rosto feliz da Mia quando descobriu que ela teria uma companheira para
brincar na água.
Sentindo-me nua, envolvi-me na pequena toalha que havia pego no banheiro.
Emma e Mia já haviam partido para aproveitar o dia, que estava quente, perfeito.
Quando chegamos à praia, Adam me apresentou aos seus amigos e amigas.
Não conseguiria me lembrar os nomes de todos, eram cerca de dez pessoas e
todos pareciam lindos, despreocupados. Certamente, viver em um país como este
fazia uma grande diferença.
Lembrei-me, com pesar, da Irmã Benedetta e da minha família que lutavam
todos os dias apenas para ter algo para sobreviver até o mês seguinte. Pensei nas
festas e mercados na grande cidade, onde íamos vender nossos produtos. Se
trabalhássemos bem, celebraríamos dançando e olhando, escondido, os rapazes.
Deitada ao lado das garotas naquele suave gramado, tomando sol, eu ouvia as
conversas. Os rapazes se mostravam como adolescentes enquanto jogavam vôlei,
as meninas riam e falavam sobre os atributos deles.
— Olhe só o Olie, que idiota exibido!
Disse uma delas.
— Ele pode parecer idiota, mas eu digo que ele sabe fazer certas coisinhas
sem nenhuma idiotice...
A outra respondeu, recebendo risadinhas em resposta.
— Nossa, o Adam está realmente muito gostoso hoje, acho que vou convidá-
lo para ir até a minha casa de noite.
Mais risadinhas e murmúrios sobre as suas medidas e o profundo
conhecimento que ele havia sobre o corpo feminino. Elas tinham infinitos
argumentos sobre quase todos os rapazes que passavam. Sem dizer que elas
usavam os celulares para tudo. Eu não tinha a menor ideia de que você pudesse
fazer tantas coisas com um telefone. Era tão bom não ter mais nada com que se
preocupar.
Eu quase não abria a minha boca, eu me limitava a alguns 'ohhh', 'uhhh', 'é
verdade', mas isso parecia ser suficiente. Não havia nada para adicionar e nem
elas pareciam interessadas em mim ou na minha história. A única garota com
quem simpatizei desde o início foi uma jovem mexicana que, aparentemente,
veio à Suíça para se tornar uma enfermeira. Ela me contou sobre seu país e a
bolsa de estudos que a trouxe até ali, enquanto deitada com um livro aberto na
sua frente, estudava anatomia para o próximo exame.
Eu tinha que admitir que estava com inveja. Afinal, quais eram as
preocupações delas? Onde iam passar as férias no próximo ano? Qual a cor do
esmalte escolhida para a próxima ida à discoteca? A única diferença entre mim e
essas meninas era somente o país de nascimento. Pela primeira vez entendi
completamente o provérbio que a irmã Angela sempre usava quando recolhia um
dos muitos animais abandonados que percorriam as ruas do Brasil: 'Mesmo para
nascer, é preciso ter sorte.'
Enquanto sonhava sobre como seria a minha vida se eu tivesse nascido em um
país como aquele, vi Emma e Mia passarem, indo para a pequena barragem. Era
o momento certo para me afastar do grupo. Levantei-me e convidei as garotas
para entrarem na água; elas me olharam como se eu fosse um alienígena.
Mia brincava com um regador e um pequeno moinho colorido, de plástico.
Emma estava sentada ao lado dela, na areia. Sentei-me entre elas, onde eu
poderia jogar com Mia e conversar com Emma. O rio era tão cristalino, via
peixinhos curiosos na minha frente, nadando perto de nós.
— Olhe Anna!
Disse Mia:
— Se você deixar os seus pés parados, eles vêm perto dos teus dedos, e te
fazem cócegas.
Ela continuou rindo, enquanto me mostrava as suas pequenas perninhas
esticadas.
Seu rosto, tão sorridente, lembrou-me aquele de Thomas nos esporádicos
momentos nos quais o vi sorrir. Ela parecia muito com sua mãe: a cor de seus
cabelos, seus olhos, mas as suas maneiras e o comportamento eram como
aqueles de Thomas.
Enquanto isso, Emma olhava para as garotas com as quais eu estava antes e
rindo me disse:
— Adam é realmente um homem! Ele deixou você com aquelas garotas lá.
Além daquela que lê, eu conheço todas, das quais podemos esperar pouco.
— Pelo amor de Deus. Existem tantas outras boas jovens. Quero dizer... elas
não são tão ruins, é só... que elas são... como posso te explicar... vazias.
Sua expressão pensativa me fez rir. Continuamos a conversar e brincar com
Mia até o momento em que Emma, olhando para o céu, levantou-se, dizendo a
Mia.
— Venha, baby, a chuva está chegando e, se bem me lembro, a senhora.
Schmidt nos deixou aquele bolo de chocolate que você gosta tanto. Você quer vir
comê-lo, Anna?
Ela piscou para mim enquanto começava a recolher os brinquedos que Mia
havia trazido.
Aproveitando sua alusão, acrescentei com um ar conspirador:
— Uhhh, bolo de chocolate. Posso ganhar um pedaço Mia?
Emma sussurrou algo no ouvido da pequenina, pegou sua mão e me
respondeu.
— Somente se você se apressar!
Riram da minha expressão, quando me levantei e, brincando, tentei pegá-las,
enquanto elas fugiam correndo para o estacionamento de bicicletas.
Eu me despedi delas, avisando que ficaria por mais tempo, e estava voltando
para a minha toalha quando Maria, a jovem mexicana, convidou-me para entrar
na água.
A água estava fria, mas incrivelmente límpida, vi os meus pés circundados por
plantas e pequenas pedras no fundo. Com aquele dia quente era uma delícia estar
na água. Como eu tinha um pouco de receio, mantive o nível de água nos seios.
Olhei curiosamente para as pessoas que passavam pelo rio em barcos de
borracha, colchões infláveis ou simplesmente flutuando, enquanto a corrente os
levava suavemente. Um grupo de rapazes, dentro de um barco particular que
Maria me disse para chamar de lounge, escutavam música e dançavam na
tranquila tarde e, aproximando-se, nos convidou para nos juntar a eles. Ficamos
na água, relaxando e comparando a vida nos nossos países, até quando começou
a soprar uma leve brisa trazendo algumas nuvens escuras. Era hora de sair da
água.
Maria olhou para mim e começou a rir enquanto caminhávamos para onde
estavam as outras.
— Mas por que você está rindo?
Estava curiosa sobre sua resposta.
— Você viu os rostos das garotas quando você as convidou para entrar na
água? Eu quase morri de rir, de tão hilário que achei, Anna. Essas garotas não
entram na água.
— Eles não sabem nadar?
Quando ela viu a minha expressão perplexa, porque realmente não entendi a
sua pergunta, ela riu ainda mais.
— Elas não podem entrar na água, porque passaram horas fazendo a
maquiagem. Isso sem falar sobre o tempo que perderam para alisar os cabelos.
Você está tirando sarro delas, se você as convida!
Eu ria também, aquela coisa parecia estranha para mim.
— Por que uma garota deve fazer cabelo e maquiagem antes de ir à praia?
Vão sentir calor, ficar suadas e nem mesmo podem entrar na água!
Ela terminou a frase em um sussurro, nós estávamos nos aproximando do
grupo.
— Bem-vinda ao continente europeo, minha amiga!
Quando nos deitamos novamente, eu tive que admitir que entrar na água tinha
sido uma experiência única.
Estava deitada com os olhos fechados e tomando sol nas costas, quando uma
delas sussurrou para as outras.
— Olha, olha quem chegou, eu não o tinha visto. Meu Deus ele é gostoso
demais!
— Como, você ainda não o tinha visto? Ele está ali há algum tempo, parece
estar procurando por alguém.
Não abri os meus olhos, ouvi somente o murmúrio geral de aprovação.
— Uhhh, Thomas... absolutamente delicioso!
Outro murmúrio de aprovação, incluindo o meu. Eu mantive a posição em que
estava, não queria que elas notassem o meu interesse. Se levantasse, seria
impossível esconder a minha atração por ele.
— Aquela Leonie é realmente doida em deixar um homem como ele.
— Ouçam esta história meninas! Outro dia em Konstanz, conheci a prima de
uma garota que trabalha no Babe's.
— O bordel?
Com aquela frase, elas chamaram a minha total atenção. Qual era a história
do Thomas e o bordel?
— Strip club, estúpida. Não é um bordel, as meninas não fazem sexo lá, elas
apenas dançam.
— Até parece verdade, se você diz assim com tanta certeza!
— Quietas, vocês duas! Qual é a história da prima?
— Ela me disse que o Thomas e os rapazes ocasionalmente dão uma passada
por lá...
— Uhhh, que novidade...
— Esperem, deixem-me terminar! A prima me disse que o Thomas, quando
vai com eles, sempre está com a mesma garota grudada nele. Ela também disse
que, às vezes, os dois acabam na sala VIP.
— Para fazer o quê?
Risadinhas indecentes.
— Provavelmente rezar, sua idiota!
— Eu, pessoalmente, não gosto do tipo dele.
Escutei a frase sair da boca de uma das meninas. Quem pode não gostar de um
homem como ele!
— Ele é, como posso dizer... demais. Isso! Muito masculino, parece sempre
bravo, muito sério, não sei.
— A amiga da prima disse, ou a prima da amiga, agora eu não me lembro de
quem disse a coisa... de qualquer forma, ela disse que ele vai pesado...
— Quão pesado? Você quer dizer tipo violento?
— Não tolinha! Vou te explicar em palavras claras. Que ele fode pesado, com
raiva, forte! Você entende agora, ou devo ser mais clara? E que depois, ele vai
embora imediatamente!
Felizmente, meu pequeno grito de surpresa foi coberto pelas risadas. Maria
ergueu os olhos para o céu como se quisesse invocar paciência ou perdão, eu não
sabia qual dos dois.
Ouvi a conversa morrer de repente e sabia que ele estava se aproximando.
Quando me chamou, fingi não saber que ele estava lá. O que mais eu poderia
fazer?
Ele me convidou, não com tanta cortesia, para ir embora, obedeci sem sequer
me opor; não queria acrescentar mais fofocas às bocas dessas meninas. Só Deus
sabia o que mais poderia sair de dentro delas.
Passamos na frente de seus amigos, ouvimos as piadas deles. Aparentemente
não eram tão diferentes das meninas.
O tempo mudava rapidamente, observei enquanto olhava uma paisagem a
mim desconhecida, pela janela do carro. Não estávamos voltando pela mesma
estrada, aquela feita com Adam. Era possível que ele tivesse escolhido outra
estrada especialmente para mim?
A floresta assemelhava-se àquela na qual ele me encontrou. Se eu pensava que
voltar a uma floresta depois do que aconteceu comigo pudesse me assustar, era
hora de me livrar de qualquer dúvida. Então pedi a ele para parar o carro.
Assim que saí, sabia que não teria medo. Pelo menos não naquele momento,
com a sua presença perto de mim.
Fiquei maravilhada com a natureza que me circundava. Era pura força e criava
o equilíbrio perfeito com o vento que começava a soprar decisivamente, como
em premeditação a algo poderoso.
Naquele momento, perdi a noção de tempo e, quando a primeira gota caiu no
meu rosto, eu percebi que a única coisa que desejava era ficar naquela floresta,
com Thomas, para sempre.
Era hora de dizer a ele o que o meu coração sentia, eu tinha que fazê-lo.
Quando terminei de dizer-lhe que eu o levaria para sempre comigo, dentro do
meu coração, tive a impressão de que ele não havia me entendido. Logo depois
ele veio até mim com os olhos ardendo de desejo e as minhas palavras foram
imediatamente esquecidas em um beijo. Pele na pele, corpo no corpo. Como
sempre, ele me devorava com os seus lábios, o calor que emanava do seu corpo
inexoravelmente atraiu o meu, perdi-me, totalmente, naquele beijo.
Eu não queria ir embora e separar-me dele, nunca havia sentido uma atração
assim tão forte antes. Era como se o meu corpo o conhecesse de uma vida
anterior e que eles acabaram de se encontrar novamente.
Quando, contra a minha vontade, ele me fez entrar no carro, decidi que faria o
jogo do tudo ou nada. Eu não tinha nada a perder e tinha que dizer a ele, de
modo claro e objetivo, o que eu queria. Naquelas circunstâncias, eu aceitaria
qualquer coisa que ele pudesse me dar.
Meu desejo por ele era incontrolável. Não tinha a menor ideia do que estava
fazendo, deixei-me entregar às novas sensações que só ele poderia me dar.
Sua voz saiu fraca, quando ele tentou me dizer que não podia fazer aquilo que
eu lhe pedia. Naquele momento eu entendi o poder que toda mulher tinha, todas
nós tínhamos, tudo o que devíamos fazer era encontrar o homem certo. Eu o teria
ajudado a decidir, obviamente, do jeito que eu queria!
Perdi a noção do tempo dentro daquele carro. Ele não foi além dos beijos
deliciosos, mas no momento eram suficientes para mim. Eu o tinha convencido,
e teria aproveitado o meu prêmio tranquilamente.
Quando retornamos à fazenda, ele me informou que preferia manter nosso
relacionamento escondido, se é que se pudesse definir aquilo que tivemos como
'relacionamento'. Eu não concordei, mas fui forçada a admitir que talvez ele
estivesse certo. Em segredo, seria ainda mais emocionante.
Quando me lembrei de que teria que voltar até o local onde fui descoberta, no
dia seguinte, minha mente voou até Joaquim. Eu tinha que aproveitar o fuso
horário para chamá-lo. Em seguida, fui distraída novamente com a lembrança
desse novo Thomas, que eu mal conhecia, e que me fez sentir falta de ar quando
sugeriu o banho frio.
Que inocente eu tinha sido, não entendi a piada. Foi necessário que ele me
ilustrasse olhando-se para baixo. A meu favor, eu poderia dizer que a minha
resposta o deixou sem fôlego.
Um ponto para mim, mais uma vez!
Enquanto caminhava para o galpão, pensei que devia ter muito cuidado ou iria
embora com o meu coração partido. Conhecer o lado picante e brincalhão do
oficial, sem me apaixonar seria, para mim, um verdadeiro desafio.
Deixar de lado os momentos que havia acabado de viver com Thomas e
chamar o Joaquim foi muito difícil, mas eu tinha uma tarefa a executar. Massimo
me avisou para manter uma conversa neutra, sem dizer nada sobre o nosso
acordo, o que me levou à dura prova. Eu sempre fui uma pessoa aberta e mentir,
ou, como Massimo sugeriu 'cozinhá-lo em banho maria' era algo que eu nunca
tinha feito antes.
Joaquim ficou satisfeito com as instruções que lhe foram dadas por mim,
seguindo as indicações do Massimo. Ele estava confiante de que resolveríamos o
assunto muito rapidamente. Eu acreditei nele.
21. Sentimentos em jogo

Thomas
Com o passar dos dias, entramos em uma espécie de rotina. Anna tinha o seu
trabalho no haras e quando voltava do meu, eu sempre tentava interceptá-la, para
roubar-lhe alguns beijos em lugares escondidos.
A sua presença me alegrava e passávamos bons momentos em uma gostosa
amizade. Eu evitava deixar Mia muito tempo com ela, não queria que a pequena
se acostumasse com a presença dela e depois sofresse, no momento da sua
partida. Anna ainda não havia marcado a data do seu retorno ao Brasil, mas eu
precisava proteger o coração da Mia. Eu estava percebendo que era muito fácil
se acostumar com a agradável presença da Anna. Sua risada espontânea, a
facilidade com que ficava encantada pelas coisas simples: as árvores carregadas
de frutas, a água cristalina do rio, as pequenas flores que brotavam no gramado,
tudo era motivo para deixá-la maravilhada. Nesses momentos, seus olhos verdes
brilhavam e, como minha mãe havia dito uma noite, era realmente fácil
apaixonar-se por aquela garota. Para mim, infinitamente perigoso.
Nossas noites juntos aumentaram quando Mia foi convidada pelos parentes
maternos para passar alguns dias com os primos. Para a pequena, estar com
outras crianças era sempre um motivo de festa e, mesmo que ainda houvesse
alguns dias de aula antes das férias começarem, eu decidi deixá-la ir.
No dia seguinte à partida de Mia, deixei uma nota embaixo da porta do quarto
da Anna onde eu dizia a ela para me encontrar, à noite no pomar. Eu queria
surpreendê-la e deixá-la com mais uma bonita lembrança. Havia checado o clima
e seria uma noite perfeita para admirar as estrelas. Eu prometi a mim mesmo que
manteria uma certa distância; nos dias anteriores, tinha sido um verdadeiro
inferno conseguir fazê-lo. Com sua doçura e inocência, que reduziam a cinzas
todas as minhas boas intenções, era praticamente impossível resistir-lhe.
Felizmente, sempre que estávamos juntos, tomávamos cuidado para que
ninguém nos visse, e, por sorte, isso me distraía um pouco. Anna era
absolutamente passional, então, somente eu prestava atenção.
Já havia escondido perto do galpão a cesta de piquenique e uma toalha de
mesa. Quando a vi da janela, saindo pela porta lateral, usando o celular como
lanterna, corri pelo mesmo caminho onde, algumas noites antes, eu a havia
surpreendido. O tempo tinha passado tão rápido, parecia ontem que eu havia
trazido para casa aquela jovem tímida e indefesa, só para me encontrar, qualquer
dia mais tarde, fugindo de casa como um adolescente. A ideia de correr
escondido até ela, me fez rir sozinho, eu queria assustá-la por diversão, mas
deveria ter cuidado. Quando ela se assustava, eu via algo escuro de relance
passar pelos seus olhos, provavelmente traziam à tona horrendas lembranças, e
isso me desagradava. Anna nunca mais deveria sofrer.
Deixei-a entrar sob a lampadário que marcava o início do pomar. Ela olhava
ao seu redor procurando por mim. Mantendo-me ainda escondido, fiz mais
barulho que o necessário, aproximei-me dela, peguei uma pedrinha do chão e
joguei na direção oposta àquela onde eu estava.
Atraída por aquele barulho, ela me deu as costas rindo e me chamando.
— Thomas, eu sei que é você. Onde você está se escondendo?
Quando terminou a frase, eu vim por trás dela, levantando-a pela cintura e
girando-a no ar. Seus gritinhos, seguidos pela deliciosa risada, eram irresistíveis
e me encontrei rindo como um tonto. Não esperava por aquilo que ela me disse.
— O que você está fazendo? Olha, que todos escutarão a nossa bagunça.
Eu não sei por que, mas essa frase me deixou pensativo. E daí, se eles nos
ouvem? O que me importa, que todo mundo nos escute!
Eu sacudi a cabeça, esses pensamentos não deveriam surgir. Preste atenção no
que você está fazendo, Thomas.
Mantive-a firmemente nos meus braços e, enquanto a segurava, ela se virou e
sua boca encontrou a minha, como se elas se conhecessem desde sempre,
enquanto eu ainda estava perdido nos meus pensamentos. Minha mente foi
inevitavelmente distraída pelas suas curvas suaves, pelo seu perfume único e por
aquela noite sob a lua. Naquele momento, éramos somente eu e ela. Quando a
minha língua encontrou a dela, exalou um suspiro excitante, que fez minha voz
rugir na garganta. Ela era como uma iguaria requintada e, apenas degustá-la, já
não me era mais suficiente. Senti-me como se estivesse perdido em um deserto
e, depois de tanto vagar, encontrava finalmente um oásis. Ela era isso para mim.
Sentia também uma nova sensação, algo que por anos não sentia. Depois de
Leonie, não tinha procurado por essas emoções e, de certo modo, assustava-me
pensar no quanto Anna conseguiu, aparentemente sem esforços, fazer-me vivê-
las novamente. Eu estava arriscando em um jogo muito perigoso e sabia disso,
mas não podia e no fundo, não conseguia mais recuar; a tentação era muito forte.
Eu só tinha que me concentrar e poderíamos desfrutar de momentos especiais
como esses, que desejávamos tanto.
Eu a abracei mais forte e senti seu calor por intermédio do vestidinho fino, um
perigo para a minha razão, uma alegria para os meus sentidos. Devagar retirei a
minha boca da dela e aproveitei para aguçar a sua curiosidade.
— Vem comigo, vem, eu tenho uma surpresa para você.
O seu 'Ohhhh' me lembrou o quão simples era fazê-la feliz; era suficiente
assim tão pouco. Ela nem sabia o que eu teria proposto, mas ela confiava
totalmente em mim e isso sempre me maravilhava.
Peguei a cesta e lhe passei a toalha de mesa, juntos fomos até o fundo do
pomar, enquanto nos contávamos sobre o nosso dia. Eu vi que ela estava olhando
curiosa para a cesta que eu estava balançando de propósito para chamar a
atenção. A noite estava clara e foi fácil encontrar o caminho e o lugar onde vi o
senhor Schimidt, alguns dias antes, cortando a grama.
Sob uma macieira, encontrei um pedaço de gramado que parecia um tapete,
apoiei a cesta no chão, tirei a toalha de mesa das mãos dela e a estendi. Seus
gritinhos de alegria me fizeram sorrir novamente, como um pateta.
— Isso é muito romântico, nunca fiz um piquenique na minha vida! O quê?
Você também trouxe velas? Ohh, Thomas, isso não é papel que um oficial mal-
humorado deveria desempenhar!
Peguei a garrafa de vinho, as taças e os morangos que havia preparado antes,
apoiei tudo, com cuidado, na toalha.
Ela me olhava encantada, enquanto eu acendia as velas e a convidava para
sentar-se na toalha. Com um floreio, destapei a garrafa e ela deu uma risada.
Despejei vinho nas taças e, entreguei-lhe uma. Abaixei-me na frente dela; minha
voz saiu baixa, emocionada:
— Eu gostaria de propor um brinde. Para você Anna, pelo seu maravilhoso e
contagioso desejo de viver. Você é uma garota especial e merece o melhor.
Ela me olhou por debaixo dos cílios e notei que ela usava o seu tempo para
absorver aquilo que havia dito. Eu não era um homem romântico, usava sempre
uma máscara. Naquela noite, eu decidi deixá-la em casa para que Anna
apreciasse essa bela lembrança; estava tentando trazer de volta uma parte do
velho Thomas.
— Obrigada, Thomas.
Ela me respondeu, com seus olhos brilhando e a voz comovida. Olhou para o
próprio pulso:
— Obrigada também pela minha pulseira.
Quando voltamos ao local onde ela havia sido encontrada, eu trouxe a pulseira
comigo. Eu não tinha certeza se pertencia a ela, mas, em um momento difícil,
quando percebi o medo no seu rosto e a tensão no seu corpo, eu segui meu
instinto, tirei-a da embalagem e mostrei-lhe sem dizer nada. Seus olhos se
encheram de lágrimas, confirmando as minhas suspeitas, seu abraço amoroso me
contou todo o resto. Quando ela me disse quão importante era esse objeto para
ela, um sentimento há muito adormecido me invadiu.
— Eu também gostaria de propor um brinde.
Sua voz tremeu sob as estrelas:
— A você, Thomas e sua família, vocês me afastaram da dor e me
proporcionaram os momentos mais bonitos da minha vida.
Ficamos sentados, sob aquele maravilhoso céu estrelado, bebendo, comendo e
contando nossas histórias. Um leve brilho resplandecia das velas e, mais de uma
vez, eu me vi observando quão linda era aquela jovem.
No momento em que ela percebeu os meus olhares, cuidadosamente liberou o
lugar ao nosso redor, virou-se para mim e, sem dizer uma palavra, mantendo-me
preso no seu estupendo olhar, lentamente começou a se deitar na toalha. Meu
corpo respondeu encantado pela sua magia, comecei a me aproximar cada vez
mais. Senti a sua respiração doce no meu rosto: morangos e vinho. No seu corpo
havia o aroma mais sedutor do mundo; aquele de uma mulher.
Meu peito tocou os seus seios no exato momento em que seus cabelos se
apoiavam na toalha. Uma perna se enfiou no meio das dela, a outra sustentava a
maior parte do meu peso. Ela se encaixava perfeitamente embaixo em mim, era
feita sob medida para meu corpo.
Ficamos nos olhando atentamente, perdidos naquele nosso momento. Minha
respiração acelerou, não iria conseguir me controlar se não me levantasse
imediatamente. A ideia de escapar evaporou quando ela abriu os seus lábios
irresistíveis e me falou duas palavras, apenas duas, que marcaram o meu fim.
— Ama-me, Thomas.
Foi um choque. Sentei-me com pressa, esfreguei desesperadamente as mãos
no rosto e nos cabelos.
— Meu Deus, Anna! Não me peça isso, você sabe que não posso te dar o que
você deseja. Por favor, por favor!
Minha voz soava desesperada até aos meus próprios ouvidos. Eu tenho que
sair daqui, levante-se, AGORA!
Ela se sentou, pegou a minha mão e gentilmente, começou a me empurrar para
trás. Não havia mais forças, abandonei-me e deixei-me levar.
Muito devagar, ela se arriscou vindo em cima de mim. Eu nunca estive
deitado perto dela. Quando subiu a cavalo em mim, o seu vestido se levantou,
me mostrando uma porção generosa das suas coxas. Como se tivessem vida
própria, minhas mãos se moveram habilmente e se acomodaram naquela pele
perfeita, para acariciá-la com suavidade. Ela possuía pelinhos loiros muito
fininhos que estimulavam a minha palma, tornando a experiência ainda mais
sensual. Suavemente, ela me falou:
— Olha para mim, Thomas, é você que eu desejo. Minha virgindade pertence
a mim mesma e posso dá-la a quem eu escolher.
Sua voz continuou suave, mas com uma nota decisiva:
— Eu escolhi você, não me diga que não.
Enquanto meu cérebro estava elaborando as suas palavras, as mãos dela já
estavam no primeiro pequeno botão de seu vestidinho, localizado bem ao meio
dos seios, e começava a desabotoá-lo. Estou realmente fodido!
O segundo botão desabotoado me concedeu um vislumbre de uma porção
maior de pele clara e perfeita. Mas foi o terceiro e quarto que me deixaram
louco, fazendo os meus shorts ficarem dolorosamente apertados. Vi, como em
um sonho, aparecer na clavícula, o sutiã de renda vermelha. Esta garota vai me
matar!
O lado racional do meu cérebro estava gritando alto: corre! Em vez disso, o
meu melhor amigo, aquele do andar de baixo, comandava: aproveite!
O luar lançou um leve brilho nos seus cabelos e, quando ela jogou a cabeça
para trás, meu olhar vagou pela parte superior do seu vestido, que, naquele
momento, estava completamente aberto. Dolorosamente, fiquei consciente de
que devia detê-la.
Foi a decisão mais difícil que tomei na minha vida.
— Pare, Anna!
A dureza na minha voz a fez parar com as mãos ainda nos cabelos. Seu rosto
voltou relutantemente, a sua voz tremeu.
— Por que, Thomas?
As suas mãos se agarraram às abas do vestido ainda abertas e se fecharam
sobre si mesmas, como que para se proteger. Seu rosto se abaixou, seus cabelos
caíram e a esconderam de mim. De qualquer forma, o dano estava feito.
Ele saiu de cima de mim, dando-me as costas com a cabeça baixa, como se
tivesse sido derrotada.
Tentei aliviar a situação, sentei-me ao lado dela e passei a mão nas suas
costas, murmurando suavemente:
— Não é você o problema, sou eu, e você sabe disso. É verdade! Você merece
muito mais de um homem, não uma só noite de sexo e depois tchau. Eu nem
tenho um preservativo comigo.
Minha risada soou falsa até mesmo para meus ouvidos. Mas quem eu queria
enganar? Que frase estúpida, Thomas. Parabéns!
Sua mão surgiu do centro de seus seios perfeitos, mostrando-me o pequeno
envelope colorido; aquele que eu conhecia muito bem.
Dessa vez, a risada que saiu da minha boca era autêntica. Mas quantas
surpresas você ainda tem?
— Comprei no supermercado outro dia. Eu só queria ser uma garota normal.
Sua voz saiu trêmula, baixa.
— Anna, você é uma garota normal, você não vê? Você é perfe -
— O que é que eu deveria ver. Que ridícula que sou? A pobre e inexperiente
garota que tenta seduzir o belo oficial!
Com essas palavras, entendi o que ela pensava de si mesma. Levantando-se
rapidamente, visivelmente furiosa, virou-se, apenas me olhou e me jogou o
preservativo na cara.
— Pegue-o oficial Graff. Tenho certeza que você vai precisar muito mais do
que eu.
Fugiu sem olhar para trás, desaparecendo diretamente no galpão.
Certo ou não, que diabos eu fiz!
22. Arriscando tudo

Anna
Semana passada, analisando a convivência harmoniosa entre as pessoas da
família de Thomas, pude descobrir um lado do amor que eu ainda não conhecia.
A relação entre eles ia além daquilo que eu tinha presenciado em toda a minha
vida; eu levaria, para sempre, essa lembrança no meu coração. Eles me
mostraram que o amor não se limita aos laços de sangue. Eu, Hans, o senhor
Schmidt, sua esposa, Adam e até Betsy éramos testemunhas de que o amor
dispersava os seus raios em todos, infinitamente.
Em minhas noites com Thomas, passávamos conversando
despreocupadamente e aproveitando o verão que estava chegando. Os meus
momentos favoritos eram os beijos roubados nos lugares mais absurdos e
escondidos que ele conseguia inventar. Ele me surpreendia dentro dos estábulos,
atrás do trator, na escadaria. Passava os dias ansiosa, esperando por ele, para
descobrir onde eu ganharia o próximo beijo, que tiraria o meu fôlego. Ele nunca
se abandonava completamente, sempre consciente em manter as distâncias e o
seu respeito por mim.

***

Quando chegamos ao lugar da minha descoberta, pensei que Massimo nos


acompanharia, mas fiquei agradavelmente surpresa quando descobri que não
viria. O oficial italiano se mostrou muito disposto em aprofundar o nosso
conhecimento, como ele me havia revelado abertamente, mas a sua oferta não
me interessava. Os meus olhos só viam Thomas, para mim não existia mais
ninguém.
Naquele dia, enquanto Thomas me levava no seu carro, ele me perguntou o
que eu havia discutido com Massimo. Ele me avisou que não confiava no oficial
italiano, de acordo com ele, muito voraz e ansioso pelo sucesso, uma pessoa
aparentemente preocupada só com a sua carreira. Para ganhar tempo, sem
responder sua pergunta, perguntei-lhe se, por acaso, estava com ciúmes. Como
resposta, ele me lembrou que, às vezes, com um único olhar, ele não precisava
de palavras para se expressar. Um pecado que comigo, sua tática de intimidação
não funcionasse. Já estava pronta para começar uma bela briga, quando me
avisou bruscamente de que havíamos chegado ao local.
Nós estávamos caminhando e, quando reconheci algumas paisagens na
floresta, meu coração se comprimiu, o medo se intensificou quando, do
precipício do qual caí naquela fatídica manhã, vi o rio fluir com toda a sua força.
Essa foi a nossa primeira parada, depois descemos para que eu pudesse ver a
posição em que Thomas estava, quando ele me ouviu gritando. De lá,
continuamos em silêncio, às margens do rio, onde vi o lugar no qual ele me
ajudou entre as pedras. Naquele momento, vendo como ele colocou sua vida em
risco e todo o esforço que fez para me salvar, todos os sentimentos que eu sentia
por ele aumentaram exponencialmente. Enquanto eu via como um terrível
pesadelo, a olhos abertos, alguns flashes da minha fuga, minhas pernas
arriscavam não me sustentar e, em alguns momentos, eu tive que me sentar nas
pedras para me recuperar. Não queria mostrar-me fraca, mas era impossível não
me deixar levar pelas emoções e ver a sorte que eu tive. Na aurora daquele
fatídico dia, havia nascido de novo.
Thomas continuava a olhar para mim com uma expressão preocupada,
insistindo que poderíamos ir embora a qualquer momento, que não era
necessário reviver aquele brutal episódio. O que ele não entendia era a
importância que aquele momento tinha para mim. Eu tinha que cancelar esse dia
da minha vida e, para mim, essa era a única maneira de aniquilar os horríveis
momentos passados. Essas memórias seriam substituídas por outras, momentos
em que ele estava ao meu lado e nos quais eu sentia a sua força e segurança.
Essa era a minha salvação; Thomas era a minha salvação.
Enquanto pensava em explicar, ou não, o motivo pelo qual era tão importante
estar lá, ele tirou um saquinho de plástico do bolso do uniforme. Estava tentando
entender o que poderia estar ali dentro, quando vi a medalha do Arcanjo Miguel
aparecer na palma da sua mão: a minha pulseira.
Naquele momento, meu mundo parou, abracei-o com todo o meu ser, queria
mostrar-lhe o que meu coração sentia. Com lágrimas nos olhos, confirmei que
pertencia à minha família, enquanto ele gentilmente a fechava em meu braço,
dizendo-me que a havia mandado reparar. Naquele momento, eu o amei, tinha
certeza do nome e do poder dos meus sentimentos pelo Thomas: eu o amava
com todo o meu coração.
Essa descoberta acrescentou mais um objetivo aos meus planos; queria ter
mais lembranças nossas para levar comigo. Momentos mais íntimos entre nós
dois, que me ajudariam a seguir em frente, a suportar o resto da minha vida sem
a sua presença. Eu tinha certeza de que quando Thomas descobrisse a verdade
sobre quanto eu estava tramando, ele não me perdoaria. Quanto mais eu refletia,
mais eu sabia que nem eu mesma me perdoaria.
Thomas não estava ciente, mas eu sim. O meu tempo com ele estava prestes a
expirar. Joaquim havia comunicado a data da sua chegada. O oficial italiano
tentava tranquilizar-me, dizendo-me que, quando ele chegasse, iríamos trabalhar
juntos em todos os detalhes da investigação. Massimo continuava insistindo em
não contar nada à equipe de Thomas, de acordo com ele, a burocracia suíça teria
alongado os tempos. Para o oficial italiano, não precisávamos dos colegas
suíços, porque ele conhecia todas as pessoas nos lugares certos e, além disso, era
o chefe da missão.
Nos telefonemas que eu havia trocado com Joaquim, eu tinha sido instruída a
não contar nada de importante. Eu não conseguia entender porque Massimo não
me permitia divulgar os detalhes da operação, mas eu tinha que respeitar a sua
decisão. A ideia de uma missão conjunta desaparecia diante dos meus olhos. Em
certos momentos, com Massimo, sentia-me como um fantoche, sem poder de
escolha, nas suas mãos, e não sabia mais o que fazer.
Incessantemente, Joaquim fazia perguntas sobre Thomas, sobre a polícia suíça
e como a investigação prosseguia. Eu lhe falava o que era estritamente
necessário, sem qualquer referência ao oficial italiano. Quando ele insistiu em
obter mais informações, depois de conversar com Massimo, passei a ele o
número do distrito em que Thomas trabalhava. Massimo tomou essa decisão
depois que lhe disse que se não lhe contássemos nada, a trama ficaria ainda mais
suspeita. Joaquim também era um policial, investigar era parte de seu trabalho e
a curiosidade, parte da sua natureza.
Fiquei triste ao reconhecer que o afeto que sentia por Joaquim era apenas
fraterno. Por alguns meses, ele foi a pessoa mais importante para mim e pensei
sentir algo mais por ele. O que eu acreditava sentir começou a vacilar quando
conheci Thomas e desabou completamente quando começamos a nos encontrar.
Quanto mais se aproximava a data da chegada do Joaquim, mais percebia que
minha situação com Thomas, quando ele descobrisse, não seria mais a mesma.
Ele ficaria muito irritado, havia tramado com Massimo por trás dele, escondendo
informações importantes. Estava mentindo para ele, aquilo que nunca tinha feito
na minha vida, e isso me deixava abalada. Quando disse a Massimo como me
sentia, ele me respondeu que, como todas as mulheres, eu tinha uma tendência a
exagerar os meus sentimentos e a 'criar tempestade em um copo de água'. Ele
insistia que não havíamos feito nada de errado e que, se Thomas não me
perdoasse, era só por culpa dele e da sua imaturidade, que ele não sabia perder.
Nesse caso, sempre segundo Massimo, eu tinha que encontrar um homem de
verdade. Para concluir o discurso, ele olhou para si mesmo e, imediatamente,
olhou avidamente para mim. Homens!
***

A oportunidade de ouro para seduzir Thomas apareceu quando li a sua nota


deixada sob a porta do meu quarto, o momento era perfeito. Eu nem sabia
quando ele a havia deixado. Nunca o convidei a entrar no meu quarto, nem ele
sequer havia proposto. Ele se distanciava de mim de uma maneira maníaca. As
suas mãos nunca se arriscavam além da minha cintura e a sua boca permanecia
soldada perto do meu rosto. Isso me deixava louca. Sentia a sua excitação
quando ele estava perto de mim e eu o queria desesperadamente. Maldita
timidez! Eu tinha que tomar a iniciativa ou ele nunca faria.
Depois de tomar um belo banho e lavar meu cabelo, vesti-me com cuidado. O
vestido floral me modelava o corpo e me fazia sentir sexy. Para fechar o pacote
da sedução, escolhi a minha roupa intima favorita: sutiã e calcinha vermelhos.
Sequei o meu cabelo, fazendo-o cair em ondas suaves nas minhas costas.
Thomas sempre me dizia o quanto era lindo. A leve maquiagem finalmente me
fez perceber o quanto eu havia mudado naquele último mês; quase não me
reconheci no espelho. Meus olhos possuíam um brilho agradável, sentia-me,
mais do que nunca, mulher. Uma mulher especial!
Enquanto o esperava para passarmos aquela noite toda nossa, encontrei-me
olhando o céu e pensando se seria possível que todos observássemos as mesmas
estrelas: tão longe, mas tão perto. O som de seus passos seguidos por um barulho
de ramos quebrados, me fez virar naquela direção, não esperava por uma
brincadeira sua, naquele momento.
Faltou-me a respiração quando o seu aroma embriagou os meus sentidos,
antes mesmo que os seus maravilhosos braços encontrassem o meu corpo.
Quando ele me colocou no chão, depois de me girar no ar, eu ria alegremente.
Minha boca já conhecia o caminho para a dele. Naquela noite, eu conseguiria
mais, eu tinha certeza.
Tudo estava acontecendo conforme o planejado. Talvez eu estivesse indo
muito rápido, pensei, em um determinado momento da noite, enquanto
desabotoava a parte de cima do vestido. Não importava, aquele homem me
levava direto às estrelas, aliás, quem precisava olhar para o céu, quando tinha
embaixo de si o oficial Graff?
Quando o meu desejo mais íntimo foi negado, meu mundo colapsou. Nem
mesmo a sua tentativa de arrumar as coisas funcionou. Eu só queria escapar!
Deus, eu estava errada, como pude ser tão ignorante! Era óbvio que ele não
queria a garota virgem vinda do terceiro mundo, quando tinha dançarinas e
outras mulheres que caíam aos seus pés.
Antes de fugir, de maneira mal-educada, joguei em cima dele o preservativo
que eu tinha ocultado cuidadosamente no sutiã.
Cheguei ao quarto ofegante, queria arrancar aquele vestido estúpido, seguido
do conjunto íntimo que eu tinha escolhido com tanta atenção para a noite.
Patética!
Outra lágrima escorreu pelo meu rosto, sequei-a com raiva, olhei pela janela e
vi a bela noite, apenas arruinada.
Ouvi a porta do quarto fechar com força, repentinamente, e quando me virei,
encontrei Thomas vindo na minha direção. Com raiva, sua voz rugiu:
— Então é assim que você me quer? Tudo o que você precisa é somente uma
rapidinha, Anna?
Antes que eu pudesse me recuperar do susto pela sua entrada inesperada e
responder, ele agarrou a minha cintura e me levantou de modo indelicado,
beirando a grosseria, empurrando-me de costas contra a parede. Meus tornozelos
se fecharam automaticamente nas costas dele.
— Você está pronta para mim, você tem certeza Anna? Eu não faço amor, eu
te fodo... forte... de um modo obsceno!
Fiquei de boca aberta com as suas palavras. Ele não perdeu tempo em me ver
tão surpresa, continuou implacável:
— É por isso que eu tenho que me manter afastado. Você não vê? Eu te tratei
com o devido respeito todo esse tempo. Você acha que foi fácil para mim?
Caralho, você não sabe o que faz comigo. Você sabe quantas vezes eu tive que
bater punheta por sua causa?
Antes que eu pudesse abrir minha boca e dizer que talvez eu não tivesse
entendido bem o que ele queria dizer, ele prosseguiu:
— Sim, uma punheta Anna. Aliás, muitas punhetas. Masturbar-me pensando
em teu corpo, em teu cheiro único, no que eu poderia e gostaria de fazer com
você.
Com uma risadinha lasciva ele continuou:
— Agora é a tua vez, diga-me quantas vezes você se masturbou pensando em
mim?
A vermelhidão que cobriu meu rosto o fez repensar.
— Vê, é por isso que não sou feito para você. Tenta entender, Anna.
Sua cabeça se abaixou suavemente na cavidade do meu colo, a sua respiração
alterada me fez sentir todo seu desespero.
Ele me colocou cuidadosamente no chão, afastou-se, passando a mão
furiosamente pelos cabelos. Via as suas costas subindo e descendo rapidamente,
com as suas profundas respirações.
Arrisquei e falei antes que ele pudesse me impedir:
— Olhe para mim, Thomas. Eu sou uma adulta, você também. Eu não quero
nada mais do que uma noite, não se preocupe. Sem qualquer ligação,
completamente consciente. Daqui a pouco vou me embora e levo esta bela
lembrança comigo. Eu quero realizá-la com você.
Ele se virou lentamente e, pela sua expressão, pensei ter ganho. Para
consolidar as minhas ideias, comecei a abrir o vestido novamente. Desta vez eu
o olhava direto nos olhos para deixar muito clara as minhas intenções. Eu não
me retiraria, não agora. Não com ele!
Eu tinha certeza de que havia um pequeno sorriso impertinente nos meus
lábios, porque ele começou a caminhar na minha direção com um passo furtivo,
quase felino. Os olhos estavam colados no meu decote.
Nenhum remorso, nenhuma vergonha.
Enquanto ele dava um passo à frente, eu recuava. Logo os meus tornozelos
tocaram o fundo da cama e, com um leve ruído o meu vestido caiu no chão. Eu
ainda estava a uma distância segura, assim parei, esperando pela sua chegada.
Ele despiu a camiseta de uma forma sensual e jogou-a no chão. Seu tórax era
perfeito. Um alinhamento de pelos castanhos começava onde eu mal
vislumbrava as suas boxers pretas, escondidas pelos shorts, e subia rente para se
abrir como um leque no peito até quase suas clavículas. Um V marcava os
perfeitos abdominais, desaparecendo dentro das cuecas.
Meu sorriso malicioso desapareceu, deixando espaço para a maravilha, de
quanto os meus olhos podiam ver. Era como olhar para as estátuas romanas e
gregas dos livros. Um sorriso satisfeito alargava-se cada vez mais enquanto se
aproximava. Ele usava todo o tempo, com uma calma calculada.
— Você gosta do que vê, Anna?
Minha cabeça assentiu lentamente, sim, minha boca estava seca; pela primeira
vez na minha vida eu estava sem palavras, sem uma das minhas respostinhas
habituais.
Ele se aproximou até quase tocar-me com o seu peito. Sem fazer qualquer
outro movimento, abaixou a cabeça e inalou o ar perto da minha clavícula, subiu
pelo pescoço e passou lentamente pela orelha. Seu rosto estava concentrado,
seus olhos ardiam, a voz rouca de desejo.
— Você tem um aroma que me deixa louco. Um odor tão excitante, como eu
nunca senti na minha vida. Talvez eu consiga gozar somente sentindo o teu
cheiro, ficando aqui parado. Vamos apostar?
Se antes fiquei espantada, agora corria o grave risco de desmaiar. Ele passou a
mão sobre os shorts de nylon, para cima e para baixo em todo o seu
comprimento; um movimento rítmico e cadenciado. Nunca tinha visto nada de
tão erótico.
— Cacete, olha o que você faz comigo!
Ele fechou os olhos e sua cabeça caiu para trás, seu corpo tremendo de prazer.
Eu vi o pomo de Adão subir e descer enquanto ele se esfregava lentamente na
minha frente, murmurando palavrões.
Quando me olhou de novo, através das suas íris brilhantes e luxuriosas, senti-
me mais mulher do que nunca. Ele conseguiu me fazer ver toda a atração que
sentia por mim. O ar à nossa volta estava carregado de eletricidade. Esqueci a
timidez da primeira vez, naquele momento era a minha vez.
Levantei as mãos e, apenas tocando-o com as pontas dos dedos, subi dos
antebraços, que eu tanto admirava, até os ombros, seguindo o caminho
lentamente, usando o meu tempo como ele havia feito antes, até que coloquei
delicadamente as mãos espalmadas nos dois lados do rosto dele.
Quando nossos olhos se encontraram e vi o prazer que eles me prometiam,
sabia que essa seria a melhor noite da minha vida. Ele era o homem certo para
mim.
— Thomas, ensina-me o que é o prazer.
— Vem comigo, Anna, porque esta noite eu sou todo seu. Faça o que você
quiser de mim.
23. Puro prazer

Thomas
Quando ela me virou e, com um pequeno empurrão, de uma forma
brincalhona me fez cair no colchão, as minhas preocupações voaram pela janela.
Quem era eu para negar algo a essa mulher.
Cheguei ali furioso, mas com as melhores intenções. Eu queria deixar claro
que era eu quem não a merecia, não o contrário. Como sempre acontecia, em
apenas um instante, ela virou a situação e acabei no seu poder. Eu ainda tentei
assustá-la com um repertório de obscenidades, de sexo forte e usando a história
das punhetas. Nem isso funcionou.
Mais tarde, pensaria nas consequências daquilo que fiz. Por enquanto, bem...
Eu também sou humano, e, acima de tudo, um homem. Era impossível resistir a
essa garota.
Momentos antes, enquanto eu corria para seu quarto, pensei que aquela seria
uma oportunidade que o oficial italiano não teria desperdiçado. Eu via o desejo
quando ele olhava para ela, aquele que ele nem tentava esconder, quando Anna
estava por perto. Mas, sobretudo, naqueles momentos, eu via como ele me
olhava, como se me exortasse a uma competição, na qual ela era o primeiro
prêmio. Eu não jogaria aquele jogo com ele; não com ela no páreo. De qualquer
forma, eu sabia que Anna estava escondendo algo de mim, não era imbecil, e
sabia também que, infelizmente, Massimo estava no meio daquela história.
Ninguém conseguia me explicar como ele havia conseguido mudar a data do
interrogatório da Anna. Mais cedo ou mais tarde, eu iria descobrir o que estava
acontecendo, dessa forma, eles não iriam a lugar nenhum sem que eu soubesse.
Com ela, outra vez, a cavalo sobre mim, eu não queria mais pensar, queria
aproveitar os momentos que nos estávamos permitindo. Deixei-a brincar com os
pelos que cobriam o meu peito, seus olhos me observavam maravilhados. Suas
mãos, curiosas, tocavam gentilmente a minha pele, fazendo-me fremir. Minhas
mãos estavam apoiadas sobre as suas maravilhosas pernas. Subiam e desciam
nas coxas, cada vez mais alto, até chegar às bordas daquela pecaminosa calcinha
vermelha.
— Onde você encontrou essa maravilha?
Meus polegares esfregaram a renda lentamente, nunca alcançando a
destinação. Torturar assim as mulheres, era uma especialidade minha.
Ela me contou algo sobre a calcinha, que nem escutei. Estava completamente
concentrado no movimento das minhas mãos enquanto ela se esfregava
lentamente em mim. Rapidamente, percebi que estava em uma fantástica
desvantagem; era eu o torturado. A renda e ela, assim tão molhadas faziam um
efeito incrível no meu melhor amigo, estava ficando loucamente excitado.
— Eu queria que você pudesse se ver, Anna. Quão linda você é, quão mulher
você é.
Seus braços se fecharam ao meu redor, deixando-me preso debaixo dela e a
sua boca desceu sobre mim, em um beijo tórrido. As minhas mãos fizeram
aquilo que sonhavam há dias: o sutiã se abriu facilmente, deixando-as vagar por
aquelas maravilhas da natureza, feitas sob medida para as minhas palmas. Os
seus arrepios de prazer, me confirmaram o quão sensível era. Acariciei-a
devagar, apreciando os seus suspiros e aproveitei para lhe fazer algumas
perguntas, queria uma confirmação:
— Eu sou o primeiro homem a te tocar, Anna? Que faz você sentir prazer?
Seu 'sim', apenas insinuado com a cabeça, me fez jorrar, diretamente 'nele', o
pouco sangue que ainda fluía pelas minhas veias. Para mim, não havia nada mais
excitante do que saber que nenhum homem a tinha visto assim. O que fazia
aquele idiota brasileiro? Como ele não tinha notado uma mulher assim tão
gostosa? Não, eu não quero pensar, eu não quero ninguém entre nós.
Tentei me controlar, tinha, ainda, outra pergunta:
— Deixe-me ver como você se toca, toque-se para mim, Anna.
A minha mão se deslocou, descendo lentamente pela curva das costas até
chegar ao limite da renda, seguindo-a até na frente, acariciando-a lentamente
com os dedos. Fiz com que ela se sentasse, como estava antes e, para enfatizar o
que eu queria dizer, lentamente lambi e suguei o meu polegar, comecei a traçar
pequenos círculos concêntricos, que se abriam e fechavam, onde ela mais
desejava. Era um pequeno show erótico, todo feito para ela.
A sua respiração se aprofundou, ela se recostou para trás, oferecendo-se ainda
mais. Sua voz saiu rouca:
— Onde eu morava, não tínhamos muita privacidade. A primeira vez que me
toquei, estava nesta cama, pensando em você.
Sua resposta fez o impossível, isto é, me excitou ainda mais. Deus, esta
mulher é feita para mim!
Eu a deixei saborear o momento. No final das contas, não sei qual dos dois se
deleitava mais com aquele momento.
De repente, girei-a na cama; gostava demais dos seus gritinhos, seu perfume
me atingiu em cheio. A coisa se tornava mais séria, dependia de mim ensinar
àquele anjo o que era o prazer.
Com cuidado, coloquei-a no meio do colchão, ajeitei o travesseiro debaixo da
cabeça, deixando os joelhos pendentes fora da cama. Ela fez exatamente o que
eu esperava, ou seja, fechou as pernas com um pouco de vergonha.
Ajoelhei lentamente no chão, aproximei-me e a olhei diretamente, ordenando
de uma forma delicada:
— Abra as suas pernas, Anna. Quero ver você toda.
Ao mesmo tempo, minhas mãos se apoiaram dentro das suas coxas, abrindo-
as lentamente. Quando me coloquei em uma posição confortável, continuei
escorrendo minhas mãos para cima e para baixo. Sem nunca chegar muito em
cima.
— Apoie-se nos cotovelos e me olha, enquanto eu te devoro.
Seus olhos se abriram espantados, mas a minha menina corajosa não se
acovardou. Ela se apoiou nos cotovelos e me olhou.
Eu tinha aquela pequena rendinha vermelha na minha frente. Cheguei direto
ao paraíso!
Minha língua subiu dentro da coxa dela, acompanhada de beijos e pequenas
mordidinhas. Ela começou a gemer suavemente. Esses sussurros eram como
música para os meus ouvidos, sua respiração sem fôlego dava o ritmo, enquanto
os seus seios subiam e desciam, concluindo o espetáculo. Eu era um simples
adorador e ela, a minha musa.
Infelizmente, eu estava tão excitado, que não conseguia mais apreciar o
maravilhoso show. Mesmo que aquela noite fosse dela, o presente era inteiro
para mim.
Meus indicadores encontraram rapidamente as pequenas bordas vermelhas da
minúscula calcinha, lentamente, comecei a puxá-la. Sua cabeça lentamente caiu
para trás, mas eu ainda ouvia os seus murmúrios de prazer.
— Relaxe e deixe-me cuidar de você. Você confia em mim, certo?
Eu estava com medo de assustá-la, por aquilo eu iria fazer. Como era a sua
primeira vez, eu precisava que fosse a mais úmida possível; isso reduziria
significativamente a inevitável dor.
— Com toda a minha alma.
A sua resposta me alegrou imensamente.
— Então deite-se e aproveite. Deleite-se para mim.
Quando vi aquela pequena parte do céu, pensei que gozaria imediatamente.
Ela era perfeita, inteiramente perfeita. Intacta, pura e minha.
Levei todo o tempo necessário para fazê-la sentir o máximo prazer. Se
contorcia nas minhas mãos, na minha língua, eu tinha certeza de que eu nunca
tinha saboreado nada igual. Seu gosto era aquele do pecado eterno, seu corpo
respondia prontamente aos meus estímulos, naquele momento, eu era feito sob
medida para ela. Minha boca e as mãos eram moldadas para dar-lhe prazer. Puro
prazer!
Quando ouvi que ela estava chegando perto do êxtase, não me apressei. Sua
boca se abriu em um grito silencioso, e com uma sequência sincronizada, suas
costas se levantaram, formando um arco perfeito. Era gloriosa e eu a venerava.
Suas pernas tremiam sob minhas mãos e fiquei exaltado ao pensar que eu era o
primeiro a dar-lhe tanto prazer. Descobri, com admiração, que aquela noite iria
permanecer para sempre nos meus pensamentos.
Esperei que ela se acalmasse, gentilmente puxei-a e deitei-me ao lado dela. Eu
tirei o meu short, e, para não a assustar, mantive as boxers.
Acariciei-a lentamente em todo o corpo, quando percebi um olhar preguiçoso
que me olhava por baixo dos belos cílios. Ela era toda linda.
— Uau oficial! Se eu soubesse que era assim tão bom, eu teria experimentado
tudo isso antes.
Com essa afirmação, o meu humor se assombrou. O quê, estou com ciúmes?
Nós desfrutamos do nosso tempo, ensinei-a a me dar prazer com as suas
pequenas mãos. Na próxima vez, eu queria a boca dela em mim. Naquele
momento eu não podia arriscar, estava muito excitado.
Sua boca se abriu em um perfeito 'O' quando tirei minhas boxers, o que me
suscitou uma risada. Ainda sorrindo, peguei o preservativo que havia trazido
comigo do pomar. Quando eu o desenrolei rápido, ela me falou com uma
pequena voz amedrontada:
— Eu não sei se vai funcionar, Thomas. Você é muito grande, quero dizer, ele
é muito grande.
Seu dedinho apontou para o meu 'fiel amigo'.
— Ahh, Anna… essas palavras soam como música aos meus ouvidos.
Sorri e puxei-a para mim brincando:
— Venha aqui, que vou te mostrar.
Nos beijamos e nos exploramos, até que senti que ela estava pronta
novamente.
Movi-me para a parte de trás da cama, apoiei-me confortavelmente nos
travesseiros. Coloquei-a de novo a cavalo sobre mim e me posicionei, olhei-a
nos olhos, porque o que iríamos fazer, permaneceria com ela para sempre.
Aquela deveria ser a melhor lembrança. Para mim, já era linda, para ela, tinha
que ser perfeita.
— Estou aqui para você, Anna. Você tem o controle da situação, como e
quando você quiser. Mostre-me tudo o que você sonhou em fazer comigo.
Ela se concentrou e começou a descer devagar sobre mim. Eu a senti estreita e
completamente molhada. Ainda estávamos no início, quando ela se puxou para
cima, arrancando-me um gemido de prazer.
— Espere, Thomas. Assim você está me machucando.
Ela parou, ainda sobre mim e com uma voz voluptuosa e sensual, sussurrou
perto do meu ouvido:
— Você está pronto para mim, oficial? Sonhei com isso desde o primeiro dia
em que te vi.
Antes que eu pudesse responder, ou pelo menos entender o que ela estava
prestes a fazer, ela fechou os olhos, a cabeça inclinou-se para trás e desceu sobre
mim de uma vez, delgada, perfeita.
O meu:
— 'O caralhooo'…
Foi seguido pelo seu:
— 'Ohhhhh'…
Ela permaneceu completamente imóvel, comigo completamente dentro dela.
Com as mãos apoiadas no meu peito, antes que eu pudesse dizer qualquer coisa,
começou a se mover devagar, arrancando um gemido do fundo da minha
garganta. Deus, ela é fogo!
Pouco a pouco, ela começou a se sentir confortável e assumiu o ritmo. Na sua
inexperiência e inocência, era perfeita. Minhas mãos brincavam com o seu corpo
e meus gemidos a elogiavam.
— Se você não parar, você vai me fazer gozar.
Minha voz era rouca, lasciva.
Ela aumentou o ritmo, contraí os músculos para me conter. Minhas mãos
comandavam os seus quadris, fazendo com que ela movesse a pélvis enquanto
ela descia. Nossas respirações se fundiam no ar noturno.
Quando não aguentava mais, adicionei o meu polegar ao jogo. Quando a
toquei, fazendo os círculos sobre a sua pele molhada, ela se arqueou, jogando a
cabeça para trás, oferecendo-me aqueles maravilhosos seios. Quando peguei um
deles e mordisquei, ela gozou. Gloriosamente sobre mim.
Eu a segui como um escravo. Escravo do seu corpo, do seu perfume, dela.
Eu ainda senti o seu palpitar, quando a sua testa tocou a minha, e me abraçou.
Era um momento extremamente íntimo, sem pensar, encontrei-me repetindo
aquele gesto com todo o meu ser.
Essa doce e maravilhosa garota, sem sequer perceber, me presenteou com um
dos momentos mais emocionantes de toda a minha vida.
Lentamente, deslizamos no colchão, os nossos corações batiam sincronizados.
Ela estava com a metade do corpo deitada em cima de mim e, gentilmente, eu
acariciava as suas costas. Não lembro de quanto tempo eu não ficava assim com
uma mulher. Depois de terminar, eu as deixava. Sem mimos, sem vínculos.
Queria dizer alguma coisa, mas as palavras não saíam da minha garganta.
Quando senti sua respiração se acalmar, eu a movi ligeiramente:
— Espera que vou te trazer uma toalha.
Dei-lhe um pequeno beijo no ombro e recebi como resposta um gemido
preguiçoso. Era uma situação estranha, as palavras pesavam no ambiente. Senti
que ela também tinha algo para me dizer, mas se retinha.
Enquanto me lavava e molhava uma toalha para ela, pensei em porque não
sabíamos o que nos dizer. Minha resposta era fácil: com as garotas com quem
transava, momentos como este não existiam, simplesmente porque a essa hora,
eu costumava estar fora da porta.
A única com quem havia passado tempo depois do sexo foi Leonie, nos
conhecíamos da vida toda. Nossa primeira vez foi um desastre; éramos
totalmente inexperientes.
Quando finalmente voltei com a toalha, achei-a meio adormecida. Seu cabelo
se abria em ondas suaves sobre o travesseiro. Ela estava virada de lado, com os
olhos fechados. Tentei chamá-la, mas obtive somente um sussurro como
resposta. Lentamente comecei a limpá-la, sem movê-la, da melhor forma que
conseguia fazer.
Eu tinha que decidir se, seria um covarde e partiria sem dizer nada ou, se a
despertaria e, seria sempre um covarde, dizendo que eu tinha que partir. O
problema era que ela não merecia isso, eu não queria fazer isso. A solução veio
das suas palavras murmuradas, quando praticamente terminei de limpá-la.
— Fique aqui comigo, por favor.
Era Anna, não podia negar isso a ela. Assim, deitei-me atrás dela, inclinei-me
e subi o braço suavemente pelos seus quadris, trazendo a colcha comigo. Minha
mão foi cautelosamente capturada pela dela, que a carregou entre os seus seios,
enquanto cruzava os dedos com os meus.
Quando eu estava prestes a adormecer, eu a ouvi sussurrar:
— Obrigada por esta noite maravilhosa.
Adormeci, pensando que era eu que deveria agradecê-la por uma noite
inesquecível.
24. Adeus?

Anna
Que covarde fingir que estava dormindo depois de tudo aquilo o que havíamos
compartilhado. Eu estava com medo de confessar-lhe os meus sentimentos, de
parecer pegajosa, dizendo-lhe que eu havia passado a melhor noite da minha
vida ou, pior ainda, dizendo-lhe que me havia arruinado para os próximos
homens que eu viesse a conhecer; que todos desapareceriam, se comparados a
ele.
Em alguns momentos, foi muito delicado, fez-me sentir uma mulher especial,
maravilhosa, adorada, além de ser doce e paciente com a minha falta de
experiência. A mão, a boca e o... dele, tinham um enorme poder sobre mim.
Eu havia me preparado para a dor, mas, estava tão pronta e esperava com tanta
impaciência por aquele momento que, em um instante a senti, e, depois, o prazer
a superou. Apenas um momento e em seguida... prazer puro, animal e desejo
daquele homem. Nunca estava satisfeita.
Ele levou tanto tempo tomando banho que, quando finalmente voltou, eu
realmente estava adormecendo. Senti a sua delicadeza em me limpar e deixei-me
embalar pelas suas mãos experientes.
Eu só queria que ele ficasse comigo, mesmo que tivesse que implorá-lo.
Quando ele se deitou atrás de mim, cruzei os nossos dedos para deixar claro que
eu queria ele ali comigo. Se possível, para sempre.
Infelizmente 'para sempre', não existia para nós.
Enquanto a sua respiração ficava mais pesada nas minhas costas, a minha se
tornava mais leve. Na manhã seguinte, eu implementaria o plano junto a
Massimo.
Havia ligado o alarme no telefone, como se pudesse dormir em uma situação
como aquela. Juntamente com os momentos que havia acabado de experimentar,
tantas hipóteses passavam na minha cabeça, sobre o que poderia acontecer no
dia seguinte.
Massimo me alertou que havia uma dica sobre onde as irmãs da minha
comunidade poderiam estar, junto com outro grupo de garotas. Infelizmente, ele
não podia me dizer se elas estavam bem. Nosso plano seria completado
precisamente com a chegada de Joaquim. Uma coincidência incrível!
No dia seguinte, eu teria as respostas que estava desesperadamente
procurando, talvez até veria novamente as queridas irmãs; eu estava
completamente confiante de que o plano funcionaria. Massimo me assegurou
que a minha participação era fundamental.
No início da manhã, eu deveria buscar Joaquim no aeroporto, com um
motorista enviado pelo Massimo. Nós nos encontraríamos com ele mais tarde e
ele nos daria mais detalhes sobre onde as meninas estavam. Depois disso,
juntamente com alguns dos seus colegas, policiais de sua confiança, partiríamos
para a missão. Eu queria muito ir com eles, mas não tinha certeza de que
Massimo me deixaria.
Ouvi Thomas se mover, provavelmente para ir embora. Com tanta tristeza,
tive a confirmação daquilo que eu tinha escutado na praia, sobre seu
comportamento. Nunca permanecia, com nenhuma. Incluindo-me.
Fingi estar dormindo, vi que ele estava olhando algo no telefone, ainda
sentado na cama. Com a luz vinda da tela, pude ver que ele esfregava a mão,
com nervosismo, nos cabelos. Eu não queria ser a causa de seu desconforto, e eu
nem queria que ele percebesse que estava acordada e olhando para ele.
Ele levantou-se lentamente, suspirou, procurando suas roupas no chão.
Quando, antes de sair, ele veio em minha direção e gentilmente beijou minha
testa, meu coração saltou uma batida.
— Boa noite Anna.
Ele sussurrou.
Quando fechou a porta lentamente atrás dele, as primeiras lágrimas já
molhavam o meu rosto.
— Boa noite, Thomas.
Continuei suavemente:
— Eu te amo.
Era a primeira vez que usava essa frase, embora ele provavelmente nem a
tivesse ouvido. Agora eu tinha uma última e preciosa memória para levar
comigo, para sempre. Depois do dia seguinte, eu tinha certeza de que ele não me
perdoaria.

***

Antes do amanhecer, o som do alarme me despertou de um sono leve com


sonhos confusos. Havia preparado tudo no dia anterior. Assim, tomei um banho
rápido e me vesti. Eu ainda queria escrever uma carta a Thomas. Eu a tinha na
minha cabeça há dias, só faltava colocá-la no papel.
Peguei o bonito papel de carta junto com o envelope, que eu tinha comprado
alguns dias antes no supermercado. Eu colocaria meus sentimentos, minhas
emoções, em preto e branco. Hoje em dia, não se usava mais, mas, certamente,
não teria escrito a ele um e-mail.
Massimo tinha sido muito claro quando me advertiu de que não deveria contar
a ninguém sobre o nosso plano, mas eu não podia simplesmente desaparecer sem
nenhuma explicação. Thomas e a sua família não mereciam.
Depois de terminar a carta, coloquei-a no envelope com um singelo presente
para ele, peguei a jaqueta laranja clara e a pequena bolsa, na qual eu coloquei os
meus documentos, dinheiro, telefone e saí.
Um grande carro preto me esperava longe o suficiente da propriedade de
Katrin. Ele piscou os faróis quando me viu caminhando pela estrada. Eu havia
pedido, como precaução, para me esperar longe, eu sabia que o sono do Thomas
era leve e o silêncio que reinava naquele país, à noite, era impressionante. O
motorista me cumprimentou friamente, fez um gesto para que eu me sentasse no
banco de trás e, sem outras palavras, partimos para o aeroporto.
Meu cansaço e o silêncio que reinava no carro me fizeram adormecer.
O motorista me acordou com um golpe de tosse estratégico e me avisou que
havíamos chegado ao aeroporto de Zurique. Eu vi as luzes do amanhecer,
agradeci-o, peguei as minhas poucas coisas e saí do carro.
Minhas atribuições eram simples: deveria esperar observando, no grande
painel eletrônico, pelo momento em que o voo de Joaquim aparecesse como
pousado. Depois disso, teria que mandar uma mensagem para o Massimo, que
estava em uma importante reunião nas proximidades. O motorista dele voltaria
para nos pegar e nós o encontraríamos no escritório, onde ele nos informaria
sobre o plano para a recuperação das meninas.
A minha participação na segunda parte do plano ainda não era clara. Poucos
dias antes, quando ele me contou sobre a sua ideia, eu respondi, muito
claramente, que queria participar até o final. Massimo me tranquilizou dizendo
que eu já estava ajudando em uma parte fundamental do plano. Mas, qual era
essa parte fundamental? Eu estava esperando que não fosse aquela, de pegar o
Joaquim, porque me fazia sentir mais como uma secretária. Afinal, ele poderia
ter enviado o próprio motorista, com o nome e sobrenome escritos em um
papelão, como eu havia visto muitos naquela manhã.
Parei para tomar um rápido café da manhã na cafeteria, já lotada, perto da área
de desembarque, fiquei atenta ao painel. Bebi o cappuccino, enquanto pensava
em algo que Thomas me havia dito há alguns dias, e, ao mesmo tempo, tentava
me arrancar algumas informações sobre as minhas reuniões com o Massimo.
Preste atenção ao oficial Milanese, Anna.
A sua voz bonita ecoava na minha cabeça e eu podia claramente vê-lo na
minha frente, seu rosto preocupado, enquanto ele continuava: Ele é
extremamente ganancioso e competitivo. Descobri que ele deseja chegar ao
cargo de vice-diretor na Europol. Se ele sair vencedor deste caso, o lugar
certamente será seu. Eu tenho a impressão de que ele faria qualquer coisa pelo
seu próprio sucesso.
No momento daquela conversa, havia pensado que o Thomas estava
exagerando. O que me importava se Massimo assumisse o cargo de vice-diretor?
E por que isso era tão importante para Thomas? Eu não havia dado muito peso
ao seu aviso, pensei ser um problema de competição entre homens. No final,
lembrei-me de haver feito com que ele se irritasse, tornando-se vermelho quando
perguntei se, por acaso, estava com ciúmes por não ter sido convidado para as
reuniões na cafeteria.
Esperando por Joaquim, sentada sozinha naquele aeroporto, refleti sobre a
rivalidade deles. Talvez fosse um sinal de um interesse mais profundo do
Thomas por mim? Deus, eu esperava que sim, com todo meu coração,
especialmente depois da nossa última noite. Imaginei que fazer sexo fosse lindo,
excitante, íntimo, mas não tinha nunca imaginado o quão perfeito poderia ser, se
feito com a pessoa certa. Pelo menos foi para mim.
O sinal intermitente no painel de desembarque me distraiu dos meus
devaneios, alertando-me que o voo de Joaquim tinha acabado de pousar.
Alisei nervosamente a saia, joguei os restos da minha refeição no lixo e
caminhei em direção à área de desembarque, nas proximidades, enquanto
escrevia uma mensagem rápida para Massimo. Depois daquilo que me pareceu
uma eternidade, vi aparecer a cabeça de Joaquim, com seu inconfundível cabelo
escuro, na multidão. Ele saiu da área de entrega de bagagem e tinha que entrar
na área de controle, por isso ele ainda não me tinha visto.
Em seus ombros, ele carregava uma mochila, e parecia não ter nenhuma outra
bagagem. Estranho... onde estão as suas roupas?
No momento em que nossos olhos se encontraram, um oficial perto da porta
de saída o chamou para controle. Ele me acenou com a cabeça, e seguiu o oficial
atrás de uma parede de vidro fumê, através da qual eu só podia ver os seus
contornos. Aproveitei o tempo e reescrevi outra mensagem para Massimo, na
qual disse que Joaquim estava passando no controle de bagagem e estava prestes
a sair. Sua resposta chegou quase imediatamente. O motorista já havia saído para
nos pegar. Tínhamos que sair e esperá-lo lá onde ele me havia deixado antes.
Estava tão emocionada, mal podia esperar para dar as boas notícias para o
Joaquim. Ele ficaria muito orgulhoso de mim!
Depois que a bagagem dele foi verificada, vi-o caminhar na minha direção.
Ele parecia cansado, olhava-se ao redor, verificando o perímetro. Assim como
fazia sempre Thomas. Sempre oficiais na minha vida.
Quando ele me abraçou, meu corpo se retirou involuntariamente. Eu não
podia fazer nada, ele não era Thomas. Eu relaxei, quase feliz quando ele nem
tentou me beijar.
— Olá Joaquim. Você fez um bom voo?
Produzi o meu melhor sorriso e comecei com uma conversa neutra.
— Sim. Foi tudo bem, vamos, temos que ir embora.
Sua resposta pronta e um tanto seca me confundiu.
Quando viu a minha expressão, sorriu-me rapidamente enquanto já verificava
o telefone e me levava, não sabia bem onde. A sua outra mão se mantinha
firmemente na minha, talvez por medo de que nos perdêssemos naquele mar de
pessoas. Quando ele percebeu a relutância em que eu estava tentando dissimular,
disse:
— Descobri que não gosto de voos longos, só isso. E para piorar, aquele
policial idiota na alfândega... todo aquele fuçar na minha mochila e um monte de
perguntas estúpidas.
Eu não gostei do tom de voz dele.
— Desculpa, mas você não é um policial? Você não deveria falar assim sobre
um colega.
A frase saiu por conta própria, eu estava começando a confrontar Joaquim e
Massimo. Nenhum dos dois tolerariam uma afronta. A sua resposta me
surpreendeu:
— Sim, claro. O que ele faz para ganhar a vida? Merda de controle na
alfândega, neste país rico? Quanto ele arrisca a vida todos os dias? Por qual
salário?
O sarcasmo escorria nas suas palavras. Esse era um lado da sua pessoa que eu
nunca conheci e eu decididamente não gostava.
A sua mão continuava a restringir a minha, enquanto continuávamos
caminhando. Ele procurava algo nos painéis que passavam sobre as nossas
cabeças; certamente, ele estava com pressa.
— Joaquim, para onde estamos indo?
Minhas pernas pararam, puxando o braço dele para trás:
— Nós não deveríamos vir por aqui.
Olhando para mim com cautela, ele voltou ao meu lado.
— O que deveríamos fazer, Anna?
A pergunta dele havia um tom suspeito.
— É sim... na verdade, eu tinha que ligar para o Massimo. Ele enviou o
motorista que está nos esperando.
— Massimo, quem é Massimo?
A resposta a essa pergunta era simples. Mas em vez de pronunciá-la, outra
frase saiu da minha boca.
— Um colega do Thomas. Thomas Graff.
— Ahh, sim, o colega, não lembrava mais o nome dele. Eu já conversei com
ele, não se preocupe, tivemos algumas mudanças.
Ele parou na frente de um elevador e pressionou o botão.
— Como? Algumas mudanças? Eu acabei de escrever para ele.
Peguei o telefone da bolsa para verificar se Massimo me havia escrito.
— Ah, sim? Deixe-me ver.
Ele tirou um pouco bruscamente o telefone da minha mão e prosseguiu:
— Ahh, isso…? Não se preocupe, nós decidimos de outra forma.
Ele olhava no telefone as mensagens trocadas entre mim e Massimo, enquanto
entrávamos no elevador, que depois de alguns segundos parou na frente de um
estacionamento. Enquanto caminhávamos em direção a uma agência de aluguel
de carros, ele me fez algumas perguntas sobre a minha vida.
Eu me distraí, comecei a contar-lhe sobre este maravilhoso país, enquanto ele
passava o seu telefone para uma recepcionista que, depois de verificar no
computador, pegou as chaves de um painel atrás dela, deu-lhe algumas
explicações e nos disse adeus, respondendo ao telefone que estava ao lado dela,
novamente tocando.
Entramos em um belo carro estacionado na enorme área de aluguéis. Joaquim
colocou o telefone dele em um pequeno aparelho que havia tirado da mochila e
prendeu-o ao vidro do carro. Depois de apertar algumas teclas, a indicação de
uma estrada a ser seguida apareceu na tela. Thomas me havia contado sobre os
navegadores de carro integrados aos telefones. Olhei-o com curiosidade,
ouvindo uma voz que indicava o caminho para sair do aeroporto.
Quando percebi que ele não ligava a carro, tirei os olhos do telefone e olhei
para ele, percebendo que ele demonstrava uma expressão triste no rosto. A sua
voz era baixa, zelosa:
— Você mudou tanto, desde a última vez que eu te vi, quanto? Um mês atrás?
Mas você ainda é minha pequena e inocente Anna.
Moveu o corpo para frente, acariciando os meus cabelos e, aproximando o
rosto do meu, fechou os olhos, como se quisesse me beijar. Minha cabeça
relutante foi para trás. Ele não era Thomas. Meu corpo já não aceitava carícias
de nenhum outro homem.
Quando sentiu a minha recusa, abriu os olhos lentamente, puxando-se para
trás. A sua voz saiu baixa, enquanto lentamente levava as mãos ao volante:
— Você está certa, talvez seja melhor assim.
Ligou o carro e partimos para o nosso destino.
O que eu podia dizer a ele? Desculpar-me porque meu coração encontrou
alguém? Explicar o que sentia por Thomas? Quanto minha vida tinha mudado
naquele pequeno período? Eu não queria dar-lhe nenhuma explicação, assim
olhei pela janela para a paisagem, enquanto o silêncio nos oprimia.
Na tentativa de transformar o momento em uma conversa amigável, perguntei
se ele tinha notícias sobre a minha comunidade. Eu havia falado apenas uma vez
com a irmã Benedetta, via Skype, do telefone do Thomas. Nós conversamos
rapidamente, porque eu sabia que ele pagava pela ligação.
Joaquim me respondeu brevemente, que tudo estava indo bem, as irmãs
estavam iguais, como sempre. Era assim que ele se referia às irmãs? Iguais?
Como sempre? Eu estava prestes a fazê-lo notar a falta de respeito por aquelas
que praticamente o criaram. Quando ele retornou ao seu tópico favorito de
discussão: a corrupção no país, o perigo de fazer o trabalho de policial, o salário
desdenhoso, blá... blá... blá.
Notei que a paisagem começava a mudar, transformando-se em campos
cultivados, assim perguntei para onde estávamos indo.
— Olha.
Ele apontou na tela do telefone:
— Estamos quase chegando.
Na verdade, a voz que provinha do navegador nos sinalizou para entrar em
uma rotatória e sair na segunda rua, prosseguindo reto para chegar ao nosso
destino. Ele seguiu as instruções e, logo depois, parou o carro perto de um posto
de gasolina com uma pequena loja ao lado. Enquanto saía do carro, ele me disse:
— Espere aqui, já volto. Só vou tomar um café, não pretendo dormir durante o
encontro com Massimo.
Sua risada saiu forçada e sua expressão, muito estranha, quase falsa.
Ele pegou a mochila que estava no banco de trás e saiu, deixando-me sozinha.
Aproveitei a oportunidade para procurar o meu telefone; queria falar com
Massimo, para saber se tudo estava bem. Sentia algo estranho na atitude do
Joaquim. Provavelmente era apenas cansaço, talvez ciúmes, mas havia aprendido
a confiar nos meus instintos.
Quando não encontrei o telefone, lembrei-me de que o Joaquim o havia pego
antes, para verificar as mensagens. Naquele momento, eu o vi sair da pequena
loja e se dirigir para uma porta lateral. Abri a janela e pedi o telefone. Em
resposta ele gesticulou que iria ao 'banheiro' e, com as mãos ele me acenou para
esperar, porque ele retornaria brevemente.
Enquanto esperava, olhei o que havia no entorno. Ele tinha estacionado o
carro longe da bomba de gasolina, em um lugar isolado. Na minha frente, em um
parque, vi mesas de piquenique e uma área para crianças; era um lugar muito
agradável e bucólico, um daqueles para fazer uma excursão com a família.
Naquela hora da manhã ainda estava vazio.
A Suíça era um país com muitas facetas, certamente o escritório onde
Massimo estava era ali perto, escondido em algum lugar. Thomas me havia
contado, que os bunkers usados para a observação durante a segunda grande
guerra, haviam sido preservados e que, se você olhasse atentamente a paisagem,
você poderia identificá-los, perfeitamente integrados à natureza.
A porta do carro se abriu e Joaquim entrou. Percebi que ele já estava melhor,
seus olhos brilhavam e ele parecia muito mais vigilante do que quando paramos,
alguns minutos antes. Aproveitei para lhe perguntar:
— Você pode me passar o meu telefone? Quero avisar Massimo que estamos
chegando.
Eu não queria parecer desconfiada. No final, era o meu amigo Joaquim, por
que eu deveria ter suspeitas dele?
— Espere que já te pego, imediatamente.
Ele se voltou para pegar a mochila que havia acabado de colocar no banco de
trás, e fazendo aquele movimento, me olhou diretamente nos olhos. Suas
pálpebras piscavam constantemente, o seu rosto parecia estranhamente feliz.
— Você definitivamente está muito mais bonita do que antes, como se isso
fosse possível. Agora você me dá aquele abraço? Aquele que você evitou antes.
Vai... apenas um, pelos velhos tempos. Vem, vem aqui comigo.
Seus braços se abriram, não me deixaram escapar, pelo canto dos meus olhos
eu vi a sua mão voltando da mochila com o meu telefone. Um abraço que eu
poderia dar-lhe, pelos velhos tempos...
Coloquei-me cautelosamente nos braços dele, vi o início de um sorriso
satisfeito. Virei a cabeça para o outro lado, queria deixar claro que um beijo meu,
ele não receberia.
Nos abraçamos e ele começou a me apertar cada vez mais, me machucava,
quando abri a boca para pedir que ele me deixasse, senti que finalmente
começava a afrouxar a presa. Mais relaxada, comecei a voltar para o meu
assento, quando, de repente, senti algo como uma picada, seguido da uma
descarga elétrica.
Meu corpo reagiu instintivamente contra qualquer comando, arqueando-se
para trás, meus músculos, em um primeiro momento se contraíram em um
horrível espasmo e depois se relaxaram. Meu coração pulsava
incontrolavelmente, minha boca se abriu em um grito silencioso. Uma dor
terrível me atingiu.
Ele me observava distante, como se olhasse um experimento, as costas contra
a janela do carro. Aquele que achei que fosse o meu telefone, ainda estava nas
suas mãos.
Meu corpo entrou em colapso. No banco do carro, minha respiração saía aos
trancos junto com alguns gemidos. Não conseguia nem me mexer, muito menos
falar. Meu cérebro emitia uma série de comandos que o corpo não conseguia
executar: abra a porta e corra, peça ajuda, grite, fuja! Era como se fosse uma
espectadora externa, olhando para mim mesma, sem poder agir.
— Não se preocupe, relaxe.
Sua voz soava lá longe:
— É um novo protótipo, uma arma de mini atordoamento, deixada no
banheiro por um dos meus colaboradores, juntamente com outras coisas úteis
para o nosso passeio.
Ele ajeitou a minha cabeça apoiando-a no casaco contra a janela, de forma
que, se alguém nos tivesse olhado de fora, pensaria que estava adormecida. Ele
ligou o carro e, assobiando, partiu.
— Agora estaciono dentro daquela bela floresta e podemos conversar, minha
bela Anna. Chegamos com antecedência.
Ele olhou para minhas pernas, lambendo os lábios, puxou minha saia para
cima e pôs uma mão na minha coxa, começando a acariciá-la lentamente,
subindo cada vez mais, enquanto dirigia. Eu nem conseguia tirar suas mãos
atrevidas do meu corpo.
Oh, Deus, o que ele fez comigo?
Naquele momento, meu coração gritou:
Thomas…
25. A floresta

Thomas
Acordei de sobressalto. Olhei em volta de mim e percebi que estava na minha
cama. Lembrei-me da noite anterior, espreguicei-me feliz. Eu deveria ter muito
cuidado, sair do quarto da Anna, no meio da noite, tinha sido mais difícil do que
o esperado. A coisa tinha que ser apenas uma diversão para nós dois, nada mais.
Apenas bons momentos entre dois adultos.
Então, por que eu sentia esse peso no meu coração? Eu não queria me sentir
muito bem quando estava com ela, depender da sua presença sedutora ou me
deixar encantar pelo seu corpo maravilhoso. O que está acontecendo comigo?
Alguns anos antes, minha irmã me havia advertido que eu era muito jovem
para passar o resto da vida sozinho. Ela achava insalubre que eu reprimisse as
minhas emoções e fechasse o meu coração daquele jeito. Se eu quisesse amar
novamente, Anna certamente seria a candidata perfeita.
Vesti-me confortavelmente; era fim de semana e eu não estava de plantão no
trabalho. Passaria na casa da minha mãe para cumprimentá-la e receber notícias
da Mia. Quem sabe ali encontraria Anna.
Quando cheguei, Emma estava sentada à mesa, verificando recibos e apenas
me cumprimentou. Minha mãe, que estava limpando a mesa, cumprimentou-me
feliz, enquanto me contava do contato telefônico de Mia, em uma excursão nas
montanhas, com seus avós e primos.
Notei que na mesa ainda havia a outra xícara colorida que Mia tinha dado a
Anna alguns dias antes. Mudei a minha tigela para uma ainda maior, a enchi com
frutas do bosque recém-lavadas, adicionei mel, musli e terminei com uma porção
generosa de iogurte natural. Isso deveria ser suficiente para alimentar um
batalhão, pensei, enquanto afundava a colher na mistura saudável.
— Alguém está com muita fome.
O olhar atento da minha irmã me fez pensar que ela poderia ter me visto com
Anna no pomar. Às vezes, nas noites quentes, ela e Hans caminhavam por horas.
A esse ponto, não me importava se eles nos vissem. Nós éramos adultos e de
consenso, como a própria Anna havia dito.
— Onde está a Anna?
Minha pergunta deveria parecer inocente aos ouvidos delas. A sobrancelha
arqueada da minha irmã me mostrou que ela sabia algo mais sobre as minhas
escapadas. Minha mãe respondeu enquanto enxugava as mãos:
— Ontem, depois do jantar, ela me disse que não estava se sentindo bem,
mencionou uma dor de cabeça. De qualquer forma, ainda não a vi, talvez você
possa ir até seu quarto? Se ela não se sente bem para descer, podemos mandar-
lhe uma xícara de chá com alguns biscoitos.
Enquanto isso, ela já abria a porta do armário, acima dela, para verificar qual
biscoito ela poderia usar.
Por que Anna disse isso à minha mãe? O piquenique foi uma surpresa, isso
sem mencionar o que aconteceu depois. Ela não estava doente, isso era certo. O
que você está aprontando, Anna? Eu rapidamente terminei o café da manhã, sob
os olhos atentos da minha irmã, e avisei-as que eu iria verificar.
O dia estava quente e agradável, certamente ao pôr do sol teríamos uma
tempestade. Deveríamos aproveitar dias como esse, pensei, enquanto caminhava
e olhava os cavalos pastando pacificamente nas proximidades. Eu posso
convidar Anna para ir à praia.
Cheguei rápido ao seu quarto, bati na porta e, notando a ausência de barulho,
abri-a lentamente.
— Anna, você está aí? O que você contou a minha mãe ontem? Que história
era aquela que você não se sentia bem?
O sorriso nos meus lábios morreu quando percebi o silêncio. A cama tinha
sido refeita, tudo parecia em ordem. Esperei, escutando os pequenos rumores à
minha volta. Percebi um silêncio incomum no ar, nenhum barulho vinha do
banheiro.
— Anna, você está aí?
Aumentei a voz. Se ela estivesse por perto, era impossível não me ouvir.
Olhei em torno e notei um envelope colorido e juvenil apoiado sobre a mesa.
Acima, o meu nome escrito com a sua delicada caligrafia. Quando abri o
envelope, a pequena medalha de São Miguel escorregou e caiu entre os meus
dedos. Meu coração me disse que algo estava realmente muito errado.
Preocupado, sentei-me, dei um suspiro encorajador e abri a carta.

Querido Thomas,
Não foi difícil para mim escrever essas palavras. Na verdade,
algumas delas vagam pela minha mente há algum tempo,
precisamente, desde quando te abracei naquele hospital.
Após a tragédia que poderia ter tido um epílogo funesto naquela
manhã, Deus me deu o mês mais maravilhoso que eu poderia passar.
Graças a você, sua família (e aqui incluo todos, até mesmo e,
principalmente, Betsy), descobri outra face do amor. Eu fui bem-vinda
entre vocês, nos vossos corações, de uma maneira absoluta, nunca
encontrarei palavras para agradecer. Especialmente você, que me fez
conhecer o amor, como nunca imaginei que fosse possível.
Espero que um dia você possa prová-lo novamente; o amor é um
sentimento único, não o despreze. Para mim... eu não sei o que o
futuro trará. Eu nem sei se me será permitido sentir essa emoção
novamente. Se isso acontecer comigo, se eu tiver tanta sorte de haver
uma segunda chance de amar, não vou desperdiçá-la.
Ame Thomas, e deixe-se ser amado. É o que meu coração deseja
para você.
Ame alguém como se não houvesse um amanhã, como se ela nunca
te bastasse, como se o som da sua voz fosse suficiente para encher o
teu coração de alegria. Ame Thomas, como eu te amei desde a
primeira vez que eu te abracei.
Deixo, como um dom a você, a minha medalhinha de São Miguel.
Que ele possa proteger você sempre, como fez comigo.
Para sempre tua,
Anna.
Ps. Se você quiser me ver de novo, por favor, perdoe-me. Sem te
ouvir, encontro-me numa situação da qual não sei como sair.

***

O que você fez, Anna?


A primeira coisa que fiz foi chamá-la enquanto estava procurando por
qualquer pista. Imaginei, que no meio daquela história entrava o oficial
Milanese. Na minha cabeça, as palavras que havia acabado de ler, e as imagens
da noite que tínhamos passado juntos se misturavam, mas, sobretudo, eu sentia
uma crescente apreensão. Você não pode me amar, Anna, você não pode!
Coloquei a medalhinha rapidamente no bolso do short. Eu a guardaria na
minha carteira, em segurança, até que lhe devolvesse. Pertencia a ela, não a mim.
Eu quase joguei o telefone na parede quando a chamada foi parar
automaticamente na secretária eletrônica. Para onde você foi?
Continuei a tentar com o telefone no modo viva voz, enquanto procurava algo
no armário, qualquer coisa que pudesse me dar um sinal. As roupas ainda
estavam ali, dobradas, em ordem, isso era uma boa notícia.
Será que ela escapou rapidamente por minha causa? Por aquilo que
aconteceu entre nós, por que eu não correspondo aos seus sentimentos? Poderia
ser essa, a situação a qual ela se referiu?
Eu tinha que me concentrar em encontrá-la, somente depois eu pensaria sobre
o que tínhamos feito.
Não encontrei nada no armário, na pequena lata de lixo ou na mesa de
cabeceira. A secretária eletrônica do telefone respondia sem sequer tocar.
Irritado, verifiquei embaixo do colchão e da cama.
Virei-me para a estante de livros, onde deixávamos os antigos registros do
meu pai. Felizmente, não estava cheia. Dada à quantidade de poeira depositada
sobre os documentos, sabia que ali não encontraria nada. Encontrei o álbum de
fotos da minha infância, ao lado daquele de Emma. Eles estavam limpos, um
sinal de que alguém os tinha folheado.
Infelizmente, nem ali encontrei nada. Meus olhos rapidamente revisaram os
livros antigos que estavam em um canto. Alguns deles estavam limpos, sinal de
manuseio recente. Comecei a verificá-los. Olhei-os rapidamente, decidi e, para
ganhar tempo, agitá-los com as páginas giradas para baixo, procurando
desesperadamente uma pista que pudesse me ajudar a entender onde ela estava.
De um deles, deslizaram algumas folhas de papel que caíram no chão. Elas
tinham sido cuidadosamente dobradas, colocadas separadamente no meio de
várias páginas, para não fazerem volume e se tornarem imperceptíveis aos olhos.
Quando eu abri a primeira folha, lembrei-me de como aquela jovem era astuta,
mas também teimosa. Em todos os papéis encontrei as suas anotações. Alguns se
referiam a outras associações de voluntários, mas também a organizações contra
a escravidão, o tráfico de drogas, órgãos e seres humanos.
Certamente Anna não havia escutado o meu primeiro aviso, quando a informei
claramente sobre quem deveria investigar as jovens desaparecidas. Certamente,
no seu tempo livre ela estava investigando e, com certeza, havia coletado muito
material.
O próximo passo foi chamar o oficial Milanese. Eu poderia apostar que, por
trás dessa história, estava ele, atiçando Anna. Infelizmente, seu telefone também
me levava à secretária eletrônica, onde a sua estúpida voz cantorina, que eu
estava começando a odiar, dizia para deixar uma mensagem.
— Oficial Milanese, aqui é Graff, polícia suíça. Nossa testemunha, Anna
Giulianni, desapareceu esta manhã. No seu quarto, encontrei algumas
informações que me levaram a acreditar que você sabe algo mais, devemos
conversar imediatamente. Chame-me!
O pedido era peremptório e não me interessava se ele gostasse ou não. Eu
queria respostas, não a sua amizade.
A próxima chamada foi para Adam, que estava de plantão na estação. Ele
ficou preocupado quando lhe expliquei a situação. Concordamos em nos
encontrar na estação de polícia; ele informaria ao capitão. Meu telefone deveria
permanecer livre, caso alguém tentasse entrar em contato comigo. Peguei todas
as folhas encontradas e, apressado, fui para casa. Perto do pasto, encontrei o
senhor Schmidt e ele confirmou que ainda não tinha visto Anna.
Na passagem, informei rapidamente a minha mãe sobre a situação. Eu tinha
pouco a dizer naquele momento, tentei acalmá-la dizendo que enviaria notícias o
mais rápido possível.
O próximo passo foi tentar interceptar o telefone de Anna. O aparelho tinha
uma aplicação de localização que, naquele momento, me dizia que o telefone
estava sem sinal e me dava como a última posição, algumas horas antes, o
aeroporto de Zurique. Era para lá que eu iria com Adam. Era bastante
improvável, porém, perguntei-me se ela não estava voltando para o Brasil. Não
definitivamente não, sem aviso prévio. Ela não faria isso.
Corri para casa, vesti o uniforme, que me traria benefícios no aeroporto, tentei
outra vez sem sucesso chamá-la e localizar o telefone. Maldita tecnologia! No
momento em que você precisa, costumeiramente ela te deixava de mãos vazias.
Quando cheguei à estação, Adam já havia chamado o escritório do Massimo
sem obter resposta. Aparentemente, ninguém trabalhava naquela repartição, no
fim de semana. Nenhum número para emergências, porque aquele era um
escritório administrativo. Em caso de emergência, o site informava para entrar
em contato com o escritório da polícia local. Perfeito!
Nossa segunda chamada foi melhor sucedida. O telefone do capitão, que antes
estava sem sinal, tocou e, quando ele respondeu, nos informou que estava
fazendo uma caminhada com a sua esposa, nas montanhas. No entanto, nos deu
o número pessoal do oficial italiano e, preocupado, nos avisou que voltaria o
mais rápido possível, para nos ajudar.
Na mesa onde estavam todos os documentos do caso de Anna, Adam, lívido
de raiva, tentava entrar em contato com o telefone do Massimo.
— Maldito idiota que nem sequer responde o próprio telefone pessoal. Eu
seria capaz de matar aquele oficial!
Olhando para mim com seriedade, ele continuou:
— Merda Thomas, tínhamos que ficar de olho nele. Era óbvio que ele estava
planejando algo. Anna sozinha não poderia ter feito muito.
— Eu não tenho tanta certeza, Adam. Olhe as informações que ela coletou,
aparentemente sozinha.
Abri todos os relatos das suas pesquisas sobre a mesa, disse a ele onde os
havia encontrado, e, também, o último local relatado pelo número do telefone.
Ele olhou rapidamente para os papéis que lhe mostrava, assobiando:
— Mas olha só... ela estava agindo sob os nossos narizes. Eu acho que ela tem
o olfato de uma policial. Nesse momento, estou me sentindo como um idiota.
Passei a mão nos cabelos com raiva, caminhava para cima e para baixo como
um leão em uma jaula.
— Se você é idiota, o que eu seria? Eu a via todos os dias, nunca percebi nada
incomum. Na verdade, eu tinha certeza de que ela havia me escutado, enquanto
ainda estava no hospital.
Ele olhou seriamente para mim:
— Mulheres como Anna não se deixam comandar, Thomas. Ela veio do outro
lado do mundo sozinha e poderíamos imaginar que ela não voltaria sem
respostas. A única coisa boa que posso deduzir, nesse momento, é que ela não
está indo embora. Não faz sentido.
Ele continuou:
— As perguntas que temos para nos fazer são: qual é o plano dela? Como ela
poderia recuperar aquelas garotas? O que o aeroporto tem a ver com isso? Tenho
medo de que apenas Massimo possa nos dar algumas dessas respostas.
Tendo mencionado o aeroporto, lembrou-me a minha ideia.
— Vamos para o aeroporto, verificamos os vídeos da segurança e vemos o que
ela estava fazendo lá. Com um pouco de sorte, os filmes nos darão uma ideia
para o próximo passo.
Encontrá-la naquele aeroporto, sempre lotado, seria praticamente impossível,
mas não tínhamos outras pistas.
Peguei as chaves do carro e, Adam, os documentos que poderiam nos ajudar.
O tempo passava rápido, o telefone a indicava no aeroporto há mais de duas
horas. Minha apreensão aumentava com os minutos que pareciam voar.
Eu já havia ligado o carro e Adam estava colocando o cinto de segurança
quando meu telefone, apoiado no console, tocou. O nome Milanese apareceu na
tela. Antes de poder responder, Adam pegou no meu braço.
— Não é a melhor hora para se irritar, precisamos de informações. Mais tarde,
vamos pegá-lo juntos. Agora vamos nos concentrar na Anna, você quer que eu
responda?
Respirei fundo para me controlar, a minha voz saiu baixa, calibrada.
— Você tem razão, mas eu respondo. Não se preocupe.
— Pense na Anna, Thomas.
Apertei o botão do modo viva voz e escutei a fala preocupada do oficial
Milanese, que encheu o ambiente.
— Oficial Graff, onde você está? Temos uma situação urgente que deve ser
resolvida.
— Estou na frente da delegacia de polícia. A situação é relacionada com a
Anna?
O rosto apreensivo de Adam refletia o meu. O que aconteceu com ela?
— Sim, infelizmente, a jovem está envolvida. Estou enviando um helicóptero
para te pegar. Onde ele pode pousar?
Adam respondeu antes de mim.
— Massimo, sou eu, Adam. Ele pode pousar perto da estação de bombeiros,
ali tem um heliporto. Vou enviar-lhe as coordenadas imediatamente, estou junto
com Thomas.
Liguei o carro e saí rapidamente, enquanto conversávamos. Felizmente, a
estação de bombeiros era ali perto.
— Nós já estamos indo para o heliporto, diga o que aconteceu. Anna está
bem?
— A informação que tenho é que, no momento, ela está mantida refém por um
homem, mas está bem, apesar das circunstâncias.
— Chega de falar asneiras, Massimo. O que você fez com ela? Como você a
envolveu nessa merda?
Quando eu colocasse minhas mãos no oficial Milanese, restariam poucos
ossos inteiros no seu rosto. Sua voz continuou defensiva:
— A testemunha estava me ajudando, voluntariamente, em uma captura.
Estávamos observando tudo de perto, mas a situação fugiu do nosso controle.
Nesse momento, o homem que a mantém refém, requer a sua presença, oficial
Graff. Ele diz que vai falar somente com você.
— Ele está armado? Quantos policiais estão na área? Você pediu reforços?
Tantas perguntas passaram pela minha cabeça, nem sabia qual fazer primeiro.
— Eu já estou na área como mediador, com outros dois homens de confiança.
Outro carro nosso está perseguindo um veículo suspeito. Nós já chamamos
reforços para fechar o perímetro e as ruas ao redor. Eles não vão a lugar algum.
Por enquanto, não vou adicionar reforços nas imediações porque o suspeito está
extremamente nervoso e aponta uma arma para a cabeça da jovem.
Uma arma! Anna...
— O que caralho você fez, Massimo? Você a usou como isca! Agora eu
entendo por que você não queria que eu a alertasse a respeito da organização que
a trouxe até aqui. Idiota, fodido arrogante...
A expressão preocupada do Adam e as suas mãos que me sinalizaram para ir
devagar, me contiveram.
— Eu não tenho tempo agora para escutar os seus absurdos, oficial Graff.
Traga a sua bunda até aqui. Prepare-se, o suspeito é completamente alucinado,
definitivamente drogado.
Eu já havia estacionado o carro perto do corpo de bombeiros, quando
Massimo nos informou que o helicóptero já estava em voo para nos pegar.
Adam saiu rapidamente, abriu o porta-malas onde guardamos nossos
pertences, e pegou dois coletes à prova de balas.
— Continua falando, Massimo, estamos esperando o helicóptero.
— Estamos em uma área arborizada a noroeste do aeroporto de Zurique. A
jovem se encontrou hoje de manhã com o oficial brasileiro Joaquim da Silva. A
Europol estava perseguindo-o para chegar ao bando com o qual trabalhava há
algum tempo. Fornece garotas sul-americanas, sob demanda, no mercado
europeu. Conseguimos identificar a gangue e trazê-lo até aqui em uma
emboscada. Anna não deveria correr riscos, era tudo calculado.
Caralho! O oficial brasileiro está envolvido.
— Sim, claro. Como não? Anna estava, por acaso, ciente do risco? Ela estava
ciente de que você montou uma armadilha para o seu suposto amigo e a estava
usando como isca?
— Bem... podemos supor que ela -
— Agora você não pode supor merda nenhuma, certo?
Minhas mãos tremiam enquanto fechava o carro, segurava o telefone com
tanta força que estava com medo de despedaçá-lo. Concentre-se Thomas!
— Qual é o tempo estimado de chegada do helicóptero?
Escutei que ele repetia a pergunta para alguém ali próximo:
— Doze minutos.
Terminei a ligação. Foram os doze minutos mais longos da minha vida. Corri
para a estação de bombeiros, e informei ao oficial de serviço da iminente
chegada do helicóptero, pedindo-lhe para sair e coordenar a descida do aparelho.
Aproveitei a oportunidade para vestir o meu colete à prova de balas. Adam, ao
meu lado, estava ajustando o dele enquanto informava o capitão. Os minutos
fluíam em uma lenta agonia.
O barulho no ar me fez agradecer à rápida intervenção. Enquanto o colega
bombeiro dava os sinais para o pouso, Adam e eu nos preparávamos para o
embarque.
Rapidamente, entramos na aeronave e ela já decolava para nos levar até o
Massimo que, felizmente, não tinha vindo nos pegar. Eu precisava de alguns
minutos para acalmar o ódio que eu sentia dele. O piloto, no rádio, informava
alguém sobre a hora estimada de chegada. Deus, faça com que ela esteja bem,
por favor.
Quando percebi que o aparelho começava a descida, iniciei a olhar ao nosso
redor. Vi o campo onde, provavelmente, aterraríamos e, mais à frente, um carro
escuro estacionado em uma rua lateral. Um bosque enorme circundava os
campos. Eles poderiam estar em qualquer lugar, a área era vastíssima. Fechar um
perímetro como aquele, ao contrário do que Massimo nos havia dito, era
impossível.
O helicóptero tocou o chão, minha adrenalina subiu até as estrelas. Eu estava
pronto para lutar por ela. Verifiquei a minha arma no coldre, perto do cinto,
esperei que Adam fizesse o mesmo com a sua. Seus olhos apreensivos
encontraram os meus, ao mesmo tempo fizemos o nosso sinal de acordo.
Estávamos prontos para a ação.
No nosso trabalho do exército, como observadores de paz, algumas vezes, nos
encontramos em situações parecidas com aquela. Só que nunca tinha sido
envolvida uma pessoa que conhecíamos, ou pior ainda, uma pessoa querida,
como refém. Eu estou chegando, Anna...
Saltei do helicóptero assim que tocou o chão e, com Adam atrás de mim,
corremos em direção ao carro. Avistei Massimo vindo na nossa direção, com
pressa, enquanto colocava o telefone no bolso e arrumava a sua arma em um
coldre perto da axila. Assim que o helicóptero se levantou, o italiano parou do
outro lado da estrada.
Eu me aproximei decidido, o sangue fervendo nas minhas veias. Meu corpo
tremia. Maldito filho de uma puta!
Antes que ele pudesse abrir a boca, bati as minhas duas mãos abertas no peito
dele e lhe dei um empurrão forte, que o fez cambalear como um bêbado. Ao
tentar recuperar o equilíbrio, eu já estava pronto para o próximo golpe, quando
Adam me deteve, prendendo os meus braços atrás das costas. Era melhor assim,
ou eu teria reduzido o rosto daquele idiota em carne... moída.
Minha voz tinha um timbre ameaçador:
— Se alguma coisa acontecer com ela, se aquele viciado lhe toca apenas um
só fio de cabelo, eu vou pegá-lo e depois, eu volto para pegar você. Prepara-te.
Enquanto Massimo arrumava as roupas com uma expressão ofendida, Adam,
por trás, sussurrou para que eu fosse com calma.
— Depois, Thomas, depois. Agora, pense na Anna. Concentre-se!
Foi como uma ducha fria, voltei a mim. Eu estava lá, com ela a apenas alguns
passos, e a levaria embora em segurança. Apenas acenei com a cabeça e Adam
me deixou, estralei o pescoço e olhei para Massimo. O italiano recuou
preocupado.
— O que eu devo saber, oficial Milanese?
O desprezo destilou na minha voz quando pronunciei o nome dele. Por
precaução, ele se manteve a alguns metros de distância. Melhor mesmo, covarde
do cacete.
Nós entramos na floresta com ele atrás, que nos atualizava sobre a situação.
26. Entrega da mercadoria

Anna
Joaquim estacionou o carro em uma estrada de terra dentro do bosque. Uma
pequena estrada usada para transportar madeira. Ninguém vai me ver ou me
ajudar.
— Aqui devemos estar confortáveis enquanto esperamos.
O que ele vai fazer comigo? Esse é o Joaquim, meu amigo... por que eu?
Meus olhos assustados seguiam os seus movimentos, enquanto ele trouxe a
mochila para a frente e a abriu. Eu não conseguia me mexer, nem mesmo falar.
Eu vi a mão dele puxar uma seringa e um pequeno recipiente de vidro. Enquanto
ele enchia a seringa, notei uma alça preta saindo da mochila. Aquilo é uma
arma? A questão persistia: por quê?
Ele se virou para mim, concentrado naquilo que fazia, espirrou um pouco do
conteúdo da seringa, enquanto batia nela com o dedo indicador da outra mão.
— Agora vou te fazer relaxar um pouco enquanto esperamos.
Era uma sensação horrível. Eu vi a seringa se aproximando da minha coxa,
enquanto ele movia a minha saia até a beira da calcinha. Eu não podia fazer
nada, minhas súplicas eram apenas murmúrios incompreensíveis.
Meus músculos estavam relaxados após a descarga elétrica, nem senti a
agulha penetrar na carne.
— Como você é macia, agora posso te acariciar o quanto quiser. E pensar que
você nem queria me abraçar.
Jogou fora a seringa e se aproximou, lambeu o meu pescoço até o rosto,
esfregou as mãos entre as minhas coxas, subindo lentamente. A repulsa e o nojo
podiam ser vistos nos meus olhos, mas não no meu corpo, que era como se
estivesse morto. Eu preferia morrer, a sofrer aquilo que estava prestes a
acontecer.
Eu tentei gritar 'não!', mas minha voz saiu como um miado. Senti as lágrimas
escorrendo pelo meu rosto. Comecei a me sentir leve, como se meu corpo
estivesse flutuando. Talvez seja melhor assim.
De mal jeito, ele ajustou a minha cabeça e enxugou as minhas lágrimas com
rancor, enquanto me olhava.
— Agora você chora, você não me quer mais? Você se jogava nos meus
braços lá no Brasil e eu tenho que te dizer, foi muito difícil não arrancar as tuas
roupas e fazer tudo o que eu queria. Se você não fosse designada, eu teria te
fodido com muito prazer.
Do bolso da calça, ele tirou uma caixinha branca que lembrava aquela das
lentes de contato de Emma, depois um pequeno canudinho. Ele abriu a tampa
com cuidado e cheirou, fazendo todo o pó que estava dentro dela desaparecer.
Pelo menos ele havia tirado as suas mãos imundas do meu corpo. Fechou os
olhos e inclinou a cabeça, encostando-a no apoio atrás dele e continuou a
história, com uma estranha voz empastada.
— Um dos contatos deles, que vive no Brasil há anos, te viu com a Irmã
Benedetta, em uma daquelas feiras horríveis, onde vocês iam vender aquelas
porcarias. Eu já havia fornecido a eles meninas sem família, vagabundas, mas
nunca nada a pedido. O mercado europeu é muito rico e uma mercadoria
específica vale uma fortuna. Você me entende, não é?
Seu rosto excitado me embrulhou o estômago.
— As primeiras garotas me trouxeram uma grande bolada, mas aí alguém viu
as tuas fotos. Aquelas que eu tinha feito em uma daquelas feiras. Ele queria
você, precisamente você. Você me entende? Mas aquela irmã estúpida não queria
mandar você em uma viagem. Não, você era muito boa com as crianças, você
trabalhava como uma mula, você dirigia o fodido trator.
Com a voz enlouquecida, ele continuou:
— As duas primeiras garotas eram apenas um aperitivo, mas o pentelho
mimado queria você. Então eu usei toda a minha genialidade para te trazer até
aqui. É claro que se você tivesse se comportado corretamente, neste momento,
você já estaria nas mãos dele e eu seria um milionário. Por pura sorte, visto que
ainda temos tempo, vou finalmente resolver o dano que você criou, e vamos
acabar com essa negociação.
Seus olhos pareciam saltar das órbitas, ele virou o pescoço na minha direção,
me olhando como um alucinado.
— Você é o meu bilhete da loteria, Anna. Eu vou desaparecer daquele maldito
país para sempre. Nunca mais salário de merda, nunca mais receber ordens de
superiores corruptos que enchem o rabo de dinheiro, enquanto nós, na primeira
fila, arriscamos a pele todos os dias.
Enquanto ele me olhava, lambia os lábios e começou a abrir as calças,
puxando-as até as coxas, e, orgulhosamente, me mostrou o seu pênis.
— Olha o que você faz aos homens, você não tem ideia do teu poder. Pensa,
Anna, você pode ter o mundo a seus pés. Ele vai te dar tudo!
Com uma mão ele se masturbava devagar, enquanto com a outra começou a
esfregá-la na minha calcinha, puxando o vestido que, naquele momento não me
oferecia nenhuma proteção.
Pensamentos flutuavam na minha cabeça como plumas carregadas pelo vento.
Na situação em que me encontrava, a única coisa positiva era saber que ele não
poderia me violentar. Que futuro me espera? Onde vou parar? Com quem?
Meus pensamentos confusos chegaram ao Massimo, em quem eu havia confiado,
dizendo-me que sabia onde estavam as irmãs. Quanto ele me havia mentido?
Na minha mente, agora completamente obscurecida pela droga, o rosto de
Thomas emergia cada vez mais claro. Suas carícias, seu corpo, enquanto ele
dormia ao meu lado, o respiro leve, aquele perfume. A certa altura, escutei os
gemidos que Joaquim fazia, ejaculando na própria mão, enquanto lambia os
dedos da outra, com a qual acabara de me tocar.
Um estranho pensamento passou pela minha cabeça. Espere, eu tenho que me
concentrar porque parece ser importante. Estava fazendo um enorme esforço
para tentar recuperar aquela faísca de ideia que estava passando pela minha
cabeça. Era como tentar pegar uma daquelas plumas que eram levadas pelo
vento. Talvez ficar bêbada tenha esse efeito.
Ao meu lado, Joaquim limpava a si mesmo enquanto checava o telefone
novamente. Ele abriu a porta, virou-se para mim, rindo, enquanto fechava as
calças. Saiu do carro cambaleando e disse:
— Espere aí até eu voltar. Eu vou mijar, assim me recupero e continuamos de
onde paramos. Eu quero te desvestir, você vai me fazer gozar loucamente.
Como se eu pudesse ir a algum lugar. Qual era aquele primeiro pensamento?
Deus, faz ele voltar, era importante. Concentra-te, Anna!
Calmamente ele levou todo o tempo que precisava na floresta e, quando
voltou, falava ao telefone.
–Você vem? Eu sei que não deveria te ligar... sim, ela está aqui comigo. Eu
estou no ponto de encontro... você mandou o dinheiro?
O fragmento de pensamento começou a reaparecer ainda confuso, na minha
cabeça. Graças a Deus! Enquanto ele tomava mais e mais forma, eu ouvi o
começo de uma risada saindo da minha boca. Era como um gargalhada baixa,
mas aumentava a intensidade, pelo menos aos meus ouvidos.
Joaquim, depois de terminar a ligação, olhou-me confuso. através da janela
aberta do carro.
— Mas por que diabos você está rindo? Isso é uma risada ou você está
morrendo?
Aquele comentário me fez rir ainda mais. Agora que me lembrava bem do
pensamento, queria compartilhar com ele, a todo custo.
Eu deveria parecer louca, enquanto tentava chamá-lo para vir perto de mim.
Eu não queria perder o show que aconteceria quando eu dissesse a ele o meu
segredo. Minhas mãos pareciam pesar cem quilos, enquanto eu fazia sinal com
elas para ele se aproximar. Minha voz saiu confusa, apenas um murmúrio:
— Eu tenho um segredo para te contar, Joaquim, vem aqui perto. Você vai
gostar.
Seu rosto, que agora se mostrava para mim por aquilo que era, me deu a
coragem que precisava, aquele era o momento, ou nunca mais.
O som de um carro na rua me fez olhar para cima. Talvez alguém estava vindo
para me ajudar.
Quando viu a esperança nos meus olhos, ele disse:
— Não seja confiante Anna, é apenas o homem que vai te levar para ele.
Seu braço escorregou dentro da janela, pegando a arma dentro da mochila, e a
enfiou atrás, dentro das calças.
Minha risada aumentou de intensidade.
— Você tem que contar para ele, Joaquim, ou eu própria vou fazer.
— Que porra eu deveria dizer para ele, Anna? Fala rapidamente porque o
motorista estará aqui em breve.
— Você deve dizer a ele que eu, isto é... que a mercadoria, está... danificada.
Eu tinha lágrimas nos olhos, de alegria e alívio.
— Eu não sou mais virgem, Joaquim. Ele não vai mais me querer. E você vai
estar... ferrado!
Se eu tivesse que morrer, ele também pagaria: por mim, pelas irmãs e quem
sabe por quantas outras. A sua expressão, quando finalmente entendeu as minhas
palavras, eu a levaria comigo para sempre.
— Mas você é uma cadela. Sua puta!
Em um segundo ele já estava do meu lado, furiosamente abriu a porta do
carro, mas eu ainda não tinha terminado.
— Thomas, foi maravilhoso. Apenas ontem.
Na minha cabeça drogada eu queria continuar a história, mas o tabefe me fez
gritar de dor, enquanto isso, ele me arrancava do carro.
— Espera, eu ainda tenho que te dizer que o... pênis dele é maior que o seu.
De onde vem essa frase? A minha risada delirante e o meu comentário me
custaram um segundo bofetão, ainda mais poderoso. Eu sentia o gosto metálico
do sangue, o meu rosto pulsava incessantemente. Nada mais importa para mim.
Ao longe, o motor de um carro desligou, uma voz irritada com um sotaque
estranho me salvou do terceiro tapão, mas ele me sacudia impiedosamente.
Minhas pernas mal me seguravam, enquanto tentava me agarrar nele, para
permanecer em pé.
— Tire as suas mãos dela. Ele não paga por mercadoria estragada, não a
toque.
O cara tinha uma voz poderosa.
No meu ouvido escutava a respiração furiosa de Joaquim, enquanto ele
tentava, sem muito sucesso, me fazer ficar em pé. Sua voz saiu com um
murmúrio furioso.
— Foda-se, vadia. Eu te enviarei assim mesmo para ele. Eu vou dizer que é a
droga que faz você falar. Antes dele apurar a verdade, já estarei longe.
A voz com o sotaque estava se aproximando.
— Traga-me a garota e pegue o dinheiro. Agora!
O primeiro passo de Joaquim, foi seguido por um ruído de outras vozes
precedidas por sirenes. Eu vi, como em um sonho, o tipo de antes entrar no carro
e fugir. Passou rapidamente por nós, levantando poeira na estrada, perseguido
por um carro escuro. Em seguida, ouvi outras vozes vindo de longe. Joaquim me
pegou pelo pescoço, carregando meu corpo à frente dele, fazendo-me como um
escudo.
— Deixe que a jovem ande e nós não vamos te machucar.
Era uma ordem seca.
Ele me pressionou ainda mais contra si, senti o cano da arma na minha testa.
Com o outro braço ele me mantinha em pé, segurando-me pelos quadris. Outra
vez, nos meus pensamentos, vi o rosto de Thomas. Eu não queria que ele
presenciasse cenas como aquela.
Percebi, no meio das árvores, ainda longe, alguém que, pensei talvez fosse
Massimo. Ao lado dele outro homem, talvez um terceiro, eu não tinha certeza.
Pelo menos tem alguém para me socorrer.
— Não chega perto de mim ou eu vou explodir a cabeça dela.
Massimo caminhava devagar na nossa direção, com as mãos levantadas em
sinal de rendição, enquanto dizia:
— Estou desarmado. Deixe-a ir e vamos resolver a situação.
— Vai se foder!
Joaquim me girava como uma boneca de pano, de um lado para o outro,
verificando se não havia alguém atrás de nós. Ele me arrastou e se apoiou contra
uma grande árvore, ainda com a arma apontada para a minha cabeça. O frio do
cano me fazia tremer. Eu estava com medo de escorregar por causa das pernas
trêmulas. Se eu caísse, me mataria, com certeza.
Sua respiração rápida ecoava nos meus ouvidos. Ele estava ganhando tempo,
enquanto refletia sobre a situação.
Massimo continuava caminhando lentamente na nossa direção, e acenando,
com a voz tranquila, um acordo.
— Pare aí, onde você está!
Os passos de Massimo cessaram, levantando uma nuvem de poeira.
— Não! Nenhum acordo. Você é o oficial Thomas Graff? Eu quero ele. Eu
vou fazer um acordo com ele. Somente com ele. Agora!
Ele deu uma batida com o cano da pistola contra a minha testa, só para
confirmar que suas intenções eram sérias.
— Não sou eu quem você está procurando, mas posso trazer o oficial Graff até
aqui. Você deve me dar alguns minutos.
— Então mova-se. O que você está esperando?
Sua mão tremia no gatilho, que soava como um 'tique-taque' perto dos meus
ouvidos. Eu não sabia quanto tempo o nervosismo manteria firme a mão dele.
Massimo virou-se para o outro homem, acenou com a cabeça e aquele partiu,
correndo em direção ao carro, já com o telefone no ouvido.
Joaquim continuou, encorajado pela ideia que passou pela cabeça dele.
— Tire todos de perto. Você também, imediatamente!
Para mostrar mais uma vez as suas intenções, ele bateu com o cano da pistola
mais forte na minha testa. Ai ai, isso dói.
Dizem que quando uma pessoa está prestes a morrer, toda a sua vida passa
diante dos seus olhos, como em um filme. Provavelmente minha vida não teve
muitos momentos dignos de serem lembrados. Naquele instante, as únicas
imagens que passaram diante dos meus olhos foram aquelas do mês passado: o
sorriso de Katrin enquanto acariciava Betsy, Emma dançando feliz com o
marido, a risada contagiante de Mia, o rosto de Thomas em êxtase enquanto nós
nos amávamos. Minha única tristeza naquele momento era não ter sido capaz de
dizer a ele, pessoalmente, o quanto o amava. Deus, se eu tiver que morrer hoje,
gostaria apenas de ver seu rosto uma última vez, por favor.
Joaquim me arrancou dos meus pensamentos, me dizendo em voz baixa e
ameaçadora:
— Você acha que me fodeu, Anna? Ninguém me fode, cadela. Eu vivi anos
naquela merda de país. Se eu morrer hoje, vou levar aquele imbecil comigo e,
com um pouco de sorte, você também.
Não! Não!
— Joaquim ninguém vai te matar. Por favor, não faça isso.
Se eu tivesse que implorar pela vida de Thomas, eu o faria. Na verdade, ele
poderia me levar, eu não tinha nada a perder. Assim tentei de novo:
— Por favor, Joaquim, ele tem uma filha pequena. Leve a mim, por favor.
Minhas lágrimas molhavam o meu rosto. O que eu fiz? O desespero me
invadiu, se eu não tivesse contado sobre nós, ele não teria pedido explicitamente
pela presença de Thomas.
Joaquim me sacudiu novamente, gritando com Massimo, para mostrar que a
paciência dele estava no limite.
Massimo tentou acalmá-lo, dizendo que Thomas já estava em um helicóptero
e chegaria em instantes. O barulho cobriu as suas últimas palavras. Thomas
estava chegando. Massimo avisou a Joaquim que iria buscá-lo. O outro homem,
que estava ao lado de Massimo nos mantinha na linha de tiro dele.
Pense Anna, pense! Não ele.
Quando eu o vi de longe, enquanto vinha na nossa direção com um passo
firme, eu sabia que faria qualquer coisa para salvá-lo.
27. Acerto de contas

Thomas
Comecei a vê-los, quando ainda estavam longe. Adam chamou minha atenção,
assobiando baixo e apontando com a cabeça para a direita. Ele se moveria em
torno dos dois, a noventa graus, chegando o mais próximo possível, mantendo
Joaquim na sua linha direta de visão, porém, sem correr risco de ser ferido por
um de nós, no caso de um tiroteio. Adam era o meu melhor recurso, naquele
momento.
Expliquei o plano ao Massimo, enquanto ele me atualizava os últimos
episódios. Segundo ele, Joaquim poderia atirar a qualquer momento. Não
teríamos tempo de esperar por reforços, uma vez que era a mim que ele queria; e
eu já sabia o que iria fazer.
Rapidamente me apresentei ao policial à paisana que mantinha os dois na
linha de tiro, enquanto caminhava em direção ao meu destino. Eu nem consegui
entender o nome dele, a minha atenção naquele momento era toda para ela.
Apenas para ela.
Tirei a pistola do coldre e, quando estava chegando, levantei-a. Em seguida,
posicionei as mãos bem ao alto.
Massimo ficou para trás, ouvi a sua voz desaparecer no ar. Ele falava
rapidamente com o outro policial que, aparentemente tinha vindo com ele.
Certamente eles estavam discutindo uma estratégia se, por caso, o meu plano não
funcionasse. Tudo vai ficar bem, todos nós sairemos vivos deste lugar.
Quando tive a certeza de que Joaquim me via perfeitamente, parei e, com um
gesto muito claro, coloquei a arma no chão. Eu tinha outra na panturrilha, mas
eu a usaria apenas se a situação se degenerasse. Nada vai acontecer.
Naquele momento, meus pensamentos eram para Anna. Pelo medo que ela
deveria estar sentindo e pela sua coragem. Senti a tensão ameaçadora que
emanava dele se expandindo no ar. Estou aqui com você agora, Anna. Não se
preocupe, eu vou te tirar desta situação, custe o que custar.
Eu vi, ao meu lado, um pouco adiante, o carro com o qual eles haviam
chegado até ali. Joaquim, ligeiramente atrás, estava com as costas apoiadas
contra uma grande árvore, para se proteger. Esperto, mas não por muito tempo.
Eu me movi lentamente atrás do veículo que, naquele momento, oferecia apenas
uma pequena proteção, tão necessária, naquelas circunstâncias.
Mantinha contato visual com ele, mas meu olhar correu rapidamente para o
rosto da jovem que me fez viver tantos momentos belos, naqueles últimos
tempos. Seus olhos aterrorizados se projetavam no seu pequeno rosto. Suas
pernas estavam afastadas como se ela estivesse se esforçando para se manter em
pé. Uma parte do seu lindo rosto estava vermelho e inchado e um fio de sangue
escorria da sua boca. O que você fez com ela, seu desgraçado?
Era fundamental que conseguisse acalmá-lo, sem estimulá-lo ainda mais.
Tínhamos frases escritas nos manuais, especificamente para situações como
essa, nas quais tínhamos que manter nossas emoções sob um rígido controle, só
que, no final das contas, nós também éramos humanos. Treinados, sim, mas
sempre humanos. O grande problema para mim era que eu conhecia a refém e
tinha sentimentos por ela. Sem mencionar que ele também era um policial e
certamente conhecia o procedimento usado nessas situações. Respirei fundo e
moldei a voz que soou tranquila, no silêncio da floresta:
— Está tudo bem, Anna. Estou aqui com você.
— Joaquim, posso te chamar assim?
Era essencial ganhar alguns minutos para analisar de perto a situação. Ele
tinha um braço entre os seios de Anna, segurando-a com força pelo pescoço.
Uma arma tremia na outra mão, o cano desaparecia nos cabelos dela. Isto não é
um bom sinal.
Sem esperar por uma resposta, continuei:
— Parece que você pediu para falar comigo. Eu sou o oficial Graff.
Claramente vi a respiração dele mudar. Era o momento certo para explicar por
que eu estava lá, à sua disposição, aparentemente sozinho e com as mãos vazias.
— Vamos fazer uma troca, a garota vem para mim. Você a deixa vir devagar,
enquanto eu vou caminhando na tua direção. Não era a mim que você queria?
Pois bem, aqui estou.
A cabeça de Anna acenava freneticamente, apontando um não. Seus olhos,
como se fosse possível, ficavam ainda maiores quando ela tentava me dizer
alguma coisa. Ela parecia drogada e o indivíduo a estava segurando com tanta
força pela garganta que a sua voz saiu como um lamento. Filho da puta, tire as
suas mãos dela. Eu tinha que agir rapidamente, ela estava começando a se
contorcer.
— Shhh, Anna, shhh... quieta. Deixa que eu resolvo isso.
Eu olhava nos olhos dela enquanto andava ao redor do carro, e caminhava em
direção a ele, deixando as minhas intenções muito claras.
O plano era simples: assim que ela saísse da linha de fogo, Adam, de lado,
atiraria nele. Não um golpe fatal, eu queria aquele bastardo vivo. Mas o que eu
pretendia, acima de tudo, era pôr as mãos naquele que colocou Anna e as outras
garotas numa situação inadmissível. Eu queria o porco que comprava aquelas
garotas.
A voz do Joaquim soou presunçosa na floresta.
— Sim, oficial do caralho. Venha devagar até mim, mãos para o alto, em
exibição. Assim, isso mesmo... vou libertá-la.
O momento de terminar aquela situação havia chegado.
— Primeiro, abaixe a sua arma, pelo menos um pouco, como sinal de boa fé.
Como você pode ver, eu vim até aqui de mãos vazias.
Mostrei as minhas palmas de frente para ele, para confirmar minhas palavras.
— Mas você está armado e aponta a arma para a cabeça da refém.
Eu estava andando lentamente em direção a eles, sempre com as mãos para
cima. Enquanto isso, a minha vida estava nas mãos do Adam; mas isso não me
incomodava, sabia que, ele não falharia.
Eu estava quase lá. Joaquim removeu a pistola alguns milímetros da cabeça da
Anna e por alguns breves momentos, pensei que ele iria deixá-la correr para
mim. Venha para mim, Anna, corre!
Estava faltando apenas alguns metros, aquele idiota olhava para mim todo
presunçoso, quando aconteceu o impensável.
No momento em que ele virou a arma na minha direção, Anna se afastou dele
com um puxão e correu, meio vacilando, na minha direção, encontrando-se no
meio do caminho entre nós dois.
— NÃO!
O impacto da bala nas costas dela a arremessou entre os meus braços abertos.
O barulho do primeiro tiro foi seguido por outros, enquanto eu me jogava no
chão em cima dela, para protegê-la.
Pelo canto dos olhos, vi Joaquim caído no chão, já sangrando. Ele não se
mexia mais. Certamente não foi apenas Adam quem havia atirado.
— Não, não, não! Anna, não! Responda-me por favor.
Eu ouvia o desespero na minha própria voz, enquanto cuidadosamente a
embalava no chão. Eu tinha que verificar onde a bala a tinha acertado. Por favor,
Deus, faz ela viver. Por favor, Senhor, por favor!
Seus olhos estavam fechados, uma expressão de dor no rosto. Sua blusa de um
tecido leve, com aquilo que parecia ser sapatilhas de dança estampadas na frente,
começou a se tingir de um vermelho brilhante. Cuidadosamente, virei-a de lado
para ver onde ele a havia atingido, as minhas mãos tremiam, a minha respiração
saía ansiosa, meu desespero era evidente. Eu segui o sangue que escorria, o
projétil tinha entrado pela clavícula, perto do pescoço, e havia saído do outro
lado. Ele não ficou dentro do corpo dela, pelo menos uma boa notícia.
Eu a virei novamente de costas, tinha que tirar a minha camisa. Eu tenho que
estancar a hemorragia. Eu ouvi alguém vir correndo, dizendo que a ambulância
já havia sido chamada. Ele me deu uma toalha, que eu peguei sem olhar para
cima e comecei a pressionar na ferida. Ela lentamente começou a ficar rúbea. Eu
a levantei, trazendo-a contra o meu peito, esperando por ajuda.
Suas pálpebras tremeram, esforçando-se para abrir.
— Thomas...
Sua voz é tão fraca.
— Shhh... estou aqui com você, Anna. Tudo bem, fica comigo.
Minha testa tocou a dela, gentilmente. A sua voz me sussurrou:
— Olha para mim... me desculpa... minha culpa.
Sua respiração saía curta, afadigada. A cada expiração, eu via a toalha tingir-
se mais e mais de vermelho. Será que a bala traspassou o pulmão?
— Onde diabos está a ambulância?
Minha voz rugiu pela floresta. Eu olhei para ela, tão pálida.
— Shh, shh ... não se preocupe agora. A ambulância já está chegando.
Ela tentou levantar um braço, que, sem força, caiu ao seu lado. Ela fez um
suspiro angustiante.
— Thomas...
Minha testa separou-se da dela e vi os seus lindos olhos se abrirem
lentamente, uma lágrima escorreu sozinha na sua têmpora.
— Eu te amo.
Eu não tive tempo para responder, porque em seguida ela desmaiou nos meus
braços. Em total desespero, toquei seu pescoço, procurei pelo seu pulso. Fraco.
Por favor, Senhor, não a leve embora agora... acabei de encontrá-la.
O som das sirenes me arrancou daqueles pensamentos fatais. Resisti, eles
estão chegando.
Uma mão forte tocou meus ombros, reconheci a proximidade do Adam. Suas
notícias me trouxeram alívio.
— Eles já estão aqui. Eu os vejo, estão tirando a maca da ambulância. Tudo
ficará bem, Thomas. Você vai ver, ela vai conseguir.
— Não me diga o que você não sabe.
Minha voz soou nervosa.
— Você está certo, desculpe. Eu tenho fé, você deve ter também.
Depois de prestar os primeiros socorros, eles a colocaram na maca, que eu
segui, segurando a mão dela, enquanto respondia às perguntas do médico. Está
tão fria. Um de seus braços caiu, ao se soltar do cinto que o segurava,
balançando no ar. Um assistente acelerou a corrida contra o tempo, enquanto
tentava colocá-lo de volta. Ela não está morta, Thomas, ela não está morta! O
médico vinha na frente dele enquanto falava ao telefone e segurava o soro com a
outra mão.
A fúria me investiu completamente quando, passando perto do Massimo, eu o
vi falando ao telefone, com aquele que me parecia ser um rosto satisfeito,
gesticulando rapidamente com a outra mão.
Com o que você está satisfeito, imbecil? Olha onde ela está por sua culpa.
Passei por ele de cabeça baixa, para deixá-lo tranquilo. Dois passos depois,
virei-me e dei-lhe um leve golpe no ombro. Seu rosto surpreso foi a última coisa
que vi, antes que o meu punho atingisse a sua mandíbula em cheio.
Pena que eu não acertei no nariz. Eu teria um prazer imenso em quebrá-lo!
A cabeça dele quicou para trás, o telefone voou longe. Antes que Adam ou
qualquer outra pessoa pudesse me impedir, agarrei-o pelo colarinho da camisa.
— Este foi apenas o primeiro. Só para te fazer experimentar. Espere por mim!
Dei-lhe um safanão e ele caiu para trás. Deixei-o resmungando enquanto
limpava a boca que já sangrava. Eu nem me virei, ele não iria me perseguir, era
muito covarde para isso.
Adam, já dentro de um dos carros, esperava por mim, enquanto Anna estava
sendo carregada de ambulância. Quando eu passei perto, aqueles que a
carregavam olharam para mim com um certo temor.
Adam ligou a luz azul no teto do carro, saímos para o hospital, seguindo a
ambulância. Minhas mãos tremiam, nem mesmo as respirações profundas me
acalmavam.
A morte de Joaquim foi constatada mesmo antes de o resgate chegar.
28. Desolação

Anna
Eu ouvi o som de um carro. Uma sirene. Tanta dor. Onde estou?
— Senhorita? Anna? Fique conosco.
Uma mão apertava a minha.
— Onde estou? ... aconteceu?
Esta é a minha voz?
— Você foi ferida em um tiroteio. Nós estamos indo para o hospital, você está
me escutando?
— Thomas?
A enfermeira veio mais perto para ouvir a minha voz.
— Thomas?
Perguntei de novo.
— O policial? Aquele um pouco nervoso?
Minha cabeça acenou um sim e deixei escapar um gemido de dor. De qualquer
forma, com raiva, nervoso, só poderia ser o Thomas.
— Ele está bem. Está em um carro atrás de nós.
Minha cabeça balançava a cada curva, eu me senti nauseada. Tentei dizer que
Joaquim havia me drogado. Isso poderia ser importante.
— Você viu o que ele te deu? Líquido, comprimidos, pó, injeção?
Meus olhos assentiram com um sim para a última palavra.
— Não se preocupe, querida, vamos nos certificar assim que chegarmos ao
hospital.
Ela se virou para o motorista, perguntando quanto faltava. Eu ouvi algo como
sete e código vermelho, antes de perder a consciência.
Thomas está bem. Nada mais importava para mim.

***

Ouvi vozes baixas e turbulentas, que falavam perto de mim. Concentrei-me,


sem abrir os olhos. Depois de um tempo, concluí que a única voz que eu queria
escutar não estava entre aquelas que ouvia. Voltei para encontrar a escuridão. Ele
não está aqui.
***

— Anna, querida, você pode me ouvir?


Eu conheço essa voz doce. Talvez eu abra meus olhos.
Katrin me olhava enquanto segurava minha mão entre as dela.
— Desculpe-me, mas a enfermeira me disse para te acordar, ou ela mesma o
faria.
Eu virei a cabeça lentamente, doía tanto; vi Emma se levantando da cadeira,
ao lado da minha cama.
— Olá, Anna. Estamos muito felizes que você tenha acordado. Como você se
sente?
— Cansada. Não me lembro bem o que aconteceu comigo.
O que eu realmente queria era perguntar sobre o Thomas, mas não tive
coragem. Ele não está aqui.
Elas me contaram sobre o tiroteio e a cirurgia que eu tinha sofrido para
corrigir o osso da clavícula, que havia sido danificado pela bala. Eu olhava para
fora da janela do hospital e pensava sobre ele. Alguém pode morrer por amor?
Ou melhor, por amor não correspondido?
Katrin, sabiamente, percebeu que o discurso não me interessava, assim, ela
interrompeu a história e gentilmente acariciou minha mão; eu olhei nos olhos
dela. O seu olhar, pelo qual, vi o infinito amor de uma mãe, trouxe as minhas
primeiras lágrimas. Elas desciam mornas no meu rosto. Uma única palavra saiu
sussurrada entre os meus lábios:
— Thomas?
— Ah, minha querida...
Seu olhar triste me trouxe mais lágrimas. Meu outro braço estava imobilizado,
então eu deixei a mão dela para pegar o lenço que Emma me ofereceu. Meus
olhos viram a medalhinha, que havia dado a Thomas, pendurada na minha
pulseira. Ele a devolveu para mim...
A voz de Emma soou segura no quarto:
— Não se preocupe, Anna, dê tempo para ele. Thomas sempre foi bastante
complicado, pelo menos depois da adolescência. Era de se esperar depois de
tudo o que aconteceu com a Leonie. Os homens, em geral, são imaturos e
imprevisíveis. Ela olhou para o chão, como se quisesse refletir. Sua mãe
continuou por ela:
— Nós tínhamos tanta esperança em você, Anna. A maneira como ele te
olhava em segredo. Você sabe...
Ela acrescentou com um sorriso:
— Quando achava que ninguém estava olhando para ele. E, então, o dia do
tiroteio. Nós o vimos pela manhã, tão preocupado com você. Por que você não
nos contou o que estava planejando fazer?
Seu sorriso deu lugar a uma expressão preocupada.
A vergonha me fez fechar os olhos e virar a cabeça para o outro lado. Como
posso explicar que na minha vida nunca pude contar com ninguém? Que eu
sempre tive que tomar as minhas decisões sozinha? Como?
— Não pense que estamos julgando você ou te criticando por aquilo que você
fez. Somente queremos deixar claro que você colocou a tua vida em perigo. Por
quem? Nós sabemos que foi para tentar salvar aquelas pobres garotas. Mas, teria
sido muito -
— Mãe, deixe-a em paz, por favor. Não comece agora. Estou mais do que
certa de que Anna já entendeu as consequências de seu ato.
— Sim, claro. Você está certa.
Virando-se para mim, Katrin beijou a minha testa suavemente:
— Peço desculpas, querida.
Minha voz saiu fraca:
— Você não tem que se desculpar, Katrin. Cometi um grande erro, não fui
sensata e paguei pelas minhas faltas. Confiei no Joaquim e no Massimo, mas não
em você ou no Thomas. Se, somente pudesse voltar...
O desespero me invadiu lentamente. Eu havia perdido tudo e todos em apenas
um dia. Depois daquele erro, minha vida nunca mais seria a mesma.
Uma enfermeira entrou no quarto com um carrinho cheio de remédios,
interrompendo nossa conversa. Emma saiu para tomar um café. Enquanto a
enfermeira trocava as minhas ataduras, perguntei à Katrin sobre Joaquim. Seu
olhar triste, e o aceno de um não com a cabeça, me deram a resposta. A próxima
pergunta foi sobre as irmãs da minha comunidade. Infelizmente, nem delas havia
boas notícias, elas não tinham sido localizadas. Katrin explicou que os outros
detalhes seriam dados por alguém da polícia. Não pelo seu filho.
Mais tarde, Emma voltou e, antes de partirem, deixando-me sozinha com
meus pensamentos, Katrin disse:
— Voltaremos em breve. Não se preocupe, você não ficará sozinha por muito
tempo. Adam só esperava que você acordasse para te visitar. Eu acho que o
capitão também passará para te ver. Assim que chegar em casa, darei a boa
notícia a todos.
Ela tentou dar um tom alegre às suas palavras, mas senti a tristeza oculta. Ela
continuou:
— Antes de partirmos, queria dizer-lhe que você se tornou muito querida para
todos nós. Na verdade, você é mais que isso. Você tem o nosso amor, minha
filha. Voltaremos em breve para te visitar.
— Obrigada, Katrin, de coração.
Eu sabia que ela estava tentando me acalmar com essas palavras.
Com um beijo, ela saiu, seguida por Emma, que, antes de a porta se fechar,
voltou sozinha.
— Eu só queria dizer que, enquanto minha mãe olhava o Thomas, eu
observava você. Eu vi o amor nos teus olhos. É uma pena ver um amor tão
poderoso como esse desaparecer. Eu te digo, Anna, Thomas é teimoso, não cego.
Ele percebeu a garota incrível que você é. Confie em mim e dê um tempo a ele,
se isso te serve de consolo.
Acrescentou com um sorriso triste.
— Como eu mencionei antes, os homens podem ser imaturos, mas não são
ignorantes.
No meu rosto, as lágrimas voltaram copiosamente, enquanto fazia um
pequeno sim com a cabeça. Ela está certa, a paciência é uma virtude. No
entanto, em meu coração, sei que perdi tudo, que o perdi.
Assim que ela saiu, fechei os olhos e esperei o sono me embalar; se possível,
para sempre.

***

— Meu Deus, que menina dorminhoca!


A voz alegre de Adam me arrancou da escuridão.
— A enfermeira de plantão me disse para te acordar. Ela me avisou que você
está dormindo muito e comendo pouco. Olha o que eu trouxe.
De trás de suas costas apareceu um lindo buquê de flores silvestres. Com um
'ta daaan' ... e em um gesto teatral, ele o mostrou para mim. Mesmo que eu já
estivesse me sentindo melhor, ainda estava com medo de levantar o braço, então
ele as colocou ao meu lado.
Meus olhos seguiram aflitos a porta que estava se fechando atrás dele.
— Ele não veio, desculpe, Anna.
Seu rosto se abaixou e ele olhou para o chão, como se ele se sentisse
envergonhado. Tentou mudar de assunto rapidamente.
— Por favor, diga-me como você está.
— Eu estou... Como eu sou?
Dentro, estou morrendo, lentamente, sem ele.
— Viva.
— Ah, isso eu posso ver, obrigado.
Ele me deu a sua famosa piscadinha e meus lábios mostraram sinais que
deveriam ser aqueles de um sorriso, mas não foi suficiente. Eu não podia fazer
nada, meus olhos se encheram de lágrimas.
— Não, não! Por favor, Anna, não chore, não na minha frente, senão vou
começar a chorar também, e isso seria um golpe para a minha tão famosa
masculinidade.
Ele colocou as mãos no rosto, fingindo estar horrorizado, o que resultou no
meu primeiro sorriso real depois de muito tempo.
— Assim está melhor. É assim que eu gosto de você, o teu sorriso é
contagiante.
Ele me deu tempo para me recompor enquanto procurava por um recipiente
para colocar as flores. Nesse momento, ele me contou tudo o que aconteceu
naquele fatídico dia.
— Eu nunca vi o capitão tão enfurecido com alguém daquele jeito. Depois de
seguir a ambulância até o hospital, voltamos ao local para coletar evidências e
procurar por novas pistas. Quando chegamos, pensei que Massimo ganharia o
seu segundo soco em um dia. Seria bonito demais.
Ele arrumou minhas flores dentro de uma comadre, o que me fez realmente
sorrir e sentou-se confortavelmente ao pé da cama para me contar a história.
— Pena que você não viu o que Thomas fez. Assim que chegamos, ele
empurrou o Massimo, quase fazendo-o cair. Você deveria ter visto o rosto
ofendido do italiano, com aquelas calças de terno e sapatos de escritório no meio
do campo cultivado. Que imbecil, aquele otário! Pense que depois ele ficou tão
assustado que se manteve longe do Thomas.
Quando ele viu que sua história me entretinha, prontamente se levantou e
começou a imitar o empurrão do Thomas e a reação do Massimo, o que me fez
sorrir. Minha pergunta parou a encenação:
— E o primeiro soco? Foi Thomas que o deu?
Veja... ele se preocupa com você. Ele veio naquele dia, só para te salvar.
— Claro que foi ele. Quem mais poderia ter sido... foi o melhor! Pensa que
Thomas se manteve atrás de mim de propósito, assim eu não o interromperia. Eu
realmente não entendi as intenções dele. Quando ele viu que estavam te
carregando na ambulância, simplesmente se virou para Massimo, que estava de
costas para ele, deu alguns passos rápidos e bateu nos ombros dele. O idiota se
virou e Thomas deu-lhe um soco no melhor estilo Myke Tyson, direto na
mandíbula. Cacete, foi lindo! De longe ouvi o ranger dos ossos.
Ele continuou com o punho fechado, fazendo caretas que tentavam imitar o
rosto do Massimo. Eu ainda estava sorrindo. Só Adam conseguia me fazer sentir
melhor; quase viva.
— E, para finalizar, Thomas agarrou-o, antes que ele caísse no chão, somente
para sussurrar algo no seu ouvido... acho que ele quase se mijou de medo.
Sua risada alegre ecoou na sala. Ele ria por ambos.
Eu, no entanto, queria saber mais, queria saber tudo. Depois de uma bala, eu
tinha esse direito.
— E as garotas? Alguém conseguiu encontrá-las?
Seu rosto imediatamente ficou sombrio.
— Infelizmente, o homem que nos poderia ter levado a elas, aquele que,
organizado pelo Joaquim, veio te buscar, escapou, perseguido por dois carros da
Europol. Em uma encruzilhada, dois homens em uma motocicleta o abordaram
e, antes que os policiais conseguissem detê-los, atiraram na cabeça dele, de
perto. Geralmente a máfia mata testemunhas dessa maneira. Aconteceu um
pandemônio naquele dia. Você não tem ideia.
— Massimo me disse que ele havia recebido uma dica sobre as irmãs.
Eu confiei nele. Como pude ser tão ingênua?
— Ele pode ter mentido para você, Anna. Ele te usou como uma isca para
chegar ao Joaquim, que era o intermediário que enviava as jovens para a Europa.
A polícia está ciente dos muitos chefes da máfia que vivem tranquilamente nos
países da América do Sul, aproveitando-se da corrupção dos policiais locais.
Neste momento, não temos nenhuma informação sobre as irmãs da tua
comunidade. Sinto muito por ter que lhe dar esta notícia.
Ele continuou com uma voz triste:
— Na minha opinião, esse tipo de tráfico é a maior vergonha da raça humana.
Infelizmente, as jovens podem ter terminado a viagem delas em um lugar
qualquer.
— Katrin me disse que Joaquim morreu. É verdade?
— Sim, antes que a ambulância viesse te salvar. Quando ele tirou a arma da
tua fronte e a apontou para Thomas, eu já estava com ele na mira do meu rifle.
Se você tivesse ficado quieta, você não estaria aqui. Por que você fez aquilo? Por
que você não ouviu o que o Thomas te dizia?
— O Joaquim teria matado ele. Ele me disse isso, Adam. Naquele momento,
eu não estava pensando em mim, eu teria morrido no lugar do Thomas.
O desespero fez minha voz ficar estridente. A resposta de Adam veio com
segurança:
— Joaquim nunca teria conseguido. Thomas estava vestindo um colete à
prova de balas, e eu o estava cobrindo. Não existia margem para erro.
Minha cabeça se abaixou de vergonha. Eu confiei nas pessoas erradas.
Sua mão pegou a minha suavemente.
— Não foi tua culpa.
— Então, por que Thomas não está aqui? Por que ele não veio me ver nem
uma vez? É simples, Adam. Ele atribuiu toda a culpa a mim, e está com tanta
raiva que não quer mais me ver.
— Sim, Anna, você está certa. Ele está realmente zangado, talvez eu tenha
uma ideia do que está passando pela cabeça daquele teimoso. No entanto, eu não
penso que seja assim, como você está dizendo. Nos últimos dias, vejo Thomas
apenas no trabalho e sempre rapidamente, não por minha escolha, mas porque
ele está se escondendo. Posso assegurar-lhe que ele também não está bem, de
jeito nenhum.
Antes que eu pudesse me sentir ainda mais culpada pelo que ele estava me
dizendo, continuou:
— Eu não acho que o problema é só com você. Na verdade, sim, mas não do
jeito que você pensa. Ahh, não quero te explicar a minha teoria agora, primeiro
quero falar com ele. Eu só estou esperando a fúria dele diminuir um pouco. Ele é
assim, introspectivo. Honestamente, neste momento, eu não quero tomar um
soco como o que ele deu no Massimo. Pelo menos por enquanto. Você terá que
ser paciente. Eu vou falar com ele no momento certo. Você me entende?
— Sim, claro.
O que eu poderia responder a ele, eu cometi um grande erro, e tinha que arcar
com as consequências dos meus atos.
— Enfim, para finalizar a história, Massimo foi chamado de volta pelo
escritório da Europol e retornou à Bruxelas. Pelo que entendemos, farão uma
investigação interna, uma vez que aquela busca para a recuperação das irmãs da
sua comunidade, ainda não está fechada, Anna, você só tem que nos deixar fazer
o nosso trabalho. De qualquer forma, Massimo deixou os nomes dos seus
informantes e cópias das suas investigações. Não foi tudo perdido.
Cheia de vergonha, eu respondi fracamente:
— Eu só queria ajudar. Nada mais.
— Eu entendo você. No entanto, devo dizer-lhe que você errou muito, Anna.
Thomas encontrou as tuas pesquisas e mostrou-as para mim. O que você pensou
que estava fazendo? Você deveria saber que os covardes que pegam essas
garotas levam a sério esse negócio. Aqui não estamos falando de séries de TV,
você entende a diferença, não?
Afundei na cama, queria me esconder e desaparecer. Adam estava
completamente certo. O que eu pensei? Brincando de espiã?
Ele notou o meu rosto mortificado, e respondeu prontamente:
— Você é uma boa pessoa, Anna. Ingenuamente você confiou nas pessoas
erradas, um erro justificável quando não se tem experiência. É por isso que
Thomas insistia tanto em deixar-nos fazer o nosso trabalho. Você é muito boa e,
devo lhe dizer, inocente. Veja, não foi tudo culpa tua.
Adam mencionou ainda algumas palavras sobre o capitão, dizendo-me que ele
havia previsto minha permanência no país, até quando eu saísse do hospital.
Aparentemente, ele não me queria mais sob a sua responsabilidade.
Quando Adam foi embora, a mensagem que o capitão me mandava ficou
muito clara:
Se você se envolver nesse negócio novamente, nós te mandaremos de volta
para o Brasil no primeiro voo disponível.
29. Dúvidas

Thomas
O sentimento que borbulhava nas minhas veias podia ser chamado de raiva?
Não, eu precisava de uma palavra mais impetuosa para descrever o meu humor
nos dias após o tiroteio.
Anna não me ouviu, mas prontamente fez tudo o que o oficial italiano lhe
propusera, sem dizer uma palavra. Ela não confiou em mim, mas nele sim.
Para piorar ainda mais meu estado de espírito, havia lido os e-mails que foram
trocados com o policial brasileiro. Eu tinha comigo o telefone que fora
recuperado perto dele, juntamente com uma mochila que, entre outras coisas,
continha uma quantidade de cocaína suficiente para abastecer um exército inteiro
de bandidos, uma arma não registrada e um recipiente com uma substância
conhecida por nós, policiais, como Rohypnol: um potente tranquilizante
comumente usado em casos de crimes sexuais.
Como ela poderia ter confiado em um cara assim? Talvez por causa das coisas
que ele escreveu para ela. Eu sinto sua falta todos os dias... Eu quero estar com
você... Ainda sinto o teu perfume...
Que bastardo!
Os meus dias eram reduzidos a levantar-me, ir da academia direto ao trabalho
e terminar a jornada pontualmente, com os meus socos no saco de box. Nas
primeiras noites, o doutor Patrón veio me fazer companhia, até a minha irmã
perceber.
— Você vai acabar com cirrose, Thomas. Resolve de uma vez essa história,
pare de fugir como uma criança!
À noite, quando não estava cansado o suficiente para cair na cama morto,
sonhava com ela. O pânico nos seus olhos, o barulho do tiro. Bamm! Ela sendo
lançada entre os meus braços. O desespero que me invadia.
Eu queria ir ao hospital, olhar para ela e gritar alto para expressar toda a raiva
que sentia. Como se isso servisse para enfiar algo naquela cabeça teimosa. Ela se
colocou em perigo por nada. Será que pensou que poderia se esquivar de uma
bala? Eu não posso falar com ela agora, estou nervoso demais.
A verdade, que ninguém sabia, era que eu ia visitá-la, sempre à noite, quando
os pesadelos não me deixavam dormir, até que foi declarada fora de perigo. Eu
permanecia escondido na escuridão do seu quarto, ouvindo a sua respiração
enquanto ela dormia. Às vezes, ela sofria pesadelos, seu sono era agitado e seus
lábios se moviam, sussurrando palavras desconexas. Eu queria acalmá-la,
dizendo-lhe que eu estava ali com ela; todavia, eu sempre acabava indo embora
antes que ela acordasse e me descobrisse.
A situação se complicou ainda mais com a repreensão do capitão pelo meu
comportamento, muito mais que lunático, com o oficial Milanese. Felizmente
era a primeira vez na minha carreira que eu perdia a paciência com um colega,
assim não sofri mais do que uma reprimenda. Segundo o capitão, por natureza
um homem de boa-fé, não havia necessidade de medidas mais rigorosas contra
mim. Basta somente que o oficial Milanese retorne para o lugar de onde ele
veio.
A raiva mais forte era em relação a mim mesmo. Eu falhei e, inexoravelmente,
a culpa estava me comendo vivo. Eu deveria ter descoberto o que ela estava
planejando, protegendo-a e cuidando dela.
Para concluir eu não sabia o que fazer com a minha vida e isso aumentava o
meu desespero. Depois do nascimento de Mia, minha vida sempre foi calma,
controlada, previsível; do jeito que eu gostava. Desde que Anna chegou, no
entanto, ela se tornou um furacão: extremamente bonita e excitante, mas
completamente fora do meu controle. Eu sentia muitas emoções, todas ao
mesmo tempo, exatamente aquelas que eu tinha cuidadosamente suprimido
depois de Leonie.

***

O golpe final veio, justamente do capitão quando, naquele início de semana,


eu cheguei à estação. Eu tinha me oferecido, de propósito, para ficar com o
telefone de plantão durante todo o fim de semana, para não pensar nela. Foram
três dias intermináveis. O verão trazia consigo muitos festivais no nosso país e,
por consequência, jovens de todo o mundo, que, aparentemente, tinham sempre
menos e menos respeito pelos bens dos outros. Durante aquele weekend,
consegui dormir, talvez, por cinco horas seguidas. Minha cabeça latejava, meu
corpo lutava para se manter em pé e eu tinha o humor de um cão raivoso. Força,
Thomas!
— Venha, Graff, ao meu escritório, por favor.
A voz do capitão me pegou de surpresa. Entrei atrás dele e fechei a porta. Ele
tinha uma expressão contrariada, aquela que ele costumava apresentar quando as
coisas não funcionavam como ele queria. Fez um sinal para que eu me sentasse,
mas, antes que pudesse fazê-lo, já começou a falar:
— Acabei de ser informado sobre o estado de saúde da senhorita Giulianni.
Assim que ela tiver alta hospitalar, nós a mandaremos de volta ao seu país. Eu
não quero mais nenhuma responsabilidade nas minhas costas, aquela jovem se
comportou sem prudência, e não podemos correr nenhum outro risco. Nós
vamos mandá-la embora o mais rápido possível!
— Foi minha culpa, capitão. Eu deveria ter percebido que ela estava
escondendo algo.
Ele começou a ficar vermelho, nem me deixou terminar o que eu queria falar.
— Independentemente disso, Thomas, a jovem é impulsiva. Uma pessoa que
se comporta de maneira dissimulada e, além disso, a jovem é completamente
ambígua; eu não a quero mais no meu país, fui claro o suficiente? Se você tiver
problemas para lidar com o caso, posso pedir ao Adam.
O que eu poderia responder? Ela é minha responsabilidade, do começo ao
fim.
— Não, capitão, o senhor pode ficar tranquilo. Eu vou cuidar disso.
— Perfeito, Thomas. Insisto que seja o mais rápido possível. Vamos concluir
isso antes que a senhorita nos cause outros transtornos.
Eu queria defendê-la, uma vez que os problemas foram causados pelo
Massimo. Anna foi apenas uma marionete nas mãos dele, isso, porém, não
mudaria a opinião do capitão. Na verdade, o irritaria ainda mais. Talvez seja
melhor que ela vá mesmo embora, certo?
As horas na estação pareciam intermináveis e, quando cheguei em casa, já
havia pensado tanto naquelas palavras que nem a carinha feliz da Betsy com
uma das suas bolinhas na boca, tranquilizou-me. Mia ainda não tinha voltado
para casa, era claro que Betsy sentia falta dela.
Joguei a bola o mais longe possível, observando-a desaparecer no gramado
entre os cavalos que pastavam pacificamente. Entrei em casa sem esperar que ela
a trouxesse de volta. Depois, eu me desculparia.
Fui para o andar de cima, jogando as minhas roupas pela escada enquanto já
procurava os shorts de ginástica. Eu precisava dar alguns socos imediatamente;
de fato, eu precisava dar muitos socos. Minha mãe e minha irmã se mantinham à
distância, naqueles dias. Ainda bem que elas me conhecem.
A música começou desencorajando pensamentos inapropriados. Não pense
nela. Perdi a noção do tempo. Eu não sabia quantos golpes eu tinha dado naquele
saco, nem mesmo os chutes pareciam me acalmar. A pergunta que me propunha
era sempre a mesma, e continuava sem uma solução: o que devo fazer? Anna vai
embora. Pensa, Thomas, pensa!
A voz de Adam veio de longe.
— Thomas!
Ele gritou enquanto abaixava a música.
— Merda! Estou te chamando por horas. Sua mãe deixou, na cozinha, o jantar
para você. Já esfriou, você vai comê-lo? Se não for, eu me proponho.
— Foda-se, Adam.
Eu tirei as luvas e comecei a remover a bandagem das mãos. Meus dedos
estavam dormentes. Há quanto tempo eu estou aqui?
— Você sabe porque eu estou aqui, não? Anna logo será liberada do hospital.
Você tem que reservar o voo para ela.
Olhei para ele como se ele estivesse falando outro idioma, eu não queria ouvir
essas palavras. Seu rosto era impassível.
— Quem vai fazer isso? Você ou eu? O capitão -
Cortei as palavras dele.
— Eu sei o que o capitão disse. Ele me avisou, pela manhã.
Eu pensei que tivéssemos mais tempo, que ela ainda deveria ficar mais no
hospital.
Enxuguei-me rapidamente e desci, com Adam atrás, provavelmente esperando
que eu continuasse a falar. Caminhei silenciosamente até a cozinha, o jantar
estava em cima do balcão. Peguei outro prato da despensa e dividi a refeição em
duas porções. O cara sempre morre de fome. Ganhei tempo sob o seu olhar
investigativo, enchi dois copos de água e coloquei o primeiro prato no micro-
ondas.
— Nem coloca o meu para aquecer.
Ele já havia pego os talheres e já se sentava no balcão com aquele que,
deduziu ser seu prato.
— Estou morrendo de fome. Sorte tua que você é meu amigo. Da próxima
vez, eu passo, como tudo e vou embora.
— Vai à merda, Adam!
— Cacete, Thomas. Você está usando ainda menos palavras do que as usuais.
Antes que eu pudesse xingá-lo pela terceira vez, enquanto estava começando a
comer sem nenhum apetite, ele continuou com o garfo suspenso no ar:
— Agora eu vou te falar, ok? Se você tiver algo para dizer ou perguntar,
espera pelo menos que eu termine. Cacete, o goulash da sua mãe é uma delícia!
Nem sequer olhei para ele. Ele tomou coragem, no final das contas, nos
conhecíamos por toda a vida.
— Eu estava no hospital há alguns dias, não me lembro exatamente em que
dia era. Anna também está mal, Thomas. Sua irmã me confirmou que quando
elas vão visitá-la, ela sempre pergunta por você. Até mesmo a sua mãe, que
nunca julga as suas decisões, teria algo para te dizer. Agora, estou aqui como um
mensageiro. Então, os mensageiros não podem ser mortos, ok?
— Fala, Adam ou tchau!
Eu não tinha paciência para aqueles joguinhos. Muito menos naqueles dias.
— Ok.
Ele respirou fundo. A expressão preocupada em seu rosto me fez parar de
comer para ouvi-lo.
— Somos amigos de infância, Thomas. Eu vi você sofrer por anos por causa
da Leonie. Mia te trouxe um pouco de luz, brother, mas você está sempre na
escuridão.
— Corte o misticismo, Adam! Vai ao ponto, ao ponto!
— Está bem, foi você que pediu. Tua família, e eu me incluo no grupo, pensa
que você está fazendo a coisa mais estúpida da tua vida. Você vai deixá-la ir
embora, Thomas? A garota idolatra você, te venera como um Deus, está
sofrendo naquele hospital e, não é apenas fisicamente. Todos nós fomos vê-la,
por que você não? Se a situação para você é indiferente, por que você não vai até
o hospital e explica para ela tudo aquilo que sente?
Minha cabeça se abaixou, como sinal de vergonha. Em voz baixa eu respondi:
— Eu fui vê-la. À noite, enquanto ela dormia.
— Por favor, Thomas! Você poderia fazer melhor. Qual é o teu problema?
Ele demonstrava uma expressão confusa no rosto.
Naquele momento, perdi a paciência. Por que não vai todo mundo se foder?
Eu não tinha que explicar minha vida a ninguém. Engoli a última porção de
comida e olhei diretamente nos olhos dele:
— Eu não a quero, Adam! Anna é muito complicada, imatura. Não tenho
tempo e nem vontade de criá-la. Sim! Criá-la, como um cachorrinho. Não olhe
para mim com essa cara! Eu quero minha vida simples, sem problemas. Por que
é tão difícil de entender?
A cada palavra, minha voz ficava mais alta. Por que estou ficando tão bravo?
— Ah... Agora eu entendi, você me explicou tudo muito claramente.
Sua risada zombeteira me fez repensar. Ele geralmente era brincalhão, não
cínico.
— Você quer uma vida aplainada, simples e desbotada. Anna não é como
Leonie, Thomas! Mas você não vê isso? Ela pulou na frente de uma bala por
você. Ela me disse que morreria no teu lugar, brother. Morreria, Thomas, por
você! Você percebe o que está perdendo?
Ele abaixou a cabeça, sacudiu-a desolado; como se não acreditasse em minhas
palavras, depois continuou:
— Não faça isso, Thomas. Não jogue fora a oportunidade de ser feliz. Você
tem a chance de reviver tudo o que você já experimentou com Leonie e muito,
muito mais, porque essa garota realmente te ama.
Levantou-se para enxaguar os pratos e colocá-los na lava-louças, depois
acrescentou com a voz triste, pouco mais de um sussurro:
— Você teve a incrível bênção de poder viver o amor duas vezes na tua vida,
Thomas. Olha para mim e quase todos os nossos amigos. É esse sentimento que
estamos procurando desde que crescemos e você, afortunado, já o experimentou
duas vezes. Não desperdice essa chance.
— Eu não posso, Adam. Desculpe-me.
— Você não tem que dar essa resposta para mim, Thomas. Eu só quero que
você reflita sobre o que acabamos de falar. Se você disser não a ela, poupe as
suas 'desculpas', porque essas palavras te servirão para lastimar-se pelo resto da
vida. Confie em mim!
De repente, ele começou a rir baixo, como se tivesse se lembrado de algo
curioso.
— Fala, Adam! Não estou com vontade de brincar hoje.
— Você não vai ficar bravo? Mah... não. Então você vai mandá-la para o
Brasil, não? Você nem se importa com ela. Então, posso te contar o que Olie me
disse quando estávamos na praia. Você se lembra do dia em que eu a levei
comigo e depois você foi buscá-la? Aquele dia ele me disse que Anna o fazia
lembrar de alguém.
Claro que me lembrava daquele dia. Seu maiô vermelho, os beijos na floresta,
sua respiração sem fôlego na minha pele. Como se eu pudesse esquecer.
— Depois que você saiu, a tempestade estava chegando. Enquanto pegávamos
as nossas coisas, Olie se sentou, como um otário, na areia da quadra de vôlei. Ele
olhava para o lugar onde a Anna estava antes, com as outras garotas. Quando
perguntamos por que ele estava lá olhando para o nada, sabe o que ele
respondeu?
— Claro que não sei. Eu já havia ido embora.
Minha paciência diminuía. Certamente tem algo a ver com Anna.
— Você lembra daqueles desfiles que a tua irmã olhava com as amigas quando
éramos adolescentes? Aqueles que, depois, olhávamos em segredo, daquela
empresa que produz roupas íntimas para mulheres; uma marca americana, se não
me engano.
Essa coisa não vai acabar bem! Quando ele percebeu que eu entendi ao que
ele estava se referindo, estalou os dedos.
— Sim, você se lembra! Ele disse que a Anna parecia com aquelas garotas.
Ele a considerava particularmente excitante e continuou dizendo que, naquela
noite, ele bateria uma punhe -
— Chega! Eu não quero saber mais, não me enlouqueça, Adam!
Eu estava começando a ver vermelho na minha frente. Quando eu encontrar
aquele idiota do Olie ...
Adam sorriu enquanto caminhava em direção à porta.
— Veja o efeito que te faz somente saber o que os outros dizem dela? Pense
nisso, brother, pense nisso. Antes que seja tarde demais.
Com essas palavras, ele fechou a porta atrás dele.
Meu tempo estava acabando, eu tinha que encontrar uma solução.
30. Xeque-mate

Anna
Minha hospitalização passou depressa demais. Tentava dormir para não pensar
nele e, quando não conseguia, ficava pensando em uma estratégia. Ele deixou
muito claro que não havia me perdoado e isso exterminava as minhas últimas
esperanças.
As enfermeiras eram sempre meigas e amigáveis, prontas para conversar, mas
a verdade era que eu não era mais a mesma. Minha vida tinha sido revirada de
pernas para o ar por um ciclone chamado Thomas Graff. Logo retornaria ao meu
país com o coração completamente despedaçado. Eu conheci o amor verdadeiro,
mas o destino, desonestamente, venceu a partida. Ele me fez apaixonar
loucamente por aquele que não correspondia aos meus sentimentos. Parecia que
alguém lá em cima zombava de mim. Eu não posso desistir. Pense, Anna, pense!
Nos meus sonhos, eu via o rosto dele, sentia os seus beijos, o jeito como ele
me amou naquela noite. Quando acordava, percebia que não havia necessidade
de ir dormir, era só me concentrar por alguns segundos e eu ainda podia sentir os
beijos, a respiração dele como uma carícia erótica na minha pele, seus sussurros
quando estava sobre mim, o cheiro dele no ar. Eu não queria ir embora sem
saborear aquilo uma última vez. O que eu precisava era de um plano de ataque.
Depois, pelo menos para mim, nada importaria mais.
No dia em que fui liberada do hospital, pedi a Adam que fosse me buscar à
tarde e o convidei para jantar. Naquele momento era eu quem não queria ver o
Thomas, porque precisava reunir mais coragem para fazer o que eu tinha
acuradamente planejado. Se eu o visse, perderia a cabeça e imploraria a ele que
me deixasse ficar, exatamente o contrário daquilo que deveria fazer. Eu queria ir
embora com uma última, maravilhosa lembrança, para guardar no coração pelo
resto da vida. A única coisa que eu tinha certeza era que nunca mais amaria
alguém dessa forma. Nunca mais abriria meu coração: de modo tão persuasivo e
livre de risco. Alguém pode viver apenas de memórias?
De volta ao Brasil, eu poderia decidir entre continuar minha vida com as
minhas irmãs, sem me casar, ou encontrar um namorado. Esse era o lado bom da
comunidade: éramos livres para escolher por nós mesmas, obviamente mantendo
o respeito e o decoro. Elas sempre seriam a minha família, sempre me
receberiam de braços abertos. Na verdade, eu já sentia falta das crianças, idosos
e até algumas freiras mais velhinhas que, doentes, moravam conosco e estavam
sempre prontas a criticar. Sentia saudades da minha vida antiga.
Quando me senti pronta para o meu último desafio, foi como acordar de um
pesadelo. Eu me preparei para aquela tarde, com um cuidado especial. Emma
tinha me trazido algumas coisas da fazenda; vesti-me bem e sequei o cabelo com
uma dedicação especial, nem mesmo a leve maquiagem estava faltando. Simples,
como eu.
Adam, quando me viu, fez um dos seus assobios baixos, que encheu o meu
coração de alegria.
— Nossa, Anna, você está deslumbrante. Deixe-me olhar melhor para você.
Lentamente, fiz um giro em mim mesma, queria que ele admirasse o vestido
com as pequenas e delicadas flores que eu tinha comprado antes que tudo
acontecesse. A tarde estava quente e ensolarada, a noite seria fresca e clara.
— Eu acho que vou levá-la para a minha casa, em vez daquela do meu amigo,
aquele otário. Na sua opinião, ele notaria? Depois eu te apresento para eles como
a minha nova namorada.
As suas sobrancelhas, que se moviam para cima e para baixo, fizeram-me rir.
— Assim mesmo, minha amiga. Você deve sempre ser assim. Radiante.
A verdade é que eu não me sentia feliz como queria parecer. O nó na garganta
estava sempre presente, os meus olhos estavam constantemente úmidos. Mas eu
não desistiria, naquele momento. Esta noite nós jogamos tudo por tudo. Estou
pronta!
Gentilmente, Adam pegou minha mala no chão e saímos do hospital,
agradecendo a todos que me trataram. Quando Adam aceitou o meu convite para
jantar, avisei a Katrin que iríamos chegar mais tarde, apenas para a sobremesa.
Eu ri novamente do rosto de namorado apaixonado, ridiculamente falso, que
me fez Adam, na frente do grupo de enfermeiras, as quais eu tinha parado para
me despedir, antes de partirmos para um restaurante típico, às margens do Reno,
que Adam conhecia.
O jantar foi muito agradável. Adam era assim: constantemente feliz e sempre
com algo interessante para contar. Escutei, com entusiasmo, todos os detalhes
das histórias sobre sua infância e adolescência junto com Thomas. Eu não
poderia ter me apaixonado por alguém como ele?
No restaurante, ele fingiu ficar ofendido porque, diante de um cardápio repleto
de pratos típicos suíços e alemães, eu optei por pizza. Eu não podia fazer nada,
minhas raízes italianas eram muito profundas.
O restaurante era lindo. Nós nos sentamos fora sob um dossel com um lindo
mirante. O rio corria tranquilo ao nosso lado e os vasos cheios de exuberantes
gerânios vermelhos, contrastavam com a estrutura de madeira. Inesquecível.
Do outro lado do rio, a natureza reinava suprema. A floresta se tingia de ouro
com os últimos raios de sol.
Durante todo o jantar, evitamos falar sobre o fato de que esta seria a penúltima
vez em que nos veríamos. Agradeci-lhe pela maravilhosa companhia com um
caloroso abraço.
Enquanto voltávamos para a fazenda, continuamos a nos entreter com nossas
histórias de vida; embora fossem poucos, eu também tinha alguns episódios
divertidos que o fizeram rir.
Quando chegamos à fazenda, ainda estávamos rindo e, assim que abri a porta
da casa de Katrin, vi Betsy vir correndo para nos cumprimentar. Imediatamente,
atrás dela, encontramos Thomas, com sua habitual expressão mal-humorada. Sua
voz saiu baixa, irritada e era dirigida somente a nós dois.
— Um pouco mais tarde vocês não podiam, certo?
Antes que Adam pudesse responder, ele olhou para mim e se abaixou para
beijar o meu rosto. Oh Deus, não faça isso. Não consigo respirar!
— Entra, Anna, eles estão te esperando.
Você não poderia dizer, pelo menos, que ‘nós’ estávamos te esperando?
Adam nem se incomodou, provavelmente, estava acostumado com a falta de
cortesia de Thomas. Ele olhou para o amigo, enquanto eu passava entre eles, e
disse:
— Posso entrar também? Tua mãe me convidou.
— Não, você pode ir embora.
Assobiando baixo para chamar Betsy, que passou correndo entre os dois, ele
começou a fechar a porta na cara do Adam.
— Thomas...
A voz de Katrin era brincalhona, mas o aviso era claro. Quando ela veio na
minha direção para me beijar, Thomas se virou e foi para a cozinha, deixando
Adam, que sorrindo feliz, já estava entrando.
Mantive a compostura, esperei que ela me beijasse, mas depois não resisti,
abracei-a carinhosamente. Era a primeira vez que fazia isso. Naquele momento,
voltei no tempo, muitos anos atrás, quando abracei minha mãe pela última vez.
Não pense nisso agora, Anna, pense em algo feliz, repeti gentilmente.
Atrás dela, vi Emma e o marido, ambos me cumprimentaram como se eu fosse
parte da família. Como posso viver sem isso?
Mia ainda não havia retornado e a casa parecia vazia. Katrin preparou para
mim um típico bolo feito com cenouras: a Rüeblitorte. Ela explicou que tinha
colocado, especialmente para mim, uma cobertura de chocolate, que não fazia
parte da receita original. Ela sabia que eu havia me apaixonado pelo chocolate
suíço. Infelizmente, também por um certo oficial emburrado.
Thomas rapidamente terminou o seu pedaço de bolo e se levantou,
desculpando-se e dizendo que ia dormir. Todos à mesa o olharam em silêncio,
mas ele saiu como se nada tivesse acontecido. Antes de chegar à porta, se virou e
disse:
— Eu te acompanho ao aeroporto amanhã, Anna.
Obviamente, Thomas não fazia perguntas, ordenava. Não haveria necessidade,
Adam iria me levar. Só que isso o Thomas não precisava saber.
Quando aceitei e agradeci, vi a expressão confusa no rosto de Adam, assim
tranquilizei-o com um pequeno chute por baixo da mesa.
No momento em que a porta se fechou atrás dele, era como se um elefante
tivesse acabado de sair do quarto. Antes que alguém pudesse comentar, Katrin
sabiamente propôs:
— Alguém mais quer um pedaço de bolo? Quem quer chá para acompanhar?
O resto do encontro transcorreu tranquilamente. Como sempre, todos eles
conseguiram fazer com que me sentisse em casa, contando-me as últimas
novidades de Mia e do haras. Ninguém mencionou a minha partida iminente,
coisa pela qual fui realmente grata.
A desculpa perfeita para ir dormir, apresentou-se rapidamente: o dia seguinte
era sempre um dia de trabalho.
Ainda na porta, depois que Emma e Hans me cumprimentaram afetuosamente
e foram embora, Adam me deixou alguns minutos a sós com Katrin, que me
surpreendeu, com um meigo abraço.
— Foi o Thomas quem me disse o quanto você gosta de abraços. O primeiro
que vou te dar é pelo senhor e a senhora Schmidt.
Eu a agradeci com lágrimas descendo pelo meu rosto enquanto ela me
abraçava mais apertado.
— Agora esse é da minha parte e da pequena Mia. Você será sempre bem-
vinda à nossa casa, Anna. Que o Senhor a acompanhe sempre, que a sua vida
seja maravilhosa, assim como você. Você tem um coração de ouro e eu sinto
muito por aquilo que meu filho está perdendo.
Fiz um esforço tremendo para não começar a soluçar enquanto retornava o
abraço.
— Obrigada, Katrin, por tudo. Obrigada e agradeço especialmente pelo filho
maravilhoso que você tem.
Antes de começar a implorar para que ela me deixasse ficar, o que sabia que
não podia fazer, desmanchei o nosso abraço e corri para o Adam, que estava me
esperando perto do carro.
Quando ele viu o meu rosto, apenas abriu os braços e me esperou. O seu calor
me embalou. Com a voz baixa, preocupada, me disse:
— Tem certeza que você quer que eu te acompanhe ao aeroporto? Ele se
propôs a te levar. Vai com ele, Anna.
Meu olhar desesperado pegou-o de surpresa.
— Não, por favor, Adam. Você deve ir comigo. Eu não vou conseguir
embarcar, se ele me levar. Você pode vir mais cedo do que tínhamos combinado?
— Claro, por você eu faço qualquer coisa. Que horas você quer que eu te
pegue?
Quando eu disse o horário, ele me olhou com uma expressão confusa, mas eu
sabia o que estava fazendo.
31. Adeus

Thomas
Fugi da mesa. Ótimo, Thomas, realmente maduro da tua parte!
Estava parado na semi-escuridão da minha sala de estar, perdido em meus
pensamentos. O que devo fazer? Alguém me ajude.
Eu não sabia a quem pedir conselhos. Ficou muito claro para mim de que lado
minha família estava, inclusive o Adam. Deixá-la partir angustiava o meu
coração, pensar que nunca mais a veria, parecia impossível de conceber. Mas se
eu a mantivesse aqui, qual seria o propósito? Casar com ela, começar uma
família? Era isso que eu queria? E Anna, o que ela queria? O que era melhor
para nós dois?
O que eu havia descoberto nos últimos dias me deixou perturbado. Eu tinha
um medo absurdo de entrar em um novo relacionamento; mesmo com o passar
dos anos, eu ainda não havia me recuperado do final doloroso do meu último, e
único relacionamento. Mas havia algo mais que eu tinha descoberto: minhas
emoções eram contraditórias. Desde o momento em que Anna havia se tornado
parte da minha vida, eu mal pensava em Leonie. Meu relacionamento com a
doutora representava somente uma lembrança.
Uma pitada de fúria me invadiu quando vi Anna sair da casa da minha mãe e
correr para os braços abertos do meu melhor amigo. É só Adam, ele nunca faria
isso comigo, é o meu brother. Ela o abraçou e lhe falou com uma expressão
preocupada. Por que ele está com aquele olhar estranho?
Escondido, continuei a observá-los, até que a vi caminhar em direção ao
galpão e os faróis do carro do meu amigo desapareceram na escuridão. Só mais
tarde fui para o quarto. Eu nunca vou conseguir dormir.
Depois de um banho rápido e daquilo que me pareceu ser uma eternidade,
porque continuava girando-me entre os lençóis, finalmente senti cansaço e venci
aquela angustiante batalha. Eu estava na estreita fronteira entre o sono e o
despertar, quando ouvi um ligeiro farfalhar, seguido por um cheiro
inconfundível. Decidi que aquele era o momento em que eu queria ficar para
sempre. Você pode sentir o perfume de alguém nos sonhos?
Meus olhos se abriram preguiçosamente, quando senti que o colchão perto dos
meus pés começou a se abaixar. O quarto estava na penumbra e senti seu corpo
sensual rastejando sobre mim. Cada pelo do meu corpo se arrepiou enquanto ela
passava. Seu cabelo macio deslizou sobre minhas pernas e depois no meu peito,
enquanto ela, lentamente, subia em minha direção. Se isso é um sonho, por favor,
não quero acordar.
— Anna...
Seu nome deslizou entre meus lábios.
— Shhhhh, não fale nada.
Seu sussurro era uma melodia. Meu corpo sentia a sua presença, meus braços
se levantaram languidamente para recebê-la. Meu abdômen se contraiu,
levemente dobrei meus joelhos e lentamente levantei a minha pélvis, fazendo-a
esfregar-se contra mim. Era o meu pecado. Sim... vem aqui comigo.
Sua boca encontrou a minha em um beijo luxurioso. Fogo puro. Eu quero te
dizer tantas coisas.
Como se estivesse lendo os meus pensamentos, ela continuou a me beijar,
lambendo e mordiscando meu pescoço, o trapézio, o peito.
— Shhhhh, não fale. Apenas... me ame, Thomas.
Estava embriagado pelo seu corpo. Minhas mãos acariciaram as suas curvas
perfeitas, e percebi que estava nua. Meu cérebro se ofuscou e eu não podia, na
verdade, não queria negar o que ambos desejávamos.
As suas pequenas mãos chegaram as minhas boxers, instintivamente minha
pélvis se levantou, eu vi os seus cabelos caindo e cobrindo os seios. Você é
perfeita!
Quando minhas boxers desapareceram, não dei tempo para ela voltar para
mim, peguei-a na metade do caminho e cuidadosamente a virei. Cobri-a com
meu corpo. Apoiei-me nos cotovelos para não pesar muito sobre ela e comecei a
beijá-la. Lentos, beijos voluptuosos e sensuais. Minha respiração era irregular,
inconstante. Minha língua encontrou a sua em um movimento demorado e
excitante. Eu não me esconderia: se era a mim que ela queria, ela venceu.
Minha boca encontrou o seu corpo. Eu podia ouvir, por intermédio dos seus
gemidos, que ela estava pronta para mim. Eu quero você toda, inteira.
O prazer de tocar sua pele macia era insaciável. Suas mãos me guiaram para
onde ela mais me queria. Deixei-me levar, joguei com os seios, mordisquei os
quadris até o seu centro rosado. Você é meu paraíso.
Quando ela atingiu o clímax entre meus lábios, eu tinha certeza de que era
aquilo que eu queria para sempre. Sua respiração saía sem fôlego; comecei a
subir, usando o meu tempo para saboreá-la. Sabia que já estava pronta outra vez.
Somente para mim.
Quando entrei no seu corpo, o mundo parou. A agonia mais doce. Suas pernas
se levantaram, cruzaram-se nos meus quadris e, no momento em que ela
levantou a pélvis para me dar mais poder, percebi que não seria capaz de me
segurar por muito tempo. O pensamento mais idiota passou pela minha mente.
Eu me apaixonei.
Beijei-a intensamente, queria transmitir tudo o que sentia naquele momento.
Somos perfeitos juntos, não me deixe...
Toda vez que avançava impetuoso, ela respondia com um gemido e seu corpo,
com um movimento ondulado. Senti sua respiração mudar, se tornar irregular,
ela estava prestes a gozar de novo. Eu não conseguia mais me segurar, atingi o
meu clímax dentro dela, com um rugido de paixão, permaneci tremendo nos seus
braços. Ela me abraçou carinhosamente enquanto acalmávamos as nossas almas
em uma atmosfera íntima. Posso ficar aqui, com você, para sempre?
Quando tive a impressão de estar começando a pesar sobre ela virei, trazendo
comigo os lençóis, para nos cobrir, bem como as suas costas ao meu peito. Seu
corpo macio e quente aderiu ao meu, enquanto o torpor chegava. Você é feita
para mim, fica comigo.
No meio da noite, senti que ela estava se movendo, se afastando.
— Fique comigo.
Senti os seus lábios levemente tocar os meus.
— Shhh, eu vou só me lavar, já volto. Pode dormir.
A fadiga me venceu.
32. Chegando ao fim

Anna
Meu sussurro se perdeu na noite.
— Adeus, Thomas... deixo a você a melhor parte de mim: meu coração,
somente você o terá. Você é tudo aquilo que precisava, tudo aquilo que sonhei...
Peguei as roupas que tinha deixado, de propósito, do lado de fora do quarto
dele, e passei rapidamente no banheiro para me lavar. Meu tempo com ele tinha
acabado.
Ainda fiquei alguns minutos com Betsy, dormindo pacificamente na sua
caminha; acariciando seu focinho macio, eu tentava em vão não chorar.
— Cuida dele, garota e da Mia também. Eu amo todos vocês. Muito.
Ela me olhou com aqueles olhos escuros, como se entendesse nossa
despedida. Volta para ele, Anna.
Antes que eu pudesse fazer aquilo que o meu coração gritava, peguei a
pequena mala que eu tinha deixado perto da porta de entrada e desapareci na
noite.
Adam estava esperando no carro, do lado de fora da entrada da fazenda. O dia
estava amanhecendo e, na floresta atrás do pomar, um sinal de outro maravilhoso
dia de verão. Não pense nele. Sem dizer uma palavra, partimos para o aeroporto.
Olhei pela janela, queria levar para casa todas as lembranças daquele lugar
maravilhoso. As cores exuberantes da floresta contrastavam harmoniosamente
com o azul do céu, o canto dos pássaros, os animais pastando tranquilamente, as
flores silvestres nos campos, tudo tão puro, tão perfeito. Por que, Senhor, não
posso ter uma vida assim?
Depois de alguns minutos olhando para mim com um olhar preocupado,
Adam não resistiu ao silêncio que eu tentava impor e me perguntou:
— Você disse adeus a ele, não? Você não saiu fugida, eu espero.
— Foi tudo bem, Adam, o Thomas entendeu. Não havia necessidade que
explicar em detalhes.
— OK. Vou tentar entender você também… vou fazer a última pergunta e
depois fico quieto, já entendi que você não quer conversar. Por que estamos indo
ao aeroporto assim tão cedo? Quanto tempo falta para o teu voo?
Eu não queria mais esconder meus sentimentos, olhei para ele desesperada.
— Porque eu não sou tão masoquista, Adam. Eu não conseguia mais ficar
perto dele e decidi que é melhor ficar esperando o voo no aeroporto. Agora que
respondi duas de suas perguntas, posso ficar em silêncio?
— Desculpa...
Sem outra palavra, ele pegou um pacote de lenços de papel que estava no
console e me entregou. Seu olhar triste pesava sobre mim, assim, para me
distrair, olhei para fora da janela. Eu sei o que tenho que fazer, não vou ter medo.
Não voltarei atrás. Esse era o meu novo mantra.

***

Quando chegamos ao aeroporto de Zurique, ele me acompanhou até a área da


companhia aérea, escrita no meu bilhete. Eu lhe fui grata, porque não conhecia
esses procedimentos e não confiava mais em mim mesma. Volta para ele! Meu
coração sangrando me gritava.
Depois de um rápido check-in, no qual uma linda garota flertava
descaradamente com Adam, fomos para a área de embarque. Depois daquela
barreira, eu estaria sozinha até chegar em casa. Eu sei o que tenho que fazer, não
vou ter medo. Não voltarei atrás...
Adam tentou me oferecer café da manhã, dizendo que era cedo demais para ir
ao portão de embarque. Agradeci-lhe e recusei. Meu estômago estava tão
fechado que eu não seria capaz de engolir nada, aliás, eu tinha a sensação de que
alguém estava apertando o meu coração com um alicate. Não pense nele. Não
pense em ontem.
Foi muito difícil dizer adeus a Adam. Em tão pouco tempo, ele havia se
tornado uma pessoa importante na minha vida, um amigo querido. Quando nos
abraçamos em frente à área de passageiros, senti que era um momento difícil
também para ele.
— Eu sinto muito, Anna, que as coisas tenham terminado assim. Eu não
esperava essa reação da parte do Thomas.
— Shhh, está tudo bem, Adam.
Minha voz soou desesperada contra seu peito:
— Thomas fez o que era melhor para ele.
— Sim, mas o que é melhor para você?
Infelizmente, lembrei-me de uma frase que Katrin dissera alguns dias antes.
— Você não pode amar por dois, Adam. É claro que ele não sente a mesma
coisa por mim.
Ele me empurrou delicadamente para longe da sua camisa e me olhou
diretamente nos olhos.
— Na minha opinião, você está errada. Eu não consigo entender o que
aconteceu. Eu acho...
— Por favor, Adam, eu tenho realmente que ir embora.
Estava fugindo e queria estar o mais longe possível dele, antes que o meu
mundo desmoronasse.
— Adeus, Anna.
— Adeus...
Deixei-o com um olhar angustiado, passei o cartão de embarque no leitor e
desci as escadas que me levariam embora. Abaixei a cabeça, não olhei mais para
ele, ou não conseguiria me conter.
Enquanto estava no metrô que me levaria à área de embarque, observava a
apresentação das belas paisagens suíças que passavam na tela e ouvia o mugir
das vacas com seus típicos sinos, transmitidos por um alto-falante. Os outros
passageiros sorriam e conversavam despreocupadamente. Nada mais importa...
Cheguei ao portão de embarque, indicado para o meu voo, sentei-me em uma
poltrona desconfortável e olhei para o nada, enquanto meu coração terminava de
se desintegrar. Minhas mãos torciam o último lenço que Adam me havia dado.
Uma senhora sentada à minha frente levantou-se e, com um sorriso meigo, deu-
me um novo. Um 'obrigada' saiu sussurrado dos meus lábios. Passará essa dor
excruciante? As pessoas ao meu redor me olhavam piedosas quando viam as
lágrimas que deslizavam devagar pelo meu rosto.
Eu sei o que tenho que fazer, não vou ter medo. Não vou voltar atrás... nada
mais me importa.
33. Desespero

Thomas
Anna ainda está aqui, não se preocupe. Ainda sinto o cheiro dela.
Acordei de sobressalto. A luz do dia, filtrada pelas persianas, a parte da cama
ao meu lado estava fria, os lençóis desarrumados. Que horas serão? Onde ela
está?
— Anna?
Provavelmente ela foi ao banheiro.
Eu não me lembrava bem a que horas ela se levantou à noite, mas lembrava
claramente que tinha pedido a ela que ficasse comigo. Posso ficar tranquilo,
estará aqui por perto.
— Anna?
Minha voz saiu com uma nota de apreensão. Levantei-me e coloquei as
boxers. O telefone de reserva e a medalhinha de São Miguel colocada sobre a
mesa de cabeceira fizeram meu coração se restringir. Não, não, não!
Verifiquei a hora no telefone, caminhei rapidamente até o banheiro, abri a
porta somente para encontrá-lo vazio. Seu aroma pairava ligeiramente no ar, o
vidro do box, quase seco. Ela passou aqui há tempo. Provavelmente foi até o seu
quarto para fazer qualquer coisa, ainda falta bastante tempo para o voo. E por
que a medalhinha?
Depressa, voltei para o quarto, vesti as primeiras roupas que encontrei no
armário enquanto corria para a porta, com o telefone na mão. Betsy olhou para
mim da cama como se estivesse ciente de um segredo a mim desconhecido.
Enquanto caminhava rapidamente para o galpão, encontrei o senhor Schmidt.
Infelizmente, nem ele tinha visto Anna.
— A garota não deveria ir embora hoje?
Minha resposta desapareceu no ar enquanto eu desaparecia atrás da porta.
— Não, absolutamente não.
Ela deveria ficar comigo, eu perguntei a ela ontem. Talvez ela não tenha
entendido?
Quando cheguei ao quarto, nem sequer a chamei, abri diretamente a porta. Os
lençóis estavam cuidadosamente dobrados ao pé da cama e, em cima deles, as
toalhas cuidadosamente colocadas. Suas coisas no armário haviam desaparecido.
Não! Não faça isso comigo.
Peguei o telefone e rapidamente encontrei o nome de Adam. Eu iria levá-la ao
aeroporto, mas ainda era cedo para o voo. Só que ela não deveria mais ir
embora. Provavelmente está com Adam. Ele sabe de alguma coisa, visto que, na
noite passada, eles conversaram por um longo tempo.
Os ruídos por trás da sua voz me sugeriam que ele estava na academia, como
sempre, antes do trabalho. Sua voz séria me intrigou.
— Sim, Thomas?
— Anna?
— Eu fiz o que ela me pediu.
— Quer dizer?
Como diabos ele sabia o que ela queria, e eu não?
— Eu a levei para o aeroporto, pensei que você soubesse.
— O quê?!
Minha voz rugiu ao telefone.
— Não grite! Eu disse -
— Eu entendi o que você disse. Quando?
Por que, Anna? Por quê?
Enquanto ouvia a história dos últimos acontecimentos, corri para a minha
casa, tinha que pegar a carteira e a chave do carro. Eu vou conseguir!
Acendi o viva-voz, liguei o carro e parti, enquanto escutava as informações
que precisava. A voz do Adam ecoava dentro do carro.
— Você é realmente estúpido, sabia? Merda, você claramente a afastou o
tempo todo, não, espera, pior ainda, você esperou até o último minuto para
perceber que você a queria.
— Cala a boca, Adam!
— Cala a boca o cacete! Agora você me escuta. Se você conseguir recuperá-
la, por favor, não faça mais nenhuma merda. Você me entendeu? Anna sofreu um
monte por você.
Enquanto ele tagarelava, concentrei-me na estrada, com uma sensação de
vergonha. Vou conseguir encontrá-la. Felizmente, a hora do rush já havia
passado e as estradas estavam bastante tranquilas. Maldito limite de velocidade!
Depois de passar a hora mais longa da minha vida, deixei o carro no
estacionamento e fui direto para o escritório da segurança do aeroporto; eu
precisaria da ajuda deles. Enquanto caminhava entre famílias tranquilas e
executivos a trabalho, vi o sinal do seu voo.
Depois de mostrar meus documentos para um jovem policial na entrada do
escritório e explicar, em detalhes, por que eu tinha que falar com o chefe da
segurança, tudo indicava que o seu superior não podia atender à ligação naquele
momento. Com isso, ainda perdi preciosos minutos enquanto o garoto o
procurava. Não tenho mais tempo, ela vai embora.
Andava de um lado ao outro, como um louco, dentro daquele maldito
escritório. Quando comecei a me desesperar, o telefone do jovem tocou. Ele
respondeu e começou a falar com agitação, enquanto olhava para mim, de lado.
Move-te!
Seu rosto tenso minou as minhas esperanças. Tem qualquer problema.
— Desculpe, policial Graff, mas o chefe está com um problema na área da
alfândega. Eu não acho que podemos ajudá-lo neste momento.
Cerrei os dentes para conter a raiva e continuei a explicar a situação, mas ele
já mencionava um 'não' desconsolado com a cabeça. Naquele momento meu tom
de voz se transformou em irritado.
— Deixe-me falar com o seu superior, caso você não possa me ajudar. Pelo
menos isso você pode fazer, não?
— Sim... senhor... claro. Eu posso tentar.
Seu rosto assustado acalmou o meu tom. Ele está apenas fazendo o seu
trabalho. Se eu não conseguir encontrá-la neste aeroporto, como vou encontrá-la
do outro lado do mundo?
Quando o chefe dele respondeu impacientemente ao telefone, eu fiz um sinal
para passá-lo para mim. Eu resolveria a situação. Usei o tom autoritário da voz,
aquele que não admitia argumentos.
— Bom dia. Aqui é o primeiro tenente Graff, segundo batalhão Swissint,
corpo de paz. Preciso rastrear uma testemunha que está embarcando em um voo
para o Brasil.
É uma meia verdade.
Ouvindo o meu título, a voz, inicialmente irada, acalmou-se. Eu não gostava
de falar daquela maneira, mas eu faria qualquer coisa por ela. O policial, ainda
sentado à mesa, continuava a olhar para mim com os olhos arregalados
enquanto, apoiando o telefone no pescoço, abri a carteira e retirei outros
documentos, aqueles que comprovariam o meu título, já que nem sequer usava o
uniforme.
Depois de convencer a pessoa que estava do outro lado da linha a encontrar
alguém que pudesse me acompanhar até o portão de embarque, assegurei-lhe que
o assunto seria resolvido sem qualquer desconforto para os outros passageiros.
Passei o telefone para o rapaz, que ouviu atentamente as instruções que o
superior lhe dava.
Quando terminei a ligação, estava pronto para ir buscá-la.
— Primeiro vou fazer dois telefonemas, tenente Graff, e um colega o
acompanhará até o portão. Enquanto isso entrarei em contato com o portão de
embarque, solicitando a detenção da testemunha.
Ele começou a checar no computador, e, ao mesmo tempo, eu lhe dizia o
nome completo da Anna.
Durante o telefonema, anotei outras informações úteis. Eu nunca havia tido
tanta pressa na minha vida; tentei me controlar, respirando fundo, mas tudo que
eu queria era correr e encontrá-la o mais rápido possível.
Quando, finalmente, a pessoa que me acompanharia chegou, agradeci ao
jovem policial:
— Você fez bem o seu trabalho, obrigado pela prontidão.
Ele me agradeceu pelo elogio, com a expressão satisfeita. Um atendente com
o uniforme do aeroporto estava me esperando em um dos pequenos carros que
eles usam, como aqueles para jogar golfe, e me explicou que aqueles veículos
eram normalmente usados para emergências, mas também para o transporte de
pessoas idosas e incapacitadas.
Quando partimos, ele me disse que, para chegar ao portão de embarque
rapidamente, deveríamos passar pelo subsolo, acessível apenas à equipe que
trabalhava no aeroporto. Para mim, basta chegar até ela em tempo. Ele explicou
que, no andar de baixo, existia uma 'cidade inteira', na qual centenas de
trabalhadores passavam o dia entre rampas, esteiras transportadoras e corredores,
iluminados apenas por luzes de néon. Era o lugar onde as malas de todos os
passageiros passavam, tanto aqueles que embarcavam quanto os que acabavam
de chegar.
Quando terminamos de descer a rampa, continuamos entre mercadorias e
malas que passavam rapidamente nas esteiras. Eu não esperava ver algo assim e,
se não fosse pela situação, teria apreciado aquele estranho passeio. O homem se
movia com uma destreza impressionante entre os corredores que, para mim,
pareciam ser todos iguais.
Finalmente ele parou na frente de um elevador.
— Aperte o botão para o segundo andar, alguém vai esperar pelo senhor lá.
Este é o caminho mais rápido para chegar aos portões de embarque.
Agradeci e entrei no elevador.
Quando a porta se abriu, encontrei-me diante de uma distinta senhora vestida
com o uniforme da segurança do aeroporto. Ela carregava um tablet e um rádio
transmissor apoiado sobre ele. Antes que eu pudesse falar, ela me estendeu a sua
mão:
— Primeiro tenente Graff, sou a oficial Santis, segurança interna. Por favor,
siga-me.
Eu não deveria ter chegado perto do portão? Mas onde diabos eu estou?
Preparei para verbalizar a minha pergunta, quando o rádio transmissor tocou.
Ela pediu desculpas e parou para responder. Dei-lhe espaço e, nesse meio tempo,
tentei me orientar naquele lugar bizarro.
— Você a encontrou? Sim, Giulianni, com dois 'enes'. Sim, informa a
recepcionista para entregá-la aos policiais que estão do lado de fora, na sala de
espera. Sim, eu sei que você não pode atrasar o voo. Nem me fale nada sobre
isso... bem... estou no final cinco, cinco, sete, se você precisar, obrigada.
Quando ela terminou a ligação, não pude evitar:
— Onde eles a estão levando?
— Eles vão levá-la para uma sala ao lado da alfândega. Eu organizei três
oficiais para acompanhar a testemunha. O senhor precisa de reforços para trazê-
la até o carro?
— O quê? Reforços?
Naquele momento percebi que a oficial não tinha a menor ideia por que a
viagem foi negada àquela passageira.
— Não, eu não preciso de nenhum reforço, está tudo bem. A jovem é apenas
uma testemunha chave em um caso que estamos resolvendo. Pensávamos que o
havíamos concluído, mas, infelizmente, surgiram algumas dúvidas e ainda
precisaremos mais uma vez do seu testemunho.
Essa é outra meia-verdade.
— Então a passageira não é potencialmente perigosa?
— Coisa?! Não, absolutamente não.
Eu vi sua tensão diminuir.
A senhora me fez sinal para segui-la. Entramos em uma área que me parecia
um dédalo de escritórios. A única luz que emanava naquele lugar vinha de
lâmpadas fluorescentes. Lembrou-me um labirinto moderno, totalmente
construído em concreto. Enquanto caminhava na minha frente, a oficial dividia a
sua atenção entre o rádio e um telefone que ela havia tirado do bolso. Além dos
incontáveis corredores, notei muitas portas, sempre da mesma cor acinzentada,
das quais provinham murmúrios ou um silêncio mortal.
Depois do que me pareceram horas, ela parou na frente da enésima porta cinza
e verificou algo no tablet. Meu coração parou de bater por um momento. Talvez
Anna esteja ali dentro, finalmente. Graças a Deus!
Ela abriu a porta e fez sinal para que eu a seguisse por outro corredor, onde,
no fim, vi uma grande janela retangular e dois homens silenciosos parados, um
em cada lado de uma porta. Da postura deles, sabia que eram policiais à paisana.
Pensei ter entrevisto, um pouco adiante, uma pequena mala aberta, da qual o
conteúdo havia sido removido e colocado em uma mesa. Minha boca se abriu de
incredulidade. Eles vasculharam as coisas dela e a colocaram em uma sala para
interrogatórios.
Antes que minha raiva prevalecesse e abrisse a boca para perguntar por que
ela acabou ali, como uma traficante ou uma criminosa, embora eu tivesse
informado que ela era apenas uma testemunha; amaldiçoei-me por havê-la
colocado naquela situação.
Ela estava sozinha, sentada em uma mesa, esquálida e com a cabeça baixa,
como se estivesse envergonhada. Ela não havia me visto, o vidro do seu lado
provavelmente era espelhado. Seus ombros estavam abaixados como se ela se
sentisse humilhada e parecia prestes a chorar. Senti uma dor no peito, que
perfurou meu coração. Anna!
— Podemos proceder, primeiro tenente?
A voz austera da oficial chamou minha atenção. Provavelmente a senhora
tinha notado a minha expressão transtornada.
Recompus-me rapidamente:
— Sim, claro.
Quando perceberam a nossa conversa, os dois homens apenas acenaram para
ela e se afastaram. A senhora tirou um punhado de chaves do bolso e destrancou
a porta, abriu-a e me fez sinal para passar, seguindo-me.
A cabeça da Anna se levantou rapidamente e seus olhos se arregalaram de
surpresa quando me viu. Ela se levantou com lágrimas que, corajosamente,
tentava conter e correu para os meus braços, já abertos para ela.
— Thomas, o que aconteceu? Está tudo bem? Eles não me deixam ir embora.
A policial olhava para nós com curiosidade. Certamente ela nunca tinha visto
uma interação como aquela, entre duas pessoas que, presumivelmente, não
tinham nenhuma conexão. Com Anna protegida nos meus braços, virei-me para
a senhora e perguntei:
— A senhora pode nos dar um minuto, por favor?
Ela limpou a garganta:
— Claro, vou ficar do lado de fora da porta se o senhor precisar.
Esperei que ela saísse e fechasse a porta. Anna ainda estava entre os meus
braços e eu não conseguia esconder meu alívio. Senti a tensão que emanava de
seu corpo. Embalei-a por um momento.
— Está tudo bem, Anna.
Antes que eu pudesse continuar, ela se afastou de mim, olhando-me
diretamente nos olhos.
— Por que você está aqui se tudo está bem? Algo sério aconteceu, não é?
Vocês acharam as irmãs? Se não fosse por isso, você não teria vindo.
Precisei reunir minhas forças para não a trazer de volta para os meus braços.
Só que eu lhe devia essa explicação, e, para isso, era necessário ficar longe.
Precisava juntar coragem, não conseguia raciocinar quando estava perto demais
dela. Comecei da parte mais fácil da história, pelo menos aquela que era a mais
simples para mim.
— Por sorte nada de grave aconteceu. E, infelizmente, ainda não temos
notícias de suas irmãs, peço desculpas.
— Então, eu não entendo.
— Você está aqui, Anna, porque eu quero. Quero dizer...
As palavras ficaram presas na minha garganta, engoli seco. Por que é tão
difícil explicar meus sentimentos?
— Mas... você, ontem, me mandou embora. Você quer dizer que agora me
quer de volta? O que você quer de mim, Thomas? Sério, eu não te entendo.
— Na verdade, ontem eu não mandei você embora.
— Como não?
Percebi que o rosto dela estava cada vez mais austero, a voz cada vez mais
áspera.
— Podemos conversar em outro lugar, por favor? Não aqui, não neste lugar.
— Eu tenho que ir embora, Thomas, não posso perder o meu voo.
As palavras se acumulavam dentro de mim, minha voz se tornou insegura,
ansiosa, quando me aproximei e peguei nas mãos dela. Dê voz ao seu coração,
Thomas.
— Por favor, Anna, fica comigo. Eu não posso deixar você ir, não agora que
eu acabei de te encontrar. Eu quero tentar de novo...
Minha voz tremeu:
— Com você.
Seus lindos olhos verdes me olharam atônitos, com surpresa, mas, antes que
ela pudesse responder, eu comecei a puxá-la lentamente em direção à porta.
— Vem comigo, por favor, depois continuamos a nossa conversa.
Do lado de fora, a senhora Santis nos esperava sozinha. Sua expressão era
indecifrável.
— Então, oficial Graff, o voo não pode mais ser retido. O que o senhor
decidiu?
Antes que Anna pudesse dizer qualquer coisa, eu já terminava de colocar
rapidamente as suas coisas dentro da mala, fechei-a, virei-a e peguei a sua mão
mais uma vez. Eu não posso mais te perder. Eu sei que sou egoísta. Voltei-me
para a oficial e disse:
— A senhora pode liberar o voo, eu me ocuparei pessoalmente da senhorita
Giulianni. Obrigado pela sua disponibilidade e peço desculpas pelo incômodo.
Eu vi o rosto espantado da Anna ao meu lado. Apertei levemente sua mão, e
olhei-a rapidamente. Agora que eu a tinha encontrado, estava com uma pressa
incrível para ir embora daquele lugar.
— Confie em mim, ok?
Enquanto a senhora nos conduzia pelos corredores até a saída, ela passava as
últimas informações ao portão de embarque. No final da chamada, enquanto
ainda estávamos andando naquele labirinto, ela me informou:
— Não vamos ter problemas com o voo, oficial Graff. Apenas um pequeno
atraso para os outros passageiros, mas será recuperado em voo.
Ela parou na frente de uma porta e se virou para mim. Coloquei a mala no
chão e apertei a mão que ela me oferecia, enquanto ela olhava curiosa para a
minha outra mão que mantinha aquela de Anna em um gesto protetor. Com um
leve sorriso nos lábios, ela disse:
— Eu trabalho na segurança deste aeroporto por anos e posso assegurar-lhe
que esta é a situação mais incomum que já presenciei. Eu não quero entrar em
detalhes, mas acho que, neste momento, o senhor me deve um grande favor,
primeiro tenente Graff.
Sua voz destacou o meu título.
— Quando e como a senhora quiser, Oficial Santis.
— Perfeito, entrarei em contato, se por acaso precisar. No final deste corredor,
vocês encontrarão a área externa do aeroporto. Boa sorte... para ambos.
Ela se virou e sua figura desapareceu no corredor.
Nós estávamos em uma passagem estreita, de onde eu via a área dos
passageiros e, no fundo, a insígnia de algumas lojas. Assim que a porta se fechou
atrás de nós, eu a abracei com força. Seu abraço era suave, ainda relutante.
Minha voz saiu rouca, emocionada.
— Está tudo bem, Anna. Agora vamos voltar para casa. Para a nossa casa.
Seus olhos me observavam e, quando eu vi aquele sorrisinho astuto que
curvava seus lábios, eu sabia que ela era a mulher perfeita para mim.
— Posso pensar na tua proposta, Oficial Graff?
Senti uma falta de ar. Talvez eu tenha entendido mal as suas intenções. Suas
mãos se aproximaram do meu rosto, aquele olhar feminino e encantador era só
para mim.
— Já pensei.
Seu beijo me deu a resposta. Eu retribuí com todo o meu ser. Finalmente,
quando quase a havia perdido, encontrei coragem para amar outra vez.
Nossas almas se encontraram. Fique comigo, eu serei teu sempre, para
sempre.
34. Alguns anos depois...

Anna
Em momentos como este, quando paro para pensar sobre a minha vida, chego
sempre à mesma conclusão: obrigada, Senhor, pela sorte incrível que tive. Quase
dez anos se passaram desde que Deus me trouxe daquela parte do mundo, para
viver neste país maravilhoso.
A única frase que me vem à mente para representar minha história é aquela
que a irmã Maria sempre usava: 'Confie em Deus, sempre. Ele escreve certo
sobre linhas tortas.'
Os últimos anos passaram rapidamente. Momentos de pura alegria. Entrei na
vida do Thomas em terríveis circunstâncias, mas fui recompensada com a maior
felicidade que pude viver: o amor verdadeiro.
Ainda hoje vejo o rosto triste das irmãs quando, alguns meses depois do
incidente, na ida ao Brasil, os momentos de agonia que compartilhamos quando
contei o triste acontecimento.
Meu coração sofrerá para sempre pelas duas irmãs de quem não tivemos mais
notícias, pelo possível fim trágico que o destino escolheu para elas. Talvez
estejam mortas, mas suas almas voam alto e continuam sempre perto de nós.
Nestes anos, a colaboração de vários distritos policiais da Europa permitiu
rastrear e eliminar várias organizações de traficantes de seres humanos.
Infelizmente, as gangues que vêm sendo interceptadas e desmanchadas são
prontamente substituídas por outras. Parece uma batalha contra um monstro
mitológico: quanto mais as cabeças são cortadas, mais rápido elas renascem.
Vejo a alegria nos olhos de Thomas, Adam e seus companheiros quando eles
ganham um desafio, alegria sempre seguida por um grande desconforto, quando
outra investigação começa. A crueldade humana não conhece limites.
A voz de Mia me distrai dos meus pensamentos tristes.
— Mama Anna, mama Anna! Papai está procurando por você já há algum
tempo. Você sabe como ele se preocupa quando não te encontra.
Uma imensa emoção atravessa o meu coração; mesmo que tenhamos poucos
anos de diferença, sou como uma 'mãe' para ela. Estou no meu lugar favorito,
deitada debaixo da macieira. Como sempre, quando Mia me aborda assim, eu
sorrio calorosamente. Este é o nosso pomar, cheio de memórias, um lugar onde
anos atrás passei uma das primeiras noites com Thomas.
— Você está se sentindo bem?
Sua voz preocupada aparece sobre mim.
— Essa criança não vai nascer hoje, no meio das árvores, não é?
— Tranquila, querida. Só estou descansando, por favor me ajude, assim
podemos voltar juntas.
Viro-me de lado para me sentar, porque minha barriga agora, no sétimo mês
de gravidez, não me permite mover tão livremente, quando Mia oferece a sua
mão, e eu agradeço enquanto a pego. Ajusto meu vestido e vejo que ela já pegou
o cobertor que eu havia colocado no chão.
Nunca me canso de olhar para ela. Ela se parece muito com a mãe, mas as
suas expressões e o seu orgulho são exatamente como aqueles do seu pai. Como
eu os amo!
— Vamos, papai está te esperando.
Com as mãos entrelaçadas, como sempre quando caminhamos juntas,
seguimos para casa. Na metade do caminho, Mia para de repente, com uma
expressão séria demais, incomum em uma jovem garota.
— Mama Anna, posso te fazer uma pergunta? Mas você não pode dizer nada
para o papai.
Sua pergunta não me surpreendeu, eu já havia notado que ela andava muito
pensativa nos últimos dias, sempre em silêncio, característica que ela não
possuía.
— Se não é algo perigoso, posso manter segredo. Pense nisso antes de me
falar.
Tenho certeza de que não é nada disso, mas não quero esconder nada sério do
Thomas, não temos segredos entre nós.
Ela cora imediatamente, olhando por cima do ombro, em direção ao galpão.
Ahh, esse é o segredo dela...
Há algum tempo, Katrin contratou um novo assistente para ajudar o senhor
Schmidt que, embora tenha se aposentado, ainda continua esporadicamente
vindo trabalhar. O novo e misterioso jovem imediatamente despertou
considerável interesse entre as garotas que frequentam aulas de equitação, mas,
especialmente de Mia.
— Uhmm...
Começa o discurso envergonhada:
— No próximo mês na escola haverá uma festa e um amigo me convidou para
ir com ele.
Seu rosto se avermelha mais e mais.
— Sim? Qual é o problema? Você não quer ir com ele?
— Não... quero dizer, sim... o problema é outro.
Seu olhar vai de volta em direção ao galpão.
Causa-me ternura o modo em que tenta, sem sucesso, exteriorizar os seus
sentimentos, por isso tento ajudá-la:
— Acho que o problema é alguém, não? É por acaso o novo garoto, Ethan?
Apesar de tentar esconder o constrangimento do seu rosto sob o seu longo
cabelo loiro, eu podia ver seus olhos brilhando ao nome de Ethan. Sua alma é
como um cristal, com diferentes facetas, mas permanecendo sempre pura e
transparente. Essa inocência que preocupa Thomas.
— Sim, eu gosto muito dele, Anna. Mas... o problema é papai.
— O que seu pai tem a ver com isso?
Estou ciente do fato de que Thomas tem monitorado a vida de Mia ainda mais,
desde que ela se tornou adolescente. Pessoalmente acho exagerado, mas ainda
não interferi porque ela nunca expressou desconforto pelo comportamento do
pai, mas, acima de tudo, porque tenho certeza de que não será uma batalha fácil.
Por enquanto, é melhor não me intrometer.
— Papai sempre sabe tudo, mama Anna. É impossível esconder alguma coisa,
não consigo nem respirar sem que ele saiba. Eu gostaria apenas de fazer as
coisas que todas as garotas da minha idade fazem. Por exemplo, eu adoraria ir ao
baile, mas com o Ethan. Só tenho que convidá-lo, porque ele nunca fará isso. Ele
tem medo do papai, incrivelmente, como todos os rapazes que eu conheço.
Com as mãos nos quadris, ela bufa, expirando de maneira teatral e sua
expressão trágica me faz sorrir. Ahhh, os problemas dos adolescentes... Antes
que eu possa fazer um comentário, continua, como se já tivesse amadurecido o
discurso por algum tempo dentro de sua cabeça:
— Em vez disso, o garoto que está me convidando é o sobrinho do capitão,
entendeu? O sangue de policial corre em suas veias e ele não tem medo do papai,
pelo menos não tanto. Eu também gosto dele, mas gosto mais do Ethan.
A frase foi falada tão rapidamente, que ela precisou fazer uma pausa para
respirar, assim eu aproveitei:
— Vamos fazer alguma coisa, Mia. Deixe-me pensar um pouco e avaliar a
situação. Ainda há tempo para a festa, certo?
— Sim, ainda tenho tempo para dar uma resposta, só que eu realmente não sei
o que fazer. Quando olho para Ethan... é como se minha respiração estivesse
faltando, meu coração para de bater. Em vez disso, ele nem olha para mim.
Ela bufa novamente com um rosto triste enquanto chuta uma pedrinha no
chão.
— Especialmente se houver alguém da nossa família por perto.
Eu a abraço porque não tenho uma resposta para ela agora. Quando tinha a
idade dela, eu tive alguns relacionamentos, mas era tudo tão diferente. Cresci em
outro país; de fato, às vezes brinco, dizendo que venho de outro mundo.
— Vamos resolver a situação juntas, não se preocupe, Mia. Agora te deixo,
porque estou indo para o seu pai.
Eu a acompanho até algumas garotas, entre as quais eu reconheço sua melhor
amiga; elas estão conversando no pasto perto dos cavalos, depois da aula de
equitação. Aceno uma saudação, que vem retribuída com educação, mas, no
próximo minuto elas já se voltam a sussurrar umas para as outras, olhando para o
galpão.
Quando chego perto das bicicletas, encontro Betsy vindo em minha direção,
caminhando tranquila; também para ela os anos se passaram. Lembro-me com
felicidade e saudades dos dias em que passávamos brincando no parque e no
jardim da fazenda. Paro e a acaricio gentilmente e, por alguns segundos, ela me
deixa fazê-lo, em seguida, continua na direção de Mia e suas amigas. A esperta
vai ganhar carícias novamente.
Assim que chego perto da entrada, a minha respiração se interrompe, como
sempre, quando o vejo. Não importa quanto tempo tenha passado, meu amor por
ele está sempre aumentando. Sempre!
Como que sentindo a minha presença, ele tira os olhos do telefone e encontra
os meus. Tudo que preciso fazer é vê-lo com aquele uniforme azul-cobalto e
meus hormônios saltam eufóricos. Vem caminhando lentamente na minha
direção, me olhando inteira, com luxúria, como se eu fosse a mulher mais linda
do mundo. Engulo seco. Deus, ele tem um sorriso maravilhoso.
— Oi, está tudo bem? Onde você estava?
Ele me cumprimenta com um abraço no qual eu e nosso pequeno nos
encaixamos perfeitamente.
— Eu estava no pomar, debaixo da nossa macieira.
Sinto sua respiração no meu cabelo, seu abraço cheio de ternura, sua mão
fluindo suavemente nas minhas costas. Meus olhos se fecham, saboreio este
momento como sempre fiz, durante anos. Eu o vivo como algo precioso, único.
Minhas mãos se movem pelo seu pescoço só para deslizar os dedos pelo seu
cabelo macio. Meu coração bate, sempre e somente para ele.
— Senti sua falta hoje. Aliás, tenho um problema.
Sua voz se transforma, fica macia, rouca, a sua respiração perto da minha
orelha, me faz estremecer.
— Eu sinto sua falta o tempo todo.
Sorrindo, respondo:
— Você me amou hoje de manhã.
Depois de todos os anos juntos, ainda estou impressionada com o quão
carinhoso e amoroso ele é comigo. Obrigada, Senhor, por colocá-lo no meu
caminho naquele dia. Obrigada, sempre!
— A verdade, senhora Graff, é que eu estava desesperadamente esperando por
alguém para me fazer sentir vivo novamente. Conhecer-te foi uma coincidência
de destino, mas meu amor por você sempre foi constante. Mais e mais, nunca é
suficiente para mim. Você é a melhor parte de mim.
— Eu te amo com todo o meu coração, Anna.
— Eu também te amo, Thomas, para sempre.

Caro leitor/a:
Tem ainda tanto para ler nas próximas páginas, como por exemplo, os primeiros
dois capítulos do meu próximo livro. Se por acaso você estiver com pressa, peço
somente um pequeno favor, que para mim significa muito.

Agradeço se puder dar um voto e escrever uma pequena resenha, caso tenha
gostado de ler este livro. Adoro conhecer as opiniões dos meus leitores e, assim
fazendo, você também ajuda outras pessoas a descobrir os meus livros.

Use um dos links abaixo, para acessar a pagina de resenha na loja Amazon onde
descarregou o livro:

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Obrigado de coração,
Algo sobre mim e os meus agradecimentos

Este é o meu livro de exórdio. A leitura


sempre foi minha grande paixão. Assim, o meu primeiro agradecimento vai para
a pessoa que suscitou esse prazer no meu corpo: minha mãe. Obviamente,
também uma grande leitora.
Infelizmente, escrever nem sempre foi uma paixão para mim, pelo menos
não no começo da minha vida. Esse fascínio cresceu com o passar dos anos, à
força de ler romances, crimes, dramas, revistas, gibis e tudo aquilo sobre o qual
os meus olhos se pousavam.
Assim, meus personagens começaram a visitar-me nos sonhos, pedindo-me
para contar as suas histórias. Eu não poderia fazer de outra maneira; nascia o
meu fiel caderno de rascunhos. Anos mais tarde, quando estava praticamente
pela metade, decidi dar vida a essas histórias.
O romance de Anna e Thomas conta algo sobre o meu país de nascimento;
mas também diz algo sobre o país onde eu moro hoje, aquele em que meu
coração colocou as suas raízes. Só que eu queria ir além disso, queria ir além do
belo romance com o final feliz. A ideia de escrever acerca de algo real veio a
mim quando eu estava lendo a respeito de uma investigação sobre as faces do
moderno comércio de escravos. Diante dos números aterradores que esse tipo de
tráfico produz todos os anos, eu não consegui ficar quieta. Aqui nascia a história
completa deste livro.
Meus agradecimentos continuam com meu marido Marco. O patrocinador
deste primeiro romance, bem como a maravilhosa capa do livro, tudo fruto da
sua criatividade. Aos meus dois filhos: Lollo e Matt, que como o pai passaram
horas a se submeter as minhas histórias e as absurdas especulações, que só a
produção de um livro pode produzir. Obrigado guris, de coração <3!
À, Maria Aparecida Borges Leal, graduada em Letras, Português-Inglês,
pela Universidade Federal do Paraná, com Mestrado em Letras, na área de
Literatura, também pela UFPR, antes de mais nada, por acreditar em mim e pela
infinita paciência e dedicação em me ajudar com a edição deste romance em
português. Eu te adoro, querida!
Para todas as amigas, de diferentes nacionalidades, que me diziam para
continuar, sempre! Aí vai para vocês, garotas!
Não posso esquecer a minha super e primeira beta-reader em português.
Um super obrigada, querida Ilda.
Um agradecimento especial aos leitores que acreditaram em mim e leram
este meu primeiro romance. Quem são os escritores sem os seus leitores?
Obrigada a todos. Muito obrigada!
Aos meus gatinhos: Spilla e Ace (que terá uma parte já no segundo livro)
que 'trabalharam duro' ao meu lado, enquanto eu me dedicava a escrever este
romance. Roncando, mas eles estavam sempre ali, presentes! E porque não, ao
Sonic, que agora olha para mim lá de cima, do paraíso dos gatos, onde,
infelizmente ele foi, no meio do ano passado. Ele também deu a sua contribuição
para este primeiro livro.
E para terminar também a Betsy, minha incrível Border Collie, que me
acompanhou nos anos da juventude. Como Thomas diria: 'um cachorro incrível!'
Visite a minha página Facebook e venha conhecer os cenários
©

maravilhosos que inspiraram esse primeiro livro:

www.facebook.com/carmenweiz.books

Se você quiser conhecer a história de Adam, amigo de Thomas, não perca


proximamente, meu segundo livro: Mistifica-me. O novo capítulo da série Swiss
Stories.
Para fazer vocês ficarem com água na boca, aqui vão os dois primeiros capítulos.
Boa leitura!
Saudações,
Carmen Weiz.
PS — divulgo os endereços de e-mail da colega que ajudou na correção do texto.
Especializada no campo da literatura portuguesa.
lealmariacidinha@gmail.com
mariacidinhaleal@yahoo.com.br
1. O vórtice
Lei

Um carro saiu do túnel.


Suas luzes piscaram à distância.
Concentro-me... inspiro profundamente pelo nariz, exalo pela boca.
Meu momento chegou.
Enquanto os meus sussurros desapareciam com o vento, abri meus braços e
aceitei o meu destino.

Angelo custode…
Angele Dei,
qui custos es mei,
me tibi commissum pietate superna
illumina,
custodi,
rege et guberna.
Amen
2. A ponte

Adam

— Que belo amanhecer para dar uma corridinha.


Meu amigo olhou desconsolado para o céu enquanto pedalava, depois
continuou sarcasticamente:
— Muito obrigado, Adam, por me arrancar dos braços da Anna só para
estar aqui com você neste magnífico começo de dia. Você percebeu que estamos
correndo por quase uma hora e ainda não cruzamos nenhuma outra alma em
penitência como nós? Nem mesmo aquele louco do Olie, que corre mesmo sob a
neve.
Olhei para o rosto do Thomas, que brilhava sob pequenas gotas de vapor de
água misturadas ao suor. Ele tinha mais sorte do que eu: veio de bicicleta e ainda
podia manter seu corpo aquecido sob a jaqueta impermeável.
Meu ritmo estava sendo compassado pela minha respiração pesada. Nuvens
de vapor saíam da minha boca enquanto eu pensava na noite anterior e no Oliver.
— Certamente não o veremos correndo hoje. Ontem, o cara ficou bêbado
novamente. Ele parece um adolescente! Na verdade, é ainda pior. Ele parece um
adolescente demente!
Ao contrário de Olie, eu já havia decidido previamente, que nem o clima
nem as noites de entretenimento afetariam minhas corridas. Era o suficiente o
que acontecia com a natação que, no início da temporada de inverno, eu era
forçado a praticar na piscina interna do ginásio de Schaffhausen, também
conhecido como KSS, em vez da bela piscina ao ar livre.
Meu suor, junto com o ar úmido, descia pelo meu pescoço, penetrando
traiçoeiramente sob minha blusa térmica.
Porque cacete eu não coloquei nada mais leve!
Estávamos no começo do outono na Suíça e isso significava temperaturas
matinais próximas a cinco graus e, às vezes, exatamente como naquela manhã,
um nevoeiro tão úmido que teria feito a felicidade suprema de qualquer diretor
de filmes de terror.
Ao nosso lado serpenteava o rio Reno, suas águas turbulentas agitavam-se
ainda mais furiosas do que de costume, como resultado de um verão chuvoso,
descendo em direção à cachoeira. Próprio da beira da água, outras nuvens de
vapor flutuavam, acrescentando o perfeito ar lúgubre e sombrio à manhã.
A água deve estar a quinze graus... talvez?
Nós tínhamos acabado de passar pela encosta de Flurlingen, com a sua
pequena cidade que se destacava subindo o lado da colina. Como sempre
fazíamos, nós correríamos até a ponte do Munot, o belo castelo da cidade de
Schaffhausen, e depois voltaríamos do outro lado, seguindo o rio até a ponte que
atravessava a cachoeira em Neuhausen, onde sempre começávamos as nossas
corridas.
A neblina estava lentamente diminuindo, mostrando, ocasionalmente, um
lindo céu azul. Comecei a ver à distância a gigantesca estrutura de concreto com
cabos de aço vermelho que sustentava a segunda das duas pontes que cruzavam
o rio naquela área. Era conhecido como ponte A4, assim chamado porque ligava
a cidade à rodovia A4.
Talvez mais tarde o dia melhore.
A primeira ponte, a mais antiga e baixa, estava bem na nossa frente e era
usada no verão pelos jovens para pular nas águas límpidas do rio. De lá, nos
deixávamos arrastar flutuando para a praia, onde saíamos da água. Depois,
voltaríamos para a ponte caminhando para saltar novamente na água. Quando
éramos crianças, eu, Thomas e todos os nossos amigos tínhamos passado
momentos memoráveis pulando daquela ponte e nadando até a praia.
Recordações de verões maravilhosos.
Naquela manhã, Thomas decidiu deixar Betsy, sua Border Collie e nossa
fiel companheira de corridas em casa. Ela estava ficando mais velha e Thomas
não a trazia consigo, principalmente se o tempo estivesse úmido ou muito frio.
— Ontem você não veio conosco. O que aconteceu? A sua mulher não te
deixa mais sair de casa?
Como resposta, a bofetada brincalhona do Thomas me pegou desprevenido,
fazendo-me cambalear para frente. Eu era definitivamente um dos poucos que
podia dizer algo sobre a sua amada.
— Cacete, Thomas!
Respondi, enquanto corria, e esfregava o pescoço molhado, que agora
pulsava.
Diante de nós, emergia uma pequena colina, a qual nos faria passar no meio
de algumas grandes pedras próximas ao bosque de pinheiros e, logo em seguida,
desceria suavemente, trazendo-nos de volta para o caminho que nos levaria à
passagem subterrânea da próxima ponte. Lá nós pararíamos para a sessão de
flexões.
Movi-me de propósito atrás dele: precisava de uma certa distância para
aquilo que estava prestes a dizer, continuei mantendo o ritmo, enquanto checava
a minha respiração.
— Eu sei que você não quer mais sair com a gente. Nem eu sairia se tivesse
uma namorada como ela.
Ri com entusiasmo quando notei a expressão carrancuda no rosto de
Thomas, o que me fez perder a concentração. De brincadeira, ele girou
rapidamente o guidão da bicicleta para bater em mim, assim pulei para o lado
tentando escapar, mas escorreguei na estreita estrada de terra, quase caindo lá
embaixo, na água. Antes que as coisas se complicassem, levantei minhas mãos
em sinal de rendição.
— Calma, brother. Você sabe que Anna é como uma irmã para mim.
Depois de tudo o que aqueles dois tinham passado, há pouco tempo,
considerava-o meu melhor amigo e um homem de muita sorte. Aquela garota
tinha vindo do outro lado do mundo para entrar em sua vida... para sempre. E eu,
que não acreditava no destino!
— Diga-me só uma coisa...
A pedalada do Thomas ficou mais lenta, trazendo-o outra vez ao meu lado
para me ouvir melhor. Eu vi que sua postura não representava mais um risco,
assim continuei:
— O que?
Sua voz chegou baixa até os meus ouvidos.
— Por ela, valeu a pena, não? Tudo pelo que você passou, quero dizer.
Sua resposta chegou peremptória.
— Sempre, Adam, cada dia mais.
Esta era a sua maneira de dizer o quanto ele a amava, o que foi confirmado
pelo pequeno sorriso com o qual ele terminou a frase.
Nós éramos amigos desde a infância, assim como colegas de trabalho na
polícia, e Thomas sempre foi uma pessoa de poucas palavras. Eu sabia o quanto
ele havia sofrido antes que aquela maravilhosa garota chegasse na sua vida. Ele
merecia o melhor, na verdade eles mereciam tudo de melhor. Finalmente ele era
um homem feliz e meu coração também se alegrava por ele. Eu tinha sofrido
com eles e, depois de um episódio que poderia terminar em tragédia, eu também
curtia esse bom período.
Batendo papo terminamos a descida e chegamos a outra parte plana, onde a
beira do rio se aproximava novamente do nosso caminho.
A pergunta de Thomas me arrancou dos meus pensamentos.
— Então, você já pegou a sua carteira no KSS?
— Sim, eu a peguei ontem de manhã quando fui nadar um pouco. Eu não
consigo entender como ela caiu do meu bolso ou da bolsa da academia.
— O importante é que você a achou, tinha tudo dentro?
— Sim, felizmente. Dentro da carteira eu só tinha documentos e cartões.
Você sabe que eu sempre carrego meu dinheiro no bolso. Na entrada eles me
disseram que o senhor que limpa o banheiro encontrou debaixo dos armários.
— Graças a Deus que você a achou, é muito chato ter que refazer todos os
documentos.
— E como! Você se lembra quantas vezes eu tive que refazê-los quando eu
era garoto?
— Não apenas você, eu também tive que fazê-los de novo várias vezes.
Minha mãe não podia mais escutar a mesma história.
Nossas risadas ecoaram com meus passos e as suas pedaladas, enquanto nos
lembrávamos de alguns absurdos feitos quando éramos garotos. Outras boas
recordações.
Na minha frente, embora ainda longe, vi a outra ponte. O nevoeiro estava
abaixando lentamente até o nível do rio e eu podia ver a parede cinza de
proteção para os carros que circulavam na ponte.
Não que passem muitos a esta hora no domingo.
Meus olhos se fixaram em um pequeno ponto preto que estava no meio da
ponte, bem ao lado de um dos cabos vermelhos que a sustentavam. Em primeiro
lugar, pensei em um carro. Talvez esteja quebrado? A resposta me veio
imediatamente.
Mas, aquele ponto é pequeno demais para ser um carro.
Completamente focado, ouvi um barulho de fundo que era a voz do
Thomas, ele continuava dizendo alguma coisa enquanto ria. Movido por uma
estranha sensação de urgência, instintivamente meus pés aceleraram e a voz de
Thomas se perdeu atrás de mim.
O pontinho preto tornou-se maior e mais claro sob meu olhar atento,
transformando-se em uma pequena forma.
Caralho! É uma pessoa. O que ela está fazendo na ponte? Ela não sabe que
é proibido ficar lá?
Minha mente rapidamente me trouxe de volta no tempo, com as belas
lembranças dos nossos saltos no verão, enquanto sentia os músculos das minhas
pernas se contraindo com o esforço. Havia algo que não se encaixava naquela
memória.
Nós saltávamos da outra ponte, não desta!
Naquele momento, a forma, que descobri pertencer a uma pessoa elevou-se
em toda a sua altura acima do muro de proteção e, com os braços estendidos
como Cristo na cruz, lançou-se da ponte, jogando-se na água.
Não... não, um suicida! Não!
A ponte não era muito alta, apenas uma dúzia de metros a separava da água.
Mas todos sabíamos que saltar daquela ponte era proibido por lei. O perigo real
estava bem ali embaixo. Ao longo dos séculos, as rochas tinham-se desgastado
devido às fortes correntes e formaram, bem no meio, uma passagem estreita o
suficiente para criar um enorme vórtice de água.
Ele mergulhou no meio do redemoinho!
Naquele momento eu já estava correndo como um louco, enquanto gritava
ao Thomas:
— Chame uma ambulância! Alguém pulou da ponte!
— O quê?!
Eu não estava correndo na direção da ponte. Se a pessoa tivesse sobrevivido
ao redemoinho, a força da corrente a teria feito passar na minha frente em
poucos segundos, levando-a direto para a cachoeira. Eu corria em uma direção
perpendicular à água, obstinadamente procurando pela forma. Pensei ter visto
uma cabeça subindo nas águas turbulentas.
Se ele sobreviveu ao vórtice, não terá a mesma sorte com a cachoeira!
Desesperadamente cheguei à beira do rio, tirei meus sapatos o mais rápido
possível, meus olhos procuravam de costa a costa, tentando, entre as nuvens de
neblina, vê-lo de novo. Thomas apareceu ao meu lado, sem fôlego, enquanto
jogava a bicicleta no chão.
— O que você disse? Alguém... Porra, o que você está fazendo, Adam?
Eu não tinha tempo para explicar. Entrei na água procurando ansiosamente
a forma. Senti meus pés congelarem, abaixei-me apressadamente enquanto
pegava água em punhados para molhar a nuca e rapidamente abaixar a
temperatura do corpo. Felizmente eu estava usando roupas especiais para
corrida, que eram leves, mas térmicas, o que teria me aquecido o suficiente.
Graças a Deus ainda não é inverno.
— Chame a ambulância, Thomas.
Essa foi minha última frase antes de mergulhar na água. O choque térmico
me cortou o fôlego. O silêncio me envolveu enquanto tentava me orientar entre
as plantas que cresciam nas margens. A inclinação descia reta e a corrente me
trouxe rapidamente para o meio do rio.
Senti a pressão na cabeça, como se fosse estourar, mas felizmente estava
familiarizado com a sensação porque nadava desde criança. Exceto por raras
exceções, nadávamos na piscina externa, que não era aquecida, até meados de
outubro. Naqueles segundos mortais, vi o rosto do meu professor enquanto ele
nos dava conselhos sobre como nadar em água fria. Em seguida, lembrei-me dos
jogos que fazíamos, para encontrar pequenos objetos que eram jogados no fundo
da piscina, ao final das lições. Eu sabia que tinha que encontrá-lo naqueles
poucos minutos, enquanto tinha oxigênio. Toda vez que eu voltasse à superfície
para respirar, as chances de encontrá-lo se reduziam à metade.
A água limpa me ajudava a enxergar à distância, mas era tudo desfocado;
plantas e rochas me confundiam. Eu estava quase sem oxigênio e me preparava
para voltar à superfície, quando vi, alguns metros à minha frente, a forma que,
completamente submersa era levada pela corrente.
Naquele momento, fui invadido pelo desespero. Se eu voltasse a respirar, o
perderia. Se eu nadasse, provavelmente teríamos ambos morrido.
Pense, Adam. Rápido!
O instinto decidiu por mim. Subi o mais rápido possível, enquanto olhava a
forma. No momento em que senti a névoa quente ao meu redor, respirei fundo e
mergulhei novamente.
Se eu não o encontrar rapidamente, as cãibras começarão.
Tenho que manter a calma.
Retornei nadando onde, alguns momentos antes, eu o tinha vislumbrado,
pelo menos aquela parecia a direção certa. Era como procurar uma agulha num
palheiro. Depois de outros momentos alucinados, eu o vi, pouco mais adiante,
mas quando meus braços se esticaram para agarrá-lo, peguei apenas água. Eu o
tinha perdido por pouco ou talvez fosse o efeito da refração debaixo d’água.
Se eu estivesse com os meus óculos de natação!
Na esperança vã de tê-lo agarrado, desperdicei oxigênio, mas fiz uma
última tentativa antes de ter que subir.
Eu tenho que conseguir ou ele não vai sobreviver!
Aproximei outra vez e minha mão tocou o que me pareceu ser um membro.
Eu apertei com toda a minha força e o puxei para mim.
É uma mulher!
Seus longos cabelos flutuavam ao redor do rosto, que era curvado para trás.
Por um momento, a cena que apareceu à minha frente parecia um sonho, algo
etéreo, como um anjo que girava suavemente no ar.
Cheguei à superfície usando as últimas reservas de ar e passei meu braço
sob sua axila, trazendo suas costas contra o meu peito, em um movimento de
resgate. O ar da superfície era como bálsamo para meus pulmões em chamas.
Certifiquei-me de que ela estivesse com o rosto fora da água e, com as poucas
forças restantes, comecei a nadar usando as pernas e o único braço que tinha
disponível, enquanto nos arrastávamos lentamente em direção à costa.
Por favor, não posso perder as minhas forças agora.
A corrente forte e os sintomas do começo de uma cãibra na panturrilha me
fizeram pensar no pior. Contraí o maxilar, esperando a dor me investir
integralmente. Quando isso aconteceu, continuei a nadar com a outra perna
enquanto sentia o músculo se contrair, causando-me uma dor alucinante.
Concentre-se no seu braço e na perna boa.
Olhei para trás para ver onde estávamos, mas acima de tudo para ver o quão
longe estávamos da cachoeira, quando ouvi os gritos de Thomas que me
encorajaram a continuar.
— Vem, Adam, você já está perto. Olhe para mim... Estou aqui ao teu lado.
Não desista agora!
Minhas forças estavam me abandonando, estava perdendo o vigor físico
para segurar a mulher. Àquela altura, a situação parecia desesperada, quando
senti a mão de Thomas me agarrar e nos arrastar para a superfície.
Eu estava me afogando!
— Resisti, brother! Estou aqui com você, respire.
Ele nos puxava para a parte baixa da água, eu nem sequer tinha forças para
ajudá-lo. Cuspindo água, eu disse:
— Eu não aguento mais.
Meu corpo desabou sobre si. A voz de Thomas me alcançou de longe.
— Adam, não! Não desista agora.
Não sentia mais o meu corpo e minha mente estava completamente
ofuscada. Meus dentes batiam com tanta força que não conseguia falar.
À distância, ouvi vozes e os gritos de Thomas.
— Estamos aqui!
— Eles estão chegando, aguente.
Eu senti outras mãos me arrastando para fora da água. As pedras
arranharam minhas costas, mas eu nem me importava. Estou vivo. Obrigado
Senhor!
— Sal... ve-a... Tho... mas...
Tudo ficou escuro.
Table of Contents
Críticas literárias para este livro
1. A cascata
2. esperança
3. A minha ‘velha vida’
4. O encontro
5. O hospital
6. Ele
7. Ela
8. Tomando nota
9. Doutor ‘Patrón’
10. A história
11. O plano
12. A fazenda
13. Novos sentimentos
14. Atração
15. 'Grande amigo'?
16. Novo amigo
17. Consciência
18. A reunião
19. O temporal
20. A praia no rio
21. Sentimentos em jogo
22. Arriscando tudo
23. Puro prazer
24. Adeus?
25. A floresta
26. Entrega da mercadoria
27. Acerto de contas
28. Desolação
29. Dúvidas
30. Xeque-mate
31. Adeus
32. Chegando ao fim
33. Desespero
34. Alguns anos depois...
Algo sobre mim e os meus agradecimentos

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