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L F Freitas

O Bebê do Cowboy
2020
TODOS OS DIREITOS RESERVADOS

Copyright© LF Freitas

Capa: Bia Carvalho


Sumário

Sinopse
Playlist
Prólogo
Capítulo um – Sucessão de ruínas
Capítulo dois - Invasor
Capítulo três - Invasora
Capítulo quatro - Reconhecimento
Capítulo cinco - Maldito cowboy!
Capítulo seis – Conflitos
Capítulo sete - Descoberta
Capítulo oito - Lembranças evitadas
Capítulo nove - Trégua
Capítulo dez – Disputa
Capítulo onze - Ajuda
Capítulo doze - Susto
Capítulo treze - Acompanhante
Capítulo catorze - Apenas um simples beijo
Capítulo quinze – Nuvens
Capítulo dezesseis – Confissão
Capítulo dezessete - Tempestade
Capítulo dezoito - Abrigo
Capítulo dezenove – Incêndio
Capítulo vinte - Apenas o agora
Capítulo vinte e um – Presente especial
Capítulo vinte e dois – Dias de paz
Capítulo vinte e três – Pesadelo
Capítulo vinte e quatro – Salvamento
Capítulo vinte e cinco - Onde deveríamos estar
Epílogo
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Contatos da autora
Sinopse
Tudo na minha vida sempre foi na base do impulso, seguindo
meus instintos. Era um homem do interior, um cowboy que seguia os
passos do pai e amava a vida na fazenda. Era lá que eu sonhava em
viver junto à mulher que eu amava e aos filhos que eu acreditava que
teríamos... Mas as coisas não aconteceram exatamente assim.
Após uma traição e separação, fui abrigado pelo meu patrão na
casa de férias que seu filho havia praticamente abandonado. O plano
era ficar por lá até minha nova moradia ficar pronta, para reiniciar uma
vida solitária. Até que alguém apareceu por lá sem aviso.
Alice, neta do meu patrão, decidiu passar alguns meses na
fazenda. Tinha perdido o emprego, saído de um relacionamento
tumultuado e... estava grávida.
Éramos apenas duas crianças da última vez que nos vimos, ela
era uma garotinha teimosa, metida a jogar futebol com os meninos.
Vivíamos discutindo, eu não a suportava e isso era recíproco. Quem
diria que ela ao crescer se tornaria uma mulher tão linda que, embora
ainda tão petulante, fosse capaz de mexer tanto com o meu corpo... e
com o meu coração?
Playlist

Take Me Home – Phil Collins


Lost – Katy Perry
Nobody's Home – Avril Lavigne
Home – Foo Fighters
Coming Home – Sigma Feat. Rita Ora
Carry You Home – James Blunt
Fogo – Capital Inicial
Cue The Rain – Lea Michele
Don't Forget Where You Belong – One Direction
Por Enquanto – Cássia Eller
Almost Home – Mariah Carey
Alien – Britney Spears
Walk Me Home – Pink
Quase sem querer – Legião Urbana
Casa - Lulu Santos
Respirar – Sandy
Still Learning – Halsey
Lágrimas e chuva – Kid Abelha
Home – Gabrielle Aplin
Two Pieces - Demi Lovato
93 Million Miles – Jason Mraz
Already Home - A Great Big World
Os outros – Leoni
Take Me Home – Jess Glynne
Home – Phillip Phillips
Black and White – Niall Horan
Home - Michael Bublé
Prólogo

“Take that look of worry, I'm an ordinary


man (Tire esse olhar de preocupação,
eu sou um homem simples)
They don't tell me nothing, so I'm
finding out all I can (Eles não me
contam nada, então eu descubro o que
posso)
There's a fire that's been burning right
outside my door (Há uma fogueira
queimando bem do lado de fora de
minha porta)
I can't see, but I feel it, and it helps to
keep me warm (Eu não posso ver, mas
eu sinto, e me ajuda a me manter
aquecido)
So I, I don't mind, oh I, I don't mind”
(Então eu, eu não me importo, oh eu, eu
não me importo)

Take Me Home – Phil Collins

MARCELO

Eu não costumava lembrar de datas. Cristiane sempre


disse que eu era meio bronco, e ela tinha um pouco de
razão nisso. Mas dessa vez, eu não apenas tinha
lembrado, como preparei uma surpresa especial.
Era o nosso aniversário. Quatro anos de casamento.
Lembro quando decidimos nos casar. Eu tinha
dezenove e ela dezoito, e todos os nossos amigos diziam
que éramos muito jovens para isso. Não demos atenção,
afinal, nós nos amávamos e queríamos construir uma
família juntos.
Bem, ao menos eu a amava. E acreditava que isso
fosse recíproco.
Terminei meu trabalho do dia em tempo recorde.
Desde moleque que eu ajudava o Senhor Bernardo com a
fazenda, e aquilo era o que eu mais amava fazer. Lembro
dos sonhos da minha mãe de que eu fosse para cidade,
fizesse uma faculdade e me tornasse doutor, mas nada
disso nunca foi para mim. Eu era um cowboy, como o meu
pai tinha sido. Estava impregnado no meu sangue e na
minha alma, e nenhum escritório com ar condicionado
numa porra de cidade grande seria capaz de me fazer feliz
como a fazenda me fazia.
E era justamente por amar tanto o meu trabalho que
eu nunca tirava férias. Aquela seria a primeira vez e o
motivo era mais do que nobre.
— Já está indo, garoto? — Senhor Bernardo me
perguntou parando na entrada do estábulo, onde eu tinha
ido buscar Hades, meu garanhão.
Não importava que eu já fosse um homem adulto e
tivesse quase o dobro do tamanho dele, seu Bernardo não
perdia aquela mania de me chamar de ‘garoto’. Não era
menosprezo nem nada sequer parecido, mas um hábito de
quem me conhecia desde que eu ainda usava fraldas.
— Sim, senhor. Quero fazer uma surpresa para a Cris.
De jeito nenhum que ela espera que eu vá chegar em casa
no meio da tarde, ainda mais com um presente desses.
Ele sorriu e acenou com a cabeça, embora eu
soubesse que no fundo ele não tivesse aprovado muito a
minha ideia. Não por mal, mas o senhor Bernardo de fato
me via como um filho – ou neto, já que isso estava mais
próximo da nossa diferença de idade – e estava
constantemente preocupado com o meu futuro. Sabia que
eu era bem responsável e há anos fazia minha economias,
e me ver decidindo gastar uma generosa parte delas com
uma viagem de dez dias para o Rio de Janeiro – com
direito a hotel de luxo de cara para o mar – o preocupava.
Mas o que fazer, se aquele era o maior sonho da
minha esposa? Por isso aproveitei uma das minhas idas
até a cidade mais próxima e fui a uma agência de turismo,
onde optei pelo pacote mais luxuoso que eles pudessem
ter. Com tudo incluso: passagens, hospedagens, passeios
turísticos, alimentações, e até um tal de translado que eu
antes nem fazia ideia do que seria, tudo para dez dias de
passeio pela cidade maravilhosa, que também era a cidade
dos sonhos dela. Partiríamos em três dias, apenas o tempo
de organizarmos tudo. Ela certamente ia querer comprar
roupas novas e passar um dia inteiro no salão antes de ir.
Aquela coisa de cidade grande não me enchia os
olhos. Mas era o maior sonho na vida da Cris – na verdade,
o segundo maior. Porque mais do que passear, o que ela
queria mesmo era morar em uma, coisa com a qual eu não
concordava. Mas se eu podia fazer aquilo por ela, levá-la
até lá ao menos para ela conhecer, com direito a todas as
regalias que ela merecia, eu faria. Tudo para vê-la feliz.
— Estou certo de que ela ficará muito feliz, garoto.
Agora vá fazer a sua surpresa e aproveitem o aniversário.
Assenti e montei em meu cavalo, pegando o rumo de
casa. Enquanto cavalgava, sentia o vento da fazenda
batendo contra o meu rosto e reforçava em minha mente o
quanto achava aquele o melhor lugar do mundo. Era o meu
lugar. Dez dias viajando seriam uma verdadeira tormenta.
Mas pela Cris valeria a pena.
Parei em frente à nossa casa e desci de Hades.
Estranhei o fato de encontrar um carro parado diante do
nosso portão de madeira. Estaríamos com visitas? Seria
um péssimo momento para isso. Estava planejando
surpreender Cris com os presentes: a notícia da viagem e
um vestido que comprei para ela e tinha deixado escondido
no fundo do guarda-roupas. Pretendia que ela o usasse
para sairmos juntos para jantar na cidade mais próxima.
Não seria nada com o luxo que ela desejava – e merecia –
mas era o que poderíamos fazer morando em uma área
rural. Isso, claro, apenas à noite. Depois de contar sobre a
viagem, esperava que nós dois comemorássemos de outra
forma, apenas nós dois, em nossa cama.
Mas alguém pareceu chegar antes de mim com a ideia
de um pouco de diversão a dois.
Entrei em casa e chamei pelo nome de Cris, sem obter
qualquer resposta. Achei que tudo estava quieto demais,
até começar a ouvir sons peculiares que vinham... do
nosso quarto. Fui até lá e abri subitamente a porta,
encontrando minha mulher rebolando em cima do pau de
um filho de uma puta qualquer.
— Que porra é essa? — gritei, furioso.
O sujeito se levantou da cama em um pulo, quase
fazendo com que Cristiane caísse no chão. Minha mente
ainda lutava para processar a cena que eu tinha
encontrado ali: minha esposa completamente nua, com
outro homem, fazendo sexo na nossa casa... na nossa
cama.
Na porra do nosso aniversário de casamento.
— Cris, você disse que ele só chegava à noite — o
maldito reclamou, enquanto recolhia suas roupas pelo
chão.
Encarei Cristiane, enquanto ela inutilmente tentava
cobrir o corpo nu com as mãos.
— Marcelo, o que está fazendo em casa a essa
hora?
Apertei os punhos com ódio e respirei fundo,
tentando manter o que restava da minha sanidade. Fui até
o guarda-roupas e peguei uma bolsa velha de viagem,
colocando algumas poucas peças de roupa dentro dela,
enquanto ouvia a voz de Cristiane a dizer qualquer coisa
que eu sequer conseguia compreender. Havia no meio
choro e pedidos de perdão, e eu sinceramente preferia não
a olhar para não dizer as coisas que eu queria. Eu era
ainda uma criança quando meu pai morreu e pouco mais
que um adolescente quando minha mãe também se foi,
mas ambos me ensinaram que não se deve tratar mal uma
mulher. Mesmo sendo esta uma desgraçada traidora.
— Vou mandar alguém vir buscar o resto das
minhas coisas — comuniquei de forma seca. Cristiane
tentou me segurar, mas puxei o braço com força e segui
para sair do quarto.
No entanto, acabei, na porta, esbarrando com o filho
da puta que há poucos minutos estava trepando com
minha mulher. Dessa vez, não consegui me conter e
acertei em cheio um murro bem no meio daquela cara
horrorosa. Enquanto ele caía no chão como uma porra de
uma banana podre, eu saí. Do quarto, da casa, do
casamento que eu achava que era perfeito.
Capítulo um – Sucessão de
ruínas

“Caught in the eye of a hurricane (Presa


no olho de um furacão)
Slowly waving goodbye like a pageant
parade (Acenando lentamente como
uma parada de representação histórica)
So sick of this town pulling me down
(Tão cansada dessa cidade me puxando
pra baixo)
My mother says I should come back
home but (Minha mãe diz que eu devo
voltar pra casa, mas)
Can't find the way cause the way is
gone (Eu não consigo achar o caminho,
pois ele se foi)
So if I pray am I just sending words into
outer space (Então se eu rezar eu só
estarei enviando palavras pro espaço)

Have you ever been so lost? (Você já


esteve tão perdido?)
Known the way and still so lost?
(Conhecia o caminho e mesmo assim
se perdeu?)
Another night waiting for someone to
take me home (Outra noite esperando
alguém pra me levar pra casa)
Have you ever been so lost?” (Você já
esteve tão perdido?)

Lost – Katy Perry

ALICE

Acordei sobressaltada com o som do despertador e


sentei-me na cama sentindo meu coração disparado e as
gotas de suor escorrendo pelo meu rosto.
De novo, aquele maldito pesadelo. As imagens nele
não eram claras, era como se eu estivesse imersa na
escuridão, como se meu corpo flutuasse no vazio e eu
pudesse apenas ouvir... A voz da minha avó ao telefone,
me garantindo que iria assistir a um jogo importante meu,
que não perderia por nada, que eu era o seu maior orgulho;
os gritos do treinador para que déssemos o nosso melhor;
os gritos animados da torcida quando fiz o gol da vitória; a
minha própria voz na minha mente me perguntando,
enquanto olhava para meus pais na arquibancada, por que
meus avós não estavam ali; e, uma hora após o final do
jogo, o toque do telefone do meu pai e o choro dele ao
atender e receber a notícia.
Nesses sonhos, às vezes eu também podia ouvir
aquilo que não presenciei. A chuva forte sobre a lataria do
veículo, a buzina do caminhão; o som dos pneus do carro
se arrastando pelo asfalto na tentativa de frear a tempo; o
impacto da batida; o coração da minha avó aos poucos
parando de bater.
A psicóloga que me atendeu na época me deu alta
depois de vários meses, mas eu sabia que, no fundo, não
havia superado. Eu tinha apenas quinze anos na
época. Agora, adulta, aos vinte e dois, as dores deviam ser
mais fáceis de serem suportadas, não é?
Lutei para afastar aqueles pensamentos da minha
cabeça e me levantei, indo diretamente para o banheiro,
onde tomei um longo banho gelado. Voltei para o quarto e,
enquanto me arrumava, peguei meu celular sobre a mesa
de cabeceira e verifiquei as mensagens. Eu tinha enviado
dezenas para o Guilherme nos últimos três dias, sem
receber qualquer resposta. Não que eu fosse o tipo de
namorada pegajosa ou possessiva, mas quando alguém
desaparece por três dias inteiros, nossa mente já passa do
estágio “ele está com outra” para cogitar coisas como
sequestro, assassinado ou abdução. Óbvio que, sendo
lógica, eu sabia que não era nada tão grave assim. Já fazia
algum tempo que nosso relacionamento estava na UTI, ele
devia apenas ter se cansado de vez. Mas seria bem digno
da parte dele me dizer isso de forma direta e não
meramente sumir.
Peguei minha mochila, o celular, as chaves do carro e
saí. Passando pela cozinha, peguei um pacote de biscoito
e fui comendo no elevador enquanto descia para a
garagem do prédio. Estava já em cima da hora e não daria
tempo de tomar um café com calma. Cheguei ao clube e,
após passar no vestuário para trocar de roupa, colocando
meu uniforme, segui para o treino. Teríamos um jogo
importante dali a dois dias e precisávamos nos preparar.
Como sempre, o aquecimento consistia em uma corrida de
alguns minutos ao redor do campo. Lembro de ter
completado apenas uma volta, quando tudo ficou escuro.

*****
Seis dias depois...

Estar de volta à casa dos meus pais talvez não


tivesse sido a melhor das escolhas. Mas lá estava eu, no
meu antigo quarto. A parede se mantinha do jeito que a
deixei: cheia de quadros com dizeres motivacionais
misturados a frases do hino do meu time. Sobre a cômoda,
ainda estavam alguns álbuns de figurinhas de edições
passadas de Copa do Mundo. No chão, no canto próximo
ao armário, minha antiga bola de futebol.
Eu era a menina que sonhava em se tornar uma
jogadora profissional, e tinha como maior objetivo da vida
algum dia integrar a equipe feminina da seleção brasileira.
A primeira parte do sonho eu havia realizado. Já a
segunda, eu nunca saberia se algum dia chegaria a
conquistar porque... Bem, porque tudo tinha sido
interrompido.
Alguém bateu na porta, antes de abri-la devagar. Na
fresta entreaberta, avistei o rosto do meu pai.
— Ei, posso entrar?
Sorri, indo recebê-lo com um abraço.
— Você praticamente já entrou.
— Quando sua mãe falou que você tinha chegado
eu quase não acreditei. Decidiu fazer uma surpresa?
Eu o soltei e, após receber um beijo na testa, fui me
sentar na beira da minha antiga cama, enquanto respondia:
— Vai ser só por alguns dias. Mamãe acha que não
é bom que eu fique sozinha. Acho que ela tem medo de
que eu possa morrer a qualquer momento.
Forcei um sorriso, embora no fundo compreendesse
bem a paranoia da minha mãe. Porque eu, de fato, estava
muito longe de estar bem. Na última semana, toda a minha
vida havia ruído por completo.
Passei mal durante um treino importante, desmaiei,
fui levada a um hospital e... Descobri que estava grávida.
Não só eu, como o meu treinador também descobriu. Dois
dias depois, meu contrato com a equipe e com os
patrocinadores estava reincidido. Eu era atleta profissional
do time há dois anos. Era o meu emprego. De lá vinha o
meu salário. Não era nada considerável – mesmo em um
time profissional, futebol feminino ainda não era algo que
se pudesse chamar de área rentável. Mas era o salário que
pagava meu aluguel, minhas contas e meu sustento. Eu
tinha algumas economias. Além delas, tinha ainda uma
poupança na qual eu não pretendia mexer tão cedo, mas
que me daria algum tempo até...
Até quando? Até eu arrumar outro emprego?
Mas jogar futebol era tudo o que eu sabia fazer na
minha vida. Não fiz faculdade, não me especializei em mais
nada, não tive qualquer outro emprego além daquele – eu
jogava profissionalmente desde os quinze anos.
Voltando à minha sucessão de ruínas...
Depois de muito insistir, consegui localizar o meu
suposto namorado. Suposto, porque, aparentemente,
apenas eu acreditava nisso. Quando contei a ele da
gravidez, o que ouvi era que não tínhamos nada sério, que
era apenas curtição e que ele não estava preparado para
assumir algo como uma criança. Ainda precisei ouvir o
idiota insinuar que não teria como saber se o filho era dele.
— Eu sempre te disse que aquele moleque era um
imbecil — meu pai falou, irritado, enquanto puxava a
cadeira da minha penteadeira e se sentava, de frente para
mim. Meu pai sempre foi um homem tão calmo, que vê-lo
irritado com algo chegava a doer o meu coração. Mais uma
culpa para as minhas costas. — Ele não vai fugir da
responsabilidade. Você não fez esse filho sozinha.
— Você tem toda a razão, pai: ele é um imbecil. E
não sei se quero um pai desses para o meu filho. Já decidi
que vou assumi-lo sozinha.
— Melhor ainda, então. Só assim não terá problema
algum se eu o matar.
— Tem, é claro que tem. Você será preso se fizer
isso. Consegue me imaginar com uma barriga enorme de
grávida indo te visitar em uma penitenciária?
Nós dois rimos juntos, e foi então que percebi que ir
para casa tinha sido uma decisão acertada, no fim das
contas. Tinha passado a última semana inteira chorando,
enterrada em minha depressão e nos questionamentos
sobre o que faria da minha vida dali para frente. Quando
contei aos meus pais pelo telefone, eles obviamente
surtaram de ódio do Guilherme – meu ex-namorado – e do
Pedro – meu ex-treinador. Minha mãe surtou bem mais,
mas não porque meu pai não estivesse igualmente
preocupado. Mas porque ele sempre segurava bem a
onda. Assim como o meu avô, ele era o meu porto seguro
e minha base de apoio.
— Não me responsabilizo se ele passar perto de
mim. Mas e você, querida, o que vai fazer agora?
— Eu não sei, pai. Eu sou uma grande inútil,
dediquei a minha vida ao esporte e não me profissionalizei
em mais nada.
— Tem apenas vinte e dois anos, filha. Pode se
profissionalizar no que quiser, tem a vida inteira pela frente.
E também não é o fim da linha para você no futebol. Outro
dia vi uma matéria sobre uma jogadora dos Estados
Unidos, acho, que continua jogando mesmo grávida.
— Uma grande exceção, pai. E eu fui demitida.
Nenhum clube vai querer me contratar nessas condições. E
mesmo depois que o bebê nascer... eu vou ser mãe.
Nenhum time quer uma mãe jogadora.
— Mas não tem uma na seleção brasileira?
— Sério, pai... Não use exceções como exemplo.
Elas são apenas isso... exceções. Estão longe de serem a
regra. O fato é que não sei o que fazer. Enfim, ficarei com
vocês nesse final de semana, e quando eu voltar pra casa
vou...
— Escute, querida... — ele me interrompeu. —
Longe de mim querer te jogar um balde de água fria, mas...
Como vai manter aquele apartamento? Como vai se
manter sozinha? Ainda mais com um bebê a caminho. Tem
a sua poupança, mas achei que não quisesse mexer nela
agora.
— Sei aonde você quer chegar, pai. Mas, não. Voltar
a morar aqui não é uma opção. Não é por sua causa, sabe
disso, mas... A mamãe tem aquele poder único de me
deixar louca. Eu a amo muito, mas... você sabe.
— É, eu sei. Ela às vezes te sufoca. — “Às vezes”
era uma delicadeza dele. Minha mãe me sufocava o tempo
inteiro. — Mas eu tenho outra ideia para apresentar para
você. Meu pai me ligou ontem à noite, e...
— Você contou para o vovô?
— É. Tive que contar. E, se quer saber, ele ficou
bem animado com a ideia de ser bisavô.
Eu sinceramente não esperaria nenhuma outra
reação do meu avozinho. Assim como com o meu pai, eu
também era muito próxima a ele, e também da minha avó,
que infelizmente tinha falecido há sete anos.
Papai prosseguiu:
— Seu avô deu a ideia de você passar algum tempo
na fazenda.
E fazia, também, sete anos que eu não pisava na
fazenda. Apesar de o lugar estar abarrotado de lembranças
da minha avó, não era por isso que não havia mais
retornado. Mas foi na época em que comecei a me
empenhar mais no futebol, e que comecei a jogar
profissionalmente, e com isso a minha vida acabou
tomando outro rumo completamente diferente. A ideia de ir
para lá não era ruim. Eu amava aquele lugar. Muito.
Lembro que sempre disse que, se não fosse minha carreira
como jogadora, adoraria morar lá. Mas, definitivamente,
não daquele jeito.
— Pai, não quero dar trabalho ao meu avô.
— Imaginei que fosse dizer isso, querida. Mas não
estou dizendo para ficar na casa do seu avô. Temos uma
casa lá, esqueceu? Sabe que sua mãe odeia aquele lugar
e por isso não vamos para lá há anos. Você podia ficar lá.
— Quer dizer morar lá? Pai, grávida ou não, eu
preciso trabalhar. Não só pelo dinheiro, porque tenho
minhas economias e, sem ter que pagar aluguel, eu ficaria
bem por um bom tempo, mas eu preciso... você sabe...
ocupar o meu corpo e a minha mente.
Não precisei entrar em detalhes para que meu pai
compreendesse.
— Seu avô já passou dos setenta anos, querida. Ele
está sempre reclamando que não está dando conta de
administrar a fazenda. O sonho dele era que eu fosse para
lá para ajudá-lo nisso, mas, você sabe...
— Que minha mãe odeia mato? É, eu sei.
— Pois é. Seu avô tem pessoas de confiança
cuidando da parte braçal do trabalho, mas agora está
querendo contatar alguém para as questões
administrativas.
— Deixa eu adivinhar: então você me indicou para o
cargo? ...Pai, eu não tenho formação de administração.
— Nem o seu avô tem. Aliás, ele sequer concluiu o
antigo segundo grau, e sempre cuidou muito bem de tudo.
Ele pode te ensinar o que você precisar aprender.
Em um primeiro momento, achei a proposta
completamente descabida. Contudo, logo pensei melhor a
respeito. A ideia não era ruim, no final das contas. A casa
dos meus pais na fazenda estava basicamente
abandonada há anos. Eu precisava de um lugar para morar
e eles de alguém que cuidasse do imóvel. Eu precisava de
um trabalho, e meu avô de alguém de confiança para
trabalhar com ele. E, mais do que tudo: eu sentia que
precisava de algum lugar para poder fugir. Por alguns
meses, talvez um ano ou quem sabe um pouco mais. Um
lugar onde eu pudesse respirar estando longe de tudo e de
todos, e, ao mesmo tempo, junto a uma família. Junto a
lembranças acolhedoras da minha avó. Ter uma gravidez
tranquila e pensar no que faria da minha vida depois que o
bebê nascesse. E eu amava aquela fazenda.
Não seria a soma das condições perfeitas?
Por fim, disse ao meu pai que iria pensar. Porque,
por aquele fim de semana, a única coisa que eu queria era
descansar, comer a comida da minha mãe, talvez sair pela
vizinhança para reencontrar alguns velhos amigos, e...
tentar me desconectar um pouco do peso das decisões que
precisava tomar na minha vida.

*****
Capítulo dois - Invasor

“I couldn't tell you (Eu não saberia te


dizer)
Why she felt that way (Porque ela se
sentia daquela maneira)
She felt it everyday (Ela se sentia assim
dia após dia)
And I couldn't help her (E eu não podia
ajudá-la)
I just watched her make the same
mistakes again (Eu só a via cometer os
mesmos erros novamente)

What's wrong, what's wrong now? (O


que está errado, o que está errado
agora?)
Too many, too many problems (Tantos,
tantos problemas)
Don't know where she belongs, where
she belongs (Não sabe aonde pertence,
aonde ela pertence)

She wants to go home, but nobody's


home (Ela quer ir pra casa, mas não há
ninguém em casa)
that's where she lies, broken inside (É
aí que ela se encontra, destroçada por
dentro)
With no place to go, no place to go
(Sem ter para onde ir, sem ter onde ir)
To dry her eyes broken inside” (Para
secar suas lágrimas, destroçada por
dentro)

Nobody's Home – Avril Lavigne

ALICE

A parte boa de tudo isso é que, com a correria, mal


senti o tempo passar, pensando muito mais nos problemas
imediatos que eu tinha para resolver do que no meu futuro
a médio e longo prazo.
Um mês. Foi o tempo de juntar minhas coisas, me
despedir dos amigos, anunciar boa parte dos meus móveis,
livros e eletrônicos em sites e grupos de venda – não iria
precisar de nada daquilo na casa da fazenda e precisava
fazer dinheiro – fazer as malas, encaixotar o que havia
sobrado, liquidar as contas, entregar as chaves para o
proprietário do apartamento, e... ufa! Tudo pronto, e eu
enfim seguiria viagem para a casa do meu avô. Enfiei tudo
o que iria levar na parte de trás do meu Fiat Mobi e peguei
a estrada.
A ideia de passar a morar – ao menos por algum
tempo – na casa que era dos meus pais até que tinha sido
bem aceita por mim porque o lugar estava praticamente
abandonado há anos. E realmente seria um enorme prazer
ajudar o meu avô em tudo o que ele precisasse. Afinal, eu
de forma alguma concordaria em passar tal tempo à toa.
Eu simplesmente não conseguia cogitar a ideia de não
trabalhar, coisa de quem recebia seu próprio salário desde
os dezesseis anos e morava sozinha desde os dezenove.
Não me permitia trazer problemas, preocupações ou
gastos aos meus pais ou meu avô, embora soubesse que
eles estavam mais do que prontos para me ajudar no
momento em que eu precisasse. Era algo meu, um senso
de independência que eu tinha em mim desde muito nova.
Eu tinha minhas economias na poupança, consegui fazer
algum dinheiro vendendo praticamente tudo do meu antigo
apartamento, e ainda recebi uma razoável indenização do
meu antigo clube. Pelas minhas contas, isso daria para me
manter por um bom tempo.
A viagem durou algumas horas, mas não me importei.
Amava dirigir. O sol já estava se pondo quando cheguei à
porteira da fazenda. Sorri e abri o vidro do carro quando o
tio Sebastião veio me cumprimentar.
— Menina, como está crescida! — ele exclamou, com
aquele enorme sorriso que só ele tinha.
— Tio Sebastião! Não vai me dar um beijo?
— Estou todo suado, menina!
— E desde quando isso é um problema? Eu cresci,
mas ainda sou a mesma menina que só vivia correndo por
aí.
Vencido, ele se abaixou e depositou um beijo na minha
testa, como sempre fazia desde que eu era uma criança.
— Sim, continua correndo atrás de uma bola, mas
agora está chique, te vimos até na TV outro dia.
Continuei a sorrir, não querendo quebrar o clima bom
que estava ali. Em algum outro momento, contaria a ele
sobre minha atual situação de desempregada e grávida.
Agora não era o momento mais adequado.
— Onde estão os seus pais? — ele questionou,
mudando de assunto. — Veio sozinha?
— É, tio. Meu pai gosta muito daqui, mas... sabe como
é a minha mãe, né?
— Sei. Algumas pessoas não se habituam a ficar no
meio do mato. Eu sou o contrário, nunca me acostumaria
com aquela selva de pedras onde vocês moram.
— No meu caso, morava. Ao menos provisoriamente,
vou ficar por aqui com você.
— Tá falando sério, menina? Veio para ficar?
— Como falei, apenas provisoriamente.
— E por quanto tempo pretende ficar?
— Acredito que em torno de um ano. Talvez um pouco
mais, talvez um pouco menos.
— E você vai ficar bem por aqui? O sinal de celular
não é muito bom.
Eu ri. Acho que me ver daquele jeito, dirigindo e
vestida como uma pessoa adulta fazia com que ele se
esquecesse um pouco da minha essência.
— É, mas ainda temos um campo de futebol, não é?
— Ah, isso temos. Todo dia vem uma criançada pra cá
pra brincar, que nem acontecia quando você era pequena.
— Bem, terei companhia caso queira me exercitar um
pouco, então. Espero que o senhor também vá jogar
comigo, como nos velhos tempos.
— Ah, mas agora eu não me garanto mais jogando
contigo, não. Você agora é profissional.
Rimos juntos, e eu mais uma vez me esforcei para
não pensar no quanto aquilo agora fazia parte do meu
passado. Sequer sabia se algum dia voltaria a jogar. Por
mais que soubesse que não fosse tão difícil voltar a ter o
meu condicionamento físico após o nascimento do bebê,
eu passaria a ter um filho. Como submeteria uma criança a
uma rotina constante de viagens para jogos? Não teria um
companheiro para me dar esse suporte. Sei que meus pais
me ajudariam com isso, caso eu precisasse, mas eu queria
ser uma mãe presente.
Afinal, ser mãe também era um sonho meu. Só que
tinha sido realizado com uns dez anos de antecedência
com relação aos meus planos.
Despedi-me do tio Sebastião e segui para casa da
fazenda. Ao chegar lá, encontrei a porta fechada e fiquei
me perguntando se meu avô estaria em casa. Sem
cerimônia, entrei.
— Vovô? Vovô, está em casa? — perguntei
enquanto entrava.
Fui seguindo o cheiro bom que vinha da cozinha,
mas antes que entrasse lá fui praticamente atacada por um
cão de porte médio, que pulou em cima de mim, enquanto
abanava freneticamente o rabo e tentava lamber o meu
rosto.
— Meu Deus, Paçoca! Que saudades! — brinquei
com ela, sentindo meus olhos marejados pela emoção de
ver que, mesmo não me vendo há no mínimo uns três anos
– desde a última vez que meu avô a levou para a casa dos
meus pais quando foi para passar um Natal conosco – ela
ainda se lembrava de mim.
Paçoca era uma vira-lata de pelo caramelo que fora
adotada ainda filhote pelo meu avô há uns doze ou treze
anos. Ela já era uma senhorinha de idade, mas ainda se
mostrava muito disposta em seus pulos em cima de mim.
Provavelmente guiada pelo som da minha voz, uma
pessoa surgiu na porta da cozinha, também parecendo feliz
ao me ver. Mariana já trabalhava já muitos anos para o
meu avô, cuidava da organização da casa e da comida. Ao
me ver, ela veio me acolher em seus braços em um forte
abraço, enquanto Paçoca, enfim parecendo se cansar,
sentava-se no chão ao nosso lado.
— Menina, que bom que está aqui! Seu avô disse
que viria, mas não sabia que seria hoje. Onde estão seus
pais? Eles não vieram com você?
Repeti, então, a mesma informação que eu já tinha
dado a Sebastião:
— Não, Mari, eu vim sozinha. Onde está o meu avô?
— Ele foi à cidade, mas não deve demorar. Vem,
entra, preparei aquele bolo que você adora. Parece que eu
estava prevendo que você chegaria hoje.
Não fui nem louca de recusar. Os bolos da Mariana
eram simplesmente maravilhosos. A comida da minha mãe
era ótima, mas nada para mim se comparava à da Mari,
que era incrivelmente parecida com a da minha avó.
Sentei-me diante da mesa e passei ainda quase
uma hora conversando com Mariana e tomando café com
um delicioso bolo, enquanto fazia carinho em Paçoca, que
ficou ao tempo todo ao meu lado – mas agora eu já não
poderia saber se era apenas pela minha companhia ou se
o cheiro do bolo falava mais alto.
Ao contrário de Sebastião, Mariana já sabia da
minha gravidez. Já tinha previsto que meu avô teria
contado a ela, afinal, ela era quase como uma filha para
ele. Sendo assim, boa parte da conversa girou em torno
disso. Ela mostrou-se animada com a ideia de ter um
bebezinho em breve pela casa, especialmente porque que
eu iria morar lá. Pensei em alertá-la que aquela situação
seria a provisória, mas ela estava tão feliz que deixei a
explicação para outro dia.
A noite havia caído, então depois de um dia inteiro
de estrada o que eu queria era tomar um bom banho e cair
na cama. Por isso, despedir-me de Mariana, informando
que iria me retirar. Ela ainda quis sair para me ajudar com
as malas, mas informei que não precisaria. Saí da casa e
fui até o meu carro, abrindo o porta-malas e pegando
apenas uma parte da bagagem: só uma mala, onde tinha
levado minhas roupas e objetos pessoais que precisaria
com mais urgência. O restante eu deixaria para pegar no
dia seguinte. Pensei que precisaria também ir à cidade
fazer algumas compras, já que a geladeira, obviamente,
estaria vazia.
Não precisava esperar pelo meu avô, já que tinha as
chaves da casa. Assim, entrei. Acionei o interruptor ao lado
da porta, vendo todo o ambiente que se iluminou quando a
luz se acendeu. O imóvel dos meus pais era bem menor do
que a casa principal. Mas era espaçoso e bastante
confortável. Tinha apenas um andar e era composto por
dois quartos, sendo os dois suítes, um banheiro social, um
pequeno escritório, uma sala bem ampla e cozinha
americana. O piso de madeira e os móveis rústicos davam
ao local aquele ar gostoso de casa do interior, e eu pensei
que, ainda que decidisse ficar morando por ali por mais
tempo do que meu autoestimulado prazo médio de um ano,
eu provavelmente não teria qualquer intenção de mudar
nada por ali. Talvez, no máximo, apenas uma pintura nova,
já que a atual já tinha sido feita há alguns bons anos. Mas
não mexeria em nada no acabamento ou nos móveis dali,
mesmo que alguns já estivessem um pouco velhos – afinal,
meu avô construiu aquela casa para os meus pais anos
antes de eu nascer. Eu gostava muito dali. Fazia lembrar
da minha infância, das férias escolares passadas ali e do
tanto que eu chorava quando tínhamos que ir embora.
Aquele lugar me transmitia paz.
Fechei os olhos por um momento e respirei
profundamente, tentando absorver o cheiro de madeira. Foi
interessante perceber que junto a ele veio um aroma de...
produtos de limpeza? Como isso era possível? Acreditei
até mesmo que, pelo tempo em que meus pais não iam
mais para lá, eu fosse encontrar a casa totalmente
empoeirada e talvez até com um indício de mofo por
passar tantos anos fechada. Mas o cheiro dela era de casa
limpa, como se alguém tivesse feito uma boa faxina há
apenas alguns dias, ou mesmo horas.
Será que meu avô tinha mandado alguém limpar
tudo para me receber? Bem, lógico, essa era a única
explicação.
Voltando a abrir os olhos, arrastei a mala de
rodinhas até o lado do sofá, onde a deixei, juntamente com
a minha bolsa, dando uma boa olhada ao meu redor. Vi um
chapéu de cowboy sobre o sofá e isso despertou minha
curiosidade. Só poderia ser do meu pai, obviamente. Mas
ele não costumava usar aquele tipo de adereço. Teria sido
um presente ou coisa parecida?
Voltei a percorrer os olhos pelo ambiente e só então
reparei em um canto, próximo à bancada que dividia a sala
da cozinha, um amontoado de cacos de vidro no chão.
Parecia ser um copo quebrado. Tinha uma vassoura ao
lado e, pela forma como os cacos estavam próximos, dava
para ver que alguém havia juntado e esquecido ali.
Curiosa, fui até lá, abaixando-me para olhar melhor
enquanto pensava a respeito. Meu primeiro pensamento foi
sobre como meus pais podiam ter, em sua última
hospedagem ali, deixado aquele vidro no chão e ido
embora. Provavelmente teria sido o meu pai, já na hora de
ir embora, e minha mãe não deve ter visto. Ela era
neurótica demais por limpeza e organização para deixar
aquilo daquele jeito. Contudo, voltei a me lembrar do
detalhe de a casa estar limpa, o que denunciava que
alguém tinha estado ali nos últimos dias. Provavelmente
tinha sido essa mesma pessoa que tinha esquecido o vidro
quebrado ali.
Ao olhar melhor, no entanto, percebi que tinha o
resto de um líquido no fundo do copo. Inspirando
profundamente, consegui sentir o cheiro de álcool. Certo...
se algum dos empregados, responsável pela limpeza, tinha
decidido beber um pouco depois – ou mesmo durante – o
trabalho, certamente havia trazido a bebida consigo. Nunca
tivemos nada alcóolico em casa. Meus pais não bebiam, e
eu também não.
Ouvi um barulho e, assustada, me levantei. Do outro
lado do sofá estava algo que eu de forma alguma esperava
ver.
Era um homem.
Um homem alto, moreno, de cabelos molhados e…
completamente nu. Os olhos castanhos demonstraram
surpresa ao me ver. Era isso mesmo? Oras, eu estava na
minha casa. E usava roupas, para início de conversa.
Mas que tipo de visão completamente sem sentido
seria aquela? Teria eu ficado alcoolizada com o simples
cheiro do resto de bebida nos cacos do copo? Isso não
fazia qualquer sentido.
Oras, absolutamente nada por ali fazia.
Confesso que o susto me deixou paralisada por
alguns segundos e eu não pude evitar, inconscientemente,
percorrer meus olhos rapidamente por ele, de cima a baixo,
voltando de baixo a cima, e… uau. Uau, uau, uau!
Não podia ser só o álcool. Definitivamente, havia
algo naquela bebida para apenas o seu cheiro me trazer
alucinações daquele tipo. Um homem nu e completamente
lindo bem na sala de casa.
Meu Deus, ele era mesmo lindo. Aparentemente
tinha acabado de sair do banho, devido não apenas aos
cabelos molhados, mas a algumas gotículas de água
visíveis pelo seu corpo. Inclusive, foquei-me em uma que
descia lentamente pelo seu peitoral, chegando ao abdômen
definido. Qual o nível de insanidade em confessar que
sentia um desejo quase incontrolável de detê-la com a
minha língua?
Malditos hormônios da gravidez!
Mas... espera... onde eu estava com a cabeça?
Tinha um homem pelado na minha casa!
Enfim, demonstrei alguma reação coerente ao
momento e gritei, tão alto quanto meus pulmões
aguentavam.

*****
Capítulo três - Invasora

“Stand in the mirror, you look the same


(Diante do espelho, você parece o
mesmo)
Just looking for shelter from the cold
and the pain (Somente à procura de
proteção do frio e da dor)
Someone to cover (Alguém pra me
proteger)
Safe from the rain (Seguramente da
chuva)
And all I want (Tudo que quero)
Is to be home” (É estar em casa)

Home – Foo Fighters

MARCELO

Um mês antes...

A traição da Cristiane me deixou completamente


desnorteado. Porra, ela era a mulher da minha vida – ou eu
ao menos achava que fosse – e não existia qualquer plano
na minha vida que não a incluísse. Até mesmo a merda
daquela viagem, onde eu gastei boa parte das minhas
economias. Eu não queria saber de merda de praia
nenhuma e abominava a ideia de passar dias em meio a
prédios, buzinas e gente engravatada e apressada. Mas
estava disposto a isso por ela, para realizar seu sonho,
para vê-la feliz.
E não existia, também, nada meu que não fosse
também dela. Como o inferno da casa que passei anos
construindo para morarmos juntos, e da qual agora eu só
queria distância. Deixei tudo para trás. Levei apenas
algumas mudas de roupas, meus documentos e Hades,
meu cavalo, que era o que tinha me restado. Ela não
gostava de cavalos – acredito que de animal algum, na
verdade – por isso não havia nenhum laço unindo-a a ele.
De resto, até mesmo o diabo da roupa que eu usava
quando saí daquela casa após ter flagrado a traição me
trazia a lembrança de que Cristiane é que havia me dado
de presente.
Como tirar da cabeça alguém que está tão
intrinsecamente impregnado à toda a sua porra de
existência?
O fato é que eu iria tirá-la, nem que fosse à força.
Por isso, quando saí de casa, foi decidido a definitivamente
deixar tudo para trás. Pouco me importando com o que eu
iria fazer da minha vida miserável.
Naquela primeira noite, dormi ao relento, embaixo
da jabuticabeira que ficava a alguns metros bem em frente
à entrada da casa principal da fazenda. Parecia-me certo
ficar por ali, já que era onde eu deveria estar logo cedo no
dia seguinte, para trabalhar. Há anos que eu era o braço
direito do seu Bernardo, e, não bastasse eu amar aquele
trabalho, estava agora disposto a me jogar de cabeça nele
para tentar tirar aquela cena maldita da minha cabeça.
Acordei pela manhã com os primeiros raios de sol batendo
contra o meu rosto, junto à voz familiar que me chamava.
— Marcelo? Ei, garoto, o que está fazendo aqui tão
cedo? É o primeiro dia das suas férias.
Coloquei uma das mãos na frente dos olhos ao
enfim abri-los, tentando acostumá-los à iluminação. Vi o
rosto de seu Bernardo a me olhar de forma curiosa.
— Já é de manhã? — resmunguei.
Ele franziu ainda mais a testa já enrugada.
— Não me diga que você dormiu aí? Achei que tivesse
ido para casa para comemorar o aniversário de casamento.
Passei a mão pela cabeça, levemente irritado ao me
dar conta de que tinha deixado meu chapéu de cowboy em
casa.
Na porra da casa que não era mais minha. Que
inferno!
— Ela já estava comemorando, Seu Bernardo. Só que
com outro cara.
— Misericórdia... — Seu Bernardo soltou um suspiro e
se abaixou à minha frente. — Quem era o miserável?
— Não faço ideia. Pela cara de playboy e a pele
anêmica de quem nunca pegou sol na vida, deve ser algum
babaca da cidade. — Claro, só podia! Cristiane tinha uma
adoração estranha por qualquer porcaria urbana. Eu só
não sabia que tal gosto se estendia a homens.
Pela primeira vez desde que flagrei a cena, pensei em
quantos pares de galho ela deve ter enfiado na minha
cabeça. Achava pouco provável que aquela fosse a
primeira vez.
— Você já conversou com ela? — seu Bernardo
perguntou, com um tom claro de preocupação em sua voz.
— Conversar? Existe conversa depois de uma merda
dessas?
— Talvez tenha alguma explicação, ou... Tá, não me
olhe desse jeito, eu já entendi. Não existe explicação pra
algo assim. Mas de qualquer maneira, vocês são casados,
precisam acertar as coisas, ou para fazerem as pazes ou
para terminarem tudo.
— Não existe fazer as pazes, seu Bernardo. Traição é
algo que não aceito e não tolero. Já está tudo terminado.
Nós nem somos casados de papel passado nem nada.
Graças a Deus por isso, uma burocracia a menos.
— Mas vocês construíram coisas juntos. A casa de
vocês, por exemplo, precisam entrar em um acordo.
— O terreno era do pai dela.
— Mas a casa foi você quem construiu. Com o seu
dinheiro e o seu suor.
— Não me importo, seu Bernardo. Da mesma forma
que construí algo para mim uma vez, construirei outra.
Tenho o pedacinho de terra que comprei. Cristiane nunca
quis ir para lá porque queria morar mais perto do centro.
Posso construir algo lá, começar do zero. Não quero nada
que venha daquela casa, nem daquela mulher. Tudo o que
construí lá foi por ela e para ela. Nada que venha disso me
fará bem.
— E até lá, vai ficar dormindo embaixo da árvore?
Eu não tinha pensado nisso. Merda, a verdade é que
eu não tinha pensado em absolutamente nada.
— Talvez tenha algum quarto vago na pensão da dona
Arlete.
— Para de besteira, rapaz. Você vai ficar aqui
comigo.
— Não, seu Bernardo. De jeito nenhum. Imagine se
vou abusar desse jeito do senhor.
— Que abusar o quê, Marcelo? Eu te conheço
desde que você usava fraldas. Trabalha pra mim há anos,
é meu homem de confiança na fazenda, além de ser como
um filho, ou como um neto, pra mim. Vê lá se vou te deixar
ficar naquela pensão cheia de pulgas da maluca da Arlete.
A situação era tensa, mas eu quase ri. Eram
lendárias as histórias a respeito de a pensão da dona
Arlete ser suja e mal cuidada, além de sempre dizerem
também que ela tratava mal os seus hóspedes. Mas o fato
era que, na pequena cidade de Vale das Orquídeas, aquela
era a única opção de hospedagem. Contudo, mantive-me
sério e respondi:
— Não posso aceitar isso, seu Bernardo. Me
enfurnar na sua casa seria demais.
— Não precisa ser na minha casa. Tem a casa
anexa. Meu filho e minha nora não vêm pra cá há uns dois
ou três anos, e nem tão cedo pretendem voltar. Carlos não
gosta tanto assim da fazenda, mas a esposa dele
simplesmente odeia. É um favor que você faz ficando
na casa, para ela não continuar vazia. Se você não se
importar de precisar fazer uma boa limpeza nela.
Certamente está um cheiro de mofo dos infernos lá dentro.
Pensei a respeito da proposta. De fato, a casa
estava vazia há tempo demais e se ninguém pretendia
mesmo usá-la, acredito que não faria mal se eu ficasse lá
por alguns meses. Afinal, eu assumiria todos os custos
dela durante esse período e não daria qualquer despesa.
Pelo contrário, poderia até mesmo fazer alguns reparos
que ela precisava. O telhado, por exemplo, na parte da
varanda, que molhava sempre que chovia.
— Se eu aceitar isso, seu Bernardo, será por pouco
tempo. Só até eu construir alguma coisa lá no meu terreno.
E preciso falar antes com o seu filho.
— Pode ficar o tempo que quiser. A casa é usada
pela família do meu filho, mas é minha, eles não vão se
opor. De qualquer maneira, deixe que eu falo com eles.
Agora vá buscar suas coisas e tire o dia para arrumá-las
em sua nova casa, depois descanse um pouco. Está de
férias, esqueceu?
Eu não queria férias. Pelo contrário, queria trabalho,
muito trabalho, o mais braçal e cansativo que tivesse.
Força física e suor eram os melhores remédios para distrair
de qualquer pensamento ou lembrança.
Contudo, naquele dia, aceitaria uma folga. A usaria
para organizar o meu novo e provisório lar.

*****

Um mês se passou e não posso dizer que tenha sido o


mais lento de toda a minha vida, embora também não
tenha se arrastado tanto quanto achei que fosse. As
lembranças me corroíam e faziam com que as horas se
passassem devagar, especialmente à noite. Durante o dia,
contudo, eu havia mergulhado no trabalho mais do que
nunca, e isso ajudava um pouco a esquecer.
O fato é que na semana seguinte ao acontecido,
mandei dois dos garotos que iam sempre brincar na
fazenda irem, mediante um pagamento, claro, até a minha
antiga casa para apanharem algumas das minhas coisas.
Mais alguns dias depois, Cristiane enfim foi me procurar e,
embora eu não estivesse nem um pouco a fim de ouvi-la,
deixei que falasse. Ela pediu desculpas, claro, mas não
pediu para voltar porque, aparentemente, não havia
arrependimento em suas atitudes. Ela agora estava
namorando com o playboy, que prometera levá-la com ele
para São Paulo.
É, eu tive que ouvir toda essa merda.
Ao menos ela teve a decência de me entregar a nossa
– agora minha – caminhonete. Não que eu a usasse muito,
afinal sempre que precisava ir ao centro da cidade
costumava usar a caminhonete do seu Bernardo, e para
qualquer outro lugar mais próximo o Hades era mais do
que suficiente. Mas, se ela tinha ficado com a casa, era
justo que eu tivesse uma mínima reparação.
Não que isso fizesse eu me sentir melhor.
Aquela foi a última vez que a vi. Não sabia se ela
realmente tinha ido embora realizar seu sonho de morar
em uma cidade grande, mas também não me interessava
em saber. Eu só queria um pouco de paz.
Além do trabalho na fazenda, também fiz alguns
reparos na casa. Primeiramente, claro, uma baita de uma
limpeza, porque o local estava com um cheiro fortíssimo de
mofo e os móveis estavam todos impregnados de poeira.
Consertei duas infiltrações: uma na parede do banheiro e
outra na cozinha. E também retoquei a pintura do escritório
e dos quartos – sim, dos dois, até mesmo daquele que eu
não iria utilizar. Era o mínimo que eu poderia fazer para
agradecer ao acolhimento. Ainda faltava pintar o restante
da casa e cuidar do problema do telhado, mas teria tempo
para isso.
Naquele dia, no entanto, o mau humor tinha batido em
mim de jeito. Pedi algumas horas de folga para o Seu
Bernardo, porque precisava ir ao centro de Vale das
Orquídeas, resolver a devolução do dinheiro gasto na porra
do pacote de viagens. Há um mês a agência estava me
enrolando com isso, e essa era a data para eu enfim ir
retirar o meu dinheiro. Quando cheguei lá acabei me
estressando ainda mais, porque alegaram que não
poderiam devolver o valor todo, já que havia umas taxas de
cancelamento incluídas no contrato. Eles tinham razão,
realmente estava lá, no meio das letras miúdas das várias
páginas do documento. Mas é claro que eu, na
empolgação de comprar aquele que eu imaginava que
seria o melhor presente para aquela que eu também me
enganava que era o amor da minha vida, acabei lendo
aquilo com a maior pressa e desatenção do mundo, e
assinei qualquer merda de qualquer jeito. Aquele dinheiro
seria importante, ajudaria muito nas obras que eu estava
prestes a iniciar. Mas só consegui receber uma parte dele,
equivalente a um pouco mais que a metade. Furioso, entrei
na caminhonete e voltei para a fazenda. Da sede da
fazenda ao centro da cidadezinha eram pouco mais de
quarenta minutos de estrada de chão, e eu fui durante todo
esse percurso gritando os piores palavrões que eu
conhecia, amaldiçoando Cristiane, a agência mercenária, o
playboy paulistano e, principalmente, a mim mesmo por ser
tão estúpido.
Ao entrar em casa, tirei meu chapéu, jogando-o sobre
o sofá, mas sequer acendi a luz. Era fim de tarde e ainda
entrava alguma iluminação natural através das frestas da
janela, e eu não me importava que em alguns minutos a
noite fatalmente iria cair. Eu, que sempre fui um amante da
luz do sol, ultimamente vinha me dando bem com a
escuridão. Parecia ajudar a colocar meus pensamentos em
ordem.
Fui diretamente para a cozinha. Dentre as coisas
que solicitei que os meninos me trouxessem estava uma
garrafa de destilado, que fora originalmente comprado por
mim para ocasiões especiais, mas que nas últimas
semanas estava servindo mais como uma espécie de
calmante para os momentos de muito stress.
Enchi um copo com o líquido e tomei-o em um gole só.
Voltei a encher e segui para a sala. Ia começar a beber,
mas ouvi um som de um carro parando diante da casa. Já
era fim de tarde, e com o silêncio da fazenda qualquer
barulho era não apenas facilmente ouvido, como também
suspeito. Deixei o copo sobre a bancada que dividia a sala
da cozinha, fui até a janela e afastei a cortina, vendo que
era uma mulher que se dirigia à casa principal. Ele havia
me falado há algum tempo – antes mesmo da bomba
explodir na minha vida – que estava pensando em
contratar uma secretária para auxiliá-lo nos contatos com
fornecedores e compradores, dentre outras coisas
burocráticas da fazenda, e por qualquer razão intuí que
talvez fosse isso. Pela distância, não consegui ver direito
como era a mulher, mas também não dei atenção a isso.
Não era da minha conta, de qualquer maneira.
Voltei para a bancada e, ao tentar pegar meu copo
sem olhá-lo, acabei esbarrando nele e fazendo com que
caísse, se espatifando no chão. Soltei um palavrão e
peguei uma vassoura para juntar os cacos. O próximo
passo seria tirá-los dali, mas a onda de stress que
atravessava o meu corpo estava tão intensa que decidi que
deixaria isso para depois. Queria tomar um bom banho e
afundar na cama, de preferência apagando por completo
até a manhã seguinte.
Segui pelo corredor, entrando na primeira porta à
direita, que era a do quarto que eu vinha usando. Fui direto
para o banheiro dele, tirei a roupa e entrei embaixo do
chuveiro, deixando a água fria cair sobre meu corpo,
levando embora a sujeira e o suor, quando na realidade eu
queria que levasse a irritação que se aflorava sobre a
minha pele, o stress e, especialmente, a maldita lembrança
de minha agora ex-mulher trepando com aquele playboy
dos infernos.
Ah, e é claro... eu também queria que a água levasse
aquela sensação de ser um completo idiota.
Fiquei algum tempo ali no banho, tentando expurgar
os meus demônios, até que decidi sair. Deixei o banheiro
ainda me enxugando com uma toalha, sem qualquer pudor
de estar completamente nu. Vantagens de se morar
sozinho. Se Cristiane estivesse ali, na certa estaria me
enchendo por estar molhando o chão ou por estar andando
pelado pela casa. Quase podia ouvi-la dizer: “Imagina se
chega uma visita!”. Nenhuma visita chegaria, e foda-se o
chão molhado. Cristiane não estava ali para encher a porra
do saco!
Pensava a respeito disso quando observei, por baixo
da porta, que a luz na sala parecia estar acesa. O que era
estranho, porque eu não me lembrava de tê-la acendido.
Mas minha memória recente não andava muito
confiável, então, não perderia tempo pensando a respeito.
Assim, apenas abri a porta e segui para a sala. Lá
chegando, no entanto, travei ao ser surpreendido, quem
diria, por uma visita.
Quando ela se levantou e me olhou, arregalando os
olhos e também parecendo surpresa pela minha presença
ali, eu de cara a reconheci.
Devia fazer uns oito ou nove anos que eu não a via.
Ela era apenas uma menina e, bem, eu também era só um
moleque quando a encontrei pela última vez na fazenda.
Acho que ela chegou a ir até lá apenas duas ou três vezes
depois daquela ocasião, mas nestas não cheguei a
encontrá-la, já que tinham sido visitas rápidas de apenas
um final de semana. Algo incomum para alguém que, na
infância, costumava passar semanas inteiras de férias por
lá. Porém, é claro, eu sabia o motivo do afastamento.
Assim como eu, ela tinha começado a trabalhar bem jovem
e, contra todas as expectativas, se tornado uma
profissional no esporte que praticava aparentemente de
brincadeira com os garotos no campo da fazenda.
Bem, o fato é que ela não era mais aquela menina-
moleca de treze anos da última vez em que nos vimos.
Agora, era uma mulher, e... puta merda! O esporte
visivelmente fizera bem ao seu corpo. As pernas bem
torneadas estavam visíveis devido à saia que usava, e uma
blusa de alças ressaltava bem os seus seios e a barriga
bem definida. Os cabelos castanhos e volumosos agora
estavam mais curtos e pareciam bater na altura da
clavícula. Os olhos, no entanto, eram ainda como eu me
lembrava deles: de um tom oliva, que ficavam mais verdes
com a luz do sol.
Os olhos, aliás, percorriam o meu corpo em um
misto de curiosidade e surpresa, e senti-me um tanto
confuso com isso até que ela gritou.
Foi só então que me lembrei do “detalhe” de estar
sem roupas.
Que inferno!

*****
Capítulo quatro -
Reconhecimento

“Knowing that I'll find it on my own (Sei


que vou achar por conta própria)
Cause this life ain't leading though
where I can go (Pois esta vida não está
me levando para o caminho certo)
I'm standing still with nothing in my
way (Estou parada com nada a
caminho)
Letting me go so I can find myself again
(Me deixando para trás para me achar
de novo)

I need that (Eu preciso disso)


Ground beneath my feet to feel that
(Chão sob meus pés para sentir aquele)
Ground beneath my feet (Chão sob os
meus pés)

I need that home, I'm coming home (Eu


preciso de casa, estou indo para casa)
I'm coming home (Estou indo para
casa)
Cause this life that I've been living ain't
my home (Pois esta vida que tenho
vivido não é meu lar)
Home, I'm coming home, I'm coming
home (Casa, estou indo para casa,
estou indo para casa)
There's a time that I'm being out here
on my own (Já passou o tempo de ficar
aqui sozinha)
I'm coming home, oh yeah yeah yeah”
(Estou indo para casa, oh yeah yeah
yeah)

Coming Home – Sigma Feat. Rita Ora

ALICE

Quando me dei conta da situação em si, tudo que


pude fazer foi gritar. Afinal o que aquele homem fazia na
minha casa? E sem roupas! É óbvio que não poderia existir
nenhuma boa intenção ali.
Enquanto gritava por socorro, vi que ele enfim
demonstrou algum receio da situação e apanhou um
chapéu de cowboy que estava sobre o sofá, usando-o para
cobrir seu membro - ou ao menos uma parte dele.
Enquanto gritava, fui recuando até a porta, quando esta
subitamente se abriu. Aparentemente, para o meu alívio,
alguém estava vindo me salvar. A figura do meu avô surgiu,
com sua velha espingarda nas mãos e uma expressão
preocupada no rosto. Seus olhos passaram de mim para o
peladão invasor, seu dedo já sobre o gatilho, parecendo
pronto para atirar. Contudo, em poucos instantes ele
abaixou a arma e sua expressão dava a entender que a
presença daquele homem ali fazia sentido. Que bom que
para alguém fazia, já que para mim continuava tão confuso
quanto antes.
— Minha querida Alice — disse meu avô acolhendo
meu rosto com uma das mãos, enquanto eu ainda tremia
apavorada com a invasão a minha casa. — O que está
acontecendo aqui? — Os olhos dele voltaram a fitar o
estranho. — Marcelo? Que diabos é isso? É bom ter uma
boa explicação para estar assim na frente da minha neta!
Talvez essa fosse uma razão para me acalmar um
pouco já que o meu avô aparentemente conhecia o cara.
Mas isso, claro, não alterava o fato de que ele tinha
invadido minha casa e estava sem roupas.
O tal Marcelo começou a falar:
— Eu não fiz nada demais, seu Bernardo. Acabei de
sair do banho e encontrei com sua neta aqui.
Enfim, eu consegui me manifestar:
— E por que inferno estava tomando banho na
nossa casa?
Meu avô suspirou, parecendo enfim compreender o
que acontecia. Esperava sinceramente que estivesse
disposto a me explicar.
— Não imaginei que você chegaria e viria direto pra
cá, querida. Achei que antes fosse me ver, e então eu
poderia te explicar a situação. — Ele fez uma pausa,
olhando para o peladão que ainda usava o maldito chapéu
para tentar se cobrir. — Oras, Marcelo, vá vestir uma
roupa, sim? Quero conversar com a minha neta, mas com
você desse jeito a coisa fica meio desconfortável.
Parecendo tão confuso quanto eu, ele assentiu e saiu
andando de ré, entrando em um dos quartos – aquele que
costumava ser dos meus pais. Voltei a olhar para o meu
avô.
— Eu fui te ver, vô. Mas o senhor não estava em casa.
O que tem para me explicar? Quem é aquele homem e o
que ele está fazendo aqui?
— Então, é o Marcelo... Não se lembra dele? Vocês
estavam sempre brincando juntos quando eram pequenos.
Tentei puxar pela memória, e não levei mais do que
alguns segundos para me lembrar de um menino com
aquele nome. A demora maior para tais memórias virem à
tona foi devido à pista falsa que meu avô me deu. Nós não
vivíamos brincando. Nós vivíamos brigando.
— Tá, acho que lembro dele. — Eu não achava, aliás.
Tinha certeza. Como esquecer daquele garoto bronco que
vivia implicando quando eu queria jogar futebol com os
outros meninos, dizendo que meninas não sabiam jogar e
outras coisas nesse estilo? — Mas ainda não entendi o que
ele faz pelado aqui.
— Ele teve uns problemas nos últimos dias.
— Que coincidência, eu também — ironizei, já irritada
com a demora na explicação.
— Ele se separou da esposa, ela ficou com a casa e
ele não tinha para onde ir. Ele tem um pedacinho de terra e
vai começar a construir algo lá, mas enquanto isso, eu não
podia deixar o rapaz dormindo ao relento, né? Essa casa
está abandonada há tempos. Eu a construí para os seus
pais, mas eles não se importam com ela.
Naquele último ponto, ele tinha razão. Aliás, em
praticamente todos os pontos. A casa estava vazia, o rapaz
estava precisando de um lugar para morar, e por mais que
tivesse sido construída para o uso dos meus pais, aquele
imóvel pertencia ao meu avô, ele poderia fazer o que bem
entendesse. Não existia qualquer problema com nenhum
desses pontos. Apenas com um, que eu expus a seguir:
— Por que não me contou, vô? Aliás, por que ainda
assim deu a ideia de eu vir para cá?
— Por que eu conheço o seu orgulho, e sei que se eu
te convidasse para ficar comigo na minha casa, você não
viria.
— Então deixou que eu viesse para só aqui me
comunicar isso? Não foi nada honesto da sua parte, vô. —
Eu nunca discutia com o meu avô. Nunca. A gente sempre
se deu super bem, tínhamos uma relação maravilhosa e eu
o amava e admirava com uma força indescritível, mas...
dessa vez, ele tinha extrapolado os limites. Havia traído a
minha confiança, e eu estava realmente muito chateada.
— Me desculpe, Lili. Mas eu queria muito que você
viesse.
— Podia ter me contado a verdade.
— Desculpe esse seu velho avô, Lili. Eu só estava
tentando fazer a coisa certa.
Certo, eu odiava quando ele falava daquele jeito, com
aquele tom de voz que simplesmente arrebentava com
todas as minhas barreiras. Droga, ele estava errado! Eu
queria gritar, chorar, dizer o quanto estava chateada. Mas
eu não podia. Que droga!
Nesse momento, Marcelo retornou, dessa vez já
vestido com uma calça jeans e uma camisa de flanela, o
mesmo estilo que usava desde bem jovem. Enfim, pude
analisar melhor suas feições e de fato reconhecê-lo. Ele
sempre fora um garoto bonito, mas, claro, quando criança
eu não dava a menor atenção a isso. Para mim, ele não
era nada mais do que um moleque chato e metido a
cowboy. Porém, agora, já seria hipocrisia da minha parte se
dissesse que sua beleza não chamava a minha atenção. O
tempo tinha feito muito bem a ele. O corpo magro se
desenvolvera em músculos visíveis e o rosto, agora
maduro, com a barba por fazer e os olhos castanhos que
desde sempre traziam um ar meio misterioso.
— Seu Bernardo, se me dissesse que sua neta estava
para vir, eu não teria continuado aqui — ele falou com o
meu avô. Então me olhou e seu tom de voz tornou-se mais
seco, apesar das palavras educadas. — Me desculpe por
isso, moça.
— Não — retruquei de imediato. — Não tem o que se
desculpar, meu avô devia mesmo ter falado com você.
Com nós dois, na verdade. Mas não se preocupe, essa
noite eu pelo visto vou ficar na casa grande.
— Não há a necessidade disso, moça. Me dê dois
minutos e já junto minhas coisas, e...
— E o que, rapaz? — meu avô o interrompeu. — Vai
dormir ao relento? Nem pensar. Alice ficará comigo, como
tem que ser. Uma moça não deve ficar sozinha em uma
casa, onde já se viu?
Revirei os olhos. Era sério aquele discurso?
— Caso não se lembre, vô, já tem alguns anos que
moro sozinha.
— Mas aí é na cidade grande, naqueles prédios com
portaria, câmera, e todas aquelas modernidades de
segurança, não no meio do mato. Aqui sempre foi muito
tranquilo, mas nunca se sabe, não é?
Provavelmente, o maior perigo dali seria o de entrar
uma aranha em casa. Mas, para a minha própria sorte,
nem mesmo de aranhas eu tinha medo.
— De qualquer forma, seu Bernardo, eu não quero
incomodar a moça. — Mas qual era o problema daquele
cara? Aquele “moça” dito com um tom levemente arrogante
já estava me irritando.
Mas eu não queria me estressar. Depois daquela
viagem, eu só queria tomar um banho e cair em uma cama.
No dia seguinte tentaria fazer novos planos para a minha
vida. Por isso, caminhei até a minha mala e a peguei,
anunciando:
— Não precisa ir a lugar algum. Já disse que vou ficar
com o meu avô. Ninguém está te expulsando, pode ficar
tranquilo.
Quando comecei a arrastar minha mala do chão, no
entanto, senti que alguém a segurava pela alça e, ao
erguer o rosto, encontrei Marcelo a uma distância mínima
de mim. Senti o cheiro de sabonete do banho recém-
tomado e, confesso, aquilo mexeu um pouco com os meus
sentidos.
Malditos hormônios! Só podia ser culpa deles.
— Deixe que eu levo — ele falou, em um tom que
mais parecia uma ordem do que uma oferta de ajuda.
Ele realmente era um sujeitinho bem arrogante.
Puxei com força a mala, arrancando-a das mãos dele.
Estava leve, já que não tinha mais do que algumas peças
de roupa e produtos de higiene pessoal.
— Não precisa, eu levo sozinha. Tenha uma boa noite.
Sem esperar por resposta, virei-me e segui para a
porta. Ao passar pelo meu avô, murmurei:
— Te espero em casa, vô.
E saí, irritada.

*****

MARCELO

Eu ainda tinha lembranças fortes de Alice quando


criança e no início da adolescência. Eu era um garoto
também, pouco mais velho que ela, então nunca tive por
ela nenhum olhar com qualquer segunda intenção. Mas
havia algo nela que me deixava curioso. Intrigado seria a
palavra certa.
Seu Bernardo era um sujeito simples com hábitos
interioranos, mas o fato é que, apesar disso, era um
homem com dinheiro. Era patrão dos meus pais, dono
daquela fazenda que para mim mais parecia um mundo,
então, quando ainda éramos bem pequenos – talvez eu
com uns seis e ela com uns cinco anos – lembro que o
julgamento que eu fazia dela era dos piores. Era uma
menina da cidade grande, o que por si só já acendia em
mim um alerta de “fresca”. Juntando isso ao dinheiro que o
avô tinha, eu a imaginava como uma porra de uma
princesinha mimada cheia dos não-me-toques. Tal imagem
era altamente reforçada quando ela chegava na fazenda
nas férias, trazida pelos pais, usando seus vestidos
rodados, sapatos de boneca e os cabelos presos por um
enorme laço.
Mas ela logo se mostrou um paradoxo pra mim. Ela
brincava com outras crianças daqui como se fosse igual a
nós. Eu costumava implicar dizendo que ela era como um
poodle chique de madame, criado em apartamento. Mas
aqui ela se comportava como nós, reles vira-latas: subia
em árvores, rolava na grama, mergulhava no lago, e no
final da tarde era comum vê-la com os vestidos chiques
completamente imundos de barro, e por vezes até mesmo
rasgados.
Logo eu percebi que “fresca” não poderia ser um
adjetivo aplicável a ela. Mas, ao mesmo tempo, sempre
houve algo de arrogância nela. E, como eu também nunca
tive um gênio fácil, isso contribuía para que nós nunca
tivéssemos nos dado bem.
Mas o tempo passa, as pessoas crescem,
amadurecem, mudam... Contudo, ela parecia ser a mesma
petulante de sempre. Agora, no entanto, não era mais uma
garota, mas uma mulher petulante e fodidamente sensual.
Talvez fosse bom que fosse assim. Se ela fosse apenas
linda, talvez eu pudesse me esquecer que ela era neta do
seu Bernardo e arriscar alguma aproximação. Afinal,
depois de toda a bosta com a Cristiane, talvez eu
precisasse de alguma distração para o meu corpo.
Mas, não... ela continuava sendo aquela
insuportavelzinha de sempre, para quebrar um pouco o
encanto da sensualidade que parecia escapar pelos seus
poros. Para manter um ranço sempre instalado e alerta.
Dessa forma, não haveria qualquer chance remota de eu
sequer cogitar ter qualquer envolvimento com a neta do
meu patrão.
— Avise a ela que vou embora pela manhã, seu
Bernardo — anunciei, logo que ela saiu batendo a porta.
— Deixa disso, garoto. Foi só um mal entendido.
— O senhor devia ter contado a ela que eu estava
aqui. Aliás, foi o que disse que faria: informar a família do
seu filho. O senhor me disse que eles haviam concordado
em me emprestar a casa por alguns meses.
— Posso ter me esquecido. Não exija demais da
cabeça de um velho. Além do mais, minha neta está
desempregada, não tem mais como pagar o aluguel, está
passando por uma fase emocional meio complicada e não
queria voltar pra casa dos pais. Desde novinha que ela tem
essa coisa de ser independente, então só foi convencida a
vir para cá pela ideia de ter um espaço apenas dela. Se eu
oferecesse um quarto na minha casa ela ficaria cheia dos
discursos de ‘não quero te atrapalhar, vô’ e acabaria não
vindo.
Por um momento, a notícia sobre ela estar
desempregada me pegou completamente de surpresa.
Sabia que Alice tinha sido há alguns anos contratada por
um time grande de futebol feminino e, ainda que eu não
acompanhasse o esporte, imaginava que ela estivesse em
uma boa fase. Era jovem e, precisava admitir, era ótima no
que fazia. O que teria dado na cabeça do técnico estúpido
para mandá-la embora?
Contudo, logo deixei isso de lado – não era da minha
conta, afinal – e foquei na parte que importava no
momento:
— Por isso mesmo, vou embora para que ela possa
ficar à vontade aqui.
— Rapaz, você ainda não entendeu? Mesmo sendo a
cinquenta metros da minha casa, eu não gosto da ideia da
minha neta ficar sozinha aqui.
— Desde quando o senhor acredita que a fazenda
ofereça algum perigo?
— Qualquer lugar é perigoso para uma pessoa com o
emocional fragilizado. Minha neta tem passado por coisas
bem ruins e realmente não quero que ela fique sozinha em
um momento desses.
Emocional fragilizado. Porra, é claro, a moça tinha sido
demitida de um trabalho que provavelmente era o sonho
dela. Pensei que, talvez, fosse o mesmo que alguém me
tirar meu cavalo e tentar me obrigar a fazer qualquer outra
coisa na vida. Acredito que eu não suportaria algo assim.
A moça podia ser meio insuportável, mas não pude
deixar de ter empatia por ela com a situação.
— Eu entendo, seu Bernardo — falei por fim. — Mas
eu realmente não quero trazer mais incômodo. Posso ir
para uma pensão.
— Sossegue, garoto. Fique aqui enquanto constrói sua
casa. E isso não está mais em discussão.
Dito isso, ele não me deu tempo para respostas e
simplesmente saiu. Sentei-me no sofá, pensando a
respeito daqueles últimos acontecimentos que encerraram
o dia que eu já julgava ter sido mais do que tumultuado.
Confesso que foi difícil, entre esses pensamentos, ignorar
a imagem daquela mulher.
Levantei-me e segui para a cozinha, determinado a me
servir de mais uma dose da minha bebida. Um pouco de
álcool iria bem.

*****
Capítulo cinco - Maldito
cowboy!

“Trouble is her only friend and he's


back again (Problema é o seu único
amigo e ele está de volta novamente)
Makes her body older than it really is
(Deixa seu corpo mais velho do que ele
realmente é)
She says it's high time she went away,
(Ela diz que é hora de ela ir embora)
No one's got much to say in this town
(Ninguém tem muito a dizer nessa
cidade)
Trouble is the only way is down (O
problema é que o único caminho é para
baixo)
Down, down” (Baixo, baixo)

Carry You Home – James Blunt

ALICE

Quando Meu avô entrou, eu estava esperando por ele


sentada no grande e confortável sofá da sala. Logo que me
viu, ele sorriu e veio em minha direção com as mãos
estendidas.
Oras, eu estava chateada. Muito chateada. Ele não
podia ter me enganado daquele jeito. Contudo, era o meu
avô, e eu amava tanto e estava com tantas saudades, que
não resisti e acabei me levantando, deixando que ele me
acolhesse em seus braços e retribuindo a isso. Algum
tempo depois, quando ele me soltou, eu enfim pude dizer
algo.
— Por que mentiu pra mim, vovô?
Ele soltou um pesado suspiro e fez um gesto pedindo
para que eu me sentasse, quando o fiz, ele se sentou ao
meu lado e segurou minha mão junto às suas, enquanto
declarava:
— Sua mãe me ligou ontem, e conversamos muito a
respeito disso.
Ah, é claro! Minha mãe e sua incansável paranoia. Ela
quase não tinha me deixado ir embora da casa dela
quando tive que voltar ao meu apartamento para resolver
tudo relacionado à mudança. E me ligava no mínimo três
vezes por dia para perguntar se eu havia me alimentado,
se estava bem... se estava viva. Sério, ela realmente
imaginava que eu pudesse cortar meus pulsos a qualquer
momento. E por mais que eu amasse meu trabalho, que
meu sonho sempre tivesse sido ser jogadora profissional,
que estivesse sofrendo pelo pé na bunda do meu ex e que
sentisse o desespero por conta da gravidez não planejada,
ainda assim, eu não estava mal àquele ponto, apesar de, é
claro, a depressão ter me pegado forte. Claro, era real que
eu não andava me alimentando ou dormindo direito, mas...
daí a achar que eu fosse morrer a qualquer momento já era
um pouco de exagero da parte dela.
Ou talvez nem tanto exagero assim.
— E ela acha que eu não devo ficar sozinha, porque
represento um risco para mim mesma... — resmunguei,
compreendendo tudo. — Achei que conhecesse a sua nora
e soubesse que ela é um tanto exagerada, vô.
— Conheço e sei bem disso, querida. Mas a verdade é
que você está grávida e está em um momento difícil. Não é
nada ruim ter uma família por perto.
— Você estaria por perto se eu estivesse na casa ao
lado, vô. Mas, claro, não estou dizendo para expulsar o
rapaz de lá. Claro que não.
— Mas está pensando que, se soubesse que a casa
estava ocupada, não teria vindo para cá, não é?
— Talvez eu tivesse pensado em outra alternativa. Eu
moro sozinha desde os meus dezenove anos, vô. Estou
acostumada a ter o meu ritmo.
— E vai continuar tendo, querida. Essa casa também é
sua, sabe que pode ficar totalmente à vontade por aqui.
Eu sabia. Racionalmente eu sabia, mas... tudo na
minha cabeça estava tão confuso.
Como eu fazia quando era uma menininha, deitei-me
no sofá com a cabeça sobre as pernas do meu avô. Ele,
também como sempre fazia, começou a passar as mãos
pelos meus cabelos.
— Estou com tanto medo, vô. Não sei se estou
preparada para ser mãe. Não sei se vou conseguir dar
conta disso. E não sei se estou pronta para desistir dos
meus sonhos.
— Você não precisa desistir, minha querida. Primeiro,
vamos esperar esse bebê nascer. Encare como umas
férias merecidas para alguém que deu tudo pelo esporte
desde tão jovem. Depois, veremos como tudo vai ficar. Sei
que não é o fim da linha. Você é jovem, é ótima no que faz,
e, por mais que não tenha o pai da criança ao seu lado, ela
terá um bisavô pronto para fazer tudo por vocês dois.
— Ele ou ela terá o melhor bisavô do mundo.
— E a melhor mãe também.
Sorri, tentando acreditar naquelas palavras.

*****

Apesar de morar em uma metrópole, a rotina do


interior não me causava estranheza. Nem mesmo o hábito
de se acordar cedo, altamente incentivado pela cantoria
escandalosa dos galos e pela festa de passarinhos
próximos às janelas. Há anos que eu costumava madrugar
para treinar. E mesmo não pretendendo fazer isso neste
dia – ou ao menos por um bom tempo – levantei-me bem
cedo e logo que abri a porta do quarto fui recebida por uma
festa feita pela Paçoca.
— Oi, garota! Bom dia! Não me diga que estava aí me
esperando? Meu avô já levantou?
Ela abanou freneticamente o rabo e deu uma corrida
até o início das escadas, parando para me esperar.
Quando a alcancei, ela desceu na minha frente, guiando-
me até a cozinha, onde encontrei o meu avô. Mariana só
costumava chegar a partir das nove, por isso meu avô
preparava o nosso café.
— Boa dia. Caiu da cama? — ele brincou, coando o
café com seu tradicional coador de pano.
Fui até ele, dando-lhe um beijo na bochecha e
aproveitando para inspirar aquele aroma maravilhoso que
apenas o café dele tinha.
— Estou habituada a levantar cedo para treinar.
— Não pretende continuar fazendo isso, né? Está
grávida, não pode fazer esforço.
Controlei-me para não rir.
— Vô, estou grávida, e não doente. Não pretendo
manter o ritmo de treinamento de antes, mas é claro que
vou continuar me exercitando.
— Uma caminhada matinal está de bom tamanho.
Pode levar Paçoca com você, ela adora passear.
Percebi a armadilha disso. Apesar de estar com a
saúde perfeita e ainda muito disposta, Paçoca já era uma
cadelinha idosa, que provavelmente não tinha disposição
para mais do que meia hora de caminhada em ritmo bem
moderado.
— Vou pensar no caso, vô — respondi rindo. — Mas,
por hoje, nada de caminhadas. Vou tirar minha bagagem
do carro e arrumar minhas coisas no meu novo quarto. E
precisamos acertar os detalhes do meu trabalho, vim para
a fazenda também para te ajudar. Mas o senhor terá que
me explicar o trabalho.
— Não se preocupe com isso, sei que vai tirar tudo de
letra. Tenho alguns compromissos agora pela manhã, mas
podemos conversar sobre isso de tarde, o que acha?
— Por mim está perfeito.
Terminando de passar o café, ele serviu uma caneca
para cada um de nós, e nos sentamos lado a lado na mesa
da cozinha. Bem ao centro da mesa havia uma cesta com
pães caseiros – provavelmente preparados no dia anterior
– e me servi de um deles, dando alguns pequenos pedaços
à Paçoca, que ficou sentadinha no chão ao nosso lado. Ela
apenas se levantou para acompanhar meu avô até a porta
quando este saiu, deixando-me sozinha. Mesmo com a
idade já avançada, ele era ainda muito ativo no trabalho da
fazenda. E eu não via a hora de começar a ajudá-lo com
tudo. Afinal, seria ótimo manter a cabeça ocupada.
Logo que terminei meu café, levantei-me, lavei as
canecas e segui para fora, na intenção de pegar minhas
bagagens no carro. Paçoca me acompanhou e, logo que
saímos, ela se deitou sobre a grama, rolando com a barriga
para cima.
— Pretende pegar um pouco do sol da manhã,
Paçoca? Está certa, dizem que é muito bom para a saúde
— brinquei. Em seguida abri o porta-malas, olhando para
aquele monte de malas e caixas e tentando decidir em por
onde iria começar.
Ainda refletia a respeito disso quando ouvi o barulho
da casa menor sendo aberta. Virei-me e vi que de lá saía
aquele maldito cowboy.
Aliás, o título fazia jus a ele. Não o de maldito, claro.
Ele se vestia e se portava no mais perfeito estilo cowboy de
livros e filmes. Ainda não devia ser nem mesmo seis da
manhã, os primeiros raios de sol ainda estavam tímidos no
céu e o iluminavam, trazendo um realce especial à cor de
sua pele bronzeada pelo trabalho constante sob o sol.
Certo... Sendo bem sincera, ele também fazia jus ao
título de maldito. Eu não poderia usar outro termo para
descrever um homem com um nível de beleza tão
prejudicial à minha sanidade mental.
— Bom dia, moça — ele me cumprimentou, tocando
levemente os dedos na aba do chapéu. Novamente, aquela
voz firme, com uma – provocativa, aposto – ênfase no
“moça”.
Maldito cowboy!
— Bom dia — respondi subitamente, forçando-me a
voltar a minha atenção à bagagem no porta-malas.
Quando percebi, ele havia se aproximado e agora
estava parado ao meu lado.
— Olha, moça, desculpe novamente por ontem. Eu
não fazia ideia de que tinha alguém na casa. Desculpe pela
visão vexatória que teve.
Eu não ousaria usar tal palavra para definir aquela
visão. Definitivamente, não! Porém, claro, não pretendia
fazer tal comentário.
— Você não tem culpa — respondi. — Meu avô devia
ter me contado, então eu não teria praticamente invadido a
casa.
— A casa é sua, não teria como invadir.
— A casa é do meu avô, e é você quem está morando
lá.
— Por pouco tempo.
— Estou certa deque meu avô te disse que você pode
ficar pelo tempo que quiser. Eu vou ficar com ele.
— Que bom que decidiu ficar. Seu Bernardo estava
com medo de que você decidisse ir embora. E eu não iria
me perdoar se isso ocorresse por minha culpa.
— Não há culpa nenhuma, já disse. E não se
preocupe, eu realmente vou ficar.
Ele balançou a cabeça e ficamos em silêncio por
alguns instantes, com um ar meio constrangedor pairando
entre nós. Ele parecia tomar coragem para o comentário
que faria a seguir:
— Soube que você perdeu o emprego. Lamento muito
por isso.
— Acontece nas melhores famílias.
— Eu sei, mas... é sempre chato quando acontece.
Ainda mais quando esse trabalho é algo que você ama
tanto, e mais ainda após chegar onde você chegou.
Fiquei curiosa a respeito do comentário. Ele sabia
sobre o meu trabalho?
— Meu avô te contou também sobre o meu trabalho?
— Ele comentou a respeito algumas vezes. Mas eu já
te vi jogando pela TV. Sei que é boa nisso.
— Não te imagino acompanhando futebol feminino.
— Não acompanho. Mas vi alguns jogos que
passaram na TV. A curiosidade falou mais alto. Você
estava sempre jogando quando era pequena, mas eu não
imaginei que fosse levar isso tão a sério.
— É, eu levei. Mas, no momento, isso não importa
mais.
— Tenho certeza de que logo você receberá propostas
de outro time grande.
Sabia que não, mas preferi não entrar no assunto. Ele
também não parecia muito inclinado a prosseguir com a
conversa – mesmo porque, provavelmente tinha algum
trabalho a fazer – e apenas acenou com a cabeça, em uma
despedida silenciosa, e se afastou.
Fiquei ali parada por algum tempo, observando-o se
afastar, até que ele desapareceu do meu campo de visão já
a uma relativa distância, ao entrar no estábulo. Sabia que
havia outra saída do outro lado, por onde ele
provavelmente sairia com seu cavalo e de onde eu não
tinha como ver dali. Suspirei, pensando que era uma pena.
A visão daquele homem enorme cavalgando não deveria
ser das mais desagradáveis. Seria o mais completo oposto
disso.
Malditos hormônios!
E maldito cowboy!

*****
Capítulo seis – Conflitos

“Você é tão acostumada


A sempre ter razão
Você é tão articulada
Quando fala não pede atenção
O poder de dominar é tentador
Eu já não sinto nada
Sou todo torpor

É tão certo quanto o calor do fogo


É tão certo quanto o calor do fogo
Eu já não tenho escolha
Participo do seu jogo
Eu participo

Não consigo dizer se é bom ou mau


Assim como o ar me parece vital
Onde quer que eu vá
O que quer que eu faça
Sem você, não tem graça”

Fogo – Capital Inicial

MARCELO
Naquele dia, não voltei a ver a neta do patrão. Não
que isso fosse uma questão ou eu estivesse esperando vê-
la, apenas reparei que ela pareceu passar o dia inteiro
dentro de casa. Por mais que ela agora fosse uma mulher
adulta, era difícil desassociá-la daquela menina que mal
chegava aqui e já ia bater perna por toda a fazenda,
geralmente só voltando para casa à noite – e
completamente imunda. Bem, as pessoas crescem e os
interesses mudam.
Agora, eu terminava de dar algumas instruções a um
grupo de empregados da fazenda e voltava para perto de
Hades, quando avistei seu Bernardo chegando em sua
égua. Duquesa era sua maior paixão, já que pertencera à
sua falecida esposa.
— Bom dia, garoto! — ele me cumprimentou, parando
ao meu lado. — Está livre agora? Vou precisar de um favor
seu.
— Bom dia. Não estou, mas não tenho nada de
urgente. O trabalho que faria agora pode ficar para mais
tarde ou para amanhã. Do que precisa?
— Minha neta está começando hoje a trabalhar
comigo. Vai me ajudar com algumas questões
administrativas da fazenda, dentre algumas outras coisas.
Então pedi para ela ir até o centro da cidade, autenticar
alguns documentos no cartório.
— Certo... — continuei olhando-o, tentando entender
onde ele queria chegar.
— E queria que você fosse com ela.
Fiz uma pausa, tentando compreender o pedido.
— Ela não sabe dirigir? Achei que tivesse vindo para
cá em seu próprio carro.
— Ah, ela sabe. E muito bem. Vai com a caminhonete,
aliás.
— Ela esqueceu o caminho até o centro da cidade,
então? Achei que tivesse passado por lá a caminho daqui.
— Claro que não esqueceu. Ainda que tivesse, não há
mistério algum, é praticamente uma estrada só daqui até
lá.
— Não sabe lidar com cartórios então? Se for isso, o
senhor está pedindo ajuda para a pessoa errada, porque
eu também não estou acostumado a essas burocracias.
— Garoto, a Lili sabe muito bem tudo o que tem que
fazer. Tudo o que eu quero é que você a acompanhe.
— E isso por quê?
— Eu já falei que ela não está com o emocional bom.
Olha, se você não puder, posso pedir a Mariana que vá
com ela.
— Não. Eu posso ir. Só achei meio estranho.
— Então obrigado e se apresse, porque ela deve sair
em alguns minutos.
Dito isso, ele deu meia volta com a égua e foi embora.
Ainda fiquei alguns segundos ali parado, sem conseguir
compreender o motivo de tanta preocupação com a neta.

*****
ALICE

No fundo, eu sabia que essa coisa de autenticar


documentos não era tão urgente assim. Mas eu tinha
insistido tanto que queria começar logo a trabalhar, que
meu avô tratou de arrumar algo para eu fazer.
E, na verdade, estava feliz que fosse assim. Não
gostava de ficar parada. Isso sempre me fazia pensar mais
do que deveria. E eu sabia que me deixar assim também
representava uma preocupação ao meu avô.
E eu me odiava por dar esse tipo de dor de cabeça a
ele.
Levando em mãos à pasta com os documentos
necessários, saí de casa e segui até a garagem onde
estava a caminhonete do meu avô. Lá tive a surpresa de
encontrar com o maldito cowboy, parado ao lado do carro.
A forma como ele me olhou me deu a impressão de que ele
estava justamente me esperando. O que foi confirmado
quando ele anunciou:
— Vou com você.
Pisquei, tentando compreender o que ele estaria
querendo dizer.
— Quer uma carona até a cidade, é isso?
— Não. Vou te acompanhar no que você tiver que
fazer, e voltar contigo.
— E por quê?
— Ordens do seu avô.
Bufei, indignada. Por que inferno ele estava me
tratando como se eu fosse uma adolescente?
— Diga a ele que não precisa. Vou apenas até o
cartório e retorno, não corro riscos de me perder no
caminho.
— Sinto muito, moça, mas se quiser você pode ir
procurá-lo para dizer isso e pedir que ele venha até mim
para retirar a ordem. Sou apenas um empregado.
Eu sabia que ele era muito mais do que um simples
empregado. Era o braço direito do meu avô, e pelo jeito
com que seu Bernardo se referia a ele, era notório que o
havia praticamente adotado como um filho. Mas eu sabia
que, caso quisesse discutir a respeito, iria apenas perder
tempo em uma batalha perdida, já que Marcelo não parecia
nada inclinado a mudar de ideia. Sendo assim, apenas fui
até o carro e entrei, colocando a chave na ignição
enquanto Marcelo se sentava no banco do passageiro e
afivelava o cinto de segurança.
— Com medo de sofrer um acidente com uma mulher
ao volante? — provoquei, irritada.
— Não por ser uma mulher, mas por ser uma mulher
levemente descontrolada — ele rebateu, parecendo
também desconfortável com a situação. Era claro que ele
não estava feliz em cumprir aquela ordem.
— Eu não estou descontrolada.
— Não me parece muito calma também.
Virei a chave e dei partida, saindo de ré de dentro da
garagem coberta.
— Não dá pra ficar calma sendo tratada como uma
incapaz. Eu não preciso de uma porcaria de uma babá.
— Não me importa do que você precisa ou não, moça.
Estou aqui apenas cumprindo ordens. Acha que eu queria
parar o meu trabalho para ir até uma porcaria de um
cartório? Consigo pensar em muitos programas mais
divertidos que este.
— Ainda está em tempo de descer do carro e ir fazer
os seus trabalhos tão importantes.
— Isso também é um trabalho. E se é importante para
o seu Bernardo, também é para mim.
Voltei a bufar e fiquei calada, enquanto passávamos
pela porteira e eu acenava brevemente para Sebastião.
Saindo da fazenda, o caminho se dava por uma estrada de
terra por onde deveríamos seguir por cerca de quarenta
minutos até chegar à saída que ia em direção ao pequeno
centro.
Seguimos em silêncio durante a maior parte da
viagem, e ele parecia tão incomodado com isso quanto eu.
Em certo momento, ainda arrisquei ligar o rádio, mas
nenhuma estação conseguia ser sintonizada ali, no meio
do nada. De ambos os lados da estrada não existia nada
mais do que sítios e fazendas a perder de vista. Não que
eu não gostasse da paz que o local transmitia, mas isso
aliado ao desagradável silêncio dentro do veículo tornava a
viagem altamente tediosa.
— Então... — ele falou, claramente tentando puxar
algum assunto para tornar o trajeto menos desagradável.
— Seu Bernardo me disse que você vai trabalhar para ele.
— É. Quero ajudá-lo no que puder enquanto eu estiver
por aqui.
— Pretende ficar por muito tempo, então?
— Um ano. Talvez um pouco mais, não sei.
— Não é tempo demais para ficar sem jogar? Digo,
isso não vai atrapalhar quando você tentar voltar para
algum clube?
Aparentemente, ele ainda não sabia da minha
gravidez. O que era incrível, já que meu avô
aparentemente adorava contar tudo a meu respeito para
todo mundo.
— Quando eu retornar, vejo o que fazer — respondi
apenas.
— Ainda assim, é estranho uma moça da cidade
decidir largar tudo o que tinha por lá para vir para esse fim
de mundo.
— Para mim aqui não é o fim do mundo. E, quanto a
largar tudo por lá... Digamos que eu não tinha muito o que
perder.
Ele ficou calado e pude até imaginar o que deveria
estar pensando: no quanto era incoerente alguém, após
uma demissão, decidir passar um ano parado antes de
procurar um novo contrato. A verdade é que era um fato
que ninguém me contrataria “naquelas condições”
Voltamos a ficar em silêncio e, após mais alguns
minutos, enfim chegamos. Para quem estava acostumado
a grandes cidades, era até mesmo estranho chamar aquele
local de centro, mas era o maior ponto de comércio da
região. Tinha uma única agência bancária, um cartório,
uma pequena agência de correios, um pequeno mercado,
duas farmácias, um borracheiro, uma banca de jornal e, se
muito, umas dez ou doze lojinhas. Fora isso, havia um
posto de gasolina, uma praça com um coreto e brinquedos
para crianças e uma igreja. Era nisso que se resumia o
importante coração da cidade de Vale das Orquídeas. Caso
precisasse de algo mais além daquilo, era preciso seguir
por uns setenta quilômetros até uma cidade maior.
Ninguém ali fazia isso caso não fosse extremamente
necessário.
Não foi difícil encontrar uma vaga para estacionar
próxima ao cartório. Desci do carro e ainda pensei que
Marcelo fosse me esperar ali, mas, para a minha surpresa,
ele começou a me seguir.
— Não precisa vir comigo, pode me esperar aqui —
avisei.
Ele deu de ombros.
— Seu avô me mandou te acompanhar.
— Já disse que não preciso nem de babá, nem de
guarda-costas. Pode me esperar aqui, que prometo que
não serei sequestrada no caminho.
— Eu não contaria com isso. A cidade é pacata, mas
você é praticamente uma celebridade. Já saiu no jornal e
tudo.
Ergui as sobrancelhas, curiosa com o comentário.
— Já me viu no jornal?
— Me mostraram uma vez.
— Não basta sair num jornal. Celebridades em geral
têm no mínimo uns cem mil seguidores no Instagram, o
meu não chega a isso.
— Seguidores onde? — A pergunta era séria?
Achei mais fácil trocar o argumento:
— O salário do futebol feminino não chega nem perto
do masculino. Se alguém me sequestrar, não vai conseguir
mais do que um Fiat Mobi usado. — E nem salário eu tinha
mais, então não duvidaria se o Fiat Mobi do resgate ainda
fosse com o IPVA atrasado.
— Mas seu avô teria como pagar bem mais do que
isso.
Ele só podia estar fazendo piada, não era possível.
— Ninguém vai me sequestrar. Apenas espere aqui,
por favor.
E sem dar tempo para qualquer resposta, dei meia
volta e segui atravessando a rua, até chegar ao cartório. Ao
passar por um homem parado próximo à entrada, no
entanto, tive o desprazer de ouvir uma gracinha muito
próxima ao meu ouvido.
— Oi, belezinha. É nova aqui na cidade? Se quiser, eu
posso te apresentar tudo, gostosa.
Respirei com força, lutando para controlar a vontade
que senti de enfiar o punho na cara daquele imbecil. Mas
optei por ignorar e, ao invés disso, apenas entrei no
cartório, deixando aquele estúpido para trás.

*****

MARCELO
Do outro lado da rua, pude ver que um homem na
porta do cartório se aproximou e disse algo no ouvido dela,
e isso imediatamente acendeu-me um alerta. Depois de
todo aquele papo furado sobre sequestradores, nada
poderia me garantir que aquele não fosse um, mas é claro
que essa era uma possibilidade muito remota. Havia 99%
de chance de ser um idiota com alguma cantadinha barata.
Lógico, podiam ser várias outras coisas. Ele poderia
ter perguntado as horas, ter feito a propaganda de alguma
pensão para comer – já que estávamos quase na hora do
almoço –, podia ter pedido uma informação ou meramente
comentado a respeito do tempo. Contudo, logo que ela
entrou e ele se virou em minha direção, pude ver seu rosto
e o reconheci. Diego era um pouco mais velho que eu, mas
estudamos juntos no ensino médio e ele era conhecido na
escola por ser um completo babaca que vivia importunando
as meninas. Uma vez ele se metera a besta com a
Cristiane e isso causou uma briga entre nós dois. Cheguei
a levar alguns socos, mas estava certo de que ele tinha
levado a pior. Até hoje deveria sentir dores na costela
quebrada quando eu o derrubei com um chute. Nunca mais
se meteu com Cristiane, nem com nenhuma outra garota
do colégio até concluirmos os estudos.
Agora, anos depois, ele parecia ainda ser o mesmo
filho da puta inconveniente.
Fiquei ali parado, olhando atentamente para a porta do
cartório, aguardando que Alice saísse. Vi que Diego se
afastou um pouco, indo conversar com alguns caras
sentados em cadeiras na calçada na frente de um bar. Não
duvidava que estivesse tão bêbado quanto eles.
Passou-se cerca de dez minutos, até que Alice
finalmente saiu. Percebi que Diego voltou a se aproximar, e
novamente disse alguma merda no ouvido dela. Dessa vez,
eu não tive qualquer resquício de dúvidas de que seria
algum comentário inconveniente, pois, parecendo furiosa,
Alice se virou de frente para ele, apontando o dedo em sua
cara e respondendo algo. Apressei-me em ir até lá,
chegando no momento em que o verme se ‘defendia’:
— Qual é, gata? Foi só um elogio.
— Então pega esse seu ‘elogio’ e enfia no seu...
— Algum problema aqui, Alice? — falei com a voz alta
e grave, parando atrás dela. Como era no mínimo uns vinte
centímetros mais alto, pude, por cima da cabeça dela,
encarar Diego, que pareceu momentaneamente
desconcertado em me ver.
As costelas ainda deviam doer...
— Foi mal aí, Marcelo, não sabia que você estava com
uma gata nova.
Alice me olhou por um momento, aparentemente
surpresa com a minha intervenção, mas logo voltou-se
para Diego, parecendo não ter gostado nadinha do
comentário.
— Por que pede desculpas para ele quando foi para
mim que você falou um monte de merdas?
— Que monte de merda, gata? Falei que você é
gostosa, tô mentindo, por acaso?
Dei alguns passos, passando à frente de Alice e
ficando cara a cara com Diego.
— Você ouviu. Não é a mim que deve desculpas.
— Eu não vou pedir desculpas a uma mulher por um
elogio. E se ela não é sua namorada, não devo nem
mesmo a você.
— Peça desculpas à moça — repeti de forma
pausada, para ver se ele entendia que minha paciência
estava por um fio.
— Não vou pedir porra nenhuma! — Ele se aplumou,
tentando ficar na mesma altura que eu. Pude sentir pelo
bafo que estava embriagado. Isso explicava o súbito de
coragem.
— Marcelo, vamos embora — ouvi a voz de Alice atrás
de mim, mas ignorei, continuando a encarar Diego.
— Já disse que não vou me desculpar porra nenhuma.
Qual é a sua, cara? Tem certeza de que não está trepando
com a vadiazinha aí... — Eu impedi que ele concluísse a
frase, acertando-o com um soco certeiro bem no meio da
cara.
Ele cambaleou e apenas não caiu porque dois de seus
amigos chegaram para ampará-lo. Contudo, ele pareceu
completamente desnorteado com o soco, não esboçando
qualquer reação.
Eu ia falar mais alguma coisa, mas detive-me ao ouvir
uma voz feminina e desconhecida atrás de mim:
— Menina, você está bem?
Virei-me, encontrando a senhora que costumava
cuidar da banca de jornais, amparando Alice, que estava
com os olhos fechados e uma das mãos sobre a testa.
Aproximei-me, preocupado.
— Alice? Está tudo bem?
Ela abriu levemente as pálpebras e entreabriu os
lábios, parecendo tomar fôlego para responder. Mas antes
que conseguisse, seu corpo cambaleou e ela teria caído se
eu não a tivesse segurado.
— Alice? Alice, acorde! Alice, fale comigo!
Ela não respondeu. Havia perdido a consciência.
Peguei-a nos braços e a tirei dali.

*****
Capítulo sete - Descoberta

“How many times have I driven this


road (Quantas vezes eu passei por esta
estrada)
All my way home (No caminho para
casa)
It's always the same (É sempre a
mesma coisa)
So many people just stand in the line
(Muitas pessoas apenas ficam na fila)
They're chasing the lights (Elas estão
perseguindo as luzes)
But losing their way (Mas perdendo os
seus caminhos)
And I find myself looking for you (E eu
me pego procurando por você)
Yeah, I find myself looking for you,
looking for you” (Sim, me pego
procurando por você, procurando por
você)

Cue The Rain – Lea Michele

MARCELO
Vale das Orquídeas era uma cidade pequena, mas
tínhamos um ótimo hospital municipal, localizado em uma
das ruas do centro. Nem pensei duas vezes antes de levar
Alice até lá.
Ela já começava a recuperar a consciência quando
chegamos, mas ainda assim providenciaram uma cadeira
de rodas e um enfermeiro a levou para dentro. Eu fiquei ali
na recepção, parado como um babaca, esperando por
notícias. Passado algum tempo, uma médica saiu da porta
da enfermaria para onde ela tinha sido levada. Fui até lá,
detendo-a antes que entrasse em outra sala.
— Desculpe, doutora. Eu sou acompanhante da
Alice. Poderia me dar alguma notícia a respeito do quadro
dela?
A médica sorriu.
— Fique tranquilo. Foi apenas uma queda de glicose.
Ela disse que tomou café muito cedo e ainda não almoçou.
Soltei o ar, sentindo uma enorme sensação de alívio.
Tinha sido apenas um desmaio, mas fiquei preocupado em
ser algo mais sério.
— E como ela está agora?
— Bem melhor. Está no soro, logo que terminar ela
estará liberada.
— E ela vai precisar de algum cuidado especial ou
alguma medicação?
— Não, pode ficar tranquilo. Por hoje, recomendo que
ela descanse. Ah, e é claro, não faça mais o que ela fez.
Não pode ficar tantas horas sem se alimentar, ainda mais
nas condições dela.
— Desculpe... condições?
— É. A gravidez. Aliás, parabéns pelo bebê!
Ela apertou o meu ombro, enquanto eu continuei
olhando-a, confuso. Parabéns? Pelo quê? Bebê? Grávida?
Alice estava grávida?
Bem, isso explicava algumas coisas.
Outro paciente chegou e a médica pediu licença, indo
atendê-lo. Continuei ali na recepção parado, recapitulando
aquelas palavras. Até que, em alguns minutos, Alice
retornou, de fato parecendo bem melhor.
— Podemos ir? — ela indagou logo que chegou a
mim.
Balancei a cabeça e saímos calados. Seguimos
caminhando pela rua em direção ao local onde tínhamos
deixado o carro. Até que ela quebrou o silêncio, parecendo
preocupada.
— Está tudo bem com você?
— Eu é que devia perguntar. Foi você quem desmaiou.
— É, mas é você que está com a cara de quem viu
uma assombração.
Já que minha cara denunciava a minha surpresa,
decidi expô-la em voz alta:
— É que... Você está grávida.
— É, eu sei. Qual o problema nisso?
— Mas você disse que veio para cá porque não
tinha nada a perder.
— É, e não tenho.
— Mas e o pai dessa criança?
Ela suspirou, parecendo cansada.
— Não sei se você sabe, mas não é preciso estar
casado para se fazer um filho.
— Claro que eu sei disso. Mas como o cara vai
poder ver o filho?
— Eu acho que ele não está muito interessado
nisso.
Dito isso, ela apressou o passo, caminhando à
minha frente. E eu me senti um idiota pela minha
indiscrição. Contudo, era estranho demais conceber que
um homem – se é que merecia ser chamado assim – podia
não se importar com o fato de ter um filho.
Ela destravou a caminhonete e ia abrir a porta do
lado do motorista, mas fui rápido ao levar a minha mão até
lá para detê-la.
— Não, nem pensar. Eu dirijo — comuniquei.
Como esperado, ela não pareceu gostar nadinha
disso.
— Eu nos trouxe até aqui em segurança, não é?
— Isso foi antes de você ter um desmaio no meio da
rua. Imagina se tem isso no volante?
— Foi só uma queda de glicose. Tomei uma bolsa
inteira de soro, estou ótima agora.
— Ótima ou não, não vamos arriscar. Ainda mais
com você... do jeito que está.
Ela ergueu uma sobrancelha, me olhando com uma
expressão levemente incomodada.
— E qual seria “o jeito que eu estou”?
— Você sabe. Está grávida.
— E daí? No que isso me impede de dirigir?
— Pelo amor de Deus, moça. Apenas pare de
querer transformar tudo em uma discussão e me dê essa
chave.
— Não vou te dar nada. Já disse: eu vim dirigindo, e
vou voltar da mesma forma. Ou você senta no banco do
carona ou, se preferir, vá sozinho a pé.
Sem esperar por respostas ela empurrou a minha
mão e abriu a porta. Dei a volta, entrando pelo outro lado
antes que ela cumprisse a ameaça de me deixar a pé.
— Não tem motivos para ser tão teimosa! —
reclamei, enquanto colocava o cinto.
— Na verdade, você é que não tem motivos para
julgar que eu não tenho capacidade para dirigir.
— Quem falou em capacidade? Estou falando de
condições.
— Vê se entende: eu não estou doente.
— Mas você acabou de passar mal, pode passar de
novo e se colocar em risco. Está grávida, porra! Pensa no
seu filho.
Ela me encarou de forma séria por um momento e
cheguei a ter a esperança de que fosse voltar atrás em sua
teimosia. Porém, não foi o que aconteceu. Ela apenas
voltou a virar o rosto para frente e deu a partida no veículo.
— Por que diabos você é tão teimosa? —
resmunguei, também olhando para a frente.
— Não sei. Me responda você: por que diabos é tão
ignorante?
— É ignorância agora pensar na sua segurança?
— Já disse que não preciso nem de babá e nem de
guarda-costas. Sou bem grandinha e sei me cuidar muito
bem.
Decidi que não valia mais a pena discutir e optei por
ficar calado. Ela, aparentemente, decidiu o mesmo. E todo
o trajeto até a fazenda foi feito por nós no mais absoluto e
incômodo silêncio.

*****

ALICE

No dia seguinte, meu avô me passou um lista de


afazeres, mas apenas de coisas resolvíveis pelo telefone.
Passei a manhã inteira realizando ligações, resolvendo
problemas com compradores e fornecedores. Meu avô
tinha um escritório grande e muito confortável, o qual ele
pouco usava porque odiava essa parte administrativa do
trabalho. O que ele gostava era de passar o dia inteiro
rodando pelas suas terras, retornando para casa apenas
para almoçar e para dormir.
Certamente era o que ele fazia no momento, pois já
devia ser algo em torno de meio-dia quando a porta do
escritório se abriu e ele entrou, bem no momento em que
eu encerrava a última ligação.
—Prontinho, tudo resolvido — anunciei, enquanto ele
se aproximava e se abaixava ao lado da cadeira onde eu
estava sentada, depositando um beijo na minha testa. —
Encomendas feitas e problemas resolvidos.
— Você é maravilhosa, querida. Eu não acharia uma
funcionária melhor.
— Qualquer um faria isso, vô. Até mesmo o senhor, se
tivesse paciência pra passar algumas horas ao telefone.
— E isso eu definitivamente não tenho.
Rimos juntos, e eu aproveitei para perguntar:
— Bem, mas e agora, qual o meu próximo trabalho?
— Seu trabalho agora será me acompanhar até a
cozinha. Mariana mandou avisar que o almoço está pronto.
— Certo. E o que farei depois?
— Depois você tira a tarde de folga. Já fez todo o
trabalho do dia.
Abri a boca para retrucar, mas antes que o fizesse
meu avô deu meia-volta, saindo do escritório. Levantei-me
e o segui, chegando à cozinha. Mariana já estava sentada
à mesa, aparentemente nos esperando para almoçar
conosco, como sempre fazia. Já Paçoca, já estava em seu
posto embaixo da mesa, já aguardando que alguma
comida caísse para ela abocanhar. Após me servir, sentei-
me ao lado dela, de frente para o meu avô, que comentou
orgulhoso
— Mariana, acredita que a Lili só essa manhã já
cumpriu todas as pendências de ligações que venho
enrolando há um mês pra fazer?
— Acredito, seu Bernardo. Essa menina é muito
eficiente. Ontem de tarde ela me ajudou com os pães.
Certo... eu estava me sentindo uma criança sendo
elogiada por fazer o mínimo.
— Parem de ser exagerados vocês dois!
— Ligou para o médico, querida? — Mari perguntou,
causando um susto ao meu avô.
— Médico? Está doente, Lili?
— Não, vô! — sorri. — Estou grávida, lembra?
Provavelmente o bebê vai nascer aqui, então preciso ter
um médico na cidade. A Mari me passou o telefone do
consultório do melhor obstetra de Vale das Orquídeas.
— O único, na verdade — ela me corrigiu, rindo. —
Mas ele é mesmo maravilhoso, não vai se arrepender.
— Não tenho dúvidas. Mas eu liguei, sim. Marquei a
primeira consulta para o final da semana que vem.
— Se quiser que eu vá com você... — meu avô falou.
— Eu iria adorar te acompanhar e conhecer um pouco do
meu bisneto ou bisneta.
— Claro, vovô. Vou adorar ter a sua companhia.
Ele sorriu e segurou a minha mão por cima da mesa.
— Sua avó ficaria tão feliz com a ideia de um bisneto,
querida...
Correspondi ao sorriso, embora a mera menção à
minha avó fizesse o meu coração despedaçar em mil
pedaços, assim como um nó insuportável se instalar na
minha garganta. Acho que eu nunca superaria a perda dela
por completo.
Continuamos a conversa, com eu contando sobre os
próximos exames que faria nas próximas semanas e
meses, e meu avô animado com a ideia de me
acompanhar quando fosse ouvir os batimentos cardíacos
pela primeira vez ou fazer o primeiro ultrassom. Mariana
não tinha filhos, mas compartilhava sua experiência de
acompanhar de perto as gestações das duas irmãs e os
nascimentos dos sobrinhos. Fiquei pensando que adoraria
ter minha mãe ao meu lado naqueles momentos, mas ela
não era uma pessoa que se empolgaria com tais
atividades. Não demonstrara ficar muito feliz com a minha
gravidez, embora não me fizesse nenhuma crítica a
respeito porque, afinal, ela lidava comigo pisando em ovos,
com medo de que qualquer pressão fosse me
desestabilizar. Bem, nesse momento, confesso, eu até
mesmo agradecia por isso. Já lidava com pressões demais
para ainda ter que encarar críticas da minha família.
Minha avó, no entanto, estaria ao meu lado.
Provavelmente àquela altura já me apareceria com uma
roupinha ou um sapatinho de tricô feito por ela mesma.
E isso me lembrava que eu precisava começar a
comprar coisas para o bebê.
Meu avô terminou rapidamente o almoço e saiu,
reforçando mais uma vez que eu deveria tirar a tarde de
folga. Vencida, acabei concordando. Após a refeição,
ajudei Mariana com a louça e decidi sair um pouco para
passear pela fazenda. Havia muitos lugares nela que eu
gostaria de rever.

*****
Minha ideia inicial era caminhar, mas havia tanto o que
eu queria rever ainda naquele dia, que decidi que seria
mais eficaz ir a cavalo. Sendo assim, segui direto até o
estábulo. Lá reencontrei Antônio, mais um funcionário
antigo do meu avô, que há muitos anos cuidava dos
cavalos. Como era a primeira vez que eu o via desde que
cheguei à fazenda, ainda passei alguns minutos
conversando com ele, contando que tinha vindo para ficar
por um tempo mais longo, e perguntando sobre a família
dele. Ele contou, todo orgulhoso, que seu filho tinha ido
para São Paulo estudar e estava quase concluindo a
faculdade de Direito.
Após algum tempo conversando, perguntei:
— Algum cavalo disponível para mim? Queria dar uma
volta pela fazenda.
— Claro, garota. Tem preferência por algum?
Ah... eu tinha! Mas não acreditava que minha favorita
estivesse disponível.
— Meu avô deve ter saído com a Duquesa, né?
— Ah, não. Ele levou o Duque. Costuma alternar entre
os dois, para não cansar muito os animais. Hoje a Duquesa
saiu pela manhã.
Duque e Duquesa eram os xodós do meu avô – e, até
alguns anos, da minha avó também. Os dois tinham quase
a minha idade, o que para um cavalo já era considerado
como uma idade mais avançada. Eles estavam ótimos de
saúde, mas era importante reduzir aos poucos a carga de
atividade física, para evitar maiores desgastes.
— Se ela já saiu hoje, melhor que descanse agora,
não é? — comentei.
O senhor Antônio, contudo, negou.
— O senhor Bernardo exagera um pouco na
preocupação. Duquesa está ótima, não vai se cansar se
fizer um passeio leve. Apenas não exagere.
— Não pretendo exagerar — concluí, feliz.
Ele foi preparar a Duquesa para mim, e retornou
minutos depois, trazendo-a já selada. Aproximei-me, indo
cumprimentá-la.
— E aí, garota? Quanto tempo. Você agora já é uma
jovem senhora, não é? — fazia carinho nela enquanto
falava. — Será que está a fim de me acompanhar em um
passeio? Se não estiver disposta, não tem problema, viu?
Ela mexeu a cabeça contra minhas mãos, como se
pedisse para intensificar o carinho. Parecia que também
tinha sentido a minha falta. Sorri, entendendo aquilo como
um sim.

*****
Capítulo oito - Lembranças
evitadas

“I've been away for ages (Estive longe


por muito tempo)
But I got everything I need (Mas tenho
tudo o que preciso)
I've flicken through the pages (Folheei
as páginas)
I've written in my memory (Que eu
escrevi na minha memória)
I feel like I'm dreaming (Sinto como se
eu estivesse sonhando)
Oh, so I know, I know, I know, I know
(Ah, então eu sei, eu sei, eu sei, eu sei)
That I'm never leaving (Que eu nunca
vou embora)
No, I won't go” (Não, não vou)

Don't Forget Where You Belong – One


Direction

ALICE
Havia muito tempo que eu não ia ali, mas tudo
continuava do mesmo jeitinho como eu me lembrava.
Pouca coisa mudara. A maioria dos funcionários
permaneciam os mesmos, com exceção de alguns que se
aposentaram e outros mais jovens que entraram no lugar.
Os meus lugares favoritos continuavam lá. O lago,
onde eu amava mergulhar, seguia tão límpido e convidativo
como sempre foi. Estava bem quente nesse dia e eu
confesso que fiquei tentada a das uns mergulhos, mas
achei melhor deixar para outro momento. Passei, também,
pelo enorme flamboyant vermelho próximo ao lago. Aquele
costumava ser o meu local favorito quando criança, mas as
lembranças dele ainda eram tão fortes que não quis parar
ali. Memórias boas também podem nos trazer sofrimento
às vezes.
Segui, então, para o meu segundo lugar preferido. O
campinho de futebol onde tudo tinha começado. Desmontei
de Duquesa e me aproximei, reparando que, como nos
velhos tempos, o lugar era tomado por crianças da região.
Conforme me aproximava, notei que o grupo era formado
por oito crianças – seis meninos e duas meninas – além de
um adulto que, à primeira vista, não reconheci. Ao contrário
dele que logo que me viu abriu um largo sorriso.
— Mas vejam só! Quem é vivo sempre parece! — ele
falou alto para que eu, mesmo ainda a certa distância,
ouvisse. Estava formando um círculo com as crianças,
treinando passes de bola.
Olhando-o um pouco melhor, enfim me lembrei. Estava
agora crescido – assim como eu – mas não tinha mudado
tanto assim. Ainda tinha os mesmos cabelos castanhos e
cacheados e os mesmos olhos azuis realçados pela luz do
sol. Cassio era cinco anos mais velho que eu, e confesso
que, no auge dos meus treze, catorze anos, ele era o que
as meninas hoje chamariam de crush. Não apenas por ser
lindo, mas porque ele era muito legal comigo, e sempre
chamava a atenção dos meninos que implicavam com a
minha vontade de jogar futebol.
E, bem... ele era o meu ídolo mais próximo naquele
esporte também. E meu primeiro instrutor, mesmo que de
forma ainda um pouco amadora.
— Algumas coisas não mudam, não é? — brinquei.
Ele veio até mim e nos abraçamos. — Como você está?
— Ótimo. Melhor agora, revendo você. — Para
qualquer pessoa que não o conhecesse, aquilo poderia
soar como um estilo pseudo-galanteador adepto a
cantadas baratas. Mas não era isso. Cassio tratava todas
as pessoas com igual gentileza e simpatia. — Tenho
acompanhado sua carreira. Nunca duvidei que você iria
voar tão alto, garota.
— Se acompanha, já deve saber que não fui tão alto
assim, não é?
— A notícia que tive é que você se desligou da equipe,
mas não sei os motivos. Confesso que andei perguntando
ao senhor Bernardo, mas ele não me deu detalhes, disse
que você me contaria quando chegasse.
Suspirei profundamente.
— Não me desliguei da equipe. Na verdade, fui
desligada. O contrato foi reincidido por eles, não por mim.
— Por que fizeram isso? Você está na sua melhor
fase.
— Aparentemente não estou mais. Jogadoras grávidas
costumam representar prejuízos para a equipe.
Ele deu um passo para trás, olhando para a minha
barriga. Então voltou a me olhar no rosto, parecendo em
choque.
— Não é possível, menina. Você está grávida?
Ah, claro... ele ainda me chamaria assim, mesmo que
eu já tivesse os meus vinte e dois anos. A adolescente
apaixonada em mim não gostava muito disso. Mas a
mulher adulta apenas achou fofo.
— É, estou. E vou permanecer por aqui até o bebê
nascer, e... então decidirei o que fazer.
— Espero que decida voltar a jogar. O esporte não
pode perder alguém como você.
Pensei em dizer que lamentava que tivessem perdido
– ou nem mesmo chegado a ganhar – alguém como ele.
Cássio, desde moleque, era um jogador além da média,
mas nunca chegara a jogar profissionalmente. Segundo
meu avô me contara, hoje ele ganhava a vida como
instrutor infantil e trabalhava em uma escolinha de futebol
em uma cidade vizinha, mas não abria mão de dar aulas
gratuitas a crianças daqui. Meu avô deixava que ele usasse
o campinho da fazenda para isso. Aparentemente era o
que fazia no momento.
— Esses são seus novos alunos? — perguntei,
apontando para o grupo de crianças que agora continuava
o treinamento sozinhas.
— Parte deles. Muitos deles ajudam os pais no
trabalho das terras, então só podem treinar uma vez por
semana. Por isso montei três grupos semanais. São vinte e
cinco crianças ao todo.
— Nossa. Já poderia criar a sua própria escola.
— O plano é esse. Não uma escola, mas um centro
comunitário. Já tenho o local para isso, só preciso
conseguir alguns patrocinadores para conseguir manter
tudo, contratar funcionários e tudo mais. Quero expandir
para outros esportes, então vou querer contratar outros
professores.
— Nossa, que ideia maravilhosa, Cassio. Tenho
certeza de que você vai conseguir, e que será um enorme
sucesso. Vai conseguir ajudar muitas crianças com isso.
Muito mais do que já ajuda ou ajudou.
— E quem sabe alguns deles se tornem profissionais
como você virou?
— Ah... no momento estou meio que aposentada.
— Está de licença-maternidade, é diferente. Anda,
vem, vou te apresentar para as crianças.
Antes que eu pudesse responder ele começou a me
puxar campo adentro. Logo que me aproximei das
crianças, elas me olharam, todas fazendo uma expressão
de surpresa. Fiquei pensando sobre se teriam me
reconhecido, quando uma das meninas confirmou tal
suspeita:
— É a Alice Antunes! — ela vibrou. E os demais a
acompanharam, animados. Olhei para Cassio, sabendo
que ele tinha alguma participação naquilo.
— Andou falando de mim para eles?
— Gravei alguns jogos para eles assistirem. É
importante para crianças conhecerem alguém que veio do
mesmo lugar que eles e chegou a algum lugar.
— Eles não precisam de mim como exemplo. Eles têm
você.
Antes que ele conseguisse responder, fui surpreendida
por um abraço coletivo dado pelos pequenos. Correspondi,
em seguida pedindo que cada um deles me dissesse o seu
nome, o que eles fizeram com um enorme empolgação.
Iniciamos uma conversa bem descontraída, e logo um dos
meninos me pediu para ‘fazer uma demonstração’ para
eles, e tal ideia empolgou a todos. Não poderia negar
aquele pedido, por isso peguei a bola, iniciando uma série
de embaixadinhas. Os pequenos vibraram, e Cassio
também. Contudo, logo a brincadeira foi interrompida
quando alguém subitamente surgiu à minha frente,
agarrando a bola no ar com as mãos, tirando-a do meu
alcance. Mal consegui acreditar quando vi quem era.
— Ei! — protestei.
Mas qual era o problema daquele maldito cowboy?

*****

MARCELO

Mas qual era o problema daquela irresponsável?


Porra, eu mal pude acreditar quando, passando com
Hades próximo ao campo, eu avistei aquela cena. Que
diabos aquela louca tinha na cabeça?
Desci de Hades e praticamente corri até o campo,
tirando a bola que a grávida irresponsável usava para
brincar.
— Ei! — foi tudo o que ela disse em um primeiro
momento, provavelmente pega de surpresa.
— O que pensa que está fazendo? — retruquei,
furioso.
— O que você pensa que está fazendo?
— Impedindo que um acidente grave aconteça.
— O quê? Que tipo de acidente acha que poderia
acontecer?
O imbecil do Cássio – que só agora eu percebia que
estava ali – resolveu se meter na conversa.
— Algum problema, Marcelo?
— Sim, cara, nós temos um enorme problema.
Acredito que a moça aqui não tenha te contado sobre a
condição dela.
Ela suspirou, com uma expressão de desânimo
dominando as suas feições.
— De novo com essa palhaçada de ‘condição’? Já
disse que estou grávida, e não com uma doença terminal.
— Sim, eu sei que ela está grávida. — Voltei a olhar
para o babaca do Cássio. Sério que ele sabia e deixou
aquela louca se arriscar daquela maneira? — Repito: qual
o problema?
— Acha que ela pode jogar futebol estando grávida?
— Na verdade, eu acho. Tomadas as devidas
precauções, não há mal algum nisso. Mas, ainda assim, ela
não estava jogando.
— Ah, não estava jogando? Então acha que não teria
risco nenhum dessa bola bater na barriga dela? Ou de ela
se desequilibrar e cair no chão?
Ele abriu a boca para retrucar, mas Alice tomou a
palavra, novamente furiosa:
— ‘Desequilibrar’? Acha o quê, que eu ia cair do nada,
como uma banana podre?
— Bem, não seria a primeira vez, não é?
— Pois é... uma vez, uma única vez, eu tive um
desmaio na vida, e infelizmente tive o desprazer disso
acontecer na sua presença, para que use contra mim pelo
resto da vida. Mas, repito: foi apenas uma vez, e foi
andando na rua e não praticando nenhuma ‘atividade de
risco’, o que nem é o caso agora. Eram simples
embaixadinhas, e... Aff, quer saber? Eu não devo
explicações da minha vida para você!
— Não deve. Mas não é por você que estou fazendo
isso. Seu avô se preocupa com você. E ele já perdeu coisa
demais na vida para ainda sofrer por um possível acidente
provocado pela sua irresponsabilidade.
Ela se calou e aquilo me surpreendeu. Em um primeiro
momento, eu quase me senti feliz e vitorioso, mas isso não
aconteceu, porque logo notei a expressão no rosto dela se
modificando. Ainda existia a raiva ali, mas agora parecia
misturada a... tristeza? Tive a confirmação quando percebi
lágrimas se formando em seus olhos.
O que eu teria dito de errado?
— Você é um grande idiota — ela despejou. E sem me
dar chances para resposta, saiu de lá apressada.
Tentei segui-la, mas ela montou em Duquesa e
partiu em direção à casa. Poderia pegar Hades e ir atrás
dela, mas algo me dizia que ela não parecia querer que eu
fizesse isso.

*****

ALICE

Cowboy idiota.
Idiota, idiota, mil vezes idiota!
Como ele podia se meter a querer me dar ordens, ou a
saber o que eu podia ou não fazer?
Aliás, como ele podia falar comigo daquela maneira?
Como podia se meter a me dizer o que era certo ou
errado?
E como podia jogar aquele argumento... justo aquele
argumento contra mim? Era como se ele soubesse da
dimensão das perdas do meu avô. E como se soubesse a
minha parcela de culpa naquilo.
Deixei Duquesa na baia e segui para casa apressada,
subindo as escadas correndo até o meu quarto, onde me
fechei. As lágrimas que lutei tanto para segurar agora
desciam livres pelo meu rosto, assim como as memórias
tomaram a minha mente. Desde que cheguei ali que eu as
vinha evitando, mas agora já estavam incontroláveis.
Lembrar da minha avó não era algo ruim. As
recordações do rosto, da voz, do cheiro dela... tudo isso
aquecia o meu coração. Mas quando elas vinham, quase
inevitavelmente terminavam na forma como ela nos deixou.
Se eu não tivesse insistido tanto para que ela fosse
me ver naquele dia... Ela ainda estaria por aqui.
Aquele cowboy idiota tinha toda a razão. Meu avô
tinha sofrido demais com a perda da mulher que amara
durante toda a vida.
E nada nunca tiraria da minha cabeça que eu tinha
uma parcela de culpa em tudo aquilo.
Deitei-me na cama, abraçando o travesseiro com força
e deixando todo o choro acumulado vir à tona.

*****
Capítulo nove - Trégua

“Mas nada vai conseguir mudar


o que ficou
Quando penso em alguém
só penso em você
E aí, então, estamos bem

Mesmo com tantos motivos


pra deixar tudo como está
Nem desistir, nem tentar,
agora tanto faz...
Estamos indo de volta pra casa”

Por Enquanto – Cássia Eller

MARCELO

Uma semana se passou sem que eu voltasse a ver


Alice.
E eu continuava sem saber o que havia feito de tão
errado para provocar nela aquela reação. Mas sei que,
como se seguindo a ferro e fogo o meu conselho de não se
arriscar, desde aquela tarde que ela não havia saído de
casa.
Óbvio que não era pra tanto. Era só ela não se meter a
fazer coisas insanas como jogar futebol ou dirigir depois de
ter um desmaio, que tudo ficaria bem. Se trancar em casa
daquele jeito, também, já era radical demais.
Eu sabia bem que nada daquilo era da minha conta.
Mas eu não poderia ignorar uma mulher grávida se
colocando em riscos daquele jeito. Meu instinto protetor
gritava com isso.
Sem contar que seu Bernardo tinha com aquela neta
uma preocupação grande, o que eu acreditava ser por ele
já ter perdido uma pessoa amada antes. Eu tinha
presenciado de perto a depressão na qual ele se afundou
depois daquilo. Chegou até mesmo a passar um tempo
longe da fazenda, na casa do filho. Voltara melhor,
aparentemente tendo superado a perda e disposto a seguir
com a vida, mas era claro que tudo era uma enorme
fachada. Ele nunca voltou a ser o mesmo. Porém, eu podia
dizer que desde que sua neta veio morar na fazenda, que
ele andava com o semblante mais leve. Não que sorrisse
mais, mas seus sorrisos agora pareciam mais sinceros. Ele
amava muito aquela neta, e estava muito feliz pela ideia de
ser bisavô. E ele era como um pai para mim, por isso eu
não podia admitir que voltasse a sofrer como daquela vez.
Por falar no seu Bernardo, acabei encontrando com
ele quando saía do estábulo. Ia cumprimentá-lo e seguir
direto, mas ele me chamou. Estava parado ao lado da sua
caminhonete e, pelas roupas mais arrumadas, parecia
estar de saída.
— Hoje é a reunião mensal com os fazendeiros da
região — ele comunicou.
Levei a mão à testa. Tinha me esquecido
completamente daquilo.
— Não lembrava que seria hoje, seu Bernardo. Me
espera dez minutos, vou apenas trocar de roupas, e...
— Você não tinha como se lembrar, porque não te
contei, garoto. Até porque, eu também tinha me esquecido
do dia dessa chatice. O Anastácio esteve aqui ontem no
fim da tarde e me lembrou disso. Não posso mais confiar
na minha cabeça, rapaz. Que bom que Alice está aqui. Ela
disse que vai montar uma agenda para anotar esses
compromissos.
Quando ele mencionou a neta, me deu uma vontade
quase irresistível de perguntar por ela, mas me controlei. O
assunto em questão era mais urgente.
— Então, vou apenas trocar de camisa para ir com o
senhor.
— Não precisa. Deixe que vou sozinho dessa vez.
Estranhei aquilo. Seu Bernardo sempre me pedia
para acompanhá-lo. Nos últimos anos, eu vinha cuidando
mais ativamente da fazenda e acabava conhecendo-a até
melhor do que o meu patrão, e por isso sempre o ajudava
com informações importantes nessas reuniões.
— Na verdade, eu preciso de outro favor seu — ele
voltou a falar. — Sabe, hoje é folga da dona Mariana, mas
anteontem minha neta e eu combinamos que iríamos hoje
à cidade fazer compras. Mas acontece que...
— Espera, seu Bernardo! — eu o interrompi, já
imaginando aonde ele pretendia chegar. — Acho que
mencionei com o senhor que a última vez que acompanhei
sua neta, a coisa não acabou bem.
— É. E contou também que ela desmaiou, por isso
não quero que fique andando sozinha por aí.
— Seu Bernardo, no dia eu também fiquei
preocupado, mas... — Não acreditava que fosse admitir
algo assim, mas... — depois pensei melhor e vi que fui um
pouco exagerado. Não é como se ela fosse desmaiar no
volante em qualquer situação. A não ser que ela tenha
alguma doença grave ou coisa parecia, o que não é o caso,
não é?
Naquela situação, eu admitia: tinha sido um pouco
exagerado. Mas isso não se estendia ao episódio no
campo de futebol. Aquilo tinha sido insanidade daquela
mulher!
— Tem razão, Marcelo — ele declarou. Olhou ao
redor, como se temesse que alguém estivesse espionando
a conversa, como quem estivesse prestes a contar um
segredo. — A verdade é que eu apenas não quero que ela
fique sozinha. Eu sei que isso é meio complicado, porque
vocês dois não se dão bem, mas... Eu realmente prefiro
que ela fique irritada do que sozinha.
— Achei que não a queria sozinha justamente com
medo de ela se aborrecesse pensando muito nas
preocupações com a perda do emprego, o bebê e tudo
mais.
— É medo, sim. Mas não apenas de um mero
aborrecimento, filho. A minha neta, ela... já passou por
situações bem difíceis do passado. E tanto eu quanto os
pais dela temos muito medo de que tudo isso retorne.
— Seu Bernardo... é alguma doença ou coisa
parecida?
— É uma doença sim, filho. A mais triste delas. Uma
maldita doença da alma. Ela está passando por muita
pressão, e tenho muito medo de que tudo aquilo volte. E
que ela caia no mesmo abismo que caiu com a perda da
avó.
Eu não era capaz de entender com exatidão, mas
conseguia fazer ideia do que ele estaria dizendo nas
entrelinhas. Eu podia ser um caipira meio bronco, como
Cristiane vivia dizendo que eu era, mas sabia que existiam
doenças que iam além do físico e debilitavam nossas
mentes e almas.
Eu não sabia se um sujeito como eu seria de alguma
forma útil para ajudar naquilo, mas se a questão fosse
apenas acompanhá-la a algum lugar... bem, então eu faria
isso. Por mais insuportável que fosse ter que aturar a
companhia dela por algumas horas.
— Então... fazer compras, não é? — indaguei, por fim,
mostrando que estava convencido.
Ele sorriu, dando um tapinha nas minhas costas.
— Te devo mais uma, garoto.
Pensei em dizer que ele não me devia nada, já que
tinha me deixado usar a casa anexa. Contudo, já
começava a achar que aquele aluguel estava ficando caro
demais.
*****

ALICE

Aquilo era algum tipo de piada. Provavelmente. Ou


uma espécie de teste de paciência. Nada mais justificava
eu chegar para pegar o meu carro e encontrar aquele
sujeito parado bem ao lado, com os braços cruzados,
olhando para mim como se estivesse me esperando. Já
tinha visto aquele filme, e o final não tinha sido nada
animador.
— Meu avô te mandou ir comigo de novo? —
perguntei, apenas para confirmar o que já parecia óbvio.
— É. Isso não vai ser divertido para mim também,
moça.
Ao menos, ele era sincero. E isso era ótimo, me
desobrigava de tentar manter algum grau de simpatia
forçada. Outra coisa relativamente boa é que dessa vez ele
estava do lado do carona, aguardando que eu destravasse
as portas para entrar. Ao menos não parecia disposto a
novamente iniciar uma briga para decidir quem iria dirigir.
Menos mal.
Destravei o veículo e entramos. Ele se mostrou
incomodado com o tamanho do espaço e logo puxou o
banco para trás. Iniciamos a viagem em silêncio, mas não
demorou até que ele dissesse algo.
— Preciso te dizer uma coisa.
Olhei-o rapidamente, logo voltando os olhos para a
estrada.
— Diga, oras.
— Eu queria... tepedirdesculpasporaqueledia.
Franzi a testa. O que ele tinha falado?
— Não entendi uma única palavra.
— Querotepedirdesculpasporaqueledia.
— Dá pra falar mais devagar?
Ele bufou, parecendo contrariado. Mas fez o que eu
pedi, dessa vez falando pausado até demais.
— Eu queria te pedir desculpas por aquele dia.
Aquilo, sim, era uma surpresa. Pelo que eu conhecia
daquele cowboy, ele não era exatamente um sujeito que
costumava pedir desculpas.
— Ah, é? Pelo quê? — Sabia exatamente pelo que,
mas seria bom ouvir da boca dele.
— Por eu talvez ter sido meio grosso quando tentei te
proteger de levar uma bolada na barriga durante aquela
brincadeira infeliz.
Ok, resposta errada.
— Achei que estivesse pedindo desculpas por ter sido
inteiramente grosso e paranoico por ver um risco onde não
havia.
Pelo canto dos olhos, vi quando ele levantou o chapéu
e passou a mão pelo cabelo, parecendo tentar se controlar.
— Olha, eu não quero brigar contigo de novo. Não vou
mudar de ideia sobre achar arriscado o que você estava
fazendo, mas isso não me dava o direito de ser grosso ou
de chamar a sua atenção, e é por isso que eu peço
desculpas.
Balancei a cabeça em concordância, mas por alguns
segundos não disse nada, embora minha cabeça
trabalhasse a mil. Decidi aproveitar aquela trégua entre nós
dois para tirar algumas dúvidas:
— Ouça... Seja sincero comigo, o meu avô te colocou
para me vigiar ou coisa parecida?
— O quê? Não. Ele só me pediu para te acompanhar
naquele dia ao cartório e hoje ao mercado.
— Nada sobre me seguir pela fazenda?
— Eu não estava te seguindo. Estava passando por lá
quando te vi.
Isso fazia sentido. Tinha andado por algum tempo
antes de parar no campo, e acredito que teria percebido se
tivesse alguém me seguindo.
— Certo, não está me seguindo. Meu avô te pediu
apenas para me acompanhar, não é? Posso saber com
base em quê? Ele te deu alguma justificativa para isso?
— Ele disse apenas que está preocupado com você.
Com o seu emocional.
Balancei a cabeça em negativa, não conseguindo
evitar um leve riso. Não que aquilo fosse engraçado – na
realidade, não era nem um pouco – mas era surpreendente
que depois de tanto tempo minha família ainda achasse
que eu fosse repetir a mesma coisa feita anos antes.
Pensava se seria para sempre assim, se eu iria passar o
resto da minha vida causando tanta preocupação àqueles
que me amavam.
— Ele não tem motivos para isso. Eu realmente estou
bem.
— Acho que precisa dizer isso para ele.
— Eu já disse. Incontáveis vezes. Mas eu já disse isso
antes, quando eu de fato não estava nada bem. Então
acho que minha palavra não passa muita credibilidade
agora.
— Não acho que seja questão de acreditar ou não na
sua palavra. Mas ele te ama, e por isso vai sempre se
preocupar você. É o que os avós fazem.
— Os avós de netas normais não ficam achando que
elas vão cortar os pulsos a qualquer momento.
Um silêncio incômodo se instalou no carro e, alguns
segundos depois, olhei rapidamente para ele, reparando
que ele estava analisando os meus pulsos. Não encontraria
nenhuma marca ali. “cortar os pulsos” era uma expressão
meio genérica. Existiam muitos outros métodos para um
suicídio.
Como o que eu tinha usado há sete anos.
Sacudi a cabeça, voltando a prestar atenção na
estrada. Lembrar daquele dia dava margem para gatilhos.
E eu não precisava de um, definitivamente.
— Eu não vou fazer nenhuma besteira — reforcei.
Mais para mim mesma do que para ele. — Queria muito
que meu avô acreditasse nisso.
— Ele só está preocupado com a sua cabeça com isso
de dar um tempo no futebol, da gravidez não planejada, e...
ele não comentou, mas provavelmente também está
preocupado com o término da sua relação com o pai da
criança.
— Todo término é difícil, mas... acho que eu nem
gostava do Guilherme tanto assim.
Eu não tinha qualquer intenção de fazer desabafos
pessoais com ele. Apenas mudei o foco do assunto, para
evitar qualquer pergunta:
— Se isso vai deixar o meu avô mais tranquilo, tudo
bem se você for me acompanhar em algumas vindas à
cidade. Olha, a gente começou de uma forma muito errada,
mas podemos nos entender para poder conviver
pacificamente.
— A respeito desse início errado, mais uma vez:
lamento muito por aquele inconveniente na sua casa.
— O quê? Ah, não. Não é desse início que estou
falando. Me refiro à nossa infância mesmo. Você adorava
me irritar.
— Eu não adorava te irritar. Eu apenas achava
estranho o seu jeito. Queria jogar futebol com os meninos,
isso era muito esquisito.
— Um pensamento meio arcaico da sua parte.
— Hoje eu sei disso. Mas eu era só uma criança, dê
um desconto.
— Tá. Acho que podemos superar isso. O que acha:
amigos?
Soltei uma das mãos do volante, estendendo-a para
ele. Levou menos de um segundo até que ele a apertasse
com a sua, mas logo soltasse, me dando mais uma bronca:
— Mantenha as duas mãos ao volante, sua louca.
Quer nos matar?
— Acabamos de dar uma trégua e você já está me
chamando de louca?
— Não chamo mais, se você prometer ter atenção
enquanto dirige.
Sorri levemente, aceitando a oferta.
— Combinado, então.
Acho que, enfim, tínhamos uma trégua.

*****
Capítulo dez – Disputa

“I've held hope in my two hands


(Segurei a esperança com minhas duas
mãos)
But there will be another chance (Mas
haverá uma outra oportunidade)
To find the kingdom (Para encontrar o
reino)
I believe it in my heart (Acredito, de
coração)
'Cause underneath the good (Porque
sob o bem)
There's something greater than you
know (Há algo maior do que você
imagina)

When you're almost there (Quando


você estiver quase lá)
And you're almost home (E você estiver
quase em casa)
Just open up your eyes and go, go
(Apenas abra os seus olhos e vá, vá)
When you're almost there (Quando
você estiver quase lá)
Almost home (Quase em casa)
Know you're not alone (Saiba que não
está sozinho)
You're almost home” (Você está quase
em casa)
Almost Home - Mariah Carey

MARCELO

A trégua estava sendo boa, no fim das contas. Minha


relação com Alice estava bem mais amigável. Naquele dia,
fizemos as compras em um clima de paz, voltamos no
carro conversando sobre amenidades e eu agora,
surpreso, precisava reconhecer que a moça insuportável
na verdade era uma boa pessoa. E era também agradável,
quando queria ser.
Quase um mês se passou desde então, e não voltei a
precisar acompanhá-la a lugar algum. Isso deveria me
deixar feliz, mas a realidade é que nas vezes em que sabia
que ela precisava ir à cidade fiquei em alerta esperando
por uma ordem de seu Bernardo, e um tanto frustrado
quando esta não veio. Ela saiu umas três ou quatro vezes
naquele meio-tempo, sendo uma delas acompanhada pela
Mariana e nas outras pelo próprio avô.
Até que, no fim de tarde de uma sexta-feira, enquanto
cavalgava com Hades, eu voltei a vê-la. Novamente, um
grupo de crianças se divertia no campo de futebol – mas
dessa vez sem aquele exibido do Cássio. Lá estava ela no
meio deles, falando algo que eu de longe não podia saber
do que se tratava, mas que julguei ser interessante pela
atenção que as crianças dedicavam a ela, aglomeradas à
sua frente como alunos ouvindo uma importante aula de
uma professora. Os cabelos estavam soltos, e ela se
esforçava para tirá-los de seu rosto por conta do vento.
Usava uma bermuda jeans e uma camiseta regata bem
justa ao corpo, que deixava marcada a leve saliência que
começava a se formar em sua barriga, dando os primeiros
sinais visíveis de sua gravidez.
Puta merda, ela estava especialmente linda naquele
dia, mesmo em toda a sua simplicidade.
Pensei que deveria seguir meu rumo, mas não
conseguia tirar meus olhos dela. E decidi que não poderia
simplesmente ir embora quando a vi pegar a bola das
mãos de um dos meninos e colocá-la no chão, em um claro
sinal de que iria... jogar com eles?
Mas qual era o problema daquela louca?
O encantamento voltou a dar lugar à raiva de sempre
e eu desmontei de Hades, correndo em direção ao campo
enquanto gritava:
— Ei! O que pensa que está fazendo?
Ela me olhou, logo fechando a cara.
— Não acredito nisso. Vamos mesmo repetir esse
filme?
— Vou repeti-lo quantas vezes forem necessárias. O
que você tem na cabeça?
— Deixa ela jogar com a gente, tio! — pediu um dos
meninos.
E os demais o acompanharam, em coro, reforçando o
pedido. Ela cruzou os braços e me encarou.
— O ‘tio’ aí não tem nada que me deixar ou não fazer
coisa alguma, crianças. Ele não é meu pai.
Sustentei o olhar dela, respondendo aos pequenos:
— Vocês sabiam que ela está esperando um bebê? É
arriscado.
— E daí? — respondeu uma garotinha. O tom de voz
petulante me fez me lembrar de Alice quando tinha aquela
idade. — A gente não vai machucar o bebê.
— É! — outro menino concordou. — É só uma partida
rapidinha, tio. Deixa!
— Deixaaaaa! — gritaram todos em coro. Era só o que
me faltava: uma rebelião infantil.
— Já disse que ele não tem o que deixar ou não,
crianças. Prometi uma partida com vocês e vou cumprir.
Enquanto as crianças vibravam, nós ficamos em
silêncio, nos encarando, pelo tempo que eu não sabia se
tinham sido segundos, minutos ou mesmo horas. Ela era
teimosa, e estava certa de que não havia riscos naquela
conduta.
Só que eu era mais teimoso ainda e não estava
disposto a deixá-la se machucar.
— Tem razão, não mando em você — anunciei, por
fim, sem desviar meu olhar do dela. — Mas eu também vou
querer jogar e, como jogador, tenho direito a dar sugestões
nas regras, não tenho?
As crianças responderam que sim. Vi Alice arquear
uma das sobrancelhas, na certa pensando sobre o que
estaria se passando pela minha cabeça. Decidi matar sua
curiosidade:
— Já está quase anoitecendo e todos vocês precisam
ir para casa, portanto essa será uma partida com morte
súbita. O time que fizer o primeiro gol vence, e o jogo
acaba. Combinado? Alice e eu tiraremos os times.
Eles novamente concordaram, empolgados. Já Alice,
continuou a me encarar e, após mais alguns segundos em
silêncio, questionou:
— E você por acaso acha que esse primeiro gol será
seu, não é?
— Bem, eu ando meio enferrujado, mas... No tempo
que eu jogava, costumava ganhar sempre.
— Quase sempre. Para mim você nunca ganhou.
Aquilo era verdade. Eu sempre fui muito mais dos
cavalos do que do futebol, portanto poucas vezes jogava –
e quando fazia isso era por insistência dos outros garotos,
já que sempre fui forte e tive velocidade, coisas que faziam
a diferença em um time. Mas nunca ganhei da Alice.
Mesmo pequena e magrela, a garota sempre foi um
monstro com uma bola nos pés.
Talvez o moleque dentro de mim estivesse ainda
aguardando por uma revanche.
Separamos os times e a partida começou. Alice já
largou na frente com a posse da bola, mas logo a passou
para uma das meninas, que não demorou a perdê-la para
um garoto da minha equipe. Enquanto as crianças estavam
naquela disputa, eu me via mais preocupado em manter
minha atenção em Alice, atento para que ela não levasse
um esbarrão súbito de uma das crianças, ou uma bolada,
ou mesmo que caísse. Contudo, logo percebi que nada
disso aconteceria, porque ela estava muito mais focada em
apenas auxiliar e deixar que as crianças jogassem o
máximo possível. Sempre que recebia a bola, logo a
passava. E também parecia cuidadosa e... que merda,
onde eu estava com a cabeça? Ela era uma profissional e
não uma amadora sem noção. Era muito óbvio que ela não
iria se machucar.
Assim como, agora, também era óbvio para mim que
eu realmente era um babaca neurótico.
Uns cinco minutos se passaram até que saiu o
primeiro gol, feito por um dos garotos do time de Alice.
Justo o menorzinho deles, que não devia ter mais do que
uns seis ou sete anos. A bola tinha sido deixada por Alice
praticamente nos pés dele, de cara para o gol. Meu goleiro
deu mole, e a bola passou com facilidade.
As crianças do time vencedor vibraram, mas minha
atenção foi toda voltada para Alice, que cumprimentou
cada um deles com um abraço, comemorando junto como
se aquela fosse a final de um importante campeonato.
Desde o seu retorno, que eu ainda não a tinha visto
daquele jeito. Parecendo tão... feliz.
E, puta que pariu, como ela ficava linda sorrindo
daquele jeito.
As crianças se dispersaram, seguindo para suas
casas. Alice sentou-se no chão gramado e eu fiz o mesmo,
sentando-me ao seu lado. Ela bateu o ombro dela contra o
meu, provocativa.
— Tantos anos depois e você continua perdendo para
uma garota.
— A garota em questão é uma profissional, é uma
disputa injusta. Quero ver perder pra mim em uma corrida
de cavalos.
— É um desafio? — De novo: qual era o problema
dela?
— É claro que não! Chega de competições. Sossegue
pelos próximos nove meses.
— Faltam apenas seis agora, na verdade.
Ela levou a mão à barriga e eu não pude evitar levar
os olhos na mesma direção. De perto, era possível ver
melhor o pequeno volume que crescia ali. O tempo estava
passando rápido, e logo ela estaria com uma barriga
enorme. Tal visão fez uma onda elétrica percorrer o meu
corpo. Pensei no tal ex dela. Como um sujeito podia ser
estúpido a ponto de optar por não estar por perto para
presenciar tudo aquilo?
— Já está com três meses? — perguntei.
— Entrando hoje da décima terceira semana.
— Não sei muito bem o que isso significa. No exame
que você fez mês passado, já deu para saber se é menino
ou menina?
— Não. Só vou saber na consulta da semana que
vem. E vou também poder escutar o coração dele ou dela
batendo. Estou bem ansiosa. Mas acho que meu avô está
bem mais do que eu, ele não fala de outra coisa.
É. Fazia tempo que eu não via seu Bernardo tão feliz.
— Deixa eu adivinhar: ele está torcendo por um
menino, não é?
— Ele não confessa, mas sei que sim. Ele teve apenas
uma neta, então acho que quer revezar tendo agora um
bisneto.
— E você?
— Eu sempre quis ter dois filhos, um menino e uma
menina, então realmente não tenho preferência. Pode
parecer clichê, mas... eu só quero que ele ou ela tenha
saúde e que eu seja capaz de ser a melhor mãe possível.
— E você tem alguma dúvida de que será?
— Bem... o bebê vai começar sua vida em uma casa
provisória, com uma mãe que ainda não faz ideia do que
fará depois que ele nascer, então... Bem, acho que não
estamos começando muito bem.
— A casa não precisa ser provisória. Você parece
gostar bastante daqui, e seu avô está feliz em te ter por
perto. Se a casa for a questão, a sua logo será liberada.
— Realmente, você não precisa ter pressa alguma pra
isso. Pelo menos até o bebê nascer e durante as primeiras
semanas, meu avô provavelmente não vai me deixar sair
da casa dele. Ele quer muito acompanhar tudo, e não vou
negar isso a ele. Aliás, ele hoje já mandou comprar tintas
para amanhã começarmos a trabalhar na pintura do quarto
que será do bebê.
— “Começarmos”? Quer dizer, vocês dois?
— É. Sabe, minha avó amava fazer esses pequenos
trabalhos, então quando eu era criança algumas vezes
passei dias inteiros com eles dois fazendo pintura e
decoração de cômodos. Sei que ele sente falta disso, então
propus a ele que nós dois cuidássemos disso, ao invés de
contratar alguém.
— Só que quando você era criança o seu avô não
tinha setenta anos.
— Estou sabendo. Já vi que a maior parte do trabalho
vai sobrar pra mim — ela riu e eu, vencido, ri junto.
Era estranho o quanto eu já me sentia bem na
companhia dela. O sol já começava a se pôr e seria bom
irmos logo embora, antes que tudo ficasse escuro.
Duquesa já não enxergava mais tão bem, então não era
prudente cavalgar com ela à noite. Mas, ao mesmo tempo,
eu não queria sair dali. Acho que seria capaz de passar
horas ali apenas conversando com ela. Nem mesmo com
Cristiane eu nunca havia me sentido assim.
A beleza de Alice me hipnotizada e, obviamente,
mexia com meus instintos. Mas não era apenas isso. Era o
cheiro adocicado de seus cabelos, a forma como falava, o
jeito de sorrir... Tudo nela era inebriante.
— Acho melhor eu ir embora — ela anunciou. —
Enquanto ainda tem luz do sol, senão Duquesa pode ficar
um pouco assustada.
— Claro. Eu acompanho você.
Levantei-me e ela mostrou alguma dificuldade para
fazer o mesmo. A barriga ainda estava pequena, mas ela
não parecia ainda acostumada com seu crescimento.
Estendi a mão para ajudá-la e ela aceitou. Novamente,
uma corrente elétrica pareceu percorrer o meu corpo
através daquele contato. Quando ela ficou de pé, de frente
para mim, nossas mãos continuaram por algum tempo
unidas, assim como nossos olhos ligados um ao outro.
Precisei de um esforço sobre-humano para não me
aproximar mais e tomar os lábios dela com os meus. Se
fizesse isso, estava certo, seria um caminho sem volta. Iria
querer fazê-la minha ali mesmo, naquele campo de futebol,
com os últimos raios de sol a iluminarem nossos corpos.
Desde quando essa mulher exercia uma atração tão
forte sobre mim?
E, pela forma como ela me olhava, eu poderia apostar
qualquer coisa que ela sentia o mesmo. E tive mais certeza
disso ao vê-la inclinar o rosto levemente para frente, como
em um convite para que eu fosse adiante. E eu cheguei a
um passo de aceitar, mas detive-me quando o som de um
trovão ecoou pelos céus, fazendo com que ela
sobressaltasse para trás, levando a mão ao peito.
— Parece que tem chuva a caminho — ela falou,
nitidamente tentando disfarçar aquele clima inegável que
ocorrera entre nós. — É melhor irmos logo.
E, sem aguardar por respostas, ela seguiu à frente,
indo para onde tínhamos deixado os cavalos.

*****
Capítulo onze - Ajuda

“But the stars in the sky look like home


(Mas as estrelas no céu se parecem
com a minha casa)
Take me home (Me leve pra casa)
And the light in your eyes lets me know
(E a luz em seus olhos me permite
saber)
I'm not alone (Que eu não estou
sozinha)

Not alone, not alone, not alone” (Não


estou sozinha, não estou sozinha, não
estou sozinha)

Alien – Britney Spears

ALICE

Eu tinha muitas coisas para focar a minha mente.


Muitas! Tantas, que eu nem sabia se poderia dar conta.
Eu ia ter um filho. E apenas isso, por si só, já trazia
junto uma carga de planejamentos e preocupações além
do padrão. Eu precisava pensar em como retomar minha
carreira depois da gestação. Eu tinha o trabalho com o meu
avô, que já não estava mais tão leve assim quanto pareceu
no início. Eu tinha toda uma vida adulta para ocupar a
minha cabeça.
Sendo assim, por que diabos minha mente agia como
a de uma adolescente apaixonada, não conseguindo parar
de pensar naquele maldito cowboy?
Apaixonada? Ok, talvez o termo fosse forte demais.
Ele era um tesão em forma de homem, e eu uma grávida
com os hormônios em ebulição, uma combinação um tanto
perigosa. E... era isso, apenas isso. Desejo a gente
simplesmente reprime, e a vida segue seu rumo.
Talvez, misturado a isso, tivesse o fato de que ele –
apesar de minha antiga opinião – era um cara legal. E eu
gostava da companhia dele, independente do tal desejo. E
era essa combinação de coisas que me fazia achar que
poderia estar sentindo qualquer coisa por ele. Até porque,
caso realmente existisse algum sentimento meu envolvido,
seria uma gigantesca ingenuidade da minha parte acreditar
que isso tivesse qualquer chance de dar certo. Eu estava
naquela fazenda de passagem, e ele tinha raízes
profundas ali, que futuro existiria para nós? E, bem... eu
agora era mãe. Uma mulher grávida de outro homem não é
exatamente o maior sonho de vida de um cara.
Ao menos, hoje era sábado, o dia que eu havia
combinado com o meu avô de fazermos a pintura do quarto
do bebê. Portanto, ficaria o dia inteiro em casa. Sem
chances de encontrar o cowboy.
O quarto que passaria a ser do bebê ficava bem ao
lado do meu, e já estava com o chão todo coberto por
jornais, com latas de tinta e pincéis a postos. Eu não levava
tanto jeito com decoração quanto minha avó, mas o plano
era pintar todo o cômodo em um tom de areia, com
exceção de uma parede, que seria colorida de azul, com
desenhos de nuvens, simulando um céu. Também havia
um lindo, mas já antigo, berço, além de uma cômoda, que
tinham sido meus e aos quais meu avô guardara todos
aqueles anos, certo de que algum dia poderiam ser
novamente usados.
— Isso é que é madeira de qualidade! — ele
comentou, batendo no material do berço para mostrar o
que dizia. — Mais de vinte anos e está completamente
intacto. Uma pintura e ele ficará como novo.
Pela porta aberta, Paçoca nos observava, deitada no
corredor. Devido ao tom de voz empolgado com o qual meu
avô falava, ela abanou o rabo e deu um latido, que fez com
que nós dois ríssemos.
— Não tenho dúvidas, e acho que a Paçoca também
não. Os móveis ficarão lindos com a pintura, vô. Nem
acredito que guardou isso por tanto tempo.
— São lembranças da minha única neta quando bebê,
e sabia que algum dia serviriam para o meu bisneto.
Porque, ao contrário da sua mãe, você tem bom gosto e
reconhece um móvel rústico de qualidade.
Foi impossível deixar de rir. Vovô tinha uma
implicância com o fato de minha mãe adorar o que ele
chamava de “esses móveis modernos que não duram nem
cinco anos”.
— Além do mais — vovô prosseguiu —, estes aqui
foram feitos por um amigo querido. Sempre disse que ele
devia largar tudo para viver da marcenaria, era o melhor
nisso. Mas a paixão dele era ser um cowboy.
Pisquei, curiosa.
— Um amigo cowboy?
— É. O pai do Marcelo. Era o melhor marceneiro que
já conheci, mas também era o melhor cowboy. Ou o
segundo, acho que o filho o superou.
— Não me lembro muito dele, mas... Pela forma como
fala dele com saudades, deve ter sido um bom amigo.
— Ah, ele era. Bem, mas vamos parar de conversa e
começar o trabalho. Hoje a Mariana não vem, então logo
terei que parar para fazer o almoço.
— Para que almoço, vô? Podemos comer um lanche
rápido.
— “Lanche rápido”... vocês e essas manias de cidade
grande. Aqui a gente come arroz com feijão. Mas chega de
conversa e vamos ao trabalho!
Ele não precisou pedir duas vezes. Começamos pela
pintura das paredes mais claras, nas quais eu ainda
pretendia colocar alguma coisa para tornar o ambiente
mais acolhedor. Para mim, saber o sexo do bebê era meio
indiferente, porque desde o início já tinha visualizado como
queria o quarto: algo em tons pastéis, mas ainda assim
bem colorido. O berço seria pintado de verde-água e a
cômoda ganharia uma cor diferente em cada gaveta.
Passamos horas ali naquele trabalho, mas o processo
era lento, já que eu podia dizer que estava praticamente
sozinha. Meu avô me fazia companhia, me animava com
as conversas, mas o rendimento dele no serviço em si não
era grande coisa. Primeiro, porque ele nunca levara muito
jeito para aquilo – o negócio dele era mexer com a terra e
com animais. E, segundo, porque a cada meia hora ele
precisava se sentar um pouco, já que sua coluna já não era
mais a mesma. Até que percebemos que já era meio-dia e
ele me deixou sozinha, indo preparar o almoço. Cerca de
uma hora depois, ouvi seu chamado vindo da cozinha, me
chamando para ir comer.
Ao chegar lá, tive uma inesperada surpresa.
Aparentemente, tínhamos um convidado para o
almoço.

*****

MARCELO

Nada daquilo tinha sido premeditado. Eu realmente


pretendia manter alguma distância, para tentar diminuir
seja lá o que estivesse começando a surgir entre mim e
Alice. Mas quando seu Bernardo bateu na minha porta me
pedindo ajuda e me convidando para almoçar com eles
dois, eu sequer pensei duas vezes antes de aceitar.
Como previ, Seu Bernardo não estava dando conta
muito bem do trabalho proposto. E eu estava
estranhamente animado em ajudar.
Logo que cheguei e me sentei à mesa, a cadelinha
caramelo se aproximou, colocando a cabeça no meu joelho
e pedindo carinho. Afaguei sua cabeça, tentando conter o
coração que disparou enquanto seu Bernardo chamava
pela neta, e enquanto eu ouvia os passos dela se
aproximando.
Que inferno, eu era um homem adulto! Por que estava
me sentindo como uma porra de um adolescente gostando
de uma menina? A última vez que tinha me sentido
daquele jeito, foi com Cristiane. E não havia acabado bem.
Ela parou por um instante na porta da cozinha, e
novamente nos vimos presos em uma troca silenciosa de
olhares. Ela usava uma camiseta velha, toda suja de
pingos de tinta, e os cabelos amarrados em um coque no
topo da cabeça. Desci os olhos pelas pernas torneadas, a
mostra devido ao short de lycra que ela usava, que se
moldava perfeitamente às suas curvas. Merda, minha
reação àquela visão estava sendo completamente
inadequada ao momento.
— Boa tarde — ela me cumprimentou, nitidamente
tentando quebrar aquele clima de... seja lá que diabos seria
aquilo.
— Boa tarde, moça — respondi, tocando levemente a
aba do meu chapéu.
— Querida, o Marcelo veio nos ajudar com a pintura —
seu Bernardo anunciou.
Ela não pareceu ter gostado muito da notícia.
— Vovô! O senhor foi perturbar o Marcelo pedindo
ajuda? Em pleno sábado? Hoje é dia de descanso dele!
Adiantei-me em explicar:
— Hoje fui trabalhar na obra da minha casa, mas os
pedreiros não puderam ir, então acabei voltando mais
cedo. Não tinha mesmo mais nada para fazer hoje, seria
um dia perdido.
— Poderia descansar! — ela argumentou.
Dessa vez, foi seu Bernardo quem falou:
— Eu disse que darei a segunda-feira de folga para
ele, Lili. Foi só uma troca de dias, não sou um explorador.
— E eu disse que não precisa, seu Bernardo. É um
favor de amigo, ficarei feliz em ajudá-lo.
— É claro que precisa, e isso não está em
negociação — seu Bernardo retrucou. Então, voltou a olhar
para a neta. — Além do mais, Lili, eu sou péssimo nesse
trabalho, você estava praticamente sozinha, e ia acabar
terminando só quando esse bebê estivesse chegando à
faculdade.
— Não exagera, vô. Se não terminarmos hoje,
terminaríamos amanhã.
— Vamos terminar hoje, então — garanti. E ela
voltou a me olhar, ainda parada no mesmo lugar.
— Eu realmente não queria te dar esse trabalho.
— E eu já disse que não é trabalho algum. Além do
mais, já vai compensar só por comer a comida do seu
Bernardo. O cheiro está ótimo, aliás.
Ela sorriu, vencida, e eu acabei sorrindo junto, como
um babaca enfeitiçado por ela. Enfim, ela se juntou a nós,
sentando-se ao meu lado na mesa. E almoçamos todos
juntos. A comida realmente estava deliciosa, mas nada
superava a companhia.
Quando terminamos, seu Bernardo nos mandou ir
na frente, enquanto ele lavava a louça do almoço. Eu
quase poderia jurar que ele estava conspirando para me
deixar sozinho com sua neta.
Chegamos ao quarto, e dei uma boa olhada no que
já tinha sido feito.
— Você é boa na pintura — comentei, olhando para
as paredes já cobertas de tinta.
— É. Achava que fosse só no futebol? Tenho minhas
habilidades manuais também.
Péssima escolha de palavras. Sabia que a intenção
não trazia nada que pudesse ser levado para o lado sexual
da coisa, mas... caramba, como eu fazia para meu corpo
não reagir à imagem mental provocada pelo comentário?
O que eu não daria para conhecer melhor as
‘habilidades manuais’ dela...
Sacudi a cabeça, tentando me manter o mais lúcido
possível. Foi então que meus olhos se detiveram, curiosos,
sobre os móveis ao centro do cômodo. Algo no estilo deles
chamou a minha atenção. E meu coração disparou mais
rápido quando ela comentou:
— Eram meus. Meu avô me disse que foram feitos
pelo seu pai.
É claro. Como eu poderia não ter reconhecido logo
de cara? Meu pai não era marceneiro profissional, fazia
isso por hobby, nas horas vagas, atendendo a encomendas
de alguns poucos e bons amigos. E não era de se
estranhar que Seu Bernardo fosse um deles.
Aproximei-me do berço, tocando-o com ambas as
mãos. Uma emoção indescritível tomou conta de mim,
como se, depois de tanto tempo, eu pudesse voltar a sentir
a presença do meu pai próximo a mim. Quando me dei
conta, lágrimas caíam dos meus olhos. Senti uma mão em
minhas costas e virei o rosto, vendo que Alice me dava
apoio.
— Sei que é uma lembrança importante do seu pai.
Se quiser ficar com ele, eu...
— Não, de forma alguma. — Passei as mãos pelo
rosto, secando-o. — Ele foi seu, e agora será do seu bebê.
— Acho que seria justo se guardasse para os seus
futuros filhos.
Filhos... a ideia agora me parecia tão distante.
— Não sei quando serei pai. Mas o seu bebê está a
caminho, e ele terá o berço mais legal do mundo.
— Vou aceitar como um presente, então.
Ela sorriu e eu retribuí, sentindo que, de fato, existia
mais me ligando àquela mulher do que a mera atração
física. Havia uma paz na presença dela, que eu não me
recordava de sentir com nenhuma outra pessoa.
Disfarcei, voltando a olhar para o berço.
— Ele só vai precisar de uma nova pintura, essa já
está bem gasta.
— Sim, essa é uma das coisas que pretendo fazer,
logo que terminar com as paredes.
— Vamos terminar, então.
Ela assentiu e começamos o trabalho. Logo seu
Bernardo chegou para nos auxiliar. Três das paredes foram
pintadas em um mesmo tom neutro, enquanto outra
ganhou a cor azul. Alice contou que, quando o fundo azul
secasse por completo, iria pintar ali algumas nuvens, para
simular o céu. Isso, claro, acabaria ficando para outro dia,
quando ela também pretendia prender prateleiras às
paredes. Depois de realizar o ultrassom ela iria começar a
comprar as coisas para o bebê.
Enquanto ela contava sobre esses planos, senti-me
subitamente tomado por um desejo de fazer parte daquilo.
Queria não apenas acompanhá-la, mas participar de tudo.
Contudo, era óbvio, eu não tinha esse direito. Não éramos
nada um do outro. Eu era apenas o empregado da fazenda
do seu avô. E, talvez, estivesse me tornando algo próximo
de um amigo.
Mas, puta merda, eu queria ser tão mais do que
isso!
Quando terminamos com as paredes, a noite já
começava a cair e novamente seu Bernardo nos deixou
para preparar algo para comermos. Partimos, então, para a
pintura dos móveis. Eu a princípio duvidava que aquela
mistura de cores fosse ficar harmoniosa, mas logo percebi
o quanto estava enganado.
A voz de seu Bernardo ecoou vinda do andar de
baixo, avisando que havia feito sanduíches e pedindo para
que descêssemos para comer. Como o trabalho dali, por
aquele dia, estava terminado, resolvemos atender à ordem.
Alice foi caminhando na frente, mas ao chegar perto da
porta pareceu se dar conta de algo e virou-se bruscamente.
Não consegui parar a tempo, e nossos corpos colidiram um
contra o outro. Ela levantou a cabeça, olhando-me nos
olhos, e mais uma vez nos vimos presos em um
magnetismo invisível. Dessa vez, no entanto, não houve
trovão, nem qualquer outra coisa que nos detivesse. Não
sei quem deu o primeiro impulso mas, quando dei por mim,
minha boca já se apossava da dela com fúria.

*****

ALICE

Eu não sabia como aquilo havia começado. Eu tinha


apenas me dado conta de que levava um pincel comigo e
virei-me na intenção de voltar para deixá-lo no quarto. Um
segundo depois, senti o impacto do corpo dele contra o
meu. Mais alguns segundos, e a boca dele se apossava da
minha. Mais um segundo, e a língua dele reivindicou
passagem para dentro da minha. E eu perdi
completamente qualquer noção a mais de tempo. As mãos
dele desceram pelas minhas costas e eu o puxei com mais
força para junto de mim, desejando que aquelas peças de
roupas que evitavam que nossos corpos se tocassem de
forma livre simplesmente desaparecessem.
E acredito que teria mandado todo o bom senso para o
inferno e ido até o fim naquilo, se o som do alerta de
mensagens do meu celular, no bolso da minha bermuda,
não soasse nesse momento, acendendo em nós a noção
de realidade e fazendo com que nos afastássemos.
Ambos recuamos um passo, embora nossos olhos
permanecessem nos ligando um ao outro. Meu coração
estava acelerado e, a julgar a forma ofegante como ele
respirava, eu poderia apostar que se sentia da mesma
forma.
— Garotos, venham comer! — a voz do meu avô
voltou a ser ouvida, nos chamando como se fôssemos
duas crianças.
— É melhor a gente descer... — ele falou, mostrando
ser o adulto responsável por ali.
E, confesso, eu desejava que ele não fizesse isso.
Que largasse o ‘dane-se’ e voltasse a me beijar. Que
fechasse aquela porta, arrancasse minhas roupas e me
fizesse sua no chão daquele quarto.
Ok... meu avô tinha razão em me tratar como uma
criança. Ali estava a minha mente me mostrando que eu
não tinha uma gota de juízo. Eu estava grávida, Marcelo
tinha ido até ali apenas para me ajudar, e... que inferno,
aquela era a casa do meu avô!
— É... é melhor... — respondi, por fim. — Vai indo na
frente, eu vou só... — Abaixei-me, pegando no chão o
pincel que eu tinha deixado cair em algum ponto em meio
ao nosso breve momento impróprio. — Vou lavar isso aqui,
e já vou descer.
Ele acenou com a cabeça em concordância e saiu do
quarto. Ficando sozinha, voltei a respirar fundo, tentando
recuperar um pouco mais de autocontrole. O celular voltou
a tocar no meu bolso e xinguei um palavrão em voz baixa,
irritada com seja lá quem estivesse me mandando
mensagens naquele momento.
Peguei o aparelho e desbloqueei a tela, abrindo o
whatsapp. Havia ali duas mensagens de um número
desconhecido, embora a foto do contato fosse bem
conhecida por mim.
Eu não podia acreditar. O que ele queria comigo?

*****
Capítulo doze - Susto

“Walk me home in the dead of night (Me


leve para casa na calada da noite)
I can't be alone with all that's on my
mind (Não posso ficar sozinha com
tudo que tenho em mente)
So say you'll stay with me tonight
(Então, diga que ficará comigo esta
noite)
Cause there is so much wrong going on
outside (Porque tem tanta coisa errada
acontecendo lá fora)

There's something in the way I wanna


cry (Há algo no jeito em que quero
chorar)
That makes me think we'll make it out
alive (Que me faz pensar que sairemos
dessa vivos)
So come on and show me how we're
good (Então, venha e me mostre o
quanto somos bons)
I think that we could do some good”
(Acho que podemos fazer algo de bom)

Walk Me Home – Pink


MARCELO

Dois dias depois, e eu ainda me perguntava que tipo


de merda eu tinha na cabeça para ter feito aquilo. Eu tinha
beijado a Alice. A neta do meu patrão. E dentro da casa
dele. Era um fato que eu estava precisando de um bom
sexo, desde que me separei de Cristiane que não tinha
saído com mulher alguma. Mas Alice não era uma opção
para esse tipo de distração. E, bem... isso era tudo o que
eu poderia oferecer a ela, já que não estava nem um pouco
disposto a me envolver em uma nova relação. Não agora,
depois de ter entregado minha vida inteira a uma mulher e
ela ter jogado isso fora como se fosse um monte de lixo.
Sendo assim, o melhor a ser feito era me manter bem
longe de Alice. Estava bem determinado a isso.
Contudo, ao menos naquele dia, algo fez com que
essa determinação fraquejasse um pouco. Estava fazendo
um trabalho próximo à entrada principal da fazenda,
quando vi um veículo passar pela porteira e seguir em
direção à casa de Seu Bernardo. Não seria nada demais,
se não fosse o fato de eu reconhecer o homem que dirigia:
Doutor Alberto, médico que há anos cuidava de Seu
Bernardo. Para ele estar ali, àquela hora da manhã,
provavelmente tinha sido chamado para alguma
emergência. Teria acontecido algo com Alice? Aquela
grávida imprudente teria se metido em algum acidente ou
coisa parecida?
Sem pensar duas vezes, montei em Hades e segui o
carro.
*****

ALICE

Duas horas antes...

Já passava das oito quando acordei, o que já poderia


ser considerado tarde para mim. Apesar de sentir o corpo
cansado pelo trabalho no final de semana – no sábado a
parte mais bruta da pintura do quarto, e no domingo os
detalhes finais, além da limpeza – eu havia demorado
muito para conseguir pegar no sono, revezando meus
pensamentos entre aquelas malditas mensagens recebidas
no meu celular e o beijo trocado com o maldito cowboy.
Com isso, acabei por perder a hora. Meu avô bem que
poderia ter me acordado, mas imaginei que ele tinha
optado por me deixar descansar mais um pouco depois do
trabalho dos últimos dias. De certa forma, era grata por
isso.
Tomei um bom banho, troquei-me e saí do quarto.
Estranhei não encontrar Paçoca me esperando no
corredor, como ela fazia depois que meu avô descia, mas
imaginei que ela estivesse dormindo. Já era uma idosinha,
afinal de contas. Desci e já chegava à cozinha quando ouvi
o som da porta sendo aberta. Olhei e vi Mariana chegando.
Eu realmente havia dormido demais.
— Bom dia! — ela me cumprimentou sorrindo. — E
cadê Paçoca que não veio me receber?
— Bom dia. Acho que ela decidiu dormir até um pouco
mais tarde hoje. Não a culpo, fiz o mesmo.
— Sério? Acordou agora? Gravidez realmente dá
muito sono, não é? — Ela me cumprimentou com um beijo
no rosto e ambas entramos na cozinha.
— Acho que sou meio imune a esses efeitos de
gravidez. Dizem que os três primeiros meses são mais
tensos, mas eu não tive muito sono, nem muitos enjoos.
Tirando uns três ou quatro episódios de queda de glicose, e
dois desmaios por conta disso, tudo foi bem tranquilo. —
Claro, tirando também a libido que estava meio às alturas.
Foi só pensar nisso que voltei a lembrar do cowboy e do
nosso beijo, e um calafrio percorreu todo o meu corpo.
— Que sorte a sua! Tem mulheres que sofrem muito
nessa fase. — Concordei em silêncio, mas não tive tempo
de fazer nenhum comentário a respeito, porque, ao se
aproximar da pia, Mariana observou algo. — Seu avô não
fez café hoje? O que houve com ele?
Estranhei aquilo. Meu avô era muito ligado à rotina, e
preparar o café logo que levantasse era algo que ele
jamais deixava de fazer.
A não ser que...
Logo que o mais raso pensamento me veio à mente,
saí da cozinha às pressas e subi correndo as escadas, até
chegar ao quarto do meu avô. Abri a porta e lá estava ele,
sentado na cama com as duas mãos na cabeça, parecendo
sentir alguma dor. Paçoca estava ao seu lado e cheirava
seu rosto, enquanto choramingava aflita.
— Vô! — praticamente gritei, correndo até ele e o
segurando pelos ombros. — Vô, fala comigo. O que o
senhor tem?
— Eu estou atrasado, dormi demais... — ele falou,
com a voz baixa e fraca. — Preciso me levantar, e... — Ele
soltou um baixo gemido de dor.
Levei as mãos ao rosto dele, constatando que estava
quente. Muito quente.
— Está ardendo em febre, vô. O que está sentindo?
— Só um pouco de dor de cabeça e no corpo, e...
Acalme-se, Alice, é só um resfriado bobo. Vou trabalhar
que isso passa.
Apesar do que ele dizia, dava para notar que não
conseguia reunir forças para se levantar.
Ouvi a voz de Mariana atrás de mim, só agora
percebendo que ela tinha me seguido até ali.
— Vou ligar para o Doutor Alberto e pedir para que
ele venha. Fique tranquila, querida, não há de ser nada de
grave.
Dito isso, ela saiu do quarto.
Vencido, meu avô acabou voltando a se deitar e
fechou os olhos, e vê-lo daquele jeito me trouxe uma dor
insuportável ao peito. Ouvi um ganido baixo e olhei para
Paçoca, que se acomodava deitada com a cabeça na
barriga dele, olhando-o como se entendesse o que
acontecia ali.
— Fica calma, menina... — pedi, passando a mão
pela cabeça dela. — O médico virá atendê-lo e ele vai ficar
bem.
Eu não sabia se era realmente apenas a cadela que
eu tentava tranquilizar com aquelas palavras, ou também a
mim mesma.

*****

MARCELO

Avistei o médico entrando na casa e Mariana, ao me


ver e provavelmente perceber que eu estava indo para lá,
continuou na porta, aguardando até que eu chegasse.
Desmontei de Hades e subi correndo os degraus da
varanda, já perguntando:
— A Alice está bem?
— Ela, sim. O doutor veio ver o seu Bernardo.
Não tive tempo nem ao menos de sentir o alívio pela
primeira parte da resposta, porque a explicação manteve
em mim a preocupação.
— O que aconteceu com o seu Bernardo?
— Ele está ardendo em febre. Sabe que ele raramente
fica doente, não é? E apenas se sentindo muito mal
deixaria de sair de casa.
Aquilo realmente era preocupante. Meu patrão
desconhecia completamente o conceito de tirar um dia de
folga. Acompanhar tudo o que acontecia na fazenda era
simplesmente a vida dele. Eu não o imaginava deixando de
sair de casa em uma segunda-feira a não ser que estivesse
realmente se sentindo muito mal.
E como ele, de fato, nunca ficava doente, aquilo me
preocupou ainda mais.
E Mariana pareceu perceber isso no meu rosto, já que
falou:
— Entre, rapaz. Vamos aguardar até que o doutor nos
traga alguma notícia.
Fiz isso, esperando que as notícias fossem boas.

*****

ALICE

Enquanto o doutor Alberto o examinava, eu andava de


forma aflita pelo corredor, de um lado para o outro,
tentando controlar a agonia que crescia em meu peito a
cada minuto que se passava. Ouvi passos na escada e
olhei para lá, imaginando que seria Mariana. Acertei, em
parte, porque não era apenas ela. Estava acompanhada
por Marcelo. Depois da nossa situação ocorrida há alguns
dias, imaginei que reencontrá-lo fosse trazer uma sensação
de constrangimento, mas percebi ali que estava enganada.
Vê-lo naquele momento me trouxe algo bem diferente.
Uma espécie de alívio e conforto. Ficamos por alguns
segundos apenas nos olhando em silêncio, até que ele
abriu a boca para dizer alguma coisa. Contudo, nenhum
som saiu de lá, já que foi interrompido pela porta do quarto
sendo aberta. Doutor Alberto nos olhou e sorriu, e aquilo
me trouxe novamente a sensação de alívio. Não deveria
ser mesmo nada grave.
— Ele está com uma inflamação na garganta, mas não
é nada de grave. Dei a ele um antitérmico, e logo a febre
deve baixar um pouco. Vou receitar um antibiótico e um
analgésico para aliviar as dores. Fora isso, ele precisa
beber muita água e, principalmente, descansar.
— Essa última parte será a mais difícil — Mariana
opinou, e eu tive que dar razão a ela. Mas garanti:
— Ele vai descansar sim, doutor. Nem que eu tenha
que amarrá-lo na cama durante o mês inteiro.
— Acredito que uma semana seja o suficiente. Agora
preciso ir, tenho mais alguns atendimentos para fazer.
Dona Mariana, pode me acompanhar até a porta? Vou
fazer a receita dos remédios e deixar com você.
Ela concordou e, após eu agradecer por tudo, o
médico se foi. Ficamos apenas eu e Marcelo ali, e
entramos os dois no quarto. Meu avô estava acordado,
deitado com sua fiel companheira canina ao seu lado.
Suspirei, liberando a tensão que aquilo tinha me causado.
— Vocês dois vão ficar aí me olhando como se eu
estivesse morrendo? — meu avô resmungou, visivelmente
com um péssimo humor. — Sinto dizer, mas isso vai
demorar um bocado ainda para acontecer.
Ia dizer alguma coisa, mas Marcelo se antecipou,
aproximando-se da cama.
— Ora, seu Bernardo, que susto o senhor nos deu!
— Vocês são muito exagerados, isso sim. Tenho
certeza de que depois do almoço já estarei melhor e
poderei sair.
— Vô! — chamei a atenção dele, em um tom
autoritário. — Nada de sair de casa por pelo menos uma
semana.
— Acha mesmo que deixarei minha fazenda
abandonada assim?
— Como abandonada? — Marcelo retrucou. — Eu
cuidarei bem de tudo por aqui, seu Bernardo. O senhor
pode ter certeza disso.
— Eu sei disso, garoto. Sei que cuida dessas terras
como se fossem suas, mas não posso deixar tudo assim
nas suas costas.
— Pode e vai! — intervi, já levemente autoritária. — O
médico disse uma semana de repouso, então o senhor fará
uma semana de repouso.
Meu avô fez bico e cruzou os braços, como uma
criança teimando com a mãe.
— Se o que eu tenho é tão grave que precisa de tanto
tempo parado, você não deveria estar aqui perto de mim.
Está grávida, pode acabar pegando.
— Certo, então vamos aceitar aqui as nossas
limitações? Eu estou grávida, e o senhor tem setenta e dois
anos. Amanhã é minha consulta, então pedirei ao médico
algumas vitaminas para fortalecer meu sistema
imunológico. E o senhor fará a sua parte e ficará bem
quietinho de repouso.
— Quanto exagero... — Ele olhou para o seu lado,
onde Paçoca estava deitada, olhando-o como se
compreendesse o que acontecia. — E essa cachorra que
não desgruda de mim? Aposto que nem comeu nada hoje.
Sorri, vendo a preocupação dele com sua cadelinha de
estimação. Mesmo sem olhar para o lado, percebi que
Marcelo fazia o mesmo.
— Vou pedir para a Mariana trazer o café da manhã
dela, e o seu também. Já que a garganta está doendo, que
tal um mingau bem reforçado?
— Odeio mingau.
— Veremos alguma outra coisa, então. Agora
descanse, tudo bem? Paçoca, fique de olho nele e não o
deixe levantar, combinado?
Sentindo que um nó se formava em minha garganta,
saí apressada do quarto, parando no corredor com as
costas apoiadas na parede. Marcelo ainda ficou no quarto
conversando com meu avô por coisa de dois ou três
minutos, e quando saiu eu esperava que se despedisse de
mim e descesse as escadas. No entanto, ele parou de
frente para mim. Estava com a cabeça abaixada, portanto
não podia ver a expressão em seu rosto. Então tentei
apressar as coisas, antes que eu desabasse de vez ali, na
frente dele.
— Obrigada por ter vindo. Meu avô está meio mal
humorado, mas ele gosta muito de você, então sei que foi
importante saber que você se preocupa.
— Alice, olha pra mim?
Achei o pedido inusitado, mas tentei, sem sucesso,
disfarçar enquanto o atendia. No mesmo momento em que
levantei o rosto as primeiras lágrimas escaparam dos meus
olhos, e pareceram puxar outras, e mais outras. O soluço
contido escapou pela minha garganta e, agindo por simples
impulso, eu me joguei nos braços de Marcelo, abraçando-
o.
— Calma, está tudo bem — ele me garantiu, enquanto
me abraçava de volta. As palavras tão simples, junto ao
calor de seu corpo, foram um reconforto.
Eu sabia, racionalmente, que tudo estava bem. Mas o
susto de mais cedo, junto ao turbilhão de pensamentos
horríveis que dominaram a minha mente enquanto
esperava que o médico o atendesse de repente pareciam
estourar em uma crise de choro que eu não conseguia
controlar.
— Eu fiquei tão assustada... — desabafei, ainda
acolhida pelos braços dele. — Eu amo tanto o meu avô,
tanto. Não posso perdê-lo. Não assim. Não agora.
— Ei, você não escutou o médico? É só uma
inflamação na garganta, não é nada de grave. Seu
Bernardo ainda vai viver por muitos anos. Se bobear, com
mais saúde que nós dois juntos.
Assenti, concordando, embora a dor no meu peito
permanecesse forte demais. Sabia que tudo aquilo tinha
sido pelo medo que senti, e também que não havia motivos
para isso, já que meu avô iria ficar bem. Mas meu
emocional andava abalado demais, então tudo havia
estourado naquela crise de choro.
Após mais alguns minutos, consegui me acalmar e me
afastei, secando o rosto com as costas das mãos.
— Desculpe por isso... — pedi, só então me dando
conta do papelão que tinha feito.
Ele sorriu e balançou a cabeça em negativa.
— Não tem o que se desculpar. Eu entendo. Seu avô
também é muito importante para mim.
— Eu sei. E agradeço por isso.
— Não tem o que agradecer. Mas agora eu realmente
preciso ir. Ele me passou uma lista enorme de afazeres. À
noite volto para ver como ele está, se você não se importar.
— É claro que não. Agradeço mesmo muito por tudo
isso.
— Já disse que não tem o que agradecer.
— Aposto que ele te encheu de missões, não é?
— É, algumas. E só para te deixar preparada para
uma delas, provavelmente a mais importante: ele pediu
para eu te acompanhar amanhã na consulta. Mas eu sei
que isso é algo meio pessoal, então se não quiser que eu
vá, posso falar com a Mariana, sei que ela vai ficar feliz em
te acompanhar.
Balancei a cabeça, negando rápido até demais.
— Não. Ficarei feliz se você puder ir.
Ele piscou algumas vezes, pego de surpresa pela
declaração. Mas também... “Ficarei feliz se você puder ir”?
Tinha certeza de que isso havia soado até mesmo
desesperado. O que Marcelo iria pensar de mim? Ainda
mais depois daquele estúpido – e delicioso – beijo?
Porém, para meu alívio, ele sorriu.
— Também ficarei feliz em ir com você.

*****
Capítulo treze -
Acompanhante

“Me disseram que você


Estava chorando
E foi então que percebi
Como lhe quero tanto

Já não me preocupo se eu não sei porquê


Às vezes o que eu vejo quase ninguém vê
E eu sei que você sabe quase sem querer
Que eu quero o mesmo que você”

Quase sem querer – Legião Urbana

MARCELO
Conforme o combinado, às oito da manhã eu estava
dentro da caminhonete, parado bem em frente à varanda
da casa, esperando por Alice. Por qualquer razão estúpida,
eu mal havia conseguido pregar o olho naquela noite.
Enganava-me dizendo que era pelo susto passado no dia
anterior com o seu Bernardo, ou pelos problemas na
fazenda que tive ou que ainda teria para resolver naquela
semana, ou mesmo pela obra da minha casa, que estava
levando mais tempo que o programado. Mas no fundo eu
sabia que nada daquilo era verdade. Estava ansioso como
uma porra de um adolescente que iria sair com a garota
que gosta.
Mais do que isso: estava ansioso pelo exame como se
eu tivesse algo a ver com aquela criança.
Logo Alice chegou e, pela primeira vez desde que nos
reencontramos, entrou no carro sem discutir. Ela nem ao
menos insistiu em dirigir, o que era algo inédito. Percebi
pelo seu olhar que ela parecia cansada. É claro! Se eu
estava ansioso por aquela consulta, nem poderia imaginar
como ela estaria.
Liguei o carro e saímos da fazenda, pegando a
estrada.
— Como está o seu Bernardo? — perguntei, não
apenas para puxar assunto, mas também por de fato estar
preocupado.
— Teve um pouco de febre essa noite, mas agora de
manhã está melhor. E de novo insistiu que queria sair.
— Vai ser meio difícil fazê-lo ficar quieto por mais seis
dias.
— Ah, mas vou dar um jeito. Falei para Mariana que,
se for preciso, pode trancá-lo dentro de casa hoje caso ele
insista em sair.
— Não duvido que isso seja realmente necessário. —
Rimos juntos, e eu resolvi mudar de assunto. — Está muito
ansiosa por hoje, não é?
— É. Quero muito saber como está o bebê, e...
descobrir se é ele ou ela, para poder parar de chamá-lo
apenas de “bebê”.
— Já tem ideia dos nomes?
— Já, sim. Sempre tive, aliás.
— Pode me contar quais são? Isso é, se não for algum
tipo de segredo ou coisa parecida.
Mesmo sem olhá-la, percebi que ela sorria.
— Se for menina, será Beatriz. Se for menino,
Bernardo.
Sorri, achando lindas as escolhas.
— Os nomes dos seus avós... É uma merecida e justa
homenagem.
— Então, mas realmente isso ainda é meio que um
segredo. Ainda não contei para o meu avô. Será uma
surpresa para quando o bebê nascer.
— Para quando nascer o Bernardo ou a Beatriz.
Ela sorriu.
— É. Exatamente. Posso contar contigo para esse
segredo?
— Claro. E, só para não correr o risco de falar demais,
quem mais sabe?
— Na verdade, só você. Não contei ainda para mais
ninguém.
Balancei a cabeça, pego de surpresa e sem saber o
que dizer. Podia parecer uma coisa boba, mas era um
pequeno segredo que ela confidenciava apenas a mim.
Senti-me um idiota por ficar tão emocionado com isso, mas
era como eu me sentia.
Ela rapidamente mudou o assunto, falando sobre seu
trabalho na fazenda e contando sobre o problema com um
dos fornecedores. E o trabalho passou a ser o assunto
dentro daquele carro, até que chegássemos à clínica
médica. Ela deu os dados na recepção e nos sentamos
lado a lado na sala de espera, aguardando até que ela
fosse chamada. Percebi que as pernas dela estavam
inquietas e ela as balançava sem parar. Agindo por
impulso, segurei a mão dela com a minha, garantindo logo
que ela me olhou nos olhos:
— Fique calma, vai dar tudo certo.
“Vai dar tudo certo”... Aquele era o tipo de comentário
a ser feito antes de uma competição ou de algum trabalho,
não de um exame pré-natal. No entanto, fiquei feliz quando
Alice respondeu com um sorriso. Mas antes que ela
dissesse qualquer coisa, uma enfermeira se aproximou,
chamando:
— Senhora Alice? Pode vir, por favor? Seu exame
será na sala três.
Ela assentiu e soltou a minha mão, levantando-se.
Antes que pudessem se afastar, no entanto, a enfermeira
olhou para mim e completou:
— O senhor também pode vir. É muito importante para
a mãe ter a presença do pai do bebê nesse momento.
Após jogar aquela bomba, a mulher deu meia volta e
dirigiu-se até a sala citada. Alice e eu nos entreolhamos,
ambos nitidamente constrangidos.
— E...eu... eu... — ela gaguejou, com seu rosto
ficando cada vez mais vermelho. Meus Deus, ela ficava
ainda mais linda assim! — ...peço desculpas por isso. Em
momento algum eu disse a alguém que você seria...
— Não... que isso, Alice. Foi só um engano dela, não é
nada demais.
— Claro... um terrível engano. Mas fica tranquilo, você
não é obrigado a me acompanhar. Imagina, esse tipo de
coisa deve ser meio entediante para um cara como você.
Ela se virou e eu, num impulso, me levantei e a agarrei
pela mão, evitando que ela se afastasse. Minha vontade
inicial era dizer que nada sobre ela e seu bebê poderia ser,
de forma alguma, entediante para mim, mas detive-me a
tempo, sabendo o quanto isso seria extremo. No entanto,
não pude evitar externar o meu próximo pensamento:
— Eu realmente ficaria feliz em acompanhar você.
Claro, caso você queira a minha presença.
Para o meu imenso alívio, ela sorriu e sua resposta foi
a melhor que eu poderia ouvir:
— E eu ficarei feliz em ter a sua companhia. Vai ser
algo importante e eu odiaria estar sozinha.
— Bem, eu não sou o pai da criança, nem um parente
seu, mas... Se a minha companhia servir, será um prazer.
— A companhia de um amigo ajuda muito.
A frase criou em mim sentimentos desencontrados e
um tanto extremos.
Por um lado, eu ficava feliz em ouvir que ela confiava
em mim e me tinha como um amigo. Bem mais feliz do que
eu deveria ficar.
Por outro, uma onda de chateação se apossava de
mim, como se ser apenas amigo dela não fosse o bastante.
Bem mais chateado, também, do que deveria ficar.
Por que diabos tudo o que eu sentia com relação
Àquela mulher parecia ser tão intenso?

*****

ALICE

Eu não queria soar como uma boba carente, mas a


realidade era que era justamente dessa forma que eu me
sentia. Eu não queria mesmo estar sozinha em um
momento como aquele. E, ao mesmo tempo, eu estava
realmente feliz que fosse Marcelo a me acompanhar. E é
claro que isso me tornava extremamente ridícula. Ele não
era nada meu, no fim das contas. E o que eu menos queria
era que se sentisse pressionado, como se eu estivesse
desesperadamente atrás de um pai para o meu bebê.
Segui junto a ele para a sala do exame, onde a
enfermeira já nos esperava. Deitei-me sobre a mesa e
Marcelo parou de pé ao meu lado, mostrando-se um pouco
deslocado naquele local. Comecei a pensar se eu não o
teria colocado em uma situação meio desconfortável.
— Como tem se sentido nesses últimos dias? — a
enfermeira me perguntou, simpática.
— Ah, estou bem. Às vezes até duvido que esteja
grávida, porque não senti ainda nenhuma mudança. Bem,
fora a barriga que cresceu um pouco. — E os efeitos que o
cowboy causava sobre mim, mas isso eu achava mais
viável não comentar a respeito.
— Que bênção! Os primeiros meses são bem
complicados para algumas mamães.
— Minha mãe sempre me contou que teve também
uma gravidez bem tranquila, então acho que isso é meio
hereditário — brinquei, tentando relaxar um pouco daquela
ansiedade.
— Provável que seja. Bem, fiquem à vontade, a
técnica de ultrassom logo virá para começar o exame.
Sorrindo, ela se retirou, deixando Marcelo e eu
sozinhos na sala. Apenas percebi que meus pés se
balançavam aflitivamente quando ele comentou:
— Acalme-se, Alice. Está tudo bem.
“Está tudo bem”...
Uma frase tão simples, mas que às vezes é tudo o que
se precisa ouvir.
— Eu só quero saber se está tudo bem com o bebê —
confessei. — Posso parecer uma grávida meio desmiolada
e sei que essa gravidez não foi planejada, mas... É incrível
o tanto que já amo essa coisinha tão pequena que está
crescendo dentro de mim. Não sei se é uma menina ou um
menino, que rosto nem que personalidade ele ou ela vai
ter, mas... Já o amo tanto. Tudo o que quero é que ele ou
ela esteja bem, que fique bem e que seja feliz.
Pela iluminação leve daquela sala escura, pude ver o
esboço de um sorriso surgindo no rosto de Marcelo.
— Ele está bem, e continuará bem, e será sim muito
feliz, porque você será uma ótima mãe.
E aquelas eram mais palavras simples que faziam
muita diferença. Quem diria que aquele cowboy tão bronco
tivesse tanta sabedoria? Nem parecia o moleque que vivia
implicando comigo.
Bem, e, na verdade, não era. Ele havia crescido,
assim como eu. Éramos dois adultos agora. Vivendo vidas
adultas e problemas adultos. E isso assustava às vezes.
Enfim a técnica chegou e após nos cumprimentar
sentou-se em sua cadeira ao lado da mesa onde eu
estava, posicionando-se para começar o trabalho. Após
despejar um pouco de gel na minha barriga, ela iniciou.
Imagens começaram a surgir no monitor diante de nós,
mas não era possível, para pessoas leigas como Marcelo e
eu – compreendê-las.
Ela começou a fazer as medições:
— O bebê está com 6 centímetros e meio.
— Isso é muito pequeno, não? — Marcelo
comentou. Reparei que ele olhava para a tela com a testa
franzida, como se tentasse identificar algo na imagem.
— Sim, é bem pequeno. Mas está no tamanho ideal
para o tempo de gestação. Nessa fase ele já está com os
pezinhos e mãozinhas formados, as articulações e os
músculos estão ficando mais rígidos. Inclusive ele já
consegue mexer o cabecinha de um lado para o outro.
— Eu não deveria senti-lo se mexendo, então? —
perguntei, preocupada.
A técnica sorriu, sem tirar os olhos da tela.
— É cedo ainda para isso. É sua primeira gestação,
certo? Deve começar a sentir isso em torno da décima
oitava semana em diante.
Isso não parecia tão distante assim, mas eu sabia
que para mim ia demorar uma eternidade para chegar. Já
estava ansiosa para aquele momento.
— Então, já pensaram em alguns nomes? — ela
perguntou, ainda realizando anotações na imagem da tela.
Ignorei que a pergunta foi feita no plural. Não tive
vontade de corrigi-la e apenas contei:
— Já, sim. Bernardo ou Beatriz.
— Nossa, já estão convictos assim? Nessa fase,
geralmente os pais ainda não se decidiram.
— Acho que tenho isso decidido desde os meus
quinze ou dezesseis anos.
— São belos nomes. — A técnica enfim desviou a
atenção do monitor para me olhar. — E então, vão querer
saber hoje se quem está aí dentro é a Beatriz ou o
Bernardo? Alguns pais preferem que seja surpresa para a
hora do parto.
— Sou ansiosa demais para gostar de surpresas —
brinquei. Senti que meus pés voltavam a se mexer e forcei-
me a contê-los.
— Vocês têm algum palpite? Alguma preferência?
— Não. Minha prioridade é saber se está tudo bem
com o bebê, mas se for possível ver o sexo, ficarei feliz.
Menino ou menina, já o amo demais.
Ela assentiu e voltou a passar o aparelho na minha
barriga, tornando a olhar para a tela. O silêncio que se
seguiu me deixou ainda mais aflita. Meus pés voltaram a
balançar e achei que, agora, eu já não teria mais
autocontrole suficiente para fazê-los pararem. Foi quando
senti a mão de Marcelo encostando-se à minha e
prontamente as entrelacei, apertando-a e, dessa forma,
consegui conter a agitação nas pernas. Foquei-me
completamente no contato da mão dele com a minha e na
visão daquela tela, ainda que eu não fosse capaz de
identificar com precisão as imagens ali mostradas. Pareceu
se passar uma eternidade até que a técnica nos olhasse e
sorrisse, fazendo o anúncio:
— Parabéns. Está tudo certo com o pequeno
Bernardo. É um menino bem saudável.
Senti as lágrimas rapidamente inundarem meus
olhos e não consegui pronunciar nem ao menos uma única
palavra. Eu era mãe de um menino, que teria o nome do
bisavô e seria imensamente amado. Não importava se eu
tivesse que criá-lo sozinha. Sabia que faria o meu melhor.
— Bem, terminamos por aqui. Não precisam ter
pressa, vou sair para dar um tempo a vocês. Podem seguir
depois para a sala de espera, porque em alguns minutos o
doutor irá chamá-los.
Dito isso, ela saiu da sala, deixando-nos a sós.
Enfim, olhei para Marcelo e meu coração pareceu parar por
um instante ao notar que havia lágrimas nos olhos dele. Ele
estava emocionado com o meu bebê?
Eu sinceramente não sabia o que dizer, nem ao
menos o que sentir naquele momento. Tudo o que eu
conseguia era ser grata por ele estar ali comigo. E foi a
única coisa que consegui dizer, com minha voz misturada
ao choro:
— Obrigada. Obrigada por não me deixar sozinha
agora.
Antes que ele pudesse responder qualquer coisa, eu
levantei o tronco da cama, surpreendendo-o com um
abraço.
Não queria nem imaginar o que ele poderia estar
pensando com aquela minha reação tão súbita. Mas eu
precisava dizer aquilo a ele. E precisava abraçá-lo.

*****
Capítulo catorze - Apenas
um simples beijo

"Primeiro era vertigem


Como em qualquer paixão
Era só fechar os olhos
E deixar o corpo ir
No ritmo...
Depois era um vício
Uma intoxicação
Me corroendo as veias
Me arrasando pelo chão"

Casa - Lulu Santos

MARCELO

Se existia nesse mundo alguma emoção maior do que


aquela que vivi ao lado de Alice, vendo as imagens do
ultrassom através de um monitor e, logo depois, já na sala
do médico, ouvindo o coração do bebê batendo acelerado,
eu desconhecia. Era simplesmente incrível, e eu só podia
agradecê-la por me permitir estar com ela naquele
momento.
Embora, é claro, eu não tivesse qualquer direito a isso,
já que não era nada dela. Bem, nada além de um amigo,
como ela mesma dissera horas antes.
Agora, saindo da clínica, imaginei que seguiríamos
diretamente de volta para a fazenda, mas Alice me pediu
para acompanhá-la a mais um lugar. Na cidade vizinha,
havia um pequeno shopping que contava com algumas
lojas de artigos para bebês, e ela queria já comprar
algumas coisas. Claro que, antes de seguirmos para lá, ela
telefonou para casa e falou com Mariana para saber do
estado de seu Bernardo. Ele estava melhor, sem febre, e
aparentemente conformado em permanecer na cama, e
isso era ótimo e nos dava liberdade para demorarmos um
pouco mais antes de retornar.
O local ficava a uns quarenta minutos dali do centro, e
fomos o caminho todo conversando sobre o exame, sobre
os batimentos acelerados – o que segundo o médico era
normal – do pequeno bebê, sobre o exame de imagem e os
detalhes narrados pela técnica. Alice estava simplesmente
eufórica, o que me fazia lembrar um pouco da menininha
que conheci há tantos anos. Desde que retornara que eu
ainda não a tinha visto naquele nível de felicidade e isso
aqueceu o meu peito. Porra, eu faria qualquer coisa para
vê-la daquele jeito mais e mais vezes.
Quando chegamos ao shopping, fomos primeiro
almoçar, e depois seguimos para as lojas. Eu achava que
compras, em geral, eram algo enfadonho, e imaginava que
as de coisas para bebês fossem mais chatas ainda, mas vi
o quanto estava enganado. Acredito que era por Alice ser
uma companhia incrivelmente divertida. O tempo acabou
passando rápido demais e ela comprou bem menos do que
pretendia, apesar de ter garantido o que ela dizia ser mais
urgente: o colchão para o berço, além de cortina, nichos,
luminárias e mais alguns objetos de decoração para o
quarto. Em um momento que ela se afastou para ligar
novamente para casa – precisou ir para o lado de fora da
loja para isso, pois lá dentro não tinha sinal de celular –
aproveitei para comprar um pequeno presente que
pretendia entregar a ela em breve.
Depois disso, seguimos de volta para fazenda. Foi
quase uma hora de mais uma viagem bem agradável. Era
incrível como eu me sentia bem na companhia dela.
Parei a caminhonete em frente à casa principal.
Saímos do carro e eu a ajudei a levar as sacolas de
compras até a varanda. Paramos ali, um de frente para o
outro, novamente tendo o silêncio a nos envolver. Meu
desejo naquele momento era pegá-la em meus braços e
levá-la para a outra casa, onde eu estava morando, e
matar aquela vontade de fazê-la minha, que vinha me
possuindo há tanto tempo. Como se brincando com o
perigo, ela se aproximou mais uma passo, parando a
poucos centímetros de mim. Nossos corpos quase se
tocavam e eu era capaz de ouvir o som da sua respiração.
— Você quer me beijar, não quer? — ela provocou,
embora não houvesse um tom necessariamente
provocativo em sua voz. Era como uma inocente pergunta.
E isso me deixou ainda mais louco.
Meu corpo doeu em resposta àquilo. Ah, Alice, eu
queria tantas coisas...
— Quero — respondi apenas, ainda lutando para
segurar aquele desejo.
— Então por que evita tanto isso? — ela voltou a
questionar.
Abaixei um pouco o meu rosto, deixando-o ainda mais
próximo ao dela. Observei seus lábios por alguns
segundos, voltando a focar em seus olhos. Decidi ser
sincero:
— Porque não poderia te dar mais do que isso. E você
merece um cara que te ofereça muito além de simples
beijos sem compromisso.
Ela mordeu o lábio inferior e... inferno! Quanto mais de
autocontrole eu conseguiria manter ali?
— Talvez eu também queira apenas um simples beijo
sem compromisso. Não é como se você fosse obrigado a
se casar comigo por isso. Até porque, já nos beijamos
antes, e eu não te exigi nada depois disso.
Eu de forma alguma queria que ela pensasse que
aquele seria o problema. Ela era uma mulher maravilhosa,
e o cara que ficasse com ela seria um filho da puta de um
sortudo. Eu é que estava quebrado depois que Cristiane
me deixou. E ela merecia um homem que estivesse inteiro.
— Eu apenas não estou pronto para um
relacionamento — confessei.
— Repito: talvez eu também queira apenas um beijo
sem compromisso.
Ela soltou as sacolas de uma das mãos e a levou até o
meu peito, e esse foi o gatilho para desencadear o que eu
lutava tanto para conter. Contornei minha mão em sua
cintura, unindo o corpo dela ao meu. Ela provavelmente
conseguia sentir minha ereção por baixo da calça,
denunciando o tanto que eu a desejava, e eu provei isso
ainda mais ao tomar sua boca com a minha.
Aquilo, no entanto, não ajudou a diluir o desejo que eu
tinha por ela. Apenas aumentou em níveis incalculáveis. Eu
podia enganá-la com palavras, mas meu corpo gritava que
a queria muito além de um simples beijo.
Para a minha sorte, apesar de meu corpo falar tão
alto, ela não seria capaz de ouvir o meu coração. Porque
ter nossas bocas se devorando daquela forma me fazia
desejá-la não apenas em minha cama, mas em minha vida.
E eu não me permitiria tê-la de uma dessas formas se não
a tivesse também da outra.
Mas como conter aquele incêndio que ocorria entre
nós?
Apenas quando o ar começou a nos faltar, nós nos
afastamos, ambos respirando pesadamente, olhos ainda
fixos um no outro.
— Eu preciso entrar... — ela comunicou,
provavelmente também percebendo que, se voltássemos a
nos beijar, seria bem mais difícil conseguir parar apenas
por ali.
Assenti, mudando estrategicamente o foco do assunto:
— Vai precisar de ajuda com o restante da reforma do
quarto?
— Não poderei trabalhar nisso agora. Hoje perdi o dia
inteiro de trabalho e, com o meu avô de cama, tenho
bastante coisa acumulada para resolver no decorrer da
semana. Talvez no sábado eu tire novamente o dia para
isso.
— Posso vir te ajudar. Claro, se você quiser.
Ela sorriu, fazendo meu coração acelerar ainda mais.
— Eu adoraria. Caso eu vá mesmo ajeitar tudo no
sábado, eu te aviso.
— Combinado, então.
Apanhei as sacolas que tinham caído no chão e as
entreguei a ela. Despedimo-nos apenas com um aceno de
cabeça e dei meia-volta, indo diretamente para casa.
Precisava de um bom banho gelado.

*****

ALICE

Logo que entrei, deixei as sacolas todas caíssem no


chão da sala e apoiei as costas à porta fechada, respirando
profundamente e tentando normalizar a respiração e as
batidas descompassadas do meu coração.
Talvez eu também queira apenas um simples beijo
sem compromisso? Esperava que essa frase o tivesse
enganado, porque para mim mesma eu não poderia mais
mentir. Eu queria muito além de um beijo, e não dava mais
para culpar apenas os hormônios da gravidez por isso,
porque eu já não sabia mais se apenas o contato físico me
bastaria. Ainda mais depois daquele dia. Depois de tê-lo ao
meu lado enquanto realizava os exames, de ter a mão dele
segurando a minha quando descobri o sexo do bebê, de
ver as lágrimas nos olhos dele ao ouvir que seria um
menino, e também quando ouvimos juntos os batimentos
cardíacos do meu pequeno Bernardo.
Estava agindo como uma tonta apaixonada,
fantasiando situações que não se tornariam reais.
Senti um nó se formar em minha garganta, mas
contive-o quando avistei Mariana vindo da cozinha, com a
bolsa no ombro, parecendo pronta para ir embora. Senti-
me péssima por isso. Já passara do horário dela, mas ela
provavelmente ainda estava ali para me esperar chegar,
pois não queria deixar o meu avô sozinho. Como eu pude,
por um momento, me esquecer disso?
— Ai, Mari, me desculpa! — pedi. — Como já estava
na metade do caminho, decidi aproveitar o dia para ir ao
shopping da cidade vizinha comprar algumas coisas, para
não ter que sair ainda outro dia durante a semana. Eu
devia ter voltado mais cedo, desculpe.
— Deixa disso, menina! — ela rebateu, parando à
minha frente. — Não se passou nem uma hora além do
meu horário. Achei até que você fosse demorar mais.
— E meu avô, como está?
— Rabugento e reclamão, mas está bem. Fui vê-lo
tem uns dez minutos e ele estava dormindo, enfim. Ele já
comeu, e a Paçoca também. A bichinha mal saiu do lado
dele o dia inteiro. Ah, tem comida pra você, é só esquentar.
— Não precisava ter se preocupado comigo, Mari.
— Imagina. Você precisa se alimentar bem. Ainda
mais depois de passar um dia todo fora, comendo essas
porcarias de comida de rua. Ah, e fiz um bolo de laranja de
tarde.
— Ah, e eu certamente irei comê-lo. Eu e meu menino
amamos os seus bolos. — Levei a mão à barriga e ela
sorriu, vindo me abraçar.
— Então é um menino? Parabéns, minha querida! Meu
Deus, seu Bernardo ficará radiante!
— Que pena que ele está dormindo, mas contarei para
ele amanhã bem cedo.
— Vai até melhorar o mau humor dele. Já contou para
os seus pais?
— Vou ligar para eles mais tarde. Meu pai ainda não
deve ter chegado do serviço a essa hora, e quero falar com
os dois juntos.
— Amanhã me conta como foi a reação deles.
— Pode deixar! — Aproximei-me, deixando um beijo
na bochecha dela. — Obrigada por tudo, Mari. E pode vir
mais tarde amanhã, não se preocupe, que cuidarei de tudo
por aqui.
Ela me agradeceu e saiu. Deixei as sacolas ali mesmo
no chão e fui até o sofá, onde me sentei, fechando os olhos
e tentando colocar minha cabeça no lugar. Relembrar o
beijo na varanda fez o meu sangue voltar a esquentar, e
decidi que precisava de um bom banho para tentar esfriá-
lo. Preparei-me para me levantar e fazer isso, mas detive-
me ao sentir o celular vibrar no bolso de trás da minha
bermuda. Peguei o aparelho e, ao destravar a tela, quase
não acreditei no que vi.
Aquele idiota teve mesmo a cara de pau de voltar a
me mandar mensagens?
Rolei a tela relendo todas, uma a uma, desde a
primeira enviada há alguns dias.

Alice, eu preciso falar com você.


Sei que errei e que você deve estar uma fera.
Mas, por favor, me dê uma chance de me desculpar
pelo que disse e fiz.
Quando você vai parar de me ignorar e me responder?
Por favor, só te peço uma chance para a gente
conversar.
Me ligue quando estiver preparada para isso.

Eu não estava nada preparada. E provavelmente


jamais estaria, porque não sentia que houvesse qualquer
coisa para ser conversada entre nós. Guilherme já parecia
fazer parte de um passado muito distante.
Ainda assim, aquilo de mensagens já estava
começando a me irritar. Por isso, pressionei a tecla de
discagem e levei o celular ao ouvido. Em poucos toques,
fui atendida.
— Que bom que decidiu me ligar — ele falou logo que
atendeu.
— O que você quer? — perguntei diretamente.
— Sei que ainda deve estar muito chateada comigo.
— Não, Guilherme. Para estar chateada contigo eu
deveria lembrar que você existe, e confesso que isso não
tinha acontecido até você começar com essas mensagens.
— Não precisa fingir pra mim, Alice. Sei que errei feio
e você deve estar furiosa.
Rolei os olhos, pensando em como alguém podia ter
uma autoestima tão elevada para achar que eu realmente
vinha passando minhas últimas semanas pensando nele.
Era óbvio que ele era um filho da puta, e mais óbvio ainda
que eu não havia perdoado o que ele fez comigo, mas eu
era sincera no que dizia respeito a nem pensar mais
naquilo. Era como se eu já houvesse interiorizado que
aquele filho era apenas meu, portanto sequer sentia falta
de ter Guilherme ao meu lado durante a gravidez.
Podia sentir falta de ter um companheiro ou um pai
para o meu filho. Mas Guilherme definitivamente não
representava, para mim, nenhuma das duas coisas.
— Sim, você errou feio, e eu estou seguindo a minha
vida depois disso. Siga também a sua, e está tudo certo.
— Não está nada certo. Te procurei lá no clube e fiquei
sabendo que seu contrato foi reincidido. Também fui ao seu
apartamento e descobri que você não mora mais lá. Fui até
na casa dos seus pais e você não estava.
— Teve mesmo a cara de pau de aparecer na casa
dos meus pais?
— Aliás, seu pai me deu um soco e sua mãe jogou um
balde de água em mim.
Segurei o riso. Meus pais podiam ser um pouco
extremos na preocupação comigo, mas, naquele ponto,
achava que tinham feito mais do que certo. Queria que
tivessem filmado a cena para me mostrar.
— Nossa, coitadinho de você... — despejei, irônica.
— Sério, Alice, onde você está? Preciso te encontrar
pra gente conversar.
— Guilherme, estou sendo já muito benevolente em te
ligar, então o que tiver que ser dito, você pode dizer agora,
antes que eu desligue o telefone e bloqueie e seu número.
— Coisa que eu já devia ter feito, aliás.
— Eu quero pedir o seu perdão. Fui um canalha.
— Só isso? Se eu te disser que está perdoado, você
para de me perturbar?
— Quero o seu perdão e o do nosso filho.
Mas que diabos era aquilo de nosso?
— O meu filho não tem nada a ver com você,
Guilherme. Sério, segue a sua vida.
— Você pode decidir que não quer voltar pra mim,
Alice. Mas não pode me proibir de assumir o meu filho.
— Se eu bem me lembro, você me disse que nem
tinha como ter certeza de que era realmente seu.
— Fui um idiota. Já assumi isso.
— Você não foi, você é um idiota, Guilherme. Só quero
entender por que de repente você decidiu ‘mudar’.
Ele fez uma breve pausa e, quando voltou a falar,
percebi um tom de choro em sua voz:
— A doença do meu pai evoluiu e ele foi desenganado
pelos médicos.
Por um momento, fiquei sem fala. O pai do Guilherme
há anos lutava contra um câncer, mas nos últimos meses
vinha apresentando melhoras. Achei que ficaria bem.
— Sinto muito por isso — declarei, sincera. Tive muito
pouco contato com a família dele, mas sempre tinham sido
bem simpáticos comigo. Não tinha nada o que reclamar
dos pais dele, embora nunca tivéssemos sido próximos
nem nada parecido.
Além do mais, por mais que Guilherme fosse um
idiota, perder uma pessoa amada não era algo que eu
desejasse a ninguém. Apesar de ele não ter tanta
proximidade da família dele como eu tinha da minha, ainda
era sua família, afinal. Não devia estar sendo fácil.
— Quer você acredite ou não, essas coisas mudam
uma pessoa, Alice — ele declarou, e pareceu ter sido
sincero.
— Eu acredito, Guilherme. E realmente te dou o meu
perdão, se isso vai te fazer se sentir melhor. Mas eu não te
quero mais na minha vida. Nem na do meu filho.
— Por favor, Alice... Me dê uma chance de mostrar
que eu mudei. Quero assumir nosso filho e prometo ser um
bom pai para ele.
Impaciente, levantei-me do sofá e ia começar a andar,
quando quase tropecei em algo que estava no chão à
minha frente.
— Ai... Paçoca, o que está fazendo aqui? Quase me
derrubou! — reclamei, irritada. Mas logo voltei a me sentar,
passando a mão na cabeça dela. A cadela não tinha culpa
alguma da minha irritação e eu não ia descontar aquilo
nela.
— Paçoca? — ele perguntou. — Você arrumou um
cachorro ou coisa do tipo?
Ignorei tal questionamento, voltando ao assunto:
— Escuta, Guilherme, eu realmente sinto muito pelo
seu pai. Mas nós não temos o que conversar. Por favor,
não me mande mais mensagens e não me ligue mais. E
entenda que o filho é meu e não nosso. Vou criá-lo sozinha
e não quero que você faça parte disso.
Sem aguardar por respostas, eu encerrei a ligação e
aproveitei para bloquear o número dele, impedindo que
voltasse a me ligar ou a mandar mensagens. Joguei a
cabeça para trás sobre o encosto do sofá e fechei os olhos,
sentindo uma leve dor de cabeça.
Em pensar que o dia estava perfeito até aquele
momento...

*****
Capítulo quinze – Nuvens

“Hoje eu me joguei das nuvens


Tirei o pó e a ferrugem
Vi que o sol brilha mais claro se a gente
'tá' bem

Voos podem ser mais altos


Frases podem ser mais belas
Hoje eu vou gritar mais forte a sorte que
a gente tem
De ser feliz sem ser refém

Eu abro as asas e preparo a alma pra


respirar, pra respirar
Eu abro as asas e preparo a alma pra
respirar, pra respirar”

Respirar - Sandy

MARCELO

— Garoto, eu já falei que estou ótimo. Mas que coisa,


você está pior que a minha neta!
Eu sabia que Seu Bernardo tinha razões para estar
impaciente, já que aquela deveria ser a décima vez
naquele dia que eu perguntava se ele estava mesmo bem
para voltar ao trabalho. Isso porque ainda não eram nem
quatro da tarde, o que significava que eu ainda repetiria o
questionamento algumas vezes até aquele dia chegar ao
fim.
Ele tinha ficado exatamente uma semana em casa, e
eu acreditava que aquele fosse um feito inédito para ele.
Provavelmente, todo o crédito deveria ser dado a Alice, já
que fazia o mesmo período de tempo que ela também não
saía de casa.
Acreditei que hoje iria vê-la, já que seu avô já estava
bem melhor e até retornara ao trabalho. Mas
aparentemente ela ou tinha alguma razão para se manter
em casa: tipo ocupada com algum trabalho, ou estava
indisposta devido à gravidez; ou estava me evitando depois
daquele nosso beijo na varanda.
Bem, não tinha sido nosso primeiro beijo. Mas foi o
primeiro em que algumas palavras foram trocadas a
respeito dele. Talvez não tenham sido as melhores. Talvez
não fossem as que ela esperava ou desejava ouvir.
Acho que nem as que eu no fundo desejava também.
De qualquer maneira, a ausência dela me agoniava.
Por isso mesmo, fiquei por perto enquanto Seu Bernardo
conversava com o Seu Antônio – funcionário responsável
pelo trato dos cavalos – e aguardei até que a conversa
chegasse ao fim e os dois se afastassem para me
aproximar do meu patrão.
— Então, seu Bernardo, tem muito tempo que não vejo
sua neta. Ela está bem?
— Ela está ótima. Ei, soube que vou ter um bisneto?
Um garotão! — Ele abriu um sorriso enorme e eu não fui
capaz de evitar fazer o mesmo diante da felicidade dele.
— É, eu soube. Aliás, parabéns, seu Bernardo. — Dei
um tapinha nas costas dele.
— Obrigado. Estou muito feliz. Acredita que os pais
dela cismaram que querem que ela vá para a casa deles
no último mês? A mãe dela, na verdade, com aquela
palhaçada de achar que por lá eles têm mais recursos.
Oras, que bobagem, o hospital aqui da cidade é ótimo.
Um pouco distante para o caso de uma emergência,
eu pensei, mas preferi guardar tal comentário.
— Sim, é ótimo. Mas... ela está bem então? Estranhei
não a ter visto. Ela me falou que me chamaria para ajudá-la
no sábado com o restante da reforma do quarto.
— Ela acabou não fazendo nada. No fim de semana
ela estava meio indisposta, passou o tempo quase todo no
quarto dela. Coisas de grávida. Mas agora está bem. Só
está meio obcecada por trabalho. Acredita que ela anda
reorganizando tudo no escritório? Passou dias só
catalogando notas fiscais antigas por datas.
Obsessão por trabalho nem sempre era sinal de que a
pessoa estava bem. Porém, novamente, optei por não
comentar a respeito, para não preocupar seu Bernardo.
Ele entrou no estábulo e eu o segui, ainda pensando
em formas de fazer mais perguntas para descobrir a
respeito de Alice. Até que ele parou diante de uma baia
vazia.
— Ei, Antônio! — ele chamou. Seu Antônio estava do
lado de fora, mas parou na porta do estábulo, olhando para
o patrão e aguardando o que ele teria a dizer. — Onde está
a Duquesa?
— A menina Alice saiu com ela.
A resposta chamou a minha atenção, fazendo com
que eu me metesse na conversa:
— Tem muito tempo isso?
— Uma meia hora, mais ou menos. Foi pouco antes
de vocês chegarem aqui.
— Minha neta deu uma pausa no trabalho, enfim —
Seu Bernardo comentou, voltando a andar pelo estábulo e
olhando as outras baias.
Dizendo que ia voltar para o trabalho, saí dali
apressado. Montei em Hades e saí meio sem rumo.
Coloquei na cabeça que queria encontrá-la, mesmo sem
saber por onde procurar. Minha primeira ideia foi ir até o
campo de futebol – era só o que faltava, aquela louca ter
decidido mais uma vez jogar bola! – Quando cheguei lá, no
entanto, encontrei apenas um grupo de crianças.
— Ei! — gritei para eles, sem desmontar de Hades. —
A Alice veio jogar com vocês?
— Não, tio! — eles responderam em uníssono, e um
garoto contou: — Mas ela passou por aqui agorinha há
pouco. Foi em direção ao lago.
Sem dizer mais uma palavra, segui na direção
indicada por eles. Ao chegar às margens do lago, reduzi a
velocidade, olhando atento. Até que avistei Duquesa
sozinha mais adiante, à sombra de uma árvore. Desmontei
de Hades e o deixei próximo a ela, me aproximando do
lago e olhando para os dois lados, à procura de Alice. Nem
sinal dela, e isso me preocupou. Porém, o susto maior veio
quando enfim a avistei, caída no chão à sombra do
flamboyant vermelho. Corri até lá, praticamente me
jogando de joelhos no chão ao seu lado.
— Alice! — chamei, levando as mãos aos ombros
dela.
Ela abriu os olhos em um misto de susto e sonolência.
Estava dormindo?
— Nossa, o que foi? Aconteceu alguma coisa? — Ela
levantou o tronco do chão, sentando-se e... bocejou.
Estava mesmo dormindo?
— Que susto que você me deu! — falei irritado, como
um adulto dando uma bronca em uma criança arteira.
— Susto por quê? Eu só cochilei um pouco. — Ela
bocejou novamente, dessa vez mais forte. — Tem alguns
dias que não durmo direito.
Olhei-a melhor e só então percebi que ela tinha
olheiras abaixo dos olhos. E não era apenas isso, ela
parecia... triste.
— Está tudo bem? — perguntei.
Ela me olhou em silêncio por um momento, até que
voltou a se deitar de barriga pra cima, olhando para o céu.
— Eu só ando meio desanimada, então achei que
ficaria bem vindo para cá. E de certa forma fiquei, porque
até cochilei um pouco. Ando com tanta dificuldade de pegar
no sono, que isso é até incrível. Sabia que esse lugar me
faria bem.
A cada comentário, mais preocupado eu ficava. Por
que isso de dificuldade para dormir? Por que o desânimo?
Eu sabia, ela tinha motivos de sobra para isso com o tudo o
que tinha acontecido na vida dela, mas... eu realmente
acreditei que ela já tivesse superado boa parte daquilo.
Afinal, há uma semana eu a tinha visto dar os mais lindos
dos seus sorrisos durante os exames e nas compras das
coisas para o bebê.
— É um lugar bonito mesmo... — comentei,
forçando um tom mais descompromissado que eu
conseguia, tentando disfarçar que minha vontade era
perguntar diretamente o que estava acontecendo.
No entanto, logo percebi que ela parecia
especialmente disposta a falar naquele dia:
— Eu costumava vir aqui com a minha avó, quando
criança. Era o nosso lugar favorito.
— Sente falta da dona Beatriz, não é?
Uma breve pausa antecedeu a resposta dela.
— Minha avó era tudo pra mim. E eu não consigo
deixar de pensar no quanto queria que esta estivesse aqui
agora.
— Eu sinto muito pela dona Beatriz. Queria ter te
dito isso na época, mas você nunca mais voltou aqui
depois daquilo.
Ela ficou calada e pensei que talvez eu tivesse
falado alguma besteira. Ia tentar emendar algo para me
desculpar, mas ela se adiantou em voltar a falar:
— Foi meu avô que te pediu para vir atrás de mim?
— Dessa vez não. Ele até comentou que você
esteve muito bem esses dias. Acho que parou um pouco
com aquele medo de que você ficasse sozinha.
Eu nunca compreendi muito bem as razões daquele
temor. Mas, parecendo ler minha mente, ela começou a
explicar:
— Demorou muito para ele e meus pais perderem o
medo de me deixarem sozinha. Foi meio complicado
quando eu decidi sair de casa. Tudo estava bem, mas...
Depois que tudo aquilo aconteceu comigo – a demissão, a
gravidez não planejada, o término com o Guilherme – eles
meio que surtaram de novo. Eu odeio ter causado isso a
eles.
A menção ao nome do ex me causou um súbito
embrulho no estômago, mas decidi ignorar e me focar no
restante da confissão. Aquilo ainda estava muito confuso, e
eu me perguntava se devia ou não perguntar algo a
respeito. Porém, percebi que ela não apenas parecia
disposta a falar... ela parecia querer falar.
— Por que eles têm tanta preocupação? É
realmente apenas superproteção?
Mais uma pausa, até que ela apontou para o céu,
mudando subitamente de assunto:
— Olha só, não parece uma coxa de frango?
Franzi a testa, confuso.
— O quê?
— Olha! — Ela sacudiu a mão que apontava para o
céu e eu segui os olhos na mesma direção. — Aquela
nuvem, não parece uma coxa de frango?
Mas... de onde tinha saído aquilo?
— Não parece, não.
— É porque você está olhando do ângulo errado,
vem, deita aqui.
Meio confuso, obedeci, deitando-me ao lado dela e
olhando para a nuvem que ela apontava. Ainda não se
parecia. Com nada que não fosse uma nuvem, para falar a
verdade
— Tá mais com cara de um caramujo.
— Onde você está vendo um caramujo ali?
— Ali é a concha, ali o corpo, e... olha, tem até as
antenas.
Ela bufou, apontando para outra.
— E aquela ali? Não parece um fusca?
— Parece mais um porco.
— Que porco o quê? Olha ali, a janela...
— É o olho dele.
— E ali as rodas.
— São as patas.
— Não são.
— É claro que são!
— Óbvio que não são!
— Na verdade, não mesmo. São nuvens, Alice.
Nuvens.
Ela riu e eu, embora levemente irritado com a
discussão infantil, senti-me feliz ao ouvir aquele som. No
entanto, eu sabia que, ali no fundo, ainda existia uma
tristeza.
— Minha avó e eu às vezes passávamos horas aqui
deitadas, olhando para o céu, fazendo essa brincadeira
estúpida.
— A brincadeira não é estúpida — retruquei. —
Estúpido é você ver um fusca ali, onde está tão claro que é
um porco.
Ela voltou a rir e, dessa vez, eu a acompanhei.
Ficamos em silêncio por mais alguns instantes, tempo este
em que ela pareceu criar coragem para a confissão que
iniciaria a seguir.
Capítulo dezesseis –
Confissão

“Who I am, what I'm on (Quem eu


sou, no que eu estou)
Who I've hurt and where they've
gone (Quem eu machuquei e para onde
eles foram)
I know that I've done some wrong
(Eu sei que cometi alguns erros)
But I'm tryna make it right (Mas
eu estou tentando consertá-los)

To the one I love, paint me wrong


(Para aqueles que eu amo, me pintem
errado)
Give me a light now (Oh-oh) (Me
deem uma luz agora (Oh, oh))
You know that I love you” (Vocês
sabem que eu os amo)

Still Learning – Halsey

MARCELO
— Quando eu tinha quinze anos, fui escolhida entre
um grupo de meninas para um time de futebol feminino da
minha cidade. Não era um clube de importância nacional,
mas era algo grande pra mim, até então. Foi a minha
primeira conquista, sabe? Tivemos uma ótima performance
no campeonato estadual da divisão e chegamos à final. Era
um jogo muito importante e eu fiz meus avós jurarem para
mim que estariam lá.
Pensei em fazer um comentário sobre como eles
deviam estar empolgados com isso, mas detive-me ao me
atentar na idade dita por ela. Sabia que ela era apenas um
ano mais nova que eu, então aquele espaço de tempo
batia com o ano de morte de dona Beatriz. Isso, unido a
como ela faleceu, me dava uma dica de onde Alice queria
chegar com aquele relato.
Não estava certo se eu queria que ela chegasse lá,
imaginando a carga de sofrimento que tais lembranças
acarretariam. Mas se ela precisasse desabafar e se
sentisse à vontade para fazer isso comigo, eu iria ouvi-la.
Ela prosseguiu:
— Nós ganhamos aquele jogo, mas lembro do
quanto eu fiquei chateada por meus avós não estarem na
arquibancada. Quando saímos de lá, meus pais me
levaram para almoçar fora, e eu passei o tempo inteiro
reclamando da ausência dos meus avós, por eles terem
prometido que iriam, mas terem falhado comigo. Meu pai
estava meio estranho, mas eu era só uma adolescente
rabugenta imersa em seu próprio drama particular e sequer
dei bola para isso. Depois eu fiquei sabendo que ele tinha
passado o jogo inteiro tentando ligar para os pais, mas os
celulares dos dois só caíam na caixa postal, e por isso ele
estava preocupado e apreensivo, mas não queria passar
essa preocupação para mim, por isso não comentou nada
a respeito durante o jantar. A gente estava quase indo
embora quando o celular do meu pai tocou. Era do hospital,
para avisar sobre o acidente. Meu avô estava ferido e
minha avó, naquele momento, já estava morta.
Ela novamente se calou e eu não soube o que dizer.
Sabia que dona Beatriz tinha morrido em um acidente de
carro, e que na ocasião ela e seu Bernardo estavam a
caminho da casa do filho. Lembro que estava chovendo
muito naquele dia, e cheguei a me perguntar por que eles
não tinham deixado para ir no dia seguinte. Para mim, era
apenas uma visita cotidiana à família, não imaginava que
estivessem indo para um compromisso específico.
Achei que aquele desabafo de Alice fosse apenas
devido às lembranças do dia da morte da avó, já que as
duas eram muito grudadas uma à outra. Contudo, não
imaginava que o pior ainda estaria por vir.
— Todo mundo percebeu minha tristeza pela morte
da minha avó, mas achavam que, como todo luto, em
algum momento se tornaria mais suportável para mim e eu
conseguiria seguir a minha vida. A saudade da minha avó
me dilacerava, mas não era só isso. Eu tinha insistido tanto
para eles irem, enfatizado tanto que queria que estivessem
lá para assistir ao jogo, que eles decidiram pegar a estrada
mesmo com o tempo ruim. Então, eles se arriscaram, para
atenderem aos caprichos de uma neta adolescente
mimada e egoísta.
— Ei, Alice! — chamei a atenção dela. Não podia
permitir que continuasse pensando daquele jeito. — Você
não era mimada e egoísta. Apenas queria as pessoas que
ama por perto em um momento especial. Morava a
duzentos quilômetros daqui, certamente nem sabia que o
tempo aqui estava ruim para pegar a estrada. Você era
uma menina que convidou os avós para assistirem a um
jogo seu. Nada dentro dessa cena faz de você culpada.
— Hoje, adulta, eu consigo olhar para trás e
entender isso. Mas naquele momento eu não entendi.
De alguma forma, eu consegui perceber que aquela
história não terminava por ali. Segurei a mão de Alice junto
à minha, tentando passar a ela um pouco de força para
continuar. Sabia que ela queria falar. Mas do que isso: que
ela precisava colocar aquilo para fora.
— A minha tristeza demorou para passar, mas como
todo mundo achava que era só uma tristeza comum,
ninguém deu atenção demasiada a isso. Meus pais
trabalhavam fora e eu estudava pela manhã, por isso, nos
dias que não tinha treino, ficava sozinha em casa na parte
da tarde. Em um desses dias, a dor dessa tristeza estava
forte demais, então eu cheguei da escola, abri a caixa onde
guardávamos remédios, e... simplesmente peguei todos os
comprimidos que encontrei e engoli. Por uma coincidência
que minha mãe até hoje credita a um milagre de Deus,
nesse dia ela precisou ir para casa no meio do expediente
para pegar um documento importante que tinha esquecido,
e já me encontrou desmaiada. Tudo o que eu lembro é de
tomar os remédios e de acordar já em um hospital, dois
dias depois. Viva, mas entubada e com uma dor de
estômago tão forte que parecia proposital, apenas me
lembrar da merda que eu tinha feito. E me avisar, sem
qualquer sombra de dúvidas, que eu ainda estava viva.
Novamente, ela se calou, e eu me vi subitamente
sufocado naquele relato. Eu via a preocupação de seu
Bernardo com ela como uma mera superproteção, jamais
poderia imaginar que Alice tivesse passado por algo assim.
Como era possível que aquela garota incrível tivesse
um dia pensado em acabar com a própria vida? Como era
possível que tivesse chegado tão perto de conseguir isso?
Queria dizer alguma coisa, mas não consegui. As
palavras pareceram travar em minha garganta, me
sufocando ainda mais, deixando um gosto amargo na
minha boca. Ainda deitado ao lado dela, fitei seu rosto, que
ainda olhava para o céu com um semblante triste, embora
sereno. Apertei sua mão com mais força, tentando
demonstrar que eu estava ali.
Após alguns segundos, ela voltou a falar:
— Fiz anos de terapia depois disso, tive
acompanhamento psiquiátrico, fui medicada... Cheguei a
ficar alguns meses sem jogar, mas quando voltei, o futebol
me ajudou muito a superar essa fase mais tensa da
depressão. Meu avô passou dois meses morando com a
gente, e às vezes ele ia no meio da noite até o meu quarto
só pra ver se eu ainda estava respirando. Minha mãe
passou a ter crises de choro quase diárias, e em todas elas
me fazia jurar que nunca mais faria aquilo novamente. Meu
pai segurou a onda melhor que eles dois, mas eu sei que
minha atitude também o destruiu por dentro. E... bem...
essa é a história de como a minha família passou a vigiar
os meus passos como se eu não pudesse passar cinco
minutos inteiros sozinha sem representar uma ameaça a
mim mesma.
— Eles fazem isso por medo de te perder.
— É. E eu causei esse medo a eles. Mais uma culpa
para o meu currículo.
— Não se sinta culpada. Em maior ou em menor
escala, todos têm medo de perder aqueles que amam. E
não ache que por se preocuparem tanto, eles não confiem
em você. Hoje mesmo, seu avô ouviu que você tinha saído
sozinha e não demonstrou nenhum temor quanto a isso.
Ele sente que você está bem, por isso fica mais seguro.
Mas confesso que agora quem está com medo sou eu,
porque você não parece estar tão bem assim.
Ela virou o rosto, finalmente olhando para mim. Seus
olhos estavam marejados, mas ela incrivelmente abriu um
leve e sincero sorriso.
— Na verdade, eu estou. Sinto saudades da minha
avó, queria que ela estivesse aqui para acompanhar a
minha gravidez e conhecer o bisneto, mas... é apenas isso.
— Jura?
— Juro. Mas... por que você está com medo?
A pergunta feita tão repentinamente não me deu
margem para mentiras.
— Porque me importo com você.
Ela piscou, parecendo pega de surpresa pela
resposta. Ficamos em silêncio por alguns instantes, até
que foi a vez de ela me surpreender, aproximando o rosto
do meu e me beijando. Foi rápido, sem qualquer malícia,
mas pude sentir que havia sentimento ali. Eu já sabia que
eu a atraía, assim como ela a mim. Havia tesão, desejo
entre nós. E pelas nossas conversas e nossos momentos
juntos, sabia também que existia uma amizade. Mas ali,
naquela conversa, naquele beijo, senti que existia algo
mais. Havia um sentimento. Maior que o desejo, maior que
a amizade. Embora eu não soubesse ainda descrever o
que era.
— Você é um homem maravilhoso — ela declarou,
parecendo ler os meus pensamentos. — Merece encontrar
uma mulher maravilhosa e descomplicada.
— E você seria complicada por quê?
— Uma grávida abandonada, desempregada e com
histórico de tentativa de suicídio na adolescência. Não sou
exatamente o pacote dos sonhos de um homem.
— Você é muito mais do que um cara como eu
poderia sonhar. E, sobre ser complicada... me diga quem
não é? Olha só pra mim, encontrei minha esposa na nossa
cama com outro homem bem no dia do nosso aniversário
de casamento.
— Isso faz dela uma pessoa complicada, não você.
Mas... você ainda a ama?
Eu não estava preparado para tal pergunta. No
entanto, a resposta saiu naturalmente:
— Eu achava que sim. Hoje me pergunto se algum
dia cheguei a amá-la de verdade. Nós éramos
acostumados um ao outro, namorávamos desde bem
jovens. Achei que não fosse suportar viver sem ela, mas a
verdade é que às vezes passo dias sem sequer me lembrar
dela.
Ela balançou a cabeça, parecendo entender. E eu
me perguntei até onde ia aquele entendimento. Se
estávamos sendo sinceros, decidi me arriscar na pergunta:
— E você? Ainda ama o seu ex?
Ela desviou os olhos por um momento, parecendo
hesitar na resposta, e isso me destruiu por dentro. Se ela
dissesse que ainda o amava, eu sinceramente não sabia
como iria reagir. Eu apenas não queria ouvir aquilo.
Ela tomou impulso e ergueu o tronco, se sentando.
— Confesso que também estava feliz por passar
dias... ou melhor, semanas sem ao menos lembrar da
existência dele. Mas isso não tem sido mais possível, e
isso não é de uma forma boa.
Repeti o gesto dela, também me sentando. O tom de
voz dela estava carregado de rancor e isso acendeu em
mim um alarme.
— O que quer dizer? Ele te procurou? Está te
ameaçando ou coisa do tipo? — Eu iria caçá-lo até no
inferno caso fosse esse o caso.
— É, ele me procurou. Mas não fez ameaças nem
nada do tipo. Na verdade, ele alega que quer assumir o
bebê.
Como aquele filho da puta se atrevia a isso?
— Depois de tudo o que fez, ele quer que você volte
para ele?
— Não. Ele não falou nada nesse sentido, na
verdade. Disse que quer ser pai e participar da vida do
Bernardo. O pai dele está muito doente, e parece que isso
o fez repensar a própria vida.
— O inferno! — esbravejei, mais alto do que
gostaria. Ela piscou, assustada, então eu abaixei o tom de
voz, embora ainda não fosse capaz de me acalmar. — Ele
mostrou que era um completo filho da puta, e gente assim
não muda da noite para o dia, não importa o que aconteça.
— Bem, pode ser. Eu bloqueei o número dele e tem
dias que não nos falamos, mas... Eu sinceramente tenho
pensado se eu tenho o direito de negar a ele a paternidade
do meu filho. Ele é o pai, afinal de contas.
Ele era o pai...
Pro inferno! Ele era uma porra de um progenitor,
nada além disso!
Não esteve por perto para ampará-la quando ela
desmaiou no meio da rua. Não segurou sua mão quando
fez a ultrassonografia. Não ajudou a preparar o quarto. Não
esteve ao lado dela nas primeiras compras para o bebê.
Não, ele não tinha qualquer direito sobre Bernardo! Não
merecia ter a honra de chamá-lo de filho.
Alice não poderia permitir isso!
Porém, quem era eu para dizer o que ela poderia ou
não fazer? Eu fui o cara que participou de tudo aquilo, mas
o verme ainda era o pai biológico de Bernardo.
Será que ela realmente não sentia mais nada por
ele?
Tentando controlar o ódio que eu sentia por toda
aquela situação, eu me levantei, estendendo a minha mão
para Alice. Ela me olhou, confusa, e eu expliquei:
— É melhor irmos embora, daqui a pouco vai
escurecer e seu avô pode ficar preocupado.
Ela ainda hesitou por um momento, antes de aceitar
a minha ajuda e se levantar.
E fomos embora sem trocar mais nenhuma palavra.

*****
Capítulo dezessete -
Tempestade

“Lágrimas e chuva
Molham o vidro da janela
Mas ninguém me vê
O mundo é muito injusto
Eu dou plantão dos meus problemas
Que eu quero esquecer

Será que existe alguém


Ou algum motivo importante
Que justifique a vida
Ou pelo menos este instante?

Eu vou contando as horas


E fico ouvindo passos
Quem sabe o fim da história
De mil e uma noites
De suspense no meu quarto”

Lágrimas e chuva – Kid Abelha

ALICE
Juro que não sabia onde eu estava com a cabeça
quando contei a Marcelo sobre as mensagens de
Guilherme. Realmente, o que eu esperava que ele fizesse?
Na realidade, no fundo eu sabia bem o que eu
esperava. E me sentia uma completa idiota por isso.
Aqueles beijos tinham sido apenas aquilo: beijos
descompromissados. Eu tinha sentido a reação do corpo
dele, e sabia que ele desejava muito mais, assim como eu.
Mas, no fim, não passaria disso.
Se no início tinha sido difícil compreender ou mesmo
assumir aquilo para mim mesma, agora eu não poderia
mais me enganar: estava apaixonada por aquele maldito
cowboy. Só que, na minha vida, dali em diante não existia
mais o “eu”. Era “nós”: Bernardo e eu. Eu era mãe agora.
Era um pacote, para ser assumido por completo.
Um mês se passou desde aquele dia e nós não
voltamos a nos encontrar. Concentrei-me no trabalho, que
se mostrou bem maior do que eu imaginava. Meu avô era
um ótimo administrador, mas péssimo em organização,
então os armários de seu escritório estavam lotados de
caixas e gavetas abarrotadas de papéis avulsos e sem
qualquer critério de arrumação. Passei a maior parte do
meu tempo tentando organizar tudo aquilo, de forma com
que encontrássemos mais facilmente o que viéssemos a
precisar. Acabei, com isso, adiando o restante da
organização do quarto de Bernardo. E eu ainda tinha tantas
coisas para comprar! Deixaria para o dia da próxima
consulta, que já seria na semana seguinte.
Naquele dia, no entanto, não deu mais para
continuar enfurnada em casa. Meu avô me passou uma
missão. Um amigo, dono de um sítio a vinte minutos dali,
estava precisando de uma máquina que meu avô se
prontificou a emprestar. Ela já estava na caminhonete, e
tudo o que eu precisava fazer era ir até lá, os funcionários
dele pegariam a máquina, e eu voltaria para casa. De
preferência rápido, porque havia uma previsão de chuva
forte para o final da tarde.
Dada a missão, meu avô saiu, e eu demorei bem
mais do que previsto para fazer o mesmo. Tinha apenas
que tomar um banho e me arrumar rapidamente, mas
acabei me detendo ao receber uma nova mensagem no
meu celular, de um número desconhecido.

Te dei um tempo para pensar, Alice. E aí, decidiu me


deixar assumir a minha obrigação?

E outras chegaram em sequência, vindas da mesma


pessoa:

Me diga onde você está, que vou até aí para


conversarmos pessoalmente.

Por favor, Alice. Não pode me negar isso.

Pode bloquear esse número também, que arrumarei


outros. Não vou te deixar em paz!
Como podia ser tão insistente?
Aliás, aquilo nunca fez o estilo de Guilherme. Na
verdade, agora eu conseguia ver com clareza, ele sempre
foi um bundão. Nunca foi fã de assumir suas próprias
responsabilidades. Era incrível que estivesse insistindo
tanto para assumir aquele filho que ele nunca desejou.
Cheguei realmente a pensar em bloquear o número,
mas sabia que de nada adiantaria, pois ele arrumaria um
novo chip e seguiria a me atormentar. Por ora, depois de
passar algum tempo perdida em divagações, decidi apenas
ignorar. Talvez, mais tarde, eu voltasse a ligar para ele para
ter mais uma conversa definitiva – ou ao menos tentar.
Agora, eu tinha coisas mais importantes para fazer.
— Não o vejo sendo um bom pai para você... —
comentei, alisando minha barriga que já estava mais
visível.
Deixei aquilo de lado e terminei de me arrumar.
Logo que saí de casa, avistei Cássio vindo
caminhando, ao lado de uma moça e de um rapaz. Ele fez
sinal para que eu esperasse, aparentemente vindo falar
comigo, então assim o fiz. Aguardei até que eles se
aproximassem e Cássio me apresentasse os dois. Eram
alunos de jornalismo de uma universidade que ficava em
uma cidade vizinha, ambos tinham interesse em focar na
área de esportes e foram até lá para entrevistarem Cássio
a respeito de seu projeto da escolinha de futebol.
Aparentemente, ambos me conheciam bem e ficaram
empolgados quando meu amigo citou o meu nome como
sendo neta do dono da fazenda e pediram muito por uma
entrevista.
Aceitei, deixando claro que não queria me aprofundar
na questão do meu desligamento do clube onde jogava. O
máximo que falei a meu respeito foi sobre a gravidez e
sobre estar tirando um ano sabático para curtir melhor a
experiência de ser mãe, e aproveitando para ajudar meu
avô com a fazenda que era também tão especial para mim.
De resto, respondi a perguntas sobre futebol feminino e
sobre a importância de projetos como o de Cássio para
trazer meninos e meninas para o esporte. Os dois eram
muito simpáticos, as perguntas eram ótimas e o papo fluía
tão bem que, quando me dei conta, já estávamos há quase
duas horas ali conversando, de pé em frente à varanda de
casa. Se eu soubesse que demoraríamos tanto, os teria
convidado para entrar, sentar no sofá e beber alguma
coisa. Imaginei inicialmente que seria algo rápido e, ao que
tudo indicava, eles também. Mas o papo acabou fluindo
muito bem, o que rendeu a eles um vasto material que
disseram que usariam para duas matérias diferentes, e
ambas seriam publicadas no site da faculdade.
Ao final, tiramos algumas fotos e nos despedimos. Os
dois saíram caminhando na frente, e Cássio ainda ficou por
alguns minutos conversando comigo.
— Obrigado por isso. As declarações que fez sobre o
projeto vão ajudar muito.
— Imagina, Cássio. Eu só falei a verdade.
— É, mas são verdades ditas por Alice Antunes. É um
nome de peso.
— Não seja bobo. Seu projeto será um sucesso e fico
muito feliz em ajudar no que puder.
Ele voltou a agradecer e trocamos um abraço, antes
de ele se afastar e começar a ir embora. Eu ia seguir para
pegar a caminhonete e cumprir meu compromisso do dia,
quando vi, em outra direção, que Marcelo se aproximava,
montado em seu cavalo.
E com o chapéu na cabeça, no seu melhor estilo de
cowboy maldito. A imagem máscula me excitava, o que me
fazia me perguntar quando aquele efeito provocado pelos
hormônios chegaria ao fim.
Parando a poucos metros de mim, ele desmontou e
veio em minha direção. Olhou por um momento para
Cássio, que já estava distante, voltando a me encarar em
seguida. Parecia não ter gostado do que viu, como se
sentisse... ciúmes, talvez?
Bem, eu não devia me iludir com isso.
— Seu Bernardo disse que você foi ao sítio do João.
Mas a máquina ainda está na caçamba. Não tinha ninguém
para receber?
— Oi para você também — respondi, ácida. — Aliás,
eu estou bem, e você?
Ele bufou, parecendo só então lembrar dos bons
modos.
— Oi, Alice. Como está? Desculpe a grosseria, mas é
que... eu não gosto daquele cara. — Ele apontou para
Cássio.
— Está na hora de superar essas implicâncias de
adolescência, não acha?
— Talvez você tenha razão. Mas isso não importa
agora. Por que trouxe a máquina de volta? Algum
problema?
— Não trouxe de volta. Ainda não fui.
Ele franziu a testa.
— Pretende ir amanhã?
— Não, vou agora.
— Já olhou para o céu? Vai chover, e muito. A estrada
aqui fica intransitável quando chove.
— Eu sei. Por isso que vou e volto bem rápido.
Dei o primeiro passo em direção à caminhonete, mas
parei quando ele me segurou pelo braço e anunciou:
— Eu vou com você.
— Meu avô me garantiu que não pediu ninguém para
me acompanhar dessa vez. Achei que estivesse
começando a confiar em mim.
— Ele não pediu, eu é que estou informando. Não vou
deixar que saia sozinha correndo o risco de pegar chuva no
caminho.
— O sítio é logo ali. Eu vou e volto em menos de uma
hora.
— Muita coisa pode acontecer em uma hora.
Encarei-o, irritada, e fui ainda mais enfática:
— Já disse que vou sozinha, e não estou dando
margem alguma para negociarmos isso. Você é empregado
do meu avô, e me acompanhar fazia parte do cumprimento
de ordens dele. Dessa vez não há ordens da parte dele,
nem convite de minha parte para que me acompanhe. Você
não é nada meu.
Ele arregalou os olhos, demonstrando que,
claramente, não esperava por uma resposta como aquela.
Uma onda de arrependimento me tomou. Eu não precisava
ter sido tão grossa. Contudo, não via nenhuma outra forma
de fazê-lo desistir da ideia de me acompanhar. E eu não o
queria ao meu lado. Aliás, eu precisava não o querer ao
meu lado. Tinha que cortar pela raiz aquele sentimento que
crescia dentro de mim, para evitar mais sofrimento no
futuro.
— Seja como quiser, moça.
Dito isso, ele simplesmente virou as costas e foi
embora. E eu não devia, mas senti meu coração doer com
aquilo.

*****

MARCELO

Eu era um grande e completo idiota. Alice ainda não


tinha sido suficientemente clara com aquele papo sobre o
(maldito) ex dela e pai do seu bebê? Não existia espaço
para mim na vida dela. E se isso ainda não estava
corretamente compreendido por mim, se tornava agora
com a frase mais explícita possível: você não é nada meu.
Mas, se era assim... Por que ela me olhava com
aqueles olhos de desejo? Por que o corpo dela reagia com
tanta luxúria quando se aproximava do meu? Por que sua
boca devorava a minha com tanta aflição quando nos
beijávamos?
As palavras dela poderiam mentir. Mas seu corpo,
seus lábios e seus olhos não.
Inferno! Eu não devia pensar tanto assim nela.
Concluí o meu trabalho mais cedo, já que seu
Bernardo orientou que todos os funcionários fossem mais
cedo para suas casas, pois um temporal estava sendo
anunciado. Acabei ficando um pouco mais do que os
outros, já que estava morando ali mesmo na fazenda. Os
primeiros pingos grossos da chuva já começavam a cair
quando deixei Hades em segurança em uma das baias e
corri para casa, abrigando-me na varanda. Avistei Mariana
na varanda da casa maior, olhando preocupada para fora,
e isso chamou a minha atenção.
— Ainda não foi embora, Mariana? — falei, alto o
suficiente para ser ouvido por ela em meio ao barulho do
temporal. — Ficou presa por causa da chuva?
— Não, Marcelo. Estou muito preocupada. Alice ainda
não voltou.
Mal as palavras foram ditas e um trovão ressoou nos
céus.
Saí da varanda e aproximei-me alguns passos, sem
me importar com a chuva forte que caía sobre mim, até
parar abaixo da cobertura diante da casa.
— Seu Bernardo está em casa?
— Sim. Ele chegou muito cansado e já se retirou, sabe
que ele dorme cedo. Ele perguntou sobre a Alice e eu
menti dizendo que ela também tinha ido deitar por estar
indisposta por conta da gravidez. Não quis preocupá-lo. Ele
me mandou ir logo embora antes que a chuva caísse, mas
não consegui, estou muito preocupada com a menina.
— Fez bem em não contar. Entre, ou vai acabar se
molhando por conta do vento. Eu vou atrás daquela louca.
Virei-me e corri até a minha casa, entrando nela
apenas para pegar a chave da minha caminhonete.

*****

ALICE

Achei que conseguiria fazer tudo antes de a chuva


começar a cair, mas percebi que tinha errado meus
cálculos por pouco. Fiz a entrega e já seguia a caminho de
casa quando a tempestade começou. Não foi aos poucos
como imaginei que ocorreria, mas sim como se o mundo
estivesse desabando de um momento para o outro.
Outra coisa que eu não esperava é que a minha
reação àquilo fosse tão ruim. Eu já tinha dirigido na chuva
muitas vezes, e mesmo sentindo uma leve agonia por
sempre me recordar que minha avó havia morrido em um
acidente causado pela chuva, sempre fora algo controlável.
Mas, dessa vez, era diferente. Talvez por eu estar tão
próxima à fazenda e isso naturalmente me remeter às
memórias dela. O acidente não tinha sido naquela estrada,
mas era assustador unir o fator lembranças com o fator
chuva e ainda por cima estar em uma estrada de terra, no
meio do nada e com uma visibilidade tão ruim. O som da
chuva era assustador e provocava em mim os piores
pensamentos possíveis.
De repente, algo surgiu subitamente no meio da
estrada, o que eu identifiquei brevemente como um animal.
Assustada e agindo por instinto, girei o volante para o lado.
Apesar de estar em baixa velocidade, o chão enlameado
fez os pneus derraparem e o carro girou, indo bater em
uma encosta. Meu corpo foi lançado para frente, mas foi
travado pelo cinto de segurança, impedindo que eu me
machucasse.
Passado o primeiro momento de susto, ao perceber
que estava bem, girei a chave na ignição e tentei dar ré
para sair dali. Ouvi o som alto da roda girando sobre a
lama sem que o veículo saísse do lutar. O carro estava
atolado. Tentei novamente, dessa vez sentindo um tremor
percorrer todo o meu corpo, que sobressaltava a cada
trovão que ecoava nos céus. Por fim, entendendo que não
conseguiria tirar o carro dali, soquei o volante com força
com ambas as mãos, sentindo as primeiras lágrimas
quentes descerem pelo meu rosto. Estourei em um choro
compulsivo, sentindo um misto de medo e angústia.
Passados alguns minutos de uma agonia paralisante, voltei
a tentar tirar o carro dali, novamente sem sucesso. O medo
que eu sentia tornava-se cada vez mais e mais forte, me
causando falta de ar. Levei as mãos à barriga, com a
sensação de que iria morrer e, ao mesmo tempo, que não
poderia, pois isso significaria também a morte do meu filho.
Do meu Bernardo. Isso também simbolizaria mais duas
perdas para o meu avô, e eu não poderia permitir que ele
sofresse daquela forma. E todas essas ideias girando em
minha cabeça apenas aumentavam o meu medo, e as
palpitações, a falta de ar e o tremor nas mãos.
Um barulho na porta do carro me fez sobressaltar.
Pelo vidro embaçado pela chuva, vi o vulto de alguém
batendo na janela. Meu choro se tornou mais intenso,
dessa vez por conta do alívio ao reconhecer os contornos
daquele homem enorme usando chapéu de cowboy.
Ele estava ali para me salvar.
Destravei o carro e ele conseguiu abrir a porta,
parecendo paralisar por um instante ao ver o meu estado.
— Está machucada? — a voz dele, baixa, quase não
foi ouvida devido ao som alto da chuva.
Movimentei a cabeça em negação.
— Me tira daqui, por favor.
Ele atendeu ao meu pedido. Contornou o braço pelo
meu corpo para desafivelar o cinto de segurança e eu,
vendo-me livre, enfim consegui voltar a exercer controle
sobre os meus movimentos e desci da caminhonete,
buscando refúgio nos braços de Marcelo. Ele me abraçou
com força, deixando que eu chorasse em seu peito. A
chuva que caía forte sobre nós já não me causava mais
medo.
Eu me sentia, enfim, segura.

*****
Capítulo dezoito - Abrigo

“With every small disaster (Com cada


pequeno desastre)
I'll let the waters still (Deixarei as águas
se acalmarem)
Take me away to some place real (Leve-
me a algum lugar real)
'Cause they say home is where your
heart is set in stone (Porque dizem que
lar é onde o coração se grava em pedra)
Is where you go when you're alone (É
onde você vai quando está sozinho)
Is where you go to rest your bones (É
onde você vai para descansar seus
ossos)
It's not just where you lay your head
(Não é só onde você encosta sua
cabeça)
It's not just where you make your bed
(Não é só onde você faz a sua cama)
As long as we're together, does it
matter where we go? (Contanto que
estejamos juntos, importa aonde
vamos?)

Home (Lar)
Home” (Lar)

Home – Gabrielle Aplin


MARCELO

Entramos em casa completamente encharcados pela


chuva, e foi apenas no momento em que eu fechei a porta,
abafando um pouco os sons do temporal, que ela pareceu
se acalmar um pouco, com o tremor do seu corpo se
aliviando. Ela não quis ir direto para a casa do avô, porque
temia que ele pudesse ter acordado e ficar preocupado ao
vê-la naquele estado, o que era certo que aconteceria. Seu
Bernardo era extremamente preocupado com tudo o que
dizia respeito à neta, e obviamente não seria bom para ele
vê-la chegar em casa tão assustada, chorando daquele
jeito, além de completamente molhada.
— Posso usar o telefone? — ela pediu, com a voz
trêmula, enquanto passava as mãos pelos braços
molhados.
— Claro. A casa é sua, afinal de contas. — Não havia
nenhum tom de provocação em minha voz. Era apenas
uma constatação sincera.
Enquanto ela fazia a ligação, fui até o banheiro, onde
peguei duas toalhas. Voltei para a sala e entreguei uma a
ela, enquanto tirava o chapéu e deixava sobre o sofá,
começando a enxugar a cabeça. Ela discou o número e,
enquanto aguardava ser atendida, passou a toalha sobre
os cabelos. Eu sabia bem de toda a tensão daquela
situação e do tanto que ela ainda estava aflita com o que
havia acontecido, mas... puta merda! Eu não conseguia
impedir que meu corpo reagisse àquela visão. Alice ali
parada na sala da casa onde eu morava, com os cabelos
molhados e as roupas ensopadas bem grudadas ao corpo
era algo de tirar o fôlego.
— Oi, Mari, sou eu — ela falou ao telefone. — Estou
bem, fique tranquila. E o meu avô? — Ela visivelmente não
estava nada bem, mas depois de alguns segundos do que
parecer ser a resposta de Mariana, ela soltou o ar
profundamente, parecendo se acalmar um pouco. —
Graças a Deus ele não acordou. ...O carro encalhou na
estrada por causa da chuva, mas Marcelo chegou na hora
certa e me trouxe de volta. Estou na casa dele. Não quis ir
direto para aí porque não queria que meu avô me visse
assim, porque... — Ela se calou, e eu compreendi que
Mariana dizia algo, na certa compreendendo a intenção
dela e a acalmando dizendo que tudo estava bem. — Não,
Mari, não tem nada de esperar a chuva passar,
provavelmente vai chover a noite toda. Você vai dormir aí,
claro! ...Pode pegar uma roupa minha no meu quarto.
Peguei tudo o que precisar, aliás. ...Nada de sofá, você
pode dormir no meu quarto. Eu talvez... Talvez fique por
aqui essa noite.
A última frase provocou arrepios por todo o meu corpo,
o que apenas se intensificou quando ela me olhou
diretamente nos olhos. Na mesma intensidade, senti como
se tivesse tomando um banho de água fria quando ela
completou:
— Tem um quarto livre aqui, acho que Marcelo não vai
se incomodar.
Afinal, a casa é sua, emendei mentalmente.
Quarto livre, é claro. Que estupidez a minha pensar
que ela poderia estar pensando em algo mais do que
simplesmente dormir.
Contudo, mesmo não sendo como eu desejava,
preciso confessar que a mera ideia de a ter sob o mesmo
teto que eu era acolhedora. Pensei em tudo o que aquela
mulher linda havia passado. Céus, ela era apenas uma
menina quando tentou dar um fim à própria vida e eu
sequer seria capaz de mensurar o tamanho da dor que
levaria alguém a chegar a esse ponto. Quando ela me
confidenciou tal história, despertou em mim uma vontade
imensurável de protegê-la de todo e qualquer mal. E isso
foi ainda mais reforçado dentro de mim depois de vê-la tão
assustada dentro daquele carro, no meio de uma
tempestade. Se ela voltasse para a casa do avô naquela
noite, eu estava certo de que não teria paz, pensando o
tempo todo em se ela estaria bem.
Porém, não poderia negar: seria uma verdadeira
tortura tê-la tão perto de mim sem poder tocá-la.
Ela conversou com Mariana por mais alguns minutos,
antes de desligar a ligação. Logo que o fez, me olhou,
comentando:
— Nem ao menos perguntei se poderia passar a noite
aqui, não é? Me desculpe. Se tiver algum problema para
você...
— Problema algum, Alice. Primeiro porque, como eu
sempre digo, essa casa é sua, e é você quem permite que
eu fique aqui. E, segundo, ainda que não fosse, você seria
muito bem-vinda.
— Obrigada. Eu apenas não quero ter que ir para
casa. Sei que Mariana vai me encher de perguntas, vai
querer entender os motivos de eu ter tido uma crise de
pânico, e... bem, vai me fazer falar e relembrar o que não
quero.
Ela voltou a passar a toalha sobre os braços, em
silêncio, e eu me dei conta de que, enquanto ela
permanecesse com aquelas roupas encharcadas, aquele
seria um trabalho tão eficiente quanto enxugar gelo.
— Não quer tomar um banho? Posso correr na outra
casa e pedir para a Mariana me entregar alguma roupa
sua. Se continuar com essa roupa molhada vai acabar
pegando um resfriado.
Ela balançou a cabeça em negativa, mas logo se
corrigiu:
— Aceito o banho, mas não precisa ir até a outra casa
nessa chuva. Acho que ainda tem algumas coisas minhas
no meu antigo quarto.
— Acho que você cresceu um pouco desde a última
vez em que esteve aqui.
— Na adolescência eu usava umas camisetas bem
largas, certamente tenho por aqui algo que ainda caiba em
mim.
Concordei e ela foi para o quarto que tinha sido dela
durante as temporadas que passara naquela casa durante
a infância e a adolescência. Fiquei ali parado, até começar
a ouvir o som do chuveiro. Pensar em Alice nua debaixo da
ducha de água fez todo o meu corpo voltar a reagir. Eu
precisava me controlar. Ela estava ali para passar a noite
no sentido mais simples e inocente da palavra. Nada
aconteceria entre nós. Nada.
Vencido por essa ideia, também decidi ir tomar um
banho. No meu caso, um bem gelado, para acalmar o meu
corpo do que as imagens mentais de Alice nua
provocaram.

*****

ALICE
Eu não sabia onde estava com a cabeça para decidir
passar a noite ali.
A ideia tinha vindo à minha mente de forma
completamente desprovida de qualquer segunda intenção.
Era uma necessidade quase vital de continuar com a
companhia de Marcelo. Queria tê-lo ao meu lado para
apaziguar aquele sentimento ruim que tinha tomado conta
de mim quando estava presa dentro daquela caminhonete
em meio à chuva.
Tomei um bom banho quente e vesti uma das roupas
que encontrei no armário do quarto. Marcelo tinha razão:
eu havia crescido consideravelmente desde os meus
catorze ou quinze anos, que devia ter sido a última vez que
vesti aquele short de lycra e a camiseta de banda que eu
escolhi para usar, porque eram as peças mais largas que
encontrei por ali. A camiseta agora virava quase uma baby
look bem justa ao corpo, marcando minha barriga que
estava a cada dia mais evidente. O short também estava
agora bem grudado, mas ainda cabia e estava ótimo para
dormir.
Olhei para a cama de solteiro. Era ali que eu dormiria.
Sozinha. Achei importante enfatizar bem essa informação
na minha mente.
Terminando de me vestir, deixei os cabelos – ainda
molhados – soltos e saí do quarto. Fui seguindo os sons
que ouvia na cozinha e, chegando lá, encontrei Marcelo. Já
havia trocado de roupa, embora os cabelos
permanecessem molhados, e retirava algumas coisas da
geladeira. Quando ele se virou e me viu, pareceu paralisar
por um instante. Não pude evitar reparar que os olhos dele
percorreram todo o meu corpo.
Estiquei os braços, comentando:
— É, você tinha razão: eu dei uma boa crescida desde
a adolescência.
Ele inicialmente pareceu um pouco constrangido, mas
logo disfarçou isso com um sorriso.
— Além de agora ser uma mulher adulta, você está
grávida.
Ele tinha razão. Minha barriga não estava tão grande
assim, mas já de um tamanho suficiente para mostrar a
gravidez. Fora isso, eu tinha sido uma criança de estatura
baixa para a média da idade, além de bem magra. Bem, eu
agora não era uma adulta que pudesse ser classificada
como alta, mas tinha crescido consideravelmente desde os
catorze anos, e o esporte tinha me ajudado a desenvolver
músculos e curvas no corpo.
— Deve estar com fome, não é? — ele perguntou,
mudando estrategicamente de assunto. — Não tenho muita
coisa, mas... Mariana ontem me trouxe um bolo e alguns
pães... e tenho algumas coisas na geladeira, dá para fazer
uns sanduíches, se você gostar.
— Os pães da Mari eu como até puros, são
maravilhosos.
Aproximei-me, ajudando-o a pegar os alimentos e
colocando sobre a bancada da pia.
— Realmente são, mas ela não precisava estar
sempre me trazendo algo.
Eu sabia que era meu avô quem sempre pedia para
Mariana levar algumas coisas para Marcelo. Ele se
preocupava demais com o “garoto” por quem tinha um
amor muito provavelmente bem parecido com o que tinha
por mim.
Eu o ajudei a preparar os sanduíches e seguimos para
a sala, onde nos sentamos um em cada ponta do sofá,
comendo em silêncio. Até que eu decidi quebrá-lo:
— Obrigada por ter ido me ajudar — eu quase tinha
usado a palavra ‘salvar’, que para mim soava bem mais
adequada. — E desculpe por não ter te ouvido quando
disse que seria arriscado ir com a chuva que estava para
cair.
— Se escutasse não seria você, não é? Sempre tão
teimosa...
Apesar das palavras críticas, o tom na voz dele era de
descontração. Porém, eu aceitava a ‘bronca’. Estava
mesmo errada.
— E desculpe ter te tratado daquela forma. Eu estava
nervosa, tensa por coisas que não eram de forma alguma
culpa sua.
— Aquele babaca do Cassio te disse ou fez alguma
coisa?
Eu quase ri diante da pergunta. Estava a cada dia
mais convencida que a implicância dele com o Cassio tinha
uma pequena – ou grande – parcela de ciúmes. Esperava
que não soasse como uma boba por pensar assim.
Contudo, voltei a sentir angústia ao recordar o
verdadeiro motivo da minha tensão.
— O pai do Bernardo voltou a me mandar
mensagens.
Ele se mexeu no sofá e vi uma expressão de
incômodo em seu rosto. Contudo, ele pareceu lutar para
disfarçar isso.
— E aí, você conversaram?
— Não depois daquele dia. Deixei claro para ele que
não quero proximidade alguma, mas... ele parece não ter
entendido.
— E você ainda pensa em permitir que ele assuma o
Bernardo?
— Eu pensei muito a respeito disso. Por um lado, eu
não posso privar meu filho de saber sobre sua origem.
Mas, pelo outro... A mudança súbita do Guilherme não me
convence. Mesmo nos argumentos dele, sinto que ele está
agindo por um senso – ainda que estranho – de obrigação.
E isso não basta para ser um bom pai.
— E, em meio a isso, o que decidiu?
— Que se um dia eu tiver certeza dos sentimentos e
intenções dele, não vou privá-lo de conhecer o filho. E se
for da vontade de Bernardo, quando estiver um pouco
maior, de conviver com o pai, não vou impedir que os dois
se encontrem e até mesmo que passem algum tempo
juntos. Mas não agora. Enquanto ele ainda for um bebê e
enquanto eu não sentir verdade nas intenções de
Guilherme, eu não vou permitir essa aproximação.
— E será que é apenas mesmo no Bernardo que ele
está interessado?
Não pude evitar um leve sorriso ao ouvir aquilo.
Dessa vez, não existia dúvidas de que havia ciúmes ali.
— Eu não sei quais são os interesses dele. Sei
apenas quais são os meus.
Eu o olhei, fazendo com que ele imediatamente
entendesse sobre o que eu me referia. Não sabia se tinha
sido o meu estado emocional abalado por conta do
temporal, ou se eu ainda poderia colocar a culpa nos
hormônios da gravidez. Mas eu não queria mais fazer
rodeios. Éramos dois adultos e existia um inegável desejo
entre nós. Eu já havia provado do gosto de sua boca por
mais de uma vez, o suficiente para saber o quanto era
viciante, e para ter ainda mais certeza de que eu queria
mais. Muito mais. Eu o queria por completo.
Por completo. Muito mais do que apenas uma noite.
Mas se isso não fosse possível, eu não poderia me permitir
deixar de tê-lo o tanto que eu pudesse.
Não sei qual dos dois tomou o primeiro impulso.
Parecia até mesmo que tinha sido sincronizado. Mas
quando me dei conta, o espaço que nos separava naquele
sofá não existia mais. E já estávamos unidos, corpo contra
corpo, com os tecidos de nossas roupas sendo a única
barreira entre nós. E nossas bocas se devoravam com todo
o desejo acumulado.

*****
Capítulo dezenove –
Incêndio

“We don't know where to go (Não


sabemos para onde ir)
So I'll just get lost with you (Então vou
me perder com você)
We'll never fall apart (Nunca vamos
desmoronar)
'Cause we fit together right, we fit
together right (Porque ficamos bem
juntos, ficamos bem juntos)
These dark clouds over me, rain down
and roll away (Estas nuvens escuras
sobre mim, fazem chover e fogem)
We'll never fall apart, 'cause we fit
together like (Nunca vamos
desmoronar, porque ficamos bem
juntos)
Two pieces of a broken heart” (Como
duas partes de um coração partido)

Two Pieces – Demi Lovato

MARCELO
Um verdadeiro incêndio foi iniciado ali, e nenhum de
nós dois parecia inclinado a apagá-lo. Sem afastar nossas
bocas, ousei deslizar as mãos pelas costas dela, por baixo
da camisa e percebi, extasiado, que ela não estava usando
sutiã. Ela não mostrou qualquer resistência a isso, muito
pelo contrário. Sem interromper o beijo, nos ajeitamos, eu
com as costas apoiadas no encosto do sofá e ela sentada
no meu colo, com as pernas afastadas. Seu quadril
pressionava o meu com desejo, fazendo com que eu
sentisse meu pau ainda mais duro. Uma vez que nos
livrássemos daquelas peças de roupa, eu sabia que não
conseguiria parar. Por isso, juntei todo o autocontrole que
ainda me restava para fazer isso nesse momento. Liberei
os lábios dela e ficamos alguns segundos em completo
silêncio, apenas numa troca de olhares enquanto ambos
lutávamos para regularizar a respiração. Que inferno...
Olhar nos olhos dela não tornava aquela pausa nada fácil.
— Melhor irmos com calma, Alice — falei, embora
minha voz quase não tivesse saído. Calma era o que eu
menos queria naquele momento, mas precisava me
controlar.
Ela movimentou a cabeça em uma negativa.
— Pare de me tratar como uma mocinha frágil,
cowboy. Não precisa pensar em consequências agora. Sou
uma mulher adulta, e talvez, como eu disse outro dia, tudo
o que eu queira seja apenas um beijo, ou apenas uma
noite.
Pude ver um misto de desejo e tristeza nos olhos dela.
Eu compreendia, porque também me sentia assim.
— Talvez seja eu que não queira apenas uma noite,
moça. Quero muito mais do que isso. Quero você por
inteira.
— Eu não sou mais apenas eu, cowboy. Sou um
pacote agora.
— Quando disse que te quero por inteira, é porque te
quero por inteira. Todo o pacote. Você e Bernardo.
Ela continuou me olhando em silêncio por alguns
instantes, e percebi que os olhos dela brilhavam,
mostrando que estava emocionada com as minhas
palavras. Sem dizer mais nada, ela avançou sobre mim,
voltando a me beijar.
Entendi ali a concordância dela. A permissão para que
eu não apenas entrasse em seu corpo. Mas em sua vida.
Voltei a deslizar as mãos pelas costas dela, subindo,
levando o tecido da camisa junto. Ela liberou minha boa por
alguns segundos e levantou os braços, permitindo que eu
retirasse a peça de roupa. Voltamos a nos beijar e senti os
dedos dela deslizando sobre os botões da minha camisa,
abrindo-os um a um. Acolhi os seios dela com ambas as
mãos, brincando com os polegares sobre os mamilos. Ela
voltou a interromper o nosso beijo para soltar um gemido
extasiado. Então, pude olhá-la melhor. Os seios eram
firmes e cabiam perfeitamente nas minhas mãos. Não
resisti e levei um deles à boca, enquanto ainda acariciava o
outro com a mão. Gemendo o meu nome, Alice
movimentou o quadril sobre o meu pau, que já doía de
forma insuportável. Alternei mãos e boca entre os mamilos,
inebriado com os gemidos, sussurros e com a forma com
que ela rebolava sobre mim.
Segurando suas coxas firmemente, levantei-me,
levando-a no colo até o quarto que eu vinha usando em
minha estadia naquela casa. Deitei-a sobre a cama e
terminei de me livrar da minha camisa, que já estava com
os botões todos abertos por ela, em seguida, em um só
movimento, livrei-me da calça e da cueca, enquanto
admirava a imagem dela deitada sobre a cama, a barriga já
visível da gravidez, usando apenas o short curto, tendo os
cabelos ainda úmidos espalhados sobre o lençol,
emoldurando o rosto que me fitava com um tesão visível.
Percorrendo os olhos pelo meu corpo, ela mordeu o lábio
inferior, como uma forma de me enlouquecer.
— Não é a primeira vez que me vê sem roupas —
falei, quebrando um pouco a tensão.
Ela riu, olhando diretamente para o meu membro.
— Bem, nessas condições, é a primeira, sim.
Fui para a cama, deitando-me ao lado dela e voltando
a beijá-la. Ela desceu a mão até o meu pau e senti que
explodiria ali naquele momento. Segurei a mão dela,
levando-a acima de sua cabeça.
— Devagar, moça. Você tem me deixado louco desde
o dia em que chegou aqui. Merece ser torturada por isso.
Ela arfou, e eu sabia que chamá-la daquela maneira a
excitava. Percebi isso desde muito antes de chegarmos
àquela situação.
Desci uma trilha de beijos pelo seu pescoço, chegando
aos seios, onde me detive por mais algum tempo. Tomava
um em minha boca, sugando gentilmente um mamilo
enquanto acariciava o outro com a mão. Desci um pouco
mais, demorando mais em sua barriga, enchendo-a de
beijos. Agarrei fortemente o tecido do short e da calcinha,
puxando-os juntos, deixando-a, enfim, completamente nua.
Permiti-me me afastar por um instante, apenas para captar
aquela imagem daquela mulher completamente nua... e
fodidamente linda. Porra, eu não estava me aguentando
mais. Ela se remexeu sobre a cama, mostrando que
também estava aflita para que eu a penetrasse. Mas não
queria que fosse tão rápido assim. Queria antes prová-la
ao máximo, ouvi-la gemer à exaustão. E foi o que eu fiz.
Retornei aos beijos ao redor do seu umbigo, descendo
aos poucos, sem pressa. Afastei suas pernas e usei dois
dedos para abrir os grandes lábios, passando devagar a
língua pelo seu clitóris. Ela arqueou o corpo e arfou alto.
Voltei a lambê-la e senti suas mãos se agarrando aos meus
cabelos enquanto seus gemidos de intensificavam, dando
forma a um mais alto quando a penetrei com o médio e o
indicador, sem parar de explorar seu clitóris com a língua.
Seu gosto, seu cheiro e seus gemidos me deixavam a
cada segundo mais duro, mais louco. Até que veio o mais
alto deles, seguido pelo tremor de seu corpo.

*****

ALICE

As ondas de prazer intenso que percorreram o meu


corpo me saciaram por um breve instante. Quando voltei a
abrir os olhos e olhei para baixo, vi o cowboy levando os
dedos que usara para me penetrar à boca, provando o meu
gosto, e tal visão voltou a acender as labaredas em mim.
Eu queria mais. Eu queria muito mais.
— Não vai acabar com isso, cowboy? — perguntei,
rouca. Meu Deus, ele tinha acabado de me dar um
orgasmo maravilhoso com o melhor sexo oral que eu já
tinha recebido na vida, e eu ainda queria mais.
— Está com pressa de que, moça?
Não era possível que ele estivesse tão tranquilo.
Maldito cowboy!
— Eu quero... — comecei a falar, mas parei, ainda
ofegante.
Ele voltou a beijar a minha barriga, subindo devagar
em uma trilha torturante de beijos e lambidas.
— Quer o quê? — Ele provocou, deslizando as mãos
pela parte interna das minhas coxas. Achei que fosse voltar
a me tocar em meu ponto mais sensível, mas ele recuou
propositalmente.
Arfei, tomando fôlego para completar:
— Quero você... dentro de mim.
Ele subiu um pouco mais e se posicionou. Manteve
o tronco elevado, apoiando as mãos nas minhas laterais,
visivelmente tendo o cuidado de não pressionar a minha
barriga. Senti seu pênis duro roçar na minha entrada.
Rebolei aflitivamente, tentando fazer com que ele entrasse,
mas ele recuou, voltando a me torturar. Achei que ele
ficaria algum tempo naquilo, mas logo percebi que ele
também não suportaria. Então, ele me penetrou. Lenta e
prazerosamente. Gemi mais alto, agarrando com força os
lençóis. Soltei um gemido de protesto quando ele se
afastou, sentindo um êxtase ainda maior quando voltou a
penetrar. E assim ele continuou a me torturar com
estocadas lentas, que aos poucos foram ficando mais
ritmadas, me deixando a cada instante mais louca.
Senti que estava prestes a chegar a mais um
orgasmo, quando ele desacelerou o ritmo, voltando ao
lento e deliciosamente torturante vai e vem. As mãos dele
desceram até a minha bunda e ele flexionou as pernas,
ficando de joelhos e levando meu quadril junto. Vi-o pegar
um travesseiro que estava bem ao nosso lado,
posicionando-o sob a minha coluna, em mais uma
demonstração de cuidado com a minha gravidez. Até
mesmo na cama aquele cowboy conseguia ser
incrivelmente protetor.
Quando as estocadas voltaram a acelerar, senti um
prazer ainda maior do que na posição anterior. Uma nova
onda de estímulos percorreu a minha pelve, até explodir
em vibrações. Soltei um gemido alto, deleitando-me. Ele
me acompanhou, jorrando seu líquido quente em meu
ventre.
Enquanto ele saía de sua posição, virei-me de lado,
encolhida, e ele se acomodou atrás de mim, levando uma
das mãos à minha barriga e deslizando-a suavemente,
enquanto depositava um beijo no meu pescoço.
— Eu também não quero que seja apenas uma
noite... — confessei com a voz baixa, após longos minutos
de um cúmplice silêncio.
Cheguei a imaginar que ele talvez já estivesse até
mesmo dormindo, mas ele mostrou que não quando
respondeu:
— No que depender de mim, será muito mais do que
isso.
— Falou sério quando disse que vai me querer...
você sabe... por completo?
— Eu já amo esse bebê como se fosse meu, Alice.
Seria o melhor presente do mundo poder ser pai dele.
Segurei a mão que ele ainda mantinha sobre a
minha barriga e sorri, não conseguindo evitar que as
primeiras lágrimas escapassem dos meus olhos.
Eu não me lembrava de ter sido tão feliz em nenhum
outro momento da minha vida.

*****
Capítulo vinte - Apenas o
agora

“Every road is a slippery slope (Toda


estrada é uma ladeira escorregadia)
But there is always a hand (Mas sempre
há uma mão)
that you can hold on to (na qual você
pode se segurar)
Looking deeper through the telescope
(Olhando profundamente pelo
telescópio)
You can see that your (Você pode
perceber que seu)
home's inside of you (lar está dentro de
você)

Just know, (Apenas tenha certeza de


que)
that wherever you go, (onde quer que
você vá)
No, you're never alone, (Não, você
nunca está sozinho)
You will always get back home (Você
sempre voltará para casa)
Home (Casa)
Home” (Casa)
93 Million Miles – Jason Mraz

MARCELO

A noite tinha sido ótima. Eu diria que muito mais do


que isso.
Ainda que tivéssemos dormido muito pouco, já que
acordamos outras duas vezes, experimentando novas
posições. Levantamos antes do nascer do sol e fizemos
amor mais uma vez durante o banho. A barriga dela ainda
não estava tão grande, então segurei-a pelas coxas,
apoiando suas costas na parede do box, penetrando-a
embaixo do chuveiro. Aquela mulher era como uma droga,
no melhor sentido possível da palavra. Quanto mais eu a
tinha, mais desejava tê-la.
Mas eu precisava trabalhar e, ela, voltar para casa
antes que o avô percebesse que ela tinha passado a noite
fora.
— Ele logo saberá sobre nós dois — ela disse,
enquanto tomávamos café da manhã. Ela voltara a usar a
roupa apertada da noite anterior, já que a outra ainda
estava molhada —, mas não quero que saiba o motivo
inicial que me levou a passar a noite aqui. Sabe, do meu
pequeno ataque de pânico ontem durante a chuva.
Eu achava que seu Bernardo merecia saber aquilo,
mas compreendia a preocupação dela. Ele andava feliz por
ver a neta tão bem durante as últimas semanas,
certamente voltaria a ficar tenso se soubesse do ocorrido.
Contudo, logo um outro ponto da fala de Alice foi
fixado na minha mente.
Seu Bernardo logo saberia sobre nós.
Afinal, existia um nós, e essa era uma parte ótima
nisso tudo. O que me deixava tenso era a outra.
— Como o seu Bernardo vai reagir a isso? — acabei
expondo meu pensamento em voz alta.
— Sobre a minha crise de pânico? Ele voltaria a ficar
preocupado com alguma recaída minha.
— Não, Alice. Eu digo... sobre nós.
— Ele nunca foi o tipo de avô que implicava com os
meus namoros. Nunca gostou de nenhum deles, na
verdade, mas sempre aceitou.
Namoro...
Era tudo tão recente, que eu ainda sentia estranheza
em dar um nome àquilo.
Ao mesmo tempo, era bom. Alice era minha
namorada, afinal. Minha.
— Sempre aceitou porque nenhum dos seus namoros
nunca foi com um empregado dele.
Ela parou a mão que levava um pedaço de bolo à
boca.
— Marcelo, meu avô adora você.
— Mas eu ainda sou o cowboy que trabalha para ele.
— Você sabe que não é um mero empregado para ele.
Se fosse menor de idade quando sua mãe se foi, ele teria
adotado você.
Sabia que ela dizia a verdade. Eu tinha dezoito anos
recém-completados quando fiquei órfão de mãe, e seu
Bernardo me deu todo o apoio que poderia dar. Além de já
ser maior de idade, eu já era extremamente responsável e
trabalhava desde bem novo, por conta da perda do meu pai
anos antes, por isso eu já tinha alguma independência.
Mas lembrava de tê-lo ouvido levantar a possibilidade de
me adotar, o que eu recusei por já ser um homem feito e
não querer, de forma alguma, trazer problemas a ele.
De qualquer maneira, aquele velho era muito mais do
que um patrão para mim. Era realmente como um avô.
Mas tais sentimentos não alteravam a realidade. Eu
ainda era apenas um empregado. O que ele diria quando
soubesse que eu estava namorando a neta dele? Pior: que
eu pretendia assumir seu bisneto como um filho?

*****

— Eu sou a porra do velho mais sortudo do mundo! —


ele gritou, me puxando para um abraço tão súbito que
chegou a estalar a minha coluna.
De todas as reações que eu imaginei, nenhuma era
tão empolgada quanto aquela.
Conforme o combinado, eu tinha saído para trabalhar
pela manhã e Alice seguiu para casa. Conseguiu chegar
antes que seu avô saísse do quarto, portanto ele não
desconfiou de nada. Contudo, ela o avisou que queria
conversar com ele no final da tarde, quando ele retornasse
e assim foi feito. Eu tinha ido para lá para, é claro,
participar da conversa. Queria começar tudo aquilo da
forma mais honrosa e tradicional possível.
Claro, não que ter experimentado quase meia dúzia de
posições sexuais com ela na última noite, madrugada e
manhã fosse uma coisa que eu pretendesse que ele
tomasse conhecimento. Mas, dali em diante, o começo
seria correto: eu pediria permissão a ele para me relacionar
com sua neta. Pretendia em breve fazer o mesmo com
seus pais. Lógico, se seu Bernardo me permitisse viver
para isso.
Mas ele não apenas não tentou me matar, como me
abraçou e... comemorou.
— Precisamos abrir um vinho para festejar essa
notícia maravilhosa. Parece que enfim a minha neta perdeu
o dedo podre para escolher seus relacionamentos.
— Ei, vovô, eu estou aqui, viu?
Ignorando-a, ele caminhou até a adega no canto da
sala, começando a pegar garrafas e olhar os rótulos,
enquanto prosseguia:
— O último dela conseguia ser o pior de todos, não via
a hora de ela se livrar daquele playboy metido a besta. Mas
a Alice é meio otária para essas coisas, sabe?
— Vô, repito: eu estou bem aqui.
— Desculpe, querida. É que estou realmente feliz por
você enfim ter feito uma escolha certa. Marcelo é um
homem de verdade, que tem tudo para fazer você feliz.
Ela riu e eu fiquei ainda um tanto sem reação. Estava
feliz, claro, mas não esperava que seu Bernardo fosse ficar
tão empolgado com a notícia.
Ele escolheu o vinho, começando a servir duas taças.
Alice o lembrou que não poderia beber, então ele serviu
mais uma taça com suco. Brindamos e nos sentamos nos
sofás.
— Mas, agora que vocês estão juntos, Lili, você
pretende ficar com ele na outra casa? Um pena que o
quartinho do meu bisneto já está pronto, e ficou tão bonito.
Eu quase engasguei com o vinho. Alice, no entanto,
respondeu com total tranquilidade.
— Não, vovô. Eu lhe prometi que ficaria com o senhor
até o bebê nascer, e ao menos durante as primeiras
semanas de vida dele, não foi?
— Além do mais, seu Bernardo — tomei a palavra —,
não pretendo permanecer muito tempo na sua casa. Estou
construindo o meu canto, nos próximos meses já me mudo
para lá.
Talvez, agora, eu adiasse um pouco tal plano. Com o
Bernardo a caminho, eu queria poder estar o mais perto
possível. Acredito que abusaria um pouco da boa vontade
de seu Bernardo e ficaria morando na casa ao lado ao
menos até o bebê nascer.
Seguimos conversando por mais de uma hora, até que
seu Bernardo se levantou, anunciando que iria dormir. Sua
cadela, sempre fiel, estava deitada aos seus pés e também
se levantou para segui-lo.
— Boa noite, meus queridos. Lili, vai passar a noite em
casa ou com o Marcelo?
Voltei a me sentir constrangido. Dessa vez, ao menos,
não fui o único.
— Vovô! — ela exclamou, com o rosto vermelho.
Quase ri diante da cena.
— Pelo amos de Deus, Alice, eu não espero que você
se case virgem. Acha que não sei como esse bebê foi
parar na sua barriga?
— Vovô! — ela repetiu. — Pare de falar assim. Aja
como um bom avozinho bem careta, para eu me sentir
mais confortável, por favor. E, sim, vou passar a noite em
casa, é claro!
— Bem, você é que sabe. Vamos, Paçoca, hora de
dormir!
E os dois subiram juntos para o quarto. Alice e eu
trocamos um olhar ligeiramente envergonhado, antes de
cairmos juntos na gargalhada.
Decidi que era hora de eu também ir para casa, e ela
me acompanhou até a varanda. Ali sozinhos, enfim
pudemos nos beijar. Um beijo ávido e aflito, que matava
uma saudade de horas fisicamente afastados.
— Seu avô te liberou para passar a noite comigo, acho
que você deveria pensar a respeito — falei, logo que
nossas bocas se afastaram.
— Ah, claro, agora você diz isso, né? Na hora ficou tão
vermelho quanto eu.
— Ainda é estranho. Mas estou feliz por ele ter
aceitado que estamos juntos.
— E você ainda tinha dúvidas disso? Ele não apenas
aceitou, mas ficou bem feliz com isso, não viu?
— É... E isso me deixa feliz também. Aliás, sobre a
casa... A minha tem a previsão de ficar pronta... ou quase,
em um nível habitável... em uns três meses ou menos. Mas
acho que vou abusar um pouco mais da hospitalidade de
vocês. Quero estar por perto durante sua gestação. Você
pode passar mal ou, sei lá, ter um daqueles desejos loucos
por comida que grávidas costumam ter.
— Muito bom. Posso também ter algum outro tipo de
desejo e será ótimo ter você por perto.
Ela voltou a se aproximar e ficou nas pontas dos pés,
roçando o nariz em meu queixo. Ela estava brincando com
fogo. Estava me controlando para não a jogar no meu
ombro, como um homem das cavernas, e carregá-la para a
minha cama.
— De qualquer forma, mude-se apenas quando a casa
estiver pronta, não precisa ter pressa. Independente de
estarmos juntos, sabe que meu avô fica muito feliz em te
hospedar na casa anexa.
— Talvez a obra realmente demore algum tempo a
mais. Ela não é tão pequena assim, os cômodos são
espaçosos, mas eu tinha planejado uma coisa apenas para
mim. Mas precisarei adicionar um quarto a mais, para o
Bernardo.
Ela se afastou um passo, me olhando nos olhos,
parecendo surpresa com minhas palavras. Senti-me o
maior dos idiotas com isso. Lá estava eu novamente, indo
rápido demais com as coisas.
— Digo, não estou dizendo que devemos morar juntos
agora, nem querendo apressar nada. Sei que você veio
para cá apenas para passar algum tempo, logo deve voltar
para a cidade e voltar a jogar, mas...
Ela sorriu, levando levemente os dedos à minha boca,
calando-me.
— Shiu... Não precisa se explicar demais, cowboy.
Sinceramente não sei o que farei depois. Só sei que o que
eu estou vivendo agora é muito bom, e é só nisso que eu
quero pensar. Apenas no agora.
Era só o que eu queria também. Eu tinha cometido
erros na minha vida com Cristiane pela necessidade de
apressar as coisas. Não queria fazer o mesmo com Alice.
Voltamos a nos beijar de forma suave, mas tal beijo
logo foi interrompido pelo som insistente do celular dela, no
que pareciam ser notificações de mensagens. Como o sinal
de telefonia móvel por ali era bem ruim, era comum que
várias mensagens chegassem ao mesmo tempo quando o
aparelho recebia algum sinal.
Afastei-me dela, notando uma apreensão em seu
rosto. Ela pegou o aparelho no bolso traseiro da calça e
ainda hesitou em acender a tela para ver o que tinha
chegado. Leu, soltando um suspiro de desânimo. Então
virou o aparelho para que eu pudesse ler também as
mensagens vindas de um número que não parecia salvo na
memória do celular.

Alice, eu já disse que não adianta bloquear o meu


número. Vou trocar de chip quantas vezes forem
necessárias, e insistir até que você entenda.

Esse bebê também é meu filho. Você não tem o direito


de me negar isso. Se não permitir isso por bem,
entrarei na justiça e conseguirei a guarda dele quando
nascer.

Pense bem no que está fazendo. Não me obrigue a


tomar atitudes drásticas. Tentei te ligar várias vezes,
mas o seu telefone está sempre dizendo que está
desligado ou sem cobertura. A não ser que você tenha
ido para o meio do mato, sei que está me evitando.

Estou te dando mais essa chance. Me ligue ainda hoje


e vamos acertar as coisas. Sou pai dessa criança e
tenho os meus direitos.

Não brinque comigo ou vai se arrepender.

Quando cheguei na última das mensagens, meu


sangue já fervia de ódio.
— Quem esse filho da puta acha que é para te
ameaçar desse jeito?
— É um blefe, Marcelo. Guilherme não vai entrar na
justiça, ele sabe que tem poucas chances e que ainda será
um processo demorado e trabalhoso. Eu o conheço bem
para saber que trabalho não é algo que ele goste de ter.
— Não importa se vai cumprir ou não, ele não pode
falar assim com você. Me diz onde ele mora, que vou
amanhã mesmo até lá para dar uma lição nele.
— Acalme-se, cowboy. Ele não vai mais me perturbar.
— Como não, Alice? Você já bloqueou outros números
dele, ele sempre consegue outro e volta a te infernizar.
— Ele não fará mais isso se não puder me encontrar.
Ela levou as mãos à orelha, retirando o brinco de
argola que usava. Curioso, vi-a levar a parte mais fina do
brinco a um orifício do celular, acionando a gaveta do chip,
que saiu. Apanhou o minúsculo objeto e foi até o degrau da
varanda, arremessando-o longe em meio à grama e à terra
ainda molhada pela chuva do dia anterior.
— Prontinho — ela se gabou, olhando para mim e
sorrindo.
— Alice, por que fez isso? Como seus pais vão
conseguir falar com você? E suas amigas?
— Meus pais sempre ligam para o telefone fixo do
meu avô, mas ainda assim, posso comprar um novo chip
quando for à cidade, então mando o número para as
pessoas que quiser mandar.
— Mas... É seu contato de trabalho! Algum clube pode
querer te contratar. Ou mesmo o antigo, e se eles te
quiserem de volta depois que o Bernardo nascer?
— Depois que o Bernardo nascer não é agora. Sabe...
falando como uma pessoa que já sofreu de depressão e de
ansiedade... os maiores inimigos da minha mente sempre
foram o excesso de passado e de futuro. Pela primeira vez
na minha vida, tudo o que eu quero é viver o presente.
Como eu disse: tudo o que importa para mim é o agora. E
o meu agora é estar aqui na fazenda, curtindo a companhia
do meu avô, aprendendo o trabalho de administrar os
negócios dele, comer as comidas deliciosas da Mari, ver as
crianças se divertindo no campo de futebol, curtir a minha
gravidez, organizar as coisinhas do Bernardo... e você,
Marcelo. Você é uma parte importante do meu agora.
Voltei a me aproximar, tornando a beijá-la. Em
seguida, a abracei com força, sentindo os braços dela ao
meu redor.
Aquele agora também era tudo o que eu mais prezava
na minha vida.

*****
Capítulo vinte e um –
Presente especial

“When life takes it's own course


(Quando a vida toma o seu próprio
curso)
Sometimes we just don't get to choose
(Às vezes a gente simplesmente não
consegue escolher)
I'd rather be there next to you (Eu
prefiro estar lá ao seu lado)
Promise you'll wait for me, wait for me
(Prometa que você vai esperar por mim,
espere por mim)
Wait 'til I'm home (Espere até que eu
esteja em casa)

All I have is this feeling inside of me


(Tudo o que tenho é esse sentimento
dentro de mim)
The only thing I've ever known (A única
coisa que eu já conheci)

Already Home - A Great Big World

ALICE
Alguns meses depois...

Eu ainda não conseguia me acostumar àquele novo


corpo. Até certo ponto da gravidez, vivi a preocupação de
achar que Bernardo não estava crescendo o suficiente,
quando de repente ele pareceu ter dado um boom, que fez
minha barriga parecer que iria estourar. Ganhei bastante
peso nos últimos meses de gestação, e agora, na trigésima
oitava semana, eu já parecia andar com uma melancia
amarrada na frente do corpo. Meus pés estavam enormes
de tão inchados, as costas doíam e eu corria para o
banheiro para fazer xixi praticamente de hora em hora. E,
apesar de tudo isso me causar uma inevitável irritação,
posso afirmar que nunca tinha sido tão feliz em toda a
minha vida.
O parto estava estimado para dali a doze dias, mas
meu médico tinha me deixado preparada para o fato de
que Bernardo poderia cismar de vir ao mundo a qualquer
momento. A bolsa de saída da maternidade já estava
pronta, e eu a levei para a casa de Marcelo, onde eu ficaria
pelos próximos dias. Tanto nós dois quanto meu avô
tínhamos combinado que seria melhor assim. Marcelo tirou
o mês de férias e ficaria comigo em casa para, em
qualquer emergência, me levar para o hospital. Meu avô já
não enxergava tão bem para dirigir durante a noite, caso
isso fosse necessário, e como ele apenas deixaria para
parar um pouco o trabalho depois que o bisneto nascesse,
estava sempre fora resolvendo questões da fazenda. Não
queria correr o risco de estar completamente sozinha no
momento em que meu garotinho decidisse vir ao mundo.
Sem contar que subir e descer escadas vinha se tornando
uma tarefa árdua para mim. Estar em uma casa térrea
facilitava em muito a minha vida.
Entrei na casa ao lado de Marcelo, que posicionou a
bolsa em uma mesa próxima à porta, bem ao lado da
carteira dele, dos meus documentos e da chave da
caminhonete. Enquanto eu caminhava até o sofá, vi-o
verificar cada um dos itens ali, visivelmente preocupado de
estar esquecendo de alguma coisa.
— Acalme-se, cowboy. Está tudo certo.
— Tem certeza? Você pegou tudo?
— Está tudo aí. E não é como se ele fosse nascer
hoje, acalme-se.
— O doutor disse que na semana trinta e oito o bebê
já pode nascer.
— Já pode, não significa que vai.
— E aquela dor que você sentiu ontem? Sinal de que
ele está querendo nascer.
Ajeitei-me no sofá, colocando uma almofada nas
costas em uma tentativa de ficar mais confortável. Isso
vinha sendo bem difícil, aliás.
— Aquela dor é normal, e vai se repetir muito até o
final da gestação. Teremos muitos alarmes falsos, precisa
ficar calmo com isso.
— Como ficar calmo com você sentindo dor?
Ele parou de pé diante de mim e não pude conter um
sorriso diante da expressão preocupada e fofa em seu
rosto.
— Precisa ser um pouco menos superprotetor,
cowboy.
— Como se fosse fácil fazer isso com alguém como
você. — Ele se sentou na outra ponta do sofá. — Anda, me
dá esses pés. Olha como estão inchados!
Apesar de estarmos no meio de uma ‘discussão’, não
neguei a oferta e deitei-me, ajeitando os pés sobre os
joelhos dele. Mas insisti:
— Como assim? O que quer dizer exatamente com
isso de “alguém como você”?
— Até outro dia estava querendo andar a cavalo.
— Já tem alguns meses isso. Se quer criticar algo,
tente ser atual.
— Semana passada estava de novo querendo jogar
bola com as crianças.
Ele iniciou a massagem em um dos pés e reprimi o
gemido de contentamento que ameaçou sair dos meus
lábios. Aquilo era bom. Muito bom. Mas eu não pretendia
dar o braço a torcer.
— Eu não ia jogar bola, cowboy. Estava apenas
assistindo ao jogo deles.
— Estava era conversando com aquele babaca do
Cássio. Aquele idiota não tem um mínimo de vergonha na
cara de ficar olhando daquele jeito para a minha mulher,
que está grávida do meu filho.
Minha mulher...
Meu filho...
Tais palavras aqueciam tanto o meu coração, que por
um breve momento eu quase deixei o assunto de lado.
Quase...
— De que jeito, Marcelo? Está louco? Cássio nunca
me faltou com o respeito. Nunca!
— E é bom que não falte mesmo, senão eu
arrebento a fuça dele.
— Então o problema era eu estar conversando com
o Cássio, não é?
— Não, é claro que não. O problema era que você
estava se colocando em risco. Se uma bola daquelas te
acerta, como é que fica?
— Não sei se gosto mais da sua superproteção ou
dos seus ciúmes. Mas você precisa pegar leve com as
duas coisas.
— Não é ciúme, é só proteção. Não superproteção.
Fala como se eu fosse um paranoico.
Ele apertou o polegar no centro no meu pé usando
um pouco mais de pressão. Dessa vez, foi impossível não
fechar os olhos e soltar um gemido. Um homem
maravilhoso como aquele fazendo massagens nos meus
pés... o que mais uma grávida prestes a dar à luz pode
desejar nessa vida?
Mas logo voltei a me recompor, prosseguindo o
assunto:
— Cássio é apenas meu amigo. Eu estou com você,
cowboy.
Ele ficou calado por alguns instantes, concentrando-
se apenas na massagem. Aquilo estava bom demais, por
isso quase reclamei quando ele parou, parecendo ter
decidido por dizer algo:
— Já que a bolsa da maternidade está pronta, acho
que é o momento de eu te entregar algo.
Ele se levantou e foi em direção ao quarto. Continuei
ali deitada no sofá, olhando curiosa na direção do corredor,
até que ele voltou, trazendo dois embrulhos de presente
em mãos. Sentei-me, curiosa. Ele se sentou ao meu lado,
entregando-me um dos embrulhos e explicando:
— Este aqui está comprado há mais tempo. Foi no
dia que te acompanhei para comprar as primeiras coisas
do Bernardo.
— Mas isso... tem muito tempo. — Nós ainda nem
estávamos juntos na ocasião, aliás. Embora já existisse um
clima inegável entre nós. — Guardou por todos esses
meses?
— Quis esperar o momento certo. Vamos, abra.
Sorrindo, comecei a abrir o pacote, devagar para
não danificar a embalagem. Estava em uma caixinha azul,
adornada com uma fitinha de cetim, tão bem feito que eu
não quis estragar, muito embora minha curiosidade
estivesse quase me fazendo rasgar tudo para ver o quanto
antes o que havia ali dentro. Quando enfim abri, senti meu
coração aquecido ao me deparar com um par de
sapatinhos.
— São vermelhos... — comentei, já sabendo o que
significava.
Mesmo assim, ele explicou:
— Minha mãe dizia que dá sorte.
— A minha avó também. Foi ela quem comprou para
mim um par de sapatinhos vermelhos com os quais eu saí
da maternidade. — E eu tinha certeza de que ela faria o
mesmo pelo bisneto caso estivesse ali conosco. E isso fez
o presente ser ainda mais especial.
Aproximei-me de Marcelo, depositando um beijo em
seus lábios. Lágrimas quentes desceram pelo meu rosto e
eu só consegui dizer uma única palavra:
— Obrigada.
— É apenas um par de sapatos, Alice.
— Não é só um par de sapatos. Você é o melhor
presente, tanto para mim quanto para o Bernardo. Eu te
amo, e sei que ele já te ama também.
Percebi a emoção nos olhos dele. Não era a
primeira vez que eu dizia que o amava, mas todas as
vezes que trocávamos aquelas palavras era como se fosse
a primeira.
— Oras, eu também amo você, mas não é pra tudo
isso! — ele retrucou, com seu jeito meio bronco, tentando
disfarçar a própria emoção. — Anda, abre o outro.
Se o presente anterior quase me fez chorar, o
seguinte me fez explodir em uma deliciosa gargalhada. Era
a coisa mais fofa que eu já tinha visto na minha vida: um
pequeno chapéu de cowboy, bem parecido com o que
Marcelo constantemente usava, mas em miniatura, perfeito
para um bebê.
— Eu não acredito nisso! — falei, quando enfim
consegui conter um pouco o riso. Ele também ria, aliás,
visivelmente feliz.
— Oras, você comprou uma camisa do seu time de
futebol para ele, acha que vou deixar que o influencie
sozinha? Ele é filho de uma jogadora, mas também é de
um cowboy.
— Perfeito. Eu o ensino a jogar bola e você a montar
a cavalo. Quando crescer, ele decidirá se quer seguir uma
dessas duas coisas, ou outra completamente diferente.
— Ele vai seguir o caminho que quiser. E terá
sempre um pai que vai apoiá-lo em tudo.
Levei a mão ao rosto dele, passando o polegar pela
pele áspera da barba por fazer. Ficamos em silêncio,
apenas em uma troca cúmplice de olhares por algum
tempo, até que eu brinquei:
— É, mas jogar futebol é muito mais legal.
— Pode até ser, mas aposto que, quando ganhar
seu próprio cavalo, os dois serão inseparáveis, como
Hades e eu.
— Já está pretendendo dar um cavalo para ele?
— Lógico! Ganhei o Hades quando tinha dez anos,
Bernardo não precisa esperar tanto tempo para ter um
também.
Fiz o exercício de projetar minha mente para dali a
dez anos. Se fosse há apenas alguns meses, a perfeição
de tal pensamento incluiria eu contratada de um clube
grande, talvez até mesmo no exterior. Jogos, vitórias,
títulos...
Contudo, não era apenas Bernardo que tornava tudo
agora diferente. A perfeição para mim agora incluía uma
vida de interior, uma família... com meu filho correndo livre
por aquela fazenda, uma casa ali perto, talvez um pequeno
sítio com nossos próprios animais e pequenas plantações...
incluía dormir e acordar todos os dias ao lado de Marcelo.
Seria completamente feliz, se não houvesse uma
lacuna. A minha vida profissional... mais do que isso, o
futebol em si tinha um peso enorme, sempre fizera parte
dos meus sonhos. De repente, não ter aquilo não me
parecia uma opção que fosse plenamente feliz.
Porém, o foco era viver o agora, não era?
— Tudo bem, é justo — falei apenas. Ajeitei-me
junto a ele, deitando minha cabeça em seu peito e sendo
acolhida pelos seus braços.
Estava fisicamente cansada, embora o meu trabalho
não fosse nada desgastante. Mas carregar aquela barriga
enorme reduzia consideravelmente a minha disposição
física, e a cada semana que se passava mais exausta eu
me sentia. Contudo, por dentro, a felicidade transbordava
em meu peito e eu me mantinha tranquila, em paz, embora
às vezes surgisse uma ponta de ansiedade ao pensar no
momento do parto, preocupações para que tudo desse
certo e para conhecer logo o meu garotinho.
O nosso garotinho. Nosso pequeno cowboy.
— Está acordada? — Marcelo questionou depois de
alguns minutos em completo silêncio.
Eu realmente sentia muito sono, mas não havia
adormecido.
— Estou, amor.
— Tem uma coisa que eu queria te perguntar já há
muito tempo.
— Pode perguntar — respondi manhosa, com os
olhos fechados, já me sentindo a um passo de adormecer
naquele ninho de paz.
— É sobre o que você me contou há alguns meses.
Sobre o que aconteceu com você depois que... sabe,
depois que dona Beatriz se foi.
Abri os olhos, pega de surpresa pela lembrança. A
minha tentativa de suicídio durante a adolescência não era
exatamente um assunto que eu costumasse abordar.
Tirando minha família e minha psicóloga da época, a única
pessoa a quem eu havia conversado a respeito tinha sido o
Marcelo, e apenas uma única vez. Para a minha gratidão,
ele tinha lidado com aquilo muito melhor do que eu
esperava de qualquer pessoa. Não tinha feito perguntas,
questionamentos e, muito menos, julgamentos, como os
que eu tinha pavor de receber de qualquer pessoa. Aquela
era a primeira vez que ele mencionava o assunto depois do
dia em que eu contei a ele a respeito. E isso me trouxe um
pouco de medo.
— Sim, pode perguntar.
— Você voltou a pensar em fazer aquilo novamente?
Digo... atualmente.
Senti que a pressão dos braços dele ao meu redor
aumentou um pouco, o que me fez perceber que eu não
era a única que sentia medo. Pensando no tanto de tempo
que ele havia demorado para me perguntar aquilo,
compreendi que, assim como meus pais e meu avô, ele
tinha entrado no seleto grupo de pessoas que me amavam
tanto a ponto de temer me perder a qualquer momento. Ao
mesmo tempo em que isso fazia com que eu me sentisse
culpada, também trazia um aquecimento à minha alma.
Trazia mais um motivo para eu me manter viva.
— Não — respondi com sinceridade.
Os braços me apertaram com mais força e senti um
beijo sendo delicadamente depositado na minha cabeça.

*****

MARCELO

As férias que eu tinha desistido de tirar depois do final


do meu casamento tinham chegado, enfim, na hora mais
do que certa. Naquele dia, Alice e eu nos demos o direito
de dormir até um pouco mais tarde do que o costumeiro, já
que ela também havia sido liberada dos seus trabalhos
pelo avô. No entanto, depois de uma vida inteira acordando
antes mesmo de o sol raiar, eu não consegui passar muito
tempo na cama e decidi me levantar, não sem antes deixar
um beijo sobre os cabelos de Alice, que dormia
profundamente.
Não era a primeira vez que eu acordava com ela na
minha cama. Depois de nossa primeira noite, ela havia
dormido ali comigo inúmeras vezes. Porém, agora existia
algo diferente. Ela ficaria ali comigo até o bebê nascer e
depois, como combinado, voltaria para a casa do avô, já
que seu Bernardo fazia questão de ajudar a cuidar do neto,
além de o quartinho dele já estar pronto por lá. Eu já havia
recebido o convite oficial do dono da casa para ficar algum
tempo por lá também, afinal, Alice iria precisar de toda a
ajuda necessária durante as primeiras semanas. Como
nem eu nem o seu Bernardo éramos exatamente os mais
profissionais cuidadores de bebês – ele ao menos tinha a
experiência com o filho e com a neta, enquanto eu nunca
havia segurado um recém-nascido nos braços em toda a
minha vida – os pais de Alice já estavam se programando
para irem para lá logo que o bebê nascesse. Era a minha
oportunidade de pedir a eles a bênção para ficar com Alice,
embora já estivéssemos juntos há tantos meses e eles,
logicamente, já soubessem a respeito do nosso
relacionamento. Eu era um cara a moda antiga e gostava
de fazer tudo certo.
Embora tudo fosse mais certo ainda se nos
casássemos. Mas não queria pressionar Alice a isso. Sabia
que ela precisava do tempo dela.
Fui para a cozinha, preparar o café. O meu estava
longe de ser tão bom quanto o que seu Bernardo
preparava, mas não era dos piores também. Queria
preparar uma bandeja de café para levar à Alice no quarto.
Fazia isso quando ouvi um gripo vindo do quarto. Larguei
tudo e corri para lá. Encontrei Alice sentada na cama, com
as duas mãos na barriga, respirando pesadamente. Fui até
ela, preocupado.
—Alice? Tudo bem? Vem, vamos para o hospital. No
caminho ligo para o seu avô e...
A mão dela tocou o meu braço. Percebi que estava um
pouco mais fria que o normal.
— Ei, cowboy... calma... Já te disse que isso é normal,
não quer dizer que o bebê esteja nascendo.
— Tem certeza? Não é melhor irmos para o hospital?
Vou ligar para o seu médico e deixá-lo de sobreaviso.
— Não, amor. É sério, estou bem. Foi só uma... — Ela
se calou, fechando os olhos e levando novamente as mãos
à barriga.
Aquilo me deixou ainda mais aflito. Levantei-me,
estendendo as mãos para ajudá-la a fazer o mesmo.
Porém, ela me deteve.
— É sério, amor, está tudo bem. É outro daqueles
alarmes falsos, pode ficar tranquilo.
Mas eu não conseguia ficar tranquilo. Pelas próximas
semanas, eu não teria tranquilidade até Bernardo nascer,
bem e em segurança.
Apesar de que, algo me dizia que a partir do momento
que aquele menino viesse ao mundo, eu não teria
tranquilidade nunca mais, pelo resto da minha vida.
— Esse cheiro me diz que você preparou um café. —
Ela desviou o assunto, provavelmente já sabendo que eu
iria insistir naquilo. — Estou faminta.
— Tudo bem. Vou trazer o seu café da manhã, e
enquanto você come eu ligo para o seu médico.
— Não tem motivos para perturbar o meu médico,
amor. Mas eu aceito a parte do café na cama.
Ela inclinou o rosto e fechou os olhos, em um pedido
silencioso por um beijo. Por mais que estivesse nervoso,
aquilo era algo que eu jamais negaria a ela. Debrucei-me
sobre a cama, tocando sua boca com a minha. Em seguida
fui até a cozinha, terminando de preparar a bandeja.
Quando voltei com ela para o quarto, encontrei Alice de pé,
parada no meio do cômodo, com uma expressão
assustada no rosto e as duas mãos sobre a barriga. Desci
os olhos, vendo que um líquido escorria por entre as suas
pernas.
— Acho que talvez você tenha razão, cowboy. É
melhor a gente ir para o hospital.
Eu não sabia se falava um “eu avisei”, se gritava, se
sorria ou se me desesperada.
Mas havia chegado o momento. Nosso garoto estava
a caminho.

*****
Capítulo vinte e dois – Dias
de paz

“Já conheci muita gente


Gostei de alguns garotos
Mas depois de você
Os outros são os outros

Ninguém pode acreditar


Na gente separado
Eu tenho mil amigos, mas você foi
O meu melhor namorado

Procuro evitar comparações


Entre flores e declarações
Eu tento te esquecer

A minha vida continua


Mas é certo que eu seria sempre sua
Quem pode me entender

Depois de você
Os outros são os outros e só”

Os outros – Leoni
ALICE

Tudo o que eu mais desejava no mundo aconteceu da


forma mais perfeita e mágica possível. Correu tudo bem no
parto e Bernardo veio ao mundo com um choro alto,
saudável, e sendo o recém-nascido mais lindo que já vi em
toda a minha vida. Marcelo esteve ao meu lado o tempo
todo, segurou a minha mão e o pegou nos braços logo que
nasceu. Meio sem jeito a princípio, como eu desconfiava
que seria, mas acostumou-se rápido, e logo já parecia um
profissional nisso. Meu avô entrou no quarto do hospital
para conhecê-lo pouco depois, e se emocionou quando
contamos que o nome escolhido para ele era em sua
homenagem.
Meus pais vieram passar duas semanas comigo, e
eram os avós mais corujas do mundo. Minha mãe tentou
me convencer a ir para a casa deles, mas eu não queria
sair dali. Eu estava plenamente feliz naquele lugar.
Ah, e eles também adoraram a notícia de que Marcelo
e eu estávamos juntos. Meu pai ainda repetiu a mesma
frase do meu avô, sobre eu enfim ter escolhido “um sujeito
legal”.
É... meu histórico de relacionamentos não era
exatamente um orgulho na minha vida.
Três meses se passaram desde que Bernardo nasceu.
A casa de Marcelo já estava pronta – incluindo um quarto
para Bernardo – mas ele ainda ficava na fazenda – a
maioria das noites eram passadas comigo na casa do meu
avô. Acho que se surgisse um convite oficial para eu ir
morar com ele, eu aceitaria na mesma hora, mas eu sabia
porque ainda não tinha vindo. Ele não queria me pressionar
a tomar uma decisão desse tamanho, especialmente pelo
fato de eu estar tão bem com a filosofia de viver o agora.
Meus sonhos profissionais ainda pesavam, mas eu sabia
que nunca tinha sido tão feliz em toda a minha vida.
Contudo, e se um dia, no futuro, eu viesse a me arrepender
de abandonar definitivamente a minha carreira? Eu tinha
certeza de que isso também se passava pela cabeça de
Marcelo.
O dia que Bernardo completou três meses de vida era
também o aniversário de Marcelo, e comemoramos com
um almoço especial. De noite, teríamos um bolo, com
parabéns duplos. Porém, haveria um lapso entre uma
comemoração e outra. Nesse dia, Marcelo e meu avô
tinham uma reunião com o grupo de fazendeiros da região.
Mariana me faria companhia durante a tarde e eu a
ajudaria para fazer o bolo.
Depois do almoço, Bernardo dormiu e Marcelo fez
questão de levá-lo para o quarto. Eu o acompanhei,
enquanto meu avô ia ao escritório pegar os documentos
que precisaria levar e depois o aguardaria na caminhonete.
Paçoca o acompanhara, já que iria com eles. Ela adorava
passear de carro, e meu avô gostava de levá-la nessas
reuniões. Ela geralmente passava o tempo todo sentadinha
ao seu lado, olhando para tudo como se prestasse atenção
aos assuntos abordados. Meu avô brincava que ela só
faltava dar suas opiniões.
Marcelo depositou Bernardo no berço e não pude
evitar me perder alguns segundos observando o amor com
que ele olhava para o nosso filho.
Nosso... Completamente nosso. Ele não apenas havia
registrado Bernardo como seu filho, como inegavelmente
tinha por ele um amor sem limites. E eu o amava ainda
mais por isso.
— Fiz alguma coisa errada? — ele me perguntou, ao
perceber que eu o observava.
Movimentei a cabeça em uma negativa.
— Pelo contrário. Eu não imaginava que fosse
aprender tão rápido e tão bem a como cuidar de um bebê.
— Posso parecer meio bronco, mas nem é tão difícil
assim, vai.
— Vai passar essa noite aqui comigo, não é? — mudei
de assunto em um tom de provocação.
Ele se aproximou alguns passos e eu fui recuando, até
ser encurralada contra a parede azul com nuvens pintadas
do quarto de Bernardo. Melhor do que com palavras,
Marcelo respondeu se apossando de minha boca com a
sua. Sua língua invadiu a minha boca ao mesmo tempo em
que as mãos percorriam o meu corpo. Senti a rigidez do
membro dele sob as calças, o que me atiçou ainda mais.
Foi preciso toda a autodisciplina que tínhamos para
conseguir nos afastar, ambos respirando pesadamente.
— Me dê um bom motivo para não aceitar a sugestão
do seu avô e deixar que ele vá sozinho à reunião?
— Porque você é um funcionário exemplar. E porque
eu preciso preparar um bolo para o seu aniversário e o
mesversário do nosso filho. Podemos deixar a nossa
comemoração particular para a noite.
— Eu não vejo a hora.
— Eu também não. Agora vá logo, meu avô está te
esperando.
— Voltamos logo. Não queria deixar você e Bernardo
sozinhos.
— Não estamos sozinhos. A Mariana está lá embaixo,
esqueceu?
— Você entendeu. Não gosto da ideia de ir para tão
longe de vocês.
— Você estará a menos de trinta minutos daqui,
cowboy.
— Se você precisar de qualquer coisa, já sabe?
— Sei, cowboy. Eu te ligo, pode ficar tranquilo.
Além de subitamente ter virado pai, havia outra grande
mudança na vida de Marcelo. O cara que a vida toda foi
avesso à tecnologia tinha comprado um aparelho celular.
Uma antena de uma empresa de telefonia tinha sido
instalada nas proximidades nos últimos meses, o que
melhorou consideravelmente o sinal por ali – embora ainda
tivesse suas muitas falhas. Com isso, logo que Marcelo
retornou ao trabalho na fazenda depois das primeiras
semanas parado para me ajudar com o bebê ele decidiu
comprar o telefone para que eu pudesse ligar para ele em
caso de emergência. Mesmo que o trabalho dele fosse
dentro da fazenda do meu avô e que eu nunca tivesse
ficado sozinha em casa com o Bernardo.
Bem, eu raramente ligava, mas às vezes enviava
algumas mensagens provocativas. Tão logo passei do
período de puerpério, minha libido voltou com bastante
força, o que me mostrou que não eram apenas os
hormônios da gravidez que me deixavam louca daquele
jeito. O cowboy ao meu lado era o principal culpado por
isso.
Ele voltou a me beijar e, dessa vez, precisei empurrá-
lo para que não acabássemos cedendo à tentação e
jogando tudo mais para o inferno.
— À noite você não me escapa! — ele ameaçou,
rindo, enquanto saía do quarto.
— E quem disse que vou querer escapar! — devolvi,
provocativa.
Ele me lançou um olhar arrebatador antes de sair.
Precisei respirar fundo algumas vezes até conseguir
reestabelecer minha sanidade e, enfim, sair do quarto.

*****

Eu ficava boba com o quanto a Mari era talentosa na


cozinha. Não só no preparo de pratos deliciosos, como
também na decoração de bolos. Eu estava ali para ajudá-
la, mas no fim das contas apenas fiquei parada como uma
boba, olhando encantada enquanto ela confeitava o bolo
de aniversário. O tema não poderia ser outro: cowboy.
Tiraríamos fotos do Bernardo usando o chapéu que
Marcelo lhe deu de presente, seria uma homenagem
perfeita aos dois.
— É claro que venho me atualizando com técnicas
novas, mas aprendi muito do básico de confeitos com sua
avó, sabia? — ela comentou, sem tirar o foto de
concentração do que fazia.
— Ela era ótima. Até os meus quinze anos, ela sempre
fez os bolos para os meus aniversários. Depois que ela se
foi, eu não tive mais ânimo para comemorar.
— Ela não ia querer que fosse assim, Lili. Aniversários
sempre merecem comemorações.
— É. Quem sabe eu não me anime em fazer algo no
meu próximo? Claro, se você aceitar fazer o meu bolo.
— Faltam dois meses, não é? Se você ainda estiver
por aqui na fazenda, é claro que farei.
A última frase me trouxe um choque de realidade do
qual eu vinha fugindo há tempos. Minha previsão inicial era
a de ficar na fazenda por um ano, e esse prazo já estava
quase chegando ao fim. Acho que já era hora de eu deixar
de lado isso de pensar apenas no agora para rever e
refazer os meus planos para o futuro.
Tomei fôlego para responder alguma coisa, mas fui
interrompida pelo som de um trovão. Olhei pela janela, só
então percebendo que o céu havia escurecido subitamente.
— Esse tempo muda de um instante para o outro... —
Mariana comentou, se referindo ao fato de, até pouco
tempo, o céu estar completamente limpo.
— Era o que faltava, chover logo hoje... — reclamei.
Odiava o fato de que Marcelo e meu avô poderiam pegar
aquela chuva na volta para casa.
— Fique tranquila, essas chuvas de verão passam
rápido.
Concordei e ia dizer mais alguma coisa, quando um
choro ressoou do aparelho de babá eletrônica que eu
segurava.
— Hora do lanchinho do Bernardo! — anunciei
enquanto me levantava.
Subi e fui até o quarto dele, pegando-o do berço e indo
me sentar na poltrona que usava para amamentar.
— Calma, meu amor. Mamãe já está aqui. Está com
fome, não é?
Liberei um dos seios para alimentá-lo, olhando-o
atentamente enquanto aproveitava para conversar um
pouco com ele.
— Sabia que hoje você completa três meses de vida?
Três meses, olha que máximo! O tempo está passando
muito rápido, não é, meu amor? Logo você passará a
comemorar aniversários, já pensou nisso? ...Não, é claro
que não, não é? Mas a mamãe já começou a pensar. Sabe,
talvez a gente não esteja mais nessa casa quando você
completar o seu primeiro aninho. Mas... quer saber?
Provavelmente não estaremos longe também. Logo você
começará a comer alimentos sólidos, primeiro apenas
frutinhas e vegetais, mas... quando passar para coisas
mais elaboradas, quero que comece com a comida da tia
Mari. O tempero dela é muito parecido com o da sua
bisavó, que está no céu. E é o melhor tempero de todo o
mundo. Logo você vai começar a andar e depois a correr, e
quero que você explore toda essa fazenda. Com isso você
também vai querer brincar, e a Paçoca será sua grande
companheira. Ela já está um pouco velhinha, então você
vai precisar pegar leve com ela, tá? Seu bisavô também.
Foi ele quem me ensinou a andar de bicicleta, sabia? E sei
que vai amar ensinar você também. Logo você também vai
aprender a falar, e... Quando aprender a palavra “papai”, é
para ele que você a dirá. Você tem um papai que te ama
muito. Não por ter sido obrigado a isso por laços de
sangue, mas porque ele escolheu ser o seu pai. E eu
nunca vou separar vocês dois.
Ele me fitava com seus olhinhos atentos, como se
prestasse atenção às minhas palavras e as
compreendesse. Contudo, conforme ia saciando sua fome,
as pálpebras começaram a pesar, até que ele voltou a cair
no sono.
Ainda fiquei ali com ele nos braços, olhando-o com
atenção. Seria capaz de passar horas ou mesmo dias
inteiros apenas olhando para ele, analisando cada detalhe,
dos dedinhos das mãos ao cabelo claro e ralinho em sua
cabeça. Tão pequeno, tão frágil e tão perfeito.
De repente, no entanto, ouvi um barulho vindo do
andar de baixo, parecendo algo caindo. Preocupada,
levantei-me e caminhei até a porta.
— Mari, caiu alguma coisa aí? — falei, alto o suficiente
para ser ouvida do andar de baixo.
Como não obtive resposta, saí do quarto e fui até a
escada. Ainda do alto dela avistei Mariana caída no chão
da sala, aparentemente desmaiada.
— Mari! — gritei, nervosa.
Desci rapidamente, levando Bernardo comigo, e parei
diante dela. Ia me abaixar para tentar acordá-la, quando
senti algo duro sendo encostado em minhas costas. Gelei
da cabeça aos pés ao ouvir a voz conhecida anunciar:
— Se não quiser levar um tiro, minha querida, é
melhor colaborar.

*****
Capítulo vinte e três –
Pesadelo

“Wrapped up, so consumed by


(Amarrada, tão consumida por)
All this hurt (Toda essa dor)
If you ask me, don't (Se você me
perguntar, não)
Know where to start (Sei por onde
começar)

Anger, love, confusion (Raiva, amor,


confusão)
Roads that go nowhere (Estradas que
levam a nenhum lugar)
I know that somewhere better (Eu sei
que existe algum lugar melhor)
Cause you always take me there
(Porque você sempre me leva lá)

Came to you with a broken Faith (Vou


até você com a fé esmaecida)
Gave me more than a hand to hold (Me
dê mais do que uma mão para segurar)
Caught before I hit the ground (Me
pegue antes que eu atinja o chão)
Tell me I'm safe, you've got me now”
(Diga que estou segura, você me tem
agora)

Take Me Home – Jess Glynne

MARCELO

Eu estava especialmente impaciente nesse dia. Por


mais que soubesse que Mariana ajudaria Alice no que
fosse preciso, a ideia de não estar com ela e com Bernardo
era meio aterrorizante. No meu trabalho na fazenda, eu
estava sempre por perto, pronto para correr para a casa
dela a qualquer sinal de fumaça. Mas agora, mesmo não
estando tão longe assim, me batia uma insegurança
enorme.
Se ela pudesse ouvir meus pensamentos, certamente
implicaria me chamando de superprotetor.
Não conseguia prestar muita atenção à reunião. Na
cadeira ao meu lado, seu Bernardo era voz ativa discutindo
sobre temas importantes, tendo sua fiel vira-lata sentada
no chão ao seu lado. Olhei para o animal e me concedi um
pensamento bom, pensando que Bernardo provavelmente
se daria muito bem com ela. Eu tive cachorros na minha
infância, e isso certamente a tinha tornado mais feliz.
Talvez eu adotasse algum em nossa casa nova, e...
Droga... ainda era apenas minha casa nova. Não
nossa. Porque eu ainda relutava em fazer o pedido a Alice
para que ela e Bernardo fossem morar comigo. Talvez o
fizesse naquele dia, depois da comemoração da noite.
Para o meu alívio, a reunião desse dia durou menos
tempo que o habitual. Todos estavam preocupados com a
mudança súbita no tempo e os fazendeiros que moravam
mais distantes logo se apressaram em sair, temendo pegar
aquela chuva pelo caminho. A estrada principal dali não era
o lugar mais atrativo para se dirigir em uma tempestade.
Enquanto seu Bernardo se despedia dos amigos,
segui para a caminhonete e abri a porta, deixando que
Paçoca entrasse na frente.
— Também está louca para ir para casa, não é? —
comentei com ela, que se sentou sobre o banco, me
olhando e virando levemente a cabeça para o lado, como
se entendesse. — É, eu também.
Meu celular tocou, causando-me surpresa. Olhei para
o visor e vi o número de casa, o que me deixou em alerta.
Alice não ligaria no meio de uma reunião se não fosse algo
urgente.
— Alice, tudo bem? — já atendi perguntando.
Contudo, a voz do outro lado da linha não era a de
Alice, mas a de Mariana.
— Marcelo, ele a levou. Ela e o Bernardo!
Meu sangue gelou por completo.

*****

Minutos antes...

ALICE
— Se não quiser levar um tiro, minha querida, é
melhor colaborar.
Que Guilherme era um grande filho da puta era algo
que eu já tinha conhecimento. Mas algumas coisas ali não
podiam deixar de me causar surpresa. A primeira era que
ele tivesse uma arma. E a segunda é que tivesse a
pretensão de usá-la contra mim para... sei lá o quê.
— O que você quer? — perguntei simplesmente. As
mãos firmes a segurar meu filho, tentando mantê-lo seguro.
— Primeiro, você vai pegar a chave daquele seu
carrinho ridículo. Precisei deixar o meu na estrada do lado
de fora da fazenda. Você vai dirigir nos levando até lá. — O
cano da arma saiu das minhas costas e ele caminhou até
parar na minha frente, ainda com a o revólver apontado
para mim. Olhou-me nos olhos e senti nojo de já ter me
relacionado com aquele porco imundo. — E sem essa cara
patética de medo, ninguém pode desconfiar.
Eu não poderia negar que sentia medo. Na realidade,
estava apavorada. Não por mim, mas pelo meu filho. E por
não fazer ideia do que aquele louco pretendia.
— Pra onde pretende me levar?
Eu não esperava que ele respondesse. Os olhos dele
estavam em brasas e tudo nas ações dele remetiam a uma
psicopatia, e eu não estava certa de que psicopatas
aceitassem contar a uma vítima sobre seus planos. Mas,
para a minha surpresa, esse era o caso dele:
— Fica calma que não pretendo machucar você ou o
moleque, a não ser que você insista em não colaborar.
Preciso de você para alimentar essa coisinha aí até
chegarmos à casa do meu pai. Anda, vamos!
Ele balançou a arma, em um sinal para que eu fizesse
o que ele mandou. Aquilo fez o meu pânico aumentar. Ele
não pretendia levar apenas a mim, mas também o
Bernardo. Ainda assim, insisti:
— Me deixe colocá-lo no berço dele e vou contigo para
onde você quiser.
— Você acha realmente que o meu interesse é em
você? Já disse, só preciso de você para garantir que essa
coisa aí fique viva e, de preferência, sem perturbar durante
a viagem. Ande logo, que estou com pressa.
Quando dei o primeiro passo em direção à mesa onde
estava a minha chave, olhei discretamente para Mariana e
senti um forte alívio ao ver que ela não apenas estava viva,
como começava a despertar. Movi silenciosamente os
lábios esboçando a palavra “calma”, a qual pretendia que
ela compreendesse da forma correta, e ela assim o fez.
Permaneceu imóvel, sem demonstrar que despertara a
consciência. No estado em que estava, eu não duvidaria se
Guilherme voltasse a agredi-la ou mesmo que atirasse
nela.
— Calma, Guilherme — falei, com uma leve ênfase no
nome dele para que Mariana ouvisse e soubesse de quem
se tratava.
Peguei as chaves e saí da casa, sempre com o cano
da arma pressionando minhas costelas. Fomos até o carro
e prendi Bernardo na cadeirinha do banco de trás. Da
forma como minhas mãos tremiam, eu não seria uma boa
motorista, então ao menos precisava dar a ele o máximo
possível de segurança.
— Anda logo com isso! — Guilherme reclamou,
sacudindo a arma. Voltei a reparar que os olhos dele
estavam absurdamente vermelhos. Estaria sob o efeito de
drogas?
Entramos no carro e ele deixou a arma encostada em
minha barriga, enquanto me ordenava começar a dirigir. Ao
passarmos pelo portão, percebi que tio Sebastião olhou
intrigado para o estranho sentado ao meu lado, mas eu
apenas pude acenar para ele, tentando fingir o máximo de
tranquilidade.
— Como conseguiu que te deixassem entrar? —
perguntei entre dentes, logo que passamos dos limites da
fazenda.
— Ninguém me viu entrar.
— E você acha que o porteiro não ficou no mínimo
desconfiado ao te ver sair, sem que tenha autorizado sua
entrada?
— Para o seu próprio bem, eu espero que não. Só
quero chegar com você à casa do meu pai tendo o mínimo
de stress possível.
Chegar à casa do pai dele... que diabos aquele idiota
pretendia com aquilo?
— Será que tenho o direito de saber o que você quer
comigo?
— Já disse que com você eu não quero nada, Alice.
Meu pai está nas últimas e essa é a única chance que eu
tenho de ele mudar aquele maldito testamento. Conhecer o
neto é a condição dele para que eu possa ficar com tudo.
Ah... é claro. Os lamentos pela doença do pai e o
discurso de que isso havia mudado sua visão sobre a vida
eram pura balela. A decisão de subitamente desejar
reconhecer o filho era por causa de uma maldita herança.
Como pude ser tão idiota por sequer ter pensado
nessa possibilidade?
— Aliás, é um moleque, não é? — ele perguntou,
parecendo lembrar-se subitamente de algo. — Contei pro
velho que minha namorada decidiu ter o filho na fazenda
do avô, mas ele realmente acha que mantive contato com
você esse tempo todo. Falei que era um menino, mas foi só
uma aposta. Se for uma menina... que inferno, vai ser um
problema a mais para eu conseguir uma explicação.
— É um menino — falei simplesmente. E eu nem
queria imaginar que tipo de resolução ele teria em mente
caso não fosse. Iria matar o bebê e roubar outro?
— Menos mal.
Eu deveria deixar o silêncio tomar conta do veículo,
especialmente porque a voz dele me irritava ao extremo.
Mas precisava entender qual era o plano daquele louco.
— Qual é exatamente o seu plano? Vai apresentar o
meu filho ao seu pai e depois vai nos trazer de volta?
Porque, assim... você poderia ter pedido isso com mais
educação, não precisava chegar aqui armado e com
ameaças.
Ele riu. Na verdade, gargalhou, de forma
completamente descontrolada. Eu nunca o tinha visto agir
assim.
— Gosto da sua calma e do seu sarcasmo, Alice. Mas,
não. Infelizmente, vocês vão ter que passar um tempo
comigo. Vou ter que assumir a paternidade do moleque e
pegar a guarda dele. Afinal, a herança ficará em parte no
nome dele e vou precisar da guarda para ficar com o
dinheiro. Mas isso só precisa ser no papel. Quando
resolvermos tudo, vocês poderão ir embora. Claro que
faremos um acordo, não vou querer a surpresa de você
entrando na justiça para ficar com o dinheiro, se fizer isso,
saiba que vou tirar de verdade a guarda dele de você.
Tenho o melhor escritório de advocacia do estado à minha
disposição, sabe disso.
Ele realmente estava drogado, mas não parecia ser
apenas isso. Estava claramente desnorteado e
desesperado. Nada naquele plano dele tinha qualquer
chance de dar certo, e ele não precisaria pensar muito para
se dar conta disso. Mas estava completamente fora de si. E
era isso o que me assustava mais.
Segui dirigindo com o cano da arma apontado para
mim, pensando em se Mariana teria conseguido levantar
para pedir ajuda. Ela tinha despertado, mas eu não sabia
se estava bem e se tinha conseguido compreender o que
acontecia. Torcia para que sim. O céu estava cada vez
mais escuro e os trovões não paravam, o que me deixava
ainda mais apreensiva.
Guilherme ordenou que eu parasse logo que
avistamos um carro – que deveria ser o dele – parado na
estrada de terra. Saí do veículo ainda sobre a mira do
revólver. Ele também saiu e exigiu:
— Agora pega esse moleque e vamos seguir no meu
carro.
— Preciso que você tire a cadeirinha — falei, logo que
peguei meu filho nos braços.
— Para de palhaçada, não vamos perder tempo com
isso.
— Vai querer que eu dirija, não é? Vai segurá-lo no
colo a viagem inteira?
O argumento fez com que ele olhasse para Bernardo e
fizesse uma careta. Precisei conter o meu ódio diante de tal
reação. Dava-me nojo pensar que aquele estúpido era o
progenitor do meu filho.
Graças a Deus não era o pai. Esse papel era de
Marcelo e sempre seria.
Convencido, ele começou a soltar a cadeirinha do
banco de trás, parecendo um pouco atrapalhado com isso.
O que era ótimo, porque me ajudava a ganhar tempo.
Marcelo não estava longe dali. Se Mariana tivesse
conseguido ligar para ele, ele teria chances de nos
alcançar e...
E o quê? Guilherme estava armado. E se surtasse de
vez e fizesse uma besteira? E se machucasse Bernardo?
Meu nervosismo aumentou, mas lutei para me manter o
mais serena possível. Enquanto ele transferia a cadeirinha
de um veículo para outro, em qualquer outra situação eu
poderia tentar desarmá-lo. Mas não com o meu bebê ali.
Não o colocaria em risco.
Com a cadeira instalada no outro carro, prendi
Bernardo, deixando-o em segurança, e depositei um beijo
em sua cabeça. Graças a Deus, ele dormia tranquilamente,
completamente alheio a toda aquela situação.
Entramos no carro e eu novamente fui obrigada a
dirigir. Mal recomeçamos a viagem e ele voltou a falar:
— Meu velho não pode saber que estou levando vocês
à força, e ele faz questão de te conhecer, então você vai ter
que interpretar um pouco. Logo que chegarmos lá vamos
ensaiar o seu discurso. Não vai me decepcionar. Lembra
que só quero esse garoto com o propósito de garantir
minha herança, se você foder com isso, não terei qualquer
pena de dar um fim a ele e a você.
— Além de sequestro, também está querendo ser
enquadrado em homicídio? Seu dinheiro não vai te livrar de
responder por esses crimes.
— Farei as coisas sem deixar rastros. Sumo com os
corpos e ninguém vai saber de nada. Aquela sua
empregadinha nem viu o que a atingiu, ninguém me viu
entrar na fazenda, e o porteiro que me viu sair mal teve
tempo de prestar atenção ao meu rosto. Só vai saber
contar que te viu saindo dirigindo o seu próprio carro. Você
é uma fracassada, Alice. Ninguém vai estranhar tanto
assim a ideia de que você simplesmente surtou e decidiu
fugir pelo mundo com seu rebento.
— Ninguém vai acreditar nisso, Guilherme.
— Claro que vai. Farei com que acreditem.
Ele não faria, e eu precisava fazer com que ele
compreendesse isso. Talvez o efeito de seja lá qual droga
ele estivesse usando reduzisse e eu conseguisse fazê-lo
retomar um pouco de lucidez antes de chegarmos ao
nosso destino. Teríamos algumas horas até lá.
— Por que está indo tão devagar, porra? Acelera isso!
— ele ordenou.
Ignorei a ordem, puxando outra pergunta:
— Como conseguiu me encontrar aqui na fazenda?
— Quando te liguei, você chamou a atenção de um
bicho. “Paçoca” — ele bufou, parecendo achar graça. —
Nome ridículo. Não sabia do que se tratava, mas olhei as
fotos antigas do seu facebook e encontrei umas suas com
um vira-lata, na legenda tinha o nome dele e a informação
de que você estava na casa dos seus avós.
— E como sabia onde ficava a fazenda? Nunca veio
aqui antes. — E se eu tinha chegado a mencionar com ele,
em algum momento, o nome da cidade onde ela ficava, eu
duvidava muito que se lembrasse.
— Alguém que tenta se esconder não deveria
conceder entrevistas, querida.
Entrevista... é claro! Eu tinha sido entrevistada há
alguns meses pelos estudantes, e a matéria tinha sido
publicada em um jornal online. Se Guilherme andou à
minha procura, não deve ter sido difícil achar tal
reportagem. Não duvidava que meus pais tivessem
compartilhado o link em suas redes sociais e me marcado,
como faziam com qualquer matéria a meu respeito. Me
stalkeando como estava, Guilherme provavelmente não
teve dificuldades em ver aquilo.
A matéria citava o nome da cidade e do meu avô. Em
Vale das Orquídeas, em qualquer lugar que alguém
parasse perguntando sobre a fazenda do seu Bernardo
Antunes receberia instruções precisas sobre como chegar.
Claro que a intenção inicial de me esconder não era,
de forma alguma, tão radical. Eu não poderia imaginar que
o louco do meu ex pudesse estar interessado em me
sequestrar juntamente com o meu filho.
Mais um trovão forte ecoou dos céus e, quase que ao
mesmo tempo, as primeiras gotas grossas de chuva
começaram a cair sobre o para-brisa. Há poucos meses eu
tinha me visto em uma situação de tempestade enquanto
dirigia naquela mesma estrada, e a reação de pânico tinha
sido inevitável. Agora, a coisa ficava infinitamente pior com
aquele louco apontando uma arma para mim e com o meu
filho no banco de trás. Mas exatamente por isso é que eu
lutava para me manter o mais equilibrada possível. Não
estava sendo fácil. O som da chuva caindo violentamente
sobre a lataria do veículo fazia minhas pernas tremerem.
Foi então que olhei pelo retrovisor e uma onda de
esperança varreu o meu peito. Havia um carro vindo ao
longe, com uma velocidade crescente – alta demais para
as condições da estrada com chuva. Por conta do vidro
embaçado, ainda demorei a reconhecer o veículo, mas
parecia uma caminhonete azul, como a do meu avô.
Porém, a sensação foi subitamente substituída
novamente pelo medo quando Guilherme ordenou,
mostrando também ter visto o mesmo que eu:
— Acelere agora. Se aquele carro nos alcançar, eu
atiro nessa coisinha que está dormindo ali atrás.

*****
Capítulo vinte e quatro –
Salvamento

“Hold on to me as we go (Prenda-se a
mim enquanto seguimos)
As we roll down this unfamiliar road
(Enquanto passamos por esta estrada
desconhecida)
And although this wave is stringing us
along (E embora esta onda esteja nos
amarrando)
Just know you're not alone (Apenas
saiba que você não está sozinha)
'Cause I'm gonna make this place your
home (Porque vou fazer deste lugar o
seu lar)

Settle down, it'll all be clear (Acalme-se,


tudo vai ficar claro)
Don't pay no mind to the demons (Não
dê atenção aos demônios)
They fill you with fear (Eles enchem
você de medo)
The trouble it might drag you down (A
dificuldade pode trazer você para baixo)
If you get lost, you can always be found
(Se você se perder, sempre poderá ser
encontrada)
Just know you're not alone (Apenas
saiba que você não está sozinha)
'Cause I'm gonna make this place your
home (Porque vou fazer deste lugar o
seu lar)

Home – Phillip Phillips

MARCELO

“Ele a levou. Ela e o Bernardo!”


A frase ainda ecoava na minha cabeça, tentando fazer
algum sentido. Em questão de milésimos de segundos, um
turbilhão de possibilidades inundou a minha mente e eu
nunca tinha vivenciado uma sensação de medo tão
profunda quanto aquela.
Levaram Alice e o meu filho. Quem? Para onde? Por
quê?
Do outro lado da linha, Mariana atropelava as
palavras, narrando que um homem tinha invadido a casa e
lhe acertou com algo na cabeça, fazendo-a desmaiar.
Quando retomou a consciência, viu o homem apontando
uma arma para Alice, obrigando-a a sair junto com ele,
levando Bernardo.
“O nome dele era Guilherme”.
O complemento, de repente, fez tudo fazer sentido. O
ex de Alice. O maldito que há algum tempo vinha
enchendo-a com a insistência completamente repentina de
que queria assumir o bebê. Desde que ela trocara o
número do celular que tais ligações pararam e isso me
trouxe uma falsa sensação de paz. Mas no fundo, de
alguma forma, eu sabia que existia alguma razão a mais
por trás das intenções dele.
Ainda segurava o telefone junto ao ouvido, escutando
o restante do relato de Mariana, quando entrei na
caminhonete e arranquei dali. Cheguei a ouvir os gritos do
seu Bernardo, que acabei deixando para trás, mas não
parei. O maldito Guilherme não teria outro caminho para
sair da fazenda que não fosse a estrada de terra que
levava ao centro da cidade, onde ele teria acesso a
rodovias que levariam para seja lá onde ele pretendesse ir.
Pelo tempo que Mariana relatou que eles haviam saído de
lá, se eu fosse rápido, teria chances de alcançá-los.
Eu precisava alcançá-los, a qualquer custo. O céu
estava completamente escuro e uma forte chuva estava
prestes a cair. Se o tal Guilherme ameaçava Alice com uma
arma, era muito provável que a tivesse obrigando a dirigir e
isso me preocupava ainda mais. Lembrei-me do dia que ela
teve uma crise de pânico ao volante, quando chovia muito.
Na situação atual, ela deveria estar apavorada.
Se algo acontecesse com ela... Se qualquer coisa
acontecesse a ela ou ao meu filho, eu iria arrancar todos os
órgãos do corpo daquele desgraçado!
Encerrei a ligação pedindo que Mariana ligasse
diretamente para o delegado Orlando, que era amigo
pessoal do seu Bernardo – afinal, todo mundo naquela
cidade se conhecia – e informasse o ocorrido. Esperava
que ele tomasse medidas a tempo e fechasse a estrada
para que aquele infeliz não conseguisse sair da cidade. Em
seguida, joguei o celular no banco do carona, só agora
reparando que estava levando Paçoca comigo. Ela estava
sentada, olhando fixamente para a frente e não para a
janela ao seu lado – como geralmente fazia quando saía de
carro. Parecia de alguma forma compreender que havia
algo grave acontecendo.
Segui direto pela entrada da fazenda quando a chuva
começava a cair. Avistei o carro de Alice parado em um
ponto mais à frente e aquilo fez o meu peito explodir em
uma mistura insana de sentimentos e pensamentos. Ela
estaria ali? Estaria bem? Estaria viva?
Freei e desci da caminhonete, indo até o carro e
encontrando-o vazio. As portas estavam destrancadas e
abri para olhar o interior rapidamente, em busca de alguma
pista. Reparei que a cadeirinha de segurança do Bernardo
não estava ali. Voltei a olhar para fora e reparei que
Paçoca tinha me seguido e farejava insistentemente o chão
poucos metros à frente de onde estávamos. Vi ali, sobre a
terra molhada, marcas de pneu que começavam ali. Eles
haviam seguido em outro carro.
— Vem, garota! — chamei, e ela logo obedeceu,
correndo ao meu lado de volta à caminhonete. Quando
entramos, ela se sacudiu, molhando ainda mais o interior
do veículo.
Voltei a arrancar com o carro, ouvindo os pneus
derraparem na lama que já se formava na estrada. Precisei
acender os faróis, porque não dava para enxergar nada à
frente. O desespero ia cada vez mais tomando conta de
mim, até que avistei os faróis acesos de outro veículo.
Paçoca ficou de pé, apoiando as patas dianteiras no painel,
e latiu. Acho que ela pensava o mesmo que eu.
Só podiam ser eles.

*****

ALICE

Se eu já estava a um passo de entrar em pânico tendo


uma arma apontada para mim, a coisa se tornava
terrivelmente mais assustadora quando isso ocorria com o
meu filho.
Guilherme estava virado para trás no banco do carona,
com o revólver apontado para Bernardo e os olhos fixos na
caminhonete que nos seguia. Continuava a gritar para que
eu acelerasse e, naquele momento, eu faria qualquer coisa
que ele mandasse. Minhas mãos tremiam no volante e o pé
pisava fundo no acelerador. Em uma curva leve, os pneus
deram uma derrapada na pista molhada e tal som penetrou
em meus ouvidos como facas afiadas. O gatilho do
acidente que tirou a vida da minha avó já tinha sido
acionado e se somava a todo o desespero da situação.
Bernardo e eu estávamos nas mãos de um louco. Se eu
não fizesse o que era ordenado, ele mataria o meu filho.
Fazendo, corria o risco de eu mesma nos matar em um
acidente, porque unia o fato de eu não estar em condições
psicológicas de dirigir, junto à chuva, à estrada molhada, e
ainda combinada com a alta velocidade.
Tudo completamente errado. O que me dava uma
certeza apavorante de que iríamos morrer. Um pavor
crescente, que foi atordoando ainda mais a minha mente,
deixando-me trêmula e tonta. A visão já começava a falhar,
sendo encoberta por pontos pretos e brilhantes. Sentia
como se fosse desmaiar a qualquer momento. Mas não
podia. Pelo meu filho, eu não podia.
Olhei pelo retrovisor, vendo que a distância entre
Marcelo e eu havia aumentado, embora ele também
acelerasse cada vez mais. O homem que eu amava lutava
para me alcançar, e eu era obrigada a fugir dele.
A chuva batia contra o para-brisa de forma violenta, e
a cada trovão o meu tremor aumentava. Bernardo acordou,
começando a chorar, e isso me descontrolou por completo.
Contudo, sabia que, ainda que estivesse calma, nada me
prepararia para o que estava prestes a acontecer. Após
virar em uma curva mais acentuada, deparei-me com os
faróis acesos de um veículo grande, aparentemente um
caminhão, que vinha na contramão cortando outro carro.
Agindo por reflexo, girei o volante, indo para fora da pista
de encontro a qualquer coisa que não soube o que era.
Apenas senti o impacto antes de tudo ficar escuro.

*****

MARCELO

Tudo aconteceu tão rápido que mal consegui


processar. Vi a luz de um veículo na contramão que quase
colidiu com o carro onde Alice e meu filho estavam, que
conseguiu desviar, chocando-se violentamente contra uma
árvore. Precisei girar rapidamente o volante também para
não bater no que agora eu via ser caminhão, os pneus da
caminhonete derraparam, mas ainda assim consegui parar
sem um choque maior. A freada brusca fez Paçoca ser
impulsionada para frente e cair no chão do veículo. Saí do
carro em desespero. Eu só queria ver se Alice e Bernardo
estavam bem, mas algo atravessou o meu caminho. Estava
quase alcançando o carro quando a porta do lado do
passageiro foi aberta e o filho da puta saiu por ela,
mancando, com a cabeça sangrando e parecendo
completamente atordoado. Reparei que ele trazia um
revólver em mãos, mas isso não me intimidou nem por um
segundo. Cerrei o punho com força e esmurrei a cara dele.
No segundo soco, ele foi ao chão e a arma escapou de sua
mão, perdendo-se no mato molhado da beira da estrada.
Ouvi o som de sirenes, o que me indicou que a polícia
chegava. Deixei então que os policiais que saíram da
viatura cuidassem daquele verme. Eu adoraria ter o prazer
de continuar surrando-o até matá-lo, mas existia algo mais
urgente a ser feito.
Assim, corri pela distância que ainda me separava do
carro. Quando cheguei perto, a primeira onda de alívio me
dominou ao ouvir o som do choro de Bernardo. Entrei pela
porta aberta do carona, imediatamente constatando que ele
estava protegido pela cadeirinha de segurança. Nem queria
imaginar o que poderia ter acontecido com ele se Alice não
tivesse provavelmente tido a preocupação de levá-la. Já
Alice...
Desesperei-me ainda mais ao vê-la com o rosto
coberto por sangue e desacordada.
— Alice! — gritei. Aproximei-me mais, tocando
levemente a face dela e passando a falar mais baixo. — Ei,
amor... Acorda, fala comigo. Vamos... você é teimosa
demais para se render assim. Mostra pra mim que sou uma
porcaria de um cowboy superprotetor, como você mesma
diz, sem motivos, porque a minha garota é forte. Vamos,
Alice, fala comigo!
O choro de Bernardo ficou mais intenso e reclinei-me
por um momento para o banco de trás, passando de leve a
mão pelo bracinho dele para mostrar que eu estava ali. O
papai dele estava ali, e tudo ficaria bem.
Embora eu soubesse que nada ficaria bem se Alice
não estivesse bem.
Senti as lágrimas quentes se misturarem à água da
chuva em meu rosto e voltei a me focar em Alice. Meu
coração pareceu parar de bater por um instante, voltando
em seguida com força total quando vi as pálpebras dela
tremerem, abrindo-se lentamente em seguida.
— Bernardo? — ela pronunciou, assustada e fraca,
antes que conseguisse focar a visão em mim.
Sorri, segurando as mãos dela junto às minhas.
— Ele está bem, querida. Nosso filho está bem.
— Ele está chorando...
— Está assustado, mas está bem. A cadeira o
protegeu. Vocês dois estão bem e a salvo agora.
Só então ela pareceu retomar um pouco mais a
consciência e piscou, olhando-me.
— Ei, cowboy... Você nos salvou?
Olhei-a profundamente por alguns instantes,
desviando os olhos para Bernardo por um segundo, antes
de responder.
— Foram vocês dois que me salvaram. São tudo para
mim.
Ouvi o som de outra sirene e olhei para fora, vendo
que uma ambulância chegava ao local. Queria eu mesmo
tirar Alice daquele carro em meus braços e levá-la, junto
com Bernardo, para casa, mas sabia que não poderia fazer
isso. Ela podia estar machucada, com algum osso
fraturado, e eu precisava deixar que os paramédicos
fizessem esse trabalho.
Senti algo peludo e molhado pulando em cima de mim
e vi que era Paçoca que, parecendo preocupada, tentava
lamber o rosto de Alice. Precisei segurá-la.
— Calma, garota. Ela está bem. Eu também quero
pular em cima dela, mas não podemos agora.
Obediente, a cachorra pulou para o banco de trás,
indo verificar Bernardo. Meu filho parou de chorar,
distraindo-se com sua amiga peluda, e logo soltou um riso
que foi como um alívio para a minha alma.
Um leve sorriso surgiu entre os lábios de Alice.
Quando a equipe da ambulância abriu a porta do lado dela
para tirá-la dali, depositei um beijo leve em seus lábios,
como uma forma de garantir que tudo ficaria bem.
Tudo ficaria bem.

*****
Capítulo vinte e cinco -
Onde deveríamos estar

“Yeah, I see us in black and white (Sim,


eu nos vejo em preto e branco)
Crystal clear on a star lit night (De
forma cristalina em uma noite iluminada
por estrelas)
In all your gorgeous colors (Em todas
as suas cores maravilhosas)
I promise that I'll love you for the rest of
my life (Eu prometi que te amaria pelo
resto da minha vida)
See you standing in your dress (Te vejo
parada com seu vestido)
Swear in front of all our friends (Juro
diante de todos os nossos amigos)
There'll never be another (Nunca haverá
outra pessoa)
I promise that I'll love you for the rest of
my life” (Eu prometo que vou te amar
pelo resto da minha vida)

Black and White – Niall Horan

Um mês depois...
ALICE

O quarto mesversário de Bernardo foi comemorado


com muita alegria com uma festa que meu avô fez questão
de oferecer para a família e os amigos próximos. O último
mês tinha sido bem difícil depois do ocorrido. Graças a
Deus, Bernardo não teve qualquer ferimento do acidente, e
os meus foram bem leves em vista do que poderia ter sido,
já que não estava usando cinto de segurança. Um corte no
supercílio, que me rendeu alguns pontos e uma pequena
cicatriz, uma fratura no pulso direito e em duas costelas,
além de algumas escoriações. Ainda assim, passei a
primeira semana com o corpo absurdamente dolorido.
Passei esse tempo na casa anexa com Marcelo – até
porque, não tinha qualquer condição de subir e descer
escadas – sendo muito mimada e muito amada. Mesmo
depois de um trauma tão grande quanto aquele, eu me
sentia segura e protegida. Ainda assim, não desgrudava de
Bernardo nem mesmo para dormir. Ainda tinha pesadelos
que Guilherme voltava para tentar levá-lo, embora
soubesse que ele não teria mais razões – ou condições –
para isso.
Enquanto aguardava o julgamento pela tentativa de
sequestro, Guilherme estava em uma clínica para
dependentes químicos, onde fora internado pela mãe. O
pai dele morrera uma semana após o ocorrido, ainda a
tempo de alterar mais uma vez o testamento – de forma
bem negativa para o filho.
Eu ainda estava com uma tala no braço, me
recuperando da fratura, mas isso não me impedia de curtir
a festinha. Meus pais estavam ainda preocupados comigo
depois de tudo o que ocorrera, mas ao me verem tão feliz
com Marcelo até mesmo pararam de sugerir que eu fosse
para a casa deles. Em uma das mesas distribuídas pelo
gramado, estavam sentados juntamente com Mariana, com
quem conversavam. Meus avô convidara alguns amigos
seus – incluindo o delegado que nos ajudou com o ocorrido
com Guilherme, e no momento estava em uma rodinha
com eles, contando orgulhoso sobre o neto. Paçoca seguia
fiel ao seu lado, aproveitando para comer os pedaços de
churrasco que davam para ela. Cássio também estava lá, e
dessa vez levou a namorada para nos apresentar. Achei
ela linda e muito simpática, mas a melhor parte de
conhecê-la foi que finalmente isso pareceu ter feito a
implicância de Marcelo com ele reduzir um pouco. As
crianças do futebol também foram, e eram a alegria da
festa. Não paravam de correr de um lado para outro. Eu os
observava pensando no dia que meu Bernardo estaria
daquele tamanho, correndo como eles por aquela fazenda.
Porque eu não me imaginava criando meu filho em
nenhum outro lugar.
Já Marcelo, não soltava nosso filho em momento
algum. Estavam lindos, ambos com seus chapéus de
cowboy e usando camisa de flanela combinando.
Meus dois cowboys...
No momento em que eu voltava de dentro da casa,
onde tinha ido para usar o banheiro, avistei os dois.
Marcelo conversava com o tio Sebastião. Parei por um
instante, observando ao meu redor, quando Cássio se
aproximou, acompanhado pela Letícia, sua namorada.
— Precisamos ir, Alice.
— Mas já? — reclamei. — Não vão nem esperar o
bolo?
Foi Letícia quem explicou, empolgada:
— Os uniformes das crianças vão chegar hoje,
precisamos estar lá para receber.
Sorri, igualmente animada. Cássio havia enfim
conseguido o espaço para seu projeto social, junto ao
patrocínio de duas grandes empresas da região. No
espaço, teria várias atividades como música, artes e, claro,
o futebol. A ideia dele era em breve expandir e colocar
mais opções de esportes.
— Estou tão feliz que você conseguiu! —
comemorei.
Letícia bateu seu ombro ao do namorado e
perguntou:
— Já falou com ela?
— Ainda não — ele respondeu, parecendo um
pouco tímido. — Deixei para falar em um momento em que
Alice estivesse livre.
— Falar sobre o quê? — indaguei, curiosa.
— Sei que deve ser uma proposta meio ridícula
perto de tudo o que você já fez, mas... Vamos precisar
contratar alguns professores para o projeto, e... bem,
pensei no seu nome.
Travei por um instante, achando aquilo
completamente inusitado. Eu jamais tinha pensado em ser
professora de futebol para crianças, mas a ideia
subitamente me pareceu tão incrível que eu nem sabia
porque não a havia cogitado ainda. Eu adorava aquelas
crianças e a ideia de poder ajudá-los em algo era
simplesmente maravilhosa.
E, o melhor... tudo aquilo bem ali.
Cássio, no entanto, ainda estava meio tímido com o
convite.
— Não se sinta obrigada a aceitar, por favor. Até
porque, o salário não será grande coisa. E também pode
ser temporário pelo tempo que você ainda ficará por aqui.
Será apenas duas ou três vezes por semana, então você
terá como continuar ajudando o seu avô. Ele cedeu o
campo da fazenda, aliás, então as aulas continuarão sendo
aqui.
Sorri, realmente feliz com o convite. Tomei fôlego
para responder quando Marcelo se aproximou, com
Bernardo nos braços e trazendo meu celular em mãos.
— Desculpa atrapalhar, é que você esqueceu seu
celular comigo, Alice. Ele acabou de tocar, mas parou
antes que eu chegasse aqui. — Ele me entregou o
aparelho, ao qual peguei, ainda pensando na proposta de
Cássio.
— Nós já estávamos de saída — Cássio anunciou,
voltando a me olhar. — Pode pensar na proposta com
calma, Alice. Na terça eu virei para o treino das crianças,
daí a gente conversa.
Sorri, assentindo, ainda sem conseguir falar pelo
impacto da surpresa. Após as despedidas, o casal se foi e
Marcelo me olhou, curioso.
— Algum problema?
— Ah, não... — Olhei para o visor do telefone, vendo
o número que tinha me ligado. — Deve ser telemarketing
ou coisa do tipo, não conheço esse número.
— Escuta, Alice... — ele começou, fazendo com que
eu voltasse a olhá-lo. Segurou a minha mão, levando-me
até a varanda. — Já tem um tempo que minha casa está
pronta, e acho que já passou da hora de eu liberar a casa
dos seus pais. Eles têm vindo mais para cá por causa do
Bernardo, e não é justo terem alguém ocupando a casa
deles. Além do mais, eu preciso ter meu próprio espaço
para recomeçar a minha vida.
Aquilo fez meu coração despedaçar. Oras, não seria
nada demais, o sítio dele ficava a menos de vinte minutos
dali, e ele trabalhava na fazenda do meu avô, eu
continuaria a vê-lo todos os dias, seria simples passarmos
algumas noites juntos. Mas estar praticamente vivendo
com ele nos últimos tempos tinha virado algo tão natural
para mim. E ele era pai do Bernardo – tanto no papel
quanto no coração. Aquele era um vínculo que jamais iria
se quebrar.
Mas parecia muito errada a forma como as coisas
pareciam seguir.
— Eu sei. Eu entendo — foi o que eu consegui, por
fim, comentar.
Bernardo reclinou-se, apoiando a cabeça no ombro
do pai e começando a fechar os olhinhos. Já estava na
hora do soninho dele. E ver a forma como ele se sentia
seguro e acolhido para isso nos braços do pai fazia aquela
separação me parecer ainda mais injusta.
— Mas na realidade, eu não queria exatamente
recomeçar a minha vida — ele pronunciou, fazendo com
que eu desviasse os olhos de Bernardo para ele. — O que
eu queria era começar a nossa vida. Vocês são a minha
família, Alice. Não vejo sentido em um recomeço sem
vocês.
Ergui uma sobrancelha, surpresa
— Está dizendo que quer eu vá morar com você,
cowboy?
Ele negou.
— Não. Não apenas morar. Quero que você venha,
junto com o Bernardo, viver comigo. Sei que seus sonhos
vão além disso, mas o que quero é criar o nosso filho... ou
melhor, os nossos filhos, porque a Beatriz também faz
parte dos planos, aqui em Vila das Orquídeas. Que eles
venham nos acompanhar no nosso trabalho na fazenda e
corram soltos por aí, nadando no lago, andando a cavalo,
ou até jogando bola como você. Quero que aquela casa
seja nossa, que a gente tenha nosso próprio cachorro,
nossos cavalos, talvez algumas galinhas e os bichos que
você quiser. Quero a gente conversando todo dia na
varanda, olhando as estrelas ou fazendo com nossos filhos
aquela brincadeira estúpida de ver coisas nas nuvens.
— Não é estúpida — rebati, com a voz já falhada
pela emoção.
Eu ri levemente, mas ele permaneceu sério e
continuou:
— Depois, quero colocá-los para dormir contando
histórias, e ir para o quarto com você, fazer amor contigo
até a exaustão. Quero adormecer ao seu lado e acordar
contigo em meus braços por todos os dias. É isso o que eu
quero. Mas para isso preciso saber o que você quer.
Por alguns instantes, vi-me sem palavras, sentindo
um nó se formar em minha garganta e uma emoção
desmedida inundar o meu peito.
Ele tinha acabado de descrever tudo o que eu
também mais queria.
Ia dizer isso a ele, mas meu celular voltou a tocar,
cortando a emoção que nos envolvia. Olhei para o aparelho
em minha mão, pensando em recusar a chamada.
— Atenda. Pode ser importante — Marcelo
aconselhou.
Decidi fazer isso.
— Alice Antunes! — uma voz masculina do outro
lado da linha ressoou, animada. Que luta que foi conseguir
o seu número. Consegui o da casa de seus pais na
semana passada e foram eles que me passaram o seu
contato.
Em um primeiro momento, a última informação me
trouxe alívio, já que meus pais jamais passariam meu
telefone a alguém que tivesse qualquer intenção ruim.
Porém, em seguida, confesso que fiquei levemente
incomodada por eles terem feito aquilo sem me avisar.
Conversaria com eles a respeito mais tarde.
De qualquer maneira, segui na dúvida até o homem
se apresentar. Era presidente de um clube grande de São
Paulo e eles estavam interessados em me contratar.
Mas o que estava acontecendo? Primeiro Cássio,
depois Marcelo, e agora aquilo. Por acaso era o dia das
grandes propostas?
Deixei que ele falasse o que queria, apenas ouvindo.
Em alguns momentos, tampava o microfone e falava para
Marcelo do que se tratava. Ele me olhava atento e
levemente aflito. Até que meu avô o chamou e ele se
afastou, bem quando o sujeito terminava tudo o que tinha
para me dizer. Não pensei nem ao menos por meio
segundo antes de dar a minha resposta:
— Obrigada, fico muito honrada com o convite. Mas
peço desculpas, porque vou recusar a proposta.
Um breve silêncio ocorreu do outro lado da linha. Era
um clube grande, que embora fosse do mesmo patamar do
que eu trabalhei, era conhecido por dar uma maior
valorização ao futebol feminino. Eu sabia que os salários
eram bons e que havia um reconhecimento lá dentro. Ele
provavelmente não esperava pela minha resposta.
— Mas... você ainda nem olhou o contrato.
— Não preciso. Nem perca tempo me enviando.
— Como eu te disse, o início é para daqui a seis
meses. Sabemos que teve um bebê. Mas se quiser um
prazo ainda maior, podemos negociar para até um ano, e...
— Não é necessário, senhor. Mesmo. Eu não vou a
lugar algum.
Olhei para Marcelo, que agora se afastava do meu avô
e vinha em minha direção com o nosso filho nos braços.
Sorri.
— Não vou a lugar algum — repeti. — Estou
exatamente onde preciso estar.
Desliguei a ligação no mesmo momento em que o meu
cowboy parou diante de mim, nitidamente preocupado com
o teor da ligação.
— E aí? — ele perguntou, aflito.
— Acho que vou precisar pensar.
Ele engoliu em seco, tenso com minha resposta.
— A proposta foi boa?
Sorri ainda mais.
— A proposta da qual estou falando foi perfeita. Eu só
preciso pensar sobre a questão do cachorro. Com um
quintal enorme daqueles, acho que deveríamos adotar logo
dois.
Ele ainda ficou sem reação por alguns segundos,
parecendo processar o que eu havia dito. Até que sorriu.
Aquele sorriso lindo que há tempos tinha me seduzido. E
se inclinou, ainda segurando Bernardo, depositando um
beijo nos meus lábios.
Aquilo apenas reforçou a minha certeza: eu estava
exatamente onde deveria estar.

*****
Epílogo

“Another aeroplane (Outro avião)


Another sunny place (Outro lugar
ensolarado)
I'm lucky I know (Sou sortudo, eu sei)
But I wanna go home (Mas eu quero ir
pra casa)
I've got to go home” (Tenho que ir pra
casa)

Home - Michael Bublé

Três anos depois...

MARCELO

— Vai, time da mamãe!


Acompanhei Bernardo nas palmas, enquanto ria da
forma como ele se referia ao time infantil feminino que
representava o município de Vale das Orquídeas no
campeonato regional. Era o dia da final e já quase no final
do segundo tempo a partida continuava empatada, até que
uma das meninas do nosso time marcou, consagrando a
vitória. Ali, na arquibancada do campo de futebol, eu
estava torcendo ao lado de seu Bernardo – acompanhado
por sua inseparável e agora ainda mais velha cachorra – e
da dona Sueli, uma viúva que havia comprado uma
fazenda na região e que ele conhecera há dois anos em
uma das reuniões de fazendeiros. Os dois andavam muito
próximos desde então, e embora não assumissem nada a
gente sabia que havia entre eles um sentimento que ia
além da amizade.
Em pensar que, há alguns anos, quando me separei
da minha ex-mulher, cheguei até mesmo a desacreditar do
amor. Agora, além de ter encontrado a mulher da minha
vida, ainda presenciava meu patrão encontrar um novo
amor depois dos setenta anos de idade.
Mariana também estava lá, mas um pouco afastada de
nós, junto a um grupo de familiares. Uma de suas
sobrinhas era jogadora da equipe treinada por Alice.
Sobre meus ombros, estava Bernardo, agora com três
anos de idade, que era provavelmente o ser humano mais
animado de toda a torcida. Ele gostava de futebol e de
cavalos. Mas mais de cavalos, no fim das contas. Um mini
cowboy.
Quando o juiz apitou o final do jogo, vi Alice invadir o
campo, sendo abraçada por suas meninas. Aquele projeto
era muito importante para ela e era maravilhoso ver o
quanto estava realizada em seu trabalho. Por muito tempo
eu tive medo de que um dia ela viesse a se arrepender de
ter largado a carreira como jogadora, mas ela parecia ter
encontrado sua verdadeira vocação para ensinar aquelas
crianças. O projeto do Cássio – que agora eu já não
achava tão babaca assim – havia crescido e se expandido
para outras cidades da região, e agora oferecia um número
enorme de atividades. Eu mesmo já trabalhava com eles,
como voluntário. Durante três horas por semana eu
auxiliava as sessões de equoterapia que eram realizadas
na fazenda. Confesso que era um trabalho recompensador.
A torcida foi se dispersando. Mariana, Sueli e seu
Bernardo seguiram para a fazenda, para os preparativos do
churrasco organizado para comemorar a esperada vitória
do time. Já eu, fui até a saída do campo, levando Bernardo
junto. Ele não parava de falar sobre o jogo e estava
ansioso para encontrar a mãe.
Não o julgo. Eu também estava.
Passados alguns minutos, avistamos Alice saindo.
Bernardo se soltou da minha mão e correu, sendo recebido
pelos braços da mãe, que o pegou no colo, enchendo-o de
beijos. Fiquei parado por alguns instantes, pensando que
poderia facilmente passar o resto da vida observando
aqueles dois que eram o maior tesouro da minha vida. Ela
veio até mim, trazendo Bernardo no colo e depositando um
beijo nos meus lábios.
— Parabéns, minha campeã — falei, logo que nossas
bocas se afastaram.
— Obrigada, meu cowboy — ela rebateu, me olhando
de forma provocadora. Sabia que à noite comemoraríamos,
só nós dois, aquela vitória em grande estilo. — Onde estão
todos, já foram para a fazenda?
— Vovô foi acender a churrasqueira! — Bernardo
contou o que seu avô havia lhe dito que faria quando se
despediu na hora de ir embora.
— Nossa, que delícia! Só falta a gente então? — Alice
brincou.
— Sim, mamãe! Vamos logo, eu tô com fome.
— Então vamos nos apressar e... — ela se calou
subitamente, fechando os olhos.
Apressei-me em tirar Bernardo do colo dela e colocá-lo
no chão, amparando-a.
— Alice, tudo bem?
— Está. Foi só uma tontura. Acho que foi a emoção do
jogo.
Aquilo me intrigou. Alice passara por diversas
emoções nos últimos anos, e eu só me recordava de vê-la
com aquelas tonturas em algumas ocasiões, quando
estava...
Seria possível?
Caminhamos até o carro e abri a porta de trás,
ajeitando Bernardo na cadeira de segurança. Alice se
preparava para entrar, mas detive-a.
— Ei, Alice... está mesmo tudo bem?
— Está tudo ótimo, cowboy. Tudo mais do que ótimo.
— E essa tontura? Você não costuma ter isso. Não
acha melhor ir ao médico?
— Vamos recomeçar com a superproteção?
— Depende. Tenho motivos para isso?
Ela bufou e revirou os olhos, Percebi que tentou
segurar um riso, sem sucesso. Ela estava me escondendo
alguma coisa. Era óbvio.
— Eu decorei todo um roteiro para te contar hoje à
noite quando estivéssemos sozinhos, mas sou péssima
para fazer surpresas.
— Contar o quê?
— Te dou três chances de adivinhar.
Travei por um instante. Ela não faria aquele mistério
todo se não fosse algo realmente grande. E não estaria tão
leve e sorrindo se não fosse uma notícia maravilhosa.
Eu não podia acreditar. Será que ela estava...
— Você só teve essas tonturas quando estava
esperando o Bernardo.
— E isso quer dizer que...
Voltei a travar, com medo de estar enganado nas
minhas suspeitas.
— Não brinca assim comigo, moça. Não me diga que
você está... que nós vamos...
— É... temos mais um mini-cowboy a caminho.
Ela levou as mãos à barriga. Fiquei imóvel, congelado
por alguns instantes, até sentir lágrimas surgindo dos meus
olhos e um sorriso bobo nascendo em meu rosto.
— Vamos ter mais um filho? — perguntei, como um
bobo que custava ainda a acreditar naquilo.
— Ou uma filha. Lembra que a nossa Beatriz ainda
está nos planos.
Vibrei, enfim tendo uma reação. Eu a abracei e
levantei-a em meus braços, girando com ela. Quando
parei, nós nos beijamos. Um beijo intenso, apaixonado e
carregado da mais pura felicidade.
Quando nos separamos e voltei a colocá-la no chão,
perguntei:
— Quando descobriu? Por que não me contou antes?
— Tive a confirmação ontem, mas decidi que seria
melhor contar hoje à noite, porque... Sinceramente,
cowboy, você me deixaria participar do jogo de hoje se eu
tivesse te contado?
— Mas é claro que não! Ficou perto do campo,
gritando, correndo... podia ter levado uma bolada sem
querer. E no final, aquelas crianças todas pulando em cima
de você. Alice, não pode se arriscar assim.
Ela ergueu uma sobrancelha.
— Vamos recomeçar a novela da superproteção,
cowboy? Devo relembrar toda aquela história sobre eu
estar grávida e não doente?
— E eu vou ter que te relembrar a agir com juízo,
moça? Precisa se cuidar, vamos precisar rever essa coisa
do seu trabalho, procurar outro jeito e...
Ela me calou com uma um beijo. Dessa vez, mais
rápido
— Depois discutimos sobre isso, ok? Vamos que meu
avô está nos esperando. Ele vai gostar da notícia de que
terá mais um bisneto, ou uma bisneta.
— Vai. E tenho certeza de que vai concordar comigo.
— Arg, cowboy! Vamos logo!
Fazendo-se de irritada, ela entrou no carro. Dei a volta
e fiz o mesmo, entrando pela porta do motorista. Porém,
nossa irritação de mentira logo se diluiu por completo.
Durante a curta viagem demos a notícia ao Bernardo, que
vibrou com a ideia de que agora seria um irmão mais velho.
Fomos durante todo o caminho conversando, rindo e
brincando como uma família feliz.
Como a família que sempre sonhei ter durante toda a
minha vida.
Agora ela era real.

FIM

*****
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UM PRESENTE INESPERADO

"Será que a chegada do Natal irá promover alguns milagres


nas vidas de Eduardo, Sara e da pequena Joana?"
A solidão sempre foi minha amiga. Como um escritor de
sucesso, usava e abusava dela, mantendo o mundo do
lado de fora dos muros da minha casa. Só que tudo mudou
com um telefonema anunciando a morte do meu pai, com
quem não falava há anos.
Só que eu não poderia esperar que essa notícia viria
acompanhada com a surpresa de que ele deixara para trás
um bebê; uma irmã da qual sequer sabia da existência e
cuja mãe havia simplesmente desaparecido do mapa.
Para completar o pacote, quando resolvo cuidar da menina,
enquanto decido sobre seu destino definitivo, a ajuda que
tanto precisava vem na forma de Sara, uma vizinha mal
humorada que, por razões desconhecidas, nunca foi com a
minha cara.
Mas agora precisamos unir forças para dar conta de cuidar
de uma criança, enquanto lidamos com a atração
irresistível e incontrolável que surge entre nós.

***

O SEGREDO DO CEO

Durante o dia, Lucas Giacomanni é o homem por trás de


um império. Ceo de uma grande empresa, é tido por todos
como um grande exemplo de responsabilidade e sucesso.
Contudo, o que ninguém sabe é que por trás da fachada de
seriedade, Lucas esconde um lado sombrio e violento.
Durante as noites, ele vive em seu segredo, em um mundo
ilegal regado a sangue.

Amanda é uma jovem em busca de um sonho. Recém


formada em Direito, ela deseja algum dia ter seu próprio
escritório social, para ajudar as pessoas que precisam.
Contudo, nesse momento o que ela precisa com urgência é
de um emprego que lhe permita pagar o aluguel, cuidar da
mãe doente e do irmão adolescente.
Quando o destino coloca Amanda e Lucas frente a frente,
luz e escuridão se chocam. Seus encontros, desencontros
e reencontros mostram que há algo – ou alguém – disposto
a separá-los a qualquer custo, mas que talvez exista uma
força maior ligando-os um ao outro

***

CONTANTO QUE VOCÊ ME AME

Aos 30 anos, Maurício jurava que tinha tudo que precisava:


sexo casual, uma boa casa, uma filha adolescente que o
chamava de velho de vez em quando e até uma cachorra,
a Panqueca. Ou seja, tudo – quase – sob controle. Até que
a tal cachorrinha foge...
Para Carina, as coisas não eram tão simples.
Desacreditada no amor, tinha em seu gatinho Howie D. –
sim, igual àquele da boy band – seu maior companheiro.
Até que ele foge...
Uma troca de animais de estimação, encontros e
desencontros, e um casal que vive feito cão e gato –
literalmente.
Será que o destino se encarregará de unir dois corações
tão diferentes e provar para Maurício e Carina que o amor
pode vir de onde menos se espera?

***
MAIS QUE AMIGOS

Os melhores amigos, Ricardo e Fernanda, jamais


esperavam encontrar um bebê recém-nascido abandonado
em uma lixeira ao saírem de um restaurante. Tal
acontecimento mudou suas vidas muito mais do que
poderiam imaginar.

Anos depois, a menina enfim entra oficialmente para a lista


de crianças aptas à adoção e Fernanda está disposta a
tudo para se tornar sua mãe. Contudo, um casal surge com
a mesma intenção. Solteira e desempregada, Fernanda
percebe que tem menos chances de conseguir e procura o
amigo – de quem acabara se afastando – para ajudá-la
juridicamente, sendo seu advogado. Mas a ajuda que
Ricardo lhe oferece vai além disso.

A ideia de forjar um casamento com seu melhor amigo era


tão louca quanto inusitadamente bem-vinda.

***

SEGREDOS E PROMESSAS

Laís tinha um objetivo bem claro para a sua vida: se formar


na faculdade de Medicina Veterinária. Para isso, deixou a
cidade pequena onde vivia e se mudou para o Rio de
Janeiro, deixando a irmã gêmea Letícia e a sobrinha Isabel,
na época ainda recém-nascida.

Quatro anos depois, a poucos meses de se formar, uma


tragédia acontece na vida de Laís: sua irmã sofre um
terrível acidente e agora está entre a vida e a morte.

Então, surge Heitor, que sem saber do ocorrido quer para


si a guarda de Isabel, a filha que ele apenas agora
descobria ser sua. Com isso, Laís é obrigada a fingir ser
Letícia para, desta forma, evitar que sua sobrinha seja
levada pelo homem com quem sua irmã tivera apenas um
caso rápido na adolescência.

Agora, Laís está em meio a uma teia de mentiras, ao


mesmo tempo em que se vê atraída pelo homem para o
qual ela precisa fingir ser outra pessoa.

Até que ponto suas mentiras poderão ser perdoadas?

***

SEMPRE EM SEU CORAÇÃO

Inglaterra - 1841
Lydia Graham era uma jovem peculiar para a sua época.
Um espírito livre, desprovido de maiores vaidades e das
pretensões comuns às outras mulheres da sociedade.
Por isso, quando descobre que será pedida em casamento
por um Lord para o qual fora prometida ainda bebê, arma
um plano para fugir desse compromisso. Para tal, precisará
forjar um noivado... e o único que pode ajudá-la nisso é
Daniel Brand, seu melhor amigo de infância.
Daniel odeia mentiras, mas encara a farsa, já sabendo que
aquela é a única saída para salvar sua amiga de um
casamento com um homem que ela odeia.
No entanto, com a convivência e a farsa do noivado, Daniel
e Lydia aos poucos vão descobrindo um sentimento que vai
muito além da amizade de infância. Um sentimento novo e
avassalador, que irá abalar suas estruturas e despertar a
ira de outras pessoas.

***

DUAS VIDAS

Maria Eduarda poderia dizer que sua vida começou aos


dezenove anos, ao despertar na cama de um hospital, sem
qualquer memória do acidente que a levou até lá, nem dos
anos que vivera anteriormente. Com a ajuda de sua mãe e
irmã, teve que reaprender tudo sobre si mesma.
Nove anos depois, quando já considerava superadas as
dificuldades de voltar a se conhecer, surge um homem do
interior, trazendo-lhe uma inesperada surpresa. Com isso,
Maria Eduarda aos poucos vai descobrindo a teia de
intrigas e mentiras ao seu redor, tecida pelas pessoas em
quem ela mais confiava.
Mas em quem confiar, quando não se conhece nem a si
mesma?

***

APENAS MAIS UMA DE AMOR

Para Karen, só existia uma coisa mais importante que a


música: a sua família, composta por apenas uma pessoa: a
tia postiça que a criara como mãe. Quando esta adoece,
ela larga toda a sua vida... a banda de rock, a rotina de
shows em barzinhos e sua própria liberdade, para voltar a
pequena cidade de Valença e cuidar dela.

Para Rodrigo, nada nesse mundo era mais importante que


sua fama. Rod Sampaio, como era conhecido, estava há
anos nas paradas de sucesso e era atualmente um dos
cantores mais famosos do país. Somente uma coisa foi
capaz de fazê-lo largar tudo: quando sua própria vida foi
colocada em risco, por conta de uma fã psicótica. Ele só
precisava da desculpa perfeita para o seu afastamento dos
palcos: a obrigação de cuidar da mãe doente. A mesma
mãe com quem ele nunca se importou.

Quando os mundos de Rodrigo e Karen se chocam, por


conta de suas inúmeras diferenças, apenas duas
possibilidades se abrem diante de seus olhos: um eterno
conflito ou uma paixão desmedida, que poderá colocar os
dois tanto em êxtase quanto em um perigo iminente.
***

O TOQUE DE UM ANJO

Foi em um dia de dezembro, próximo ao Natal, que


Vanessa perdeu tudo. Um terrível acidente lhe tirou o
marido, o bebê que ela esperava e sua vontade de viver.

Um ano depois, ela ainda não havia se recuperado quando


um brilho de esperança surge em seu caminho, trazido por
uma criança e pelo homem que, um ano antes, salvou a
sua vida.

Seria ela capaz de reaprender a viver... e a amar?


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